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serem bons ao lhe prestarem contas. As operações de ocultação da violência empregada na
criação do desvio e sua exclusão talvez sejam o “sofrimento oculto, não descoberto, não
testemunhado”. A ocultação da violência é ainda mais violenta: ela individualiza o corpo no
sentido mais sofrido, ela marca os corpos em suas intimidades, cria as intimidades que só
existem ao sofrerem, ao sofrerem singularmente sem que a singularidade possa ser
apropriada por aquele que sofre para, talvez, daí, poder dar-se um outro destino.
Esse mecanismo, em vez de ocultar a violência e nos tornar a todos bons, acaba por
proliferar a violência. O “sofrimento não testemunhado” precisa ser “honestamente
negado”: é a necessidade cultural de negarmos o sofrimento e de inventarmos mecanismos
para permanecermos honestos, mecanismos que tornam-se a prova da honestidade, seja
intelectual ou religiosa, mesmo quando imersos em violência, que cria dois excessos, o
excesso de violência e o excesso de silêncio. Dois excessos diretamente ligados à dinâmica
de dor e prazer, pela qual os indivíduos são enredados na trama da proliferação de sentido,
que zela pela manutenção da estrutura de pensamento metafísica.
Nas épocas tardias que podem se orgulhar de sua humanidade, permanece ainda tanto medo,
tanta superstição de medo frente ao ‘animal feroz e cruel’, o qual justamente as épocas mais
humanas se orgulham de haver subjugado, que mesmo verdades tangíveis continuam
inexpressas durante séculos, como que por um acordo, porque aparentemente poderiam
chamar à vida esse animal selvagem finalmente abatido. Talvez eu corra algum perigo, ao me
deixar escapar uma verdade assim: que outros a capturem novamente e a façam beber tanto
‘leite do pensamento devoto’, que ela fique inerte e esquecida no seu velho canto. – No
tocante à crueldade é preciso reconsiderar e abrir os olhos; é preciso finalmente aprender a
impaciência, para que deixem de circular, virtuosa e solenemente, erros gordos e imodestos
como, por exemplo, aqueles nutridos por filósofos antigos e novos a respeito da tragédia.
Quase tudo a que chamamos ‘cultura superior’ é baseado na espiritualização e no
aprofundamento da crueldade – eis a minha tese; esse ‘animal selvagem’ não foi abatido
absolutamente, ele vive e prospera, ele apenas – se divinizou. O que constitui a dolorosa
volúpia da tragédia é a crueldade; o que produz efeito agradável na chamada compaixão
trágica, e realmente em tudo sublime, até nos tremores supremos e mais que delicados da
metafísica, obtém sua doçura tão-só do ingrediente crueldade nele misturado. O que o
romano na arena, o cristão, nos êxtases da cruz, o espanhol, ante as fogueiras e as touradas, o
japonês de hoje, quando corre às tragédias, o operário de subúrbio parisiense, com saudade de
revoluções sangrentas, a wagneriana que, de vontade suspensa, ‘deixa-se’ tomar por Tristão e
Isolda – o que todos eles apreciam, e procuram beber com misterioso ardor, é a poção bem
temperada da grande Circe ‘crueldade’. Nisso devemos pôr de lado, naturalmente, a tola
psicologia de outrora, que da crueldade sabia dizer apenas que ela surge ante a visão do
sofrimento alheio: há também um gozo enorme, imensíssimo, no sofrimento próprio, no fazer
sofrer a si próprio – e sempre que o homem se deixa arrastar à autonegação no sentido
religioso, ou à automutilação, como entre os fenícios e astecas, ou à dessensualização,
descarnalização, compunção, às convulsões de penitência puritanas, à vivissecção de
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