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ÂNGELA MARIA LESSA DA SILVA
DO TEXTO LITERÁRIO AO FILME: DIALÓGOS INTERSEMIÓTICOS
EM A HORA DA ESTRELA
Maceió
2006
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ÂNGELA MARIA LESSA DA SILVA
DO TEXTO LITERÁRIO AO FILME: DIALÓGOS INTERSEMIÓTICOS
EM A HORA DA ESTRELA
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Lingüística, da
Universidade Federal de Alagoas, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre Literatura
em Brasileira.
Orientadora: Profª Drª Magnólia Rejane Andrade
dos Santos
Co-orientadora: Profª Drª Vera Lúcia Correia
Romariz de Araújo
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
Maceió
2006
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ÂNGELA MARIA LESSA DA SILVA
DO TEXTO LITERÁRIO AO FILME: DIÁLOGOS INTERSEMIÓTICOS EM A HORA
DA ESTRELA
Aprovado em agosto de 2006
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Professor Dr. Sérgio Arruda de Moura - UENF
__________________________________________________________
Professora Dra. Magnólia Rejane Andrade dos Santos - UFAL
___________________________________________________________
Professora Dra. Vera Lúcia de Correia Romariz de Araújo - UFAL
___________________________________________________________
Professor Dr. José Aloísio Nunes de Lima - UFAL
DEDICATÓRIA
A mim...
Não por vaidade ou soberba, mas, por ser guerreira na batalha a fim de
conhecimentos.
AGRADECIMENTOS
A Deus, principalmente...
Aos meus pais, Manoel Lessa da Silva e Helena Lessa da Silva, porque me
deram as condições necessárias para realização deste trabalho.
A todos os professores que direta e indiretamente com palavras decisivas e
sugestivas apoiaram e orientaram este trabalho.
Aos amigos que de alguma forma não permitiram que eu desistisse desse
caminho próprio.
Ao Programa de Pós-Graduação Letras e Lingüística - PPGLL desta
Universidade Federal de Alagoas - UFAL e ao Colegiado de Curso pela
oportunidade e apoio nos momentos críticos desse percurso.
Ao Departamento de Comunicação (DCO) da Secretaria Executiva de Fazenda
por compreender e colaborar com este trabalho.
Basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as
realidades, a única irredutível, a existência.
Clarice Lispector
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 9
1. ASPECTOS DE UMA TEORIA DA TRADUÇÃO .......................................... 14
1.1. Antecedentes da Teoria da Tradução .......................................................... 15
1.2. Do Processo Tradutivo Intersemiótico e Adaptação Filmica ......................... 17
1.3. Tradução Intersemiótica ............................................................................... 21
1.4. Conceito de Adaptação Fílmica .................................................................... 27
1.5 Movimentos Sígnicos Da Literatura Ao Cinema............................................. 32
1.5.1 Diálogos do cinema e o papel da montagem .............................................. 42
2. MOVIMENTOS NARRATIVOS EM A HORA DA ESTRELA .......................... 50
2.1. Principais personagens da trama: romance – filme....................................... 52
2.2. O narrador – Rodrigo S.M.: presenças e ausências...................................... 59
2.3. Macabéa incorpora Rodrigo S.M. – conflitos e antíteses .............................. 66
2.3.1. A invenção da personagem: espelho da escritora...................................... 67
2.3.2. Ausência de significados nos diálogos da protagonista ............................ 69
2.4 Jogos de Intertextualidades e metalinguagens em A Hora da Estrela ........... 72
2.5 Características da obra A Hora da Estrela .................................................... 76
2.5.1. O romance: o espelho de signos do filme ................................................. 82
2.5.2. As várias histórias que compõem a narrativa............................................. 84
2.5.3 Recriação de romance: a adaptação fílmica .............................................. 86
3. CONEXÕES POÉTICAS E OUTRAS PONTES SÍGNICAS EM A HORA
DA ESTRELA ................................................................................................. 90
3.1. A natureza do signo estético ......................................................................... 90
3.2. Epifania em AHE1 e AHE2............................................................................ 95
3.2.1. Articulação fílmica .....................................................................................118
3.2.2 As imagens do filme adaptado ....................................................................119
3.2.3. A Direção Paradoxal...................................................................................121
3.4. A construção estética do objeto fílmico .........................................................122
3.5. A dimensão sócio-poética em A Hora da Estrela ..........................................135
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................142
REFERÊNCIAS ...................................................................................................146
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .............................................................................. 149
ANEXOS ..............................................................................................................151
RESUMO
Este estudo tem por objetivo realizar uma análise do texto literário A Hora da Estrela
(1977) e do filme A Hora da Estrela (1986), sob o ponto de vista da teoria semiótica
e da tradução intersemiótica. Busca-se mostrar que o processo da tradução entre
linguagens distintas é possível e abrangente, uma vez que envolve a literatura
(como base) e o cinema articulados com diferentes tipos de signos. A partir do
estudo da tradução e seus conceitos, discutir-se-á o processo de adaptação do
romance para o cinema, de forma a viabilizar o entrecruzamento de linguagens e o
trânsito dos signos. Entendemos que as adaptações fílmicas não podem ser
consideradas apenas fiéis ou infiéis, mas sim, recriações que têm por base matrizes
verbais literárias, conforme postula Haroldo de Campos (1980). Com o objetivo de
complementar nossa análise teórica e crítica sobre A Hora da Estrela - livro e filme,
Do Texto Literário ao filme: diálogos intersemióticos em A Hora da Estrela, objeto e
título desta pesquisa, utilizamos instrumentais teóricos de autores que compartilham
nosso percurso de discussão, tais como Júlio Plaza (1987), Eisenstein (2002),
Gorlée (1993), Benedito Nunes (1989). Esses teóricos possibilitou-nos estudar o
texto literário como se pôde a partir de uma releitura poética de Suzana Amaral, que
em sua obra dialoga e interpenetra semioticamente a obra de Clarice Lispector
atualizando-a na construção da narração cinematográfica e com quais as condições
em que se deu esta recriação.
Palavras-chave: Tradução, Literatura, Adaptação Cinematográfica, Semiótica da
Literatura.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to carry out an analysis of the novel A Hora da Estrela
(1977) and the film A Hora da Estrela (1986), based on the perspectives of the
Semiotics and the Intersemiotics Translation. Theory the study shows that it is
possible to involve distinct languagens in the process of different kinds of Things.
Starting from a study of the translating and its conceptions, we discuss the adaptation
process of the novel for the seventh art, so as to interweave of the different
languages. The analysis is founded on the idea that adaptations can not be
considered as faithful or unfaithful, in fact, they are recreations, transpositions, or
transcreations in the words of Haroldo de Campos. The theoretical perspective of the
study is based on the work of authors such as Júlio Plaza, Eisenstein, Gorlée,
Benedito Nunes, in order to provide a richer support to the theoretical and critical
analysis of both of literary text and the film, focusing on the intersemiotic dialogues in
A Hora da Estrela. They were examined in the light of the literary text as a re-reading
of Suzana Amaral whose work establishes a dialogue with as well as interpenetrates
the work of Clarice Lispector (1977), offering an updated approach to the
construction of the cinematographic narrative.
Key words: Translation, Literature, Cinematographic Adaptation, Semiotics of
Literature.
INTRODUÇÃO
O exercício acadêmico origina-se, quase sempre, de uma relação dupla: o
dever acadêmico formal e, de outra parte, o prazer de pesquisar, cotejar textos e
relacionar idéias. Desenvolver um trabalho de pesquisa é como mergulhar em um
labirinto. Adentramos o problema através da hipótese, sem possibilidades de saber
se é realmente verdadeira, ou qual será a direção correta a seguir ou se o que temos
é simplesmente sugestivo. Então, a pesquisa em questão nasce de um processo
abdutivo
1
, pois a hipótese necessita ser comprovada pela dedução e/ou indução.
Nesta pesquisa, considerando as categorias de primeiridade, secundidade e
terceiridade
2
possíveis de um signo, estabelecemos como premissa a idéia de que
Macabéa não seria a mesma personagem no livro e no filme.
Enquanto no livro predomina o caráter especulativo-poético, no filme, ação e
reação, obsistência e determinação constroem outra personagem. Formulada a
hipótese, ela exigia que fosse testada e aprovada, dentro dos parâmetros científicos
da teoria intersemiótica em que a questão está inserida.
Houve, no percurso da pesquisa, algumas dúvidas e revisões dessa
hipótese, mas a formulação envolvendo as personagens sempre resistia, e isso foi
assim até a análise final do cotejamento do romance literário em si e sua adaptação.
Na análise, optamos por uma abordagem intersemiótica, visto que permite conexões
1
De acordo com C. S. Peirce o processo abdutivo é o “processo de raciocínio responsável pelas
idéias novas. Uma abdução é originária quanto ao fato de ser o único tipo de argumento que começa
uma nova idéia” (PEIRCE, 1974, p. 30).
2
Para construção da Lógica ou Semiótica, Peirce parte da Fenomenologia. Segundo Santaella (2002,
p. 07) “entendemos por fenômeno, palavra derivada do grego Phaneron, tudo aquilo, qualquer coisa,
que aparece à percepção e à mente. A fenomenologia tem por função apresentar as categorias
formais e universais dos modos como os fenômenos são apreendidos pela mente”. Peirce, para
chegar à classificação dos signos, necessitou aprimorar os estudos que o levaram à descoberta de
que são três as categorias mais universais e gerais dos fenômenos que denominou como
primeiridade (emoção), secundidade (aqui e agora) e terceiridade (lei), a relação triádica dos
signos.
11
diversificadas que vão além da palavra e da imagem, como também possibilita
realizar com o texto verbal-literário e o texto sonoro-visual cinematográfico
“articulações transtextualizadas de sentido”
3
(DINIZ, s/d, p. 09). Portanto,
estabeleceu-se um paralelo entre dois sistemas de significação por meio da obra A
Hora da Estrela, romance de Clarice Lispector (1977), e a obra A Hora da Estrela,
filme de Suzana Amaral e Alfredo Oroz (1985)
4
.
Então, nosso principal objeto de investigação passou a ser o procedimento
do processo intersemiótico em A Hora da Estrela e as relações gnicas existentes
entre a Literatura e o Cinema: a identificação dos mecanismos significativos na
construção do filme a partir do estudo da narrativa; a caracterização dos
personagens no texto literário e na obra fílmica, através do processo de adaptação,
observando particularmente a linguagem, planos, ângulos, enquadramentos,
movimento das câmeras, seqüências, pontuação fílmica, banda sonora; os estudos
comparativos das metáforas presentes em ambas as obras e a análise e
caracterização dos personagens em A Hora da Estrela.
Para realização do percurso proposto, nossa conduta foi buscar bases
conceituais nos estudos de Lúcia Santaella (1995), Roman Jakobson (1970), Júlio
Plaza (1987) e Benedito Nunes (1989). Estes autores nos forneceram os
3
Na concepção de Gérard Genette (2005), o termo transtextualidade conceitua-se como “tudo o que
coloca (um texto) em relação, manifesta ou secreta, com outros textos apresentando-se em cinco
diferentes tipos: 1. Intertextualidade presença efetiva de um texto em outro texto. É a copresença
entre dois ou vários textos, por exemplo: citação, plágio, alusão. Então, estudar a intertextualidade é
analisar os elementos que se realizam dentro do texto (inter); 2. Paratextualidade, representada pelo
título, subtítulo, prefácio, posfácio, notas marginais, epígrafes, ilustrações... Esse tipo de relações é
muito amplo e inclui as notas marginais, as notas de rodapé, as notas finais, advertências, e tanto
outros sinais que cercam o texto, como a própria formação da palavra está a indicar; 3.
Metatextualidade é a relação de comentário que une um texto a outro texto; 4. Arquitextualidade
– estabelece uma relação do texto como o estatuto a que pertence, incluídos nela os tipos de
discursos, os modos de enunciação, os gêneros literários e outros em que o texto se torna cada texto
único; 5. Hipertextualidade – toda relação que une um texto (texto B – hipertexto) a outro texto (texto
A – hipotexto)”.
4
Neste trabalho, optamos pelo uso da sigla AHE1 para todas as referências ao romance de Clarice
Lispector dentro do texto, e a utilização da sigla AHE2 para a adaptação cinematográfica do mesmo
texto.
12
fundamentos do processo intersemiótico norteadores da presente pesquisa baseada
nos diálogos semióticos em A Hora da Estrela. Também recorremos aos estudos de
pesquisadoras como Sonia Maria Lanza (1996) e Telma Maria Vieira (1996), que se
detiveram em questões como: a pluralidade e a instigação no texto clariceano e
noções de traduzibilidade também pertinentes a esta pesquisa.
Podemos dizer que esta pesquisa nasceu respondendo a algumas
indagações que ficaram veladas na monografia de especialização e que
necessitavam de respostas. De certa forma, a presente pesquisa é resultado do
desdobramento de trabalho monográfico intitulado “Processo de Tradução
Intersemiótico em A Hora da Estrela,” desenvolvido no curso de Pós-Graduação Lato
Sensu em Comunicação e Cultura, apresentado na UFAL, em dezembro de 2000.
Nele, um capítulo intitulado Transcriação da obra literária A Hora da Estrela para
o Cinema, onde iniciamos a discussão a respeito da inter-relação entre o livro e o
filme. A partir daí, buscamos apreender o estudo sobre as principais características
do texto literário e do código cinematográfico. Trata-se de dois sistemas de
significação que serão estudados de forma distinta, com especificidades de
linguagens, os quais também dialogam, principalmente no caso das adaptações
cinematográficas que têm como referência a matriz literária.
Ao assumirmos o título Do Texto Literário ao Filme: diálogos intersemióticos
em A Hora da Estrela, estamos assumindo também alguns aspectos da teoria
semiótica que permeiam todo nosso arcabouço teórico, bem como outras
perspectivas da teoria literária e da teoria do cinema para a compreensão do
processo de ação dos signos em AHE1 e AHE2.
Para tanto, procura-se utilizar o entendimento conceitual do processo de
transposição sígnica (adaptação do texto verbal ao texto-sonoro-visual). Em outras
13
palavras, esta dissertação tem como objetivo principal fazer uma leitura comparativa
de dois textos narrativos.
Estabelecemos a premissa de que o código narrativo é translingüístico e,
como tal, pode-se manifestar em diferentes representações artísticas, tanto verbais
como não-verbais. Assim, a partir de aplicação conceitual analítica de base
semiótica, verifica-se como se operam a tradução da narrativa de Macabéa do
romance ao filme, tema resultante desse movimento criativo intersemiótico e das
relações de especificidades entre os dois sistemas de signos.
Nessa medida, o primeiro capítulo procura mostrar os aspectos de uma
teoria da tradução, os conceitos de tradução, processo tradutivo, tradução
intersemiótica e adaptação cinematográfica. A discussão sobre o estudo da tradução
será feita a partir dos conceitos de tradução intersemiótica em Philadelpho Menezes
(s/d), Júlio Plaza (op. cit.), e Roman Jakobson (op. cit.). Posteriormente, trataremos
dos movimentos sígnicos da literatura ao cinema. Focamos o olhar nas diferenças e
aproximações das linguagens literária e cinematográfica. Como se trata de um
estudo que envolve dois sistemas narrativos distintos, examinaremos o cinema
enquanto suporte adaptativo, formador de um sistema de comunicação
contemporâneo, nascido no limiar do século passado, sendo a sua base teórica
inicial constituída por autores com formação literária, como, por exemplo, Serguei
Eisenstein (2002).
No segundo capítulo discutiremos os movimentos narrativos na adaptação
em comparação ao romance, signos que se assemelham e se diferenciam e
colocam em ação as idéias da intertextualidade como uma forma de semiose
5
dos
5
O termo semiose, que tem origem grega, Semeiosis, semeio significa signo, e o sufixo sis significa
ato, ação, atividade ou processo, tem para C.S. Peirce (apud SANTAELLA, 1995, p. 43) o significado
de funcionamento do signo, ou seja, ação do signo. “A ação dinâmica, ou ação de força bruta, física
ou psíquica, ou tem lugar entre dois sujeitos (tanto reagem igualmente um sobre o outro, ou um é o
14
objetos sígnicos. Nele abordamos a adaptação fílmica sob o ponto de vista da
linguagem criativa, o que a faz aproximar-se ou afastar-se do prototexto
6
.
A reflexão sobre a hipótese aflora realmente neste capítulo, quando tratamos
da adaptação do livro AHE1 e do filme AHE2. Então, procuramos articular conceitos
sobre transposição, re(criação), transmutação, em busca da análise propriamente
dita das narrativas, para então entendermos os mecanismos do processo tradutivo.
Direcionamos a nossa atenção, sempre que possível, para a narrativa das
linguagens (literária e cinematográfica) e suas formas artísticas e estéticas.
Por fim, o terceiro capítulo: a análise de AHE2, sem perder de vista o
romance. Realizamos uma leitura do signo poético cinematográfico e suas formas de
recriação a partir dos blocos narrativos, eixos temáticos, e descrição das cenas/
passagens/ seqüências, para dessa forma evidenciar a linguagem poética em AHE
e, conseqüentemente, o trânsito criativo dos signos.
paciente e outro o agente, inteira ou parcialmente) ou de uma forma qualquer resulte de ações
similares entre pares. Mas por semiose entendo, pelo contrário, uma ação ou influência que consiste
em ou envolve a cooperação de três sujeitos, o signo, o objeto e o interpretante, influência tri-relativa
essa que não pode, de forma alguma, ser resolvida em ações entre pares. Semeiosis, no período
grego ou romano, à época de Cícero já, se bem me recordo, significava a ação de praticamente
qualquer espécie de signos; e a minha definição confere a tudo o que assim se comportar a
denominação de ‘signo’” (id. ).
6
Entende-se o prototexto como texto original, do qual se cria o metatexto (texto traduzido) no âmbito
tradutológico.
1. ASPECTOS DE UMA TEORIA DA TRADUÇÃO
Esforça-te para ler o que está escrito no lombo das
encadernações, mesmo quando sabes que é inútil,
porque é uma escrita indecifrável para ti.
Ítalo Calvino
A tradução está localizada no terreno comum das generalizações que
cercam os discursos até a asfixia por meio uma série de ciências que tentam
conta da ciência da tradução.
Em princípio, devemos admitir que a discussão teórica sobre tradução é
imensa e bifurcada. Existem variedades de significados para esse termo, visto que
vários tipos de tradução. Tradução envolve interpretação subjetiva e variável no
tempo, no espaço e na cultura, ao se situar entre o contexto lingüístico, literário,
cultural e histórico. Nesse sentido, um ato de traduzibilidade pode ser considerado
como algo efêmero e “inacabado”, sendo suscetível de melhora. Dinda Gorlée (apud
OSIMO, 2003) colabora com esta argumentação ao afirmar que original works are,
often remain over time, authentic, autonomous, unique, and hence essentially
irreplaceable entities. A translation, however, lacks the stability of an original work
and becomes ossified as a dated text-sign
7
.
Isso quer dizer que, nesse sentido, a tradução, segundo Charles Peirce,
passa a receber todos os sistemas de signos, os quais estão para saírem do caos
para a ordem. Os signos nascem em estado caótico, inesperado ou paradoxal e
7
As obras originais são, e o tempo não modifica isso, entidades autênticas, autônomas, únicas e,
portanto, fundamentalmente insubstituíveis. Uma tradução, por outro lado, carece da estabilidade de
uma obra original e se fossiliza como um signo-texto datado”. A tradução é de responsabilidade da
autora deste trabalho, neste e em todos os demais casos ocorridos ao longo do texto. (GORLÉE apud
OSIMO, 2003). Disponível <http://www.logos.it/pls/dictionary/linguistic_resources.cap_1_30?lang=bp>
Acesso em 18.07.03.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
16
passam, por meio da tradução, para um estado mais ordenado, previsível e
racionalizado.
Desse modo, como conceituar tradução
8
? Charles Sanders Peirce (apud
OSIMO, 2003), ao utilizar o termo “tradução”, referia-se à extrapolação do significado
das coisas; assim, toda percepção/tradução/interpretação sucessiva é um
reconhecimento e, portanto, uma nova interpretação da representação mental.
1.1. ANTECEDENTES DA TEORIA DA TRADUÇÃO
A tradução interlingüística
9
é um mecanismo antigo, como podemos
comprovar através das versões mais antigas da Bíblia Sagrada, que têm expressões
em aramaico, partes em hebreu e, no Novo Testamento, um pouco da língua grega.
Durante séculos, a tradução permaneceu marginal, como mais um simples
recurso natural pertencente à cultura. Mesmo com Cícero, em seu tempo,
dedicando-se exaustivamente em seus escritos ao tema, não houve uma
preocupação no campo da teoria da tradução para considerá-la como um estudo
específico.
Contudo, a tradução foi utilizada pelas artes e ciências de forma indistinta a
partir da retórica, passando pela narratologia, lingüística e outros campos do
conhecimento. Até então, não se imaginava que a tradução interlingüística
revolucionaria, de forma contundente, outras ciências. Essa disciplina, na
8
O termo tradução, conforme o dicionário Aurélio (s/d), significa [Do latim traductione “ato ou efeito de
conduzir além, de transferir’” ato ou efeito de traduzir; obra traduzida; versão. Obra passada de uma
língua para outra. Traduzir é transpor de uma para outra língua, interpretar; verter. Naturalmente,
Aurélio Buarque de Holanda (s/d) refere-se a um tipo de tradução denominada por Roman Jakobson
(Apud PLAZA, 1987) de interlingual, situada no âmbito verbal, ou seja, de uma língua para outra.
9
Conforme Dicionário Aurélio, interlingüística é o estudo comparativo das línguas
internacionais e universais, tais como o esperanto, o ido e a interlíngua, entre outras.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
17
contemporaneidade, ocupa posição mais abrangente da tradução que se classifica
em: textual, metatextual, intratextual e extratextual
10
.
Os estudos de tradutologia estão centralizados, em sua maioria, na tradução
textual, pois é sobre ela que mais se tem escrito. É considerada uma ciência
relativamente nova, tendo recebido diferentes designações. Pesquisadores ingleses
deram-lhes o nome de translation studies ou TS, um termo intraduzível para os
idiomas existentes nos cinco continentes, assegurados como objeto de estudos
científicos. Por sua vez, os investigadores franceses denominaram-na de
Traductologie. Antoine Bergman (apud OSIMO, 2003) explicou: “A articulação
consciente da experiência da tradução como fenômeno alheio a todos os saberes
objetivadores externos a ela (como a lingüística, a literatura comparada ou a poética)
é o que denomino traductologie.”
para os alemães, a preferência foi por outra palavra longa
Ubersetzungwissenschaft, que traduzida é Ciência da Tradução.
Na Itália, chamam-na de traduttologia, scienza della traduzione ou teoria e
storia della traduzione. Esta denominação separa a teoria da prática da tradução, o
que revela que o termo está ultrapassado e mantém a base lingüística atrelada à
tradução. Os espanhóis e os latinos adotaram-na como tradutologia, estudos de
tradução ou ciência da tradução, para análises em estudos com enfoque científico.
10
O estudioso da Universidade de Tartu, Peeter Torop, que herdou a cadeira pontifícia de Jurij Lotman
do departamento de Semiótica, escreveu em 1995 um livro intitulado Total’nyjperevod [Tradução
total]. Torop distingue entre vários tipos de tradução. A tradução textual define-se como “o processo
pelo qual um texto se transforma em outro texto”. A tradução metatextual consiste em “um processo
pelo qual se transfere um texto não apenas para outro texto; mas para outra cultura. O prefixo meta,
do grego meta, significa “depois” (e também “com” e “para”). A intertextual é quando um autor
assimila material de outros textos de maneira explícita ou implícita, consciente ou inconsciente; o
material assimilado é chamado intertexto e se realiza em uma tradução intertextual. A tradução
intratextual trata do entrelaçamento da poética do autor entre uma passagem de sua obra e outra
(apud OSIMO, 2003, [Tradutologia - primeira, segunda e terceira partes]).
Aspectos de uma Teoria da Tradução
18
Peeter Torop (apud OSIMO, 2003), aborda duas razões para que a tradução
seja considerada total: a primeira é que “tradução” envolve todos os tipos
classificatórios; a segunda justificativa de Torop é que os estudos devem considerar
as observações realizadas antes da existência da ciência chamada tradutologia e
com isso os estudiosos e investigadores da tradução trataram a tradução
metodologicamente como um sistema científico e homogêneo.
1.2. DO PROCESSO TRADUTIVO INTERSEMIÓTICO E ADAPTAÇÃO FÍLMICA
A tradução é antes de tudo uma forma.
Para compreendê-la desse modo, é preciso
voltar ao original, já que nele está contida sua lei,
assim como a possibilidade de sua tradução.
Walter Benjamin
Alguns estudiosos, a exemplo da austríaca Dinda Gorlée (op.cit.) utilizando-
se da teoria de Charles Sanders Peirce (apud OSIMO, 2003), consagraram muitos
de seus esforços às possíveis aplicações teóricas da tradução a partir da semiótica,
e chegam a incorporar o termo semiotradução para a linguagem científica. Para
esses estudiosos se faz necessário compreender a natureza do processo tradutivo.
Portanto, o processo de tradução é uma relação complexa entre o texto original e o
traduzido. O tradutor que (decodifica) o texto que vai traduzir, o faz projetando-o
como material mental (processamento do material tal como percebe o tradutor) e,
depois, insere tal material em uma estrutura rígida e convencional: o código (a
linguagem do texto traduzido).
Esse procedimento torna-se complexo pelo fato de que, muitas vezes, nas
opções feitas por uma palavra em lugar de outra, surgem novos contextos culturais,
Aspectos de uma Teoria da Tradução
19
ao mesmo tempo em que outros são eliminados. Na verdade não existe uma opção
“definitiva” no processo tradutivo, porque a evolução do prototexto
11
em relação ao
texto global é ilimitada.
Assim, o texto é uma entidade complexa composta, entre outras coisas, por
um sistema de vínculos intertextuais (contexto cultural) e intratextuais (contexto
criativo do autor).
Diante desse quadro fica difícil existir uma equivalência precisa entre signos
nos planos lingüístico e cultural. Na sua atividade de projeção o tradutor privilegia
certos aspectos do prototexto em detrimento de outros que considera de
importância secundária. O que sustenta essa atividade de tradução é a “eleição do
elemento que se considera mais importante na produção traduzida, explica Varelij
Brjusov (apud OSIMO, 2003). Em outras palavras, o objeto a ser traduzido deve ser
analisado com critérios precisos, para enfocar o componente dominante da obra que
está sendo traduzida.
11
Conforme discutimos anteriormente, o prototexto é o texto original de referência. O prefixo Proto
do grego protos, significa primeiro e pode ser utilizado para indicar primeiro no tempo ou no espaço.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
20
O texto analisado submete-se à metodologia apropriada para isolar o
elemento, a dominante, de forma que fundamente a entidade principal em torno da
qual se constrói a identificação do texto. O elemento dominante, segundo Roman
Jakobson (apud OSIMO, 2003) é “o componente no qual se enfoca a obra de arte:
ou seja, garante a integridade da estrutura. O que distingue a obra literária é, em
alguns casos, a função estética do dominante.
No processo de tradução, o dominante de um texto não deve ser identificado
em função da natureza literária ou não literária do prototexto. Assim, conforme
Torop (apud OSIMO, 2003), devemos nos centrar no complexo entrelaçamento de
relações entre o papel do prototexto na cultura e língua de origem e o do metatexto
na cultura e a língua de destino. O autor explica que o modelo teórico do processo
tradutivo deve descrever as diversas possibilidades teóricas de tradução.
Assim, o processo de tradução se caracteriza por uma fase de análise (isto
é, compreensão de todos os seus aspectos) e outra de síntese (isto é, projeção do
prototexto para o leitor).
Para Eco (apud OSIMO, 2003), em The Role of the Reader , quando criamos
um texto, prevemos as reações do leitor, ou seja, a postulação da existência de um
leitor-modelo. O autor observa queThe Model reader is a set of conditions of
satisfatory, textually established, that must be satisfied for a text to be fully actualized
in its potential contents”
12
.
Eco (apud OSIMO, 2003) nos diz que quanto mais o leitor empírico “X” se
distancia do modelo, menos completa será a atualização do conteúdo potencial do
texto, ou seja, serão menos completos o desfrute e a compreensão do texto. Essa é
a fase de síntese do processo tradutivo.
12
O leitor-modelo é um jogo de condições satisfatórias, estabelecidas textualmente, que muito
satisfaz para um texto ser plenamente atualizado num conteúdo potencial.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
21
O estudo sobre a tradução tem pelo menos duas fases: a fase analítica
(quando o dominante da tradução é o interesse pelo autor do prototexto e pelo
tradutor) e a fase de síntese (quando o dominante da tradução é o interesse pelo
leitor-modelo do metatexto). Assim é possível que o dominante do prototexto e do
metatexto nem sempre coincidam.
Essas duas fases (analítica e de síntese) não podem orientar o processo
tradutivo, pois são denominadas por Toury (apud OSIMO, 2003) de princípios de
adequação e aceitabilidade. Uma é a medida que determina o grau de aderência ao
prototexto e a segunda é julgada em relação à cultura de destino do metatexto: uma
tradução exageradamente “adequada” pode ser inaceitável, no sentido de não ser a
expressão concreta de seu leitor-modelo.
Entendemos que existe a recodificação em processo lingüístico, formal e
estilístico, enquanto a transposição é um processo que, no caso do texto literário,
implica a compreensão do modelo poético, da estrutura de conteúdo do texto. Os
dois processos não o, porém, independentes entre si, estão interrelacionados no
plano metodológico, embora no âmbito tradutológico convenha-se considerá-los em
separado, para melhor entender suas diferentes funções no contexto do processo
tradutivo. Torop (apud OSIMO, 2003) obtém uma quadripartição das traduções
possíveis e se apressa a estabelecer o que entende por “tradução adequada”,
definida como uma tradução na qual a transposição e a recodificação atravessam as
fases de análise e síntese conservando a inter-relação peculiar entre os planos de
expressão e conteúdo de um texto determinado.
A partir desse contexto, ressaltar-se-á a parte conceitual da tradução
intersemiótica; os principais tipos de tradução, especificando a fluidez das fronteiras
dos suportes artísticos ora tratados (literatura e cinema).
Aspectos de uma Teoria da Tradução
22
1.3. TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA
Tradução, para Philadelpho Menezes (s/d, p. 01), é ”uma palavra que se
encontra histórica e culturalmente vinculada ao fenômeno da transposição
interlingual”.
Nunes Filho
13
afirma que tradução é um ato crítico de interpretar, leitura,
ação e movimento dos signos”. Para Nunes, o processo de tradução intersemiótica
acontece quando “há transposição de um código para outro código. Essa passagem
de um tipo de signos para outra natureza de signos chama-se semiose, ou seja, o
trânsito dos signos ou a transformação dos signos”. Tanto Menezes (s/d) quanto
Nunes Filho estão discorrendo acerca da tradução intersemiótica, ou transmutação,
aquele tipo de tradução entre vários códigos lingüísticos e artísticos que consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais.
Conforme Julio Plaza (1987, p. 01), foi Roman Jakobson o primeiro a
classificar e definir os tipos de tradução: a interlingual (tradução propriamente dita),
a intralingual (aquela que se na mesma língua de origem) e a intersemiótica
aquela que consiste na interpretação de signos verbais em um conjunto de signos
não-verbais )
14
.
13
Nunes Filho em aula, Especialização em Comunicação e Cultura. UFAL/ DECOS,1999.
(Informação verbal).
14
Além dos tipos de tradução citados, podemos encontrar a Tradução Automática, que tem sido
incorporada como recurso na Internet. Tradutores automáticos com capacidade de aquisição lexical.
Por exemplo, Globalink Power Translator é um software de tradução multilíngüe inteligente; O Delta
Translator é um exemplo de tradutor automático bilíngüe entre a língua inglesa e uma segunda
língua. Note-se que com a proliferação da Internet, nos anos 90, esses programas são utilizados de
forma exaustiva, pois estão disponíveis gratuitamente na rede mundial de computadores. Os
programas desempenham um papel singular na obtenção e disseminação de informação em nível
mundial. A utilização automática desses serviços deve ser adotada com cautela, pois essas traduções
exigem revisão humana, considerando que a T. A. é forte aliada dos tradutores profissionais
(GARRÃO, Milena de Uzesa Tradução Automática ainda um enigma multidisciplinar (PUC RIO).
Disponível em: http//www.filologia.org.Br/vcnlf/anais%20v/civ11
_05.htm. Acesso: 18/02/2005.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
23
Plaza explica que artistas pensadores produziram teorias que investigaram a
tradução que ultrapassa os limites lingüísticos. Como exemplo desses
representantes e precursores citamos Walter Benjamim, Roman Jakobson, Paul
Valéry, Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luis Borges e Haroldo de Campos. Este
último, para Plaza, foi o seu mestre introdutor sistemático e rigoroso, contudo de
sensibilidade sobre a teoria da operação tradutora” intra e interlingual do ponto de
vista poético. (1987, p. 01).
Em seu livro Tradução Intersemiótica (1987), Julio Plaza destaca o papel da
teoria semiótica para que se possam abordar questões relativas ao processo de
Tradução. Para Haroldo de Campos (1929-2003), a tradução é conceituada de
transcriação e transculturação, como um termo expandido no tempo e projetando
na história a idéia prático-teórica de transcriação.
[...] tradução criativa [...] um modo de traduzir que se preocupa
eminentemente com a reconstituição da informação estética do original [...]
não lhe sendo portanto pertinente o simples escopo didático de servir de
auxiliar de leitura desse original. Sua mira é produzir um texto isomórfico em
relação à matriz [...], um texto que por seu turno, ambicione afirmar-se como
um original autônomo (CAMPOS apud CALDAS, 1976a).
Sendo assim, transcriação é um neologismo traçado por Haroldo de Campos
para nomear um tipo de tradução que ultrapassa os limites do significado e propõe a
fazer funcionar o próprio processo de significação original num outro texto. Privilegia
a leitura crítica, pois será por meio dela que poderão se conduzir estudiosos de
literatura à profunda essência do texto artístico, e nos mecanismos mais íntimos.
A análise do Processo de Tradução Intersemiótico em A HE1 e AHE2
resulta em investigar o processo de tradução intersemiótica de um conjunto gnico
Aspectos de uma Teoria da Tradução
24
literário (texto literário) para o sistema significante lmico (texto
traduzido/transcriado/ adaptado).
Assim, o presente estudo se baseia no complexo conceito de tradução
intersemiótica para observar as relações sígnicas entre a obra A Hora da Estrela de
Clarice Lispector e o filme de Suzana Amaral e Alfredo Oroz. Trata-se de um olhar
específico que repousa sobre outros olhares de diferentes naturezas, tais como: o
verbal escrito e o verbal sonoro-visual. Nesta direção torna-se imprescindível
assinalarmos o entendimento interessante de Julio Plaza (1987, p. 01), ao afirmar
que
A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver
com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente
tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-
futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de
estruturas e eventos.
Sendo assim, na análise do filme e do livro como signos, o objeto é o projeto
de Clarice Lispector e o interpretante dinâmico a pesquisa dissertativa, ou seja, o
objeto romance que gerou uma cadeia de novos signos, a adaptação
cinematográfica. Buscamos verificar em que medida as linguagens se intercruzam e
se articulam, bem como de que forma a obra cinematográfica é determinada pelo
texto “original” ou prototexto, e como é possível reconhecer o livro no filme
(metatexto), a partir da relação icônica, indicial e simbólica do sistema literário e
cinematográfico.
Tendo como centro de nossa pesquisa a análise de AHE1 e AHE2, a
finalidade é, a partir do segundo capítulo, compará-los analiticamente. O percurso
em que estão inseridas as principais ramificações das obras, sendo visualizado o
Aspectos de uma Teoria da Tradução
25
desenvolvimento dos signos, cuja ação denominou-se de Semiose, conforme
podemos observar na Figura 01 a seguir.
Fig. 1 – Aplicação da Teoria Semiótica de Peirce
Essa figura desenvolvida faz alusão ao que se visualiza no corpo teórico
estudado, sob o ponto de vista de alguns elementos (signo, objeto e interpretante)
constitutivos da teoria semiótica de C. S. Peirce, como análise do sistema de
significantes.
de se concordar com Plaza e Peirce, que incluem a tradução
intersemiótica como uma ciência mais ampla, porque envolve diferentes linguagens.
Daí a impossibilidade de realizar uma tradução exata entre linguagens verbais e não
verbais ou vice-versa, porque ambos os sistemas possuem raiz e natureza de signos
claramente diferentes. Em uma (na linguagem literária) o isolamento do signo como
unidade elementar inicial não representa dificuldade alguma porque possui formas e
conteúdos diversificados. nas linguagens icônicas, Lotman (1992, p. 38) explica
com eficiência a distinção entre um signo e outro nas linguagens verbais (discretas),
Signo
A Hora da Estrela – Romance e Filme adaptado
Objeto
Projeto de Clarice Lispector
Poético - expressivo
Interpretante Dinâmico
Dissertação de Mestrado
Do texto Literário ao filme: diálogos
Intersemiótiticos em
A Hora da Estrela
Semiose
Ação do signo ou autogeração
Aspectos de uma Teoria da Tradução
26
e nas linguagens contínuas (como a pintura ou as artes figurativas em geral), em
que o texto não é divisível em signos discretos.
Lotman (apud OSIMO, 2003), argumenta o seguinte:
A impossibilidade de realizar uma tradução exata de linguagens discretas
para não-discretas, e vice versa, tem raiz em suas naturezas claramente
diferentes: nos sistemas lingüísticos discretos, o texto é secundário em
relação ao signo, ou seja, divide-se claramente em signos. O isolamento do
signo como unidade elementar inicial não representa dificuldade alguma.
Nas linguagens contínuas, o texto é fundamental: não se divide em signos,
mas é um signo em si mesmo, ou é isomórfico para um signo.
Dessa forma, no processo tradutivo, quase sempre o ato comunicativo
nunca é completo, existindo sempre resíduo em relação à obra original. Assim,
entendemos ser necessário determinar estrategicamente na tradução quais os
componentes mais característicos do texto-referência. A estratégia residual é decidir
quem será sacrificado em nome da traduzibilidade. Para Clüver (apud OSIMO, 2003)
é inevitável que a tradução não seja equivalente ao original e que também não
possa cercear o seu fundamento: Any translation will inevitably offer both less and
more than the source text. A translator’s success will depend also on the decisions
made as to what may be sacrificed
15
.
Em resumo, o que o autor nos diz é que o tradutor deve tomar uma série de
decisões destinadas a individualizar o dominante, em função da sua essência, mas
também em função do contexto cultural em que se situa o texto e para o qual se
dirige o processo tradutivo.
Algumas vezes em que o texto se traduz em outro texto, o tradutor
(metatexto) é consciente das opções que elege, embora em outros casos haja uma
15
Toda tradução oferece, de maneira inevitável, mais e menos que o texto original. O acerto do
tradutor depende também das decisões que tome quando ao que pode ser sacrificado. (CLÜVER,
apud, OSIMO, 2003).
Aspectos de uma Teoria da Tradução
27
certa irracionalidade ao enfrentar a tradução, ao se permitir a expressão
inconscientemente. Nesse caso, a estratégia tradutiva é puramente casual.
Quando um dos textos de uma tradução intertextual não é verbal, a eleição
entre as partes que se traduzem e as que se sacrificam é muito mais evidente. O
tradutor intersemiótico deve visualizar o prototexto em partes dialogantes. Neste
caso, não importa como serão feitas estas partes dialogantes: denotação/conotação,
expressão /conteúdo, diálogos/descrições/, referências intertextuais/intratextuais
(cabe ao adaptador respeitar os traços referenciais da matriz verbal). Depois disso,
deve-se desmontar tais partes do prototexto, encontrar um elemento traduzível em
cada uma delas e voltar a montá-las, recriando a coerência e a coesão do texto.
De acordo com Torop (apud OSIMO, 2003), na tradução fílmica “a diferença
fundamental entre a obra filmica e a literária é que a literatura se fixa em forma de
palavra escrita, enquanto que em um filme a imagem (representação) está
sustentada pelo som, em forma de música ou de palavras” Essa perspectiva reforça
a conceituação adotada no item posterior intitulado “Conceito de adaptação fílmica”.
uma grande diferença entre as formas: uma estimula a imaginação, a outra leva
ao imediatismo, à visibilidade do olhar do outro que substitui a função imaginativa de
cada espectador.
Nesse caso existe uma distinção entre os códigos verbal (escrito/oral) e o
não-verbal (sonoro-visual). Nas películas, é complexo encontrar uma aplicação literal
para a escrita, enquanto que se consente um espaço ao diálogo. A composição
fílmica pode materializar-se por diálogos entre personagens, ambientação natural, as
possíveis vozes fora de campo, a trilha sonora, a montagem, o enquadramento, a
entonação da voz humana ou timbre de voz, a iluminação, a cor, os planos, a
perspectiva, a fotografia etc. Então, para realizar a transposição fílmica de um texto
Aspectos de uma Teoria da Tradução
28
verbal, torna-se necessário fazer uma subdivisão racional do prototexto para decidir
quais elementos da composição fílmica são confiáveis para adaptação de
determinados elementos estilísticos ou narratológicos do prototexto.
Porém, determinados aspectos do prototexto podem ser apresentados de
diferentes maneiras ou de formas mais livres. Enfim, a tradução intersemiótica
implica uma espécie de decomposição do prototexto (matriz verbal) em vários
elementos e a identificação de componentes capazes de imprimirem a coerência
poética do texto transposto.
Em sentido mais amplo, pode-se dizer que o processo de tradução
equaciona-se pela valorização racional da obra de referência ou texto literário. Ou
seja, se o original contém elementos ambíguos ou polissêmicos, o tradutor deve, em
primeiro lugar, lê-los, identificá-los, interpretá-los e, a seguir, transcriar da maneira
mais próxima do original.
Contudo, tratando-se de tradução extraliterária, como no caso da tradução
fílmica, observa-se um paradoxo: em um filme é mais complexo distinguir entre o
plano da expressão e o plano do conteúdo.
No próximo momento colocaremos ênfase, também, na discussão sobre o
conceito de adaptação fílmica e sua relevância como unidade envolvida nessa
proposição investigativa, a versão lmica de um romance, ou seja, comunicação da
diferença de código semiótico.
1.4. O CONCEITO DE ADAPTAÇÃO FÍLMICA
A compreensão do conceito de Tradução Intersemiótica nos conduz
necessariamente ao conceito de adaptação fílmica. A adaptação é considerada
Aspectos de uma Teoria da Tradução
29
como uma passagem de um texto verbal literário de forma adaptada por um roteiro
verbal cinematográfico
16
de uma história para outra. Um romance ou texto literário
pode ser adaptado para outros sistemas de significação como o cinema, o teatro, a
televisão e os sistemas hipermidiáticos. A adaptação passa por um processo de
transcriação entre linguagens.
Ao procurarmos pela definição do que é o termo adaptação, observamos
que se trata de transformação de uma obra literária em representação teatral,
cinematográfica ou televisiva”
17
. Esta definição contida no Dicionário Aurélio nos dá
inicialmente uma noção do que vamos observar a respeito do texto de Clarice
Lispector que foi adaptado para uma outra linguagem: a cinematográfica. A questão
da adaptação costuma ser considerada um termo controvertido, pois, na grande
16
Atualmente se experiencia a produção de roteiros sonoro-visuais. Jean-Luc Godard é um desses
cineastas que inovou a concepção de roteiro que não mais privilegia o verbal e sim a dimensão visual
e sonora com base para realização do filme. Como exemplo de roteiros visuais nas obras de Jean-
Luc Godard, Pedro Nunes Filho (1996, p.208) comenta em As Relações Estéticas no Cinema
Eletrônico que “é o caso de algumas obras de Jean-Luc Godard produzidas em vídeo e revertidas ao
cinema, a exemplo de Numéro Deux(1975), em que trabalha esteticamente a idéia de conjunção
entre cinema e vídeo”. Pedro Nunes complementa com esta citação: “Arlindo Machado faz a seguinte
reflexão acerca do trabalho poético pioneiro de Godard: ‘ o breve interregno do cineasta no campo do
cinema eletrônico aconteceu com maior ênfase no período de 1974-1976, quando Godard,
aproveitando a experiência acumulada nas áreas de cinema e televisão, parte para uma fusão das
duas mídias. Ici et Ailleurs (1974), Comment Ça Va (1975) e Numéro Deux (1975) são realizados em
suporte magnético para posterior transferência a filme. Neles, a fusão de dia se em várias
instâncias: através da integração da tecnologia eletrônica no processo de produção do filme, na
utilização de tomadas no estilo televisual (noticiários, por exemplo) e na incorporação ao filme de
recursos visuais próprios do vídeo’ . (In: A Arte do Vídeo. p. 194). Ainda em Nunes Filho: “Já Nelson
Brissac faz a seguinte observação: Nenhum cineasta explorou mais intensamente a questão das
transformações das imagens que Godard. Ele toma o vídeo como o lugar de sua relação com o
cinema. Alguns de seus últimos filmes são tentativas de mixar os ‘media’, pela imbricação orgânica de
imagens de cinema e de vídeo. Tentativas de descobrir novas formas de escrita e um novo corpo de
imagens. O vídeo é o ponto de intersecção entre essas duas partes, o suporte destas experiências de
decomposição e recomposição’ ”. (In: Imagem-Máquina, p. 244). A respeito de Numéro Deux, Pedro
Nunes apresenta outro comentário “Philipe Dubois afirma o seguinte:’En esta película los dos
soportes son literalmente mezclados, ya que si la película, soporte final para la difusión, es una
película em 35mm, no muestra fundamentalmente, más imágenes que fundamentalmente, más
imágenes que provienen de pantallas y de monitores de vídeo, vueltas a filmar por uma câmera de
35mm, com un mínimo de tratamiento de raccords, incrustaciones, fundidos, producidos
electrónicamente. Hay alli una verdadera interación entre los dos soportes em el marco de esta
película. Se llama Numéro Deux. Este “dos” es muchas cosas, pero también dos soportes. Hay uma
verdadera dualidad instalada en toda esta película. Pero, finalmente, es la época de Godard en la que
intenta literalmente entrelazar los soportes electrónico y cinematográfico, hacer películas que sean
perfectamente mixtas en el plano técnico ”. (In: El Arte del Vídeo. p. 140, apud NUNES FILHO, 1996,
p. 209).
17
Novo Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio Século XXI – digital, editora Microsoft.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
30
maioria das vezes, as adaptações não são bem recebidas por aqueles que já
tiveram um contato anterior com a obra literária. Além disso, a adaptação traz uma
questão bem delicada que é a fidelidade à obra original, na maioria das vezes
cobrada pelos leitores, que não vêem com bons olhos as possíveis modificações
realizadas pelos diretores cinematográficos. É preciso também uma análise da
linguagem para o qual determinada adaptação está sendo realizada. No caso o
cinema percebeu que uma série de elementos presentes no universo literário
serviram adequadamente aos seus propósitos e abrigam temas e estruturas
narrativas que poderiam constituir uma verdadeira fonte de inspiração e de trabalho.
Diante de um assunto tão comum no mundo contemporâneo, a discussão
sobre fidelidade ou infidelidade à obra original emergiu, em grande parte, da
concepção de tradução: um livro pode ser traduzido para outra língua, pode ser
também traduzido para outro sistema de significação, como é o caso do cinema. Os
textos literários ou obras artísticas envolvem ainda um processo de criação.
Uma obra literária sempre permite diferentes possibilidades de interpretação.
O cinema, em geral, sintetiza uma leitura possível, deixando que surjam outras
novas interpretações. Portanto, um filme analisa-se como uma reprodução, releitura
ou nova criação, que se origina de uma leitura da obra literária, mas que se transcria
o livro em outra obra de arte, que tem como suporte a linguagem cinematográfica e
outro efeito estético.
A adaptação deve ser vista como obra independente, autônoma, criação
livre, não podendo estar conjugada aos trâmites da camisa de força da fidelidade ao
livro ao qual submeteu sua base referencial. Além disso, qualquer leitura está
determinada por padrões culturais que contextualizam a tradução intersemiótica de
textos literários para o cinema. Além desses padrões, o processo tradutivo é regido
Aspectos de uma Teoria da Tradução
31
por convenções próprias da linguagem do filme. O livro lida com palavras, a
realidade é escrita e narrada de forma que não se conta, porque extrapola nossa
apreensão, enquanto o filme deve recorrer à imagem, articulada com som, música,
textos escritos e falados. Os elementos são “recodificados” num novo sistema de
significação. Dessa forma, o filme não substitui o livro, como se espera; nenhuma
leitura de texto literário tem contido nela o filme; podemos afirmar que são duas
tessituras distintas que partem de uma matriz verbal.
É necessário considerar que a adaptação lmica de um texto literário
engloba outros aspectos, como circunstâncias sociais e históricas da produção do
filme e a visão de mundo do cineasta/escritor. Tal compreensão é particularmente
comum nas obras cinematográficas modernas do pós-guerra, da Europa e do
terceiro mundo. Esse movimento narrativo entre a literatura e o cinema mobiliza uma
rede de subcódigos inerentes a cada proposta fílmica.
Esse processo complexo de recriação passa pela construção do roteiro, que
emana como resultado interpretativo da referência literária.
É certo que uma adaptação fílmica de uma obra da literatura corresponde a
uma leitura desta, sendo que nenhuma leitura detém de modo inequívoco ou
absoluto o significado de um dado texto. Tanto a literatura quanto o cinema, ao
estabelecerem diálogos, produzem cruzamentos de significação de sentidos e
aumentam o repertório semiótico de signos dos leitores/espectadores.
A cineasta Suzana Amaral define adaptação como uma recriação do seu
metatexto. “Adaptar um livro é partir da obra original para criar outra obra. o é
transcrever página por página”
18
. Ainda acrescenta que adaptar é
18
AMARAL, Tata. De lugar algum para lugar nenhum. Entrevista Cinema. Disponível
em<http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1768,1.shl> Acesso em: 05/05/2005.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
32
Criar uma linguagem a partir de uma outra linguagem. Veja: a literatura
trabalha assim: eu leio, releio, vejo se gosto ou não gosto, passo a me
basear no que leio, mas mando o modelo para casa. Esqueço o livro.
Trabalho como se fosse cinema, trabalho respeitando o médium cinema. [...]
Não vejo necessidade de respeitar fatos, nomes, detalhes concretos, mas a
alma do livro tem que ser respeitada. (AMARAL, 2005).
A adaptação cinematográfica do filme AHE2 caracteriza-se como uma
operação complexa do movimento do signo. O filme se realiza enquanto processo
tradutivo, a adaptação do romance em filme. A cineasta contextualiza recriando seu
metatexto do prototexto de Clarice Lispector, o livro AHE1 adaptado para o cinema.
Permite com que os autores tenham sua visão sobre a história, sendo livres para
criar suas próprias idéias. É preciso também, no roteiro cinematográfico, permitir os
furos ou entrelinhas sobre a história que se projeta em tela.
Então, esse movimento de transmutação da obra literária ao roteiro e
materialização na obra fílmica é o que chamamos de adaptação cinematográfica,
também caracterizado como uma forma de tradução intersemiótica ou canto
paralelo, conforme designação proposta por Haroldo de Campos (1970).
No próximo capítulo evidenciaremos o encontro deste movimento sígnico
entre a literatura e o cinema e do cinema com a intrincada interação com o papel da
montagem que destacamos e integra o corpus deste trabalho.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
33
1.5. MOVIMENTOS SÍGNICOS DA LITERATURA AO CINEMA
Pelo fato da análise em A Hora da Estrela tratar-se de um processo de
intersemiose, decidimos adensar nosso estudo com apontamentos sobre os
movimentos sígnicos da literatura ao cinema.
Santaella nos fala sobre a matriz verbal e sua visualidade da seguinte forma:
As matrizes não são puras. Não linguagens puras. Apenas a sonoridade
alcançaria um certo grau de pureza se o ouvido não fosse tátil e se não
ouvisse com o corpo todo. A visualidade, mesmo nas imagens fixas,
também é tátil, além de que absorve a lógica da sintaxe, que vem do
domínio do sonoro. A verbal é a mais misturada de todas as linguagens,
pois absorve a sintaxe do domínio sonoro e a forma do domínio visual.
(SANTAELLA, 2001, p. 371).
Prematuramente os cineastas viram na Literatura uma fonte de temas e de
estruturas narrativas que poderiam se constituir em obras fílmicas. Foi assim que
Griffith
19
não hesitou em reconhecer que colhera em Charles Dickens modelos
narrativos, técnicas, concepção de ritmo e suspense, articulando duas ações
simultâneas e paralelas no processo de montagem cinematográfica. Méliès, em
1902, inicia o seu interesse pelas obras de Júlio Verne, levando para as telas
Viagem à lua (1902), dirigida por ele mesmo
20
. Em 1950 adaptava da Literatura,
Fausto e Margarida; em 1951, A Gata Borralheira.
19
Griffith foi um cineasta norte-americano (1875-1948) que realizou cerca de 500 filmes curtos entre
1908 e 1914, produziu 30 filmes longos até 1931. Todos são mudos, exceto os dois últimos. É
admirado pela montagem de Intolerância (Intolerance, 1916) e O nascimento de uma nação (The
Birth of a Nation, 1915). Além disso, Griffith contribui para a introdução da linguagem cinematográfica
no cinema, criou o primeiro plano ou “grande plano” capaz de produzir “uma nova qualidade do
conjunto a partir da justaposição de partes isoladas”, o plano close up. (EISENSTEIN, 2002, p. 207).
20
George Méliès, junto com Max Linder, foi quem fez nascer a magia do
cinematógrafo, conforme Luís Miguel Oliveira de Barros Cardoso (2005, p. 01). In.:
Disponível em http:// www.opv.pt/forumedia/5/17.htm. Acesso em 23/08/2005.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
34
Essa relação familiar entre romance e literatura começou no início do
século XIX. Alguns autores de romances clássicos, como Cervantes, Flaubert,
Balzac, Dostoievsky, Tostoi, entre outros, tiveram suas obras literárias adaptadas
para o cinema. Podemos exemplificar com os autores modernos, como Jack London,
Henry James, Franz Kafka, Ernest Hemingway ou William Faulkner, que também
tiveram suas obras adaptadas para o cinema. Tratam-se de movimentos sígnicos
que se materializam do texto literário ao texto cinematográfico.
Os primeiros teóricos do cinema demonstraram que existem diferenças
entre a linguagem literária e a linguagem cinematográfica
21
, como também que
semelhanças e influências de uma sobre a outra. Mesmo sendo dois complexos
significantes distintos – um verbal e outro sonoro-visual –, a literatura, especialmente
a prosa, tem sido a grande referência narrativa para o cinema.
Para o cineasta Jorge Furtado (2003), o cinema sempre fez da literatura sua
parceira, o cinema sempre aprendeu com a literatura, não filmando suas
histórias, mas também reproduzindo seus procedimentos narrativos”. Furtado
observa que no livro Mimesis de Erich Auerbach, há um traçado paralelo entre os
modos de representação da realidade nas duas formas artísticas de linguagens,
conforme escreveu:
De Homero o cinema aprendeu o flash back e a idéia de que cronologia é
vício. De Petrônio, o poder dramático da prosódia e a subjetividade do
discurso. De Dante, a vertigem dos acontecimentos, a rapidez para mudar
de assunto. De Boccaccio, a idéia da fábula como entretenimento. De
21
É importante destacar que o cinema possui regras de articulação bem mais flexíveis do que os sistemas
verbais. Também o termo linguagem cinematográfica” é contestado por alguns teóricos de cinema que
defendem que o cinema não possui uma linguagem própria. Em O movimento sinestésico da montagem. As
Relações Estéticas no Cinema Eletrônico: um olhar intersemiótico sobre a Última Tempestade e Anjos da Noite,
Nunes Filho (1996, p. 73) comenta sobre a questão: “[...]sabemos de toda polêmica em torno do fato do cinema
possuir ou não uma linguagem própria. Muito embora o código cinematográfico não possua comparativamente
as regras rígidas dos sistemas verbais, dispõe de suas características próprias que lhe conferem determinada
autonomia enquanto um sistema articulado de signos. Eisenstein, ao longo de seus estudos, nos demonstra a
existência da linguagem cinematográfica com suas inúmeras particularidades. O parâmetro para essa adoção
evidentemente não é a linguagem verbal, muito embora o cinema extraia d alguns componentes que se
adequam à nova linguagem audiovisual”.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
35
Rabelais, os delírios visuais e a certeza de que a arte é tudo que a natureza
não é. De Montaigne, o esforço para registrar a condição humana. De
Shakespeare, Cervantes (e também de Giotto) a corporalidade do
personagem e o poder da tragédia. Da comédia de Molière o cinema
aprende que a história é uma máquina. Voltaire ensinou a decupagem, a
técnica do holofote e o humor como forma avançada da filosofia. De Goette
o cinema (e também a televisão) aprendeu o prazer do sofrimento alheio.
De Stendhal e Balzac vem o realismo, a narração off e o autor como
personagem. De Flaubert vem a imagem dramática e o roteiro como
tentativa de literatura. Brecht é o pai do cinema-teatro e a idéia de que
realismo tem hora. (FURTADO, 2003).
Através desses caminhos diversos, como bem evidencia Furtado,
observamos o movimento da literatura ao cinema sem prejuízos para cada
modalidade de expressão. Tais escritores aprimoraram técnicas narrativas literárias
que foram igualmente desenvolvidas pelo cinema, além de suas obras serem ricas
fontes para inúmeras adaptações cinematográficas. São caminhos que se
entrecruzam, recriando situações em uma nova realidade expressiva. Assim, o
cinema aprende com a literatura como transpor ou adaptar palavras em imagens,
cabendo ao leitor/espectador realizar suas leituras pessoais, a partir da estrutura da
obra adaptada.
Dessa forma, é justo postular que o cinema sempre procurou estabelecer
relações com a literatura ou vice-versa
22
, porque a proximidade narratológica pode
ser uma contigüidade entre esses dois sistemas semióticos de produção de sentidos
e de autogeração de signos
23
.
22
Devemos também ter em conta um movimento contrário do cinema à literatura, ou seja, filmes que
se transformaram em obras literárias. Um exemplo dessa aproximação inversa do cinema para a
literatura é o filme dirigido por Arnaldo Jabor “Eu Sei Que Vou te Amar(1986). É oportuno também
destacar, além de A Hora da Estrela (1977) de Clarice Lispector, outras obras literárias que se
tornaram lmicas como: Macunaíma: o héroi sem nenhum caráter, de Mário de Andrade (1944), O
Processo de Franz Kafka (1883-1924), dirigido por David Jones (1993); Dona Flor e seus dois
maridos, obra de Jorge Amado, dirigida por Bruno Barreto (anos 70); A Insustentável Leveza do Ser,
romance de Milan Kundera, foi para as telas do cinema por Philip Kaufman (1988); La Lectrice
romance de Jean Raymond (1986), dirigida por Michel Deville (anos 80) entre outros.
23
Lúcia Santaella, em A Teoria Geral dos Signos conceitua autogeração como “[...] a
ação do signo, que é a ação de ser interpretado, apresenta com perfeição o
movimento autogerativo, pois ser interpretado é gerar um outro signo que gerará
outro, e assim infinitamente, num movimento similar ao das coisas vivas”. (1995, p.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
36
Com relação aos processos de adaptação de linguagens, Jean Mitry (apud
ANDREW, 1989) enunciou duas opções para o cineasta que desejasse adaptar uma
obra literária para o cinema: primeiro, seguir a história passo a passo e tentar
traduzir não a significação das palavras, mas aquilo a que as palavras se referiam;
nesse caso, o filme seria uma representação recriada do romance. A segunda
possibilidade seria a de repensar a temática oferecida, imprimindo-lhe outro olhar e
outro sentido.
Cineastas tentaram reproduzir e/ou mostrar as atividades do cotidiano vivido
pelas pessoas, sentiram necessidade de olhar para as adaptações de romancistas
clássicos, incluindo uma série de produções que se reportariam a Victor Hugo,
Alexandre Dumas, Dostoievski, Dickens, entre outros.
Em geral, as adaptações tinham quase sempre pretensões comerciais. Os
filmes de ficção oriundos dessas adaptações fecharam o tempo da sessão
cinematográfica em média de duas horas.
Com o tempo a transposição da literatura para o sistema audiovisual vem
sendo discutida a partir do universo histórico, componentes estéticos e éticos. Do
ponto de vista estético cada suporte (literatura e cinema) tem suas características
próprias, no que diz respeito à natureza de suas linguagens e procedimentos
narrativos. O universo de informações é apreendido em tempo e espaço quase
sempre distintos, porém respeitam-se as características essenciais estruturantes da
obra literária.
A capacidade de (re)criar uma nova mensagem sobre um texto preexistente
também encontra eco no pensamento de Ute Hermans (apud FURTADO, 2003),
11) Dessa forma entendemos que a tendência do signo é crescer ad infinitum nos processos de
intersemiose entre a literatura e o cinema.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
37
para quem o texto literário contém elementos que mobilizam a imaginação e que vão
sendo transformados em signos de natureza visual e sonora.
Assim, o roteiro também expressa dimensões invisíveis como: pensamentos,
lembranças, esquecimentos, sentimentos na arte de filmar. O roteirista traduz em
palavras coisas visíveis e invisíveis. A literatura opera com o código verbal, a palavra
e a imaginação. Por essas razões é que alguns textos, por sua vez, são muito mais
facilmente adaptáveis do que outros. Há de se observar que a proximidade entre
literatura e cinema como “texto fílmico” adaptado traz/conta a história, que tem por
base um texto referência, com seqüências de eventos ocorridos e vivenciados com
determinados personagens situados num determinado espaço de tempo
24
.
É importante lembrar o movimento sígnico entre as construções literárias e
fílmicas que, conseqüentemente, proporciona aos leitores/espectadores um
crescente valor que se agrega à produção artística, enquanto dinâmica
interpretativa, inerente às próprias linguagens dos suportes.
Por sua vez, as construções literárias também possuem um pensar
meticuloso no seu engendramento artístico, para que a obra permaneça sempre viva
e aberta ao leitor. Ao mesmo tempo, o aspecto da interpretação é sempre
incompleto. O repertório cultural do intérprete/leitor estabelece associações. Isso se
faz possível devido à natureza autônoma e relativa do signo, que se modifica e
atualiza com o olhar atento do observador. O processo de interpretação não limita a
pluralidade que evoca a obra. Nesse caso, as mentes interpretativas geram um
processo de semiose do signo, as quais não são exclusivamente interpretativas,
24
“O texto fílmico narra freqüentemente uma história, uma seqüência de eventos ocorridos a
determinadas personagens num determinado espaço e num determinado tempo, e por isso mesmo é
tão freqüente e congenial a sua relação intersemiótica com textos literários nos quais também se
narra ou se representa uma história”. Disponível em http://www.ipv.pt/forumedia/5/17.htm Acesso
em: 23/08/2005.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
38
pois apresentam nível de autonomia enquanto construção. Todo processo de
semiose tem uma objetividade semiótica que deve ser respeitada, do ponto de vista
do engendramento da construção artística literária.
Assim, o cinema desenvolveu um código próprio, estabelecendo-se como
narrativa que sofreu influência da Literatura mesmo sendo sistemas semióticos
distintos. Numa perspectiva da semiótica fílmica, os filmes devem ser
compreendidos enquanto signos de uma estrutura narrativa com diferentes sistemas
de códigos e subcódigos que estão imbricados.
Entende-se que a linguagem fílmica e a linguagem literária podem
apresentar relações de semelhanças, o que corrobora a caracterização de obras
mesmo não fílmicas, porque não existem fronteiras gidas entre o verbal e o visual,
por exemplo, na utilização da colagem
25
e da interrupção em textos surrealistas, na
ordenação dos planos em Ulisses
26
, de James Joyce.
O cinema narrativo, acima de tudo, elucida, com transparência, as
semelhanças com a narrativa fílmica e a narrativa literária, embora toda narrativa
deva se apoiar no conhecimento prévio que o criador tem da realidade
27
.
O ponto de vista estético destacado é que, se na literatura temos uma
narração atemporal
28
, no cinema esta variável é temporal. Nessa Classificação,
25
Conforme dicionário Aurélio digital, ed. Microsoft., colagem significa “[..] no período 1912-1914,
época da evolução do cubismo), referia-se ao processo, adotado por Picasso (v. picassiano) e
Georges Braque (1882-1963), de aplicar no suporte pictórico tecidos, papéis pintados, recortes de
jornal e outros materiais. O uso de elementos de texturas diversas na colagem estendeu-se, depois,
ao domínio da escultura, vindo a influir em criações do surrealismo”.
26
O escritor irlandês James Joyce que escreveu, entre outras, a obra-prima Ulisses. Uma obra
universal, fecunda em assuntos diversificados e conteúdos capazes de proporcionar inúmeras
explicações sobre a vida e a existência humana. Comenta Luis Miguel Oliveira de Barros Cardoso a
respeito do modernismo e o exercício literário em Cinema e Literatura” em Literatura e Cinema:
simbioses narratológicas, Disponível em http://ipv.pt/forumedia/5/17.htm. Acesso em 23/08/2005.
27
Algumas obras fílmicas adaptadas conseguiram criativamente superar a matriz verbal literária. Em
outras situações o cinema tem cometido um verdadeiro sacrilégio, descaracterizando integralmente o
texto literário. Isso se deve a juventude do cinema enquanto forma de estruturação da narrativa cujos
procedimentos de construção sígnica se desenvolveram com o passar do tempo, principalmente no
tocante a uma possível gramática cinematográfica.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
39
Lúcia Santaella (2001, p. 316-339) explica o que vêm a ser narrativas e as classifica
subdividindo-as em três tipos. Inclui e define, assim, as modalidades temporais e
atemporais.
Defino a narração como o universo da ação, do fazer: ação que é narrada.
Portanto, a narrativa em discurso verbal se caracteriza como o registro
lingüístico de evento ou situações. Mas só ação onde existe conflito, isto
é, esforço e resistência entre duas coisas: ação gera reação e dessa inter-
ação germina o acontecimento, o fato, a experiência”. (p. 322).
Santaella utilizou-se dos estudos formalistas e estruturais e da gramática da
narrativa para formalizar essa classificação da narrativa.
Embora cada um de nós estabeleça o próprio ritmo de leitura, “cada um de
nós passa o tempo que quiser observando um quadro. Mesmo o teatro, o ator pode
esperar que o público pare de rir de uma piada para dar seqüência ao texto. Sendo
um filme de 1 hora e 32 minutos, é visto por qualquer espectador em 1 hora e 32
minutos”. (FURTADO, 2003).
28
Lúcia Santaella (2001, p. 316-339) faz um estudo sobre a narração. Afirma que a “narratividade é
modalidade precípua do verbal, podendo estar subjacente também à descrição e à dissertação, e
podendo se espraiar ainda para as outras matrizes, a sonora e a visual. Contudo, estas duas últimas,
sonora e visual, m uma autonomia lógica própria, como matrizes de linguagem e pensamento que
também são e, como tal, a narratividade não lhes é inerente”( p.322). A classificação da narrativa é a
seguinte: 1.a narrativa espacial, “aquela em que a linearidade começo, meio e fim da história
narrada é rompida, isto é, os eventos não se encadeiam seqüencialmente, uns após os outros, em
direção a um fim, superação de relações conflitantes. Em vez de relações de contigüidade entre as
seqüências do acontecimento, estabelecem-se relações mais complexas, ou seja, organizações
paralelísticas simetrias, gradações, antítese responsáveis por uma multiplicidade simultânea de
visões de um mesmo evento. [...] A espacialidade é característica típica das narrativas literárias. As
seqüências do discurso narrativo adquirem uma configuração diagramática por serem dispostas em
paralelos mais ou menos regulares, que, devido a uma certa semelhança entre si, desenham um
espaço interno que é próprio ao texto.”(p. 326-27) Dessa forma subdivide a narrativa espacial em:
espacialização icônica, indicial e simbólica. 2. narrativa sucessiva consiste na “relação entre as
seqüências da história de ordem cronológica. As ações se sucedem no tempo, num encadeamento
linear, umas depois das outras. É o caso típico da maioria das notícias jornalísticas: o acontecimento
é relatado no seu encaminhamento temporal, primeiro isto, depois aquilo etc”. (p.331) Santaella
subdivide a narrativa sucessiva em: descompasso temporal, grau zero narrativo e sucessividade
cronológica. 3. A narrativa causal: neste caso entre as partes narrativas uma ligação de
determinação mais lógica do que meramente cronológica. nela um enlaçamento entre a
consecução e a conseqüência, o tempo e a lógica. É o tempo narrativo sob o domínio da lógica de
narrar” (p. 336). Esta última modalidade, Lucia Santaella subdivide em: causalidade difusa, imediata e
mediatizada (p. 337).
Aspectos de uma Teoria da Tradução
40
Isso implica afirmar que o cinema possui uma ambientação própria, com
elementos ausentes na literatura, a exemplo dos movimentos de câmera,
enquadramentos, iluminação, cor etc. Furtado observa que o cinema, ao contrário
da literatura, é um evento, um ritual para o qual nos vestimos, saímos de casa e
pagamos ingresso, um ritual compartilhado com outros espectadores”. (FURTADO,
2003). A narrativa cinematográfica, ao contrário da narrativa literária
29
é “intuitiva,
29
Entende-se que narrar é representar fatos reais ou fictícios utilizando signos verbais ou não verbais.
A narrativa é a forma de composição na qual um desenrolar dos fatos reais ou imaginários, que
envolvem personagens e que ocorrem num tempo e num espaço. No caso da narração, é um relato
centrado num fato ou acontecimento; há personagens e habitualmente um narrador que relata a
ação. O tempo e o ambiente (ou cenário) são outros elementos importantes na estrutura da narração.
A narrativa literária é aquela que descreve os cenários, os figurinos, a atmosfera e, podendo invadir a
subjetividade das personagens, descreve suas intenções, por mais ocultas que sejam. Além disso,
pela sua própria natureza, tende a relatar acontecimentos que ocorreram e, no momento da leitura,
pertencem ao passado. Possui várias características: a dramatização é freqüente; desfruta de maior
liberdade no uso dos tempos verbais; pode ocorrer narração em tempo real; o narrador é criado com
mais liberdade, podendo ser puro ou engajado à cena; utiliza a metonímia com finalidades diversas:
para atenuar, agravar, tornar o discurso conciso etc; preferência pelo detalhamento para criação de
atmosferas, envolvimento etc; empatia, envolvimento e presentificação são categorias com objetivos
centrais na narrativa literária; pontos de vista comprometidos com um personagem ou com alguma
tendência do narrador; a ordem de apresentação tem mais liberdade, em geral evita a ordem por
importância decrescente. Outras vezes, cria suspense, usando em ordem crescente. A narrativa
literária busca ludicidade, manipulação psicológica, crítica. Disponível em:
www.lanavision.com/walcestari/images/ docs/curso_de_redacao/narracao_teoria.doc . Acesso em
15/10/05.
Ainda à respeito desse assunto , o conceito de “narração” em literatura e em cinema não apresenta
muitas diferenças: Para Gérard Genette, “a passagem de um vel narrativo para outro pode ser
assegurado pela narração, ato que consiste precisamente em introduzir em uma situação, por meio
de um discurso, o conhecimento de uma outra situação. Toda e qualquer outra forma de transito é,
senão sempre impossível, pelo menos transgressiva. Após citar exemplos transgressivos em
Cortazar, Diderot e Sterne, Genette afirma: Nós estenderemos a todas as transgressões o termo de
metalepse narrativa” (SANTANA, 1973, p. 244).
Pode-se dizer, então, que a narração não se confunde com a narrativa. Narrativa é o nome geral e
genérico dado aos textos que apresentam uma estória ou uma seqüência de eventos. A narrativa é o
récit dos franceses. A narração é o modo como o discurso se monta, é o discurso em sua
articulação. A leitura da narração é mais paradigmática (ou verticalizante) do que sintagmática e
superficial. ( ibid., p, 11).
Narração em cinema: “A narração em cinema se aplicava por meio da sucessão de
planos (tomada à distância, tomada média, primeiro plano etc.) Essa era a
linguagem de Welles. [...] Era descritiva e psicológica e tinha como elemento de
expressão o corte, que nos levava alternadamente de um plano a outro. Não havia o
‘plano profundo’. Para passar de um plano próximo para um distante era necessário
o corte. Por meio da descoberta do ‘plano profundo’, Orson Welles modificou a
narração clássica. E como? Simplesmente constrangendo o espectador a fazer uso
de sua liberdade de atenção, a sentir a ambivalência da realidade. [...] Lembro-me
da première de ‘Cidadão Kane’ [...] e a impressão à primeira vista intolerável que o
público teve deste novo tipo de narração. {SALLES}. Uma aula sobre Orson Welles.
Mais! (FOLHA DE S. PAULO, 29/09/96, caderno Mais, p. 13).
Aspectos de uma Teoria da Tradução
41
ninguém precisa ser alfabetizado para entender um filme” (FURTADO, 2003).
Mobiliza o espectador com a ilusão do movimento, a dinâmica dos cenários e os
recursos visuais próprios e os procedimentos sonoros e de montagem.
Destacamos que a posição de Furtado a respeito da questão do evento no
cinema está equivocada, porque acreditamos que tanto a literatura como a outra
linguagem possuem, cada uma, a sua forma de ritual e acontecimento na realização
das leituras, ou seja, ambas possuem o seu momento caracterizado como evento e
sua especificidade.
Assim, as formas de expressão cinematográficas têm como base a literatura
ou não, e têm dado, neste século de existência, uma vasta contribuição ao acervo
do conhecimento humano e à própria arte. Tanto o cinema como a televisão foram
responsáveis por compartilharem diferentes visões de mundo em diferentes épocas
e países, tratando temas polêmicos ou cristalizando valores analisados da sociedade
de consumo.
As relações entre essas duas formas de arte e expressão significante
(cinema e literatura) nem sempre foram convergentes, harmônicas, e sendo por
vezes conflituosas. Antes do estabelecimento do direito autoral, em 1910, os
cineastas simplesmente roubavam histórias dos livros. em 1911 Gabriel
d’Annuzio vendeu toda a sua obra literária existente e futura, para que uma empresa
cinematográfica italiana pudesse adaptá-la ao cinema. Desde então, milhares de
livros têm sido adaptados para o cinema
30
.
No começo dos anos 50, Cornell Woolrich publicou numa revista barata de
contos policiais uma história intitulada Tinha que ser assassinato. No ano de 1954,
ou seja, quatro anos depois, o conto de Woolrich torna-se um dos maiores clássicos
30
Ely Azeredo, citado por Furtado, afirma que a Bíblia Sagrada é o primeiro livro mais adaptado, com
incontáveis adaptações. O segundo livro é o Sir Athur Conan Doyle, com mais de 200 versões de
Sherlock Holmes. Em terceiro lugar aparece o Drácula de Bram Stoker. (FURTADO, 2003).
Aspectos de uma Teoria da Tradução
42
da história do cinema, adaptado por Alfred Hitchock com o título de Janela
Indiscreta. Ironicamente, Alfred Hitchock afirma que “livros ruins é que dão filmes
bons”. (apud FURTADO, 2003).
Eisenstein foi um dos primeiros teóricos a refletir sobre a importância da
literatura na definição de uma obra cinematográfica. Destacando diversas
influências, não só dentro do cinema, mas também noutras artes como o teatro e a
literatura.
Em seu livro A forma do Filme, Eisenstein ( 2002, p.176) diz que:
Griffith e nosso cinema [...] se baseiam num enorme passado cultural; cada
parte deste passado, em seu momento da história mundial, impulsionou a
grande arte da cinematografia. Que este passado seja uma reprovação às
pessoas inconscientes que trataram com arrogância a literatura, que
contribuiu tanto para esta arte aparentemente sem precedentes e é, em
primeiro lugar, e mais importante: a arte de observar.
Eisenstein explica que qualquer forma de expressão trata da arte de
observar. Observar a vida e traduzi-la em obra. Assim sendo, tal posicionamento
lembra as palavras de Clarice Lispector, quando, em A Hora da Estrela, demonstra
que criava a partir da imagem de uma realidade nordestina, uma personagem a que
ela i dar vida, somente porque observou e pegou de relance a fisionomia de
perdição no rosto daquela moça nordestina chamada pelo narrador de Macabéa.
Neil Postman também observa que o texto impresso exige raciocínio
dedutivo.
Empregar a palavra escrita significa seguir uma linha de pensamento que
exige um poder considerável de classificação, de inferências e
argumentação. Uma sociedade baseada sobretudo no texto escrito seria
aquela em que o lógico, a ordem e o contexto predominam. Numa
sociedade baseada em imagens, por outro lado, lógica e contexto perdem
terreno para a gratificação imediata. A revolução da imagem transformou
nossa maneira de pensar (apud FURTADO, 2003).
Aspectos de uma Teoria da Tradução
43
Por esse viés, observa-se que na transposição da literatura para o cinema,
televisão ou teatro, “todas as obras adaptadas aumentam em muito suas vendas. Eu
não sei se as pessoas lêem os livros, mas sei que elas compram os livros, o que é
bom” (FURTADO, 2003). O simples fato de o cinema incentivar a leitura, remetendo
o espectador a uma nova condição de leitor da obra literária, justifica as
adaptações fílmicas, além de intensificar o processo de semiose [ver nota de rodapé
nº 6] que se caracteriza pelo movimento dos signos.
Então, contrariando qualquer valorização de um digo ao outro, é legítimo
que se façam algumas considerações sobre o cinema e o papel decisivo da
montagem que “implica seleção e integralização na construção de um filme”.
(LEONE e MOURÃO, 1987, p.78)
1.5.1. Diálogos do cinema e o papel da montagem
O instante capta a forma; a forma faz ver o instante.
Valéry
O cinema se firmou como nova forma de expressão sígnica que incorporou
parcialmente outras modalidades artísticas coerentes com sua proposta estética
futura, como a literatura, o teatro, a pintura, a fotografia, a música, a dança etc.
Contudo, o cinema desenvolveu a sua própria linguagem. Atualmente o cinema é um
dos objetos de estudo da ciência da percepção, que os gregos denominaram de
Estética.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
44
O meio de expressão cinematográfico, como também a literatura, se apóiam
no conhecimento que o espectador/leitor possa ter da realidade. O discurso se vale
disso.
Sendo o cinema uma modalidade de produção gnica particularmente, com
pouco mais de cem anos, sua especificidade é a presença de uma linguagem
nascente e, exatamente por isso, coloca-se mais como meio de expressão do que
como arte propriamente dita. Como afirma Mitry (apud ANDREW, 1989, p.76), “a
‘especificidade’ do cinema é a presença de uma linguagem que quer se tornar arte
no seio de uma arte que, por sua vez, quer se tornar linguagem”. É certo que
atualmente já existe o cinema arte que extrapola os padrões lineares da narração do
lugar comum que se encontra no cinema comercial.
Como forma de trabalhar essa especificidade do cinema, Eisenstein (2002)
diz que o cinema começou a existir antes de ser inventado. Ele teorizava que a
montagem já existia na pintura, no teatro; cita soluções de cena e a forma de
interpretar dos atores do teatro Kabuki. A montagem existia na música de
Debussy e Scriabin e na prosa com Gorki, Maiakovski.
Em meados do século XX, o cinema passa a ser visto como uma forma de
expressão legítima e não como uma simples técnica, baseada na montagem. Até
então, o cinema era trabalhado em tempo real, quando era visto apenas como
representação, chamava-se de “cinelíngua” (VERTOV apud EISENSTEIN, 2002);
(depois) o plano e a montagem são vistos como partes de um processo mental. O
cinema consegue condensar o tempo e consegue nova qualidade.
A montagem, entendida literalmente, constitui-se ao se levar o material
filmado (o grosso) para a sala de montagem, sendo em seguida selecionado na
moviola.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
45
O cineasta russo traz o conceito de formalismo da literatura para o cinema.
Não leva em consideração o óbvio, percebe que poderia haver uma montagem
interior do plano (ou montagem conceitual). Eisenstein (2002) valoriza a montagem
no cinema criando uma relação paradigmática como forma de produzir sentidos.
Coloca nos planos todos os signos paradigmáticos e sintagmáticos.
Eisenstein procurou desenvolver um conceito para o espectador associar por
contigüidade e semelhança a cena do filme ao conceito montagem no interior dos
planos. Desenvolveu a metáfora para o cinema
31
. Os signos gráficos têm formas, a
cor tem tons, o som tem escalas e podem se associar com outra e produzir um
encadeamento de sentido metafórico.
O músico usa uma escala de sons; o pintor, uma escala de tons; o escritor,
uma lista de sons e palavras e estes são todos tirados, em grau
semelhante, da natureza. Mas o imutável fragmento da realidade factual,
nesses casos, é mais estreito e mais neutro no significado e, em
conseqüência, mais flexível à combinação. De modo que, quando colocados
juntos, os fragmentos perdem todos os sinais visíveis da combinação,
aparecendo como uma unidade orgânica. Por que deveria a combinação de
três pedaços de filme, na montagem, ser considerada uma colisão tripla,
impulsos de três imagens sucessivas? (EISENSTEIN, 2002, p.16).
Na verdade, Eisenstein (2002) instaura tipos de conflitos, efeitos que unidos
adquirem uma qualidade na linguagem do cinema e, conseqüentemente, juntam,
dimensionam a montagem filmica. Nesse sentido, a montagem conceitual foi uma
nova era que o cineasta instaurou no cinema, porque fez com que o espectador
entendesse a dinamicidade das mensagens comunicativas.
31
A metáfora, conforme Pedro Nunes (1993, p. 61-62), em seu artigo Cinema & Poética. Metáfora:
jogos de metalinguagem, afirma: “reveste-se como um imenso desafio para as diversas áreas do
conhecimento”. (p. 51) Para o autor, “é uma espécie de pane sobressalto que corporifica num quadro
que supõe operações semióticas no universo da linguagem”. (p. 52) Acrescenta que “os conceitos de
metáfora também são conflitantes. Conceituá-la rigidamente é querer navegar em terreno árido, pois
de se convir que a metáfora, simples ou complexa, sempre se apresenta a partir de sua estrutura
de forma flexível: é um artifício de linguagem”.(p. 55) Por fim, Pedro Nunes conceitua metáfora. “È o
movimento da ambigüidade, e da ausência presentificada, ausências que instauram presenças, esse
é o movimento epifânico e, por assim dizer, transcendental da metáfora” .
Aspectos de uma Teoria da Tradução
46
No processo fílmico, a ordenação das seqüências ou cenas (conjunto de
planos) e a estruturação do som denominam-se também montagem. Consiste em
ordenar os pedaços significativos do filme (cenas, seqüências, som) numa
determinada ordem cronológica ou temática. Sendo assim, a obra cinematográfica
(filme) é uma história contada com imagens em movimento.
Para o cineasta Eisenstein (2002), o cinema já existia antes do cinema
continuando a existir fora dele. Eisenstein inventou vocábulos como “tipagem”,
mise-en-scène”, mise-en-cadre”. Depois, Glauber Rocha utilizou-a como mise-en–
sense
32
.
Em A Forma do Filme, Eisenstein (2002, p. 09) apresenta a fórmula E=mC²
para orientar o entendimento do que vem a ser cinema, onde E (de energia)
corresponde a Eisenstein, o m corresponde a montagem, e (a velocidade da luz)
corresponde ao cinema: o cinema que existe depois da invenção do cinema mais o
que já existia antes da invenção do cinema.
O conceito de montagem em Eisenstein tem muitas fontes, como as teorias
dialéticas de Hegel, Marx, também as teorias da psicologia da cada de 20 (Jean
Piaget, Pavlov, Freud, Gestalt e Lev Vygotsky), bem como a escrita ideogramática
oriental, o haicai, o teatro Kabuki, estudos da cor, da forma musical e da própria
estruturação do pensamento
33
.
Na concepção de Sergei Eisenstein a montagem é “o poder criativo do
cinema, o meio através do qual as ‘células’ isoladas tornam-se um conjunto
32
Tipagem e/ou tipificação: esse processo foi desenvolvido por Eisenstein. Propunha a
caracterização dos personagens através dos traços físicos para que o espectador reconhecesse as
personagens através dos traços faciais; mise-en-scène é a inter-relação de pessoas em ação e mise-
en-cadre quer dizer plano, transições de plano para plano, ou seja, a composição pictórica de cadres
(planos) mutuamente dependentes na seqüência da montagem.
33
Conforme Nunes Filho (1996, p. 76), em A montagem eisenteiniana In: As Relações Estéticas no
Cinema Eletrônico: um olhar intersemiótico sobre a Última Tempestade e Anjos da Noite. João
Pessoa; Natal; Maceió: Editoras UFPB/UFRN/UFAL.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
47
cinemático vivo; a montagem é o princípio vital que dá significado aos planos puros”.
(apud ANDREW, 1989, p. 61).
Este conceito de montagem foi construído antes da introdução do som no
cinema, daí a necessidade de o autor estar sempre atualizando-se, à medida que o
cinema foi sendo desenvolvido, e incorporando novos avanços tecnológicos.
Vale destacar que Eisenstein (2002), que se destacou pelos estudos da
montagem conceitual, incluiu a descrição dos detalhes na literatura, que
equivaleriam aos closes ups incorporados por Griffith à nova linguagem.
Eisenstein (2002) foi buscar da estrutura teatral a representação literária, as
bases para a criação de uma linguagem visual própria nunca antes confrontada com
o espectador contemporâneo: a linguagem da ilusão do movimento. Griffith e Sergei
Eisenstein (2002) contribuíram para a formação da linguagem cinematográfica,
apontando elementos para o futuro da teoria da sétima arte, ou seja: um conflito de
idéias quanto à representação e interpretação de sua imagem.
A partir das teorias propostas por Eisenstein, ainda na década de 20 do
século passado, a montagem desencadeou uma capacidade de gerar um novo
conceito, o que para ele sempre foi evidente, considerando que a montagem era
sempre uma mola propulsora do ritmo e da agilidade narrativa de seus filmes A
Greve (Statchka) 1924; O Encouraçado Potemkin – (Bronesonetz Potemkin) -
1925; Outubro Dez Dias que Abalaram o Mundo (Oktiabr Dessiat Dnei Kotoye
Potriasli Mir) – 1928.
A partir de sua experiência com teatro, ele lançou a concepção de a
montagem de atrações, também conhecida como montagem intelectual ou
dialética:
Aspectos de uma Teoria da Tradução
48
A atração tal como a concebemos é todo o fato mostrado, conhecido e
verificado, concebido como uma pressão produzindo um efeito determinado
sobre a atenção e a emotividade do espectador e combinado a outros fatos
possuindo a propriedade de condensar a sua emoção em tal ou tal direção
ditada pelos objetivos do espetáculo. Deste ponto-de-vista, o filme não pode
contentar-se simplesmente em apresentar, em mostrar os acontecimentos,
ele é também uma seleção tendenciosa desses acontecimentos, a sua
confrontação, libertos das tarefas extremamente ligadas ao tema, e
realizando, em conformidade com o objetivo ideológico do conjunto, um
trabalho adequado ao público. (EISENSTEIN, 2002, p. 79).
Dessa maneira cria-se um cinema altamente embasado na construção de
sentido. Alargam-se as perspectivas para filmes mais realistas, registrados por
diferentes objetivos de classe, ideológicos e históricos.
Eisenstein demonstra-se influenciado pelo processo cinematográfico
conhecido como tipagem e/ou tipificação. Também propõe várias distinções de
montagem: métrica, rítmica, tonal, sobretonal e intelectual
34
. Cabe um detalhamento
sobre as características de cada uma delas, para ressaltar a importância de
Eisenstein, como forma de melhor compreender o cinema contemporâneo e, em
particular, A Hora da Estrela.
AHE2, dirigido por Suzana Amaral, cineasta que estudou na ECA-SP, e
absorveu sobre a teoria do cineasta, portanto recorre a aplicação desse aprendizado
sobretudo no diz respeito ao princípio de montagem eisensteiniana e, ao mesmo
tempo, recria adaptando. O filme poderia ter-se tornado banal, se realmente Suzana
34
Conforme o próprio Eisenstein (2002), a montagem conceitual resulta da incorporação de todas
essas categorias: 1. Montagem Métrica associação de planos a partir de seus comprimentos em
processo análogo ao compasso musical. 2. Montagem Rítmica “Aqui, o comprimento
matematicamente determinado do fragmento de acordo com a fórmula métrica. Aqui seu comprimento
prático deriva da especificidade do fragmento, e de seu comprimento planejado de acordo com a
estrutura da seqüência.” (EISENSTEIN apud NUNES FILHO, 1996, p. 91). 3. Montagem Tonal é
uma espécie de variação/aprimoramento da montagem rítmica. Neste caso o movimento “é percebido
num sentido mais amplo. O conceito de movimentação engloba todas as sensações do fragmento de
montagem. Aqui a montagem se baseia no característico som emocional do fragmento.” (p. 79-84). A
Montagem Atonal é também um aprimoramento da montagem tonal, distinguindo-se dela. Origina-
se pelo “ conflito entre o tom principal do fragamento (sua dominante) e uma atonalidade. 5.
Montagem Intelectual modalidade de montagem que opera com conceitos de apelo intelectual,
exigindo por parte do espectador uma atividade pensamental. O método de combinação é por
atonalidades intelectuais. (p. 77-85).
Aspectos de uma Teoria da Tradução
49
não utilizasse como suporte a montagem conceitual de Eisenstein, montagem no
interior do filme, fazendo com que as emendas de um plano a outro produzissem
mais do que a simples obrigação de contar história. Suzana aplica a teoria de
montagem de Eisenstein em AHE2, produzindo sentido em cenas do cotidiano de
Macabéa. Mesmo o estando no romance não prejudica a obra, porque está de
acordo com o personagem. A cineasta sabia que era impossível contar a história
com o narrador personagem Rodrigo S.M., então cria cenas de cotidiano que
cabem no filme e não caberiam no romance, o movimento que dinamicidade nas
seqüências por semelhanças, contigüidade, metáforas, havendo realmente
comunicação entre a obra e o espectador. Curiosamente, a cineasta Suzana Amaral
não admite que tenha aplicado o conceito de montagem desenvolvido por
Eisenstein. Em entrevista através de e-mail, a cineasta argumentou: “Não houve
nada disso. Houveram [sic] apenas decisões de montagem que fossem coerentes e
necessárias para a narrativa fílmica que eu queria dar ao filme e fidelidade ao que o
filme deveria ser e contar. Sem preocupações teóricas intelectuais. Nada de
‘montagem conceituais’” ( AMARAL, 2006).
Eisenstein deu continuidade aos trabalhos de Kuleshov
35
, propondo o uso
constante da montagem por ele chamada intelectual, e que se baseia no conflito-
justaposição de planos significativos paralelos. Também se baseou na teoria dos
reflexos condicionados de Pavlov, em que determinados estímulos operam no
espectador como forma de obter as reações desejadas ou previamente pensadas.
35
Kuleshov, estudioso da montagem no cinema, influenciou Eisentein, ligava planos diversos,
aparentemente sem nenhuma continuidade; mostrou que a significação de uma seqüência pode
depender exclusivamente da relação subjetiva que o expectador faz de planos diversos. Através
desse choque dialético entre diversos planos, que aplica a montagem um significado a mais dentro da
semiótica cinematográfica, são lançadas as bases da mensagem subliminar, a qual tem extrema
importância no aspecto ideológico da arte e da comunicação.
Aspectos de uma Teoria da Tradução
50
A montagem de Eisenstein é uma síntese, uma simbiose entre arte e
ciência, entre estética e métrica. O realizador russo interessou-se mais pelas idéias,
visto que, para ele, o pensamento era sensual e imagético. Chegou mesmo a pensar
que a linguagem dos povos primitivos era mais imagética e metafórica que as das
nações desenvolvidas. Interessou-se pelo Japão, e desenvolveu estudos sobre o
teatro Kabuki. Observou forte parentesco entre os princípios de representar desse
teatro, o ideograma escrito em japonês e os vetores da sua montagem. Sua
compreensão do processo fílmico e da montagem envolveu estudos literários que
são bases para a construção da teoria do cinema.
Logo após esta discussão sobre o cinema e o papel da montagem, cabe
destacar um outro aspecto que deve ser analisado: os movimentos narrativos,
particularmente em A Hora da Estrela (livro e filme). Estes movimentos narrativos
serão visualizados, evidenciando necessariamente as relações dialógicas entre as
obras.
2. MOVIMENTOS NARRATIVOS EM A HORA DA ESTRELA
36
Inumeráveis são as narrativas do mundo.
(BARTHES)
O nosso trabalho permeia a discussão sobre os diálogos entre as narrativas
literária e cinematográfica, dando ênfase à dinâmica dos signos. A finalidade deste
capítulo é abordar as características pertinentes a ambas as obras significantes,
articular as suas divergências e aproximações, semelhanças, e a ão criativa da
narrativa nos dois suportes de expressão cultural.
Há, em primeiro lugar, uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos
entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o
homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela
linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem fixa ou móvel, pelo
gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente
no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história,
na tragédia, no drama, na comédia, na pantomina, no vitral, no cinema, nas
histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso, sob
estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos,
em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a
própria história da humanidade; não há, não em parte alguma povo
algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas
narrativas, e freqüentemente estas narrativas são apreciadas em comum
por homens de cultura diferente, e mesmo oposta: a narrativa ridiculariza a
boa e a má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa
está aí, como a vida (BARTHES apud SANTAELLA, 2001).
36
A Hora da Estrela foi o último romance publicado em vida por Clarice Lispector. Ao longo de sua
vida Clarice Lispector escreveu diversas obras: romances e novelas Perto do Coração selvagem
(1944), O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (1949), A maçã no Escuro (1961), A Paixão Segundo G. H.
(1964), Uma Aprendizagem ou o Livro dos prazeres (1969), Água Viva (1973), A Hora da Estrela
(1977). Contos e Crônicas: Alguns contos (1952), Laços de Família (1960), A Legião Estrangeira
(1964), Felicidade Clandestina (1971), A Imitação da Rosa (1973), A Via-Crúcis do Corpo (1974),
Onde Estivestes de Noite (1974), De Corpo Inteiro (1975), Visão do Esplendor (1975), Para não
esquecer (1978), Um Sopro de Vida -Pulsações (1978), A Bela e a Fera (1979), A Descoberta do
Mundo (1984). Infantis: O Mistério do Coelhinho Pensante (1967), A Mulher que Matou os Peixes
(1968), A Vida Íntima de Laura (1974), Quase de verdade (1978), Como Nasceram as Estrelas
(1984).
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
52
O enredo de A Hora da Estrela, entendido como componente da narrativa,
envolve a protagonista Macabéa, uma moça alagoana que mal tem consciência de
ter existência real. Depois de perder a sua única ligação com o mundo familiar, uma
velha tia que a maltratava, viaja para o Rio de Janeiro (no filme a cidade é o
Paulo), onde aluga uma vaga num quarto, compartilhado com mais quatro
companheiras balconistas das Lojas Americanas (as Marias da Penha, Aparecida,
José e Maria apenas). Consegue um emprego como datilógrafa num escritório
denominado Pereira Ramalho e exaure suas horas ouvindo a “Radio Relógio”,
recortando anúncios publicitários dos jornais velhos, colando-os num álbum (no
filme cola-os na parede) e sonha em ser estrela de cinema (no filme ela diz “um dia
vou ser artista de cinema”), como Greta Garbo e Marylin Monroe. Apaixona-se,
então, por Olímpico de Jesus Moreira Chaves, um metalúrgico paraibano, que logo a
trai com uma colega de trabalho, a personagem Glória (o oposto da protagonista).
Macabéa, notoriamente possuidora de traços apáticos e passividade, é induzida por
Glória a consultar uma cartomante, Madama Carlota, que lhe prevê um futuro
resplandecente, bem diferente do que a espera. Ao sair da casa da cartomante,
Macabéa é atropelada por um Mercedes, dirigido por Hanz (o príncipe encantado
previsto pela cartomante), resultando em sua morte e, conseqüentemente, nas
mortes do narrador Rodrigo S. M. (personagem do romance que no filme é
substituído por mecanismos da linguagem cinematográfica).
O romance é constituído por seqüências narrativas de núcleos organizados,
entrelaçados em torno do drama de Macabéa, ou seja: infância, migração, emprego,
os prazeres, namoro, perda, consulta à cartomante e morte da protagonista
37
.
37
Seqüências narrativas propostas por nia Lanza no trabalho interpretativo A Hora da Estrela:
fragmentos de um texto plural (LANZA, 1996, p. 50), tendo como base conceitos formulados por
Roland Barthes em Introdução à Análise estrutural da Narrativa. (BARTHES et al., 1972).
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
53
É importante frisar que no filme nem todas as seqüências narrativas estão
presentes em sua totalidade. Algumas ficam subentendidas ou diluídas nos diálogos
do filme: a infância da personagem e o paradoxo são as variantes que Suzana
Amaral excluiu e acrescentou, nessa ordem, como aberturas exclusivas para o
espectador fazer sua interpretação crítica.
Neste sentido, Nunes Filho (1996, p. 111) afirma que:
O objeto fílmico, entendido como produto de uma cosmovisão sincrônica
peculiar do cineasta e também como resultado de uma trama de mediações
intersemióticas, é, num certo sentido, infiel ao objeto literário que toma como
referência, porque evidentemente traz à tona procedimentos específicos do
código cinematográfico, tais como inusitados movimentos de câmara,
dissolvências, simultaneidades sonoro-visuais, cominação pontuada e
ritmada de imagens que se articulam plenamente com o diagrama sonoro,
recriação da atmosfera cenográfica, ênfase criativa na utilização cromática
das cenas com seus sutis atores do interior de cada quadro ou seqüência e
variações em torno do tema.
Esses procedimentos ressaltam as qualidades icônicas, do tecido imagético.
Referem-se à provável infidelidade da atividade criativa por se tratar de objeto fílmico
A Hora da Estrela que comporta nova roupagem estética presente como novo objeto
semiótico.
Esses blocos temáticos que perfazem as oito seqüências narrativas são
esboçados por personagens caracterizados pela presença da cultura (postura,
costumes, linguagem, forma de expressar) e perfil físico, enfim, todos os aspectos
representativos da realidade do nordeste brasileiro e também expressam as
desigualdades sociais existentes em nosso país. Juntos formam o novelo do tecido
narrativo que se complementa, justapõe-se, entrecruza, revela identidades.
2.1. PRINCIPAIS PERSONAGENS DO ENREDO
38
: ROMANCE - FILME
38
Os conceitos de enredo e trama foram elaborados pelos formalistas russos. Ler TOMACHEVSKI,
1976, p. 169-204; ou MESQUITA, 1986.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
54
Ao procurarmos estabelecer o movimento narrativo do romance ao filme,
citamos algumas características dos personagens principais. Então, os excertos
foram retirados da própria narração do romance para formamos os dados sobre suas
qualidades impressas no texto clariciano.
Macabéa, a criatura-personagem e anti-heroína, tem
[...] vida primária que respira, respira, respira. [...] dormia de combinação de
brim com manchas bastante suspeitas de sangue pálido. [...] ela era
incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. [...]
Não sabia que era feliz. [...] Assoava o nariz na barra da combinação. o
tinha aquela coisa delicada que se chamava encanto. [...] A única coisa que
queria era viver. Não sabia para que, não se indagava. [...] A mulherice
lhe nasceria mais tarde porque até no capim vagabundo desejo de sol.
[...] Sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada.
Quando acordava se sentia culpada sem saber por que, talvez porque o que
é bom devia ser proibido. [...] o se tratava de uma idiota, mas tinha a
felicidade pura dos idiotas. [...] Ele era subterrânea e nunca tinha tido
floração. Minto: ela era capim. (LISPECTOR,1999, p. 31)
39
.
Macabéa, é um exemplo bem acabado da improcedência para a vida, pois
está inconsciente de si mesma, alienada de qualquer realidade interior ou exterior
(sente dor e não sabe onde dói é uma dor no corpo diante dos fatos). O seu
estado de consciência representa um refúgio para a real identificação com um
mundo melhor, mais feliz, e com sua verdadeira personalidade. Ela não pensa em
futuro e, de repente, por causa das palavras de uma cartomante, vê-se diante de um
futuro que desconhecia. Esse momento mágico de descoberta, característica das
obras de Clarice, é denominado de epifania.
Olímpico de Jesus Moreira Chaves, que vai se tornar o namorado de
Macabéa e foi bem caracterizado pelo narrador:
O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois
nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. [...] Mentiu ele
39
Algumas citações deste romance foram extraídas da edição, 1977, publicada pela Editora Jo
Olympio, e outras citações foram extraídas da 23ª Edição, publicada pela Editora Rocco, 1999,
porque houve novo lançamento da edição do livro revista pela editora Rocco.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
55
porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que não
têm pai. [...].
No Nordeste tinha juntado salários e salários para arrancar um canino
perfeito e trocá-lo por um dente de ouro faiscante. Este dente lhe dava
posição na vida. Aliás, matar tinha feito dele um homem com letra
maiúscula. Olímpico não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste
de “cabra safado”. Mas não sabia que era artista: nas horas de folga
esculpia figuras de santos e eram tão bonitas que ele não as vendia. [...]
vinha do sertão da Paraíba [...] nascera crestado e duro que nem galho
seco da árvore ou pedra ao sol.[...] Ter matado e roubado faziam com que
ele não fosse um simples acontecido qualquer, davam-lhe uma categoria,
faziam dele um homem com honra lavada [...] seu destino era o de subir
para um dia entrar no mundo dos outros. Ele tinha fome de ser o outro.”
(LISPECTOR, 1999, p. 43).
Olímpico de Jesus, o paraibano, assassino, ladrão e ambicioso, tem um
desejo: vencer na vida e ser deputado. Sem instrução e metido a homem valente,
tem orgulho de possuir dente de ouro (no filme diz a Macabéa que vai extrair todos
os dentes e recolocá-los todos em ouro). Na verdade, Olímpico apresenta-se como
uma filigrana estereotipada do brasileiro nordestino, com todas as características
culturais em grande fatia de ironia e humor criada pela escritora (no filme Olímpico é
mais caracterizado neste aspecto mencionado por Suzana Amaral). Olímpico
apresenta-se como um homem machista, preconceituoso e sem instrução
educacional, menos atordoado que Macabéa. Resumindo, retrato de um malandro
em busca da riqueza, por meio de evasivas para contornar sua vida.
Rodrigo S.M., narrador, escritor, personagem e testemunha:
[...] A história determino com falso livre-arbítrio vai ter uns sete
personagens e eu sou um dos mais importantes dele, é claro. Eu, Rodrigo
S.M. relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos
à guisa de originalidade.[...] Sim, não tenho classe social, marginalizado que
sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com
desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a
mim. [...] Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não lugar
para mim na terra dos homens”. (ibid., p. 12).
Rodrigo S.M., considera-se mais importante entre todos os outros. Ele
possui pouca sofisticação, é sarcástico diante da narração da história, bem como
uma “ambivalência sexual” no livro.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
56
Madama Carlota, prostituta e cartomante:
[...] Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele sempre me ajudou. Olha,
quando eu era mais moça tinha bastante categoria para levar vida fácil de
mulher. E era cil mesmo, graças a Deus. Depois, quando eu não valia
muito no mercado, Jesus sem mais nem menos arranjou um feitio de eu
fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa de mulheres.
eu ganhei dinheiro e pude comprar este apartamentozinho térreo. Larguei a
casa de mulheres porque era difícil tomar conta de tantas moças que
faziam era querer me roubar. [...] Olhe, a polícia não deixa pôr cartas, acha
que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a polícia
consegue desbancar Jesus. [...] Eu tinha um homem de quem eu gostava
de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar
em trabalho nenhum. Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando
ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de
apanhar. [...] Ouvi dizer que o Mangue está acabando, que a zona agora
tem uma meia dúzia de casas. Em meu tempo havia umas duzentas. Eu
ficava em pé encostada na porta vestindo calcinha e sutiã de renda
transparente”. (LISPECTOR, 1999, p.73-75).
Madama Carlota no filme, a cartomante, apresenta-se como ex-prostituta e
cafetina, maquiada com certa extravagância, possui gosto inadequado, tem orgulho
de ser o que é, mas também fala das suas misérias como a decadência física, pois
na prostituição adquire doenças e torna-se vítima da agressividade dos clientes. Faz
a leitura do destino de Macabéa e trabalho para Glória arranjar marido, vende a
ilusão de um futuro feliz para Macabéa, promete-lhe felicidade. Madama Calota
(interpretada no filme pela atriz Fernanda Montenegro) dá à cena mais
grandiosidade. Macabéa, quando faz o corte das cartas, passa a ter um destino,
um certo suspense. A visita de Macabéa à casa de Madama Carlota é o clímax da
história.
Glória, colega de Macabéa:
[...] Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era
amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano
escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice. Oxigenava
em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas.
[...] Sou carioca da gema! [...] O fato de ser carioca tornava-a pertencente
ao ambicionado clã do sul do país. [...] apesar de feia, Glória era bem
alimentada. E isso fazia dela material de boa qualidade. [...] Era um
estardalhaço de existir. E tudo porque Glória era gorda. [...] roliça, branca e
morna. [...] oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que ela
não raspava. [...] Tinha um vago senso de maternidade. [...] Usava uma
forte água-de-colônia de sândalo. (ibid., p. 59-64).
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
57
Glória, a colega de escritório da protagonista, era bem nutrida, oxigenava os
cabelos, apresenta-se como o perfil da mulata brasileira, com seu gingado popular,
considerava-se uma mulher de “classe”, praticava o aborto como algo natural, tinha
uma família (pai açougueiro, mãe), nada material lhe faltava. Detentora de desejos e
sensualidade, uma mulher alegre, com traseiro arrebitado, ninguém mandava nela,
tinha uma certa atenção por Macabéa, pois ainda conversava com a protagonista.
Através de Glória, Macabéa conecta-se ao mundo.
As Marias eram quatro mulheres: no filme uma Maria, denominada de
Maria das Dores, outra criação da cineasta.
[...] Quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas
Americanas. [...]“O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua
do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros, depósito de carvão
e de cimento em pó, não longe do cais do porto. [...] Estavam cansadas
demais pelo trabalho que nem por ser anônimo era menos árduo. Uma
vendia pó-de-arroz Coty, mas que idéia. Elas viravam para o outro lado e
readormeciam. (LISPECTOR, 1999, p. 30-31).
As Marias, companheiras de quarto da protagonista, eram mulheres
trabalhadoras, vendedoras de cosméticos, mão-de-obra proletária da sociedade
consumista; na verdade não tinham quase nada, só a vida. Viam as novelas da TV
através da vidraça do vizinho (no filme), cozinhavam, lavavam e cuidavam da
estética, estavam interessadas em sua própria sobrevivência, eram amigas uma das
outras, mas da protagonista eram apenas colegas.
Esse conjunto de personagens forma a narrativa em A Hora da Estrela.
Todos se apresentam com relevante riqueza por se posicionarem bem
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
58
caracterizadas, desenvolvendo uma função figurativa nas histórias do romance e na
ficção do filme
40
.
Se no romance existe um narrador-personagem-protagonista, que simula ser
o autor da obra chamado Rodrigo S.M. e/ou Lispector, na película a hora e a vez é
da Macabéa mostrar sua imagem e voz. Na escrita, Macabéa possui outra voz,
imposta ou endossada por Rodrigo S.M.. Macabéa é “como uma galinha de pescoço
mal cortado que corre espavorida pingando sangue. que a galinha foge como
se foge da dor – em cacarejos apavorados. E Macabéa lutava muda”. (LISPECTOR.,
1999, p. 81). Macabéa não grita nem esperneia se faz presente no discurso de
Rodrigo S.M. e, influenciando-o “de dentro para fora”, vai se fazendo presente e
dizendo de si.
A partir da mente das personagens chega-se até o “monólogo interior”
41
,
onde a linguagem perde os nexos lógicos e se torna caótica, e a própria influência
do cinema como linguagem contribuiu na releitura.
Enquanto no filme seu nome é intensificador, Macabéa no livro é diminuída
para Maca. Os personagens integrantes da história se relacionam com a
protagonista de forma indiferente e irônica. Sua presença é expressiva na narrativa
clariceana, não pela sua beleza, mas pelo inverso, não pela habilidade em dominar
as palavras, ou saber usá-las para se comunicar, mas pela falta de expressão, até
mesmo corporal, pela ausência de desejos básicos e essenciais do ser. A
protagonista é ironicamente desajeitada em tudo, mas não desiste de colher as
40
GOTLIB (2000) coloca que o filme A Hora da Estrela, dirigido por Suzana Amaral e baseado no
romance de Clarice Lispector, detém-se numa só história - a de Macabéa - desmanchando, pois, este
entrecruzamento de histórias que é característica da construção do romance”. (2000, p. 287). Este
aspecto será discutido logo adiante.
41
O monólogo interior é uma característica da linguagem literária. Esse termo foi criado pelo psicólogo
William James, para expressar a continuidade dos processos mentais, cuja representação tem sido
buscada por alguns ficcionistas. Ele inventou esse termo para apontar que “a consciência o é
fragmentada em pedaços sucessivos, não junturas, mas sim um fluxo contínuo”. (CARVALHO,
1981, p. 51).
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
59
sobras ou migalhas de informações que adquire, por curiosidade e interesse nos
significados das palavras; os pingos de cultura ouvidos na “Radio Relógio”, seja no
filme ou no romance, isto é o que a desperta para vida; os recortes de estrelas
famosas como Greta Garbo e Marlyn Monroe.
Desse modo, Macabéa consegue uma companhia que se diz seu
amigo/namorado Olímpico, que almeja ser político. O namorado pode de improviso,
no suporte cinematográfico, até discursar diante da praça do povo paulista, o que
vem a ser, na verdade, uma recriação da cineasta Suzana Amaral.
Que o romance é distinto do filme constata-se até mesmo pelas diferentes
linguagens e especificidades dos suportes no momento da transcriação e execução
do processo criativo da tradução. Se no livro os alimentos da autora são as palavras,
mas não os “adjetivos esplendorosos ou os substantivos carnudos”, para não tocar
no pão, regime alimentar da moça: “cachorro-quente e sanduíche de mortadela
(LISPECTOR, 1977, p. 84), também no filme a protagonista apresenta-se faminta. Já
nas primeiras cenas realizadas no escritório do Seu Pereira Ramalho, quando
sentada, frente a uma máquina de escrever, saboreia um sanduíche por entre
papéis. No pedido por pingos de leite no café comprado no botequim da esquina. A
miséria é um dos dramas de Macabéa, a qual Suzana retrata.
Se no livro Rodrigo S. M. e Macabéa, no filme de Suzana, Macabéa é
representada pela atriz Marcélia Cartaxo são díades de seres que no texto se perde
e se encontra, mas no filme se complementam.
A mesma negatividade existente no modelo de anti-romance
42
predomina
nos personagens, que sofrem por uma existência apagada e indefinida.
42
Sonia Lanza (1996, p.130), em suas considerações finais, argumentou que “Em A Hora da Estrela
há uma experiência de (des)construção do texto que pluraliza os signos narrativos. Um anti-romance
cuja proposta é romper com a narrativa tradicional. Clarice, ao criar sua máscara ou alter-ego,
Rodrigo S.M., compõe Macabéa como uma anti-personagem e seu objetivo é, além de esfacelar a
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
60
Na verdade, a protagonista não é apenas a moça pobre nordestina iletrada,
ou que está em posição de desigualdade social; Macabéa é desenhada pelas
palavras de Clarice e pelas imagens de Suzana como alguém que e escreve, que
coleciona recortes de jornal e revista e consome anúncios, e quer saber o que
significam as palavras “cultura”, “efemérides” e “usuário” (no filme).
A seguir, abordaremos as presenças e afastamentos de Rodrigo S. M. na
matriz verbal.
2.2. O NARRADOR – RODRIGO S.M. : PRESENÇAS E AUSÊNCIAS
O narrador é um elemento relevante no processo de criação que utiliza a
metalingüística, um recurso da modernidade literária, tornando a narrativa
“ensimesmada” (LANZA, 1996, p. 36).
Conseqüentemente, Rodrigo S.M., o criador, procura produzir ficcionalmente
a sua criatura. O narrador se aproxima da protagonista ao dar a ela uma profissão
que, ao menos na parte mecânica, assemelha-se ao trabalho do escritor: datilógrafa.
A nordestina é, assim como Rodrigo S. M., uma profissional que lida com palavras.
É, portanto, pelas palavras do narrador que o leitor vai ter acesso ao íntimo
da alagoana, aos sentimentos que lhe conferem uma humanidade que o
consegue se exteriorizar. O narrador não esconde que é ele quem revela, como seu
domínio, as sensações finas da personagem, às quais nem ela mesma tem acesso:
[Macabéa] – “Não sei se posso ver sangue”. (LISPECTOR, 1999, p. 71).
[Narrador] “Talvez porque sangue é coisa secreta de cada um, a tragédia
vivificante. Mas Macabéa só sabia que não podia ver sangue, o resto fui eu que
pensei”. (ibid., p.71).
trama, correlacionar a temática da miséria social, sem respostas e totalmente desestruturada, ao
próprio texto, fragmentado e difuso.”
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
61
Apresenta-se de forma masculina ou feminina através dos discursos pessoal
(Rodrigo S. M.) e apessoal (Rodrigo S. M. simulando Macabéa), que se misturam. O
narrador Rodrigo S. M. é a materialização verbal da condução do sistema narrativo
desenvolvido por Clarice Lispector. Narrador que se aproxima e distancia-se da
história numa mistura de discursos, conforme propõe Sonia Lanza (1996, p. 69).
Trechos do romance Sistemas da narrativa
“pergunto:” (AHE1, 1977) Pessoal
“Tod
a história que se escreve no mundo
é história de aflições?” (AHE1, 1977, p.
97)
Apessoal
“A morte é...” (AHE1, 1977) Apessoal
“Nesta história meu personagem
predileto.”(AHE1, 1977, p.101)”.
Pessoal
Sobre esses sistemas de narrativa, Sonia Lanza (1996, p. 69) argumenta
que “tais códigos lhe permitem maior flexibilidade na escolha de palavras, nas frases
e discursos, o que resulta em várias possibilidades tanto de expressão quanto de
conteúdo, pululando polissemias”.
Na narração do romance, Rodrigo é a simulação ficcional de um “Eu como
Testemunha”
43
e “A Testemunha Solidária” previstas como indicadores marcantes
na história literária e no filme. Esta testemunha é dividida com os espectadores, em
passagens longas e planos gerais e nos pormenores da personagem Macabéa
43
Segundo Sonia Lanza (1996, p.30), em Os signos do narrador, nos informa, “[...] esta categoria
correlaciona-se ao modo de compreensão, proposto por Jean Pouillon, denominado Visão Com, e
utilizando-se da tipologia de Gérard Genette, trata-se de uma Focalização Interna”.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
62
como seus modos de caminhar, vestir e posicionar suas roupas no varal. Os planos
são alternados, em geral, detalhes e movimento de câmera vagarosamente.
Eu como Testemunha e A Testemunha Solidária estão entre as demais
categorias que fazem parte da tipologia proposta por N. Fridman
44
(apud LANZA,
1996, p. 31) em Point of view in Fiction: em The development of a critical concept.
Aqui ele argumenta que “ao propor oito categorias em uma sistematização linear”,
sua descrição objetiva mostrar as várias possibilidades de pontos de vista, desde a
que simula a presença do autor, passando pelo trabalho específico do narrador
dentro da história, até chegar ao total desaparecimento deste. Explica ainda que
“seu método organiza-se do geral para o particular, a partir dos conceitos de contar e
mostrar, que estão intrínseca e respectivamente ligados à relação sumário/cena”. O
percurso de Friedman é o da afirmação à inferência, da exposição à apresentação,
da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da idéia à imagem (FRIEDMAN
apud LANZA, 1996, p. 33).
Segundo Lanza (1996, p. 35), “o efeito criado por Clarice Lispector
aproxima-se dessa terminologia e, ao mesmo tempo, subverte-a, porque, ao criar
Rodrigo S.M., faz com que esta personagem assuma os papéis de autor e de
narrador da história simultaneamente”. Lanza acrescenta que, para Friedman, a
44
Conforme Lanza (1996, anexo I) as oito categorias propostas por N. Friedman são as seguintes: 1.
Onisciência Editorial –características/ especificidades autor com domínio total da história; ponto de
vista divino; interferências/digressões; autor/narrador; e onisciência simples (sintaxe linear). (3ª
pessoa do narrador discurso indireto posição do narrador de cima); 2. Onisciência Neutra
categoria anterior sem as interferências e digressões do autor. (3ª pessoa do narrador indireto de
cima); 3. “Eu” como testemunha personagem secundário como narrador; monólogo ; e perda do
autor. (1ª pessoa do narrador indireto – da periferia); 4. “Eu” como protagonista ou narrador-
protagonista personagem principal como narrador; monólogo interior; perda do autor. (1ª pessoa do
narrador indireto do centro fixo); 5. Onisciência Seletiva múltipla a história é contada a partir do
estado mental de várias personagens; fluxo de consciência; e onisciência complexa (sintaxe
incomum). (1ª + 3ª pessoa do narrador – indireto livre – diversos ângulos); 6. Onisciência Seletiva – a
história é contada a partir do estado mental do protagonista; fluxo de consciência; e perda do
narrador. (+ pessoa do narrador indireto livre do centro fixo); 7. Modo Dramático - diálogo
das personagens; informações sobre ações e falas das personagens; e perda do estado mental das
personagens. (1ª+ pessoa do narrador - discurso direto frontal e fixo); Câmera impressões e
flashes da realidade. (1ª + 3ª pessoa do narrador - indireto – vários ângulos).
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
63
onisciência editorial acontece quando “a história pode ser vista de um ângulo ou de
todos os ângulos, à vontade: de um ponto de vista divino além do tempo e do
espaço, do centro, da periferia ou de frente. Não nada que impeça o autor de
alterar qualquer um deles, ou de substituir um por outro, repetindo tal procedimento
a qualquer momento e quantas vezes julgar necessários”. Rodrigo S.M. ganha a
responsabilidade e o domínio de autor da história, e, ao mesmo tempo, perde a
limitação enquanto narrador-testemunha.
No filme fica evidenciado que as ações narrativas são vividas por Macabéa,
e Rodrigo S. M. não existe. Sua atuação, mais no discurso que na história, de
registrar os fatos objetivamente e manter uma relação de presença como autor e
também personagem fica marcada apenas no livro. Conforme Lanza (1996, p. 40),
sua onisciência editorial
45
, pois raramente é personagem e afasta-se da trama
central, debate-se entre a miserabilidade e a autoria. Rodrigo é um autor implícito,
exerce os papéis de autor-narrador simultaneamente, provoca a perda de limitações
como narrador-testemunha e passa a ter pleno domínio na narração.
De acordo com Dias (1985, p. 105), para mergulhar na alteridade é preciso
desnudar-se a si próprio. Se, por um lado, Rodrigo S. M. vida a Macabéa, por
outro é a personagem quem porta uma verdade que será para o narrador o
elemento desestruturador de seu estilo narrativo e de sua vida. Ao concretizar a
trajetória da anônima datilógrafa, Rodrigo S. M. vai descobrir “o outro que é com
ele”. (id.). “Vejo a nordestina se olhando ao espelho e um ruflar de tambor no
espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo” (LISPECTOR, 1977, p. 37).
45
Segundo Lanza (1996, p. 35), o efeito criado por Clarice Lispector aproxima-se dessa terminologia
e, ao mesmo tempo, subverte-a, porque, ao criar Rodrigo S.M., faz com que esta personagem
assuma os papéis de autor e de narrador da história simultaneamente”. Lanza acrescenta que, para
Friedman (FRIEDMAN apud LANZA, 1996, p. 121), a onisciência editorial acontece quando Rodrigo
S.M. ganha a responsabilidade e o domínio de autor da história, e, ao mesmo tempo, perde a
limitação enquanto narrador-testemunha.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
64
Desse modo, o distanciamento entre narrador e personagem, que
caracteriza o romance realista, se rompe. Na tentativa de contornar a afasia que
defende o ser social de Macabéa, Rodrigo S.M. se vê diante do silêncio que envolve
sua própria linguagem. Pois o que de fato busca é a verdade de Macabéa que é
também a sua verdade, “é sempre um contato interior e inexplicável” e “não tem uma
só palavra que a signifique”(LISPECTOR, 1999, p. 25).
Num determinado momento, observamos que a identificação do narrador
com Macabéa assume uma tonalidade negativa, porém simultaneamente protetora,
permitindo-lhe distanciar-se da criatura que tanto o incomoda. Há uma evidente
contradição entre “o não ter a ver com a moça e o “me escrever todo através dela”
(ibid., p. 24). Assim, o processo de criação leva-o ao distanciamento necessário para
o prosseguimento da narrativa: “Vai ser difícil escrever essa história. Apesar de eu
não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever através dela por entre
espantos meus” (LISPECTOR, 1977, p. 39). Rodrigo S. M. revela, no entanto, a
aproximação que estabeleceu com Macabéa, ao apresentar uma construção sígnica
em que os pronomes demonstram que tanto Macabéa se grudou à pele dele, como
também o grudou à própria pele. “Pareço conhecer nos menores detalhes essa
nordestina, pois se vivo com ela. E como muito adivinhei a seu respeito, ela se me
grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra.” (ibid., p. 36).
Rodrigo S. M. apenas faz distinguir sutilmente a sua criatura do criador, um
refinado intelectual em seus conhecimentos e gostos. Ao mesmo tempo em que
narra Macabéa, constrói a si. Para deixar claro, essa sua identidade como um autor,
ele tem que fazê-la massa, privando-a de ter, de saber, o que, em sua opinião, o
torna superior. Então, é cruel, é grosseiro, não para fugir da pieguice, do patético,
mas para marcar a distância que o separa daquele tipo de gente. Rodrigo é
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
65
sofisticado demais para manifestar sentimentalismo. É o homem que reflete,
pondera, o que indaga ao mundo com perguntas adequadas. Ao contrário dos tolos,
como a personagem Macabéa, que não sabem nem o que não sabem. Além disso,
foge do que é banal, para não se contaminar.
Em seu texto, Lanza (1996, p. 27) identifica os múltiplos signos da narrativa,
entre eles o narrador plural. Vozes que se interpenetram e intercruzam, dando a
impressão de que, às vezes, se anulam, mas é um jogo de aproximação e
distanciamento da estrutura narrativa. Na verdade, faz parte do processo de criação
da autoria, para embaralhar quem é o autor e/ou narrador da história. Um dinamismo
e complexidade da autora, que se disfarça em um narrador homem que é máscara
de Clarice Lispector.
O fato de Macabéa lidar com o mesmo instrumento de trabalho que o
narrador não indica qualquer aproximação entre ambos. A separação está efetivada
por largos passos que os separam: enquanto a protagonista copia palavras alheias,
Rodrigo S.M. dispõe das suas sem o menor esforço; enquanto Macabéa usa as
palavras para garantir sua sobrevivência, Rodrigo as utiliza para filosofar sobre o
mundo e buscar verdades. Macabéa apenas mexe com algumas palavras como se
apertasse parafusos; ela é uma assalariada que se preocupa em não morrer de
fome; ele, um intelectual comprometido consigo mesmo e com a arte.
Enquanto Macabéa não consegue sequer copiar um texto direito, seu patrão,
a toda hora, solicita a Seu Raimundo Silveira que a mande embora; ela não passa
de um “parafuso dispensável” na sociedade capitalista, mas o narrador escreve; o
narrador, Rodrigo S. M., escreve
por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra
dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não
suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
66
escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. (LISPECTOR,
1999, p. 21).
Então Macabéa soa inútil e o narrador também, só que a inutilidade é
diametralmente oposta. Quer dizer, ela é inútil onde deveria ser útil e Rodrigo útil em
sua inutilidade.
Na difícil relação entre Rodrigo e Macabéa, um detém o conhecimento e a
outra só tem informação. Macabéa é despossuída de dinheiro, inteligência, beleza; é
usada para, ao contraste, oferecer identidade a Rodrigo S. M. Este tem uma posição
social e, por mais que negue, é legitimado. Essa é talvez a diferença primordial entre
uma pessoa que apenas sabe que “o único animal que não cruza com filho era o
cavalo” e que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado de Carolus”
(LISPECTOR, 1977, p. 53), e Rodrigo S. M., que entende de ciências gerais,
“aprendeu inglês de ouvido” (ibid., p. 33).
A distância entre os dois aos poucos é pontuada, consolidada através da
arte e do consumo. Macabéa, ao experienciar a música, o faz de modo vulgar;
Rodrigo S. M. vive a arte sofisticadamente.
O que expusemos até agora induz-nos à constatação de que o narrador
Rodrigo S. M. enunciou, sim, uma narrativa do ponto de vista masculino e sem
pieguice, mas não manteve a proposta de distanciamento frio em relação a
personagem Macabéa. Sua imparcialidade não aconteceu diante dos fatos
enunciados durante a narrativa; custou-lhe também dar o grito a que se propôs, se
considerarmos que o verdadeiro motivo para retardar o início da história de Macabéa
é a procura do melhor meio condutor para o grito literário.
O narrador não se distancia da personagem para apreendê-la com
neutralidade, mas nela se projeta, projetando-se sobre ela também o autor. Portanto,
aquilo que o narrador se propõe a fazer de início contar fatos em uma história com
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
67
começo, meio e fim, adotando para isso uma linguagem impessoal e sem grandes
engenhos artísticos – ele não o faz. O narrador confessa que o seu “material básico”
não é a realidade, e sim a palavra. E somente a palavra poética é capaz de
expressar a verdade escondida no silêncio da nordestina.
Nesse sentido, a protagonista é criada verbalmente pela voz do narrador,
que a coloca em conflitos consigo mesma, a realidade inalcançável de Macabéa.
Rodrigo S.M. procura compreender e identificar-se, nitidamente, na personagem
protagonista construída por ele.
Clarice cria uma personagem (Rodrigo) que sente e expressa os sofrimentos
de outra personagem (Macabéa), conseqüentemente resultando em maior
envolvimento do leitor na história. A aproximação de Rodrigo é uma das possíveis
visões, mas uma aproximação em nível intensivo, que Rodrigo, por observá-la,
compreendendo-a, refletindo com ela sobre as situações, forma com Macabéa uma
coexistência decisiva, incorporando-se à protagonista por meio de uma excelente
estratégia narrativo-discursiva: a fusão narrador/personagem.
2.3. MACABÉA INCORPORA RODRIGO S.M. – CONFLITOS E ANTÍTESES
A Hora da Estrela assume a inventividade artística como metáfora da própria
aventura existencial, em um jogo que incorpora a voz do outro, principalmente a da
personagem Macabéa, como uma transfiguração de identidades.
A Macabéa do romance é releitura dos milhares de Macabéas brasileiras. E
esta dimensão social metafórica que ultrapassa o romance é também expressa no
movimento narrativo da película. Ou seja, no filme as Macabéas ficam incorporadas
intensamente à realidade. Quantas serão as marcas deixadas nos espectadores
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
68
pelo signo Macabéa? Semioticamente, as marcas são infinitas. A ingênua Macabéa,
estilo simples em desalinho, convida o leitor/espectador para uma dimensão crítica,
visto que gera empatia e distanciamentos.
A fome para Macabéa é constante, irremediável, enquanto Rodrigo S. M., ao
enunciá-la, tem de se alimentar de frutas e beber vinho branco gelado”.
(LISPECTOR, 1977, p. 22). Ela come “pedacinhos de papel e sonha com coxa de
vaca, ele escreve ao lado de uma taça de cristal. Ela sonha com potes de creme
para a pele, ela os comeria, isso sim, às colheradas no pote mesmo” (ibid., p. 47).
Rodrigo jamais sente fome, ele no máximo tem apetite.
Rodrigo S.M. não compreende Macabéa; todavia essa manifestação de
desconhecimento contribui para entendermos melhor nossa incompreensão. O
narrador, ao ver a personagem Macabéa se observando no espelho, enxerga sua
própria face, “cansada e barbuda” (ibid., p. 37), então, remete-nos a que
enxerguemos a nós também. Agora nós somos cúmplices do narrador desse
romance. Passamos a ofender Macabéa e assim somos mais fortes e capazes de
afirmar que a amamos sendo generosos e superiores. Então nos perguntamos,
como no livro: “quem não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma
pessoa?” (ibid., p. 29).
Tal indagação nos parece tanto verdadeira quanto é desagradável. O
romance A Hora da Estrela transmite um desconsolo, expõe feridas, vergonhas e
fracassos sem disfarçar incompetências, e não faz equivalências.
2.3.1. A invenção da personagem: espelho da escritora
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
69
Esse jogo de identidades, chamado por Benedito Nunes (1989) de “espaço
literário agônico”, revela um ato de impulsionar para o improviso. “Mas o improviso é
aqui, sobretudo, a improvisação da identidade do narrador fundando-se em
confronto com a identidade fictícia de seu personagem. O narrador de A Hora da
Estrela é Clarice Lispector, e Clarice Lispector é Macabéa tanto quanto Flaubert foi
Madame Bovary”. (p. 168-169).
Para Benedito Nunes (1989, p. 169), Flaubert ficou permanentemente como
narrador, entre os personagens. Clarice Lispector, ao contrário, apresenta-se.
Clarice Lispector se exibe, quase sem disfarce, ao lado de Macabéa.
Também ela persona, em sua condição patética de escritora. A escritora se
inventa ao inventar a personagem. Esdiante dela como de si mesma. Em
sua escritura errante, auto- dilacerada, repercute, secretamente e em
permanência, a pergunta - Eu que narro, quem sou? Numa réplica ao
Cogito de René Descartes (“Penso, logo sou”). (NUNES, 1989, p.169).
Imagina-se que, nessa necessidade de identificação consigo mesma, Clarice
Lispector, através de seus personagens, e especificamente em Macabéa,
materializada em A Hora da Estrela, sugere-nos uma profunda solidão. Enquanto
escritora, realidade e ficção se misturam criativamente através da narrativa.
Outro aspecto desconcertante no romance encontra-se localizado no conflito
externo, e foi observado por Lanza (1996, p.120) sobre a negatividade. Essa poética
niilista é manifesta na personagem Macabéa e na pele do narrador Rodrigo S. M.,
para fundamentar a anulação da protagonista, o que resulta num acúmulo de
incompreensão da vida, (“não saber”), ausência da apropriação do mundo (“não ter”)
e de si mesmo, nulidade existencial (“não ser”). Contudo, o mais predominante é o
“não ter”, a “falta”, e se tinha não sabia que tinha. Então, a impossibilidade de vir a
descobrir é que faz a protagonista entrar em crise. Como Lispector (1999, p. 25) diz
claramente, “há os que têm. E os que não têm. É muito simples: a moça não
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
70
tinha. Não o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der pra me entenderem, está
bem. Se não, também está bem”. (id.).
Diante disso, vamos observar os diálogos sobre o nada, sobre a estranheza
da conversação entre Macabéa e Olímpico, curiosidade dela em compreender o
significado das palavras.
2.3.2. Ausência de significados nos diálogos da protagonista
O modo dramático (LANZA, 1996, p. 46) delineado por Clarice Lispector
também apresenta a comunicação ininteligível, apontando para o nonsense,
caricatura e pastiche”. Macabéa e Olímpico de Jesus se desesperam em diálogos
esquisitos, incompletos.
Extraímos um exemplo dos diálogos entre Olímpico e Macabéa, cena do filme
A Hora da Estrela. Rodrigo S. M. está subentendido por meio do olhar criativo de
Suzana Amaral durante a realização da adaptação fílmica. Os dois (Olímpico e
Macabéa) dialogam sobre o “nada” na estruturação significante do roteiro.
Cena 18
46
Olímpico – Pois é!
Macabéa – Pois é o quê?
Olímpico –Eu só disse pois é!
Macabéa – É! Mas, pois é o quê?
Olímpico – Macabéa! Vamos mudar de conversa! Por que você não
entende?
Macabéa – Entender o que? Falar então de quê?
Olímpico – Por que que você não fala de você? É! Gente fala de gente!
Macabéa – Eu!!?
Olímpico – Por que esse espanto?
Macabéa – Ah! Mas eu não acho que sou muita gente!
Olímpico – Se você não é gente, o que você é então?
Macabéa – É que eu ainda não estou acostumada!Não sei explicar.
Olímpico – O que? Não se acostumou com quê?
Macabéa – Será que eu sou eu?
Olímpico – Olha vou-me embora porque você não tem é jeito!
46
Diálogo extraído da cena 18 do roteiro escrito do filme A Hora da Estrela, dirigido por Suzana
Amaral (1986).
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
71
Macabéa – O que eu faço para ter jeito?
Diálogos recortados de trechos do romance A Hora da Estrela demonstram
uma estranheza entre as conversas de Olímpico e Macabéa. O fim do namoro dos
dois, no romance, apresenta-se dessa forma. Macabéa, no romance, solicita que
Olímpico diga logo adeus, enquanto no filme Macabéa decide que Olímpico deve
deixá-la sozinha. “[...] Macabéa (cena 23) Vai embora, vai!”. Suzana Amaral recria
a cena dando maior autonomia à protagonista no filme.
– Você sabe se a gente pode comprar um buraco? – Olhe, você não
reparou que a agora, não desconfiou que tudo que você pergunta não
tem resposta? (LISPECTOR, 1999, p. 49)
– Não será apenas visão? – Vá para o inferno, você só sabe desconfiar. Eu
só não digo palavrões grossos porque você é moça donzela. (id.).
Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor? (ibid., p. 44).
Foi então (explosão) que desmanchou de repente o namoro entre Olímpico
e Macabéa. Namoro esquisito [...] Você, Macabéa, é um cabelo na sopa.
Não vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero.
Você está ofendida? [...] Não, não, o! Ah! Por favor, quero ir embora!
Por favor, me diga logo adeus! (ibid., p. 60).
De fato, a releitura revela como foi sutil a recriação de Suzana Amaral para
com a obra literária. As cenas foram montadas com parcela significativa da
construção do romance. Apesar da necessidade de narrar de outra forma diante da
especificidade do suporte cinematográfico, a engenhosidade da cineasta permitiu
que o espectador ampliasse a sua percepção frente às imagens produzidas. Suzana
articulou uma ordem numa narrativa alinear. Coloca a Macabéa à frente dos outros
personagens, dando-lhe posição de superioridade, como na hora em que é ofendida
por Glória e Olímpico. Sua lentidão e tranqüilidade nos fazem acreditar em sua
confiança diante da vida.
Nas figuras a seguir exemplificamos o drama existencial da protagonista em
AHE1 e AHE2, com a tese de que a protagonista é improcedente para a vida.
Macabéa entra em conflito por não compreender sua existência, pensa que não é
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
72
gente. A moça não tem, não é. A antítese em Macabéa é representada pelo “nada”
e, também, o tudo. A Síntese, em Macabéa, é o “nada” é o “tudo”.
Fig. 2 – Conflito externo da personagem Macabéa
Fig. 2 – Conflito externo da personagem Macabéa
Fig. 3 - Conflito interno da personagem Macabéa
Fig. 3 – Conflito interno da personagem Macabéa
Estas figuras são uma tentativa de explicar o conflito interno (na mente da
personagem) e externo (ambiente em que vive e encontra-se) da protagonista em A
Hora de Estrela .
Conflito Externo
Tese
Antítese
Macabéa é improcedente Macabéa luta pela vida [tudo]
para a vida [nada]
Síntese
O nada é o tudo
Conflito Interno
Eu Não?
Eu Sim ?!
Eu Sim!
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
73
2.4. JOGOS DE INTERTEXTUALIDADES
47
E METALINGUAGEM
48
EM A HORA
DA ESTRELA
A questão da intertextualidade está presente na matriz verbal e no filme. A
narrativa começa e termina com o verbo “começou” e o signo “sim”. Signos que
demonstram aceitação, positividade, contrapõem-se a toda negatividade presente
na personagem Macabéa. O que vem a ser uma antecipação do jogo indicial da
criação textual. Por isso se constrói (des)construindo-se, demonstrando que a
narrativa inicia e não inicia ao mesmo tempo. Clarice precisa discutir o fazer artístico
entre linhas e versos.
Em A Hora da Estrela (1977), Clarice Lispector utiliza-se do jogo de
metalinguagem elaborando treze títulos para sua narrativa, e dialoga com vários
outros textos como Os Sertões de Euclides da Cunha (“o nordestino é antes de tudo
paciente”); a Hora e a vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa (“é agora, é já
chegou a minha vez!”). Clarice usa seu próprio texto numa relação de
intertextualidade entre texto de mesmo autor. Escrevia Sopro de vida e AHE1. “Fora
buscar no próprio profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida”
(LISPECTOR, 1977, p. 101); “até tu, Brutus?!” (ibid., p. 102) referência ao drama de
47
O termo intertextualidade não é característica da pós-modernidade, mas teve origem na Europa
moderna, com o colonialismo. Segundo Márcia Giuzi Marense (PUC - SP, 2004, p. 05 - 06), em A
relação Arte Ciência e Novas Tecnologias na Pós-Modernidade, “refere-se à combinação ou
agrupamento de textos de diferentes linguagens, apresentados em um mesmo suporte e à utilização
de diferentes linguagens na elaboração de uma mensagem textual ou discursiva, visando à produção
de sentidos pré-determinados no público que interage com ele”.
48
O termo é definido por Lanza (1996, p.36) como “um recurso utilizado constantemente na
modernidade. Esse processo na ficção volta-se a uma compreensão dos mecanismos de sua gênese,
uma espécie de narrativa ensimesmada, à procura da sua própria estrutura”. CHALHUB, (1986, p. 8)
define metalinguagem “enquanto extensão conceitual, linguagem acerca de linguagem, refere-se a
tudo desde que o homem é um animal simbólico, o ser da fala. Sobre as coisas, o homem fala
assim se faz sua relação dialógica com o universo, em si um sistema de sinais. Neste sentido,
portanto, linguagem da linguagem (tornando-se linguagem como um sistema de sinais organizado)
uma leitura relacional, isto é, mantém relações de pertença porque implica sistema de signos de um
mesmo conjunto onde as referências apontam para si próprias, e permite, também, estruturar
explicitamente a descrição de um objeto. A extensão do conceito de metalinguagem liga-se, portanto,
à idéia de leitura relacional, enquanto referências recíprocas de um sistema de signos de linguagem”.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
74
Shakespeare, Júlio César: Ét tu, Brute?; a Cartomante, tratada por Machado de
Assis; Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol: Macabéa e Alice se aproximam
à medida que se perdem em um universo de múltiplas opções; Humilhados e
Ofendidos de Dostoievsky aparece no filme sobre a mesa do seu Raimundo,
funciona também como metáfora em relação à personagem Macabéa, que é
humilhada e ofendida constantemente. São diálogos intertextuais que o autor/a
espera que o leitor acompanhe e coopere nesse nível crítico-interpretativo.
Também os títulos do romance, além de se articularem entre si, trazem uma
instabilidade narrativa para o texto, fazendo com que o tal autor/a assuma a culpa
social do sofrimento de Macabéa, como nesse título: “A culpa é minha ou,
autenticamente, procure certo distanciamento do assunto, através de ausência de
solidariedade em uma de suas personagens, pois para Glória, “Ela [Macabéa] que
se arranje”. Assim, esse título se comunica com a “Saída Discreta pelos Fundos”.
Adentrando nesse universo romanesco, podemos aferir sobre o jogo dos
treze títulos abordados por Clarice e verbalizado por Rodrigo S.M., que os apresenta
como recurso de metalinguagem, sendo diluído no decorrer da história. O primeiro
subtítulo, “A culpa é minha”, está inserido na narração: “Quando penso que eu
poderia ter nascido ela e por que não? estremeço. E parece-me covarde fuga o
fato de eu não a ser, sinto culpa como disse num dos títulos. (LISPECTOR, 1977, p.
48). Esse tulo dialoga com o criador e desencadeia uma certa inconstância
narrativa.
O segundo título, A Hora da Estrela, está explícito sobre a morte da
protagonista: “Acho com alegria que ainda não chegou “a hora da estrela de cinema
de Macabéa morrer” (ibid., p. 100).
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
75
O terceiro título “Ela que se Arranje”: “Era [Glória] uma safadinha esperta,
mas tinha força de coração. Penalizava-se com Macabéa, mas ela que se
arranjasse, quem mandava ser tola”. (LISPECTOR, 1977, p. 78). Nesse título
observamos a ausência de solidariedade dos personagens e principalmente em
Glória.
O quarto tulo, “O direito ao grito”, é “Porque o direito ao grito. Então eu
grito. (ibid., p. 18) . “Ou, o que queria dizer que, apesar de tudo, ela pertencia a uma
resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito.”(ibid.,
p. 96). Clarice Lispector tem uma atitude de revolta e clama através das vozes
(narrador/leitor/ escritora/personagens) que compõem o texto.
O quinto título, .Quanto ao futuro. está diluído no trecho narrativo:
“História exterior e explícita, sim, mas que contém segredos – a começar por um dos
títulos, ‘Quanto ao futuro’, que é precedido por um ponto final e seguido de outro
ponto final.” (ibid., p. 17). A história atenta para um futuro transgressor explicado
pelos sinais – ponto final no início e final do título.
O sexto título, “lamento de um blue: “Afianço também que a história se
igualmente acompanhada pelo violino plangente tocado por um homem magro bem
na esquina”. (ibid., p. 30). Esse tulo faz conexão com a melodia musical que vai
acompanhar a narrativa. O sétimo título “Ela não sabe gritar” está em “E Macabéa
lutava muda”. (ibid., p. 97). Esse é uma constatação de que Macabéa não sabe
gritar.
O oitavo tulo, “Uma sensação de perda”, está em “E agora emerjo e sinto
falta de Macabéa”. (ibid., p. 85). Nesse faz relação com a morte da protagonsita. O
nono título “Assovio no vento escuro”: “Não tenho medo nem de chuvas tempestivas
nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Embora
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
76
não agüente bem ouvir um assovio no escuro, e passos”. (ibid., p. 23). ligação
com o movimento das notas musicais na narrativa, assim, este tem conexão com o
título número seis.
O décimo título, “Eu não posso fazer nada”: “Juro que nada posso fazer por
ela.”(LISPECTOR, 1977, p. 43). A Clarice/Rodrigo reconhece sua condição e
limitação. O décimo primeiro título refere-se ao “Registro dos fatos antecedentes”:
“[...] não inicio pelo fim que justifica o começo como a morte parece dizer sobre
a vida porque preciso registrar os fatos antecedentes[grifo nosso] (ibid., p. 16).
O título refere-se aos acontecimentos da vida passada da protagonista e do
narrador, ambos estão justapostos desde o começo da história.
O décimo segundo título, “História lacrimogênica de Cordel”, “(Eu bem
avisei que era ‘Literatura de cordel’, embora eu me recuse a ter qualquer piedade)”.
(ibid., p. 41). O décimo terceiro título, “Saída discreta pela porta dos fundos”: “Mas
preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos” (ibid., p.
27). Diz respeito ao conjunto de características culturais provenientes da região da
protagonista.
A impressão deixada por Clarice é que a obra é uma escritura que engana,
instrui-se por si mesma, de maneira improvisada, e não se define nem como um
romance nem como uma novela, juntando-se aos personagens que se apresentam
alternando-se entre narrador/criador, personagem e personagem/criatura
alternadamente, horas triádicas em ambivalência, ocasionando estranheza ao ler.
Fica-se, em um primeiro momento, sem saber mais quem, de fato, é o narrador
dessa história. A autoria de Clarice e a simulação autoral, no texto, de Rodrigo,
misturam a história ao discurso do narrador. Rodrigo é o disfarce de Clarice e esta é
personagem de si mesma. Um é a máscara do outro, contornos ocultos.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
77
Macabéa, no filme, tem a sensação de que está andando sobre os ares, em
um avião quando seu namorado Olímpico a levanta sobre os ombros dele. Esta
qualidade de sentir em Macabéa é um signo em primeiridade do ponto de vista da
Semiótica.
A rejeição é colocada para Macabéa por Olímpico e no encontro com o
homem rico descrito nas cartas da cartomante. Ela é descartada e eliminada pelos
homens, que não a desejam, não a vêem, mas ela reprime a sexualidade diante da
sua educação e ensinamentos que a dominam e paralisam.
Essa narrativa literária é acompanhada de uma levíssima dor de dentes, a
mesma dor que faz Macabéa pedir folga para ir ao dentista. no filme essa dor
está na insistência do toque da “Rádio Relógio”, que perpassa toda a construção das
cenas. No livro, Rodrigo/Macabéa estão imbricados, e são posicionados num
emaranhado de luta constante para que estes não os aprisionem, para que Macabéa
não fuja de seu controle. No filme, Macabéa e Olímpico são dois aprisionados em
buscas contrárias e ao mesmo tempo parecidos.
Macabéa, Rodrigo S.M. e Clarice Lispector dormem para sempre. Esse foi o
desfecho do(a) escritor(a) e da cineasta, com a morte da personagem anti-heroína.
Na literatura, quanto no filme, as imagens são imaginativas, criadas por Clarice
Lispector ou recriadas por Suzana Amaral. As imagens falam por si só, registram o
grito de Clarice Lispector magistralmente.
2.5. CARACTERÍSTICAS DA OBRA A HORA DA ESTRELA
A Hora da Estrela está caracterizada pela dramatização dos personagens,
pela liberdade no uso dos tempos verbais, por um narrador, Rodrigo S. M, que
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
78
simula ser autor, personagem e escritor, que apresenta seu desempenho
constantemente intercambiado, que tem liberdade de operar na construção da
história que Clarice Lispector imprime com detalhamentos de pontos de vista dos
personagens. Há uma crítica social que se viabiliza pelo viés da sátira e do humor.
Nesse romance várias histórias que se entrecruzam; elementos díspares que se
misturam: a ignorância, a pobreza extrema competindo lado a lado com riqueza. O
romance tem caráter de introspecção no expressar da angústia dos seres humanos,
a partir de uma visão existencial do mundo. Assim, tem poucas ações externas e
muita tensão interiorizada.
Enquanto no romance a narrativa vai se construindo na sua (des)construção
como jogo da própria escritura, no filme as cenas são construídas linearmente.
Macabéa vai sendo mostrada com certa logicidade. O clímax do filme está na visita
de Macabéa à Cartomante, quando seu passado, futuro e presente são
pronunciados por Madama Carlota.
No filme, Macabéa encontra Olímpico em uma praça de São Paulo,
enquanto um fotógrafo bate uma foto sua e Macabéa atravessa na frente dele no
momento da máquina concluir a foto e é chamada de cega. No livro toda uma
preparação narrativa, um encantamento por ser o mês de maio, o mês das noivas e
das mães.
Seu Raimundo Silveira, no filme, é um personagem ameno, que tem um
pouco de sensibilidade diante da situação da personagem Macabéa. Ele adia a
demissão, permite que Macabéa tire um dia de folga, e permite também as suas
saídas à Cartomante e ao dentista.
diálogos no filme que foram recriados e outros colocados para
compreensão do filme. O hibisco que acompanha Macabéa é um indicador da
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
79
feminilidade da personagem. Funciona também como metáfora da própria narrativa
no filme. Macabéa não a compra, como diz no livro, mas a apanha no jardim público.
Ao tomar forma, Macabéa tem função no mundo. Sendo assim, o filme
coloca minúcias como a ficha telefônica que Macabéa a Olímpico pedindo que
ligue para o escritório.
uma solidão imensa e explícita no filme. O silêncio e o vazio da cidade,
do escritório onde trabalha Macabéa, tudo é um grande nada. A agitação da cidade
grande extraiu seus enfeites, pois é humilhada, desamparada, quase inexistente.
Olímpico não percebe seu esforço para que seus diálogos saiam da obstrução.
Macabéa não tem medo da solidão, mas sabe que sozinha não vai conseguir
superar a falta de tudo.
Para além da tela, Macabéa, assim como no livro, não tem a vaidade
interna, aquela que é para si. Ela tem um impulso externo causado pela influência da
vida na cidade grande e das pessoas. O sonho de ser estrela de cinema a faz
praticar a imitação, evidentemente através do batom vermelho, na busca em não
desagradar o outro. Ela é descuidada, não olha para si mesma, mas age, como diz o
narrador, “é teleguiada”. No filme, este aspecto é mais evidente na hora de tomar
banho, na hora de trocar de roupa e pentear os cabelos, na forma como dispõe as
roupas no varal, na expressão das amigas em relação ao seu cheiro.
Em seu romance, Clarice Lispector, ao criar Rodrigo como narrador-
testemunha, simulação de co-autor e personagem de sua história, pluraliza as
possibilidades sígnicas imbricadas na narrativa, enquanto no filme essa trama
desaparece dando visibilidade icônica à personagem. O papel triplo do narrador
desaparece, ressurgindo o ato comunicativo obstruído de Macabéa, envolta em suas
relações. Toda pluralidade existente no romance é vislumbrada nas cenas
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
80
transpostas para a tela. O rufar dos tambores de Clarice ou Rodrigo é substituído
pela voz da “Rádio Relógio”, a partir dos créditos do filme. A história de cordel,
descrita por Rodrigo, é recriada, não em papel de embrulho, mas num material
delicado impregnado de sofisticação que a cinematografia exige.
Todas as passagens ditas no romance em relação à protagonista foram
apresentadas imageticamente, captadas para a diegese cinematográfica.
As vinte e uma explosões (ver pág. 97) existentes no romance como
marcadores indiciais, no filme são substituídas pelos arranjos sonoros. Tais
explosões expressam as frustrações de Macabéa, seus momentos de abandono,
dor, insegurança, inexistência, medo. E no filme isso é transformado em
desesperança, rigidez das personagens mais próximas, caracterizadas intensamente
tanto em decorrências de suas características, de seus sentimentos, quanto pelo
contexto em que estão inseridas.
Podemos pontuar que o romance A Hora da Estrela é caracterizado por uma
(des)construção a partir da formação de um grande número de índices narrativos,
como as informações implícitas no texto, pedindo uma maior compreensão do leitor,
bem como as espécies de personagens secundárias (reverter para a pág. 55). O que
comprova a existência, no texto, de uma desconstrução como síntese indicial,
resultando nas leituras das entrelinhas. Iniciamos com o nome das personagens, ou
melhor, da protagonista Macabéa, proveniente dos povos Macabeus
49
, povo
predestinado a morrer. Macabéa não tem um momento positivo. Refugia-se num
percurso de negativismo, de ausências, perdas e faltas. Sua existência reflete-se na
49
Conforme a Bibília Sagrada, que adota dois livros sobre os Macabeus, eram povos da Judéia que
lutaram contra os gregos que quis forçar os judeus a adotar os costumes e a cultura deles. Este nome
foi um apelido dado a Judas, filho mais famoso de Matatias (um sacerdote judeu, lidera a resistência
e a revolta contra os reis gregos e o grupo judaico que a eles se aliou). A resistência procura a todo
custo preservar a identidade religiosa e cultural do povo judeu.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
81
descendência da perdição, é um tipo, um capim, praga, gente que se arrasta pelo
declínio originado de um material parasitário, cogumelo mofado.
Macabéa significa o capim impresso no texto escrito e adaptado no filme.
Esse tipo de gramínea comum nasce em qualquer terra, em determinado contexto,
entre as pedras do asfalto, significa uma “praga” que germina facilmente entre raios
de sol e grãos de areia. Macabéa tem o M das Marias (colegas de quarto – Maria da
Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas. O que é visto na recriação com
nomes diferentes, “das Dores” é bem evidenciado).
Pode-se afirmar que, tanto no livro quanto no filme, a improcedência da
personagem é idêntica, e o texto narrativo aparece acima de todos os aspectos,
como se Rodrigo S.M. pudesse desafiar o outro com sua arma, a palavra, o uso da
língua e o domínio desta; como se o narrador quisesse prender o leitor com as suas
habilidades estabelecidas por funções catalíticas e cardinais para exploração. A sua
singularidade está na arte de manusear a palavra numa discussão social, deixada
sobre o texto literário e fílmico sob a égide dos informantes: a personagem mora na
rua do Acre e trabalha na rua do Lavradio, que significa arável, semear a terra; liga-
se ao ato de criar o texto e o resultado do plantio, o alimento ou a escritura.
Outro informante constante nos dois suportes (romance e filme): “a Rádio
Relógio”, a voz que fala por signos verbais, o meio de comunicação de massa que a
protagonista possui via sabe-se lá, como empréstimo de alguma amiga de quarto;
posiciona informações locais, muitas vezes inúteis, e cultura. Informações estas que
não são decodificadas por Macabéa e geram conflitos nos encontros com o
namorado Olímpico de Jesus. Na impossibilidade, Olímpico é recorrido, mas as
respostas satisfatórias não chegam até ela e ele sente-se irritado.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
82
Olímpico, do grego Olympikos, significa olimpo, lugar reservado aos
deuses. Glória, do latim Gloria, transposta como fama, brilho e vaidade, qualidades
indiciadas tanto no livro como no filme, quando bem sucedida ao roubar o namorado
de Macabéa, passa a impressionar a protagonista, que a idealiza e vivencia
projetando em si mesma suas “virtudes”.
A consulta à Cartomante tem efeito de suspense, ensinamentos (religiosos,
afetivos, sexuais e domésticos) doados por Madama Carlota à personagem deixa
evidente sua fé em Jesus Cristo. Tal posicionamento possibilita somente antecipar
ao leitor/espectador um efeito inesperado.
Rodrigo, do Latim rodriga, compreende estaca e, evidentemente, é ele quem
suporta a narrativa, trabalho de estruturar e articular os signos da narração. Então, o
movimento da narrativa se apóia na história de enlaces do narrador Rodrigo S. M. e
da proposta da autoria (narrador-criador) estruturados em processo de
metalinguagem e, ao mesmo tempo, encontra-se implícito o drama de Macabéa.
Escolhe-se uma pessoa do sexo oposto pela necessária masculinidade que se
interporá entre os sofrimentos de Macabéa. Na verdade, uma ironia de Clarice
Lispector, pois em desacordo com o conceito de literatura feminina como a crítica
denomina sua obra. Aprofundaremos essa idéia no último capítulo.
Notamos não só a ambivalência do gênero, mas também a ocorrência dos
discursos pessoal (RSM), e implícito (CL), expressos em signos imaginários
escolhidos e que se misturam e tornam-se atos de difícil compreensão na narrativa
explorados pela autora.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
83
2.5.1. O romance: o espelho de signos do filme
Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa.
Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as
coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro... .
(LISPECTOR, 1977, entrevista concedida a TV Cultura).
50
Podemos afirmar que Clarice Lispector tem como preocupação a reflexão
sobre a construção da narrativa, na medida em que coloca um criador/narrador
(Rodrigo S.M.) em seu lugar. Trata-se de um jogo explícito de metalinguagem que
povoa o romance A Hora da Estrela. “Nunca esquecer que a palavra é fruto da
palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro
dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que
ser apenas ela”. (LISPECTOR, apud LANZA, op. cit, p. 17). É assim, através da
palavra que Clarice tece um romance complexo e plural. Um texto transfigura-se em
50
Clarice Lispector utiliza como estratégia literária a desconfiança das palavras e a solidão. Esses
foram os métodos para escrever e viver da escritora. Na esperança de deixar as palavras para trás,
escreveu livros como A Hora da Estrela, “o que atrás de detrás do pensamento”. Isso era o que
realmente importava a Clarice. A linguagem era um instrumento traiçoeiro e insuficiente. Pensava que
as palavras, em vez de esclarecer, encobrem. As palavras são desleais. As palavras eram motivos de
desconfianças, mas escrevia com a obstinação cuidadosa de quem se propõe a desvendar o vazio
que se esconde dentro do ovo. As palavras flutuavam em suas mãos. Clarice era vista por muitos
como enigma, suas obras para Olga de em Escritura de Clarice Lispector (2001) era uma epifania
(manifestação do divino). Para alguns escritores como a canadense Claire Varin e Otto Lara
Resende, Clarice era uma feiticeira; a francesa Hélène Cixous diz que Clarice não foi escritora, que o
que ela fez foi sim, filosofia. Clarice se definiu assim: “Eu sou uma pergunta”. A denominação de
“escritora” a incomodava. “Literatura para mim é o modo como os outros chamam o que nós fazemos”
disse ela. (CASTELLO, 2005).
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
84
outro texto e dialoga com o leitor, fazendo-o seu leitor pro-ativo
51
em uma narrativa
de natureza intertextual. Para Lanza (op. cit, p. 17),
[...] a linguagem literária do romance é altamente complexa, [...] outros
aspectos estão implícitos e explícitos nesta narrativa pulsante: a constante
alternância e fusão de pontos de vista diferenciados, o que resulta numa
maior dinamicidade do texto; o alto nível indicial operando numa imbricada
narrativa [...]; e a utilização tanto de um leitor como estratégia textual do
autor quanto de um leitor como personagem participante do texto.
Desta citação se entende que a narrativa de Clarice Lispector em A Hora da
Estrela é um constante movimento entre várias vozes. Isso faz com que o leitor não
pro-ativo tenha dificuldades em compreender e perceber as artimanhas do(a)
escritor(a) que dialoga com o leitor, consigo mesma, com o narrador e com os
personagens, resultando numa narrativa simples e complexa ao mesmo tempo,
porque joga com as palavras de forma que todos participem do seu texto.
Ariano Suassuna
52
, ao ser entrevistado sobre o poder da palavra, expressou:
“O poder da palavra é altamente transformador. Clarice Lispector certamente tinha
consciência desse poder da palavra, porque escrevia com o corpo, a mente e a
alma. No entanto, a escritora disfarça dizendo que escreve sem nenhuma esperança
de que o que escreve altere alguma coisa, mas não convence.
51
Entende-se por leitor pro-ativo aquele que adquire conhecimentos e informações e es sempre
atualizado culturalmente, o que lhe permite antecipar-se aos fatos, mantendo um senso crítico, tem
questionamentos sobre o que es acontecendo ao seu redor, mantém-se sempre entre leituras
assíduas, ele é capaz de compreender qualquer texto literário. A proatividade é sinônimo de iniciativa
de superar as expectativas.
52
Entrevista concedida ao Jornal Nacional durante a FLIP - Festa Literária Internacional de Parati -
RJ, em julho de 2005. A escritora Clarice Lispector foi a grande homenageada da Flip. Clarice
Lispector também foi a homenageada da revista Bravo! nº 94, julho/05.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
85
2.5.2. As várias histórias que compõem a narrativa
Para dia Battella Gotlib (2000, p. 285-317), em seu ensaio Macabéa e as
Mil Pontas de uma estrela, em A Hora da Estrela cinco histórias que se
entranham e se complementam na construção da narrativa.
A primeira história é a da fábula envolvendo a personagem protagonista
Macabéa; a segunda história é Macabéa como criação do narrador, ela sai dos
ombros do narrador, é a história de como o romance se faz, ou seja, como é
construída e (des)construída a narrativa. Então, nas palavras de Gotlib (2000, p.
287),
Macabéa acha-se entranhada no narrador e aos poucos vai dele se
desgarrando. Há, na verdade, um “parto ficcional” não apenas no sentido de
que se trata de ficção um autor gera um livro, mas no sentido de que é
esta a história de que se compõe, na verdade”, o romance. Ele nos conta
como inventa a personagem de seu romance, Macabéa, que nasce, cresce,
trabalha, namora, sonha e morre.
Essa segunda história compõe-se pelo nascimento da personagem; a
infância; o chefe: seu Raimundo; os prazeres; o namorado: Olímpico; a colega;
Glória; o médico de pobre; a cartomante e a morte.
Macabéa é que se tenta agarrar como, por exemplo, o gosto pela palavra
“efemérides”, pela coisa livro. Escuta na rádio que existe um livro Alice no País das
Maravilhas e também gosto por outro livro que o chefe deixara em cima da mesa e
que se chama “Humilhado e Ofendido”. A quarta história trata-se de Macabéa e sua
relação de maternidade com a autora Clarice Lispector; a quinta história é Macabéa,
“na verdade, Macabéa”.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
86
Portanto, são elas que possibilitam uma linearidade na decorrência narrativa
do texto controvertido e alinear. A obra é escrita em terceira pessoa, outras vezes
em primeira pessoa e outras em segunda.
Nesse sentido, pode-se afirmar que as duas leituras são importantes, mas
parece inesgotável o arcabouço significativo e analítico da funcionalidade do
romance enquanto tessitura literária e artística. Assegura-se desse modo que a
estrutura narrativa é sustentada por todas estas histórias mescladas por todos os
possíveis leitores.
Na visão do crítico Benedito Nunes (1989, p. 169), Clarice Lispector faz da
sua ficção um jogo de identidade triádico “de composição quanto aos personagens”.
Ele, assim como Lanza (1996), observa também três histórias que se ligam
permanentemente em A Hora da Estrela. A primeira é a história de Macabéa, que o
narrador Rodrigo S.M. apanha de improviso na multidão.
A segunda história é a desse narrador que se interpôs entre a personagem,
tornando-se inseparável. A terceira história é a história da própria narrativa.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
87
2.5.3. Recriação de romance: a adaptação fílmica
A personagem Macabéa (interpretada
pela atriz Marcélia Cartaxo) e Olímpico de
Jesus (ator José Dumont)
53
Cena do filme
– início do namoro - A Hora da Estrela
54
O cinema em 1986 a adaptação de sua obra considerada pela crítica a “mais
realista”, A Hora da Estrela. As palavras impressas de Clarice Lispector (1977), em
forma de romance, passaram da arte literária para a película cinematográfica. Antes,
porém, Suzana Amaral lançou mão do roteiro e materializou a saga das
personagens, recriando a narrativa da matriz verbal para o cenário das filmagens.
Segundo Gotlib (2000, p. 287), Suzana Amaral “detém-se numa história –
a de Macabéa desmanchando, pois, esse entrecruzamento de histórias que é
característica básica da construção do romance”. No filme, o narrador passa a ser o
olhar de Suzana Amaral. Esse olhar da diretora é o olhar oculto que se mistura com
outros olhares dos personagens e da escritora. Isso é expresso pelos pontos de
vista, ângulos de visão, tomadas, enquadramentos, planos, trilha sonora, de forma a
53
Imagens extraídas do site<www.verdestrigos.com.br/sitenovo/site/crônica_ver.asp?id=3488>
Acesso em 06.04.2005.
54
Esta obra foi transposta para o Cinema em 1985, por Suzana Amaral e Alfredo Oroz. Em 2003 a
rede Globo de televisão faz a versão de A Hora da Estrela, apresentada no primeiro capítulo do
programa Cena Aberta, dirigido por Jorge Furtado, Guel Arraes e Regina Case. Atualmente A Hora
da Estrela ganham versão dramatizada para o palco. A peça teatral A Hora da Estrela é de Rayalla
Produções. A direção é de Euclides Rayalla. O espetáculo estava em cartaz (2005) no Teatro
Municipal de Marília, no estado de São Paulo. Elenco: Márcia Amaral, Aline Monge, Euclides Rayalla,
Douglas pereira, Marlon Manzano e Joseane Cassiano.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
88
envolver o espectador no filme por meio de planos de expressão sonoro-visuais
cadenciados pela montagem. Como exemplo disso, nas passagens em que
Macabéa anda pelas ruas com Olímpico a câmara usa o movimento em travelling.
No filme, Macabéa é revelada ao espectador pelas imagens, que utiliza os
traços referencias do livro, como peça de uma engrenagem que devem ser juntas
para formar um estilo próprio, sem projeções, sem máscaras.
Como não o fez seu narrador-criador Rodrigo S. M. e/ou Clarice Lispector na
literatura para confundir os leitores e fazê-los co-participantes do drama da
nordestina e das outras histórias embutidas no romance. Na verdade, esse recurso
literário é uma forma de fisgar o leitor, resultado da prática de uma escritora astuta
no manejo dos signos verbais e da liberdade de criação, escreve em percurso
poético e/ou filosófico para formar a estrutura narrativa do romance.
Nessa adaptação, a linguagem cinematográfica recupera alguns efeitos
como pontos de vista, informantes e, principalmente, as personagens, bem como a
constante alternância e fusão de pontos de vistas.
Na complexa tessitura do romance, o narrador-personagem assume papel
de relevo. Revela-se na angústia encarnada na pele de escritor ante a criação, por
intermédio de um longo exercício metalíngüístico, característica da literatura pós-
moderna.
No filme, para evitar o tom “intelectual” de Rodrigo S. M, a cineasta deu voz
à protagonista Macabéa, que a voz de Clarice Lispector não se confunde com a
voz do narrador masculino. Esse foi um dos elementos que Suzana eliminou.
O eixo central foi mantido: “as tristes aventuras de uma moça na cidade
grande, toda voltada contra ela”. No livro, o narrador é o personagem
principal, que na verdade é a própria Clarice. Eliminei o narrador porque eu
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
89
queria que a personagem principal fosse a Macabéa, personagem que o
age, é “agida” pelas circunstâncias. (SUZANA AMARAL)
55
.
No processo de recriação artística (adaptação cinematográfica), a cineasta
produziu algumas “infidelidades” e até invenção de passagens, o que não chega a
ser um defeito, mas uma conseqüência da tradução que a segunda obra ganha
como divergências da obra original, ou seja, o desfio é conseguir transpor das
palavras para a imagem, de um código verbal para outro, no caso o o verbal.
Suzana Amaral concedeu ao fim da história dois aspectos: um romântico que Clarice
Lispector lhe negou, e o outro mais realista.
A materialidade de filme permite a mímesis da produção, que estimula a
tentativa de construir um mundo material através das imagens. Macabéa é
visualizada por meio do olhar enunciador da cineasta que ao filmar algumas cenas
em travelling, acompanhando a personagem pelas ruas, afastando dessa forma o
narrador, mas dando voz e vez a Macabéa.
A história segue uma seqüência lógica de noventa e seis minutos. Macabéa
está sempre acompanhada por uma flor de hibísco.
No livro, Macabéa perde o namorado porque é desajeitada e feia, tem uma
atitude de uma idiota. Para Chico Lopes (2004), Macabéa é “estrela fosca”, revelada
numa “coitadeza terrível” na transposição, deixando-se ser um fenômeno
tipicamente brasileiro (as Macabéas) para elevar-se como símbolo ontológico, de um
arquétipo universal da pobreza. Ela é a figura que está entre santas e idiotas.
Pondera-se que o país de Macabéa seja o mesmo país de Dostoiévisky, um
dos escritores favoritos de Clarice Lispector, não por acaso citado em A Hora da
Estrela pelo romance Humilhados e Ofendidos.
55
Entrevista concedida a Tata Amaral, intitulada De lugar algum para lugar nenhum. Disponível em:
<http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1768.1shl.> Acesso em: 04.04.2005.
Movimentos Narrativos em A Hora da Estrela
90
Esses movimentos sígnicos da literatura ao cinema em A Hora da Estrela
apresentam-se sob os aspectos da criação e da significação. Desde a articulação
de seus códigos principais e até a mobilização dos subcódigos: o gestual, o
cenográfico, indumentária etc.
3. CONEXÕES POÉTICAS E OUTRAS PONTES SÍGNICAS EM A HORA DA
ESTRELA
Todo o universo visível não é mais que uma
vitrine de imagens e signos...
Baudelaire
3.1. A NATUREZA DO SIGNO ESTÉTICO
Podemos perceber que os trânsitos dos signos apresentam-se numa
dimensão poética
56
e criativa em A Hora da Estrela, e que se articulam artisticamente
e intersemioticamente, resultando em duas formas extremamente iconizadas: a
filmica e a matriz verbal (obras homônimas). É um processo de transmutação sígnica
autêntico. Essa viabilização é realizada proporcionalmente por meio da criação
literária AHE1 e a AHE2. Esse processo de intersemiose Roman Jakobson (1987) o
expôs denominando-o de transposição intersemiótica
57
. Observamos que nesse
trâmite de linguagens de um código para outro ocorre um deslocamento de
metalinguagem, efeito de procriar, e semiose que, pela coordenação de Suzana
Amaral, traz em seu bojo uma referência atrativa, o gosto pela literatura, extraindo
56
A palavra poética”, entre os vários significados assumidos ao longo do tempo através dos
enunciados de Aristóteles, remete-nos a poietike tekne, “arte poética” (Enciclopédia, 1989, p. 218).
Esse termo poética” que está sendo empregado no percurso desta dissertação com o sentido mais
abrangente, portanto, semiótico, e não tão somente da lingüística.
57
Sobre esse trâmite sígnico da literatura para o cinema, a literatura influencia sobre o filme, uma
criação tradutiva, o momento histórico por que passa a cinematografia, a espécie de linguagem e
suas especificidades que são imanentes como base referencial. A Hora da Estrela, enquanto
processo criativo de intersemiose, é uma obra que teve como parâmetro considerar o prototexto
clariceano, sobretudo na estruturação da trama narrativa, colocando como sustentação o drama da
protagonista nordestina (Macabéa no suporte literário e Macabéa representada pela atriz Marcélia
Cartaxo, no suporte cinematográfico).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
92
do prototexto o essencial, incluindo-se as incursões temáticas, de conexões de
sintaxe para fazer a sua adaptação fílmica.
Um exemplo desse deslocamento está no desmanche do namoro em ambas
as narrativas. Na literária, Macabéa pede a Olímpico que diga logo que acabou: “[...]
Ah, por favor, quero ir embora! Por favor, me diga logo adeus!” (LISPECTOR,
1999). Enquanto no filme, os dois estão sentados em plano geral, mas em direção
inversa, Olímpico senta-se afastado, virando as costas para a personagem, a
câmara o coloca em primeiro plano. No plano seguinte, Olímpico senta-se com
Macabéa, bem próximos um do outro, ele diz: “– Quero lhe dizer que nosso namoro
acabou! Encontrei outra moça”. Macabéa apenas olha para ele em silêncio, fala que
ele vá embora e baixa a cabeça tristemente: “– Vai embora, vai!” (AHE2).
Nesse sentido, Roman Jakobson (1970), ao apresentar conceitualmente as
funções da linguagem provindas da lingüística, proporciona avanços efetivos aos
sistemas sígnicos visuais, especificamente ao código cinematográfico.
Evidentemente, tais avanços proporcionados pelos estudos de Jakobson, ao serem
empregados aos códigos de natureza diferenciada dos códigos verbais, produziram
reformulações conceituais, tendo-se como base que as linguagens visuais, inclusive
as que absorvem as linguagens verbais, são estruturadas por uma gramática
apropriada que regulamenta outra forma de sintaxe mais flexível em oposição às
regras arbitrárias dos signos combinatórios dos sistemas de linguagens verbais.
Sendo assim, cabe-nos acrescentar que, pesquisando o modelo estético no
cinema, detectamos a relevância de uma das funções da linguagem: a função
poética, proposta por Jakobson, e o desenvolvimento conceitual da função poética
com os estudos que surgiram de distintas linhas teóricas, grande parte
fundamentada na antecedente Teoria da Semiótica de Charles Sanders Peirce
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
93
(1839-1914). O referencial delimitado aqui sobre a função poética permeia as
abrangências necessárias, especificamente, no caso particular do cinema
adaptado
58
, pois na sua tessitura sígnica indicial se interceptam diferentes
linguagens. Amplificando todo esse exame paradigmático, é necessário salientar
que Jakobson tenciona investigações conectivas com os sistemas visuais, em
sentido semiótico, ao se deparar com os estudos das teorias de Charles S. Peirce
59
.
Tal constatação aprimora o conceito formalizado acerca das funções da linguagem
e, em especial, a função poética, agrupada por Jakobson com referencial datado na
teoria da informação, conseqüência da complexa relação delimitante entre o que
Jakobson observava como poético e não poético.
Assim, a função poética é a própria mensagem caracterizada pela
construção efetiva de figuras de paralelismos, ou seja, põem em relevo mecanismos
que se apresentam na mensagem. Dessa forma, a função poética é um processo
que proporciona uma valorização da cadeia significante e intersemiótica. Jakobson
(s/d, p.130) definiu que a função poética projeta o princípio de equivalência do eixo
da seleção sobre o eixo de combinação”. Então, se a projeção relacional do
paradigma sobre o sintagma que forma a mensagem estética, encadeada a partir da
estrutura significante em ação dinâmica. Assim, a função poética coloca em
evidência o significante, ou seja, a sua forma tátil e material, objetivando a
ambigüidade, os vários sentidos para a mensagem, que sua natureza sígnica é
58
O termo abordado, “cinema adaptado”, significa “um complexo significante que está estruturado
para produzir uma cadeia de significados”, ou seja, é uma nova realidade semiótica ou sígnica que
possui como referência o texto literário. (Cf. explicações, em aula, NUNES FILHO, 2004).
59
Referimo-nos aos estudos de Roman Jakobson, constantes em seu ensaio À Procura da Essência
da Linguagem, In: Lingüística e Comunicação (s/d). Nesse ensaio, Jakobson aproxima seus
conhecimentos como as teorias sígnicas formuladas por Peirce. Ainda admite que poderia ter evitado
erros, acerca da Lingüística, se houvesse observado os estudos semióticos realizado por Peirce. Das
suas palavras recortamos: “Quantas polêmicas fúteis e banais poderiam ter sido evitadas pelos
especialistas da linguagem se estes tivessem levado em conta a Speculative Grammar de Peirce e
particularmente sua tese de que “um símbolo autêntico é um símbolo que tem uma significação geral”
e, por sua vez, esta significação não pode ser senão um símbolo[...]. (JAKOBSON, s/d, p. 116).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
94
“andrógina”. Portanto, possibilita a procura das possíveis combinações do signo, de
forma a desvelar maior número de qualidades significantes.
A função poética, portanto, consiste em articular o eixo das similaridades ou
semelhanças e a interrupção, com base na contigüidade, chegando à comprovação.
Ainda ressalta Jakobson (s/d, p. 150) que “a supremacia da função poética
sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua”.
Jakobson salienta que a função poética está permanentemente em articulação com
as outras funções da linguagem
60
, sempre em parceria com as demais linguagens,
não existindo separadamente. Assim, se destaca das outras funções, por se tratar
de uma mensagem manifesta, e consideravelmente dirigida para si mesma. Por isso,
resulta numa ruptura das regras claras do signo, para formar estruturalmente a
mensagem estética; então, a função poética produz um outro signo, materializando
possibilidades incontáveis de gerar novos signos.
O novo signo resultante da cadeia significante do processo estético que
representa o outro lado dessa cadeia semiótica manifesta-se no leitor/espectador,
envolvendo-o através da transformação da linguagem metafórica do signo que força
o código lógico com a perda da estruturação e combinação previsíveis, desfazendo
assim, as relações referenciais desse signo.
Ao despir-se do convencional da significação do signo, a função poética o
iguala a sua própria natureza flexível, sensível e aberto a leituras.
60
Jakobson classifica em seis funções: referencial, expressiva, conativa, metalingüística, tica e
poética. O autor desenvolveu a partir dos estudos da lingüística, especificamente do ato da
comunicação: contexto, remetente, destinatário, mensagem, contato, código e dos estudos pioneiros
de K. Buler (esta última informação é de NUNES FILHO, 1996, p. 64).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
95
Dessa forma, trazer a condição estética do filme no seu estado de
constituição para o autor/criador é colocar em funcionamento os mecanismos do
processo intersemiótico por intermédio da lógica abdutiva
61
.
61
É a única operação lógica a inroduzir idéias novas. (PEIRCE , 1974, p. 52)
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
96
Roman Jakobson (1970, p. 155), explicando as formas de estruturação
cinematográfica, afirma que
O cinema trabalha com fragmentos de temas e com fragmentos de espaço e
tempo de diferentes grandezas, muda-lhes as proporções e entrelaça-os
segundo a contigüidade ou segundo a similaridade e o contraste, isto é:
segue o caminho da metonímia ou o da metáfora (os dois tipos
fundamentais da estrutura cinematográfica).
Conforme essa concepção jakobsoniana, o cinema direcionado para a
organização estética resulta da similaridade através da operacionalidade dos
contrastes e das metáforas no signo estético. Baseados em alcançar o ideal estético
e no cuidadoso papel da montagem, produz-se no filme a materialização do signo,
conseqüentemente, dá-se exatamente pelo oposto do signo, que é projetado no eixo
da contigüidade. Dessa forma, aplicando a função poética no cinema, anula-se o
papel mediador do signo, com o objetivo de fazer com que o signo seja a coisa em
si, manifestando qualidades.
Observamos então que o signo estético desliza-se conceitualmente por suas
qualidades para produzir ressonâncias qualitativas e estabelece relação com o
conceito de qualisigno proposto por Peirce
62
. Através da relação de semelhança, o
qualisigno é a primeiridade. Representa o caráter formal do signo, aquilo o diferencia
e o faz identificável na relação sígnica.
O qualisigno no cinema responde ao movimento sinestésico, ou seja, pelo
entrecruzamento das linguagens, pela articulação dos planos, movimento de
câmera, fragmentação das unidades estruturais da narrativa, enfim, todas as
possibilidades de criação residem nessa unicidade do exercício do movimento do
62
Um qualisigno é uma qualidade que é um signo. Não pode realmente atuar como signo até que se
corporifique; mas esta corporificação nada tem a ver com seu caráter como signo”. (PEIRCE apud
PINTO, 1995, p. 43).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
97
signo indicial cinematográfico que permeia todas as qualidades e possibilidades
idealizadas.
O signo estético, ao extrair proveito do potencial lingüístico, tem natureza
epifânica, e numa obra de arte, segue o caminho diversificado, sem ter como
referência um ponto específico, pois se torna autônomo, dirige-se para si próprio,
comunica-se com outros signos que formam a cadeia combinatória das estruturas
estéticas, volta-se para fora da forma corpórea, por meio das quebras dos aspectos
qualitativos.
A Hora da Estrela é, então, produto estético, resultante do esforço
articulatório e tranformacional do signo estético constituído de movimentos
epifânicos.
Sobre esse conceito e procedimento da epifania, cabe destacar um exemplo
como mecanismo narrativo da escritora Clarice Lispector
63
e da cineasta Suzana
Amaral, respectivamente, que serão visualizados nos momentos narrativos em
primeiridade.
3.2. A EPIFANIA EM AHE1 E AHE2
A respeito da epifania em Clarice Lispector, já foi dito pelo crítico Álvaro Lins
(apud SÁ, 2000, p. 163) que Clarice Lispector uniu-se mais a Virginia Woolf do que a
Joyce.
Clarice Lispector privilegia a epifania como registro da sua escritura. No
caso, também ao ficcionalizar A Hora da Estrela, contamos dezenove explosões,
pontuadas elementarmente de forma singular, estando presentes na trama narrativa,
63
Trata-se do termo epifania em Clarice Lispector. Epifania vem do grego epi = sobre e phaino =
aparecer, brilhar; ephifáneia significa manifestação, aparição. (SÁ, 2000 p.168).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
98
podendo aparecer como sendo sensações visuais, alegria, suspense ou revelações.
Destacamos aqui, em nível de esclarecimento, que Lanza (1996, p. 51) sinaliza em
seu texto dissertativo que há, nesse romance, vinte e uma explosões por ela
constatadas. Também observamos a quantidade de onze “capítulos” do romance, se
é que podemos chamá-los assim, por não haver nenhum sinal gráfico, mas por
identificá-los pelos espaços duplos nos finais dos textos ou pelo contexto.
Então, entre as demais “explosões”, citemos uma, quando por ocasião do
encontro dos enamoradas, os nordestinos Olímpico e Macabéa.
– Ah mês de maio, não me largues nunca mais! (Explosão), foi a sua íntima
exclamação no dia seguinte, 7 de maio, ela que nunca exclamava.
Provavelmente porque alguma coisa finalmente lhe era dada. Dada por si
mesma, mas dada.
Nesta manhã do dia 7, o êxtase inesperado para o seu tamanho pequeno
corpo. A luz aberta e rebrilhante das ruas atravessava a sua opacidade.
Maio, mês dos véus de noiva flutuando em branco. Sua exclamação talvez
tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer no final da tarde desse
mesmo dia; no meio da chuva abundante encontrou (explosão) a primeira
espécie de namorado na vida, o coração batendo como se ela tivesse
englutido um passarinho esvoaçante e preso (LISPECTOR, 1999, p. 42).
A escritora não utiliza o termo explicitamente, porém o faz implicitamente,
pois utiliza nessa obra os vários tipos de epifanias críticas
64
, como neste exemplo:
Ouço a música antiga de palavras e palavras, sim, é assim. Nesta hora exata
Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que
não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas” (ibid., p.85 ). Uma forma
de pontuação, marca singular do seu estilo. Outro exemplo de epifania é a
64
Conforme Olga de Sá (2000, p. 197), a epifania crítica se caracteriza pela linguagem questionadora
e progressiva. Estes questionamentos enfatizam-se no nível da sintaxe. “Que houve? O que
houve?” “Mas o que houve? Mas o que houve?”. Olga de acrescenta adiante que “seus
movimentos epifânicos não são necessariamente transfigurações do banal em beleza. Muitas vezes,
como marca sensível da epifania crítica, surge o enjôo, a náusea. A transfiguração não é radiosa,
mas se faz sentido do mole, do engordurado e demoníaco”.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
99
passagem em que transparece a seqüência da estrutura diegética do romance no
momento da perda do namorado:
Foi então (explosão) que se desmanchou de repente o namoro entre
Olímpico e Macabéa. Namoro talvez esquisito mas pelo menos parente de
algum amor pálido. Ele avisou-lhe que encontrara outra moça e que esta era
Glória. (Explosão) Macabéa bem viu o que aconteceu com Olímpico e
Glória: os olhos de ambos se haviam beijado. (LISPECTOR, 1999, p. 60).
Outra explosão por ocasião da consulta à Cartomante:
Macabéa separou um monte com a mão trêmula: pela primeira vez ia ter um
destino. Madama Carlota (explosão) era um ponto alto na sua existência.
(ibid., p. 75).
Seus olhos estavam arregalados por uma súbita voracidade, pelo futuro
(explosão). (ibid., p. 77)
Não! Não! Não! Agora estou vendo outra coisa (explosão) e apesar de
não ver muito claro estou também ouvindo a voz de meu guia: esse
estrangeiro parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você!”
(id.).
Macabéa começou (explosão) a tremelicar toda por causa do lado penoso
que há na excessiva felicidade. (id.).
Ainda por ocasião da morte:
Então, ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o
Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora, é já, chegou a minha
vez! (ibid., p. 79).
Essas explosões apresentam-se na ficção durante os momentos resolutivos
da narrativa, num impulsivo movimento de luta da personagem Macabéa, que se
situa entre o saber e o não saber, a Vida e a Morte, pois
Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita
coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a
pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como
ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como se
antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na
hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de
glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos
sibilantes. (ibid., p. 29).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
100
Pois que a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não
sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa
sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável (LISPECTOR,
1999, p. 29).
Olga de (2000. p. 200) afirma que na escritura de Clarice Lispector,
como há epifanias críticas e corrosivas, há também epifanias da “beleza e visão”, do
“mole” e das “percepções decepcionantes”, seguidas de náuseas ou tédio.
No romance, a narração de Rodrigo S.M. possui um pólo doloroso, mas
belo, ao mesmo tempo crítica social, de uma tradição realista. Então, tais palavras
duras vislumbram todo um cenário caracterizador da protagonista, fazendo o leitor
percorrer as performances da personagem Macabéa; com reflexões perspicazes,
visualiza um ambiente imagético e indicial da protagonista.
Salientamos que essas explosões aparecem como rubrica, representadas
como epifanias, também na narrativa cinematográfica. Essas passagens epifânicas
são visualizadas materialmente com a presença da musicalidade e da dramatização
performática da protagonista, que acontecem intensamente, principalmente porque
anunciam antecipadamente ao leitor (vós) a sucessão dos fatos que irão ocorrer
durante a narratividade.
Também observamos como mecanismos do estilo (forma) da escritora, com
sua linguagem própria e aproveitamento oral, com um gosto pela repetição
(anáforas) das palavras. A impressão é de ser redundante, porém, enfoca o seu
gosto, com segurança, de uma forma de prosa poética. Podemos, destacar: “-
Acredito sim, acredito, acredito, não quero lhe ofender”. (ibid., p. 49). Em outro
exemplo dessa repetição de palavras, segue:
A moça um dia viu num botequim um homem tão, tão, tão bonito que que
queria tê-lo em casa. Deveria ser como como ter uma grande esmeralda-
esmeralda-esmeralda num estojo aberto. [...] Como casar com-com-com um
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
101
ser que era para-para-para ser visto gaguejava ela no seu pensamento.
(LISPECTOR, 1999, p. 41).
Isto quer dizer que esses mecanismos não são exclusivos em A Hora da
Estrela, mas característica da linguagem ficcional. Parafraseando Olga de (2000,
p. 156) ela diz que a escritura clariceana fica entre o “seco” e o úmido”. Contudo,
particularmente nesse caso, observamos a predominância da linguagem “seca”, pois
renuncia à tentação de manifestar termos suculentos” ou “adjetivos esplendorosos,
carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de
ação, já que palavra é ação, concordais?” (ibid., p. 15).
Nesse sentido, o narrador Rodrigo S. M. anuncia que sua escrita é feito
“névoa úmida”. “Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é
uma névoa úmida” (ibid., p. 16), o que não se verifica no desenvolvimento dos
diálogos e monólogos interiores.
Esse pequeno grande livro (com oitenta e sete páginas, na edição de 1999,
é considerado o menor romance de Clarice Lispector) traz a sua última “pergunta”.
Contendo outros doze subtítulos que se diluem por entre “fatos sem literatura”, vistos
como “pedras duras”, palavras frias. Tais subtítulos foram observados por outros
estudiosos como Olga de Sá (2000), Telma Maria Vieira (1996) e Sônia Lanza
(1996) que, aqui, também nos permitem observar a forma visual disposta sob a
imagem simbólica de um sino, que anuncia com sua voz reboada (faz eco) e divina o
início da narrativa, desperta o leitor, marcando a hora da estrela brilhar, ou o quanto
dura o grito nas palavras que ecoam sob o silêncio da personagem Macabéa. Esta
sinalização gráfica para nós assim simbolizada figura a seguir.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
102
Fig. 4 – Sino Clariceano
Segundo Vieira (1996, p. 83), em seu trabalho intitulado Clarice Lispector:
uma leitura instigante, o sino estabelece comunicação entre o celestial e a terra, e
destaca que “entre os prováveis títulos está o nome da autora, notamos um
prenúncio do que será desenvolvido na obra”. Para a pesquisadora, o sino também
denota o contato entre os extremos da vida humana, a vida e a morte, como também
os paradoxos da criação - realidade e ficção. Destaca ainda Vieira que “no badalar
do sino, isto é, no desenvolvimento do texto é que haverá o entrelaçamento dos
pólos sem que a realidade e a ficção se confundam”. (id.). Então o sino funciona
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
103
como um divisor entre o som do sino e o som da autora, “cosendo” a tessitura
narrativa ficcionalizada entre a realidade e suas impressões sobre si mesma.
Essa história, apesar de exterior e explícita, “contém segredos”
(LISPECTOR, 1999, p. 13) e também depende do narrador, será “uma história com
começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo”. (id.).
A narrativa caminha relativamente em tempo linear, embora o narrador
embaralhe os acontecimentos. O leitor é tratado como interlocutor direto em
segunda pessoa do plural “vós”. Sendo assim, o narrador diz da predileção pela
personagem morte. “A morte que é nesta história o meu personagem predileto”.
(LISPECTOR, 1999, p. 84). E inclui a sua futura morte “(eu também?)”, (ibid., p. 87).
Segundo Olga de Sá (2000, p. 269), o romance A Hora da Estrela se
comunica com todo o universo ficcional de Clarice Lispector, e, particularmente, “faz
oposição com Água Viva” (1973). Nesse romance, alerta o narrador Rodrigo S.M.
que nenhum leitor desavisado espere, “requinte, brilho de estrelas”: “[...] nada
cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por
todos”. (op. cit., p. 16).
Outra imagem verbalizada pelo narrador é a da estrela, mas a “estrela de
cinema” somente surge na história na hora da morte. Então, a hora da estrela
remete ao momento da morte, paradoxalmente.
O texto desta ficção é curto, questionador, irônico e doloroso. A fábula e o
material narrativo constituem uma “história exterior e explícita”. Trata-se de um
relato, um registro de fatos a contragosto, o narrador apaixona-se por fatos.
Cansado destes, pois são decorrentes de banalidades definíveis, de todos os
acontecimentos narrativos o que sobra mesmo é o “sussurro”. “Os fatos são
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
104
sonoros, mas entre os fatos um sussurro. É o sussurro que me impressiona”.
(ibid., p. 24).
Nessa ficção narrativa
65
o material básico da escritura é a palavra. É uma
ficção com segredo no seu interior. “Assim é que esta história será feita de palavras
que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa
palavras e frases” (LISPECTOR, 1999, p. 14). A história trata das “fracas aventuras
de uma moça numa cidade toda feita contra ela”, (o Rio de Janeiro). (ibid., p. 15).
A temporalidade deixa embaralhado o narrador, que tem a preferência
tradicional por iniciar a narrativa pelo fim. [...] “Só não inicio pelo fim que justificaria o
começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos
antecedentes” (ibid., p. 12).
Após muita reflexão, entre o discurso do narrador – quem narra e o
progresso da narrativa, narração sucessiva dos fatos inicia-se o texto pelo
meio, quando a personagem protagonista recebe alerta da perda do emprego e vai
ao banheiro. Dessa forma, o narrador consegue respeitar o tempo, anda
paulatinamente no compasso do relógio, e trava uma batalha contra hábitos
adquiridos. O narrador simula, como narrador/personagem, fazer parte dos
intelectuais que pertencem à classe dos escritores. No entanto escreve porque
“sobrou” no mundo. Clarice Lispector nesta obra, desperta em nós leitores, o gosto
para a questão da autoria. A intenção é que o tempo da escritura seja paralelo ao da
leitura: “como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido” (ibid., p. 12).
65
Trata-se do “conjunto dos textos literários integráveis no modo narrativo”, possui “natureza
essencialmente ficcional”. (REIS, 2003, p. 343) “A narrativa literária estrutura-se em dois planos
fundamentais: o plano da história relatada e o plano do discurso que a relata, articulados num acto de
enunciação que é a instância da narração”. (ibid., p. 345). “É composto de categorias nivelares como:
personagem, susceptível de ser elaborada em diversos aspectos da sua existência ficcional; o espaço
e as suas diferentes modalidades de configuração; a acção e as suas variedades de tratamento; a
perspectiva narrativa, permitindo opções de representação com inevitáveis projeções subjetivas; a
pessoa (isto é, o narrador) que enuncia a narrativa, implicando relações de várias ordem com a
história contada”. (id.).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
105
Na verdade, A Hora da Estrela é uma teia narrativa, um emaranhado, para
revelar ao leitor o que realmente importa, nesse romance: a narração, o narrador, e
não a fábula.
Explicando a autoria, a construção da escritura narrativa em A Hora da
Estrela, citemos Fabiana Rodrigues Carrijo (2003), no seu ensaio intitulado A
Dubiedade Narrativa em Clarice Lispector: Um Olhar sobre a Hora da Estrela pode
nos falar sobre “o caminho da androginia textual”
66
. Segundo Carrijo, o narrador
Rodrigo S. M, em processo de espelhamento, cria olhando-se ao espelho e “um
ruflar de tambor no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo” (AHE1,
1999, p. 22). Carrijo, em consonância com Luciana Borges (apud CARRIJO, 2003)
67
afirma que “como o Outro do Si-mesmo, Macabéa força sua existência na existência
de Rodrigo S. M.”. “Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me
escrever todo através dela, por entre espantos meus” (op. cit. p. 24). “(É paixão
minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço esquálido igual a ela.)” (ibid., p. 29).
Afirma Borges (apud CARRIJO, 2003, p. 04): “a possível feminilização do narrador, a
partir desta determinação, se entrevê por indícios de que uma escrita masculina
seria mais racional do que a que ele realiza”. Rodrigo S. M. afirma: “escrever com o
corpo e o resultado desta escrita é uma névoa úmida” (op. cit., p.16). No entanto, a
tentativa de racionalizar a escrita aparece nos opostos seco/úmido: “o que eu
narrarei será meloso? Tem tendência mas agora mesmo seco e endureço tudo”
(ibid., p. 17), que justifica a oposição entre a dureza masculina e a pretensa
pieguice feminina: (...) e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor,
66
Trata-se de “um narrador andrógino aparentemente masculino, mas que implicitamente
transfigura-se em feminino seja no modo como concebe a noção de narrador, seja na temática,
propriamente feminina, contradições subentendidas na composição da narrativa: seco/úmido (dureza
masculina versus a pieguice tida como feminina por excelência)”. (CARRIJO, 2003, p. 05).
67
Luciana Borges. Aprendendo o EU: o universo feminino em Clarice Lispector. Dissertação.
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1999. Apud CARRIJO, 2003, p. 01.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
106
sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”
(LISPECTOR, 1999, p.14).
Concordamos com o que afirmam Carrijo e Borges: em A Hora da Estrela há
dois sentidos em narrar. A ambigüidade de narrar é conseguida por meio ilícito e
anuncia uma androginia textual em A Hora da Estrela, que tanto as vozes do
narrador quanto da personagem nordestina se acham imbricados, um dependendo
do outro para ter vida. Explica Carrijo: “Macabéa possui vida no discurso ficcional
criado por Rodrigo S. M., assim que S. M. põe fim à existência de Macabéa, o
mesmo acontecerá com ele mesmo” (CARRIJO, 2003, p. 02). Vejamos: “Macabéa
me matou. Ela estava livre de si e de nós. o vos assustei, morrer é um instante,
passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça”(op. cit., p. 86). O excerto
anterior sugere-nos a grande coincidência entre criador/personagem, “bem como a
reversibilidade entre os membros do par” (Rodrigo e Macabéa), “já que os termos
podem ser transpostos de uma posição para outra, sem que este processo implique
em perda de função”(CARRIJO, 2003, p. 2).
Dessa forma, a escrita feminina, “este mecanismo de cessão da voz
narrativa a um homem, faz-se como um pretexto para destruir internamente um
discurso institucionalizadamente masculino” (BORGES apud CARRIJO, 2003, p. 02).
Então, não é por acaso que insistentemente o narrador luta contra a pieguice que
ele considera exclusiva do feminino. De outro ângulo, “a androginia textual que se
instala mediante este processo expressa um propósito de ‘conciliação do masculino
– feminino como um gesto novo de escrita’” (ENGELMANN apud CARRIJO, 2003, p.
02).
Evidentemente estes caminhos entre narrador e personagens nos
posicionam no sentido de corroborar com Carrijo, quando afirma que este exercício
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
107
de concessão da voz do narrador masculino faz-se através de um exercício para
manter-se junto à personagem (permanecer no nível da personagem) no caso do
narrador (Rodrigo S. M.), e distante dela (no caso do criador).
Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a barba
durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, cochilar de
pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa
velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da nordestina (LISPECTOR,
1999, p. 19).
Assim, em conformidade com Carrijo (2003, p. 2) “no fato de distanciar-se da
personagem, deve-se dizer, distanciar-se de seu excesso. Um excesso que se
caracteriza por elementos ausentes, já que sua natureza é lacunar”.
Existe uma intensa ligação entre o narrador Rodrigo S. M. e a personagem
Macabéa, como insistentemente demonstra a narrativa: “[...] E preciso falar dessa
nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre
ela. Escrevo em traços vivos e ríspidos de pintura” (op. cit., p. 17). Evidentemente,
o narrador Rodrigo S. M. não é narrador/personagem, simulação de criador, é a
contraparte de Macabéa; sua identidade é vista através de Macabéa; falando da
outra, Rodrigo S. M. “fala dele”: “Pareço conhecer nos menores detalhes essa
nordestina, pois se vivo com ela. E como muito adivinhei a seu respeito, ela me
grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra” (ibid., p. 02).
Somando-se isso, o narrador ainda argumenta que “a ação desta história
terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim
em objeto”. (ibid., p. 27), ou, sendo assim, a sugestão vem desde o início do
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
108
romance, um suposto “travestimento”, se é que assim poder-se-á tomá-lo
68
(CARRIJO, 2003, p. 02).
Quanto ao possível travestimento do narrador em outrem, podemos afirmar,
junto com Carrijo, que, na constituição da presente narrativa, por diversos motivos,
Rodrigo S. M. parte do fato de a narrativa estar escrita, de algum modo, nele
mesmo. “Ainda bem que o que eu vou escrever deve estar na certa de algum
modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta
branca” (LISPECTOR, 1999, p. 20).
Acrescentando, a grande tarefa do leitor nesse romance clariceano é
descobrir que a problematização do romance é a condição da escritura, sob o ponto
de vista de narrador que se transforma em outrem. A tarefa de escrever a narrativa,
ou seja, de se copiar, não é fácil como se imagina; o narrador ambíguo é o que
“brinca de bola sem a bola”, faz e desfaz. Entretanto, por diversos momentos tem-se
a representação de que a narração é bastante dolorosa, árdua, repleta de lutas,
horas e horas, por alguns dias se constituindo, se desfacelando, se desfazendo, se
fragmentando, acompanhada do jogo de ficcionalização da narrativa. No caso de
Clarice Lispector dupla/doloroso que ela detestava a factralidade. A análise do
texto de Clarice evidencia o literário ao passo que a análise de outros textos
(factrais) evidencia a ação em si e suas realções com o social, o príquico, o
antropológico, etc.
Essa idéia de borboleta branca vem de que, se a moça vier a se casar,
casar-se-á magra e leve, e, como virgem, de branco. Ou não se casará? O
fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto
com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal (ibid., p. 20).
68
Carrijo (2003, p. 2) utiliza o termo travestimento na mesma acepção de um processo de
transformação aparente do masculino em feminino” ou o contrário, na tentativa de explicar esse
imbricamento clariceano.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
109
Pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros. Logo eu que constato
que a pobreza é feia e promíscua. Por isso não sei se minha história vai ser
ser o quê? Não sei de nada, ainda não me animei a escrevê-la. Terá
acontecimentos? Terá. Mas quais? Também o sei. Não estou tentando
criar em vós uma expectativa aflita e voraz: é que realmente não sei o que
me espera, tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a
cada instante querendo que eu o recupere (ibid., p. 22).
Assim, é necessário ser cuidadoso, como o narrador mesmo adverte, por se
estar trilhando a linha tênue entre o patamar da “terra e as nuvens do céu”, ou seja,
de estar no intermédio. “[...] com a delicadeza de borboleta branca”. Vai ser com a
intenção de não se contaminar, de não se juntar, o que, de fato, está tão ilicitamente,
imbricado, como a casca e a castanha.
O jogo ficcional em A Hora da Estrela é todo na tentativa frustrada de
mostrar o real. momentos em que se tenta justificar, nomear e quantificar quem
são ou serão os possíveis personagens do romance, suas características e assim
sucessivamente. Em outros momentos, “o narrador quer fazer crer que a
personagem construída, inventada, é passível de ser real, ou melhor, de se construir
em realidade para que todos a vejam, andando pelas ruas” (CARRIJO, 2003, p. 2).
A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens
e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. relato
antigo, este pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de
originalidade. Assim é que experimentei contra os meus hábitos uma
história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de chuva
caindo” (LISPECTOR, 1999, p. 12-13).
De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa
delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto
eu. Cuidai dela porque meu poder é mostrá-la para que vós a
reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza
(ibid., p. 19).
Insistimos em afirmar que existe uma dupla ficcionalização e
desficcionalização, como também observa Carrijo (2003, p. 2), alegando ser
concomitante “à descrição de uma narrativa ficcional aparece também a
desficcionalização desta narrativa, na medida em que o narrador, a todo momento,
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
110
quer parecer que Macabéa não é tão real assim, que é possível ir reconhecendo-
a pouco a pouco, e talvez, dentro de nós mesmos, no caso, os leitores”. Ao mesmo
tempo “não nos deixa esquecer que se trata de uma narrativa que vai se
constituindo, na medida em que o narrador vai aventando e explicitando os fatos, os
recursos narrativos digam-se “fictícios” ou não – que lança mão para a construção
de sua aventura” (2003, p. 2).
Interessante é notar que o narrador caminha configurando a construção da
narrativa e, de certa maneira, dissimulando,
[...] faz-se ler, ainda que implicitamente, uma tentativa de sugerir que seu
papel não é tão somente o de escritor, mas, bem mais que isto na medida
em que, além de ser uma das personagens principais (ou de dividir com a
mesma o papel principal – o “outro” dela mesma) representa também
aquele que conduz até mesmo o respirar alheio. (LISPECTOR, 1999, p. 02).
“Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço
malabarismo de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto” (ibid.,
p. 23). Realmente este “ator” é aquele que, em alguns momentos, assume o papel
dos leitores. Como acrescenta Carrijo (2003, p. 2), “representando o papel de ser o
‘outro’ de nós mesmos e, quem sabe, dele próprio? Faz perguntas, assume
comportamento, dúvidas que antes mesmo de os leitores as pensarem, encena e
contracena com ele mesmo, ou melhor, com os diversos ‘outros’ com os quais
convive, seja dando por sua convivência, seja negando-a”.
(Há os que têm. E os que não têm. É muito simples: a moça não tinha.
Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der para me
entenderem, está bem. Se não, também está bem. Mas por que trato dessa
moça quando o que mais desejo é trigo puramente maduro e ouro no
estio?) (op. cit., p. 25).
(Estou passando por um pequeno inferno com esta história. Queiram os
deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de
lepra). (Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que prevejo
vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
111
porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba
da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma
verdade da qual eu o queria saber. o sei a quem acusar mas deve
haver um réu) (ibid., p. 39).
A questão da transfiguração e do travestimento do narrador em personagem
está bem representada no fragmento seguinte:
Para desenhar a moça tenho que me domar e para captar sua alma tenho
que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho gelado pois faz calor
neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver
o mundo. Também tive que me abster de sexo e de futebol. Sem falar que
não entro em contato com ninguém. Voltarei algum dia á minha vida
anterior? (LISPECTOR, 1999, p. 22-23).
Conforme (CARRIJO, 2003, p. 4), é negada à personagem Macabéa a
condição de ser fêmea, pois os ideais instituídos para o feminino não encontram
ressonância nas suas proporções. A personagem é um cabelo na sopa, não
vontade de comer” (op. cit., p. 60). Em contrapartida, Glória encarna os padrões
instituídos ao feminino. É desejada, representa o que o masculino almeja: “carnes
fartas”. “Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira” (op. cit., p. 60).
Divergentemente se configurava Macabéa, tinha “ovários murchos”, além de não
se mostrar feminina. Macabéa incomoda Olímpico com toda sua negatividade, sua
não-feminilidade, mas, por outro lado incomoda-nos muito mais” (CARRIJO, 2003, p.
4). Dessa forma, a personagem impõe autonomia; não concretiza os desejos do
namorado – de “fêmea nutriz”, nem haverá possibilidade de realizar realmente.
Macabéa deseja ser desejada, mas tal desejo fica contido na experiência pessoal da
falta, ou ao imaginário, devaneios da personagem. no pensamento, a
personagem supera os seus sonhos.
Borges (apud CARRIJO, 2003, p. 4) afirma que o mérito de Macabéa está
em negar sua feminilidade e em constituir-se positivamente para seu papel. “O valor
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
112
positivo de Macabéa talvez seja o da supressão da falta, o da manutenção das
lacunas”. A Macabéa não é permitida a perpetuação da espécie, já Glória e Olímpico
fazem o papel de seres avigorados.
Quanto aos nomes do narrador e da personagem nordestina faz-se uma
observação. Rodrigo S. M. é um narrador sem individualidade exterior, conforme
Carrijo (2003, p. 4); o que narra não é a exterioridade, mas o anonimato que lhe
permite exibir-se por dentro, mostrar a alma, no pensar. Em anonimato, nós ficamos
sabendo através das palavras, da linguagem, da articulação e arranjo feitos de
forma dúbia. Carrijo acrescenta sobre este assunto que:
Nas diversas caracterizações exteriores de Rodrigo, ele se acha refletido
através de um espelho e, como toda e qualquer imagem especular invertida.
Rodrigo se encontra em Macabéa, e Macabéa se reflete como um Rodrigo,
de aparência cansada e barbudo”. Nenhum dos dois chega a ter
individualidade própria, Macabéa um tantinho mais que Rodrigo, ou seria o
inverso? Macabéa, no final da narrativa, morre e mata também seu autor, no
caso Rodrigo. (id.).
Carrijo acrescenta ser relevante observar que o presente anonimato,
assegurado, em parte, pelo jogo das iniciais do nome do narrador, revela que ele (o
anonimato) e a cumplicidade não são só do narrador/personagem, mas do leitor e do
criador.
Salienta que “a narrativa possui uma identidade não andrógina, e, embora o
processo narrativo se revele desse modo, percebe-se, no todo, que há uma voz
feminina, ainda que a mesma sirva-se de um narrador duplo, como se procurou
sugerir até o momento” (ibid., p. 05).
O narrador determina com “falso livre arbítrio” que sejam sete personagens.
No entanto, o universo de Macabéa, a moça nordestina, protagonista, é constituído
pela tia falecida; Glória, a colega, que lhe rouba o namorado (Olímpico de Jesus
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
113
Moreira Chaves); Seu Raimundo (o patrão); a dona da pensão e as quatro Marias.
que dividem o quarto com Macabéa. Até então, contam-se oito personagens. Além
desses, o narrador é um dos principais, pois não se considera secundário. Tem-se
ainda o médico, a cartomante, o Hans, proprietário do Mercedes Benz que atropela
Macabéa, e a personagem predileta do narrador: “A morte que é nesta história o
meu personagem predileto” (LISPECTOR, 1999, p. 84).
Observa-se que na narrativa existem treze subtítulos e mais ou menos treze
personagens, um número bem expressivo. Outro pormenor, observado por Olga de
(2000), é de que o nome de Macabéa abreviado “Maca”, é, praticamente, quase
idêntico a Maçã, sem os sinais gráficos, referencia outra obra de Clarice Lispector, A
Maçã no Escuro, e também significa fruta das tentações dos bosques. Maca é a
abreviatura carinhosa do narrador e da colega. “Maca é, graficamente, quase
idêntico a Maçã, sem os adornos sinuosos do til e da cedilha, que situam aquela
fruta da escuridão nasal e das tentações. Maca é nordestina, toda fome é deserto”
(SÁ, 2000, p. 271).
Ainda temos a personagem coletiva, que é o nordestino, “o que queria dizer
que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai
talvez reivindicar o direito ao grito” (op. cit., p. 80).
O espaço do romance é a cidade do Rio de Janeiro, mas os pontos mais
bonitos da cidade grande, na sociedade urbana, o interessam ao narrador. As
ruas, o quarto de pouca valia, que as Marias partilham entre si, a casa da
cartomante, o escritório em que trabalha, o banheiro. Nesse espaço, encontram-se
espelho envelhecido pela ferrugem, botequim, a Rádio Relógio, cinema barato,
Jardim Zoológico, automóvel de luxo Mercedes Benz, o refrigerante mais popular, a
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
114
coca-cola. A Rua do Acre para morar, a rua do lavradio para trabalhar, um galo
cantando pela manhã e o cais do porto para observar, no domingo.
O estilo da narrativa, promete o narrador ao leitor, será simples, sem
criatividade. O narrador está saturado da retórica da literatura. Não utilizará nada de
ornamento, mas verbos “tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação”
(LISPECTOR, 1999, p. 15). A palavra, material básico da narrativa, “não pode ser
enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela” (ibid., p. 20). O narrador
deseja ocultamente “alcançar uma sensação fina”, e sua narrativa terá a companhia
da “penumbra atormentada que sempre há nos meus sonhos” (ibid., p. 16). O
narrador não deseja escrever um melodrama, não quer ser meloso. Opta pela frieza
das palavras. “Essa coisa aí” não terá uma “melodia cantabile” e possuirá um “ritmo
descompassado”. Todavia, a palavra será mais uma personagem inusitada desse
romance, sua personagem que disfarça para não ser óbvia.
O texto narrativo ficcionalizado é uma “névoa úmida” e, conforme Sá (2000,
p. 272), uma epifania de escrever, uma epifania da própria escritura, um poema
sobre a agonia de escrever”. Oitenta e sete ginas de sofrimentos disfarçadas por
entre suspiros e sussurros.
As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam
desiguais, estalactites, renda, música, transfigurada de órgãos. Mal ouso
clamar palavras a essa rede vibrante e rica mórbida e obscura tendo como
contratom o baixo grosso da dor. Alegro com brio. Tentarei tirar ouro de
carvão. Sei que estou adiando a história e que brinco de bola sem a bola. O
fato é um ato? Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia
muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta” (op. cit., p. 16-17).
Estas palavras em A Hora da Estrela são frases paratáticas, um monólogo
interior. É um relato que deseja ser imagem, ruídos e arte plástica. Para o narrador é
muito difícil escrever comparando a escrita com quebra de pedras. Contudo, “voam
faíscas e lascas como aços espalhados. É duro como quebrar rochas” (ibid., p. 19).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
115
A dificuldade do narrador é fazer perceptível aquilo que ele mal vê. “Com mãos e
dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria alma” (ibid., p. 19).
Do narrador temos conhecimento que é uma das personagens principais. Ao
mesmo tempo em que narra a história ficcional nos faz conhecer, também, sua
problemática interior. Revela a protagonista se revelando. Constrói a narrativa
(des)construindo. De acordo com Olga de Sá (2000, p. 273), é uma marca de toda a
ficção clariceana, “ironia e maiêutica da própria escritura”.
“A ação dessa história terá como resultado minha transfiguração em outrem
e minha materialização em objeto. Sim, e talvez eu encontre a flauta doce em que eu
me enovelarei em macio cipó” (LISPECTOR, 1999, p. 20). Rodrigo S. M., tem um
sobrenome abreviado, pode se afirmar “S” de sofrimento e “M” de morte. Rodrigo S.
M. é onipotente, pois inventa um destino. É onisciente, porque sabe quase tudo a
respeito das suas personagens, mas a protagonista é buliçosa, pode escapar-lhe do
seu controle. Não sabe como terminará essa história. Não sabe o que fazer na hora
da sentença, se deixar a protagonista morrer ou viver. Culpa-se em relação à
protagonista e demora optando pela morte, páginas e páginas. Quando, finalmente,
decide matar com “gran finale”, com chuva caindo e tudo, volta-se contra si mesmo.
“Até tu, Brutus?” (ibid., p. 85).
Macabéa é moldada sob o destino do Rodrigo S.M. e da solidão. (2000,
p. 274) afirma: “Clarice Lispector sabe que todo narrador inventa o mundo à sua
imagem e semelhança e o “ele” ou “ela” das fábulas é sempre um disfarce do “eu” do
escritor”. Através de Macabéa, o narrador se escreve pontilhando seus próprios
pontos de vista, ao se deparar com seus espantos e ponderação acerca dos fatos. O
narrador é onipotente também com seu leitor, pois conversa incansavelmente com
ele.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
116
Vieira (1996, p. 102) observa que a autora Clarice Lispector, ao escrever um
romance, tem por preferência “O leitor-modelo-Clarice”, como aquele que deverá
preencher as entrelinhas do texto. E este vai tornar-se personagem e, sendo assim,
a autora exige dele posicionamento. O ideal é “aquele de alma formada”. No
entanto, esse leitor se depara com a problemática da linguagem, ponto central na
produção da escritura clariceana, principalmente porque existe um entrecruzamento
de questionamentos e reflexões acerca da criação literária e do ser enquanto
existência. “Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor
trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional” (LISPECTOR, apud
VIEIRA, 1996, p.100).
Quanto ao leitor, nesse romance, sustenta-se através das palavras,
diálogos, interrogações do narrador. De certo modo, o leitor é uma companhia,
percorrendo toda a narrativa. Deve embeber-se da jovem Macabéa como pano de
chão todo encharcado. Não pode ser insensível nem impiedoso, mas é um leitor
burguês, exigente, que tem necessidade de um final grandiloqüente. “O final foi
bastante grandiloqüente para a vossa necessidade?” “Eu vos pergunto: Qual é o
peso da luz?” (LISPECTOR, 1999, p. 86).
Rodrigo, ao matar Macabéa, acaba morrendo. Alerta o leitor que o instante
da morte faz parte do ser humano. É condição de todo ser humano, assim como a
paixão por escrever, de voltar atrás. A Hora da Estrela perpassa a frieza da morte.
Morreu o narrador junto com Macabéa e Clarice Lispector: morrer é um instante,
passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça” (ibid., p. 86). “As coisas são
sempre vésperas e se ela não morre agora está como nós na spera de morrer,
perdoai-me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência” (ibid.,
p. 84).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
117
“O escritor escreve porque aprendeu a manusear “o espírito da ngua” e, às
vezes, a forma é que faz conteúdo” (ibid., p. 18). O escritor denuncia
emergencialmente o “estado de calamidade pública”. (LISPECTOR, 1999, p. 10). Ele
escreve não pela personagem nordestina nem pela temática, mas pela narração, e
engana o leitor afirmando ser “mas por motivo grave de força maior”, como se diz
nos requerimentos oficiais, por “força de lei” (ibid., p.18). Escreve porque necessita
se compreender, porque necessita encontrar respostas. “Enquanto eu tiver
perguntas e não houver resposta continuarei a escrever” (ibid., p. 11).
Essa é a dor que envolve a narrativa, sinalizada na dor de dentes que
atravessa toda a história.
[...] deu uma fisgada funda em plena boca nossa. A história é contada como
“[...] melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, em que carrego
o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida,
inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes” (ibid., p. 11-12).
O narrador tem a consciência de que algumas palavras são proibidas de
serem escritas, pois a narrativa tem que ser constituída de fatos duros como pedra.
“É melhor eu não falar em felicidade ou infelicidade provoca aquela saudade
desmaiada e lilás, aquele perfume de violeta, as águas geladas da maré mansa em
espumas pela areia. Eu não quero provocar porque dói” (ibid., p. 60).
O escritor escreve com o corpo, de ouvido. Escreve porque não tem o que
fazer no mundo, a não ser esperar a morte. Sua escrita é até enquanto espera a
morte. “A procura da palavra no escuro” (ibid., p. 70). Não se enquadra em nenhuma
hierarquia social, o escritor torna-se um trabalhador manual e considera-se um
desconhecido. Para escrever sobre a protagonista, ele se equivale ao mesmo nível
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
118
para se tornar mais próximo de Macabéa. Nas palavras de Olga de
69
(2000, p.
276), “ironicamente, denuncia o escritor burguês que defende a necessidade da
literatura engajada. Faz-se pobre, dorme pouco, adquire olheiras escuras, deixa a
barba por fazer, anda nu ou em farrapos, abstém-se do sexo e do futebol”.
Enquanto Rodrigo S. M. preocupa-se em igualar-se a Macabéa, ele tem a
consciência de que é um intelectual e ela, a seu ver, uma iletrada que não pensa,
não usa o intelecto, apenas trabalha utilizando as mãos para bater à maquina de
escrever. “Sabendo no entanto que talvez eu tivesse que me apresentar de modo
mais convincente às sociedades que muito reclamam de quem está neste instante
mesmo batendo à maquina” (LISPECTOR, 1999, p. 19-20).
Esse escritor se destaca na vida pela habilidade factual em escrever, do
contrário seria mais um ser no mundo ao acaso. “Escrevo por não ter nada a fazer
no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou
um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não
fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria” (ibid., p. 21).
A natureza da ficção é a invenção, o acontecimento e a realidade dos fatos.
A invenção é verdadeira. O escritor trabalha duro adivinhando o real. O universo da
ficção é o universo real, não tem começo. “Como começar pelo início, se as coisas
acontecem antes de acontecer?” (ibid., p. 11). Olga de (2000, p.277) afirma: “A
ficção transfigura, transforma o o do pobre e o carvão da tinta de escrever em
ouro puro”.
A narrativa possui segredos escondidos como em um dos subtítulos “Quanto
ao futuro”. O futuro está entre a grafia de dois pontos finais (op. cit., p. 13). Nada tem
69
Conforme Olga de Sá (2000, p. 278), o romance A Hora da Estrela reúne imagens e problemas das
outras narrativas de Clarice Lispector, como Água viva (1973), O Lustre (1947), Paixão Segundo G.
H.(1967) e Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1971).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
119
a ver com o desejo do narrador. Macabéa, a personagem muda, ou de poucas falas,
que tem paixão pelas escritas, os anúncios, pelas palavras sonoras, os ruídos do
tempo nas ondas da Rádio Relógio, as frases vindas do seu namorado, Olímpico,
com sua forma própria de falar. Macabéa, que ouvia música extasiada, Uma furtiva
lacrima”, melodia na voz de Caruso. Macabéa dos livros Alice no País das
Maravilhas” de Lewis Caroll, de Humilhados e Ofendidos” de Dostoieviski. Macabéa
que tem paixão por coca-cola, queijo com goiabada. Macabéa morre dizendo a frase
que nenhum transeunte entendeu: “Quanto ao futuro.” Macabéa que saiu da
cartomante “grávida de futuro” (LISPECTOR, 1999, p. 79). A consulta à cartomante
antes lhe revelará um futuro, uma vida de palavras, amor estrangeiro, louro, olhos
azuis, e ainda de graça, é rico. “Terá tido ela saudade do futuro? Ouço a música
antiga de palavras, sim, é assim. Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo
de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo
luminoso. Estrela de mil pontas” (ibid., p. 85).
Macabéa vomitou sangue, o elemento marcante nessa história. Sangue que
não gostava de ver, sangue indicial. Este aparece no começo do romance até a
morte de tudo ou até a hora da morte “de estrela” (SÁ, 2000, p. 277) no fim. Sangue
do batom vermelho em seus lábios, “pintar-se como uma endemoniada? Você até
parece mulher de soldado” (op. cit., p. 62). Macabéa imita a estrela de cinema
Marylin Monroe.
O ponto central da narrativa é a metáfora instaurada no sangue. Macabéa
morre na ânsia de vomitar o luminoso, estrelas. Macabéa é a estrela, possui o peso
da luz. A história em A Hora da Estrela é enovelada pelo ser e o escrever, é sangue
vivo. “Sangue que se coagula em cubos geléia trêmula [Clarice Lispector?]. Será
essa história um dia o meu coágulo?” (ibid., p. 12).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
120
3. 2.1. Articulação Fílmica (os recursos fílmicos como elemento poético).
Embora o romance A Hora da Estrela tenha sido escrito por uma ucraniana,
ela vivenciou o bastante do nordeste brasileiro para escrever com propriedade sobre
a região, principalmente sobre a questão do migrante em seu universo de miséria e
exclusão social. Por seu turno, também a adaptação fílmica colocou em evidência a
questão social do retirante na sociedade brasileira, isto é, Macabéa representa a
classe de migrantes que vão ao sudeste em busca de melhor condição de vida. O
capitalismo requer mão-de-obra qualificada, como não possuem, acabam por ser
marginalizados, trabalhando em subempregos. O que é representado, na criação
literária de Clarice Lispector, pela ação mecânica da datilógrafa. A história adaptada
mostra os seus personagens grosseiros e ignorantes. Os comportamentos e
diálogos são verossímeis.
Além disso, o filme foi produzido por uma cineasta brasileira, falado em língua
portuguesa. O longa-metragem foi ganhador de vários prêmios. A crítica o aplaudiu
em quase todas as categorias
70
.
70
Melhor Filme Júri Oficial e Popular, Melhor Direção, Melhor Roteiro (Suzana Amaral e Alfredo
Oroz), Melhor Fotografia (Edgar Moura), Melhor Cenografia (Clóvis Bueno), Melhor Montagem (Ide
Lacreta), Melhor Sonora (Marcus Vinícius), Melhor Ator (José Dumont), Melhor Atriz (Marcélia
Cartaxo), Prêmio da Crítica e Prêmio OCIC (Organização Católica Internacional para o Cinema e o
Audiovisual), Troféu Jangada XVIII Festival de Brasília do Cinema Brasileiro/ DF, 1985; Melhor
Filme, Menção Honrosa da CICAE (Confederação Internacional de Cineclubes), Urso de Prata
Melhor Atriz (Marcélia Cartaxo) e Prêmio OCIC (Organização Católica Internacional para o Cinema e
o Audiovisual) 36º Festival de Berlim/Alemanha, 1986; Prêmio de Melhor Realização Festival
de Filmes de Mulheres, Paris, 1986; Melhor Direção, Melhor Atriz (Marcélia Cartaxo), Melhor
Montagem (Ide Lacreta) – Prêmio Governador do Estado de São Paulo.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
121
3.2.2. As imagens do filme adaptado
AHE2 conta a história de uma jovem alagoana de dezenove anos, virgem,
datilógrafa, que tem preferência pelo refrigerante coca-cola, mas seu maior desejo é
poder alimentar-se de goiabada com queijo. Para aumentar seu drama, a
personagem principal perde os pais ainda bebê. Macabéa é criada por uma tia, que
depois vem a falecer, deixando-a órfã em São Paulo.
Mais tarde a jovem Macabéa do Sertão das Alagoas, “desajeitada e
improcedente para a vida”, agora interpretada por Marcélia Cartaxo, mal feita de
corpo e pobre, luta pela sobrevivência, tendo a chance de trabalhar em um escritório
de um depósito, ganhando mensalmente uma renda menor que o salário mínimo. A
personagem consegue pagar um quarto dividido com as Marias, alimenta-se e veste-
se, ainda paga os passeios ao Zoológico, o transporte, compra esmalte para as
unhas e batom.
No ambiente do trabalho, a protagonista encontra sua rival, Glória, que lhe
rouba o namorado, como penitência pelos pecados de ter feito vários abortos,
conforme orientação de uma cartomante, Madama Carlota, uma ex-cafetina e ex-
prostituta, fã de Jesus.
Analisando o filme, observa-se que o discurso alegórico, irônico do futuro
candidato a deputado Olímpico de Jesus Moreira Chaves apresenta a dimensão
crítica do papel dos políticos e governantes.
Cena número 14 do filme - discurso de olímpico numa praça pública de São
Paulo. Quando for eleito, o deputado Olímpico de Jesus Moreira Chaves vai
acabar com todos os problemas dessa terra, de João Pessoa até
Cajazeiras, de Cajazeiras até Brasília. Você Cassiana, minha irmã, que
mora no meu coração. Você vai ter sua casa com água encanada, porque o
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
122
nosso problema não é água, o nosso problema não é chuva, não falta
nuvem no Nordeste, meus amigos, falta é homem!!!
71
Observa-se que o público ouvinte do discurso de Olímpico é uma mulher
mendiga. Ao discursar, Olímpico está de no alto da escadaria de um palanque
construído na praça, entre esculturas, e ao seu lado uma tocha Olímpica, uma
grande chama acesa, um símbolo mundial de paz e liberdade, mas também a
relação com o personagem Olímpico. A tocha passa às mãos do futuro deputado
que discursa em favor dos menos favorecidos e chama atenção para o papel do
Estado e a questão político-social e de sobrevivência no nordeste do nosso país.
A trilha musical, arranjos e orquestra de Marcus Vinícius também são
recursos utilizados, necessários para compreensão do espectador de A Hora da
Estrela. A música O Danúbio Azul de Strauss é sonorizada na Rádio Relógio,
quando Macabéa tira folga e fica consigo mesma trancada no quarto, pois as Marias
(faltou uma Maria) saíram para trabalhar. É o momento de sonhar, ensaia o
casamento no espelho; dançando a valsa matrimonial ela consegue idealizar com
um lençol como véu e sua camisola, ambos na cor “branca”. Desde a abertura do
filme A Hora da Estrela que a vinheta da Rádio Relógio apresenta-se junto ao fundo
da tela, em azul e os caracteres na cor branca o vibrações e sentido às imagens
do signo estético, materializado por meio de semelhanças qualitativas operacionais
para priorizar o melodrama poético.
Por opção o roteiro de Suzana Amaral e Alfredo Oroz eliminou a
personagem-narrador Rodrigo S.M. e pegou atalhos para colocar a história em 96
minutos de filme, mas esses atalhos são recriações que levam em consideração as
71
Excerto retirado do roteiro do filme AHE2 (elaboração nossa, após assistir ao filme, decupando por
observação e análise).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
123
sutilezas da história registrada na narrativa literária, percorrendo referencialmente os
elementos essenciais do prototexto.
3.3. DIREÇÃO PARADOXAL
O longa-metragem dirigido por Suzana Amaral, que faz carreira com esse
primeiro longa-metragem, em 1985, causando furor no Festival de Brasília, com a
recriação do romance clariceano. Dos doze candangos em disputa, ela conquistou
os noves principais (melhor filme, direção, roteiro, atriz, ator, fotografia, etc). Em
fevereiro de 1986, o Festival de Berlim também se encantou com A Hora da Estrela,
história de Macabéa e Olímpico, os fascinantes personagens de Marcélia Cartaxo e
José Dumont.
Segundo Caetano (2004, p. 01), Suzana Amaral
72
viajou o mundo:
Alemanha, França, Espanha, EUA (ministrou cursos no Sundance Institute, de
Robert Redford), Cuba, Portugal. Ela vive entre livros e imagens em 30 anos de
cinema. Preparou, em 2001, Uma Vida em Segredo, romance homônimo de Autran
Dourado, seu segundo longa Atualmente está filmando Hotel Atlântico, outro filme,
de João Gilberto Noll,
73
e na seqüência sonha com a adaptação do primeiro livro de
72
Outras obras filmográficas produzidas por Suzana Amaral são as seguintes: (1969) Eu Sou Você,
Nós Somos Ele, (1971) Semana de 22 (curta de 20’), Os Mortos Viram Terra (curta), Sua Majestade,
Piolim (curta), (1973) Casa do Bandeirante, Museu de Antropologia, Coleção de Marfim, Érico
Veríssimo, (1976) A Pair of Shoes (New York University, experimental, 15’), The Hunger Artist (New
York University, 20’), Views of my Father Weeping (NYU, 30’), (1976), Crescer para Ser Quem? (TV
Cultura, 30’), (1979) Minha Vida, Nossa Luta (média-metragem), (1980) Pensamento e Linguagem
(série de 15 filmes para TV Cultura e Fundação Holandesa), Projeto Carajás (15’, co-direção com
Jorge Bodansky), (1983) Cubatão: Vale da Vida ou Vale da Morte? ( 45’/ Câmera Aberta, TV 20,
(1985 - A Hora da Estrela longa vendido em 25 países); 1990 Procura-se, série para a RTP TV
Portuguesa; (2001) Uma Vida em Segredo (longa/ melhor atriz no Festival de Brasília, para Sabrina
Greve); (2001 Demarcando o Cacique Fontoura (25’). Disponível em:
http://groups.msn.com/ObraeVidade Clarice Lispector/suzana amaralcontinuao2.msnw. Acesso
28/12/2004.
73
Informação obtida com Suzana Amaral, por meio de e-mail pessoal.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
124
Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, marcando outro encontro com a
autora de A Hora da Estrela.
Suzana vivenciou quatorze anos de rica experiência como diretora e
produtora na Fundação Padre Anchieta, trabalhou também no Telejornal da TV
Cultura, com o cineasta e jornalista Vladimir Herzog.
A paixão da cineasta pela literatura é imensa como bolsista da Fundação
Vitae, escreveu o roteiro de Mar Morto (Jorge Amado, 1936). Em 1996, roteirizou o
romance O Caso Morel de Rubem Fonseca. Suzana afirma que, quando jovem,
gostava muito de escrever. “Eu queria ser escritora. Cheguei a ganhar alguns
concursos literários” [...], mais tarde descobri o ofício do cinema ao optar por retornar
à universidade e cursar a ECA. “Desde então minhas opções de vida foram e são o
cinema e a TV” (CAETANO, 2004).
3.4. A CONSTRUÇÃO ESTÉTICA DO OBJETO FÍLMICO
Até diante de um filme mais “realista”, que faça crítica social sobre o
nordeste brasileiro, e principalmente sobre o migrante, o espectador saberá que está
vendo uma ficção e entre o representado e em sua representação haverá uma
mediação, um intervalo entre pontos de vista e imagens de ordem simbólica e
ideológica.
O que se depreende das relações no cinema consiste em um intrincado jogo
associativo e combinatório de estruturas complexas que se comunicam com
estruturas mais simples, num processo sígnico múltiplo. O signo indicial
cinematográfico de natureza estética que se corporifica através de semelhanças
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
125
qualitativas operadas com mecanismos convergentes de origem imagética – sonoros
e reversíveis do signo. Temos:
A cena número 13 Dos dois (Olímpico e Macabéa). Olímpico sentado com
Macabéa numa praça, o ângulo da câmera está colocando os dois em
posição de igualdade, semelhanças (primeiro plano lateral), perfil dos dois
em primeiro plano, que, ao fundo, o olhar da câmera focaliza um prédio
construído em colunas antigas na cor branca referindo-se ao palácio do
governo. A câmera focaliza os dois e em linha reta, sendo o prédio
desfocado ao fundo e bem distante deles.
74
.
O filme A Hora da Estrela pode ser comparado a uma peça sinfônica,
coordenado por ritmos espaço-temporais que o envolvem em diversidade e
autonomia. Seu percurso melódico (faixa de som e da imagem concatenados) é
construído como um fio de imagens, sons, diálogos, seqüências e planos;
seqüências cenárias e indumentárias que vão sendo exibidas num adereço sonoro
que possui uma intensidade sincronizada ao corpo filmico para produzir uma
estrutura que existe sob a ordem de produzir significante. Podemos observar que
a trajetória desse filme (AHE2) permeia como um corpo cinematográfico, é dividido
em personagens bem caracterizados, ambientes fechados e as vezes terrenos
vazios tais como: escritório, quarto, ruas e praças, passeios em zoológico, viadutos
e metrô, juntam-se aos diálogos de Olímpico e Macabéa ou Glória e Macabéa, os
momentos em seu quarto com as Marias, acompanhado de ruídos e músicas, vindo
da Rádio Relógio ou do próprio clima fílmico; o ritmo do cotidiano das personagens,
a fotografia vão sendo coordenados pela narração ficcional do enredo construído.
Os conjuntos de elementos significantes de um filme devem ser realçadas
esteticamente numa mesma dinâmica de relevância, independente de sua natureza
material. Tudo vai depender do intenso exemplo cênico. Essa escala de semelhança
rítmica proporciona uma segura interdependência da tessitura cinematográfica que
74
Excerto extraído do Roteiro fílmico (ver roteiro do filme A Hora da Estrela em Anexos).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
126
deve existir em diálogos e estabelecer correlações entre as cores, os ruídos e a
imagem para que o movimento fílmico tenha combinações justapostas de
significantes dentro dos planos, na cadência métrica, música, planos distanciados,
aproximados, detalhes formando o próprio diagrama fílmico.
O que faz cintilar a polifonia
75
seria uma equivalência entre as partituras,
pensando em uma sinfonia orquestral, como o fez o cineasta Serguei Eisenstein,
que via o filme como uma partitura orquestral e partitura audiovisual, sendo cada
composição independente entre si, cada uma contribuindo para o desfecho total da
seqüência filmica. A Hora da Estrela não é apenas um conjunto de partes, mas
partes que juntas formam um corpo orquestral.
O processo construtivo do filme tem um corpo argumentativo de diálogos
imprimindo suspense e choque enquanto produto estético, devendo sugerir idéias
em seu circundante meio de semioses, para que se complete em sua plenitude
significante.
Por assim dizer, o filme AHE2 (1985), traz como antecedente um texto
verbal e imagético. A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector para a do filme, é
o que bem definiu Jakobson como transposição intersemiótica. Vejamos o episódio
da cartomante no filme AHE2:
MADAMA CARLOTA - Macabeazinha! Que horror, Macabéa ! Que vida
horrível a tua, minha florzinha!
Você não conheceu seus pais. Você foi criada por parentes, uma parenta
muito madastra má, muito má! Quanto ao presente... (Madama se levanta e
apaga a luz e acende uma vela, senta na mesa).
Você vai perder o emprego e já perdeu o namorado! Pobrezinha, Macabéa!
Ai, coitadinha!Coitadinha! Ah! Macabéa! Preste atenção, Macabéa, vejo
grandes notícias, Macabéa! Uma coisa muito séria, muito, muito! Algo em
sua vida vai mudar completamente, a partir do momento que você sair da
minha casa. Seu namorado vai te procurar, te propor casamento, está se
preparando. Teu chefe vai te chamar e dizer que pensou e também não vai
75
Trata-se de um termo que significa a junção complexa de diferentes linhas significantes que é quem
executa os arranjos composicionais do filme por intermédio das habilidades táteis e criativas do
realizador ou maestro do filme/ sinfonia. (NUNES FILHO, 1996. p. 87).
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
127
mais lhe mandar embora. E tem mais: grandes dinheiros vão chegar pela
porta da rua, por um estrangeiro! Você conhece algum estrangeiro?
MACABÉA – Não, senhora!
MADAMA CARLOTA - É um estrangeiro loiro do olho azul. Não! Verde! Vai
trazer esse dinheiro. Ah! Se você não estivesse o apaixonada pelo seu
namorado! Macabéazinha, esse gringo ia namorar você e tem muito mais!
Ouço as vozes do meu guia. Ah! Esse gringo vai casar com você! Ele é rico,
todo gringo é rico e se eu não me engano e eu nunca me engano! Esse
gringo vai te dar muito amor, muito, muito amor! Vejo uma luz! Um brilho!
Não, não, é uma estrela brilhante!
76
É implacável a revelação que a Madama Carlota faz a Macabéa, que se
transfigura com a visão espelhar, entrando em êxtase de morte. É um estado de
primeiridade que a personagem acaba sendo atropelada pelo automóvel ao tentar
atravessar a rua.
Cena Final do filme:
Macabéa sorri (hehehehe), sai da casa da cartomante arrumando o cabelo,
e vai numa loja comprar um vestido azul, olha-se no espelho, se em
várias macabéas, deixa as roupas velhas na loja e o gringo se prepara para
entrar no carro com uma estrela de Mercedes- Benz . Na hora em que
Macabéa põe o pé abaixo do meio-fio para atravessar a rua ela cai, é
atropelada pelo carro do gringo, ele nem pára para socorrer, vai embora.
Termina a alegria de Macabéa, ela morre! Em outra abertura de cena, a
personagem corre ao encontro do sonho com o gringo. Macabéa, em
câmara lenta, é feliz! Nesse momento. Fim!
Suzana Amaral consegue realizar uma narrativa filmica linear e coerente
com o romance que dificulta para o espectador desvencilhar a protagonista do
romance da protagonista filmica. É como se o filme completasse as leituras
significativas das duas em uma só, e se fundissem como amplificação do signo
poético.
As ações do filme são direcionadas com sentido lógico e encadeadas as
seqüências e planos, formando uma teia narrativa. O espectador tem que estar
atento para as cenas imagéticas e conseguir compreender o que fica submerso na
tessitura fílmica.
76
Excerto extraído do Roteiro fílmico.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
128
Considerando A Hora da Estrela, tanto no romance quanto no filme, a
personagem a personagem Macabéa, na concepção da semiótica peirciana,
constitui como um signo qualitativo, original, de primeiridade. O livro e o filme são
autônomos entre si, na sua dimensão de secundidade sendo, conseqüentemente ,
capazes de provocar efeitos qualitativos, reações e cognição a nível de terceiridade.
Essa tríade peircerana nos indica a infinitude dos signos. Dessa forma, o filme como
ícone, índice e símbolo norteia-se pelo argumento narrativo traduzido, tranformando-
se em tradução paramórfica da metáfora desse objeto (romance). A Macabéa do
livro é apresentada pela voz do narrador; na versão lmica de Suzana Amaral, ela
ganha voz e vez. A ausência do narrador no filme é preeenchida pela Rádio relógio
e a trilha sonora Danúbio Azul, de Strauss. O filme não se restringe a uma tradução
“mimética” de Clarice Lispector: é umtexto novo, transcriado, tranformado(r).
Em primeiridade, ou seja, uma qualidade ainda não experienciada, pode-se
afirmar que a cena em que Macabéa é suspensa por Olímpico nos braços, quando
estão passeando nos arredores de um terreno baldio, e expressa que deve ser
assim que se voa de avião. uma abstração pura, algo que Macabéa ainda não
experienciou, voar de avião, mas que no momento atinge sua consciência. Tem-se o
seguinte diálogo fílmico:
MACABÉA – Sabe, eu ontem escutei uma música tão linda! Até chorei.
OLÍMPICO - Era samba?
M - Não sei! Acho que se chamava Una furtiva lacrima, era cantada por um
homem que já morreu. Era assim... Eu acho que até sei cantar essa música
- nana, nani, nana, nanininiii ...
Olímpico a derruba e depois a levanta.
OLÍMPICO – Chegue, levante!
MACABÉA – Não, foi uma quedinha de nada!
MACABÉA GRITA (ahhhhh! Deve ser assim viajar de avião!!!!!!)
77
77
Excerto retirado do Roteiro AHE2.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
129
Ela tem uma atitude passiva diante dos outros. Os outros a mobilizam, a
ação dos outros é que a faz agir: Olímpico, Glória, Seu Raimundo, Seu Pereira,
Madame Carlota, as Marias do quarto (falta uma). Macabéa vê Glória pedir para sair
do emprego mais cedo, também inventa que vai ao dentista, tira folga por conta
própria, ficando no quarto na solidão e consigo mesma.
O que observamos no filme é que Suzana Amaral trabalha no sentido de
corresponder ao espírito lispectoriano, situado no limite do indizível. Suzana
expressa a sua leitura criativa demonstrando nas cores, roupas, cenários, silêncios
locais sem habitantes, emoções contidas, um quase nada ou um quase tudo.
Suzana Amaral transpôs Lispector, preocupando-se em manter a média
fidedignidade textual cuja beleza reside na revelação da riqueza da alma de uma
mulher pura e simples, embora marginalizada pelas condições sócio-culturais.
Segundo Peirce (apud SANTAELLA, 1995, p. 33), a secundidade é a
categoria da ocorrência, daquilo que se manifesta, da contraposição. Nesse sentido,
pode-se afirmar que o signo Macabéa passa a ser uma categoria de secundidade
quando encontra o seu namorado em uma praça pública tirando uma fotografia. Ela
vai tomando consciência do que seja ela própria, enquanto existência através do
outro, no caso o Olímpico. Essa relação triádica de Macabéa e Olímpico torna-se
uma qualidade comparativa dos contrários; enquanto ela não expressa quase nada
sobre o futuro, ele apropria-se do signo verbal. “Um dia o meu nome vai escrito no
jornal, na TV assim... O-l-í-m-p-i-c-o” (AHE2) ele gesticula escrevendo o nome no
ar.
A terceiridade peirceana é a junção entre a qualidade e o fato ou uma lei.
Macabéa está neste ponto de terceira quando chega a consultar-se com Madama
Carlota. Macabéa tem a previsão do futuro e também do que fora o seu passado. Ao
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
130
sair da casa da Madama Carlota ela é uma pessoa em plena potencialidade,
passando a soltar os cabelos e ser realmente ela, conecta-se com o mundo, que
representa aquilo que ela foi e aquilo que está para ser.
Perseguindo as temáticas do filme, as personagens Macabéa, Glória, as
Marias, Madama Carlota são as responsáveis pela apresentação do universo
feminino: virgindade, aborto, sonho do casamento, prostituição, etc. Dessa forma, o
filme discute o universo cotidiano da mulher: higiene pessoal, cuidado com os
cabelos, unhas, roupas, alimentação, namorados, idade para casar, futuro, enfim, os
enfeites femininos (cor do batom, pintar as unhas, pentear os cabelos), bem como as
tarefas de casa: cozinhar, tomar banho, limpeza da casa, etc.
Segundo o ensaio A Hora da Estrela: espelho contra espelho, de Kunz
(2003, p. 45), o filme A Hora da Estrela foi comparado pela crítica ao filme dirigido
por Frederico Fellini Noites de Cabíria (1957)
78
. Esse filme lembra o drama de
Macabéa.
A qualidade estética une-se às narrativas filmica e literária. As duas
linguagens distintas em suas especificidades e natureza narrativa, convergem sobre
o mesmo aspecto; entretanto, diferenças significantes. Justifica-se, desta forma,
estabelecer tais diferenças que se articulam numa mesma representação e jogo
espelhar de imagens percorridas numa mesma óptica, mas sob outro suporte
artístico. Macabéa olha-se nos espelhos do provador, no espelho do banheiro do
escritório, no espelho do quarto em que mora.
78
A semelhança estaria no fato de que este filme, Noites de Cabíria, conta a história de uma
prostituta de Roma, Cabíria, que sonha em se casar e deixar a vida que leva, mas é obrigada a viver
na marginalidade. O filme fala das ilusões e desapontamentos de Cabíria. A protagonista chega até a
encontrar o que considera seu príncipe encantado. Giulieta Masina, esposa de Fellini e que
interpretou Cabíria, ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza de 1957. Mesmo
considerado neo-realista, o filme evidencia, "a fantasia existencial de Fellini na investigação do
cinema fantasmático (ilusório, fantástico), que será sua forte característica nos anos 60", segundo as
informações adquiridas neste site - Disponível em: http://cineitalia.vilabol.uol.com.br/cabiria.htm.
Acesso em 31/03/06.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
131
A transposição adaptativa, num processo complexo como é o fílmico, implica
ações, escolhas adequadas e coerentes dos procedimentos técnicos narrativos,
pois, trata-se de linguagens distintas. A linguagem fílmica necessita respeitar as
limitações do espectador, seja da ordem temporal ou da ordem espacial. Ao mesmo
tempo, precisa acertar na escolha dos blocos temáticos identificados no romance e
centrá-los em uma abordagem. Suzana Amaral fez escolhas e opta pela história
social que destaca a situação de Macabéa, deu-lhe voz cênica. É Macabéa quem diz
para Olímpico ir embora na hora de terminar o namoro.
CENA 23 - FIM DO NAMORO ENTRE OLÍMPICO E MACABÉA
MACABÉA SENTADA NUM BANCO, EM SILÊNCIO.
OLÍMPICO - Eu quero lhe dizer uma coisa. Eu quero lhe dizer que nosso
namoro acabou, encontrei outra moça... Estou apaixonado!
MACABÉA - Plano geral mostra Macabéa triste, olhando Olímpico falar!
OLÍMPICO Macabéa, você é um cabelo na minha sopa, o vontade
de comer. Desculpe-me se lhe ofendi, mas estou sendo sincero!
MACABÉA – Vá embora, vai!
Olímpico vai embora e ela fica de cabeça baixa, enxugando as lágrimas
79
.
de se escolher (o diretor) a forma de narrar opcionalmente pelo
enunciador lmico, este é quem conduz o olhar do espectador e ordena o relato,
cuja criação depende das escolhas do criador, que pode optar por uma focalização
mais arrojada e expressiva, divergente da literária. O narrador clariceano foi
substituído pela instância enunciadora fílmica caracterizada pelo percurso do olhar
da câmara cinematográfica.
A protagonista é um signo, um tipo, uma figura, construída por inserção no
ambiente urbano da cidade de São Paulo, cuja caracterização restringe-se ao
ambiente em que vive. O que a fascina é o mundo concreto, as imagens vêm da rua
79
Excerto extraído do Roteiro fílmico.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
132
em que mora e relatam sua preferência por passeios ao metrô, aos domingos. O
filme adapta essas passagens. Passeios a pé ou de metrô, mas sempre quando não
há muita gente, em terrenos baldios por baixo dos viadutos. Destaca-se o cinza, que
aponta para a pobreza, ela é triste, como o abandono e a exclusão de Macabéa.
A moradia da protagonista é um quarto em que o enunciador fílmico recria
visualmente o local descrito retirado da matriz verbal; é um cortiço, onde moram
mais algumas Marias. O prédio é antigo, de aspecto velho. Dividem um banheiro
coletivo; as janelas com vidros quebrados e a pia do quarto também é rachada e
suja, mostram-se varais espalhados por toda parte, com moscas voando ao redor.
Na porta da pensão, o espectador pode ler uma placa pendurada na parede
do muro onde está escrito em azul “vaga para moças”. O ambiente de trabalho
completa seu universo. No banheiro, a pia imunda e rachada também, a luz que
para ser acessa precisa rodar o bocal manualmente e o espelho enferrujado
encontram-se em equivalência nos dois suportes artísticos. O escritório fétido, sem
janelas e sem higiene, repleto de caixas. A renda salarial é menos de um mínimo,
explica a camisa de força socioeconômica em que vive Macabéa, que nem assim
age para sair dessa miserabilidade.
Macabéa está encarcerada pela situação econômica e sociocultural,
envolvida como ouvinte da Rádio Relógio, um aparelho de pilha, emprestado não se
sabe de qual Maria. Pelo menos no filme esse rádio é seu companheiro. A Rádio
relógio transmite um programa: “hora certa e cultura”, e sua vinheta é o refrão
“radio relógioooo...” e pingos do tempo, a seguir a voz do locutor: “[...] Você sabia
que ...?” ou então veicula curtas informações pitorescas e cronológicas, que tanto
faz dizer hoje ou daqui a cem anos. Entretanto, é nessa rádio que Macabéa fica
sabendo da existência de um livro Alice no País das Maravilhas. O rádio é o meio de
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
133
comunicação mais próximo de Macabéa faz o contraponto entre o universo
macabêutico e o mundo da informação dada como curiosidade que anteriormente foi
ignorada. Assim, essa recepção/audição deixa-a cada vez mais curiosa e cheia de
perguntas, provocando Olímpico e as outras personagens com suas dúvidas por não
saber das coisas, e muito menos os outros personagens. Observamos que as
informações adquiridas por Macabéa através da Rádio Relógio servem para manter
contato com Olímpico e outras personagens, embora sejam fragmentadas,
desarticuladas.
Na narrativa fílmica, observa-se que foi suprimido o livro Humilhados e
Ofendidos, de Dostoievski, que faz parte matriz verbal. Além disso, o rádio
proporciona-lhe a oportunidade de ouvir a música Uma Furtiva Lacrima, que faz
Macabéa sentir suas lágrimas caírem, o que nos permite saber que ela tem
sensibilidade.
Depois das previsões da Cartomante, Macabéa sai e compra um vestido
azul bebê, de renda, cheio de babados, ao tempo em que solta os cabelos pelo meio
da rua, ou melhor, subindo umas escadas. Em seguida, na loja, prova o vestido
azul e fica vestida para sair com o vestido novo no corpo, deixando no provador as
vestes velhas e sujas. No momento coloca-se diante do espelho e se em várias
Macabéas, refratada em vários dos espelhos.
Agora Macabéa se transformou nela, sai alegre em busca de seu futuro
engendrado pela cartomante. Ao tentar atravessar a rua, mostra-se em primeiro
plano, Macabéa pisa ao lado do capim. Suzana Amaral estabelece também uma
relação transcriativa, pois insere o “capim na sarjeta”, iguala a condição de capim
como o vegetal resistente, sem nobreza e indesejável, como Clarice Lispector
escreveu: “nordestinas que andam por aí aos montes”.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
134
Macabéa é excluída socialmente. Isso fica evidente por possuir hábitos
poucos recomendados, como a não higiene consigo mesma, nem com seu vestuário
e também no ambiente em que dorme, trabalha e vive. Ela, na primeira seqüência
fílmica, demonstra isso, limpando o nariz na gola da blusa. Mesmo convivendo no
quarto com as Marias, ela não é adepta do banho. Ela sempre foge com desculpas
de que vai borrar as unhas ou faz que o ouve uma das Marias dizer: “O banheiro
está vazio! Quem vai tomar banho!” ô ! Macabéa não vai tomar banho, mulher? Eu,
não! Assim, borra o esmalte! (Cena do quarto, AHE2). Outra cena é pela manhã,
quando as duas Marias (Das Dores fala para outra Maria: “O que voacha dessa
Macabéa, enh! Não sei não! O cheiro dela é que é meio estranho!” (AHE2).
Essas atitudes postuladas diante das colegas vão reforçar a falta de higiene
da protagonista. Tal comportamento leva a crer que a protagonista, por não ter
refinamento, e ter pouca civilidade, traduz a falta das regras básicas para convívio
social.
O narrador fílmico apresenta os aspectos visuais da protagonista como um
corpo sob as saias, os sapatinhos de plástico com meias escuras, roupas velhas, um
penteado esquisito, unhas pintadas em vermelho, sujas e roídas, enfim, fica sendo
visualizada um ser inapto ao meio em que vive. Esse não era o seu habitat.
Macabéa sente desejo sexual e no filme esse desejo é materializado na cena do
metrô lotado. Macabéa está bem próxima entre os dois homens, esses não estão
nem prestando atenção aos seus movimentos libidinosos, que aspira e inspira o
cheiro dos homens. Outra cena que mostra o apetite sexual de Macabéa é quando,
no seu quarto, à noite, ao dormir, ela se toca por duas vezes durante o sono e
depois desperta fazendo o sinal da cruz, expressão de culpa ou pela repressão tida
pela educação dada pela tia.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
135
Este sentimento libidinoso impulsiona seu sonho de casar-se, como quando
se folga, fica sozinha no quarto e se olha no espelho e brinca com o lençol na
cabeça em frente ao espelho. Pensa “sou virgem, datilógrafa e gosto de coca-cola”.
Então imagina os trajes do casamento toda de branco. Diante do espelho observa-
se sorrindo, então liga a rádio relógio e a música o Danúbio azul, de Strauss
complementa a valsa de Macabéa. O próximo ato é sair e ver as vitrines imitar o
manequim vestido de noiva, tentar copiar a mesma posição do boneco na vitrine.
No filme, Olímpico diz ser “um dos últimos guerreiros da grande nação
tabajara”, ao tempo em que Macabéa “não presta nem para dar cria” e afirma: “Sou
muito inteligente, ainda vou ser deputado”. Ele é grosseiro, agressivo e machista,
pensa em ser rico, possui um dente de ouro e pretende extrair os outros dentes e
substituí-los por outros de ouro. Eles não se combinam na lógica da vida. Ele tem
objetivo definido e procura realizá-los (discurso improvisadamente na praça pública
de São Paulo). Seu público presente são dois: os pobres e os miseráveis.
Macabéa é sem futuro, nem ambições. Os dois só se combinam nas origens,
ambos marcados pela estiagem nordestina. A terra seca e rachada fez os
sentimentos também se tornarem secos, sem respaldo, calejados pelo sol. A chuva
insistente em seus encontros faz brotar o poder de fecundar os corações ressecados
de tanto sofrerem.
O retirante e a Glória são espertos e traem a Macabéa. Glória, cheia de
remorso, convida-a para um aniversário da mãe. Em seguida, oferece dinheiro
emprestado e dá a idéia de consultar uma cartomante, tudo em expiação aos
pecados cometidos através da prática do aborto. Glória é orientada por Carlota para
roubar o namorado de uma amiga, e no caso, é Macabéa a vítima que irá solucionar
o problema. Depois Glória dispensa o Olímpico.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
136
O paraibano rejeitado por Glória procura voltar para Macabéa, levando um
cachorro grande de pelúcia na cor amarela. Antes, na cena da dispensa de
Olímpico, Glória está almoçando; quando Olímpico chega, ela vai ao seu encontro,
no restaurante. Então o espectador escuta uma música de fundo, vinda de uma
rádio, cuja letra quase imperceptível diz “[...] caindo nesse palco, o palhaço aqui sou
eu [...] pan-ranh, pan-ranh!! Naturalmente, o palhaço no palco é o Olímpico, em
descompasso com os anseios de Glória.
A presença tímida da música e dos ruídos de passos, e até de um saco
estourado por Olímpico ou as músicas da Rádio relógio são arranjos orquestrados
por Marcus Vinicius como a trilha sonora nordestina para enriquecer o drama
cinematográfico de A Hora da Estrela, formando um tecido majestoso e coerente aos
recursos fílmicos criados por Suzana Amaral.
A protagonista é tão incapaz que não que um homem usando óculos
escuros, tomando café em uma lanchonete, cego, e ela pensa que ele a está
paquerando. Ela percebe que se trata de um cego quando ele se retira. Isso não
está no romance de Clarice Lispector, muito menos a cena do metrô no domingo.
Ela fica sobre a linha amarela de segurança e o guarda a observa sem dizer nada,
depois se aproxima e adverte-a. Ela também pensa que ele está se insinuando para
ela. Clarice escreve que Macabéa sente atração por soldados. Suzana acrescenta
um guarda.
Kunz (2003, p. 64), ao final de seu ensaio A Hora da Estrela: Espelho contra
Espelho, sintetiza
Entretanto, há o desdobramento da idéia de arte como espelho quando
nova representação artística é criada a partir de um universo ficcional
existente, como é o caso da versão fílmica da novela clariciana, dirigida por
Suzana Amaral: a narrativa fílmica devolve a imagem da narrativa literária,
originando um processo de mimese da mimese.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
137
Sendo assim, as narrativas lmicas, de qualquer forma, possibilitam
transcriações originais em outros suportes artísticos.
A versão fílmica finaliza quando Macabéa vai ao encontro do seu destino e
este é encontrado na passagem da vida para a morte, pois é isso que se observa
com seu último momento. Depois de ser atropelada, parte para a eternidade, o lugar
entre os anjos, pois é merecido. Ela consegue o seu lugar depois que morre,
segundo a cineasta e a escritora. O descaso torna Macabéa invisível. Invisível não
no sentido pejorativo, mas imperceptível por todos os governos, pela situação de
exclusão social.
3.5. A DIMENSÃO SÓCIO-POÉTICA EM A HORA DA ESTRELA
As criações matriz verbal e fílmica se estruturam formalmente,
explorando também a crítica sócio-poética. A romancista faz surgir uma trama
composta de começo, meio e fim, de críticas sociais, contrariando seu projeto
literário, até então sem um engajamento explícito em luta política e social. Sendo a
obra fílmica uma variante (re)criativa, segue a efetiva materialização dessa crítica.
Tais romance e filme respondem aos anseios críticos e reproduzem nas
imagens, através da representação da personagem alagoana Macabéa, uma classe
de indivíduos postos à margem e objeto de exclusão social, que subsistem nos
grandes centros urbanos.
A visibilidade de elementos sociais (como miséria, baixa escolaridade,
dificuldade de articulação comunicativa, entre outros) na produção romanesca de
Clarice Lispector alarga seu valor estético e a compreensão da batalha constante da
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
138
autora com o signo lingüístico e as estruturas narrativas na transmissão da literatura
brasileira.
Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, confunde os papéis do narrador por
intermédio da criação excêntrica da personagem/criador/narrador Rodrigo S.M. No
entanto, coloca a linguagem como elemento inerente ao homo sapiens e, em
decorrência disso mesmo, complexa e paradoxal.
Aliado a tais aspectos, Clarice Lispector aumenta o seu olhar estético sobre
os protagonistas Rodrigo S. M. e Macabéa, principalmente o feminino, na realidade
presente no Brasil, no final do século XX.
Os críticos buscavam uma literatura engajada, panfletária, mas Clarice
prefere o incomum (introspecção). Não utilizava o seu dom de escrever para opor-se
ao militarismo feito naquele tempo (1964-70), e por tal decorrência alguns críticos
alegam ser autora de romances excessivamente filosóficos, difíceis de serem
compreendidos pelas massas.
Pode-se afirmar que Clarice Lispector faz uma investigação sistemática de si
mesma e não responde aos apelos críticos de luta social, mas expõe um
“engajamento poético”, e questiona, utilizando da função poética da linguagem
80
,
mostrando recortes da realidade social do nordeste brasileiro.
Então, A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, põe uma relevância à fábula,
e reflete sobre a linguagem metafórica e o problema do processo escritural
(mergulha na situação do escritor contemporâneo ante as aflições que este
enfrenta), ao proporcionar à protagonista da narrativa uma crítica social e política
que evidencia o engajamento poético de Clarice Lispector.
80
A expressão “poética” apresenta-se como instrumento, no presente estudo na sua compreensão
mais abrangente, desde a lingüística escrita por Roman Jakobson, com base na teoria da informação,
até a Semiótica.
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
139
Com A Hora da Estrela é renovado o próprio estilo literário de Clarice
Lispector, é o mais realista exterior e explícito na recriação da linguagem da
comunicação diária. Clarice se sente na obrigação, no dever de se contrapor à
resposta aos problemas políticos brasileiros. “Este livro é um silêncio. Este livro é
uma pergunta” (LISPECTOR, 1999, p.17). Clarice propõe ao leitor co-participante um
forte questionamento permanente, usando a (des)automatização de pensamento,
exigindo que o leitor leia além do sentido implícito. “Trata-se de livro inacabado
porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo ma dê.
Vós?” (ibid., p. 10). O leitor é envolvido com a pluralidade de interrogações, com a
qual está marcada toda a trama.
Nessa dimensão sócio-poética não tem resposta, e interroga-se se esta
resposta vem do leitor. Provoca um despertar na mente do receptor, uma realidade
que transpassa a sua realidade cotidiana. A obra é uma pergunta sobre
interrogações universais que atingem o homem, e não uma resposta. Expressa-se
com modéstia, comedida em toda a matriz verbal.
Perseguindo o ideal de encontrar respostas, Clarice desestabiliza sua
tessitura literária entre o poético e o social. Dessa forma, busca revelar uma
representação da realidade brasileira.
A narrativa de A Hora da Estrela reflete tensionalmente sobre a realidade,
traça, seu percurso através das categorias pertencentes à narrativa, como autor,
personagem e narrador extrapolam os limites tradicionais. Existe um questionamento
antagônico do que é real e do que é imaginação, a observação, a crítica pelo
intermédio da linguagem entre realidade e ficção.
Contradizendo sua tendência introspectiva, a romancista, na pele de Rodrigo
S. M., se aproxima dos fatos: “Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura -
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
140
fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos
não há como fugir” (ibid., p. 16).
A presença da personagem narradora Rodrigo S. M. comprova a escolha de
Clarice Lispector em construir uma narrativa comprometida com a aparente
“objetividade”. Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente.
E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, que essa me ultrapassa.
Qualquer que seja o que quer dizer “realidade” (LISPECTOR, 1999, p. 17).
Então Clarice Lispector, dessa forma, proporciona uma ruptura com o real
tradicional do seu projeto literário para, num primeiro momento narrativo, interrompê-
lo com a criação de uma personagem do sexo masculino, Rodrigo S. M. Em A Hora
da Estrela Clarice inova, pois, em todo seu projeto literário, Rodrigo S. M. é o
primeiro narrador masculino. Para a crítica literária este é um aspecto da literatura
feminina. O fato é que, com esse narrador homem, Clarice Lispector responde à
crítica e proporciona um jogo de identidades, enfrenta de forma explícita uma
impostura com a exposição de autonomia literária frente à realidade, seja subjetiva
ou objetiva do autor.
Num segundo momento, deixa indícios dessa ruptura à realidade da
narrativa com a “Dedicatória do Autor (na verdade Clarice Lispector)” (ibid., p. 9).
Lispector é autora implícita e explícita, sustentando um narrador que possui a função
de expor seu processo criativo e, ao mesmo tempo, desmarcara quem está implícito
no processo de escritura.
Nessa dedicatória Lispector, em vez de apresentar seus agradecimentos aos
seus entes queridos, mescla sua forma de se expressar com a do Rodrigo S. M.,
homenageia seres mitológicos como: anões, gnomos, e ninfas. Dedica aos artistas
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
141
como: Bethoveen, Sebastian Bach, Chopin, Stravinsky, Debussy, entre outros. Na
mesma dedicatória sustenta a racionalidade da ciência.
E – e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela.
Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova
da existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar
chorando (LISPECTOR, 1999, p. 10).
Clarice Lispector também apresenta ambigüidade entre romance e vida, o
real e a ficção. Consolida assim uma literatura inspirada na experimentação,
entrecruzando o real e o imaginário.
Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira,
respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma
molécula com seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais do
que invenção, é minha invenção, é minha obrigação contar sobre essa
moça, entre milhares delas. É dever meu, nem que seja de pouca arte, o
de revelar-lhe a vida (ibid., p. 13).
Dessa forma, o narrador segue igualmente guiado pela escritura de Clarice
Lispector, os princípios naturais do homem e a falta de conhecimento desses iguais
princípios.
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra
molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da
pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê,
mas sei que o universo jamais começou (ibid., p. 11).
Clarice estabelece uma relação de espelho com Rodrigo S. M. A imagem
dela sob a inspiração de sua criação, e paralelamente utiliza sua habilidade para
transfigurar-se no “outro”. Há uma mistura, Rodrigo S.M. é e não é Clarice Lispector,
simultaneamente.
A romancista estimula no leitor uma confusão com essa duplicidade de
personalidade, pois a primeira se oculta nas entrelinhas, porque traduz a
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
142
individualidade da Clarice Lispector, e a outra é a exposição masculina imparcial,
quando se confunde com o narrador e prossegue dando forma própria à narrativa
diante da realidade.
Um terceiro aspecto mais elevado nesse jogo de metamorfose é a da
protagonista Macabéa, que foge ineditamente das demais personagens mulheres
nas outras obras de Clarice. Macabéa não faz parte da classe média, é iletrada.
Macabéa contraria as outras personagens, pois tinham o domínio da
linguagem como instrumento de defesa diante da crueldade do mundo. Não há
correlação entre Clarice Lispector e as suas outras personagens, como Macabéa
(iletrada datilógrafa, pobre e feia) apresenta certa oposição à romancista.
Através da personagem, Clarice encena as pobrezas: cultural, física,
material, de comunicação, a falta de identidade, a exclusão social, enfim uma
pobreza irreversível, para levar uma crítica aguda à sociedade brasileira.
A personagem Macabéa tem um namorado, Olímpico de Jesus, que também
reproduz uma das formas de sobreviver socialmente como excluído: utiliza ações
mentirosas, improvisos, cinismo, para obter vantagens ou alcançar seus objetivos.
“Não contou que roubava no mictório da fábrica: o colega o tinha deixado na pia
quando lavara as mãos. Ninguém soube, ele era um verdadeiro técnico em roubar:
não usava de pulso no trabalho” (LISPECTOR, 1999, p. 50).
O percurso de Olímpico, realizado nas narrativas em sua essência, recorda
a arena política dos interres escusos, onde um quer levar vantagem sobre o outro,
onde os interesses próprios são priorizados em detrimento dos interesses da
coletividade.
Clarice Lispector insere em A Hora da Estrela um meio de comunicação, a
Rádio Relógio. Esta rádio hora certa e informações que a personagem Macabéa
Conexões Poéticas e Outras Pontes Sígnicas em A Hora da Estrela
143
incapacitada para processá-las, lingüisticamente, não compreende muito bem essas
informações irrelevantes que poderiam ser divulgadas hoje ou em qualquer tempo,
pois não acrescentam nada. “Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos
Magno era na terra dele chamado Carolus. Verdade que nunca achara modo de
aplicar essa informação”.
Nessa rádio eles dizem essa coisa de “cultura” e palavras difíceis, por
exemplo: o que quer dizer “eletrônico” ?
Silêncio.
- Eu sei mas não quero dizer.
-Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim: tic-tac-tic-
tac-tic-tac. A Rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que
quer dizer cultura?
- Cultura é cultura, continuou ele emburrado. Você também vive me
encostando na parede.
- É que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer “renda per
capita”?
- Ora, é fácil, é coisa de médico. (LISPECTOR, 1999, p. 50).
Macabéa vai sendo construída através dos embaraços na narrativa, todavia
sua unicidade humana é expressiva. Além disso, Macabéa relata o problema da
solidão e a dificuldade de adequar-se à sociedade. “Pois que a vida é assim: aperta-
se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem
se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso
dispensável” (ibid., p. 29).
Clarice aborda a solidão da classe trabalhadora, eleva-se a dificuldade de
comunicação. Além disso, Macabéa está fora do contexto cultural, em confronto com
a situação do nordestino brasileiro e nos grandes centros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Hora da Estrela é, na realidade, uma obra de arte, que depois foi,
transposta ou traduzida, construída na forma de montagem de imagens e escrita
cultural. Esta definição comporta a temática da tradução intersemiótica e intertextual,
por se tratarem de múltiplos códigos colaborando com o digo cinematográfico: o
gestual, a indumentária, o ritmo das narrativas, a música, os diálogos entre outros.
Ao colocar aqui o filme e o romance A Hora da Estrela, analisamos as
relações e os movimentos intercódigos operados entre argumentos, inclusos no filme
e na obra literária como operações intersígnicas. Assim as linguagens fazem do
espectador/leitor o seu público que interessa a Clarice Lispector e Suzana Amaral,
nessa tarefa de instigar a construção dos sentimentos imediatos e significados no
interpretante final de ambos os códigos.
O argumento do filme constitui-se numa narrativa encadeada linearmente,
em que as relações entre as seqüências são de ordem sucessiva no tempo. O filme
mostra a questão social da protagonista e suas dificuldades no mundo capitalista de
uma grande metrópole. O romance se compõe de passagens relativamente lineares
e alternadas entre passado-presente-futuro. É esta idéia básica que é transposta
para o filme por meio de uma estrutura relacional aritmética: um traçado que
reproduz e reflete o tema do conjunto, num certo ritmo mais ou menos oculto, em
cada uma das seqüências, somando-se a orquestra harmônica.
O livro e o filme são metáforas das limitações humanas diante das
desigualdades sociais e, principalmente, da personagem Macabéa, ao insistir na
superação de suas dificuldades de se comunicar com as pessoas e o mundo; é o
CONSIDERAÇÕES FINAIS
145
processo de desconstrução da narrativa construindo a trama e o ser em sua
inevitável finitude.
Ao focalizarmos as duas obras como exemplo para análise intersemiótica,
observamos o estudo da tradução como resultado deste processo de interferência
criativa, tanto na ficção literária quanto na ficção filmica, isto é, nos suportes
artísticos, híbridos e polifônicos, visto que o se esgota em si mesmo, situa-se
como objeto com estruturas significantes formadas por ícones que se destacam no
processo de entrecruzamento de linguagens. A esse processo tradutivo, tomando
como base as obras homônimas A Hora da Estrela, que envolvem combinações
específicas em cada uma, conjuga-se também o leitor/espectador.
Identificamos que o romance se apresenta como uma teia significante que
envolve o leitor/espectador nos conflitos da fábula. A trama possui um jogo
problemático que envolve várias questões (não a questão social). A principal
temática é a narração, isto é, a ênfase é na escritura, como produzir ficcionalmente o
ato de escrever, a situação do escritor engajado ou desengajado, o esforço de
pontuar a vida dos personagens, a criação do ambiente, o tempo na narração, os
antecedentes dos fatos e as características de cada um. O narrador Rodrigo S. M.,
Macabéa e os diálogos, ambos o criações da autora, bem como os percursos
realizados. Como criador, personagem, narrador, Rodrigo S. M é espelho de
Macabéa e Macabéa é o espelho de Rodrigo S. M.
A androginia textual e o possível travestimento no romance é uma via
interpretativa que não pudemos identificar no filme, até pela própria natureza da
linguagem como signo estético. Mais ainda pela própria leitura criativa da cineasta,
que teve que deixar de lado o narrador, uma das Marias, o médico; sendo
acrescentadas outras estruturas como: diálogos, a personagem proprietária da
CONSIDERAÇÕES FINAIS
146
pensão (Joana), assim como outras nuances da trama ficcional, o hibisco que
sempre acompanha a personagem Macabéa, a ficha telefônica que Macabéa
para Olímpico ligar para ela, o discurso improvisado feito em praça pública pelo
personagem Olímpico entre outras.
Observamos, também, que é a narrativa ficcional, em sua recriação da
realidade, por intermédio de personagens construídos numa trama também
imaginária, que emociona frente à obra, realizando um momento ímpar em que vidas
fictícias adquirem força suficiente para “reluzir” vidas reais, possibilitando, mesmo
brevemente, distingui-las.
Identificamos nesta capacidade de ampliar o real a força de obras como A
Hora da Estrela, romance que conta a história de Macabéa, ser ao mesmo tempo
singular e universal. Uma imigrante nordestina que traz consigo a representação
simbólica e ao mesmo tempo icônica, a história de outras mulheres e homens,
imigrantes ou não, possuidores da grande fome. Não a fome de quem foge da
miséria e da seca, mas a fome de vida, prazer, sexo, de dar sentido à existência
insignificante, mas principalmente fome de cultura e conhecimentos.
É através da vida de Macabéa que outras vidas se tornam “visíveis e
iluminadas”, não no sentido de resolvê-las, mas de revelá-las. Trabalho semelhante
ao produzido por Rodrigo S. M. (narrador/personagem/criador ou alter-ego de
Clarice Lispector), que busca a compreensão de narrar, em pequenos fragmentos, a
história de Macabéa, personagem, construída a partir da face que traz/ conta uma
história mesclada pelo singular e o universal, pelo narrador e a narrativa, pela ficção
e a realidade.
O romance metalingüístico de Clarice Lispector nos conta, sobretudo, a arte
de construir: uma narrativa. Unindo-se a isso, porém, expõe conflitos, as
CONSIDERAÇÕES FINAIS
147
aproximações e os distanciamentos de Macabéa, problematizando a própria
experiência da leitura, tornando o leitor também co-produtor. Pois, como leitores,
somos atravessados por vidas, que de alguma forma refletem a nossa própria vida.
Como Rodrigo S. M, também morremos com Macabéa.
A narrativa cinematográfica se coloca como espaço experimental estético,
no qual Suzana Amaral sobrepõe imagens às palavras escritas, colocando a
temática do filme também como sua forma de expressão, sendo fiel ao texto
correspondente e capaz de recriar para conter sua leitura em suporte fílmico.
Resta-nos concluir que as ações do filme são direcionadas com sentido
lógico e encadeadas as seqüências e planos, formando uma teia narrativa. O
espectador tem que estar atento para as cenas mais imagéticas, que adaptadas
conseguindo compreender o que fica submerso na tessitura filmica.
Considerando A Hora da Estrela, tanto no romance quanto no filme, a
personagem a personagem Macabéa, na concepção da semiótica peirciana,
constitui como um signo qualitativo, original, de primeiridade. O livro e o filme são
autônomos entre si, na sua dimensão de secundidade sendo, conseqüentemente,
capazes de provocar efeitos qualitativos, reações e cognição a nível de terceiridade.
Essa tríade peirceana nos indica a infinitude dos signos. Dessa forma, o filme como
ícone, índice e símbolo norteia-se pelo argumento narrativo traduzido,
transformando-se em tradução paramórfica da metáfora desse objeto (romance). A
Macabéa do livro é apresentada pela voz do narrador; na versão fílmica de Suzana
Amaral, ela ganha voz e vez. A ausência do narrador no filme é preenchida pela
Rádio relógio e a trilha sonora Danúbio Azul, de Strauss. O filme não se restringe a
uma tradução “mimética” de Clarice Lispector: é um texto novo, transcriado,
transformado(r).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
148
Por fim, é oportuno reiterarmos o fato de que a literatura, assim como o
cinema, são campos artísticos inesgotáveis para produções estéticas, colocando-se
como dois territórios híbridos e sem fronteiras que proporcionam as constituições de
obras como fontes de infinitas emoções e leituras.
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154
ANEXOS
155
ANEXO I - ROTEIRO DO FILME A HORA DA ESTRELA ADAPTAÇÃO DO
ROMANCE DE CLARICE LISPECTOR
ROTEIRO DE SUZANA AMARAL E ALFREDO OROZ
PRODUÇÃO: EMBRAFILME/ SÃO PAULO
ABERTURA DO FILME
MÚSICA, ARRANJOS DE MARCOS VINÍCIUS
PROGRAMAÇÃO DA RÁDIO RELÓGIO
*************************************************************************
CENA 1 - ESCRITÓRIO (PEREIRA RAMALHO)
SALA DO TRABALHO DE MACABÉA. A CÂMERA FOCALIZA NO GATO QUE
ANDA ABAIXO DO BIRÔ DE MACABÉA. DEPOIS A CÂMERA FOCALIZA
MACABÉA ESCREVENDO. O GATO MIA ...
CENA 2 – DEPÓSITO DO ESCRITÓRIO
RAIMUNDO - conta as caixas junto com Glória.
RAIMUNDO - Quantas caixas chegaram?
GLÓRIA - 400 caixas!
CRÉDITOS
Macabéa – plano americano – a câmera em Macabéa, que
retira o papel da máquina, levanta-se e desce as escadas
limpando o nariz na gola da blusa, leva o trabalho para o seu
Chefe (Sr. Pereira).
PEREIRA - (grita!) Raimundo! Ô Raimundo!
CENA 3 - RAIMUNDO VAI À SALA DE PEREIRA.
RAIMUNDO- Vou ver o que o Pereira quer!
PEREIRA- Raimundo, transfere uma grana da minha conta para a conta da firma.
PEREIRA - Escuta! E ...que merda é essa!? Olhe que sujeira!
RAIMUNDO - Foi a nova datilógrafa, Macabéa. O que que você quer? Foi a única
que aceitou ganhar menos que o salário.
156
PEREIRA - Maca o quê?
RAIMUNDO- Macabéa!
MACABÉA OUVE A DISCUSSÃO AO CHEGAR PARA ENTREGAR O TEXTO
DATILOGRAFADO.SEU PEREIRA PEDE PARA ELA FECHAR A PORTA E SE
RETIRAR.
PEREIRA -Depois o Raimundo fala com você.
MACABÉA – Sim, senhor.
PEREIRA- Além do mais, mulher feia! Feíssima! Parece maracujá de gaveta! Onde é
que você arranjou isso, hein, rapaz?
RAIMUNDO- Ah! É meio desajeitada sim!... Mas se fosse tão brilhante não aceitaria
menos que o salário que pagamos.
PEREIRA- Ninguém quer que seja brilhante, o mínimo que se pede é limpeza no
serviço.
PEREIRA- Isso aqui é sujeira mesmo, Oh! Oh!
CENA 4 – CRÉDITOS
MACABÉA COME CACHORRO-QUENTE SOBRE A MÁQUINA DE
DATILOGRAFIA. O GATO MIA, CATANDO OS RESÍDUOS DO ALIMENTO DE
MACABÉA.
PAUSA: Seu Raimundo se aproxima de Macabéa.
RAIMUNDO - Oh! Macabéa, desse jeito não dá! Olhe aqui, ó! Tudo cheio de furo!
Gordura por todo lado! Sujeira! Desse jeito vamos ter que despedir você!
RAIMUNDO FALA E SAI.
MACABÉA - Seu Raimundo! (ele volta)
MACABÉA- O Senhor me desculpe o aborrecimento!
RAIMUNDO - E a despedida pode não ser para já! Pode até demorar um pouco...
RAIMUNDO - Mas, por favor! Pelo menos lave as mãos!
M ACABÉA - Sim, senhor!
157
MACABÉA DIRIGE-SE AO BANHEIRO PARA LAVAR AS MÃOS E FICA SE
OLHANDO NO ESPELHO VELHO E ENFERRUJADO!
MÚSICA PARA ACOMPANHAR O SENTIMENTO DE TRISTEZA MACABÉA.
CENA DA RUA - 5
MACABÉA SAI DO TRABALHO E VAI A PÉ PELAS RUAS DE SÃO PAULO EM
DIREÇÃO A PENSÃO. A CÂMERA A SEGUE ATÉ A PENSÃO.
CENA DA PENSÃO - 6
MACABÉA ENTRA NA PENSÃO, MAS ANTES TOCA A CAMPAINHA.
MACABÉA - Boa tarde, D. Joana!
DONA JOANA -Vá entrando!
MACABÉA – ... A senhora me desculpe!
DONA JOANA - Não tem do que desculpar! Vamos lá para o meu quarto!
MACABÉA RECEBE UM PAPEL DO ALUGUEL DE DONA JOANA, QUE LHE A
PEDE PARA QUE O ASSINE.
DONA JOANA - Assine aqui!
MACABÉA NÃO LÊ E JÁ ASSINA.
DONA JOANA - Não faz isso não, menina! Nossa! Vai assinando assim, sem ler!
Bom, comigo não tem perigo, eu sou honesta, né? Mas tem tanta gente que não
presta aí!
MACABÉA - A senhora me desculpe!
DONA JOANA - Não tem o que desculpar!
DONA JOANA ENTREGA A CHAVE DA PORTA DA PENSÃO.
DONA JOANA - Aqui é a chave da porta da frente. Não empresta para ninguém, não
perde, não tira cópia, põe num chaveirinho!
DONA JOANA - Já conhece as meninas do quarto?
MACABÉA - Não senhora!
158
DONA JOANA - É, são boas meninas! Trabalham por aí... Por fora aí... Num bar,
não sei. Vai com Deus!
CENA - 7 QUARTO
MACABÉA ESTÁ ARRUMANDO SEUS PERTENCES.
M. DAS DORES - A cebola está acabando!
M. DA PENHA - Ligou?(A novela na televisão é assistida porque a vizinha tem uma
TV e do quarto delas dá para ver, quando a vizinha liga)
MARIA - Ainda não!
OUTRA MARIA - Toma essa caixa aí, pode botar as coisas aí dentro! Também, você
não tem quase nada!
MACABÉA - É! Mas trabalhando vai dar para comprar alguma coisa!
OUTRA MARIA - E a tua tia?
MACABÉA - Morreu! ... Morreu no hospital.
DAS DORES CONVERSA COM A MARIA DA PENHA.
M. DA PENHA - Gente rica não mata das Dores!
DAS DORES - Não sei por quê.
MARIA –Você ficou sozinha?
MACABÉA - Fiquei! Eu não tenho nem pai nem mãe!
DAS Dores extrai um pedaço da unha dos pés com os dentes.
DAS DORES – Ligou! Vai começar!
AS COLEGAS DE QUARTO ASSISTEM À TV DA VIZINHA ATRAVÉS DA JANELA
DO QUARTO DELAS.
CENA - 8 - À NOITE, NO QUARTO
MACABÉA TOSSE E ACORDA, FAZ XIXI NO PENICO E, ENQUANTO FAZ, COME
O RESTO DE UMA QUENTINHA DEIXADA PELAS AMIGAS.
PAUSA – CENA 9 - ESCRITÓRIO
GLÓRIA - O que aconteceu, mulher! Ontem você falta e hoje vem com os lábios
pintados.
159
MACABÉA - Ontem eu conheci um moço. Ele é lá da Paraíba. Ele é ... me-ta-lúr-gi-
co!
GLÓRIA - Operário!
MACABÉA - Operário também é metalúuuurgico ?
GLÓRIA -Como é o nome dele?
RAIMUNDO - Glória ! Glória!
GLÓRIA - Já vou, seu Raimundo!!
MACABÉA - Não sei! Não falou!
GLÓRIA - Mas você é tonta mesmo! Você é tonta, hein!
CENA - 10 PASSEIO DE MACABÉA
MACABÉA - Eu ainda não sei o nome do senhor!
OLÍMPICO - Olímpico de Jesus Moreira Chaves.
MACABÉA - O que é que quer dizer Olímpico, hein?
OLÍMPICO - E nome tem o que dizer?
MACABÉA - Não faz mal, não faz mal, a gente não precisa entender o nome.
OLÍMPICO ASSOVIA, SENTADO NO BANCO DA PRAÇA.
OLÍMPICO – Olhe, Macabéa!
MACABÉA - Olhe o quê?
OLÍMPICO - Não é olhe de ver alguma coisa. É olhe de quando a gente quer que
alguém escute.
OLÍMPICO - Pois é! Olhe! Eu vou lhe pagar um café!
MACABÉA - Pode ser com leite?
OLÍMPICO - O quê?
MACABÉA - Pode ser com leite!
OLÍMPICO - Pode! Se for mais caro você paga o resto!
CENA – 11 BOTEQUIM
OLÍMPICO - Dois cafés!
MACABÉA - É o mesmo preço! É o mesmo preço!
160
MACABÉA COLOCA MUITO AÇÚCAR NO CAFÉ COM LEITE.
OLÍMPICO – Credo! Isso vai dar lombriga, vai dar dor de barriga.
CENA – 12 – ESCRITÓRIO
MACABÉA - Lá na Rádio Relógio eles falaram a palavra efeméride.
(O TELEFONE TOCA E MACABÉA PEDE PARA ATENDER).
MACABÉA - Posso atender?
GLÓRIA - Atende!
MACABÉA - Pereira Ramalho, bom dia!
MACABÉA - É para você!
GLÓRIA - Ah! ... Porque se não pode vir hoje, não precisa voltar nunca mais!
GLÓRIA - Da próxima vez vou fingir que sou virgem, virgenzinha!
GLÓRIA - E teu homem? Como vai?
GLÓRIA - Você já deu pra ele?
M ACABÉA - Dar o quê?
MACABÉA - Ele disse que se eu for despedida do meu emprego, ele vai arranjar um
emprego para mim lá na fábrica.
GLÓRIA - Você já deu para dele?
MACABÉA -Dar o quê?
GLÓRIA - Então, não dá mesmo! Segura teu homem, depois dos vinte anos é difícil
casar, tudo fica difícil para arranjar marido, é!
GLÓRIA - Basta a gente dar uma binbadinha, e esses homens tomam doril!
GLÓRIA - Para mim agora só ... Rezando para santo, fazendo macumba ou
promessa, muita promessa!
CENA - 13 - DOS DOIS (OLÍMPICO E MACABÉA)
OLÍMPICO SENTADO COM MACABÉA NUMA PRAÇA. O ÂNGULO DA CÂMERA
ESTÁ COLOCANDO OS DOIS EM POSIÇÃO DE IGUALDADE – (PRIMEIRO
PLANO LATERAL), PERFIL PRIMEIRO PLANO.
OLÍMPICO - Um dia vou ser muito rico mesmo!
161
OLÍMPICO - Tá rendo esse dente? tá rendo?tá rendo? É só o começo!! ... Um dia
tenho a boca inteira, assim, cheia de ouro, vou mandar arrancar todos os dentes,
trec, trec, trec, trec..., mudar tudo, botar tudo de ouro, já imaginou?? Olímpico sorri.
OLÍMPICO - Eu sou inteligente, um dia eu vou ser deputado. Deputado tem tudo!
Tem carro, banda de música, chofer, tem dinheiro até para dar para os outros! É
deputado, é doutor!
MACABÉA - E é?
OLÍMPICO - Mas eu não tô dizendo!? Se eu tô dizendo é porque é!
OLÍMPICO - Você não acredita?
MACABÉA - Mas eu acredito! Acredito sim! Eu não quero te ofender!
MACABÉA - Mulher de deputado é deputada também?
CENA 14 - DISCURSO DE OLÍMPICO NUMA PRAÇA DE SÃO PAULO
Quando for eleito, o deputado Olímpico de Jesus Moreira
Chaves vai acabar com todos os problemas dessa terra, de
João Pessoa até Cajazeiras, de Cajazeiras até Brasília. Você
Cassiana, minha irmã, que mora no meu coração. Você vai ter
sua casa com água encanada, porque o nosso problema não é
água, o nosso problema não é chuva, não falta nuvem no
Nordeste, meus amigos, falta é homem!!!
O PÚBLICO OUVINTE DO DISCURSO DE OLÍMPICO É UMA MULHER MENDIGA.
CENA - 15 QUARTO
MACABÉA SENTADA NO CHÃO E ENCOSTADA NA CAMA, COM UM CADERNO,
ESCREVENDO O QUE OUVE NA RÁDIO RELÓGIO. NÃO HÁ DIÁLOGOS.
CENA - 16 METRÔ (OS DOIS)
MACABÉA - Lá na Rádio Relógio eles falaram em Alice no país das Maravilhas,
falaram em Élgebra.O que é Élgebra, hein?
OLÍMPICO - Isso é coisa de fresco, homem que vira mulher. Desculpe dizer essas
palavras que não é para moça direita ouvir.
MACABÉA - Gosto tanto de ouvir o barulho do tempo! Assim ... ó! TIC, TIC, TIC, TIC
OLÍMPICO - Eu não preciso de hora certa porque tenho relógio!
MACABÉA - Nessa rádio eles falaram a palavra cul- tu-ra.
MACABÉA - O que quer dizer cultura?
162
OLÍMPICO - Cultura é cultura.
MACABÉA – Ela observa a palavra “usuário” em um out-door dentro do metrô.
MACABÉA - Que quer dizer usuário?
OLIMPICO - Você vive me encostando à parede... me arrochando!
PRIMEIRO PLANO - MACABÉA BAIXA A CABEÇA E FICA TRISTE.
PAUSA: OS DOIS VÃO LAVAR AS MÃOS NO JARDIM DA PRAÇA E DEPOIS
OLÍMPICO LIMPA O BANCO COM AS MÃOS E MACABÉA FAZ O QUE ELE FAZ E
SENTA-SE TAMBÉM NUM BANCO.
OLÍMPICO - Pois é!
MACABÉA - Pois é o quê?
OLÍMPICO - Eu só disse pois é!
MACABÉA- É! Mas, pois é o quê?
OLÍMPICO - Macabéa! Vamos mudar de conversa! Porque você não entende?
MACABÉA - Entender o quê? Falar então de quê?
OLÍMPICO – Por que que você não fala de você? É! Gente fala de gente!
MACABÉA - Eu!!?
OLÍMPICO – Por que esse espanto?
MACABÉA - Ah! Mas eu não acho que sou muito gente!
OLÍMPICO - Se você não é gente, o que você é então?
MACABÉA - É que eu ainda não estou acostumada. Não sei explicar.
OLÍMPICO - O quê? Não se costumou com que?
MACABÉA - Será que eu sou eu?
OLÍMPICO – Olha, vou-me embora, porque você não tem é jeito!
MACABÉA - O que eu faço para ter jeito?
(Olímpico faz um gesto com o corpo, sai resmungando).
OLÍMPICO -Não dá para entender! Você reparou que até agora tudo que você fala
não tem resposta?
OLÍMPICO – Veja! Eu já sou eu mesmo! Você não pensa no futuro? Você não tem
vontade de nada!?
MACABÉA - Sabe o que eu gostaria de ser ? Artista de cinema!
OLÍMPICO SORRI.
163
OLÍMPICO - Você não tem corpo, não tem cara, não tem nada para ser artista de
cinema!
(ELE CHEGA PERTO DELA E A TOCA PARA VER SE ELA ESTÁ COM FEBRE)
OLÍMPICO - Tá com febre?
MACABÉA -Eu queria te pedir uma coisa... Lá na firma, o telefone só toca para a
Glória!
OLÍMPICO - Quem é Glória?
MACABÉA - É uma coleguinha lá da firma. Eu queria que você telefonasse só uma
vez para mim.Tome essa ficha!
OLÍMPICO - Telefonar para quê, para ouvir suas besteiras? Tchau!
Macabéa fica parada, enquanto observa Olímpico ir embora e o ônibus chega e
pára, ela sobe.
CENA 17 - CARTOMANTE
MADAMA CARLOTA ATENDE GLÓRIA, COME CHOCOLATE E AO MESMO
TEMPO ACENDE AS VELAS.
MADAMA CARLOTA - Você faz um sucesso louco com os homens, hein? Eu era
assim, como você! Como é mesmo o seu nome?
GLÓRIA - Glória!
PAUSA: GLÓRIA, ENQUANTO CORTA AS CARTAS.
MADAMA CARLOTA - Você não está aqui por causa da saúde de teu pai! Nem por
causa de trabalho! Está aqui por causa de casamento, é ou não é, filhinha? Você vai
fazer uma reza, depois de sete dias os santos falarão.
CENA 18 O QUARTO
MACABÉA ESTÁ OUVINDO A RÁDIO RELÓGIO E FICA EMOCIONADA AO OUVIR
"UNA FURTIVA LACRIMA" CANTADA POR CARUZO.
CENA 19 DOS DOIS EMBAIXO DE UM VIADUTO.
OLÍMPICO – Viu, Macabéa! A cara é mais importante do que o corpo, porque a cara
mostra o que a pessoa está sentindo lá dentro! Por exemplo, você tem a cara de
quem comeu e não gostou. Eu não agüento cara triste! Vê se muda de expressão
pelo menos uma vez na vida!
MACABÉA – Sabe, eu ontem escutei uma música tão linda! Até chorei.
164
OLÍMPICO - Era samba?
MACABÉA - Não sei! Acho que se chamava Una furtiva lacrima, era cantada por um
homem que já morreu. Era assim... Eu acho que até sei cantar essa música - nana,
nani, nana, nanininiii ...
OLÍMPICO A DERRUBA E DEPOIS A LEVANTA.
OLÍMPICO – Chegue, levante!
MACABÉA – Não, foi uma quedinha de nada!
MACABÉA GRITA (ahhhhh! Deve ser assim viajar de avião!!!!!!)
CENA 20 CARTOMANTE
GLÓRIA VOLTA PARA FALAR COM MADAMA CARLOTA.
MADAMA - Senta aqui! (Ela abriu o papel onde desenhou a estrela de Salomão.
Sobre ele Glória deveria acender uma vela durante sete dias). É, queridinha, os
homens só querem se aproveitar de você, porque é preciso saber usar os homens,
se aproveitar deles e também saber se desfazer deles na hora certa, porque é boba!
Mulher é boba se apaixona, e isso não dá certo.
PAUSA: MADAMA OBSERVA AS CARTAS SOBRE A MESA.
MADAMA CARLOTA - Você vai ter que fazer um trabalhinho, alguma coisa para se
purgar!
GLÓRIA - Eu faço... Faço qualquer coisa!
MADAMA CARLOTA - Quantos abortos você fez?
GLÓRIA - Isso também está aí?
MADAMA CARLOTA - aqui! Você precisa se livrar do sangue desses anjinhos,
seu caminho tem que ficar limpo. Você precisa me dar 20.0000 mil cruzeiros para as
crianças do meu asilo, porque eu tenho um asilo, depois escrever o nome para cada
criancinha que você tirou e pegar esse papel e à meia-noite jogar esse papel no
mar, rezando 3 pai-nossos e 3 ave-marias.
GLÓRIA - Juro que faço tudo isso!
MADAMA CARLOTA - E ainda tem mais, como penitência você vai ter que tirar o
homem de uma colega sua, isso dá trabalho!
GLÓRIA - O homem de uma colega?
165
MADAMA - É! Você não tem uma coleguinha!!
GLÓRIA - Mas ela não vai sofrer com isso?
MADAMA - Conquiste esse cara e você vai ter o homem da sua vida! Mande ela
para mim... Eu resolvo qualquer destino!
CENA 21 ESCRITÓRIO
GLÓRIA PEGA UM CHAVEIRO COM A FOTO DE OLÍMPICO QUE ESTÁ SOBRE A
MESA DE TRABALHO DE MACABÉA.
SEU RAIMUNDO - Essas cartas têm que ser rebatidas ainda hoje e você fica até
acabar!
MACABÉA - Hoje!
SEU RAIMUNDO - É!
MACABÉA – Sim, senhor!
GLÓRIA FECHA A PORTA E FICA SE ARRUMANDO PARA IR EMBORA.
GLÓRIA - Vambora! Já são quase seis horas!
MACABÉA - Eu tenho serviço para fazer, Seu Raimundo me pediu!
GLÓRIA – Agora?
MACABÉA - É!
GLÓRIA – Então, queridinha, tchau!
MACABÉA - Me faz um favor... Sabe Olímpico, meu namorado, ele me esperando
perto daquela estátua, tu passa e diz a ele que hoje eu não posso.Vou sair mais
tarde! Ele é assim...Oh! (mostra o retrato)
GLÓRIA - Posso levar a foto?
MACABÉA - Pode! Oh! Tu diz a ele que amanhã a gente encontra no mesmo lugar.
GLÓRIA - Então, tchau queridinha!
MACABÉA CONTINUA REESCREVENDO LENTAMENTE, (LETRA POR LETRA),
OS DOCUMENTOS NA MÁQUINA DE DATILOGRAFIA.
GLÓRIA E OLÍMPICO SE ENCONTRAM E CONVERSAM.
PAUSA: CÂMERA MOSTRA O GATO COMENDO O RATO. OLÍMPICO LIGA DO
ORELHÃO PARA O ESCRITÓRIO PEREIRA RAMALHO E MARCA UM
ENCONTRO COM GLÓRIA.
166
OLIMPICO – Oi, Glória! Aqui é o Olímpico. Tudo bem? Então você me espera lá!
Tchau!
MACABÉA - Me dá uma aspirina!
GLÓRIA - O que te dói?
MACABÉA - Eu não sei, sei que dói!
GLÓRIA - Melhor água com açúcar do que aspirina.
MACABÉA – Não, me dá uma aspirina mesmo!
GLÓRIA - (Glória dá uma aspirina para Macabéa) – Aí, Maca! Você mastiga e
engole! ...
CENA 22 – ENCONTRO DE OLÍMPICO COM GLÓRIA
ENQUANTO ISSO, MACABÉA DORMEEE...
CENA 23 – DO ZOOLÓGICO (Olímpico e Macabéa)
OS DOIS ENTRAM NO ZOOLÓGICO (MACABÉA PAGA SUA ENTRADA NO
PARQUE)
PAUSA: MACABÉA OBSERVA OS ANIMAIS E OLÍMPICO APROXIMA-SE DELA.
MACABÉA - Lá na Rádio Relógio falaram um negócio de jacaré que se chama
mimetismo. O que quer dizer mimetismo, hein?
OLÍMPICO - Isso não é coisa para moça donzela saber não! A zona está cheia de
rapariga que perguntaram demais.
MACABÉA - Onde é a zona, hein!
OLÍMPICO - É um lugar ruim, aonde só vai homem! Você não vai entender! Mas eu
vou lhe dizer uma coisa, você me custou muito pouco, mas eu não vou gastar mais
nada com você.
MACABÉA - Você sabia que uma mosca voa tão ligeiro que se ela voasse em linha
reta ela levava 28 dias para passar no mundo todo?!
OLÍMPICO - Isso é mentira!
MACABÉA - Tô falando a verdade! Eu quero cair morta se eu não estou falando a
verdade. Eu quero que meu pai e minha mãe morram agorinha!
OLÍMPICO - Mas você não falou que não tem nem pai nem mãe?
MACABÉA - Eu me esqueci, então vai cair mesmo morta!
OLÍMPICO - Escuta! Você está fingindo que é idiota ou você é idiota, mesmo?
167
MACABÉA - Eu acho que sou alguma coisa!
OLÍMPICO - Mas pelo menos sabe que se chama Macabéa!
MACABÉA - ... Mas eu não sei o que é que tem dentro do meu nome?
OLÍMPICO - Pois eu sei o que tenho dentro do meu. Eu vou ser famoso meu nome
vai sair na Rádio, na TV...(Olímpico escreve no ar seu nome... OLÍMPICO). Eu sou
um dos últimos guerreiros da nação Tabajara. Esse povo não existe mais! Você não!
Você não presta nem pra dar cria!
PAUSA: PLANO GERAL (MACABÉA ESTÁ SENTADA NUM BANCO DENTRO DO
ZOOLÓGICO E OLÍMPICO SEGURA UM CANIVETE E COMEÇA A PERFURAR
UMA ÁRVORE, ARTICULANDO O QUE VAI DIZER PARA TERMINAR O
NAMORO).
MACABÉA - ela quebra o silêncio, dizendo: você sabia que na minha rua tem um
galo que canta?
OLÍMPICO – por que você mente tanto!?
MACABÉA - na rádio relógio eles disseram... (olímpico corta a fala dela)
OLÍMPCO – Olhe, Macabéa!!!
CENA 24 - FIM DO NAMORO ENTRE OLÍMPICO E MACABÉA
MACABÉA SENTADA NUM BANCO, EM SILÊNCIO.
OLÍMPICO - Eu quero lhe dizer uma coisa. Eu quero lhe dizer que nosso namoro
acabou, encontrei outra moça... Estou apaixonado!
MACABÉA - PLANO GERAL MOSTRA MACABÉA TRISTE, OLHANDO OLÍMPICO
FALAR!
OLÍMPICO – Macabéa, você é um cabelo na minha sopa, não dá vontade de comer.
Desculpe-me se lhe ofendi, mas estou sendo sincero!
MACABÉA – Vá embora, vai!
OLÍMPICO VAI EMBORA E ELA FICA DE CABEÇA BAIXA, ENXUGANDO AS
LÁGRIMAS.
CENA 25 - ESCRITÓRIO
PRIMEIRÍSSIMO PLANO - MACABÉA OLHA-SE NO ESPELHO DO BANHEIRO DO
ESCRITÓRIO E PINTA OS LÁBIOS DE BATOM BEM VERMELHO.
168
NA SEQÜÊNCIA A CÂMARA FOCALIZA GLÓRIA, QUE SAI DA SALA DO SEU
RAIMUNDO E FECHA A PORTA, OLHANDO PARA MACABÉA QUE, SENTADA
EM SEU BIRÔ, A OBSERVA.
GLÓRIA - O que aconteceu ? Parece mulher de soldado!
M ACABÉA– Eu não sou mulher de soldado!
GLÓRIA - Me desculpe, mas ser feia dói?
MACABÉA – Eu acho que dói um pouquinho! Mas tu que é feia, você sente dor?
GLÓRIA - Eu não sou feia!
MACABÉA– Mas é galega de farmácia!
GLÓRIA - O que é “galega de farmácia”?
MACABÉA – Mulher que pinta o cabelo!
GLÓRIA - Besta!
MACABÉA – Me dá uma aspirina!
GLÓRIA - É muita aspirina!!
MACABÉA – É pra eu não me doer!
GLÓRIA - E onde é que você se dói?
M ACABÉA– Não sei, eu me dôo o tempo todo.
PLANO AMERICANO – GLÓRIA CONVIDA MACABÉA PARA UMA FESTA DE
ANIVERSÁRIO DA SUA MÃE.
GLÓRIA – Por que você não vai na minha casa no domingo? Vai ter festa de
aniversário da minha mãe, vai ter bolo, carne, caipirinha, vinho. Vai ser legal!!!
CENA DO ANIVERSÁRIO (CÂMERA UTILIZA PLANO AMERICANO NO BOLO,
DEPOIS PLANO GERAL NA MESA DOS CONVIDADOS E EM MACABÉA, QUE SE
SENTA AO LADO DE GLÓRIA).
TODOS – PARABÉNS PARA VOCÊ!!!!!.... EM SEGUIDA GLÓRIA SERVE UM
PEDAÇO DE BOLO A MACABÉA E CHEGA UM SÓCIO DO PAI DE GLÓRIA, A
QUEM É APRESENTADA.
PAI – Essa é Glória, aproveita que é a última solteira, hehehheh ( Sorrisos).
CENA 26 - QUARTO DE MACABÉA
169
MACABÉA PASSA MAL, VÔMITO. COMEU DEMAIS NA FESTA. AS COLEGAS
DE QUARTO A AJUDAM DANDO - LHE CHÁ PARA BEBER.
AS MARIAS – quem nunca comeu melado quando come...você precisa de um
médico, menina! aquele que você foi é bom mesmo!
CENA 27 - ESCRITÓRIO
PEREIRA - Você viu que ela não dá mesmo! Oh! Tudo errado, sujo, corda com Q!
Brasil! Brasil com b minúsculo e escrito com z !!
SEU RAIMUNDO – É, mas ela ainda está nos 90 dias de experiência!
PEREIRA - Ah! Mande embora logo, rapaz!!
(PLANO AMERICANO) NA SALA DO ESCRITÓRIO, MACABÉA ESTÁ PENSATIVA,
EM SILÊNCIO E TRISTE. GLÓRIA FICA A OBSERVANDO ATRAVÉS DO VIDRO
DA JANELA E RESOLVE FALAR COM ELA.
GLÓRIA - Que cara é essa? Oh! Cabeça chata, baiana!!
MACABÉA - Eu não sou baiana, baiana é macumbeira!! Eu sou nortista!!
GLÓRIA - Qual é a diferença? Você é feliz?
MACABÉA – Feliz serve pra quê?
GLÓRIA FECHA A CARA E NÃO ENTENDE A RESPOSTA.
GLÓRIA - Você não pensa no futuro não?
MACABÉA - Futuro??
GLÓRIA – Por que você não vai na cartomante?É!! Você paga uma consulta, ela
resolve tua vida!
M ACABÉA - É muito caro?
GLÓRIA - Eu te empresto dinheiro. Para mim foi ótimo, ela fez umas rezas. Acho até
que vai dar certo! Sabe aquele sócio do meu pai? Nós até já saímos juntos!
CENA EM QUE MACABÉA RESOLVE PEDIR AO SEU RAIMUNDO PARA IR À
CARTOMANTE.
PLANO GERAL (MACABÉA ENTRA NA SALA DO SEU RAIMUNDO)
MACABÉA - Seu Raimundo! O meu dente está doendo muito! Posso ir ao dentista?
Volto logo!
170
SEU RAIMUNDO – Pode!
MACABÉA - Muito obrigado, Seu Raimundo! O senhor é um pai para mim!!
SEU RAIMUNDO – Macabéa !! .... Não é nada não! Quando você voltar venha falar
comigo.
CENA 28 - OLÍMPICO COM UM PRESENTE PELAS RUAS E MACABÉA DENTRO
DO TÁXI, EM DIREÇÃO À CARTOMANTE.
CENA DO BOTEQUIM
SEU LUIZ – Cadê sua coleguinha, Glória?
GLÓRIA - Foi na cartomante!
SEU LUIZ – E você? Não quis ir junto?
G LÓRIA - Já sei o meu futuro!
CENA 29 - CHEGA OLÍMPICO COM O PRESENTE PARA GLÓRIA.
GLÓRIA - Dá licencinha...!
PLANO GERAL (GLÓRIA FALA COM OLÍMPICO, ELE DÁ O PRESENTE, MAS ELA
NÃO ACEITA E MANDA-O IR EMBORA COM O PRESENTE).
CENA 30 - CARTOMANTE
CÂMARA MOSTRA MACABÉA SENTADA NA SALA, ESPERANDO QUE A
CARTOMANTE A CHAME. UMA CLIENTE DESCE AS ESCADAS E COM UM
SEMBLANTE BEM TRISTE – PLANO GERAL.
MADAMA CARLOTA CHAMA A PRÓXIMA PESSOA.
MADAMA CARLOTA – PODE VIR, SOBE!
MACABÉA - SOBE AS ESCADAS DEVAGAR.
CENA 31 - OLÍMPICO SÓ NA PRAÇA COM UM CACHORRO DE PELÚCIA
(PLANO GERAL DE CIMA PARA BAIXO)
CENA - 32 CARTOMANTE E MACABÉA
MADAMA – Eu sabia que você vinha! Como é seu nome?
MACABÉA - Macabéa!
MADAMA – Que nome lindo!
MACABÉA - A senhora acha?
171
MADAMA CARLOTA - Não tenha medo de mim não, minha coisinha! Minha
coisinha! Quem está comigo está com Jesus. Eu sou fã de Jesus! Louquinha por
Ele! Ele sempre me deu muita categoria. Você está interessada na minha história?
MACABÉA- Tô, sim senhora, muiiiito!
MADAMA CARLOTA– Pois esteja, porque eu não minto! Ele salva, salva mesmo! A
polícia não quer que eu ponha cartas, diz que eu exploro ou outros, mas é como eu
te disse, nem a polícia consegue desarmar Jesus, ele deu um jeitinho para eu ter um
dinheirinho e comprar essas joinhas de grã-fino! É ou não é de grã-fino?
MACABÉA - É sim, senhora!
MADAMA CARLOTA – Quer dizer que você também acha? Minha lindinha, lindinha!
Corte em dois! (corta as cartas – Primeiro plano nas cartas) Meu Jesus! Jesus! Você
está assustada! Que é isso, filhinha!! Que é isso, uhh!! Calma! Calma! Calma!! Você
é muito delicadinha para enfrentar a brutalidade de um homem, Unh!? Entre
mulheres o carinho é mais fino, mais delicado. Você tem a chance de ter uma
mulher?
MACABÉA – Não, senhora!
MADAMA CARLOTA - Mas também, menina! Você não se enfeita! Quem não se
enfeita por si só se enjeita!
CENA 33 – OLÍMPICO CHEGANDO NA PORTA DA PENSÃO. (COLOCA O
PRESENTE NA PORTA DE MACABÉA, É UM CACHORRO AMARELO) NA
CALÇADA, FICA OBSERVANDO A PENSÃO.
MADAMA CARLOTA – Eu sempre me enfeitei! Sempre, sempre! Quando eu vivia na
zona, andava de calcinha e sutiã de renda preta, mais tarde, quando fiquei
mais velha e virei cafetina, foi aí que relaxei um pouco! Sabe o quer dizer cafetina?
MACABÉA – Não, senhora!
MADAMA CARLOTA– Eu só usei essa palavra “cafetina” porque eu não tenho medo
das palavras. Você tem medo das palavras?
MACABÉA - Tenho sim!
MADAMA CARLOTA – (plano close – madama aperta as bochechas de Macabéa)
Minha queridinha, eu vou tomar cuidado para não dizer nenhum palavrão!
Você já sentiu cheiro de homem?
MACABÉA – Não, senhora!
172
MADAMA CARLOTA - Mas cheiro de homem é bom!! Faz bem para a saúde!
MADAMA CARLOTA - Macabeazinha! Que horror, Macabéa! Que vida horrível a tua,
minha florzinha!
Você não conheceu seus pais. Você foi criada por parentes, uma parenta muito
madastra má, muito má! Quanto ao presente... (Madama se levanta e apaga a luz e
acende uma vela, senta na mesa).
Você vai perder o emprego e já perdeu o namorado! Pobrezinha, Macabéa!
Ai, coitadinha! Coitadinha! Ah! Macabéa ! Preste atenção, Macabéa, vejo grandes
notícias Macabéa! Uma coisa muito séria, muito, muito! Algo em sua vida vai mudar
completamente, a partir do momento que você sair da minha casa. Seu namorado
vai te procurar, te propor casamento, está se preparando. Teu chefe vai te chamar e
dizer que pensou e também não vai mais lhe mandar embora. E tem mais: grandes
dinheiros vão chegar pela porta da rua, por um estrangeiro! Você conhece algum
estrangeiro?
MACABÉA – Não, senhora!
MADAMA CARLOTA - É um estrangeiro loiro do olho azul Não ! Verde! Vai trazer
esse dinheiro. Ah! Se vo não estivesse tão apaixonada pelo seu namorado!
Macabéazinha, esse gringo ia namorar você e tem muito mais! Ouço as vozes do
meu guia. Ah! Esse gringo vai casar com você! Ele é rico, todo gringo é rico e se eu
não me engano e eu nunca me engano! Esse gringo vai te dar muito amor, muito,
muito amor! Vejo uma luz! Um brilho! Não, não, é uma estrela brilhante!
MACABÉA SORRI (HEHEHEHE), SAI DA CASA DA CARTOMANTE ARRUMANDO
O CABELO, E VAI NUMA LOJA COMPRAR UM VESTIDO AZUL, OLHA-SE NO
ESPELHO, SE EM VÁRIAS MACABÉAS, DEIXA AS ROUPAS VELHAS NA
LOJA E O GRINGO SE PREPARA PARA ENTRAR NO CARRO COM UMA
ESTRELA DE MERCEDES-BENZ. NA HORA EM QUE MACABÉA PÕE O PÉ
ABAIXO DO MEIO-FIO PARA ATRAVESSAR A RUA ELA CAI, É ATROPELADA
PELO CARRO DO GRINGO, ELE NEM PÁRA PARA SOCORRER, VAI EMBORA.
TERMINA A ALEGRIA DE MACABÉA, ELA MORRE! EM OUTRA ABERTURA DE
CENA, A PERSONAGEM CORRE AO ENCONTRO DO SONHO COM O GRINGO.
MACABÉA, EM CÂMARA LENTA, É FELIZ! NESSE MOMENTO. FIM!
173
ANEXO II E-MAILs ENVIADOS POR SUZANA AMARAL REFERENTE AO
FILME A HORA DA ESTRELA
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