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Anita Tandeta Mattos
A genealogia de Nietzsche:
Razão e violência
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio.
Orientador: Kátia Rodrigues Muricy
Rio de Janeiro, julho de 2006
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Anita Tandeta Mattos
A genealogia de Nietzsche:
Razão e violência
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Dra. Kátia Rodrigues Muricy
Orientador
Puc-Rio
Prof. Dr. Eduardo Jardim de Moraes
Puc-Rio
Prof. Dr. Paulo César Duque Estrada
Puc-Rio
Profa. Dra. Déborah Danowski
Puc-Rio
Prof. Paulo Fernando C. de Andrade
Coordenador(a) Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas -
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 11 de julho de 2006
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do
trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.
Anita Tandeta Mattos
Bacharel em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Ficha Catalográfica
Mattos, Anita Tandeta
A genealogia de Nietzsche : razão e violência / Anita Tandeta
Mattos ; orientadora: Kátia Rodrigues Muricy. – 2006.
92 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado em Filosofia)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Inclui bibliografia
1. Filosofia – Teses. 2. Genealogia. 3. Interpretação. 4. Metafísica.
5. Razão. 6. Violência. 7. Civilização. I. Muricy, Kátia Rodrigues. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III.
Título.
CDD: 100
Agradecimentos
À orientadora Kátia Muricy, pelo apoio e pela aposta fundamentais.
Ao CNPq e à FAPERJ, pelas bolsas concedidas.
Ao Alexandre Belfort, por tudo.
Ao Prof. Eduardo Jardim, por ter me acompanhado desde o princípio e pela leitura
atenta desta dissertação.
Ao Prof. Paulo César Duque Estrada, pela leitura incentivadora.
Aos meus colegas de percurso.
Aos meus pais e irmãos.
Ao Patrick e ao meu filho.
Resumo
Mattos, Anita Tandeta. A genealogia de Nietzsche. Rio de Janeiro, 2006.
92p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Partindo do lugar reservado à interpretação no método genealógico de
Nietzsche, o presente mostra que a genealogia, por ouvir o silêncio inerente às
produções culturais, por se ater àquilo que as construções silenciam enquanto são
produzidas e preservadas, necessariamente aborda a violência velada por tais
empreendimentos. Há um excesso de violência no desenvolvimento da cultura
metafísica, proporcional à quantidade existente de mecanismos de encobrimento
dessa violência. O esclarecimento genealógico das violências recusadas indica a
aposta de Nietzsche no alargamento da razão, cuja direção implica na redução da
violência e em novos destinos para o mal-estar sentido pela consciência moral.
Palavras-chave
interpretação; genealogia; metafísica; razão; violência; civilização
Abstract
Mattos, Anita Tandeta. A genealogia de Nietzsche. Rio de Janeiro, 2006.
92p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Starting with the examination of the place reserved for the interpretation in
the Nietzsche´s genealogical method, this work shows that genealogy, by listening
the silence inherent to cultural productions, necessarely broaches the violence
covered by such undertakings.There is an excess of violence in the development
of the metaphysical culture, proportional to the quantity of existing mechanisms
for concealing this violence. The revelation of these hidden violences through
genealogical method indicated Nietzsche´s bet on the expantion of reason, whose
consequences are the reduction of the same violence and the cration of new
destinies for the discomfort felt by the moral conciousness.
Keywords
interpretation; genealogy; metaphysic; reason; violence; civilization
Sumário
1. Introdução 9
1.1. Hipóteses de trabalho 9
1.2. Desenvolvimento 10
2. Os preconceitos dos filósofos 22
2.1. O ponto de partida 22
2.2. A filosofia como “história de um erro” 23
2.3. A perspectiva nietzschiana 27
2.4. Legitimação da filosofia e da moral 31
2.5. O estado da moral, o saber e o mal-estar 34
3. A genealogia 39
3.1. O método 39
3.2. História e interpretação 45
3.3. A violência 50
3.4. Vida como critério 57
4. O progresso da razão 63
4.1. Recuperar os mortos 63
4.2. A bandeira iluminista 66
4.3. Razão e civilização 71
4.4. Esclarecimento e resistência 78
5. Conclusão 86
6. Bibliografia 91
Lista de abreviaturas das obras de Nietzsche
A – Aurora
ABM – Além do bem e do mal
AFZ – Assim falou Zaratustra
EH – Ecce Homo
CI – Crepúsculo dos ídolos
GC – A gaia ciência
GM – A genealogia da moral
HDH – Humano, demasiado humano
NT – O nascimento da tragédia
SCI – Segunda consideração intempestiva
1. Introdução
1.1. Hipóteses de trabalho
Esta dissertação navega em torno do método genealógico de Nietzsche, tal como se
apresenta nas obras Além do bem e do mal e Genealogia da moral. A partir da análise dos
livros, duas questões se configuraram com mais força em minha pesquisa. A primeira diz
respeito ao esforço contundente de Nietzsche em sua crítica à história da metafísica. Qual
teria sido o interesse em manter-se martelando as teorias metafísicas com tamanha força ao
longo de sua obra? Esta questão me suscitou uma primeira hipótese interpretativa. A crítica
nietzschiana à metafísica incide pontualmente sobre a perspectiva adotada pelos filósofos
quanto às suas próprias produções de conhecimento, o que se apresenta explicitamente na
famosa pergunta sobre a pressuposição da garantia de que a filosofia sempre se desenvolve
na direção da verdade e não no sentido do erro. Dado que o objeto da crítica de Nietzsche
seria algo como um ponto cego para o pensamento metafísico, surgiu-me a hipótese de que
o autor pudesse ser movido pelo interesse de tornar analisável algo obscuro para a razão
metafísica. Se assim for, tal hipótese nos levaria a encontrar na genealogia de Nietzsche um
projeto de alargamento da razão, um projeto de tornar a razão mais crítica e direcionada
para a constante superação de si mesma.
A genealogia é um método de pesquisa que justamente se dirige para o silêncio dos
textos e das práticas da cultura, para aquilo que, por ter sido silenciado no ato mesmo de
produção, ainda permanece como sintoma, como algo que ao mesmo tempo fala, aparece, e
se esconde, se disfarça. Qual seria então este silêncio tão eloqüente e reprodutível? O que
nós leitores podemos encontrar nos escritos de Nietzsche que nos responda minimamente
esta pergunta? Minha segunda hipótese de trabalho se configurou quando deparei com a
segunda dissertação de Genealogia da moral intitulada “´Culpa’, ‘má consciência’ e coisas
afins”, em que Nietzsche discorre sobre a crueldade. Por que falar de crueldade em uma
obra de filosofia? O que se pode apresentar-se tanto na culpa, quanto na má consciência e
na crueldade? Todas carregam em suas histórias um cerne do que se pode chamar de
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violência. Arrisco-me a defender que o silêncio bordejado por qualquer pesquisa baseada
nesse método diz respeito à violência necessária à implementação de qualquer produção
cultural, inclusive e sobretudo a da razão.
1.2. Desenvolvimento
Uma das questões mais importantes suscitadas pelo pensamento de Friedrich
Nietzsche é, inegavelmente, a questão da interpretação, que ocupa um lugar de destaque em
todas as formulações da filosofia contemporânea. O modo como Nietzsche compreende
essa questão aparece sintetizado em um fragmento de sua obra póstuma:
Contra o positivismo que permanece parado junto ao fenômeno afirmando: ‘Só há fatos’, eu
diria: não, justamente fatos não existem, apenas interpretações. Não estamos em condições de
fixar nenhum fato ‘em si’: talvez seja mesmo um disparate querer algo assim. Vós direis
então: ‘Tudo é subjetivo.’ Mas isto também já é interpretação: o ‘sujeito’ não é nada dado,
mas acrescentado através da imaginação, inserido aí por detrás. – Ainda é necessário afinal
colocar o intérprete por detrás da interpretação? Um tal ato já é poetização, hipótese.
Uma vez que a palavra ‘conhecimento’ possui antes de mais nada um sentido, o mundo é
passível de ser conhecido: mas ele pode receber outras significações. Ele não possui nenhum
sentido por detrás de si mesmo, mas inumeráveis sentidos: ‘Perspectivismo’.
1
No primeiro parágrafo desse fragmento, Nietzsche situa o seu pensamento no âmbito
da história da filosofia, contrapondo-o, por um lado, à tendência realista de pensar algo
como uma coisa em si, um “fato em si” que estaria para além de toda e qualquer
interpretação, como o seu critério de verdade; e por outro à tendência idealista que, nascida
de uma mera inversão da posição realista, teria deslocado o “fato em si” para o âmbito da
subjetividade, sem no entanto questionar de forma suficiente a própria pressuposição
fundamental da tese realista, a saber: a pressuposição de que haveria uma verdade dada por
detrás de toda e qualquer interpretação, seja ela o fato em si ou a existência de um sujeito
capaz de constituir a verdade. Esta pressuposição, que teria permanecido como o solo
comum, inquestionado e de certa forma inquestionável, de realistas e idealistas, é para
1
Nietzsche, F. Obra póstuma (KSA 12), p. 323 apud Casanova, M. A., O instante extraordinário: vida,
história e valor na obra de Friedrich Nietzsche, p. 287.
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Nietzsche o traço distintivo da metafísica ocidental. Neste sentido, ao afirmar que tanto a
existência de um “fato em si” quanto a existência de um “sujeito dado” seriam já
“poetização, hipótese”, Nietzsche visa a estabelecer um novo solo para a especulação
filosófica, cujo ponto de partida deve ser a evidência de que não é possível pensar nenhuma
realidade como dada para além de toda e qualquer interpretação. Tendo em vista que a
metafísica, como ele a entende, sempre se caracterizou por um desprezo a essa evidência, a
tarefa assumida pelo pensamento de Nietzsche é a de estabelecer a possibilidade de um
pensamento que esteja para além da metafísica.
Não é casual, portanto, que um de seus livros mais importantes intitule-se justamente
Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma filosofia futura. É com base em uma análise desse
livro, publicado em 1886, e de sua Genealogia da moral, publicada no ano seguinte e
escrita originalmente para “complemento e clarificação de Além do Bem e do Mal
2
, que
pretendo trabalhar a questão da interpretação em Nietzsche.
O esclarecimento dessa questão, ao que me parece, é não apenas vital para a
compreensão do pensamento nietzschiano, mas, de certa forma, também para a
compreensão dos sistemas metafísicos que lhe antecedem e, sobretudo, para o
esclarecimento dos pressupostos do pensamento contemporâneo. Autores tão distintos
quanto Martin Heidegger e Michel Foucault, ambos de extrema importância para o
pensamento do século XX, concordam em atribuir a Nietzsche um papel fundamental no
estabelecimento de uma nova hermenêutica, que, não sendo metafísica, tampouco se limita
a pura e simplesmente negá-la.
Em Além do Bem e do Mal e na Genealogia da moral, a necessidade de esclarecer a
possibilidade de “uma filosofia futura”, de um pensamento que questione o que
permanecera impensado na metafísica ocidental, aparece atrelada à necessidade de oferecer
uma interpretação da história dos valores morais. Esta, por sua vez, exige a construção de
uma genealogia da moral, cuja pretensão é, nas palavras de Nietzsche, colocar em questão
“o próprio valor dos valores morais”
3
.
A articulação entre o projeto nietzschiano de uma superação da metafísica e a sua
genealogia da moral parece, à primeira vista, pouco clara, se não obscura. Afinal, a se crer
2
Esta informação constava no frontispício da primeira edição de Genealogia da moral, segundo Paulo
César de Souza, tradutor brasileiro da obra.
3
GM, p. 13.
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12
nos discursos da grande maioria dos filósofos metafísicos, o que lhes movia não eram
quaisquer considerações morais – a filosofia pura e a filosofia prática, aliás, sempre foram
ciosamente confinadas em âmbitos separados de investigação... –, mas sim um “impulso
desinteressado ao conhecimento”, uma nobre “vontade de verdade”
4
. Como seria então
possível entender o questionamento nietzschiano do “valor dessa vontade”
5
, e a sua
indicação de que o famoso e tradicionalmente aceito impulso desinteressado ao
conhecimento seria fundamentalmente a expressão de uma tomada de posição moral, e
talvez moralista, face à realidade como um todo?
Alcançar uma resposta adequada a essa questão é o objetivo do primeiro capítulo da
minha dissertação. Uma consideração do segundo parágrafo do fragmento de Nietzsche
citado na primeira página pode nos servir como indicação do caminho a trilhar. Ali,
Nietzsche afirma que, “uma vez que a palavra ‘conhecimento’ possui, antes de mais nada,
um sentido, o mundo é passível de ser conhecido: mas ele pode receber outras
significações”.
A afirmação, inclusive grifada pelo autor, de que o mundo pode receber outras
significações, mostra-nos que, em sua concepção, até hoje ele teria recebido apenas uma,
por mais que a diversidade de sistemas filosóficos que constituem o edifício da tradição
aparentemente o desmintam. Sua tarefa seria, então, a de criar o solo propício para que o
mundo pudesse receber outras significações, condição necessária para que a palavra
“conhecimento” viesse a possuir um sentido próprio. O primeiro passo para a realização
dessa tarefa, como salientei acima, ele o deu ao chamar a atenção para o fato de que tudo é
interpretação, para o fato de que tanto “coisa” quanto “homem”, tanto “objeto” quanto
“sujeito” não existem por si, como realidades últimas e indiscutíveis, mas já sempre
aparecem no âmbito de uma determinada perspectiva, dentre outras possíveis.
O problema é que, apesar de possíveis, essas “outras significações” permaneceram
“silenciadas”, tendo sido de certa forma “esquecidas” pela história da metafísica. Assim
sendo, para a realização de sua tarefa de superação da metafísica, não lhe poderia bastar
simplesmente chamar a atenção para o fato de que outras significações seriam teoricamente
possíveis. Mais do que isso, Nietzsche precisou mostrar que aquela “significação
4
ABM, p. 13.
5
ABM, p. 9.
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13
fundamental”, que aquela interpretação metafísica da realidade que triunfara ao longo de
dois mil e quinhentos anos, só havia granjeado este triunfo e conservado o seu poder de
determinação do “mundo verdadeiro”
6
, da realidade última do real, silenciando ativamente,
esquecendo meticulosamente e vedando tenazmente a possibilidade de outras
interpretações.
Com o intuito de entender que “significação fundamental” é essa, e como ela triunfou
ao longo de tanto tempo, Nietzsche assumiu o projeto de redigir a sua genealogia da moral,
a sua genealogia do triunfo da metafísica sobre a forma de pensamento que a precede
7
, a
qual explica também como a metafísica conseguiu silenciar (quase) inteiramente outras
formas de pensamento que teriam podido advir depois dela.
Em sua Genealogia da moral, Nietzsche leva a cabo a tarefa de criticar o valor dos
valores ou o valor da verdade, questionamento que até então não havia sido feito, pois
todos os filósofos que de algum modo se interessaram pelo conhecimento nunca estiveram
em posição de levar a cabo esta tarefa. A posição necessária à realização desse
questionamento não pode ser uma posição circunscrita pelos valores criados pelo
conhecimento ou embasada pelos mesmos fundamentos, mas precisaria, ao contrário, ser
uma posição exterior a tais valores, para que o próprio fundamento se tornasse visível.
O primeiro passo de Nietzsche foi construir um novo âmbito de pensamento fora dos
valores criados pelo conhecimento até então. Ao realizar a interrogação sobre a gênese dos
valores do conhecimento, Nietzsche precisou articulá-los com um mundo de valores que
aparentemente se organizava fora do conhecimento, o mundo dos valores morais, ou seja, o
mundo das práticas sociais. A posição que permitiu a Nietzsche questionar o valor dos
valores encontrava-se na articulação entre conhecimento e moral
8
, não no ensimesmamento
do conhecimento. A genealogia nietzschiana acompanhará a gênese dos valores supremos e
mostrará que a sua articulação com a história da metafísica repousa sobre a necessidade,
ressentida e de fundo moralista, de forjar um “mundo verdadeiro” como uma imagem do
que este mundo deveria ser, mas não é.
Os sistemas metafísicos aparecem, para Nietzsche, em dois planos. Em primeiro
lugar, como uma insurreição face à vida e ao seu caráter transitório, experimentado como
6
CI, p. 31.
7
Ver, além da própria Genealogia da moral, O nascimento da tragédia.
8
Ver Machado, Roberto. Nietzsche e a verdade, p. 38.
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insuficiente, e que por isso precisaria ser corrigido, e, em segundo lugar, como fruto da luta
pela obtenção e manutenção do poder que se desenvolve por meio da valoração imposta
pela dinâmica da dominação. A metafísica como a correção de um mundo que não é tão
estável, tão certo, tão justo como deveria ser: esta é provavelmente uma das grandes
intuições do filósofo, que ele sintetiza logo na abertura de Além do Bem e do Mal, quando
indaga: “Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade? Ou a
incerteza? Ou mesmo a insciência?”.
9
O triunfo da interpretação metafísica está imbricado na criação de valores morais,
valores que governam as interpretações vigentes, que se pretendem eternos por apelarem a
uma legitimação extramundana e cujo principal efeito foi ter escondido o seu caráter
circunstancial e, conseqüentemente, a possibilidade de sua substituição. Tal encobrimento
firmou a compreensão de um mundo estável que, por sua vez, impossibilitou o
esclarecimento daquilo que há de mais concreto nas práticas humanas e que sempre foi
percebido pelas sensações, o devir, o jogo permanente de dominação, o movimento
constante de perspectivas.
Uma vez tendo esclarecido a articulação nietzschiana entre metafísica e moral, no
segundo capítulo de minha dissertação, analisarei de que modo Nietzsche, a fim de
estabelecer a possibilidade de um pensamento que pudesse se situar no âmbito
“extramoral”
10
, experimentou a necessidade de forjar uma nova prática de interpretação,
intrinsecamente genealógica. Como se tornou patente para o filósofo, apenas uma
interpretação que pudesse reconhecer os interesses, historicamente determinados, que
haviam motivado a sua gênese, é que poderia assumir-se a si mesma como interpretação,
como uma perspectiva possível e não mais como o translúcido espelho da verdade.
A função do intérprete seria, então, desobstruir o caminho da interpretação,
colocando em questão a sua pretensão de apresentar a verdade
11
. A verdade, para Nietzsche,
sempre serviu para encobrir tanto o fato de ela própria ser uma interpretação quanto a
possibilidade de se construírem diferentes interpretações. Para isso, seu método de
interpretação precisa tomar o material escrito como sintoma do que foi silenciado por esse
mesmo material.
9
ABM, p. 9.
10
ABM, p. 39.
11
Foucault, M. Nietzsche, Freud e Marx: Theatrum Philosophicum, p. 24.
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15
Toda psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não
ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da
vontade de poder, tal como faço – isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na
medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui
silenciado.
12
Era preciso ainda garantir que esse novo solo para o pensamento, baseado na
evidência de que qualquer coisa que se pense sobre o mundo já é sempre uma interpretação,
não acabasse por produzir novos conteúdos de verdade fixos, sólidos. Desse modo, o
pensamento, como Nietzsche o concebe, deve sempre seguir o caminho da superação de si
mesmo. Em se tratando de pensamentos sempre interessados, sempre portadores de algum
impulso
13
, de algum desejo nunca completamente satisfeito, isso não é apenas possível, mas
necessário. O movimento do pensamento precisa ser sempre relançado, pois, estando
sempre referido a algum interesse, a alguma perspectiva, seu alcance é sempre parcial e
incompleto. O movimento do pensamento baseado em interpretações que visam a criar um
acesso ao silêncio do texto, ao mesmo tempo em que sempre precisa se relançar em direção
ao objeto de análise, precisa também continuamente voltar-se para o lugar do intérprete.
Por isso, o pensamento nietzschiano volta-se constantemente para o seu próprio interesse,
evidenciando a perspectiva da qual brota, explicitando o quanto pode aquilo que condiciona
a sua gênese.
A genealogia nietzschiana não toma as palavras como se elas tivessem mantido, ao
longo de sua história, um sentido coerente e, portanto, não entende o sentido das palavras
no presente como sendo o seu sentido original. O genealogista, como bem formulou Michel
Foucault, não pode acreditar que “o mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido
invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias”
14
. Ao contrário, sua pesquisa precisa incidir
sobre aquilo que é mais singular em um acontecimento, que de modo algum se restringe a
uma finalidade contínua. Ele precisa, portanto, reconhecer justamente aquilo que é excluído
da possibilidade de portar qualquer história, tal como o “impulso”, o “instinto” ou o
12
ABM, p.29.
13
“Supondo que nada seja ‘dado’ como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não
possamos descer ou subir a nenhuma outra ‘realidade’, exceto à realidade de nossos impulsos – pois pensar é
apenas a relação desses impulsos entre si –” , ABM, p.42.
14
Foucault, M. Microfísica do poder, p. 15.
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16
“desejo”. Daí a crítica de Nietzsche à filosofia que sempre deturpou e desprezou aquilo que
os sentidos apresentavam, “o vir-a-ser, o desvanecer, a mudança”. Ainda segundo Foucault,
o genealogista se opõe, fundamentalmente, à pesquisa pela origem e aos desdobramentos
que dela decorrem na concepção historicista da história, mas não à história propriamente.
Foucault analisa e distingue, em seu artigo Nietzsche, a genealogia e a história
15
, o
emprego das duas palavras escolhidas por Nietzsche para referir-se à gênese de um
acontecimento ou idéia, termos que tiveram seu sentido obscurecido pela tradução por
“origem”, que na obra de Nietzsche caberia a um terceiro termo, Ursprung, o qual quase
sempre revela um tom irônico ou depreciativo.
Os dois termos utilizados por Nietzsche ao tratar de gênese não recebem delimitações
nitidamente definidas, não sendo, portanto, conceitos fechados. O primeiro deles é o termo
Herkunft, cujo sentido se aproxima da palavra “proveniência”. Trata-se do pertencimento a
um grupo que não é explicado pela determinação de certas características comuns aos
diversos membros desse grupo, mas sim pela visualização de todo acontecimento como
singular, que se dá por meio de uma explicitação dos entrecruzamentos que o atravessam,
que o marcam sutilmente e que são dificilmente analisáveis por não constituírem uma
unidade, como quer a ilusão da origem. A proveniência permite encontrar, sob a identidade
de um acontecimento ou idéia, todos os acontecimentos diversos por meio dos quais a
unidade se formou, não para garantir a linearidade da história, mas para manter dispersos,
porém demarcados, todos os desvios, acidentes e erros de apreciação que “deram
nascimento ao que existe e tem valor para nós”
16
. Daí decorre que, devido ao seu caráter
analítico, a genealogia da proveniência é sempre crítica. Esse viés da genealogia como
pesquisa da proveniência, por se deparar com os emaranhados de acidentes em suas
articulações, acaba encontrando essas marcas no corpo humano, no que Nietzsche veio a
chamar de instinto e de sentimentos. É sobretudo por esse motivo que a comparação com a
fisiologia é tão enfatizada por Nietzsche.
O segundo termo escolhido por Nietzsche para tratar da gênese, e não da origem, é
Entstehung, que designa a “emergência”, mas certamente não a emergência como
finalidade, como seu uso final, que, concretamente, só pode ser tomado como mais um
15
Artigo publicado no livro Microfísica do poder.
16
Foucault, M. Microfísica do poder, p. 21.
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17
episódio da história do objeto em questão. A genealogia apresenta não a destinação
originária de alguma coisa, mas “o jogo casual das dominações”
17
do qual, em cada
momento, resulta uma finalidade. A distinção entre gênese e origem permitiu a construção
de uma história do pensamento metafísico e dos valores morais que não fosse ela própria
metafísica e que se posicionasse fora da moral.
A construção desse novo âmbito “extramoral” do pensamento cujo desenvolvimento
se dá no sentido de uma pesquisa genealógica histórico-fisiológica do próprio pensamento e
dos valores a ele correlatos esbarra no principal conceito da filosofia, o conceito de razão.
A questão que se coloca é: como pensar a razão sem com isso perpetuar os equívocos
constituintes da história da metafísica?
A importância dessa questão deve-se ao fato de que o conceito de razão foi forjado no
seio do pensamento metafísico para designar seu próprio movimento e seu alcance e,
portanto, ao ser examinado à luz da nova hermenêutica, talvez possa revelar mais sobre
esse movimento. A hermenêutica nietzschiana, por não ter o interesse de corrigir o mundo
eliminando aquilo que se mostra acidental, acaba por elevar o acidente ao estatuto de
formador das práticas e não pode recusar quaisquer construções. Deve, ao contrário,
analisá-las a fim de distinguir aqueles acidentes que quedaram obscurecidos nessas mesmas
construções.
A partir da análise do exercício nietzschiano da interpretação como genealogia, que
logrou estabelecer a possibilidade de um pensamento “extramoral”, no terceiro capítulo de
minha dissertação pretendo discutir a possibilidade de se pensar um novo conceito de razão
que inclua o achado nietzschiano de que todo o conhecimento já sempre se dá no âmbito de
uma perspectiva, mostrando a insuficiência da posição de alguns críticos de Nietzsche,
segundo os quais o seu pensamento conduziria a filosofia inevitavelmente ao subjetivismo,
ao relativismo, ou mesmo ao irracionalismo.
O conceito de razão na obra de Nietzsche recebe o estatuto de construção
eminentemente histórica, que, paradoxalmente, acabou por ser naturalizada, até chegar a ser
considerada como o que mais propriamente caracteriza a humanidade do homem. A
“razão” construída pelos filósofos metafísicos é, de acordo com a genealogia nietzschiana,
inteiramente constituída por preconceitos morais, os quais, em prol do estabelecimento de
17
ABM, p. 23.
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18
identidades e unidades, distorceram explicitamente a percepção sensorial de que tudo
aquilo que existe perece e transforma-se. De acordo com Nietzsche, o investimento na
construção da unidade, presente em toda a filosofia, é decorrente do principal preconceito
moral, a idéia de que existe a unidade “Eu”, coerente e completa, por detrás de qualquer
ação, idéia que perpassa todos os erros do pensamento metafísico
18
.
Os preconceitos morais constituintes da razão não se desenvolveram impunemente.
Nietzsche, aliás, enfatiza freqüentemente o alto preço pago por isso
19
.
No processo de
naturalização da razão, tudo o que não podia ser abarcado por uma explicação “racional”,
foi figurado como o contraponto necessário à manutenção da razão, sendo ao mesmo tempo
excluído dela. A exclusão daquilo que não se enquadrava no molde da razão nunca se deu
de forma pacífica, e por isso a genealogia de Nietzsche levou sua pesquisa até as práticas
mais violentas contra o que era excluído, sem as quais o edifício da razão correria o risco de
desmoronar, pois não suportaria contradições que, de qualquer modo, jogariam por terra as
tão estimadas unidade, identidade e universalidade.
Além dessa forma de violência, aplicada no sentido de manter a exclusão das práticas
recusadas pela moral “racional”, Nietzsche explicita ainda a violência que recai sobre
quaisquer formulações que evidenciem as práticas necessárias à naturalização da razão,
violência reduplicada, na medida em que visa a apagar a lembrança da violência despendida
na efetivação desse processo. O desenvolvimento da razão sempre esteve atrelado a
preconceitos morais que zelaram por silenciar a violência inerente à imposição da pretensão
absolutista da razão, o que acabou por impedir a superação de tais preconceitos e,
conseqüentemente, também o tão aclamado “progresso da razão”. Ao mesmo tempo em que
a “razão” foi oferecida como recompensa àqueles que compartilhassem dos preceitos da
moral metafísica, ela foi cristalizada por esses mesmos preceitos, tendo, por fim, se tornado
irracional, isto é, sem capacidade de análise crítica.
Ao desenvolver sua genealogia da moral, que desembocou numa genealogia da razão,
Nietzsche deparou com a violência exercida no processo de instauração e conservação da
18
CI, p. 44.
19
CI, p. 28: “O derradeiro, o mais tênue, o mais vazio é posto como o primeiro, como causa em si,
como ens realissimum... Ah! A humanidade levou realmente a sério as dores cerebrais desses doentes, desses
tecelões de teias de aranha! - E ela pagou caro por isso!...” .
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19
razão metafísica, que se dá ao modo da exclusão permanente
20
. A criação de uma razão
linear validada por preconceitos morais metafísicos de correção do mundo exigia o
estabelecimento da memória desses valores, por um lado, e do esquecimento de que tais
valores não existiram desde sempre, por outro. A criação desse tipo de memória cultural,
por assim dizer, se realizou através de práticas violentas, de castigos, que passaram a servir,
nesse momento histórico, de instrumento de produção de dor, o que, segundo Nietzsche,
constituiu-se como o melhor meio de marcar a lembrança.
- ‘Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa
inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do
esquecimento?’... Esse antiqüíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido
exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na
pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. ‘Grava-se algo a fogo, para que fique na
memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’- eis um axioma da mais
antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra.
21
A violência, que sempre foi tomada pela história metafísica como acidente
dispensável no processo de naturalização da razão, é apresentada como sendo justamente
aquilo que está silenciado nos textos e documentos que constituem o arcabouço dessa
história e, portanto, aparece como o principal foco da genealogia. Os textos e documentos
que, supostamente, se referem ao realmente realizado são interpretados pelo genealogista
como sintoma da violência exercida por uma razão que se pretende unívoca, sempre em
ascensão em direção ao progresso e que, por esse caráter, criou no próprio gesto de sua
inauguração um mundo recusado, excluído. Escreve Nietzsche:
Mas nunca se perguntaram realmente a si mesmos quanto custou nesse mundo a construção
de cada ideal? Quanta realidade teve de ser denegrida e negada, quanta mentira teve de ser
santificada, quanta consciência transtornada, quanto ‘Deus’ sacrificado? Para se erigir um
santuário, é preciso antes destruir um santuário: esta é a lei – mostrem-me um caso em que
ela não foi cumprida!...
22
Ao radicalizar sua descrição deste processo de violência, tornou-se claro para
Nietzsche que a violência não era peculiar apenas à razão metafísica. Ao tomar o mundo
20
ABM, p. 135.
21
GM, p. 50.
22
GM, p. 83.
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20
como uma rede de interpretações muitas vezes antagônicas e em uma luta constante para
imporem-se umas sobre as outras, Nietzsche chegou à conclusão de que qualquer ato de
conhecimento, por ser sempre um ato de interpretação, inevitavelmente exerce um tipo de
violência. Para se impor, toda interpretação precisa, ao mesmo tempo, destruir as
interpretações vigentes. Neste ponto da genealogia nietzschiana, resta uma questão a ser
analisada: qual é a distância entre os tipos de violência infligidos pela razão metafísica, e
sua memória correlata, e a violência exercida por um pensamento “extramoral”, voltado
para o esquecimento, o devir, a superação?
A resposta para essa pergunta depende de uma compreensão da noção de vida,
utilizada por Nietzsche como critério de avaliação das práticas humanas. Com a idéia de
vida, Nietzsche chegou à formulação do seu conceito de vontade de poder como princípio
de constituição da realidade, a qual não existe como um dado justamente porque só vem a
ser a partir de uma luta permanente entre perspectivas que, visando a se afirmar, precisam
continuamente voltar-se sobre os seus próprios pressupostos, os seus silenciosos
“inimigos”. Nesse caso, a volta sobre os pressupostos se dá ao modo da superação de si
mesmo, que só pode se realizar ao incluí-los em seu movimento de auto-afirmação, que,
deste modo, se torna agônico e permanece continuamente dinâmico. A partir do conceito de
vontade de poder, a razão nietzschiana aparece como aquela que, por ter esclarecido a
gênese fundamentalmente excludente da razão metafísica, precisa levar em conta os
interesses presentes em qualquer produção humana sem fugir ao constante questionamento
de si mesma, fuga que comumente se dá por meio da criação de dicotomias excludentes.
Ao enfatizar o caráter excludente da razão e o excesso de violência subjacente à
exclusão, todas as dicotomias e oposições que embasavam o pensamento metafísico se
tornam insustentáveis, elas deixam de ser opostos morais para serem analisadas como
sintoma da luta entre as forças que compreendem a vida. O conhecimento na obra de
Nietzsche não é mais interrogado a partir de valores morais antagônicos baseados em um
critério de verdade absoluto, mas passa a ser analisado a partir de uma explicitação dessas
forças em constante luta. Por conta dessa perspectiva, a violência das interpretações
nietzschianas está sempre apontada para o jogo de forças presentes na instauração da
interpretação a ser destruída e, desse modo, ela se dá em uma medida precisa, ajustada
precisamente ao jogo de forças em questão.
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21
Um pensamento que não recua ante o reconhecimento de que uma justa medida
(métron) de violência lhe é inerente acaba justamente por impedir que a violência,
permanecendo silenciada, seja produzida em doses excessivas. Este é justamente o cerne da
crítica nietzschiana à razão metafísica, que historicamente produziu e reproduziu violências
em excesso, exatamente por ter silenciado sua própria forma de violência. Tal violência,
denominada por Nietzsche de fraca, doente e vingativa, torna-se, por isso, aquilo que mais
corrói a vida.
23
É, finalmente, com o intuito de afirmar a vida como o sempiterno jogo de
perspectivas contraditórias que a figura de razão apresentada por Nietzsche não apenas não
exclui a razão metafísica, como assume explicitamente a tarefa de torná-la mais
propriamente razão. Talvez possamos pensar o projeto filosófico de Nietzsche como
direcionado para aquilo que, a seu modo, os iluministas denominaram “progresso da
razão”. Talvez o interesse de Nietzsche, apresentado em seu esforço de crítica da história da
metafísica, seja a implementação de uma razão eminentemente crítica e passível de
superação. Essa tarefa, que não é mais apenas de Nietzsche, mas sobretudo nossa, obriga-
nos, e este será o objetivo central de minha dissertação, a estabelecer a possibilidade de
uma história que, em vez de corroer, negar e vingar-se, ponha-se a serviço da vida.
23
GM, p. 112.
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2. Os preconceitos dos filósofos
2.1. O ponto de partida
Há uma questão no pensamento de Nietzsche que salta aos olhos do leitor quase de
imediato ante as primeiras páginas de Além do bem e do mal ou da Genealogia da moral. O
modo abrupto pelo qual a questão se impõe à leitura não permite que ela seja capturada em
um reconhecimento formalizado ou que o leitor, neste breve espaço de tempo em que a
questão o atropela, escape ao desconforto de conquistar apenas uma compreensão nebulosa
e inapreensível como sistema. Desde o início, o leitor é obrigado a desdobrar-se e a ter o
seu pensamento cindido diante da imbricação entre conhecimento e moral, que, a cada linha
de Nietzsche, não deixa de impressionar até mesmo o leitor informado do que encontrará.
Em um primeiro momento, não se pode precisar de onde surge a questão da
imbricação entre conhecimento e moral e, com ela, um importante tema da filosofia de
Nietzsche. Há dois grandes pontos nodais no pensamento do filósofo que se deixam
mobilizar pela questão. Escutam-se suas ressonâncias desde a leitura mais
descomprometida ou sem apego a um tema preestabelecido. O primeiro deles é a crítica às
teorias do conhecimento; o segundo é o mal-estar decorrente do estado da cultura naquele
momento e, podemos dizer, até hoje.
É possível supor que o interesse de Nietzsche pelas teorias filosóficas do
conhecimento tenha brotado a partir do mal-estar que ele sentia e identificava como
cultural. Sua intuição lhe indicava que seu tempo histórico estava marcado por certa
decadência de produções culturais e pela contínua degradação dos valores constituintes do
tipo de vida apequenado de então. Pesquisar as produções culturais seria o modo pelo qual
Nietzsche poderia esclarecer de onde havia surgido a decadência agora sentida brutalmente.
A filosofia incluía-se entre as produções culturais que interessavam à pesquisa, mas possuía
lugar privilegiado. Para conhecer aquilo que lhe importava, Nietzsche precisava ampliar o
âmbito de alcance do conhecimento. A filosofia, como campo onde se trata das questões do
conhecimento, estava por demais reduzida em suas teorias do conhecimento. Neste sentido,
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23
dois motivos para o interesse pela crítica ao saber apresentam-se desde o início: o saber
como redução do pensamento e o saber como construção cultural decadente.
O tema do mal-estar que serviu de largada para o pensamento de Nietzsche deverá,
por ora, permanecer latente. Sua abordagem se encontrará no final do capítulo como
retorno ao início. A minha elaboração da crítica nietzschiana às teorias do conhecimento
contorna este problema até que o pensamento possa, com mais rigor, adentrar a sua gênese.
2.2. A filosofia como “história de um erro”
1
Sob a ótica de Nietzsche, toda a história da filosofia é marcada por teorias do
conhecimento baseadas na mesma interpretação do mundo, por mais que os diferentes
pensamentos que compõem a tradição filosófica aparentemente desmintam tal percepção. A
pesquisa de Nietzsche sobre a história da metafísica recaiu especificamente sobre aquilo
que faz com que se reconheçam os filósofos da tradição a despeito das idiossincrasias de
suas teorias. De acordo com o modo tradicional de leitura da filosofia, cada filósofo
representaria um cosmos, uma explicação para os mistérios da existência, um caminho
racional distinto dos demais. Nietzsche, no entanto, preferiu ler nos diversos textos
filosóficos uma identidade camuflada pela impressão de ruptura entre os pensamentos dos
filósofos. O autor exerceu grande esforço de crítica à metafísica, a começar pelo esforço de
destacar a continuidade desta história aparentemente descontínua e rica em antagonismos.
Em quase todos os seus livros, tem-se notícia de sua interpretação crítica acerca dos
filósofos. Ainda que Nietzsche se detenha em esclarecer sua concepção sobre um ou outro
filósofo, é sempre nítida a inserção de todos os filósofos e suas especificidades em uma
história sustentada por alguma continuidade.
Nietzsche escolheu nomear a continuidade da filosofia de “história de um erro”.
Todos os filósofos compartilharam alguns mesmos erros e ilusões fundamentais. Os dois
termos, aliás, erro e ilusão, foram bastante caros às teorias filosóficas. No grande apreço
metafísico pelo julgamento do erro ou da veracidade de um juízo, já se pressente o erro
1
Cf. CI, p. 31s.
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24
reconhecido por Nietzsche como a história da filosofia: a verdade metafísica, por definição
única e absoluta, foi sempre posta em oposição aos erros e ilusões, enquanto a questão da
veracidade do conhecimento ficou encerrada nessa dicotomia dualista.
A filosofia mostrou-se para Nietzsche como a história dos mesmos preconceitos
dogmáticos, apresentados em cada momento com uma roupagem apenas superficialmente
diferente. Deu-lhes o nome de preconceitos dos filósofos, constituindo com isso uma bela e
entusiasmada história crítica da filosofia. A história da filosofia foi contada por Nietzsche
como a história do erro da necessidade da postulação de um “mundo verdadeiro” em
oposição ao mundo sensível. Toda a filosofia sustentou-se sobre a criação de um outro
mundo distinto do mundo que aparece à percepção. Nietzsche detectou um processo duplo
associado à criação do “mundo verdadeiro”: por um lado, o “mundo verdadeiro” arcava
com a responsabilidade de explicar e garantir a existência das aparências, e respondia pela
causa única de todas as coisas; por outro lado, o “mundo verdadeiro” assegurava que o
mundo das aparências vivia sob a égide da desordem, que não correspondia à essência
mesma das coisas e que, portanto, mereceria ter seu modo de existência negado e
desvalorizado. O “mundo verdadeiro” forneceu a garantia da permanência da negação de
tudo o que é próprio do mundo sensível, de modo a sustentar a manutenção de um certo
tipo de vida que nega o mundo.
A criação do “mundo verdadeiro” sustentou a pressuposição filosófica de que o
conhecimento pudesse criticar a si mesmo a partir de seu próprio instrumento. A filosofia
compreendia o seu instrumento e o seu objeto, a racionalidade, como isolada do resto do
mundo. A relação da filosofia com o “mundo verdadeiro”, com a realidade dada por detrás
de suas teorias, aparecia aos filósofos como a causa suficiente de seu pensamento crítico. O
conhecimento, concebido como tendo uma relação privilegiada com o âmbito da verdade,
deveria ser capaz de constatar sua força e seus limites por si só. O contra-senso, apontado
por Nietzsche, presente na operação lógica de supor que um instrumento tenha um
parâmetro capaz de medir com objetividade o seu próprio alcance, sequer podia ser intuído
pelos filósofos da metafísica.
Por mais diferentes que fossem um filósofo do outro, a história da filosofia como um
todo se privou de questionar o fundamento do conhecimento. Como poderia se questionar
acerca de seu fundamento se tal questionamento originava-se a partir dos mesmos
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fundamentos? A filosofia estava restrita ao domínio de sua própria criação, enredada por
suas invenções, sem a possibilidade de tomar uma posição que lhe favorecesse a elucidação
de seus pontos cegos. A falta de perspectiva histórica da filosofia criava a miragem de que
o campo de seus valores fosse isolado do campo dos valores em geral. A aparência de
isolamento da filosofia era retificada pelo argumento de que as idéias filosóficas de algum
modo seriam geradas pelo mundo de onde a verdade irradiaria a sua luz, cujo acesso
privilegiado seria restrito aos filósofos. O instrumento do conhecimento, a racionalidade,
foi tomado pelos filósofos como “valor em si”, independente de todos os outros valores
existentes. O domínio da crítica filosófica foi reduzido ao simples discernimento quanto à
veracidade ou à falsidade de um juízo ou de um valor.
A criação de dois mundos, pela qual se podem reconhecer os filósofos metafísicos,
apresenta-se no pensamento sobre a origem, em verdade não um pensamento mas uma
crença, manifesto na “crença na oposição de valores”, base de todas as argumentações
ditas filosóficas.
‘Como poderia algo nascer de seu oposto? Por exemplo, a verdade do erro? Ou a vontade de
verdade da vontade de engano? Ou a ação desinteressada do egoísmo? Ou a pura e radiante
contemplação do sábio da concupiscência? Semelhante gênese é impossível; quem com ela
sonha é um tolo, ou algo pior; as coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja
outra, própria – não podem derivar desse fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo,
desse turbilhão de insânia e cobiça! Devem vir do seio do ser, do intransitório, do deus
oculto, da ‘coisa em si’ – nisso, e em nada mais deve estar sua causa!’– Este modo de julgar
constitui o típico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os metafísicos de todos os
tempos; tal espécie de valoração está por trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a
partir dessa sua ‘crença’ que eles procuram alcançar seu ‘saber’, alcançar algo que no fim é
batizado solenemente de ‘verdade’. A crença fundamental dos metafísicos é a crença na
oposição de valores.
2
A suspeita de que algo altamente valorizado se originasse de seu oposto, tido como
vil e baixo, foi recusada como questão por toda a história da filosofia por meio da “negação
da gênese de um a partir do outro”
3
. A filosofia metafísica instituiu a suposição de que uma
coisa valorosa deveria necessariamente ter surgido de uma outra coisa que teria de ser ainda
mais estimável. A filosofia sustentou-se sempre na crença de que a gênese de um alto valor
2
ABM, p. 10.
3
HDH, p. 15.
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26
deveria ser “miraculosa”
4
, tal qual a essência da coisa ou a ‘coisa em si’. A questão da
origem foi completamente posta de lado pela filosofia até a emergência do pensamento de
Nietzsche, que chegou a espantar-se com o fato de, finalmente, este pensamento poder ter
vindo à tona, como se para isso fosse necessária uma mudança no estado da humanidade:
A humanidade gosta de afastar da mente as questões acerca da origem e dos primórdios: não
é preciso estar quase desumanizado para sentir dentro de si tendência contrária?
5
Esta passagem aponta para outra idéia muito cara à pesquisa nietzschiana sobre a
história da filosofia. A filosofia metafísica precisou postular e reiterar uma essência única
para o homem e para a humanidade que destituiria a tarefa de se pensar a gênese da
humanidade. A importância da origem só se revela sob a perspectiva de que as coisas e o
mundo estão em processo de criação. Algo que tivesse a sua gênese configurada de uma
vez por todas não necessitaria ter a sua constituição pesquisada. O “mundo verdadeiro”
ocupou o lugar do pensamento sobre a origem. Tanta recusa evidencia os valores morais
encobertos pela filosofia. Nietzsche atribuiu ao “preconceito democrático, no tocante a
qualquer questão relativa às origens”
6
o atraso de uma genealogia da moral. O estado dos
valores morais deveria ser o responsável pelo perigo de se pensar na origem.
Com a negação da possibilidade de o homem vir a ser, a filosofia recusou-se também
a conceber a cognição como tendo outra origem que não a sua irrupção acabada, aos
moldes de uma faculdade, que, tal como o cão correndo atrás de seu próprio rabo, serviria,
inclusive, de explicação para a gênese do mundo inteiro.
7
A negação da existência do mundo, do homem e do conhecimento como processo –
nas palavras de Nietzsche, o “defeito hereditário dos filósofos” – alia-se, na perspectiva
metafísica, à crença na oposição de valores. A aliança almeja dar ensejo ao projeto de
correção do mundo, que não é tão estável, tão certo, tão justo como deveria ser. A crença na
oposição de valores divide o mundo em dois planos, um de onde provém tudo o que é alto e
bom, em detrimento do outro, onde existe aquilo que é baixo e vil. Nietzsche identificou
nesta operação de divisão e exclusão simultâneas a necessidade de a filosofia metafísica
4
HDH, p. 15.
5
HDH, p. 16.
6
GM, p. 21.
7
Cf. HDH, p. 16.
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27
funcionar como correção moral do mundo. A força dos valores morais metafísicos teria
convergido para uma direção conservadora de um certo tipo de vida dos homens.
Por exemplo, que o determinado tenha mais valor que o indeterminado, a aparência menos
valor que a ‘verdade’: tais avaliações poderiam, não obstante a sua importância reguladora
para nós, ser apenas avaliações-de-fachada, um determinado tipo de niaiserie [tolice], tal
como pode ser necessário justamente para a preservação de seres como nós. Supondo, claro,
que não seja precisamente o homem a ‘medida de todas as coisas’...
8
As interpretações que assumiram historicamente o valor da verdade e que tomam a
verdade como o tema mais valioso não alcançam aquilo que seria uma “natureza humana”,
ao contrário do que formulam, não dispõem de rigor para minimamente construir alguma
teoria acerca do desenvolvimento do homem como espécie animal. As teorias metafísicas
que se revestem com o valor da verdade cristalizam a “história da evolução dos organismos
e dos conceitos”
9
, conservam o mesmo estado, concorrem para o impedimento de
mudanças. Nietzsche interessou-se por atirar seu martelo contra esta espécie de
conservação.
.
2.3. A perspectiva nietzschiana
Em seu interesse pela origem dos valores do conhecimento, Nietzsche encontrou a
questão central de seu percurso de pensamento: o valor da verdade nunca havia sido posto
em questão. Nunca a filosofia havia podido se interrogar acerca de sua necessidade de
criação do valor da verdade. A hierarquia entre valores opostos tornou-se o tema principal
da pesquisa de Nietzsche. Tanto a hierarquia quanto a falta de questionamento o
interessavam. O valor da verdade e o lugar do intérprete.
Uma forte e eloqüente constatação de Nietzsche foi a de que o próprio valor de
verdade da verdade não pôde ser questionado. As questões sobre a vontade de verdade que
tanto mobilizaram os filósofos – por tratarem da garantia de veracidade da filosofia – nunca
haviam sido levadas até o fim. Jamais a filosofia havia se perguntado pelo valor dessa
8
GM, p. 11.
9
HDH, p. 20.
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28
vontade ou pela sua necessidade de desenvolver o pensamento segundo o molde de algo
como a verdade. Nietzsche emprestou entonação de espanto à sua observação de que nunca
antes nenhum filósofo havia se perguntado sobre o que o levaria a buscar e a encontrar uma
verdade e não um erro, uma incerteza ou qualquer outra coisa.
E seria de acreditar que, como afinal nos quer parecer, o problema não tenha sido jamais
colocado – que tenha sido por nós pela primeira vez vislumbrado, percebido, arriscado?
10
Os filósofos podem ser reconhecidos como aqueles que não questionaram a
autoridade do impulso que os levaria necessariamente em direção à verdade. As teorias do
conhecimento, mesmo a teoria crítica de Kant, que almejava definir o âmbito de ação da
razão, utilizaram-se do pressuposto facilmente abalável de que um instrumento “se pusesse
a criticar sua própria perfeição e sua própria aptidão”
11
, de que o intelecto pudesse por si só
“conhecer seu próprio valor, sua força e seus limites”
12
, sem reconhecerem nesta operação
qualquer contra-senso. Esta cegueira filosófica ecoa na obra de Nietzsche em sua tarefa de
decifrá-la e tem seu percurso de análise desenvolvido a partir da elaboração nietzschiana da
relação, constantemente silenciada pela filosofia, entre conhecimento e moral.
Como colocar o valor da moral ou o valor da verdade em questão? Como pensar para
além da oposição entre verdade e falsidade? Em sua pesquisa, Nietzsche compreendeu que
era preciso romper o preconceito instituído de que o conhecimento e a verdade possuiriam
um valor em si mesmos, mais precisamente, um valor único e superior a todos os outros,
derivado de algum fato dado, exterior ao mundo das interpretações, e que fosse, ao mesmo
tempo, seu fundamento. Este preconceito servia à aparência de isolamento e ao privilégio
do âmbito do saber em relação aos outros valores fomentados na sociedade.
O valor supremo da verdade dependia de que se postulasse sempre alguma substância
dada por detrás do enunciado, cuja existência deveria ser creditada a ela. A verdade do
conhecimento sustentava-se na crença na existência de alguma coisa anterior ao
conhecimento, alguma coisa que fosse sempre a mesma, imutável e eterna, e que se
posicionaria em um ambiente externo ao mundo dos valores. A legitimidade do
10
ABM, p. 9.
11
A, p. 11.
12
A, p.11.
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29
conhecimento era oriunda deste lugar extramundano de onde se irradiaria a verdade de
todas as coisas. A verdade era necessariamente única e constante. Sua existência independia
das práticas sociais humanas. Por ser paradigmática, a verdade seria o critério de validação
de toda e qualquer ação humana.
Nietzsche foi talvez o primeiro filósofo a ler atentamente nas idéias filosóficas acerca
de um outro mundo mais verdadeiro do que o mundo das aparências o seu caráter de
invenção. A idéia de um mundo de onde a verdade emanaria sua essência nunca havia sido
pensada como uma construção que precisaria ser atribuída à cultura de onde brota. A
verdade nunca havia sido despojada de seu estatuto de juíza de valores a fim de ser inserida
no rol dos valores criados e mantidos pela cultura. O “mundo verdadeiro” pareceu a
Nietzsche uma necessidade inerente ao modo de vida daqueles que o criaram. Não se
tratava mais de validar ou refutar essa idéia, mas de tomá-la como uma produção cultural
que, se ganhou força de existência, foi devido à força de seu valor dentro do mundo dos
valores.
A definição da história do “mundo verdadeiro” como a história de um erro não pode
ser bem compreendida se não mantivermos em vista a crítica nietzschiana do valor da
verdade. O interesse de Nietzsche não se restringia a declarar falsa a idéia de um mundo
verdadeiro distinto do mundo sensível. A denominação da história da criação do “mundo
verdadeiro” em seus diferentes estágios de “história de um erro” não deve nos iludir acerca
da importância do caráter negativo desta história. O erro identificado por Nietzsche em seu
tempo não pode ser comparado à noção metafísica de erro. Em Nietzsche não se trata mais
de medir uma idéia de acordo com a quantidade de substância verdadeira que ela poderia
conter, nem no sentido de desvelamento nem tampouco no de adequação
13
. O erro, sob a
pena de Nietzsche, só pode ser compreendido se atrelado ao lugar daquele que o identificou
como tal. Nietzsche pôde dizer, sem resvalar na perpetuação da noção metafísica de
verdade, que a história do “mundo verdadeiro” tornou-se a história de um erro, pois pela
primeira vez o erro ou a verdade correlata, nesse caso equivalentes, foram postos em
perspectiva histórica, de modo a configurarem-se como frutos de interpretações necessárias,
porém circunstanciais.
13
Cf. HEIDEGGER, M. La doctrine de Platon sur la vérité. Gallimard, 1993, (Question I e II) p.
423-469.
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30
Nietzsche situou seu pensamento em relação à história da filosofia. O autor sentia que
devia a emergência de seu pensamento a todo o desenvolvimento da razão filosófica
anterior, ainda que ao mesmo tempo apresentasse uma ruptura neste desenvolvimento. Até
então a filosofia baseara suas teorias na concepção da existência de alguma coisa dada que
independesse da interpretação dos homens e, principalmente, que garantisse a veracidade
de suas asserções. A noção metafísica de interpretação não levava em conta o lugar do
intérprete. Mesmos as inversões de movimentos presentes na história da filosofia nunca
haviam estado em posição de questionar o valor da realidade pressuposta como dada por
detrás das interpretações.
Tal questionamento é o próprio da filosofia de Nietzsche. Apesar de situar-se no
âmbito da história da filosofia, Nietzsche alcança uma posição que lhe possibilita, pela
primeira vez, questionar o valor da verdade que até então embasava as interpretações
filosóficas sem nunca ser contemplado por elas como questão.
A crítica ao valor superior, eterno, imutável e único da verdade, que sempre
prevaleceu na oposição ao valor da aparência e da mudança, exigiu que Nietzsche estivesse
em uma posição exterior ao âmbito do conhecimento. O interesse de Nietzsche quanto ao
questionamento do valor daquilo que sustentava a produção de conhecimento filosófico
levou sua pesquisa a trilhar um caminho de ruptura em relação às teorias metafísicas do
conhecimento. A pesquisa nietzschiana, cujo objetivo era investigar a gênese da criação do
valor da verdade precisou situar-se fora dos limites da filosofia metafísica.
Ao criticar o fundamento da produção de conhecimento filosófico e de seu valor,
Nietzsche desembocou no território da criação de valores em geral. Sua pesquisa o levou ao
terreno da imbricação entre o conhecimento e a moral. O ambiente exterior ao restrito
domínio do conhecimento metafísico não poderia ser um outro mundo, que já havia sido
colonizado pela metafísica. A localização fora dos parâmetros do mundo de valores do
conhecimento deveria ser ao mesmo tempo intrínseca à criação de valores. Ao buscar
conhecer a gênese dos valores do conhecimento, Nietzsche encontrou a relação intrínseca
entre produção e manutenção do conhecimento dentro de certos moldes e a criação e a
força dos valores morais.
14
14
Cf. MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e terra, 1999, p. 52.
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31
2.4. Legitimação da filosofia e da moral
A filosofia, como a moral, legitimava-se pela existência de um outro mundo como
causa do mundo das aparências. A origem do valor da verdade relacionava-se inteiramente
à gênese dos valores morais e à sua história. A substância inquestionável tida como dada
por detrás das interpretações filosóficas, aquela que ocuparia o lugar da verdade em cada
corrente teórica, também marcava o lugar dos valores morais em sua imbricação com a
filosofia. A verdade filosófica inspirava-se na verdade moral sem que tal identificação
pudesse ser vislumbrada pelos filósofos. A suprema luz da verdade metafísica representava
também a opacidade em que se encontrava a história da criação de valores para a filosofia.
A essência, exterior ao mundo dos enunciados e práticas humanos, que a filosofia
postulara como garantia deste mundo sensível, era reconhecida pelos filósofos como o seu
motor de pensamento. Ainda que o filósofo reconhecesse a inacessibilidade ao “mundo
verdadeiro” e sua desobrigação para com ele, esse outro mundo foi sempre o parâmetro
para o desenvolvimento teórico da filosofia. A questão quanto à autoridade do impulso em
busca da verdade encontrava seu término na referência ao “mundo verdadeiro”, de modo
que a questão recebia simultaneamente uma resposta e um freio. Nesse duplo caráter do
valor da verdade, Nietzsche flagrou o lugar da moral em sua imbricação com a filosofia.
Os filósofos reconheciam o “mundo verdadeiro” como a força motriz de seu impulso
em direção à verdade filosófica, sem, contudo, perceberem a tautologia presente nessa
operação. Nietzsche percebeu que, apesar da tautologia, a operação de fato existia. A força
motriz dos filósofos deveria estar em um mundo organizado por outros valores que dariam
suporte aos valores apresentados pelas teorias do conhecimento. O outro mundo de onde os
filósofos retirariam sua força seria o mundo dos valores morais. Nietzsche sustentou
enfaticamente que o objeto tido como dado sem questionamento da filosofia eram os
valores morais, que também funcionavam como a força
motriz de cada filósofo.
Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a
confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas; e
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também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia constituíram
sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira.
15
A filosofia metafísica foi marcada, desde Sócrates, por sua devoção cega à moral. Por
não se posicionarem em uma perspectiva exterior aos fundamentos e à força da
legitimidade da moral, os filósofos ficaram impedidos de descreverem e analisarem a moral
como objeto. A filosofia não pôde compreender que o seu desenvolvimento ligava-se
diretamente aos valores vigentes na cultura de onde nascera. Os pressupostos filosóficos
eram os mesmos pressupostos sustentados pela moral e, como tal, eles mesmos impediam e
desqualificavam qualquer questionamento quanto à sua validade. A moral é coercitiva, “é
que na presença da moral, como na presença de toda autoridade, não é lícito refletir, e ainda
menos falar; ali é preciso obedecer!”.
16
Tão logo se ocuparam da moral como ciência, os filósofos todos exigiram de si, com uma
seriedade tesa, de fazer rir, algo muito mais elevado, mais pretensioso, mais solene: eles
desejaram a fundamentação da moral – e cada filósofo acreditou até agora ter fundamentado
a moral; a moral mesma, porém, era tida como ‘dada’. Quão longe do seu tosco orgulho
estava a tarefa da descrição, aparentemente insignificante e largada no pó e na lama, embora
para realizá-la não bastassem talvez os sentidos e os dedos mais finos e delicados!
Precisamente porque os filósofos da moral conheciam os fatos morais apenas grosseiramente,
num excerto arbitrário ou compêndio fortuito, como moralidade do seu ambiente, de sua
classe, de sua Igreja, do espírito de sua época, de seu clima e seu lugar – precisamente porque
eram mal informados e pouco curiosos a respeito de povos, tempos e eras, não chegaram a ter
em vista os verdadeiros problemas da moral – os quais emergem somente na comparação de
muitas morais. Por estranho que possa soar, em toda ‘ciência da moral’ sempre faltou o
problema da própria moral: faltou a suspeita de que ali havia algo problemático. O que os
filósofos denominavam ‘fundamentação da moral’, exigindo-a de si, era apenas, vista à luz
adequada, uma forma erudita de boa- na moral dominante, um novo modo de expressá-la, e
portanto um fato no interior de uma determinada moralidade, e até mesmo, em última
instância, uma espécie de negação de que fosse lícito ver essa moral como um problema – em
todo caso o oposto de um exame, questionamento, análise, vivissecção dessa mesma fé.
17
A citação indica que quanto mais os filósofos tornavam-se “cientistas da moral”, isto
é, quanto mais falavam e apresentavam seus pensamentos acerca da moral e, segundo
Nietzsche, isto vinha ocorrendo desde a filosofia de Sócrates
18
, mais a moral permanecia
15
ABM, p. 13.
16
A, p. 10.
17
ABM, p. 85.
18
Nietzsche, F. Fragmentos Póstumos, 25 [17] apud MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. São
Paulo: Paz e terra, 1999, p. 52.
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inquestionável, opaca, soberana. A presença da moral como tema da filosofia servia,
contraditoriamente, à sua ausência como questão. Engendrava-se na filosofia um processo
pelo qual a moral funcionava tanto como motor do pensamento filosófico quanto chegava a
ser seu objeto de estudo, mas, ao mesmo tempo, a filosofia permanecia recusando o seu
questionamento crítico.
Os filósofos tomaram a moral como única, nunca puderam perceber que as tábuas de
valores eram tão variáveis quanto as épocas e os povos. Seu olhar obtuso reduzia-se
constantemente aos seus próprios valores. Mais do que isso, os filósofos tratavam o
conhecimento do mesmo modo com que lidavam com seus valores: também postulavam a
verdade como única, como valor em si, sem nunca terem podido se questionar sobre tal
apreciação de valores, sem sequer por instantes perguntarem-se “certo, queremos a
verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a
insciência? – O problema do valor da verdade apresentou-se à nossa frente – ou fomos nós
a nos apresentar diante dele?”
19
. O fato de a verdade ser considerada como mais válida do
que um erro permaneceu sem explicação e, aparentemente, nem mesmo despertou interesse
filosófico. Do mesmo modo que a moral era tratada com toda a certeza inabalável que só a
fé garante, o conhecimento também foi sustentado pela fé na unicidade da verdade e em seu
valor em si, sem que a força dessa fé pudesse ser tomada como algo que merecesse atenção.
Uma das principais descobertas de Nietzsche, a imbricação entre filosofia e moral,
trouxe a conseqüência de que todas as filosofias, a partir de Sócrates, por mais que
pudessem parecer distintas umas das outras, tiveram seu traço comum esclarecido: todas
portavam a afirmação e mesmo a “propaganda”
20
de uma certa moralidade. Ao mesmo
tempo, tornou-se clara a força da crença na universalidade de uma única moral. Esta crença
nos importa e importou a Nietzsche na medida em que é também o sustentáculo da
produção de conhecimento filosófico.
A relação da filosofia com suas crenças ou preconceitos é a própria face da relação
entre os âmbitos da teoria do conhecimento e o da moral. Ambos os preconceitos dos
filósofos e os valores morais devem sua existência a uma força cujo estatuto social é o
mesmo que rege a fé religiosa. A força da coerção de uma crença e a manutenção de
19
ABM, p. 9.
20
Nietzsche, F. Fragmentos Póstumos, 1 [60] apud MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. São
Paulo: Paz e terra, 1999, p. 54.
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pressupostos filosófico-racionais sem questionamento parece ser um dos temas mais
instigantes para Nietzsche. Foi uma força de grandes proporções o que ele descobriu ao
analisar a gênese dos valores do conhecimento, o mesmo tipo de força que sustenta a
existência dos valores morais e a religião.
2.5. O estado da moral, o saber e o mal-estar
A força dos pensamentos advém de sentimentos a eles atrelados. O mundo
dominado pela moral cristã, que, segundo Nietzsche, teve o seu início antes da existência
de Cristo, a partir da filosofia de Sócrates e do platonismo, tornou-se profundo, abarrotou-
se de sentimentos e pensamentos de profundidade. Foram criadas a idéia e a sensação de
uma espiritualização, interiorizada e profunda, opostas à gama de sentimentos e
pensamentos antes associados ao corpo e à arte, agora vividos como superficiais e imorais.
Assim como Demócrito transferiu os conceitos de ‘em cima’ e ‘embaixo’ para o espaço
infinito, onde não têm sentido algum, os filósofos transportam o conceito de ‘interior e
exterior’ para a essência e aparência do mundo; acham que com sentimentos profundos
chegamos ao profundo interior, aproximamo-nos do coração da natureza. Mas esses
sentimentos são profundos apenas na medida em que com eles, de modo quase imperceptível,
se excitam regularmente determinados grupos complexos de pensamentos, que chamamos de
profundo; um sentimento é profundo porque consideramos profundo o pensamento que o
acompanha. Mas o pensamento profundo pode estar muito longe da verdade, como, por
exemplo, todo pensamento metafísico; se retirarmos do sentimento profundo os elementos
intelectuais a ele misturados, resta o sentimento forte, e este não é capaz de garantir, para o
conhecimento, nada além de si mesmo, tal como a crença forte prova apenas a sua força, não
a verdade daquilo em que se crê.
21
Nietzsche descobriu na história da gênese da moral a invenção dos binômios interior-
exterior e profundidade-superficialidade. A filosofia acompanhou esse movimento de
criação oferecendo à construção das dicotomias os conceitos necessários, mas,
principalmente, a filosofia doou argumentos considerados racionais para a legitimação da
hierarquia entre os pares das dicotomias. O conteúdo filosófico validou a crença orgulhosa,
compartilhada pelos homens do mundo dominado pela moral, de que os sentimentos
vividos como profundos “de fato” são capazes de alcançar a profunda essência das coisas.
21
HDH, p. 25.
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35
O sentimento moral cria a ilusão de que aquilo que se passa no íntimo do indivíduo
transcorre do mesmo modo no “coração da natureza”. A interioridade e a profundidade, que
a espécie humana adquiriu com o desenvolvimento da moral, foram imediatamente
transpostas para o reino das coisas. Nesse processo, além de o homem haver recebido o
incremento de um mundo interno espiritualizado, a natureza tornou-se igualmente profunda
e dotada de uma essência ou substância que se deveria, a partir de então, conhecer
“verdadeiramente”.
Em tempos passados, o espírito não era solicitado pelo pensamento rigoroso; ocupava-se em
urdir formas e símbolos. Isso mudou; a ocupação séria com o simbólico tornou-se distintivo
da cultura inferior; assim como nossas artes mesmas se tornam cada vez mais intelectuais e
nossos sentidos mais espirituais, e como também julgamos de maneira bem diversa da de cem
anos atrás aquilo que é sensualmente harmonioso: assim também as formas de nossas vidas
se tornam cada vez mais espirituais, e para os olhos de épocas antigas talvez mais feias, mas
apenas porque não conseguem ver como o reino da beleza interior, espiritual, continuamente
se aprofunda e se amplia, e em que medida, para todos nós, o olhar inteligente pode hoje
valer mais que a estrutura mais bela e a construção mais sublime.
22
A principal crença projetada no mundo sensível da natureza foi a idéia de um “eu”
como causa dos fatos. Quando os homens tornaram-se dotados de profundidade, de um
mundo interior povoado de fatos, tornaram-se também portadores de um agente único,
idêntico a si mesmo e permanente. Da crença em tal identidade responsável pelas ações,
pode-se derivar a idéia filosófica por excelência, a idéia de “Ser”. O ser já não habitaria
apenas os seres humanos, mas deveria estar presente em tudo mais o que existisse. Segundo
Nietzsche, a própria noção de coisa foi retirada da crença em um sujeito agente. A
interioridade de que agora os homens dispunham foi transferida, generalizada, para tudo
aquilo que os homens tocavam e imaginavam. Quando o mundo passou a ser regido pelo
“Ser”, ele pôde ser conhecido.
A idéia de “Ser” responde pela causa de todas as diferenças. Ela é a própria
encarnação da operação de generalização. A idéia de “Ser” corresponde à substância a se
conhecer, ao limite a priori do conhecimento e também ao agente do conhecimento. Os
deuses que se divertiam ao urdir formas e símbolos transfiguraram-se em um “Deus” único,
eterno e imutável, no “Ser” supremo, causa de todas as coisas. A crença no poder do
22
HDH, p. 17-18.
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36
conhecimento em si é a mesma crença em Deus. Conhecimento e religião, em seu estado
atual, são faces da mesma crença moral.
A leitura das obras de Nietzsche nos impede de adotar uma postura maniqueísta,
ainda que seja esta a nossa tendência em muitos casos. Nietzsche nos adverte de que, se
podemos pensar em temas como a interdependência entre a filosofia metafísica e a moral
religiosa de nosso tempo, isto se deve ao próprio desenvolvimento histórico do tema em
questão. Nós fazemos parte da história que estudamos, portanto o fato de hoje podermos
formular certas críticas precisa ser confrontado com a história na qual estamos inseridos.
Outra das advertências de Nietzsche é a de que, apesar de todo o dano causado à cultura
pela dominação da moral metafísico-religiosa, apenas “no âmbito dessa forma
essencialmente perigosa de existência humana, a sacerdotal, é que o homem se tornou um
animal interessante, apenas então a alma humana ganhou profundidade num sentido
superior, e tornou-se – e estas são as duas formas fundamentais da superioridade até
agora tida pelo homem sobre as outras bestas!...”.
23
A profundidade ganhou existência como consciência. Mas a história da consciência
confunde-se com a gênese da má-consciência. O mundo interno do indivíduo constituído
como a sua consciência passou a responder pela criação do conhecimento e a ser o
instrumento da atualização da moral. Na consciência encontraram-se o conhecimento
metafísico e a força dos valores morais. A consciência divinizada pela moral atua como um
observador onisciente e onipresente, de modo que o sujeito criado só pôde ser o sujeito
culpado. As outras bestas, que não têm consciência ou responsabilidade por seus atos,
estão, por isso, mais distantes de Deus. A superioridade do homem, sua espiritualização
canalizada para a manutenção dos preconceitos que garantem o valor da verdade unívoca e
eterna, é também o seu excesso de sofrimento como má-consciência ou culpa. A moral teria
então um duplo aspecto: por um lado, constituiria um estimulante para a vida, ainda que
envenenado, e, por outro, seria também uma conseqüência, a doença, o sintoma desse
remédio.
24
O duplo aspecto da história da moral teve sua emergência avassaladora no triunfo
sistemático da metafísica sobre quaisquer outros modos de interpretação do mundo. Por
23
GM, p. 25.
24
GM, p. 12.
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37
mais de dois mil anos, acreditou-se que o conhecimento do homem, do mundo e das coisas
seria algo tão valioso que não poderia ser uma mera interpretação. A verdade moral-
filosófica ocupou e vedou o lugar da emergência de outras interpretações. A verdade
metafísica – única, eterna e imutável –, incrustada entre os homens com força imensa,
tornou proibidas as práticas que a considerassem circunstancial e, portanto, substituível. Na
medida em que há algo como a essência das coisas ou o agente por detrás dos atos, a idéia
ou a coisa em si, fecha-se a possibilidade de se tomar o mundo e o conhecimento como
passíveis de interpretações diversas. As criações metafísicas, que mais não são do que uma
única construção, a construção de algo como a verdade, trazem em seu próprio bojo a
negação de si como construções. Em seu âmbito, jamais o pensamento poderá incluir em si
mesmo a possibilidade de ser superado ou de ser invadido por outra circunstância. Negando
a circunstância, recusando a localização da especificidade, o pensamento metafísico
assegurou sua permanência soberana e sua força de crença inquestionável.
Nietzsche afirmou que toda a filosofia que passa a acreditar em si mesma sofre do
impulso de criar o mundo à sua semelhança,
25
e desta afirmação deixamos em suspenso,
pelo menos, uma conseqüência e uma pergunta. A conseqüência é a de que há então
filosofias que passam a não acreditar em si mesmas. A pergunta é por que a filosofia
metafísica precisou criar e permanecer criando um mundo derivado da oposição de valores.
Nada disso seria tão problemático se pensamento e prática não aparecessem no
mundo humano como o mesmo e único ato. O pensamento congelado na manutenção das
crenças morais cerceou as diferenças das práticas humanas. Nossa civilização frutificou-se
por meio de muitas recusas e cerceamentos. O próprio termo civilização designa o tipo de
pensamento e prática de onde brota: é necessário que haja práticas e pensamentos excluídos
para que a civilização seja erigida como valor supremo.
Este problema do valor da compaixão e da moral da compaixão (...) à primeira vista parece
ser algo isolado, uma interrogação à parte; mas quem nesse ponto se detém, quem aqui
aprende a questionar, a este sucederá o mesmo que ocorreu a mim – uma perspectiva imensa
se abre para ele (...) – por fim, uma nova exigência se faz ouvir. Enunciemo-la, esta nova
exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores
deverá ser colocado em questão – para isso é necessário um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral
25
Cf. ABM, p. 15.
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38
como conseqüência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também
moral como causa, medicamento estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como
até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor desses ‘valores’ como dado,
como efetivo, como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou
hesitação em atribuir ao ‘bom’ valor mais elevado que ao ‘mau’ (...). E se o contrário fosse a
verdade? E se no ‘bom’ houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um
veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro?
(...) De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo
brilho e potência do tipo homem?
26
26
GM, p. 13.
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3. A genealogia
3.1. O método
O material sobre o qual se debruça o genealogista é, antes de mais nada, um recorte.
O genealogista é como que levado, em sua experiência, até o ponto de decidir tomar a
realidade histórica das produções culturais – o modo pelo qual elas encontram-se
documentadas – como uma escrita do passado feita na forma de hieróglifos.
Pois é óbvio que uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da moral: o
cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente havido, a longa,
quase indecifrável escrita hieroglífica do passado moral humano.
1
A história, para o genealogista, se confunde com o seu registro na cultura. Nietzsche
traça uma analogia entre este modo de registro e a escrita hieroglífica. Os hieróglifos são
explicitamente uma linguagem simbólica baseada na imagem. Mas, para nós, basta
considerá-los em sua característica mais marcante: eles só têm seu sentido completado no
momento em que seu leitor os interpreta. A linguagem hieroglífica guarda em sua dimensão
intrínseca o lugar fundamental da interpretação. Não há pretensão de que a escrita seja
autônoma em relação aos seus leitores, mas justo o contrário. O sistema de signos que
forma os hieróglifos é um sistema de organização do lugar da interpretação na linguagem.
Ao afirmar que a escrita do passado humano é uma “quase indecifrável escrita
hieroglífica”, Nietzsche nos indica que, para o genealogista interessado em aproximar-se da
história humana por um ângulo nunca antes assumido, trata-se agora de decifrar algo como
uma escrita. Sabemos do risco atual de cairmos no relativismo simplista ao afirmarmos que
estamos enfatizando o lugar e o papel da interpretação no pensamento que se pretende
rigoroso. Nietzsche já em seu tempo o conhecia. Por ora o deixaremos em segundo plano
para tentarmos formular o mais explicitamente possível o método genealógico utilizado e
1
GM, p. 13.
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40
teorizado por Nietzsche. No fim do capítulo, teremos nos encaminhado para algum ponto
menos suscetível à simplicidade de um relativismo.
A história deve ser interpretada como se interpretam os símbolos. Mais do que isso: a
história, sendo, ao mesmo tempo, o “realmente havido” e “a coisa documentada” é
constituída pela organização de interpretações. Esta perspectiva é elucidada por Foucault
em Nietzsche, Freud e Marx
2
, como um marco, ou como uma ferida deixada por Nietzsche,
assim como por Freud e por Marx, na história humana. Tomar a história como uma escrita
hieroglífica implica ler os símbolos já como interpretações. Um símbolo apenas existe em
relação a outro símbolo e nunca houve algum que fosse único e originário. Quando
Nietzsche interpreta palavras ou práticas, está interpretando uma rede de interpretações
onde ele próprio se insere.
O “realmente havido” é encontrado pela interpretação genealógica na “coisa
documentada” como uma interpretação. O que se aproxima mais da concepção de “fato”,
de “facticidade”, é a presença das interpretações ao longo da história dos homens. Essa
história, nos diz Nietzsche, não se apresenta com a docilidade que se poderia almejar. Os
símbolos, como organização de interpretações, não se oferecem pacificamente. Cada
interpretação precisa apoderar-se de outras violentamente para ganhar a luz da existência.
Esta luta não poderia gerar uma história que fosse linear, coerente e imediatamente
penetrável. A genealogia necessariamente leva em conta o modo não linear, não totalmente
dito como se documentam as coisas.
Este levar em conta diz respeito à prática do genealogista. Ele próprio lê a história a
partir de um certo lugar. A decifração que empreende é, sabidamente, interpretação. Aquilo
que o genealogista recupera dentre os documentos históricos é da mesma ordem de coisas
daquilo que criou os documentos: interpretações que se apoderaram de outras. O lugar do
intérprete faz parte da interpretação. É quase lógico que Nietzsche peça ao leitor de sua
obra que ele a leia do mesmo modo como Nietzsche a construiu – decifrando hieróglifos,
sendo convocado a se ver como intérprete e a se incluir nesse movimento de interpretação.
Bem cunhado e moldado, um aforismo não foi ainda ‘decifrado’, ao ser apenas lido: deve ter
início, então, a sua interpretação, para a qual se requer uma arte da interpretação. (...) É certo
que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em
2
Foucault, Nietzsche, Freud e Marx: Theatrum Philosophicum.
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41
nossos dias está bem esquecido (...) – para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não
um ‘homem moderno’: o ruminar...
3
O pedido de Nietzsche, que mais parece ser uma imposição, para que o seu leitor o
decifre como ele havia decifrado a história das interpretações que formam o passado da
moral nos remete a outro ponto do método genealógico. Não há separação entre conteúdo e
forma quando se está navegando pelos mesmos mares que nos constituem. Se Nietzsche
precisou usar a linguagem como hieróglifo, nós não devemos separá-lo daquilo que ele nos
conta. Esta é a posição básica do pesquisador da genealogia: até que as diferenciações
comecem a operar no decorrer da pesquisa, ele próprio faz parte de seu material.
Para permanecer sendo um método que leva em conta o lugar da interpretação e que
se serve dela como sua prática constante, infinitamente relançada, a genealogia tende a ser
um método de economia de princípios. As interpretações genealógicas são fruto do
processo de localização da questão a ser interpretada. Como o genealogista está colocado
em alguma posição frente ao seu material de estudo, ele necessitará localizar o combate de
interpretações para o qual se dirige. Não há como proliferarem princípios básicos que se
adequariam a qualquer fenômeno estudado. A redução de princípio permite que as
singularidades possam mais facilmente aparecer, por não precisarem adequar-se a um
excesso de teoria. Dentre os princípios “supérfluos” mais freqüentes, Nietzsche evidencia a
ânsia pela teleologia e, mais especificamente, pela teleologia manifesta na noção de auto-
conservação, que, sabemos, costuma agradar gregos e troianos:
Em suma: nisso, como em tudo, cuidado com os princípios teleológicos supérfluos! – um dos
quais é o impulso de autoconservação (nós o devemos à inconseqüência de Spinoza). Assim
pede o método, que deve ser essencialmente economia de princípios.”
4
A advertência contra o erro metodológico de se empregar exageradamente qualquer
teleologia nos aponta para o cuidado que Nietzsche tem ao pensar nesse princípio. Talvez
alguma teleologia tenha espaço em seu pensamento, talvez não se possa negar a
importância de o pensamento formular o princípio da teleologia e, talvez, haja o que ser
salvo desta formulação tão popular. Parece-nos que a questão da teleologia não pode ser
3
GM, p.14.
4
ABM, p. 20.
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42
resolvida com base simplesmente em um julgamento moral quanto ao que é lícito ou não
pensar. Não basta, para Nietzsche, que se conclua que a teleologia não existe, que não passa
de invenção de gente ingênua e ignorante da verdadeira realidade.
A questão da teleologia se parece com o problema dos juízos sintéticos a priori: perto
do fato de terem sido criados e de terem surtido efeito para o modelo de pensamento, a
pergunta por sua falsidade ou veracidade torna-se quase insignificante. Interessava a
Nietzsche pesquisar por que tais princípios foram necessários, uma pesquisa que não se
baliza pela referência à verdade única. Mas no caso da teleologia, Nietzsche deu um passo a
mais: depois de pensar e interpretar as causas da necessidade de sua existência como
interpretação do mundo em determinadas épocas, Nietzsche, ainda assim, não podia
abandoná-la de todo. Antes, operou uma elaboração do princípio. Se Nietzsche introduz um
princípio teleológico em seu pensamento não o faz com base em uma ingênua apreensão do
problema da teleologia.
Além da questão acerca do exagero de princípios teleológicos supérfluos, a passagem
acima traz à tona ainda dois outros assuntos que durante a obra de Nietzsche foram tratados
com bastante acuidade, as noções de impulso e de autoconservação, que serão abordadas
em outro momento da dissertação. Por ora, seguiremos o rastro da descrição de Nietzsche
sobre seu método.
Nietzsche interessa-se por interpretar os pensamentos construídos ao longo da
história em um terreno extramoral. Isso, num primeiro momento, quer dizer que suas
interpretações daquilo que lhe aparece como construções humanas não será julgado como
tendo direito ou não a existência. Se um pensamento foi construído e permaneceu, há nele
algo que, a princípio, interessa ser pensado. Por localizar-se nos limites dos domínios da
moral, o pensamento de Nietzsche não busca a lógica da refutação ou da validação de
alguma produção humana:
(...) que tenho eu a ver com refutações! – mas sim, como convém num espírito positivo, para
substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro.”
5
5
GM, p.10.
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43
Há até mesmo um positivismo que lhe interessa, o positivismo de poder substituir os
elementos da construção teórica em função do que pareça mais adequado ao material
pesquisado. Se o material é móvel, a teoria que lhe interpreta e modifica deve poder
modificar-se também de acordo com as mudanças decorrentes do próprio avanço da
pesquisa. É muito interessante a aproximação feita por Nietzsche entre o critério para a
substituição – desprezar noções que não se podem provar em prol de outras mais prováveis
– e a troca ocasional de “um erro por outro”. A própria idéia de prova encontra-se
deslocada de seu lugar metafísico.
O método empregado na pesquisa genealógica, este que lê o passado como uma
escrita hieroglífica a ser decifrada por meio da interpretação, corresponde às perguntas
feitas pelo investigador ao material coletado. O pesquisador não é levado a lançar-se em
direção à formulação de determinadas perguntas e à escolha de certo material por uma
consciência onisciente, mas por impulsos. Nesse primeiro momento da pesquisa, em que se
decide que objetos interessam ao conhecimento, não será um agente racional total o
responsável pela escolha daquilo que, para o avanço do conhecimento, faz-se necessário.
Os interesses continuam a ser o motor de arranque da pesquisa científica. A
diferença está em que estes interesses não são mais exclusivamente moralistas e que, em
determinado ponto da pesquisa, são elaborados para dar lugar a uma perspectiva crítica,
inclusive em relação aos próprios impulsos. O conhecimento tem início a partir do
movimento da “vontade”, ou libido, a necessidade afetiva, daquele que conhece. Apenas
depois de ter se deixado levar por ela é possível elaborá-la para dar espaço ao que pode ser
diferente dessa necessidade e mesmo pô-la em questão, se afastando. De qualquer modo, os
impulsos nunca serão de todo abandonados. A razão, mesmo que se modifique,
permanecerá sendo relacionada à vida dos impulsos, para não dizer que possivelmente é
apenas uma parte – importantíssima – dela.
Saber usar a maré. – Para os fins do conhecimento é preciso saber usar a corrente interna que
nos leva a uma coisa, e depois aquela que, após algum tempo, nos afasta da coisa.
6
6
HDH, p. 268.
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44
Os impulsos humanos, em alemão a palavra Triebe, a mesma utilizada por Freud,
localizam-se nos limites das dicotomias racionais metafísicas. Eles recortam e embaçam a
fronteira entre o que é próprio do corpo e o que constituiria algo como a mente, a alma, o
lugar da razão, e também percorrem o ponto em que indivíduo e cultura se constituem
como distintos e indissociáveis. Os impulsos não pertencem a nenhum dos lados da
questão. A noção de impulso tem a capacidade de romper e de deixar mais clara a ruptura
com a construção das dicotomias que, se algumas vezes nos ajudam a estabelecer categorias
de pensamento, freqüentemente nos impedem de avançar em nosso pensamento no sentido
de podermos pensar sob perspectivas diferentes daquela dominante. Neste trabalho, irá
interessar sobretudo a localização dos impulsos entre o indivíduo e a cultura.
Vistas de um ponto de vista mais elevado, gerações e épocas inteiras, quando surgem
infectadas por qualquer fanatismo moral, apresentam-se como esses intervalos de coerção e
jejum, durante os quais um impulso aprende a se curvar e rebaixar, mas também a se
purificar e aguçar.
7
A elaboração dos impulsos é social, ainda que aconteça também individualmente.
Uma possível analogia se dá com o modo pelo qual Saussure compreendeu o estado de uma
língua: ela só existe como tal na união de todos os indivíduos falantes, mas em cada um
deles está presente a estrutura da língua. Elaboração de impulsos e domínio de uma língua
significam trabalho, dispêndio de energia que transforma. O trabalho humano é, portanto,
em última análise, social. O método da genealogia, que funciona a partir do impulso que
leva à formulação da questão de interesse para o investigador, não pressupõe um
investigador isolado, o que seria um contrasenso. O pesquisador busca nas pesquisas
existentes o que nelas há de trabalho, o que puderam produzir e o que tiveram de silenciar,
ao mesmo tempo em que precisará deixar para outros a continuação do trabalho.
Em suma, desde que para mim se abriu essa perspectiva, tive razões para olhar em torno, em
busca de camaradas doutos, ousados e trabalhadores (ainda hoje olho).
8
7
ABM, p. 90.
8
GM, p. 13.
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45
3.2. História e interpretação
A perspectiva histórica na genealogia de Nietzsche é um desvio metodológico em
relação ao que ele chama de “sentido histórico”. O sentido histórico é a tendência moderna
de se encontrar linearidade e algum sentido definível aplicáveis a fenômenos da cultura,
como se se constituíssem sem dobras, sem camadas sobrepostas, sem pontos emaranhados.
Nietzsche detectou o exagero de sentido histórico como um dos mais importantes sintomas
de sua época, que é também a nossa. O sentido histórico torna qualquer diferença entre os
fenômenos culturais inócua, uma vez que o homem do sentido histórico aprendeu rápido
demais a saber que há diferenças e, desse modo, tornou-se impermeável aos seus efeitos.
Que a história, como memória dos acontecimentos, é necessária para a vida, não há
dúvidas. O problema apontado por Nietzsche é muito mais o problema da história como
ciência, ou, mais precisamente, da história como saber,o saber que não pôde se
desprender e se lançar no espaço aberto”
9
. Nietzsche afirma mais de uma vez que apenas
aquele que está profundamente tocado pelo presente e pela sua ação transformadora no
presente teria o direito de fazer história, o direito de manter a memória do passado para usá-
la não em atividades que apenas conservam e, por isso, envelhecem, mas para a ação em
direção ao futuro, naquilo que esta dimensão tem de novidade, de não conhecido e
cultivado.
Nietzsche volta ao passado pela pesquisa etimológica. As transformações ocorridas
na língua, nos signos lingüísticos, são a atualização das transformações de sentido, que são
sempre políticas. Nietzsche deixa claro que a pesquisa etimológica, com toda a
simplicidade que parece ter, é um recorte de objeto em que história – memória do passado –
e política – relações entre os agentes da cultura – se unem.
Descobri então que todas elas [as línguas] remetem à mesma transformação conceitual – que,
em toda parte, ‘nobre’, ‘aristocrático’, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual
necessariamente se desenvolveu o ‘bom’, no sentido de ‘espiritualmente nobre’,
‘aristocrático’, de ‘espiritualmente bem-nascido’, ‘espiritualmente privilegiado’: um
desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz ‘plebeu’, ‘comum’, ‘baixo’
transmutar-se finalmente em ‘ruim’.
10
9
SCI, p. 68.
10
GM, p. 20.
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A questão da história como saber que não alça vôo e que impede que se voe por
outros ares é também, podemos afirmar a partir da leitura da obra de Nietzsche, a questão
da origem, que desde há muito tempo é um tema privilegiado nos monumentos de cultura.
A história das mudanças dos signos lingüísticos mostra que houve a espiritualização dos
conceitos que designavam a origem social das pessoas, uma operação de cunho largamente
moral. A construção da moral e da filosofia relaciona-se com a questão da origem também
por seu viés político. Contudo justamente este viés, apresentado pela pesquisa etimológica
de Nietzsche, fica constantemente obscurecido pela história contada pelo discurso oficial
sobre o passado, enquanto aparece bem documentado pela história das marcas de ações
concretas, como a história das transformações sofridas pelos signos e conceitos.
Há uma dificuldade maior em se investigar a história da moral que se refere ao duplo
caráter da pergunta pela origem: a pergunta pela origem única e perfeita colocada e
respondida pela moral e a pergunta que se faz aquele que pretende perscrutar a história da
moral desde uma perspectiva extramoral, sem compromisso com a conservação. O
incremento de dificuldade está em que toda a história das interpretações morais, a história
hegemônica, se ocupou em manter na obscuridade a origem como questão. A história da
moral transformou sua principal questão em resposta. O esforço em desviar-se da questão
permaneceu ao apenas mudar a sua roupagem:
Esta me parece uma percepção essencial, no que toca a uma genealogia da moral; que tenha
surgido tão tarde deve-se ao efeito inibidor que no mundo moderno exerce o preconceito
democrático, no tocante a qualquer questão relativa às origens.
11
É interessante notar que, ao se ater ao tema da questão relativa às origens, Nietzsche
precisou tratar das interpretações acerca das finalidades, como se houvesse um arco
tensionado entre “a” origem e “a” finalidade, contra o qual e no qual a filosofia de
Nietzsche se desdobrasse. As interpretações que construíram, não sem esforço, a noção de
origem inicial, garantia e justificativa de todo o desenvolvimento da existência moralmente
digna ou decaída de algo, investiram, ao mesmo tempo, na crença na finalidade como
11
GM, p. 21.
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utilidade última e instância legitimadora do julgamento de qualquer prática humana. A
genealogia de Nietzsche opera contra este investimento. A pesquisa pela “gênese” de uma
construção cultural apresenta as finalidades como inseridas em uma história, a história das
lutas pela dominação das interpretações, que, quando trazida à luz, impõe uma ruptura na
identificação entre as supostas origem e utilidade final. Esta ruptura poderia ser
generalizada para qualquer pesquisa genealógica sem prejuízo do caso concreto.
Mas a ‘finalidade do direito’ é a última coisa a se empregar na história da gênese do direito:
pois não há princípio mais importante para toda ciência histórica do que este, que com tanto
esforço se conquistou, mas que também deveria estar realmente conquistado – o de que a
causa da gênese de uma coisa e sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um
sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente]; de que algo existente, que de algum
modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira
nova, transformado e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é
superior; de que todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorar-se, e
todo subjugar e assenhorar-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o ‘sentido’ e a
‘finalidade’ são necessariamente obscurecidos ou obliterados. Mesmo tendo-se compreendido
bem a utilidade de um órgão fisiológico (ou de uma instituição de direito, de um costume
social, de um uso político, de uma determinada forma nas artes ou no culto religioso), nada se
compreendeu acerca de sua gênese: por mais molesto e desagradável que isto soe aos ouvidos
dos mais velhos – pois de há muito se acreditava perceber no fim demonstrável, na utilidade
de uma coisa, uma forma, uma instituição, também a razão de sua gênese, o olho tendo sido
feito para ver, e a mão para pegar. Assim se imaginou o castigo como inventado para
castigar. Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de
poder se assenhorou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda
a história de uma ‘coisa’, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de
signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar
relacionadas entre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual.
Logo, o desenvolvimento de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus
em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido com um
dispêndio mínimo de forças –.
12
As interpretações dominantes se apoderam das práticas e lhes conferem sentido.
Foram dominantes as interpretações que fizeram das práticas já existentes um veículo para
a criação de uma memória cultural que garantiu o comportamento gregário dos homens.
Isto não quer dizer que desde sempre se interpretaram os procedimentos de um único
modo. Os procedimentos ganham espessura histórica na medida em que servem de palco
para a luta de interpretações distintas. Contudo, a certas interpretações foi concedida força
para cristalizarem-se e para zelarem pela cristalização.
12
GM, p.66.
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As interpretações cristalizadas nos aparecem como um sentido atribuído ao
procedimento, são condensadas em uma unidade de significado. O sentido atribuído ao
procedimento cria a ilusão de que a utilidade de determinado procedimento foi sempre a
mesma em todos os tempos. Os sentidos cristalizados forjam uma história coerente e sem
máculas, baseada no pressuposto de que se o procedimento desde há muito existe é porque
sempre houve a necessidade de sua utilidade. Tal pressuposto, além de se suprimir
qualquer nuance da história do procedimento em questão, trabalha na direção da
manutenção dos sentidos e da conservação das implicações políticas deles. (Quando
Nietzsche aborda o problema do sentido está, sem dúvida, no terreno da política, das
relações sociais).
Não parece ser arbitrária a escolha do castigo como objeto da investigação. Diz-nos
alguma coisa o fato de, sob o ponto de vista histórico, o castigo ter se apoderado das
práticas e de a análise nietzschiana esmiuçar o castigo não tanto como sentido, mas como
prática de se infligir dor e conseqüentemente de criar memória.
Agora pressuporemos, per analogiam [por analogia], conforme o cardinal ponto de vista
histórico, que o procedimento mesmo seja algo mais velho, anterior à sua utilização no
castigo, que este tenha sido introduzido, interpretado no procedimento (...) a história do
castigo até então, a história de sua utilização para os mais diversos fins, cristaliza-se afinal
em uma espécie de unidade que dificilmente se pode dissociar, que é dificilmente analisável
e, deve ser enfatizado, inteiramente indefinível. (Hoje é impossível dizer ao certo por que se
castiga: todos os conceitos em que um processo inteiro se condensa semioticamente se
subtraem à definição; definível é apenas aquilo que não tem história.)
13
Criar um tipo de memória contínua e persistente não é o motivo pelo qual certos
procedimentos receberam o sentido de castigo. Parece mais coerente com a pesquisa
genealógica afirmar que a dor sentida pelo corpo e não o sentido de castigo que poderia
portar acabou por constituir o que deveria ser gravado na memória e o que se deveria
esquecer. “Definível é apenas aquilo que não tem história”. Esta frase impactante e tão
redonda nos mantém na tensão de não fecharmos nós próprios um sentido único que acabe
por se tornar o nosso saber conservador acerca da cultura. A análise nietzschiana da
necessidade da história para a vida confere ao binômio memória-esquecimento o estatuto
de operação básica de construção do passado no presente. Operação que só pode funcionar
13
GM p.68.
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ao operar marcas concretas decorrentes das ações e interpretações pelas quais a cultura
passou. A história como história das marcas, cristalizadas em sentidos, é a história dos
emaranhados que escapam à definição, por estarem em constante mudança devido à sua
permanente relação com as interpretações do presente.
É bastante clara a posição de Nietzsche no que toca à relação do presente com a
história: a fim de se reduzirem as ilusões, ela só pode ser abordada desde um ponto de vista
que se compromete com suas implicações presentes. As interpretações recebem a força
para se imporem sobre as outras da repetição ou da intensidade de investimento com que
foram exercitadas e cultivadas. Elas são como registros da história, são os rastros deixado
pelo percurso emaranhado dos homens. A partir desse registro, se pode construir
interpretações acerca da pré-história do homem. Cada estado presente tem a pré-história
que merece, sem esquecermos, entretanto, que algumas generalizações serão possíveis e
mesmo necessárias.
A construção, tão enfatizada por Nietzsche, de uma pré-história em que o homem
teria vivido em rebanhos foi formulada a partir da análise da moral. Dessa análise,
Nietzsche delineou a preponderância das interpretações que marcam as ações de obedecer.
Essas interpretações, como registro das marcas, teriam se mantido fortes devido a sua
repetição constante: os homens têm em si de modo tão arraigado o imperativo de que
devem obedecer que podemos pensar, para efeitos da análise do presente, que antes do
imperativo ter sido introjetado, ele teria sido vivido. Apenas em um estado de rebanho
haveria tamanha necessidade de obediência. A pesquisa levou Nietzsche a deslocar a
questão dos caracteres inatos da ciência biológica positivista para a perspectiva histórica,
na qual o presente nos autoriza a reconhecer uma pré-história de repetição que se arraiga na
estrutura cultural e torna-se, em cada indivíduo, culturalmente inata, por assim dizer.
Na medida em que sempre, desde que existem homens, houve também rebanho de homens
(clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas), e sempre muitos que obedeceram, em
relação ao pequeno número dos que mandaram – considerando, portanto, que a obediência foi
até agora a coisa mais longamente exercitada e cultivada entre os homens, é justo supor que
via de regra é agora inata em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de
consciência formal que diz: “você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente se abster
daquilo”, em suma, “você deve”.
14
14
ABM, p. 97.
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50
A história como conhecimento constituído por interpretações e construções do
passado pode estar a serviço da promoção da vida ou de sua corrosão. A perspectiva
histórica implica que, ao podermos interpretar a cultura como devir sem télos, como tensão
de conflitos, ao podermos reinterpretar o passado e nos dirigirmos para o futuro, talvez
estejamos em condição de evitar que a civilização, de tão cristalizada e entorpecida,
produza violência em excesso.
15
3.3. A violência
O método genealógico, escreveu Nietzsche, toma aquilo que foi escrito como sintoma
do que foi até aqui silenciado. Os registros da cultura são como formações produtivas que
se edificam sobre um material de silêncio, que não pode manifestar-se às claras, enquanto,
ao mesmo tempo, marcam exatamente que há silêncios. Que silêncio seria este? Não
podemos mais nos dar o direito de supor que Nietzsche pretendia realizar uma
hermenêutica dos significados de sentido, que ele encontraria nas produções culturais a
concretização da crença de que a linguagem não diz o que se quereria dizer e que, portanto,
devemos sempre buscar algum outro sentido que não aquele apresentado na superfície.
Então, no que consiste o sintoma-silêncio no texto de Nietzsche?
A genealogia, ao interrogar-se sobre o valor dos valores, o valor da verdade, ao
investigar a gênese da moral como a construção mais eloqüente de uma cultura, deparou
com o fato de que esta cultura nunca havia podido ter o seu modo de pensamento
questionado até o fundo. A tábua de valores imiscuída no funcionamento do pensamento da
cultura que havia criado para si uma construção da magnitude da razão, sem ter sido nunca
questionada pelo pensamento, permanecia atuante como se fosse, em essência,
inquestionável. A moral e o modo de pensamento a ela correlato são, simplesmente,
transmitidos entre as gerações. Mais do que isso, a transmissão da moral e do pensamento
15
HDH, p. 170
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51
racional-metafísico garante o caráter de natureza inquestionável destas instituições. O modo
de transmissão da razão moralista é o modo da naturalização.
Estamos, explicitamente, no terreno da memória. Transmissão é transmissão de
algum tipo de memória. Se à genealogia interessa questionar o pensamento conferindo-lhe
o estatuto de produção cultural, então, necessariamente, este método estará lidando com a
produção de memória. A produção cultural de memória é, ao mesmo tempo, criação de
esquecimento, também no sentido de velamento, impedimento, repressão. Não é à toa que a
segunda dissertação de Genealogia da moral, intitulada “Culpa”, “má-consciência” e
coisas afins, apresenta um ensaio sobre práticas sociais de se infligir dor que,
historicamente, serviram como forma de gravação de memória. Ao remexer nas memórias
de uma cultura, a genealogia, obrigatoriamente, lança luz sobre as marcas vivas e
permanentemente nutridas da violência.
Ao genealogista importam as marcas que, ao mesmo tempo em que sustentam e
transmitem as memórias, não podem constituir a história como um sistema passível de
organização. Tais marcas da memória são marcas corporais, que se reconhecem nos
impulsos, sentimentos, pensamentos íntimos, desejos. A genealogia da moral chegou até o
ponto em que a violência empregada para a criação de uma certa memória gravou-se no
corpo de cada um. O próprio da gravação é permanecer, durar, se impor sobre outras
possibilidades, forçar a sua repetição. Mas no caso de uma gravação cujo repertório é a
justificativa para as operações de fixação e repetição, então a violência mostra-se, após a
análise genealógica, muito maior. Este é o caso da criação da memória da relação
metafísica-moral em nossa cultura.
O silêncio ouvido nas edificações da cultura corresponde ao excesso de violência
empregado no ato de criação dessas construções. A genealogia sempre apontará seu foco na
direção das práticas violentas com as quais se sustenta uma cultura baseada na conservação,
na imutabilidade, no impedimento de mudanças. O excesso de marcas de práticas violentas
representa o resquício da resistência oferecida no processo de construção da memória.
Houve tanto mais violência quanto mais os corpos se mostravam resistentes às gravações
de memória. Não teve ter sido e nem continua sendo pacífica a operação de manutenção de
uma cultura que depende da exclusão para constituir algo como a verdade.
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Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência
voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?
16
A metafísica e sua moral precisam dispor, e de fato dispõem, de mecanismos que
garantam a existência de uma memória incessante, sem lugar para o esquecimento. Há em
funcionamento na cultura um mecanismo que garante sempre a preservação do pensamento
que forma unidades e identidades, que pensa nos moldes de um sujeito responsável pelas
ações ao qual se pode atribuir predicados necessários e acidentais, por mais que
individualmente alguém se esforce por praticar outras possibilidades. A memória dessa
cultura precisa ser gravada incessantemente.
‘Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica
na memória’ – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da
terra.
17
A dor com que se deixa marcado nos corpos aquilo que deve ser lembrado e nunca
esquecido não ocorre de uma vez por todas. Para que os avatares da cultura metafísica
fiquem na memória, não se pode deixar às claras as provas dos crimes cometidos. Mais
violência é produzida para que o uso da violência nos pareça, quando muito, acidental,
circunstancial, mas sem qualquer importância filosófica.
Nietzsche, nessa segunda dissertação, delineia a pré-história como sendo o período
da necessidade de criação de uma memória e do uso das técnicas de dor, as
mnemotécnicas”, capazes de produzir o corpo que, marcado como corpo individual,
pertencente a um indivíduo, pode responder por seus atos tal qual um agente responsável.
Este agente, denominado então de “consciência”, tornou-se o “instinto dominante
18
. Parece
que, neste ponto, a questão exposta por Nietzsche é a de que a história do homem começa
no gesto de criação de um trabalho sobre si mesmo que traz em seu próprio bojo a
inauguração daquilo que não tem história dentro da história, como os instintos (Triebe) e a
dinâmica de dominação de um instinto sobre outros. Esta dinâmica de dominação exigia
16
50.
17
GM, p. 50.
18
GM p. 50.
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53
que algumas idéias – corporais, “vibrantes em cada músculo”
19
– se tornassem fixas, para
que cada corpo, agora transformado em individual, fosse dominado por elas.
(...) alguma idéias devem se tornar indeléveis, onipresentes, inesquecíveis, ‘fixas’, para que
todo o sistema nervoso e intelectual seja hipnotizado por essas ‘idéias fixas’.
20
Parece importante notar que o processo de criação da memória, logo da história, do
instinto dominante como consciência individual e dos impulsos disruptivos, “tudo isso tem
origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica”
21
. O
valor de memória agregado às práticas e ao sentimento de dor faz parte da dinâmica dos
instintos. A criação da consciência, que pode e deve ter a capacidade de responder por
todos os impulsos e ações do indivíduo, exigiu, esta é a nossa hipótese, mais violência do
que se, por acaso, fosse outra a dinâmica pulsional. O “fosse outra” é questão complexa. De
acordo com Nietzsche, é a partir do presente que talvez possamos criar outros passado e
futuro.
Chega-nos hoje a notícia trazida por Nietzsche de que o uso para o qual a dor fora
empregada muito freqüentemente, como instrumento de criação de memória, inaugurou-se
na mesma circunstância em que os impulsos e sua dinâmica passaram a existir. Nietzsche
percebeu a imbricação entre os impulsos e a dor em sua análise da organização das
religiões. Os deuses, tanto os dos antigos gregos quanto os do monoteísmo, justificam a
existência da dor porque, pasmemos ou não, gostam do espetáculo da dor. Se os deuses
gostam da dor, em um mundo antropomórfico, há para os homens uma ligação especial
entre a satisfação de seus impulsos e a dor. É por gostarem da dor que podem justificar a
vida ao justificarem o mal(-estar) que ela porta. Justificar a vida, fazê-la valer de uma vez
por todas, é poder dar-lhe um sentido completo, total, permanente, eterno, uma única
interpretação no lugar de a verdade. Nada mais convincente como unidade e identidade do
que a coesão criada pela coerção da dor, do mal-estar, por um lado, e do prazer, por outro.
Parece ser a dinâmica entre prazer e dor, por vezes imiscuídos um no outro, o lugar
corporal da criação de sentidos fechados.
19
GM, p. 49.
20
GM, p. 51.
21
GM, p. 51.
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54
O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas sua falta de sentido: mas nem para
o cristão, que interpretou o sofrimento introduzindo-lhe todo um mecanismo secreto de
salvação, nem para o ingênuo das eras antigas, que explicava todo o sofrimento em
consideração a espectadores ou a seus causadores, existia tal sofrimento sem sentido [grifo do
autor]. Para que o sofrimento oculto, não descoberto, não testemunhado, pudesse ser abolido
do mundo e honestamente negado [grifo meu], o homem se viu então praticamente obrigado
a inventar deuses e seres intermediários para todos os céus e abismos, algo, em suma, que
também vagueia no oculto, que também vê no escuro, e que não dispensa facilmente um
espetáculo interessante de dor. Foi com ajuda de tais invenções que a vida conseguiu então
realizar a arte em que sempre foi mestra: justificar a si mesma, justificar o seu ‘mal’.
22
A gênese da moral, e da religião, coincide com a gênese da memória como memória
de idéias fixas. A principal característica do intelecto criado como derivação da consciência
individual, senhora do livre-arbítrio, é a sua capacidade básica de transmutar as
interpretações circunstanciais em verdades eternas e imutáveis, a capacidade de torná-las
idéias fixas. Os valores morais, tanto em suas implicações práticas quanto filosóficas, são a
transformação, sempre violenta, de interpretações em verdades unívocas. Mas são,
simultaneamente, o registro da memória da criação, violenta, do lugar da verdade e de sua
ocupação, que se realiza por meio de práticas também violentas. São, por isso, a memória
de um povo, de uma cultura, que se baseia na permanência e na ampliação de suas
instituições.
A gênese do valor da verdade, que é a gênese do pensamento metafísico, da moral e
da religião, pôde desenvolver-se apenas ao operar incessantemente a exclusão de outros
modos de interpretação do mundo. Uma interpretação que necessite ocupar um lugar cuja
principal função é impedir a mudança precisa sufocar qualquer movimento que possa abalar
sua coerência. Uma interpretação que necessite fundamentalmente da identidade
permanente e da unidade, como o a verdade metafísica, não pode suportar qualquer desvio.
Ao não suportar o desvio, é que algo desviante aparece. No momento em que o diferente é
construído em oposição à verdade, ele torna-se uma ameaça que precisa ser
permanentemente excluída. Permanentemente porque, enquanto a verdade se mantiver
como tal, sempre haverá o desvio. O trabalho nunca estará completo.
No entanto, o trabalho de manutenção da exclusão implica algum nível de
ocultação. A verdade não pode ser maculada, ela deve fornecer aos homens o prazer de
22
GM, p. 58.
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serem bons ao lhe prestarem contas. As operações de ocultação da violência empregada na
criação do desvio e sua exclusão talvez sejam o “sofrimento oculto, não descoberto, não
testemunhado”. A ocultação da violência é ainda mais violenta: ela individualiza o corpo no
sentido mais sofrido, ela marca os corpos em suas intimidades, cria as intimidades que só
existem ao sofrerem, ao sofrerem singularmente sem que a singularidade possa ser
apropriada por aquele que sofre para, talvez, daí, poder dar-se um outro destino.
Esse mecanismo, em vez de ocultar a violência e nos tornar a todos bons, acaba por
proliferar a violência. O “sofrimento não testemunhado” precisa ser “honestamente
negado”: é a necessidade cultural de negarmos o sofrimento e de inventarmos mecanismos
para permanecermos honestos, mecanismos que tornam-se a prova da honestidade, seja
intelectual ou religiosa, mesmo quando imersos em violência, que cria dois excessos, o
excesso de violência e o excesso de silêncio. Dois excessos diretamente ligados à dinâmica
de dor e prazer, pela qual os indivíduos são enredados na trama da proliferação de sentido,
que zela pela manutenção da estrutura de pensamento metafísica.
Nas épocas tardias que podem se orgulhar de sua humanidade, permanece ainda tanto medo,
tanta superstição de medo frente ao ‘animal feroz e cruel’, o qual justamente as épocas mais
humanas se orgulham de haver subjugado, que mesmo verdades tangíveis continuam
inexpressas durante séculos, como que por um acordo, porque aparentemente poderiam
chamar à vida esse animal selvagem finalmente abatido. Talvez eu corra algum perigo, ao me
deixar escapar uma verdade assim: que outros a capturem novamente e a façam beber tanto
‘leite do pensamento devoto’, que ela fique inerte e esquecida no seu velho canto. – No
tocante à crueldade é preciso reconsiderar e abrir os olhos; é preciso finalmente aprender a
impaciência, para que deixem de circular, virtuosa e solenemente, erros gordos e imodestos
como, por exemplo, aqueles nutridos por filósofos antigos e novos a respeito da tragédia.
Quase tudo a que chamamos ‘cultura superior’ é baseado na espiritualização e no
aprofundamento da crueldade – eis a minha tese; esse ‘animal selvagem’ não foi abatido
absolutamente, ele vive e prospera, ele apenas – se divinizou. O que constitui a dolorosa
volúpia da tragédia é a crueldade; o que produz efeito agradável na chamada compaixão
trágica, e realmente em tudo sublime, até nos tremores supremos e mais que delicados da
metafísica, obtém sua doçura tão-só do ingrediente crueldade nele misturado. O que o
romano na arena, o cristão, nos êxtases da cruz, o espanhol, ante as fogueiras e as touradas, o
japonês de hoje, quando corre às tragédias, o operário de subúrbio parisiense, com saudade de
revoluções sangrentas, a wagneriana que, de vontade suspensa, ‘deixa-se’ tomar por Tristão e
Isolda – o que todos eles apreciam, e procuram beber com misterioso ardor, é a poção bem
temperada da grande Circe ‘crueldade’. Nisso devemos pôr de lado, naturalmente, a tola
psicologia de outrora, que da crueldade sabia dizer apenas que ela surge ante a visão do
sofrimento alheio: há também um gozo enorme, imensíssimo, no sofrimento próprio, no fazer
sofrer a si próprio – e sempre que o homem se deixa arrastar à autonegação no sentido
religioso, ou à automutilação, como entre os fenícios e astecas, ou à dessensualização,
descarnalização, compunção, às convulsões de penitência puritanas, à vivissecção de
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consciência e ao sacrifizio dell’intelletto pascaliano, ele é atraído e empurrado secretamente
por sua crueldade, por esses perigosos frêmitos da crueldade voltada contra ele mesmo. Por
fim se considere que mesmo o homem do conhecimento, ao obrigar seu espírito a conhecer,
contra o pendor do espírito e também com freqüência, os desejos de seu coração – isto é, a
dizer Não, onde ele gostaria de aprovar, amar, adorar –, atua como um artista e transfigurador
da crueldade; tomar as coisas de modo radical e profundo já é uma violação, um querer-
magoar a vontade fundamental do espírito, que incessantemente busca a aparência e a
superfície – em todo querer conhecer já existe uma gota de crueldade.
23
O “sofrimento sem sentido”, escreve Nietzsche, nunca existiu. Pode ser que, nesse
foco de sentido que é o sofrimento Nietzsche tenha escutado e desvelado uma brecha na
proliferação de sentidos, que não deve ser a possibilidade de, finalmente, se usar a
quantidade certa de violência para que possamos, então, viver feliz e harmonicamente, sem
violência.
“Em todo querer conhecer já existe uma gota de crueldade” – é isto com que lida o
genealogista. Se a genealogia não se esquiva do fato de investigar interpretações sendo do
mesmo modo interpretação, e se, portanto, inclui-se dentro da dinâmica de interpretações
existentes no mundo, então obedece à necessidade intrínseca a essa dinâmica que é a de
querer apoderar-se das outras interpretações. Apoderar-se é um movimento violento. Nesse
ponto não podemos ceder à ilusão de que existiria um tom de voz ou um modo de falar
capaz de eliminar a violência do apoderar-se. Há, talvez, essa é a nossa hipótese, um freio
para a proliferação de violência que se instala quando deixamos de ocultar a crueldade a
que estamos sujeitos.
O desvelamento da violência necessária ao conhecimento seria um saber?
Poderíamos, pela exposição do caráter de interpretação das construções, ficar quites com a
violência? O texto de Nietzsche nos impede de fazer aposta tão alta em nome do saber.
Aqui, desvelamento e exposição estão remetidos à perspectiva de que o destino da cultura
humana pode não estar de antemão escrito, de que pode haver plasticidade. Para tal, um
desbastamento do saber é necessário. No processo de desmonte dos mecanismos de
ocultação e exclusão nos quais o saber que construímos até hoje se esmerou, talvez possa
haver espaço para construções que não impliquem na hegemonia do saber como salvação
para a vida e seu mal. Não se quer dizer com isso que o saber deva ser abolido, ao
23
ABM, p. 135.
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contrário. Apenas a sua hegemonia, o seu caráter de crença e de tábua de salvação saem
muito abalados depois do contato com os textos de Nietzsche.
Nietzsche apresenta em sua obra uma transvaloração das produções culturais, que
atuam como registro da história da vigência da metafísica. Muito mais importante do que a
crítica à metafísica, que não cessa de levar bordoadas e parece se fortalecer com isso, ao
invés de enfraquecer-se, é o caminho traçado por Nietzsche de tomar a realidade que lhe
circunda sem moralizá-la. Não se pode julgar a vida, ou porque já estamos mortos, e
portanto fora dela o suficiente para nos calarmos para sempre, ou porque estamos de tal
modo dentro dela que não podemos ocupar a cadeira do juiz de onde a visão tudo
alcançaria. Se quisermos ser poéticos, muito mais provavelmente é a vida quem nos julga.
3.4. Vida como critério
Tudo o que existe faz parte da vida. Essa tautologia, por incrível que pareça, não é
dada, não é algo de que dispomos a qualquer instante, é conquistada na leitura da obra de
Nietzsche. Vivemos em um mundo em que nos acostumamos a julgar e a negar sem sequer
nos darmos conta disso. Mas sobre esse pano de fundo, há, no pensamento de Nietzsche, a
noção da vida como critério de análise das construções da cultura. Qual seria a diferença
entre a violência empregada pelas construções metafísicas e a violência própria ao martelo
da filosofia genealógica? Como escapar ao relativismo da proliferação de interpretações
sem apelar para o lugar da verdade? Ambas as questões aparecem nos textos de Nietzsche
relacionadas à vida e à perspectiva, própria à humanidade, de, enquanto se constrói,
interferir no curso das coisas.
O critério “vida” com o qual, poderíamos pensar, analisaríamos o valor de uma
construção, a sua dignidade e seu serviço para a humanidade, em vez de simplesmente
apaziguar as questões acima, também as torna mais complexas. Ao seguirmos o texto
nietzschiano, não podemos supor que a vida seja a vida em-si, que possamos conhecer a
essência da vida para, então, analisar nosso objeto. Apesar disso, Nietzsche também
escreve, em várias passagens, que a “essência” da vida teria a ver com um certo jogo das
interpretações que buscam, cada uma, dominar e expandir-se por sobre as outras, que a vida
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está ligada a impulsos, ao devir, à mudança. Nosso desafio é pensar sem retornar, com tais
palavras, ao estado de fixidez em que se encontra o pensamento metafísico.
Faz parte das instituições metafísicas a ênfase no caráter de adaptação que tem a
vida. Tanto os pensamentos quanto as ações adaptativas são valorizadas e estimuladas em
uma cultura tão fortemente baseada na moral que, mesmo quando ela deixa de ser a
instituição por excelência, mesmo quando perde a pompa de juíza de todas as outras, ainda
assim permanece atuando. Por essa perspectiva simplificante acerca da vida, perde-se de
vista tudo o que há de resistência, ou melhor, reprime-se o investimento em qualquer ato,
pensado ou executado, que possa desestabilizar os mecanismos de adaptação. Esta seria a
idiossincrasia democrática de nosso tempo: esquivar-se do pensamento sobre a dominação
e mascará-la.
Sob influência dessa idiossincrasia, colocou-se em primeiro plano a “adaptação”, ou seja,
uma atividade de segunda ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a vida como
uma adaptação interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas. Mas com isto se
desconhece a essência da vida, sua vontade de poder; com isto não se percebe a primazia
fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas,
interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a adaptação; com isto se
nega, no próprio organismo, o papel dominante dos mais altos funcionários, aqueles nos
quais a vontade de vida aparece ativa e conformadora.
24
A essência da vida só pode ser a vida que vivemos, não há de ser outra. Esta vida é
a da dinâmica de interpretações que querem se impor, em cujo bojo a metafísica, com sua
imposição de verdade absoluta, tornou-se dominante. Mas a dinâmica das “forças
espontâneas” criou-se no movimento de criação da moral, que necessariamente depende da
adaptação, por basear-se em princípios fixos e discriminatórios das prática.
– moral, entenda-se, como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o
fenômeno “vida”. –
25
Temos então que a moral, ao mesmo tempo em que tem vida e responde por ela,
também funciona como uma força que agrilhoa a dinâmica da vida. Se as interpretações
que não obedecem ao cânon metafísico não podem expandir-se, se são rapidamente
24
GM, p. 67.
25
ABM, p. 25.
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neutralizadas, tornadas inócuas, então uma parte importantíssima da vida humana está
sendo impedida de produzir seus efeitos.
Há interpretações que corroem e outras que promovem a vida. Isto se apresenta
inclusive no próprio ato de criação da obra de Nietzsche. O autor toma certas posições,
enfatiza algum ângulo da questão abordada em função do que considera que precisa ser dito
neste momento, como o martelo que precisa desbastar. Fosse outra a configuração de
forças, certamente seu discurso seria outro. Nietzsche escreve sempre a partir da
perspectiva em que se encontra em relação aos principais discursos em voga. Do modo
nietzschiano de fazer filosofia, alcançamos um passo no entendimento da noção de vida
como critério: quanto mais a interpretação constituir-se como perspectiva, quanto mais os
afetos presentes puderem recortar o objeto e abrir caminho para que a investigação atue
como martelo sobre este objeto, tanto menos se prenderá a vida em moldes pré-
estabelecidos. Quanto mais a interpretação for dirigida a um jogo de forças determinado e
localizado, no qual o intérprete ocupa alguma posição, mais se lançarão os dados para que
algum efeito novo, não catalogado, para que alguma mudança na posição das forças se
produza.
A cultura, cujos valores hegemônicos, analisados genealogicamente, mostram-se
cristalizados e em constante processo de ampliação da cristalização, percorre um caminho
de incremento progressivo da hegemonia. Hegemonia pressupõe homogeneidade, como
demonstrou a análise de Nietzsche. Nada disso seria um problema se não houvesse o mal-
estar, o cansaço do homem com o homem, os efeitos da repressão daquilo que,
necessariamente, não pode encaixar-se nos modelos a partir dos quais é criado como
oposição. Esta repressão excessiva e sempre ampliada é corrosão de vida.
O grande modelo que nos orienta é o que Nietzsche chama de “ideal ascético”,
levado a cabo pelo sacerdote ascético, o senhor da moral atual, esta moral cuja
peculiaridade é não apresentar-se como tal, mas persistir, desse modo, atuando. Este ideal,
por ter força de manter-se hegemônico, já por este fato implica na corrosão da vida. Mas,
além disso, sua hegemonia é conquistada pela negação da vida: o ideal é aquilo que se quer
alcançar, aquilo que nunca se tem. O ideal ascético, apoiado na invenção da profundidade,
resiste a tudo o que pareça superficial, precisa afastar de si qualquer possibilidade de
mudança, de irrupções, isto que insiste em permanecer existindo.
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Contudo, o ideal ascético é também um destino para o mal-estar. Há uma
duplicidade na construção do ideal ascético: ao mesmo tempo em que há esforço para
manter o estado em que o homem se encontra como se este estado fosse a “natureza
humana”, há no ideal ascético a presença do fastio, do cansaço em relação ao homem e a
conseqüente vontade de ser outro, ainda que este outro seja uma completa abstração. A
negação da mudança parece ser a tentativa de se criar um mundo em que se possa,
finalmente, estar em paz, livre dos conflitos que se querem esconder, mas que não cessam
de aparecer.
O querer ser outro do ideal ascético constrói a ilusão de uma perspectiva total, que
não mais seria perspectiva e que, portanto, fica impedida de tornar o ver um “ver-algo”. Ao
querer ver tudo e acreditar fazê-lo, o ideal ascético torna-se uma força conservadora, que
paralisa a dinâmica das interpretações, que impede uma nova ciência. A conservação de um
estado de coisas em que se precisa esconder e silenciar tanto incrementa o veneno que
gostaria de ter extirpado: o cansaço em relação ao homem torna-se mais e mais arraigado.
A luta do ideal ascético para ser outro é, por seu próprio mecanismo, uma luta perdida. Ela
apenas se sustenta porque capta para si as forças que preferem “querer o nada a nada
querer”.
Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal
ascético recebe a sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal,
mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e
da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio
– tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida,
uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma
vontade!... E para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda
querer o nada a nada querer...
26
O ideal ascético nasce com o mal-estar excessivo do homem, é uma tentativa de lhe
dar algum destino. O forte desejo de estar em outro lugar faz do sacerdote ascético “o
instrumento que deve trabalhar para a criação de condições mais propícias para o ser-aqui e
o ser-homem”. Mas, ao mesmo tempo, o destino para o mal-estar dado pelo sacerdote
ascético, que se põe a frente dos malogrados tal qual um pastor de rebanhos, acaba por
aumentar ainda mais o mal-estar. A operação de direcionamento para o mal-estar, ainda que
26
GM, p. 149.
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se dê no âmbito da vontade de conservação da vida, é corrosiva. A moral do ideal ascético,
que define e fixa aquilo que é “bom” como se fosse um princípio insubstituível, parece
portar “um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico,
mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro
27
.
Chegamos à questão do futuro. Nossa leitura de Nietzsche nos impede de subestimá-
la. Há nas interpretações genealógicas uma aposta na abertura de novos caminhos para o
futuro. Isto que parece ser cada vez mais vetado nas práticas humanas torna-se a seta para
qual as interpretações-martelo se dirigem. Cada interpretação elaborada desde uma certa
perspectiva, ajustada a um jogo de forças específico, cada localização do embate abre a
possibilidade de ocupação de outras posições para as forças envolvidas. As novas posições
talvez criem novas configurações e, com isso, algo como um futuro, diferente do presente,
possa ser construído. Talvez seja esta a plenitude da vida: talvez as interpretações que
abram espaços, que promovam uma redução das fixações possam liberar o fluxo da
dinâmica da vida congelado na operação de preferir “ainda querer o nada a nada querer”.
Tais mudanças de posição também teriam o poder de criar outro passado, outra pré-história,
que nos obrigasse de outro modo.
27
GM, p. 12.
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4. O progresso da razão
4.1. Recuperar os mortos
Recuando alguns degraus.- Um grau certamente elevado de educação é atingido quando o
homem vai além de conceitos e temores supersticiosos e religiosos, deixando de acreditar em
amáveis anjinhos e no pecado original, por exemplo, ou não mais se referindo à salvação das
almas: neste grau de libertação ele deve ainda, com um supremo esforço de reflexão, superar
a metafísica. Então se faz necessário, porém, um movimento para trás: em tais
representações ele tem de compreender a justificação histórica e igualmente a psicológica,
tem de reconhecer como se originou delas o maior avanço da humanidade, e como sem esse
movimento para trás nos privaríamos do melhor que a humanidade produziu até hoje. – No
tocante à metafísica filosófica, vejo cada vez mais homens que alcançaram o alvo negativo
(de que toda metafísica positiva é um erro), mas ainda poucos que se movem alguns degraus
para trás; pois devemos olhar a partir do último degrau da escada, mas não querer ficar sobre
ele. Os mais esclarecidos chegam somente ao ponto de se libertar da metafísica e lançar-lhe
um olhar de superioridade; ao passo que aqui também, como no hipódromo, é necessário
virar no final da pista.
1
Há ironia nesta passagem? Depois de lermos Nietzsche criticar o exagero de sentido
histórico – que obrigaria aquele que se põe a pensar a estar constantemente em um estado
de relativismo, no qual não se pode analisar uma construção, necessariamente histórica, sob
a pena de se estar sendo injusto –, a passagem acima parece apresentar uma armadilha para
tais historiadores que sentir-se-iam lisonjeados. No entanto, nossa aposta é de que há no
texto também uma volta sobre este modo de interpretá-lo. Nietzsche percorre o
“movimento para trás”, mas parece fazê-lo sem as prerrogativas do relativismo: não vai
buscar o avanço da humanidade na positividade dos monumentos da cultura, como se todos
eles se equivalessem. Ao revolver as ruínas do presente, torna esse movimento capaz de
abrir espaço para o avanço.
Não podemos concordar com as afirmações de que Nietzsche apenas construiu uma
inversão da metafísica, na qual tudo aquilo anteriormente valorizado tornar-se-ia agora a
própria figura do inferno, e vice-versa. Antes parece que tudo aquilo que Nietzsche analisa
criticamente, todas as operações e apostas metafísicas, são apropriadas como o material
1
HDH, p. 30.
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64
mesmo de onde se pode partir em direção a novas configurações. Sentido histórico como
relação com o passado e o futuro, vontade de ser outro como impulso de criação, destino
para o mal-estar, avanço da cultura, alargamento da razão: todos esses pilares da metafísica
são como que superados e apropriados de outro modo pelo pensamento de Nietzsche, que
não é constituído por material mais puro do que a metafísica. Nietzsche não esconde o
coelho na cartola para depois retirá-lo como que por mágica; o coelho já está lá mesmo, não
precisamos escondê-lo. A questão parece ser a de como retirá-lo e a de fazer o que com ele.
Se são as épocas mais violentas e difíceis as que mais produzem homens de exceção, é
porque eles se servem do mesmo material impuro.
Ilusão dos idealistas. – Os idealistas estão convencidos de que as causas a que servem são
essencialmente melhores que as outras causas do mundo, e não querem acreditar que a sua
causa necessita, para prosperar, exatamente do mesmo esterco malcheiroso que requerem
todos os demais empreendimentos humanos.
2
Nietzsche recupera as questões da filosofia metafísica e da religião, são esses mesmos
os mares por onde nada, não sem perigo. (Seu pensamento pode servir, e de fato muitas
vezes serve, a interpretações bastante conservadoras dessas questões.) O parágrafo de
número três do prólogo de Humano, demasiado humano descreve mitologicamente o início
da transformação de um espírito em “espírito livre”: sua primeira “vontade de livre
vontade” o faz cometer “um gesto e olhar profanador para trás”, “ele revolve o que
encontra encoberto, poupado por algum pudor: experimenta como se mostram as coisas
quando são reviradas”
3
. Esse que Nietzsche denomina “espírito livre”, às vezes com ironia,
às vezes sem, parece ser um mito relacionado ao trabalho do filósofo da genealogia. Levado
pelas paixões, o genealogista, como o espírito em seu tornar-se mais livre, sempre trabalha
no terreno daquilo que ama.
O trabalho de revolver os empreendimentos da cultura com olhar profanador só pôde
acontecer no período de enfraquecimento da crença moral-metafísica, quando ela
permanece agindo, porém a partir de sua decadência. Apenas nesse período pode haver a
questão de como puderam ter ocorrido as imagens metafísicas do mundo e de como
puderam ser tão distintas daquilo que inferem a fisiologia e a história construídas no terreno
2
HDH, p. 266.
3
HDH, p. 10.
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extramoral. A genealogia põe fim aos problemas puramente teóricos da metafísica ao
transformá-los em questões fisiológicas e históricas, isto é, ao transformá-las em marcas
nos corpos dos homens, onde se inclui o pensamento. Os postulados metafísicos, tais como
a essência do que seria o homem, estão, para Nietzsche, no “domínio da representação”
4
,
por dependerem da representação de que todo o mundo poderia ser conhecido e medido a
partir do homem sem qualquer questionamento sobre a criação desta imagem. Quando se
critica a criação de imagens, as perguntas saem do âmbito “puramente teórico”, para
abrirem e conquistarem um espaço extramoral, pós-metafísico.
Há constantemente pelo menos duas grandes armadilhas tanto para a compreensão
dos que tentam entender as idéias de Nietzsche quanto para a execução do trabalho
interpretativo de recuperação crítica da história genealógica das produções culturais
proposto pelo filósofo. A primeira armadilha consiste em se tomar a rápida resolução de
apostar que a crítica de Nietzsche à história da metafísica é como uma pregação contra a
razão, o saber, o conhecimento e, a partir daí, compilar uma série de deveres, imposições e
restrições supostamente ditados pelo filósofo. Apesar de facilmente desmontável pela
leitura da obra, essa interpretação mostra-se forte, capaz de portar em si muitas resistências.
Posto que nada do que o homem ‘conhece’ satisfaz seus desejos, antes os contradiz e
amedronta, que divina escapatória, poder buscar a culpa disso não no ‘desejar’, mas no
‘conhecer’!...
5
A segunda armadilha refere-se ao desejo de, ao se interpretar o passado, torná-lo apto
a adornar a posteridade com uma aura de nobreza. Nesse caso, perde-se o acesso ao “texto
– como jogo de forças em combate em cada momento histórico –, ao se fixá-lo a uma única
interpretação que possa ser transmitida de geração em geração. Os títulos de nobreza são
adquiridos dessa forma. Contudo, mais uma vez, não deve bastar-nos “conhecer” as
armadilhas, se nossos desejos permanecem atuantes...
Como sucedeu recentemente, em plena luz dos tempos modernos, com a Revolução Francesa,
essa farsa horrível e, observada de perto, desnecessária, na qual os espectadores nobres e
entusiastas de toda a Europa interpretaram à distância os seus próprios arrebatamentos e
indignações, por tanto tempo e tão apaixonadamente que o texto desapareceu sob a
4
HDH, p. 20.
5
GM, p. 144.
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interpretação: assim também uma posteridade nobre poderia mal-entender o passado inteiro,
e desse modo tornar suportável a visão dele. – Aliás: isto já não aconteceu? não fomos nós
mesmos essa ‘posteridade nobre’? E não foi precisamente agora que, na medida em que o
percebemos – isto acabou?
6
Porém, tampouco temos, nós que desejamos, o direito de não conhecer nada mais. Ao
contrário.
Então me recordei das palavras de Platão, e de imediato as senti no coração: Nada humano é
digno de grande seriedade; no entanto...
7
Mesmo repleto de críticas a Platão, Nietzsche o recorda sem ironia. O trabalho,
singelamente exposto na frase citada acima, de recuperar sob os escombros do passado
algo que mereça ser salvo no presente, requer grande seriedade, que entendo ter, aqui, um
sentido próximo ao de honestidade, consigo e com os outros. Além disso, depois que se
inventou a seriedade como algo próprio ao homem, algo que o distingue dos outros animais
e entre si, não se pode simplesmente fugir dela, por mais risonhos que estejamos.
O trabalho sério de Nietzsche é o de construir um passado que faça justiça às
marcas deixadas e que, por isso, aponte na direção de um futuro diferente do presente
vivido. Ambos passado e futuro são dimensões da perspectiva do presente. Tais
construções partem das específicas situações do presente e visam romper a violência dos
excessos de conservação. Não há outro material para a criação de novas possibilidades que
não seja a nossa própria história conflituosa.
4.2. A bandeira iluminista
Chamam atenção durante a leitura dos livros de Nietzsche as passagens em que trata
do período da Renascença. Em todas elas, Nietzsche designa esse período como um
momento da história em que relampejou a possibilidade de que o pensamento tomasse um
rumo distinto do aprofundamento religioso que se seguiu.
6
ABM, p. 43.
7
HDH, p. 299.
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67
O Renascimento italiano abrigava em si todas as forças positivas a que devemos a cultura
moderna: emancipação do pensamento, desprezo das autoridades, triunfo da educação sobre a
arrogância da linhagem, entusiasmo pela ciência e pelo passado científico da humanidade,
desgrilhoamento do indivíduo, flama da veracidade e aversão à aparência e ao puro efeito
(flama que ardeu numa legião de naturezas artísticas que exigiam de si, com elevada pureza
moral, a perfeição de suas obras e tão-somente a perfeição); sim, o Renascimento teve forças
positivas que até hoje não voltaram a ser tão poderosas em nossa cultura moderna. Foi a
Idade de Ouro deste milênio, apesar de todas as manchas e vícios.
8
Ainda que Nietzsche faça a crítica desse período, preenchido também por algumas
ingenuidades como a “bondade da natureza humana” de Rousseau, a necessidade de
Voltaire de tudo ordenar e purificar
9
e a “tábula rasa” de Locke
10
, nele encontra duas noções
que considera decisivas para o caminho da civilização, que teriam vindo à luz para em
seguida mergulhar nas trevas da recusa. A primeira é a ocupação do campo da religião por
uma razão não mais baseada na fé ou nas necessidades às quais responde a religião. A
segunda é a noção de progresso sem um télos definido teoricamente. Ambas as noções
foram de tal modo recusadas e soterradas após aparecerem em alguns pensadores que até
hoje permanecem enfraquecidas, desinvestidas.
Com relação à primeira noção, o Iluminismo foi combatido politicamente com
decisivo auxílio da Contra-Reforma da Igreja Católica.
11
O cristianismo tornou-se ainda
mais defensivo, opondo-se mais incisivamente à ciência, adiando seu desenvolvimento por
mais três séculos. Tal adiamento não ocorreu sem marcas. Passou-se a considerar que a
filosofia poderia fazer a transição entre a religião e a ciência, como um substituto da
religião, com o grande mérito de satisfazer às mesmas “necessidades humanas” saciadas
pela religião. Com isso, o pensamento, ainda que não assumidamente religioso, permaneceu
pacatamente no campo já conhecido da hierárquica fé religiosa, alimentado com suficientes
doses do “leite do pensamento devoto”.
12
O medo do “animal homem” tornou-se ainda maior: finalmente domada pelas
culturas ditas as mais humanas, a natureza ainda presente no homem deveria permanecer
domesticada. O aprofundamento espiritual da crueldade foi ainda mais incrementado, ela
8
HDH, p. 164.
9
HDH, p. 249.
10
ABM, p. 26.
11
HDH, p. 164.
12
ABM, p. 135
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68
“apenas – divinizou-se
”.
13
Mais precisamente, a relação de complementaridade entre aquilo
que seria a bestialidade carregada até pelo mais culto dos homens e a bestialidade
apresentada nas práticas sociais de crueldade aprofundou-se e espiritualizou-se, para, desse
modo, permanecer funcionando ainda com maior vigor. A superstição acerca da fera
humana portadora de necessidades tornou-se uma verdade inquestionável. Por um lado, a
religião e seu substituto filosófico, a metafísica, satisfariam a necessidade de docilizar o
que há de bestial na natureza humana e, por outro, satisfariam as necessidades mais
humanas dos homens. “Pensemos na miséria cristã da alma, no lamento sobre a corrupção
interior, na preocupação com a salvação”
14
, sempre o apelo de estar prestando um bem para
a conservação da sociedade.
O que não se pôde pensar foi o próprio estatuto dessas necessidades. A idéia de que a
filosofia poderia responder às necessidades religiosas tornou o pensamento reflexivo uma
atividade que apenas serviu à manutenção do pensamento religioso e das práticas a ele
ligadas. De acordo com Nietzsche, o esforço de localizar o pensamento filosófico no campo
da religião não o obriga a respeitar tais “necessidades”. Nietzsche parece interessado em
ocupar o campo com outras necessidades. As necessidades religiosas poderiam ser
enfraquecidas e eliminadas”, pois são aprendidas, “temporalmente limitadas”, e
conseqüentemente podem ser transformadas. O problema é que a transição da religião para
uma ciência não religiosa suscita resistências muito fortes.
Verdade. – Ninguém morre de verdades mortais atualmente: há antídotos demais.
15
O despontar da ciência no Renascimento é tomado por Nietzsche como um momento
de apogeu cultural. Muitas vezes o filósofo utiliza essa mesma nomenclatura para designar
o seu interesse: uma filosofia científica, isto é, extramoral, com bases distintas das bases da
religião. A ciência em oposição à fé continua a ser um mote para Nietzsche. Em outros
momentos, a ciência é criticada por Nietzsche por ainda sustentar-se sobre um positivismo
supersticioso, regado por interesses inconfessados. A crítica nietzschiana parece ter um
interesse de combate: no instante em que o Iluminismo foi soterrado pela neve novamente,
13
ABM, p. 135.
14
ABM, p. 35.
15
HDH, p. 271.
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69
certas idéias nunca mais puderam vir à baila seriamente, sob o risco de tornarem-se
bandeiras e, principalmente, bandeiras amareladas pelo tempo, esmaecidas. A crítica do
filósofo teria o propósito de dar vida às idéias reprimidas sem torná-las bandeiras, cuja
fixidez é asfixiante. A interpretação nietzschiana visa diminuir a incidência das repressões
no movimento do pensamento. O que não significa que não se possa chegar a pontos de
vista mais duráveis. Construir uma casa para si não é necessariamente enterrar-se em um
mausoléu por toda a eternidade.
16
O modo nietzschiano de articular a recuperação da emergência da ciência no
Iluminismo é, por si só, uma apreensão crítica deste período. Nietzsche tem a compreensão
de que um passado enterrado pode ressuscitar em uma construção presente, de que há um
movimento de retorno que permite, inclusive, que se estabeleça uma relação crítica com o
passado de modo que a próxima volta já não se dê do mesmo modo. É o que diz, por
exemplo, em relação à filosofia de Schopenhauer,
17
que teria trazido à tona a “percepção do
homem cristã e medieval” em sua filosofia dominada pelas “necessidades metafísicas”, de
tal modo que se poderia, naquele momento, ter acesso a um tipo de pensamento já
desatualizado e, então, lhe fazer justiça. Uma justiça que teria dois alvos: recuperar
criticamente isto que volta e, ao mesmo tempo, impedir que sempre se retorne aos mesmos
lugares de antes.
De vez em quando surgem espíritos ásperos, violentos, arrebatadores, e no entanto atrasados,
que conjuram novamente uma fase passada da humanidade: eles servem para provar que as
tendências novas a que se opõem não são ainda bastante fortes, que ainda lhes falta algo: de
outra maneira elas resistiriam mais a esses conjuradores. A Reforma de Lutero, por exemplo,
testemunha que em seu século todos os movimentos da liberdade de espírito eram ainda
incertos, frágeis, juvenis; a ciência ainda não podia levantar a cabeça. O Renascimento inteiro
aparece como uma primavera precoce, quase apagada novamente pela neve. (...) Somente
após esse grande êxito da justiça, somente após termos corrigido, num ponto tão essencial, a
concepção histórica que a era do Iluminismo trouxe consigo, poderemos de novo levar
adiante a bandeira do Iluminismo – a bandeira com os três nomes: Petrarca, Erasmo e
Voltaire. Da reação fizemos um progresso.
18
Chegamos à segunda noção fundamental para o Iluminismo recuperada por
Nietzsche, a noção de progresso. Ela aparece agora atrelada a uma decisão, a decisão pelo
16
HDH, p. 31.
17
HDH, p. 35.
18
HDH, p. 35.
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70
progresso e não mais a crença em sua necessidade. O progresso como crença no porvir é a
apropriação moderna da noção que poderia ter levado o pensamento a outras regiões mais
críticas e transformadoras. Na modernidade, a palavra progresso representa a esperança de
que, mesmo vivendo em um estado de precariedade, de exclusão e violência permanentes, a
sociedade pode chegar um dia à ausência de conflitos, à perfeita docilidade de todos os
cidadãos, agora fidedignamente iguais apesar de suas diferentes condições de vida. Tornou-
se quase impossível pensar no progresso da razão como algo de fato transformador.
Aparentemente esta terra foi conquistada pelas forças de conservação.
Contudo, quando se refere ao Iluminismo, Nietzsche compreende que ali a noção de
progresso ainda gozava de uma vitalidade, não havia ainda sucumbido às pressões que lhe
castigaram após o naufrágio da ciência. Tanto a Revolução francesa quanto às ingenuidades
dos iluministas são mencionadas pelo filósofo como graves episódios para a história do
pensamento por terem contribuído para a eliminação da possibilidade de o progresso da
razão significar mudanças no modo de pensar e, principalmente, no modo de se viver em
comunidade.
Uma ilusão na doutrina da subversão. – Há visionários políticos e sociais que com
eloqüência e fogosidade pedem a subversão de toda ordem, na crença de que logo em seguida
o mais altivo templo da bela humanidade se erguerá por si só. Nestes sonhos perigosos ainda
ecoa a superstição de Rousseau, que acredita numa miraculosa, primordial, mas, digamos,
soterrada bondade da natureza humana, e que culpa por esse soterramento as instituições da
cultura, na forma de sociedade, Estado, educação. Infelizmente aprendemos, com a história,
que toda subversão desse tipo traz a ressurreição das mais selvagens energias, dos terrores e
excessos das mais remotas épocas, há muito tempo sepultados: e que, portanto, uma
subversão pode ser fonte de energia numa humanidade cansada, mas nunca é organizadora,
arquiteta, artista, aperfeiçoadora da natureza humana. – Não foi a natureza moderada de
Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar e modificar, mas sim as apaixonadas tolices e
meias verdades de Rousseau que despertaram o espírito otimista da Revolução, contra o qual
eu grito: “Ecrasez l’infâme [Esmaguem o infame]!”. Graças a ele o espírito do Iluminismo e
da progressiva evolução foi por muito tempo afugentado: vejamos – cada qual dentro de si
se é possível chamá-lo de volta!
19
As “apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau”, que serviram de estímulo
para bandeiras que depois mostraram-se úteis para a celebração do funeral das
possibilidades de mudança germinadas no período iluminista, são também um destino para
o mal-estar, uma elaboração, segundo Nietzsche, capaz de transformar uma fraqueza em
19
HDH, p. 249.
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um belo fruto. Há nas tolices subversivas de Rousseau o trabalho de tornar um mal-estar
individual um pensamento que abarca a cultura. Parece haver na teoria de Rousseau uma
superação daquele interesse subjetivo ou de classe que nas filosofias metafísicas permanece
latente, como ponto cego. Nietzsche escuta em Rousseau um pensamento que, ao tentar dar
conta de sentimentos individuais, acaba por alcançar uma dimensão ampliada, encontra no
impulso individual as questões que sobrevivem na cultura
.
20
O desejo de livrar-se de um
mal-estar, sentido sempre como individual, pode servir de adubo para uma ação
possivelmente transformadora na cultura.
4.3. Razão e civilização
A consciência moral, o sentimento de obrigação pessoal, que o indivíduo porta em si
e que o distingue como indivíduo entre outros, é fruto, diz Nietzsche, das relações sociais
de poder. Na pesquisa acerca da gênese da má-consciência, Nietzsche chegou ao que seria
a forma básica da cultura: a relação entre credor e devedor. Forma que inclusive
constituiria a pré-história construída teoricamente a partir da história genealógica da moral
metafísica, uma história baseada no presente. Aliás, Nietzsche compreende a pré-história
como sempre presente ou prestes a retornar.
21
Não foi ainda encontrado um grau de civilização tão baixo que não exibisse algo dessa
relação. Estabelecer preços, medir valores, imaginar equivalências, trocar – isso ocupou de tal
maneira o mais antigo pensamento do homem, que num certo sentido constituiu o
pensamento: aí se cultivou a mais velha perspicácia, aí se poderia situar o primeiro impulso
do orgulho humano.(...) o homem designava-se como o ser que mede valores, valora e mede,
como o ‘animal-avaliador’.
22
A relação entre devedor e credor está presente na constituição da perspectiva a partir
da qual se interpreta. O próprio pensamento, isto que é tido como o distintivo do homem,
teria sido construído como derivação das perspectivas do devedor e do credor. Seu modo
20
HDH, p. 294.
21
GM, p. 60.
22
GM, p. 60.
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de funcionar inevitavelmente partiria da generalização dessas duas perspectivas. A própria
operação de generalização seria também resultado da relação entre quem tem crédito e
quem tem dívidas: por essas perspectivas tudo deveria ser avaliado, medido, comparado.
Podemos pensar as forças conservadoras das perspectivas e as forças que visam a alguma
transformação também como baseadas nessa relação, digamos, primordial entre os homens.
Mais uma vez: o pensamento só pôde se constituir desse modo por deixar marcas nos
corpos. Da relação entre crédito e dívida depreendeu-se a equivalência entre dano e dor.
Era necessário que a dívida pudesse ser paga com a dor do culpado, o que só faria sentido
se o credor pudesse dela retirar algum ganho. O prazer na dor, desenvolvido até o ponto de
tornar-se prazer na própria dor, algo tão íntimo e individual, tem sua raiz na relação em que
se baseiam as trocas sociais.
De onde retira sua força esta idéia antiqüíssima, profundamente arraigada, agora talvez
inerradicável, a idéia da equivalência entre dano e dor? Já revelei: na relação contratual entre
credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de ‘pessoas jurídicas’, e que por sua vez
remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico.
23
As “formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico” estão no cerne das
perspectivas de onde se criam os valores. A criação de valores, como criação de idéias,
parte do hábito de valorar mercadorias de troca que, por sua vez, foi estendido ao costume
de se valorar e medir uma pessoa pela outra. A operação racional de generalização enraíza-
se na noção de preço: o preço, por ser comum a todas as coisas, serviu de parâmetro para a
“objetividade” do pensamento. A objetividade permite que a perspectiva da qual brota seja
devidamente encoberta. Quem está em posição de valorar pode generalizar sua perspectiva
como se não se tratasse mais de perspectivas, mas de fatos quase “naturais”. Quando
nascemos, as coisas já receberam seus preços, só nos cabe entrar nesta lógica, nós
aprendemos a raciocinar.
O olho estava posicionado nessa perspectiva; (...), logo se chegou a grande generalização:
‘cada coisa tem seu preço, tudo pode ser pago’ – o mais velho e ingênuo cânon moral da
justiça, começo de toda ‘bondade’, toda ‘eqüidade’, toda ‘boa vontade’, toda ‘objetividade’
que existe na terra.
24
23
GM, p. 53.
24
GM, p. 60.
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Os atributos espirituais morais religiosos da profundidade humana, tanto os vícios
quanto as virtudes, são parte do desenvolvimento das relações de poder. O valor moral
imputado a cada pessoa funciona analogamente ao preço designado para cada coisa, ele é a
medida objetiva pela qual se designa um indivíduo em comparação com outros. A razão
criada concomitantemente à moral é a transposição desse estado para o pensamento. Ela
funciona como critério de distinção entre os homens. Seu modo de operar é excludente e
carrega a função de zelar pelo encobrimento das perspectivas. Opera como uma força
conservadora dessas perspectivas complementares do credor e do devedor.
As perspectivas são as mesmas pelas quais se julga cada indivíduo em relação à
comunidade, cuja unidade chama-se civilização, em oposição à barbárie. Cada indivíduo
está para a sociedade que o acolhe como o devedor está para o credor. O indivíduo que se
mostre perigoso para a organização social vigente deve pagar um preço para a comunidade
lesada, ou, melhor ainda, deve tornar-se inofensivo. Nietzsche observou um movimento
histórico em que cada vez mais a sociedade caminha na direção da última opção. A
sociedade que se supõe bem organizada e justa é também a guardiã da razão, ela é
“racional”. Aqueles que podem atender aos desígnios que a sociedade lhes impõe são
dotados de razão. Àqueles para quem esta tarefa encontra-se impedida, àqueles que de
antemão compõem o rol dos atributos antagônicos aos preceitos racionais e morais, está
reservada a posição de menos civilizados.
A idéia de o intelecto constituir-se como um mecanismo de conservação em uma
espécie fraca como a dos homens, apresentada em Verdade e mentira no sentido
extramoral, talvez nos imponha a questão de que, para sermos fiéis ao pensamento de
Nietzsche, não podemos sequer formular a hipótese de que a razão seria uma recompensa
para aqueles que se curvaram às exigências do funcionamento da comunidade civilizada,
isto é, moral. A hipótese estaria vetada pelo argumento de que, segundo Nietzsche, não se
poderia desatrelar a razão da civilização: só há razão porque a civilização é como é e vice-
versa, esta civilização depende da razão “atomista materialista”
25
, de modo que a
possibilidade de pensarmos a imbricação entre razão e civilização e, talvez encontrarmos
alguma brecha de mudança, significaria o absurdo de imaginarmos o fim de nossa
25
ABM, p. 19.
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civilização, como se a vida em comunidade dependesse necessariamente da razão
metafísica.
Tal posição restritiva, ainda que faça sentido, parece remeter-nos a uma perspectiva
que estica a questão até seus pontos absolutos, desprezando a linha tensa onde se
estabelece um conflito. Os pontos absolutos, a descrição do intelecto como meio de
conservação da espécie e da civilização como inexoravelmente dependente desta razão, são
como mitos, noções que, ao tratarem da questão sem suas nuances, abrem espaço para que
o pensamento crie ele próprio as nuances que podem arejar o mito.
Nietzsche diz serem inegáveis os benefícios que a sociedade oferece aos indivíduos,
por mais que hoje seja fácil esquecê-los. Em nome da conservação, os benefícios ganhos
com a vida em uma comunidade necessitaram, para existirem, da criação de uma memória
que permitiu aos homens fazerem promessas e se comprometerem. Dessa memória
chegou-se à razão como o atributo que distingue os homens, inclusive entre si. Era preciso
haver um meio de discriminar o que seria próprio e o que seria indigno da vida humana e,
concomitantemente, deveria haver um modo de defender a unidade da sociedade do que
parecesse pernicioso à sua conservação como tal.
As promessas que se fazem em prol da sociedade mascaram a violência necessária à
sua efetivação. As promessas são as verdades que cada indivíduo porta em si como sendo o
sustentáculo de sua existência, como se a relativização delas implicasse em sua destruição
pessoal. A razão traz em si o grande mérito de esconder a violência que jaz por baixo de
todas as coisas consideradas “boas”, isto é, inofensivas.
Com ajuda de tais imagens e procedimentos [os castigos], termina-se por reter na memória
cinco ou seis ‘não quero’, com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os
benefícios da sociedade – e realmente! com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se
finalmente à ‘razão’ – Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa
sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o
seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’!...
26
Para complicar ainda mais a tarefa de pensarmos na brecha da imbricação entre
razão e civilização, o que talvez nos permitisse imaginar com certo rigor a possibilidade de
outra razão e mesmo de outra civilização, Nietzsche nos lembra da importância da
26
GM, p. 52.
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linguagem para a transmissão das interpretações que nos constituem. A gramática, a
estrutura das línguas, desenvolve-se juntamente com o percurso histórico da moral e da
metafísica. O modo pelo qual a língua se efetiva impõe certas interpretações e interdita
outras possibilidades. Pela linguagem concreta, as falas das pessoas, a herança do passado é
transmitida inconscientemente. As ações humanas marcam a língua de modo que as marcas
se apresentam no momento em que a língua é concretizada nas falas e nas escritas. Sempre
que falamos ou escrevemos estamos lidando, ainda que sem sabermos bem, com o registro
da história que nos constitui, com toda a complexidade que porta o registro histórico.
A tese de Nietzsche, certamente apoiada por um lingüista como Saussure, é a de que,
se há parentesco lingüístico entre as línguas, logo as idéias filosóficas produzidas pelas
comunidades lingüísticas serão muito parecidas. As idéias, articuladas como sistemas de
idéias, serão tão semelhantes quanto forem as línguas utilizadas. Se as idéias aparecem em
uma articulação sistemática, como é o caso da filosofia, seu desenvolvimento parece ser,
por causa da estrutura da língua, de antemão determinado a seguir um certo
desenvolvimento e não outro. Este modo de as idéias existirem em uma cultura – como
bloco, sistemas e articulações precisas – implica que o seu desenvolvimento seja dominado
pelas formas de articulação já existentes no sistema da língua. O caráter inato das idéias
reside na anterioridade das articulações da linguagem em relação ao pensamento e nas
conseqüentes interdições e imposições de interpretações.
Onde há parentesco lingüístico é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática –
quero dizer, graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais –,
tudo esteja predisposto para uma evolução e uma seqüência similares dos sistemas
filosóficos: do mesmo modo que o caminho parece interditado a certas possibilidades de
interpretação do mundo.
27
A organização da civilização depende de tal “caráter inato” das idéias. É preciso
investimento constante na conservação mas, mesmo que o investimento seja diminuído,
não há como escapar de algum grau de conservação, garantido pela linguagem. Contudo, a
organização da civilização como a encontramos hoje parece carregar um excesso de
investimentos conservadores que incrementam a violência e a exclusão, de modo a pôr em
risco a própria civilização. Nietzsche às vezes parece espantado com a destruição
27
ABM, p. 26.
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engendrada pela civilização, quase como se fosse lícito pensar que a civilização existe com
a finalidade única de se manter e, com isso, aniquilar-se. Isto é um “pensamento mal-
humorado”.
28
Mesmo havendo a possibilidade de pensamentos mais bem-humorados,
Nietzsche chama nossa atenção para o excesso de conservadorismo em que nos
encontramos e para as suas implicações.
A necessidade de conservar o estado de coisas da cultura aparece como o ponto em
que o pensamento tem de curvar-se. A partir dele, o pensamento não pode mais avançar em
seu caminho crítico. Quando esbarra na sua servidão ao interesse da conservação, o
pensamento só tem uma direção: desenvolver ainda mais a crença de que as verdades são
verdades imutáveis e de que aquilo que não corresponde às verdades ou não existe, ainda
que exista, ou são desvios, doenças, degeneração, acidentes de percurso.
Mas respostas assim se acham em comédias, e é tempo, finalmente, de substituir a pergunta
kantiana, ‘como são possíveis juízos a priori?’, por uma outra pergunta: ‘por que é
necessária a crença em tais juízos?’ – isto é, de compreender que, para o fim da conservação
de seres como nós, é preciso acreditar que tais juízos são verdadeiros; com o que,
naturalmente, eles também poderiam ser falsos!
29
É preciso acreditar que o sentido da cultura é amestrar o animal homem e agir de
acordo com essa crença. Esse não é um juízo sintético a priori, mas é também uma
interpretação difundida como verdade, uma crença que se mostra necessária à preservação
do estado em que os homens se encontram na cultura. As interpretações que se prestam à
conservação precisam negar aquilo que diz respeito a mudanças, perecimento, fluxo,
sensibilidade, corpo. Apenas dar um sentido totalizante para a cultura já seria pôr-se em
posição de negação do devir, seria por si só um ato de represamento do fluxo de mudanças
que poderia advir dos movimentos na cultura sem finalidade determinada. Porém, ocorre
ainda um aprofundamento da retenção do fluxo de mudança quando o sentido totalizante
imposto à cultura tem conteúdo repressivo, como é o caso da “domestificação” do homem.
A domesticação do homem é tudo aquilo que nega irrupções inesperadas, sem
sentido, novas. A crença em uma “verdade” como essa define previamente aqueles
instintos que devem ser considerados os “instrumentos da cultura”, de modo que os
28
HDH, p. 283.
29
ABM, p.18.
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indivíduos que mais agem a partir desses instintos tornam-se os portadores, legitimados, do
bom destino para todos os civilizados.
Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como ‘verdade’, ou seja, que o sentido de
toda cultura é amestrar o animal de rapina ‘homem’, reduzi-lo a um animal manso e
civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e
ressentimento, (...) como os autênticos instrumentos da cultura; com o que, no entanto, não
se estaria dizendo que os seus portadores representem eles mesmos a cultura. O contrário é
que seria não apenas provável – não! Atualmente é palpável! Os portadores dos instintos
depressores e sedentos de desforra, os descendentes de toda escravatura européia e não
européia, de toda população pré-ariana especialmente – eles representam o retrocesso da
humanidade! Esses ‘instrumentos da cultura’ são uma vergonha para o homem, e na verdade
uma acusação, um argumento contrário à ‘cultura’!
30
O estado da cultura que acredita que a sociedade serve para domesticar a fera que
há no homem não pode ser um instrumento da “cultura”, diz Nietzsche. As aspas que
envolvem a palavra cultura designam a interpretação nietzschiana de que não há um
discurso único movendo-se na história. Os registros oficiais por vezes disfarçam as
contradições, como é o caso da história contada por Hesíodo, que opta por dividi-la em
eras diferentes, cada qual com suas características. Ao invés de pensarem que a distinção
está presente no mesmo momento histórico, que há em curso no mesmo tempo distintos
discursos, cujas contradições são contradições apenas se partimos da referência a um tipo
de racionalidade inflexível e idealista, os historiadores tendem a forjar uma história única.
Nietzsche, ao contrário, lança suas interpretações na direção de dar luz aos conflitos e
contradições. Daí sua construção da dupla pré-história de “bom” e “mau” ou “bom” e
“ruim”.
31
A “cultura” é feita de cerceamentos a determinados discursos e de estímulos a
outros, e não há um sentido que possa abarcar a cultura como um todo.
Há uma tremenda dificuldade em se pensar o que seriam então os “instrumentos da
cultura”. Quando se lança mão desta idéia, tem-se a necessidade de assumir um ponto de
vista que se queira absoluto, que creia ter a capacidade de dar conta da cultura como
cultura em-si. No caso de uma civilização cujo discurso hegemônico atribui o valor de
verdade à crença de que a cultura tem o sentido de domesticar os resquícios de animalidade
presentes nos homens, os “instrumentos da cultura” serão necessariamente identificados
30
GM, p. 33.
31
HDH, p. 51.
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aos impulsos de conservação e aos indivíduos seus representantes. Mas são justamente
esses indivíduos, sempre posicionados no mecanismo de “antes querer o nada a nada
querer”, que acabam por produzir nos homens cansaço, fadiga e atrofias, o desprezo do
homem pelo homem, como se apenas houvesse tais opções.
Como a cultura irá desenvolver-se com menos violência, e esta redução implica na
diminuição do mal-estar, se passa a funcionar a partir desse mecanismo, que, ainda que
vital, cerceia e violenta cada vez mais? Parece que este mecanismo precisa ser quebrado.
Tomá-lo como uma interpretação passível de substituição talvez seja o primeiro passo dado
por Nietzsche. A linguagem guarda um resto de maleabilidade, a civilização de barbárie
transformadora.
4.4. Esclarecimento e resistência
O que eu acho, o que eu busco –,
Já se encontrou em algum livro?
Queiram honrar em mim os tolos!
E aprender com este livro insano,
Como a razão chegou – “à razão”!
32
O epílogo de Humano, demasiado humano traz em sua última frase uma dupla
asserção. O livro, juntamente com Além do bem e do mal e Genealogia da moral, descreve
duas direções do movimento da razão. A primeira direção do movimento apresentada nas
obras de Nietzsche é a história da criação dos moldes metafísicos da razão, que
transformaram uma construção histórica, a razão, em uma faculdade natural humana, “a
razão”, aliás, a faculdade mais importante, a garantia da humanidade dos homens. Espero
ter elaborado este movimento de naturalização ao longo da dissertação. Agora nos interessa
a direção nietzschiana que aponta para a transformação do sentido naturalizado de razão
em uma “razão” crítica. A obra de Nietzsche aponta para o futuro, não se pode negá-lo. O
futuro nietzschiano parece relacionar-se com um desenvolvimento para a razão, até hoje
dentro dos moldes metafísicos, que a transforme radicalmente.
32
HDH, p. 309.
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A transformação está intrinsecamente relacionada à ampliação da capacidade crítica
do pensamento. O passo mais abrangente dado por Nietzsche, que lhe permitiu localizar-se
sobre outros parâmetros de pensamento, que não os tradicionalmente investidos, foi o
abandono da aposta em uma dimensão externa ao mundo das coisas e a conseqüente
elevação do estatuto da interpretação. Mesmo a verdade, encontra-se, no pensamento de
Nietzsche, no mundo das interpretações. A verdade é como se fosse uma interpretação que
organiza o mundo de forma coerente, que lhe confere um sentido único e total e que toma o
mundo onde se insere – o mundo dos discursos e das práticas – partir de um postulado de
verdade e não de interpretação, como se tanto os discursos quanto as práticas estivessem
comprometidos com uma dimensão de sentido exterior a eles próprios.
A organização (aparentemente) coerente do mundo cria a imagem de que ela é fruto
da imparcialidade, de que não se trata de uma produção que responde a certas necessidades
interpretativas. Em última análise, as interpretações que criam e ocupam o lugar da verdade
recusam-se a abarcar em si mesmas o lugar de seu intérprete. São interpretações que
apelam para a produção de regras e que sempre atuam no sentido de fortalecê-las. As
verdades são como regras gerais, generalizáveis a priori, isto é, generalizações que não são
o resultado de uma intervenção em uma situação concreta, mas que devem ser seguidas em
qualquer situação e que, por isso, têm a capacidade de moldar o nosso pensamento.
As interpretações genealógicas de Nietzsche justamente incidem sobre este arranjo
de produção de regras. Seu modo de martelar a verdade depende de duas tomadas de
posição. A primeira diz respeito à recusa de abrir espaço para a criação de regras. Toda a
genealogia se constrói em cada caso analisado. Cada situação que atrai a atenção do
genealogista é tomada como particular e formada por acidentes únicos. Simplesmente não
apelar para as regras já é caminhar no terreno das interpretações, em tudo o que ele tem de
explosivo. A segunda tomada de posição refere-se à direção das interpretações. As
interpretações têm a função de intervir em determinado jogo de forças. Intervir significa
aqui ser mais uma força a influenciar o desenvolvimento do problema analisado. Nenhum
“objeto” de estudo pode ser, para a genealogia, tomado como algo morto, estanque, que
não diz respeito ao presente. Com isso, a direção da interpretação sempre inclui a
localização do intérprete. Tanto ele quanto o objeto fazem parte da mesma história que
permanece em desenvolvimento constante. Uma interpretação que rompe com a verdade e
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com suas regras correlatas permite alguma intervenção do intérprete sobre o curso daquilo
que é atingido pela interpretação.
Perdoem esse velho filólogo, que não resiste à maldade de pôr o dedo sobre artes de
interpretações ruins; mas essas ‘leis da natureza’, de que vocês, físicos, falam tão
orgulhosamente – – existem apenas graças à sua interpretação e péssima ‘filologia’ – não são
uma realidade de fato, um ‘texto’, mas apenas uma arrumação e distorção de sentido
ingenuamente humanitária, com a qual vocês fazem boa concessão aos instintos democráticos
da alma moderna! ‘Igualdade geral perante a lei: nisso a natureza não é diferente nem está
melhor do que nós’- uma bela dissimulação, na qual mais uma vez se disfarça a hostilidade
plebéia a tudo o que é privilegiado e senhor de si, e igualmente um segundo e mais refinado
ateísmo. ‘Ni Dieu ni maître[Nem Deus, nem senhor] – assim querem vocês também: e por
isso ‘viva a lei natural!’ – não é verdade? Mas, como disse, isso é de interpretação, não texto,
e bem poderia vir alguém que, com intenção e arte de interpretação opostas, soubesse ler na
mesma natureza, tendo em vista os mesmo fenômenos, precisamente a imposição
tiranicamente impiedosa e inexorável de reivindicações de poder – um intérprete que lhes
colocasse diante dos olhos o caráter não excepcional e peremptório de toda ‘vontade de
poder’, em tal medida que quase toda palavra, inclusive a palavra ‘tirania’, por fim parecesse
imprópria, ou uma metáfora debilitante e moderadora – demasiado humana; e que, no
entanto, terminasse por afirmar sobre esse mundo o mesmo que vocês afirmam, isto é, que
ele tem um curso ‘necessário’ e ‘calculável’, mas não porque neles vigoram leis, e sim
porque faltam absolutamente as leis, e cada poder tira, a cada instante, suas últimas
conseqüências. Acontecendo de também isto ser apenas interpretação – e vocês se apressarão
em objetar isso, não? – bem, tanto melhor!
33
Neste ponto, podemos nos arriscar a uma primeira abordagem da controversa noção
nietzschiana de vontade de poder que nos permita prosseguir na elucidação do
desenvolvimento da razão no pensamento de Nietzsche. No trecho acima, Nietzsche aponta
a vontade de poder como sendo a dinâmica de avanço das interpretações umas sobre as
outras. A interpretação da natureza como a ação de poderes que tentam tirar a cada instante
as suas conseqüências pode ser cotejada com a idéia de que cada poder corresponde a uma
certa interpretação apresentada em uma prática específica. Cada poder corresponderia a
uma perspectiva de onde brota uma interpretação.
Este caminho de pensamento parece fazer sentido na obra de Nietzsche, e nos indica
desde já uma primeira elaboração de seu pensamento denominado “vontade de poder”. O
modo nietzschiano de interpretar e de incluir o lugar da interpretação em sua teoria parte da
elucidação da força violenta que o ato de interpretar porta necessariamente. A assunção de
que o pensamento da vontade de poder é uma interpretação apresenta o mundo como
33
ABM, p. 28.
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formado por lutas entre interpretações, em que se incluem as lutas por meio das quais a
verdade – isto que nega a perspectiva que interpreta – se impôs como tal.
A teoria da vontade de poder, como uma teoria que não se esquiva de seu caráter de
interpretação e que torna o mundo um emaranhado de interpretações, intervem nas
configurações das forças interpretativas de modo a torná-las passíveis de receberem novos
arranjos. Quando é dado ao lugar do intérprete o estatuto de influência sobre a
interpretação está se permitindo que haja intervenção no sentido da mudança. Além disso,
a localização do intérprete dentro da mesma dinâmica de forças interpretativas da qual faz
parte o fenômeno interpretado faz com que a sua intervenção se volte sobre si mesmo. O
próprio lugar do intérprete sai modificado.
Este é talvez o ponto mais importante de onde se pode esperar que a razão avance
sem prestar contas à metafísica, à moral e à religião. O avanço da razão para fora dos
moldes metafísicos não se restringe a uma luta de argumentos “racionais”. Aquilo que se
faz por hábito, por compulsória aceitação a uma realidade apresentada como verdadeira,
pode receber alguns argumentos racionais que o justifiquem. Tais argumentos podem,
inclusive, ser desbancados, mas a posição do indivíduo que age deste modo em relação ao
pensamento não será desbancada com os argumentos. A posição do intérprete que
permanece imutável apesar da falta de razão é uma posição de fé.
Mais tarde, já cristão e inglês, talvez tenha encontrado algumas razões em prol de seu hábito;
podemos desbancar essas razões, não o desbancaremos na sua posição. (...) Habituar-se a
princípios intelectuais sem razões é algo que chamamos de fé.
34
Nietzsche compreende o caminho de retorno da “razão – ‘à razão’” como as lutas
entre interpretações frutos de perspectivas, isto é, lutas nas quais o intérprete
necessariamente entra em questão. O desenvolvimento da razão que parte da naturalização
de seu molde moralista até direcionar-se para a explicitação de seu caráter de produção
cultural se desenrola também no ambiente da rede de interpretações existente, tanto quanto
o movimento de naturalização da razão. A diferença entre um percurso e o outro consiste
em que a naturalização recusou as marcas de seu desenvolvimento histórico e apresentou a
razão como algo pronto e acabado desde sempre e para todo o sempre.
34
HDH, p. 158.
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O movimento contrário à naturalização empreendido por Nietzsche mostra a razão
como completamente distinta da criação de hábitos. O avanço da razão depende de que ela
possa superar-se a si mesma constantemente. Para tanto, o intérprete age sobre si mesmo
contra seus próprios hábitos interpretativos. O movimento de superação da razão inclui o
esclarecimento das lutas entre interpretações que pretendem vir-a-ser, lutas que maculam o
lugar do intérprete e que fazem do próprio intérprete o campo de batalha onde ganham
vida.
A teoria da vontade de poder aponta para este esclarecimento. O esclarecimento da
existência de uma dinâmica de interpretações inequivocamente se posiciona contra a
produção de verdades do tipo metafísico, eternas e imutáveis. A noção da vontade de poder
como teoria que intervém nas práticas concretas de interpretação elucida, ao menos dentro
do campo da filosofia, o preconceito em que as interpretações que se apresentam como
verdade se refugiam para manterem-se sempre em posição de poder. O esclarecimento da
vontade de poder, como modo de existência das interpretações na cultura, localiza as lutas
atuantes nas criações da cultura. Apenas a partir da localização é que outras configurações
de força podem se dar.
A localização das forças diz respeito, evidentemente, às forças que atuam por meio
da ação do intérprete. A superação de uma crença apoiada em argumentos racionais
encontra no intérprete também uma resistência. A força da moral instalada pressiona o
intérprete a agir segundo seus critérios. O intérprete pertence ao mundo onde intervém, de
modo que, há nele, simultaneamente, as forças que pressionam pela mudança e também as
forças conservadoras. Qualquer transformação, qualquer mudança de posição frente às
crenças racionalizadas depende de que a resistência a ela seja incluída como mais uma
força em atuação.
As resistências morais a uma investigação não podem ser tomadas como critério para
sua invalidação. Ao contrário, o percurso extramoral do pensamento acontece devido à
detecção das resistências morais. Este esclarecimento serve de motor para que o
pensamento trilhe o caminho de superá-las. O problema que se coloca aqui é o de que a
superação das resistências não ocorre devido a uma decisão de um agente tal qual a
estrutura do “eu” que conhece. A própria existência de resistências no “coração do
investigador”
indica que uma unidade como o eu não dá conta do caminho do pensamento.
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A viagem pelo conhecimento que usa o esclarecimento das resistências como motor de
superação destrói a supremacia de uma organização do conhecimento como a estrutura do
“eu” que conhece.
Uma autêntica fisio-psicologia tem de lutar com resistências inconscientes no coração do
investigador, tem o ‘coração’ contra si: já uma teoria do condicionamento mútuo dos
impulsos ‘bons’ e ‘maus’ desperta, como uma mais sutil imoralidade, aversão e desgosto
numa consciência ainda forte e animada – e mais ainda uma teoria na qual os impulsos bons
derivem dos maus. Supondo, porém, que alguém tome os afetos de ódio, inveja, cupidez,
ânsia de domínio, como afetos que condicionam a vida, como algo que tem de estar presente,
por princípio e de modo essencial, na economia global da vida, e em conseqüência deve ser
realçado, se a vida é para ser realçada – esse alguém sofrerá com tal orientação do seu
julgamento como quem sofre de enjôo no mar. No entanto, mesmo essa hipótese está longe
de ser a mais dolorosa e mais estranha nesse desmesurado, quase inexplorado reino de
conhecimentos perigosos; e existe, de fato, uma centena de boas razões para que dele
mantenha distância todo aquele que – puder! Por outro lado, se o seu navio foi desviado até
esses confins, muito bem: Cerrem os dentes! Olhos abertos! Mão firme no leme! –
navegamos diretamente sobre a moral e além dela, sufocamos, esmagamos talvez nosso
próprio resto de moralidade, ao ousar fazer a viagem até lá – mas que importa nós!
35
A exclamação “que importa nós!” sugere que todo o investimento em construir um
terreno extramoral para a investigação do pensamento não está relacionado à estrutura
metafísica de conhecer que partia da noção de um eu e permanentemente a reforçava. O
investimento na intervenção no curso da razão indica que há em Nietzsche um interesse
acerca do avanço da razão. O avanço o interessa mesmo que signifique o fim da supremacia
e domínio do modo de pensar consciente, isto é, mesmo que o modo de pensar dominado
pelo saber organizado precise perecer.
A construção do saber sistematizado foi concomitante à criação de valores
inquestionáveis, foi simultânea à naturalização de produções culturais. O interesse de
Nietzsche é justamente questionar aquilo que foi posto para fora do pensamento por ser
considerado como dado. Há progresso no desenvolvimento da razão quando se pode
questionar a interpretação justo onde ela se reveste de dado, de efetividade.
O termo “progresso da razão”, no caso da filosofia de Nietzsche, não tem qualquer
comprometimento com o fortalecimento da idéia de que se poderia um dia, finalmente,
chegar ao conhecimento absoluto de todas as coisas, quando a razão teria meios de nada
mais deixar de misterioso e complexo sobre a Terra. A ingenuidade de Nietzsche por certo
35
ABM, p. 29.
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não se encontra nesse ponto. O “esclarecimento” que podemos encontrar no pensamento de
Nietzsche é, antes, a inclusão daquilo que outrora foi designado como oposto à razão e, por
isso, tornado alvo de repressão.
A necessidade do ilógico. – Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o
conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce muita coisa
boa. Ele se acha tão firmemente alojado nas paixões, na linguagem, na arte, na religião, em
tudo o que empresta valor à vida, que não podemos extraí-lo sem danificar
irremediavelmente essas belas coisas. Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar
que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente lógica; mas se
houvesse graus de aproximação a essa meta, o que não se haveria de perder nesse caminho!
Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é,
de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.
36
Nesse ponto, ainda nos cabe a questão acerca do interesse de Nietzsche no progresso
da razão e alguma elaboração dela. Por que permanecer pensando a razão, mesmo após a
análise genealógica ter trazido à tona toda a violência que se produziu em nome dela?
Parece que Nietzsche tem em vista o avanço civilizatório que se opera com o progresso da
razão. Parece que o filósofo se ocupa com algo que talvez hoje nos soe muito estranho aos
ouvidos: o avanço da civilização como avanço da cultura dos homens naquilo que todos
têm em comum, a sua humanidade. Nietzsche parece preservar o sentimento de que os
homens, por mais distintos que sejam, compartilham de uma mesma humanidade.
Ainda que a questão ultrapasse o escopo deste trabalho, é possível afirmar que a
filosofia de Nietzsche resgata a noção de “natureza humana” para falar justamente da
capacidade plástica que se verifica nas distintas culturas dos homens. A própria palavra
cultura é muitas vezes usada como sinônimo de civilização, a fim de romper com a
dicotomia entre civilização e barbárie. Nietzsche interessa-se pelo futuro da humanidade do
homem, naquilo que ela porta de capacidade de ser distinta, de transformar-se e de ser
múltipla. Esta capacidade seria o cerne do que ficou soterrado no desenvolvimento violento
da razão metafísica. Toda a pesquisa acerca da origem dos valores relaciona-se com a
perspectiva de um outro futuro para a civilização, um futuro em que as diferenças possam
erguer-se e em que a violência não se prolifere em excesso repetitivo, sempre sobre as
36
HDH, p. 38.
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mesmas forças. Nietzsche aponta para um futuro em que haja espaço para algo como “uma
civilização mais suave”.
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Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor ‘bom’ e ‘mau’? e que valor
têm eles? São indício de miséria ou promoveram até agora o crescimento do homem? Ou, ao
contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza,
seu futuro?”
38
37
HDH, p. 170.
38
GM, p. 9.
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5. Conclusão
Consolo de um progresso desesperado. – Nosso tempo dá a impressão de um estado interino;
as antigas concepções do mundo, as antigas culturas ainda existem parcialmente, as novas
não são ainda seguras e habituais, e portanto não possuem coesão e coerência. É como se
tudo se tornasse caótico, o antigo se perdesse, o novo nada valesse e ficasse cada vez mais
frágil. Mas assim ocorre com o soldado que aprende a marchar: por algum tempo ele é mais
inseguro e mais desajeitado do que antes, porque seus músculos são movidos ora pelo velho
sistema ora pelo novo, e nenhum deles pode declarar vitória. Nós vacilamos, mas é preciso
não se inquietar por causa disso, e não abandonar as novas aquisições. Além disso, não
podemos mais voltar ao antigo, já queimamos o barco; só nos resta ser corajosos, aconteça o
que acontecer. – Apenas andemos, apenas saiamos do lugar! Talvez nossos gestos apareçam
um dia como progresso; se não, que nos digam as palavras de Frederico, o Grande, a título de
consolo: Ah, mon cher Sulzer, vous ne connaissez pas assez cette race maudite, à laquelle
nous appartenons [ Ah, meu caro Sulzer, você não conhece o bastante essa raça maldita à
qual pertencemos.]
1
A perspectiva geral, por assim dizer, do pensamento de Nietzsche, explicitada no
fragmento acima, apresenta-se como uma aposta. Nietzsche parte de seu momento histórico
em direção à possibilidade de que um novo modo de pensar possa inaugurar-se a partir da
situação concreta em que vive. O novo modo de pensar não representa uma teleologia. Não
se pode saber ao certo que desdobramentos terá, já que, agora, o pensamento parece
aplicar-se em sua dimensão particular, sem produzir regras gerais. A questão da teleologia
como um princípio do funcionamento do pensamento até hoje experimentado recebe, na
obra de Nietzsche, amplitude e complexidade bastantes para escaparem para fora do limite
desta dissertação. Pudemos formular apenas que o princípio teleológico que postula um
objetivo anterior à experiência concreta é considerado por Nietzsche como um mecanismo
de conservação que concorre para a corrosão da vida dos homens. Mesmo a relação entre os
mecanismos de conservação, que Nietzsche observou como constituintes da história da
cultura dos homens, portanto intrínsecos à vida, e o processo de redução das
potencialidades da vida humana abre para o pensamento inúmeros caminhos que não
puderam ser desenvolvidos nos limites deste trabalho.
1
HDH, p. 171.
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As duas questões – a complexidade do pensamento teleológico e a relação entre
conservação e corrosão – fazem parte do campo de abrangência da noção nietzschiana de
vontade de poder. Com esta noção, Nietzsche introduziu em seu pensamento alguma
teleologia e retirou o caráter moralista e até então restrito do pensamento acerca do
progresso da civilização, no qual necessariamente se inclui a relação entre conservação e
corrosão. A teoria da vontade de poder confere ao mundo seu caráter de construção cultural
que se edifica no ambiente das práticas interpretativas e de seu registro na história
transmitida. O registro e a transmissão da história, assim como a construção da pré-história
a partir das interpretações do presente, em sua relação com a linguagem foram apenas
elucidados no percurso de pensamento dessa dissertação. Apesar de constituir questão
muito interessante, um estudo mais detalhado dela não fazia parte do escopo dessa
dissertação de mestrado.
A noção de vontade de poder funciona como um princípio teleológico complexo na
medida em que afirma que o desenvolvimento da história depende de que as interpretações
venham à luz devido ao investimento de força que recebem e, por isso, tendem a se impor
sobre outras interpretações. Cada interpretação, para constituir-se como tal, quer dominar:
este seria o seu télos. Transformar o princípio teleológico de pensamento na teoria da
vontade de poder o torna tão amplo que chega mesmo a escapar dos pressupostos da
teleologia tradicional. A asserção de que uma interpretação deseja se impor sobre outras
não permite que se crie qualquer regra a respeito do percurso do pensamento e da cultura ou
de seu fim absoluto. A teoria da vontade de poder insere o pensamento na prática de sempre
relançar a interpretação.
A dimensão extramoral do pensamento de Nietzsche obriga-o a tomar as produções
culturais como matéria de seu próprio solo. Nietzsche dá-se perfeitamente conta de sua
dívida em relação à história dos problemas que aborda e precisa incluí-las em seu novo
modo de pensar. Toda a crítica nietzschiana à história da filosofia deve-se à sua
necessidade de tomá-la como parte de seu próprio pensamento. A história não existe em
outra esfera fora do mundo, mas está presente no modo de funcionar das consciências. Esta
experiência de pensamento faz com que as interpretações que daí partem estejam sempre
agonizantes, no sentido de sempre precisarem voltar-se sobre sua perspectiva para superar
entraves a um novo caminho. O reconhecimento das resistências e sua inclusão como motor
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de pensamento abrem a razão para outras perspectivas distintas da fé. Nietzsche explicita
brutalmente que o conhecimento no qual se acredita, a fé no saber, não pode garantir o fim
do mal-estar que se sente individualmente, mas que é efeito do estado da cultura. A
imbricação entre o saber e a destinação para o mal-estar que se verifica na criação da má-
consciência e da culpa é outra questão que se apresenta no desenvolvimento desta
dissertação sem que possa aqui ser levada a elaborações de maior amplitude.
Neste trabalho, pudemos indicar que há um interesse de Nietzsche em encaminhar a
questão do mal-estar para fora do ambiente moralista e que tal encaminhamento justifica e
produz sua aposta na validade da discussão do problema da razão. Quando a razão baixa na
cabeça dos homens, isto é, quando a palavra razão passa a designar o ato de interpretar e
inclui nesse ato as resistências vividas por cada intérprete, ela torna-se parcial e decorrente
da posição do intérprete em relação à sua questão. A parcialidade da razão, que agora inclui
os impulsos que interpretam e não mais apenas a unidade do agente “Eu”, obriga o
intérprete, em sua fragmentação, a responder por sua posição. O intérprete de alguma
maneira precisa dar conta, em seus atos, dos impulsos que o levam a agir de tal maneira.
Este movimento de inclusão do que outrora era tido como irracional amplia a espectro da
razão, faz com que ela se torne mais crítica e mais capaz de debruçar-se sobre o novo, o
diferente.
A inclusão do lugar do intérprete faz dele um agente da cultura que pode então
intervir, não mais apenas reproduzir. O lugar de Nietzsche na história do pensamento o
obrigou a questionar em sua filosofia essa história dentro do âmbito do destino da cultura.
O pensamento em Nietzsche não é mais uma esfera isolada, mas um campo de onde partem
intervenções. A mudança no modo de pensar corresponde a mudanças no modo de agir.
Com seu método de pesquisa, a genealogia, Nietzsche conseguiu transportar o leitor para a
falta de limite nítido entre a dimensão do pensamento e a da prática. Quando o pensamento
torna-se essencialmente interpretação, as práticas ganham novo colorido. Nietzsche fez a
aposta de que as práticas não são necessidades intocáveis e que sua unidade é uma
interpretação que esconde meandros de sua história enquanto ainda guarda marcas desses
emaranhados. Essa aposta permitiu que se pudesse escutar toda a violência necessária às
práticas de conservação das forças em determinada configuração e à restrição do
pensamento ao âmbito da fé, daquilo que não muda e nem permite mudanças.
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O embaçamento do limite entre pensamento e ação pode ser observado nesse trabalho
quando se aproximam os desenvolvimentos apresentados no primeiro e no terceiro
capítulos. O primeiro analisa a criação da noção de “Ser” como tendo partido da idéia de
“eu” que, depois de generalizada, habitou todas as coisas. Desta generalização pôde
desenvolver-se o conhecimento filosófico, tudo pôde ser conhecido. O terceiro capítulo
examina a criação do conhecimento pelo viés da prática. O mecanismo de generalização
teria advindo da relação cultural mais básica, entre o devedor e o credor. Apenas porque
todas as coisas deveriam receber seu valor de troca é que também as pessoas poderiam ser
comparadas e desse modo, comparando-se tudo, o conhecimento ganhou hegemonia em
relação a outras formas de pensar. A generalização do pensamento, por este prisma, seria a
conseqüência de que as perspectivas de valoração mais básicas, nas quais todos os homens
de algum modo participam, puderam ser generalizadas. As duas perspectivas,
evidentemente, recebem forças distintas. Apesar de coexistirem, obedecem a uma
hierarquia: quem tem mais força cria os valores hegemônicos. A existência dessas
perspectivas co-dependentes instaura a hegemonia do saber que se pretende absoluto.
A história da razão ou, mais precisamente, a história da naturalização da razão
mostra-se concomitante à história da moral. O procedimento excludente da moral e da
razão metafísicas separou, criou uma barreira para o esclarecimento da necessária relação
entre teoria e prática que, por sua vez, funcionou como uma resistência, como uma estaca
que muitas vezes efetivou na prática tal separação. Localizo o tipo de filosofia de Nietzsche
como sendo do mesmo estatuto de uma intervenção prática. A intervenção de Nietzsche na
história da filosofia direciona-se para a redução da violência empregada quando se pensa e
age ao modo da exclusão sistemática daquilo que representa uma inadequação ao que
pregam as verdades totalizantes, mas que são produtos da hegemonia dessas mesmas
verdades.
A crítica de Nietzsche à filosofia e às ciências metafísicas deve-se também à sua
compreensão de que cada pensador não atua isolado, de que é preciso encontrar os outros
trabalhadores que, mesmo caminhando em direções diferentes, tratam das mesmas questões
e compõem juntos a história do problema. Por um lado, é bastante clara para Nietzsche sua
dívida em relação à história e aos homens que nela atuaram, por outro, isto não retira o
caráter de ruptura que lhe é próprio.
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O trabalho de pesquisa realizado para a confecção desta dissertação abriu-me ainda
uma outra questão que não pôde ser incorporada a este trabalho. Pode-se ler na obra de
Nietzsche a tensão presente na relação entre a civilização e o indivíduo. A abordagem do
filósofo sobre esta questão indica que há em seu pensamento uma aposta no indivíduo
como agente de mudança. O indivíduo aparece na filosofia de Nietzsche como uma
produção cultural que porta em si os conflitos da cultura e que sente o mal-estar deles
decorrente. Por ser o portador, pode também tornar-se uma força disruptiva. A aposta no
indivíduo é a aposta na possibilidade de que os conflitos e impulsos sentidos como
particulares alcancem uma dimensão coletiva. Esta aposta apresenta-se também na forma
pela qual Nietzsche dá à luz seus pensamentos. O trabalho de Nietzsche coloca ao leitor a
responsabilidade de continuá-lo.
A eficácia do incompleto. – Assim como as figuram em relevo fazem muito efeito sobre a
imaginação por estarem como que a ponto de sair da parede e subitamente se deterem,
inibidas por algo: assim também a apresentação incompleta, como um relevo, de um
pensamento, de toda uma filosofia, é às vezes mais eficaz que a apresentação exaustiva:
deixa-se mais a fazer para quem observa, ele é incitado a continuar elaborando o que lhe
aparece tão fortemente lavrado em luz e sobra, e pensá-lo até o fim e superar ele mesmo o
obstáculo que até então impedia o desprendimento completo.
116
116
HDH, p. 132.
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