![](bg1e.jpg)
de forma latente e obscura, o início de toda a ampla questão que, anos mais tarde,
envolveria a relação entre ser e linguagem. O sentido dilatado que a hermenêutica ganharia
no pensamento de Heidegger teria sido profundamente marcado por aquele que esta
recebera antes em Dilthey que, por sua vez, já havia tomado a palavra com o significado
que lhe conferira Schleiermacher, como a arte de compreender, interpretar e julgar textos
de outrem, de um modo geral. O passo dado por Heidegger consistiu em fazer com que o
ato de “interpretar” ultrapassasse o âmbito estrito do texto e avançasse sobre um outro
domínio: o da própria existência fática. A hermenêutica, no sentido que agora lhe era
conferido, identificava-se a um “trazer à tona”, a um “resgatar” pela compreensão – e
interpretação – de todo o processo de manifestação ( do deixar manifestar-se ) do ser dos
entes; era o ato mesmo de deixá-lo aparecer, iluminar-se. A estreita ligação que se
estabeleceu, a partir daí, entre a hermenêutica e os fenômenos, ou aquilo que se manifesta,
se impôs como conseqüência natural deste processo, fazendo com que a fenomenologia e a
hermenêutica funcionassem como um único e mesmo método de auto-compreensão da
existência a partir de seu caráter necessariamente fático. Segundo Heidegger, a
fenomenologia do Dasein seria ela mesma uma hermenêutica no sentido original da
palavra.
15
Benedito Nunes, em sua obra Hermenêutica e poesia: o pensamento poético,
resume de forma clara esta situação:
No mesmo momento em que estabelece como objeto da investigação filosófica a faktische
Leben [ a vida fática ], Heidegger caracterizou-a como hermenêutica fenomenológica da facticidade,
ou seja, do Dasein (...).
O objeto da filosofia seria, então, o Dasein humano, interrogado em seu caráter de ser. (...)
A hermenêutica teria por função tornar acessível esse caráter ou, por assim dizer, o Wie, o “como” do
Dasein, em seu ser, ou, por outras palavras, a compreensão do ser que lhe é inerente. Daí a
interpretabilidade do Dasein como um pressuposto. Interpretar significa explicitar a compreensão
subjacente. Mas a explicitação dá-se numa escala fenomenológica mediante o trabalho – e o trabalho
do método – que consiste em fazer com que este ente, o Dasein, se mostre por si mesmo. (...)
Então, não se trata mais de uma hermenêutica como Kunstlehre, como arte de interpretar,
mas daquilo que lhe dá fundamento, e que, no entanto, melhor compreendemos através desta arte de
interpretar. Segundo vimos, a interpretação, em Dilthey, é um conceito epistemológico nas ciências
históricas ou hermenêuticas, tendo por base, como objeto de conhecimento próprio, um sujeito
soberano. Mas é justamente essa soberania do sujeito que é retirada da noção de Dasein. Este, que
neutraliza a relação sujeito-objeto da Teoria do Conhecimento, é ( recorrendo-se à imagem de
Schlegel, que considero indispensável ) o intérprete in media res ( “a filosofia, como a poesia épica,
começa no meio, in media res” ). Ao contrário do que Husserl pretendeu, a filosofia jamais pode
15
HEIDEGGER, Martin – Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer Verlag, 1957, p.37, doravante referido
como SZ. Foi também aqui utilizada a versão em português: Ser e Tempo, tradução de Márcia de Sá
Cavalcante, Petrópolis, Editora Vozes, 1997,vol.1, p.68, doravante referido como ST.