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Francisco José Dias de Moraes
DO ADMIRAR-SE AO ADMIRAR:
O problema do nou=j em Aristóteles
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filo-
sofia e Ciências Sociais da UFRJ como requisito parcial para a obtenção do título de doutor
em Filosofia
Orientador: Prof. Dr. Gilvan Fogel
Rio de Janeiro, março de 2006.
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Francisco José Dias de Moraes
DO ADMIRAR-SE AO ADMIRAR:
O Problema do nou=j em Aristóteles
Tese apresentada por Francisco José Dias de Moraes ao Programa de Pós-graduação em
filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação do Prof. Dr. Gilvan
Fogel, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor.
Banca examinadora:
Prof. Dr. Gilvan Fogel (orientador) – UFRJ
Prof. Dr. Emmanuel Carneiro Leão – UFRJ
Prof. Dr. Fernando Santoro – UFRJ
Prof. Drª Márcia Cavalcante Schuback – Södertörns University College
Prof. Drª Izabela Aquino Bocayuva – UERJ
Prof. Drª Carla Francalanci – UFES
Prof. Dr. Claudio Oliveira – UFF
Rio de Janeiro, de 2006.
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3
A meus pais
4
Agradeço, muito especialmente,
A meu orientador Gilvan Fogel;
Aos membros da banca examinadora, meus professores e amigos, Emmanuel Carneiro Le-
ão, Márcia Schuback, Fernando Santoro e Izabela Bocayuva;
Ao professor e amigo Guy Van de Beuque, presente na ausência;
Aos amigos Claudio Marcelo, Rômulo Pizzolante, Leonardo Mees, Cristina Amorim, Flá-
vio Pimentel, Amle Albernaz, Marcos Sinésio, Afonso Henrique e Róbson Cordeiro;
Ao amigo e irmão, Alexandre Moraes;
A meus queridos alunos Ísis, Felipe e Carol;
A minhas irmãs, Ana Paula e Mariana;
À Cristiane, minha mulher.
5
Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.”
João Guimarães Rosa
6
RESUMO
O presente trabalho se empenha em colocar o problema do pensamento a
partir de Aristóteles. O pensamento ou a percepção, que é como nós decidimos tra-
duzir o nou=j aristotélico, é certamente um desempenho humano, mas não é a partir
de si mesmo que o homem pensa e pode pensar. Não é o homem que dispõe do
pensamento como de uma faculdade já disponível; o pensamento é que reivindica o
homem para a sua humanidade essencial. O pensamento é, para Aristóteles, o divi-
no no homem. É vivendo segundo o que nele há de divino e sobre-humano que o
homem vem a ser aquele que ele está destinado a ser. Pensando, o homem se encar-
rega do real, daquilo que o solicita, e, ao mesmo tempo, livra-se para a sua própria
humanidade, para a sua própria “obra”. O que se pretendeu mostrar, ao longo desta
tese, é que pensar significa, antes de mais nada, uma certa disponibilidade por in-
termédio da qual o homem se confia e se entrega ao real pela força da admiração.
7
ABSTRACT
The purpose of this work is to raise the problem of thought from Aristotles
onwards. Thought or perception, that is how we have decided to translate the Aris-
totelian nou=j, is certainly a human performance, but it’s not from himself that man
thinks and can think. Man does not have thought at his own disposal, as a faculty al-
ready available. It is thought what demands man for his essential humanity. Thought
is, for Aristotle, the divine in man. It is by living according to the divine and over-
human that exist in him that man turns out to be the one he is destined to be. Think-
ing, man is in charge of the real, of what requests him, and at the same time gets
free for his own humanity, for his own «work». Throughout this thesis, our intention
was to show that thinking means, before everything, a certain availability through
what man delegates and gives himself to the real by the force of admiration.
8
SUMÁRIO
Introdução...............................................................................................................10
Capítulo I
Filosofia: saber não-demonstrativo dos primeiros princípios
1.1 “Vidência” e evidência.......................................................................................20
1.2 Evidência e demonstração............................................................................... 29
1.3 A filosofia, saber não-demonstrativo.................................................................35
1.4 O princípio de não-contradição enquanto posse originária..............................41
1.5 A demonstração do princípio de não-contradição............................................44
1.6 Unidade e unicidade do significar.................................................................... 52
1.7 A percepção dos simples..................................................................................59
1.8 A determinação do significado “essencial” de ou)si/a.......................................63
Capítulo 2
A percepção e as possibilidades extremas da existência
2.1 O saber da experiência.....................................................................................68
2.2 A totalidade da experiência...............................................................................75
2.3 As virtudes éticas e dianoéticas........................................................................81
2.4 As virtudes dianoéticas.....................................................................................88
2.5 A distinção entre prudência, arte e ciência...................................................... 95
2.6 A percepção como acesso aos princípios das ciências..................................100
2.7 A sabedoria e a livre consideração do princípio.............................................102
2.8 A consideração do princípio característica da prudência...............................109
2.9 Sabedoria e prudência: modalidades da percepção do que extremo............116
9
Capítulo 3
Atividade teórica e felicidade
3.1 A natureza desejante do homem....................................................................130
3.2 O prazer, bem supremo..................................................................................134
3.3 A atividade do prazer......................................................................................141
3.4 As diversas atividade e seus prazeres inerentes............................................145
3.5 A atividade em si mesma prazerosa do qewrei=n...........................................150
3.6 A suspensão da vida de ação como condição para a vida teórica.................156
Capítulo 4
Atividade teórica e atividade sensível
4.1 A subordinação da prudência à sabedoria.....................................................162
4.2 A singularidade do conhecimento...................................................................166
4.3 A filosofia, exercício de aprender....................................................................169
4.4 A impassibilidade sensível e inteligível...........................................................177
4.5 O caráter “consciente” da percepção..............................................................183
4.6 A imaginação, o sentido da distância.............................................................186
4.7 A receptividade inteligível: o nou=j da alma.....................................................194
4.8 A postulação ou teoria dos dois intelectos......................................................197
4.9 A recepção pela tradição da teoria dos dois intelectos...................................208
Conclusão.............................................................................................................221
Bibliografia............................................................................................................225
10
Introdução
O “pensável” é o que dá a pensar. A partir de si
mesmo, ele nos fala de modo tal que nós nos vol-
tamos para ele – e, na verdade, pensando. “O
pensável” de modo algum é proposto por nós. Ele
jamais se funda no fato de que o representamos.
“O pensável” dá a pensar. Ele dá o que ele tem
em si. Ele tem o que ele próprio é. O que maxi-
mamente a partir de si mesmo dá a pensar – o
que mais cabe pensar cuidadosamente – deve
mostrar-se no fato de ainda não pensarmos.”
(M. Heidegger, “O que quer dizer pensar?”)
Para saber, temos de passar pelo aprender. Ninguém pode saber coisa alguma sem
antes tê-la aprendido. Mas aprender não é apenas um percurso até o saber. Com o saber, o
aprender não se interrompe, mas, antes, propriamente, se inaugura. Não é para deixarmos
de aprender que nos empenhamos em saber, pois este nada mais é do que um seguir apren-
dendo. Se é assim, não teríamos de saber previamente o que é saber para somente então e
de verdade aprender? Afinal, se nada soubéssemos do saber como poderíamos nos empe-
nhar corretamente em aprender? Há, de fato, um círculo entre saber e aprender, o qual não
se pode simplesmente deslindar. Esse círculo, mais do que uma simples perplexidade, foi a
aporia que impulsionou o pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles e também o terreno
comum de suas disputas com os sofistas. É destes, aliás, a famosa formulação apresentada
por Platão no Mênon, e que mais tarde será retomada e discutida por Aristóteles no livro IX
de sua Metafísica, que é aproximadamente a seguinte: “para buscarmos algo devemos antes
saber o que seja esse algo, pois do contrário não saberíamos sequer por onde procurá-lo,
mas se já sabemos isso, como e para que ainda o buscaríamos?” São, a bem dizer, tentativas
de “solucionar” esse impasse: o “sei que nada sei” socrático, a “teoria da reminiscência”
platônica, e, por fim, o par “du/namij-e)ne/rgeia” de Aristóteles.
Mas por que começarmos a introdução a uma tese que trata do problema do nou=j em
Aristóteles com uma digressão acerca de saber e aprender? Assim fazemos porque, para
nós, é nesse espaço de jogo que tal problema se coloca originalmente. Quer nos parecer,
inclusive, que fora desse âmbito o nou=j não compareceria ele mesmo como um problema,
mas tão somente como uma peça no interior de um quebra-cabeças. Assim sendo, podemos
dizer que é desde o ponto de partida do saber e aprender que a problemática do nou=j se des-
11
taca propriamente como tal. Esse é o nosso pressuposto. Porém, em que consiste tal pro-
blemática?
Aristóteles apresenta o
nou=j como um saber, mas como um saber que instaura a pró-
pria possibilidade de aprender. Trata-se mesmo de um saber aprender, que não pode ser ele
próprio ensinado. O
nou=j é, para ele, o saber dos princípios, um saber de tipo não demons-
trativo. Dos princípios nós não sabemos como sabemos de algo que estivesse simplesmente
aí diante de nós. Os princípios não são dados ou evidências que possam estar atuantes inde-
pendentemente de todo e qualquer saber, de toda e qualquer correspondência de nossa par-
te. Sendo os princípios o que nos possibilita aprender o que quer que seja, esse saber dos
princípios já deve estar presente e atuante, desde o início, em todos os nossos empenhos e
desempenhos de aprender. Trata-se, entretanto, de um saber que, de início, não é explícito.
De início, nós propriamente nunca sabemos que sabemos dos princípios. Como podemos
saber de algo sem saber que sabemos disso? Esse saber é como um contar com alguma coi-
sa sem propriamente dar-se conta desse fato. Contamos, por exemplo, com uma cadeira,
sentamo-nos nela freqüentemente, sem que precisemos, para tanto, a cada momento, ter
presente que ela é um instrumento para esse fim. E mesmo sabendo explicitamente disso,
esse saber torna-se perfeitamente dispensável para sentarmo-nos nela. O que se passa com o
saber dos princípios é algo semelhante a isso, com a diferença nada pequena de que, nesse
último caso, não é indiferente saber explicitamente que sabemos deles. Também o saber
explicitamente dos princípios é de natureza diversa daquele, sendo um tomar para si ou um
admitir que abre uma situação inteiramente diversa. Como tomada em consideração explíci-
ta dos princípios, o nou=j é aqui um “aprender” que não se destina propriamente a um saber
que o cumulasse. Trata-se antes de um salto, o qual inaugura uma possibilidade que, mes-
mo presente e atuante, permanecia encoberta enquanto possibilidade. Como admissão, o
nou=j é a guarda e proteção de um saber que, diferentemente do saber usar alguma coisa, não
está dado como saber.
Mesmo explícito, esse saber dos princípios nunca é um de que se pudesse simples-
mente dispor. Não somos nós que temos esse saber, mas antes dever-se-ia dizer que é ele
que nos tem. Por isso, não é possível a ninguém assegurar-se dele. Trata-se, tão somente, de
corresponder a uma possibilidade que nos coloca no próprio elemento do aprender, em que,
de certo modo, já nos encontramos desde sempre. É esse saber que nos livra para, a cada
12
vez, tão só e puramente aprender, pois então torna-se manifesto que não há senão aprender
e que mesmo o saber nada mais é do que uma modalidade deste último. Desse modo, o nou=j
está nomeando, em Aristóteles, ao mesmo tempo, um saber e um salto(o acontecimento)
que inaugura esse saber enquanto possibilidade efetiva de correspondência, enquanto em-
penho privilegiado.
Quando Aristóteles, na esteira de Platão, faz ver que o espanto ou admirar-se é o
começo da filosofia, ele está, na verdade, indicando o nou=j como o salto que abre a possibi-
lidade do saber como um seguir aprendendo. Mas, segundo Aristóteles, o espanto ou admi-
rar-se deve dar lugar a uma “visão segunda e melhor”, a qual unicamente é capaz de colo-
car-nos no saber efetivo de algo. Enquanto apenas nos surpreendemos com a presença des-
concertante de alguma coisa, ainda não dominamos com o olhar aquilo que ela necessaria-
mente é. O espanto nos faz descobrir que algo é, mas não o que ele é. Isso passa a significar
uma limitação sua. Somente quando sabemos o que alguma coisa é repousamos efetiva-
mente no saber. Assim sendo, doravante, o saber do necessário(uma tautologia!) se destaca
do admirar-se e subordina-o a si, passando a valer como o saber stricto sensu. Tudo o que
não é ele converte-se, de repente, em simples preparação para ele. Agora é o saber do ne-
cessário que, tornando-se independente, não cessa de despertar admiração, pois tudo leva a
considerar tão somente o abismo que separa a experiência da ciência, o contingente do ne-
cessário, como se a ciência não permanecesse sendo sempre experiência. Então, tende a
abrir-se um hiato, um fosso, entre saber e aprender.
Um testemunho desse hiato nós encontramos, primeiramente, na demonstração por
refutação do princípio de não-contradição, que tem lugar no livro IV da Metafísica. O que
há de mais significativo nessa demonstração nos parece ser o fato de que o “princípio dos
princípios”, tal como ele é chamado por Aristóteles, seja enunciado, de início, em uma for-
mulação pregnante, desde a perspectiva de um saber de tipo científico, mesmo Aristóteles
tendo admitido, em outro lugar, que dos princípios não pode haver ciência, mas
nou=j
1
. Tudo
se passa, efetivamente, como se a sua simples enunciação(o entendimento de seus termos)
fosse suficiente para promover a sua admissão. Mas logo em seguida, sem reconhecer a
insuficiência desse procedimento, Aristóteles passa a promover o reconhecimento do prin-
cípio por meio de uma disputa argumentativa, o que o leva a indicar, muito mais do que
1
Ética a Nicômacos, VI.
13
simplesmente definir, o princípio em sua dimensão genuína. O princípio de não-contradição
é assim reconduzido ao fenômeno do significar, o qual reclama ser experimentado como
tal. Nesse segundo momento, o procedimento adotado por Aristóteles não é de tipo científi-
co, mas antes “introdutório” ou indutivo(e)pagwgh/). Busca-se conduzir o interlocutor (o
leitor, o ouvinte) para dentro da região previamente aberta do princípio, por meio de pro-
cedimentos nada convencionais para a ciência, tais como a persuasão, a exortação e mesmo
a censura explícita. Todavia, ao longo de toda essa argumentação, permanece ecoando a
pressuposição de que o princípio poderia ser perfeitamente admitido sem isso, e que esse
trabalho só se faz necessário em função da “má vontade” do contraditor, que insiste em
recusar uma evidência, o que absolutamente não seria o caso dos verdadeiros filósofos.
Seja como entendimento de algo(de uma qüididade) por meio da simples compreen-
são do enunciado de sua definição, seja como experiência direta de um fenômeno em seu
brilhar como tal, o nou=j é sempre ele mesmo um livre admitir. É o que, a certa altura, nos
lembra Aristóteles quando exige, como uma das condições indispensáveis para o aprendi-
zado de uma ciência, que o aluno possa ter convicção de teses que lhe são ditadas pelo pro-
fessor, e não apenas as tome como plausíveis
2
. Um aprendizado seria impossível se o aluno
não tomasse para si e fizesse suas certas afirmações do professor que lhe são confiadas sem
nenhuma demonstração: as hipóteses, assim como também os próprios axiomas. Caso o
nou=j se restringisse ao simples entendimento do que vai em um enunciado, independente-
mente de toda adesão ao seu conteúdo, então a melhor tradução para ele seria talvez aquela
proposta por Tomás de Aquino, e que mais tarde foi canonizada pela tradição, a saber: a de
intelecto.
3
Como, porém, trata-se também e principalmente de um tomar para si e de um
admitir, preferimos traduzir nou=j por percepção. Esta palavra tem a vantagem de também
ser empregada como sinônimo de entendimento, tal como quando dizemos que percebemos
o sentido de uma afirmação ou de alguma coisa. Além disso, ela guarda em seu étimo o
verbo latino capio – capere, que significa propriamente pegar, apanhar com as mãos, agar-
rar. Um outro motivo é, finalmente, o de podermos manter, em língua portuguesa, a corres-
2
Analíticos Posteriores, I, 10, 76 b 35.
3
O nome “intelecto” é atribuído por conhecer o íntimo das coisas: pois entender é como que um ler dentro
(intus legere). Ora, o sentido e a imaginação conhecem somente os acidentes exteriores; só o intelecto alcan-
ça o interior e a essência das coisas.” TOMÁS DE AQUINO, Santo. Verdade e Conhecimento. Trad. Luiz
Jean Lauand e Mario Bruno Sponviedro. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 279.
14
pondência que há em grego entre nou=j e noei=n, sendo este último vertido para o português
como perceber.
A mesma distinção entre o nou=j como percepção do simples, como o tocar(qigei=n)
que tem como única contrapartida o não tocar e não perceber
4
, e o nou=j como o admitir de
uma possibilidade, como salto para uma dimensão que, embora aberta, nunca está sem mais
disponível(os princípios) encontra-se igualmente no livro VI da Ética a Nicômacos. Nesse
livro, o
nou=j é tanto a percepção dos princípios próprios de cada ciência, já que a eles não
se pode chegar pela via de nenhuma demonstração, quanto a percepção do caso extremo e
final(to\ e)/sxaton) na deliberação do prudente. Neste último caso, ao contrário do que acon-
tece no âmbito das ciências, a percepção é um tomar para si do princípio, que assume o
pertencimento a uma determinada situação e que se deixa condicionar por ela, sem que pa-
ra tanto seja necessário qualquer esclarecimento prévio da situação. A percepção do que é
extremo e final não se limita, porém, à deliberação do prudente. Também a sabedoria, en-
quanto a virtude da parte científica da alma, é ela mesma uma modalidade do nou=j entendi-
do como um livre-admitir e um suportar de uma possibilidade extrema da existência. Pru-
dência e sabedoria só se realizam à medida que guardam um acesso livre e explícito aos
princípios. Cada uma realiza, em seu âmbito específico, a proteção e a guarda dos princí-
pios.
Mas diferentemente da prudência, a sabedoria também se caracteriza pela possibili-
dade de tomar uma certa distância dos princípios, de modo a também poder efetuar de-
monstrações. O sábio, para Aristóteles, não se caracteriza apenas por manter uma referência
privilegiada aos princípios e assim salvaguardá-los; o sábio é também alguém que pode
dizer a verdade acerca deles.
5
Dessa possibilidade o prudente está manifestamente privado.
Não cabe esperar ouvir do prudente as razões de suas ações. O saber do prudente é antes
um saber de experiência, que não se destina à universalização do saber característica da
ciência. A sabedoria pode até certo ponto dominar com o olhar os princípios, e insistir na
sua pura contemplação, já o mesmo não acontece com a prudência, que só conserva a livre
referência aos princípios à medida que assente na urgência da ação.
4
Metafísica IX, 10, 1051 b 22.
5
Ética a Nicômacos, VI,7, 1141 a 18.
15
Essa possibilidade que dispõe a sabedoria de, ao sustentar uma referência livre aos
princípios, também dizer a verdade acerca deles faz com que Aristóteles reconheça uma
clara superioridade sua em relação à prudência. Na verdade, a prudência, por estar vincula-
da ao terreno da contingência e da experiência, não tem como saltar essa remissão e alcan-
çar uma visualização explícita de seus próprios princípios, menos ainda dos princípios das
ciências. Mas a sabedoria só pode dizer a verdade acerca dos seus princípios porque estes
comportam a estabilidade característica dos seres que são por necessidade. Daí que a sabe-
doria, embora intrinsecamente superior à prudência, não possa ditar leis a esta. É o pruden-
te, e não o sábio, que, segundo Aristóteles, deve governar a cidade. Por outro lado, igual-
mente, não cabe considerar que a prudência seja em si mesma a mais alta realização de que
o homem é capaz. A passagem pela ação e pela “atividade política”, apesar de necessária e
incontornável, é apenas uma passagem para a atividade mais alta e soberana da contempla-
ção, atividade que é exclusiva da sabedoria. Aristóteles subordina assim a prudência à sa-
bedoria, tal como vimo-lo subordinar o espanto à admiração e o aprender ao saber.
A felicidade propriamente dita, aquela que se supõe ser o estado normal da existên-
cia dos deuses, não pode depender tanto dos acasos e acidentes da vida. O homem feliz
deve, tanto quanto possível, independer daquilo que a sorte lhe proporciona. Essa existência
soberana é, para Aristóteles, o fim a que tende a existência do homem como um todo: a
“obra do homem”. Contudo, para realizá-la, requer-se o empenho de toda uma vida. Nem
mesmo será como homem que ele viverá essa vida, mas segundo algo divino que subsiste
nele. Esse algo divino é precisamente o nou=j enquanto pura atividade contemplativa.
Mas por que o homem não poderia ser sumamente feliz apenas enquanto vive “hu-
manamente”? A resposta de Aristóteles é a de que este, à medida que age apenas enquanto
homem, não alcança realizar aquele que é o propósito mais íntimo da própria ação, a saber:
o de ser o seu próprio fim. Para ser realmente feliz, feliz como os deuses, o homem deveria
poder permanecer de modo suficiente em sua ação, sem que nada mais resultasse disso, a
não ser a própria ação. Da ação do homem, porém, resulta sempre um algo mais: um
pra/kton, um feito, que retorna sobre o agente na forma de honra e reconhecimento. Viven-
do apenas “humanamente”, o homem não tem como não “correr atrás” daquilo que, de al-
guma forma, o beneficia, e que já não é tão somente a própria ação, mas o seu resultado.
Todavia, do olhar concentrado na existência do homem de ação resulta que aquilo que este
16
mais preza e estima não é tanto a honra, mas uma certa ação que sobrevem à ação de bene-
ficiar alguém: a pura contemplação do beneficiado, da obra. Nesse puro demorar-se con-
templativo junto ao beneficiado é que a sua prática retoma fôlego, e não tanto na honra e no
reconhecimento recebidos. Tem-se, assim, que é uma atividade sobreveniente aquela que
torna o homem de ação plenamente feliz, e não propriamente a sua busca afanosa de honra
e reconhecimento. Por isso, Aristóteles supõe que a vida contemplativa seja o fim propria-
mente dito da vida de ação e a sua plena realização. Isso não implica em desconsiderar ou
repudiar, pura e simplesmente, seja a “política”, seja também o entretenimento como di-
mensões da existência humana. Significa, bem antes, reconhecer os seus limites, integran-
do-os num modo de vida mais alto e equilibrado, sem que ambos percam o seu direito de
ser a sua especificidade.
O que marca, portanto, a natureza específica dessa atividade mais divina do que
propriamente humana é a sua máxima independência. Se é impossível agir ou entreter-se
sem a companhia de outros, se o benfeitor necessita do beneficiário para fazer o bem, a
atividade teórica é a única que também pode ser exercida mesmo em completa solidão.
Como atividade, ela é a menos dependente de condicionantes externos, podendo inclusive
ser prejudicada pela facilidade ou abundância de bens. Precisamente o critério da indepen-
dência é também aquele que, para Aristóteles, melhor elucida a diferença da percepção teó-
rica em relação à percepção sensível. Uma vez que também a percepção sensível é percep-
ção, e não uma simples alteração, e uma vez que as formas sensíveis são percebidas unica-
mente pela sensação, o que requer uma impassibilidade sensível, aquilo que propriamente
distingue percepção teórica e percepção sensível é a independência da primeira e a depen-
dência da segunda com respeito à doação do particular. “A sensação não é sensação de si
mesma”, diz Aristóteles
6
. O saber que se adquire por via sensível não se estabiliza propria-
mente como saber. A própria sensação necessita de uma excitação advinda do exterior para
entrar em atividade. Já o mesmo não acontece com a percepção teórica, que pode entrar em
atividade tão logo se queira. A percepção teórica é a única a dispor livremente do seu per-
cebido, pois o universal reside, de certa forma, na própria alma
7
, não precisando ser reco-
lhido, a cada vez, sensivelmente.
6
Metafísica, IV, 6, 1010 b 35.
7
De anima, II, 5, 417 b 23.
17
Na forma como distingue percepção teórica e percepção sensível, Aristóteles enfati-
za justamente o caráter voluntário da primeira em relação à involuntariedade da segunda.
Enquanto só há percepção sensível à medida que algo se apresenta e chega a nos afetar di-
retamente, a percepção teórica poderia prescindir desse “condicionamento”. Chegou-se a
tomar essa distinção na forma de um dicotomia absoluta, como se a percepção teórica fosse
algo totalmente apartado da sensação. No entanto, por mais que estabeleça, de fato, tal dis-
tinção, Aristóteles também afirma, diversas vezes, que não se pode pensar nada sem ima-
gens. Ora, as imagens estão todas elas, para Aristóteles, ligadas à atividade dos sentidos.
Por conseguinte, a própria percepção teórica nunca se deixa separar inteiramente da ativi-
dade sensível involuntária. Queiramos ou não, pensando, as imagens se nos apresentam tal
como se fossem sensações. A diferença seria apenas a de que, neste último caso, elas se
geram a partir da própria atividade livre de pensar. Como quer que seja, também aqui, elas
precisam ser admitidas. Ninguém pode pensar coisa alguma se, enquanto pensa, não admite
que as coisas sejam assim mesmo como elas se oferecem ao pensamento.
Mesmo reconhecendo a impossibilidade de pensar sem imagens, a vinculação destas
últimas com a percepção teórica permanece, entretanto, para Aristóteles, uma determinação
que só é válida para nós, isto é, para a nossa maneira imperfeita de exercitarmos a atividade
pensante. As imagens estão sempre ligadas à pluralidade sensível, enquanto deus é ele
mesmo o pensamento de uma única e mesma coisa, a saber: de si mesmo. O pensamento
que necessita de uma configuração imagética demostra, com isso, a sua imperfeição. Somos
nós e somente nós que precisamos pensar por imagens, pelo fato de que à nossa natureza
nada é mais doce do que a mudança.
8
Mas o que significa propriamente essa ressalva e essa
restrição? Será mesmo que poderia haver, em alguma parte, pensamento sem a admissão de
algo que se nos apresenta e impõe? Por que isto teria de ser uma limitação? Acaso poderia
haver uma disposição livre e voluntária sem nenhuma involuntariedade? Haveria afinal um
saber que prescindisse de todo e qualquer aprender? Por que teríamos de supor uma perfei-
ção ali onde o que há, primordialmente, é “imperfeição”?
Na suposição de que o saber seja, em si mesmo, algo fechado e acabado, como se
pode pensar a passagem de um estágio inicial de não-saber para o saber já plenamente
constituído? Aristóteles procura explicar a realidade do aprender, a partir dessa perspectiva,
8
Ética a Nicômacos, VII, 14, 1054 b 29.
18
não como uma passagem gradual de uma simples inciência inicial, de uma ignorância total,
para um estado final de perfeição e completude, mas como uma passagem do que já existia
e estava dado em potência para a sua plena atualização e, por conseguinte, para a criação de
uma potência segunda, a qual já não resiste a ser atualizada, gerando-se assim o “hábito da
ciência”.
Ninguém poderia aprender coisa alguma se, de certa forma, já não dispusesse de um
saber a seu respeito. Da absoluta ausência de saber não poderia gerar-se um saber. Sim, mas
de que ordem é esse saber puramente potencial? Seria ele realmente uma simples inércia de
pensamento? Como não figurá-lo senão como o saber já constituído, reduzido, hipotetica-
mente, a um puro estado inercial? Desse modo, a passagem do aprender para o saber seria
ela mesma algo de não significativo, um simples expediente descartável, destinado a desa-
parecer, sem deixar nenhum rastro, com o advento do saber. Entretanto, a realidade do a-
prender revela algo diverso disso, pois sempre que aprendemos alguma coisa temos de nos
disponibilizarmos para tal. O aprender requer sempre um empenho simultâneo de disponi-
bilização de nossa parte. Caso contrário, ele propriamente não se daria. Todo professor sabe
que seu empenho encontra o seu limite no “interesse” ou na falta dele por parte do aluno.
Por isso, só aprendemos de fato quando nos confiamos nós mesmos ao aprendizado. Isso é
o que nenhum professor pode dar a um aluno. Assim, o que há, de início, não é um saber já
constituído reduzido a um estado de encantamento, mas a disponibilidade para aprender, a
qual nunca pode estar completamente ausente.
Essa disponibilidade não é, por certo, nenhuma realidade. Antes de agir, o homem
não dispõe ele mesmo dessa disponibilidade como de uma propriedade sua, o que significa
dizer que essa disponibilidade não pode estar, em tempo algum, ela mesma, disponível,
nem mesmo com o advento do saber. O saber é que é um livrar-se decidido para tal dispo-
nibilidade, o que deve repetir-se a cada vez.
Aristóteles afirma que a percepção, antes de passar para a potência segunda do co-
nhecimento, é um puro possível(to\ du/naton), e que ela não é, efetivamente, nenhuma das
realidades antes de perceber.
9
Esta sua afirmação, que concentra toda a compreensão grega
do homem como um ser essencialmente de ação, que só será alguma coisa à medida que
agir, gerou inúmeras controvérsias e tentativas de explicação por parte dos peripatéticos
9
De anima, III, 4, 429 a 22.
19
antigos, até desaparecer por completo em Tomás de Aquino, que, abolindo a diferença entre
o “intelecto humano” e o “intelecto divino”, fez desse “puro possível”, de que fala Aristóte-
les, o intelecto já constituído, enquanto forma da alma humana individual, e que sobrevive-
ria ao perecimento do corpo, conservando consigo todos os conhecimentos adquiridos. Para
Tomás de Aquino, o homem já disporia, desde nascença, de um “intelecto agente” e de um
“intelecto possível”, enquanto modalidades de um único e mesmo intelecto humano. No
extremo oposto, entretanto, encontramos Alexandre de Afrodísia (sec II a.c.), que assumin-
do e interpretando, à sua maneira, esse puro possível como um “intelecto material”, faz dele
uma disposição puramente passiva, de índole corporal, gerada espontaneamente por uma
mistura de elementos. Tratar-se-ia de uma simples aptidão que determinaria o homem como
espécie, mas que seria insuficiente para desencadear a atividade de pensar. Em ambos os
casos, temos a mesma dificuldade, gerada primeiramente pelo próprio Aristóteles, de enca-
rar no fenômeno do aprender uma disponibilidade irredutível a todo saber já constituído,
mas que não lhe é simplesmente estranha. O homem é certamente um possível, mas não um
possível inerte, um simples suporte a espera de ser ativado. O homem é uma essencial in-
completude, e que assim deve permanecer mesmo com o advento do saber. Disso, certa-
mente, sabia Aristóteles; a nós, porém, resta talvez assumirmos essa incompletude de modo
mais integral, sem que, para tanto, necessitemos vislumbrar, admirados, uma completude
inacessível.
20
Capítulo I
Filosofia: saber não-demonstrativo dos primeiros princípios
“Pois é ignorância não saber as coisas de que
é preciso e as coisas de que não é preciso
buscar demonstração.
(Aristóteles, Metafísica)
1.1. “Vidência” e evidência
Ver não é, em primeiro lugar, constatar evidências. A visão não é uma dinâmica
sobreposta a uma materialidade previamente dada e subjacente, mas já a própria coisa em
sua acessibilidade primeira. Toda visão tem o seu ser mais próprio na possibilidade de ser
revista, e não numa materialidade a ser por fim alcançada, numa espécie de evidência últi-
ma que abolisse em definitivo a possibilidade de seguir sendo vista.
Há, portanto, um ver para o qual o próprio já ter visto uma vez não constitui ne-
nhum óbice, mas antes uma promessa de seguir vendo. Mas isso não é o que experimenta
aquele que experimenta uma evidência. Uma evidência só existe quando é afirmada de en-
contro a uma primeira visão. A evidência em sentido estrito não é fornecida sem mais pe-
los sentidos. Reparar no verdor de uma árvore, por exemplo, não significa verificar ou
constatar um estado de coisas evidente; quando reparamos no verdor de uma árvore ainda
não estamos afirmando coisa alguma. Somente quando afirmamos que esta árvore é de um
verde de uma tonalidade específica é que estamos diante de uma evidência. A evidência
supõe a separação entre árvore e cor e a sua posterior junção num certo juízo. A primeira
visão, agora, não passa de uma sensação pobre e perfeitamente indeterminada. No entanto,
pode ser que no exato momento em que simplesmente reparávamos no verdor desta árvore
e dizíamos, em voz alta ou em silêncio, “esta árvore é de um verde singular”, árvore e ver-
dor formassem um todo único perfeitamente determinado e significativo. De fato, sobre
esta primeira visão edificou-se a evidência, e de tal modo que ela se viu, de repente, desca-
racterizada em simples ponto de partida material para que a evidência se constituísse.
Duas coisas são assim imprescindíveis para que uma evidência venha a se constitu-
ir: a edificação de uma segunda visão sobre uma primeira e a total destituição desta última
pela segunda. Sem que haja semelhante destituição uma evidência não pode se impor. To-
davia, o mais característico da evidência não é ainda essa destituição, e sim a própria im-
pressão, por ela instituída, de que essa destituição não seria absolutamente necessária, ou
21
seja, faz parte de toda evidência, de seu próprio modo de apresentar-se, destituir precisa-
mente a própria destituição que ela é. A evidência, à medida que se estabelece, produz a
fatal impressão de que ela poderia perfeitamente dispensar qualquer contraste com a não-
evidência. A evidência abole a necessidade da não-evidência e, desse modo, abole igual-
mente o seu próprio percurso de constituição, ou seja, a sua própria origem. Uma vez insti-
tuída, logo a evidência se apresenta como um simples fato que pode ser comunicado e cons-
tatado.
Quando o escravo de Mênon é induzido ao erro por Sócrates no famoso diálogo de
Platão, pode-se ver como a evidência tem a sua origem na não-evidência. A passagem a que
nos referimos é aquela em que Sócrates faz o escravo de seu interlocutor cair em impasse
por já não poder afirmar o que pretendia saber: o escravo acreditava que poderia encontrar
o dobro da área de um quadrado simplesmente duplicando seus lados
10
. A cada vez, o es-
cravo procura amparar-se em algo já dado e manifesto, sem ver propriamente a dificuldade.
Somente quando ele desespera por completo desse procedimento, e renuncia a afirmar
qualquer coisa, é que ele está em condições de encontrar o que lhe é perguntado. Aquilo
que ele primeiro deve ter encontrado para assim poder encontrar a evidência é o possível, e
não já a própria evidência. Mas tão logo é encontrado e o possível já deve dar lugar à evi-
dência, de modo que nem se chega a perceber a sua singularidade.
A dificuldade que experimentamos em reconhecer a singular força de atração do
possível provém do modo como, de início, já procedemos a uma separação entre ato de
ver e coisa vista. Nessa separação, a coisa vista já comparece como uma materialidade
dada, independente e preexistente ao próprio ato de ver; ela, a coisa vista, nos parece ser
um simples suporte sobre o qual, unicamente, pode ter lugar o ato de ver. Se uma coisa
qualquer, por qualquer motivo que seja, atrai e prende o nosso olhar: um objeto cintilante,
que ainda não conseguimos identificar, uma pessoa vista à distância, que ainda não sabe-
mos se é um conhecido, ou mesmo um problema para o qual ainda não encontramos solu-
ção, todas essas coisas vistas imprecisamente logo perderão todo o seu poder de atração
quando finalmente a evidência for obtida, sendo esta inclusive ansiosamente aguardada.
Em todos esses casos, há de fato uma constatação prévia, uma materialidade subjacente,
sobre a qual o ato de ver poderá então operar até atingir a evidência. Uma vez alcançada
10
Mênon, 81 e – 86 c.
22
esta última, desaparece por completo a inquietação que o objeto provocava. Com a evidên-
cia desaparece inteiramente aquilo que nos inquietava. E, no entanto, o possível ele mesmo
estava aí presente como inquietação, precisamente quando ainda não havia nenhuma mate-
rialidade subjacente. É que tanto o objeto brilhante quanto a pessoa não identificada e o
problema não solucionado não eram, cada uma a seu modo, coisas vagas e indeterminadas,
mas já algo perfeitamente determinado. Não era a imprecisão aquilo que nos inquietava,
mas a presença de algo que não conseguíamos identificar precisamente. Sem essa presença
inquietante, que constitui a marca do possível, é certo que este objeto, esta pessoa e este
problema nos passariam totalmente despercebidos. Todavia, não resta a menor dúvida de
que nestes casos, em virtude de já nos movermos no horizonte da identificação
11
, jamais o
possível chega a ser reconhecido enquanto tal. Em outras palavras, sem a presença inquie-
tante do possível jamais poder-se-ia produzir uma evidência, mas, por outro lado, é o pró-
prio interesse prévio pela evidência que não permite que o possível viceje enquanto tal.
Prova disso é que basta que a identificação não ocorra para que a coisa vista seja imedia-
tamente posta de lado e perca todo o interesse. Assim, se objeto brilhante não se verifica
ser ouro, se a pessoa que vemos à distância não é a que imaginamos ser, ou ainda se o pro-
blema que nos ocupa não se mostra passível de uma solução dentro do já esperado, imedia-
tamente eles são abandonados e relegados à mais completa indiferença, como se fossem um
nada.
No capítulo IX de sua Poética, Aristóteles distingue com agudeza poesia e história
nos fazendo ver que a diferença essencial entre ambas não está, como se imagina, no
fato de que o historiador escreve em prosa e o poeta em verso. A diferença está muito mais
no caráter da coisa visada por cada uma delas, pois, nos diz ele, “enquanto o historiador
narra aquilo que sucedeu” (to\ ta\ geno/mena), ao poeta caberia poetar “as coisas que po-
deriam suceder” (oi(=a a)\n ge/noito), ou seja, “as coisas possíveis segundo a necessidade e a
verossimilhança”
(ta\ du/nata kata\ to\ ei)ko\j h)\ to\ a)nagkai=on).
12
Mas Aristóteles não se de-
tém nessa contraposição simples e afirma ainda que por isso (
dio\), isto é, pelo fato de
a poesia visar ao que é possível, é ela algo “mais filosófico e mais sério” do que a
11
Leia-se: no horizonte da evidência.
12
Poética, IX, 1451 a 36 – 1451 b 1.
23
história (kai\ filosofw/teron kai\ spoudaio/teron).
13
E para justificar esta sua afirmação,
Aristóteles prossegue dizendo que “enquanto a poesia se refere sobretudo (ma=llon) às
coisas universais(
ta\ kaqo/lou), a história se refere às coisas particulares
(ta\ kaq' e(/kaston). É próprio do universal, com efeito, que ele atribua ao agente dizer e
fazer certas coisas, segundo a necessidade e a verossimilhança, e a este visa a poesia, atri-
buindo-lhe nomes. Particular, porém, é o que fez Alcebíades e o que este padeceu”.
14
A interpretação mais imediata dessa passagem seria a de que Aristóteles aproxima
poesia e filosofia pelo modo como ambas atribuem certas coisas aos seus respectivos “ob-
jetos”. Tanto a poesia quanto a filosofia buscariam um elo de necessidade entre o objeto e
aquilo que lhe diz respeito, um elo muito mais sério e forte do que o elo simplesmente ca-
sual. Todavia, apesar de estar correta, esta interpretação desconsidera justamente o ponto
decisivo, qual seja, o fato de a poesia ter sido dita mais filosófica e mais séria do que a
história precisamente por referir-se ao possível.
Ao contrário da visão que se detém na materialidade da evidência e que abole o seu
próprio percurso de constituição, há ainda um outro ver que resguarda em si mesmo a pos-
sibilidade. É nele que o possível como tal encontra propriamente a sua residência, melhor
dizendo, é nele que o possível propriamente possibilita. Há, com efeito, um ver que não
cessa de ver mesmo quando já viu. Aparentemente, trata-se de um ver que ainda não viu
tudo quanto havia para ver. Este é o ver pouco atento, dispersivo, e que sempre necessita
retomar o já visto sem nunca terminar de vê-lo completamente. Esta deficiência, porém, só
pode ser apontada com direito naquelas coisas que podem realmente terminar de serem
vistas, mesmo que provisoriamente. Onde não se pode atingir, ao fim e ao cabo, uma
“evidência predicativa”
15
, tampouco se pode acusar um ver de ainda não a ter alcançado.
13
Ibid., IX, 1451 b 5.
14
Poética, IX, 1451 b 6-12.
15
Devemos a E. Husserl o ter ele mostrado, claramente, que toda evidência declarativa ou predicativa, sobre
a qual se funda a possibilidade do conhecimento, está ela mesma alicerçada sobre uma outra evidência de tipo
diverso, chamada por ele de “ante-predicativa”, “originária” e também “objetiva”. Mas para Husserl essa
evidência ante-predicativa ou “inferior” deve desembocar, necessariamente, em uma evidência predicativa ou
“superior”, pois só então ela chegaria a alcançar a sua meta. É o que se pode ver, por exemplo, na seguinte
passagem: “E assim a posição firme das propriedades axiológicas e das propriedades práticas das coisas
comporta sempre essa relatividade à situação na qual essas coisas possuem o seu valor e são utilizáveis
praticamente. (...) Mas, mesmo nessa relatividade, aquilo que é característico do toda intenção de conheci-
mento, de toda objetivação pelo juízo, permanece: o fato de que ela visa criar, para além da situação mo-
mentânea, um tesouro de conhecimento que seja comunicável e utilizável no futuro; e isso permanece verda-
deiro mesmo em nossa limitação abstrativa ao domínio daquilo que é próprio a cada um. Sem dúvida, trata-
24
Ora, o possível não pode ser visto ao modo de uma evidência, do contrário deixaria de ser o
que é. Mas sendo isso verdade, deve pertencer a esse ver, como sua característica mais pró-
pria, um modo de atingir plenamente o visto sem que nele se faça presente qualquer clamor
por completude; ele deve mesmo poder dispensar a evidência. Não tendo assim a evidência
como sua meta, onde esse ver encontraria afinal sustentação? Sem dúvida ele não poderia
encontrá-la na materialidade do visto. Esta sustentação ele teria de encontrá-la toda em
‘algo’ que lhe facultasse seguir vendo e que, não obstante, não fosse uma simples impreci-
são a solicitar alguma espécie de acabamento. Sendo algo perfeitamente determinado, ele
não exigiria de nós, em primeiro lugar, um esforço de determinação, mas um empenho de
correspondência. Entretanto, como algo completo e perfeitamente determinado poderia
ainda exigir um empenho de correspondência? Não seria mais plausível admitir que somos
nós, por uma decisão exclusivamente nossa, que nos resolvemos a isso, na ausência inclusi-
ve de toda e qualquer exigência ou solicitação?
O possível também deve poder ser encontrado fora do horizonte da evidência num
ver que lhe seja adequado e que não o destitua de seu caráter específico. Uma vez que o
traço mais característico do ver no interesse da evidência se revelou ser a separação entre
ato de ver e coisa vista, o possível só pode vicejar como tal ali onde não impere semelhante
separação. Isto de fato já acontecia mesmo no horizonte da evidência, quando ainda não
podíamos identificar esse algo determinado que prendia o nosso olhar. É que então ainda
não havia nenhuma materialidade subjacente, mas sobretudo, como vimos, uma presença
inquietante. Na dominação dessa presença, ato de ver e coisa vista são na verdade indisso-
ciáveis. Se queremos, portanto, encontrar um ver consoante com o possível temos de bus-
cá-lo numa atitude que seja capaz de acolher essa inquietude, sem, no entanto, procurar, de
imediato, neutralizá-la em alguma espécie de evidência. Ora, essa atitude existe e é aquela
do pensamento. Com efeito, pensar efetivamente uma questão ou um problema significa
deixá-los o mais possível em aberto, de modo que se possa sempre retornar a eles. Não é
procurando resolvê-los que nós nos colocamos de verdade em seu âmbito de vigência, mas
antes quando os deixamos repercutir diretamente em nós mesmos. Sendo essa presença
se, então, de posições firmes que não valem senão para mim, mas elas conduzem, precisamente, a um tesouro
de conhecimento – tesouro para mim – e são orientadas para a sua aquisição.Expérience et Jugement.
Trad. p/ o francês de D. Souche. Paris: PUF, 197
0, p. 74.
25
essencialmente inquietante, uma questão jamais esgota o seu ser no fato de lhe termos
proporcionado respostas; pelo contrário, toda resposta haurida genuinamente só lhe faz
aumentar ainda mais o poder de questão. Por isso, buscar e encontrar respostas para uma
questão não pode significar pretender esgotá-la definitivamente. Toda verdadeira questão é
em si mesma inesgotável, “sempre buscada e sempre inacessível”, numa expressão cunha-
da por Aristóteles para anunciar a questão de todas as questões: ti\ to/ o)/n.
16
Somente no
nível mais raso da evidência é que cabe buscar “soluções definitivas”, ou até mesmo provi-
sórias.
Mas se a situação é de fato essa, para que ainda nos empenharíamos por respostas?
O motivo desse empenho, sem dúvida, não pode ser o de afastar da questão a sua inquietu-
de, pois desse modo ela própria também seria eliminada. O empenho por respostas aqui só
pode provir de uma decisão de tomar sobre si aquilo que na questão propriamente se anun-
cia: o possível em sua possibilidade. Não há outro motivo a não ser este: buscar fazer-se
um com a inquietude inerente à questão. A inquietude da questão precisa também tornar-se
a minha inquietude. Esta necessidade não é nenhuma necessidade simplesmente subjetiva e
exterior, mas pertence à natureza da própria questão. Uma questão só o é se ela de fato for
questão para mim. Caso não tomemos parte da inquietude do possível o possível ele mes-
mo não se apresenta como tal. Isto implica em dizer que, diferentemente de todo real de
fato, o possível só é propriamente se também o for para mim. Por conta disso, uma questão
encontra a sua finalidade em simplesmente ser questionada e, de forma alguma, no fato de
vir a ser aplacada por respostas.
A questão ela mesma não é o que é graças a uma simples vontade de pôr alguma
coisa em questão e de suspender o nosso juízo a seu respeito. Se assim fosse, a origem do
questionamento não poderia deixar de ser o propósito de obter um saber mais exato e fun-
damentado sobre algo ainda vago e impreciso; a vontade de saber é que formaria todo o
elã do questionamento. Todavia, mesmo sendo possível desse modo, o questionamento se
veria orientado, desde o início, por um quid que permaneceria ele próprio fora de questão.
Este quid formaria algo como uma materialidade sobre a qual o questionamento poderia
então desdobrar-se. A desconfiança é a de que, na ausência dessa materialidade do quid, o
questionamento perdesse imediatamente todo solo e pairasse solto no ar. Isto de fato teria
16
Metafísica, VII, 1, 1028 b 1-3.
26
de acontecer caso o questionamento fosse ele próprio livre de questão, ou seja, caso fosse o
questionamento que produzisse autonomamente as suas questões. Não sendo esta a situa-
ção e estando o questionamento atado, desde o início, a uma determinada questão (presen-
ça), não haveria qualquer motivo justificado para tais temores. É que sem a presença inqui-
etante da questão um questionamento genuíno seria simplesmente impossível. Por outro
lado, caso faltasse essa presença do possível, o que ainda poderia nos garantir contra a
simples mania de pôr tudo, de qualquer maneira, em questão? O que ainda poderia refrear
em nós essa tendência que, não obstante, costuma passar pela máxima vitalidade do espíri-
to?
A questão não é um quid sub ou pré-existente posto fora de validade, mas algo que
nos perturba com a sua presença, algo que nos põe em questão. Este algo, se corretamente
compreendido, não se deixa identificar; ele está aí, não há dúvida, mas o que seja ele pro-
priamente não se sabe. A questão nos transporta para o espaço aberto da possibilidade, onde
de algum modo sempre já estamos. Querer ainda buscar uma determinação inequívoca para
só então admitir a sua presença seria passar ao largo de sua provocação. Sem ser um quid
material a questão também não é um puro nada, mas algo que vicejando enseja o questio-
namento, ainda que não o imponha como uma necessidade. A questão é, em si mesma,
muito mais um apelo do que uma imposição.
17
Esta possibilitação, entretanto, não faz
apenas por incitar o questionamento como também o mantém em seus justos limites. À
medida que se mantém no campo de vigência da questão, o questionamento não necessita
buscar para si nenhuma delimitação prévia de suas possibilidades positivas. Este vínculo
originário já constitui todo o rigor de um pensamento. A “coisa do pensamento” é assim a
sua medida única e suficiente. Isto que desencadeando um pensamento o mantém, ao
mesmo tempo, em seus justos limites os gregos o chamavam de a)rxh/. Sobre o modo de
ser do que chamou de “princípio supremo” disse certa vez Novalis:
Deveria o princípio supremo conter o paradoxo supremo em seu problema?
Ser uma proposição, que não deixasse absolutamente nenhuma paz – que sem-
pre atraísse, e repelisse – sempre de novo ininteligível, por mais vezes que já a
17
Esta é na verdade a estrutura de toda a nossa vida mais imediata, ou seja, daquilo que costumamos
chamar de afazeres. Um afazer nunca chega a ser uma imposição tal que não possa ainda ser prote-
lada; um afazer é antes uma solicitação do que uma imposição.
27
tivesse entendido? Que incessantemente ativasse nossa atividade – sem jamais
cansá-la, sem jamais se tornar costumeira? Segundo antigas tradições místicas
Deus é para os espíritos algo semelhante.”
18
Mas se é verdade que a questão se apresenta como o extremo de todo questiona-
mento e que ela recua ante toda tentativa de identificação sumária, não é menos verdade
que ela já está sempre solicitando um certo empenho de delimitação e assim de determina-
ção compreensiva. Esta solicitação, de início, nos soa enigmática, pois se a questão, como
princípio, já ultrapassa toda e qualquer determinação, por que ela ainda solicitaria um em-
penho de determinação?
A resposta mais famosa a essa pergunta, se é que podemos entendê-la dessa manei-
ra, é sem dúvida a de Hegel
19
. Para Hegel, o começo absoluto de todo saber deve ser o que
há de mais pobre e indeterminado. Seria assim uma carência originária o que facultaria, em
última instância, ao pensamento o fôlego de determinação. O ser é, nas palavras de Hegel,
a total ausência de determinação, o “puro nada” ou o “imediato indeterminado”. Mas o isto
visado na “certeza sensível” só é questão para nós, isto é, para a consciência que já
suspeita a sua inconsistência. Imediatamente, porém, o isto permanece totalmente fora de
questão. Ou seja, o começo, para Hegel, não é ele mesmo questão, mas já algo positivado e
encapsulado em si mesmo. Desse modo, a questão como tal só pode surgir mediante a reti-
rada de validez da certeza imediata (isto é, pela dúvida), motivada, ela própria, pelo pres-
sentimento do absoluto. No puro ser, como a máxima indeterminação, já se faria presente o
absoluto como a máxima determinação. A essência da questão seria assim o anelo pelo ab-
soluto e sua meta mais autêntica a sua própria eliminação como questão.
Admitindo, porém, que a questão não enseje, por si mesma, qualquer anelo pelo
absoluto como para a sua própria cumulação, de que modo ainda ela poderia solicitar um
empenho de determinação? Como afastar a suspeita de que esse empenho seja, afinal, per-
feitamente arbitrário e aleatório? Neste caso, seríamos apenas nós, por uma simples vonta-
de de saber, que buscaríamos determinações, enquanto a coisa(a questão) permaneceria de
18
NOVALIS. Pólen. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 2001, p.111.
19
Cf. HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992, I. A certeza
sensível, e também SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. O começo de deus. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 85-
92.
28
todo isenta de inquietação. Ora, nada pode estar mais distante de um genuíno questiona-
mento do que esta última descrição.
Temos, por fim, que admitir a situação paradoxal de que é a própria questão que
solicita esse empenho de determinação, ultrapassando, ao mesmo tempo, toda determinação
possível. A questão mantém-se fora de determinação ao mesmo tempo que solicita um
empenho de determinação. Tudo isso só se faz possível caso a questão necessite do empe-
nho de determinação a fim de fazer sobressair justamente a sua indeterminibilidade. Todo
esforço de determinação que se articula no horizonte do questionamento já se encontra a
serviço do indeterminável da própria questão, e não procura substituí-lo por alguma deter-
minação cabal e definitiva.
20
Ele sabe que somente no empenho de determinação a questão
viceja maximamente como questão. Por isso, não pode haver aqui qualquer espaço para o
progresso. É que todo progresso deve necessariamente progredir de um minimum para um
maximum de determinação. Ora, o indeterminável da questão não admite nenhum grau de
determinação, o que não representa nenhum óbice a este empenho. Mais a questão possibi-
lita uma nova determinação e mais ela se realiza propriamente como questão, sem que to-
davia isto remeta para alguma “tarefa infinita”. O empenho de determinação característico
do questionamento visa apenas liberar para um puro encontro aquilo que na questão é o
propriamente questionável. O questionamento cumpre a sua meta na medida em que alcan-
ça transmitir a própria questão como questão, de modo que ela possa vir a ser retomada
ainda uma vez. Não que o questionamento seja vago e impreciso e necessite assim ser
complementado por outro. O ser vago e a imprecisão só devem ser buscadas ali onde se
pode esperar evidência e exatidão.
21
A precisão do questionamento está apenas no modo
como ele faz sobressair, inequivocamente, no próprio empenho de determinação, o impon-
derável do possível. Um questionamento deve sempre poder ensejar um novo questiona-
mento, ainda que este último jamais possa simplesmente derivar-se do primeiro. Desse
modo, mesmo que provocado por um questionamento anterior, todo questionamento genu-
íno deve necessariamente ser despertado pela questão e apenas por ela. É que esse mesmo
questionamento anterior não era senão uma certa articulação da própria questão, e não algo
20
Um marinheiro para domar o mar revolto deve antes reconhecê-lo indomável.
21
No livro I da Ética a Nicômacos (1094 b 12-14 e 1098 a 26-29), Aristóteles chama a atenção para o
fato de que nem todas as coisas comportam serem determinadas com exatidão. Precisão (rigor) e
exatidão não são o mesmo.
29
simplesmente pertencente a ela, tal como a solução pertence ao problema de que ela é a
solução.
Numa importante passagem, logo no início do livro III da Metafísica, Aristóteles,
referindo-se ao procedimento adequado à ciência por ele denominada de “a ciência busca-
da” (
th\n e)pizhtoume/nhn e)pisth/mhn), defende ser necessário, em primeiro lugar, estar em
aporia (
a)porh=sai) em relação aos entes, e afirma, logo em seguida, que:
e)/sti de\ toi=j eu)porh=sai boulome/noij prou)/rgou to\ diaporh=sai kalw=j: h( ga\r
u(/steron eu)poria lu/sij tw=n pro/teron a)poroume/nwn e)sti/, lu/ein d' ou)k e)/stin
a)gnoou=ntaj to\n desmo/n, a)ll' h( th=j dianoi/aj a)pori/a dhloi= tou=to peri\ tou=
pra/gmatoj: $(= ga\r a)porei=, tau/t$ paraplh/sion pe/ponqe toi=j dedeme/noij
a)du/naton ga\r a)mfote/rwj proelqei=n ei)j to\ pro/sqen.
Para os que querem encaminhar bem uma questão, é oportuno colocar do
melhor modo as dificuldades relativas à questão, pois o bom encaminha-
mento posterior consiste no desatamento das dificuladades anteriores, e não
há desatar quando se ignora o que prende, mas o impasse do pensamento
manifesta este laço em relação à própria coisa; pois, enquanto está em im-
passe, sua situação é semelhante a que experimentaram os prisioneiros, pois
é impossível para ambos seguir adiante.
22
1.2. Evidência e demonstração
Vimos anteriormente que a evidência só surge quando um novo ver retifica e subs-
titui uma visão precedente. A evidência não é fruto de uma visão imediata mas já surge de
um contraste entre duas visões, o qual, no entanto, tende a passar completamente desper-
cebido. Uma vez que é característica da evidência a eliminação de uma “visão falsa” e a sua
substituição por uma “visão verdadeira” – como acontece no exemplo do escravo de Mênon
– o horizonte da evidência não pode deixar de ser o horizonte da demonstração. Toda evi-
dência, da mais simples à mais complexa, deve poder ser demonstrada; do contrário, já não
poderá ser chamada de evidência. Esta é inclusive a razão pela qual a simples percepção
22
Metafísica, III, 1, 995 a 27.
30
sensível não chega ainda a constituir uma evidência. Mas afinal em que consiste uma de-
monstração? A demonstração consiste justamente na produção de uma evidência a partir de
uma evidência dada.
23
Demonstrar significa assim pôr em evidência a própria evidência.
Mas por que a evidência ainda precisaria ser posta em evidência numa demonstração? De
fato, não se está dizendo que toda evidência precise ser demonstrada para só então tornar-se
efetivamente evidente; o que se está dizendo é que ela, a evidência, deve poder ser de-
monstrada. É que precisamente em virtude da contraposição que lhe dá origem, a evidência
está sempre na iminência de converter-se em seu contrário. Somente a possibilidade de ser
demonstrada torna a evidência, e por extensão o conhecimento, algo distinto da simples
opinião, da do/ca, que não cessa de proclamar a auto-evidência de suas sentenças.
24
Portan-
to, ao contrário da
do/ca, que já conta com a evidência como um dom assegurado, o conhe-
cimento deve sempre dispor-se a extrair novamente a evidência de uma evidência dada por
intermédio da demonstração, o que não exclui mas antes inclui a possibilidade de o próprio
conhecimento tornar-se também simples positividade. Este nos parece ser o sentido profun-
do das palavras de Kant que abrem a sua obra principal: “Sejam quais forem o modo e os
meios pelos quais um conhecimento se possa referir a objetos, é pela intuição que se rela-
ciona imediatamente com estes e ela é o fim para o qual tende, como meio, todo o pensa-
mento”.
25
Podemos assim dizer que é essa necessidade e esse gosto de chegar mais uma vez
à evidência o que distingue propriamente a atitude de conhecimento. A demonstração
constitui a sua máxima paixão.
Um outro aspecto não menos importante da demonstração é a necessidade, que lhe
é inerente, de chegar a algo universalmente válido. Com a evidência surge também a ne-
cessidade de uma validação universal, ou seja, a necessidade de que algo seja válido para
todos independentemente de qualquer particularidade. Não é correto afirmar que a atitude
“pré-científica” se caracterize essencialmente por uma crença ingênua na realidade (vali-
dez) do mundo circundante. Na verdade, a validez em si mesma não é uma preocupação
23
Como pudemos ver no exemplo do escravo de Mênon, a condição para a demonstração estava em que ele,
escravo, afirmasse algo. Mesmo que esse algo se revele falso ao longo da demonstração, ele já é uma primeira
evidência, ou seja, uma primeira afirmação.
24
Aristóteles chaga a dizer, no livro I da Metafísica (981 b 7-8), que aquilo que distingue, em definitivo, o
que sabe do que não sabe é o poder ensinar (to\ du/nasqai dida/skein).
25
KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 4. ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 61.
31
típica desse comportamento ou modo de ser. Somente para aqueles que já identificam o
pensamento com a dúvida é que o comportamento humano mais imediato e corriqueiro
deve aparecer como perfeita não dúvida, isto é, como crença. A preocupação típica da ati-
tude natural ou “pré-científica” é apenas a de assegurar a continuidade dos afazeres. Por
isso, mesmo que lhe provassem o caráter duvidoso do mundo exterior, isto talvez só muito
superficialmente o afetaria, contanto que lhe fosse permitido prosseguir com suas ocupa-
ções cotidianas. O problema da validez só surge propriamente como tal com o surgimento
da evidência. Melhor dizendo, o fato de que não se encontre no mundo cotidiano e familiar
das ocupações a atitude da dúvida não nos autoriza a supor como evidente que a sua atitude
típica seja a da não dúvida. Na verdade, é o interesse prévio por uma validez de tipo univer-
sal que nos faz descobrir, ao mesmo tempo, tanto a não-validez quanto a validez apenas
parcial. No fundo isto significa que não há passagem gradual possível do mundo das ocu-
pações ou “pré-científico” para o mundo do conhecimento e da evidência. A evidência per-
de, necessariamente, esse horizonte familiar e a tal ponto que se torna incapaz de reconhe-
cê-lo como tal. Desde então, tudo o que não é conhecimento só se deixa notar no horizonte
do conhecimento.
26
Por outro lado, quando algo de inquietante e inabitual irrompe no universo familiar
das ocupações, perturbando o seu ritmo ordinário – e é somente por que o homem já é fa-
miliaridade que algo pode vir a surpreendê-lo – a atitude característica desse mundo das
ocupações nunca é a da compreensão. Este, sob o fascínio da novidade, ora deixa-se subju-
gar completamente e cai num embevecimento total, exagerando muitas vezes a importância
e o real significado daquilo que vê, ora, deixando-se arrastar pela irritação, busca submetê-
lo à familiaridade, a fim de com isso eliminar o mais possível a sua estranheza. De todo
modo, faltam-lhe inteiramente os parâmetros para uma correta avaliação daquilo que vê e
experimenta, pois única e exclusivamente no mundo familiar das ocupações esses parâme-
tros não podem ser encontrados.
Quando algo realmente se destaca fazendo questão, isto não pode significar que um
ente anteriormente conhecido e familiar tornou-se duvidoso e problemático, isto é, não
confiável. Se assim fosse, haveria uma clara prevalência do já conhecido sobre o que, num
26
Em realidade, o não-conhecimento é sempre, ao mesmo tempo, um modo de conhecimento ”. E. Husserl,
Expérience et Jugement, p.44.
32
dado momento, se torna passível de questão. Haveria então uma identidade prévia subja-
cente que mesmo abalada pela dúvida permaneceria intocada como essência ou ente de
pensamento. Em Descartes, por exemplo, a dúvida universal visa, antes de tudo, a possibi-
lidade de as coisas serem “fora e independentemente de mim”, e não exatamente as coisas
enquanto simples cogitationes, ou seja, enquanto simples entes de pensamento. Estas per-
manecerão para ele, em última instância, tão certas e indubitáveis quanto o próprio cogito
sum, pois seu ser consistiria tão só e unicamente em serem pensadas.
27
Entretanto, a pre-
sença inquietante de algo fazendo questão seria inteiramente impossível se este algo já nos
fosse previamente conhecido. Deve portanto haver aqui uma estranheza irredutível à toda e
qualquer identidade prévia, uma estranheza que realmente recuse toda possível identifica-
ção. Todavia, precisamente à medida que recusa essas tentativas de identificação, precisa-
mente à medida que as nega, algo releva desde a própria negação (não uma identidade, mas
algo determinado). Esse algo passa a mobilizar a seu favor as forças da negação, de modo a
poder destacar-se em sua estranheza. Não se trata de chegar a uma evidência indubitável, a
algo inteiramente fora de questão, mas antes de aproximar-se, com clareza, da própria escu-
ridão. Ao repelir as tentativas de identificação, é o próprio questionável que se torna visível
em sua impossibilidade de ser identificado. Isto não significa, porém, que as negações pos-
sam terminar por produzir o próprio questionável, tal como ocorre nos procedimentos didá-
ticos. Pelo contrário, é a negação que só se torna passível de ser praticada metodicamente
em virtude de o próprio questionável ter repelido identificações, destacando-se como algo
inquietante. Por essa razão, mesmo que seu horizonte não lhe permita corresponder de mo-
do adequado àquilo que o surpreende, é no mundo familiar e rotineiro das ocupações ou dos
afazeres que unicamente algo de inquietante pode medrar. Como bem mostrou Heidegger
28
,
isto se deve sobretudo ao fato de que a ocupação, em seu modo típico de descoberta, não
visualize propriamente identidades prévias, mas antes um “para quê da serventia” em fun-
ção do qual articula então um manual disponível. A descoberta de um instrumento que ser-
ve para pregar não se deve à similaridade deste com o martelo como identidade prévia, mas
27
Para Descartes, pensar significa: a ação do eu de tornar algo presente para si próprio e assim certificar-se de
si mesmo. Nesse sentido, também sentir equivale, para ele, em última instância, a pensar. Cf. “Segunda medi-
tação” in Oeuvres et Lettres. Paris: Gallimard, 1992, p. 274.
28
Cf. Ser e Tempo I. Trad. Márcia de Sá Cavalcante.4. ed. Petrópolis: Vozes, 1993, parágrafo 18.
33
antes à visualização de um certo “para quê”. Não é o martelo que possibilita o pregar, ou
como diz Aristóteles: “não vemos para ter olhos, mas temos olhos para ver”.
29
Apenas no horizonte da evidência ou da descoberta puramente teórica dos entes,
jamais poderíamos descobrir algo inquietante e surpreendente.
30
Porém, esta incapacidade
de gerar por si mesma qualquer surpresa não dispensa a evidência de ter de reportar-se con-
tinuamente a ela, sob pena de degenerar em mera positividade. Mesmo que não assuma esta
dependência, é a possibilidade de que algo surpreenda o que funda originariamente a pró-
pria evidência: o evidente resulta do surpreendente, sem que jamais possa assimilá-lo. Ao
nosso ver é isso que Aristóteles tem em vista quando, numa célebre passagem do livro I da
Metafísica, fala em duas espécies de visões. Na primeira delas, com efeito, nos surpreen-
demos com o fato de que as coisas sejam assim mesmo como são, já na segunda a surpresa
é como que invertida, pois surpreendente nos pareceria agora se as coisas não fossem preci-
samente assim como elas são. Aristóteles afirma ainda, na referida passagem, ser preciso
terminar (
a)poteleuth=sai) por esta segunda visão que, ainda segundo ele, é não apenas con-
trária à primeira (tou)nanti/on) como inclusive melhor do que ela (a)/meinon).
31
Como é possível que nós nos espantemos com o fato de as coisas serem assim
mesmo como são? O exemplo utilizado por Aristóteles é o da incomensurabilidade da dia-
gonal. Nesse espanto inaugural somos como que acometidos pelo fenômeno em toda a sua
estranheza: algo se recusa obstinadamente a ser medido. Não estamos apenas diante de um
dado espantoso, mas diante de algo que se furta às nossas expectativas de apreensão. Sabe-
mos que algo é, que algo existe e insiste em apresentar-se de um certo e determinado modo,
mas não sabemos o que seja esse algo. Daí precisamente o espanto, esse admirar-se inaugu-
ral a que faz referência Aristóteles, o qual faz todo o encanto das marionetes, também men-
cionadas na referida passagem. Trata-se de algo perfeitamente determinado, mas que ainda
não podemos sequer nomear. Não o conhecemos, mas sem dúvida já o percebe-
mos(
now=men).
29
Metafísica, IX, 8, 1050 a 10-11.
30
Nas palavras de Heidegger: “Algo que não pode ser empregado como, por exemplo, a falha de uma
ferramenta, só pode vir a surpreender num e para um manuseio. Mesmo a “percepção” e a “represen-
tação” mais detida e precisa de coisas não é capaz de descobrir o dano de uma ferramenta.” Ser e
Tempo II,. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 154.
31
Metafísica, I, 2, 983 a 11.
34
Tentemos agora descrever a segunda atitude. Trata-se, segundo nos diz Aristóteles,
igualmente de uma visão. Essa visão, entretanto, já não recua simplesmente diante de algo
imprevisto. Sabe-se agora que aquilo que antes nos desconcertava era, na verdade, uma
diagonal e sabe-se ainda que a toda diagonal pertence necessariamente o ser incomensurá-
vel. Temos, desse modo, o surgimento do conhecimento, conhecimento que brotou, por
sua vez, daquele primeiro espanto inaugural. Nele e com ele termina, acaba, consuma-se
aquele primeiro espanto. Espantoso seria agora se a diagonal pudesse não ser aquilo que ela
se revelou ser para o conhecimento, a saber: incomensurável. Estranho seria, e muito mais
estranho do que de início nos parecia ser a possibilidade do impossível, que o próprio im-
possível se tornasse possível, ou seja, que a diagonal pudesse ser medida. Todo conheci-
mento é irreversível, tal como é irreversível ter aprendido a nadar ou a andar de bicicleta.
O espanto inaugural é assim, de algum modo, resguardado, mas também transformado
e eliminado pelo conhecimento do necessário, pois quem ainda se lembraria de que
no espanto inaugural o que então se fazia visível nem sequer era nomeável?
A evidência só é possível à medida que algo venha a nos surpreender com a
sua presença inquietante (não estamos nos referindo a esta ou àquela evidência particular,
que poderia perfeitamente ser obtida sem que nada anteriormente nos inquietasse, como por
intermédio do ensino, mas à evidência enquanto tal), o que não significa, de forma alguma,
que ela esteja em condições de colocar-se na dimensão do surpreendente ou mesmo que
sinta essa necessidade. Muito pelo contrário, pertence à natureza da própria evidência o
buscar alimentar-se apenas de novas evidências. Desse modo é que nela deve vigorar o es-
quecimento de sua proveniência essencial. A evidência, na verdade, só se estabelece graças
a esse esquecimento: o percurso já feito não deve necessitar ser refeito, isto é, retomado. A
trajetória da evidência é a trajetória de um crescente esquecimento. Por outro lado, a filoso-
fia vive da necessidade de retomar e manter aceso esse mesmo surpreendente que a evidên-
cia deve relegar ao esquecimento. A filosofia é o próprio elã do surpreendente. Segundo
Platão e Aristóteles, o admirar-se é o começo da filosofia.
32
Hoje, porém, somente as evi-
dências despertam admiração, ou talvez nem mesmo isso...
32
Cf. PLATÃO, Teeteto, 155 d e ARISTÓTELES, Metafísica, I, 2, 982 b 13.
35
1.3. A filosofia, saber não demonstrativo
Aristóteles caracteriza a filosofia como um saber que, diferentemente do conheci-
mento científico, não é passível de demonstração. Esse saber do que não pode ser demons-
trado tem, por sua vez, seu núcleo de articulação numa certa percepção ora identificada e
ora distinguida da percepção sensível: o
nou=j. Não se trata de dois tipos paralelos de saber
que, tal como o “espírito geométrico” e o “espírito de sutileza” de Pascal, seriam perfeita-
mente equivalentes entre si, apesar de irredutíveis um ao outro. Segundo Aristóteles, toda
demonstração parte sempre de algo que ela não pode demonstrar e que ela deve necessari-
amente pressupor. Caso a pressuposição não seja verdadeira, o raciocínio ou o silogismo
será sempre falso, por mais correto que ele possa ser. Há, por conseguinte, uma clara su-
bordinação do saber demonstrativo ao não demonstrativo. O ponto de partida da demons-
tração deve ser previamente conhecido já que a ele jamais se chega por intermédio de uma
demonstração.
33
Mas isto ainda não diz tudo, pois não há a menor necessidade de que este
saber não demonstrativo venha a desembocar, forçosamente, em uma demonstração. Ou
seja, se por um lado o saber demonstrativo precisa sempre pressupor um saber não de-
monstrativo, por outro lado a recíproca está longe de ser verdadeira. Pelo contrário, é jus-
tamente quando não se torna uma simples pressuposição que esse saber não demonstrativo
alcança a sua plena realização como saber, uma vez que no plano exclusivo da demonstra-
ção (que é o plano da evidência) só muito raramente ele ultrapassa a condição de simples
elemento adjacente e complementar.
34
Assim, se a demonstração é conduzida por um ver
que aspira à evidência e à necessidade, e portanto a algo que deve ser universalmente váli-
do, o que sempre assegura um nível de exterioridade, o procedimento conduzido por esse
ver, que é o do
nou=j, deve ser de ordem inteiramente diversa. Aparentemente trata-se de um
procedimento menos rigoroso e menos conclusivo que o científico e que, por conta disso,
teria de fazer apelo a certos elementos estranhos à ciência, tal como, por exemplo, a exor-
33
No livro VI da Ética a Nicômacos (1029 b 34-35), Aristóteles chega a afirmar que se alguém não
conhece mais (ma=llon) o princípio do que a conclusão do silogismo, este só possuirá a ciência por acidente
(kata\ sumbebhko\j).
34
Heidegger afirma que é nos momentos de crise que as ciências alcançam o seu movimento mais próprio.
“O “movimento” próprio das ciências se desenrola através da revisão mais ou menos radical e invisível para
elas próprias dos conceitos fundamentais. O nível de uma ciência determina-se pela sua capacidade de sofrer
uma crise em seus conceitos fundamentais.” Ser e Tempo I, p.35.
36
tação.
35
Em lugar da comprovação, esse saber não demonstrativo por excelência tem por
característica principal um “tomar para si” ou “sobre si” que, em princípio, não pode dispor
de nenhum “apoio no geral”. Estranhamente, por outro lado, isto que assim é tomado ou
acatado, mesmo sendo indissociável desse tomar, não é experimentado como algo subjetivo
e parcial, mas antes como o que pode haver de mais significativo e “universal”. Esta uni-
versalidade, entretanto, não reside na generalidade e na simples necessidade do conheci-
mento, mas na possibilidade. A universalidade característica do possível não é portanto
uma universalidade ainda contaminada de subjetivismo e parcialismo, uma universalidade
ainda não depurada, mas uma universalidade de ordem mais elevada do que a puramente
conceitual e objetiva, e isto precisamente pelo fato de não permitir nenhuma exterioridade.
Esta universalidade Valery a tinha em vista quando certa vez declarou a respeito de Mal-
larmé: “Je ne sais démêler ce qu’il fut de ce qu’il me fut”( Não sei distinguir aquilo que ele
foi daquilo que ele foi para mim).
36
Rigorosamente falando, na dimensão ou no horizonte do possível não podemos ser
parciais e muito menos ainda imparciais. Nela só se pode ser imparcial sendo parcial. Nesta
universalidade nós já estamos totalmente mergulhados, o que inclusive nos impede de che-
garmos até ela, de modo gradativo, em um dado momento. Nela, nem sequer dispomos de
algum espaço para que a coação da necessidade possa se fazer valer. O possível vincula de
forma mais poderosa do que toda necessidade. A superioridade do possível sobre o necessá-
rio pode ainda ser reconhecida pelo fato de a universalidade necessária precisar englobar
todos os casos individuais possíveis e não apenas os empiricamente constatados. A necessi-
dade vincula no ponto de chegada, quando finalmente se constitui o conhecimento, enquan-
to o possível vincula já no ponto de partida. A necessidade, mesmo quando é acolhida de
boa vontade, precisa sempre coagir, em si mesma ela não é senão coação, já o possível
nunca chega a nos coagir. O possível é aquilo que só raramente tomamos em consideração,
e que sempre já afastamos em prol de considerações mais urgentes e plausíveis. Isto se deve
precisamente ao fato de que ele já nos vinculou antes mesmo de qualquer consideração
35
Um exemplo desse caráter do saber filosófico pode ser encontrado já numa das primeiras obras de
Aristóteles, da qual nos restam apenas fragmentos: o Protréptico, que em grego significa precisamente
exortação.
36
Variété, II, p. 212 apud BEAUFRET, Jean. Dialogue avec Heidegger II, Paris: Les Éditions de Minuit,
1989, p. 48.
37
expressa de nossa parte. O possível mais se faz sentir do que propriamente se destina a
uma apreensão direta de nossa parte ou a uma determinação nos moldes conceituais.
Segundo Kant, é no juízo de gosto que temos acesso propriamente a uma universa-
lidade de tipo não conceitual. Para Kant, a beleza não é um simples predicado que pudés-
semos aplicar a alguma coisa previamente identificada num juízo de conhecimento. A uni-
versalidade do belo, para ele, não gera necessidade no mesmo sentido que a universalidade
do conhecimento, quer dizer, incondicionalmente: “pois o juízo de gosto não é nenhum
juízo de conhecimento (nem teórico nem prático), e por isso tampouco é fundado sobre
conceitos e nem os tem por fim. (...) Um objeto da inclinação e um que nos é imposto ao
desejo mediante uma lei da razão não nos deixam nenhuma liberdade para fazer de qual-
quer coisa um objeto de prazer para nós mesmos. Todo interesse pressupõe necessidade
ou a produz; e, enquanto fundamento determinante da aprovação, ele não deixa mais o
juízo sobre o objeto ser livre.”
37
Mas então qual seria essa universalidade tão peculiar do juízo de gosto? Para Kant,
esta universalidade reside unicamente em sua validade para todos; é uma “universalidade
subjetiva” que não pode ser colocada em objetos e nem mesmo “ser imposta ao nosso de-
sejo por uma lei da razão”. Na medida em que se tem consciência de que nenhum interesse
se vincula à satisfação com um objeto, então não podemos deixar de supor nessa satisfa-
ção algo que deve ser válido para todos. “Pois aquilo, a respeito de cuja complacência
alguém é consciente de que ela é nele próprio independente de todo interesse, isso ele não
pode ajuizar de outro modo, senão de que tenha de conter um fundamento da complacên-
cia para qualquer um.”
38
A universalidade específica do juízo de gosto reside assim numa
satisfação inteiramente desinteressada, que apenas nos vincula como espectadores mas não
como atores. O juízo de gosto remete a algo que apraz universalmente: “Belo é o que apraz
universalmente sem conceito.
39
Fora, porém, do sentimento de prazer e desprazer esta
universalidade não conceitual seria, para Kant, totalmente impossível, pois toda sensação já
seria automaticamente encaminhada para um juízo de determinação e assim para a sua co-
locação como realidade: “Toda referência das representações, mesmo a das sensações,
37
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e Antônio Marques. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995, p.54–55.
38
Ibid., p.56.
39
Crítica da Faculdade do Juízo, p.64.
38
pode, porém, ser objetiva (e ela significa o real de uma representação empírica); somente
não pode sê-lo a referência ao sentimento de prazer e desprazer, pelo qual não é designa-
do absolutamente nada no objeto, mas no qual o sujeito sente-se a si próprio do modo
como ele é afetado pela sensação.”
40
Portanto, as sensações de prazer e desprazer remeteri-
am apenas ao sujeito que as sente e, ao contrário de outras sensações, como as de calor e
frio, não teriam sequer a possibilidade de serem objetivas. É que no caso das sensações de
prazer e desprazer não nos é sequer facultado fazer abstração de nós mesmos. Tudo o que
desperta prazer ou desprazer já é percebido como precisando estar referido a mim, ainda
que não necessariamente enquanto um indivíduo particular. Pretender determinar algo de
objetivo com base nestas sensações seria de fato uma tentativa infeliz.
Apesar de tudo isso, não nos parece certo dizer sem mais que prazer e desprazer
remetam sempre e unicamente a um estado do sujeito ou que sentir prazer ou desprazer
signifique, em primeiro lugar, sentir-se a si mesmo, mesmo considerando este último como
desprovido de toda inclinação. O que leva Kant a pensar desse modo é a pressuposição de
que se algo não tem sequer a possibilidade de ser determinado objetivamente, então ele só
pode ser de ordem subjetiva. Ora, é claro que sou eu e apenas eu que sente prazer e despra-
zer, e que esse sentimento não pode desembocar em nenhum conhecimento, mas isto ainda
não significa, por outro lado, que ao sentir prazer e desprazer eu apenas me sinta a mim
mesmo. Da mesma forma, quando algo inquietante nos surpreende isto ainda não significa
que sintamos apenas a nós mesmos. Mais do que um sentir-se a si mesmo o que há aqui é
uma total implicação que não nos permite fazer caso omisso de nós mesmos e assim alcan-
çar alguma distância assegurada. Estamos efetivamente implicados e se queremos compre-
ender o que assim nos implicou temos primeiro de nos deixar implicar. Kant, sem dúvida,
afasta a possibilidade de que o juízo de gosto se converta finalmente numa espécie inferior
de juízo de determinação e reconhece, ao mesmo tempo, a universalidade que lhe é pró-
pria. Assim procedendo ele, na verdade, faz sobressair essa implicação como sendo ela
mesma incontornável, sem contudo ter percebido todo o seu alcance, em virtude precisa-
mente da distinção capital e da reciprocidade por ele estabelecida entre entendimento e sen-
sibilidade. Em suas próprias palavras: “Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria da-
do; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios;
40
Ibid., p.48.
39
intuições sem conceitos são cegas. (...) Estas duas capacidades ou faculdades não podem
permutar as suas funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem
pensar. Só pela sua reunião se obtém conhecimento.”
41
Mas no juízo de gosto, Kant se depara precisamente com o caso de que uma intui-
ção sensível encontre a sua universalidade própria sem conceitos. Uma coisa para ser jul-
gada bela não requer que um conceito previamente a ilumine. Kant resolverá essa contra-
dição fazendo com que aquela intuição remeta não a um conceito determinado, que lhe
conferisse total transparência, mas a um conceito não determinado. Desse modo, ela não
deixaria de estar referida, como toda intuição, a conceitos. “A complacência no belo tem
que depender da reflexão sobre um objeto, que conduz a um conceito qualquer(sem deter-
minar qual), e desta maneira distingue-se também do agradável, que assenta inteiramente
na sensação.”
42
Somente um conceito poderia conferir universalidade a uma intuição,
mesmo que se trate de um conceito indeterminado, de um conceito visado como meramen-
te possível.
A referência a Kant, no presente contexto, não é casual. Aristóteles e os gregos em
geral experimentaram sob o nome de qewri/a precisamente a paixão desinteressada de ver e
apenas ver, a paixão de seguir vendo. Deixar-se tomar pelo surpreendente representava,
entretanto, para os gregos a mais nobre e mais intensa atividade de que os homens são ca-
pazes. É na tensão do surpreendente que, segundo Aristóteles, o homem alcança a sua mais
alta humanidade, a qual, para Kant, passa a residir na vida sob o império da lei moral ou
do que ele chama de razão (Vernunft). Basta-nos aqui salientar que a condição observada
por Aristóteles como indispensável para o surgimento do
qewrei=n, qual seja, a de não mais
se estar reduzido à simples necessidade, é a mesma que Kant entende possibilitar original-
mente todo juízo de gosto genuíno: “No que concerne ao interesse da inclinação pelo a-
gradável, qualquer um diz que a fome é o melhor cozinheiro e que pessoas de apetite sau-
dável gostam de tudo, desde que se possa comê-lo; consequentemente, uma tal complacên-
cia não prova nenhuma escolha pelo gosto. Somente quando a necessidade está saciada
pode-se distinguir quem entre muitos tem gosto ou não.”
43
Assim, se para Aristóteles a
41
Crítica da razão pura, p. 89. É por esse motivo que Kant rejeitará a possibilidade de uma intuição intelec-
tual.
42
Crítica da faculdade do juízo, p.52.
43
Crítica da Faculdade do Juízo, p.55.
40
teoria passou a ser buscada “quando já se dispunha de todas as coisas necessárias e daque-
las relativas ao descanso e ao ornamento da vida”
44
, para Kant o juízo de gosto apenas
pode ter lugar na ausência de toda inclinação e mesmo de todo interesse, ou seja, na ausên-
cia de tudo quanto estimule ou refreie o nosso desejo.
Mas para além dessa semelhança essencial, o que mais sugere o parentesco do
nou=j
com a faculdade do gosto, guardadas as devidas proporções, é o fato de ambos serem im-
plicação. Na demonstração, em toda ela, não só podemos como até devemos fazer caso
omisso de nós mesmos. Para o seu bom êxito, a demonstração necessita ser um procedi-
mento desvinculado de todo envolvimento explícito e apaixonado. Não faz o menor senti-
do esperar daquele que procede a uma demonstração que esta seja para ele uma “questão
pessoal”, pois o que dela se espera é que a conclusão resulte como que por si mesma e na-
turalmente das próprias premissas.
45
A demonstração se planta toda ela no terreno da evi-
dência. Mesmo as suas premissas devem ser tomadas por evidentes e como estando intei-
ramente fora de questão, caso se queira progredir rumo à conclusão. Por conseguinte, a
condição prévia de toda demonstração é a de que as suas premissas não façam elas mesmas
questão.
46
Ora, este definitivamente não pode ser o caso desta “ciência não demonstrativa”
que Aristóteles diz ser a filosofia, pois para ela o primeiro já deve ser ele próprio questão.
É o que nos diz Aristóteles quando afirma que “o que tanto nos tempos mais antigos quan-
to agora e sempre é o propriamente buscado(zhtou/menon) e nunca encontra-
do(a)porou/menon)” não é simplesmente o ente, o real, mas a questão ti/ to\ o)/n, o que é o en-
te?, a qual ele passa a designar com o nome de ou)si/a.
47
A ciência que considera o “ente enquanto ente” (o)/n h)/ o)/n) não pode ter em vista o
ente simplesmente em seu caráter mais genérico e abstrato. Não é ao ente previamente abs-
traído de todo contexto específico e de todo domínio regional que visa a filosofia, o ente
em sua simples condição genérica de ente, mas antes ao ente enquanto ente, ou seja, o ente
44
Metafísica, I, 2, 982 b 22-24.
45
Cf. Analíticos Anteriores, I, 1, 24 b 18. “O silogismo em geral é definido por Aristóteles como um discur-
so, isto é, um raciocínio, uma argumentação na qual, postas alguma “premissas” (ao menos duas, denomina-
das respectivamente “maior” e “menor”), alguma coisa de diverso delas (denominada “conclusão”) resulta
necessariamente, somente pelo fato de existirem.” BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Trad. Dion Davi
Macedo. São Paulo: Loyola, 1998, p.5.
46
Segundo diz Aristóteles nos Analíticos posteriores, I, 10, 76 b 24, os axiomas são aquilo que o aluno, ao
aprender uma ciência, deve julgar como sendo necessário por si mesmo.
47
Metafísica, VII,1, 1028 b 2-4.
41
enquanto faz ele mesmo questão, recusando, por esse motivo, toda circunscrição a uma
determinada região ou contexto específico. O mesmo acontece todas as vezes em que algo
irrompe fazendo questão; nestes casos, não é buscando circunscrevê-lo a um contexto es-
pecífico e já de antemão conhecido e familiar que nós correspondemos ao que assim se nos
apresenta. O decisivo aqui é apenas permitir que ele institua o seu próprio contexto inter-
rogativo, o que só será possível se nós nos confiarmos ao aberto de um questionamento.
Questionar efetivamente algo que faz questão significa poder transpor-se para o seu pró-
prio horizonte de compreensão, de tal modo que esse algo possa aparecer enquanto ele
mesmo. Esse modo de aparição, todavia, nunca é o mais imediato e habitual. Coisa alguma
nos aparece de pronto enquanto ela mesma, mas sempre enquanto alguma outra coisa. So-
mente quando algo faz questão é que podemos assumir o horizonte do “algo enquanto ele
mesmo”.
1.4. O princípio de não-contradição enquanto posse originária
Ora, mas se esta é a situação de toda demonstração e se a filosofia é de fato esse sa-
ber que se confia ao aberto de um questionamento (ao horizonte do possível), e que portan-
to não considera o ente na sua maior generalidade possível, devem nos soar estranhas as
seguintes palavras de Aristóteles que antecedem imediatamente o anúncio do princípio de
não-contradição:
o(/ti me\n ou)=n tou= filoso/fou, kai\ tou= peri\ pa/shj th=j ou)si/aj qewrou=ntoj h(=?
pe/fuken, kai\ peri\ tw=n sullogistikw=n a)rxw=n e)sti\n e)piske/yasqai, dh=lon:
prosh/kei de\ to\n ma/lista gnwri/zonta peri\ e(/kaston ge/noj e)/xein le/gein
ta\j bebaiota/taj a)rxa\j tou= pra/gmatoj, w(/ste kai\ to\n peri\ tw=n o)/ntwn h(=?
o)/nta ta\j pa/ntwn bebaiota/taj. e)/sti d' ou(=toj o( filo/sofoj.
Que ,de fato, cabe ao filósofo, isto é, àquele que por natureza teoriza acerca
de toda a entidade, também investigar acerca dos princípios silogísticos é
evidente; e convém ao que mais conhece em cada gênero poder enunciar
os princípios mais firmes das coisas que trata, de modo que ao que trata dos
42
entes enquanto entes cabe dizer os princípios mais firmes de todas as coi-
sas. Este é o filósofo.
48
Ao filósofo caberia, portanto, enunciar os princípios mais firmes de todas as coisas
(ta\j pa/ntwn bebaiota\taj a)rxa/j), enquanto aquele que mais conhece em cada gênero pre-
cisaria apenas enunciar os princípios mais firmes das coisas que trata
(
ta\j bebaiota/taj a)rxa\j tou= pra/gmatoj). Aparentemente a diferença entre a filosofia e as
demais ciências, que se caracterizam por seu caráter regional, seria apenas relativa à exten-
são dos princípios que enunciam. Os princípios enunciados pela filosofia abarcariam um
universo de entes muito mais amplo que os princípios das ciências. Ambas, porém, seriam
análogas, pois teriam em comum o fato de enunciarem os princípios mais firmes em seu
âmbito específico de saber: a ciência em seu âmbito mais restrito e a filosofia num âmbito
muito mais vasto. Isto seria de fato assim caso o próprio Aristóteles não nos tivesse recor-
dado anteriormente, na mesma passagem citada, que cabe ao filósofo investigar acerca dos
princípios silogísticos (peri\ tw=n sullogistikw=n a)rxw=n). Ora, estes não são princípios desta
ou daquela ciência particular, mas antes dizem respeito à própria ciência como tal, precisa-
mente por visarem à possibilidade da demonstração. O princípio mais firme de todos não é
assim o que ele é por possuir em maior grau a firmeza de todos os demais princípios regio-
nais, ou mesmo por abarcar o maior universo possível de entes, mas antes por visar à con-
dição mais universal de todos os outros princípios, ou seja, à própria possibilidade de que
uma demonstração se construa a partir de princípios. A maior firmeza deste princípio não
deve ser buscada em sua similaridade com os demais princípios, mas exatamente em sua
dissimilaridade em relação a eles. Como, porém, seria possível aferir semelhante firmeza
uma vez que a partir deste princípio último nem sequer pode haver lugar para uma demons-
tração? Efetivamente essa firmeza, caso exista, deve ser buscada em outra parte que numa
simples aferição. O esclarecimento da firmeza desse princípio é feito logo abaixo da passa-
gem acima citada:
48
Metafísica IV, 3, 1005 b 6-11.. Todas as traduções a seguir referentes ao livro IV da Metafísica seguem
,quase sempre à risca, a tradução do grupo de tradução ou)si/a, coordenado pelo Prof. Dr. Fernando Santoro
(UFRJ), e do qual também participamos. A mesma encontra-se em vias de ser publicada.
43
bebaiota/th d' a)rxh\ pasw=n peri\ h(\n diayeusqh=nai a)du/naton: gnwrimwta/thn te
ga\r a)nagkai=on ei)=nai th\n toiau/thn (peri\ ha\r a (\ mh\ gnwri/zousin a)patw=ntai
pa/ntej) kai\ a)nupo/qeton. h(\n ga\r a)nagkai=on e)/xein to\n o(tiou=n cunie/nta tw=n o)/n-
twn, tou=to ou)x u(po/qesij: o(\ de\ gnwri/zein a)nagkai=on tw=? o(tiou=n gnwri/zonti, kai\
h(/kein e)/xonta a)nagkai=on. o(/ti me\n ou)=n bebaiota/th h( toiau/th pasw=n a)rxh/,
dh=lon:
Porém, é o mais firme de todos os princípios aquele acerca do qual é impossí-
vel incorrer em falsidade; pois é necessariamente o mais conhecido (pois todos
se enganam naquilo que não conhecem) e incondicionado. Pois o que deve
possuir quem queira compreender os entes, isto não é uma suposição: mas o
que é necessário conhecer para aquele que conhece o que quer que seja, este já
chega possuindo necessariamente. Que, assim, de fato, tal seja o mais firme de
todos os princípios é evidente.
49
Como se pode ver, o que confere a máxima firmeza a esse princípio dos princípios
é uma impossibilidade, a saber: a impossibilidade de se incorrer em falsidade a seu respeito.
Ora, essa impossibilidade não é nada que se possa simplesmente aferir. O que se pode aferir
são sempre as condições para que algo seja assim como é e se apresenta. Aquilo que por
sua própria natureza é não-hipotético e incondicionado, e que por isso não possui nada que
o sustente
50
, não pode ser objeto de nenhuma aferição. Mas não é característico de todo
princípio o não poder ser objeto de uma demonstração? Não há dúvida que sim; o problema
é que, em seu âmbito específico, cada princípio já é tomado como uma suposição. Estes
princípios são eles mesmos princípios dos quais devem partir demonstrações e com isso,
ainda que não possam ser demonstrados diretamente, as próprias demonstrações atuam co-
mo uma espécie de demonstração indireta da firmeza e da “eficácia” destes últimos, pois se
a conclusão do silogismo aparece como necessária, ainda mais firmes e necessárias devem
ser então as suas premissas.
51
Nem isso, porém, cabe esperar quanto ao princípio de todos
os princípios, uma vez que dele já não pode partir nenhuma demonstração. O princípio de
49
Metafísica, IV, 3, 1005 b 11-18.
50
Aristóteles critica os que querem que tudo seja demonstrado dizendo que eles buscam uma razão inclusive
para as coisas de que não há nenhuma razão (lo/goj). Cf. Metafísica, IV, 6, 1011 a 12.
51
Metafísica, V, 5, 1015 b 6-9.
44
não-contradição, nos diz Aristóteles, é algo que já deve conhecer aquele que conhece o que
quer que seja, algo que ele já deve chegar possuindo. O princípio é uma posse, não uma
suposição. Conhecer é tomar posse do que já se possui para poder conhecer o que quer que
se venha a conhecer.
52
A firmeza do princípio reside, portanto, em sua radical anteriorida-
de, que não se confunde com a anterioridade meramente pontual da suposição. O princípio
não é um simples ponto de partida que ficaria para trás com o advento do conhecimento, ele
é antes aquele conhecimento que preside(
a)rxei=n) todo novo conhecimento e que, por conta
disso, já deve possuir aquele que conhece algo novo. Este nos parece ser o sentido profundo
do que Platão chamou de a)na/mnhsij ou reminiscência. Conhecer o que já se conhece para
poder conhecer o que quer que se venha a conhecer é o conhecimento em sentido mais ple-
no e elevado: o conhecimento dos princípios.
A firmeza do princípio dos princípios é assim a firmeza de uma posse originária,
que, justamente por ser originária, não cabe pretender assegurar. Ninguém, com efeito, po-
de assegurar-se daquilo que já chega possuindo; só do que se passa a possuir em um dado
momento é que se pode buscar um asseguramento. O mais firme de todos os princípios é
portanto aquele que repele qualquer tentativa de asseguramento e que não pode servir de
base para nenhuma demonstração. Aristóteles o enuncia da seguinte maneira: pois é impos-
sível o mesmo pertencer e não pertencer simultaneamente ao mesmo segundo o mesmo.
53
E
Aristóteles complementa o anúncio do princípio de não-contradição dizendo que “este é o
mais firme de todos os princípios, pois possui a distinção anteriormente mencionada.
54
Em que medida o princípio de não-contradição representa para nós uma posse originária?
Por que razão afinal sobre ele não seria possível incorrer em falsidade?
1.5. A demonstração do princípio de não-contradição
O princípio de não-contradição é normalmente entendido como uma evidência.
Ninguém contesta, hoje em dia, que alguém que se contradiga deve, somente por isso, estar
em erro. Ser pego em contradição significa, para nós, o mesmo que ser surpreendido em
52
Um “axioma”, para Aristóteles, é precisamente aquilo que já se deve possuir para que se possa aprender
qualquer coisa. Este não é o caso da “tese”, que posta pelo professor, não é uma condição para o aprender. Cf.
Analíticos Posteriores, I, 2, 72 a 15.
53
Metafísica, IV, 3, 1005 b 19-21.
54
Metafísica, IV, 3, 1005 b 22-23. Ou seja, aquela segundo a qual é impossível incorrer em falsidade.
45
falta grave. Esta situação habitual faz com que soe estranho o fato de que Aristóteles, jus-
tamente após enunciar o princípio de não-contradição, julgue ainda necessário demonstrá-
lo. Certo, não se trata de uma demonstração stricto sensu, mas de uma demonstração por
refutação. Esta só pode ter lugar mediante a presença de um contraditor. Mas quem poderia
se contrapor a um princípio tão evidente? Onde seria possível encontrar um contraditor para
o princípio de não-contradição? Aristóteles, no entanto, parte muito naturalmente da sua
existência. Não se trata de um contraditor hipotético. Diríamos antes que o contraditor pré-
existe ao próprio princípio. O princípio de não-contradição é enunciado de encontro a um
contraditor que julga evidente precisamente o contrário daquilo que ele, princípio, enuncia,
a saber: que o mesmo pertence e não pertence, ao mesmo tempo, ao mesmo, segundo o
mesmo. Em sua origem, portanto, o princípio de não-contradição não é apresentado sem
mais como uma evidência incontestável, mas como uma evidência que já estava sendo con-
testada.
São dois, à primeira vista, os contraditores do princípio de não-contradição: de um
lado, os que afirmam que uma mesma coisa pode ser e não ser, “tal como alguns acreditam
que Heráclito diz”, e, de outro lado, aqueles que, por ignorância (di' a)paideusi/a), julgam
necessário que também esse princípio seja demonstrado.
55
Aristóteles, porém, refere-se ao
contraditor no singular (o( a)mfissbhtw=n), sem contudo especificá-lo, a não ser como “al-
guém” que se dispõe a acusar uma petição de princípio. O contraditor do princípio de não-
contradição deve ser assim alguém familiarizado com o procedimento argumentativo; ele
deve atuar como alguém que, por toda a parte, exerce a refutação com base em algo que ele
próprio não admite discutir. Seu ponto de partida é uma pressuposição que deve permane-
cer inteiramente fora de questão. O contraditor do princípio de não-contradição é aquele
que afirma uma tese absoluta e que, como diz Aristóteles, pretende “heraclitizar”(
h(rakleiti/zein). Este é, portanto, o erudito conhecedor das teses de Heráclito e de outros, e
que fez delas um mero ponto de apoio para a sua prática refutatória. Sua ignorância não é
simples, mas revestida da auto-suficiência de quem “sabe”.
Aristóteles afirma que em semelhante demonstração não ocorre nenhuma petição de
princípio, a não ser por parte daquele que pretende refutar o próprio princípio. Seria isso o
mesmo que dizer que o contraditor do princípio de não-contradição comete uma auto-
55
Ibid., IV, 3, 1005 b 24 e 1006 a 5.
46
refutação? Seria o princípio de não-contradição uma evidência que não admite ser contesta-
da? Como se deve entender o caráter irrecusável desse princípio? Vejamos o que diz o
próprio Aristóteles:
e)/ti d' a)podei=cai e)legktikw=j kai\ peri\ tou/tou o(/ti a)du/naton, a)\n mo/non ti le/gh? o(
a)mfisbhtw=n: a)\n de\ mhde/n, geloi=on to \ zhtei=n lo/gon pro\j to\n mhdeno\j e)/xonta
lo/gon, h(=? mh\ e)/xei: o(/moioj ga\r futw=? o( toiou=toj h(=? toiou=toj h)/dh. to\ d' e)legktikw=j
a)podei=cai le/gw diafe/rein kai\ to\ a)podei=cai, o(/ti a)podeiknu/wn me\n a)\n do/ceien
ai)tei=sqai to\ e)n a)rxh=?, a)/llou de\ tou= toiou/tou ai)ti/ou o)/ntoj e)/legxoj a)/n ei)/h kai\
ou)k a)po/deicij. a)rxh\ de\ pro\j a(/panta ta\ toiau=ta ou) to\ a)ciou=n h)\ ei)=nai ti le/-
gein h)\ mh\ ei)=nai(tou=to me\n ga\r ta/x' a)/n tij u(pola/boi to\ e)c a)rxh=j ai)tei=n), a)lla\
shmai/nein ge/ ti kai\ au(tw=? kai\ a)/llw?: tou=to ga\r a)na/gkh, ei)/per le/goi ti. ei) ga\r
mh/, ou)k a)\n ei)/h tw=? toiou/tw? lo/goj, ou)/t' au)tw=? pro\j au(to\n ou)/te pro\j a)/llon. a)/n
de/ tij tou=to didw=?, e)/stai a)po/deicij: h)/dh ga\r ti e(/stai w(risme/non. a)ll' ai)/tioj
ou)x o( a)po/deiknu\j a)ll' o( u(pome/nwn: a)nairw=n ga\r lo/gon u(pome/nei lo/gon.
Há, porém, também sobre isso, que é impossível, um demonstrar por refutação,
contanto somente que o contraditor diga algo. No entanto, se nada diz, é ridícu-
lo buscar conversa com quem mantém um discurso desde nada, pois enquanto
não tem discurso algum este que assim age mais se parece a uma planta. Digo
que o demonstrar por refutação difere do simples demonstrar porque, de um la-
do, aquele que demonstra pareceria requisitar o que está no próprio princípio,
por outro lado, porém, sendo outro a causa disto, haveria refutação e não de-
monstração. O ponto de partida em relação a todos esses casos não é o pedir pa-
ra que se diga se algo é ou não é (pois isto logo alguém sustentaria ser a peti-
ção de princípio), mas que signifique algo tanto para si quanto para outrem:
pois isto é necessário caso se diga algo. Porque se não fosse assim não haveria
discurso, nem o que se dirige a si mesmo, nem o que se dirige a algum outro.
Porém, se alguém conceder isso, haverá demonstração pois já haverá algo de-
terminado. Mas assim o responsável não será quem demonstra mas aquele que
suporta a demonstração; pois destruindo um discurso sustenta um discurso.
56
56
Metafísica, IV, 4, 1006 a 11-26.
47
Que tipo de ação é esta que Aristóteles exige para que possa acontecer uma
refutação? Aristóteles exige que o contraditor signifique algo, e que o faça para um
outro e para si mesmo (
kai\ au(tw?= kai\ a)/llw?). Não basta que se diga qualquer coisa
ao acaso, é preciso que se diga algo tendo realmente algo em vista. Dizer “planta”,
“carro”, “caneta” sem ter nada em vista, apenas para dizer qualquer coisa, ainda não
chega a constituir propriamente um dizer. Por isso, tampouco aí faz-se possível uma
refutação, pois como diz Aristóteles numa outra passagem: “o impasse não está em
que seja possível o mesmo ser e não ser ‘homem’ quanto ao nome (
to\ o)/noma), mas
quanto a coisa em questão (to\ pra=gma).”
57
Significar algo para si e para outrem é a
ação (pra=cij) que distingue o homem de uma simples planta. É falando que nos
tornamos quem de fato somos: o vivente que tem (é) Lógos. Mas falar significa pro-
priamente: ter algo em mente. Aquele que consente em significar algo para si e para
outro, e que tem realmente algo em vista quando fala, fará necessariamente a experi-
ência de que não é possível “os contrários serem simultaneamente predicados.”
58
É
nisso que aposta Aristóteles quando fala em demonstrar por refutação. Por outro lado, nin-
guém que diz realmente alguma coisa pode produzir, desde si apenas, esse dizer. O dizer é
ele mesmo uma correnteza em que já nos situamos quando dizemos isto ou aquilo. Por isso,
Aristóteles chega a dizer do contraditor: “ao destruir um discurso sustenta um discurso”.
Sustentar, suportar um discurso diz aqui escutar. Só fala propriamente aquele que em tudo
o que diz e cala fala simultaneamente o fluxo do dizer. Quem primeiro não escutou nunca
tem realmente o que dizer.
O que Aristóteles está requisitando já é em si mesmo uma requisição, ou seja, algo
em que já estamos lançados e que jamais pode tornar-se um simples suposto. A requisição
ela mesma já aconteceu, melhor, não cessa nunca de acontecer. Portanto, a requisição que
Aristóteles faz ao contraditor não é a de que ele requisite inadvertidamente o princípio de
não-contradição e assim cometa ele próprio uma petição de princípio – o que no máximo
eqüivaleria a uma esperteza lógica – mas antes que ele seja a requisição que desde sempre
ele já é, pois falar, dizer, significa requisitar algo, trazê-lo à fala, fazê-lo emergir e apare-
57
Ibid., IV, 4, 1006 b 20-22..
58
Ibid., IV, 4, 1007 b 17-18.
48
cer, em suma, significá-lo. Esta requisição nós a somos a cada vez que falamos
59
. Aristóte-
les não afirma, como de início poderia parecer, que a petição de princípio seja cometida
pelo contraditor e não por aquele que demonstra, e que por isso haveria uma demonstração
por refutação. A requisição aristotélica para que o contraditor signifique algo faz ecoar, de
modo todo especial, o famoso imperativo pindárico: “Vem a ser, na própria experiência,
aquele que tu és”, que em versão aristotélica ficaria: “Torna-te homem, não sejas planta”!
Encontramos, portanto, na demonstração por refutação não um procedimento lógico
e artificial, destinado a calar simplesmente o adversário, e obrigá-lo a acatar uma evidência
incontestável, mas antes uma e)pagwgh/(indução), que possibilita ao contraditor admitir re-
almente uma situação extrema e assim passar ele mesmo por uma transformação.
60
Quando
Aristóteles incita o contraditor para que este signifique algo uno, logo no início da demons-
tração por refutação, ele está na verdade propiciando uma experiência que pode
efetivamente abrir-lhe o fenômeno em questão. Essa experiência de uma passagem que só
pode ser favorecida, mas que nunca pode ser produzida, era até certo ponto familiar para os
gregos e constituía um dos elementos centrais de suas tragédias. Comentando as
características do que ele chama de “mito complexo”, Aristóteles afirma, no capítulo XI da
Poética, que o reconhecimento, que é a passagem da ignorância para o conhecimento,
alcança a sua mais bela forma quando acontece simultaneamente com a peripécia: a
passagem da dita para a desdita. Ainda segundo ele, esta transformação radical ocorre,
exemplarmente, no mito de Édipo.
Aristóteles tem aqui em mente uma transformação que acontece quando, no curso
de certos acontecimentos, dá-se uma “quebra” que subverte inteiramente as expectativas de
sentido de um personagem. Nesta quebra, o próprio sentido emerge e se apropria do perso-
nagem. Desse modo, à medida que reconhece o fenômeno do significar, o contraditor expe-
rimenta uma transformação cuja responsabilidade ele não poderia atribuir a nenhum outro,
mas de cuja efetividade ele já não pode duvidar. Essa transformação poderia afetar a sua
existência como um todo, e constituir o que Aristóteles chama de “escolha de vida”
(
proai/resij tou= biou=), para diferenciar drasticamente a filosofia da sofística. Trata-se, por-
59
Cf. PLATÃO, O Sofista, 263 c.
60
Ética a Nicômacos, VI, 3, 1139 b 28. A indução é o acesso aos princípios.
49
tanto, de superar uma prática mediante uma nova prática. Esta nova prática consiste, preci-
samente, em colocar em jogo, sem cessar e por toda a parte, as próprias pressuposições.
Também Platão, no diálogo O sofista, tem em vista o mesmo procedimento refutató-
rio, o qual é nomeado pelo estrangeiro de “autêntica e nobre sofística”. Nesse diálogo são
distinguidas duas modalidades de educação no âmbito dos discursos. A primeira é aquela
exercida pelos pais em relação a seus filhos: a admoestação. A outra forma de educação é
encontrada a partir da ineficácia da primeira em curar a ignorância, que é involuntária, isto
é, sem escuta (a)kou/sioj). A ignorância é definida precisamente por ser um acreditar-se
sábio, e ninguém quererá aprender enquanto se imaginar maximamente dotado(deino/j). A
forma de educação então adequada é, tal como fazia Sócrates, um colocar questões com
insistência, de modo que alguém acredite dizer algo sem nada dizer que venha realmente ao
caso. Então, os que assim procedem, conduzindo os discursos para o mesmo ponto, con-
frontam-nos, e uma vez os tendo confrontado, mostram explicitamente que os mesmo dis-
cursos, para os mesmos, se revelam simultaneamente contrários, e isso a respeito das mes-
mas coisas e em relação aos mesmos aspectos e pontos de vista. “Os que vêem isso, diz
Platão, irritam-se consigo mesmos e se disponibilizam para os outros. Por esse procedi-
mento são afastadas as opiniões pretensiosas e inflexíveis, sendo maximamente agradável
para todos os que estão a parte ouvir, tendo o ouvir se tornado, para o que sofreu a refuta-
ção, o que há de mais firme
.
61
Aristóteles, por seu turno, não considera que se deva proceder da mesma maneira
em relação àqueles que caíram em aporia (
a)porh=sai) e em relação aos que falam pela gra-
ça do discurso(lo/gou xa/rin le/gousi). Somente para estes últimos é que a força(bi/aj) se faz
oportuna, para aqueles, porém, cabe a persuasão(
peiqou=j). No caso em que convém a per-
suasão, a ignorância deixa-se sanar com facilidade, e a resposta não é contra o discurso,
mas contra o pensamento. No caso em que convém a força, pelo contrário, a cura consiste
em uma refutação(e)/legxoj) do discurso que está na voz e nos nomes.
62
Aristóteles não pa-
rece duvidar minimamente de que, pelo menos no âmbito do pensamento, as aporias e con-
trovérsias devam cessar por completo tão logo a verdade seja apresentada em sua integrida-
de. A verdade possui ela mesma o poder de constranger e os filósofos genuínos distinguem-
61
O Sofista, 230 b.
62
Metafísica, IV, 5, 1009 a 16ss.
50
se pelo fato de se deixarem constranger por ela.
63
É flagrante aqui o contraste que se procu-
ra estabelecer entre a docilidade dos verdadeiros filósofos, que estariam sempre dispostos a
rever seus pressupostos, e a intransigência daqueles que falam apenas por falar.
Já a demonstração por refutação quer, finalmente, chamar a atenção para o descom-
passo existente entre o que se está reivindicando como verdade última e a própria conduta
imediata no mundo; o que nela se busca refutar é a despreocupação quanto a isso. É o que
se pode perceber nos vários argumentos “pragmáticos” que Aristóteles lança mão a fim de
evidenciar que os contraditores do princípio não acreditam realmente naquilo que dizem.
64
Assim sendo, o contraditor do princípio de não-contradição não é aquele que comete uma
falta lógica, mas antes aquele que não enxerga a necessidade de que o seu comportamento
acompanhe as teses e posições assumidas publicamente por ele como evidentes.
Aristóteles não recorre ao princípio de não-contradição como uma posição já de an-
temão assegurada, ele não comete nenhuma petição de princípio. O que ele faz, na verdade,
é apelar para uma lei não escrita, uma lei que ninguém pode simplesmente esclarecer para
um outro e que só pode mesmo é ser acatada, a lei que assim se enuncia: isso que tu dizes é
forçoso também que tu o sejas. É o que fica evidente, por exemplo, tal como numa caricatu-
ra, pela conduta de Crátilo que, convencido da mutabilidade universal de todas as coisas, e
de que os nomes cristalizam o devir, sequer admitia falar, e em vez disso movia o dedo.
65
Quem, ao contrário, nem ao menos sente a pressão desse imperativo já se excluiu da comu-
nidade dos que pensam e dialogam entre si.
66
De há muito, porém, deixou de ecoar esse apelo, tendo o princípio de não-
contradição se convertido em uma posição assegurada, em uma evidência indiscutível, com
a qual ninguém mais julga necessário ocupar-se, e desde a qual se pratica então a refutação:
exatamente o que caracterizava o comportamento do contraditor. Ou então, ele é simples-
mente descartado em favor de fórmulas “mais precisas” e por não corresponder ao ideal de
63
Ibid., I, 3, 984 b 10.
64
Nesses argumentos, Aristóteles afirma que se para o contraditor tudo fosse realmente eqüivalente não o
veríamos dizer e nem empreender nunca coisa alguma, pois isto implica em preferir umas coisas a outras. Cf.
Metafísica, IV, 4, 1008 b 7 ss.
65
Metafísica, IV, 5, 1010 a 10.
66
É significativo que na tragédia Antígona de Sófocles, onde aparece expressamente a referência às leis não-
escritas, a personagem que assume abertamente essa implicação, a própria Antígona, julgue até certo ponto
natural que sua irmã, Ismene, não acate essas mesmas leis, pois diz-lhe em certo momento: “A uns você pare-
cerá sábia, a outros, porém, parecerei eu.” (v. 557)
51
total demonstrabilidade assumido pela atual lógica simbólica; quando muito ele teria o seu
campo de validade restrito aos debates e assuntos judiciários, como defende, por exemplo,
o lógico polonês Jan Lukasiewicz.
67
Esta situação não é, de forma alguma, simplesmente casual e encontra a sua fonte já
no próprio Aristóteles, quer dizer, em uma expectativa suscitada por seu procedimento de-
monstrativo. Aristóteles afirma poder refutar pela força o contraditor do princípio de não-
contradição. Ora, tal refutação é simplesmente impossível. O discurso filosófico depende,
na verdade, de uma solicitude pouco habitual para poder impor-se e tornar-se persuasivo.
Esta é a fragilidade que Aristóteles procura dissimular. Fazendo isso, ele apresenta o dis-
curso filosófico como sendo o único capaz de corresponder ao pressuposto reinante em sua
época, e não apenas nela, de que um discurso só possui realmente valor se consegue ser
impositivo. Desse modo, o princípio de não-contradição não pôde deixar de converter-se na
fortaleza inexpugnável do discurso que, em toda ocasião, busca impor-se pela força. Toda-
via, ao contrário do que afirma Aristóteles, a atitude que se sustenta em algum acordo tácito
é inteiramente irrefutável. Essa atitude só pode ser superada mediante uma transformação
que implique em assumir um comportamento qualitativamente diverso, mas isso é precisa-
mente o que não pode acontecer sem colaboração. Ninguém pode ser forçado a transfor-
mar-se, ou melhor, só cede à pressão da força aquele que já acedeu à solicitude sem força
do sentido. De certo modo, isso é testemunhado pelo próprio Aristóteles quando, no início
da demonstração por refutação, ele incita o contraditor a dizer algo, isto é, a colaborar. O
discurso filosófico conduz, sem dúvida, para o âmbito onde semelhante transformação pode
realmente acontecer, o que ele não pode é produzir essa transformação.
1.6. Unidade e unicidade do significar
67
O princípio de não-contradição não tem nenhum valor lógico, porque ele somente pode valer como supo-
sição, mas ele possui um valor prático-ético, que é mesmo mais significativo. O princípio de não-contradição
é a única arma de que dispomos contra o erro e a mentira. Se nós não reconhecemos esse princípio, e mante-
mos como possíveis a afirmação e a negação simultâneas, então não poderemos nos defender contra as de-
clarações falsas ou mentirosas de um outro.Jan Lukasiewicz. Sur le principe de contradiction chez Aristote.
Paris, Rue Descartes : Collège international de philosophie, Avril 1991, p. 11-31. A revista esclarece tratar-se
de uma tradução do artigo apresentado pela primeira vez em 1910 no Bulletin international de l’Académie des
sciences de Cracovie, p. 15-38, com o título Über den Satz des Widerspruchs bei Aristóteles.
52
Mas a demonstração por refutação não se encerra com a indicação de que dizer já
implica em que se signifique algo para si e para outrem, pois este algo poderia ainda admi-
tir as mais diversas significações, de tal forma que, ao significarmos algo, poderíamos até
mesmo estar significando contrários. Aristóteles se empenhará então em determinar o signi-
ficado do próprio ato de significar. Esta segunda etapa da demonstração por refutação refe-
re-se à possibilidade da persuasão, pois trata-se de assegurar que, no confronto entre teses e
posições distintas, se possa chegar a uma que seja pelo menos mais próxima da verdade do
que a(s) outra(s). Ela começa em 1006a 28 e se estende até 1007b 18, terminando com as
seguintes palavras: “Mas se é assim, mostrou-se que é impossível os contrários serem si-
multaneamente predicados.” A essência do ato de significar será aqui determinada como o
ato de significar a unidade. A possibilidade de atribuir com necessidade, a cada vez, um
único nome a uma realidade única é assim o que funda o próprio ato de significar, “pois
como nos diz Aristóteles – sem a significação dos nomes fica abolida a ação de dialogar
uns com os outros e, na verdade, também consigo mesmo, pois nada é possível pensar
quando nada se pensa de uno, e se for possível pensar algo, para esta realidade una
(tw=? pra/gmati e(/n) já se estabeleceria um nome.” (1006 b 7-11)
Quando dizemos algo, isto é, quando falamos e temos realmente algo em vista já há,
sem dúvida, algo determinado(ti w(risme/non).
68
Isto que estamos visando enquanto falamos,
porém, não comparece na forma de uma apreensão. Quando falamos “carro” ou “homem”,
vemos de fato alguma coisa, só que isto que vemos ainda não é algo que signifique isto ou
aquilo, mas algo que comporta os mais diversos significados. Para Aristóteles, entretanto,
mesmo em toda essa pluralidade de significados possíveis, ao menos um já deve estar, des-
de o início, descartado, a saber: a possibilidade de que “carro” ou “homem” signifiquem,
respectivamente, “não-carro” e “não-homem”. Isto quer dizer que, para Aristóteles, os pos-
síveis significados de algo jamais podem se estender ilimitadamente ao ponto de poderem
abarcar inclusive o seu significado contrário, pois neste caso já não haveria mais nada de
determinado. Em outras palavras, se “carro” pudesse significar até mesmo “não-carro”, ele
significaria tudo e já não significaria mais nada. O limite da significação seria assim a dife-
rença intransponível de ser e não-ser.
69
68
Metafísica, IV, 4, 1006 a 24.
69
Ibid., IV, 4, 1006 a 26.
53
Para que algo possa ser determinado em algum sentido unívoco ele já deve estar, de
antemão, determinado. Mas será que essa determinação inicial exclui realmente a possibili-
dade de contradição entre significados? Não seria isso o mesmo que subordinar a presença
de algo à possibilidade de que ele seja significado de modo unívoco e assim conhecido?
Não seria isso o mesmo que dizer que aquilo que não admite ser conhecido propriamente
não é, e que algo só é à medida que pode ser expresso em significados não contraditórios
entre si? Para Aristóteles não há dúvida de que se vemos algo enquanto falamos é porque
esse algo permite ser apresentado em significados que não se contradizem mutuamente.
Mas essa não é, de fato, uma necessidade do e no dizer. Nós não temos, efetivamente, de
pressupor, nesse sentido, o princípio de não-contradição a cada vez que dizemos algo. An-
tes nos parece que é Ortega y Gasset quem tem razão quando afirma:
El principio de contradicción no vale para las significaciones que hay:
vale solo para significaciones que no hay y, simplemente, postulamos como
significaciones ideales o como ideal de significación.”
70
Que algo já precise estar determinado para que haja um dizer, isto ainda não sig-
nifica que este exclua de si significações contraditórias. Isto ele só fará se e quando for
visto e conhecido em sua quididade. Não é, portanto, a possibilidade de ser apreendido
em seu quid que faz de algo precisamente algo e não nada. É o conhecimento que, uma
vez instituído, esquece a sua proveniência e postula o princípio de não-contradição como
um princípio da própria realidade. O conhecimento assume então o lugar da ação de sig-
nificar e a quididade o lugar do possível (real) entrevisto no e pelo dizer. A inversão não
poderia ser mais completa, pois não é a presença de algo determinado que possibilitaria
a descoberta e a postulação de uma quididade, mas antes, pelo contrário, é esta última
que possibilitaria a primeira.
Aristóteles afirma, em outro lugar, que os sons da voz são “símbolos das disposi-
ções da alma” (tw=n e)n th?= yuxh?= paqhma/twn).
71
Estas disposições da alma já são algo deter-
minado, mas ainda não são nenhuma quididade. Elas, na verdade, são o propriamente indi-
zível em todo dizer. Nenhum dizer alcança exprimir, de forma cabal, aquilo de que ele é o
70
ORTEGA Y GASSET, J. La idea de principio en Leibniz y la evolucion de la teoria deductiva. Madrid,
Revista de Ocidente, 1992, p. 181.
71
Da interpretação, 16 a 3.
54
dizer. Esta tampouco é uma necessidade sua. Quando Aristóteles, na Poética, refere-se ao
mito e à “ação una” dizendo: “Muitas são as ações que uma pessoa pode praticar,
mas nem por isso elas constituem uma ação una
72
, ele tem em vista uma integração
que não é o resultado de nenhum acréscimo posterior, mas que só é entrevista pelo poeta à
medida que este também se dispõe a agir, isto é, a “poetar”. A “Odisséia” não narra assim
os acontecimento da vida de Odisseu ou Ulisses, mas as peripécias que a palavra ou a “ação
una” Ulisses fazem unicamente aparecer. A identidade do herói é indeslindável da ação
mediante a qual ele vem a ser. O dizer poético já renunciou, desde o início, à pretensão de
definir cabalmente algo e, ao invés de procurar precisar um único significado que fosse
capaz de nos apresentar, inequivocamente, a coisa em sua quididade, deixa falar os seus
múltiplos significados, integrando-os na unidade tensa da imagem. É o que mostra bela-
mente Octavio Paz na seguinte passagem:
Na prosa, a unidade da frase é conseguida através do sentido, que é algo co-
mo uma flecha que obriga todas as palavras a apontarem para um mesmo obje-
to ou para uma mesma direção. Ora, a imagem é uma frase em que a plurali-
dade de significados não desaparece. A imagem recolhe e exalta todos os valo-
res das palavras, sem excluir os significados primários e secundários. Como
pode a imagem, encerrando dois ou mais sentidos, ser una e resistir à tensão
de tantas forças contrárias, sem converter-se em um mero disparate?
73
Em tudo o que é visado no dizer, há sem dúvida uma tendência, que lhe é constituti-
va, para a sua completa dissolução na mais pura indeterminação. A poesia e o conhecimen-
to são, em última instância, reações a essa tendência, à medida que não assumem o real
como algo dado, mas como o que sendo já algo determinado tende, não obstante, para uma
total indeterminação. Paradoxalmente, para ser esse algo determinado que de fato é, o real
também precisa ser construído, já que ele é em si mesmo um possível. Enquanto, porém, a
72
Poética, 1451a 19-21. Trad. Eudoro de Souza, p. 51. Há que se lembrar que mu=qoj significava arcaicamen-
te palavra. Ver sobre isso o Poema de Parmênides.
73
PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1990, p.45.
55
poesia resguarda o possível na imagem, o conhecimento pretende traduzí-lo na uniformida-
de de uma significação pregnante. O conhecimento reage à instabilidade do possível confi-
ando-se à constância do necessário, e finalmente acaba fazendo este último antecipar-se
virtualmente ao primeiro, como se para termos algo em vista no dizer, precisássemos antes
tê-lo designado de maneira inequívoca.
A determinação do significado do significar se desdobra ainda numa distinção que
será plena de conseqüências: a distinção entre duas modalidades de significar. Nome não é
tudo o que, de algum modo, significa, pois não são ações idênticas significar algo uno
(shmai/nein e(/n) e significar de algo uno (kaq' e(no/j). Somente no primeiro caso temos um
nome, no segundo temos os atributos ou coincidentes.
Nome e coincidentes se diferenciam pelo modo como significam. Se os coinciden-
tes pudessem valer sem mais como nomes, tudo poderia ser dito indiscriminadamente de
tudo, sem que a cada vez se precisasse dizer(assumir) nada de determinado. Desse modo,
não apenas não haveria nomes como nem sequer haveria significação. Esta é a conse-
qüência sem dúvida extremada que Aristóteles extrai da hipótese de que também os
coincidentes significassem algo uno: “Por isso não consideramos que o que é dito
de algo uno signifique esse tal um, uma vez que, desse modo, os nomes “músico”,
“branco” e “homem” significariam uma só coisa, de tal forma que seriam todos um
só, pois seriam sinônimos.” (1006 15-18) Dizer de alguém que “é homem” não é o
mesmo que dizer do mesmo que “é branco” ou que “é músico”.
O nome, por si mesmo, já significa algo uno, e é para este que converge a ação de
significar, à medida que o toma para si e dele se encarrega. Por sua vez, a ação de signifi-
car nunca depõe o próprio nome, tomando-lhe o lugar. Isto não só não impede como até
exige que a significação se vincule, necessariamente, ao nome, ou, o que aqui é o mesmo, à
coisa significada. É o que afirma Aristóteles na seguinte passagem:
a)na/gkh toi/nun, ei)/ ti/ e)stin a)lhqe\j ei)pei=n o(/ti a)/nqrwpoj, zw=?on ei)=nai di/poun
(tou=to ga\r h)=n o(\ e)sh/maine to\ a)/nqrwpoj): ei) d' a)na/gkh tou=to, ou)k e)nde/xetai
mh\ ei)=nai [to/te] to\ au)to\ zw=?on di/poun (tou=to ga\r shmai/nei to\ a)na/gkh ei)=nai,
to\ a)du/naton ei)=nai mh\ ei)=nai [a)/nqrwpon]): ou)k a)/ra e)nde/xetai a(/ma a)lhqe\j
ei)=nai ei)pei=n to\ au)to\ a)/nqrwpon ei)=nai kai\ mh\ ei)=nai a)/nqrwpon.
56
É necessário, portanto, sendo verdadeiro dizer de algo que é homem, que es-
te algo seja um “animal bípede”(pois era isto que significava o nome “ho-
mem”). Se isto é necessário, não é possível que esta mesma coisa não seja,
neste caso, um animal bípede (pois isso é o que significa “ser necessário”:
não poder não ser homem). Por conseguinte, não é possível dizer que seja
simultaneamente verdadeiro o mesmo ser e não ser homem.
74
Novamente temos aqui a primazia do nome, pois a significação apenas o determina,
não o pode substituir. Nenhuma determinação é possível ali onde tudo se acha indetermina-
do. A determinação “animal bípede” só é necessária porque “homem” já significava algo
determinado, antes mesmo de possuir esta ou aquela significação. Somente onde nome já
impera é possível pretender uma significação necessária.
À medida que temos algo diante dos olhos parece não haver a menor dificuldade em
dele predicarmos tudo quanto quisermos. Aqui dizer de algo que é homem ou que é branco
não faz a menor diferença. O nome se configura como sendo posterior à própria coisa en-
tendida, por sua vez, como materialidade previamente dada, possuindo tão somente a fun-
ção de designá-la. Da mesma forma como antes se supunha que para falar basta ter vonta-
de, não sendo preciso pressupor absolutamente nada, a suposição, desta vez, é a de que para
falarmos algo de algo basta que nos coloquemos diante dele; o nome seria apenas um ins-
trumento de designação.
75
Todavia, esta situação se modifica inteiramente tão logo alguém nos pergunte “se é
verdadeiro dizer que este algo é homem ou não
76
, pois como quer que respondamos a esta
pergunta, seja positiva seja negativamente, não o fazemos com base em algo que tenhamos
aí diante dos olhos, mas com base em algo que só vemos à medida que o pronunciamos
silenciosamente para nós mesmos. Quando dizemos homem, vemos algo que jamais pode-
ria ser visto a olho nu. Portanto, respondendo sim ou não à esta pergunta assumimos con-
74
Metafísica, IV, 4, 1006 b 28-34.
75
Esta é a posição assumida por Sócrates no início do Crátilo de Platão(388 a). O nome seria um
o)/rganon, um instrumento, que como tal pode ser adequado ou inadequado conforme o caso. No final
do diálogo, porém, Platão deixa entrever ainda, mais do que afirma, uma outra possibilidade, a saber: a
possibilidade de que o nome seja sempre palavra dirigida a algo ou a alguém. Neste sentido, um
nome, ao contrário de que pensa Crátilo, não é nunca um simples ruído, mesmo quando erra o seu
alvo (430 a).
76
Metafísica, IV, 4, 1007 a 12.
57
juntamente que para ver qualquer coisa já precisamos antes ter visto, não sem dúvida ter
visto o que de pronto se dá a ver, mas algo que jamais podemos ter diante dos olhos. A sig-
nificação necessária pressupõe a percepção daquilo que “homem”, por si mesmo, já signifi-
cava.
Mas o que “homem” já significava? Seria isso uma quididade que já teria excluído
de si toda contradição? Quando Hesíodo, na Teogonia, nomeia os homens de “homens co-
me-pão” (a)ndrasin a)lfhsth?=sin)
77
ele não tem em vista nenhuma quididade, nada que iso-
lasse o homem de todos os demais entes, mas uma certa comunidade tensa, que, ao mesmo
tempo, aproxima e separa os homens seja dos deuses seja dos demais animais. Os homens
tal como os animais necessitam alimentar-se, mas, tal como os deuses, eles se alimentam de
algo que corresponde à sua natureza: seu alimento privilegiado é um produto de suas mãos.
Além disso, nomeando o homem no plural, os homens, Hesíodo assinala sua natureza social
e política. Numa única imagem estão reunidos os elementos mais díspares e contrários que
fazem sobressair a identidade ao mesmo tempo una e múltipla do homem. Dessa identidade
fazem parte as remissões e referências privilegiadas desde as quais ela pode ser o que é.
Assim sendo, não é por não significar uma quididade que a “definição” de Hesíodo deixa
de significar algo uno, ou seja, algo determinado que a palavra homem já significava. Con-
tudo, “ser homem”, para Hesíodo, significa simultaneamente ser homem e também “não-
homem”.
Significar, sem dúvida, não é apontar para algo que já se encontra aí presente como
evidência dada, mas antes assinalar algo uno que justamente não pode encontrar-se aí pre-
sente. Significar é, em suma, inseparável do fazer-se questão de algo. Há que tomá-lo para
si, encarregar-se disso, percebê-lo(
noei=n). Só que isso que assim é tomado não necessita
estar livre de toda e qualquer contradição. Tampouco é necessário que se assuma, previa-
mente, uma hierarquia rígida entre o significar algo uno e o significar de algo uno. Muitas
vezes, no movimento mesmo de nomeação, dependendo do modo como são colocados, os
assim chamados coincidentes assumem um poder de nomeação tal que os torna praticamen-
te inseparáveis dos nomes. É o que se pode ver neste trecho de Machado de Assis ou do
“defunto autor”:
77
HESÌODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2001, p.135, v. 512.
58
“Era a primeira vez que eu via morrer alguém. Conhecia a morte
de oitiva; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum
cadáver, que acompanhei ao cemitério, ou trazia-lhe a idéia embrulhada
nas amplificações de retórica dos professores de coisas antigas, - a morte a-
leivosa de César, a austera de Sócrates, a orgulhosa de Catão. Mas esse duelo
do ser e do não ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem apa-
relho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira
vez que a pude encarar.”
78
A ação de significar exige que se signifique algo uno, o que sempre implica em to-
mar para si aquilo mesmo que se está significando. Na passagem citada, esta ação apresen-
ta-se de modo perfeitamente claro quando a morte é nomeada de “duelo do ser e do não
ser”, ou mesmo como “morte em ação” ou “morte de uma pessoa amada”. Junto a esses,
porém, se perfilam toda uma série de coincidentes como “dolorida”, “contraída” e “con-
vulsa”. Esses coincidentes, se assim podemos chamá-los, são inseparáveis daquilo que está
sendo nomeado, e aparecem em perfeito contraste com “aleivosa”, “austera” e “orgulhosa”,
estes sim coincidentes que apenas designam, mas que não revelam coisa alguma. Desse
modo, pode-se ver que os coincidentes só figuram de fato como tais quando se conhece
algo apenas “de oitiva”. No caso, porém, em que acontece uma genuína nomeação, não há
mais nada que figure como coincidente, pois tudo se articula e tem lugar indispensável a
partir do movimento mesmo de nomeação, inclusive aqueles adjetivos pomposos.
1.7. A percepção dos simples
78
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 21. ed. São Paulo: Ática, 1996, cap. XXIII,
p.54.
59
Podemos ver claramente que em todo o seu empenho acima descrito, seja quando
afirma a impossibilidade de que um mesmo nome assuma significações contraditórias, seja
quando estabelece uma hierarquia rígida entre sujeito e predicado, Aristóteles tem em vista
unicamente assegurar a possibilidade do diálogo. Todo diálogo é um esforço de entendi-
mento. Se o entendimento estivesse desde o início impossibilitado, não haveria diálogo,
mas uma disputa encarniçada e cega objetivando apenas o triunfo sobre o adversário. Como
alternativa a essa situação, Aristóteles propõe como única saída satisfatória a “aposta” de
que no diálogo se deveria procurar obter um entendimento integral. Com isso, se está pres-
supondo que a busca desse entendimento é, na verdade, o próprio motor de todo diálogo
genuíno. Nós só nos confiaríamos a um diálogo porque já almejamos um entendimento
plenamente satisfatório, o que significa dizer que este já deve estar virtualmente presente e
sendo suposto desde o início. Todo problema e toda questão seriam assim o afã por uma
certa e precisa solução. Pensando dessa maneira, Aristóteles não hesitará em nos oferecer a
imagem do filósofo como a imagem de uma alma cândida e dócil, sempre disposta a acatar
a verdade, e a do sofista como um ser semi-bestial com o qual praticamente não seria pos-
sível entender-se. Entre esses dois extremos, porém, está aquele que já renunciou a uma
solução integral para buscar entender-se com os outros e que pode também calar. Este seria
aquele que “curado da ignorância” encontrou precisamente na escuta o seu modo de ser
privilegiado.
O diálogo, quando o preside a escuta, não necessita de nenhuma cabresto que o
conduza, ele não necessita de nenhuma solução definitiva. O entender-se então acontece
mesmo a revelia de toda conclusão necessária. O desentendimento, de fato, nunca impossi-
bilitou, por si, qualquer diálogo. Muitas vezes é a discordância (não a discórdia), desde que
ela seja explicitada com franqueza, o que satisfaz bem mais um diálogo do que a simples
concordância. Não se trata aqui, porém, da afirmação da diversidade dos “pontos de vista”,
como se tudo fosse relativo e o entendimento uma simples convenção. O entendimento po-
de se dar efetivamente sem concordância, desde que se vislumbre a autoridade de uma certa
posição. O diálogo então é o desabrochar e o recolher das diferenças que unicamente cons-
tituem o mesmo dessas diferenças. A coisa em questão é aqui o próprio entrelaçar-se dessas
diferenças. Tudo, porém, depende de um único ato: que se tome para si, que se encarregue
60
realmente, desse algo determinado a partir do qual se fala: isso que tu dizes é forçoso tam-
bém que tu o sejas.
Se dizer é, como vimos acima, um tomar para si o que o nome, por si mesmo, já
significava, então o próprio dizer já se realiza como perceber. Aristóteles discutirá mais
detidamente esse tomar ou encarregar-se de algo, que é o nou=j, no livro q da Metafísica,
capítulo 10. Todo dizer é revelador disso de que ele é o dizer. Nesse sentido, um dizer já é
“verdadeiro” pelo simples fato de ser o que é, antes mesmo de se verificar verdadeiro ou
falso. Somente porque um dizer já é verdadeiro, isto é, revelador de algo, é que ele pode
também descobrir um certo estado de coisas ou então encobri-lo. O dizer que já se encontra
nessa possibilidade de descobrir ou de encobrir um certo estado de coisas por ele assumido
é aquele que Aristóteles chama de lo/goj a)pofantiko/j. Na medida em que já se dirige, por
si mesmo, a um certo estado de coisas, esse dizer só será dito verdadeiro se for eficaz e as-
sim descobrir realmente esse estado de coisas. O discurso demonstrativo deve tornar mani-
festo aquilo que é por ele visado, do contrário ele terá, necessariamente de encobri-lo, pois
então ficará patente que o discurso errou o seu alvo, mais ainda, que ele impede que este
seja visto com clareza. O discurso apofântico tem sempre um alvo à sua frente, para o qual
ele deve tender necessariamente. Nenhum discurso poderia se verificar verdadeiro ou falso
se ele não apontasse, previamente, para um determinado alvo, isto é, se ele não tencionasse,
em si mesmo, ser descobridor. O alvo, por conseguinte, assim como o estado de coisas vi-
sado no discurso, deve encontrar-se, de início, já no próprio discurso, a fim de que ele possa
ser atingido. O alvo ou o estado de coisas visado é, sem dúvida, algo distinto do discurso,
mas não algo que lhe fosse totalmente estranho e “exterior”. O discurso não é uma coisa
trancada em si mesma e aquilo de que ele é o discurso uma outra coisa igualmente fechada.
Se ambos estivessem inteiramente um fora do outro, um discurso jamais poderia ser verda-
deiro ou falso.
Para poder ser verdadeiro ou falso um discurso deve ser, primeiramente, um dizer,
ou seja, ele deve tomar para si um certo estado de coisas. Esse estado de coisas é, segundo
Aristóteles, “um estar reunido ou separado em relação às próprias coisas
(e)pi\ tw=n pragma/twn), de modo que está na verdade aquele que julga (o( oi)o/menoj) estar
separado o que está separado e estar reunido o que está reunido; em erro, porém, está o
61
que se mantém de modo contrário às coisas.”
79
E Aristóteles conclui um pouco mais abai-
xo dizendo: “Não é porque nós julgamos com verdade que tu és branco que tu és branco,
mas porque tu és branco é que nós, que dizemos isso, dizemos a verdade.
80
Que algo ou alguém se mostre a partir de si mesmo como sendo branco, porém, de-
pende de que antes tenhamos afirmado isso em pensamento. Afirmar algo em pensamento,
julgar com verdade, é um certo voltar-se para as coisas de modo a esperar delas uma con-
firmação. Não se trata de representar primeiro alguma coisa, “somente em pensamento”,
para depois procurar saber se ela corresponde realmente aos fatos! Por isso, Aristóteles po-
de dizer, em outro lugar, que o verdadeiro e o falso não são nas coisas (
e)n toi=j pra/gmasin),
mas no pensamento(e)n dianoi/a?).
81
Isto não significa que o verdadeiro e o falso tenham a
sua sede no juízo, como se costuma interpretar, ou que sejam relativos apenas à representa-
ção, mas que para que um estado de coisas se revele a partir de si mesmo como possuindo
uma certa consistência, ele precisa antes ser afirmado por nós “em pensamento”. Nós mes-
mos precisamos nos voltar para ele com uma certa expectativa, a saber: com a expectativa
de que ele nos confirme o que já esperávamos dele.
Afirmar algo “em pensamento” é, sem dúvida, um modo de tomar para si alguma
coisa, mas não o único modo. Nem todo tomar destina-se a algo distinto dele mesmo. Há
ainda uma outra espécie de tomar que não afirma nenhum estado de coisas e que se conten-
ta em puramente perceber. Como nele não há afirmação também não pode haver nenhuma
confirmação posterior. Aristóteles nos diz que nesse perceber: “o tocar (qigei=n) e di-
zer(fa/nai) são o verdadeiro e o não tocar e ignorar()a)gnoei=n) o falso, pois afirmar e dizer
não são o mesmo.”
82
Perceber, nesse caso, já corresponde a estar na verdade e o estar em
erro diz respeito apenas à não-percepção, ou seja, à ignorância. Esta última, no entanto,
difere da cegueira(
tuflo/thj) pelo fato de que sempre é possível passar da não-percepção
para a percepção.
83
Para Aristóteles, um dizer só deixa de ser demonstrativo quando o que se toma para
si são precisamente as coisas simples(ta\ a)pla=)
84
ou não compostas(ta\ a)su/nqeta)
85
, pois
79
Metafísica, IX, 10, 1051 b 1.
80
Ibid., IX, 10, 1051 b 6.
81
Ibid., VI, 4, 1027 b 25.
82
Metafísica, IX, 10, 1051 b 22.
83
Ibid., IX, 10, 1052 a 1.
84
Ibid., VI, 4, 1027 b 27.
62
sempre que se faz possível separação e reunião o dizer teria de forçosamente afirmar algo
de algo. Dos simples, porém, não é possível afirmar nada, nem mesmo o que, porventura,
lhes pertencesse como característica necessária, pois não há aqui sequer espaço para a pre-
dicação. Pode-se, unicamente, enunciá-los, ou, no máximo, procurar determinar a sua qui-
didade
86
, ação que vimos Aristóteles caracterizar anteriormente como a ação de significar
algo uno, e não de algo uno. De todo modo, mesmo quando se faz possível semelhante em-
penho de determinação, o que nem sempre é o caso
87
, a atitude realmente apropriada é an-
tes a da pura contemplação ou a do puro perceber, atitude que adiante procuraremos carac-
terizar mais de perto. O princípio de não-contradição, por exemplo, mesmo quando se deixa
determinar como “princípio dos princípios”, e trata-se aqui da determinação de sua quidi-
dade, não se destina, originalmente, a ser determinado, mas a ser percebido. De nada nos
serviria a sua quididade se já não o tivéssemos presente em espírito. Decisivo é aqui apenas
o perceber e enunciar.
Sendo o dizer, originalmente, um tomar mediante o qual algo vem a ser afirmado ou
enunciado, nele está sempre em jogo um certo modo de nós nos voltarmos para as coisas,
de admiti-las e considerá-las. Todo modo de ser é, inseparavelmente, um modo de perceber.
Quando, por exemplo, casualmente, pensamos ter visto um amigo e ao nos aproximarmos
descobrimos que havíamos nos enganado, essa situação não possui apenas uma única face:
a face do engano, ela também nos revela, desde que atentemos para o que ela traz de sur-
preendente, que nós mesmos somos de fato amigos daquela pessoa e que, além disso, a
amizade consiste precisamente nesse ver e dirigir-se, de imediato, ao encontro de alguém.
Ser amigo e dispor-se a acolhê-lo fazem um. Esta última percepção não está dada na expe-
riência do engano, mas, sem dúvida, ela está, de algum modo, presente ali. Não fosse, con-
tudo, o fato de já estarmos voltados, sem o sabermos, para o encontro com o que de si
mesmo se apresenta, e nós não só não poderíamos nos enganar como nem sequer podería-
mos perceber o que é simples.
Podemos ver isso a partir de um exemplo fornecido pelo próprio Aristóteles.
88
Um
vinho que certa vez provamos e nos soube suave, de uma outra vez nos parece amargo. A-
85
Ibid., IX, 10, 1051 b 17.
86
Ibid., IX, 10, 1051 b 32.
87
Ibid., VII, 16, 1040 a 27.
88
Metafísica, IV, 5, 1010 b 21.
63
qui pouco importa se a causa do amargor está em nós(doença) ou numa transformação do
próprio vinho; o decisivo é que a nova sensação nos trouxe surpresa e suplantou inteira-
mente a anterior: o vinho que supúnhamos doce revelou-se agora como amargo. Podemos,
com isso, ainda, nos surpreender com algo de natureza inteiramente diversa, pois se o vinho
agora nos parece amargo isto não significa que o doce ele mesmo tenha se modificado. O
doce é um simples e como tal não se acha sujeito a nenhuma mudança: o doce é sempre
doce e não pode tornar-se, ele mesmo, amargo. Todavia, o fato é que doce em si não há,
mas sempre já esta ou aquela coisa que se revela doce ao paladar.
Não fosse aquele estar previamente voltado para as coisas na expectativa de sabor e
nada poderia se revelar doce, assim como tampouco o doce ele mesmo poderia se destacar.
Antes, portanto, de abrir a possibilidade da percepção do simples o que o surpreendente
revela é esse já estar previamente voltado para, característico de todo encontro e de toda
descoberta de algo. Na medida, porém, em que o simples se destaca do que é mutável, da-
quilo que se gera e se corrompe, estando ele mesmo sempre em ato
89
, esta última percepção
tende a se impor, inicialmente, e assim impedir a consideração daquele primeiro já estar
voltado para as coisas, possibilitador de todo encontro e de toda surpresa. Assim, o próprio
fenômeno de que em todo dizer e significar já se assume algo determinado teve de se res-
tringir, em Aristóteles, à pretensão de que esse algo determinado não poderia encerrar ne-
nhuma contradição, o que não significa que semelhante fenômeno não tenha sido entrevisto
por ele.
1.8. A determinação do significado “essencialde
ou)si/a
Encontramos um testemunho de que Aristóteles viu e indicou o privilégio do que de
si mesmo se apresenta numa passagem muito discutida do capítulo 3 do livro VII da Meta-
física, que trata, precisamente, daquilo que se deve entender, em sentido último e decisivo,
por ou)si/a ou entidade. Essa passagem, tradicionalmente interpretada como uma confirma-
ção de que para Aristóteles a entidade é sujeito ou substrato, foi estudada e comentada à
exaustão por Rudolf Boehm no livro intitulado: A Metafísica de Aristóteles: o fundamental
89
Ibid., IX, 10, 1051 b 26.
64
e o essencial
90
, o qual justamente põe em questão essa interpretação tradicional. A referida
passagem diz o seguinte:
Por ora já dissemos, de modo concentrado(
tu/pw?), o que é a entidade,
a saber: que ela não é o que é dito de um substrato ou sujeito, mas aquilo de
que os outros são ditos; mas é preciso não dizer somente assim, pois não é su-
ficiente (ou) ga\r i(kano/n), pois isso mesmo é obscuro (a)/dhlon), e, além disso, a
matéria se tornaria a entidade.” (1029 a 7-10)
De início, diz Aristóteles, o que distingue a entidade é mesmo a sua característica de
ser sujeito ou substrato. A entidade ela mesma deve poder ser sujeito, pois é assim que ela,
de início, se deixa encontrar. Ser-sujeito constitui, portanto, a marca(
tu/poj) fundamental e
inconfundível da entidade. Por esse motivo, logo no início do capitulo 3, depois de mencio-
nar pelo menos três outras acepções da entidade: o que era para ser(to\ ti/ h)=n ei)=nai), o uni-
versal(to\ kaqo/lou) e a proveniência(to\ ge/noj), Aristóteles destacará precisamente a acep-
ção sujeito ou substrato, pois em suas próprias palavras: “o substrato primeiro é o que pa-
rece ser maximamente entidade”. Temos assim que, quando observada em si mesma, de
imediato, isto é, irrefletidamente, a entidade comparece como sujeito primeiro.
Mas o que significa ser sujeito? Aquilo que antes de mais nada se propõe, e que
possibilita a relação de atribuição, é o u(pokeime/non. O discurso predicativo significa de algo
uno(
kaq' e)no/j). Este algo uno nós de há muito o chamamos de sujeito, termo que deriva do
latim subiectum: o que jaz por baixo de. Sujeito, para nós, é aquele que sub-porta tudo o
que dele é predicado. Como suporte, é o sujeito que, em última instância, sustentaria os
coincidentes a ele pertencentes! Desse modo, cria-se, de fato, a impressão de que o sujeito
seria originalmente algo à parte daquilo que lhe está sendo atribuído. Todavia, o que Aristó-
teles afirma é algo bastante diverso. Eis o que ele diz expressamente:
to\ ga\r sunbebhko\j ou) sumbebhko/ti sumbebhko/j, ei) mh\ o(/ti a)/mfw sumbe/bhke
tau)tw=?, le/gw d' oi(=on to\ leuko\n mousiko\n kai\ tou=to leuko\n o(/ti a)/mfw tw=?
90
BOHEM, R. La Métaphysique d’Aristote: Le Fondamental et l’Essential. Trad. p/ o francês de Emmanuel
Martineau. Paris: Gallimard, 1976.
65
a)nqrw/pw? sumbe/bhken. a)ll' ou)x o( Swkra/thj mousiko\j ou(/twj, o(/ti a)/mfw sum-
be/bhken e(te/rw? tini/.
Pois o coincidente não é coincidente de um coincidente, a menos que ambos
coincidam no mesmo; quero dizer, por exemplo, que o branco é músico e este
também é branco porque ambos coincidem em homem. Mas não é deste modo
que Sócrates é músico, isto é, como se ambos coincidissem em algum outro.
91
O que Aristóteles está dizendo é que a relação de coincidência comporta como tal a
referência a algo que, por sua vez, não pode ser assumido como um outro coincidente, mas
que já é entendido como um ponto terminal. Esse ponto terminal a que se refere, por si
mesma, a proposição é algo que deve jazer aí previamente.
O que há, em primeiro lugar, não é “Sócrates”, do qual dizemos que é músico, mas
já “Sócrates-músico”; por isso, o enunciado “Sócrates é músico” não significa algo uno,
mas de algo uno. Não é possível dizer com verdade de Sócrates que ele é músico se este já
não comparece como e enquanto músico. Na espontaneidade da linguagem, Sócrates não é
um simples suporte do predicado “músico”, mas antes ele só é um u(pokeime/non à medida
que já se deixou visar como músico.
Acontece, entretanto, que o próprio modo de comparecimento característico do
substrato ou sujeito, é, para Aristóteles, obscuro. Clara é apenas a entidade “Sócrates” visa-
da no enunciado predicativo como aquilo a que se refere, ultimamente, o predicado “músi-
co”. Por isso, mesmo devendo comparecer como substrato, isto se revela insuficiente para
dizer aquilo que distingue realmente a entidade. A entidade será entendida a partir da clari-
dade do que é visado na proposição tomada isoladamente, a qual, no entanto, não pode ser
expressa por ela: o que se tem em vista no enunciado “Sócrates é músico” seria, em última
instância, Sócrates enquanto um simples. Com efeito, todo o restante do capítulo III se des-
tina a mostrar que a entidade não pode ser esse sujeito primeiro, e isso precisamente pelo
fato de que “a visão essencial da entidade” a vincula sobretudo
(ma/lista) ao ser-
separado(
xwristo/n) e ao isto aqui(to\ to/de ti)
92
, ou seja, justamente ao que jamais compa-
rece mediante qualquer tipo de reunião-separação.
91
Metafísica, IV, 4, 1007 b 2..
92
Metafísica, VII, 3 , 1029 a 27-28.
66
A entidade compreendida previamente como sujeito apontaria para uma obscuridade
e para um abismo impenetráveis, algo assim como um buraco negro – o a)/peiron de Anaxi-
mandro – o qual sorveria para dentro de si toda e qualquer tentativa de determinação. O que
Aristóteles quer afastar é justamente a possibilidade de que a entidade possa ser tomada, em
algum sentido, como matéria, melhor dizendo, como uma matéria que repeliria toda deter-
minação fundada. Para tanto ele precisa definir aquilo que pertence, com exclusividade, à
entidade, rejeitando as demais possibilidades. A entidade, a presença do presente, deve ser
fundada e definida em um sentido inequívoco.
Segundo nos diz Rudolf Boehm
93
, para a interpretação tradicional, o que Aristóteles
estaria propriamente afastando não seria o conceito de sujeito, tal como pensa o próprio
Boehm, mas apenas a sua acepção mais imediata. Desse modo, o caminho estaria livre para
que sujeito nomeasse efetivamente a entidade, desde que este não mais se confundisse com
a matéria. Para poder nomear a entidade, o conceito de sujeito teria de ser previamente
depurado desta sua acepção vulgar, que o identifica com a matéria, para somente então po-
der aparecer como estando genuinamente ligado à forma. O tema do capítulo III do livro
VII seria, portanto, a depuração do conceito de sujeito, a fim de que este possa significar,
sem nenhuma ambigüidade, o que quer dizer a entidade.
De todo modo, o que nos parece aqui decisivo é o fato de que Aristóteles mantenha
um vínculo inevitável entre entidade e substrato-sujeito, assumindo que, ao menos de iní-
cio, sempre a entidade será visada como um substrato, ou seja, como algo que de si mesmo
se apresenta e que se subtrai a qualquer determinação conclusiva. Se o substrato, em seu
modo de comparecimento, é algo obscuro, isso então deve significar que há, no que diz
respeito à presença do presente, uma obscuridade que não se deixa contornar. Tal obscuri-
dade assinala, assim pensamos, aquele já estar voltado previamente para o que de si mesmo
se apresenta, o qual, mesmo sendo depurado, nunca sai completamente do campo de visão,
sobretudo quando este se apresenta ao modo de uma ameaça, que deve ser, ao máximo,
circunscrita e até segregada. Essa decisão, no mesmo movimento em que inaugura a “meta-
física da luz”(Lichtmetaphysik), numa feliz expressão cunhada por Eugen Fink
94
, a qual
93
Cf. o 5º parágrafo do capítulo II intitulado “L’insuffisance du concept-essentiel du jacent-au-fond réduite à
un “manque de clarté” provisoirement attaché à ce concept”. La Métaphysique d’Aristote:Le Fondamental
et l’Essential, p. 134.
94
“Die Metaphysique ist Lichtmetaphysik”. Cf. Metaphysik der Erziehun: im Weltverständnis von Plato und
Aristote. Frankfurt am Main Vittorio Klostermann, p. 33.
67
marcará todo o Ocidente e o pensamento ocidental, indica ainda algo que permanece irredu-
tível a essa luminosidade, a saber: o caráter imponderável do próprio dizer, que somente é
possível quando se toma para si o que de si mesmo se apresenta.
68
Capítulo II
A percepção e as possibilidades extremas da existência
É preciso prestar atenção às afirmações in-
demonstráveis e às opiniões dos experientes e
mais velhos ou dos prudentes não menos que
às demonstrações, pois por receberem um o-
lho da experiência eles vêem os princípios.”
(Aristóteles, Ética a Nicômacos)
2.1. O saber da experiência
Recolhemos do caminho percorrido até aqui que há um ver que se compraz em se-
guir vendo, e que esse ver não se detém diante de uma materialidade dada e exterior, mas
encontra o seu “objeto”, o possível, unicamente enquanto atende a uma solicitação, a uma
insinuação que lhe é endereçada. É característica sua não passar-lhe despercebido o seu
caráter incomum e extraordinário. Vendo assim já se sabe, ao mesmo tempo, que não se
está vendo como habitualmente se vê. No entanto, ninguém que veja uma evidência lhe
chama a atenção o próprio ver. Ver evidências é, essencialmente, esquecer que as estamos
vendo. Por outro lado, quem sofre de alucinações ou projeta sobre o que vê aquilo que, no
íntimo, desejaria ver não pode sustentar-se livremente nesse ver e por isso age como se
estivesse diante de evidências.
Perceber não é nenhuma atitude subjetiva, de modo que estivesse em nosso poder
admitir ou não alguma coisa. Perceber já é voltar-se adequadamente para alguma coisa do
único modo como ela admite ser tomada e considerada. Perceber é acolher o que aparece e
se mostra tal como ele aparece e se mostra. Essa presença, em si mesma, não pode ser falsa
(presença do amigo). Ou se admite a coisa assim mesmo como ela se mostra e se dá a ver
ou simplesmente ela não se apresenta. Trata-se de um espaço de liberdade tal que evidência
alguma pode freqüentar.
No início da Metafísica, Aristóteles nos diz que “todos os homens desejam por na-
tureza seguir vendo (ei)de/nai)”. Saber, conhecer, é precisamente seguir vendo o que uma
vez já se viu. Quem viu realmente algo uma vez deve, desde então, exercitar-se continua-
mente nesse ver. ei)de/nai, conhecer, é o infinitivo aoristo de o(ra/w (ver). Somente nesse ver
que continuamente se retoma é que está o conhecer, pois somente ele nunca se cansa de ver
e rever o que já viu.
69
É uma lição constante de Aristóteles a de que só há ciência do universal.
95
Isto, po-
rém, não implica em nenhuma desvalorização da experiência como acesso genuíno ao par-
ticular. Para Aristóteles, não resta dúvida que “a ciência e a arte chegam aos homens atra-
vés da experiência (dia\ th=j empeiri/aj)”
96
e que “a arte surge quando de muitas reflexões
de experiência nasce uma noção universal a respeito dos casos semelhantes”.
97
O conceito
ou o universal nunca chega a englobar os casos particulares como meros exemplares seus.
Cálias e Sócrates não são exemplares do universal homem. Tampouco eles são, tão somen-
te, a ocasião favorável para que se descubra neles o universal. Pelo contrário, é somente
atendendo a Cálias, a Sócrates ou a algum outro que o médico se conquista a si mesmo, a
cada vez, como médico, ou seja, como aquele que conhece o universal. O universal é uma
concessão do particular, melhor dizendo, disso que a cada vez concede a concentração do
olhar. O universal é a estabilização dinâmica da experiência e o olhar da ciência aquele que
se coloca, a cada vez, a espera dessa estabilização.
Essa gênese do universal a partir da dinamicidade da experiência é descrita por A-
ristóteles numa bela imagem: a imagem de um exército em fuga.
98
De início, nada pode ser
mais caótico do que isso. Só que, de repente, um soldado pára e olha para trás. Junto a ele,
um outro também faz o mesmo. Depois mais outro e assim por diante até que todo o exérci-
to se detém. Neste momento surge o universal! O universal nos é assim apresentado como
uma estabilização, mas como uma estabilização tensa e prestes a se dissolver novamente. O
universal é sem dúvida a estabilização da experiência, mas não a sua paralisia. Além disso,
um exército só pode deter-se porque, mesmo em fuga e caoticamente, já constituía uma
unidade. Tivesse o exército se dispersado inteiramente e então ele nem sequer poderia de-
ter-se. Um exército que estaciona só estaciona concentrando o movimento. Segundo Platão,
e)pisth/mh provém de sth=nai, infinitivo aoristo de i(/sthmi, que significa propriamente deter-
se, pôr-se de pé e assim permanecer.
99
A ciência só mantém a agudeza do olhar numa ten-
são permanente com a experiência, isto é, com o que a cada vez se apresenta.
À superioridade da ciência, portanto, Aristóteles faz corresponder também uma cer-
ta impotência. Quanto mais “universal” se faz o saber, quanto mais ele é exclusivamente
95
Ética a Nicômacos, VI, 3, 1139 b 20 e 1140 b 31.
96
Metafísica, I, 1, 981 a 2.
97
Ibid., I, 1, 981 a 5.
98
Analíticos Posteriores, II, 19, 100
a 12.
99
Crátilo, 437 a.
70
saber, tanto mais ele se torna incapaz de responder pelo comum, no qual se planta a existên-
cia cotidiana dos homens. Esse comum somente a experiência pode fornecer: “Os experien-
tes sabem o quê (
to\ o(/ti), mas não o porquê (to\ dio/ti), já os que conhecem sabem o porquê
e a causa”.
100
Saber o porquê é, sem dúvida, mais saber do que saber simplesmente o quê,
mas saber o porquê não representa nenhuma garantia de que se saiba também o quê. Esta
situação típica da ciência como saber do universal que se eleva sobre a experiência mas que
não pode absorvê-la é a mesma situação descrita pelo coro na Antígona de Sófocles:
u(yi/polij : a)/polij..., “Elevando-se acima do comum: sem comunidade...”.
101
A universalidade da arte e da ciência permanece referida à singularidade da experi-
ência. Em causa está sempre o singular, pois é dele que se trata a cada vez. A totalidade
pela qual responde o universal da ciência só é o que é à medida que for capaz de incluir, a
cada vez, o singular fornecido pela experiência. Sem essa inclusão do singular, que só pode
se dar a cada vez, a universalidade da ciência degenera em simples generalidade vazia. A
experiência de totalidade exige, a cada vez, a totalidade da experiência. Integrando previ-
amente universalidade e singularidade, a totalidade da experiência é o espaço prévio no
qual se move a própria atividade científica. Não é a atividade científica que funda essa tota-
lidade; antes pelo contrário, a totalidade da experiência é que é a fonte de onde brota o sin-
gular, que passa então a solicitar a sua inclusão pelo universal. A totalidade da experiência
é o ponto de partida incontornável da ciência e, no entanto, não é acessível para ela própria.
A ciência parte sempre dessa totalidade para sempre de novo abandoná-la em benefício da
universalidade do saber, ou como diz Aristóteles: só há ciência do universal.
Em ciência, nenhuma afirmação pode guardar o caráter de questão: a afirmação de-
ve apenas afirmar e a questão apenas ansiar por uma resposta. Por outro lado, onde quer
que a totalidade da experiência seja reconhecida e assumida enquanto tal, isto implicará em
que a força de questão característica do apresentar-se do singular seja mantida na própria
afirmação, sem que esta última degenere, por conta disso, em mera afirmação hipotética.
Aristóteles nos dá um exemplo deste tipo de afirmação quando, numa passagem
famosa do livro I da Metafísica, afirma que as artes matemáticas surgiram primeiramente
100
Metafísica, I, 1, 981 a 29.
101
SOPHOCLE. Antigone. Trad. p/ o francês de Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1997, v. 332-375.
71
no Egito devido ao fato de que a classe sacerdotal gozava ali de pleno ócio.
102
Trata-se,
aparentemente, de uma simples constatação de fato. Esta aparência, porém, logo se dissipa
quando confrontamos a afirmação de Aristóteles com uma outra de Herôdoto, que versa
sobre o mesmo assunto, pois segundo este o surgimento da geometria no Egito antigo de-
veu-se à prática de medição das terras cultiváveis. Do ponto de vista da mera correção, am-
bas as afirmações se eqüivalem e podem até ser consideradas complementares. Elas dife-
rem, entretanto, de modo significativo, quanto a motivação que as guia, pois enquanto He-
rôdoto faz depender a sua afirmação do testemunho dos próprios sacerdotes egípcios, Aris-
tóteles parte já de uma descoberta de princípio: o conhecimento teórico exige sempre e em
toda parte o ócio, para então, e somente a título de ilustração, dizer que a origem histórica
da matemática liga-se ao ócio dos sacerdotes egípcios. Aristóteles não faz depender a sua
afirmação de uma prévia verdade de fato; é antes a verdade de fato que deve dispor à ver-
dade de princípio. Assim procedendo, sua afirmação torna-se, desde o início, digna de
questão; ela já é apresentada como algo a ser livremente admitido e não como algo a ser tão
somente verificado. A verdade de princípio não se impõe por sua maior razoabilidade, ela
deve impor-se apenas por si mesma, tão só pelo que nela há de questão. A verdade de prin-
cípio requer sempre, por conta disso, a liberdade do fazer-se questão, o que não é o caso
quando se trata apenas de verdades de fato, do que chamamos no capítulo anterior de evi-
dência.
Na totalidade da experiência, uma afirmação só é compreendida de modo pleno
quando é assumida como questão, isto é, quando ela me inclui e me toca diretamente. Pelo
contrário, quando se trata da universalidade científica, aquele que questiona não está abso-
lutamente em questão, mas apenas o que é questionado. A universalidade científica é assim
mais limitada por não incluir, originalmente, a mim mesmo. A universalidade científica
deve ser válida primeiro para todos e só então também para mim. Mas não será que ao in-
cluir todos também o que questiona não acaba sendo finalmente incluído? Sem dúvida, mas
apenas enquanto se é todos, não enquanto se é si mesmo.
Na totalidade da experiência, todo saber já é em si mesmo experiência. Quem sabe
algo por experiência só o sabe por o ter ele próprio experimentado. Esta é aliás a caracterís-
tica marcante da experiência: o seu caráter intransferível. O experiente não pode simples-
102
Metafísica, I, 1, 981 b 23.
72
mente transferir ao inexperiente a sua própria experiência, a menos que ela já se tenha pa-
dronizado e assim convertido em não-experiência. O que da experiência se pode transmitir
é um saber que já deixou de ser experiência. A marca essencial da experiência, portanto, é o
fato de ela ser um conhecimento individual acerca de coisas individuais, o fato de ela ser
inalienável.
103
Por isso, jamais o experiente é alguém que acumulou, ao longo do tempo,
muita experiência, pois este seria apenas um conhecimento do individual; o experiente é,
pelo contrário, alguém que se deixou atravessar pelo próprio da experiência e, desse modo,
fez-se um com ele. Experiente é aquele que soube recolher, na experiência, a sua própria
identidade. A ele não interessa acumular experiências, mas tão somente e sempre de novo
aprender. Neste sentido, aprender nada mais é do que um “dar-se a si mesmo a própria i-
dentidade”.
104
Na experiência, quando nela realmente acontece um aprender, o que se aprende é,
antes de tudo, o que propriamente já se é: o simples e intransferível da própria identidade.
Quem aprende por experiência, porém, não se apercebe enclausurado em um rincão insigni-
ficante da realidade. O próprio não eqüivale a um simples estado de isolamento. A experi-
ência nos põe em comunidade com tudo o que é e ao mesmo tempo nos impõe a tarefa in-
transferível de conquista de nossa própria identidade. Só quem é no interesse dessa identi-
dade pode permitir que as diferenças se destaquem realmente como diferenças, e impedir
que elas se reduzam a alguma identidade previamente conhecida, a um certo tipo ou padrão.
A essa experiência que responde pela totalidade e que já não se restringe a algo pu-
ramente individual, Aristóteles faz referência num momento decisivo do livro IX da Meta-
física, no qual está em causa justamente a anterioridade essencial do ato (
e)ne/rgeia) em re-
lação à potência (du/namij). Aristóteles acabara de anunciar que a geração do existente em
ato, a partir do existente em potência, dá-se por intermédio do existente em ato, e que, ne-
cessariamente, há sempre um primeiro motor já em ato.
105
Logo em seguida ele afirma o
seguinte:
103
O que primeiro sobressai como característica marcante da experiência: o conhecimento individual acerca
de coisas individuais, mesmo devendo ser mantido como verdadeiro, ainda não responde pela marca essencial
da experiência. Esta é a famosa distinção estabelecida por Aristóteles, e empregada continuamente por ele,
entre o que é primeiro “para nós”(h(min) e o que é primeiro “absolutamente”(a(plw=j). Cf Ética a Nicômacos,
I, 4, 1095 b 2.
104
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 49.
105
Metafísica IX, 8, 1049 b 24 .
73
ei)/rhtai de\ e)n toi=j peri\ th=j ou)si/aj lo/goij o(/ti pa=n to\ gigno/menon gi/gnetai e)/k
tino/j ti kai\ u(po/ tinoj, kai\ tou=to t%= ei)/dei to\ au)to/. dio\ kai\ dokei= a)du/naton
ei)=nai oi)kodo/mon ei)=nai mh\ oi)kodomh/santa mhde\n h)\ kiqari/sth\n mhde\n kiqari/-
santa: o( ga\r manqa/nwn kiqari/zein kiqari/zwn manqa/nei kiqari/zein, o(moi/wj
de\ kai\ oi( a)/lloi. o(/qen o(( sofistiko\j e)/legxoj e)gi/gneto o(/ti ou)k e)/xwn tij th\n
e)pisth/mhn poih/sei ou(= h( e)pisth/mh: o( ga\r manqa/nwn ou)k e)/xei. a)lla\ dia\ to\
tou= gignome/nou gegenh=sqai/ ti kai\ tou= o(/lwj kinoume/nou kekinh=sqai/ ti (dh=lon
d' e)n toi=j peri\ kinh/sewj tou=to) kai\ to\n manqa/nonta a)na/gkh e)/xein ti th=j e)pi-
sth/mhj i)/swj. a)ll' ou)=n kai\ tau/t$ ge dh=lon o(/ti h( e)ne/rgeia ou(/tw prote/ra th=j
duna/mewj kata\ ge/nesin kai\ xro/non.
Nas considerações a respeito da entidade foi dito que tudo o que vem a ser
vem a ser algo a partir de algo e por causa de algo, e que este, quanto a espé-
cie, é o mesmo. Por isso, também parece ser impossível ser ou tornar-se cons-
trutor sem jamais ter construído nada ou então ser tocador de cítara sem nun-
ca tê-la tocado; pois aquele que aprende a tocar cítara aprende a tocar tocan-
do, e assim também, de modo semelhante, os outros. Daí surgiu o argumento
sofístico de que alguém que não possui a ciência faça aquilo de que a ciência
é ciência, pois aquele que aprende não possui. Mas porque algo do que vem a
ser já veio a ser e, da mesma forma, algo do que se move já se moveu (e isto
ficou manifesto nas considerações a respeito do movimento) também é neces-
sário que aquele que aprende possua, igualmente, algo da ciência que apren-
de. Assim sendo, também nesta última fica manifesto que, inclusive deste
modo, isto é, segundo a geração e o tempo, o ato é anterior à potência.
106
Todo aprender implica sempre no empenho de conquista de uma identidade. Aquele
que aprende deve, portanto, ser passível de assumir uma certa identidade. Ocorre, porém,
que esta identidade, que deve ser assumida e conquistada na experiência, não é outra, isto é,
de outra espécie, do que uma presumida identidade anterior já possuída de antemão. Se
assim fosse, teriam de subsistir, simultaneamente, duas identidades: a identidade prévia e
aquela que se busca conquistar. Se houvesse, de fato, duas identidades paralelas seria im-
106
Ibid., IX, 8, 1049 b 27ss.
74
possível que alguém, finalmente, se tornasse músico, construtor ou qualquer outra coisa. Ao
se aprender a tocar um instrumento ou a construir, não se aprende apenas a dominar uma
certa habilidade técnica e assim a aparentar ser músico ou construtor, o que antes de tudo se
aprende e se busca aprender é ser músico e construtor. Mas ser músico ou construtor só é
possível para aquele que já está nesta possibilidade, ou seja, para aquele que pode ser toca-
do por uma certa identidade. Neste tocar ou ser tocado por... reside toda a efetividade do
aprender.
O argumento sofístico de que se pode aprender sem ser, de que a simulação da ciên-
cia equivale à sua posse no que diz respeito aos resultados, isola, na verdade, o ter ciência
do aprender, como se fosse possível um desempenho fora de todo e qualquer empenho,
como se fosse possível aparentar sem aparentar ser! Quem sustenta esse argumento não tira
dele todas as suas conseqüências, facilitando demais as coisas para si. É este o teor da críti-
ca de Platão no diálogo Ménon. Platão, propriamente, não refuta o argumento, mas diz ape-
nas que a sua crença é melhor por exortar à busca e ao esforço, enquanto a outra não faria
senão nos entregar à preguiça, só sendo ouvida por preguiçosos.
107
Aristóteles não só compartilha o ponto de vista assumido por Platão como chega in-
clusive a radicalizá-lo: só se pode aparentar ser alguma coisa por já se estar na possibilida-
de efetiva de ser aquilo que se aparenta. Um ator, para desempenhar bem o seu papel, deve
empenhar-se, simultaneamente, em ser ator. Muitas vezes, inclusive, é na e pela imitação
que surge uma identidade a ser conquistada. Por outro lado, mesmo um mau ator só é pos-
sível ali onde já se colocou a possibilidade de ser um bom ator. O que não é possível é apa-
rentar algo sem aparentar ser esse algo. Por conseguinte, a anterioridade da ciência em ato
de que nos fala Aristóteles não pode ser entendida como sendo a anterioridade da ciência já
positivada e constituída. Trata-se antes da anterioridade da ciência enquanto possível e pos-
sibilidade. Esta identidade que é, originariamente, a ciência só pode ser concretamente as-
sumida num empenho de ser caso ela jamais possa ser completamente preenchida. O possí-
vel da identidade deve ultrapassar, em princípio, toda e qualquer efetivação, pois do contrá-
rio haveria finalmente um desempenho que aboliria de si a própria necessidade do empe-
nho.
107
Ménon, 81 d.
75
2.2. A totalidade da experiência
Não é para se saber, de uma vez por todas, que se busca aprender, mas, antes, para
saber aprender. De fato, o empenho de aprender é saber e não tão somente ficar indefini-
damente aprendendo, tal como quem adia, de forma deliberada, o momento do saber. To-
davia, esse saber a que visa o aprender e que constitui o seu télos, não é o fim do aprender,
mas precisamente o seu começo. Com efeito, é somente quando chegamos a saber, isto é,
quando somos tocados e nos deixamos atravessar por uma certa identidade, é que nós nos
tornamos verdadeiramente livres e aptos para puramente aprender. Quem se afana atrás de
novos conhecimentos e quem só busca aprender para ao fim e ao cabo saber ainda não é
livre para aprender.
Ali onde está em jogo a totalidade da experiência, saber é sempre um saber apren-
der; este não aprende para finalmente saber, mas sabe para finalmente aprender. Todo saber
de experiência é, com efeito, a experiência de uma passagem. Essa passagem chega a ser a
condição para um genuíno aprendizado e, por isso, jamais resulta simplesmente deste últi-
mo. Ter passado por uma experiência não significa ter adquirido um saber sobre ela de mo-
do a tê-la resolvido, significa antes ter-se tornado capaz de ouvir e admitir o que nem se-
quer se era capaz de ouvir, por não se estar em condições de admitir, quer dizer, por não se
estar em condições de mantê-lo junto de si num ver compreensivo.
108
No livro I da Ética a Nicômacos, Aristóteles destaca claramente a experiência como
essa condição do aprender ao dizer que:
(/Ekastoj de\ kri/nei kalw=j a(\ ginw/skei, kai\ tou/twn e)sti/n a)gaqo\j krith/j.
kaq' ( e(/kaston a)/ra o( pepaideume/noj, a(plw=j d'o(( peri\ pa=n pepaideume/noj.
dio\ th=j politikh=j ou)k e)/stin oi)kei=oj a)kroath\j o( ne/oj: a)/peiroj ga\r tw=n
kata\ to\n bi/on pra/cewn, oi( lo/goi d' e)k tou/twn kai\ peri\ tou/twn.
Cada um julga bem as coisas que conhece, e é um bom juiz destas. Assim
o educado segundo algo específico, mas absolutamente aquele que foi
educado a respeito da totalidade. Por isso, o jovem não é um ouvinte a-
propriado das coisas comuns referentes à cidade, pois é sem experiência
108
Cf. a esse respeito a demonstração por refutação do princípio de não contradição (cap. 1).
76
em relação às ações conformes à vida humana, e os discursos aqui par-
tem destas e giram em torno delas.
109
A ciência política a que faz referência Aristóteles não é um especialidade ou uma
ciência entre outras, a qual ficaria a cargo de certos especialistas: os políticos. Ela é antes a
ciência principal (
kuriwta/thj), aquela que mais dirige e comanda todas as outras
(ma/lista a)rxitektonikh=j).
110
Em causa está a totalidade da experiência, e não uma deter-
minada fração dessa totalidade. Por isso, o inexperiente não é capaz de aprender ciência
política. Todavia, esta inexperiência a que Aristóteles se refere não é a simples falta de
experiência tal como se costuma entendê-la hoje, algo que o tempo poderia perfeitamente
se encarregar de suprir. A experiência que aqui faz falta é de natureza distinta da simples
experiência acumulada e acumulável. Daí que Aristóteles acrescente o seguinte comentário
à passagem acima citada:
diafe/rei d' ou)de\n ne/oj th\n h(liki/an h)\ to\ h)=qoj nearo/j, ou) ga\r para\ to\n
xro/non h( e)/lleiyij, a)lla\ dia\ to\ kata\ pa/qoj zh=n kai\ diw/kein e(/kasta:
E não faz diferença alguma ser neófito na idade ou no caráter, pois a de-
ficiência não diz respeito ao tempo, mas deve-se ao fato de se viver se-
gundo a paixão e de se buscar cada coisa que a paixão descobre.
E Aristóteles conclui retomando o que já havia dito antes:
toi=j ga\r toiou/toij a)no/nhtoj h( gnw=sij gi/netai, kaqa/per toi=j a)krate/sin.
toi=j de\ kata\ lo/gon ta\j o)re/ceij poioume/noij kai\ pra/ttousi poluwfele\j
a)\n ei)/h to\ peri\ tou/twn ei)de/nai.
Pois para estes o conhecimento torna-se inútil, tal como para os inconti-
nentes. Porém, para aqueles que fazem os desejos e as ações serem se-
gundo a razão, o conhecimento destas coisas seria muito útil.
109
Ética a Nicômacos, I, 3, 1095 a 1.
110
Ibid., I, 2, 1094 a 27.
77
A “passagem” que nos torna capazes de ouvir com proveito discursos de ciência
política nós não a podemos nós mesmos produzir. Tampouco ela pode se produzir sem um
certo empenho de nossa parte, sem uma certa preparação. Essa preparação, todavia, não se
caracteriza por um esforço de determinação do tema ou pela elaboração de um método
adequado, o qual pudesse nos assegurar, previamente, que estamos no bom caminho. Aqui
todo o engenho intelectual que porventura se possuísse seria vão. A única preparação de
fato necessária é a própria ação, pois diz Aristóteles:
ta\j d' a)reta\j lamba/nomen e)nergh/santej pro/teron, w(/sper kai\ e)pi\ tw=n
a)/llwn texnw=n: a(/ ga\r dei= maqo/ntaj poiei=n, tau=ta poiou=ntej manqa/nomen,
oi(=on oi)kodomou=ntej oi)kodo/moi gi/nontai kai\ kiqari/zontej kiqaristai/:
ou(/tw dh\ kai\ ta\ me\n di/kaia prattontej di/kaioi gino/meqa, ta\ de\ sw/frona
sw/fronej, ta\ d' a)ndrei=a a)ndrei=oi.
Recebemos as virtudes, primeiramente, enquanto atuantes, assim como
também as outras artes; pois as coisas que, ao aprender, precisamos fazer
nós as aprendemos fazendo, como, por exemplo, é construindo e tocando
cítara que nos tornamos construtores e citaristas; da mesma forma, é prati-
cando ações justas que nos tornamos justos, ações moderadas moderados e
ações corajosas corajosos.
111
Por conseguinte, a disposição de agir acompanhada da prática de ações justas, cora-
josas e moderadas é a única preparação adequada e indispensável que Aristóteles admite
para que alguém venha a tornar-se justo, corajoso e moderado. Uma objeção de princípio
logo tende a apresentar-se: como poderíamos praticar ações justas, corajosas e moderadas
sem antes estarmos seguros de que elas são de fato tais como as consideramos? Não poderia
dar-se o caso de tomarmos uma ação injusta por justa? Neste caso, como, praticando injusti-
ças, poderíamos ainda nos tornar justos? Esta objeção é justamente o tipo de objeção que se
origina da falta de experiência. Caso a admitamos, a condição indispensável para que al-
guém se torne justo, corajoso e moderado passa a ser então o conhecimento preciso disso
111
Ética a Nicômacos, II, 1, 1103 a 31.
78
que é a justiça, a moderação e a coragem. Aristóteles, porém, não admite esta condição, pois
isto implicaria em que se poderia conhecer o que é a justiça sem ser justo, a coragem sem ser
corajoso, e a moderação sem ser moderado. Por conseguinte, algo da justiça, por exemplo,
deve estar já em ato, do contrário jamais se poderia praticar uma ação justa. A ação justa
deve ela mesma fazer-se visível, sem possibilidade de engano, para aquele que se dispõe a
agir justamente, e para tanto não se faz necessário nenhum asseguramento prévio. A esse
respeito diz Aristóteles que:
e)/k te ga\r tou= a)pe/xesqai tw=n h(donw=n gino/meqa sw/fronej, kai\ gino/menoi
ma/lista duna/meqa a)pe/xesqai au)tw=n: o(moi/wj de\ kai\ e)pi\ th=j a)ndrei/aj:
e)qizo/menoi ga\r katafronei=n tw=n foberw=n kai\ u(pome/nein au)ta\ gino/meqa
a)ndrei=oi, kai\ geno/menoi ma/lista dunhso/meqa u(pome/nein ta\ fobera/.
Shmei=on de\ dei= poiei=sqai tw=n e)/cewn th\n e)piginome/nhn h(donh\n h)\ lu/phn
toi=j e)/rgoij: o( me\n ga\r a)pexo/menoj tw=n swmatikw=n h(donw=n kai\ au)t%=
tou/t% xai/rwn sw/frwn, o( d' a)xqo/menoj a)ko/lastoj, kai\ lu/paj e)sti\n h(
h)qikh\ a)reth/: dia\ me\n ga\r th\n h(donh\n ta\ fau=la pra/ttomen, dia\ de\ th\n
lu/phn tw=n kalw=n a)pexo/meqa. dio\ dei= h)=xqai/ pwj eu)qu\j e)k ne/wn, w(j o(
Pla/twn fhsi/n, w(/ste xai/rein te kai\ lupei=sqai oi(=j dei=: h( ga\r o))rqh\
paidei/a au(/th e)sti/n.
É por nos distanciarmos dos prazeres que nos tornamos moderados, e ao
nos tornarmos moderados mais somos capazes de tomar distância deles;
o mesmo acontece com a coragem, pois ao nos habituarmos a desprezar
os temores e a suportá-los nos tornamos corajosos, e tendo nos tornado
corajosos mais somos capazes de suportar coisas temíveis. Sinal de que é
preciso fazer dos estados o prazer ou o sofrimento que se segue às ativi-
dades, pois aquele que toma distância dos prazeres do corpo e se alegra
com isso é moderado, já o que sofre é intemperante, e a virtude ética diz
respeito também ao sofrimento; pois por causa do prazer praticamos coi-
sas vergonhosas, e por causa do sofrimento nos afastamos das coisas be-
79
las. Por isso, é preciso, de certo modo, ser educado
112
o mais cedo possí-
vel, como dizia Platão, de modo que se venha a alegrar-se e a sofrer co-
mo é preciso; pois esta é a verdadeira educação.
113
E um pouco adiante complementa:
e)k de\ tou= mh\ pra/ttein tau=ta ou)dei\j a)/n ou)de\ mellh/seie gi/nesqai a)gaqo/j.
a)ll' oi( polloi\ tau=ta me\n ou) pra/ttousin, e)pi\ de\ to\n lo/gon katafeu/gontej
oi)/ontai filosofei=n kai\ ou(/twj e)/sesqai spoudai=oi,o(/moio/n ti poiou=ntej toi=j
ka/mnousin, oi(/ tw=n i)atrw=n a)kou/ousi me\n e)pimelw=j,poiou=si d' ou)de\n tw=n
prostattome/nwn. w(/sper ou)=n ou)d' e)kei=noi eu)= e(/cousi to\ sw=ma ou(/tw qera-
peuo/menoi, ou)d' ou(=toi th\n yuxh\n ou(/tw filosofou=ntej.
Ninguém, porém, que não praticar estas ações jamais estará em condições
de tornar-se bom. Mas os muitos não as praticam e, refugiando-se no dis-
curso, acreditam assim filosofar e que desse modo tornar-se-ão homens
justos; os que fazem isso se assemelham aos doentes que ouvem atenta-
mente os médicos, mas não fazem nada daquilo que eles prescrevem. Tal
como estes não terão o corpo saudável e nem estarão tratados, aqueles
também nem filosofam e nem terão a alma saudável.
114
Portanto, a única condição que Aristóteles admite para que alguém se torne “bom” é
a própria prática de certas ações, e tanto melhor será se se for habituado a isso desde peque-
no, como queria Platão em A República.
115
Esta condição é indispensável, não podendo ser
substituída por nenhuma outra via que nos poupasse o esforço e o risco de agirmos nós
112
A forma verbal h)=xqai é o infinitivo aoristo passivo de a)/gw, que quer dizer guiar, conduzir, mas que
também pode significar conduzir no sentido de educar (Dictionnaire Grec Français A. Bailly). Este mesmo
verbo entra na composição de e)pagwgh/, palavra que se costuma traduzir por indução, mas que significa
levar ou conduzir para dentro ou em direção a alguma coisa. O acesso àquilo que é naturalmente o mais digno
e primeiro não se faz, segundo Aristóteles, por meio de discursos ou demonstrações, mas por e)pagwgh/.
Mais adiante discutiremos a natureza desta última. De todo modo, Aristóteles pressupõe aqui uma espécie de
educação cuja falta ele considera irreparável e que consiste num certo modo de habituar-se à dimensão dos
princípios.
113
Ética a Nicômacos, II, 2, 1104 a 33.
114
Ética a Nicômacos, II, 4, 1105 b 5.
115
Cf. A República, 425 a.
80
mesmos, tal como crêem aqueles que se refugiam no discurso e assim acreditam filosofar.
Todavia, mesmo a prática destas ações não significa nenhuma garantia de que alguém ve-
nha, de fato, a tornar-se “bom”. Para tanto, não basta a prática reiterada de determinadas
ações, mas é preciso que se sinta prazer com elas. Corajoso não é tanto aquele que despreza
os próprios temores e os suporta, mas aquele que se alegra quando os despreza e suporta; e
quanto mais ele se alegra com isso tanto mais ele será capaz de proceder dessa maneira. Ser
corajoso ou ser moderado significa ter atingido um certo estado que passa a se manter por si
mesmo, de alegria em alegria. Quem se afana por ser corajoso ou moderado testemunha com
isso que ainda não é nem uma coisa nem outra. A “passagem” que é esse estado (e(/cij) deve
ser algo que se instaura por si mesmo e que jamais pode ser simplesmente produzido por
nós. Ser corajoso ou moderado não depende, em última instância, de nós, mas tampouco
essa “passagem” poderá alguma vez se produzir caso não pratiquemos ações corajosas e
moderadas. Aristóteles não está dizendo apenas que quando nos tornamos de fato corajosos
e moderados fica mais fácil agir com coragem e moderação, mas antes que ser é em si mes-
mo essa facilidade. Trata-se de um movimento que se auto-revigora e que nunca chega pro-
priamente a se desgastar. Seria um erro, porém, imaginar que esse movimento não exige
nenhum empenho de nossa parte, como se se tratasse de um simples automatismo. Na ver-
dade, a facilidade é, em si mesma, um empenho de ser, justamente o empenho capaz de neu-
tralizar o desejo, que se faz recorrente, de uma completa ausência de empenho. É o que diz
Hesíodo, aconselhando seu irmão Perses, nestes poucos versos que Aristóteles devia conhe-
cer de cor:
Mas diante da excelência(
th=j d' a)reth=j), suor puseram os deuses
imortais, longa e íngreme é a via até ela,
áspera de início, mas depois que atinges o topo
fácil desde então é, embora difícil seja.”
116
2.3.
As Virtudes éticas e dianoéticas
116
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1991, v.
289-292.
81
Aristóteles define duas classes de virtude: as virtudes do pensamento, que serão tra-
tadas mais adiante no livro VI, e que são, por exemplo, a sabedoria (sofi/a), a compreensão
(su/nesij) e a prudência (fro/nesij), e as virtudes éticas, que são, por exemplo, a liberalidade
(
e)leuqerio/thta) e a moderação (swfrosu/nh)
117
; estas últimas serão tratadas nos livros II, III,
IV e V.
De início, chama a atenção o fato de Aristóteles empregar a mesma palavra, virtude,
para designar estados de pensamento e estados éticos. Afinal, ninguém contesta que a mode-
ração e a coragem sejam virtudes, mas como considerar virtudes, igualmente, a ciência, a
arte e a sabedoria? Aristóteles, sem dúvida, distingue com clareza virtudes éticas e virtudes
dianoéticas, chegando mesmo a tratar delas em momentos perfeitamente distintos. Isto, to-
davia, não significa que ele não perceba uma identidade de fundo que unicamente possibilita
essa distinção
118
. Somente para nós, modernos, que pensamos a diferenciação em termos de
exclusão, é que esta implica sempre numa dissociação. Werner Jäger, em seu Aristóteles, ao
estudar o Protréptico – obra de juventude de Aristóteles, chega precisamente a essa conclu-
são, como se Aristóteles, ao diferenciar virtudes éticas e dianoéticas, tivesse simplesmente
dissociado o que antes (em Platão), e mesmo em suas primeiras obras, achava-
se reunido sob o título geral de fro/nhsij.
119
Encontraremos o mesmo tipo de problema quan-
do tivermos de tratar da diferenciação que Aristóteles estabelece entre nou=j e ai)/sqhsij (cap.
IV). De todo modo, o fato de que Aristóteles tenha chamado de virtudes, com a maior natu-
ralidade, por exemplo, a ciência, a arte e a sabedoria, juntamente com a moderação e a libe-
ralidade, já mostra que essa distinção não representava, para ele, nenhuma dissociação. Mas
117
Ética a Nicômacos, I, 13, 1103 a 3.
118
Em uma passagem do livro I da Ética a Nicômacos (1102 a 30), Aristóteles põe em questão se a divisão
da alma racional em duas partes não seria semelhante a distinção entre o côncavo e o convexo em uma circun-
ferência, os quais em definição seriam dois, mas por natureza seriam inseparáveis (a)xw/rista pefuko/ta).
119
En la contemplación de las formas se amalgaman el ser y el valor, el conocimiento y la acción. Cuando
se abandonó la teoría de las formas, se separaram el ser y el valor, y la dialéctica perdió por ende su signifi-
cación directa para la vida humana, que era para Platón un rasgo esencial de ella. La distinción entre meta-
física y ética se hizo mucho más tajante que antes. A quien mire hacia atrás desde este punto de vista le pare-
ce Platón un “intelectualista”, por basar la acción ética exclusivamente en el conocimiento del ser. Aristóte-
les trazó una línea entre la una y el outro. Descubrió las raíces psicológicas de la acción y la valoración
moral en el carácter (
h)=qoj
), y desde entonces el examen del
h)=qoj
ocupó el primer término en lo que se vino
a llamar pensamiento ético, y suprimió la phrónesis transcendental.” JÄGER, Werner. Aristóteles. Trad. José
Gaos. México, Fundo de Cultura Econômica, 2001, p. 102.
82
o que, afinal, Aristóteles entende por virtude? Nas últimas linhas do livro I da Ética a Nicô-
macos, justamente quando diferencia, pela primeira vez, virtudes éticas e dianoéticas, Aris-
tóteles nos diz acerca da virtude:
e)painou=men de\ kai\ to\n sofo\n kata\ th=n e(/cin, tw=n e(/cewn de\ ta\j e)paineta\j
a)reta\j le/gomen.
Louvamos e encorajamos também o sábio pelo estado que apresenta, e
dentre os estados chamamos de virtudes aqueles que são elogiáveis.
120
Aristóteles está dizendo que as virtudes são todas elas certos estados, certos modos
de ser, os quais despertam por si mesmos o louvor e o encorajamento. O sábio, por exemplo,
não é louvado por aquilo que realiza, mas antes em razão de oferecer o espetáculo de um
modo de ser próprio e inconfundível. Precisamente esse estado típico, essa identidade carac-
terística, Aristóteles chama de virtude. Quer nos parecer, inclusive, que por trás dessa defi-
nição aparentemente genérica de virtude encontra-se a pressuposição grega de que só o que
aparece e se impõe desde si mesmo é digno.
121
As virtudes são todas elas, igualmente, esta-
dos, modos de ser, que não podemos deixar de encorajar. Neste aspecto decisivo, virtudes
éticas e dianoéticas identificam-se plenamente.
Das virtudes éticas em particular não nos ocuparemos aqui, mas não podemos deixar
de acompanhar a caracterização que faz Aristóteles da virtude ética como tal, pois nela está
em jogo não apenas a delimitação do que seja propriamente o ético, mas também a apresen-
tação da própria virtude, o que tem lugar no capítulo 6 do livro II da Ética a Nicômacos.
Aristóteles começa este capítulo justamente dizendo que a virtude não apenas torna
bom o homem, mas faz com que ele desempenhe, do melhor modo, a obra que é a sua.
122
A
virtude é assim apresentada como um certo meio ou elemento propiciador. A virtude dos
olhos, por exemplo, é aquilo que torna bons tanto os próprios olhos quanto a sua atividade
própria. Por outro lado, esse meio ocupa uma posição intermediária entre o excesso e a falta,
120
Ética a Nicômacos, I, 13, 1103 a 9.
121
Quando Homero diz que um homem é
a)gaqo/j
(bom), não pretende dizer que é moralmente irrepreensí-
vel ou de bom coração, e sim, útil, válido, capaz, o que nós dizemos de um bom guerreiro ou de uma boa
ferramenta. Assim a palavra
a)reth/
(virtude) não se refere à vida moral, mas indica nobreza, capacidade,
êxito, imponência.” SNELL, Bruno. A cultura grega e as origens do pensamento europeu. Trad. Pérola de
Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 168.
122
Ética a Nicômacos, II, 6, 1106 a 21.
83
pois ambos prejudicam a atividade própria e aquele responsável por ela, tal como o excesso
ou a falta de luz prejudicam, simultaneamente, o olho e a visibilidade. Não cabe, porém,
entender essa posição intermediária ou meio-termo de forma aritmética, como se fosse pos-
sível estabelecer previamente para todos onde está o meio-termo. O meio-termo refere-se
exclusivamente “a nós”, e por isso não pode ser determinado de maneira exata, ainda que
possa perfeitamente ser atingido. Inexatidão não significa ausência de rigor. No livro I da
Ética a Nicômacos, Aristóteles já havia advertido que a precisão não deve ser buscada uni-
versalmente na exatidão, e que ela depende do assunto tratado.
123
Tanto as paixões quanto as
ações comportam um meio-termo. Aristóteles define a virtude ética da seguinte forma:
)/Estin a)/ra h( a)reth\ e(/cij proairetikh/, e)n meso/thti ou)=sa t$= pro\j h(ma=j, w(risme/n$
lo/g% kai\ %= a(\n o( fro/nimoj o(ri/seien. meso/thj de\ du/o kakiw=n, th=j me\n kaq' u(per-
bolh\n th=j de\ kat' e)/lleiyin: kai\ e)/ti t%= ta\j me\n e)llei/pein ta\j d' u(perba/llein
tou= de/ontoj e)/n te toi=j pa/qesi kai\ e))n tai=j pra/cesi,th\n d' a)reth\n to\ me/son kai\
eu(ri/skein kai\ ai(rei=sqai. dio\ kata\ me\n th\n ou)si/ankai\ to\n lo/gon to\n to\ ti/ h)=n
ei)=nai le/gonta/ meso/thj e)sti\n h( a)reth/, kata\ de\ to\ a)/riston kai\ to\ eu)= a)kro/thj.
A virtude, por conseguinte, é um estado ao qual inere a decisão, estando em po-
sição intermediária relativamente a nós, sendo determinada pela razão e por a-
quilo que o prudente determinaria. Posição intermediária entre dois males, por
um lado é acompanhada pelo excesso e por outro pela falta. E, além disso, em
relação às coisas que ficam aquém e que ultrapassam o que convém, nas paixões
e nas ações, descobrir e escolher o meio-termo é a virtude. Por isso, segundo a
entidade, a razão e o que era para ser, a virtude é dita uma posição intermediária,
mas segundo o melhor e o bem ela é uma posição extrema e elevada.
124
A virtude como meio-termo corresponde a uma posição intermediária entre dois ma-
les: de um lado o excesso e de outro a falta. A virtude, porém, não é apenas essa posição
intermediária, como se ela já estivesse aí pronta e disponível; ela é antes o próprio descobrir
e escolher o meio-termo. Para ser o que é, o meio-termo precisa ser sempre, a cada vez, des-
coberto e escolhido, o que não significa que ele seja algo vago e, muito menos, algo sujeito
123
Ibid., I, 2, 1094 b 12.
124
Ética a Nicômacos, II, 6, 1106 b 36.
84
ao arbítrio de qualquer um. Posição intermediária entre dois males, ele é perfeitamente iden-
tificável, mas não do mesmo modo que identificamos uma coisa qualquer posta aí diante de
nós. Para se descobrir o meio-termo é preciso já se estar nele, do contrário como se reconhe-
ceria o excesso e a falta? Por isso, Aristóteles pode dizer que a virtude é uma posição extre-
ma. Com efeito, ela não é algo que descobrimos por intermédio do excesso e da falta, tal
como se tira a média de alguma coisa, pois a virtude (meio-termo) já é o que nos permite
divisar o excesso como excesso e a falta como falta. A virtude é, de fato, segundo a entida-
de, a razão e o que era para ser, uma posição intermediária, pois é assim que ela se dá a ver e
se deixa identificar, mas mesmo essa identificação só é possível porque ela é, segundo o
melhor e o bem, uma posição extrema.
A virtude não reside, primeiramente, na fuga do excesso e da falta, mas na descober-
ta e na escolha do meio-termo. Para tanto, deve-se poder permanecer junto ao excesso e à
falta. Mesmo sendo relativa a nós, ou justamente por isso, essa posição intermediária nunca
é autonomamente determinada por nós, sendo antes determinada pela razão e por aquilo que
o prudente determinaria. A virtude, portanto, só nos permite demorar junto ao excesso e à
falta por já estar vinculada à própria ação do prudente. É graças a essa percepção de que há
algo de preciso a ser feito, embora ainda não se saiba o quê, que podemos descobrir e esco-
lher o meio-termo. Por conseguinte, descobrir e escolher o meio-termo significa descobrir e
escolher o que já nos descobriu e escolheu.
Além disso, que o meio-termo seja, de certo modo, um extremo (a)/kron) é o que se
pode reconhecer pelo fato de não haver meio-termo do excesso ou da falta, e nem tampouco
excesso e falta do meio-termo.
125
Assim, não há meio-termo da temeridade ou da covardia,
como se fosse possível, estando em uma das duas, encontrar o meio-termo. O temerário se
caracteriza justamente por enxergar em toda a parte apenas covardia, e o covarde por só ver
temeridade em tudo. Também não pode haver excesso ou falta de moderação, pois ninguém
pode ser excessivamente ou pouquíssimo moderado, a não ser por força de expressão.
Na própria definição da virtude ética, Aristóteles acaba por assinalar o seu limite
interno, juntamente com o domínio específico pelo qual ela responde. A virtude ética só é o
que é, em última instância, por vincular-se, de maneira decisiva, à razão e àquilo que o pru-
dente determinaria. Aristóteles já havia, anteriormente, dividido a alma em duas partes
125
Ética a Nicômacos, II, 6, 1107 a 22.
85
(me/rh): uma irracional e outra dotada de razão.
126
Só que mesmo a parte irracional é, de no-
vo, dividida por ele em outras duas: a parte nutritiva (to\ qreptiko/n), responsável pela nutri-
ção e pelo crescimento, e que não integra a virtude humana, e uma outra parte que, de certo
modo, participa da razão.
127
A atuação característica desta última parte consiste em opor
resistência e combater a própria razão, e nisto ela se assemelha a um membro errático, o qual
se dirige para o lado contrário daquele que determinamos, com a diferença de que, no caso
da alma, esse movimento não se faz visível. O que Aristóteles está dizendo é que esta parte
irracional da alma só é o que é por resistir à razão e com isso ela testemunharia, por si mes-
ma, a sua dependência do elemento racional da alma. As virtudes éticas só chegam a se
constituir pelo fato de que essa parte irracional pode vir a escutar e a obedecer a parte racio-
nal. A parte irracional da alma só se compreende a si mesma por já estar referida e subordi-
nada à parte racional, o que não significa que ela seja uma mera privação ou um apêndice
desta última. Portanto, mesmo que esta parte irracional da alma se apresente, inicialmente,
resistindo à razão, isto não significa que ela deva manter-se continuamente e para sempre
nesta posição. A própria educação só se faz possível e necessária porque esta situação pode
ser revertida, de modo que a parte irracional ouça o que lhe diz a razão, o que não deixa de
significar que a razão ela mesma já tenha se apresentado na forma de um aconselhamento. É
o que acontece no homem dotado de continência e sobretudo no homem moderado e corajo-
so, pois neste último a parte irracional “fala em uníssono” com a razão.
128
Se quisermos, porém, compreender o sentido integral desta subordinação da parte
irracional à parte racional da alma, e assim também das virtudes éticas às dianoéticas, não
devemos nos esquecer de dois pontos fundamentais. O primeiro deles diz respeito ao fato de
que não apenas a parte irracional acha-se submetida à parte racional da alma, mas a própria
razão, para ser o que é, deve aqui integrar e deixar-se determinar por aquilo que ela não é. A
razão, de fato, pode constranger a parte não racional da alma a obedecer-lhe, como acontece
no caso do homem continente, mas jamais a razão pode obrigá-la a obedecer-lhe de bom
grado e espontaneamente. Sem moderação, coragem e liberalidade o prudente não seria, de
126
Ibid., I, 13, 1102 a 29.
127
Ibid., I, 13, 1102 b 12.
128
Ética a Nicômacos, I, 13, 1102 b 27.
86
forma alguma, prudente. Por isso, entre as virtudes dianoéticas que veremos a seguir, a pru-
dência é a única que é considerada por Aristóteles como não sendo somente racional
129
.
O segundo ponto que devemos considerar diz respeito à compreensão aristotélica de
que o homem como tal possui uma obra a realizar (to\ e)/rgon tou= a)nqrw/pou), e que esta obra
consiste num certo modo de vida que não lhe é sem mais transparente. Aristóteles menciona
três modos principais de vida. O primeiro deles é aquele preferido pela maioria dos homens:
a vida agradável ou conforme ao simples prazer do momento. É a vida dos que escolhem
viver como animais, que vivem para comer (boskhma/twn bi/on proairou/menoi). Nem é preci-
so dizer que este modo de vida não condiz com o que deve ser a obra do homem. Mas além
deste, Aristóteles elenca ainda dois outros: o político e o teorético. A respeito do modo de
vida político diz Aristóteles que “as pessoas de bom gosto (xari/entej) e os homens de ação
preferem a honra, pois este parece ser o fim da vida política”.
130
Nã o resta dúvida de que o
modo de vida político aparece-lhe como sendo bem superior ao primeiro, mas isto ainda não
significa que ele seja a obra propriamente humana. A razão disso, diz Aristóteles, é que a
honra parece estar mais em quem a concede do que naquele que é honrado, pelo fato de que
ela precisa ser concedida por outro.
131
Parece então, por exclusão, que o modo de vida pro-
curado só pode ser o teorético. Aristóteles, porém, não tira essa conclusão. O caminho esco-
lhido por ele é antes o seguinte: cada modo de vida busca o bem identificando-o como algo
final. Dessa forma, o modo de vida agradável situa o bem no prazer, o modo de vida político
na honra, e o teorético na percepção (nou=j). Prazer, honra e percepção são certamente busca-
dos por si mesmos, mas todos eles já implicam, ao mesmo tempo, a compreensão, ainda que
vaga e imprecisa, de que a felicidade reside numa dessas coisas. A felicidade, portanto, é,
para Aristóteles, algo final (te/leion) e auto-suficiente (au)/tarkej), sendo o próprio fim das
ações.
132
Assim sendo, o modo de vida teorético só constitui a obra propriamente dita do
homem por ser aquele que mais se assemelha ao caráter autárquico desse bem final que é a
felicidade, pois é esse o modo de vida que menos necessita de condições exteriores para rea-
lizar-se, e que pode ser exercitado com o máximo de continuidade.
129
Aristóteles afirma que a prudência, diferentemente das outras virtudes dianoéticas, é a única que não pode
ser esquecida (Ética a Nicômacos, 1140 b 29). Que outra coisa isto pode significar senão que o homem já se
encontra na dimensão ou no horizonte disso que é a prudência antes mesmo de desenvolver qualquer outra
virtude, e que mesmo depois disso ele nunca chega a desertar desse horizonte?
130
Ibid., I, 5, 1095 b 22.
131
Ética a Nicômacos, I, 5, 1095 b 25.
132
Ibid., I, 7, 1097 b 20.
87
Sendo o homem, segundo a definição aristotélica, um ser político por natureza
(fu/sei politiko\n o( a)/nqrwpoj)
133
, em tudo o que faz ele já se acha em risco de perder-se da
obra que é propriamente a sua. Já a vida conforme à percepção é a única modalidade de vida
que não se volta, originalmente, para nada que seja “social”. Esta atividade solitária de pen-
sar, entretanto, que exige de nós uma atenção muito mais intensa do que a habitual, está lon-
ge de poder nos eximir da busca de uma vida agradável e do reconhecimento daqueles pou-
cos que realmente admiramos. A vida conforme a percepção não substitui, de forma alguma,
a vida conforme ao prazer e a vida conforme à honra; ela apenas permite àquele que já se
decidiu por ela, e que assim já entreviu a felicidade como atividade autárquica, não perder-se
continuamente buscando seja o prazer seja a honra.
134
O que, portanto, caracteriza de imediato o homem enquanto homem é, por um lado, o
aconselhamento contra o qual se volta, inicialmente, uma das partes irracionais da alma e,
por outro lado, a compreensão, ainda que vaga e imprecisa, da própria felicidade como bem
final. Ambos os fenômenos conduzem, por si mesmos, a uma primazia da percepção e assim
das virtudes dianoéticas sobre as virtudes éticas. De fato, as virtudes éticas não se encontram
no mesmo plano das virtudes dianoéticas, mas isto não impede que elas sejam, todas elas,
enquanto virtudes, estados elogiáveis. Cada virtude é uma totalidade em si e, ao mesmo
tempo, um ponto de inflexão da própria totalidade. Nenhuma virtude seria o que é se ela não
fosse, em si mesma e antes de tudo, uma possibilidade extrema.
2.4. As virtudes dianoéticas
Aristóteles começa o livro VI, livro em que são caracterizadas as virtudes dianoéti-
cas, com a reclamação de que também seja determinado o que é a reta razão (
o( o)rqo\j lo/goj)
133
Ibid., I, 7, 1097 b 12.
134
Não seria demais supor que a vida segundo a percepção deve inicialmente apresentar-se na experiência da
insuficiência daqueles dois outros modos de vida. Só então ela pode ser propriamente escolhida. Quem não
experimentou, e não se dispõe a experimentar novamente, a falência do “social” não pode decidir-se por uma
vida segundo a percepção, pois nem sequer a divisou. Esta falência, entretanto, não é uma simples etapa, mas
já o despontar deste outro modo de vida. Daí, inclusive, que Platão fale da filosofia como um “exercer e prati-
car o morrer” (oi( o(rqw=j filosofou=ntej a)poqn$/skein meletw=sin), Fédon, 67 e.
88
e qual o seu limite (o(/roj).
135
O caminho escolhido por ele será o de permitir que a reta razão
se apresente ela mesma em todo o seu alcance e envergadura. O caminho contrário seria o de
apresentar uma definição da reta razão e em seguida procurar explicá-la de maneira suficien-
te. Mas por que Aristóteles escolhe o primeiro caminho em detrimento do segundo? A res-
posta de Aristóteles é a de que não basta sustentar afirmações verdadeiras, e que este último
empenho não corresponde ao saber genuíno, “pois em todos os outros assuntos acerca dos
quais há ciência, é verdadeiro dizer que não é preciso esforçar-se nem muito e nem pouco, e
nem tampouco amolecer, mas justo até um ponto intermediário e como o indica a reta ra-
zão. Todavia, alguém que sustentasse isso não saberia nada de modo pleno, tal como, por
exemplo, não saberia comportar-se e conduzir-se em relação ao corpo se alguém lhe disses-
se para fazer tudo o que ordena a arte médica e tal como aquele que a possui.”
136
O saber
da totalidade da experiência, que é o único saber pleno, significa, para Aristóteles, um saber
comportar-se. Trata-se de um discernimento que não se adquire sustentando afirmações ver-
dadeiras, e que somente possui aquele que foi educado, de preferência desde bem cedo. Este
saber é mesmo um saber admitir, e de tal modo que ele não se afana atrás de explicações
suficientes. É preciso saber ater-se ao que se mostra tal como se mostra. É o que diz expres-
samente Aristóteles numa passagem decisiva do livro I da Ética a Nicômacos:
a)rxh\ ga\r to\ o(/ti: kai\ ei) tou=to fai/noito a)rkou/ntwj, ou)de\n prosdeh/sei tou=
dio/ti.
O princípio é o quê, e se isto for manifesto de modo a ser suficiente, nin-
guém pedirá ainda o porquê.
137
Saber comportar-se é assim saber ater-se ao que desde si se faz suficientemente ma-
nifesto. Para quem sabe conduzir-se torna-se desnecessário o apelo ao porquê. No entanto,
aquele que apenas sustenta afirmações verdadeiras deve sempre de novo recorrer ao porquê,
uma vez que para este não há nada que seja em si mesmo suficiente e que já não permita
nenhum recuo.
135
Ética a Nicômacos, VI, 1, 1138 b 33.
136
Ibid., VI, 1, 1138 b 26 ss.
137
Ética a Nicômacos, I, 4, 1095 b 6.
89
Aristóteles procede então, imediatamente, a uma nova divisão, desta vez no interior
da própria parte racional da alma. Segundo ele, são dois os desempenhos que respondem
pela totalidade da alma racional:
e(\n me\n %(= qewrou=men ta\ toiau=ta tw=n o)/ntwn o(/swn ai( a)rxai\ mh\ e)nde/xontai
a)/llwj e)/xein, e(\n de\ %(= ta\ e)ndexo/mena
um no qual consideramos aqueles dentre os entes cujos princípios não po-
dem ser de outro modo, e outro no qual consideramos aqueles dentre os
entes cujos princípios podem sim ser de outro modo.
138
Como se pode ver, esta divisão dos desempenhos da alma racional acompanha o pró-
prio modo de ser da realidade. Todavia, esta descoberta de que a razão já comparece numa
dualidade de desempenhos, sendo um irredutível ao outro, está longe de se deixar reduzir a
uma distinção auto-evidente entre teoria e prática. Trata-se antes da percepção de uma im-
possibilidade, ou como diz Aristóteles: “ninguém delibera acerca das coisas que não podem
ser de outro modo”. As coisas que não podem ser de outro modo não toleram que se delibere
acerca delas. Há, por conseguinte, duas espécies de desempenho racional: o científico
(e)pisthmeniko/n) e o ponderativo (logistiko/n). O melhor estado de cada um desses desem-
penhos será a virtude de cada uma das partes da alma racional.
139
Isto significa, por outro
lado, que as coisas mesmas já se oferecem e nos vêm ao encontro de um modo determinado,
modo esse que escapa, inteiramente, ao arbítrio humano. Que algo se ofereça como podendo
ser deliberado não depende de nenhuma deliberação da parte de qualquer homem. As pró-
prias coisas se oferecem seja para a ponderação seja para o olhar científico. As virtudes dia-
noéticas são todas elas estados que surgem de um ou de outro desempenho e que permane-
cem vinculados ao modo como as próprias coisas se dão ao encontro. Nenhum desempenho
e, por conseguinte, nenhuma virtude seriam possíveis fora dessa doação prévia da realidade.
Desse modo, antes de eqüivaler a uma divisão da alma racional em uma parte teórica e outra
prática, a distinção aristotélica visa a acompanhar o modo como as próprias coisas já compa-
138
Ibid., VI, 1, 1139 a 5. É importante reter aqui o sentido do verbo qewrei=n, pois, no presente contexto,
qewrei=n significa considerar, ater-se aos entes conforme os seus princípios. Também o comportamento práti-
co é teórico neste sentido.
139
Ética a Nicômacos, VI, 1, 1139 a 16.
90
recem numa certa consideração. Somente atendendo a essa doação é possível reconhecer “o
melhor estado” de cada um desses desempenhos e assim apresentar como tal a própria reta
razão, o que constitui o propósito deste livro VI.
Aristóteles cita sumariamente três poderes ou “senhoras”(ta\ ku/ria) da ação e da
verdade na alma, que são a sensação (ai)/sqhsij), a percepção (nou=j) e o desejo (o)/recij).
140
Desses três, a sensação não é princípio de nenhuma ação e por isso deve ser de imediato
descartada. Além disso, os animais possuem todos eles sensação, mas nenhum deles toma
parte na ação. Essa exclusão da sensação é, de fato, muito significativa, pois é justamente
uma sensação, e o gosto por ela, que, em outro contexto, mais indica, segundo Aristóteles, a
vocação humana para o conhecimento. Aqui, porém, está em jogo, desde o início, o que po-
de ser princípio da conduta especificamente humana, ou seja, da ação. É na ação, portanto, e
apenas nela, que o homem comparece e se destaca como homem. Isto não significa que o
homem seja uma ser não-sensível, significa apenas que a sensação, por si mesma, não é algo
que caracterize o homem enquanto homem, da mesma forma que o crescimento e a nutri-
ção não integram, para Aristóteles, a alma racional. A sensação só
participa da ação na medida em que se acha incorporada ao desejo. Em outras palavras, é
pelo desejo que a sensação se revela como algo especificamente humano, daí que seja o de-
sejo pelas sensações visuais o índice da vocação humana para o conhecimento, enquanto os
animais desejam apenas o que a sensação lhes traz e não a própria sensação.
141
O simples
desejar já se orienta, no homem, por uma decisão acerca do próprio desejável. O desejo já é,
para o homem, ação, ou melhor, princípio da ação, pois a ele não cabe apenas desejar isto ou
aquilo, mas desejar isto ou aquilo de uma certa e determinada maneira. Esta característica do
desejo humano de ser sempre e em toda a parte escolha e decisão, Aristóteles a exprime me-
diante o seguinte paralelo:
e)/sti d' o(/per e)n dianoi/# kata/fasij kai\ a)po/fasij, tou=t' e)n o)re/xij di/wcij kai\
fugh/.
140
Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 a 18.
141
No livro II do De anima (414 b 1 ss), Aristóteles afirma que as sensações são sempre acompanhadas de
desejo, e que os animais (ta\ z%=a) têm pelo menos uma sensação: o tato. Isto não impede que nestes o desejo
se limite ao apetite pelo agradável. Os homens, pelo contrário, não desejam apenas certas coisas, mas são em
seus próprios desejos.
91
Assim, o que no pensamento são a afirmação e a negação, isso mesmo, no
âmbito do desejo, são a perseguição e a fuga.
142
Não se deve ver aqui nenhuma racionalização arbitrária do desejo. O desejo não se
distingue por afirmar ou negar qualquer coisa, mas antes pela fuga e pela perseguição. Ocor-
re, porém, que a fuga e a perseguição já se encontram no homem vinculadas a uma certa
orientação que não deixa de se fazer sentir. Na fuga ou na perseguição de alguma coisa, se
acolhe sempre, conjuntamente, uma certa orientação, que também pode ser desorientadora.
Por isso, a fuga e a perseguição pertencem no homem à virtude ética, que é, para Aristóteles,
um estado de decisão (
e(/cij proairetikh/). Por sua vez, a própria decisão nada mais é do que
um desejo deliberativo (o)/recij bouleutikh/). Para que uma decisão seja boa (spoudai/a), é
preciso, portanto, que não apenas a orientação seja verdadeira, mas também que o desejo
seja correto, e assim que este busque aquelas mesmas coisas que a
razão venha a ditar (fa/nai).
143
Decisivo aqui é o fato de que o próprio desejo precisa ser
correto. Um desejo incorreto inviabilizaria completamente uma decisão que fosse boa e sé-
ria. A razão só é capaz de conduzir a ação quando o desejo se dispõe a escutá-la. O próprio
desejo pode e precisa desejar corretamente. Por isso, por ele já estar nessa possibilidade, não
cabe à razão pretender simplesmente domesticá-lo.
Ao contrário da obra do pensamento teórico, que é a verdade e a falsidade, a verdade
do pensamento prático está em total conformidade com o desejo correto.
144
O desejo correto,
porém, não pode ser encontrado racionalmente. É apenas porque a decisão nos concerne
diretamente que também o desejo pode e precisa vir a ser correto. Não é pois o homem que
toma estas ou aquelas decisões e assim possui a decisão como uma faculdade sua. A decisão
não é nenhuma faculdade humana; pelo contrário, tudo o que o homem vem a ser ele vem a
ser por obra e graça da decisão. A decisão é um princípio e não um dispositivo humano.
142
Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 a 21.
143
Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 a 23. Este dizer ou ditar é um tornar visível em si mesmo vinculante. Não
devemos nos esquecer que, no capítulo 10 do livro q da Metafísica, Aristóteles identifica este dizer com o
próprio nou=j, e afirma que dele não pode haver propriamente falsidade, mas apenas “ignorância”. Ver sobre
isso o capítulo 1.
144
Ibid., VI, 2, 1139 a 29.
92
h)\ o)rektiko\j nou=j h( proai/resij h)\ o)/recij dianohtikh/, kai\ [h(] toiau/th a)rxh\
a)/nqrwpoj.
a decisão é uma percepção desejante ou um desejo pensante, e este princí-
pio é um homem.
145
Sendo essencialmente desejante, o homem não pode deixar de ser decisão, pois nele
o desejo não compele apenas para o desejável, mas também o coloca em situação de ter de
decidir-se acerca do mais desejável e melhor. Desejar já é, para o homem, ter de escolher,
em algum sentido, o melhor. Não fosse esta a sua situação e ele nem sequer poderia desejar
corretamente. É pelo desejo que o homem precisa, a cada vez, responsabilizar-se por si
mesmo, por suas próprias decisões, e assim ser ele mesmo. Entretanto, nem tudo o que o
homem é pode ser livremente escolhido e determinado por ele. Há, na verdade, inúmeras
determinações que não podem ser escolhidas, e que configuram, por assim dizer, um deter-
minado campo de possibilidades. O próprio passado nunca é objeto de escolha, ou como diz
Aristóteles: “ninguém escolhe ter pilhado Tróia”.
146
Só é possível deliberar acerca do que
pode ainda não ser, mas o passado já se encontra fora dessa possibilidade. Ninguém delibera
ter nascido de seus próprios pais ou simplesmente ter dito ou feito certas coisas. Por outro
lado, a simples compreensão de que não se pode deliberar acerca do passado depende de que
haja possibilidades em aberto. É que o passado só se destaca como passado perante o que
ainda está por vir. Como o homem descobriria um passado caso ele já não fosse, antes de
mais nada, deliberação? Pode-se dizer inclusive que a descoberta de um passado sobre o
qual já não cabe deliberar constitui um momento decisivo da própria deliberação. É que só
então ela está livre para deliberar acerca do que pode realmente ser deliberado. Este discer-
nimento não é tão simples e natural como pode parecer à primeira vista. Uma vida de deci-
são é precisamente aquela que precisa retraçar, continuamente, o limite entre o que já foi e o
que ainda não é, mas pode ser. Por isso, somente aquele que tem um futuro, e à medida que
o tem, pode possuir também um certo passado.
Não se deve, porém, confundir o que não pode ser de outro modo, o necessário, com
o que já não pode não ser: o passado. O passado é ele próprio um possível que desertou de
145
Ibid., VI, 2, 1139 b 5.
146
Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 b 7.
93
sua possibilidade; ele é precisamente o que, em alguma hora, foi possível, e que, por isso,
continua pertencendo ao horizonte da possibilidade. O necessário, por sua vez, é algo que
não só agora já não é possível, mas algo que também nunca antes o fora: o necessário é
sempre assim como é agora. Também acerca dele não pode haver deliberação, só que esta
impossibilidade não gera por si mesma nenhuma possibilidade! A impossibilidade de se de-
liberar acerca dos ângulos de um triângulo ou sobre a incomensurabilidade da diagonal sig-
nifica apenas o conhecimento do triângulo e da diagonal. Quem quer que conheça o triângu-
lo ou a diagonal deve saber que não se pode deliberar sobre tais coisas. Trata-se menos de
uma impossibilidade de fato do que de direito. Já o mesmo não acontece com a impossibili-
dade de se deliberar acerca das coisas passadas, pois esta não nos é sem mais manifesta. A-
qui a interdição deve ser sentida a cada vez, ou então já não se tem presente as coisas passa-
das como passadas. A descoberta das coisas passadas exige, ao mesmo tempo, a “persegui-
ção” da possibilidade e a “fuga” do que já não é possível. Há, por conseguinte, duas partes
nas quais se dividem as chamadas virtudes do pensamento. Uma delas, a científica, descobre
o necessário, enquanto a outra, a ponderativa, descobre o possível. Ambas, porém, segundo
Aristóteles, têm por obra a verdade.
147
Verdade não pode ser entendida aqui como o verda-
deiro que simplesmente se deixa contrapor ao falso no pensamento teórico. Verdade aqui
está dizendo um modo de encontro pleno, no qual a realidade se oferece tal como é e pode
ser. Para Aristóteles, a realidade mesma se dá ao encontro seja como possível seja como
necessária; melhor dizendo, ela própria pode ser possível ou necessária. Deve-se entender
muito bem este caráter de possibilidade da própria realidade. Aristóteles não está dizendo
que as mesmas coisas ora se apresentem como possíveis e ora como necessárias. O que ele
está dizendo é que a realidade é ela mesma um modo de encontro(consideração), e que, de-
pendendo deste último, ela será possível ou necessária. O possível não pode tornar-se neces-
sário, o necessário não pode tornar-se possível, mas a realidade pode ser possível ou neces-
sária, pois assim como aquele que delibera cessa imediatamente de deliberar quando encon-
tra o possível, assim também aquele que investiga cessa a sua investigação no momento em
que descobre o necessário. O princípio é o próprio télos seja da deliberação seja da investi-
gação. Não fosse assim, e ninguém jamais poderia ter deliberado ou investigado coisa algu-
ma.
147
))Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 b 12. ))A)mfote/rwn dh\ tw=n nohtikw=n mori/wn a)lh/qeia to\ e)/rgon.
94
Uma outra questão, porém, seria a de saber como esses modos de encontro podem se
tornar eles mesmos acessíveis para uma consideração que os vê como “possíveis”. No capí-
tulo 3 do livro III da Ética a Nicômacos, Aristóteles parece indicar que todo modo de acesso
à realidade torna-se visível justamente na determinação rigorosa do “objeto” da deliberação.
Desse modo, o que daria inteligibilidade a todo e qualquer modo de ser seria, em última ins-
tância, o fato de não se poder deliberar sobre ele, ou seja, o fato de ele ser “outro” em rela-
ção ao possível da deliberação.
148
É porque o homem já sempre se voltou para algo que de-
pende exclusivamente dele, que ele pode também descobrir o que não depende em absoluto
dele, inclusive o possível da deliberação visto como tal. Daí que Aristóteles determine, de
maneira rigorosa, o objeto da deliberação dizendo que: “deliberamos acerca do que depende
de nós e podemos fazer”.
149
De fato, da deliberação não estão apenas excluídos os entes
matemáticos, mas também os corpos que se movimentam sempre de uma mesma maneira,
seja por necessidade seja por natureza ou ainda por alguma outra causa, tais como os solstí-
cios e as posições dos astros; os fenômenos naturais que sofrem variação, tais como as chu-
vas e as secas; os eventos fortuitos que não podem ser absolutamente previstos, tal como a
descoberta de um tesouro; e até mesmo assuntos de interesse dos homens, mas que não
“nos” concernem diretamente, tais como os assuntos históricos e de interesse de outros po-
vos. Mas até mesmo no interior da deliberação, nem tudo pode ser objeto de deliberação. Os
fins em vista dos quais deliberamos, por exemplo, não o podem, e nem mesmo as coisas
singulares que concernem à deliberação e que devem ser admitidas por ela. Estas últimas são
objeto de sensação, não de deliberação. Pode-se ver agora como o possível da deliberação dá
acesso a todo o espectro da realidade. Este, porém, é sempre o objeto de deliberação que o
homem prudente (
o( e)/xwn nou=j) toma para si.
150
2.5. As virtudes dianoéticas: a distinção entre prudência, arte e ciência.
São em número de cinco as modalidades segundo as quais a alma “atinge a verdade”
(a)lhqeu/ei) pela afirmação ou pela negação: a arte (te/xnh), a ciência (e)pisth/mh), a prudência
148
O possível “para nós” nos permitiria assim descobrir o possível “pura e simplesmente”.
149
Ibid., III, 3, 1112 a 30. bouleuo/meqa de\ peri\ tw=n e)f' h(mi=n kai\ praktw=n. Aristóteles não quer
dizer, evidentemente, que só podemos deliberar acerca do que podemos cumprir individualmente.
150
Ética a Nicômacos, III, 3, 1112 a 21.
95
(fro/nhsij), a sabedoria (sofi/a) e a percepção (nou=j).
151
Estas são as virtudes dianoéticas que
Aristóteles distingue das virtudes éticas. A despeito das diferenças existentes entre elas, a
característica que as une e que as define enquanto virtudes do pensamento é a de que ne-
nhuma delas procede seja por conjectura (u(polh/yei) seja por simples opinião (do/cei), as
quais podem enganar.
152
Antes de possuir uma certa habilidade, o artesão se caracteriza por
saber perfeitamente que está em seu poder produzir uma certo objeto, por exemplo: uma
mesa. Ele age, portanto, de modo deliberado em cada passo da produção, e não por simples
conjectura. A mesa, enquanto um algo a ser produzido, diz-lhe respeito diretamente, ela lhe
concerne. Neste aspecto não há, absolutamente, qualquer erro possível, e ainda que ao arte-
são venha a faltar experiência ou habilidade para a confecção da mesa, esta carência pode
ser suprida com os erros que porventura ocorram. Ao não-artesão, pelo contrário, faltam-lhe
todos os recursos para corrigir os próprios erros.
153
Todas as virtudes dianoéticas atingem a verdade; elas são comportamentos humanos
livremente assumidos, os quais nos permitem superar a teia em que nos enredamos quando
nos prendemos a simples conjecturas e opiniões. Daí que estas virtudes sejam todas elas
estados relacionados à ação, pois é na ação, e somente nela, que acontece verdade. Agir,
porém, não significa aqui produzir um determinado efeito, agir significa aqui empenhar-se
livremente pela verdade. Por isso, quando Aristóteles afirma que a percepção, o desejo e a
sensação são “as senhoras da ação e da verdade na alma”, ele não está, de forma alguma,
separando ação e verdade, mas antes entendendo-as em conjunto.
No livro VII da Política, justamente quando vem de estabelecer que o melhor tipo de
vida, tanto para uma cidade quanto para um indivíduo, é a vida de ação(o( bi/oj praktiko/j),
Aristóteles toma a ação neste sentido mais amplo e essencial ao qual estamos nos referindo,
e considera o próprio pensamento teórico tão somente como a melhor modalidade de vida de
ação. A passagem é a seguinte:
a)ll' ei) tau=ta le/getai kalw=j kai\ th\n eu)daimoni/an eu)pragi/an qete/on, kai\
koin$= pa/shj po/lewj a)\n ei)/h kai\ kaq' e(/kaston a)/ristoj bi/oj o( praktiko/j.
151
Ibid., VI, 3, 1139 b 15.
152
Ibid., VI, 3, 1139 b 17.
153
Cf. a esse respeito, no capítulo 1, a interpretação da verdade como “posse originária” e o vínculo que ca-
racteriza essencialmente a percepção do possível como tal.
96
a)lla\ to\n praktiko\n ou)k a)nagkai=on ei)=nai pro\j e(te/rouj, kaqa/per oi)/ontai/
tinej, ou)de\ ta\j dianoi/aj ei)=nai mo/naj tau/taj praktika/j, ta\j tw=n a)pobain
-o/ntwn xa/rin gignome/naj e)k tou= pra/ttein, a)lla\ polu\ ma=llon ta\j au)tote-
lei=j kai\ ta\j au(tw=n e(/neken qewri/aj kai\ dianoh/seij:h( ga\r eu)praci/a te/loj
,w(/ste kai\ pra=cij tij.
Mas se estas coisas foram ditas como convém, e uma vez estabelecido que
a felicidade é a ação de fazer o bem, então a vida de ação seria a melhor
espécie de vida, tanto no que diz respeito à cidade quanto em relação ao
indivíduo; mas não é necessário, como crêem alguns, que aquele que age o
faça em vista dos outros, e nem tampouco que os pensamentos sejam so-
mente estes pensamentos de ação, que vêm a ser por um favor do sucedido
a partir do próprio agir, mas antes são ações muito mais aquelas que têm o
fim em si mesmas e as considerações e pensamentos em virtude destas;
pois o bem agir é ele mesmo um fim, assim como também uma certa a-
ção.
154
A mesma compreensão de que o bem agir (eu)praci/a) seja ele próprio um fim é re-
tomada no capítulo 5 do livro VI da Ética a Nicômacos. Porém, trata-se agora de distinguir
agir e fazer, ação e produção. Aristóteles apresenta a arte e a prudência como virtudes carac-
terísticas da parte ponderativa da alma racional. Todavia, ainda que compartilhem o mesmo
horizonte ontológico, arte e prudência não são virtudes intercambiáveis. A prudência não é
uma espécie de arte e a arte não é uma espécie de prudência. Aristóteles se empenha aqui,
claramente, em delimitar um terreno específico para a prudência, seja distinguindo-a da arte
seja distinguindo-a também com relação à ciência, pois diferentemente de ambas, que pos-
suem o seu campo de atuação plenamente reconhecido e legitimado, a prudência, devido à
sua maior universalidade (no sentido de não dar lugar a especializações), é bem mais difícil
de ser reconhecida em seu perfil próprio. A prudência se assemelha muito mais à conjectura
e à simples opinião, o que deveria justamente impedi-la de figurar ao lado das outras virtu-
des dianoéticas. Por outro lado, quando se quer admiti-la, a prudência é sempre requisitada a
tornar-se ou uma espécie de arte ou então uma modalidade de ciência. Da ciência a prudên-
154
Política, VII, 3, 1325 b 14ss.
97
cia pode ser mais facilmente diferenciada, mas arte e prudência, por dividirem o mesmo ho-
rizonte ontológico, só podem ser distinguidas pelo comportamento característico de cada
uma delas. Já no capítulo 4 do mesmo livro VI, Aristóteles havia levantado a distinção co-
mumente admitida entre fazer e agir. Mas essa distinção, tal como se acha estabelecida e por
mais evidente que ela seja, não é suficiente para fundamentar a diferença entre as duas virtu-
des dianoéticas, pois ainda é preciso que se diga o que torna a ação algo essencialmente dis-
tinto da produção. Aristóteles dirá, então, que a ação se distingue da produção pelo modo
como o fim comparece ele mesmo em cada uma delas:
th=j me\n ga\r poih/sewj e(/teron to\ te/loj: th=j de\ pra/cewj ou)k a)\n ei)/h: e)/sti
ga\r au)th\ h( eu)praci/a te/loj.
pois enquanto o fim da produção é um outro, o fim da ação não poderia sê-
lo, pois o bem agir é ele mesmo um fim.
155
Agir não é produzir, pelo fato de que o fim da ação não pode ser algo diverso e exte-
rior à própria ação. Na ação já está em jogo o próprio bem agir como fim. Na produção, pelo
contrário, o fim deve comparecer como algo exterior. Assim, enquanto a ação não permite
nenhuma exterioridade do fim, pois o fim da ação é ele próprio uma ação, a produção exige
essa mesma exterioridade, à medida que o fim deve ser algo distinto da produção: o produto.
Um produto defeituoso conserva em si certos traços que apontam para a produção, e que
permitem ao produtor refazer o percurso e corrigi-lo. Na ação, pelo contrário, não existe
nenhum sinal exterior que nos indique algum defeito, e por isso também não há nenhum
caminho de volta que nos permitisse corrigi-la. Toda ação abre uma nova situação diante da
qual já não é possível recuar. Toda ação é irreparável! A ação comporta uma relação livre
para com os seus próprios princípios:
ai( me\n ga\r a)rxai\ tw=n praktw=n to\ ou(= e(/neka ta\ prakta/.
os princípios das ações são aquilo em razão de que as ações são praticadas.
155
Ética a Nicômacos, VI, 5, 1140 b 4.
98
Na ação, os princípios são tomados e admitidos como o norte da própria ação; eles
não são deixados para trás, tal como acontece na arte e na ciência, como suposições necessá-
rias. Porém, que estes princípios devam nortear as ações não significa que isto tenha neces-
sariamente de ocorrer:
t%= de\ diefqarme/n% di' h(donh\n h)\ lu/phn eu)qu\j ou) fai/netai a)rch/, ou)de\ dei=n
tou/tou e(/neken ou)de\ dia\ tou=q' ai(rei=sqai pa/nta kai\ pra/ttein: e)/sti ga\r h(
kaki\a fqartikh\ a)rxh=j.
uma pessoa obcecada pela expectativa do prazer ou desgastada pelo te-
mor do sofrimento não tem como fazer luzir para si um princípio, ela não
vê que é preciso tudo escolher e agir em vista do princípio e por causa
dele, pois o vício destrói a percepção do princípio.
156
Uma pessoa nestas condições não deixa de estar referida livremente ao princípio, o
que acontece é que ela se deixa obnubilar pelas paixões, e assim não assume essa relação
livre como livre. O vício destrói a disponibilidade para acolher o princípio como o norte da
ação, e assim também o próprio princípio da ação, na medida em que ele é uma crença nor-
teadora, uma suposição (u(po/lhyij). Mas nem todas as suposições podem ser destruídas pelo
prazer ou pelo sofrimento. A suposição, por exemplo, de que a soma dos ângulos de um tri-
ângulo eqüivalem a dois retos está fora dessa possibilidade. Este tipo de suposição não corre
o risco de ser destruído, mas somente as suposições referentes à ação. Há, por conseguinte,
duas espécies de suposições: uma que pode e outra que não pode ser destruída pelo vício.
Toda suposição (
u(po/lhyij) é um tomar por base e assim um sustentar alguma coisa
(u(polamba/nw). As suposições científicas, uma vez admitidas, tornam-se posições assegura-
das sobre as quais a ciência passa então a se assentar. Não é próprio da ciência o tomar ex-
plicitamente em consideração as suas suposições, a não ser, talvez, quando entra em
cena algo de absolutamente imprevisto e surpreendente.
157
Dir-se-ia antes que não é a ciên-
cia que sustenta as suas suposições, mas que ela é bem mais sustentada por elas.
156
Ética a Nicômacos, VI, 5, 1140 b 17ss.
157
Em seu livro A estrutura das revoluções científicas, Thomas S. Kuhn chama a atenção precisamente para o
fato de que as ciências, em seu desempenho normal, se articulam em torno de paradigmas, que são posições
asseguradas e difundidas nos manuais, a fim de tão somente buscarem resolver “quebra-cabeças” abertos
pelos próprios paradigmas. Segundo ele, a última coisa que um cientista costuma desejar é colocar em questão
99
No entanto, o fazer ciência exige que, de algum modo, se tenha confiança (pisteu/$)
e que os princípios cheguem a ser familiares (gnw/rimoi) para aquele que conhece. Esta situa-
ção parece caracterizar o movimento da ciência menos como um progresso para novas de-
monstrações do que como um regresso às suas suposições primeiras, ou, pelo menos, como
uma constante necessidade de retomá-las. Isto, porém, não significa que seja próprio do ci-
entista tomar em consideração os princípios da ciência. A relação ordinária do cientista com
estes princípios é antes uma relação de confiança e de familiaridade. O cientista conta com
as suposições de sua ciência muito mais do que as tem em vista expressamente. É mesmo
esta familiaridade o que permite à ciência ser o que ela é, pois é assim unicamente que se
pode efetuar demonstrações, ou então, no caso da arte, produzir artefatos.
A suposição característica da ciência é, portanto, um tomar por base que dá lugar e se
retrai naquilo que por ele se deixa estabelecer e fundar. Da mesma forma, como foi visto no
capítulo anterior, a evidência, ao se estabelecer, toma o lugar e apaga justamente aquilo a
partir de que ela se originou: o seu próprio percurso, a sua origem na não-evidência. Isto não
quer dizer que o tomar por base característico da arte e da ciência não seja “livre”, significa
apenas que ele tende a ser assumido como algo que não precisa ser sustentado por ninguém.
2.6. A percepção como acesso aos princípios das ciências
Se na ciência e na arte tende a não vigorar uma admissão explícita de suas suposi-
ções, o mesmo já não se pode dizer da prudência, uma vez que o comportamento do pruden-
te é precisamente o de “tudo escolher e agir em vista do princípio e por causa dele”. Portan-
to, no caso da prudência, ao contrário do que acontece na ciência e na arte, a admissão explí-
cita do princípio faz-se de todo indispensável. Em que consiste semelhante admissão do
o próprio paradigma de sua ciência. Esta confiança até certo ponto ilimitada no paradigma chega a ser inclu-
sive o que determina a filiação de um cientista ao grupo fechado de uma ciência, sendo também o que possi-
bilita o progresso das pesquisas e a resolução de problemas no interior do campo instituído pelo paradigma.
Somente em épocas de crise e com o surgimento de uma anomalia, que se revela ser incompatível com o
paradigma estabelecido, é que se torna possível a rejeição de um paradigma e a sua substituição por um ou-
tro. Isto só acontece por meio de uma revolução, que todavia é imediatamente apagada da memória de todos
os membros do grupo com a sua incorporação aos manuais. A consideração explícita dos paradigmas é assim
“privilégio” exclusivo dessas épocas de crise, e só pode ser feita mediante o contraste e a disputa entre dois
paradigmas inconciliáveis: o estabelecido e o emergente, só terminando com a completa vitória de um sobre o
outro. Cf. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspecti-
va, 1978.
100
princípio na prudência e como ela acontece é o que veremos um pouco mais adiante. Antes
disso, porém, um esclarecimento importante: Aristóteles não diz que a ciência aceda ela
própria a seus princípios. Este acesso aos princípios da ciência é, para ele, obra exclusiva da
percepção(nou=j), o que parece fazer dessa virtude dianoética uma simples virtude comple-
mentar à ciência, sem nenhuma outra especificidade a não ser a de favorecer a aquisição e o
exercício desta última. Sendo a ciência, como diz Aristóteles, um “estado demonstrati-
vo”(e(/cij a)podeiktikh/)
158
, o acesso a seus próprios princípios, e assim aos princípios de que
partem as demonstrações, não poderia ser mediado por qualquer demonstração, devendo,
portanto, ser i-mediato. É desconcertante para nós hoje, que julgamos tudo como o resultado
de uma processo anterior (princípio de causalidade, princípio de razão suficiente), admitir-
mos uma instância que não seja mediada por nenhuma outra, e que possua uma clara preva-
lência sobre as demais. É grande, por isso, a tentação de fazermos desse acesso primeiro e i-
mediato um simples expediente necessário, uma simples etapa, para o ensino e a aquisição
da ciência, devendo em seguida ser abandonado com a posse desta última. Nesta medida,
este acesso i-mediato não tem como deixar de nos aparecer como uma “fulguração gratuita
ou devida a habilidade do docente”.
159
Porém, na atividade científica, tal como Aristóteles a
compreende, não há nenhum progresso no sentido do abandono e da superação de toda ime-
diatidade. Do contrário, como se poderia compreender a já citada afirmação de Aristóteles
de que os princípios das demonstrações devem ser mais conhecidos do que a sua própria
conclusão? Se há progresso, trata-se antes de um “progresso para o mesmo”
(
ei)j au)to\ h( e)pi/dosij)
160
, que justamente intensifica esse saber imediato.
Mas como Aristóteles caracteriza essa percepção imediata dos princípios? No capítu-
lo 6 do livro VI da Ética a Nicômacos, quando trata do acesso aos princípios da ciência, A-
ristóteles contenta-se em caracterizá-la por meio daquilo que ela não é. Dos princípios das
demonstrações e de toda ciência não pode haver nem ciência, nem arte e nem prudência.
Não pode haver ciência porque a ciência procede sempre por demonstrações, e para tanto já
é preciso supor os princípios, e não pode haver arte e prudência porque os princípios das
ciências dizem respeito ao que não pode ser de outro modo. Por outro lado, Aristóteles ex-
158
Ética a Nicômacos, VI, 3, 1139 b 32.
159
Cf. BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles, p. 16.
160
De anima, II, 5, 417 b 2-17. Esta expressão será comentada no quarto e último capítulo da tese.
101
clui ainda a possibilidade de ser a sabedoria esse saber imediato dos princípios, pois, segun-
do ele, “é próprio do sábio possuir demonstração acerca de algumas coisas”.
161
Por conse-
guinte, “resta ser a percepção o acesso aos princípios”.
162
Cada ciência possui seus princípios próprios, os quais delimitam o seu campo especí-
fico de atuação. Estes princípios fundam a própria ciência em sua especificidade, diferente-
mente dos princípios comuns a todas as ciências, como o princípio de não-contradição. A
possibilidade de que haja ciências no plural, e assim, de modo geral, ciências, depende dessa
percepção dos princípios próprios. Aqui aparece o seu máximo parentesco com as sensações
e o sensível em geral, pois também as sensações possuem os seus “sensíveis próprios” (a cor
para a vista, o som para a audição), que são irredutíveis uns aos outros ou a uma modalidade
única. Trataremos da relação entre sensação e percepção no quarto e último capítulo da tese.
Toda ciência parte sempre de certas suposições e sobre elas se funda. A história, por
exemplo, funda-se toda ela na suposição de uma certa irredutibilidade do novo ao velho: o
novo não pode ser inteiramente reconduzido ao velho a fim de ser por ele explicado. Quando
algo assim é buscado em história, o resultado é a sua completa descaracterização. Estas ad-
missões de que partem as ciências não são dados com que os cientistas se deparam e se vê-
em forçados a admitir. A irredutibilidade do novo ao velho é aquilo que o historiador precisa
antes de tudo supor, admitir , para poder considerar este ou aquele fato. É esta admissão pre-
cisamente o que faz do historiador aquilo que ele é, pois sem ela nenhum fato histórico se-
quer poderia ser encontrado. Sempre presente em sua própria atividade, esta liberdade da
admissão, no entanto, não entra em cena para o historiador, o que não significa que ela não
seja sentida por ele.
2.7. A sabedoria e a livre consideração do princípio
Ao contrário, porém, do que acontece na ciência, não é próprio do sábio conhecer
apenas o que deriva dos princípios, mas também: “atingir e dizer a verdade acerca de-
161
Ética a Nicômacos, VI, 6, 1141 a 2. tou= ga\r sofou= peri\ e)ni/wn e)/xein a)podeici/n.
162
Ibid., VI, 6, 1141 a 8. lei/petai nou=n ei)=nai tw=n a)rxw=n.
102
les.
163
A sabedoria seria assim, inseparavelmente, percepção e conhecimento, e, desse mo-
do: “uma ciência destacada das coisas mais dignas e elevadas”.
164
De todo modo, a condição indispensável para que a sabedoria diga a verdade acerca
dos princípios é que ela tenha como característica sua o toma-los livremente em considera-
ção. Isto não deve significar nenhuma independência arbitrária em relação aos princípios,
pois ela também se define por estar vinculada a eles, isto é, por ser “ciência” deles. Aconte-
ce, porém, que este vínculo se define ele mesmo pela liberdade, pois do contrário nenhuma
consideração explícita dos princípios seria possível. De que tipo é essa consideração dos
princípios a um só tempo livre e vinculante?
Por duas ocasiões já realizamos antes uma aproximação do problema sem que, no
entanto, ele tenha sido explicitamente colocado: no primeiro capítulo, quando tratamos da
demonstração por refutação do princípio de não-contradição, e nesta segunda parte, quando
buscamos caracterizar a doutrina aristotélica do meio-termo. Nestas duas oportunidades,
Aristóteles realiza uma consideração explícita do princípio, o que não significa que ele tenha
assumido a tarefa de esclarecê-la.
Na demonstração por refutação do princípio de não-contradição tivemos ocasião de
ver que o fato de este princípio de todas as demonstrações não poder ser ele mesmo demons-
trado não implica em sua inacessibilidade. Tampouco ele é sem mais oferecido como uma
evidência última e incontestável. O princípio de não-contradição deve ser ele mesmo assu-
mido, o que exige que ele seja, de algum modo, considerado. Só que essa consideração não
depende de nossa simples vontade. Para tanto, Aristóteles exige que o contraditor signifique
algo tanto para si quanto para os outros. É, portanto, por meio de uma ação, e de uma ação
irrecusável (a ação de dizer), que se faz possível aqui a consideração do princípio. Em quê
ela consistiria? Não consiste em atentar para um fato que, de tão evidente, torna-se irrecusá-
vel, mas antes em admitir uma situação extrema na qual já se está e já se esteve sempre inse-
rido: dizer é significar, e significar algo uno. Há aqui uma constringência e, ao mesmo tem-
po, uma liberação. Considerar o princípio consiste em deixar-se prender livremente a uma
situação que se revelou ser de todo irrecusável. Esta situação, no entanto, nós mesmos a so-
mos, e por isso não se trata de acatar ou de submeter-se a algo de exterior. O irrecusável de
163
Ética a Nicômacos, VI, 7, 1141 a 18. peri\ ta\j a)rxa\j a)lhqeu/ein.
164
Ibid., VI, 7, 1141 a 20. kefalh\n e)/xousa e)pisth/mh tw=n timiwta/twn.
103
uma situação já foi sempre, inicialmente, recusado. Por isso, quando por fim o consideramos
e assim o admitimos, experimentamos precisamente a liberação desta recusa na qual, sem o
saber, já nos encontrávamos. A consideração do princípio já é em si mesma transformadora,
pois ela transforma a nossa referência privilegiada em relação a todas as coisas. Daí que a
consideração do princípio não seja nada “teórico” no sentido em que empregamos esta pala-
vra: algo de totalmente não-vinculante. A consideração que aqui se tem em vista é, pelo con-
trário, a mesma de quando dizemos, por exemplo, que consideramos alguém. Neste tomar
em consideração, nós guardamos e assumimos precisamente uma referência privilegiada
àquele que consideramos: permanecemos com ele, junto a ele, sem, no entanto, nos dissol-
vermos nele.
Também no que concerne às chamadas virtudes éticas dá-se uma determinada consi-
deração do princípio, pois se toda virtude ética se caracteriza por ser o meio-termo situado
entre um excesso e uma falta, o meio-termo ele mesmo é o que deve ser, em primeiro lugar,
considerado. Como é essa consideração do meio-termo nas virtudes éticas?
Cada situação abre inequivocamente um excesso e uma falta em relação aos quais há
que considerar o meio-termo. O meio-termo, todavia, não é, para Aristóteles, uma abstração
que pairasse etérea sobre o excesso e a falta. Situado entre dois extremos, o meio-termo é ele
próprio um extremo. Isto quer dizer que nem ele pode ser sacado, como uma média, do ex-
cesso e da falta, e nem tampouco o excesso e a falta deixam-se como que deduzir a partir
dele. O meio-termo não pode ser encontrado em algum lugar fora do excesso e da falta, e
isso pelo simples fato de que ele já se destinou nesses dois “extremos”. Por isso, a conside-
ração do meio-termo não pode ser outra coisa senão a consideração desses dois extremos.
Poder parar junto ao excesso e à falta é isso mesmo a consideração do meio-termo. Na ver-
dade, nesta consideração, os extremos não são vistos separadamente, sendo antes tomados
antecipadamente em conjunto. Esta visão, que não permite a mútua exclusão dos extremos
opostos, só é ela mesma possível por já ter-se prendido ao meio-termo. O meio-termo é as-
sim, originalmente, o horizonte no qual se articula e ao qual pertence necessariamente a vi-
são de conjunto dos dois extremos opostos. Desse modo, aquela oscilação, que, de início,
parecia impossibilitar o próprio agir decidido, é agora assumida como o incontornável da
própria situação. A oscilação transformou-se agora na condição indispensável da própria
ação resoluta, pois a consideração do meio-termo nos livra precisamente da ilusão, a que de
104
início estamos entregues, de que a virtude excluiria todo e qualquer oscilar entre extremos
opostos. Corajoso, portanto, não é mais aquele que sabe o tempo todo, inequivocamente, o
que é e onde está a coragem, mas antes aquele que precisa não saber disso, inclusive para, no
momento oportuno, poder descobri-la. Corajoso é antes aquele que se permite oscilar, livre-
mente, entre temeridade e covardia, sem temer acabar sendo enredado por uma ou por outra.
Eis porque a consideração do princípio já é em si mesma transformadora, o que não signifi-
ca, obviamente, que ela possa dispensar a necessidade da ação. Antes pelo contrário, a con-
sideração do princípio só é possível no interesse da ação. Somente aquele que já se dispôs a
agir ele mesmo está em condições de considerar o meio-termo. É por essa razão, inclusive,
que Aristóteles julga necessário interditar aos jovens aulas de política; não tanto porque es-
tes últimos não se dispusessem a “agir”, mas antes por estes não possuírem lastro ou enver-
gadura suficiente para suportarem a oscilação entre dois extremos que tendem a se excluir, e
assim não se disporem a agir eles mesmos.
Tanto num caso como no outro, a consideração do princípio é, originalmente, um
admitir. Este admitir é um postar-se junto e um manter-se aberto à alguma coisa, o que exi-
ge, ao mesmo tempo, liberdade e vínculo, ou melhor, a liberdade de se deixar vincular. Nada
disso, porém, se faz necessário quando se trata do tomar por base alguma coisa. Neste caso,
a coisa não deve entrar em questão e assim chamar especialmente a atenção para si. A rela-
ção aqui exigida é antes a da familiaridade, o que implica, naturalmente, a subordinação do
fundado em relação àquilo que o funda, tal como as demonstrações dependem elas próprias
de princípios indemonstráveis. Assim, todo tomar por base, que não quiser reduzir-se a um
procedimento arbitrário, precisa ele próprio de um acesso àquilo que lhe serve de base. Este
acesso, contudo, não se dá por intermédio de um novo tomar por base ou de um silogismo
especial, mas por um procedimento inteiramente diverso que Aristóteles chamou de
e)pagwgh/, palavra que se costuma traduzir por indução, e que significar propriamente o con-
duzir (a)/gw) para dentro e em direção à alguma coisa (e)pi/): introdução. Sobre este procedi-
mento afirma Aristóteles que:
h( me\n dh\ e)pagwgh\ a)rxh=j e)sti kai\ tou= kaqo/lou, o( de\ sullogismo\j e)k
tou= kaqo/lou: ei)si\n a)/ra a)rxai\ e)c w(=n o( sullogismo/j, w(=n o( sullogismo/j,
w(=n ou)k e)/sti sullogismo/j: e)pagwgh\ a)/ra.
105
A indução diz respeito ao princípio e assim também ao universal, en-
quanto o silogismo parte do universal. Há então princípios dos quais par-
te o silogismo, e dos quais não há silogismo; destes há somente indução
.
165
A e)pagwgh/ não considera este ou aquele fato ou dado particular, mas despedindo-se
de todo dado e de todo fato, dirige-se diretamente aos princípios. O que permitiria semelhan-
te desprender-se de tudo o que já se encontra aí posto diante de nós senão o deixar-se pren-
der ao próprio princípio? A introdução que é a e)pagwgh/ não leva alguém que está fora, pau-
latinamente, para dentro de alguma coisa. A introdução ou indução é antes a familiarização
e o reconhecimento de uma dimensão previamente aberta. Um exemplo pode ser um caso de
e)pagwgh
166
/, pois nele se ultrapassa todo discurso sobre algo para, visando diretamente a coi-
sa em questão, permitir que ela mesma se revele. Quem entende um exemplo, porém, só o
entende porque, de algum modo, já estava ciente, já estava a par, do que nele se iluminou. O
exemplo fez apenas com que ele se familiarizasse com isso. Esta familiarização é tudo me-
nos a banalização daquilo que assim se nos torna familiar. A e)pagwgh/ não é, de forma al-
guma, um processo que teria como ponto de chegada o nou=j como intuição do princípio, ela
já é o próprio nou=j enquanto tomada de consideração explícita do princípio
167
: quem nos
apresenta um exemplo só é capaz de fazê-lo se considera, ao mesmo tempo, aquilo de que
ele é exemplo. Desse modo, ninguém que promova uma e)pagwgh/ pode fazer isso sem intro-
duzir-se, simultaneamente, a si mesmo nessa dimensão do princípio. Aqui, todo procedimen-
to pedagógico, tal como este é normalmente entendido, encontra-se, de antemão, interditado,
pois não é possível estabelecer nenhuma distância assegurada entre aquele que ensina e a-
quele que aprende, assim como entre o que se deve ensinar e o que se deve aprender.
No início da Física
168
, quando delimita os entes naturais por serem todos ou alguns
movidos, Aristóteles afirma que isto é manifesto a partir da indução(
dh=lon e)k th=j e)pagwgh/).
165
Ética a Nicômacos, VI, 3, 1139 b 28.
166
Analíticos Posteriores, I, 71 a 10.
167
Esta é a posição assumida por Oswaldo Porchat Pereira em sua tese de doutorado recentemente publicada:
Ciência e Dialética em Aristóteles. São Paulo: UNESP, 2001. Para Porchat, a indução, assim como a dialéti-
ca, é um procedimentos propedêutico à intuição infalível do princípio. Indução e dialética seriam procedimen-
tos perfeitamente assimiláveis entre si. Estes fariam emergir, mas não produziriam eles mesmos, essa intui-
ção, pelo fato de serem bem inferiores a esta em exatidão.
168
Física, I, 2, 185 a 12.
106
Ora, isto não pode querer dizer que o movimento deva ser tão somente constatado, por obra
de uma generalização, como a propriedade sempre presente de um certo gênero de entes,
pois nem sequer os entes naturais estão sempre somente em movimento mas também em
repouso. Todavia, só está em repouso aquele ente que pode ser movido. Desse modo, o ser
movido ele mesmo jamais poderia ser tão somente verificado, ele só pode mesmo é ser visto,
e visto numa consideração que reuna, de modo especial, repouso e movimento, não permi-
tindo que eles se excluam mutuamente. Esta visão é a e)pagwgh/ como consideração explícita
do princípio: nou=j.
Nos Tópicos, Aristóteles define a
e)pagwgh/ como uma insinuação(e)/fodoj), que, par-
tindo dos casos individuais e afastando-se deles, conduz ao universal(e)pi\ ta\ kaqo/lou). A
indução é referida, por ele, como uma espécie de argumento dialético, ao lado do silogismo.
Mais persuasiva e mais manifesta que o silogismo, a indução seria também mais conhecida
por sensação e assim comum à maioria dos homens, enquanto o silogismo seria mais pode-
roso e mais eficaz contra os que contradizem
169
. Aristóteles não diz que na indução se obte-
nha simplesmente o universal a partir de uma coleção aleatória de casos individuais. Não se
trata de uma produção do universal a partir dos casos individuais. O característico da indu-
ção é que nela “o universal é tomado a partir dos casos individuais e afastando-se de-
les(a)po\ tw=n kaq' e(/kasta to\ kaqo/lou lamba/netai).
170
O exemplo de indução fornecido por
ele é o seguinte: se o melhor piloto de navio é o experiente(o( e)pista/menoj) e se o melhor
cocheiro é o experiente, então o experiente é, em geral (o(/lwj), o melhor em cada uma das
ocupações. Neste exemplo fica claro que a generalização aqui só é possível mediante a con-
sideração explícita e o ater-se ao próprio princípio, pois o experiente não é mais este ou a-
quele, mas antes o experiente como tal. Sem que o perfil(tu/poj) do experiente se destacasse
como tal e fosse assim admitido, semelhante generalização seria de todo impossível.
Na indução, o universal é tomado, ele não permanece mais diante de nós como uma
generalidade vazia. De certo modo, é só então que o universal vem a ser ele mesmo, incluin-
do e, ao mesmo tempo, ultrapassando, todos os casos individuais. Na e)pagwgh/, o universal
acontece como universal, na despedida dos casos individuais. Essa despedida, no entanto, só
169
Tópicos, I, 12, 105 a 10. O silogismo está sendo assumido aqui no âmbito da dialética, e não no âmbito da
ciência.
170
Ibid., VIII, 1, 156 b 15.
107
é possível como um prender-se ao princípio. Por isso, a última coisa que a indução pode ser
é uma conversão em generalidade dos casos individuais, pois estes devem permanecer intei-
ramente como aquilo que eles são. A e)pagwgh/ não suprime os casos individuais, ela na ver-
dade apenas subverte a nossa relação imediata para com eles, de modo a fazer com que eles
apareçam sob uma outra luz. Aquilo que nos é mais familiar aparece então, de modo transfi-
gurado, revelando o que de outro modo permaneceria invisível. Não é a indução quem cria,
pela primeira vez, este vínculo entre o visível e o invisível, ela tão somente aponta, de ma-
neira inequívoca, para ele. A e)pagwgh/ é assim um tomar distância de... por já ter-se prendi-
do à.... À que? Ao princípio como a dimensão previamente aberta que jamais se deixa dis-
ponibilizar.
Numa passagem decisiva dos Analíticos anteriores, no momento em que vem de
contestar a existência de uma possível contradição entre o conhecimento do universal e a
ignorância do caso particular, como se o conhecimento do universal implicasse, automati-
camente, no conhecimento do caso particular, Aristóteles, contestando o argumento defendi-
do por Platão no Ménon de que o aprender é uma reminiscência, afirma:
ou)damou= ga\r sumbai/nei proepi/stasqai to\ kaq' e(/kaston, a)ll' a(/ma t$= e)pagwg$=
lamba/nein th\n tw=n kata\ me/roj e)pisth/mhn w(/sper a)nagnwri/zontaj.
A ninguém ocorre conhecer por antecipação o caso particular, mas simultanea-
mente com a indução recebe-se a ciência das particularidades, como se as esti-
véssemos reconhecendo.
171
A ciência das particularidades deve ser recebida, assim como o próprio universal, por
intermédio da indução: kata\ me/roj(segundo a parte) significa literalmente o contrário de
kaqo/lou (segundo o todo). A indução não é assim apenas o caminho que conduz ao univer-
sal, mas também o caminho que leva ao conhecimento das particularidades. Não se pode,
com efeito, conhecer o particular permanecendo totalmente submerso nele. Tudo o que Aris-
tóteles contesta é que se possa simplesmente deduzir as particularidades a partir do conhe-
cimento do universal. O que ele mostra, na verdade, é que o caminho que leva ao conheci-
mento do universal é, inseparavelmente, o mesmo caminho que conduz ao conhecimento das
171
Analíticos Anteriores, II, 21, 67 a 23.
108
particularidades, pois o conhecimento do universal não exclui, mas antes inclui, a atenção
voltada para o que é específico e particular. Algo semelhante diz Heráclito no fragmento de
numero 60: “Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo”.
172
A tradução latina de e)pagwgh/, inductio (conduzir, introduzir), manteve-se pratica-
mente intacta nas principais línguas européias. O dicionário Houaiss, verte indução por “su-
gestão, instigação,incentivo”. Já o dicionário da língua francesa Le Nouveau Petit Robert
verte “induction” por “suggestion”, explicando-o, em seguida, como termo técnico equiva-
lente à “généralisation”, “inférence” e “analogie”. O mesmo dicionário verte “induire” por
“conduire, convier, engager, inciter, inviter, porter, pousser.” Porém, uma das acepções da
palavra colhidas pelo dicionário, acepção que corresponde justamente ao seu uso vulgar
mais cotidiano, verte “induire” por “tromper”(enganar). Nesta acepção moderna e mais usu-
al, induzir significa algo como provocar em alguém um comportamento involuntário. Quem
se deixa induzir a algo demonstra com isso uma conduta claramente deficiente e injustificá-
vel. A indução passa assim pelo par antagônico de uma postura mais livre e esclarecida, pelo
fato de patrocinar um comportamento dependente e sugestionável. A indução aparece então
como um dizer que oculta as suas verdadeiras intenções, o contrário, portanto, de um dizer
mais “esclarecido” e “transparente”, que explica e justifica tudo o que diz.
A
e)pagwgh/ é, de fato, um dizer insinuante, que mais do que provar alguma coisa faz
com que ela seja assumida como algo digno de questão. Quando no capítulo 6 do livro I da
Ética a Nicômacos, Aristóteles afirma, contra Platão, a impossibilidade de reduzir o bem a
uma idéia única e comum (
koino/n ti kata\ mi/an i)de/an)), mesmo se esta fosse tomada como
um simples paradigma para os bens que o são para nós, e argumenta não ser possível ver
como alguém que contemplasse essa idéia se tornaria mais hábil em curar(i)atrikw/teroj) ou
mais capaz de comandar um exército(strathgikw/teroj), ele na verdade está procedendo por
indução. O dizer que é a indução não insinua algo que já está claro e resolvido para aquele
que diz, mas antes ele só pode ser insinuante porque o que ele diz é questão, em primeiro
lugar, para aquele que diz. Não há, portanto, nenhuma intenção obscura nesse dizer, o que há
é que a própria coisa dita está prenhe de uma obscuridade inquietante e assim deve perma-
necer. Quem viu alguma coisa que é em si mesma obscura não pode sem mais pretender
172
Cf. Os pensadores originários. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1991.
109
explicá-la. O dizer insinuante assume essa condição e esse limite da própria fala, ao invés de
simplesmente tentar contorná-lo.
2.8. A consideração do princípio característica da prudência
Vejamos agora como se caracteriza a consideração do princípio que tem lugar na
prudência, melhor dizendo, que constitui a prudência. Aristóteles afirma que a prudência se
refere, em primeiro lugar, ao extremo, pois esta é finalmente a natureza da ação a praticar.
Nesse aspecto decisivo, ela corresponde (a)nti/keitai)
173
ao nou=j, não certamente enquanto
este diz respeito às definições das quais não há demonstração(lo/goj), mas enquanto a pru-
dência se refere ao extremo, do qual não há ciência e sim sensação. Esta última sensação,
porém, não é a dos sensíveis próprios, mas aquela pela qual nós sentimos(ai)sqano/meqa) que
o triângulo é um extremo nas matemáticas, e aí nos detemos. A prudência consiste, portanto,
antes de mais nada, nesta sensação, que, na verdade, é o próprio nou=j.
174
Mas o que significa perceber um caso extremo? No exemplo fornecido por Aristóte-
les, o que significa perceber que o triângulo é, nas matemáticas, um caso extremo, e em quê
essa sensação seria inteiramente distinta da sensação dos sensíveis próprios? Perceber um
caso extremo significa ater-se e deter-se diante da impossibilidade de prosseguir em uma
dada direção. O triângulo só pode ser percebido como um extremo quando diante dele nós
nos detemos de um modo bastante particular. Desta vez, não somos nós que concebemos,
imaginamos ou que desenhamos triângulos de diversos tipos, mas antes é o triângulo ele
mesmo que se impõe como algo irredutível. Perceber o triângulo como um extremo significa
assim deter-se diante de algo que se mostrou a partir de si mesmo. Por isso, mesmo quando
seccionamos diversas figuras até chegarmos à figura irredutível do triângulo, jamais pensa-
mos que o triângulo como extremo tenha sido produzido por esse exercício. Semelhante per-
173
Segundo o Dictionnair Grec-Français A Bailly, a)nti/keitai pode significar “corresponder à” quando
acompanhado pelo dativo. Além disso, é o próprio Aristóteles quem diz, um pouco mais adiante, que o nou=j
não diz respeito apenas às definições indemonstráveis, mas também ao que é extremo (EN. 1142 b 35) O
mesmo emprego de a)nti/keitai + dativo é observado por Aristóteles em Metafísica V, 1019 b 20, onde se
pode ler: “Para cada potência há uma impotência correspondente(a)ntikeime/nh), e correspondente seja ao
que move simplesmente seja ao que move bem.”
174
Ética a Nicômacos, VI, 8, 1142 a 25 ss.
110
cepção só é possível quando nós nos detemos diante de algo que se mostrou irredutível. A
suficiência deste encontro abole inteiramente a necessidade de um porquê. A percepção do
extremo é mesmo esse deter-se diante de...., um já estar implicado e ser concernido por aqui-
lo que se está percebendo. Algo assim é precisamente o que não acontece na sensação dos
sensíveis próprios, pois o fato de que a vista sempre descubra cores e a audição sons não só
não propicia nenhuma implicação, como chega a tornar praticamente imperceptível a própria
percepção. Também no caso de uma percepção sensível singular não se costuma fazer a ex-
periência de qualquer implicação.
Imediatamente depois de ter caracterizado a prudência como consistindo na percep-
ção do caso extremo (
nou=j), Aristóteles passa a buscar determinar, ao longo de todo o
capítulo IX, a natureza da deliberação que marca o comportamento do prudente: a
eu)bouli/a
ou deliberação conscienciosa. Aristóteles prossegue, desse modo, a sua caracterização da
consideração do princípio, que tem lugar na prudência. Como vimos antes, diferentemente
do que ocorre no caso da ciência, a prudência deve sempre tomar explicitamente em
consideração os princípios. Trata-se, portanto, de apresentar a deliberação na qual
unicamente a ação a ser praticada pode impor-se como algo suficiente e irredutível, como
m extru emo. A deliberação conscienciosa não é, segundo Aristóteles, nem ciência, nem opinião e
nem tampouco perspicácia (eu)stoxi/a), sendo esta última uma certa habilidade de acertar o
alvo perseguido. Ao mesmo tempo que distingue, de forma extremamente concisa, a delibe-
ração conscienciosa de cada uma delas, Aristóteles faz com que se destaquem seus traços
característicos. A deliberação conscienciosa não é ciência porque ninguém se põe a investi-
gar aquilo que já sabe. Mas a deliberação conscienciosa é uma certa deliberação, e quem
delibera investiga(
zhtei=) e pondera(logi/zetai).
175
Soa estranho, para nós, que Aristóteles
afirme que a ciência não se caracterize pela investigação, mas pelo saber, como se ambos
pudessem ser contrapostos. Na verdade, porém, Aristóteles está se referindo aqui exclusiva-
mente aos princípios, e os princípios das ciências devem ser conhecidos de antemão, eles
não podem ser buscados pelas ciências. Nenhum físico, enquanto físico, pode investigar o
que é a física, pois isto é o que ele já precisa saber para poder investigar tudo aquilo que ele
investiga. Mas Aristóteles ainda afirma que o deliberar e o investigar não são idênticos, e
175
Ética a Nicômacos, VI, 9, 1142 b 1.
111
que o deliberar é um certo investigar.
176
Por que, afinal, a deliberação e a investigação não
seriam idênticas? Aristóteles já havia tratado antes dessa distinção entre deliberação e inves-
tigação, e por essa razão não desenvolve aqui o assunto. Naquela oportunidade ele havia dito
que:
o( ga\r bouleuo/menoj e)/oike zhtei=n kai\ a)nalu/ein to\n ei)rhme/non
tro/pon w(/sper dia/gramma - fai/netai d' h( me\n zh/thsij ou) pa=sa
ei)=nai bou/leusij, oi(=on ai( maqhmatikai/, h( de\ bou/leusij pa=sa
zh/thsij - kai\ to\ e)/sxaton e)n th=? a)nalu/sei prrw=ton ei)=nai e)n th=?
gene/sei.
Pois aquele que delibera parece investigar e analisar do modo
descrito, como se investigasse e analisasse uma figura geomé-
trica – mas nem toda investigação se mostra ser uma delibera-
ção, por exemplo: as investigações matemáticas não o são.
Mas toda deliberação é uma investigação e o extremo na análi-
se é o primeiro na ordem da geração.
A deliberação é uma espécie de investigação que, no entanto, difere das investiga-
ções matemáticas por não possuir, desde o início, um algo posto diante de si para ser anali-
sado. O que na deliberação propriamente se busca e “investiga” é algo que não está posto aí
diante de nós como um objeto disponível a ser analisado. Embora ele possa produzir essa
impressão, o objeto buscado na deliberação, a ação a praticar, só deve surgir ao término da
própria “análise”. A investigação matemática pode dispor, desde o início, do seu objeto de
investigação, já a deliberação só o alcança quando chega propriamente ao seu fim. A delibe-
ração é assim uma preparação indispensável para que a ação a praticar possa se apresentar
desde si mesma.
Não sendo ciência, tampouco a deliberação conscienciosa pode ser uma espécie de
perspicácia, pois enquanto a perspicácia dá-se prontamente e é desprovida de razão
(
a)/neu lo/gou), levamos bastante tempo deliberando. A deliberação inclusive, segundo o juízo
comum, deve ser lenta, somente a realização das coisas que deliberamos é que deve dar-se
176
Ibid., VI, 9, 1142 b 3.
112
prontamente. Além disso, diz Aristóteles, a argúcia (a)gx/inoia) não tem nada em comum
com a deliberação conscienciosa, mas ela é sem dúvida um certo tipo de perspicácia.
177
Por implicar certamente em atingir a ação oportuna, a deliberação conscienciosa po-
de ser confundida com a perspicácia. Nesta última, porém, o decisivo é simplesmente “acer-
tar o alvo”, não importando a própria natureza do alvo e do atirar. Falta sempre ao perspicaz
a gravidade inerente à decisão. A ação oportuna precisa, muitas vezes, para poder revelar-se,
de uma exposição a um verdadeiro beco sem saída, já a perspicácia tem sempre saída para
tudo. Além disso, conforme assegura o juízo comum, não é a deliberação que deve ser ime-
diata, mas antes o cumprimento daquilo que foi deliberado. A simples dúvida ou demora no
cumprimento do que foi decidido já implicaria no fracasso da deliberação. Em uma palavra,
só pode confiar-se à deliberação conscienciosa aquele que não desconfia da ação e que, ao
decidir-se, procede como se a ação a ser praticada fosse já uma realidade acabada.
Mas a deliberação conscienciosa tampouco pode ser opinião(do/ca). Certamente ela é
uma certa correção, pois quem delibera mal erra, e quem delibera bem acerta; mas
semelhante correção não é própria da ciência e nem da opinião. Com efeito, segundo
Aristóteles, assim como não há erro assim também não pode haver acerto de conhecimento.
O acerto, no entanto, pode convir à opinião, mas a opinião correta é pura e simplesmente a
verdade.
178
Ao mesmo tempo, tudo o que diz respeito à opinião já está definido
(w(/ristai h)/dh), pois a opinião não é uma investigação, mas já uma certa afirmação, enquanto
aquele que delibera, quer delibere bem ou mal, busca algo e raciocina.
179
A deliberação conscienciosa é uma certa correção, mas esta correção não pode ser a
correção característica da opinião correta. A correção da deliberação conscienciosa é antes a
correção de uma busca e de uma investigação, e não a de uma afirmação; ela não visa algo já
definido e, por isso, não pode ser a verdade no sentido da adequação. A correção da delibe-
ração conscienciosa é a correção de um ajuste, mas esse ajuste não possui ainda nada de
definido a que ajustar-se. Trata-se, assim, de um ajuste a algo que ainda não está definido e
delimitado, a algo que não se pode saber o que é. Sabe-se apenas que há algo que deve ser
encontrado. Não pode haver busca e investigação caso já se saiba aquilo que se está buscan-
177
Ética a Nicômacos, VI, 9, 1142 b 5.
178
Essa identificação da opinião correta com a verdade é a mesma perspectiva adotada por Platão. Cf.
Teeteto, 202 c.
179
Ética a Nicômacos, VI, 9, 1142 b 7.
113
do e investigando, mas tampouco pode haver investigação sem a presença de algo que preci-
sa ser encontrado. Somente esta última sintonia, que é em si mesma inverificável, constitui a
correção da deliberação conscienciosa.
Da mesma forma que a deliberação, também uma pergunta pode ser correta ou incor-
reta, desde que ela atinja ou não o seu perguntado. A pergunta correta ou bem colocada é
aquela que se orienta, decidida, para o espaço aberto onde somente pode brotar uma respos-
ta. Jamais uma pergunta pode ser considerada correta em virtude da presumida correção da
resposta encontrada. Este pode ser o caso na chamada “pergunta pedagógica”, que todavia
não é uma autêntica pergunta. Numa pergunta genuína, pelo contrário, a resposta deve ser
absolutamente imprevisível. Como, porém, se poderia sustentar essa radical imprevisibilida-
de caso já não houvesse algo orientando e conduzindo a pergunta para uma resposta possí-
vel? A pergunta correta é assim aquela que se confia ao aberto de seu perguntado e que se
articula unicamente a partir dele. Sem esse ajuste prévio da pergunta àquilo que a despertou,
toda resposta teria necessariamente de fracassar como resposta.
180
No restante do capítulo IX, Aristóteles irá precisar, mais detidamente, a correção
característica da deliberação conscienciosa, dizendo que ela não se caracteriza somente pela
obtenção de algo útil, mas por alcançá-lo em virtude do que é preciso, do modo como é pre-
ciso e no tempo adequado.
181
A ênfase recai aqui novamente sobre a própria deliberação e
não sobre o que dela resulta, se bem que seja sempre em vista de algo “útil” que se delibera.
Aristóteles encerra então o capítulo IX com as seguintes palavras:
ei)dh\ tw=n froni/mwn to\ eu)= bebouleu=sqai, h( eu)bouli/a ei)/h a)\n o)rqo/thj h( kata\
to\ sumfe/ron pro\j to\ te/loj, ou(= h( fro/nhsij a)lhqh\j u(po/lhyi/j e)stin.
Se o ter deliberado bem é característico dos homens prudentes, a deliberação
conscienciosa seria a deliberação correta do que é útil em vista do fim, sen-
do a prudência a suposição verdadeira do próprio fim.
Para deliberar bem é preciso já possuir uma suposição verdadeira do próprio fim,
pois esta não pode ser alcançada mediante o exercício da deliberação. Em outras palavras,
180
Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I . Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997,
p.533.
181
Ética a Nicômacos, VI, 9, 1142 b 27.
114
para deliberar bem é preciso já ser prudente. Ninguém pode tornar-se prudente se já não é
prudente. Desse modo, como não pode ser simplesmente adquirida, tampouco a prudência
pode ser esquecida.
182
Sempre o fim já foi entrevisto e assumido de modo concreto seja co-
mo prazer, seja como honra, seja como percepção (
nou=j). Não há vida humana possível que
já não tenha assumido o bem(o fim) em uma dessas direções. Se já não estivesse, desde
sempre, voltado para o fim, se já não tivesse assumido e compreendido, de algum modo, o
próprio fim numa suposição verdadeira, o homem não poderia jamais deliberar a respeito de
coisa alguma; ele não poderia agir e assim não poderia ser homem, pois agir significa: deci-
dir-se por alguma coisa em vista de um fim. E mesmo quando delibera em vista de um fim
relativo (pro\j ti te/loj) sempre o homem delibera em vista do fim em sentido absoluto
(pro\j to\ te/loj to\ a(plw=j).
183
Mas se sempre já nos encontramos em uma suposição verdadeira acerca do próprio
fim das ações, isso não significaria dizer que todos são prudentes e que ninguém em particu-
lar é prudente? Esta conseqüência absurda só poderá impor-se caso se esqueça que, para o
homem, tal situação não representa nenhuma posição assegurada de antemão. Certo, o ho-
mem não pode extraviar-se, por completo, do fim das ações, mas tampouco ele pode, pura e
simplesmente, estacionar nele.
Os homens já se encontram sempre extraviados de sua própria obra. A prudência
consiste precisamente nessa compreensão de que o fim deve comparecer ele próprio na deli-
beração, de modo a poder estruturá-la. A deliberação conscienciosa não é assim aquela que
possui uma suposição verdadeira do fim das ações, pois esta toda ação deve possuir necessa-
riamente. A deliberação conscienciosa é antes aquela que faz com que o fim compareça na
própria ação de deliberar, e que não espera alcançá-lo, em primeiro lugar, mediante a ação.
O homem prudente não pode dispor simplesmente do fim das ações, mas deve esperar que a
própria situação instaure a oportunidade da deliberação conscienciosa. O homem prudente é
aquele, portanto, que assume integralmente o extravio da condição humana. Somente para o
homem prudente mostra-se ser preciso tudo escolher e fazer por causa e através do fim das
ações. Esta consideração explícita do fim das ações é a própria consideração do princípio
que constitui a prudência. Como diz Aristóteles:
182
Ética a Nicômacos, VI, 9, 1140 b 29.
183
Ibid., VI, 9, 1142 b 28 e I, 7, 1097 a 26.
115
ai( me\n ga\r a)rxai\ tw=n to\ ou(= e(/neka ta\ prakta/
Pois os princípios das ações são aquilo mesmo em vista de que as a-
ções são praticadas.
184
A característica marcante da consideração do princípio que define a prudência está
no fato de que ela seja essencialmente situada. A deliberação conscienciosa só é possível
quando se assume, ao mesmo tempo, a pertença a uma situação determinada. Essa percepção
vinculante, que é o próprio
nou=j enquanto percepção do que é extremo, poderia produzir a
impressão de um total fechamento daquele que se dispõe a agir na mudez tensa de um ter de
decidir-se, de modo que a fala e o dizer seriam aqui impraticáveis. No entanto, essa impres-
são é logo desmentida, ao menos em parte, quando Aristóteles passa a caracterizar, nos capí-
tulos 10 e 11, dois outros estados complementares à prudência: o discernimento (
su/nesij) e
o julgamento (gnw/mh). Embora se refiram às mesmas coisas, a prudência e o discernimento
não são idênticos, pois enquanto a primeira dita o que deve ser feito, o discernimento é so-
mente crítico (h( de\ su/nesij kritikh\ mo/non), e visa julgar corretamente o que é dito por al-
gum outro em relação àqueles assuntos a respeito dos quais há prudência.
185
Já o julgamento
é a decisão acertada acerca do que é eqüitativo(e)pieikou=j). Em ambos os casos, trata-se de
uma deliberação correta que já não se dirige ao que se deve fazer ou deixar de fazer, mas ao
que outros fizeram ou disseram. Essa deliberação, que exige um certo desprendimento de si,
seria impossível caso aquele que assim delibera não assumisse o pertencimento a uma situa-
ção comum.
A prudência, portanto, ao contrário de representar o fechamento em uma dada situa-
ção particular é o espaço desde o qual torna-se possível avaliar corretamente o que os outros
homens fazem ou dizem. Ninguém poderia ser reconhecido prudente caso também não fosse
capaz de julgar, de forma correta, as opiniões e as ações dos outros homens. É o que Aristó-
teles exprime belamente quando diz que o homem prudente é aquele que possui a capacida-
de de ver que coisas são boas, ao mesmo tempo, para si e para os homens em geral.
186
184
Ética a Nicômacos, VI, 5, 1140 b 16.
185
Ibid., VI, 10, 1143 a 14.
186
Ibid., VI, 5, 1140 b 9.
116
2.9. Sabedoria e prudência: modalidades da percepção do que é extremo
Essa universalidade da prudência, que faz com que a deliberação conscienciosa ul-
trapasse a simples preocupação ansiosa e atarefada com questões particulares, representa, no
entanto, para Aristóteles, simultaneamente, o seu próprio limite. O homem prudente, de fato,
não se ocupa e nem considera todos os assuntos e opiniões, mas apenas aqueles que podem
ser objeto de deliberação, e que constituem as coisa boas relativamente ao homem. A pru-
dência só considera aquelas coisas relacionadas ao domínio mais especificamente humano: o
domínio da ação.
187
Para Aristóteles, em conseqüência, é muito possível que alguém seja
prudente e ignore, por completo, aquelas coisas que devido à sua grande dignidade, ultrapas-
sam em grande medida o poder de decisão humano. Essas coisas, que Aristóteles nomeia
extraordinárias (peritta/), admiráveis (qaumasta/), difíceis (xalepa/), sobre-humanas
(daimo/nia) e inúteis, somente uns poucos homens declaram conhecer, justamente aqueles
que não buscam os bens humanos: os sábios (sofoi/), tais como Tales e Anaxágoras.
188
Enquanto o homem prudente considera sempre e em toda a parte o que é melhor rela-
tivamente ao homem, o sábio considera apenas o que é melhor em si mesmo. O sábio, ao
contrário do homem prudente, não está preso a uma perspectiva estritamente humana, sua
perspectiva é antes, pura e simplesmente, a da totalidade (e)n tw?= ko/smw?), e nesse horizonte
não há nenhum motivo para que se privilegie especialmente o homem. Uma das característi-
cas mais marcantes do sábio, aquilo que o torna mais facilmente reconhecível, é inclusive o
fato de que ele costuma ignorar o que lhe é vantajoso.
189
A despeito das diferenças que opõem sabedoria e prudência, há em comum entre
ambas seja a perspectiva que enxerga, em toda a parte, em primeiro lugar, a totalidade, seja a
busca do que na respectiva totalidade merece ser considerado o melhor. Assim, o que antes
de mais nada caracteriza tanto a sabedoria quanto a prudência é a perspectiva que se deixa
prender, livremente, à totalidade, e que, desde essa totalidade, passa a considerar o que é
mais digno de ser considerado.
187
Ética a Nicômacos, VI, 7, 1141 b 8 ss.
188
Ibid., VI, 7, 1141 b 4.
189
Ibid., VI, 7, 1141 b 6.
117
Para Aristóteles, sem dúvida, o sábio não é o prudente e o prudente não é uma espé-
cie de sábio, assim como a totalidade do que é digno de ser considerado em si mesmo não se
identifica com a totalidade do que só é digno de ser considerado numa perspectiva estrita-
mente humana. Todavia, a sabedoria e a prudência são as únicas virtudes dianoéticas que
atingem e consideram, em suas respectivas totalidades, o que é propriamente digno e irredu-
tível, pois tomada enquanto tal a referência à totalidade é, tanto num caso como no outro, a
mesma. A sabedoria e a prudência são assim, em última instância, realizações do nou=j en-
quanto percepção do que é extremo. É o que diz textualmente Aristóteles na seguinte passa-
gem:
kai\ o( nou=j tw=n e)sxa/twn e)p' a)mfo/tera: kai\ ga\r tw=n prw/twn o(/rwn kai\ tw=n
e)sxa/twn nou=j e)sti\ kai\ ou) lo/goj:kai\ o( me\n kata\ ta\j a)podei/cij tw=n a)kin-
h/twn o(/rwn kai\ prw/twn, o( d' e)n tai=j praktikai=j tou= e)sxa/tou kai\ e)ndexom-
e/nou kai\ th=j e(te/raj prota/sewj: a)rxai\ ga\r tou = ou(= e(/neka au(=tai: e)k tw=n
kaq' e(/kasta ga\r ta\ kaqo/lou: tou/twn ou)=n e)/xein dei= ai)/sqhsin, au(/th d' e)sti\
nou=j.
E dos dois modos a percepção diz respeito aos extremos: pois das primei-
ras definições e dos extremos há percepção e não discurso (argumentação):
por um lado, a percepção das definições imutáveis e primeiras, que acom-
panha as demonstrações, e, por outro lado, no que concerne às ações, a
percepção do extremo, do possível e da premissa menor; pois os princípios
são eles mesmos princípios do que é final; pois sendo os universais a partir
das coisas particulares, destas, sem dúvida, é preciso possuir uma sensa-
ção; a qual, porém, é uma percepção.
190
Ao contrário do que acontece nas ciências, a percepção do que é extremo não cons-
titui o fundo a partir do qual são possíveis a sabedoria e a prudência. A sabedoria e a pru-
dência é que são, em si mesmas, modalidades de exercício da percepção. Considerada essen-
cialmente, a prudência é ela mesma a admissão do decisivo de uma situação. Este constitui o
que, em primeiro lugar, é o extremo propriamente dito na ação. Não fosse essa admissão
190
Ética a Nicômacos, VI, 11, 1143 a 35.
118
prévia e a deliberação conscienciosa não poderia, de forma alguma, ter lugar. No entanto,
aquilo que desencadeia a deliberação conscienciosa não se retrai em benefício do que se
deve deliberar, mas permanece sendo considerado ao longo da deliberação. De fato, somente
essa sensação do decisivo de uma situação poderia nos encaminhar para a decisão do que
deve ser feito.
Também no que diz respeito à sabedoria permanece sempre em questão aquilo a
que se referem as suas demonstrações. A sabedoria não se caracteriza, para Aristóteles, por
partir simplesmente dos primeiros princípios, mas por dizer a verdade acerca deles.
191
Mas
para poder dizer a verdade acerca dos princípios, a sabedoria já os deve ter admitido. Consi-
derada enquanto tal, ela não é senão essa admissão prévia dos princípios. É o que diz Aristó-
teles antes de enunciar o princípio o mais firme de todos:
h(/ ga\r a)nagkai=on e)/xein to\n o(tiou=n cunie/nta tw=n o)/ntwn, tou=to ou)x u(po/qesij: o(\
de\ gnwri/zein a)nagkai=on tw?= o(tiou=n gnwri/zonti, kai\ h(/kein e)/xonta a)nagkai=on.
Pois não é uma condição o que deve possuir quem queira compreender os en-
tes, mas aquilo que é preciso conhecer para quem conhece o que quer que se-
ja, isso ele já chega possuindo necessariamente.
192
A sabedoria é assim um “chegar possuindo necessariamente” o próprio princípio, já
que a ele não se pode chegar por intermédio de nenhuma demonstração. Este chegar possu-
indo não corresponde à simples posse assegurada de algo, trata-se antes de uma referência
privilegiada que não admite, justamente, nenhuma distância asseguradora. Nesse aspecto
decisivo, em quê a sabedoria ainda poderia ser distinguida da prudência?
O quadro acima dá a impressão de que Aristóteles estaria supondo um perfeito pa-
ralelismo entre sabedoria e prudência enquanto as virtudes propriamente ditas de cada uma
das partes que compõem a alma racional. Em certo sentido é isso mesmo que ele está supon-
do, como se pode ver na seguinte passagem:
191
Ética a Nicômacos, VI, 7, 1141 a 17.
192
Metafísica, IV, 3, 1005 b 15.
119
prw=ton me\n ou)=n le/gwmen o(/ti kaq' au(ta\j a)nagkai=on ai(reta\j au)ta\j ei)=nai,
a)reta/j g' ou)/saj e(kate/ran e(kate/rou tou= mori/ou, kai\ ei) mh\ poiou=si mhde\n
mhdete/ra au)tw=n.
Primeiramente, sem dúvida, digamos que a prudência e a sabedoria devem
ser escolhidas por elas mesmas, pelo fato de serem as virtudes de cada uma
das partes da alma racional, mesmo que nenhuma delas produzisse qual-
quer coisa.
193
Todavia, por mais que a prudência e a sabedoria sejam, em si mesmas, dignas de
escolha, não há, para Aristóteles, nenhuma eqüivalência entre elas. A prudência apresentaria
uma clara inferioridade em relação à sabedoria em virtude da natureza de seu “objeto”. Com
efeito, diz Aristóteles: “O homem não é o que há de melhor no universo.”
194
Assim, a pers-
pectiva que descobre a identidade de sabedoria e prudência enquanto modalidades de exercí-
cio da percepção logo cede lugar para a perspectiva que enxerga, antes de tudo, a distância
que separa o homem do divino, e um desempenho estritamente humano de um desempenho
sobre-humano.
195
Somente esta última, a sabedoria, produz a felicidade, não certamente co-
mo a medicina produz a saúde, mas como algo em si mesmo saudável a produz.
196
Desse
modo, a prudência torna-se apenas um meio de se assegurar o pleno exercício da única ativi-
dade realmente digna de ser escolhida por si mesma: a sabedoria. Aristóteles não hesita em
comparar esta última com a saúde, e a prudência com a medicina. Ora, a medicina não se
serve da saúde, mas antes busca servi-la de modo que ela mesma se gere.
197
A prudência,
portanto, não tem seu fim em si mesma, seu fim é antes a sabedoria entendida como a única
atividade verdadeiramente autárquica. Aristóteles parece claramente preocupado em assegu-
rar para a sabedoria uma posição de inequívoca superioridade, chegando inclusive a afirmar,
nas últimas linhas do livro VI, que caso contrário poder-se-ia imaginar que a política gover-
na até mesmo os deuses, pelo fato de que ela dirige todas as coisas na cidade.
193
Ética a Nicômacos, VI, 12, 1144 a 1.
194
Ibid., VI, 7, 1141 a 22.
195
A intuição fundamentel de Aristóteles é aquela da separação, da distância incomensurável entre o homem
e Deus. O homem, por certo, imita Deus, mas sem jamais poder atingi-lo.” AUBENQUE, Pierre. La prudence
chez Aristote. Paris: PUF-Quadriage, 2002, p. 81.
196
Ética a Nicômacos, VI, 12, 1144 a 3.
197
Ibid., VI, 13, 1145 a 8.
120
No mesmo movimento em que salva a sabedoria, Aristóteles sacrifica, por outro
lado, não tanto a prudência ou a “phrónesis transcendental” de que fala Werner Jager, mas a
transcendência originária que acontece todas as vezes que admitimos e nos transportamos
para o decisivo de uma situação. É essa admissão, a percepção do que é extremo, a qual
constitui igualmente a sabedoria como percepção dos princípios, que desaparece do horizon-
te da consideração quando a sabedoria subordina a si a própria prudência. Certo, a prudência
não é sem mais absorvida pela sabedoria, mas a sua independência mesma só se justifica em
vista dela. Presa à evidência de que há no homem uma dimensão resistente à razão, ainda
que não lhe seja inteiramente estranha, a filosofia, com Aristóteles, parece não encontrar
nenhuma outra saída a não ser o refúgio e a retirada para a região do sobre-humano. Desde
então, a imagem da natureza humana torna-se, como diz belamente Eugen Fink, a imagem
de um centauro, e a transcendência originária pode ser então desconsiderada.
Este caráter fundamental de centauro que apresenta a imagem tradicional do
homem constitui uma herança funesta à medida que por ela a relação funda-
mental mundana da existência humana foi recoberta e obscurecida pela dis-
tância intra-mundana que separa o homem, de um lado, do animal e, de outro
lado, de Deus. Uma relação intra-mundana, que reveste seguramente uma
grande importância, consumiu a força extática da existência humana.”
198
Há, portanto, para Aristóteles, uma certa atividade que produz, por si mesma, a feli-
cidade; esta atividade é a sabedoria. Como atividade, a sabedoria é também um certo modo
de vida que pode ser escolhido. A sabedoria, com efeito, só torna realmente feliz aquele que
a ela se dedica durante toda a sua vida. No homem, toda atividade, inclusive a atividade au-
tárquica da sabedoria, requer o esforço da perseverança, pois de outro modo ela não poderia
render os seus frutos. Em si mesma, porém, a sabedoria é a atividade que pode ser exercida
com o máximo de continuidade e é, dentre todas, a menos condicionada.
Este caráter autárquico da própria felicidade, entendida como o fim das ações
199
, é
o parâmetro a partir do qual Aristóteles assume a prerrogativa da sabedoria sobre a prudên-
cia. Para Aristóteles, a prudência corresponde, na totalidade dos modos de vida por ele dis-
198
FINK, Eugen. Le Jeu comme symbole du monde. Paris, Les Éditions de Minuit, 1993, p.44.
199
Ética a Nicômacos, I, 7, 1097 b 20.
121
criminados, à vida segundo a honra, ao bi/oj politiko/j. Ora, a honra pode ser dada e tirada e
depende mais daquele que a concede do que de quem a recebe, enquanto a felicidade é sem-
pre assumida como propriedade de quem a possui e como sendo difícil de ser tirada.
200
A
vida segundo a honra é, neste sentido, bem mais vulnerável a toda sorte de vicissitudes do
que a vida segundo a sabedoria. Isto, porém, não significa que aquele que se dedica à sabe-
doria esteja blindado contra todos os infortúnios e que ele já tenha garantido a felicidade,
significa apenas que ele se encontra em muito melhores condições de suportar as adversida-
des que porventura ocorram.
Além disso, a autarquia da sabedoria destaca-se tanto mais em relação à prudência
pelo fato de que ela pode ser exercida sem o concurso dos outros. O homem justo carece de
outras pessoas para agir com justiça, pois é em vista delas que ele age. Já o sábio pode per-
feitamente exercer a atividade teórica mesmo quando está só, e tanto melhor quanto mais
sábio ele for.
201
Esta situação característica do sábio de poder permanecer ativo mesmo na
solidão não impede, porém, que a atividade teórica seja melhor exercida na companhia de
outros homens. O sábio não é, para Aristóteles, um tipo solitário e misantropo. A autarquia
da atividade teórica não implica em isolamento, mas, por outro lado, mesmo quando exerce
a sua atividade em comum, não é em vista dos outros que ele atua. Por isso, a atividade teó-
rica é a única que pode ser amada (a)gapa=sqai) apenas por si mesma, pois nada se gera a
partir dela além da própria atividade, enquanto que, pelas ações, reservamos para nós, ora
mais ora menos, algo além da própria ação.
202
A ação em si mesma nunca chega a ser perfeitamente autárquica, pois sempre re-
servamos para nós mesmos algo além da própria atividade. Isto não acontece devido a algu-
ma deficiência individual, não somos nós, individualmente, que nos mostramos incapazes de
uma ação realmente desinteressada. É antes a própria ação, devido à sua estrutura interna,
que impossibilita o perfeito desinteresse. O prudente, com efeito, como já vimos, busca
sempre o que é melhor para si e para os outros homens em geral. Essa referência privilegia-
da a si mesmo é tão indissociável da prudência que longe de constituir algo baixo e mesqui-
nho, é a própria condição das ações mais nobres e “altruístas” de que somos capazes, en-
quanto homens. Aristóteles chega inclusive a dizer que o homem bom deve ser um “egoís-
200
Ibid., I, 5, 1095 b 25.
201
Ibid., X, 7, 1177 a 34.
202
Ibid., X, 7, 1177 b 1.
122
ta”(fi/lauton), isto é, alguém que ama a si mesmo, pois ele tirará vantagem das belas ações
e, ao mesmo tempo, será útil aos outros.
203
Desse modo, ninguém pode realizar uma ação
bela e nobre sem buscar para si a melhor parte da ação, pois o que há de melhor na ação não
é, segundo Aristóteles, o prazer do benefício alcançado, a mera utilidade, mas o prazer de
ser benfeitor, mesmo quando não se pode esperar qualquer contrapartida pelo benefício.
204
Aristóteles não ignora que o chamado “amor próprio”, tal como é normalmente
compreendido, signifique apenas o egoísmo mesquinho. O que ele contesta é que na ação de
fazer o bem não esteja presente o empenho de fazer o bem, primeiramente, para si mesmo.
Sem esse egoísmo, de fato, seria impossível o entusiasmo pelas ações nobres e belas. Em
toda ação, portanto, se faz presente um certo egoísmo, e esse egoísmo será ainda mais inten-
so nas ações nobres e generosas. Na verdade, o egoísta mesquinho, visando apenas ser bene-
ficiado, acaba revelando-se, para Aristóteles, bem pouco egoísta.
Na ação de beneficiar um amigo, por exemplo, aquele que assim procede está re-
servando a melhor parte da ação para si mesmo. O amigo é, para Aristóteles, um “outro
eu”(
e(/teron au)to\n), um outro si-mesmo.
205
Ora, isto não significa que ninguém seja realmen-
te amigo de ninguém, e que todos busquem somente o seu próprio e exclusivo interesse.
Significa apenas que a realização do amigo é buscada como algo de meu próprio interesse. O
homem “bom” se empenha para que seus amigos se realizem, chegando ao ponto de permitir
que certas ações nobilitantes sejam praticadas por eles, quando ele mesmo as poderia reali-
zar. Esta última ação de favorecer o amigo é ainda mais nobilitante do que a de praticar a
ação nobre.
O homem sumamente bom e feliz (spoudai=oj) não pode, portanto, prescindir da
existência daqueles a quem possa favorecer. Essa dependência em que ele se encontra da
existência de amigos para fazer o bem, esse favorecimento que é a mais alta ação de que o
homem é capaz enquanto homem, não deixa de testemunhar, por outro lado, para Aristóte-
les, a distância infinita que separa a ação humana da atividade divina, pois a autarquia divina
é tal que os deuses absolutamente não necessitam de amigos.
206
Aristóteles nega inclusive
que os deuses sejam capazes de ações nobilitantes, ou mesmo de ações moderadas e liberais.
203
Ética a Nicômacos, IX, 8, 1169 a 11.
204
Ibid., IX, 7, 1168 a 10. O benfeitor experimenta prazer na simples existência do beneficiado.
205
Ibid., IX, 9, 1169 b 6.
206
Ética a Nicômacos, X, 8, 1178 b 16.
123
Este tipo de elogio seria, na verdade, um elogio de péssimo gosto feito à divindade, pois
implicaria em supor que a divindade possui desejo.
Como se pode ver, não há para Aristóteles nenhuma “razão prática pura”. A única
“razão pura” que ele admite é a atividade teórica que caracteriza a sabedoria, pois esta é a
única da qual não resulta nada além da própria atividade. Somente a sabedoria pode ser re-
almente desinteressada. Por isso, enquanto atividade, ela é mais divina do que propriamente
humana. “Não é enquanto homem(h?(= a)/nqrwpoj), diz Aristóteles, que se viverá essa vida, mas
segundo algo divino que subsiste nele.” E Aristóteles complementa essa sua afirmação di-
zendo:
ei) dh\ qei=on o( nou=j pro\j to\n a)/nqrwpon, kai\ o( kata\ tou=ton bi/oj qei=oj pro\j
to\n a)nqrw/pinon bi/on. ou) xrh\ de\ kata\ tou\j parainou=ntaj a)nqrw/pina fronei=n
a)/nqrwpon o)/nta ou)de\ qnhta\ to\n qnhto/n, a)ll' e)f' o(/son e)nde/xetai a)qanati/zein
kai\ pa/nta poiei=n pro\j to\ zh=n kata\ kra/tiston tw=n e)n au(tw?=.
Se a percepção é divina em relação ao homem, então a vida segundo esta é
divina em relação à vida humana. Não é preciso, porém, como dizem al-
guns, sendo homem, ter pensamentos humanos, nem, sendo mortal, ter pen-
samentos mortais, mas, tanto quanto possível, é preciso imortalizar, e tudo
fazer para viver segundo o que há de mais forte e vigoroso em nós mes-
mos.
207
Se a sabedoria e a atividade teórica são em si mesmas desinteressadas, isto não sig-
nifica, por outro lado, que o homem não possua nenhum interesse por essa atividade. De
fato, seu maior interesse, segundo Aristóteles, está em viver segundo o que nele é melhor e
mais vigoroso do que ele próprio. O homem deve, tanto quanto possível, imortalizar. Seria
isso o mesmo que dizer que ele deve repudiar a sua condição de homem e passar a viver
como se fosse um deus? É claro que Aristóteles não pensa desse modo, pois do contrário não
teria dito que os amigos são o maior dos bens exteriores.
208
Na verdade, o imperativo de
viver segundo o que há de divino em nós é ele mesmo, como não poderia deixar de ser, um
207
Ibid., X, 7, 1177 b 30.
208
Ética a Nicômacos, IX, 9, 1169 b 10.
124
imperativo prático. É como homem, e não como deus, que o homem deve decidir viver se-
gundo o que nele há de sobre-humano.
E o homem não tem nenhuma escolha, pois o desinteresse constitui para ele, natu-
ralmente, o maior de todos os interesses. Somente a sabedoria alcança o ideal presente em
toda ação, ou seja, o ideal de que a ação seja para si mesma o seu próprio fim. A sabedoria é
assim a realização daquilo que para a prudência constitui a meta a ser perseguida: a perfeita
autarquia. Para Aristóteles, então, a prudência desemboca por si mesma na sabedoria. A
prudência não precisa ser complementada pela sabedoria e nem tampouco se deixa resolver
nela, da mesma forma que para ser homem o homem não precisa ser complementado por
deus. Mas a prudência encaminha por si mesma para a sabedoria assim como uma meta en-
caminha para a sua realização: é esforçando-se o mais possível para viver conforme o que há
de mais humano no homem(a prudência) que o homem pode chegar a viver segundo o que
nele há de sobre-humano.
Portanto, se Aristóteles subordina claramente a prudência à sabedoria, nem por isso
ele deixa de observar que sem o empenho de ser característico da prudência jamais homem
algum poderia chegar a ser sábio. Um jovem pode tornar-se matemático ou geômetra, mas,
por ser inexperiente, ele não pode tornar-se prudente. Até mesmo uma criança (pai=j) pode-
ria tornar-se um matemático, mas, de forma alguma, um sábio ou filósofo da natureza. A
razão disso, diz Aristóteles, é que os jovens não se confiam às coisas, mas apenas falam de-
las, e, por outro lado, a característica do objeto matemático é a de não ser obscuro
(
ou)k a)/dhlon).
209
A prudência é um confiar-se ao que de si mesmo se mostra obscuro. Sem o exercí-
cio dessa confiança, sem experiência, seria impossível que alguém se tornasse sábio, uma
vez que tampouco os princípios podem ser considerados algo de não obscuro.
210
Sendo algo essencialmente sobre-humano, o prazer da atividade teórica é, no entan-
to, de algum modo, visado em todo e qualquer desempenho humano. Não fosse essa referên-
cia privilegiada e, segundo Aristóteles, o homem não poderia ser o que é. O homem está
assim absolutamente condicionado ao que nele não é estritamente humano, mas divino.
Mesmo aquele modo de vida que Aristóteles identifica como sendo o da maioria, ou seja, a
vida segundo o prazer imediato, a vida que quase não se distingue da dos animais, só é vida
209
Ibid., VI, 8, 1142 a 12.
210
O que de si mesmo é o mais manifesto é o mais obscuro em relação a nós. Cf. Metafísica, II, 1, 993 b 9.
125
humana por já estar referida ao prazer puro do qewrei=n. Na verdade, o homem só pode en-
contrar esta pura atividade porque sempre já se colocou à sua busca, melhor dizendo, porque
em sua existência já está sendo sempre impulsionado por ela, mesmo quando não se dá conta
disso. Esse não se dar conta e mesmo assim tender espontaneamente para algo é o que, para
Aristóteles, constitui a verdade originária da existência humana.
No próximo capítulo trataremos mais detidamente desse prazer da atividade teórica
e do caráter do nou=j separado e divino. Por enquanto, queremos tão somente indicar que,
embora Aristóteles afirme que a vida segundo a sabedoria exige, ao menos para o homem, o
empenho de toda a sua existência, nem por isso a perspectiva nele dominante deixa de ser
aquela que privilegia o caráter em si mesmo acabado da atividade teórica. A atividade teóri-
ca, ela mesma, independe de toda decisão meramente humana; ela é em si e por si. Certo,
cabe ao homem votar-se a ela com o máximo de empenho, mas isso não significa que, em si
mesma, ela seja tributária de uma simples decisão humana. Não é deus (pura atividade, pen-
samento de pensamento) que está condicionado ao homem, mas antes é o homem que está
condicionado a deus.
Mas será que a decisão de empenhar-se em viver segundo a sabedoria pode ser re-
almente uma decisão somente humana? Seria essa referência privilegiada a si mesmo, que
constitui a marca de todo comportamento humano, nada mais do que uma característica es-
pecial de um ser vivo particular? Seria, afinal, o nou=j, enquanto percepção do que é extremo,
apenas um veículo para o nou=j divino? Qual o estatuto real do que, segundo Aristóteles, é o
estritamente humano? Será que na comparação com o divino não acaba sendo sub-avaliado,
como apenas humano, aquilo que, na verdade, constitui a própria essência do homem? Afi-
nal, como podemos saber se a atividade divina do qewrei=n pode prescindir do concurso da
liberdade da admissão?
Sabemos apenas, no rastro de Aristóteles, que o homem é, originalmente, uma certa
referência a si mesmo, e que ele é chamado a realizar uma determinada obra: “a obra do ho-
mem”, da qual, entretanto, ele costuma extraviar-se. O homem não está atado à sua obra de
modo que ele não pudesse desviar-se dela. Por outro lado, esse mesmo “descolamento” é o
que permite a ele buscar-se a si mesmo e agir num mundo atravessado pela contingência e
pela diversidade dos fins. Agindo, o homem descobre na própria ação uma primeira forma
de transcendência. Na deliberação conscienciosa, a ação buscada nunca é um simples produ-
126
to do arbítrio humano, pois o prudente só é o que é por admitir a alteridade essencial da ação
diante de toda e qualquer intenção meramente privada: a ação deve ter seu fim em si mesma.
No entanto, essa primeira forma de transcendência, condicionada pela precariedade e pela
contingência do agir humano, desemboca naturalmente na transcendência absoluta da ativi-
dade do
qewrei=n, que é em si mesma incondicionada.
Mas também esta atividade divina deve ser admitida pelo homem. A atividade divi-
na do
qewrei=n deve estar no campo de admissão por parte do homem, ela deve concerni-lo,
pois do contrário não haveria qualquer sentido em falar-se dela. Em outras palavras, a pura
atividade que é deus só pode concernir o homem porque, originalmente, o homem é o ente
que pode ser concernido por algo que a ele se apresenta. Somente porque chega a concernir
o homem é que algo pode aparecer enquanto ele mesmo: o inanimado como inanimado, o
vegetal como vegetal, o animal como animal, o humano como humano, o divino como divi-
no.
Aristóteles, como se verá no próximo capítulo, não pôde levar essa perspectiva adi-
ante, pois nele predomina a perspectiva que enxerga em deus a genuína autarquia buscada
pela existência humana, e não somente por ela. Por isso, deus mesmo deve aparecer-lhe co-
mo sendo absolutamente transcendente em relação a toda admissão por parte do homem.
Essa perspectiva chega inclusive a estender-se aos próprios princípios, pois, como vimos no
primeiro capítulo, se, por um lado, Aristóteles apresenta o princípio de não-contradição co-
mo algo a ser admitido, por outro lado, este não deixa de contar para ele como algo que, em
certo sentido, independe de toda admissão. O princípio último da própria realidade não pode
estar assim atrelado a uma admissão por parte do homem, o que não impede, mas antes exi-
ge, que o homem o admita.
A admissão a qual estamos nos referindo, a percepção do que é extremo, não é,
entretanto, de forma alguma, uma simples iniciativa humana ao lado de outras. Não se trata
de um desempenho que estivesse ao nosso alcance poder ou não realizar. Onde quer que
encontremos o homem já o encontramos tendo sido atravessado pela admissão. É a admissão
que permite ao homem relacionar-se com qualquer ente, inclusive consigo mesmo. A ação,
por exemplo, só é possível a partir da prévia admissão da realidade como podendo ser de
outro modo, ou, como diz Aristóteles: “ninguém delibera sobre o que não pode ser de outro
modo”. Para agir, portanto, é preciso que o homem se deixe concernir, previamente, por este
127
modo de ser da própria realidade. Tampouco o prudente poderia agir como age se não tives-
se admitido e se deixado concernir por aquilo que é “o bem para o homem”. Não que ele
tenha tomado conhecimento disso em separado. O prudente, de fato, não precisa ocupar-se,
de modo teórico, do bem humano. A prudência, em si mesma, já é essa admissão do que é o
bem para o homem.
Entre a prudência como admissão e o que é por ela admitido não há qualquer inter-
valo possível. Não faz nenhum sentido imaginar o bem para o homem existindo de modo
independente da prudência. É o que o próprio Aristóteles reconhece quando afirma, como
vimos antes, que o prudente é a própria medida e o critério último do que deve e do que não
deve ser feito.
Admitir é assim deixar-se concernir por algo que só existe no âmbito da admissão.
Mas o homem não se deixa concernir apenas por aquilo que lhe diz respeito mais diretamen-
te enquanto homem. Para ser homem, ele precisa igualmente admitir o que não depende dele
para ser o que é. Entre essas coisas estão os entes e processos naturais, os entes matemáticos,
e, finalmente, deus. Nenhuma dessas “coisas” depende de qualquer ação ou decisão huma-
nas, mas isto não significa que elas possam existir fora do âmbito da admissão.
Nenhum ente pode chegar a aparecer como ele mesmo sem que já tenha sido admi-
tido pelo homem. O homem, porém, não é o autor dessa admissão. O fato de não poder atri-
buir esse ato a nenhum outro não o autoriza, de forma alguma, a apropriar-se dele. A rigor,
não há propriamente autor desse ato. Quando nos damos conta já estamos nele, envolvidos e
promovidos por ele, sem que possamos estabelecer qualquer exterioridade como sua causa.
Diante de deus, entretanto, o homem não passa de um vivente particular submetido
à mortalidade e à contingência do mundo, e que deve, tanto quanto lhe seja possível, exerci-
tar aquela única atividade que pode ser atribuída sem receio a deus: a atividade teorética.
Mesmo essa atividade, não é enquanto homem que ele a exerce, mas enquanto algo divino
que subsiste nele. O
nou=j já não pode ser aqui a percepção do que é extremo, a admissão que
se deixa concernir por algo, mas uma atividade contínua e prezerosa, que se move inteira-
mente no âmbito do necessário. Como se pode verificar no livro I da Metafísica, é assim que
o espanto inaugural, a admissão que se deixa concernir pelo que se apresenta a partir de si
mesmo, logo cede lugar a uma visão segunda e melhor, que é precisamente a visão do ne-
cessário, a visão do que não pode deixar de ser assim como é.
128
Como ser vivo, o homem orbita em torno de deus e está sendo sempre impelido na
sua direção. Da mesma forma, na descoberta da própria ignorância, o homem é imediata-
mente impelido para o conhecimento do necessário, pois como diz de modo significativo
Aristóteles: “foi para fugir da ignorância que os homens primeiro filosofaram.”
211
Assim,
se na ignorância o homem foge para o conhecimento, este deve pré-existir, necessariamente,
a toda admissão, tal com também deve existir, de modo acabado, a felicidade para a qual o
homem não cessa de tender.
Aristóteles compreende sempre o homem, em todos os seus desempenhos, como
um ser vivo. A essência do vivo, porém, está em tender para... Para Aristóteles, assim como
a planta tende para a luz, a existência humana tende para a felicidade acabada da atividade
do
qewrei=n. Veremos, no próximo capítulo, as conseqüências decisivas que essa pré-
compreensão da vida em geral e do homem em particular trouxeram para o problema do
nou=j.
211
Metafísica, I, 2, 982 b 20.
129
Capítulo III
Atividade teórica e felicidade
O fato de que tanto os animais quanto os
homens buscarem, todos eles, o prazer é indí-
cio suficiente de que ele é, de certo modo, o
bem supremo.
(Aristóteles, Ética a Nicômacos)
3.1. A natureza desejante do homem
Vimos no capítulo anterior que o problema do
nou=j em Aristóteles acha-se, em
grande medida, condicionado pela perspectiva que separa, drasticamente, o homem como
um ser vivo do motor imóvel que é deus. O homem é, sem dúvida, para Aristóteles, um
nou=j desejante” ou um “desejo pensante”, mas isto significa apenas que por toda a parte é
o desejo (o(recij, e)piqumi/a) que atravessa e constitui todo comportamento humano enquanto
humano. O homem não pensa primeiro e depois deseja, o homem, para Aristóteles, nem
sequer deseja o que pensa, mas antes pensa o que deseja. Enquanto humano, o pensamento
acha-se inteiramente vinculado ao desejo. É por isso, inclusive, que Aristóteles não vê ne-
nhum meio de o pensamento, por si só, orientar a conduta humana, pois como diz ele: “o
130
pensamento por si só não move coisa alguma.”
212
É preciso que ao pensamento se associe
o hábito para que o primeiro se torne de verdade atuante. Por essa mesma razão, Aristóteles
interdita aos jovens e inexperientes aulas de ciência política. O pensamento pode, no má-
ximo, aconselhar, mas não pode, de forma alguma, ordenar ao desejo a moderação.
Seria, porém, uma grande incompreensão se nós só enxergássemos no desejo um fa-
tor condicionante para o pensamento, como se o desejo nada mais fosse do que um simples
empecilho para este último, um mero obstáculo a ser superado. O desejo deve possuir nele
mesmo a sua própria correção. Não fosse assim e jamais ele poderia ouvir o que o pensa-
mento lhe aconselha. O “desejo correto” acompanha espontaneamente o pensamento. Não
poderia haver genuína virtude se o desejo tivesse de ser insistentemente dominado e subju-
gado pelo pensamento e pelo hábito. Caso o homem não encontrasse prazer em fazer o bem
ele não poderia ser “bom”. Afinal, como diz Aristóteles, o moderado não é moderado, em
primeiro lugar, apenas por agir com moderação, mas sobretudo por alegrar-se ao fazê-lo,
assim como o justo e o corajoso. O desejo não pode errar inteiramente o seu alvo. Daí que
mesmo a vida que escolheu o prazer imediato busque, no fundo, a felicidade como ativida-
de verdadeiramente autárquica. Sem essa confiança prévia no desejo nenhum empenho hu-
mano poderia justificar-se e ser aprovado incondicionalmente.
Não é o desejo que afasta o homem de sua obra, mas uma certa insubordinação que
nele tende a vigorar. No homem, o desejo não está, desde o início, ajustado ao que a razão
lhe aconselha. É a própria resistência do desejo, entretanto, que acena para a possibilidade e
para a necessidade da educação. Ao resistir à razão, na verdade, o desejo não a recusa,
mas antes clama por ela. O desejo, para Aristóteles, o desejo humano, participa da razão.
Sem ser ele mesmo racional, o desejo nunca cessa de solicitar, por si mesmo, o aconselha-
mento que, ele sabe, somente a razão pode oferecer-lhe. O desejo humano já está, desde o
início, orientado para a razão.
Como, porém, o desejo humano pode saber que ele precisa ser aconselhado? Como
o desejo pode clamar, desde si mesmo, por orientação? Aristóteles entende que o homem,
como ser vivo, acha-se naturalmente destinado a uma certa obra, que é a pura atividade do
qewrei=n. É graças a essa “destinação natural” que o desejo pode clamar por orientação.
Desse modo, não é propriamente para o aconselhamento que o desejo clama, a não ser de
212
Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 a 36.
131
modo indireto, mas para uma certa atividade que realmente poderia satisfazê-lo. O aconse-
lhamento não é para o desejo um fim, mas apenas um meio de alcançar o fim buscado. Cer-
to, sem o aconselhamento (da razão) o desejo humano não encontraria o seu fim. Todavia, o
desejo só ouve o que a razão lhe aconselha por já estar à procura de algo que a simples ra-
zão, por si mesma, jamais poderia dar a conhecer. A razão é, no homem, na melhor das
hipóteses, um instrumento do desejo.
213
Aristóteles nunca perde de vista que o homem é um ser vivo. Por considerar o ho-
mem, antecipadamente, no horizonte da vida e do vivo em geral, Aristóteles deve supor que
nele o originário não é a razão(aconselhamento), mas o desejo. O homem é para ele tão
fundamentalmente desejo que a insensibilidade chega a parecer-lhe inclusive algo inumano.
É o que se pode ver nesta passagem:
e)llei/pontej de\ peri\ ta\j h(dona\j kai\ h(=tton h)\ dei= xai/rontej ou) pa/nu gi/gnontai: ou)
ga\r a)nqrwpikh/ e)stin h( toiau/th a)naisqhsi/a: kai\ ga\r ta\ loipa\ zw=?a diakri/nei ta\
brw/mata, kai\ toi=j me\n xai/rei toi=j d' ou)/: ei) de/ tw?= mhqe/n e)stin h(du\ mhde\ diafe/rei
e(/teron e(te/rou, po/rrw a)\n ei)/h tou= a)/nqrwpoj ei)=nai:
Muito raramente vêm a ser os que são negligentes quanto ao prazer e se compra-
zem menos do que é preciso, pois esta insensibilidade não é própria do homem; e
mesmo os demais seres vivos(animais) discriminam os alimentos, e se comprazem
com uns e com outros não; se, porém, para alguém nada é agradável e nem impor-
ta mais uma coisa do que outra, esse alguém estaria muito distante disso que é um
homem.
214
Bem mais distante do humano está, para Aristóteles, aquele que é insensível ao pra-
zer do que aquele que recusa o aconselhamento da razão. É perfeitamente humano recusar o
que a razão aconselha em favor do prazer imediato, mas não é humano ser insensível à frui-
ção de todo e qualquer prazer. Conseqüência disso é que um prazer só consegue deixar de
ser absoluto para o homem quando é remetido a um prazer de ordem superior, o qual assu-
me então o caráter de absoluto. É assim que o prazer dos sentidos é “relativizado” em fun-
ção do prazer da honra e este último em função da atividade do
qewrei=n. Portanto, os modos
213
É possível ao homem realizar a obra a qual se acha naturalmente votado sem o concurso da razão. Este é
aliás, para Aristóteles, o caso do afortunado. Cf. Ética a Eudemo, VIII, 1247 b.
214
Ética a Nicômacos, III, 11, 1119 a 6.
132
de vida referidos por nós no capítulo precedente são, na verdade, modos nos quais a vida
humana se orienta absolutamente para o prazer, e, em última instância, para o prazer derra-
deiro do
qewrei=n.
No entanto, a sensibilidade ao prazer que caracteriza de maneira tão radical e deci-
siva o homem, não representa, para Aristóteles, nenhuma exclusividade sua, muito pelo
contrário. Todo animal, na medida em que possui ao menos um sentido: o sentido do tato, e
uma vez que nele subsiste sensação, experimenta também desejo (
e)piqumi/a), e o próprio
desejo nada mais é do que uma tendência(o)/recij) para o prazer.
215
Somente as plantas pos-
suem unicamente a faculdade nutritiva, não acedendo à sensitiva. Todos os outros viventes
possuem sensação, e assim também desejo.
216
Mesmo a referência privilegiada a si mesmo que, como vimos no capítulo anterior,
caracteriza a prudência, não constitui, para Aristóteles, um traço distintivo do homem. De
fato, por diversas vezes, Aristóteles atribui a prudência também aos animais. Em Metafísica
I, 980 b 1, por exemplo, ele chega a distinguir os animais que são prudentes mas incapazes
de aprender daqueles que de posse da memória podem também aprender. E no capítulo 7 do
livro VI da Ética a Nicômacos, Aristóteles afirma que alguns animais podem ser chamados
de prudentes, por revelarem possuir um poder de previsão(pronohtikh/n) a respeito da pró-
pria vida.
217
Assim, o mesmo cuidado que certos animais revelam possuir a respeito da própria
vida pode ser encontrado, igualmente, no homem prudente, pois da mesma forma que um
animal “sabe” o que é bom para si e para os de sua espécie, também o prudente sabe o que
é bom para si mesmo e, simultaneamente, para os outros homens.
A única coisa que torna o homem efetivamente distinto dos demais animais é, ao
mesmo tempo, o que mais o torna idêntico a eles: um desejo. O homem tende a um prazer
que não é humano, mas divino. Há no homem a tendência para uma atividade que ultrapas-
sa tudo quanto possa ser considerado humano em sentido estrito. Essa atividade ela mesma
não é enquanto homem que ele a exerce, mas enquanto algo divino que subsiste nele. Por-
tanto, ao contrário de todos os outros animais, o homem é o único que se encontra aberto
215
De anima, II, 2, 414 b 6.
216
Ibid., II, 2, 414 b 1.
217
Ética a Nicômacos, VI, 7, 1141 a 27.
133
para algo absolutamente distinto dele próprio. Este algo absolutamente outro ele não o en-
contra, de início, em alguma outra parte, mas já em si mesmo. Há no homem algo que não é
humano, e sim divino. Desejando-o, porém, o homem testemunha, de modo incontornável,
que continua a ser homem, ou seja, um animal como outro qualquer.
Para Aristóteles, não há dúvida que a animalidade atravessa e constitui a própria e-
xistência humana como um todo. É no desejo e como desejo que o homem encontra a ver-
dade de seu próprio ser. Por isso, não caberia ao homem simplesmente negar ou coibir os
seus desejos, mas encontrar e ser o desejo que ele mesmo é. Como, porém, o homem pode-
ria descobrir e sustentar esse desejo caso ele não se deixasse, previamente, concernir por
ele, caso ele não o admitisse? De fato, no que quer que venha a desejar, o homem nunca é
apenas o desejo que agora tem, e sim para o desejo que o tem. Ao contrário do animal, o
homem não está apenas referido a algo desejado, antes disso ele já precisou referir-se e ad-
mitir o próprio desejo. Não há desejo que o homem não tenha de admitir e sustentar num
certo modo de vida. Jamais encontramos o homem inteiramente diluído em seu desejo, sen-
do transportado por ele. O homem já sempre encarregou-se de seu desejo e teve de suportar
tudo o que ele traz consigo de pena e dissabor.
218
Semelhante empenho chega a ser anterior
ao próprio homem, uma vez que este só chega a ser algo determinado a partir dessa admis-
são.
O homem não pode instalar-se em seu desejo, e mesmo quando encontra, por fim, o
que para ele é o mais desejável, isto significa apenas que, a partir de então, ele deve corres-
ponder a esse desejo com o empenho de toda uma vida. Seria isso o mesmo que dizer que o
homem precisa desejar o próprio desejo? Certamente que não. O que ele precisa é, sendo,
guardar essa referência privilegiada ao que para ele é o mais desejável, sustentar esse dese-
jo: admiti-lo. Sem isso, nenhum desejo pode desdobrar o seu poder sobre a existência hu-
mana.
Para o homem, o mais desejável é o que possui mais força e poder de prender a sua
existência como um todo. O nó que mais amarra a existência humana como um todo é, para
Aristóteles, aquela única atividade verdadeiramente autárquica e em si mesma prazerosa: a
atividade do qewrei=n. Nada se compara a ela. Cabe-nos, então, acompanhar o modo como
218
Ética a Nicômacos, X, 6, 1176 b 29.
134
Aristóteles caracteriza essa atividade, a fim de podermos chegar a ver porque ele a compre-
ende como divina e sobre-humana.
3.2. O prazer, bem supremo
No início do livro X da Ética a Nicômacos, Aristóteles se dedica a uma discussão,
de caráter polêmico, acerca do prazer. Seus adversários são aqueles que repudiam o prazer
como um mal, seja porque o consideram realmente assim seja por julgarem ser esta a posi-
ção mais prudente com relação ao assunto. Aristóteles critica-os da seguinte maneira: em
primeiro lugar, os que repudiam publicamente o prazer por razões “pedagógicas”, quando
são surpreendidos entregando-se a algum prazer, desacreditam, aos olhos da maioria (aos
olhos dos muitos), justamente a tese que se empenham em defender, gerando, inadvertida-
mente, a convicção errônea e “cínica” de que todos buscam apenas e em toda a parte apenas
o prazer egoísta. Assim, ao pretenderem evitar um mal, com as melhores intenções, acabam
por provocar um outro ainda pior, pois, diz ele, “não é próprio dos muitos o separar e dis-
tinguir as coisas”.
219
Aristóteles retoma aqui o imperativo, visto por nós na primeiro capí-
tulo, que interdita separar ação e dizer, mesmo quando essa separação obedece às melhores
intenções. Por outro lado, aquele que destrói a convicção de que aquilo que todos os seres
visam seja um bem, dificilmente encontraria alguma coisa para colocar em seu lugar.
220
Ele, de fato, se mantém numa posição insustentável e falsifica sua própria existência, pois
não são apenas os seres irracionais que são atravessados pelo desejo, mas também os racio-
nais. Aristóteles chega a levantar a hipótese de que mesmo nos seres inferiores seja algo
superior a eles mesmos(
krei=tton h)\ kaq' au(ta/) o que os conduz para o bem relativo à sua
espécie.
221
Posicionando-se, desde o início, contra os que consideram o prazer como um mal,
Aristóteles encaminha a sua investigação acerca do prazer indagando se este pode ser con-
siderado o bem supremo, e escolhe, então, duas respostas extremadas a essa pergunta: a de
Eudôxo e a de Platão. Para Eudôxo, não há dúvida de que o prazer deva ser considerado o
bem supremo, pelo fato de todos os seres, sejam eles racionais ou irracionais, tenderem a
219
Ética a Nicômacos, X, 1, 1172 b 3.
220
Ibid., X, 2, 1173 a 2.
221
Ibid., X, 2, 1173 a 4. A prudência não visa os fins mas apenas os meios.
135
ele. Aquilo que é o bem para todos os seres, aquilo que todos os seres visam, assim como
descobrem o próprio alimento, deve ser considerado o bem supremo.
222
A crítica que Aris-
tóteles endereça à tese defendida por Eudôxo não visa, de modo algum, a identificação do
prazer com o bem supremo, mas antes uma incompreensão de fundo que Eudôxo demonstra
possuir acerca da natureza do próprio bem final. De fato, para este, o bem final e supremo
seria apenas mais um bem, que acrescido a algum outro o tornaria ainda mais desejável e
digno de escolha. Não haveria, portanto, para Eudôxo, nenhuma diferença essencial entre o
bem final e os demais bens. Aristóteles chega mesmo a afirmar que a grande aceitação de
que gozaram seus argumentos deveu-se menos a eles mesmos do que ao caráter do próprio
Eudôxo. É que devido à sua conhecida moderação, não parecia que ele falasse como um
“amigo do prazer”(fi/loj th=j h(donh=j), mas como alguém que se pauta pela verdade.
223
Quem primeiro alcançou a concepção verdadeira acerca do bem final foi precisa-
mente aquele que recusou ao prazer esse estatuto: Platão. Em diálogo integralmente dedi-
cado a esse tema, o Filebo, Platão mostra que o fato de a vida agradável ser mais desejável
com sabedoria do que sem ela, testemunha por si só que o prazer não pode ser considerado
o bem supremo, pois este último não poderia tornar-se mais desejável com o acréscimo de
algum outro bem. Assim, aquilo mesmo que para Eudôxo indicava o prazer como bem fi-
nal, o fato de que ele torna um outro bem ainda mais desejável ao ser acrescido a ele, de-
monstra ser, segundo Platão, precisamente o que o impede de ser esse bem final.
224
Por
isso, em toda a sua polêmica com Platão, Aristóteles estará sempre mais próximo deste do
que de Eudôxo, que aparentemente sustenta a mesma tese que ele. É o que se pode ver cla-
ramente na seguinte passagem:
dh=lon d' w(j ou)d' a)/llo ou)de\n ta)gaqo\n a)\n ei)/h, o(\ meta/ tinoj tw=n kaq' au(ta\ a)gaqw=n
ai(retw/teron gi/netai. ti/ ou)=n e)sti\ toiou=ton, ou(= kai\ h(mei=j koinwnou=men; toiou=ton
ga\r e)pizhtei=tai.
222
Ibid., X, 2, 1172 b 14.
223
Ética a Nicômacos, X, 2, 1172 b 24. Em mais de uma ocasião, Aristóteles afirma, pelo contrário, que a
escolha do que é bom em si mesmo não pode ser favorecida por qualquer acréscimo, pois escolheríamos o que
é bom mesmo que nada resultasse disso. Cf. Ética a Nicômacos, X, 3, 1174 a 4.
224
Filebo, 20 b – 21 d. Nessa passagem decisiva, Platão estabelece que, por princípio, o bem supremo deve
ser algo acabado (te/leon) e prescindir de qualquer complemento. Ele deve bastar-se a si mesmo (i(kano/n).
136
É claro, porém, que, como nenhum outro, não existiria o bem, o qual se tornasse
mais desejável com o acréscimo de algo entre as coisas boas em si mesmas. Por-
tanto, o que é isso de que nós também participamos? Pois é isso que se está procu-
rando.
225
Depois de apresentar e criticar a tese de Eudôxo, Aristóteles passa a destruir, um a-
pós outro, todos os argumentos defendidos por Platão no Filebo, que impediam de conside-
rar o prazer como o bem em si mesmo acabado e auto-suficiente.
O primeiro argumento contestado por Aristóteles é o de que o contrário do sofrimen-
to, que é um “mal”, não precisa ser, necessariamente, o prazer como bem. Prazer e sofrimen-
to estariam ambos contrapostos a um estado neutro (mhdete/roj: nenhum dos dois), que seria
ele mesmo preferível a ambos.
226
Na verdade, porém, o que se vê (fai/nontai) é que todos
fogem de um, como de um mal, e desejam o outro como um bem.
227
Aristóteles não recusa,
propriamente, a noção de que haja um terceiro termo para além da contrariedade simples.
Afinal, o que é o “meio-termo” aristotélico senão esse terceiro termo (tij tri/th) referido
explicitamente por Platão no Filebo (33 a)? O que ele recusa é a possibilidade de se buscar
um terceiro ali onde está em causa prazer e dor, pois, para ele, essa contrariedade não admite
ela mesma nenhum estado neutro. O vivente, como tal, não pode deixar de buscar o prazer
como um bem e fugir do sofrimento como de um mal. Esta é a sua movimentação originária.
Por isso, caso se perdesse inteiramente a confiança no prazer, caso ele deixasse de ser consi-
derado um bem, a própria vida se tornaria impossível.
O segundo argumento que Aristóteles procura refutar é o de que o prazer não poderia
ser um bem pelo fato de ser indefinido (
a)o/riston), enquanto o bem seria algo perfeitamente
definido e determinado (
w(/risqai).
228
Uma vez que admite uma gradação, um mais e um
menos, o prazer nem sequer poderia ser considerado um bem, quanto mais o bem supre-
mo.
229
Aristóteles, no entanto, faz ver que muitas das coisas que admitem um mais e um
menos são consideradas, inequivocamente, como bens, tais como a coragem, a justiça, a
225
Ética a Nicômacos, X, 2, 1172 b 33.
226
Filebo, 32 c – 33 b. Os deuses, por exemplo, não conheceriam nem prazer e nem dor, assim como tampou-
co a vida de sabedoria.
227
Ética a Nicômacos, X, 2, 1173 a 11.
228
Ibid., X, 3, 1173 a 14.
229
Filebo 27 e – 28 a e 31 a – b. Nessas duas passagens Platão se refere ao prazer como admitindo um mais e
um menos, e como sendo ilimitado (a)/peiroj).
137
moderação e mesmo a saúde.
230
Afinal, é bem possível ser mais ou menos corajoso, agir
com mais ou menos justiça e possuir mais ou menos saúde, sem que se deixe, por conta dis-
so, de ser corajoso, de agir com justiça ou de ter saúde. Assim, se a saúde é um bem, por que
o prazer não poderia sê-lo? Tampouco é uma razão conclusiva (ai)ti/a) dizer que há prazeres
de vários tipos, e que eles se dividem em puros (a)migei=j) e misturados (miktai/).
231
Também
a saúde, como mostra Aristóteles no início do livro IV da Metafísica, pode ser dita de várias
maneiras ( a cor do rosto pode ser dita saudável assim como um alimento), sem que ela dei-
xe de estar, em cada caso, referida a “certa natureza una”.
232
Portanto, não é o fato de existi-
rem pelo menos dois tipos de prazeres, um dos quais se mistura com a dor enquanto o outro
não, o que impediria o prazer de ser um bem.
Já o terceiro argumento rejeitado por Aristóteles merece de sua parte um cuidado
todo especial, pois é a partir dele, melhor dizendo, de sua refutação, que Aristóteles apresen-
ta a sua própria posição a respeito do prazer e do bem supremo. Este último e decisivo ar-
gumento que Aristóteles busca refutar é o de que o prazer consiste numa certa geração
(ge/nhsij) e assim em um movimento. Como o bem é, por princípio, algo acabado (te/leion),
o prazer não poderia ser um bem.
233
Aristóteles não contesta, de forma alguma, que o bem seja algo acabado, o que ele
rejeita é a compreensão do prazer como uma geração. Para Platão, o prazer é algo que se
gera mediante o retorno à natureza própria. Na verdade, o prazer nada mais é do que esse
retorno e essa restauração.
234
Assim, quando o beber água restaura o equilíbrio original rom-
pido pela sede(dor) gera-se prazer. Sendo a geração um movimento, também o prazer teria
de ser considerado um movimento, precisamente esse movimento de restauração. Aris-
tóteles, no entanto, irá mostrar que o prazer não pode ser movimento(
ki/nhsij). O modo co-
mo ele mostra isso é uma genuína
e)pagwgh/, pois tudo depende de que o movimento seja
tomado, de antemão, em sua possibilidade, isto é, como tal. Se assim o fizermos, revela-se
que a rapidez e a lentidão parecem pertencer a todo movimento. Porém, essa possibilidade
de ser rápido ou lento é justamente aquilo de que o prazer está isento. Pode-se, é certo, pas-
230
Ética a Nicômacos, X, 3, 1173 a 17.
231
Filebo, 51 b – 52 c. Para Platão somente os prazeres que se misturam com a dor admitem um mais e um
menos e são ilimitados. O prazer que se liga ao conhecimento, por exemplo, é simples e sem mistura.
232
Metafísica, IV, 1, 1003 a 34.
233
Ética a Nicômacos, X, 3, 1173 a 29 e Filebo 54 a – d.
234
Filebo, 32 a – b e 42 c – d.
138
sar(metaba/llein) rápida ou lentamente ao prazer, pode-se adiá-lo ou apressá-lo, mas não se
pode sentir prazer(h(/desqai) de maneira rápida ou lenta. O atuar(e)nergei=n) não comporta, de
forma alguma, rapidez ou lentidão.
235
O prazer, portanto, não é um movimento, uma gera-
ção. Com o prazer, nada propriamente se gera, pois nele não é possível estabelecer nenhuma
exterioridade. O prazer se esgota inteiramente no ato ou atividade que ele é. Ele se instaura a
si mesmo. Por isso, no prazer não se pode propriamente entrar, quando “vemos” já estamos
nele ou então fora dele.
Quanto aos prazeres que teriam a sua origem no retorno à natureza própria e em sua
restauração, como o prazer de saciar a sede, e que seria a conseqüência óbvia da satisfação
alcançada, Aristóteles afirma que eles são todos corporais, e parecem estar ligados às sensa-
ções de prazer e dor que têm lugar sobretudo na nutrição.
236
Este é o prazer que, tal como
diz Platão no Filebo, seria totalmente inseparável da experiência da dor, pois ele seria ape-
nas a satisfação obtida com o fato de se estar livre da dor. Aristóteles não nega que da satis-
fação possa seguir-se um prazer, o que ele nega é que o próprio prazer deva ser compreendi-
do a partir dessa experiência. O simples fato de existirem prazeres que não são precedidos
por nenhuma sensação de dor – os prazeres chamados por Platão de “simples” ou “sem mis-
tura” – já seria suficiente para nos impedir de considerar o prazer como geração. Afinal, o
que se estaria gerando no prazer do conhecimento, ou então no prazer relacionado aos senti-
dos, ou mesmo nos prazeres da memória ou da esperança?
237
Ao negar que o prazer seja geração e movimento, Aristóteles nega também o pressu-
posto de que o prazer seja algo de exterior e “adventício” em relação à atividade de que ele é
o prazer. Toda atividade própria, inclusive a atividade dos sentidos, na medida em que se
realiza em plenas condições, é prazerosa.
238
Desse modo, a diferença entre as espécies de
prazeres que, em Platão, se restringia à diferença entre prazeres simples e compostos, em
Aristóteles torna-se antes uma diferença entre os prazeres que são inerentes às atividades e
aqueles que lhes são estranhos. Estes últimos só são ditos prazeres de modo muito secundá-
rio e distante (
deute/rwj kai\ pollostw=j).
239
235
Ética a Nicômacos, X, 3, 1173 b 2.
236
Ética a Nicômacos, X, 3, 1173 b 8.
237
Ibid., X, 3, 1173 b 16.
238
Ibid., X, 5, 1176 a 26.
239
Ibid., X, 5, 1176 a 29.
139
O prazer inerente a uma certa atividade só pode ser sentido por aquele que participa
dessa mesma atividade. Atividades diferentes despertam prazeres diferentes. Mas isto não
significaria, por outro lado, o mesmo que dizer que um prazer só poderia ser julgado por
aquele que dele participa? Não estaríamos assim entregues a um absoluto relativismo dos
prazeres, o qual nos impediria inclusive de julgar um prazer como degradante? A essa per-
gunta Aristóteles responde dizendo, pura e simplesmente, que os prazeres degradantes não
são prazerosos, pelo fato mesmo de serem degradantes.
240
Nenhum prazer está isento de ser
julgado e será julgado em virtude da atividade mesma de que ele é o prazer. Prazeres proce-
dentes de ações mesquinhas serão tão mesquinhos quanto as pessoas que as praticam. Por
isso, por maior que seja o prazer de um avarento, ninguém pode desejar para si semelhante
prazer, pois isto eqüivaleria a ter de assumir também o seu modo de ser. Por conseguinte, só
são prazerosos os prazeres que podem ser assumidos “publicamente” e sem subterfúgios.
241
Aristóteles, na verdade, está aqui interpretando e assumindo, ao seu modo, a famosa
sentença de Protágoras, segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas que chegam
a concerni-lo(xrh/mata). Para ele, entretanto, as coisas são elas mesmas tais como estas se
mostram para o homem prudente e “bom” (tw?= spoudai/w?)
242
, ou seja, para o homem que traz
a sua existência como um todo para essa esfera “pública” e assim a suporta. Aristóteles che-
ga a dizer, textualmente, que a virtude(a)reth/) e o homem “bom”, enquanto “bom”, são a
medida(me/tron) de todas as coisas, e que só seriam prazeres aqueles que se mostram a este
último como prazeres, e coisas agradáveis aquelas que chegam a agradá-lo. Portanto, em
última instância, só são prazerosos aqueles prazeres que agradam ao homem prudente e
“bom”, da mesma forma que é o homem são e não o doente a medida para determinar o que
é realmente doce e o que é realmente amargo.
243
É a própria existência do homem prudente
que permite discernir os prazeres que são prazerosos daqueles que não o são.
Como são inerentes às próprias atividades e não agregados a elas, os prazeres devem
pertencer-lhes indissoluvelmente, de modo que ninguém pode sentir prazer em certa ativida-
de caso já não esteja vinculado a ela. Não se pode, com efeito, sentir o prazer que sente o
240
Ibid., X, 3, 1173 b 21.
241
Ver capítulo 2 sobre a compreensão grega de virtude.
242
Ética a Nicômacos, X, 5, 1176 a 16.
243
Ibid., X, 3, 1173 b 23.
140
homem justo sem ser justo ou sentir o prazer do músico sem ser, de algum modo, músico.
244
O prazer é, por conseguinte, o que melhor dispõe a uma atividade. É praticamente impossí-
vel que alguém venha a tornar-se justo ou músico se não começa por sentir as alegrias e pra-
zeres do justo e do músico. O prazer de toda atividade é precisamente o que já precisa en-
contrar-se realizado antes mesmo da própria atividade, na medida em que este dispõe a ela, o
que significa dizer que o prazer não pode ser gerado por ela, devendo, de certo modo, prece-
dê-la. Mas o prazer também é ele próprio uma atividade. Em que consiste essa atividade de
sentir prazer?
2.3. A atividade do prazer
Por já precisar encontrar-se realizado, o prazer não pode ser movimento e nem tam-
pouco resultar de um movimento ou de um processo de geração. Ele não pode ser movimen-
to pelas razões expostas acima e porque todo movimento compõe-se de partes desiguais en-
tre si, que só formam um todo acabado quando este chega ao seu fim. O movimento pressu-
põe, por conseguinte, uma desigualdade entre seus momentos e assim a duração como con-
dição de seu acabamento (o fim do movimento, tal como o fim da produção, está em outro e
não nele próprio). Nenhum movimento é perfeito e acabado (telei/an) quanto à forma (tw?=)
em algum momento seu, se é que ele chega a sê-lo, ele só consegue ser algo acabado em seu
todo.
245
Já com o prazer passa-se algo inteiramente diverso, pois este é sempre um todo aca-
bado. Como não é composto de partes desiguais entre si, o prazer também não comporta, em
si mesmo, duração. Ele não precisa ser complementado por nada para somente então tornar-
se um todo. O prazer, tal como o ato de ver, é sempre algo definido e completo. Onde quer
que o encontremos ele já está sempre em seu próprio fim, daí que ele dispense todo e qual-
quer acabamento. O ato de ver, onde quer que ele se interrompa, já foi tudo quanto ele podia
ser, o mesmo sucedendo com o prazer.
246
Assim como não há ato de ver incompleto, também não pode haver prazer incomple-
to. Por isso, quer “dure” mais quer “dure” menos, o prazer ele mesmo é um único instante e
244
Ibid., X, 3, 1173 b 30.
245
Ética a Nicômacos., X, 4, 1174 a 27.
246
Ver sobre isso Metafísica, IX, 7, 1148 b 18, onde Aristóteles distingue pra=cij e ki/nhsij.
141
jamais possui duração. Desse modo, como não tem propriamente fim no sentido de um aca-
bamento o prazer também não pode ter um começo, e resultar de um processo de geração
anterior. Somente o que é divisível em partes distintas e desiguais entre si pode ter começa-
do em algum ponto ou momento situável. Sem começo e sem fim situáveis, o prazer é ele
mesmo, onde quer que comece ou termine, um todo acabado.
247
Essa compreensão do prazer diz apenas que ele é uma atividade e, como atividade,
algo essencialmente distinto e separado de todo movimento e de toda geração; ela não diz
ainda em quê essa atividade distinguir-se-ia das demais atividades, como, por exemplo, da
atividade de ver. Por enquanto, Aristóteles limitou-se a caracterizar o prazer como uma ati-
vidade. Porém, como essa atividade que é o prazer poderia ser o bem supremo é o que ainda
não se pode minimamente vislumbrar. Até agora sabemos apenas que o prazer acompanha e
se amolda a cada atividade e que ele próprio é uma atividade.
A singularidade dessa atividade que é o prazer aparece quando Aristóteles afirma,
ainda no capítulo 4 do livro X, que “o prazer é o que consuma a atividade”.
248
Trata-se,
portanto, de uma atividade que se caracteriza por levar uma outra atividade à sua perfeição e
acabamento. Como, porém, isso seria possível, uma vez que, como vimos acima, a atividade,
ao contrário do movimento, se caracteriza justamente por já ser um todo acabado? De que
forma algo que já é um todo acabado poderia ainda ser consumado?
Decerto, em uma atividade nada pode estar faltando. Assim, ao contrário de Eudôxo,
Aristóteles não pensa que um atividade, como a dos sentidos, ainda precisasse de algum
complemento adventício para finalmente ser o que é, ou mesmo para ser desejada.
249
As
atividades boas já são em si mesmas desejáveis. Ocorre, porém, que uma mesma atividade
pode realizar-se em condições ótimas ou em condições deficientes. Quando uma atividade se
realiza nas melhores condições, encontrando-se disposta para a melhor dentre as coisas a ela
relacionadas (to\ kra/tiston tw=n u(p' au)th/n), ela será o mais prazerosa possível e a mais con-
sumada. O prazer é assim o que dispõe uma atividade para o seu melhor, e Aristóteles men-
ciona, de forma equivalente, a atividade sensível e a atividade do pensamento.
250
Ambas são
dispostas para o seu melhor pela atividade do prazer. Por conseguinte, o prazer não consuma
247
Ética a Nicômacos, X, 4, 1174 b 9.
248
Ética a Nicômacos, X, 4, 1174 b 24. teleioi= de\ th\n e)ne/rgeian h( h(donh/.
249
Ibid., X, 3, 1174 a 6.
250
Ibid., X, 4, 1174 b 21.
142
uma atividade do mesmo modo que o sensível e a sensação, estando em perfeitas condições,
a consumam, mas antes como a saúde, e não o médico, é a causa primeira de estarmos com
saúde.
251
Aristóteles afirma ainda a esse respeito que “o prazer consuma a atividade não
como o estado nela já subsisitente, mas como um certo acabamento sobreveniente
(a)ll' w(j e)pigigno/meno/n ti te/loj), tal como a graça da juventude sobrevindo para os que
estão na força da idade.”
252
O prazer é, portanto, uma atividade que, sobrevindo, faz com
que uma outra atividade sobressaia ainda mais naquilo que lhe é próprio.
O prazer como atividade sobreveniente coroa uma atividade que já se encontrava em
plenas condições, emulando-a a assim permanecer. Pelo fato de não ser nada fora de uma
determinada atividade, o prazer ele próprio, assim como a atividade que ele acompanha,
também não pode ser contínuo.
253
Daí que ele desperte sempre o desejo de a ele retornar,
reforçando o empenho na atividade à qual ele se encontra relacionado. A própria vida, diz
Aristóteles, é uma certa atividade (h( de\ zwh\ e)ne/rgeia e)sti), sendo que cada um se mantém
ativo em relação àquelas coisas e pelos meios que mais ama (ma/list' a)gapa=?). O músico, por
exemplo, se mantém ativo pela audição em relação aos tons musicais, enquanto o que gosta
de aprender (filomaqh\j) permanece atuante pelo pensamento em relação aos problemas teó-
ricos.
254
Aristóteles quer dizer que toda entrega confiante a uma certa atividade, tanto quanto
uma atividade consumada, só são possíveis porque o prazer acha-se, desde o início, vincula-
do à atividade. Sem prazer e sem entrega, a própria atividade ficaria aquém de suas possibi-
lidades. A atividade em seu pleno desenvolvimento pressupõe o apego aos meios e às coisas
às quais ela se acha referida.
Há, de fato, um prazer específico para cada atividade, e esse prazer é o que promove
a intensificação da própria atividade. “O prazer específico intensifica a atividade", diz Aris-
tóteles.
255
Desse modo, por exemplo, os que se apegam ao exercício da geometria são os que
se tornam geômetras, e à medida que se tornam geômetras são eles que mais compreendem
cada coisa que com ela se relaciona. Só se torna mestre em alguma atividade aquele que
251
Ibid., X, 4, 1174 b 24.
252
Ibid., X, 4, 1174 b 32.
253
Ética a Nicômacos, X, 4, 1175 a 6.
254
Ibid., X, 4, 1175 a 13.
255
Ibid., X, 5, 1175 a 31. sunau/cei ga\r th\n e)ne/rgeian h( oi)kei/a h(donh/.
143
começou por apegar-se a ela. Compreender mais as coisas que se relacionam com uma ativi-
dade, porém, não significa o mesmo que especializar-se nela como em uma dada matéria, a
fim de então poder dominá-la, significa antes ter-se finalmente apegado a ela. Esse compre-
ender mais cada coisa (katanoou=sin e(/kasta ma=llon) corresponde a um saber situar-se de
modo a poder encontrar o que em cada caso vem propriamente ao caso. Somente quem já se
apegou a uma atividade encontra, além do caso particular, aquilo que nele está realmente em
causa. Aristóteles e os gregos em geral, segundo seu próprio testemunho, viam nesse saber
ater-se ao que no caso vem ao caso a marca mais manifesta da sabedoria, que eles encontra-
vam, de início, realizada na atividade dos artífices (texni/thj). Numa passagem decisiva do
livro I da Metafísica, depois de ter dito que os artesãos são mais sábios(sofwte/rouj) do que
os experientes, pelo fato de conhecerem, além do caso particular, o porquê e a causa, Aristó-
teles afirma que:
dio\ kai\ tou\j a)rxite/ktonaj peri\ e(/kaston timiwte/rouj kai\ ma=llon ei)de/nai
nomi/zomentw=n xeirotexnw=n kai\ sofwte/rouj, o(/ti ta\j ai)ti/aj tw=n poioume/nwn
i)/sasi=n
Por isso, também consideramos que os mestres de obras conhecem mais a
respeito de cada coisa do que os trabalhadores manuais, sendo mais dignos
e mais sábios do que eles, pelo fato de saberem as causas das coisas que fa-
zem.
256
É
É óbvio que aqui não se trata de um simples conhecimento teórico das causas, tal
como nós o concebemos hoje, mas de um ater-se às causas daquilo que se está fazendo. O
mestre de obras não é dito mais sábio do que o operário porque adquiriu um saber especiali-
zado, mas sim porque sabe situar-se em relação ao que, em sua atividade, a ele a cada vez se
apresenta.
257
Portanto, somente o prazer leva uma atividade à consumação de suas possibili-
256
Metafísica, I, 1, 981 a 30.
257
Em um manuscrito anterior a Ser e Tempo, as Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles, M.
Heidegger chama a atenção para essa mesma passagem de Aristóteles dizendo: “Er (Aristóteles) setzt an bei
einem komparativischen Ausdruck. In diesem wird sichtbar, worauf es dem Leben, wenn es etwas als
sofw/teron anspricht, ankommt: auf das ma=llon ei)de/nai, auf das Mehr an Hinsehen.(...) In diesem Mehr
an Hinsehen wird das “Aussehen” des Umgangswomit sichtbar, und zwar nicht als Gegenstand theoretischen
Betimmens, sondern als Worauf des ausrichtenden Besorgens. Das “Aussehen” (z.B. einer Krankheit) hat
einen Warumcharakter (ai)ti/on) für das umgänglich verrichtende Besorgen (i)atreu/ein “verartzten”). Das
144
dades. Pelo nosso próprio esforço, podemos chegar a dominar uma certa atividade, mas isso
ainda não significa que nós possamos nos ater a ela. Para Aristóteles são os que atuam com
prazer que melhor julgam e indicam com precisão cada coisa.
258
Este prazer que consuma e intensifica uma atividade, o prazer que lhe é inerente, não
somente não pode ser desvencilhado dela como chega a rivalizar com prazeres inerentes a
outras atividades. Quem quer que se dedique a uma atividade com prazer chega a sentir es-
torvo em relação a prazeres estranhos a essa atividade. Desse modo, segundo Aristóteles,
quando alguém se dedica, simultaneamente, a duas ou mais atividades, a mais prazerosa irá
sobrepor-se facilmente à outra, e se esta for bem mais prazerosa, a outra acabará desapare-
cendo por completo.
259
Quem se acha vinculado pelo prazer a uma atividade está, ao mesmo
tempo, impedido de dedicar-se a qualquer coisa “pela metade”. Não se trata ainda de ne-
nhuma especialização, mas antes de exclusividade, pois aquele se dedica exclusivamente a
algo não se encontra limitado a nenhum domínio específico, como acontece com o especia-
lista. Além disso, essa dedicação exclusiva é sempre ditada pelo prazer, ou seja, por algo
pertencente à própria atividade, e não por uma decisão particular e subjetiva. A exclusivida-
de não exclui outros desempenhos, o que ela exclui, na verdade, é, pura e simplesmente, a
falta de empenho.
3.4. As diversas atividades e seus prazeres inerentes
Mas se cada atividade acompanhada de seu prazer específico constitui um mundo
para si mesma, se não há nenhum outro parâmetro acima da atividade e do prazer, e se toda
atividade se acompanha de um prazer, como então seria possível repudiar alguém que se
empenha intensamente em praticar o mal? Afinal, pelo que acima foi dito, ninguém pode
empenhar-se dessa maneira se não encontra prazer naquilo que faz. Mas, se é assim, não
estaria a sua atividade justificada? É claro que ninguém, muito menos Aristóteles, pode ad-
Warum hat einen ursprünglich “praktischen” Sinn.”(Ele começa por uma expressão comparativa. Nesta torna-
se visível aquilo que corresponde à vida quando se refere algo como sofw/teron, ou seja, ao
ma=llon ei)de/nai, ao mais no olhar atento.(...) Neste mais no olhar atento torna-se visível o “aspecto” relati-
vo à lida com alguma coisa, e na verdade não como o objeto de uma determinação teórica, mas antes como o
“sobre o quê” da ocupação empreendedora. O “aspecto” (por exemplo: uma doença) possui um caráter de
porquê (ai)/tion) para a ocupação que trata de alguma coisa (i(atreu/ein: cuidar de uma doença). O “porquê”
possui um sentido originalmente prático.) p. 45.
258
Ética a Nicômacos, X, 5, 1175 a 32.
259
Ética a Nicômacos, X, 5, 1175 b 6.
145
mitir que um criminoso perfeito seja bom pelo fato de ter alcançado a perfeição em sua ati-
vidade criminosa. Mas se não dispomos de nenhum critério superior ao prazer, como fazer
para condená-lo? O que nos permitiria dizer, nos termos colocados por Platão
260
, que um
prazer é “verdadeiro” e um outro é “falso”? Aristóteles está respondendo a essas perguntas
quando diz que “assim como as atividades são diferentes, assim também os prazeres diferem
entre si.
261
Desse modo, afirma ainda ele, o prazer específico de uma atividade boa é co-
medido e doce (e)pieikh/j), enquanto o prazer de uma atividade má é, em si mesmo, miserá-
vel (moxqhra/), e os desejos das coisas belas são louváveis (e)painetai/) enquanto os desejos
das coisas baixas são reprováveis (yektai/).
262
Aristóteles não está aqui, como poderia parecer à primeira vista, subordinando o pra-
zer à atividade, de modo que uma atividade boa teria um prazer justificável e a má um prazer
injustificável. Neste caso, o prazer seria um simples complemento da atividade. O que ele
faz é mostrar como o prazer de uma atividade boa é, em si mesmo, comedido, e como o pra-
zer de uma atividade vil é, em si mesmo, miserável. É, portanto, originalmente pelo prazer e
não pela atividade em si que chegamos a descobrir se ela é boa ou má. Trata-se, indiscuti-
velmente, de uma questão de gosto: a atividade boa é aquela a qual pertence um prazer co-
medido, e a atividade má aquela que se faz acompanhar de um prazer miserável.
Não há, para Aristóteles, nenhuma possibilidade de se saltar o prazer na avaliação de
uma atividade, pois este é inerente à própria atividade. Nenhuma atividade pode ser boa se
não for, em si mesma, prazerosa. Mas tampouco a atividade má pode ser atividade caso não
comporte o seu prazer específico. A questão não é assim a de saber que espécie de prazer
seria realmente prazer e que tipo de prazer seria apenas ilusório. Um prazer não pode ser,
em si mesmo, irreal ou ilusório. O que se deve procurar determinar é antes quais dentre os
prazeres são, em si mesmos, preferíveis e quais dentre eles são, em si mesmos, desprezíveis.
Mas como se pode determinar isso uma vez que entre os homens, ao contrário do que acon-
tece com as espécies animais, não há nenhum consenso em matéria de gosto e as mesmas
coisas que a uns parecem agradáveis a outros parecem desagradáveis?
263
Para Aristóteles,
entretanto, a diversidade dos gostos não é nenhuma razão para que não se possa determinar
260
Filebo, 40 c.
261
Ética a Nicômacos, X, 5, 1175 b 36. w(/sper ou)=n ai( e)ne/rgeiai e)/terai, kai\ ai( h(donai/.
262
Ibid., X, 5, 1175 b 27.
263
Ibid., X, 5, 1176 a 10.
146
um prazer como preferível e um outro como desprezível em si, assim como é perfeitamente
possível determinar o que é, em si mesmo, doce, ainda que para alguns, em certas condições,
o que é doce possa parecer amargo.
264
Aqui o critério só pode ser o gosto saudável e não a
simples ausência de gosto. Aristóteles conclui dizendo que:
ei) de\ tou=to kalw=j le/getai, kaqa/per dokei=, kai\ e)/stin e(ka/stou me/tron h( a)reth\ kai\
a(gaqo/j, h(=? toiou=toj, kai\ h(donai\ ei)=en a)\n ai ( tou/tw? faino/menai kai\ h(de/a oi(=j ou(=toj
xai/rei.
se isto foi dito como convém, e assim parece, então a virtude e o homem bom, en-
quanto bom, são a medida de cada coisa, e prazeres seriam os que a este se mostram
como tais e agradáveis aqueles com os quais ele se compraz.
265
Os prazeres realmente agradáveis são aqueles nos quais o homem “bom”, enquanto
“bom”, se compraz. Nenhum prazer poderia ser bom caso ele fosse desagradável a este últi-
mo, assim como qualquer atividade. Aqui também não pode haver erro ou engano. É, de
fato, pelo gosto desse homem que se separam e podem ser reconhecidos como tais os praze-
res comedidos e os miseráveis. Mas quem seria esse homem e onde ele poderia ser encon-
trado? Para Aristóteles não há dúvida que o homem “bom” se manifesta como tal em suas
ações, ou seja, à medida que age. Homem “bom” é todo aquele que, agindo, assim se mani-
festa. Sua bondade reside justamente nesse elã de manifestação, e não em seu “bom cora-
ção” ou em qualquer coisa que lhe fosse íntima. Por isso, o homem “bom” é somente aquele
que possui a força e a disposição para realizar belas ações, e que busca ser reconhecido por
intermédio destas.
Temos, assim, que o discernimento acerca dos prazeres que são em si mesmos come-
didos e das atividades que são em si mesmas dignas depende, em última instância, da pró-
pria existência do homem “bom”. Segundo Aristóteles, é o homem “bom” e não o homem,
pura e simplesmente, como queria Protágoras, que é a medida de todas as coisas. Nesse ca-
so, porém, não se deveria reconhecer, igualmente, que a prática de belas ações é a melhor
atividade de que o homem é capaz? Afinal, se o homem “bom” é a medida, então a atividade
por ele considerada a mais digna e melhor deveria ser a mais digna e a mais prazerosa em si
264
Ibid., X, 5, 1176 a 13.Em caso de febre, por exemplo.
265
Ética a Nicômacos, X, 5, 1176 a 17.
147
mesma. No entanto, como já vimos, Aristóteles não considera que a vida segundo a hon-
ra(timh/) seja a modalidade de vida mais elevada e digna ao alcance do homem, mas antes a
atividade teorética e a vida segundo a percepção. Baseado em quê Aristóteles pode afirmar
isso? Haveria ainda um outro parâmetro além do acima referido?
Aristóteles, na verdade, não recorre a nenhum outro parâmetro senão à própria exis-
tência do homem bom considerada em si mesma (a(gaqo/j h(=? toiou=toj). Por isso, a atividade
mais digna e prazerosa não deve ser aquela que o homem “bom” julga ser a melhor, mas
aquela que sua própria existência elege como sendo a melhor. Considerada enquanto tal, a
própria existência do homem “bom” revela que a prática de ações nobilitantes remete final-
mente a uma atividade e a um prazer diferentes do benefício da honra e do reconhecimento.
Esta atividade não é tanto a de beneficiar alguém (eu)= poiei=n), de fazer o bem, mas, se assim
podemos dizer, a atividade de ter feito o bem. É a visão do bem realizado, a visão em si
mesma prazerosa da obra (to\ e)/rgon), o que mais intensifica a atividade de fazer o bem. Aris-
tóteles descreve essa satisfação do benfeitor com sua obra da seguinte maneira:
oi( d' eu)= pepoihko/tej filou=si kai\ a)gapw=si tou\j eu)= peponqo/taj, ka)\n mhqe\n w)=si
xrh/simoi mhd' ei)j u(/steron ge/noint' a)/n
.
Os que fizeram o bem amam e se apegam aos beneficiários, mesmo que estes
jamais lhes sejam úteis em nada.
266
O vínculo que une o benfeitor àquele que foi por ele beneficiado é bem mais estrutu-
ral(
fusikw/teron) e decisivo do que aquele outro gerado pela expectativa de ressarcimento, e
segundo Aristóteles não há sequer similitude(
o(/moion) entre ambos.
267
De fato, não se pode
dizer que um credor tenha qualquer disposição amistosa para com seu devedor. O único vín-
culo no qual Aristóteles enxerga uma similitude efetiva com este é antes o que une o produ-
tor à sua obra, seja ele um artesão(texni/thj) ou um poeta (poihth/j). Todo artesão, e
Aristóteles inclui os poetas nesta categoria, ama mais a sua obra específica do que seria
amado por esta caso ela ganhasse vida.
268
266
Ética a Nicômacos, IX, 7, 1167 b 32.
267
Ibid., X, 7, 1167 b 29.
268
Ibid., X, 7, 1167 b 29.
148
Hannah Arendt, em seu livro A condição humana, comentando precisamente essa
passagem, encontra nela um claro indício de que Aristóteles “concebe a ação em termos de
fabricação”, e isso “a despeito de suas enfáticas tentativas de distinguir entre ambas”.
269
O
que a leva a essa afirmação é o fato de o resultado da ação ser concebido por Aristóteles “em
termos de “obra” realizada.”
270
Para ela, ao contrário, o decisivo seria pensar a singularida-
de da ação procurando concebê-la como um dar início que se, por um lado, inaugura um
novo estado de coisas irredutível, por outro lado, inaugura, sobretudo, o próprio iniciador.
271
A questão, porém, continua sendo o que Aristóteles entende por obra (e)/rgon), pois ao
invés de conceber a ação a partir da fabricação e a obra a partir desta, pode ser que Aristóte-
les conceba tanto a ação quanto a produção a partir da obra. Para ver se isso procede temos
de voltar à passagem que está em questão. Depois de dizer que a situação dos benfeitores
(
to\ tw=n eu)ergetw=n) se parece com a dos artesãos, pelo fato de o beneficiário ser obra daque-
les, os quais o amam mais do que a obra amaria quem a faz, Aristóteles afirma que:
Tou/tou d' ai)/tion o(/ti to\ ei)=nai pa=sin ai(reto\n kai\ filhto/n, e)smen d' e)nergei/a?(tw=?
zh=n ga\r kai\ pra/ttein) e)nergei/a? de\ o( poih/saj to\ e)/rgon e)/sti pwj: ste/rgei dh\ to\
e)/rgon, dio/ti kai\ to\ ei)=nai.tou=to de\ fusiko/n: o(\ ga/r e)sti duna/mei, tou=to e)nergei/a?
to\ e)/rgon mhnu/ei.
A causa disso é que o ser(existência) é desejável e amável para todos, mas nós
somos em atividade (ao vivermos e agirmos), e a obra é, de certo modo, o pro-
dutor em atividade; por conseguinte, o produtor ama a obra porque também
ama o ser (a existência). E isso é estrutural: pois o que é em potência a obra o
revela em atividade.
272
Pelo que acima ficou dito, a obra é, para Aristóteles, de certo modo, o produtor em
atividade. Esta é a razão pela qual tanto o artesão quanto o benfeitor amam suas obras, ou
seja, pelo fato de amarem viver e agir. A obra não é um simples resultado ou um simples
produto da ação. Tampouco o produtor se reconhece na obra como em um reflexo seu. A
269
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense-Universitária;
Rio de Janeiro: Salamandra; São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1981, p. 208-209.
270
Ibid., p. 208-209.
271
Ibid., p. 190.
272
Ética a Nicômacos, IX, 7, 1168 a 6.
149
obra nem sequer revela propriamente o produtor, no sentido de ser uma extensão de sua per-
sonalidade, mas antes o produtor em atividade, quer dizer, o produtor enquanto sendo inse-
parável de sua ação específica. Desse modo, não é o produtor quem cria, de si mesmo, a
obra, mas é a obra que revela o produtor naquilo que ele tem de mas próprio, assim como é o
filho que faz aparecer o pai, que antes dele só existia em potência. O beneficiário como obra
não é, de forma alguma, um “produto” do benfeitor, mas alguém que, com a sua simples
presença, ilumina a existência do benfeitor, tornando-a visível como tal. É essa existência de
benfeitor, é essa atividade, que o benfeitor enxerga e ama no beneficiário, algo que, na ver-
dade, passa muito além da sua mera existência particular. A obra é, portanto, para Aristóte-
les, uma presença que tem o poder singular de revelar uma existência e uma atividade, que
de outro modo permaneceriam retraídas.
Considerada em si mesma, a própria existência do homem “bom” revela que o prazer
no qual repousa sua atividade, a despeito de todas as expectativas em contrário, não é a hon-
ra ou o reconhecimento por ela ansiosamente perseguidos, mas uma certa atividade autár-
quica que consiste apenas na visão da obra realizada. Isto quer dizer que enquanto se dedica,
com exclusividade, à busca da honra e do reconhecimento a existência do homem “bom
ainda não é uma existência perfeitamente autárquica, pois como afirma Aristóteles: o prazer
da honra depende mais daqueles que a concedem do que de quem a recebe.
273
A verdadeira autarquia só é alcançada por essa existência ali onde ela menos suspei-
ta, num prazer que ela não consegue, de forma alguma, avaliar em seu real significado. Tal
prazer, o mais autárquico de todos, só se deixa avaliar corretamente numa outra modalidade
de existência, que não possui o seu télos na honra. Isto não impede, mas antes exige, que a
filosofia enquanto possibilidade, a vida segundo a percepção, funde-se, originalmente, na
percepção da existência do homem bom considerada como um extremo. Veremos adiante
porque Aristóteles não pode admitir semelhante fundação.
3.5. A atividade em si mesma prazerosa do
qewrei=n
Depois de ter apresentado o prazer como o que intensifica e consuma cada atividade
e como sendo sempre o prazer de uma certa atividade, Aristóteles retoma, a partir do capítu-
273
Ética a Nicômacos, X, I, 5, 1095 b 24.
150
lo 6 do livro X, a discussão acerca do problema da felicidade, procurando determinar, de
maneira conclusiva, qual dentre as atividades buscadas por si mesmas é aquela que melhor
corresponde à autarquia requerida pelo bem final. Para tanto, Aristóteles deve retomar, i-
gualmente, as principais questões que já haviam sido desenvolvidas no livro I, em especial a
questão dos três modos de vida: a vida segundo o prazer imediato, a vida segundo a honra e
a vida segundo a percepção, modos de vida que agora serão identificados com três ativida-
des distintas: o entretenimento, a política e a atividade teórica. Estão excluídas, por princí-
pio, todas aquelas atividades que não são escolhidas por si mesmas.
Considerando o problema da felicidade desde uma perspectiva bastante diversa da de
Aristóteles, a saber: como um programa irrealizável, que, todavia, nos é imposto pelo prin-
cípio de prazer, e ao qual não podemos renunciar, Freud afirma que a felicidade constitui um
problema de economia da libido individual, e que cada um deve descobrir por si mesmo a
“equação” que melhor lhe convém, “já que não existe uma regra de ouro que se aplique a
todos”.
274
Entretanto, mesmo supondo que a felicidade seja uma questão de ordem estrita-
mente individual, Freud reconhece a existência de uma “constituição psíquica” que condi-
ciona nossas escolhas pessoais em certas direções. Tal constituição psíquica, que justamente
não é, em si mesma, nenhum objeto de escolha, mas uma propensão que trazemos previa-
mente conosco, corresponde, perfeitamente, aos três modos de vida acima mencionados,
como se pode ver nesta passagem onde Freud trata da escolha da regra individual da felici-
dade:
Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É
uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo exter-
no, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e , finalmente, de
quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a
seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo,
independentemente das circunstâncias externas. O homem predominantemente
erótico dará preferência aos seus relacionamentos emocionais com outras pes-
soas; o narcisista que tende a ser auto-suficiente buscará suas satisfações
274
FREUD, S. O mal-estar da civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro:. Imago, 1997,
p.33.
151
principais em seus processos mentais internos. O homem de ação nunca aban-
donará o mundo externo, onde pode testar sua força.
275
Freud, porém, ao contrário de Aristóteles, não reconhece a existência de uma
atividade que deva ser escolhida por si mesma, fora da consideração prévia de um
certo coeficiente de satisfação individual, pois para ele o homem não se acha votado,
desde o início, a uma determinada obra: a “obra do homem”. Mas o que significa,
para uma atividade, esse ser escolhida por si mesma? Qual o caráter dessa escolha?
De fato, uma atividade pode ser escolhida por si mesma simplesmente porque não a
escolhemos em vista de nada mais, ou então porque ela própria se apresenta como
sendo maximamente digna de escolha. Como podemos nos decidir sem assumirmos,
ao mesmo tempo, um determinado horizonte? Mesmo essa diferença só aparece e se
coloca a partir de um modo de vida que pode perceber e acolher uma atividade como
sendo em si mesma digna de escolha. Ela não surge, originalmente, de uma distinção
teórica, para depois ser aplicada aos “casos concretos”. É o que o próprio Aristóteles
reconhece quando afirma:
kaq' au(ta\j d' ei)si\n ai(retai\ a)f' w(=n mhde\n e)pizhtei=tai para\ th\n e)ne/rgeian.
toiau=tai d' ei)=nai dokou=sin ai( kat' a)reth\n pra/ceij: ta\ ga\r kala\ kai\
spoudai=a pra/ttein tw=n di' au(ta\ ai(retw=n.
Escolhidas por si mesmas são aquelas atividades nas quais nada se busca
além da atividade. Estas parecem ser as ações que seguem a virtude, pois
praticar coisas belas e boas está entre as coisas escolhidas por si mes-
mas.
276
Temos, assim, que a própria colocação do problema da felicidade requer, como
pressuposto, que já se saiba o que significa escolher uma atividade somente por ela mesma,
e isso é o que ninguém pode saber sem ter praticado ações belas e boas, como vimos no
capítulo anterior. De outro modo, esse problema não faria o menor sentido, pois já se sabe-
ria que a felicidade consiste no entretenimento e no prazer imediato.
275
O mal-estar da civilização, p.33-34.
276
Ética a Nicômacos, X, 6, 1176 b 6.
152
É preciso, porém, determinar ainda em que sentido o entretenimento não é uma ati-
vidade escolhida por si mesma. Certamente, o entretenimento não está entre as atividades
que só são escolhidas em vista de algo mais (
tw=n di' a)/llo ai(retw=n)
277
, como, por exemplo,
a medicina, que só é escolhida tendo-se em vista a saúde. O entretenimento (
paidi/a) é uma
das atividades escolhidas por si mesmas (tw=n di' au(ta\ ai(retw=n).
278
Só que mesmo sendo
exercida sem nenhuma outra finalidade, a atividade lúdica não é ela mesma algo final. Não
é uma vida digna de homem livre aquela que suporta toda sorte de adversidades e trabalha
durante toda a vida com o fim único de divertir-se.
279
Na perspectiva ou no horizonte de
toda uma vida (
to\n bi/on a(/panta), não faz nenhum sentido supor que o entretenimento seja
o bem final. O entretenimento deve estar, pelo contrário, subordinado a uma outra ativida-
de, esta sim escolhida apenas por si mesma. E Aristóteles cita um dito de Anácarsis segun-
do o qual nós devemos divertir-nos a fim de fazermos o bem.
280
O entretenimento seria
assim um relaxamento(a)na/pausij), necessário apenas porque nós não podemos nos esfor-
çar continuamente.
Para Aristóteles, o entretenimento (o jogo, a diversão) não pode ser tomado como
uma atividade final, apesar de não ser escolhido em vista de nenhuma outra coisa. O crité-
rio para semelhante afirmação ele vai buscar na perspectiva que enxerga a vida humana
sob a perspectiva da totalidade. Sob esse prisma, que inclui decisivamente a consideração
da finitude humana
281
, uma vida gasta em entretenimentos não pode ser considerada uma
vida livre, e muito menos uma vida feliz. O bem final só pode consistir em um prazer e em
uma atividade que sejam de natureza superior. Por isso, o fato de que os poderosos prefi-
ram, ontem e hoje, o entretenimento, prova apenas que eles não experimentaram prazeres
realmente puros (
ei)likrinou=j) e de homem livre (e)leuqeri/ou), e não que o entretenimento
seja preferível a tudo o mais.
282
Desses prazeres de homem livre estão excluídos, igual-
277
Ética a Nicômacos, X, 6, 1176 b 5.
278
Ibid., X, 6, 1176 b 10.
279
Ibid., X, 6, 1176 b 28.
280
Ibid., X, 7, 1176 b 33.
281
Aristóteles nunca perde de vista a afirmação de Sólon, citada por ele no livro I da Ética a Nicômacos,
segundo a qual só no fim da vida seria possível determinar se alguém foi ou não feliz. É preciso “ver o fim
(te/loj o(ra=n), repetia ele.
282
Ibid., X, 7, 1176 b 20.
153
mente, tanto os poderosos, enquanto preferem os prazeres do corpo, quanto os escravos,
que não dispõem de nenhum outro prazer além deste.
283
Dentre as atividades escolhidas somente por elas mesmas, apenas duas se destacam
como atividades dignas de homens livres: a atividade política e a atividade teórica. Para
Aristóteles, porém, não resta dúvida que a atividade segundo a sabedoria
(
kata\ th\n sofi/an) é a única que corresponde à felicidade, entendida, por sua vez, como
atividade autárquica. Isto significa que, de certa forma, somente esta última atividade é
escolhida inteiramente por si mesma, pois, como vimos no capítulo anterior, nada resulta
dela além da própria atividade teórica (para\ to\ qewrh=sai). É importante notar que Aristó-
teles não tem em vista, no caso da atividade política ou prática em geral, nenhum tipo de
cálculo oportunista que vise a obtenção de vantagens ou de simples benefícios, o que ele
diz é antes, mais precisamente, que nessas atividades práticas sempre resulta algo além da
própria atividade, e que esse “resultado” é revertido para aquele que atua. A própria honra
é algo que se acrescenta à atividade, não sendo ela mesma a própria atividade prática. To-
davia, para Aristóteles, mesmo que dessas ações não resultasse nada, nem por isso elas
seriam menos dignas de escolha.
Há, por conseguinte, na consideração do problema da felicidade, duas clivagens de-
cisivas: a primeira separa aquelas atividades que realmente são escolhidas por si mesmas,
no sentido de serem dignas de homens livres, daquela atividade que apenas não visa nada
além dela mesma; com a exclusão do entretenimento, dá-se então uma nova clivagem, des-
ta vez no interior das próprias atividades livremente escolhidas. Estas últimas são agora
observadas segundo a perspectiva da autarquia. Desse modo, evidencia-se que somente a
atividade teórica não visa nenhum fim além dela mesma.
284
A atividade teórica é assim a
única que reuniria as duas perspectivas segundo as quais uma atividade é considerada au-
tárquica, pois ela é, ao mesmo tempo, escolhida livremente e livre de qualquer outra finali-
283
É curioso notar que a mesma perspectiva que impede o entretenimento de ser o bem final seja também
aquela que faz dele a atividade a mais difundida e “universal”. Afinal, todos podem e precisam entreter-se,
desde os poderosos até os escravos, passando também pelo “homem livre”. O historiador holandês Johan
Huizinga, toma o jogo precisamente nesta última acepção fundamental quando afirma: “A existência do jogo
é inegável. É possível negar, se se quiser, quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, a verdade, o bem,
Deus. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo.” HUIZINGA, J. Homo ludens. Trad. João Paulo Mon-
teiro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.6.
284
Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 b 20.
154
dade. Somente uma atividade com essas características pode ser considerada absolutamen-
te autárquica.
Ao contrário do entretenimento e da atividade teórica, as atividades práticas em ge-
ral não são em si mesmas agradáveis. Segundo Aristóteles, isso se deve ao fato de serem
todas elas
a)/sxoloi, sem repouso e sem ócio. Enquanto nos empenhamos na ação, enquanto
nos preocupamos com o seu desfecho, nós estamos negando o ócio e estamos, portanto, no
negócio. Toda ação possui também e inseparavelmente a dimensão de ser um negócio de
que nós nos ocupamos. Toda ação é, em certo sentido, uma “ralação”. Esta dimensão não
pode ser simplesmente apagada da ação, de modo a ficarmos apenas com o prazer da ativi-
dade. Quem se empenha em uma ação está também preocupado com o seu desfecho e, nes-
te sentido, está também sendo mobilizado por ele. Aquilo, porém, que mobiliza a ação é
um fim distinto da própria ação, não sem dúvida como o produto é algo distinto da produ-
ção, mas como a paz é algo distinto da guerra. A guerra não pode nunca produzir a paz,
mas tampouco haveria guerra se não fosse em vista da paz. Daí que a ação de fazer a guer-
ra não possa ser considerada verdadeiramente autárquica. Uma atividade autárquica só
pode crescer no ócio, pois pertence à sua natureza não poder ser impelida por nada que seja
diferente dela mesma. Que o ócio seja anterior ao negócio prova-o o próprio empenho do
negócio, pois este mesmo só é negócio em vista do ócio. Aristóteles diz a esse respeito
que:
dokei= te h( eu)daimoni/a e)n th=? sxolh=? ei)=nai: a)sxolou/meqa ga\r i(/na sxola/zwmen,
kai\ polemou=men i(/n' ei)rh/mhn a)/gwmen.
A felicidade parece, portanto, estar no ócio; pois é a fim de estarmos no ócio
que nos empenhamos nos negócios, assim como nós fazemos a guerra a fim de
conduzirmos à paz.
285
Ócio não significa aqui a simples ausência de atividade, a simples ausência de em-
penho, mas já um certo modo de manter-se ativo, do qual estão ausentes todo empenho e
toda preocupação com algo diferente da própria atividade. Atividades “ociosas” são assim o
entretenimento e a atividade teórica, as únicas atividades que são, em si mesmas, prazero-
285
Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 b 4.
155
sas. Todavia, enquanto o entretenimento tem o seu lugar reservado na economia geral da
vida de ação, estando perfeitamente assimilado a ela, a atividade teórica parece sempre algo
adventício e pontual, sem a menor possibilidade de ser exercida costumeiramente ou de
modo sistemático. A atividade teórica não dispõe de qualquer lugar previamente estabeleci-
do na vida de ação, e tal como a visão em si mesma prazerosa da obra realizada, parece
sempre algo milagroso e fora de contexto. A atividade teórica representa, para a vida de
ação, o que há de mais absolutamente incontrolável. Aristóteles, porém, não hesita em a-
firmar ser esta a única atividade realmente autárquica, e que ela deve ser escolhida e exer-
cida durante toda uma vida.
286
Ora, como isso seria possível sem que a vida de ação como
tal fosse antes posta em questão?
3.6. A suspensão da vida de ação como condição para a vida teórica
De fato, pode-se ver, facilmente, que todas as características elencadas por Aristóte-
les que dizem respeito à atividade teórica, e que a tornam superior a qualquer outra ativida-
de, apenas ganham destaque à medida que se destacam diante das características da vida de
ação. Assim, enquanto as ações políticas e militares sobressaem pela beleza (ka/llei) e pela
grandeza(mege/qei), a atividade teorética, a vida segundo o nou=j, sobressai pelo ardor da
aplicação (spoudh=?); enquanto tais ações são inconciliáveis com o ócio e tendem para algum
outro fim, não sendo escolhidas por si mesmas, a atividade teórica não tende a nenhum ou-
tro fim além dela mesma, tem seu próprio prazer específico, além da autarquia, do ócio e da
infatigabilidade possíveis a um homem (w(j a)nqrw/pw?), e todas as outras coisas que são atri-
buídas ao homem sumamente feliz (
makari/w?).
287
Mas apenas ter visto isso ainda não significa que se tenha visto o essencial, pois A-
ristóteles não está, de forma alguma, compondo a atividade teórica, em seus traços princi-
pais, a partir de uma simples contraposição à vida de ação. Pôr em questão, como tal, a vida
de ação quer dizer algo totalmente distinto de utilizá-la como contraponto. Na verdade, é a
visão concentrada na vida de ação que faz sobressair, como um modo de vida possível, a
vida segundo o
nou=j. Somente tendo-se visto a tendência última da vida de ação, a tendência
286
Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 b 25.
287
Ibid., X, 7, 1177 b 16.
156
de a partir do “negócio” buscar permanentemente o ócio, é que se pode escolher e perseguir
um modo de vida distinto.
Além disso, o fato de que um modo de vida até então insuspeitado tenha se destacado
como possível não implica a negação da vida de ação, da mesma forma que tampouco a vida
de ação pode renunciar a todo e qualquer entretenimento. Pelo contrário, essa modalidade de
vida deve aparecer até mesmo como sendo incontornável. Esta percepção é tão marcante
para Aristóteles que ele chega a afirmar que somente este último modo de vida pode ser con-
siderado rigorosamente humano. Enquanto se é apenas homem, não há como escapar, por
pouco que seja, do império do neg-ócio.
A possibilidade de retirar-se, voluntariamente, do âmbito das preocupações ditadas
pela vida de ação não parece algo previsto pela própria vida de ação. Por isso, pode-se real-
mente perguntar se para o homem é possível retirar-se, ele mesmo, desse modo de vida a não
ser pelo entretenimento, o qual, como vimos, não constitui uma atividade característica de
homens livres. Por ser constitutivamente desejo, e desejo pensante, o homem não parece em
condições de dar-se a si mesmo uma atividade livre, isto é, autárquica. Essa atividade o ho-
mem poderia, no máximo, perseguí-la, jamais exercê-la, ao menos enquanto ele for tão só e
simplesmente homem. Mas pode o homem, alguma vez, não ser tão só e simplesmente ho-
mem, a fim de poder dedicar-se a uma atividade que lhe seja necessariamente superior? Para
Aristóteles, o homem só pode alcançar semelhante atividade enquanto o que nele está atuan-
te não é humano, mas divino. Há no homem ,portanto, algo de sobre-humano, algo que lhe
permite experimentar realmente a felicidade da qual todos os demais seres vivos estão exclu-
ídos, à medida que não participam da atividade teorética.
288
É preciso que se entenda bem o
que Aristóteles está dizendo. Aristóteles não diz que o homem seja um deus terreno ou um
deus mortal, assim como ele não diz que pelo pensamento o homem se elevaria até Deus. O
que ele diz textualmente é o seguinte:
o( de\ toiou=toj a)\n ei)/h bi/oj krei/ttwn h)\ kat' a)/nqrwpon: ou) ga\r h(=? a)/nqrwpo/j e)stin
ou(/tw biw/setai, a)ll' h(=? qei=o/n ti e)n au)tw=? u(pa/rxei: o(/son de\ diafe/rei tou=to tou=
sunqe/tou, tosou=ton kai\ h( e)ne/rgeia th=j kata\ th\n a)/llhn a)reth/n.
288
Ética a Nicômacos, X, 8, 1178 b 24.
157
Mas esta seria uma vida superior à vida humana, pois não é como homem que
ele a viverá, mas enquanto algo divino que subsiste nele; e este algo divino di-
fere tanto do composto humano quanto a sua atividade difere da atividade se-
gundo a outra virtude.
289
A outra virtude a que faz referência Aristóteles é, como vimos, a prudência, en-
quanto a virtude da parte ponderativa da alma racional.
290
Esta é precisamente a virtude do
composto humano, constituído de desejo e pensamento. Mas Aristóteles está aqui se refe-
rindo à atividade característica da virtude da parte científica da alma: a sabedoria. Esta ati-
vidade, a atividade teórica, não é o “pensamento mortal”, mas a atividade de algo divino
que subsiste no homem. Quando o homem pensa teoricamente não é ele quem pensa, mas
antes dever-se-ia dizer que algo divino pensa nele. Esse pensamento mesmo não é uma
característica humana, mas o modo de ser do próprio deus.
291
Isto não significa, em absolu-
to, que o homem, enquanto pensa dessa maneira, se torne deus; o homem pode, no máxi-
mo, participar, ainda que de forma precária, de uma atividade que lhe é estruturalmente
superior. Veremos no próximo capítulo as diversas interpretações, muitas vezes conflitan-
tes, que essa compreensão do pensamento como o divino no homem produziu ao longo de
uma tradição interpretativa secular.
Teremos de ver mais de perto como Aristóteles caracteriza a própria atividade teo-
rética de modo a poder situá-la acima de todo desempenho puramente humano. Por en-
quanto, podemos apenas recolher algumas indicações que foram feitas anteriormente acer-
ca do prazer. Aristóteles havia dito que toda atividade possui o seu próprio prazer específi-
co e que quanto mais puro for esse prazer mais nobre será a atividade. Seguindo a trilha
aberta por Platão, que no Filebo fala em prazeres “simples” (a)migei=j), Aristóteles reconhe-
cerá nesses mesmos prazeres a presença de uma atividade perfeitamente autárquica. Praze-
res que não resultam da satisfação de nenhum desejo prévio só podem pertencer a ativida-
des que têm seu fim em si mesmas. Estas são a atividade dos sentidos, quando estes se en-
contram em plenas condições e referidos aos melhores objetos, e a atividade de conhecer.
Só que diferentemente da atividade dos sentidos, que logo perde o seu viço e intensidade,
289
Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 b 27.
290
Capítulo II.
291
Ibid., X, 8, 1178 b 22.
158
exatamente como a visão penetrante de algo, a atividade de conhecer é de uma continuida-
de desconhecida por qualquer outra atividade
292
. É precisamente esse fato de ser, em si
mesma, infatigável (
a)/trupton) o que sobretudo torna a atividade teorética algo divino, se
comparada a qualquer espécie de ação (
prattei=n).
Como, porém, um homem poderia saber de uma atividade divina e, ao mesmo tem-
po, sentir-se concernido por ela? De que modo uma atividade divina pode chegar a requisi-
tar para si e incandescer de entusiasmo a existência humana? Não se deveria antes colocar
sob suspeita semelhante incandescência como uma ardência pelo impossível (u(/brij)? Aris-
tóteles está certamente respondendo a essa suspeita quando afirma não ser preciso, sendo
homem, pensar somente como homem(a)nqrw/pina fronei=n) e, sendo mortal, pensar somen-
te como mortal.
293
Por que não? Por que, ao invés disso, seria preciso, tanto quanto possí-
vel, imortalizar (a)qanati/zein)? Não é a própria atividade teórica, antes de mais nada, um
possível, ou seja, algo que pode chegar a concernir a existência humana? Aristóteles não
pensa exatamente desse modo, pois para ele a própria existência humana só é possível a
partir dessa atividade, como se pode ver nesta passagem:
to\ ga\r oi)kei=on e(ka/stw? th=? fu/sei kra/tiston kai\ h(/diston e)stin e(kastw?: kai\ tw=?
a)nqrw/pw? dh\ o( kata\ to\n nou=n bi/oj, ei)/per tou=to ma/lista a)/nqrwpoj: ou(=toj a)/ra
kai\ eu)daimone/statoj.
Pois aquilo que é característico e específico para cada um é, por natureza, o que
é melhor e mais prazeroso para cada um; para o homem, o que é melhor e mais
prazeroso é a vida segundo a percepção, visto que isso é, mais do que tudo, o
homem; por conseguinte, esta será a vida a mais feliz de todas.
294
292
Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 a 22.
293
Ibid., X, 7, 1177 b 33. Sobre a expressão a)nqrw/pina fronei=n é oportuno o seguinte comentário de Pier-
re Aubenque: “Phronein seguido de acusativo não significou jamais: pensar alguma coisa, como se o acusa-
tivo exprimisse um complemento qualquer do objeto. Phronein significa: ser disposto, pelo pensamento, de
uma certa maneira, e o acusativo neutro que o segue especifica a forma pela qual o pensamento está dispos-
to; assim, fi/la fronei=n não significa evidentemente: “pensar coisas afetuosas”, mas “estar em disposições
amistosas.” AUBENQUE, Pierre. La prudence chez Aristote. Paris: Quadriage/PUF, 2002, p. 168.
294
Ibid., X, 7, 1178 a 5.
159
A vida segundo o nou=j é, por natureza, para o homem, o que lhe é mais prazeroso e
melhor. Mas como se poderia escolher esse modo de vida caso a própria existência humana
não viesse constantemente a si e se colocasse a si mesma em questão na totalidade de seus
possíveis modos de ser? E não seria essa escolha de tal ordem que ela sempre de novo preci-
saria ser escolhida? Para Aristóteles, sem dúvida, o homem não pode sair do círculo de sua
finitude pelo fato de escolher viver tal como viveriam os deuses, pois a ele só é permitido
imortalizar tanto quanto lhe é possível. Todavia, esse não poder escapar da finitude não sig-
nifica que se tenha assumido a existência humana como o lugar privilegiado desde o qual
toda atividade somente chega a ser aquilo que ela é. Ao invés disso, Aristóteles compreende
a existência humana como estando desde sempre voltada para uma certa atividade, que ela
só consegue realizar de maneira incompleta. O homem, entretanto, encontra a sua máxima
felicidade realizando incompletamente aquilo que Deus realiza e é de modo integral.
au(to\n de\ noei= o( nou=j kata\ meta/lhyin tou= nohtou=: nohto\j ga\r gi/gnetai qig-
ga/nwn kai\ now=n, w(/ste tau)to\n nou=j kai\ nohto/n. to\ ga\r dektiko\n tou= nohtou=
kai\ th=j ou)si/aj nou=j, e)nergei= de\ e)/xwn, w(/st' e)kei=no ma=llon tou/tou o(\ dokei= o(
nou=j qei=on e)/xein, kai\ h( qewri/a to\ h(/diston kai\ a)/riston. ei) ou)=n ou(/twj eu)=
e)/xei, w(j h(meij pote/,o( qeo\j a)ei/, qaumasto/n: ei) de\ ma=llon, e)/ti qaumasiw/teron.
e)/xei de\ w(=de. kai\ zwh\ de \h( e)ne/rgeia: e)ne/rgeia de\ h( kaq' au(th\n e)kei/nou zwh\
a)ri/sth kai\ a)i¨/dioj. fame\n dh\ to\n qeo\n ei)=nai zw=?on a)i/dion a)/riston, w(/ste zwh\
kai\ ai)w\n sunexh\j kai\ a)i/dioj u(pa/rxei tw=? qew=?: tou=to ga\r o( qeo/j.
A percepção percebe a si mesma conforme participa do perceptível, pois torna-
se perceptível tocando e percebendo, de modo que a percepção e o perceptível
são o mesmo. Pois o receptáculo do perceptível e da essência é uma percepção,
que, estando em atividade, os possui, de modo que isso mais do que aquilo é o
que a percepção parece possuir de divino, e a teoria é o mais agradável e me-
lhor. Se, portanto, Deus acha-se tão bem como nós as vezes, isto é admirável,
se mais isto é ainda mais admirável. E ele se acha desse modo. E ele subsiste e
é vida, pois a atividade da percepção é vida e aquele é atividade. Mas a ativi-
dade daquele é por si mesma, sendo vida eterna e excelente. Dizemos ser Deus
160
um vivente eterno e excelente, de modo que vida e duração contínua e eterna
pertencem a Deus, pois isto é Deus.
295
No retorno da existência à totalidade de seus possíveis modos de ser, uma atividade
logo se destaca, mas se destaca de tal modo que ela faz desaparecer esse mesmo retorno,
tornando-o, a partir de então, perfeitamente obsoleto. Deus é o nome dado por Aristóteles a
essa atividade que tudo condiciona a si e que não admite ser por nada condicionada. Essa é a
razão pela qual Aristóteles não pode admitir que a filosofia como possibilidade se origine
da percepção da existência do homem de ação entendida como um extremo, pois isso impli-
caria condicionar, de alguma forma, aquilo que é, por si mesmo, incondicionado. É bem
verdade que o homem não pode simplesmente instalar-se nesse modo de ser e que essa
mesma atividade, em seu caso, precisa ser sustentada ao longo de toda uma vida para que ela
renda os seus frutos, só que isso revela tão somente, para Aristóteles, um condicionamento e
um modo de ser deficiente do homem! Com isso, na verdade, Aristóteles está indicando que
o retorno da existência às suas possibilidades fundamentais, apesar de indispensável, é ape-
nas uma condição para que o homem encontre aquele modo de ser para o qual ele se acha
naturalmente votado: a “obra do homem”.
295
Metafísica XII, 7, 1072 b 19. Essa mesma passagem é citada por Hegel, na íntegra e em grego, ao final da
sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas. v. 3. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995.
161
Capítulo IV
Atividade teórica e atividade sensível
“A alma é, de certo modo, todas as coi-
sas...”
(Aristóteles, De anima)
4.1 A subordinação da prudência à sabedoria
No final do capítulo anterior, levantou-se uma pergunta que teremos de acompanhar
mais de perto. A pergunta se colocava nos seguintes termos: como uma atividade que é em
si mesma divina (sobre-humana) pode chegar a concernir a existência humana ao ponto de
constituir o alvo e a meta dessa mesma existência? Dizendo agora de modo um pouco dife-
rente: como é possível que a atividade teórica constitua o que, para o homem, é o maxima-
mente desejável e melhor? Para que essa pergunta ganhe o seu direito de ser é preciso que,
previamente, procuremos compreender como Aristóteles caracteriza essa mesma atividade
de modo a poder determiná-la como sendo, essencialmente, divina, tarefa que também se
indicou no capítulo anterior.
Já no livro VI da Ética a Nicômacos, Aristóteles havia apresentado a sabedoria
(sofi/a) e a prudência (fro/nhsij) como as virtudes das duas partes da alma racional: a pon-
derativa e a científica. Ambas as virtudes, como vimos no capítulo II, são modalidades de
realização da percepção enquanto percepção do que é extremo (dos princípios). Esta per-
cepção dos princípios é, em si mesma, uma e)pagwgh/, ou seja, uma condução que nos fami-
liariza com uma dimensão previamente aberta e privilegiada da realidade, a qual não se
162
pode, porém, ter acesso pela via planificada e normal de uma demonstração. A chamada
“demonstração por refutação” (capítulo I), mediante a qual Aristóteles procura apresentar o
princípio de não-contradição como sendo o mais firme de todos e como aquele acerca do
qual é impossível estar em erro, é, na verdade, uma
e)pagwgh/, uma introdução, e não uma
demonstração. Entendido como essa introdução, o
nou=j (percepção), longe de ser um sim-
ples expediente pedagógico, é um mergulho naquele real que jamais se deixa determinar
cabalmente: os princípios. Os princípios não são alguma coisa de que simplesmente se pos-
sa tomar nota. Ninguém pode tomar conhecimento de um princípio, mas tão somente admi-
ti-lo. Na medida em que se oferece como princípio (
a)rxh/), o real é um possível (capítulo I)
que só se deixa conhecer quando nos dispomos a nascer junto com ele. “Os alunos inician-
tes, diz paradigmaticamente Aristóteles, são perfeitamente capazes de concatenar os argu-
mentos (
tou\j lo/gouj), mas não vêem em absoluto aquilo de que eles tratam, pois para tan-
to deve-se nascer junto com isso (sumfuh/nai), o que sempre demanda tempo.”
296
Mas Aristóteles não se limita a apresentar a prudência e a sabedoria como modali-
dades próprias de exercício do nou=j, ele também trata de subordinar a prudência à sabedori-
a, tal como a medicina acha-se subordinada à saúde. A prudência, como atividade, não tem
seu fim em si mesma; o fim da prudência é a sabedoria entendida como a única atividade
verdadeiramente autárquica. Todavia, essa subordinação da prudência à sabedoria não so-
mente implica e traz consigo a subordinação da parte ponderativa à parte científica da al-
ma
297
, como também significa assumir um estatuto inferior e preparatório do nou=j como
percepção do que é extremo em relação ao
nou=j enquanto posse e exercício efetivo do co-
nhecimento. Quem possui de fato um conhecimento estaria assim impedido de regressar a
um estado de “pré-conhecimento”, devendo, necessariamente, manifestar esse saber. Na
deliberação conscienciosa (eu)bouli/a), pelo contrário, todo saber permanece condicionado à
obscuridade essencial de uma situação, sem a qual a própria ação perderia toda a sua gravi-
dade. Esse não-saber, que deve ser assumido quando se trata de agir, jamais se deixa su-
plantar por um saber, seja ele de que tipo for. Desse modo, ninguém sabe o que fazer e co-
mo agir antes de, a cada vez, dispor-se a agir ele mesmo. Esta é inclusive a compreensão
296
Ética a Nicômacos, VII, 3, 1147a 21. No contexto dessa passagem, Aristóteles procura distinguir duas
espécies de conhecimento: o conhecimento efetivo e o conhecimento genérico. Os incontinentes, por exem-
plo, sabem, de modo genérico, que certos prazeres são maus, mas não se sentem concernidos por esse saber, e
agem como se não soubessem. Daí que o saber efetivo seja um sentir-se (saber-se) concernido por...
297
E assim a subordinação das coisas que podem ser de outro modo às coisas que são por necessidade.
163
que faz do prudente aquilo que ele é. A deliberação conscienciosa não permite, de forma
alguma, a passagem do não-saber para o saber, no sentido da estabilização deste último em
algum estado fixo que, desde então, se embalasse a si próprio (saber divino), o que não sig-
nifica dizer que o prudente possua apenas um saber inconstante e deficiente.
Assim como a sensação, que mesmo no caso de ser sempre verdadeira – como a
sensação dos sensíveis próprios (as cores para a vista) – depende da presença de algo distin-
to dela própria
298
, assim também a prudência depende de algo que não lhe pode ser subsu-
mido. Ninguém pode deliberar e agir na ausência de uma situação determinada que o pres-
sione a agir. A ação e a deliberação acontecem sempre em vistas de uma situação e, por
isso, não podem jamais simplesmente absorvê-la. Sendo, porém, a felicidade definida por
Aristóteles como uma atividade perfeitamente autárquica, a prudência como percepção do
que é extremo não poderia ser essa atividade. Além disso, a atividade que possui em si
mesma o seu próprio prazer, não pode conter nada que assinale o seu próprio desfecho,
devendo ser mais contínua (ma=llon sunexw=j)do que qualquer outra atividade
299
, sem nada
possuir que a entrave ou impeça de prosseguir (a)nempo/diston).
300
Ora, ninguém delibera
realmente a fim de prosseguir deliberando indefinidamente.
A única atividade verdadeiramente autárquica, contínua e prazerosa é, para Aristóte-
les, a atividade teórica. Por isso, quando Aristóteles afirma que a vida segundo a percepção
é a melhor e mais agradável (kra/tiston kai\ h(/diston)
301
para o homem, ele, na verdade,
tem em vista o nou=j que se situa na parte científica da alma. Mesmo o conhecimento, na
medida em que ele comporte algum elemento de não-saber que entrave a sua fluência, ain-
da não é uma atividade perfeitamente autárquica. A admiração, por exemplo, que Aristóte-
les considera ser, junto com Platão, o começo da filosofia, deve ser finalmente superada e
abandonada em favor de um conhecimento consumado do necessário, que já não tem mais
nada com que admirar-se. “Quem se encontra em impasse e se admira”, diz Aristóteles,
reconhece que ignora”,(...)“de modo que se foi por fugirem da ignorância que os homens
298
“A sensação não é sensação de si mesma.” Metafísica, IV, 6, 1010 b 35.
299
Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 a 23.
300
Ibid., VII, 12, 1153 a 15
301
Ibid., X, 7, 1178 a 5.
164
filosofaram, é claro que buscaram conhecer por causa do conhecimento, e não por alguma
utilidade.”
302
O admirar-se(to\ qauma/zein), um outro nome para o nou=j enquanto percepção do que
é extremo, ainda não é filosofia, mas apenas o seu começo; é preciso que este se transforme
em fuga da ignorância para que de fato os homens filosofem, isto é, conheçam por conhe-
cer. O saber já instituído como saber revela-se incapaz de manter o reconhecimento da ig-
norância e por isso deve transformá-lo em fuga da ignorância, da mesma forma que, como
vimos no capítulo I, a evidência já constituída abole, naturalmente, o seu próprio percurso
de constituição, reduzindo-o a um puro nada. Isto, porém, não significa que essa transfor-
mação seja experimentada pelo saber como fruto de uma incapacidade sua, muito pelo con-
trário! A fuga da ignorância é o modo como o saber já instituído compreende previamente a
admiração, inscrevendo-a em seus próprios limites.
Aristóteles nos conservou um importante testemunho dessa transformação pela qual
o saber se funda a si mesmo como saber. A passagem, a que já nos referimos antes, é aque-
la que trata da admiração e que a descreve como o admirar-se frente ao fato de que as coi-
sas sejam tais como são.
303
As marionetes que parecem mover-se por si mesmas, os solstí-
cios e a incomensurabilidade da diagonal despertam, naqueles que não conhecem a causa, a
admiração. O admirar-se é aqui o reconhecimento da ignorância, o desconcerto e o maravi-
lhamento diante de algo que é tal como não se podia esperar que ele fosse. As marionetes,
por exemplo, não parecem, de forma alguma, madeira inerte, mas o contrário disso, ou seja,
algo vivo. Mas enquanto nos mantivermos na simples “perturbação” diante disso ainda não
nos mostramos capazes de assistir ao espetáculo! É que para tanto devemos nos desembara-
çar dessa perturbação inicial e nos deixarmos enlevar pelo que temos diante de nós. Mas
seria realmente possível ver marionetes sem tornar a admirar-se com elas?
Para Aristóteles não há dúvida de que a condição para o saber é a de que a “pertur-
bação inicial” ceda o lugar a algo totalmente diverso, pois ele conclui a referida passagem
com as seguintes palavras:
302
Metafísica, I, 2, 982 b 17.
303
Metafísica, I, 2, 983 a 13.
165
dei= de\ ei)j tou)nanti/on kai\ to\ a)/meinon kata\ th\n paroimi/an a)poteleuth=sai
kaqa/per kai\ e)n tou/toij o(/tan ma/qwsin: ou)de\n ga\r a)\n ou(/twj qauma/seien
a)nh\r gewmetriko/j w(j ei) ge/noito h( dia/metroj metrhth/.
É preciso, porém, segundo o provérbio, terminar por uma visão contrária e
melhor, tal como quando, nas referidas coisas, finalmente aprendemos; pois
nada seria mais espantoso para um geômetra do que se a diagonal, de repen-
te, se tornasse comensurável pela unidade mínima.
304
O espanto de que as coisas sejam assim mesmo como são e se dão a ver é entendido
como o resultado da ignorância da causa. Não é, portanto, o espanto, o admirar-se, que a-
brem, originalmente, a possibilidade do conhecimento. O conhecimento não pode ele mes-
mo depender de algo tão fortuito e “acidental”. Mas o homem, ele sim, precisa admirar-se
para poder chegar ao conhecimento da causa. A necessidade do espanto é apenas uma ne-
cessidade humana. É o homem, e apenas ele, que para saber precisa antes passar pelo a-
prender.
Há, de fato, algo de irredutível entre o aprender e o ter aprendido, entre ter experi-
ência e já possuir a ciência. Aristóteles jamais afirma que a ciência derive, pura e simples-
mente, da experiência; o que ele diz é que “a ciência e a arte chegam aos homens por in-
termédio da experiência.”
305
Mas como seria possível, para nós, conceber a ciência e o co-
nhecimento independentemente de uma referência obrigatória à experiência? O que há en-
tre o aprender e o ter aprendido que torna o segundo irredutível ao primeiro?
4.2. A singularidade do conhecimento
Vimos no capítulo anterior que o prazer é entendido por Aristóteles como sendo ele
mesmo uma atividade, e uma atividade que consuma e intensifica uma outra atividade. Por
outro lado, por ser atividade, o prazer também deve poder estar atuante à parte e indepen-
dentemente de qualquer outra atividade. Esta atividade que se intensifica a si mesma é, para
Aristóteles, a atividade teórica: a única atividade da qual nada resulta que seja diferente
dela própria. Da mesma forma, no livro I da Metafísica, o conhecimento aparece como ten-
304
Ibid., I, 2, 983 a 18.
305
Metafísica, I, 1, 981 a 3.
166
do sido sempre buscado e exercitado independentemente de qualquer utilidade que dele
pudesse resultar, mas apenas por sua superioridade intrínseca.
306
Porém, o que torna o ter
aprendido algo essencialmente superior ao aprender é a perfeita identificação entre o co-
nhecimento e o que é por ele conhecido. Essa identificação, da qual o aprender se acha ex-
cluído, por ser uma forma de movimento
307
, não pode ser produzida por este último, de-
vendo necessariamente precedê-lo. O aprender é que é devedor do ter aprendido, e não o
contrário! Assim sendo, a atividade de conhecer não é algo que se gere a partir de um em-
penho inicial de aprendizado, mas algo que subsiste e deve subsistir antes mesmo de todo e
qualquer empenho em aprender.
308
O conhecimento é uma atividade que se mantém atuante por si mesma e que, para
tanto, não depende de nada que lhe seja exterior. Tudo na atividade de conhecer é intrínse-
co a ela própria, desde o chamado “objeto do conhecimento” até o “sujeito cognoscente”. É
o geômetra, enquanto geômetra, que conhece a incomensurabilidade da diagonal e que nun-
ca se cansa de percebê-la, do mesmo modo que o benfeitor nunca se cansa de demorar-se
junto ao beneficiado. Este puro demorar-se junto a... constitui a atividade que para Aristóte-
les é perfeita e divina se comparada a uma atividade simplesmente humana, a qual sempre
implica desejo e esforço de conquista.
309
Mas dessa atividade o homem pode apenas participar tanto quanto lhe é possível,
pois, “enquanto Deus frui um prazer único e simples”, diz Aristóteles:
metabolh\ de\ pa/ntwn gluku/, kata\ to\n poihth\n, dia\ ponhri/an tina/: w(/sper ga\r
a)/nqrwpoj eu)meta/boloj [o(]ponhro/j, kai\ h( fu/sij h( deome/nh metabolh=j: ou) ga\r
a(plh= ou)d' e)pieikh/j.
a mudança é doce em tudo, como diz o poeta, por causa de alguma perversão
nossa; pois tal como o homem inconstante é pervertido, também o é a nature-
za necessitada de mudança, pois não é simples nem boa.
310
306
Ibid., I, 1, 981 b 13.
307
Ibid., IX, 6, 1048 b 23.
308
Ibid., IX, 8, 1049 b 34.
309
Ética a Nicômacos, X, 5, 1175 b 30.
310
Ibid., VII, 14, 1154 b 26.
167
Quando se refere a essa atividade divina, Aristóteles está, na verdade, seguindo a
trilha que já havia sido aberta por Platão, e que mais tarde, como veremos, será ainda tri-
lhada pela doutrina medieval do intellectus agens. No livro VI de A República, Platão cons-
trói uma forte analogia entre o sol e aquilo que ele chama de idéia ou simplesmente de es-
tado (
e(/cij) do bem. Assim, da mesma forma que por intermédio do sol as coisas ficam ilu-
minadas e os olhos as vêem distintamente, assim também é a idéia do bem que fornece a
verdade para as coisas conhecíveis e o poder de conhecer para aquele que conhece.
311
O
que Platão chama de idéia ou estado do bem, Aristóteles o chamará de divino e, mais dire-
tamente, de deus, como vimos no capitulo anterior. Da atividade que lhe é própria estão
excluídos, em princípio, toda fadiga e todo e qualquer obstáculo.
Deus é, para Aristóteles, atividade incessante, vida eterna. Sua atividade consiste
toda ela em perceber-se a si mesmo, ou, dito de outra forma, “o pensamento é pensamento
de pensamento.”
312
O nou=j divino é aquele que , em atividade, se percebe a si mesmo em
atividade, da mesma forma que o benfeitor se percebe a si mesmo na visão prazerosa do
beneficiado (obra). O conhecimento não seria conhecimento caso não dispusesse da possi-
bilidade de demorar-se junto àquilo que conhece. Nesse demorar junto ao conhecido, este é
“atualizado”, da mesma forma que, na analogia platônica, as coisas visíveis são iluminadas
pelo sol. Por si só, o conhecimento(ciência) seria incapaz de produzir semelhante atualiza-
ção, já que ele próprio só pode mover-se a partir do já conhecido.
313
Por isso, de certa for-
ma, também a capacidade de conhecer é “atualizada” por esse demorar-se junto ao conhe-
cido. O divino no pensamento consiste precisamente nessa atualização mediante a qual,
sem se confundirem, conhecer e conhecido são o mesmo.
Aristóteles já havia dito, em outra ocasião, respondendo ao famoso impasse sofista,
que para que um aprender seja possível, aquele que aprende deve possuir necessariamente
algo da ciência que aprende. Mas este algo que possibilita o aprender deve, por sua vez, já
estar em atividade. Ele não é, portanto, nada de que possamos dispor ou que possa ser pro-
duzido. Já o aprender, pelo contrário, só se dá quando aquele que aprende se sintoniza com
este algo que já se encontra ele mesmo em atividade, deixando-se “ativar” por ele. Seme-
311
República, 508 d.
312
Metafísica, XII, 9, 1074 b 34.
313
É por essa razão que Aristóteles pode dizer que caso os pontos de partida não sejam melhores conhecidos
pelo cientista do que a conclusão este possuirá a ciência apenas por acidente. Cf. Ética a Nicômacos, VI, 3,
1139 b 25 e Analíticos Posteriores, I, 2, 71 b 20.
168
lhante aprender propriamente não tem fim, pois sempre de novo é preciso deixar-se ativar
pela ciência em atividade. No entanto, quem possui uma ciência, quem já aprendeu, não
está nas mesmas condições do que aquele que ainda não aprendeu, pois, de certo modo, a
ciência entranhou-se nele. Assim mesmo, este último não está isento da necessidade de
aprender, pois a ciência, ao contrário da prudência, pode perfeitamente ser esquecida.
A diferença entre as duas modalidades de aprender acima referidas, longe de ser
uma diferença simples, aponta, na verdade, para a diferença decisiva entre o nou=j como
percepção do que é extremo (espanto, admirar-se) e o nou=j como atualização do conhecido
e da capacidade de conhecer. Essa diferença, entretanto, foi logo obscurecida e, por assim
dizer, consumida, pela concomitante descoberta e afirmação de Deus como pura atividade
e vida eterna, de modo que a questão da mútua imbricação dessas duas modalidades de per-
cepção nem sequer chegou a se destacar como digna de ser colocada. Contribuiu sobrema-
neira para tanto a cisão abissal, a que já se aludiu no capítulo anterior, em virtude da qual
tudo o que é “humano demasiado humano” já comparece como estando infinitamente sepa-
rado do divino. O homem deve então possuir algo de divino quando alcança atualizar, por
decisão própria, o conhecimento.
4.3. A filosofia, exercício de aprender
Mas e se essa mesma atualização só puder se dar graças àquele contato inaugural
(qigei=n) com a ciência em ato, que, não obstante, permanece irredutível a toda atualização?
Com efeito, a passagem do aprender para o ter aprendido conserva em si uma obscuridade,
na qual a ciência, como atualização, não consegue penetrar. Platão, no diálogo O banquete,
entende essa obscuridade como uma instância intermediária e a chama de Eros, precisa-
mente o nome de uma divindade, de um
dai/mwn. Eros, conforme Diotima ensina a Sócrates,
não é nem mortal e nem imortal, nunca é rico e nem pobre, e se encontra sempre a meio
caminho da sabedoria e da ignorância.
314
Esse encontrar-se sempre a meio caminho de um e de outro, entretanto, não quer ser
entendido como uma forma deficiente de saber, que ainda não teria superado a ignorância,
mas como o próprio trânsito no qual o saber chega unicamente a constituir-se como saber.
314
O Banquete, 203 e. Sofi/aj te au)= kai\ a)maqi/aj e)n me/sw? e)sti/n.
169
Esse trânsito, essa passagem, é aquele no qual nós sempre já devemos estar, de alguma
forma, para que saber e ignorância cheguem a se destacar. Ao se experimentar a passagem
do ignorar para o ter aprendido o que na verdade se experimenta e se assume é aquilo que
nós mesmos já somos: a nossa própria identidade de ser constitutivamente passagem, ou
como diz Heráclito, em palavras inspiradas:
h)=qoj a)nqrw/pou dai/mwn(o modo de ser caracte-
rístico do homem é o de ser trânsito e passagem).
315
Se, como diz Platão, nem os deuses e nem os ignorantes filosofam, a filosofia como
exercício de aprender deve concernir apenas ao homem enquanto aquele que, sendo passa-
gem, pode ser tocado por algo que, sendo atividade, corresponde ao seu modo próprio de
ser. Em todo ter aprendido genuíno não se aprende apenas algo que antes se ignorava, mas
o que nele sobretudo se aprende é o próprio aprender, pois também o aprender pode e deve
ser aprendido. Só não se pode aprender a aprender sem que se aprenda nada determinado,
da mesma forma que ninguém aprende a perguntar corretamente sem nunca ter perguntado
nada. Para chegar a si mesmo, isto é, ao seu próprio ser, o homem precisa de um outro, mas
de um outro que compartilhe o seu modo de ser característico. Nos capítulos anteriores,
esse acesso ao outro como tal foi chamado de transcendência originária, e aquilo que atin-
ge o homem de modo a concerni-lo em uma admissão foi chamado de possível. A filosofia
é antes de tudo um possível, só que um possível privilegiado, já que por ele a existência
humana pode chegar a si mesma.
Mas Aristóteles e Platão consideram que o próprio aprender deva encaminhar-se pa-
ra o ter aprendido como para a sua meta. Tal como teria sido para fugirem da ignorância
que os homens primeiro filosofaram, também a filosofia possuiria em si mesma uma cul-
minação, que para Platão reside na visão do belo em si
316
e que para Aristóteles consiste na
contemplação de Deus como pura atividade e vida eterna. Acima e além das coisas belas há
que se buscar o que há de maximamente belo e para além das atividades uma que nada mais
seja do que pura atividade. Somente na medida em que encontra algo assim o homem pode
cessar toda e qualquer busca e “imortalizar”. Se o encontro com o possível faz com que o
homem descubra a própria existência como possibilidade, a descoberta do divino deve cor-
315
DIELS, H. KRANZ, W. Fragmente der Vorsokratiker. V. 1. Ed. bilíngüe. Zurique: Weidmann, (1951),
1992, frag. 119.
316
O Banquete, 210 e.
170
responder à simultânea descoberta de algo divino no próprio homem. De todo modo, será
sempre como homem que ele buscará exercer essa divindade que existe nele. A filosofia
precisa, primeiro, ser assumida como possibilidade estritamente humana, como algo que
concerne a existência do homem, para que a atividade divina da pura contemplação possa
ser exercida.
A diferença entre aprender e ter aprendido aparece, de modo especial, no De anima,
em uma passagem decisiva, na qual Aristóteles procura precisar duas maneiras distintas de
ser e estar em potência. Na primeira delas, um homem possuiria potencialmente a ciência
apenas porque ele é capaz de aprendê-la, pelo simples fato de ser homem. Segundo Aristó-
teles, é desse tipo de potencialidade que participa a matéria. Já na segunda se possuiria a
ciência potencialmente na medida em que se é perfeitamente capaz de exercê-la, desde que
se queira e não havendo nenhum impedimento externo.
317
Uma pergunta logo se apresenta:
será esse simples fato de ser homem, a potencialidade primeira, algo assim tão simples
quanto de início aparenta ser, a ponto de poder ser equiparada à potencialidade material?
Antes, porém, temos de ver melhor como Aristóteles explicita a diferença entre essas duas
potencialidades por ele destacadas:
a)mfo/teroi me\n ou)=n oi( prw=toi kata\ du/namin e)pisth/monej, a)ll' o( me\n dia\
maqh/sewj a)lloiwqei\j kai\ polla/kij e)c e)nanti/aj metabalw\n e(/cewj, o(
d' e)k tou= e)/xein th\n ai)/sthsin h)\ th\n grammatikh/n, mh\ e)nergei=n d' ei\j to\
e)nergei=n a)/llon tro/pon. ou)k e)/sti d' a(plou=n ou)de\ to\ pa/sxein, a)lla\ to\
me\n fqora/ tij u(po\ tou= e)nanti/ou, to\ de\ swthri/a ma=llon tou= duna/mei
o)/ntoj u(po\ tou= e)ntelexei/a? o)/ntoj kai\ o(moi/ou, ou(/twj w(j du/namij e)/xei
pro\j e)ntele/xeian: qewrou=n ga\r gi/gnetai to\ e)/xon th\n e)pisth/mhn, o(/per h)\
ou)k e)/stin a)lloiou=sqai (ei)j au)to\ ga\r h( e)pi/dosij kai\ ei)j e)ntele/xeian)
h)\ e(/teron ge/noj a)lloiw/sewj: dio\ ou) kalw=j e)/xei le/gein to\ fronou=n ou)
didaskali/an a)ll' e(te/ran e)pwnumi/an e)/xein di/kaion: to\ d' e)k duna/mei
o)/ntoj manqa/non kai\ lamba/non e)pisth/mhn u(po\tou= e)ntelexei/a? o)/ntoj kai\
didaskalikou= h)/toi ou)de\ pa/sxein fate/on, w(/sper ei)/rhtai,h)\ du/o tro/pouj
317
De anima, II, 5, 417 a 22.
171
ei)=nai a)lloiw/sewj, th/n te e)pi\ ta\j sterhtika\j diaqe/sij metabolh\n kai\
th\n e)pi\ ta\j e(/ceij kai\ th\n fu/sin.
Ambos, por conseguinte, têm a ciência conforme a potência, mas en-
quanto um sofre alteração por causa do aprender, mudando freqüen-
temente a partir de estados contrários, o outro, desde que possui a sen-
sação ou a ciência da escrita, passa do não estar em atividade para o
estar em atividade de maneira diversa. Porém, nem a mudança é algo
simples e nem tampouco o sofrer uma afecção, mas se, de um lado,
esse padecer é uma certa destruição pelo efeito contrário, por outro la-
do, ele é mais uma salvação do ente que está em potência pelo ente
que está em atividade e que lhe é semelhante, assim como a potência é
em virtude da realização. Pois é teorizando que vem a ser aquele que
possui a ciência, e de tal modo que não há alterar-se (pois o progresso
é para o mesmo e para a realização) ou então um outro gênero de alte-
ração. Por isso, não convém dizer que aquele que pensa, enquanto
pensa, sofra alteração, tampouco o construtor enquanto constrói. Por-
tanto, o que conduz o ente desde a potência para a realização, segundo
a percepção e o pensar, não é ensino, mas é justo que possua uma ou-
tra designação. Aquele, porém, que aprende e recebe a ciência desde o
ente em potência pelo ente em realização e pelo que é capaz de ensinar
não se deve dizer que sofre uma alteração, ou então há dois tipos de
alteração: a mudança para as disposições de que somos privados e a
mudança para os estados e para a nossa própria natureza.
318
O aprender e o ter aprendido possuem ambos um certo modo de ser potencial, mas
esse modo de ser potencial não é idêntico em ambos. O aprender, de certo, é em potência a
ciência em atividade (o saber), assim como o ter aprendido que não exerce atualmente a
ciência, mas no primeiro caso a ciência é perseguida como algo que ainda não despontou
em seu perfil próprio; ela é aqui apenas um saber vago e inconsistente, um saber que não
chega a firmar-se e que de novo retorna ao seu estado contrário. No aprender, passa-se con-
318
De anima, II, 5, 417 a 30.
172
tinuamente da ignorância ao saber e, vice-versa, do saber à ignorância. Essa passagem é
sempre abrupta, de modo que cabe perfeitamente chamá-la de alteração. Quem, todavia, ao
aprender a escrever, escreve, por ele mesmo, uma primeira palavra, mesmo que ainda não
seja capaz de escrever com desenvoltura uma frase ou um pequeno parágrafo, já demonstra
possuir a ciência do escrever. Na verdade, ele o demonstra já no simples ato de desenhar
uma letra ou de olhar para ela e reconhecê-la como letra.
No caso, porém, em que se aprendeu a escrever e que se pode fazê-lo com desenvol-
tura, a passagem do não exercício para o exercício efetivo da ciência só muito dificilmente
se deixa chamar de alteração, pois aqui não se sofre nenhuma “destruição pelo efeito con-
trário”, tal como quando ainda se pena para aprender, mas algo que Aristóteles chama de
“progresso para o mesmo e para a realização”. Como também essa passagem é, de alguma
maneira, sentida, Aristóteles mantém a possibilidade de se falar aqui em padecer e em alte-
ração, com a ressalva importante de que trata-se de um outro gênero, seja de padecimento
seja de alteração.
Essas distinções serão importantes mais adiante quando tivermos de nos haver com
as distinções que Aristóteles estabelece entre nou=j e sensação, e entre uma percepção (nou=j)
“padecente” e uma percepção produtora. Por enquanto, trata-se de ver mais claramente a-
quilo que está em jogo em toda essa passagem. Aristóteles está chamando a atenção para
uma diferença cujo sentido não é nada simples de ser percebido, pois, ao contrário do que
se costuma imaginar, o aprender, segundo o que está dito na passagem, não é algo unívoco.
Aprender se diz em pelo menos dois sentidos: num deles aprendemos disposições de que
somos privados, no outro, porém, aprendemos os estados e nossa própria natureza. No pri-
meiro caso, o aprender é um padecer e uma alteração, no segundo caso, ele é um “progresso
para o mesmo”.
No fundo dessas distinções encontra-se aquela distinção fundamental, a que aludi-
mos acima, entre duas formas de potencialidade: uma potencialidade resistente e outra pro-
piciadora de atualização. Para Aristóteles, só se pode chegar a essa segunda potencialidade
com a destruição e o completo aniquilamento da primeira por intermédio da ciência em
atividade. Enquanto a primeira potencialidade não for inteiramente destruída, não se pode
chegar à segunda. O aprender seria assim, de início, um processo intrinsecamente penoso,
ao qual nós só nos submeteríamos pelo fato de já saborearmos o gosto da ciência em ato.
173
Como, porém, nós poderíamos saborear esse gosto da ciência em ato sem que aque-
le outro aprender, que antes foi chamado de “dar-se a si mesmo a própria identidade”, tam-
bém já não estivesse presente e atuante? Nesse caso, então, tal aprender não resultaria ja-
mais da destruição do primeiro, devendo já estar presente desde o começo, pois não pode,
absolutamente, ter começado em um dado momento! Para Aristóteles, entretanto, não é
esse aprender, mas apenas a ciência em atividade, que se acha e precisa achar-se, desde o
início, presente, pois é ela que, com a sua presença, desperta por atração o desejo de conhe-
cer e a fuga da ignorância. No percurso do aprender, deve-se passar, forçosamente, de uma
potencialidade à outra, sendo a segunda buscada como meta pelo fato de assemelhar-se à
ciência em atividade. É assim que o ter aprendido só chega a firmar-se contra o próprio
aprender, mesmo que este último não possa ser simplesmente descartado e permaneça co-
mo uma etapa necessária, ao longo inclusive da atividade de conhecer.
Aristóteles mantém, sem dúvida, que o ter aprendido é, na verdade, um modo do a-
prender, pelo qual nós recebemos (lamba/nw) a ciência numa mudança para os estados e
para a nossa natureza, e com isso ele descarta a opinião de que a ciência possa ser adquirida
tal como adquirimos algo de que estivéssemos simplesmente privados. A ciência só pode
ser recebida numa passagem para a nossa própria natureza. Mas, para Aristóteles, é unica-
mente a ciência em ato quem determina e decide essa passagem e essa recepção. Daí que a
passagem para a nossa natureza seja entendida antes como uma doação da ciência em ato
do que como uma ação propriamente humana: “A percepção parece ser uma certa essência
que nasce em nós e que não mais se destrói.”
319
A perspectiva aqui decisiva é aquela que
opõe o exercício inconstante do aprender à constância e à firmeza do ter aprendido. Dentro
dessa perspectiva, o homem seria capaz de receber a ciência em ato de duas maneiras per-
feitamente distintas: em uma delas ele seria, tal como a matéria, capaz de sofrer, por altera-
ção, uma modificação que lhe é imposta pela forma, já na outra, ao tornar-se ele próprio
alguém que sabe, ele é capaz de receber a ciência voluntariamente e sem ser alterado por
ela. Neste último caso, apenas, o
nou=j é dito ser algo mais divino e impassível.
320
Voltando ao exemplo fornecido por Aristóteles, o da ciência da escrita, pode-se ver
que de início aquele que aprende a escrever está apenas sendo instruído e familiarizado com
319
De anima. I, 4, 408 b 19. o( de\ nou=j e)/oiken e)ggi/nesqai ou)si/a tij ou)=sa, kai\ ou) fqei/resqai.
320
Ibid., I, 4, 408 b 29. o( de\ nou=j i)/swj qeio/teron ti kai\ a)paqe/j e)stin.
174
os elementos e com as regras que compõem o escrever. Nesse momento, ele ainda não é
capaz de escrever, mas apenas de exercitar as lições que lhe foram predeterminadas. Tendo,
porém, aprendido a escrever, ele agora é perfeitamente capaz de escrever ele mesmo, con-
tanto que queira e disponha dos meios necessários, sem que para tanto necessite do apoio
de nenhum outro. Entre esses dois extremos Aristóteles não enxerga nenhuma posição in-
termediária, pois o que ele chama de “mudança para a própria natureza” já é entendida por
ele como sendo obra exclusiva da ciência em ato. Aristóteles não pensa assim de maneira
gratuita, mas impelido pelo fato de que o ter aprendido, no sentido de possuir a ciência em
potência e não mais de modo puramente potencial, não é jamais o produto de uma decisão
simplesmente humana. Ninguém, de fato, pode decidir ter aprendido, mas somente decidir-
se a aprender. Para aprender (ter aprendido) a vontade só não basta!
Apesar disso, não se está nunca de modo puramente passivo, não se é nunca intei-
ramente receptivo (tal como seria a matéria) quando se começa a aprender a escrever. Nin-
guém jamais aprenderá a escrever se apenas reproduzir mecanicamente e de modo desinte-
ressado as lições do professor. Na verdade, já no simples desenhar as letras com cuidado ou
no simples olhar para elas com atenção, algo já está operando que é essencialmente distinto
de um simples procedimento mecânico (passivo). Esse empenho é um disponibilizar-se
para o aprender, o qual tampouco pode ser produzido por uma “vontade” ou por uma sim-
ples “decisão” de aprender. O ter aprendido ele mesmo só é possível a partir de semelhante
disponibilização, que não pode ser, de maneira nenhuma, suprimida por ele. Desse modo,
quando alguém se descobre tendo escrito, por si mesmo, uma primeira palavra ou uma pri-
meira frase, ele ainda não havia provado o gosto da ciência em ato, e nem sequer é capaz de
dispor do escrever ou da ciência da escrita, mas já havia se disponibilizado ele mesmo para
essa disponibilidade que constitui a sua natureza. Somente então ele é livre para aprender.
Esse momento não pode ser simplesmente absorvido pelo ter aprendido, mas, antes, é o ter
aprendido que precisa repeti-lo de algum modo para ser o que é. O ter aprendido é insepa-
rável da liberdade para aprender.
A liberdade para aprender é precisamente aquilo que deve permanecer trancado e
invisível enquanto tal para a perspectiva que se fixa na irredutibilidade do ter aprendido ao
aprender. De fato, quem já se tornou plenamente capaz de escrever não está na mesma situ-
ação que aquele que ainda necessita de muito treino e exercício. Ocorre, porém, que em
175
ambos os casos o mesmo empenho continua sendo indispensável: o disponibilizar-se para a
ciência em ato ou para a ação de escrever e estar escrevendo. Sem que esse empenho seja
repetido, a simples atualização da capacidade de escrever seria algo tão mecânico quanto a
reprodução sem espírito de lições predeterminadas. Mas se Deus é puro ato e facilidade,
enquanto o homem pena para aprender ele ainda não se assemelha a Deus, sendo menos do
que precisa ser. É assim, desse modo, que o ter aprendido se converte em meta e estado
contrário ao aprender.
É bem verdade que para Aristóteles o homem nunca chega a possuir simplesmente a
ciência em ato; o homem pode, no máximo, imortalizar tanto quanto lhe é possível e admi-
rar o fato de que Deus seja sempre tal como ele é algumas vezes. Esta situação fez com que
Pierre Aubenque, em seu livro Le problème de l’être chez Aristote, chamasse a atenção para
a possibilidade de o próprio Aristóteles ter evoluído, ao longo de sua obra, para uma posi-
ção que interditaria, pura e simplesmente, ao homem a posse da filosofia primeira
(prwth\ filosofi/a): a ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas, a qual perten-
ceria, para Aristóteles, principalmente ou até exclusivamente à divindade. Em suas pala-
vras:
Fácil em direito, a sabedoria, logo designada como filosofia primeira, é, portanto,
de todas as ciências a mais difícil de fato. Ou antes há uma sabedoria mais que humana,
que é teoricamente fácil, pois o seu objeto é de todos o mais claro e o mais exato, e uma
filosofia humana, demasiado humana, que movendo-se de início ao nível das coisas que
nos são familiares, não pode manter com os primeiros princípios aquela referência imedia-
ta de evidência que Aristóteles designa com o nome de
nou=j.”
321
Aubenque baseia esta sua leitura e interpretação em uma distinção, que é repetida
em diversos lugares por Aristóteles, entre o que é mais conhecido por si ou pura e simples-
mente (
gnwrimw/teron kaq' au(to/ ou a(plw=j) e o que é mais conhecido para nós
321
“Facile en droit, la sagesse, bientôt designée comme philosophie première, est donc de toutes les sciences
la plus difficile en fait. Ou plutôt il y a une sagesse plus qu’humaine, qui est théoriquement facile, puisque son
objet est de tous le plus clair et le plus exact, et une philosophie humaine, trop humaine, qui, se mouvant
d’abord au niveau des choses de chez nous, ne peut entretenir avec les premiers principes ce rapport immé-
diat d’évidence qu’Aristote désigne sous le nom de nou=j.” Le problème de l’être chez Aristote, 2002, p. 59.
176
(gnorimw/teron kaq' h(ma=j
ou pro\j h(ma=j).
322
Ao contrário de Platão, que em sua “alegoria da
caverna” também reconhece esse estado de coisas, para Aristóteles semelhante cisão seria
insuperável para o conhecimento humano, e até mesmo trágica
323
, uma vez que seria im-
possível conhecer humanamente o pura e simplesmente mais cognoscível. Na analogia aris-
totélica, os homens estariam para o que em si é o mais cognoscível, definitivamente, tal
como os morcegos estão para a plena luminosidade do dia.
324
O problema dessa interpretação não nos parece ser o seu “pessimismo” se compara-
do com o “otimismo” dominante em relação à possibilidade do conhecimento dos princí-
pios, conhecimento que consagraria a superioridade da filosofia sobre as ciências particula-
res, mas antes a excessiva “modernização” de Aristóteles, a qual faz desaparecer justamente
o elemento de estranheza presente em sua obra, tornando-a sem mais assimilável à filosofia
moderna (Kant). A peculiaridade de Aristóteles está no fato de que existe, para ele, um co-
nhecimento não-humano (divino), o qual, não obstante, concerne maximamente a existên-
cia humana, e deve ser perseguido e provado por ela. O homem deve buscar esse conheci-
mento divino não como algo inalcançável, mas como algo que está ao seu alcance, pois ele
mesmo possui em si algo divino.
Pode-se enxergar na demonstração por refutação do princípio de não-contradição
um sinal manifesto de que, para Aristóteles, não era algo dispensável que os princípios fos-
sem admitidos e experimentados como tais (recebidos). Por outro lado, todo o embaraço de
que Aristóteles se revela prisioneiro em sua argumentação, a ambigüidade de assumir o
princípio como auto-evidente e depois empenhar-se em “demonstrá-lo”, assim como o pró-
prio caráter dessa demonstração, têm a sua origem, precisamente, na crença de que a sim-
ples evidência do princípio, a sua máxima luminosidade, bastaria para produzir a sua ad-
missão, como se para tanto não se fizesse necessária nenhuma disponibilização para o
sentido do que se deve admitir. Este é precisamente o caso daquele que, por se ter fixado na
diferença entre aprender e ter aprendido, já não tem olhos para o inusitado do próprio a-
prender, e sofre de impaciência ao perceber que o assentimento não se produz tão logo a
“evidência” tenha sido enunciada.
322
Ibid, p. 62.
323
Ibid, p. 61.
324
Metafísica, II, 1, 993 b 9.
177
O que nessas ocasiões se costuma perder de vista é justo o caráter de toda evidência
de já ser sempre evidência para alguém, e que nenhuma evidência consegue ser a tal ponto
evidente que consiga suprimir o caráter de possível que ela sempre traz consigo, mesmo
quando se trata de um imperativo de existência, que, tal como foi visto no capítulo I, nos
parece consistir, em última instância, o princípio de não-contradição.
4.4. Impassibilidade sensível e inteligível
O nou=j que se demora junto ao que de si mesmo é o mais conhecido Aristóteles o
chama de “princípio do princípio” (a)rxh\ th=j a)rxh=j).
325
Esta consideração atualizadora é o
que assegura ao princípio o seu estatuto de princípio, da mesma forma que o prazer especí-
fico plenifica uma certa atividade, fazendo com que perseveremos nela. Nesse âmbito, o
próprio princípio já não é absolutamente recebido. A recepção do princípio é que se acha
condicionada a essa atividade incessante que em si mesma não pode ser de natureza recep-
tiva. Como veremos mais adiante, Aristóteles distingue uma percepção capaz de ser afetada
de uma outra que é produtora daquilo que é por ela percebido. Esta última percepção é o
que há de divino no homem.
Por diversas vezes, no De anima, Aristóteles refere-se ao nou=j como impassível. As-
sim, por exemplo, quando menciona de forma elogiosa Anaxágoras, dizendo ter sido ele o
único a declarar que o nou=j é impassível (a)paqh=), não possuindo nada em comum com o
que quer que seja diferente dele próprio.
326
Esta impassibilidade característica do nou=j de-
ve, entretanto, ser distinguida daquela que tem lugar no âmbito dos sentidos e das sensa-
ções, pois também estes últimos conhecem, segundo Aristóteles, uma impassibilidade ca-
racterística. A impassibilidade dos sentidos é de natureza essencialmente receptiva e com-
porta sempre uma certa alteração do órgão sensível. Mas como toda impassibilidade é uma
certa percepção, os órgãos sensíveis não sofrem apenas impressões externas, sendo igual-
mente capazes de se perceberem a si mesmas em atividade. É pela vista que nós, de fato,
julgamos acerca da luz e da escuridão, mas de maneiras distintas, pois no segundo caso só
conseguimos ver que está escuro quando vemos que nada vemos.
327
A sensação é assim
325
Analíticos Posteriores, II, XIX, 100 b 16.
326
De anima, I, 2, 405 b 20. Aristóteles entende assim o a)migh=j(puro, sem mistura) de Anaxágoras.
327
Ibid., III, 2, 425 b 21.
178
receptiva (dektiko/n) das formas sensíveis, mas sem a matéria.
328
Por isso, mesmo quando
os objetos sensíveis já não estão presentes, as sensações e as imagens permanecem nos ór-
gãos sensíveis.
329
O objeto sensível que é recebido sem a matéria pelo órgão sensível não é, no caso
da vista, a vermelhidão, mas já a forma (ei)=doj) vermelho. É esta forma que permanece no
órgão, mesmo sem a presença direta do objeto sensível. Trata-se aqui da percepção dos
sensíveis próprios, que Aristóteles considera ser sempre verdadeira ou não comportar senão
minimamente o erro.
330
Esta recepção da forma sensível dá-se sempre por intermédio de
uma alteração, mas não é ela própria uma alteração. Assim, por vezes, um determinado
lugar se apresenta a nós por intermédio de um odor característico e familiar, mesmo quando
nos encontramos bem distantes dele, seja no tempo seja no espaço.
331
Aristóteles recusa a compreensão até então tradicional segundo a qual a sensação
seria uma forma de alteração, uma espécie de movimento desencadeado diretamente no
órgão sensível por algo estranho a ele. A alteração é, sem dúvida, um momento capital da
sensação, mas esta última não consiste na alteração. Sentir é algo mais do que alterar-se ou
sofrer uma impressão exterior, sentir é também experimentar um sentido. A sensação só se
completa quando, de certo modo, ultrapassamos o impacto direto da sensação e deixamos
que ela nos diga algo, pois, para Aristóteles, também a sensação é “falante”:
To\ me\n ou)=n ai)sqa/nesqai o(/moion tw=? fa/nai mo/non kai\ noei=n: o(/tan de\ h(du\ h)\
luphro/n, oi(=on katafa=sa h)\ a)pofa=sa, diw/kei h)\ feu/gei.
Portanto, o experimentar uma sensação eqüivale ao simples dizer e ao per-
ceber; mas quando se experimenta prazer ou dor, sentir é tal como um a-
firmar ou um negar, um perseguir ou um fugir.
332
328
Ibid., II, 12, 424 a 18.
329
Ibid., III, 2, 425 b 24.
330
De anima, III, 3, 428 b 18.
331
Essa recordação atualizadora em nada se distingue do nou=j enquanto percepção ou admissão do que é
extremo, pois coisa e sentido são aqui indissolúveis.
332
Ibid., III, 7, 431 a 8. Acerca dessa mesma passagem, Barbara Cassin comenta: “Nenhum intérprete se sur-
preende com isso: a sensação, assim como a ação que se segue, fala, ou pelo menos é como se falasse, e é
evidente que ela fale.” CASSIN, B. Aristóteles e o Lógos: contos de fenomenologia comum. Trad. Luiz Paulo
Rouanet. São Paulo: Loyola, 1999, p. 214.
179
O percurso completo da sensação é assim aquele pelo qual a impressão sensível se
desfaz de tudo quanto ela possua de dissemelhante e resistente para tornar-se perfeitamente
assimilável à percepção sensível. O sensível deve despir-se de todo elemento de pura exteri-
oridade que de início possuía: “pois é o dissemelhante que nos afeta, mas tento sido afetados
ele é de modo semelhante.”
333
O sensível que provoca a alteração não altera indefinidamente o órgão ou a recepti-
vidade “estética”, mas só até o ponto em que se chega à sua identificação. Somente quando
cessa a alteração é que se pode dizer que aconteceu uma afecção e que se foi afetado por
algo, por exemplo, uma cor. Essa cor, entretanto, já será semelhante à receptividade sensível
correspondente e assimilável a esta. Toda essa operação dá-se espontaneamente na recepti-
vidade sensível. Desse modo, cada sentido já busca, quando sofre uma alteração, uma certa
proporção, sendo também ele próprio uma proporção determinada (lo/goj), o que lhe possi-
bilita perceber, dentro de certos limites, os sensíveis correspondentes.
334
Há, por conseguinte, uma impassibilidade dos sentidos correspondente à capacidade
de receber e reter as formas sensíveis mediante a alteração do órgão sensível. A alteração,
por si só, seria incapaz de gerar percepção sensível. Todavia, tal impassibilidade não pode
prescindir da sensação naquilo que ela possui de mais exterior, o que significa dizer que ela
permanece dependente da doação do particular.
A impassibilidade dos sentidos, embora efetiva, não chega a ser autônoma, pois ela
se mantém referida a algo exterior a ela própria, o qual desencadeia a percepção. A percep-
ção sensível depende de um impulso e de uma “excitação” advindos do exterior. Em si
mesma, porém, e uma vez tendo se produzido a geração
(o(/tan de\ gennhqh?=), ela já possui o
sentir que corresponde à ciência (esse sentir é a potencialidade segunda do ter aprendido).
Então o sentir em atividade é assimilável (
le/getai o(moii/wj) à atividade teórica.
335
Mesmo
sem sofrermos agora uma alteração no órgão visual podemos perfeitamente atualizar uma
cor, por exemplo: vermelho, e dizer que se trata de uma cor intensa (viva). Esta atualização,
333
Ibid., II, 5, 417 a 20. pa/sxei me\n ga\r to\ a)no/moion, peponto\j d' o(/moio/n e)stin.
334
De anima, II, 12, 424 a 26. No mesmo livro supracitado, Barbara Cassin afirma: “Permanece o fato de
que, de qualquer modo, e como Aristóteles não cessa de repetir, a aisthêsis é, sem dúvida alguma, um “poder
crítico”. Proponho compreender aqui, em um primeiro nível ligado a seu estatuto de lógos-relação, que a
sensação primeiramente “julga”, no sentido de que avalia a proporção respectiva dos contrários que carac-
teriza tal sentido [senti]. Ela efetua o cálculo da relação, faz o que chamaríamos de “média” dos contrários,
e é a partir dessa ponderação (algo como “três vezes mais de preto do que de branco”) que ela sente: cinza.”
(p. 170)
335
Ibid., II, 5, 417 b 16.
180
entretanto, continua referida a algo que, por natureza, é exterior: cor, pois só a percebemos
quando atendemos a algo particular. Não se dá, com efeito, cor em si, mas cor já é sempre a
cor disto ou daquilo: cinza, diz-se, é a cor da teoria. Já a ciência, pelo contrário, refere-se aos
universais (tw=n kaqo/lou), e estes se encontram, de certa maneira(pw/j), na própria alma. Eis
porquê, segundo Aristóteles, é possível perceber teoricamente (noh=sai), por si mesmo,
(e)p' au)tw=?) sempre que se queira, mas não é possível perceber sensivelmente (ai)sqa/nesqai)
por si mesmo, pois neste caso é preciso que o sensível subsista (u(pa/rxein).
336
O que Aristóteles está dizendo é que para percebermos sensivelmente é preciso que
já tenhamos admitido um particular. A percepção sensível é devedora do particular e, por
isso, permanece sempre referida a ele. Perceber sensivelmente significa sempre já ver as
coisas como se as tivéssemos agora bem diante de nós, mesmo quando porventura elas não
estejam aí diretamente presentes.
Seja o que for que esteja no centro do mundo
Deu-me o mundo exterior por exemplo de realidade,
E quando digo “isto é real”, mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.
337
Esta situação persiste inclusive no caso das ciências que portam sobre as coisas sen-
síveis, pois estas estão entre as coisas particulares e exteriores.
338
É por essa razão que Aris-
tóteles não admite, como vimos no capítulo II, que os jovens e inexperientes tenham aulas
de ciência política, ou seja, pelo fato de a referência ao particular ser aqui obrigatória. Mas o
que acontece quando essa referência ao particular não se faz obrigatória para o ato de perce-
ber? Pelo que acima ficou dito, o perceber que não se acha remetido ao particular, mas ao
universal, tem como seu traço principal o poder estar atuante por si mesmo, todas as vezes
que se queira. Por residir, de certo modo, na própria alma
339
, o universal deve poder ser “a-
tualizado” com muito mais facilidade do que a sensação, desde que ele já tenha sido desco-
336
De anima, II, 5, 417 b 24.
337
CAIEIRO, Alberto. Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 135.
338
De anima, II, 5, 417 b 26. o(/ti ta\ ai)sqhta\ tw=n kaq' e(/kasta kai\ tw=n e)/cwqen.
339
Ibid., II, 5, 417 b 23.
181
berto. O universal é mais afim ao conhecimento do que o sensível, que sempre apresenta
uma resistência maior para ser atualizado. Basta lembrar como é muito mais árido descrever
uma sensação ou um sentimento do que descrever um conceito qualquer ou uma figura geo-
métrica.
O conhecimento dispõe do universal por si mesmo, o que não pode ser feito com a
sensação. Esta atualização dispositiva, que permite ao conhecimento soltar-se para si mes-
mo, sem a referência obrigatória a algo de exterior, encontra o seu único limite na vontade
de quem conhece. Na verdade, limitado não é o conhecimento, mas apenas o homem, o qual
não pode manter-se indefinidamente nessa atividade, e acaba desertando desta última.
340
Como se pode ver, há, para Aristóteles, duas formas de impassibilidade: a primeira sensível
e a segunda inteligível. E tal como acontece com a ação e a atividade teórica, é a partir da
experiência dos limites da impassibilidade sensível que Aristóteles apresenta a impassibili-
dade inteligível. Estas são comparadas explicitamente na seguinte passagem:
o(/ti d' ou)x o(moi/a h( a)pa/qeia tou= ai)sqhtikou= kai\ tou= nohtikou=, fanero\n e)pi\
tw=n ai)sqhthri/wn kai\ th=j ai)sqa/nesqai e)k tou= sfo/dra ai)sqhtou=, oi(=on yo/fou
e)k tw=n mega/lwn yo/fwn, ou)d' e)k tw=n i)sxurw=n xrwma/twn kai\ o)smw=n ou)/te
o(ra=n ou)/te o)sma=sqai: a)ll' o( nou=j o(/tan ti noh/sh? sfo/dra nohto/n, ou)x h(=tton
noei= ta\ u(podee/stera, a)lla\ kai\ ma=llon: to\ me\n ga\r ai)sqhtiko\n ou)k a)/neu
sw/matoj, o( de\ xwristo/j. o(/tan d' ou(/twj e(/kasta ge/nhtai w(j e)pisth/mwn
le/getai o( kat' e)ne/rgeian (tou=to de\ sumbai/nei, o(/tan du/nhtai e)nergei=n di'
au(tou=), e)/sti me\n kai \ to/te duna/mei pwj, ou) mh\n o(moi/wj kai\ pri\n maqei=n h)\
eu(rei=n: kai\ au)to\j de\ au(to\n to/te du/natai noei=n.
Que, porém, não são semelhantes a impassibilidade da capacidade sensível e
a da inteligível é manifesto pelos órgãos sensíveis e pela sensação. Pois a
percepção sensível não é capaz de perceber depois de perceber um objeto
sensível muito intenso, como, por exemplo, não é capaz de perceber um ruí-
do depois de perceber ruídos muito grandes, e nem depois de perceber cores
excessivas ou odores, ver alguma cor ou sentir algum cheiro; mas a percep-
ção inteligível, quando ela percebe um inteligível muito intenso, não perce-
340
De anima, III, 4, 430 a 6 e Ética a Nicômacos, VII, 14, 1154 b 21.
182
be menos os inteligíveis inferiores, antes pelo contrário; pois a capacidade
sensível não é sem o corpo, enquanto a percepção inteligível é separada.
Quando, porém, tendo desse modo se tornado cada coisa, como se diz da-
quele que possui a ciência em atividade (isto acontece quando é capaz de es-
tar atuante por si mesmo), então ele também está, de certo modo, em potên-
cia, mas não tal como estava antes de aprender e encontrar. E ele mesmo é
então capaz de se pensar a si mesmo.
341
A impassibilidade dos sentidos é, para Aristóteles, limitada se comparada à impas-
sibilidade da capacidade de perceber teoricamente. Na medida em que comporta sempre
uma alteração do órgão sensível correspondente, a sensação está atrelada à sua capacidade
receptiva, que pode ser comprometida, parcial ou inteiramente, pela intensidade da impres-
são sensível. O paladar é “alterado” pelos sabores, o olfato pelos odores e a visão pela in-
tensidade das cores. Dependendo do impacto da sensação ela pode inclusive danificar ou
até mesmo destruir a capacidade receptiva do órgão.
342
Estas limitações, entretanto, estão
bem longe de comprometerem a percepção sensível, sendo antes essa proporção (lo/goj),
que constitui a própria capacidade receptiva do órgão, um ajuste perfeitamente suficiente
para que haja percepção. Desde que se queira apurar bem o sabor de um vinho, sabe-se
muito bem que este não deve ser servido muito gelado. Também no caso da percepção teó-
rica, há uma suficiência do encontro que possibilita a percepção, só que esta última, dife-
rentemente da percepção sensível, não se acha condicionada a nada que a mantenha dentro
de certos limites prévios. Ao contrário da percepção sensível, a percepção teórica não dis-
põe de nenhum órgão que lhe seja apropriado, e por isso pode ser dita separada do corpo.
343
Por razões naturais, com o declínio do corpo, também a percepção sensível tende a perder o
seu apuro, embora isso não aconteça em todos os casos. Por outro lado, a percepção teórica
não experimenta, por si mesma, qualquer declínio com o passar do tempo, o que não a im-
pede de também ser afetada pelas conseqüências da decadência geral do corpo.
344
Em si
341
De anima, III, 4, 429 a 30.
342
Ibid., II, 12, 424 a 29.
343
Ibid., III, 4, 429 a 25.
344
Ibid., I, 4, 408 b 25. Basta atentar para os entraves que os lapsos de memória podem trazer para a atividade
de pensar.
183
mesma separada, no homem a percepção teórica se revela ser inseparável do corpo e da
sensação.
4.5. O caráter “consciente” da percepção
Até este ponto não há nenhuma diferença mais efetiva entre percepção sensível e in-
teligível. Ambas são impassíveis, mas dependentes, em alguma medida, do corpo, pois
mesmo a percepção sensível, que depende de forma mais direta da alteração dos órgãos, é,
ela mesma irredutível a essa alteração. A diferença realmente decisiva só comparece quan-
do se considera a maneira como ambas atuam e a obra que cada uma realiza. A maneira
como a percepção teórica atua é um “ser capaz de estar atuante por si mesma”, e a obra que
ela realiza é o “perceber-se a si mesma”. A percepção teórica, e apenas ela, pode dispor
livremente de seu percebido, por mais que este se mantenha, de certo modo, em potência.
Isto acontece pelo fato de que a percepção teórica não depende de que algo se apresente
previamente a ela. Aquele que possui uma certa ciência pode atualizar, por si mesmo, o seu
próprio objeto, sem que para tanto este tenha de impor-se-lhe do “exterior”. O geômetra,
por exemplo, se distingue precisamente por ser capaz de “ver” a diagonal sem precisar des-
cobri-la a cada vez. A ciência, uma vez instalada, “produz” autonomamente o seu objeto.
Ela própria nada mais é, em princípio, do que essa produção. Por isso, sempre que o geô-
metra atualiza (produz) a diagonal ele se torna presente para si mesmo nesse mesmo ato, o
que significa dizer que ele se percebe a si mesmo, do mesmo modo que o benfeitor se per-
cebe a si mesmo em atividade na obra. É esse ato de perceber-se, característico da percep-
ção teórica, que Aristóteles chama de “imortalizar”, e que ele entende concernir maxima-
mente a existência humana, pois é somente então que o homem desaparece como ser sensí-
vel (i.é. receptivo) e vive uma vida superior à sua: uma vida de máxima atividade
e...transparência!
Seria um erro imaginar que esse perceber-se a si mesmo tem a mesma natureza e é
da mesma ordem que a reflexividade através da qual um homem toma consciência de si
mesmo, isto é, de suas ações e sentimentos. Semelhante tomada de consciência dá-se sem-
pre mediante uma prévia interrupção da atividade. Não se pode sentir e, ao mesmo tempo,
184
perceber-se sentindo, agir e, ao mesmo tempo, perceber-se agindo. Para termos consciência
de uma determinada ação é preciso, previamente, que cessemos de agir, pois quem age re-
almente não dispõe de nenhum espaço para perceber-se agindo. Mas no caso da percepção
sensível da escuridão, a reflexividade não determina uma interrupção da ação de perceber,
pois é por uma mesma ação que não vemos nada e que vemos que nada vemos. A percep-
ção é a única atividade em que o perceber-se a si mesmo dá-se simultaneamente com a ação
de perceber, pois somente ela não é em ato nenhuma realidade antes (pri/n) de perceber.
345
Em outro contexto, Aristóteles chama essa mesma atividade de “atividade de imobilidade”
(e)ne/rgeia a)kinhsi/aj), o que significa que a percepção teórica não somente não é uma es-
pécie de alteração como também que ela não é desencadeada por nenhuma alteração.
346
Desse modo, não é o homem que se percebe a si mesmo abstendo-se de agir, mas “algo
divino” que se percebe, isto é, que se toma e se retoma a si mesmo enquanto atua. Este
retomar-se, portanto, longe de ser um elemento adjacente à atividade, é a sua própria vida.
Que uma atividade tenha a sua dinâmica interna em um insistente retomar-se a si
mesma faz com que Aristóteles enxergue nisso uma autarquia e uma autonomia incompará-
veis. Algo assim é precisamente o que não acontece com a percepção sensível, pois nela há
sempre uma referência obrigatória a um outro que não ela própria:
ou) ga\r dh\ h(/ g' ai)/sqhsij au)th\ e)auth=j e)sti/n, a)ll' e)/sti ti kai\ e(/teron para\ th\n
ai)/sqhsin, o(\ a)na/gkh pro/teron ei)=nai th=j ai)sqh/sewj
Pois a sensação, sem dúvida, não é sensação de si própria, mas há também algo
outro além da sensação, o qual é necessariamente anterior à sensação.
347
A percepção sensível permanece vinculada a algo exterior de que ela é a percepção,
ela não pode dispor livremente do seu percebido. O que a impede de fazer isso é, em última
instância, segundo Aristóteles, o próprio caráter das coisas sensíveis. Estas, pelo fato mes-
mo de possuírem matéria e serem perecíveis, resistem a serem atualizadas pela percepção.
Nunca é possível chegar a nada de definitivo a seu respeito, de modo que se tornasse pos-
sível repousar nelas por meio de uma definição:
345
De anima, III, 4, 429 a 23 e 429 b 32
346
Ética a Nicômacos, VII, 14, 1154 b 27.
347
Metafísica, IV, 6, 1010 b 35.
185
a)/dhla/ te ga\r ta\ fqeiro/mena toi=j e)/xousi th\n e)pisth/mhn, o(/tan e)k th=j ai)sqh/sewj
a)pe/lqh?, kai\ swzome/nwn tw=n lo/gwn e)n th=? yuxh=? tw=n au)tw=n ou)k e)/stai ou)/te
o(rismo\j e)/ti ou)/te a)po/deicij.
Pois as coisas perecíveis são obscuras para os que possuem a ciência, quando se
distanciam da percepção sensível, e mesmo sendo conservadas na alma as propor-
ções destas não haverá nem definição e nem demonstração.
348
Das sensações somente as suas proporções podem ser conservadas na alma, ou seja,
nos órgãos sensíveis, o que não fornece, de forma alguma, as condições suficientes para
que haja conhecimento (definição e demonstração). As proporções das coisas sensíveis, à
medida que permanecem nos órgãos sensíveis, nunca chegam a se desvincular da percepção
sensível que lhes deu origem, sendo assim impermeáveis ao conhecimento teórico. Da sen-
sação podem resultar ação e opinião, mas não diretamente conhecimento. A respeito da
ação, vimos no capítulo II que ela não admite ser conhecida, mas somente sentida oportu-
namente a partir de uma deliberação conscienciosa que se disponha a recebê-la. Esta sensa-
ção da ação que cumpre realizar é o princípio mesmo da ação do prudente. Quanto à opini-
ão, que também tem por base a sensação, Aristóteles nos diz que ela sempre se faz acompa-
nhar de convicção (pi/stij), não sendo possível formar uma opinião sem que se venha a
acreditar nela imediatamente.
349
Formar uma opinião implica sempre em uma adesão de
nossa parte. Por esse motivo, a opinião, tal como o discurso apofântico, será sempre verda-
deira ou falsa.
350
A opinião volta-se diretamente para a coisa ou estado de coisas de que ela
é a opinião, de modo que sempre se supõe que ele seja assim mesmo como se opina. So-
mente em tal situação algo pode revelar-se outro ou de outro modo do que se acreditava.
Em outras palavras, uma opinião só pode ser ela mesma falsa porque já traz em si uma pre-
tensão de verdade. Da mesma forma, o discurso apofântico, aquele em que algo é afirmado
de alguma coisa, se distingue, por exemplo, de uma pedido (
e)uxh/) por já trazer em si mes-
mo uma pretensão de verdade.
351
348
Metafísica, VII, 15, 1040 a 2.
349
De anima, III, 3, 428 a 20.
350
Ibid., III, 3, 427 b 21.
351
Da interpretação, 4, 17 a 1.
186
4.6. A imaginação, sentido da distância
A sensação possui, invariavelmente, um caráter impositivo, que se revela na ação e
na opinião, mas que é maximamente estranho à percepção teórica e ao conhecimento. Algo
diverso, no entanto, acontece com as imagens ou representações (
fantasi/ai) que se consti-
tuem a partir das sensações, pois se não está à nossa disposição formar uma opinião
(doca/cein d' ou)k e)f' h(mi=n), pelo fato de não podermos acreditar no que bem entendermos,
podemos perfeitamente nos colocar a imaginar tão logo queiramos.
352
Além disso, o ato de
imaginar, ao contrário do de opinar, não implica a nossa adesão imediata ao que foi imagi-
nado. A imaginação, embora resulte da atividade dos sentidos, neutraliza, de alguma forma,
o impacto da sensação. Em si mesma, ela não é falsa ou verdadeira, embora, para Aristóte-
les, na maior parte das vezes elas se verifiquem falsas.
353
Enquanto tão somente imagina-
mos, não supomos, em absoluto, a existência do que é por nós imaginado. Por isso, mesmo
diante dos quadros mais terríveis e dos filmes mais sangrentos podemos permanecer perfei-
tamente impassíveis. A imaginação, por si só, não nos faz sofrer nenhum abalo “real”. O
único abalo que, imaginando, podemos experimentar será aquele que nós mesmos nos con-
cedermos.
354
Essa distância que separa aquele que imagina da sensação em ato, se não é
capaz de descolar a imagem da sensação, cria, não obstante, o espaço livre para que se
constitua uma suposição (u(po/lhyij), seja ela opinião ou pensamento.
355
Para Aristóteles, no entanto, a imaginação não possui, por si mesma, qualquer valor
positivo; tudo o que nela há de positivo está no fato de que ela intermedeia e assim prepara
as condições para a opinião verdadeira e para o pensamento. Sem que a imaginação abrisse,
naturalmente, um hiato entre o que aparece e o que aparece, não haveria espaço seja para
352
De anima, III, 3, 427 b 18.
353
Ibid., III, 3, 428 a 12.
354
Um dos elementos centrais das tragédias é, segundo nos diz Aristóteles no Cap. VI de sua Poética (1449 b
23), a purgação (ka/qarsij) de certas emoções, mais precisamente, da piedade e do temor. Essa purgação,
que Aristóteles faz entrar na própria definição da tragédia, acontece quando nos permitimos sentir medo e
piedade dentro do espaço delimitado da apresentação cênica. Não fosse essa distância, própria da imaginação,
e o temor e a piedade, ao invés de serem purificados, seriam, na verdade, exacerbados, e em lugar de purifica-
ção teríamos insensibilidade ou desespero.
355
Ibid., III, 3, 427 b 16.
187
opinião seja para o pensamento. Daí que seu estatuto seja essencialmente ambíguo, pois o
que há nela de mais positivo é justo o fato de ela nos induzir ao erro. Quem quiser realmen-
te chegar ao pensamento deve aprender primeiro a desconfiar daquilo que a imaginação lhe
oferece. Por outro lado, tampouco pode pensar ou mesmo agir, ao menos tal como age o
prudente, aquele que não tem a menor disposição para fantasiar: “quem mói no aspro não
fantaseia”(Guimarães Rosa). A imagem traz sempre consigo o caráter de possível e possi-
bilidade.
Para pensar, para agir ou simplesmente para opinar temos de assentir em algo que
ainda não é real. Este assentir não se configura como uma convicção, mas antes como um
livre admitir. Semelhante disponibilidade é aquilo mesmo que antes vínhamos caracteri-
zando como liberdade para aprender.
Aristóteles, não obstante, interpreta a origem da imagem que é fonte de erro como
uma certa insuficiência presente na própria sensação. Não fosse, por exemplo, a distância
do objeto sensível relativamente a nós e a imaginação nem sequer teria ocasião de nos in-
duzir ao erro, sendo a própria sensação verdadeira e suficiente:
e)/peit' ou)de\ le/gomen, o(/tan e)nergw=men a)kribw=j peri\ to\ ai)sqhto/n, o(/ti fai/netai
tou=to h(mi=n a)/nqrwpoj: a)lla\ ma=llon o(/tan mh\ e)nargw=j ai)sqanw/meqa.
Não é quando nós ativamos nossos sentidos com precisão sobre o sensível
que nós dizemos que isto nos parece ser um homem, mas antes quando não
percebemos de modo suficientemente claro.
356
A sensação dos sensíveis próprios é sempre verdadeira ou não comporta senão mi-
nimamente o erro. Este já se torna efetivamente possível quando se trata de julgar se o
branco (próprio) é isto ou aquilo. Mas é sobretudo relativamente aos chamados sensíveis
comuns (grandeza, movimento) que costumamos no mais das vezes nos iludir, tanto mais
se o objeto sensível estiver distante de nós seja no espaço seja no tempo. Em todos esses
casos, porém, em que há erro no âmbito das sensações, este erro não é voluntário. Ele é
antes fruto de uma distração ou de condições precárias de percepção sensível. Daí Aristóte-
356
De anima, III, 3, 428 a 13.
188
les lançar mão do verbo a)pathqh=nai( ser traído, iludir-se) quando se refere a esse tipo de
erro.
O erro só se torna algo grave e pleno de conseqüências quando ele é voluntário, pois
é aqui que o homem se torna propriamente responsável pelo erro. A imagem, por ser persis-
tente e assemelhar-se à sensação, seduz para que pautemos por ela as nossas ações, o que
acontece à nossa inteira revelia. Mas logo que nos deixamos seduzir e agimos em confor-
midade com ela, como se ela fosse sensação, nisso mesmo nós erramos e nos tornamos
responsáveis pelo erro, pois agir assim é aqui o próprio erro. Os animais não dispõem de
nou=j e por isso não podem errar quando se conduzem de acordo com as imagens, o que
fazem regularmente. Já o homem, pelo contrário, só age determinado pelas imagens quando
o nou=j se obscurece temporariamente, sob o efeito do sono, da doença ou da paixão.
357
Para
Aristóteles, a distinção humana está em que somente o homem pode errar, ao passo que os
demais animais, todos eles desprovidos de lo/goj, estão por princípio isentos dessa possibi-
lidade.
358
Os animais, portanto, também são freqüentados por imagens, mas neles essas ima-
gens não podem conduzir ao erro. É que no caso dos animais as imagens não distam das
sensações a ponto de poderem ser percebidas como imagens. Somente o homem pode pro-
priamente ver uma imagem, isto é, ser num modo de ser que lhe é correspondente. Mas o
que aqui significa ver uma imagem como imagem senão perceber-admitir algo que não está
aí diretamente presente? A própria fala não é em si mesma um tornar presente o que está
ausente? Como ela poderia ser isso a não ser também por intermédio da imagem?
Para Aristóteles, no entanto, esta situação mais afasta do que confia o homem à obra
que é a sua. O que as imagens proporcionam por si mesmas é apenas a possibilidade do
erro. O homem, sem dúvida, se distingue dos animais pelo fato de que somente ele pode
errar, mas isso significa apenas que ele deve procurar sem cessar o estado contrário ao erro.
Em outras palavras, o poder errar só se torna algo positivo em vista do poder acertar.
Ver uma imagem como imagem, admiti-la, só é possível se, de algum modo, nós
não somos diretamente afetados por ela. A imaginação é, de certa forma, um sentido da
distância. Sem ela não há erro propriamente dito, mas tampouco pode haver acerto. Sendo
357
De anima, III, 3, 429 a 5.
358
Ibid., III, 3, 427 b 13.
189
desencadeada pelos sentidos em atividade, a imaginação ao mesmo tempo que distancia o
objeto sensível o aproxima da consideração pensante. Por diversas vezes, Aristóteles vincu-
la decisivamente o pensamento à imaginação, como quando afirma que jamais a alma pode
pensar sem imagens.
359
Ambos, na verdade, são devedores da atividade dos sentidos, mas
tanto a percepção teórica quanto a percepção do extremo na ação seriam impossíveis sem a
prévia estabilização da sensação na imagem.
360
Ao contrário, portanto, dos animais, para os
quais as imagens assumem de imediato o lugar das sensações, no homem elas já se dispõem
a serem assumidas em um certo comportamento deliberado. O homem não se relaciona
primeiro de modo puramente sensível com as imagens para somente depois “neutralizá-las”
pelo pensamento. As próprias imagens, nele, não são tão só e unicamente sensíveis, mas já
a oportunidade para determinadas ações. A fim de marcar essa diferença, Aristóteles chega
a delimitar duas espécies de imagens: uma sensitiva (ai)sqhtikh/) e outra ponderativa
(logistikh/).
361
Somente esta última espécie de imagem concerne propriamente ao homem
enquanto homem.
Aristóteles afirma a certa altura que “para a alma pensante as imagens subsistem tal
qual as sensações.
362
Com isso, não se está dizendo que se possa ver uma imagem da
mesma forma que se é afetado diretamente pelos objetos sensíveis, ou seja, por intermédio
dos órgãos sensíveis. O “tal como” aproxima e, ao mesmo tempo, separa as imagens das
sensações. Imagem não é sensação, mas é como se fosse.... Perceber uma imagem significa
recebê-la, de alguma forma, “do exterior”, tal como os sentidos recebem as impressões sen-
síveis. “Exemplo de realidade”, diria Alberto Caieiro, as imagens, mesmo sem possuírem o
caráter tantas vezes impositivo das sensações, dispõem a alma a certas inclinações. Essa
movimentação espontânea da alma permite, por sua vez, que se delibere acerca de uma a-
ção ou de um comportamento.
363
O decisivo aqui é notar que as imagens não são, para A-
ristóteles, construções subjetivas aleatórias, o que nós chamamos de “fantasias”, mas o mo-
do como a alma pensante acede imediatamente àquilo que é. Apenas atentando e atendo-se
359
De anima, III, 7, 431 a 17. dio\ ou)de/pote noei= a)/neu fanta/smatoj h( yuxh/.
360
Ibid., III, 8, 432 a 7.
361
Ibid., III, 9, 433 b 30.
362
Ibid., III, 7, 431 a 14. th=? de\ dianohtikh=? yuxh=? ta\\ fanta/smata oi(=on ai)sqh/mata u(pa/rxei.
363
Retórica, II, 5, 1383 a 6.
o( ga\r fo/boj bouleutikou\j poiei=, kai/toi ou)dei\j bouleu/etai peri\ tw=n a)nelpi/stwn (Pois o
medo faz os que deliberam, ao passo que ninguém delibera acerca daquelas coisas que já não prometem mais
nada.)
190
às imagens o pensamento pode captar o real assim mesmo como ele é e se dá a ver, nos
vindo ao encontro.
364
Que as imagens não sejam apenas “imagens”, mas carreguem consigo certa tendên-
cia de ver e considerar o que se apresenta, sabem-no os oradores de todos os tempos. Em
sua Retórica, Aristóteles chama a atenção para o fato de que o bom orador deve ser capaz,
antes de mais nada, de inclinar a sua audiência para certas disposições, caso queira tornar-
se persuasivo. Assim, por exemplo, quando se deseja acalmar o auditório a respeito de al-
guém, deve-se fazê-lo aparecer como sendo digno de temor, de respeito ou de consideração,
em virtude de algum benefício que este tenha feito; ou então como alguém que agiu contra
a sua vontade e se encontra sinceramente arrependido. É que tão logo vislumbremos uma
dessas imagens, naturalmente arrefece em nós a cólera a seu respeito.
365
Tão logo sejam vislumbradas, as imagens despertam um movimento espontâneo na
alma, o qual já não pode ser simplesmente anulado. Esse movimento, entretanto, diferente-
mente do que acontece com a alteração dos órgãos sensíveis, exige uma colaboração de
nossa parte. Sem a nossa participação, a imagem não pode nos inclinar a uma certa disposi-
ção; nós mesmos devemos ter permitido que ela se apresentasse. Nesta medida, a imagem,
para ser vista, exige que nós nos voltemos para ela de um modo especial. Ninguém pode
ver uma imagem como imagem apenas sendo afetado sensivelmente. Para tanto é indispen-
sável que este se disponha a recebê-la. É o que se pode ver claramente na seguinte passa-
gem:
Ta\ me\n ou)=n ei)/dh to\ nohtiko\n e)n toi=j fanta/smasi noei=, kai\ w(j e)n e)kei/noij
w(/ristai au)tw=? to\ diwkto\n kai\ feukto/n, kai\ e)kto\j th=j ai)sqh/sewj, o(/tan e)pi\
tw=n fantasma/twn h)=?, kinei=tai, oi(=on aisqano/menoj to\n frukto\n o9/ti pu=r, th=?
koinh=? gnwri/zei, o(rw=n kinou/menon, o(/ti pole/mioj.
A faculdade de perceber percebe as formas nas imagens, e como nas formas
está determinado para ela o que se deve buscar ou evitar, ela se move mes-
mo fora da sensação, quando ela se volta para as imagens. Por exemplo,
364
Segundo a etimologia apresentada pelo próprio Aristóteles, fantasi/a remonta a fa/oj: luz. (De anima,
III, 3, 429 a 3).
365
Retórica, II, 3, 1380 b 30.
191
tendo percebido a tocha, que os sentidos dizem ser fogo, conhece, por aquilo
que é comum, ao vê-la movendo-se, que há um inimigo.
366
Ao perceber a tocha movendo-se, a alma pensante experimenta também um certo
movimento. Este movimento não é disparado diretamente por uma alteração no órgão sen-
sível. Não se trata de uma alteração, mas antes, como vimos, de uma “passagem para o
mesmo e para nossa natureza”, que acontece justamente quando nós nos voltamos para as
imagens. Pois aquilo que nelas nós reconhecemos é o que nós propriamente já precisamos
ter conosco: as formas. Estas, no entanto, só vêm a ser descobertas nas imagens, o que exi-
ge uma disponibilidade prévia para recebê-las. A imaginação não é nem apenas sensível e
nem apenas inteligível, mas algo comum, e que , por isso, não se deixa localizar em ne-
nhuma parte da alma.
367
Mas de volta ao exemplo... Num acampamento militar, à noite, vê-se ao longe uma
tocha em movimento. Trata-se, sem dúvida, neste caso, de uma percepção sensível, mas
aqui não é este tipo de percepção que está em causa. Trata-se antes da percepção de uma
imagem como imagem. Vendo a tocha movimentar-se ao longe o soldado sente a presença
do inimigo. Pode-se até dizer que só quando o soldado sente a presença do inimigo ele viu
o que ali havia para ver. Sentir o sentido, porém, não significa apenas captá-lo, significa,
antes, despertar para ele. Assim, o soldado que vê ao longe a tocha movimentar-se só a vê
propriamente quando se reconhece como soldado à espera do inimigo. Ora, isto é o que não
precisa necessariamente acontecer pela simples capacidade de captar o sinal. Ver a tocha e
reconhecer-se soldado fazem um, trata-se de um único acontecimento irredutível à simples
apreensão do sinal. Na verdade, a tocha em movimento não é então um sinal da presença do
inimigo, a tocha em movimento é aqui a própria presença do inimigo!
Na tocha em movimento, portanto, percebe-se a própria presença do inimigo. Mes-
mo não sendo ainda diretamente perceptível, o inimigo já se encontra ali presente no apron-
tar-se do soldado, talvez para detê-lo. Este perceber como um preparar-se para algo só se
concretiza a partir de uma inserção prévia que já se sintonizou com o modo de ser disso que
366
De anima, III, 7, 431 b 2.
367
Ibid., III, 8, 432 b 1.
e)/ti de\ to\ fantastiko/n, o(\ tw=? me\n ei)=nai pa/ntwn e(/teron, tini\ de\ tou/twn tau)to\n h)\ e(/teron, e)/xei
pollh\n a)pori/an, ei)/ tij qh/sei kexwrisme/na mo/ria th=j yuxh=j.
192
se vai perceber. A imaginação aqui não se distingue em nada da própria percepção, pois é
atendo-se à imagem que se chega a perceber a presença do inimigo. O soldado não imagina
(figura para si) primeiro o inimigo para somente depois, a partir de uma reflexão, preparar-
se para recebê-lo. Todavia, não fosse a disponibilidade prévia do soldado para receber o
inimigo e este não teria condições de apresentar-se a partir de si mesmo na imagem. Al-
guém que não fosse soldado e que não estivesse à espera de nenhum inimigo, poderia até
entender o sinal, se este lhe fosse indicado, mas não poderia percebê-lo tal como o soldado
o percebe. Para tanto, seria preciso colocar-se na situação ou na “pele” do soldado.
368
O soldado pode, perfeitamente, tão logo queira, imaginar um inimigo e aprontar-se
para recebê-lo. Em outra coisa não consistem seus treinamentos. Mas isso não significa que
ele possa, de fato, pôr-se em presença do inimigo tão logo queira. A atualização da forma
que depende de um ater-se à imagem não é nunca capaz disso, pois permanece presa à sen-
sação. Por isso, igualmente, alguém que jamais tenha sido soldado não pode saber o que é
um inimigo por intermédio de alguma definição ou ensinamento. Todo saber dependente da
doação do particular não pode jamais ultrapassar o remetimento a uma sensação, pois so-
mente a sensação dá acesso ao que deve ser feito particularmente, e este é o objeto da ação
e da produção. No entanto, esta sensação não é a dos sensíveis próprios e nem tampouco a
dos sensíveis comuns (aquelas que são percebidas juntamente com os sensíveis próprios),
mas sensação do que é extremo: nou=j.
369
Ao contrário das anteriores, esta última sensação é
incapaz de impor-se diretamente sem qualquer colaboração de nossa parte. A sensação aqui
necessita do espaço livre que a imagem (ponderativa) abre por si mesma.
Por tudo o que foi dito a respeito da imagem, podemos, por fim, admitir que não é
sem mais a imagem que Aristóteles considera ser, na maioria das vezes, fonte de erro. Tal
ela só se torna quando nós nos deixamos seduzir por sua semelhança com a sensação, o que
acontece todas as vezes que nos eximimos de assumir um comportamento deliberado que a
própria imagem traz consigo enquanto possível. A imagem então se apresenta tal como se
ela fosse diretamente sentida. Em virtude do fato de a maioria dos homens se deixar arrastar
pelo prazer imediato, como vimos no capítulo III, a imagem revela-se então, na maioria das
368
Aristóteles chega a dizer na Retórica (1377 b 31)que as coisas não se mostram as mesmas para os que
amam e para os que odeiam, nem para os possuídos pela cólera e para os tranqüilos, mas ou são inteiramente
diversas ou diferentes segundo a sua importância.
369
Ética a Nicômacos, VI, 8, 1142 a 24 e VI, 11, 1143 a 36.
193
vezes, falsa. E falsa, primeiramente, por encobrir a necessidade de ser assumida de forma
deliberada, pois o prazer imediato parece, a quem procede desse modo, ao mesmo tempo,
bom e pura e simplesmente agradável.
370
Ao contrário deste, o prudente se caracteriza pre-
cisamente por “ponderar e deliberar as coisas futuras em vista das presentes e por ater-se
às imagens ou aos pensamentos que estão na alma tal como (w(/sper) se os estivesse ven-
do.”
371
Assim, é por conseguir ver as coisas futuras em vista das presentes, e não o presente
em vista do futuro, que o prudente é prudente! As imagens só retiram o homem de seu re-
metimento ao presente quando passam a ocupar o lugar da sensação. Por outro lado, tam-
pouco seria possível assumir esse remetimento caso nele não se percebesse algo para além
dele próprio apenas. O presente já é ele próprio uma tensão entre o que se dá como sensa-
ção e o que se abre a partir dela como possibilidade. O presente é enquanto possível e não
enquanto um simples dado material.
4.7. A receptividade inteligível: o
nou=j
da alma
Como vimos antes, a impassibilidade sensível difere da impassibilidade noética pelo
fato de que a primeira se vincula necessariamente a uma alteração do órgão sensível, e tam-
bém pelo fato, estrutural, de que ela permanece atada à doação do particular. A própria i-
magem nunca chega a se destacar inteiramente da sensação, podendo, inclusive, tomar-lhe
o lugar. Mas e quanto à impassibilidade noética, também nela não se dá algo como um so-
frer uma afecção (
to\ pa/sxein)?
Aristóteles havia distinguido duas espécies de afecção: uma na qual se padece a des-
truição pelo efeito contrário, e outra, bastante diversa, pela qual o ente que está em potência
é salvo pelo ente que está em realização e que, além do mais, lhe é semelhante e afim. Esta
última forma de alteração foi então caracterizada como uma mudança para os estados e para
nossa própria natureza e distinguida da mudança para disposições de que estamos privados.
Há, portanto, uma espécie de afecção e de alteração que não se dissipa imediatamente, mas
370
De anima, III, 10, 433 b 9.
371
Ibid., III, 7, 431 b 6.
o(te\ de\ toi=j e)n th=? yuxh=? fanta/smasin h)\ noh/masin w(/sper o(rw=n logi/zetai kai\ bouleu/etai
ta\ me/llonta pro\j ta\ paro/nta.
194
que acaba sendo incorporada como um estado durável. Este é o caso de quando aprendemos
uma certa “ciência”. Uma ciência não é nada que se possua à partida, devendo assim ser
aprendida. Tão logo, porém, a tenhamos aprendido e ela se torna, de imediato, algo cons-
tante e familiar, que podemos perfeitamente lançar mão, tal como de um instrumento que
soubéssemos empregar. Toda ciência, em princípio, deve ser aprendida.
Se não há nenhuma espécie de “inatismo” e se a ciência, também ela, tal como as
sensações, deve ser recebida
372
, então deve-se pressupor a existência de algum princípio
que seja capaz de recebê-la. É o que faz Aristóteles ao postular a existência de uma “sede”
ou lugar das formas (to/pon ei)dw=n). Uma ciência jamais poderia ser aprendida caso nós não
pudéssemos, primeiro, recepcioná-la nós mesmos. Como, porém, ocorre essa recepção e
qual o caráter desse receptáculo da forma (dektiko\n tou= ei)/douj)
373
, uma vez que nós não
dispomos de nenhum órgão para receber as ciências?
Tudo o que Aristóteles consegue dizer a esse respeito ele o faz com base em uma
analogia com a sensação. Este receptáculo da forma, nos diz ele, deve ser em potência esta
e ser-lhe semelhante, embora não seja esta. Além disso, “a relação da percepção para com
as coisas por ela percebidas deve ser tal como a relação da faculdade sensível para com as
coisas sensíveis.”
374
E Aristóteles cita Anaxágoras para dizer que “a percepção deve perce-
ber tudo e ser sem mistura (a)migh=)), a fim de poder dominar e assim conhecer.”
375
Sendo
sem mistura, ela também não deve possuir qualquer natureza própria e específica, além
daquela de ser um possível (dunato/n), pois o que é estrangeiro se interpõe e impede que
algo se faça ver.
376
A percepção seria em tudo semelhante à sensação não fosse por um único motivo: a
sensação, ao contrário do conhecimento teórico, jamais se identifica plenamente com aquilo
de que ela é a sensação. Entre o sensível e a sensação há sempre a interposição do órgão
sensível, o que impede a perfeita assimilação do primeiro pela segunda. O sensível, como
vimos antes, resiste a ser conhecido, ele não se deixa simplesmente dominar pela atualiza-
ção que tem lugar na sensação. Entre a sensação e o sensível dá-se sempre um intervalo
372
De anima, III, 4, 429 a 28.
373
Ibid., III, 4, 429 a 15.
374
Ibid., III, 4, 429 a 17. w(/sper to\ ai)sqhtiko\n pro\j ta\ ai)sqhta/, ou(/tw to\n nou=n pro\j ta\ nohta/.
375
Ibid., III, 4, 429 a 18.
376
Ibid., III, 4, 429 a 20.
195
intransponível gerado pela alteração do órgão. Esse intervalo é precisamente o que não se
experimenta quando se conhece teoricamente algo. O conhecimento teórico, tal como o
sensível, também precisa ser recebido, mas essa recepção não situa o conhecido como algo
exterior e independente do conhecimento. A atividade de conhecer teoricamente se assimila
por completo ao seu conhecido, sem deixar qualquer “resto”.
377
Segundo Aristóteles, isto
se deve ao fato de que o “nou=j da alma” não é, em ato, nenhum dos entes antes de perce-
ber.
378
Uma vez, porém, tendo percebido ou pensado algo: um ente, esse pensamento ou
percepção é como que incorporado, gerando uma potencialidade segunda. Esta segunda
potencialidade é então propícia a ser atualizada por aquele que conhece, tão logo este assim
o queira, encontrando-se disponível para tanto.
O conhecimento sensível revela a sua limitação à medida que permanece sempre
vinculado decisivamente à sensação que lhe deu origem, não podendo descolar-se dela. Por
isso, na ausência de uma sensação, é toda uma ciência que, segundo Aristóteles, desaparece
irremediavelmente, já que ela não poderia ser aprendida nem por indução e nem por de-
monstração.
379
Tal como acontece com a atividade teórica em relação à ação, aqui também
é uma certa limitação descoberta no conhecimento sensível o que abre caminho para o co-
nhecimento teórico.
O “nou=j da alma” não é, à partida, senão um puro possível, que só passará à potên-
cia segunda à medida que um conhecimento em ato for nele impresso ou implantado. Ao
contrário da sensação, a espontaneidade da percepção teórica precisa ser “ativada” por um
querer. Como puro possível, ele não teria condições de passar por si mesmo à potencialida-
de segunda do conhecimento adquirido. Aristóteles só pode descrever esse puro possível
que seria originalmente a percepção através de uma imagem tomada de empréstimo da ci-
ência da escrita mencionada por ele anteriormente. A percepção como um puro possível
seria tal como um quadro ou uma tabuleta onde nada se encontra atualmente escrito.
380
Isto
significa que o “
nou=j da alma” seria, de início, apenas um suporte passivo, uma “tabula
377
De anima, III, 4, 430 a 2. kai\ au)to\j de\ nohto/j e)stin w(/sper ta\ nohta/.
378
Ibid., III, 4, 429 a 22.
o( a)/ra kalou/menos th=j yuxh=j nou=j ou)qe/n e)stin e)nergei/a? tw=n o)/ntwn pri\n noei=n.
379
Analíticos Posteriores, I, 18, 81 a 38.
Fanero\n de\ kai\ o(/ti, ei)/ tij ai)/sqhsij e)kle/loipen, a)na/gkh kai\ e)pisth/mhn tina\ e)kleloipe/n,
h(\n a)du/naton labei=n, ei)/per manqa/nomen h)\ e)pagwgh=? h)\ a)podei/cei...
380
De anima, III, 4, 430 a 1.
196
rasa”, que só se tornaria algo efetivo à medida que um conhecimento pudesse inscrever-se
nele. É preciso lembrar, por contraste, que a percepção sensível já é, por si mesma, uma
certa proporção (
lo/goj), e somente por isso ela pode perceber o sensível que lhe é corres-
pondente.
Com essa caracterização da percepção como um puro possível Aristóteles quer mar-
car a sua singularidade e estranheza em relação aos outros gêneros de alma: o gênero sensi-
tivo, o vegetativo e o do movimento, pois todas as demais espécies de alma são vigentes
desde o início, não precisando serem “ativadas” para só então entrarem em vigor. Também
a prudência, como vimos no capítulo III, por mais que ninguém nasça prudente, só se tor-
nando tal à medida que praticar ações nobilitantes, não é, originalmente, para Aristóteles,
um puro possível, mas um sentido especial que o homem chega mesmo a compartilhar com
outros animais. Somente o nou=j teórico se configura, de fato, para Aristóteles, como “um
outro gênero de alma”, o qual unicamente poderia ser dito separado, “tal como o eterno é
dito separado do corruptível”.
381
4.8. A postulação ou teoria dos dois intelectos
382
Renunciamos aqui a todas as especulações em torno da origem desse outro gênero
de alma, que, em outro lugar, Aristóteles afirma ser o único a vir de fora (qu/raqen)
383
, e nos
concentraremos no problema de saber como um suporte passivo e indeterminado (a)paqh/)
pode chegar a adquirir uma determinação, a ponto de se tornar inteiramente suscetível de
ser atualizado. A resposta de Aristóteles a esse problema será a famosa teoria ou postulação
dos “dois intelectos”, que de pronto torna-se objeto dileto de consideração dos comentado-
res antigos, como Teofrasto, Alexandre de Afrodísia e Temístio, mas que receberá contor-
nos dramáticos no século XIII, na polêmica que S. Tomás de Aquino trava com os árabes,
381
Ibid., II, 2, 413 b 25.
382
Resolvemos manter, neste e no próximo parágrafo, a tradução mais tradicional de nou=j por intelecto. Des-
se modo, esperamos evitar a confusão, que seria inevitável, entre duas traduções para o mesmo termo, já que
não podemos deixar de referi-lo no modo como a tradição o recolheu e interpretou.
383
Da geração dos animais, II, 3, 736 b 28. Marcel de Corte reserva todo um capítulo (XII) de seu livro sobre
o nou=j em Aristóteles à discussão desse problema no âmbito da biologia e embriologia aristotélicas. Para ele,
o nou=j viria do exterior “pelo veículo do esperma ejaculado pelo macho”. DE CORTE, M. La Doctrine de
l’Intelligence chez Aristote. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1934, p. 108.
197
notadamente Averróis, e com o averroísmo latino de Siger de Brabante. Mais adiante cuida-
remos da recepção dessa teoria. Por ora, trataremos da “teoria dos dois intelectos” unica-
mente em função do problema que lhe deu origem.
Segundo nos diz Aristóteles, a mesma dualidade que se encontra por toda a parte na
natureza: a dualidade que apresenta um princípio produtor e um outro receptor e de ordem
material, o qual se deixa moldar pelo primeiro, deve estar presente também na alma. Assim,
da mesma forma que a arte opera em relação à matéria, transformando-a e fazendo com que
a sua potencialidade apareça, como ela mesma, na efetividade da forma produzida, também
deve subsistir na alma um princípio que faça aparecer, por sua atividade, configurações que
antes só existiam nela de modo potencial. A alma que está em questão aqui é a inteligível
ou noética, se bem que todo gênero de alma supõe e articula os outros gêneros mais funda-
mentais. Esta alma noética apresenta, portanto, uma dualidade de funções que, desdobrada
por Aristóteles, se resolve em dois “intelectos” distintos, caracterizados por ele da seguinte
maneira:
kai\ e)/sti o( me\n toiou=toj nou=j tw=? pa/nta gi/nesqai, o( de\ tw=? pa/nta poiei=n, w(j e(/cij
tij, oi(=on fw=j: tro/pon ga\r tina kai\ to\ fw=j poiei= ta\ duna/mei o)/nta xrw/mata
e)nergei/a? xrw/mata. kai\ ou(=toj o( nou=j xwristo\j kai\ a)paqh\j kai\ a)migh\j th=?
ou)si/a? w)\n e)nergei/a?.
Há assim, por um lado, o referido intelecto que vem a ser todas as coisas, e, por
outro lado, aquele que produz todas as coisas, como um certo estado ou disposi-
ção semelhante à luz; pois, de certa maneira, também a luz faz as cores que são
em potência passarem a cores em ato. E este último é o intelecto separado, im-
passível e sem mistura, o qual se encontra, por essência, em atividade.
384
Dos dois “intelectos” mencionados por Aristóteles, somente um deles, o produtor,
encontra-se essencialmente em atividade. Quanto ao outro “intelecto”, chamado por ele,
logo abaixo do trecho citado, de paqhtiko/j, este não só não se acha essencialmente em ati-
vidade, como também não pode ser dito separado, impassível e sem mistura. Isto não signi-
fica que esse “intelecto receptivo” possua todas as características contrárias ao “intelecto
384
De anima, III, 5, 430 a 14.
198
produtor”, significa apenas que ora ele se deixa e ora ele não se deixa ver como uma reali-
dade a parte. Como vimos, precisamente esta é a situação da imaginação que, segundo A-
ristóteles, não pode ser localizada seja na parte sensível seja na parte inteligível da alma.
O caráter indeterminado do “intelecto receptivo”, que não permite ser dito simples-
mente separado da sensação, aparece com clareza na seguinte passagem:
to\ sarki\ ei)=nai kai\ sa/rka h)\ a)/llw? h)\ a)/llwj e)/xonti kri/nei: h( ga\r sa/rc ou)k a)/neu
th=j u(/lhj, a)ll' w(/sper to\ simo\n to/de e)n tw?de. tw+/? me\n ou)=n ai)sqhtikw=? to\ qermo\n
kai\ to\ yuxro\n kri/nei, kai\ w(=n lo/goj tij h( sa/rc: a)/llw? de \ h)/toi xwristw=? h)\ w(j h(
keklasme/nh e)/xei pro\j au(th\n o(/tan e)ktaqh=?, to\ sarki\ ei)=nai kri/nei.
Julga-se a carne e o ser carne seja por uma outra instância seja pela mesma ins-
tância disposta diferentemente; pois a carne não é sem a matéria, mas como o
nariz adunco: algo determinado em algo determinado. Pela faculdade sensível
julga-se o quente e o frio, e desses a carne é uma certa proporção (lo/goj), mas
por uma outra instância, seja separada seja disposta diferentemente, julga-se o
ser carne, tal como a linha partida em relação a ela mesma, quando é esticada.
385
Não há, portanto, como estabelecer que o “intelecto receptivo” seja uma instância à
parte e separada, pois a cada vez ele também se identifica com a sensação, podendo perfei-
tamente dizer-se que é apenas a faculdade sensível que, disposta diferentemente, julga acer-
ca do ser de alguma coisa que não é sem a matéria. Todavia, assim mesmo, o julgamento é
inconfundível, pois não é de maneira idêntica que se julga acerca de algo e acerca do ser
desse algo. No exemplo de Aristóteles, jamais teríamos a idéia de esticar (imaginar estica-
da) uma linha partida se a olhássemos apenas com os olhos dos sentidos.
Em toda percepção na qual também deve ocorrer sensação, não se pode separar, em
caráter definitivo, o sensível do inteligível. Isto no fundo quer dizer que jamais se chega a
atingir aquela potencialidade segunda, própria do conhecimento teórico, ali onde o que se
dá primeiramente é recepção ou percepção sensível. A potencialidade segunda só é alcan-
çada quando ela é, desde o início, produzida pelo “intelecto produtor” a partir unicamente
de si mesmo. É então que a forma inteligível ou o conhecimento pode ser impresso, defini-
385
De anima, III, 4, 429 b 13.
199
tivamente, naquela “tabula rasa”, que é o nou=j enquanto puro possível, ficando desde então
disponível para ser atualizado tão logo se queira.
Aristóteles está supondo uma espontaneidade do “intelecto produtor” da qual o
nou=j da alma” certamente participa, mas que ele não consegue manter indefinidamente.
386
Esse puro estar em atividade, que não pode ora estar e ora não estar em atividade
387
, é o
próprio nou=j divino, que se ocupa continuamente apenas consigo mesmo. Trata-se daquela
atividade que no capitulo anterior vimos caracterizada por Aristóteles como sendo de todas
a mais prazerosa. Deus ele mesmo, caso ele seja essencialmente “intelecto produtor”
388
,
conhece também ele uma forma de potencialidade: não, sem dúvida, o possível da “tabula
rasa” que é originalmente o homem, mas a potencialidade segunda típica do conhecimento
teórico (movimento de imobilidade). Daí que também esteja ao alcance do homem imorta-
lizar, ainda que não indefinidamente, tal como Deus imortaliza.
389
Permanece, contudo, o problema de saber como a potencialidade segunda poderia
ser produzida e impressa na alma humana diretamente pelo “intelecto produtor” sem passar
pela intermediação dos sentidos e do modo de recepção do inteligível que agora podemos
chamar de “sensível”. De algum modo, também o “inteligível” ou “universal” deve ser
primeiro recebido para poder tornar-se disponível. No caso em que a recepção do universal
ocorre simultaneamente com a sensação, temos o que Aristóteles chama de indução ou
e)pagwgh/. Esta, como vimos, parte sempre dos casos individuais e assim da experiência. O
universal obtido por seu intermédio não é nunca uma disponibilidade que possamos sim-
plesmente atualizar e repousar nela, tão logo queiramos, mas um saber que permanece ex-
386
De anima, III, 4, 430 a 6. tou= de\ mh\ a)ei\ noe=in to\ ai)/tion e)piskepte/on.
387
Ibid., III, 4, 430 a 22.
388
Metafísica, XII, 7, 1072 b 19.
389
Também em Kant encontramos a suposição de uma pura espontaneidade, só que para ele essa espontanei-
dade é criada pela razão em função de uma necessidade interna sua. Como, segundo Kant, faz parte da razão
uma “lei geral” que também regula a própria possibilidade da experiência, segundo a qual tudo o que sucede
deve possuir uma causa, também a causalidade, como algo que surgiu, deve possuir uma causa. A causa da
causalidade (natural) é, por sua vez, uma idéia transcendental: a idéia da liberdade ou de um puro começo a
partir de si. Segundo Kant, porém, diferentemente do que acontece em Aristóteles, não é a atividade teórica
que se funda nessa “idéia transcendental”, sendo uma modalidade do seu exercício, mas o conceito prático de
liberdade como autonomia. Para Kant, mesmo a atividade de pensar, que é distinta da atividade de conhecer,
é uma atividade fundamentalmente prática. Em suas palavras: “É sobretudo notável que sobre esta idéia
transcendental da liberdade se fundamente o conceito prático da mesma e que seja esta idéia que constitui,
nessa liberdade, o ponto preciso das dificuldades que, desde sempre, rodearam o problema de sua possibili-
dade.” Para ir mais longe nesse ponto seria preciso uma nova tese. Cf. Crítica da razão pura, 1997, A 533 B
561, p. 463.
200
posto à doação do particular e que, a cada vez, deve ser colocado em jogo. Para nos atermos
ao exemplo já citado de Aristóteles: o saber de que o melhor profissional é o experiente
deve expor-se a ser revisto e à possibilidade de comportar exceções.
390
A indução é um
admirar-se e o inteligível obtido por ela (os princípios) mantém o caráter de possível.
Mas nem toda recepção do inteligível tem seu ponto de partida numa sensação. O
inteligível, por vezes, exige, para ser recebido, que se construa previamente algo. Nesses
casos, faz-se preciso que, sob a orientação e direção de alguém que conhece, nos exercite-
mos primeiro, em confiança ao professor, em imaginar esquemas ou hipóteses, a fim de
que, em certo momento, o inteligível seja recebido. Nós mesmos precisamos nos empenhar,
em primeiro lugar, nesse exercício imaginativo, o que supõe a decisão de deixar-se condu-
zir por um determinado mestre ou professor. Aqui é a própria “ciência em ato” que dirige a
imaginação, sem que esta precise primeiro ser despertada por alguma sensação. O que se
obtém por esse procedimento é precisamente o inteligível que pode ser então disponibiliza-
do! Diferentemente do que acontecia na maiêutica socrática, que exigia para o aprendizado
a experiência do desamparo e a cura da ignorância, como se pode ver no exemplo do escra-
vo de Mênon exposto no capítulo I, aqui são suficientes a confiança na autoridade do mes-
tre, que pode ser irrestrita ou condicional, e o empenho de deixar-se conduzir por ele. Deci-
sivo não é mais o “sei que nada sei”, mas o “sei que ele sabe”. Do admirar-se chega-se ao
admirar como princípio de um conhecimento plenamente seguro de si!
Para que uma ciência possa ser aprendida, de modo seguro e consistente, é preciso
que ela seja ensinada por alguém que já a possua. Ninguém nasce de posse de uma ciência.
Já aquele que chega a possuir uma determinada ciência é, sobretudo, reconhecido por sua
capacidade de ensiná-la.
391
No entanto, todo ensino e, por conseguinte, todo aprendizado,
seriam impossíveis sem a posse de certos conhecimentos prévios
392
, que o professor não
pode simplesmente transmitir ao aluno. O ato inaugural do ensino de qualquer ciência é
assim uma requisição e uma requisição especial, pois trata-se de imputar ao aluno certos
conhecimentos que, sem o saber, ele já deve possuir. Aquilo que é assim requisitado como
390
Tópicos, 12, 105 a 10.
391
Metafísica, I, 1, 981 b 7.
392
Analíticos Posteriores, I, 1, 71 a 1.
Pa=sa didaskali/a kai\ pa=sa ma/qhsij dianohtikh\ e)k proupa/rxou/shj gi/gnetai gnw/sewj.
201
devendo ser forçosamente admitido é o axioma (a)ci/wma).
393
O professor requisita previa-
mente ao aluno que este requisite, por seu turno, algo que deve servir de base e fundamento
para todo futuro aprendizado. Ninguém pode aprender algo que ainda não sabe se não co-
meça por admitir o que previamente já sabe ou, pelo menos, deveria saber. Desse modo, o
que se sabe sem o saber é assumido como o que já se deveria saber.
Nesse simples ato de fazer apelo ao fundamento já se assume, em conjunto, uma
primeira disponibilização. O princípio só pode servir de base para futuros conhecimentos à
medida que ele seja chamado a entrar em cena, o que significa dizer que ele não comparece
puramente a partir de si, mediante um desconcerto inicial. O ato de fazer entrar em cena um
princípio (axioma) e de guardá-lo como base disponível é o ato inaugural da ciência.
O axioma não estava em ato no aluno antes da requisição feita a ele por parte do
professor. O professor deve “ativar” no aluno esse conhecimento que, antes disso, só se
encontrava nele de modo puramente potencial (tabula rasa). Mas mesmo em semelhante
ativação ou imputação cabe finalmente ao aluno proceder de fato à requisição que lhe é
requerida. O aprendiz de uma ciência deve começar por dar-se a si mesmo o princípio pró-
prio àquela ciência além dos chamados princípios comuns, como o princípio de não contra-
dição, que é comum a todas as ciências. Esta é a ação do “intelecto produtor” que pode en-
tão dispensar a passagem através da sensação e do modo de percepção que lhe é afim.
Mas para que aconteça de fato o aprendizado de uma ciência são necessários ainda
dois outros tipos distintos de conhecimentos prévios. O primeiro deles, o mais elementar, é
o conhecimento da língua e a capacidade de compreender as definições. Este saber prévio
indispensável é aquele que Sócrates requisita para dar início à sua demonstração ao escravo
de Mênon. O outro conhecimento indispensável é uma afirmação posta inicialmente pelo
professor (tese) frente ao aluno, e que este último deve poder receber(
lamba/nw) e assumir
como base: a hipótese. A definição difere da hipótese pelo fato de que não diz nada sobre a
existência ou inexistência daquilo que ela define.
394
A definição, como vimos no capítulo I,
tão somente enuncia a qüididade, sem afirmar coisa alguma. Já a hipótese é uma afirmação
e, como tal, põe a existência de algo. A hipótese também não pode ser produzida através de
uma demonstração, mas deve ser suposta, à partida, pelo aluno, que deve confiar (
pi/stij)
393
Analíticos Posteriores, I, 2, 72 a 17. h(\n d' a)na/gkh e)/xein to\n o(tiou=n maqhso/menon, a)ci/wma.
394
Analíticos Posteriores, I, 10, 76 b 35.
202
naquilo que lhe diz o professor. Uma hipótese exige que o aluno tenha aderido a ela pela
força da crença. Caso isto não aconteça, e o aluno não possuir opinião alguma ou então uma
opinião contrária à tese posta pelo professor, tem-se então um postulado (
ai)/thma)
395
, o
qual, por isso mesmo, não é indispensável para o aprendizado.
Para aprender são, portanto, indispensáveis tanto a compreensão do significado das
definições quanto a confiança nas teses que o professor afirma sem qualquer demonstração.
Tudo isso, porém, seria inútil caso o aluno não desse a si mesmo, a partir de uma requisição
feita a ele pelo professor, aquilo que nem é uma hipótese e nem é um postulado, ou seja, os
próprios princípios ou axiomas. Ele deve colocar-se a si mesmo em condições de ouvir
(
a)kouei=n) e acatar aquilo que lhe é dito pelo professor.
A operação do “intelecto produtor”, exigida para que haja ensino e aprendizagem de
uma ciência, e portanto a própria ciência, não disponibiliza apenas o princípio ou axioma,
mas disponibiliza, sobretudo, o aluno para poder receber o universal (potência segunda)
através do ensinamento do professor. Sem que o aluno descubra, por si mesmo, já estar de
posse de um saber que não foi transmitido a ele por ninguém, ou seja, sem que ele perceba
que pode aprender por si mesmo, e que todo verdadeiro saber será sempre aquele que ele se
der a si mesmo, ele ainda não é livre para ouvir e acatar as lições do professor. Uma vez,
porém, assumido esse saber, ele poderá então livrar-se, com confiança, ao ensinamento,
precisamente por já não esperar receber tudo do professor.
Não há dúvida, por outro lado, que Aristóteles atribui essa ação do aluno de dispo-
nibilizar-se para o aprendizado a uma intervenção da parte do professor ou da “ciência em
ato”, que requisita do aluno a própria requisição do princípio. Tudo se passa como se fosse
o professor que, em última instância, produzisse a disponibilidade para aprender, pois por
mais que o aluno também jogue nisso um papel importante, ele propriamente não poderia
recusar-se à requisição do professor.
Temos assim a situação extremamente paradoxal de que é o professor quem “coage”
o aluno a fim de que este venha a disponibilizar-se para aprender. Em resumo, a disponibi-
lização por parte do aluno é indispensável para o aprendizado, mas ela mesma só ocorre
mediante uma coação exercida pelo professor, que força o aluno a reconhecer que já sabe
algo, ou melhor, a reconhecer que não pode recusar já possuir um determinado saber! A
395
Ibid., I, 10, 76 b 27.
203
passagem do puro possível para a potência segunda e para a capacidade de efetivamente
aprender se deveria assim, unicamente, a uma intervenção “exterior” da ciência em ato ou
do intelecto produtor.
396
Em artigo publicado recentemente, Francis Wolf sustenta a existência de uma ambi-
güidade fundamental já em Aristóteles no que se refere ao estatuto do axioma nos Analíti-
cos Segundos. Este seria, por um lado, um conhecimento a priori necessário e suficiente
para edificar o conjunto de um saber e, por outro lado, um conhecimento mínimo exigido a
um aluno para aprender a integralidade do saber de um professor. Em sua opinião, o axio-
ma surge primeiro no interior da prática pedagógica em curso nos meios acadêmicos e so-
mente em um segundo momento, notadamente nos Elementos de Euclides, se “fossiliza”
em um discurso puramente gnoseológico ou “objetivo”. Para Wolf, entretanto, a admissão
dos princípios ou axiomas seria apenas o primeiro passo indispensável de uma prática pe-
dagógica inteiramente baseada na demonstração, prática essa que dispensaria o auxílio seja
da autoridade do professor seja da experiência do mundo: “Demonstrar não é “ensinar”, é
mesmo exatamente o contrário: não é transmitir nada do próprio saber, não é transmitir
ao aluno nada do que ele já não saiba; demonstrar é mostrar ao outro o que ele sabe sem
saber que o sabe.” (...) “A demonstração não é somente uma certa prática didática; ela é a
forma absoluta e ideal de uma transmissão sem ensinamento, a única maneira de
compartilhar o saber entre todos, não supondo neles nada além do poder de compreender
e de julgar, as competências universais dos ignorantes.”
397
Penso, entretanto, que Wolf
subestima o papel que desempenha o professor na aprendizagem de uma ciência e isso, em
primeiro lugar, por não perceber o caráter inaugural que a admissão dos princípios possui
para Aristóteles. Além disso, não vejo como um aluno poderia acatar determinadas teses
afirmadas sem qualquer demonstração por um professor sem admitir, previamente, que este
possui autoridade para tal.
396
Aquele procedimento que no diálogo O sofista é nomeado de “autêntica e nobre sofística” pelo “Estrangei-
ro de Eléia”, numa clara referência à atividade filosófica de Sócrates, e que consistia em livrar alguém à dis-
ponibilidade para aprender, purgando a ignorância (presunção de saber) por meio de perguntas incisivas, por
mais semelhanças que possua com a requisição aristotélica do princípio, difere desta última, fundamentalmen-
te, devido à horizontalidade de seu procedimento, e, por isso mesmo, se assemelha mais à refutação por de-
monstração do princípio de não-contradição, embora não totalmente.
397
Cf. WOLF, F. “Ciência aristotélica e matemática euclidiana” in Analytica: revista de filosofia, volume 8
– número 1, 2004, p. 80.
204
Em tudo o que pudemos ver até aqui a respeito dessa distinção entre um “intelecto
produtor” e um “intelecto receptivo” fica claro que está sendo suposta por Aristóteles uma
distinção mais fundamental entre um “intelecto humano”, que é essencialmente receptivo, e
um “intelecto divino”, que nada recebe e que tudo produz. Para que o homem “imortalize”
por seu turno, ele precisa antes receber o inteligível ou universal através de uma “ativação”
que tem lugar, prioritariamente, no ensino. Em última instância, é o professor que, por uma
intervenção sua, que eqüivale à intervenção da ciência em ato, faz passar aquilo que era
pura potencialidade para a potencialidade segunda do conhecimento. O que aqui está sendo
defendido por Aristóteles, e que reflete toda a extensão de sua atividade filosófica, é que
em todos os domínios possíveis – tanto quanto possível – se exercite o ensino e a aprendi-
zagem, entendidos como o modo humano de desempenhar aquela atividade que, original-
mente, não é humana, mas divina.
Porém, no entusiasmo absoluto por esse projeto acaba por desconsiderar-se dois
aspectos fundamentais: o primeiro é o de que antes mesmo da instituição de qualquer práti-
ca de ensino, o homem já descobre o universal e inteligível, espontaneamente, através da
indução e, paralelamente a isso, também tende a ser desconsiderado o quanto a disponibili-
dade para aprender é indispensável para qualquer atividade de ensino e aprendizagem,
sendo mesmo anterior a estas. Em suma, se o homem já não fosse, desde sempre, disponibi-
lidade para receber o universal ele jamais poderia recebê-lo, de forma disciplinada, através
do ensino. Todavia, essa mesma disponibilidade só consegue ser vista, a partir de então,
como algo totalmente indeterminado.
Tudo aquilo que aprendemos através do ensino como algo que nós mesmo nos da-
mos e que pode ser, a partir de então, disponibilizado (quem aprendeu algo por si mesmo já
é capaz de ensiná-lo), só alcança pleno sentido e direito de ser quando conseguimos inseri-
lo e acomodá-lo na teia bem mais ampla de conhecimentos e experiências intransferíveis
que vamos tecendo à medida que vivemos e existimos no mundo. O aprendizado discipli-
nado não é o único modo livre de aprender. Todo aprender é livre, e não pode ser de outro
modo, inclusive aquele que a vida nos impõe. O que não é possível é que o aprendizado
disciplinado volte-se contra este último e pretenda substituí-lo, ou mesmo diminuir-lhe a
importância. De Aristóteles ouvimos algo que nos interdita esse caminho mais fácil e facili-
tador, pois em dado momento ele nos diz que tanto quanto às demonstrações é preciso que
205
também prestemos atenção àquilo que dizem os mais velhos e experientes, os prudentes:
pois pelo fato de possuírem, a partir da experiência, como quê um olho a mais, eles vêem
corretamente.”
398
Como, porém, acontece a recepção do universal ou inteligível ali onde o aprender é
ele mesmo desencadeado por uma afecção inicial? O que nos autoriza a dizer que também
aqui está em jogo a mesma liberdade para aprender que tem lugar no âmbito disciplinado
do ensino? Como podemos dar livremente a nós mesmos o que primeiro se tornou acessível
por intermédio de uma “alteração”? Não haveria nisso tudo uma flagrante contradição? Se a
alma intelectiva se caracteriza por ser, de certo modo, todas as coisas, tal como a mão é um
instrumento dos instrumentos: a percepção é uma forma das formas e os sentidos são a
forma das sensações
399
, que sentido ainda haveria em falar-se de recepção e afecção inteli-
gíveis, a não ser que se considere a percepção(nou=j) como sendo idêntica à sensação? Caso
de fato seja assim, então não haveria nenhuma outra forma de receptividade a não ser a
sensível, mesmo quando se trata da recepção do universal ou inteligível, pois ainda que este
já resida na alma(potencialidade primeira), sem sensação ele jamais passaria à potenciali-
dade segunda do conhecimento. É, de fato, atentando para aquilo que a sensação nos diz
por si mesma que nós podemos descobrir o inteligível ou universal que, de certo modo, já
temos conosco.
Vimos acima que a anterioridade da sensação impede a formação dessa potenciali-
dade segunda que, uma vez alcançada, deixa-se atualizar tão logo se queira. A prudência,
por exemplo, não pode “armazenar”, pura e simplesmente, conhecimentos disponibilizá-
veis. O prudente se caracteriza apenas por um certo modo de corresponder ao que a cada
vez se apresenta. Ninguém pode aprender a ser prudente mediante algum tipo de ensino
disciplinado. Em tudo o que a ele se apresenta, o prudente busca encontrar aquilo que efeti-
vamente lhe concerne, não enquanto indivíduo apenas, mas enquanto aquele que busca o
bem alcançável na ação. Ele espera somente que se apresente a ele aquilo que precisa ser
feito. Desse modo, ou isso que deve ser feito aparece junto com as circunstâncias dadas ou
então não aparecerá de nenhuma outra forma. Tampouco o prudente pode extrair simples-
mente delas aquilo que lhe compete fazer. Cabe-lhe tão somente esperar que a ação apro-
398
Ética a Nicômacos, VI, 11, 1143 b 14.
399
De anima, III, 8, 431 b 20.
206
priada(to\ prakto/n) se revele juntamente com as circunstâncias. Trata-se assim de um modo
especial de ater-se ao que está dado para que algo que está além disso possa se revelar. O
prudente não pode ter pressa e querer chegar logo à conclusão do seu “silogismo”. É por
isso que Aristóteles afirma, como vimos no capítulo II, que a deliberação conscienciosa
precisa ser lenta, distinguindo-a assim da mera sagacidade ou habilidade de acertar o al-
vo(eu)stoxi/a).
Também a indução, tal como acontece espontaneamente a partir da experiência, é
um modo especial de ater-se ao que está dado (ao presente) a fim de receber por seu inter-
médio o universal. A recepção do universal pela via da indução é igualmente um modo de
dispor-se ao que está dado, na espera de que algo além disso venha a se revelar. O universal
então obtido não pode ser disponibilizado pela via demonstrativa, mas nem por isso deixa
de ser uma saber. Trata-se da diferença arcaica, desde sempre sentida, entre o que é “de
fato” e o que é “de direito”. O que é “de direito” está, de algum modo, nisso que é “de fa-
to”, mas ninguém que veja o que é “de fato” vê, somente por isso, o que é “de direito”. A-
catar o que é “de direito” nada mais significa do que receber o que é “de fato”, tal como
este se mostra a partir de si mesmo. Este é o caso do admirar-se com a incomensurabilida-
de da diagonal ou com as marionetes: há algo aí que se impõe e que se apresenta, por si
mesmo, de um determinado modo.
É certo que esse saber que se adquire por meio de tal movimentação espontânea da
existência não chega propriamente a estabilizar-se em um conhecimento disponibilizável.
Mas de onde nos vem a idéia de que somente o conhecimento disponibilizável e acumulá-
vel seja, de verdade, conhecimento? Acaso nele também não deve se fazer presente a mes-
ma disponibilidade para aprender? O que haveria de mal em precisar rever o que uma vez já
se viu, de modo a voltar a considerá-lo como pela primeira vez? Não é isso o que também
precisa fazer aquele que ensina uma ciência: rever o que já foi visto por ele uma vez? Como
ele poderia ser, de fato, “mestre” em sua ciência, caso se limitasse a transmitir, sem paixão,
o que já está em seu poder? Seria realmente desejável, como acontece hoje em dia, que todo
saber adquirido assuma, invariavelmente, a fôrma da informação? Para onde pode nos con-
duzir tamanha positivação, que se traveste em democratização do conhecimento?
207
4.9. A recepção pela tradição da teoria dos dois intelectos
Desde muito cedo a teoria dos dois intelectos foi interpretada de modo a se acentuar
a separação e o abismo entre eles. Todas as interpretações giram em torno das poucas linhas
do capítulo 5 do livro III do De anima, nas quais Aristóteles estaria apresentando o
“intelecto agente”, aquele que produz todas as coisas de modo semelhante à luz, como uma
substância separada(xwristo/j), eterna e imperecível. Já o intelecto humano seria, por conta
disso, inteiramente passivo: uma simples base material, que receberia o que o “intelecto
agente” nela depositasse, sem que nada disso sobrevivesse ao seu desaparecimento. Subs-
tância perecível e apartada do “intelecto agente”, o intelecto humano não possuiria de si
nenhum princípio “ativo”. Não é o homem ele próprio quem pensa, mas o “intelecto agen-
te” que pensa nele. O pensamento do necessário, o conhecimento teórico, seria assim um
pensamento que só compete propriamente a Deus como substância separada, cabendo ao
intelecto humano tão somente refletir uma luz que não lhe é própria. Esta foi, grosso modo,
a interpretação de Alexandre de Afrodísia(sec. II)
400
, que mais tarde seria adotada, com
modificações, pelos árabes. Uma outra interpretação, elaborada primeiramente por Temístio
(sec. IV) e depois adotada por S. Tomás de Aquino, sustenta que o intelecto que Aristóteles
está afirmando ser separado não é o intelecto divino, mas o intelecto humano, o qual possu-
iria ele próprio uma função ativa e uma função passiva, sendo a função ativa aquela que lhe
é efetivamente característica e preponderante(teoria da abstração). Segundo Alexandre Ko-
yré não há senão essas duas possibilidades interpretativas para esse texto tão controvertido:
Gerações inteiras de comentadores duelaram sobre esse texto, propon-
do a ele as mais diversas e as mais inverossímeis interpretações. Grosso modo,
não há senão duas soluções possíveis: aquela de Alexandre de Afrodísia, que
– modificando-a – adotarão os árabes, e aquela de Temístio,
que – elaborando-a e aperfeiçoando-a – adotará São Tomás.
401
400
Sobre essa a interpretação de Alexandre de Afrodísia, cf. BRÉHIER, Émile. Histoire de la Philosophie
(tome premier: l’Antiquit/e et le Moyen Age). Paris, PUF, 1961, p. 451.
401
“Des générations de commentateurs se sont escrimées sur ce texte, en en proposant les interprétation les
plus diverses et les plus invraisemblables. En gros, il n’y a que deux solutions possibles: celle d’Alexandre
d’Afrodise que – en la modifiant – adopteront les Arabes – et celle de Thémistius que – en l’élaborant et en la
parachevant – adoptera saint Thomas.” KOYRÉ, A. “Aristotélisme et platonisme” in Études d’histoire de la
pensée scientifique. Paris, Éditions Gallimard, 1994, p. 46.
208
Mais e mais, a perspectiva que se consolida, ao longo de séculos de comentários i-
ninterruptos(pelo menos do século II ao século XIII), como a condutora na interpretação da
teoria dos dois intelectos é aquela que já está preocupada com o problema da imortalidade
da alma humana, problema esse que, possivelmente, para Aristóteles, não constituísse ne-
nhum problema. Seja negando seja afirmando a imortalidade da alma humana individual, é
essa a perspectiva que passa a predominar por toda a parte nas leituras e nos comentários
árabes e latinos. Em livro publicado recentemente, Marco Zingano rejeita, pura e simples-
mente, a interpretação de Alexandre de Afrodísia, tal como já havia feito São Tomás, como
uma “reapropriação” que “não permite que se interprete Aristóteles a partir dele”, e, ado-
tando a posição de São Tomás, procura então despojá-la dos elementos “substancialistas”
estranhos nela presentes. Na verdade, Aristóteles estaria referindo-se, na dita passagem,
apenas ao intelecto humano, que possuiria assim uma função ativa e uma outra função pas-
siva(não haveria dois intelectos). Segundo Zingano, o intelecto não se deixa absolutamente
comparar à sensação, a não ser pela via de uma total oposição, pelo fato de não possuir na-
da que seja receptivo; o intelecto seria inteiramente impassível e os sentidos, ao contrário,
só se tornariam impassíveis, isto é, incapazes de serem afetados(p.153-154), quando danifi-
cados pela intensidade do sensível percebido, ou seja, quando já não percebem mais nada...
Quanto à afirmação de Aristóteles de que esse intelecto, que segundo São Tomás e Zingano
é apenas humano, uma vez encontrando-se separado e reduzido a si mesmo, é eterno e im-
perecível, Zingano sustenta, recusando desta vez a idéia de uma sobrevivência da alma in-
dividual após a morte, que a única imortalidade de fato alcançável é a perenidade do conhe-
cimento adquirido, que, por ser impessoal e positivo, permanece apesar de todas as contin-
gências humanas.
402
Se recuarmos, porém, até os discípulos diretos de Aristóteles, como Teofrasto, ve-
remos que era bem outra a perspectiva que orientava a sua leitura e interpretação da teoria
dos dois intelectos. Para este, por mais que essa teoria suscitasse muitas dúvidas, era in-
questionável que havia, para Aristóteles, dois intelectos: um divino e um outro humano, e
que o intelecto humano é de natureza receptiva e inseparável do corpo e da sensação, ainda
que o seu modo de ser afetado seja diverso da afecção corporal. Para Teofrasto, o problema
da imortalidade da alma humana nem sequer chegava a se colocar, pois, segundo ele, a pró-
402
ZINGANO, M. Razão e sensação em Aristóteles: um ensaio sobre De anima III 4, 5. Porto Alegre: L&PM,
1998.
209
pria geração da capacidade de pensar, a passagem da disposição que só está dada enquanto
possível para a capacidade efetiva de pensar, é um movimento da alma, enquanto a imorta-
lidade é justamente o que não pode ser movimento, mas tão só atividade(“movimento de
imobilidade”).
403
Teofrasto também estaria em dúvida quanto a se o poder de imaginação
deveria fazer parte da alma racional ou da irracional.
404
Quer nos parecer que essa compre-
ensão de Teofrasto está em total acordo com a compreensão de um Deus que, permanecen-
do ele mesmo imóvel, move todos os viventes por atração. O homem, quando pensa teori-
camente, estaria assim sendo atraído e movendo-se ele mesmo para a atividade divina de
pensar. Como vimos no capítulo II, é o homem que, sendo desejo, deve perseguir durante
toda uma vida essa atividade e sustentá-la para que ela renda finalmente os seus frutos. É
preciso não esquecer que a atividade teórica representa, para Aristóteles, a “delícia das de-
lícias”.
Ao contrário dessa relação de atração que solicita, de modo extraordinário, um mo-
vimento espontâneo da alma de pôr-se a pensar ela mesma, já em Alexandre de Afrodísia
405
essa atividade de pensar, que Aristóteles chama de “imortalizar”, assume uma forma subs-
tancial e tão somente visita o homem, sem chegar, entretanto, a concerni-lo de maneira
mais direta. O homem ou o “intelecto passivo ou material” seria apenas um suporte indife-
rente, sem qualquer participação própria na atividade de pensar, e não teria como realizar
qualquer movimentação na direção do pensamento ou da “potencialidade segunda”. Em
suas palavras:
ou)de\n a)/ra tw=n o)/ntwn e)nergei/a? e)sti\n o( u(liko\j nou=j, a)lla\ pa/nta duna/mei.
pro\ ga\r tou= noei=n ou)de\n w)\n e)nergei/a?, o(/tan noh=? ti, to\ noou/menon gi/netai, ei)/
403
Cf. ZELLER, E. Die Philosophie der Griechen in ihrer Geschichtlichen Entwicklung. Leipzig, O
.R.Reisland, 1921,p.846. Este cita em nota abundantes passagens de Teofrasto. Depois de referir-se a essa
compreensão da alma humana, justamente enquanto pensante, como sendo movimento, Zeller afirma: “não é
verossímel que Teofrasto determinasse o conceito de alma de modo diverso do que o fez Aristóteles.”(p.847)
Zeller mostra ainda que, segundo Teofrasto, o desenvolvimento do nou=j não se relaciona com o que é incor-
póreo, mas com o corpóreo esclarecido a partir dele.(p.850).
404
Ibid, p. 851.
405
Segundo Émile Bréhier, Alexandre distinguia nada menos do que quatro intelectos: o intelecto em potência
ou material (a tabula rasa), o intelecto adquirido ou como disposição, que nasce quando a inteligência apreen-
deu o universal (potencialidade segunda), o intelecto em ato ou atual, que é o pensamento atual, no qual o
sujeito se identifica com o objeto, e, por fim, o intelecto agente, que é a causa que faz passar a ato os inteligí-
veis em potência. Este último intelecto é divino e uma substância separada (Deus ou pensamento de pensa-
mento). Cf. Histoire de la Philosophie, p. 451-452.
210
ge to\ noei=n au)tw=? e)n tw=? to\ ei)=doj e)/xein to\ noou/menon. e)pithdeio/thj tij a)/ra
mo/non e)sti\n o( u(liko\j nou=j pro\j th\n tw=n ei)dw=n u(podoxh\n e)oikw\j pinaki/di
a)gra/fw, ma=llon de\ tw=? th=j pinaki/doj a)gra/fw?, a)ll'ou) th=? pinaki/di au)th=?.
au)to\ ga\r to\ grammatei=on h)/dh ti tw=n o)/ntwn e)sti/n.
O intelecto material não é em ato nenhum dos entes, mas em potência to-
dos. Não sendo nada em ato antes de perceber(pensar), quando ele percebe
algo ele se torna aquilo que ele percebeu, se é verdade que, para ele, per-
ceber é possuir a forma percebida. O intelecto material é, pois, uma espé-
cie de aptidão para acolher as formas, e ele se assemelha a um quadro não
escrito, ou, mais exatamente, ao não-escrito do quadro, e não ao quadro ele
mesmo, pois o quadro é já, por si mesmo, algum dos existentes.
406
Quando ao final do século XII e meados do século XIII a leitura e interpretação das
obras de Aristóteles são retomadas com entusiasmo no Ocidente cristão, ao mesmo tempo
em que florescem as universidades medievais (em particular a Universidade de Paris), tudo
o que então se vem a conhecer de Aristóteles passará, obrigatoriamente, pelas traduções e
comentários árabes de Avicena(980) e Averróis(1138). A respeito da teoria dos dois inte-
lectos, como ambos se baseavam em larga medida nos comentários de Alexandre – que
havia conservado a idéia de uma pura “materialidade” do intelecto, inseparável do corpo e
da sensação, mas suprimido, ao mesmo tempo, a compreensão de Teofrasto, e ao que tudo
indica também de Aristóteles, da alma pensante como movimento – logo a interpretação
destes últimos despertará ora reações apaixonadas ora a necessidade de ser adaptada para o
cristianismo, sob pena de a obra de Aristóteles, que então se começava a conhecer mais
amplamente, ser pura e simplesmente interditada, o que de fato chegou a acontecer durante
um certo período.
407
406
De anima, Ed. Bruns, p. 84, 20 – 85, 10. A mesma passagem é comentada por Averróis no Grande Comen-
tário do De anima - Livro III (429 a 10-435 b 25). Cf. AVERROÈS. L’intelligence et la pensée: Sur le De
anima . Trad. Alain de Libera. Paris: Ed. Flamarion, 1998, p. 65.
407
Mesmo com a interdição da leitura pública e privada das obras de Aristóteles referentes à filosofia da natu-
reza, feita pelo concílio de Paris em 1210, e renovada pelos Papas Gregório IX e Inocêncio IV, respectiva-
mente em 1231 e 1245, as obras de Aristóteles, desde o momento que chegam às universidades, nunca deixa-
ram de serem lidas e discutidas. Cf. BOHNER, P. GILSON, E. História da Filosofia Cristã. Trad. Raimundo
Vier. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004, p. 360.
211
Para Alexandre, realmente, não faria qualquer sentido falar-se de uma alma pensan-
te individualizada, o que interditaria toda a expectativa de uma sobrevivência da alma indi-
vidual após a morte. Por conseguinte, quando Avicena e Averróis, ambos inseridos nos
quadros da religião islâmica, se deparam com essa conseqüência necessária da interpretação
de Alexandre, eles não deixarão de perceber as suas implicações desconcertantes para a
perspectiva da fé, ainda que não reajam a ela de maneira idêntica. Assim, enquanto Avicena
procura intervir na interpretação de Alexandre de modo a fazer com que ela se adaptasse o
mais possível à pressuposição de uma sobrevivência da alma individual após a morte, Aver-
róis, pelo contrário, seguindo mais à risca Alexandre, assume inteiramente a natureza im-
pessoal do pensamento teórico.
408
Segundo Avicena, haveria toda uma escala de “aperfeiçoamento” do intelecto hu-
mano, que partindo de uma pura potencialidade inicial poderia desenvolver-se, pelo esfor-
ço, até o grau em que ele receberia do intelecto agente as formas inteligíveis corresponden-
tes às imagens sensíveis. Nesse grau, o intelecto humano torna-se “intelectus adeptus”, e
depois, ainda pelo exercício, “intelectus in habitu”, quando por fim adquire a ciência. A
ciência seria, portanto, em última instância, doação do intelecto agente, que ilumina aquele
intelecto humano que, pelo exercício, se tornou capaz de recebê-la. Conseqüência disso é
que Avicena supõe um intelecto possível para cada indivíduo, ao mesmo tempo em que
coloca um só intelecto agente para toda a humanidade. O último grau de perfeição do inte-
lecto humano seria, para Avicena, o “intelectus sanctus”, atribuído ao espírito de profecia,
pelo qual o homem pode unir-se o mais estreitamente possível ao intelecto agente. Este
intellectus sanctus” será referido ainda, mais tarde, por Alberto Magno: o mestre de São
Tomás.
409
Tanto quanto Avicena, Averróis também supõe a existência de um único intelecto
agente, com a diferença, entretanto, de que, para ele, não há propriamente um intelecto hu-
mano, no sentido de que o homem pudesse adquirir ele mesmo a ciência. A realidade do
pensamento ultrapassaria, em larga medida, uma configuração simplesmente humana. O
homem seria tão somente mais um ser vivo que, determinado ou conformado pelo intelecto
408
Para Averróis, na verdade, a imortalidade concerne apenas ao intelecto material plenamente aperfeiçoado
pelo chamado intelecto agente, isto é, à alma do filósofo. Cf. L’intelligence et la pensée,1998, p. 119.
409
Cf. GILSON, E. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 434.
212
agente, nada possuiria de próprio a não ser o desejo, comum a todos os seres, de reunir-se
ao intelecto agente. O pensamento seria assim algo físico, uma causa, que responderia efe-
tivamente pela existência individual de todos os seres. Em última instância, há apenas o
intelecto agente, que se particulariza a si mesmo materializando-se em diferentes indiví-
duos. O conhecimento, por conseguinte, é, para ele, obra exclusiva do intelecto agente. O
conhecimento só se torna possível quando, pela iluminação do intelecto passivo pelo agen-
te, produz-se o intelecto material: o que se deve unicamente à ação do intelecto agente
410
.
Fica evidente, desse modo, que, para Averróis, há um único intelecto passivo para todos os
homens. O próprio intelecto material seria tão somente um desdobramento do intelecto a-
gente, e nada mais.
411
Apesar da diferença em relação à presença de um intelecto humano, capaz de ao
menos colaborar na aquisição da ciência e do conhecimento, Avicena e Averróis concor-
dam em que há apenas um único intelecto agente separado e comum para todos os homens
e que o conhecimento é, em última instância, produto de uma “irradiação” ou de uma “ilu-
minação” efetuada pelo intelecto agente, que se materializa no homem como intelecto pos-
sível. A tese da produção do conhecimento pela via de uma iluminação, de cunho fortemen-
te neo-platônico, gozará de um sucesso imediato junto aos filósofos cristãos, que estavam
sobretudo empenhados em “conciliar” Platão (Sto. Agostinho) e Aristóteles. Este é o caso,
notadamente, de Alberto Magno(1206) e do franciscano São Boaventura(1221). Ambos,
porém, reconhecerão à partida, ao contrário dos árabes, que mesmo o intelecto agente é um
princípio interior à alma humana, e não uma entidade física exterior, visível na movimenta-
ção dos corpos celestes.
412
Quando, por fim, São Tomás de Aquino(1224-1274) se pronuncia acerca da teoria
dos dois intelectos, ele quase sempre o faz na forma de uma polêmica dirigida contra Aver-
róis e os seguidores latinos de sua interpretação, em particular Siger de Brabante(1235-
410
Em sua polêmica com Averróis, São Tomás criticará com ênfase essa interpretação do “intelecto possível”
como um intelecto material, pois desse modo, mesmo quando alcança saber, nunca seria o homem ele mesmo
que adquire o conhecimento.
411
Melhor dizendo, o intelecto material e o agente seriam apenas duas facetas de um único e mesmo intelecto.
Em suas palavras: “Eles são dois, com efeito, pela diversidade de sua ação: a ação do intelecto agente é a de
engendrar, enquanto a do outro (intelecto) é a de ser informado (informé). Mas eles não fazem senão um,
pois o intelecto material é perfeito pelo intelecto agente e pensa o intelecto agente.” Cf. L’inteligence et la
pensée, 1998, p. 119.
412
Para Avicena e Averróis o intelecto agente seria ele próprio o último “resultado” direto de Deus enquanto
pensamento que se pensas, o qual constituiria todos os movimentos visíveis na órbita celeste.
213
1281-84). Isso é assumido, de forma explícita, no escrito polêmico: “A unidade do intelecto
contra os averroístas.”
413
Não se deve entender essa polêmica apenas de forma negativa.
Havia, de fato, no comentário de Averróis, uma peculiaridade que interessava sobremaneira
a São Tomás. Para Temístio, ao contrário, por mais que o intelecto humano comportasse
um elemento ativo (produtor) e um outro receptivo, era evidente que havia dois intelectos
fundamentalmente distintos: um humano e um outro divino. É o que se pode ver perfeita-
mente na seguinte passagem: “É preciso despojar-se da afirmação segundo a qual o inte-
lecto primeiro adquire a intelecção sempre de todas as coisas ou de várias coisas. Com
efeito, sua intelecção (dirige-se) unicamente a uma só coisa; e essa coisa é aquela que en-
contra-se no auge da excelência e da grandeza. E pelo fato de que é ele mesmo a coisa que
se encontra no auge da excelência, sua intelecção portará então sobre a sua essência. Se é
assim, nenhuma fadiga o atingirá.
414
Temístio, com quem não obstante São Tomás mais
se identifica, afirmava ainda que o intelecto receptivo é mais co-natural ao homem do que o
intelecto agente, embora ambos fossem para ele co-naturais, o que significa sustentar ainda
uma diferença “substancial” entre eles.
415
Como o principal interesse de São Tomás era o de garantir, a partir de Aristóteles, a
imortalidade da alma humana individual, e assim a diversidade do intelecto (diversitate
intellectus)
416
, sua primeira tarefa será afastar a idéia de que o intelecto seja algo “acopla-
do” ao corpo humano, sem, no entanto, pertencer-lhe essencialmente. Ao sustentar, desse
modo, citando Aristóteles, que o intelecto é, na verdade, “uma parte ou potência da alma
que, por sua vez, é ato de um corpo”, São Tomás cerra fileiras com a tradição de comenta-
dores que, com a exceção de Averróis, admitia que ao menos o chamado intelecto possível
seria inerente ao homem.
417
Esta sua posição, entretanto, que faz do pensamento algo deci-
sivamente vinculado ao “composto humano”, a ponto deste último ser tomado como uma
realidade pertencente ao indivíduo, e o próprio intelecto como forma de uma corpo, faz
com que ele se aproxime, perigosamente, da tese de que o pensamento e o intelecto sejam
tão mortais quanto os indivíduos, o que está longe de ser o seu ponto de vista. São Tomás
413
Baseio-me em recente edição bilingüe com tradução e notas de Alain de Libera: L’Unité de l’intellect
contre les Averroistes suivi de Textes contre Averroès ant/erieurs à 1270. Paris: GF.Flamarion, 1994.
414
Paraphrase de la Métaphysique d’Aristote (livre lambda) (trad. Rémi Brague). Paris: Librairie Philosophi-
que J. Vrin, 1999, p.110-111.
415
L’Unité de l’intellect..., p. 254 (nota 199). Temístio, De anima III, 430 a 25.
416
Ibid., p.77.
417
Ibid., p.117.
214
escapa dessa conseqüência ao admitir que embora a alma humana individual esteja indisso-
luvelmente ligada a um corpo, nada impede que exista nela uma certa operação ou faculda-
de que seja inacessível à matéria.
418
Em suma, o pensamento é sempre o pensamento deste
homem particular determinado, mas sua operação enquanto tal seria irredutível a tudo
quanto o indivíduo possua de corporal. Pensando, o indivíduo se singulariza. Não é a maté-
ria que singulariza o indivíduo e o torna inconfundível, mas o pensamento.
419
O corpo e as
demais potências da alma seriam simples instrumentos do intelecto.
420
Caso o homem fosse apenas visitado pelo pensamento e não pensasse ele mesmo,
nada restaria, após a morte, senão uma única substância de um só intelecto. Neste caso,
estaria automaticamente suprimida a repartição das recompensas e das penas e até a dife-
rença que as distingue.
421
Como, porém, é o homem que, individualmente, pensa, então
deve-se supor que tal substância pensante, formalmente unida ao corpo, não desapareça
juntamente com o perecimento deste último, mas continue pensando, muito embora de uma
outra maneira.
422
Como São Tomás pode conciliar esta sua afirmação com a tese aristotéli-
ca de que “jamais é possível pensar sem imagens”, estando as imagens, como vimos, para
Aristóteles, estreitamente ligadas ao corpo e à sensação? Não seria mais correto dizer que
uma tal existência formal separada, assim como o pensamento que a alimenta, fossem per-
feitamente sem sentido? Não é assim que pensa São Tomás, pois para este o fim da alma
humana não é mover o corpo, mas pensar.
423
Sua posição será maximamente ambígua, pois
como aristotélico está obrigado a defender que a alma humana seja parte da natureza huma-
na integral e que separada do “composto humano” possuiria uma existência deficiente, mas
como cristão deve perecer-lhe que, uma vez separada do corpo, a alma pensante seja capaz
de pensar de modo mais livre, isto é, livre do afluxo das imagens! A afirmação de Aristóte-
les de que não é possível pensar sem imagens é assim interpretada por São Tomás como
uma condição apenas para o composto humano. A morte e o desaparecimento do corpo
nada mais seriam do que um simples acidente para a alma pensante humana, que então,
418
Ibid., p.157.
419
Ibid., p.155.
420
Ibid., p.163.
421
Ibid., p.78-79.
422
L’Unité de l’intellect..., p.190-191.
423
Ibid., p.115.
215
livre do que a prendia aqui em baixo, ascenderia à sua felicidade que consiste toda ela em
pensar.
424
Como se pode ver, a tese averroísta da identidade de intelecto agente e possível
formando ambos uma única substância separada é extremamente útil para São Tomás. Só
que para este essa substância separada não é o intelecto agente, que se prolongaria no ho-
mem como intelecto possível, formando então um intelecto material, mas a própria alma
pensante individual, que possuiria ela própria uma função ativa e uma outra passiva. Vere-
mos a seguir que essa assimilação de Averróis por São Tomás acabará implicando na su-
pressão pura e simples do chamado “intelecto passivo” ou “material”, que tinha de parecer-
lhe algo perfeitamente contraditório. Eliminando essa perplexidade, São Tomás sustentará
que todo homem já nasce de posse de um intelecto, o qual possui tanto uma capacidade
receptiva quanto a capacidade de operar por si mesmo: o que para ele pode ser provado
pelo fato de o aluno, mesmo necessitando de um professor, aprender por si mesmo.
425
Ex-
plicando a posição de São Tomás, Alexandre Koyré dirá que:
Para nos esclarecer nós temos a nossa luz, a nossa luz humana, a
inteligência que é nossa. Sem dúvida, ela nos vem de Deus, como aliás tudo
o mais. Mas, se me permitis esta imagem: não se trata de um espelho que
reflete a luz divina, trata-se de uma lâmpada que Deus acendeu em nós, e
que luz agora de sua própria luz.
426
Surge assim o problema de saber como esse intelecto humano poderia ele mesmo
operar enquanto uma única substância com suas duas funções ou faculdades perfeitamente
distintas. A solução de Averróis não podia satisfazer São Tomás, pois implicava na suposi-
ção de que o intelecto possível seria único para todos os homens e que este seria posto em
movimento, no homem particular, em última instância, pela novidade das imagens. A críti-
424
Ibid., p.117.
425
Ibid., p. 187. “On trouve dans l’élève le principe naturel de la science – l’intellect agent et les principes
connus par soi -, et l’enseignant administre certains aides en tirant des conclusions des principes connus par
soi.
426
Pour nous éclairer, nous avons notre lumière, notre lumière humaine, l’intelligence qui est nôtre. Sans
doute nous vient-elle de Dieu, comme toute chose d’ailleurs. Mais, si l’on me permet cette image: ce n’est pas
un miroir qui reflète la lumière divine, c’est une lampe que Dieu a allumée en nous, et qui luit maintenant de
as propre lumière.Études d’histoire de la pensée scientifique, p. 45.
216
ca de São Tomás a essa posição será a de que, neste caso, o hábito da ciência derivaria do
chamado intelecto passivo, que, entretanto, acha-se inteiramente preso às coisas particula-
res. Por intermédio deste último alcança-se somente as “intenções dos particulares, como
no caso da prudência, mas não os universais.
427
Além disso, essa tese implicaria, de fato,
em um retorno a Platão, uma vez que se o intelecto possível fosse o mesmo em todos os
homens, então ele já deveria conter todas as formas antes mesmo de ter pensado algo, o que
inviabilizaria a posição de Aristóteles de que o intelecto possível deve ser como uma tabula
rasa, e nada conter em ato antes de pensar.
A alternativa apresentada por São Tomás implicará nos seguintes pontos de partida
fundamentais: 1) cada homem possui, desde o seu nascimento, um intelecto possível, que
será mais tarde atualizado. 2) Tudo o que o intelecto possível chega a receber e a reter ele o
fará por uma intervenção do intelecto agente: nós só retemos aquelas coisas que nós mes-
mos chegamos a conhecer. A operação do intelecto agente individual será assim a de abs-
trair das imagens as formas inteligíveis e confiá-las ao intelecto possível, ao qual cabe re-
cebê-las e retê-las. Como conseqüência disso temos a eliminação do chamado “intelecto
passivo”, ou seja, para pensarmos o que quer que seja nós teríamos antes de nos despojar-
mos de tudo o que pertence ao corpo e à sensação(imagens sensíveis). Semelhante purifica-
ção seria o modus operandi do intelecto agente humano. É essa, finalmente, a interpretação
de São Tomás para a “indução” aristotélica.
Resta ainda, porém, um problema decisivo: se tanto o intelecto agente quanto o inte-
lecto possível são funções do intelecto humano individual, como então o ensino se faz pos-
sível e os homens podem se entender uns com os outros? Como é possível, neste caso, que
pensando de modo absolutamente individual, eles pensem a mesma coisa, e o saber do pro-
fessor seja o mesmo do aluno? Respondendo a esse problema, São Tomás recorre a Temís-
tio, que afirma a existência de múltiplos intelectos agentes e possíveis, mas, ao mesmo
tempo, coloca para eles um único princípio iluminador.
428
427
Or l’intellect passif n’est pas capable de connaître les universaux, mais seulement les intentions des par-
ticuliers. Ce n’est donc pas le sujet de l’habitus du savoir.” Summa contra os Gentios, II, 73. L’Unité de
l’Intellect contre les Averroïstes, p.330.
428
L’unité de l’intellect..., p. 279 (nota 342).Na verdade, São Tomás não apresenta a posição de Temístio, que
admitia um único intelecto agente separado ao mesmo tempo que múltiplos intelectos agentes e possíveis.
217
Salta aos olhos, lendo Temístio, que nem o intelecto agente, de que
fala Aristóteles, é único, ele que ilumina, e nem o intelecto possível, que é i-
luminado; é verdade, não obstante, que o princípio de iluminação é único, a
saber, que é uma certa substância separada: seja Deus para os católicos, se-
ja a última inteligência para Avicena.
429
Em outras palavras, para chegarmos a conhecer algo não se faz necessária nenhuma
iluminação divina: o homem ou intelecto humano individual é o verdadeiro autor do conhe-
cimento. Entretanto, o fato de que os homens se entendam e aprendam uns dos outros “pro-
va” a presença de um princípio iluminador (Deus) irredutível ao intelecto humano sempre
individualizado. Tal princípio iluminador não é a “causa eficiente” do conhecimento, que é
individual, mas um elemento comum (passivo), que permite que os homens se entendam
entre si, tal como seria a própria língua vista como um simples instrumento disponível de
comunicação. Assim, tendo o conhecimento se transformado em uma ocorrência quase ín-
tima e estritamente individual, ou como diz São Tomás: imanente, aquilo que permite o
entendimento entre os homens, juntamente com o ensino e o aprendizado, teve também de
tornar-se algo transcendente, e desse modo o intelecto passivo, que havia sido suprimido,
acaba entrando novamente em cena como Deus.
Com São Tomás, o conhecimento é reduzido a uma operação quase que de foro ín-
timo, limitada ao interior de cada um. Quão longe estamos do entusiasmo que a ciência em
ato, “encarnada” na figura de um mestre, costumava despertar nos discípulos, quão longe
estamos da admiração aristotélica! Semelhante entusiasmo seria agora visto com verdadeira
desconfiança, pois seria como invejar algo que pertence unicamente ao recinto fechado de
um indivíduo. E, todavia, sempre que se admira um mestre, essa admiração está longe de
visualizar o saber ou a ciência em ato como a propriedade privada de alguém. No indivíduo
enxerga-se, “encarnada” em sua individualidade mas para além dela própria, a ciência em
ato. Como para São Tomás a ciência e o conhecimento são pertencentes unicamente aos
indivíduos que os possuem, semelhante admiração tinha de parecer-lhe algo indecente. Daí
429
Ibid., p. 193. “Il est donc évident, à lire Thémistius, que ni l’intellect agent dont parle Aristote n’est uni-
que, lui qui éclaire, ni l’intellect possible, qui est éclairé; il est vrai, en revanche, que le principe de
l’illumination est unique, à savoir que c’est une certaine substance séparée: soit Dieu, selon les catholiques,
soit la dernière Intelligence, selon Avicenne.
218
a comparação, feita por ele, do ensino da ciência com o procedimento do médico, que ape-
nas “instrui” ou “administra” recursos (dosagens) para que a própria natureza faça o seu
trabalho:
Pois assim como se encontra no doente o princípio natural de saúde, ao qual
o médico administra seus meios auxiliares para atualizar plenamente a saúde,
assim também se encontra no aluno o princípio natural da ciência – o intelecto
agente e os primeiros princípios conhecidos por si – e o professor administra
certas ajudas tirando as conclusões dos princípios conhecidos por si.
430
O professor deve atuar junto ao aluno da mesma forma que o médico atua junto ao
paciente, pois o aluno já dispõe do “princípio natural da ciência”. Mas será assim tão evi-
dente que todos possuem aptidão para o conhecimento? O que acontece se o aluno não ti-
ver disponibilidade para aprender? Seria isso “culpa” sua? “Culpa” do professor? De todo
modo, essa disponibilidade que Aristóteles chama de puro possível (to\ du/naton), torna-se
com São Tomás um mero dispositivo que qualquer um pode perfeitamente acionar, desde
que receba a ajuda oportuna de alguém “entendido no assunto”, ou seja, do professor en-
quanto um intermediário entre o aluno e a sua salvação pessoal. Também a “teoria da abs-
tração” apresenta a mesma necessidade de uma intermediação que simplesmente não existia
em Aristóteles.
431
Como se para atingirmos o conhecimento precisássemos antes separar e
purificar o universal do particular! Como se não fosse, justamente, no e junto ao particular
que acontecesse a atividade de conhecer, sem qualquer necessidade de intermediação!
Ninguém que perceba a necessidade de um fato ou de um estado de coisas precisa, previa-
mente, abstraí-la desse fato ou desse estado de coisas. O que nós conhecemos então não é o
430
L’Unité de l’intellect..., p. 187. “Car, de même qu’on trouve dans le malade le principe naturel de santé,
auquel le médecin administre ses moyens auxiliers pour actualiser pleinement lasanté, de même, on trouve
dans l’élève le principe naturel de la science – l’intellect agent et les premiers principes connus par soi – et
l’enseignant administre certains aides en tirant les conclusions des principes connus par soi.”
431
Marcel de Corte, em seu livro La doctrine de l’intelligence chez Aristote, de inspiração assumidamente
tomista, reconhece entretanto que a teoria da abstração jamais foi entrevista por Aristóteles, como se pode ver
na seguinte nota de pé de página: “...reconnaissons toutefois que cette production d’une forme immatérielle
n’a pas été envisagée expressément par le Stagiritte, mais elle est dans l’esprit de son système: si c’est la
forme de la pierre et non la pierre elle-même qui est dans l’âme, il est trop évident qu’il ne peut être question
de la forme physique de la pierre, mais de sa similitude intelligible.”(p. 53)
219
universal abstraído do particular, mas o fato particular ele mesmo em sua necessidade, “tal
como se o estivéssemos recordando”.
432
432
Analíticos Anteriores, II, 21, 67 a 23.
220
Conclusão
Aquilo que nós hoje chamamos de intelecto e que, grosso modo, costumamos iden-
tificar como uma habilidade mental do homem não é o que Aristóteles chama de nou=j.
Também não se deve entender o nou=j aristotélico como “pensamento”, se por este último
entendermos algo como representação. O nou=j não é, para Aristóteles, uma propriedade ou
capacidade humana, mas uma atividade que o homem (cada um de nós) precisa encontrar e
exercitar para vir a ser plenamente homem. A atividade que é o nou=j só se revela propria-
mente para aquele que já desesperou de encontrar genuína satisfação naqueles âmbitos onde
ela é habitualmente procurada, ou seja, na honra e no prazer imediato. Enquanto apenas nos
empenharmos em viver a vida que nos foi destinada “publicamente” e nos contentarmos
com os prazeres que ela nos oferece, nem sequer suspeitaremos dessa outra possibilidade.
Antes de mais nada, o nou=j representa para Aristóteles um modo de vida e uma a-
tividade aos quais a própria existência humana encontra-se, desde o início, votada: a “obra
do homem”, mas que só muito raramente chega a ser exercida plenamente, pois, ao contrá-
rio da honra e do prazer, que são obtidos imediatamente como prêmios, a atividade que é o
nou=j só rende os seus frutos se for exercida, continuamente, durante toda uma vida. Trata-
se, assim, de uma atividade que não possui, de imediato, nenhum prêmio ou compensação,
a não ser aquela que se pode encontrar na própria atividade. Não admira que somente uns
poucos a encontrem e possam dedicar-se a ela com afinco!
De modo mais amplo, o
nou=j é definido por Aristóteles, paralelamente às demais
virtudes dianoéticas, como o “estado dos princípios”. Dos princípios não pode haver nem
ciência e nem prudência, nem sabedoria e nem arte. Por que não? Porque todas essas virtu-
des ou estados racionais já partem de um prévio conhecimento disso que a eles diz respeito,
nenhum deles cria autonomamente o alcance e os limites de seu próprio desempenho, mas
deve recebê-los de um outro. Todavia, enquanto na arte e na ciência esse saber inaugural
torna-se, concretamente, um simples pressuposto, sabedoria e prudência se caracterizam
por preservarem, explicitamente, esse acesso aos princípios. Nestes últimos dois casos, o
nou=j é um guiar a própria existência como um todo para o que em si e por si merece ser
considerado: os princípios, e que assim conserva-o no campo de visão. O
nou=j é aqui a
guarda dos princípios e das possibilidades extremas da existência, uma percepção do que é
221
extremo e final. As pessoas muito desgastadas, seja pelo prazer imoderado seja pelo exces-
so de sofrimento, não estão em condições de admitirem e levarem em consideração o prin-
cípio quando é o caso de agir. Da mesma forma, aqueles que em tudo e por tudo exigem
uma demonstração cabal de todas as coisas, também não estão em condições de se deixa-
rem conduzir para os princípios, os quais, justamente, não admitem demonstração. Em am-
bos os casos, trata-se da mesma ignorância fundamental(a)paideusi/a, a)/gnoia) em relação
àquilo que não nos é permitido sem mais ignorar, uma ignorância que, segundo Aristóteles,
ou não admite cura ou só se deixa curar pela força. Por tudo isso, o nou=j está longe de ser
uma simples intuição pontual e imediata ou, como querem alguns, uma “fulguração gratui-
ta” ou apoteótica que dispõe do princípio como de alguma evidência dada.
Mas além de constituir-se como guarda das possibilidades extremas da existência, o
nou=j também se configura, para Aristóteles, como a atividade característica da parte cientí-
fica da alma: aquela que se acha referida aos melhores e mais excelentes objetos, e inclusi-
ve àquelas coisas totalmente extraordinárias em relação às coisas humanas (ta\ peritta/).
Esta última atividade se distingue de todas as outras por ser a mais contínua e por ter em si
mesma o seu próprio prazer, que é também um prazer extremamente doce. Aqui o nou=j é
um deixar-se ficar, um permanecer ao pé de alguma coisa plenamente suficiente. Esse de-
morar-se junto à alguma coisa que tão somente a admira e que goza da sua pura presença é
a atividade que Aristóteles considera divina em relação a qualquer atividade estritamente
humana, a qual sempre implica em esforço e desgaste. A obra dessa atividade nada mais é
do que ela própria, e assim ela aparece como a melhor e mais auto-suficiente de todas as
atividades. À medida que se dedica a essa atividade o homem “imortaliza”, tanto quanto lhe
é possível. Neste último caso, trata-se menos de uma guarda do que de um desempenho
exercido de modo perfeitamente disciplinado e voluntário, como uma garantia da própria
guarda. Em última instância, caso o homem venha a experimentar o prazer realmente divi-
no da atividade teórica, ele não poderá deixar de decidir-se pela guarda dos princípios. Isto
o deixaria praticamente imune aos altos e baixos da existência, tanto quanto isso é possível
para um homem, o que não é o caso, evidentemente, de alguém que sofresse as desventuras
de um Príamo.
Essa posição aristotélica que apresenta a guarda das possibilidades extremas da e-
xistência como algo que precisa ser garantido, e garantido por uma atividade plenamente
222
autárquica, cria uma situação nova onde o que passa a importar, antes de tudo, é a necessi-
dade de assegurar o caráter excepcional da atividade teórica, que deve passar o mais longe
possível de uma decisão “simplesmente humana”. O homem agora deve perseguir sem ces-
sar a atividade teórica, a qual deve aparecer-lhe como algo de sobre-humano e divino, pois
não é enquanto homem que ele exercerá essa atividade, mas enquanto algo divino que sub-
siste nele. Mas se é assim então os próprios princípios relacionados à atividade teórica tor-
nam-se algo de essencialmente distinto dos princípios ligados à práxis humana. Agora, so-
mente estes últimos necessitariam ser guardados, enquanto os primeiros seriam de si mes-
mos tão evidentes que ninguém poderia, emconsciência, recusar-se a admiti-los. Com
isso, se no espaço da vida e da ação a não admissão dos princípios só pode ser “punida”
pela própria vida, no espaço da atividade teórica torna-se perfeitamente possível a refutação
de quem se comporte contrariamente ao esperado.
Mas, no fundo, todos os princípios relacionados à atividade teórica, inclusive o
princípio de não contradição, só são constringentes para aquele que já reconheceu a ativi-
dade teórica ela mesma como o fim último da existência, como o que é divino em relação
ao humano, e se dispõe a acatar todas as suas pré-condições. Do contrário, eles não seriam
de modo algum auto-evidentes, mas tão somente “pré-condições”. De todo modo, por mais
que se insista na absoluta auto-evidência de um princípio, sempre ele terá de ser admitido e
sustentado livremente como algo que não está aí como um dado, mas como um possível. É
o que de fato Aristóteles é obrigado a assumir em sua demonstração por refutação do prin-
cípio de não contradição, que de início é apresentada por ele como uma “evidência” inques-
tionável. Nenhum princípio e nenhuma atividade podem ser admitidos se não forem admi-
tidos livremente. A evidência da singularidade de uma atividade não dispensa a sua guarda,
mas antes a exige.
Hoje, passados dois mil e quinhentos anos, já não estamos mais convencidos da su-
perioridade em si da atividade teórica, e ninguém já se entusiasmaria por ela pelo fato de
ela ser colocada como divina. Esta situação, para muitos fatídica, é, talvez, a grande opor-
tunidade de retomar essa mesma atividade em outras bases, talvez de modo inteiramente
transformado. Sim, já não podemos nos confinar soberanamente na teoria, como em um
mosteiro, mas ainda podemos nos confiar livremente e ela e guardá-la como possibilidade
extrema da existência. Essa guarda ela mesma é a fonte de um pensamento que já não opera
223
por cisões, que já renunciou a todas as garantias e derradeiras justificativas, mas que busca
tão somente sintonizar-se com o fundo de liberdade da própria existência humana. Um pen-
samento assim é, por essência, integrador e não estratificador de experiências.
Num tempo em que as ciências se desenvolvem autonomamente sob a direção de
um mesmo projeto de dominação e controle dos mais diversos ramos da realidade, se man-
tendo unidas quase que tão somente pela estrutura burocrática de universidades e centros de
ensino e pesquisa, seria vão almejar um retorno à sua estrutura unitária, tal como esta foi
formulada primeiramente por Aristóteles e perseguida ainda por Descartes. A filosofia en-
tendida como estrato primordial das diversas ciências: a “rainha das ciências”, na expressão
de Kant, caducou. Mas se é assim por que ocupar-se de Aristóteles hoje? Porque Aristóteles
não é apenas o fundador de um modelo de cientificidade que em muitos aspectos ainda
permanece vigente, ele é também aquele que nos acena com uma modalidade de pensamen-
to, mais praticada do que problematizada por ele em sua atividade filosófica, que não cessa
de surpreender com seu viço e juventude: a e)pagwgh/. A indução ou “introdução” é aquele
tipo de pensamento capaz de nos transportar do mais imediato e comum ao mais distante e
extra-ordinário, e que nem por isso perde a referência ao comum e imediato. A indução não
é uma simples generalização pouco rigorosa de experiências particulares, ela é a maneira de
exercer de modo pleno, como uma “decisão de vida inteira”, aquilo que nós chamamos de
“transcendência originária” e que constitui o fundo secreto da existência humana: o salto.
Afinal, como explicar o fato de que de uma pluralidade de situações e experiências singula-
res se salte, de repente, para a nitidez incontestável do saber? Talvez tenha chegado a hora
de um pensamento menos ocupado em justificar-se a si mesmo e mais preocupado em cor-
responder ao que, inexplicavelmente, já se deu e já se abriu, um pensamento que se preocu-
pe em dizer simplesmente e dar testemunho daquilo que vê, um pensamento que procure
tão somente guardar uma possibilidade: a possibilidade de seguir vendo.
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