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José Luiz de Oliveira
A FUNDAÇÃO DO CORPO POLÍTICO NO PENSAMENTO DE
HANNAH ARENDT
UFMG/2007
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2
A FUNDAÇÃO DO CORPO POLÍTICO NO PENSAMENTO
DE HANNAH ARENDT
Aluno: José Luiz de Oliveira
Orientadora: Heloisa Maria Murgel Starling
Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da FAFICH/UFMG, como
requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em Filosofia.
Área de Concentração: Filosofia
Linha de Pesquisa: História da Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais
2007
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3
ESPAÇO PARA A
FICHA CATALOGRÁFICA
4
Tese defendida e _________________, com a nota ___________________________pela
Banca constituída pelos professores:
Profa. Dra. Heloísa Maria Murgel Starling (Orientadora) UFMG
Prof. Dr. Newton Bignotto de Souza – UFMG
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Adriano Correia – UFG
Prof. Dr. Leonardo Avritzer – UFMG
Prof. Dr. Tiago Adão Lara – CES/ JUIZ DE FORA – MG
Pós-graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 30 de outubro de 2007.
5
Sarabanda arendtiana
Meu pequeno Pedro
nunca sonhe o amanhã,
eu sonhei com a manhã.
Distorceram minhas palavras
envenenam minhas lágrimas
cuspiram nas minhas idéias,
caçoaram de mim como se
caçoar resolve-se a manhã.
Alguns homens têm a dignidade
outros se dormissem com ela
não a reconheceriam em sua luz.
A dignidade pressupõe o outro
o argumento mesmo que tosco
tenha o livre arbítrio da Polis
em manifestar dentro da treva
de expor-se a vida que nele há.
Trago comigo palavras, eu sei,
é pouca coisa nos dias de hoje,
ontem crucificaram um também
queimaram em algumas câmaras
esses pequenos sons ditos aqui.
Os homens sábios, educadores,
não esses não têm tempo hábil
dedicados a dissecar filigranas
não ouvem a dor do seu tempo
deixando a barbárie fiar corações.
Meu pequeno Pedro
apócrifo pela pedra,
nunca sonhe o amanhã,
eu sonhei com a manhã
perdi minha juventude,
nunca verá você a manhã.
Por Eric Ponty
1
1
Eric Tirado Viegas Ponty é um poeta que nasceu e reside na cidade de São João del-Rei MG. Esse poema
revela momentos difícies passados pelo seu autor e pelo autor da Tese. Trata-se de um poema que apresenta um
conteúdo composto de elementos que se encontram presentes no pensamento de Hannah Arendt. O título
Sarabanda Arendtiana baseia-se no fato de Eric Tirado Viegas Ponty ter produzido a obra no momento em que
ouvia a música de Johann Sebastian Bach, intitulada suitemero 01: solo cello.
6
DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado a todos aqueles que fizeram e fazem parte de minha vida: meus
parentes mortos e vivos, amigos do passado e do presente. Mas, dentre todas as presenças
dedico especialmente este trabalho:
- A minha esposa Patrícia, aos meus filhos Luís Henrique e Pedro, de quem por muitas
vezes renunciei o tempo de convívio indispensável à vida familiar em troca da dedicação a
este trabalho. A eles todo o meu amor;
- ao meu pai Inácio e a minha mãe Maria das Dores, por eles terem sempre acreditado
em mim;
- a Hannah Arendt, em quem minha paixão pela Filosofia transborda nutrindo-me de
Esperança e Fé em um mundo de Liberdade Política.
7
AGRADECIMENTOS
Á Profa. Dra. Heloisa Maria Murgel Starling, minha orientadora, que demonstrou
companherismo e entusiasmo, além de apresentar extraordinária capacidade de atenção,
mesmo estando envolvida com a nada fácil função de vice-reitora da UFMG. Os encontros
com a Profa. Heloísa revelaram a sua dedicação e disponibilidade na orientação deste
trabalho, desde o momento da elaboração do projeto inicial.
Ao Prof. Dr. Newton Bignotto de Souza, pela amizade, apoio e incentivo na caminhada de
estudos de História da Filosofia Política, sob cuja inspiração elaborei a visão acerca da
Fundação do Corpo Político no Pensamento de Hannah Arendt.
À Profa. Dra. Telma de Souza Birchal, pelo incentivo a esse trabalho e pelas valiosas críticas
e sugestões durante nossas reuniões do grupo de pesquisa em História da Filosofia.
Ao Prof. Dr. Adriano Correia, pela amizade e pelas valiosas críticas e sugestões a este meu
trabalho no exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Tiago Adão Lara, pela amizade e por representar uma História de vida que
simboliza muito do que sou.
Ao Prof. Dr. Leonardo Avritzer, pelo interesse ao tema deste trabalho e por aceitar participar
da banca de defesa da Tese.
Ao meu amigo e irmão Prof. Fábio Abreu Passos, por caminhar comigo nas trilhas das
abordagens arendtianas sempre com alegria e muita vontade.
Ao Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo, pela amizade e pelo trabalho de revisão da Tese.
Aos professores da UFAM de Parintins Amazonas, especialmente ao Diretor Prof. Dr.
Jefferson da Cruz que se empenharam na minha liberação para o exame de qualificação e
defesa definitiva desse Trabalho.
Aos funcionários da Biblioteca do Campus Santo Antônio da UFSJ, que de maneira generosa
possibilitaram essa pesquisa.
A FAPEMIG, pelo indispensável apoio a esta pesquisa.
A todas as amigas, amigos e parentes que depositaram confiança em mim.
A Pedro H. S. Pereira, pelo apoio a esse trabalho.
A Universidade Federal de Minas Gerais, e a esta Faculdade (FAFICH) em particular, pela
confiança em mim depositada e por todo apoio que me tem sido dado ao longo desta
convivência. Estendo esta minha gratidão aos colegas de curso e funcionários desta
instituição.
8
RESUMO
O tema central desta pesquisa é a fundação do corpo político no pensamento de
Hannah Arendt. Nossas análises partem da hipótese de que podemos admitir o tema da
fundação do corpo político no pensamento de Arendt se formos capazes de explicitar: a
categoria da natalidade como potencialidade política; o sentido da Revolução como fundação
que assegura o surgimento de um novo corpo político e a criação das Constituições como um
momento de enraizamento da fundação do corpo político na História. Num primeiro
momento, a démarche argumentativa examina a reflexão de Hannah Arendt sobre a
potencialidade política da categoria da natalidade. A autora transporta o conceito agostiniano
de natalidade para a construção de uma filosofia política. Num segundo nossas análises
apontam os aspectos da abordagem arendtiana sobre o sentido da Revolução realçando suas
sigularidades, bem como o seu papel de fundação na modernidade. Num terceiro
demonstramos como se processa a fundação do corpo político, no âmbito da experiência das
Revoluções Americana e Francesa no que se refere ao recurso à tradição e às diferenças e
semelhanças inerentes ao processo de fundação do corpo político. Finalmente, considera a
visão de Hannah Arendt sobre a possibilidade de um novo modelo de corpo político e como a
criação das Constituições se estabelece como o enraizamento da fundação do corpo político
na História.
PALAVRAS-CHAVE
Natalidade, Fundação, Corpo Político, Revolução e Constituição
9
ABSTRACT
The central subject of this research is the foundation of the political body on the
thought of Hannah Arendt. Our analyses start from the hypothesis according to which we can
only admit the subject of the foundation of the political body on the thought of Arendt if we
are able to explain: the category of natality as political potentiality; the meaning of Revolution
as a foundation that assures the emergence of a new political body and the creation of the
Constitutions as a growing roots moment for the foundation of the political body in History.
At a first moment, the démarche argumentative examines Hannah Arendt reflection on the
political potentiality of the category of the natality. The author carries the Augustin concept of
natality to the construction of a political philosophy. In a second moment, our analyses point
the aspects of Arendt’s approach on the meaning of Revolution emphasizing its singularity, as
well as its foundation role in modernity. In one third moment, we demonstrate how the
foundation of the political body occurs, within the scope of the American and French
Revolutions experience concerning the resource to tradition and to the differences and
similarities, both inherent to the process of foundation of the political body. Ultimately, we
consider the vision of Hannah Arendt on the possibility of a new model of political body and
on how the creation of the Constitutions establishes itself with the roots of the foundation of
the political body in History.
KEW-WORDS
Natality, Foundation, Politician Body, Revolution, Constitution.
10
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................II
1. Natalidade e Fundação.......................................................................................... 18
1.1. O significado político da categoria da natalidade ...........................................20
1.2. A natalidade e o novo começo na História .....................................................54
2. O Sentido da Revolução........................................................................................77
2.1. A Revolução como fundação sem precedentes...............................................83
2.2. O significado da palavra Revolução ...............................................................95
2.3. Revolução e fundação da liberdade política ....................................................103
2.4. A Revolução e a questão social........................................................................120
2.5. Revolução e secularização ...............................................................................128
3. A Fundação do Corpo político no âmbito das Revoluções ................................140
3.1. O recurso dos “Pais Fundadores” às Tradições Hebraica, Grega e Romana ..141
3.2. Diferenças ocorridas no Processo de Fundação do Corpo Político no interior das
Revoluções ......................................................................................................175
3.3. Semelhanças existentes no processo de Fundação do corpo Político no interior das
Revoluções.......................................................................................................195
4. Configuração do Corpo Político e Constituição .................................................207
4.1. A estrutura organizacional do Corpo Político arendtiano...............................208
4.2. Fundação e Constituição ..................................................................................243
Considerações Finais.......................................................................................270
Referências Bibliografias ................................................................................284
I. Fontes Primárias................................................................................................284
II. Fontes Complementares ....................................................................................285
11
INTRODUÇÃO
Em setembro de 2001, concluí meu mestrado em Filosofia pela UFMG, onde
apresentei a defesa da dissertação intitulada a Faculdade do Juízo no pensamento político de
Hannah Arendt.
2
E, durante as minhas investigações em torno do tema escolhido para a
elaboração da dissertação de mestrado, pude perceber que estava diante de uma obra
complexa, cuja contribuição intelectual projeta-se em várias direções no que tange a diversos
temas voltados para o processo que envolve a História da Filosofia Política.
3
A obra desta filósofa alemã naturalizada norte-americana, apresenta-se como de
grande alcance e possui inúmeras repercussões nos dias de hoje.
4
Portanto, o seu pensamento
político tem como ponto de partida as abordagens feitas por ela no que diz respeito ao
fenômeno do totalitarismo.
5
Isto quer dizer que, em quase todas as reflexões encaminhadas
por Arendt, a questão do totalitarismo aparece como um ponto referencial.
Se, por um lado, as análises de Arendt dizem respeito às graves conseqüências trazidas
pela experiência do totalitarismo nazista e stalinista, por outro, temos um conjunto de
reflexões que a nossa autora faz sobre a capacidade humana pautada na esperança da
2
A Dissertação de Mestrado, intitulada A Faculdade de Juízo no Pensamento Político de Hannah Arendt, trata
da compreensão e explicitação do papel da faculdade do juízo no pensamento político arendtiano. É um trabalho
que, fundamentalmente, demonstra como Arendt reinterpreta os conceitos kantianos, presentes na terceira crítica
e os transporta para a elaboração da sua filosofia política.
3
O legado de Hannah Arendt para a História da Filosofia Política, faz dela, no dizer de Celso Lafer, “uma
interprete autêntica do século XX” (LAFER. Pensamento Persuasão e Poder, p. 34).
4
A expansão da divulgação da obra de Hannah Arendt no Brasil e em outros países é comentada por Newton
Bignotto: “A safra atual de publicações sobre Hannah Arendt no Brasil mostra como suas obras passaram a
ocupar um lugar de destaque no interior das ciências sociais e das filosofias nacionais. Até o início dos anos
1980, ela era praticamente desconhecida entre nós. Além dos trabalhos pioneiros de Celso Lafer e dos
seminários e escritos de Eduardo Jardim, as referências à pensadora eram escassas e pouco informadas. Esse
quadro, aliás, se repetia na França e em outros países, que até então não haviam dado o devido valor ao conjunto
de suas obras.” (BIGNOTTO. Hannah Arendt e sua biógrafa. In: Jornal Folha de o Paulo, 15 de abril de
2007).
5
Arendt, no percurso de suas abordagens, investiga a política, partindo inicialmente de análises a respeito do
fenômeno totalitário. Para ela, diferentemente da tirania e de outras formas de despotismo político, o
totalitarismo é considerado uma novidade radical do século XX. É um sistema que se constitui como um marco,
a partir do qual Arendt inicia a sua filosofia política. Ver a esse respeito ARENDT. Origens do Totalitarismo.
12
natalidade. Esperança que no dizer de Laure Adler, para Arendt significa esperança política.
6
No bojo dessas questões consideramos relevante desenvolver uma Tese a partir do tema da
fundação do corpo político.
Em Da Revolução,
7
Arendt dedica-se a fazer análises a respeito das Revoluções
modernas. E, nesta obra, o tema da fundação constitui-se como o centro de todas as questões
levantadas no interior do evento revolucionário. Segundo André Duarte sob inúmeros
aspectos, o livro Da Revolução constitui a culminação teórica de sua reconstituição conceitual
das manifestações políticas originárias, tal como estabelecida em A Condição Humana e nos
textos que compõem a coletânea Entre o Passado e o Futuro.
8
A fundação, enquanto tema da
filosofia política, possui as suas atenções voltadas para o problema do princípio. Newton
Bignotto diz que “pensar esse tema implica delimitar o terreno no qual os homens realizam as
tarefas inerentes ao ato de gestação, e pensar não as conseqüências desse passo extremo
mas também os vínculos que os atores políticos estabelecem nesse momento com o passado e
com o futuro.”
9
Para Hannah Arendt, a relevância do problema do princípio no que se refere ao
fenômeno das Revoluções do século XVIII é óbvia.
10
O tema da fundação, trabalhado por
Arendt à luz dos acontecimentos das Revoluções Francesa e Americana, constitui-se como um
tema crucial e de aspectos relevantes, porque nos coloca diante do problema do novo. O que é
o novo? O levantamento dessa questão se dirige ao âmbito do fenômeno revolucionário. Os
eventos revolucionários do século XVIII que são analisados por Arendt, não se definem como
simples mudanças. As Revoluções, enquanto frutos da ação humana, são rupturas no tempo.
6
ADLER. Nos Passos de Hannah Arendt, p. 375.
7
quem diz que Sobre a Revolução é a realização de uma manifestação ideológica unificada que ocorreu nos
dois lados do Atlântico. É um evento que pode ser chamado de “Revolução Atlântica.” Trata-se do comentário
de David Watson: Sobre a Revolução (1963) foi uma contribuição direta a um importante gênero da ciência
política dos anos 1960: o estudo comparativo das revoluções. Arendt introduziu nesse debate uma crítica
vigorosa a uma das idéias mais comumente assumidas, formulada por Robert Palmer, segundo a qual haveria
uma ‘Revolução Atlântica,’ ideologicamente uniforme, ligando as experiências do século XVIII da América e da
França.”(WATSON. Hannah Arendt, p. 95).
8
DUARTE. Hannah Arendt entre Heidegger e Benjamin: a crítica da tradição e a recuperação da origem da
política. In: BIGNOTTO & MORAES (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 83).
13
Em Crises da República, Arendt diz que a mudança não é um fenômeno que ocorre
somente no mundo contemporâneo, pois trata-se de uma característica inerente a um mundo
habitado e estabelecido por seres humanos que nele chegam pelo nascimento como estranhos
e recém chegados.
11
A Revolução, por ser mais que uma simples mudança, é capaz de
transformar os rumos dos acontecimentos históricos. É por isso que as Revoluções são os
únicos eventos políticos que nos confrontam, direta e indiretamente, com o problema do
começo.
12
O fenômeno revolucionário torna possível uma nova ação no mundo. Por causa da
natalidade, que se encontra presente na condição humana, a nossa ação é fundadora.
No comentário de Celso Lafer, a natalidade significa para Hannah Arendt que nós nos
iniciamos no mundo através da ação.
13
Quando Arendt expõe o problema da novidade
revolucionária, a questão da fundação do corpo político vem à tona. Nas análises que Arendt
faz sobre as Revoluções do velho e do novo continente, a fundação de um novo corpo político
aparece como meta fundamental a ser alcançada. As reflexões feitas pela nossa autora a
respeito da fundação tratam principalmente da questão da fundação do corpo político.
Sabemos que existe, na História do nosso pensamento político,
14
outros autores que
trabalham com o tema da fundação, mas o que queremos demonstrar é que Arendt procura dar
a este tema uma ótica interpretativa nova. Dito de uma outra maneira, mesmo que o tema da
fundação do corpo político vem sendo muito tempo trabalhado pela filosofia e pelas
9
BIGNOTTO. Maquiavel e o Novo Continente da Política. In: NOVAES (Org.). A Descoberta do Homem e do
Mundo, p. 379.
10
ARENDT. Da Revolução, p. 16.
11
ARENDT. Crises da República, p. 70.
12
ARENDT. Da Revolução, p. 17.
13
LAFER. Pensamento Persuasão e Poder, p. 29.
14
Mas do que o tema da fundação, é o fato de que existe a partir da obra de muitos autores um “debate de
gerações.” A esse respeito, comenta Marcos Antônio Lopes: “De fato, comentaristas d s trabalhos de Hannah
Arendt, Leo Strauss, Sheldon Wolin e Eric Voegelin, como John Gunnel, apontam uma tendência, nestes
autores, para o estabelecimento de conexões diretas e indiretas, como se houvesse um diálogo contínuo e
ininterrupto entre Maquiavel e Platão, Montesquieu e Aristóteteles, tornando possível ler a hitória das idéias por
sequências regulares distinguindo então uma gica com o começo, um desenvolvimento e um epílogo bem
pronunciados. Em síntese, tal perspectiva revela uma certa compreensão linear da tradição do pensamento
político ocidental, mais acentuada talvez em Sheldon Wolin, para quem a intenção principal de um autor é
repercutir seus predecessores. É claro que não se rejeita o pressuposto desse perpétuo ‘debate entre gerações,’
elemento que, sem dúvida, é recorrente na história do pensamento político.” (LOPES. A História das Idéias
Políticas: o contexto de Hannah Arendt. In: Cronos - Revista de História, número 01: p. 20, 1999).
14
ciências sociais e políticas, percebe-se que é pertinente investigá-lo do ponto de vista das
análises arendtianas.
É a partir daí que pretendemos explicitar que o tema da fundação do corpo político no
contexto do fenômeno revolucionário, investigado sob o ponto de vista da perspectiva de
Hannah Arendt, abre um caminho novo que se caracteriza como uma luz original.
O caminho que pretendemos seguir parte da hipótese central de que só podemos
admitir o tema da fundação do corpo político no pensamento de Hannah Arendt se formos
capazes de explicitar: a categoria da natalidade como potencialidade política; o sentido da
Revolução como fundação que assegura o surgimento de um novo corpo político e a criação
das Constituições como um momento de enraizamento da fundação do corpo político no
tempo.
Dessa maneira, demonstraremos a validade de nossa hipótese procurando explicitar os
nossos propósitos, passando pela análise da tríade: Natalidade, Revolução e Constituição.
Nossa pretensão é tentar esclerecer que a abordagem dessa tríade nos oferece uma visão nova
de fundação do corpo político, sendo por esse motivo, capaz de acrescentar uma nova
contribuição para a História da Filosofia Política.
Optamos por desenvolver os passos da Tese, estruturando-a na forma de quatro
capítulos, cuja sistematização e fundamentação consistirão em garantir uma melhor
apresentação das análises feitas por Hannah Arendt para alcançar o nosso objetivo principal
que é chegar a uma análise original a respeito da fundação do corpo político em seu
pensamento.
Assim, em um primeiro capítulo, a nossa pesquisa se direcionará para as análises feitas
pela nossa autora a partir do recurso que ela faz da categoria da natalidade,
15
como raiz
15
Faz-se necessário recorrer à concepção arendtiana de natalidade, cuja raiz é agostiniana. É pertinente
demonstrar a influência do conceito de natalidade em Agostinho, quando este é transportado para o campo da
Fundação na Modernidade. Em ensaio interpretativo a respeito da tese de doutorado de Hannah Arendt, salienta
Joanna Vechiarelli Scott e Judith Chelios Stark: “The library of congress revised text is therefore triply
significant by incorporating Arendt’s revision, this ‘new beginnings’ in political theory in America” (SCOTT &
STARK. Love and with an Interpretative Essay, p. 115).
15
ontológica para a ação fundadora que pode ser traduzida no fenômeno revolucionário.
Daremos esse encaminhamento, porque em Arendt o fenômeno revolucionário é a
concretização da potencialidade política do homem, entendido por ela como natalidade
política. Esse primeiro capítulo pretende ser uma abordagem que girará em torno da ligação
da categoria da natalidade,
16
com a questão da fundação do corpo político interpretada por
Arendt como uma novidade sem precedentes em toda a História da Humanidade. Nossa tarefa
consiste em demonstrar como a natalidade é uma categoria
17
potencialmente política do
homem e como a ação humana encontra-se radicada ontologicamente no seu seio. Nesse
sentido, “só a ação é prerrogativa exclusiva do homem, nem um animal, nem um deus é capaz
de ação, e a ação, depende inteiramente da constante presença dos outros.”
18
Para Arendt o
homem não é um animal político, mas a categoria da natalidade é potencialmente política.
Nesse caso, surge a questão: Como solucionar o problema da natalidade, como uma categoria
de significado político, se Arendt refuta a concepção aristotélica de que o homem é um animal
naturalmente político? Nossa pretensão é mostrar que Arendt não limita a sua aposta na
categoria da natalidade comprendendo-a somente no âmbito da biologia, e ao mesmo tempo
não comunga com Aristóteles a concepção de que o homem é naturalmente político. A
solução desse problema consistirá em tentar compreender o sentido da natalidade como
categoria de potencialidade política inerente à nossa condição humana, e por consegüinte, o
seu papel de ser uma condição necessária para a efetivação da fundação do corpo político no
âmbito do fenômeno revolucionário moderno.
16
Para Leonardo Avritzer: “O conceito de natalidade ocupa um lugar seminal na obra arendtiana, estando
presente em todos os seus trabalhos e ocupando cada vez mais o centro de cada um deles. O seu significado é o
da indeterminação da ação desencadeada por um novo nascimento e, conseqüentemente, pela possibilidade
sempre aberta de instaurar-se um novo começo na política (Bowen-Moore, 1989: 22). Já na parte final da Origen
do Totalitarismo, a autora nos diz que o começo é a capacidade suprema do indivíduo e que, politicamente, ele
equivale à liberdade humana (Arendt, 1958: 479).” [AVRITZER. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah
Arendt. In: Lua Nova, número 68: p. 160].
17
Optamos por utilizar o termo categoria da natalidade, embora muitos comentadores de Arendt utilizam a
expressão conceito de natalidade. Considerando, que o conceito é algo que processa a descrição de um objeto,
preferimos o termo categoria por ela ser uma noção que serve como regra para a investigação. A Filosofia de
Arendt possui um caráter investigativo, por essa razão o termo categoria se adequa melhor aos anseios
arendtianos.
18
ARENDT. The Human Condition, p. 22 - 23; A Condição Humana, p. 31.
16
Em um segundo capítulo, abordaremos sobre o significado do fenômeno
revolucionário, buscando fazer uma explicitação do que ele realmente significa enquanto
fundação na modernidade. Uma hipótese a ser realçada nesse segundo capítulo é a de que para
a nossa autora o que ela concebe como idéia de fundação se desenvolve através das
Revoluções. O interesse que iremos focar nesta parte da pesquisa é o de como se a
fundação do corpo político no âmbito do pensamento de Arendt no contexto dessas duas
Revoluções do século XVIII. Apresentaremos no segundo capítulo, as principais razões
apontadas por Arendt para considerar o fenômeno das Revoluções como algo sem precedentes
na História. Demostraremos também, o significado, dado pela autora à palavra Revolução.
Apresentaremos as análises arendtianas em que a idéia de Revolução está associada à
concepção de liberdade política e distante do que se compreende por libertação das questões
sociais. Destacaremos também, a relevância da relação entre Revolução e secularização para a
criação do Estado laico.
Em um terceiro capítulo, estaremos demonstrando como se processa a fundação do
corpo político, no âmbito da experiência das Revoluções Americana e Francesa no que se
refere ao recurso à tradição e às diferenças e semelhanças inerentes ao processo de fundação
do corpo político. Analisaremos os tipos de tradição a que recorreram os pais fundadores das
duas Revoluções, a saber: o recurso às tradições Grega, Romana e Hebraica. O nosso interesse
é assinalar como Hannah Arendt trata da influência dessa herança tríade hebraica, grega e
romana no campo da fundação do corpo político no âmbito das Revoluções Francesa e
Americana. O recurso a essas três tradições nos coloca diante de um problema: Como
conciliar a inovação trazida pela fundação, enquanto Revolução, com a necessidade de
estabilidade assumida por Arendt no momento em que se busca suporte em acontecimentos
ocorridos no passado? Estenderemos nossas análises às causas das diferenças e das
semelhanças registradas no processo de fundação do corpo político desse evento ocorrido nos
dois lados do Atlântico.
17
Enfim, no quarto capítulo, nossa preocupação será a de demonstrar como Arendt
analisa a possibilidade de um novo modelo de corpo político e como a criação das
Constituições se estabelecem como enraizamento da fundação do corpo político na História.
Na primeira parte desse momento da pesquisa, seremos movidos por alguns questionamentos:
O que é realmente o corpo político em Arendt e como ele se configura? Como o corpo
político, na concepção arendtiana é constituído; e quais são os elementos que o compõem?
Acentuaremos nesse último capítulo a necessidade recorrente, tanto na França, quanto na
América, de estabelecer assembléias constituintes e de convenções especiais com o objetivo
único de esboçar uma Constituição. Estando a fundação acontecendo, surge o problema: como
ela deverá perpetuar-se na História? Nossa pretensão nessa segunda parte do quarto capítulo é
focar nossas análises no tema da Constituição para explicitarmos de que maneira ela se
estabelece como um momento de fixação da fundação no tempo.
A abordagem que será feita, de maneira alguma, irá se esgotar em tudo que
apresentaremos a respeito da fundação do corpo político no pensamento de Hannah Arendt. O
sesultado daquilo que for apresentado, certamente contribuirá com estudos posteriores.
18
CAPÍTULO I
Natalidade e Fundação
Birth and action, in other words, break up the fixed,
known patterns of cause and effect that, if we were to
believe some scientific and metaphysical schools,
otherwise seem to rule the processes of nature and life. In
Arendt’s words, ‘action has the closest conection with the
human condition of natality; the new beginning inherent
in birth can make itself felt in the world only because the
newcomer possesses the capacity of beginning something
anew, that is, of acting.’ And acting, so construed, is the
seat of freedom in human life.
By Jonathan Schell
19
Considerando que o interesse central de nossa pesquisa é explicitar como se processa a
fundação do corpo político
20
no pensamento de Hannah Arendt, faz-se necessário em um
19
SCHELL. A Politics of Natality. In: Social Research. Hannah Arendt’s the origins of Totalitarianism: Fifty
Years Later, p. 464.
20
Podemos considerar o termo corpo político como uma metáfora? Corpo político tornou-se um termo muito
utilisado em assuntos de filosofia e ciências sociais que parece, à primeira vista, distante daquilo que
normalmente denominamos de metáfora. Vários são os entendimentos que giram em torno da palavra corpo.
Segundo gis Joliver, em seu vocabulário de Filosofia, corpo é “Tudo o que cai debaixo dos sentidos, todo ser
que resulta da união de uma matéria e de uma forma (ex: a água como resultado da síntese de O e 2H), o
organismo humano ou animal em oposição à alma.” [JOLIVER. Vocabulário de Filosofia, p. 57]. De acordo
com Aurélio Buarque de Olanda Ferreira, corpo significa: “1- A substância física de cada homem ou animal. 2-
Cadáver. 3- A parte do organismo humano e animal formada pelo tórax e pelo abdome. 4- A parte central ou
principal (de um edifício, de um veículo, etc.). 5- Qualquer objeto material caracterizado por suas propriedades
físicas. 6- Tamanho do caráter ou do tipo. 7- Grupo de pessoas consideradas como unidade ou como conjunto
organizado. 8- A parte principal de uma idéia, de uma doutrina, de um texto.” [BUARQUE de OLANDA F.
Minidicionário da língua portuguesa, p. 187]. Arendt em A vida do espírito se refere ao uso da metáfora,
dizendo: “A linguagem, prestando-se ao uso metafórico, torna-nos capazes de pensar, isto é, de trânsito em
assuntos não sensíveis, pois permite uma transferência, metapherein, de nossas experiências sensíveis”
(ARENDT. A vida do espírito, p. 84). Para Fábio Abreu Passos, Arendt se utiliza da metáfora no sentido de
ponte para solucionar o problema do abismo existente entre faculdades espirituais e o mundo das aparências.
Para esse comentador de Hannah Arendt essa ponte permitida pela metáfora torna manifesto o pensar. A esse
19
primeiro momento demonstrar que, segundo a nossa autora, a natalidade é uma categoria de
significado político inerente à condição humana e que é devido a ela que o homem se revela
como um ser capaz de aventurar-se na fundação de novas realidades políticas. Por essa razão,
a nossa intenção nesse primeiro capítulo de nosso trabalho de pesquisa é explicitar o que
Arendt compreende e admite como natalidade, enguanto categoria de potencialidade política,
bem como a sua ligação com a tópica da fundação.
Hannah Arendt busca na filosofia de Agostinho a sua âncora para abordar o tema da
natalidade. De acordo com Julia Kristeva, Arendt parece privilegiar o Agostinho filósofo, em
detrimento do teólogo. É o tema da vida, por intermédio do amor, que estrutura a tese
21
de
Arendt sobre o conceito de amor em Santo Agostinho. Nessa sua obra, o que Arendt assinala
é o anúncio de um outro aspecto da vida, ou seja, uma vida que não é a vida eterna, mas trata-
se da vida que acontece no e pelo nascimento.
22
Referir-se à categoria da natalidade
23
como parte inicial da pesquisa é trabalhar no
sentido de reunir abordagens arendtianas que se traduzem como um momento capaz de reunir
condições para uma compreensão daquilo que a autora considera como temas que se
interligam. É o caso da relação entre natalidade e fundação. Para isso, a tópica da fundação de
respeito, ele afirma: “a metáfora serve de ponte sobre o abismo existente entre o mundo das atividades espirituais
básicas e o mundo das aparências, tornando manifesto o pensar.” (PASSOS, F. A. O nunc stans lacuna
possibilitadora da atividade do pensar na filosofia de Hannah Arendt. In: I Encontro de Pesquisa em Filosofia.
UFMG, 2003). Uma metáfora possui significados. A expressão corpo político trata de uma realidade
institucional que no caso de Hannah Arendt exprime tipos de regimes políticos. Nesse sentido, podemos falar de
corpos políticos autoritários ou democráticos. O termo corpo político que, a priori poderia ser tratado somente
como metáfora, é para Arendt, quando a mesma se refere a um tipo de estado-conselho, deveria ser um
organismo palpável “ajustado às mais diversas espécies de federações, porque nele o poder seria constituído
horizontalmente e não verticalmete.” (ARENDT. Crises da República, p. 201). Mas, mesmo que o tipo de corpo
político almejado por Arendt não se constitua ainda uma realidade, ou seja, não tenha ocorrido a transferência
a metapherein para o mundo sensível do domínio público, ela nos adverte: “Mas se você me perguntar que
probabilidade existe de ele ser realizado, então devo dizer: Muito pouca, se tanto. E ainda, quem sabe, apesar de
tudo – no encalço da próxima revolução.” (Ibidem, p. 201).
21
A tese doutorado de Hannah Arendt intitulada O Conceito de Amor em Santo Agostinho foi publicada em
lingua portuguesa pelo Instituto Piaget.
22
KRISTEVA. O gênio feminino: a vida, a loucura, as palavras, p. 43 - 44.
23
É evidente a influência do pensamento de Agostinho no conceito de natalidade trabalhado por Hannah Arendt.
A esse respeito, salienta Adriano Correia: “O que Arendt encontra em Agostinho, com e contra ele, é um modo
de compreender a existência humana que desloca a centralidade da relação do homem com o mundo da
mortalidade para a natalidade. Ainda que o próprio conceito de natalidade não tenha sido desenvolvido na tese,
20
um novo corpo político aparece como necessidade de uma investigação capaz de traduzir
melhor essa relação.
Evidencia-se a necessidade que temos em dedicarmos essa parte inicial de nosso
trabalho de pesquisa ao tema da natalidade enquanto categoria de significado político,
segundo a interpretação arendtiana. Ao expor a categoria da natalidade, enfatizando a sua
dimensão potencialmente política, estaremos lançando fundamentos teóricos para uma
compreensão do fenômeno revolucionário descrito por Arendt, bem como a respeito do
processo de fundação do corpo político em seu interior. Assim, reforça-se a pertinência desse
propósito inicial de nossa pesquisa, ou seja, o de demonstrar que a análise da natalidade em
Hannah Arendt se concretiza por meio de acontecimentos como aqueles denominados de
Revoluções Francesa e Americana. É por isso que nesse primeiro capítulo de nossa Tese,
abordaremos a questão da natalidade enquanto categoria de significado político inerente à
condição humana e, em um segundo momento, trataremos a respeito da potencialidade da
natalidade no que tange à sua função de propiciar um novo começo na História, isto é,
explicitaremos como ela se traduz como fundação de novas realidades políticas.
1.1- O significado político da categoria da natalidade
todo o contexto em que o tema se desenrola posteriormente já se encontra delineado, a ponto de Arendt
acrescentar o termo nas revisões feitas na década de 1960.” (CORREIA. Hannah Arendt, p. 19 - 20).
21
Por diversos momentos, em muitas de suas obras,
24
Arendt afirma que o homem é
começo. Entretanto, modelos de dominação, como o totalitarismo, exemplificados pela nossa
autora nas experiências nazistas e stalinistas, objetivam aniquilar a capacidade humana de
criar espaços públicos. Pois a principal obra dos regimes totalitários foi a destruição do espaço
público,
25
no qual foi produzido um tipo de corpo político antagônico a todo tipo de estrutura
organizacional de cunho democrático. O corpo político totalitário suprimiu a liberdade e a
pluralidade e, conseqüentemente, condenou as suas vítimas ao isolamento. O isolamento priva
o homem da experiência do espaço público.
26
Portanto, sem a experiência do espaço público,
não há efetivação da vida do homem no seio da esfera pública.
No cumprimento de sua tarefa de desmantelar os espaços públicos, o totalitarismo
criou um corpo político em que o lugar das leis positivas foi tomado pelo instrumento do
terror total.
27
O terror, como um dos instrumentos utilizados pelos regimes totalitários, tanto
no nazismo como no stalinismo, teve como objetivo destruir o chamado “inimigo objetivo.”
Em outras palavras, objetivou-se na ação do terror propagar a força da natureza e da História
24
A obra arendtiana que melhor aborda o tema da natalidade é a Condição Humana. Escrita em 1958, nela
Arendt aborda sobre a ação humana e a busca da possibilidade de um mundo não totalitário nos recursos da
resistência e renascimento contidos na própria condição humana. Trata-se de uma investigação que tem como
objetivo identificar os traços duráveis da condição humana, isto é, os traços menos vulneráveis às vicissitudes da
época moderna. Paul Recoeur considera essa obra arendtiana como uma antropologia filosófica que é concebida
como uma distinção entre trabalho (labor), obra (work) e ação (action) e que deverá, portanto, segundo ele, ser
avaliada do ponto de vista temporal da durabilidade dessas três atividades humanas fundamentais, para
compreender melhor o propósito de Hannah Arendt de recuperar a capacidade de iniciar algo de novo. Ver
prefácio à edição francesa, p. X XI: La condition de L’ homme moderne, Calmam lévy, 1961 (Reeditado em
1983 com prefácio de Paul Ricoeur). Todavia, o processo da ação significa para Arendt um processo de
nascimento. Faz-se necessário recorrer à concepção arendtiana de natalidade, ressaltando as suas raízes
agostinianas. É pertinente demonstrar a influência da categoria da natalidade em Agostinho, interpretada por
Hannah Arendt, principalmente quando esta categoria é transportada para o campo da fundação na modernidade.
25
O espaço público tal como Hannah Arendt o compreende é algo que se situa no mundo. Ele não é
propriamente uma instituição oficial. Trata-se de um espaço que se traduz enquanto espaço da união entre
indivíduos. Daí, ele ser muito mais que o estabelecimento físico. É nesse espaço que o mundo se revela até mais
que o simples debate sobre o mundo comum. Anne Marie Roviello também considera o espaço público como
algo que não se resume ao simples debate sobre o mundo comum. Para ela, o espaço público deve ser o lugar
onde se encontram reunidos vários indivíduos. Por isso: O debate político não é simples debate sobre o mundo
comum, ele é a constituição mesma da comunidade do mundo, o mundo comum relevando a ele mesmo, ou
instituindo a questão que ele é em si mesmo. Neste sentido, um espaço político pode se abrir em todo lugar onde
se encontram reunidos vários indivíduos.” (ROVIELLO. Sens commun et modernitè chez Hannah Arendt, p.
226).
26
Sobre a dissolução do espaço público, ver CARVALHO. Maria helena S. A dissolução do espaço público no
pensamento político de hannah arendt. Belo horizonte: UFMG, 2002 (Dissertação de mestrado em Filosofia.
Linha de pesquisa – Filosofia Social e Política).
22
eliminando os inimigos objetivos quer fossem de classe, quer fossem de raça. Isso significa
que aqueles que não concordassem com as ordens impostas pelo regime, ou se enquadrassem
como raça odiada ou ainda como classe indesejada, eram automaticamente considerados
inimigos objetivos. É a reflexão arendtiana a respeito da natureza do terror que demonstra o
quanto esse instrumento de governo contribuiu para que o totalitarismo fosse um
acontecimento inédito quando comparado a outras formas de opressão política, como o
despotismo, a tirania e a ditadura.
28
Para Hannah Arendt, o totalitarismo, destruiu todas as tradições legais e políticas dos
países onde ele se instalou, transformou classes em massas, partidos em movimentos de
massa, substituiu o poder do exército pelo da polícia e criou uma política externa de domínio
mundial. Para tanto, utilizou-se do terror.
Apoiando-se na obediência à lei da História e à lei da natureza, o totalitarismo
analisado sob o ponto de vista de Arendt fez com que todas as leis se transformassem em leis
de movimento.
Na interpretação do totalitarismo nazista, a crença na necessidade de movimentar-se
de uma maneira impulsionada pela lei da natureza, apoiava-se na idéia de Darwin de que o
homem é produto de uma evolução natural que não termina no estágio atual em que se
encontra a espécie dos seres humanos. Nessa perspectiva, para o totalitarismo alemão, os
arianos eram concebidos como aqueles seres humanos, cujo estágio apresentava-se em um
momento de evolução natural mais avançado.
27
ARENDT. Origens do Totalitarismo, p. 516.
28
De acordo com Newton Bignotto, o último capítulo do Origens do Totalitarismo é a referência mais
importante. “Nesse texto Arendt se esforça para mostrar que o que ela chama de totalitarismo é uma ‘novidade
radical’ na história, não podendo ser compreendido com as categorias que até então nos serviam para pensar o
funcionamento dos diversos regimes, incluídos a tirania e os despotismos. A partir dessa constatação, é
possível para ela falar dos mecanismos de dominação inventados pelos regimes em questão como de algo que
nunca havia servido de fundamento para qualquer experiência política da humanidade.” (BIGNOTTO.
Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Hannah Arendt. In: ___________ & MORAIS (Orgs.). Hannah
Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 112).
23
No entendimento do totalitarismo bolchevista, o movimento se estendeu admitindo ser
a luta de classes a expressão da lei da História. Por esse ponto de vista, a lei da História se
apóia na noção de Karl Marx de que a sociedade é produto de um movimento dialético, capaz
de se extinguir por si mesmo. Arendt recorda que, para Engels, Marx seria o “Darwim da
História.”
29
Em termos de evolução, o movimento da História e o da natureza se apresentam como
sendo um só. Nesse sentido, a lei passa a ser a expressão desse movimento. Uma vez que
coube ao terror total converter em realidade a lei do movimento da História ou da natureza,
esse instrumento de governo, independentemente de toda oposição, chega a um ponto em que
ninguém lhe barra o caminho. O terror, nesse caso, passa a ser um instrumento de governo
que reina totalmente e se constitui como a essência do domínio totalitário. Pois é ele a própria
realização da lei do movimento.
30
O terror totalitário faz com que todos se tornem Um-Só-Homem, isto é, a investida
desse instrumento de governo é no sentido de transformar a todos em uma humanidade única.
É, diante disso, que o terror constitui-se como um elemento de suporte do regime totalitário
que destrói o espaço da pluralidade
31
entre os homens.
Um outro instrumento usado pelo totalitarismo na investida contra o espaço público
foi a ideologia: assim, segundo Arendt, coube a esta forma de manipulação o papel de
sustentáculo da imagem dos líderes totalitários. A ideologia é tudo aquilo que o sistema
29
ARENDT. Origens do Totalitarismo, p. 517.
30
Ibidem, p. 517.
31
Laure Adler comenta que para Hannah Arendt “a política repousa num fato: a pluralidade humana. Arendt,
que retoma suas teses sobre a diversidade, desenvolvidas no final de Origens do Totalitarismo, afirma que a
política, para voltar a ser nobre e confiável, deve repousar sobre os homens e não sobre uma teoria do homem.
Ela pretende reabilitar a política como forma de organização do mundo que se encarregaria da igualdade,
portanto, da diversidade de cada homem, e não de todos os homens. Recusa o modelo da família como princípio
de organização. Evoca a necessidade de refletir em termo de representação de uma história do mundo e define a
humanidade essencialmente pela pluralidade. Pela primeira vez, Hannah coloca em forma e por escrito o que
constituirá a partir de então o fio condutor de suas pequisas posteriores, tanto em filosofia quanto em história:
essa idéia, fundamental em sua obra, de que a política nasce no espaço entre os homens, portanto, em algo de
fundamentalmente exterior ao homem. Impossível não ficar espantado com seu nível de perspectiva, sua atitude
moral, sua recusa das modas e a originalidade de seu pensamento.” (ADLER. Nos passos de Hannah Arendt, p.
340).
24
totalitário precisava para guiar a conduta de seus súditos. Coube ao sistema aperfeiçoar as
grandes potencialidades da ideologia. Dito de uma outra maneira, para que o totalitarismo
pudesse atingir plenamente os seus objetivos, foi necessário o uso da ideologia.
Arendt explicita que a ideologia,
32
tal como ela se apresenta no interior do sistema
totalitário, não coaduna com o logoi que se traduz como um conjunto de discursos científicos
a respeito da idéia. A ideologia analisada por Arendt não é também a essência eterna daquilo
que se compreende como idéia em Platão e nem é também o princípio regulador da razão em
Kant. Para a nossa autora, “uma ideologia é bem literalmente o que o seu nome indica: é a
lógica de uma idéia.”
33
Se alguém se colocar como inimigo da lógica de uma ideologia não
pode se enquadrar dentro do sistema que ela respalda. No caso dos regimes totalitários alemão
e soviético, a lógica de uma ideologia fazia com que todos pensassem com a seguinte
premissa: “só podemos ter razão com o partido e através dele, pois a História não nos concede
outro meio de termos razão.”
34
Nessa perspectiva, se alguém fosse contrário à essa lógica,
certamente seria considerado inimigo do partido. A ideologia cuidou de amparar um corpo
político baseado na lógica da submissão ao sistema totalitário.
O corpo político criado pelo sistema totalitário, tal como foi exposto por Arendt em
Entre o Passado e o Futuro, constitui-se como um tipo de organização, cuja imagem mais
adequada parece ser a da estrutura da uma cebola.
35
Utilizando-se dessa linguagem
metafórica, Arendt afirma que no centro do corpo político localiza-se o líder, que de dentro
32
A respeito do potencial da ideologia comenta Jonh L. Stanley: “Arendt Believes that ideologies as she defines
them, ‘isms which . . . can explain everyting and every occurence by deducting [them] from a single premise’
are, like totalitarianism itself, unique to the modern age. Yet despite her belief that only Hitler and Stalin
discovered their full potential, it is the ideologies thenselves, rather than the psicology of the leader, which gives
totalitarian terroe its impetus. But Arendt is wrong, I believe, in arguing for the newness of ideologies and in
dissociating them from the passions of the leader tyrant; for there is a strikiting parallel between the two.”
(STANLEY. Is Totalitarianism a New Phenomenon? Reflections on Hannah Arendt’s Origins of Totalitarianism.
In: reprinted from The Review of Politics, número 02: p. 14 – 15).
33
ARENDT. Origens do Totalitarismo, p. 521.
34
Ibidem, p. 521.
35
AREDNT. Entre o Passado e o Fuuturo, p. 136.
25
tudo controla. E este controle não é feito nem de fora e nem de cima.
36
O totalitarismo
radicaliza o tratamento dado à liberdade, pois, procura atingí-la na sua fonte, que se encontra
no nascimento do próprio homem e na sua capacidade de começar de novo.
37
Se, por um lado, a experiência do totalitarismo procura aniquilar a liberdade humana
de começar algo de novo
38
no mundo em que habitamos, por outro, devido à categoria da
natalidade, somos possuidores da capacidade de poder começar algo espontaneamente. “A
liberdade de espontaneidade é parte inseparável da condição humana.”
39
A nossa autora teria
introduzido uma nova categoria na teoria filosófica que trata do homem, ao dizer que a
natalidade é, diferentemente da mortalidade, sem dúvida, a categoria central
40
do seu
pensamento político.
41
Imortalidade para Arendt significa a permanência no tempo.
42
Diante
disso, a investigação arendtiana visa, antes de tudo, voltar-se para os fundamentos do
significado político da natalidade. A esse respeito, afirma a autora:
Os homens são equipados para a tarefa fundamentalmente lógica de construir um novo
começo por serem eles próprios, novos começos, e portanto, inovadores, e de que a
própria capacidade de iniciação está contida na natalidade, no fato de que os seres
humanos aparecem no mundo em virtude do nascimento.
43
Evidencia-se que, em termos arendtianos, a ação política é concebida como um novo
nascimento. Nascemos quando agimos em conjunto, ou seja, a ação conjunta é um tipo
36
Ibidem, p. 136.
37
ARENDT. Origens do Totalitarismo, p. 518.
38
A esse respeito comenta Richard J. Bernstein em artigo intitulado The Origins of Totalitarianism: Not History,
but Politics: “But it might be said that with the passing of totalitarian regimes and its aim of total domination, the
threat of the elimination of human plurality, natality, and spontaneity has also passed-and the threat that human
beings are being made superfluous. But this is not the way Arendt understood our situation in the twentieth
century. These are less dramatically violent, but no less effective ways of distorting, reprening, and eliminating
these characteristics of human life. (BERNSTEIN. Not History, but Politics. In: Social Research, p. 391).
39
ARENDT. The Life of the Mind. Two: Willing, p. 110; A vida do espírito, p. 267.
40
Miquel Abensour salienta que “la nouveauté du geste philosophique d’Arendt, tient à l’affirmation que la
natalité entretient em priorité um rapport fondamental à la politique, mieux, que la natalité est ni plus ni moins la
condition de possibilité de la politique, de l’action politique. Autant la condition de mortalité et la valorisation
philosophique da la mort éloignent les hommes de leur condition politique, autant la condition de natalité les en
rappoche. Nous sommes des êtres politiques em tant qu’êtres natifs. (ABENSOUR. Hannah Arendt contre la
philosophie politique? p. 128 -129).
41
ARENDT. The Human Condition, p. 09; A Condição Humana, p. 17.
42
Ibidem, p. 18.
26
nascimento político. Todavia, comparadas às outras atividades da vita activa,
44
pode-se dizer
que a ação é a atividade política por excelência.
45
Percebe-se que se referir à ação, em termos arendtianos, é se dirigir ao território da
política. A autora não apresenta uma abordagem da natalidade na ordem dos aspectos
biológicos, restritos somente ao ato de vir ao mundo então compreendido como planeta Terra.
Em outros termos, Arendt, no momento em que trata da categoria da natalidade como
condição de possibilidade política, não se apóia naquilo que a caracteriza como uma questão
meramente natural. Assim, a nossa autora se desvia de uma interpretação meramente
biológica da concepção de natalidade, tomando um caminho que aponta para um conjunto de
investigações voltadas para análises que são típicas do campo político. Nesse caso, o ser
humano é um início, um começo, ou seja, ele mesmo é uma novidade, e por isso pode agir e
iniciar algo no mundo, junto com os demais. Em termos arendtianos, a faculdade de agir se
radica ontologicamente no fato de um dia termos nascidos.
46
Nesse sentido, a natalidade
deixa de ser uma categoria meramente natural porque passa a ter implicação política a partir
do momento em que o homem se insere no mundo. Quando dizemos que o homem é
potencialmente político, não é o mesmo que afirmar que ele é um zoon politikon no sentido
aristotélico do termo.
47
Arendt discorda da concepção aristotélica de que o homem é um
43
ARENDT. Da Revolução, p. 169.
44
A ação necessita situar-se no domínio dos assuntos humanos. Em The Human Condition esse propósito de
Arendt é assinalado com ênfase, como diz Adriano Correia: “Pensar o que estamos fazendo é, antes de tudo,
considerar as implicações das transformações operadas no domínio dos negócios humanos e da vitória do animal
laborans para a compreensão da vida desejável e para o domínio político. Em vista disto, Arendt examina as
condições da vida humana sobre a Terra, a distinção entre a esfera pública e privada, o referencial da polis; no
mesmo sentido, busca elucidar o significado do trabalho, da obra e da ação, e as transformações operadas nestas
capacidades humanas mais gerais, assim como na sua disposição hierárquica.” [CORREIA. Apresentação da
tradução de “Labor, work, action” (Hannah Arendt). In: ___________ (Org.). Hannah Arendt e a condição
humana, p. 335].
45
ARENDT. The Human Condition, p. 9; A Condição Humana, p. 17.
46
Ibidem, p. 247; p. 259.
47
Para Maria José Cantista, em Hannah Arendt: “Ser e ser político identificar-se-ão, pelo o que o conceito de
cidadania cobrará um relevo e um alcance ontológico considerável (e talvez, discutível, ma medida em que ser e
ser cidadão, parecem, afinal, identificar-se, ou, pelo menos, tender a uma tal identificação). A cidadania é o
direito dos direitos: sem ela, o direito à segurança, à liberdade, à preservação da vida, à propriedade, ao bem
estar, à paz de que Arendt se ocupou num comentário aos filósofos dos direitos humanos, são palavras vâs.
Ontológico, antropológico e político no cntexto arendtiano, são sinônimos.” [CANTISTA. O Político e o
27
animal político. Ela refuta a concepção aristotélica de que o homem ao nascer é lançado
naturalmente para a vida em comunidade. O ser humano pode nascer e não viver em
comunidade. O homem não nasce político, mas em condição de possibilidade política. Se por
um lado Arendt discorda de Aristóteles quanto à sua crença de que o homem é naturalmente
político, por outro, ela se filia à concepção agostiniana de que existe um potencial
antropológico e ontológico do homem que revela a sua capacidade contínua para o começo.
Miquel Abensour comenta que a condição da natalidade presente no homem é a
manifestação de sua natureza originária, e possui como tarefa abrir-se a uma infinidade de
possibilidades suscetíveis de fazer surgir o novo no mundo. Na sua compreensão da condição
humana a dimensão do nascimento afirma a sua qualidade originária, inicial e ontológica.
48
É na insersão no mundo no contato com as diferenças que o segundo nascimento
acontece. “A política trata da convivência entre diferentes.”
49
Arendt acredita na singularidade
de todo homem que nasce. A singularidade do homem se evidencia em função das
singularidades dos outros seres. Dito em termos arendtianos, o homem é um ser singular entre
os seres viventes que habitam o planeta, porque a sua pluralidade é paradoxal quando é posta
em relação a outros seres com as singularidades que lhes são próprias. O que torna evidente
essa distinção que faz do homem um ser singular em relação aos outros seres e a outros
homens é a existência dos elementos do discurso e da ação.
50
O homem lida com as diferenças
na teia das relações
51
que ele estabelece no mundo no qual se insere. As diferenças entre os
homens são também inerentes à nossa condição de animais humanos. Para o antropólogo
Filosófico no pensamento de Hannah Arendt. In: Revista da Faculdade de Letras Fiosofia da universidade do
Porto. II Série, volune XV-XVI: p. 56 – 57].
48
ABENSOUR. Hannah Arendt contre la philosophie politique? p. 128 -129.
49
ARENDT. O que é Política? p. 21.
50
ARENDT. The Human Condition, p. 189.
51
Os homens vivem envoltos em uma teia de relações, onde o fator alteridade apresenta-se como uma situação
capaz de exigir que haja comunicação entre eles. A comunicação entre os homens constitui-se como um
elemento necessário à vida em sociedade, devido à existência da alteridade. Em termos arendtianos, ser diferente
não significa ser outro. Pois, se existe o outro, então é possível fazer distinções entre uma coisa e outra. Essa
alteridade é um aspecto importante do elemento pluralidade, que somente se evidencia onde há diferentes formas
28
François Laplantine, aquilo que os seres humanos têm em comum é a capacidade que eles
possuem para se diferenciarem uns dos outros. Esta capacidade é demonstrada quando na
elaboração dos costumes, no uso das línguas, nos modos de conhecimento, na criação de
instituições e nos jogos profundamente diversos.
52
Ter a capacidade de lidar com as diferenças inerentes à condição do homem na Terra,
demonstra o quanto o homem é potencialmente político. Porque “a política surge no entre-os-
homens.”
53
Ela “surge no intra-espaço e se estabelece como relação.”
54
Se o homem é capaz
de se relacionar com o diferente numa relação inter homines esse,
55
sua potencialidade
política está provada.
Francisco Ortega
56
se refere à noção arendtiana de natalidade, isto é, ao nascimento,
comentando que essa noção constitui-se como o pressuposto ontológico da existência do agir,
que é possível se realizar se sairmos da esfera da segurança e nos confrontarmos com o
novo, o aberto, o contigente. Pressupõe também que aceitemos o encontro e o convívio com
novos indivíduos. Esse pressuposto ontológico se traduz no desafio do outro, do estranho e do
desconhecido. Esse abrir para o outro é sem medo e sem desconfiança. Ele se apresenta como
uma forma de sacudir formas fixas de sociabilidade, de viver no presente e de redescrever
nossa subjetividade, bem como de recriar o amor mundi e de reinventar a amizade.
57
Nesse
de singularidades. Pois é por meio da alteridade que o homem tem em comum uma ligação com tudo que existe e
também com tudo que ele partilha e com tudo que ele vive.
52
LAPLANTINE. Aprender Antropologia, p. 22.
53
ARENDT. O que é Política? p. 23.
54
Ibidem, p. 23.
55
A esse respeito, comenta Celso Lafer: “Observo, em plena concordância com a recente leitura de Betânia Assy
que, em A Vida do Espírito, Hannah Arendt transpõe as categorias que elaborou em A Condição Humana
visibilidade, publicidade, comunicabilidade, do ato e da linguagem para a sua reflexão fenomenológica sobre
as atividades do pensar, do querer e do julgar. O público é, portanto, para Hannah Arendt, não apenas
indispensável para a vita activa. É também o meio de evitar o solipsismo do Espírito e assegurar a sua conexão
com o mundo uma vez que, dada a condição humana da pluralidade, viver é ‘estar entre os homens’ inter
homines esse.” (LAFER. Hannah Arendt e Norberto Bobbio uma proposta de aproximação. In: CORREIA
(Org.). Hannah Arendt e condição humana, p. 19).
56
ORTEGA. Amizade em Tempos Sombrios. In: Mulheres de palavra, p. 28.
57
Sobre o significado dessa amizade analisada por Arendt, comenta Eugênia Sales Wagner: “A amizade (philia),
que permite aos amigos compreenderem ‘como e em que articulação específica o mundo comum aparece para o
outro,’ cria, do ponto de vista político, um espaço de compreensão entre aqueles que convivem, ainda que
cada um observe o mundo a partir de uma perspectiva diferenciada. Ao desejar tornar amigos os cidadãos da
polis, Sócrates manifestava convicção de que a humanidade de cada um é expressão do fato de que o mundo é o
29
caso, a natalidade se apresenta como condição de possibilidade de ação política que é
provocada pelo amor mundi.
58
Adriano Correia diz que “Hannah Arendt compreendia o
político antes de tudo como resultado do amor ao mundo.”
59
Por essas considerações a respeito do que Francisco Ortega compreende como
pressuposto ontológico da existência do agir, constata-se que a natalidade em termos
arendtianos, enquanto categoria potencialmente política, não é a natalidade concebida no
âmbito biológico. Uma interpretação da concepção de natalidade em Hannah Arendt, feita por
Jonathan Schell, também adverte sobre esse caráter não biológico dessa categoria. Schell se
refere a uma política da natalidade - a politics of natality. Depreende-se daí que a
interpretação arendtiana da categoria de natalidade se estende para o território da ação
política, portanto, ela não se limita à perspectiva de ordem natural ou biológica. É por esse
motivo que se torna pertinente explicitar o significado político do tema da natalidade. Para
isso, torna-se necessário lançar mão das abordagens feitas pela nossa autora, no que tange ao
conjunto dos fundamentos que a faz admitir que a natalidade é uma categoria potencialmente
política, bem como as razões apresentadas por ela quando a mesma distancia esse tema do seu
aspecto meramente biológico.
60
mesmo mundo para todos, ainda que se abra de um modo diferente para cada cidadão. O que a amizade instaura
é a comunidade: indivíduos diferentes tornam-se parceiros iguais. É a amizade em sentido político, que
compreende à philia politike aristotélica, que instaura um mundo comum entre os cidadãos o mundo que
aproxima e separa os cidadãos.” (WAGNER. E. S. Hannah Arendt: Ética e Política, 30).
58
O amor mundi é uma tópica importante para uma melhor explicitação daquilo que se pode compreender como
condição humana no pensamento de Hannah Arendt. Esse tema não será abordado nesse nosso trabalho, porque
ele não faz parte das abordagens que visam demonstrar os objetivos do foco central de nossa pesquisa. Esta é
uma situação que não desmerece o valor da complexidade de seu conteúdo.
59
CORREIA. O significado político da natalidade – considerações sobre Hannah Arendt e Jüngen Habermas. In:
__________ (Org.). Hannah Arendt e a condição Humana, p. 226.
60
Nesse sentido, percebe-se o quanto é relevante no âmbito do pensamento arendtiano lançar mão de uma
filosofia da natalidade. Essa filosofia teria como pressupostos, para a sua elaboração, a experiência do
extraordinário, do inusitado e da espontaneidade. Nessa perspectiva podemos dizer que ocorre uma aproximação
entre Kant e Agostinho, como adverte Arendt: “And had Kant known of Augustine’s philosophy of natality he
might have agreed that the freedom of a relatively absolute spontaneity is no more embarrassing to human reason
than the fact that men are born newcomers again and again in a wold that preceded them in time.” (ARENDT.
The Life of the Mind. Two: Willing, p. 110; A vida do espírito, p. 267).
30
Para Hannah Arendt, a inserção dos seres humanos no mundo público se realiza por
meio do uso da palavra e do exercício da ação.
61
Portanto, essa inserção é como um segundo
nascimento. Em termos biológicos, não como existir dois nascimentos. Nesse sentido, um
segundo nascimento é possível no interior do mundo público. Dito de um outro modo, é na
instância do espaço público que ocorre, por meio da palavra
62
e da ação, que acontece uma
série de nascimentos contínuos.
De acordo com Françoise Collin
63
nascer significa aparecer pela primeira vez. Todas
as vezes que aparecemos em público, passamos a fazer parte da coletividade humana. O ato
de inserção no coletivo humano é uma rememoração deste ato originário. É devido ao fato de
aparecer pela primeira vez que nos tornamos públicos. O ato de nascer é a afirmação da
presença de cada um de nós. Nascer é nos afirmarmos como seres falantes e agentes na
coletividade, é o inter-ser. Devido a esse tipo de entendimento, nota-se que a categoria de
natalidade assinalada por Arendt, se estende muito além daquilo que se compreende como
natalidade natural.
61
Hannah Arendt em sua obra A Condição Humana faz inúmeras referências ao importante papel da fala, da
ação em meio à pluralidade. Tratam-se de elementos que são vividos no interior da polis. Essa referência
acontece por meio do recurso arendtiano ao paradigma da antiga polis grega. A nossa autora parece não cesar de
insistir na articulação entre a fala e ação voltadas para a pluralidade. Assim ela se expressa: “A ação e o discurso
ocorrem entre os homens, na medida em que eles são dirigidos, e conservam sua capacidade de revelar o agente
mesmo quando o seu conteúdo é exclusivamente <<objetivo>>, voltado para o mundo das coisas no qual os
homens se movem, mundo este que se interpõe entre eles e do qual procede seus interesses específicos, objetivos
e mundanos. Esses interesses constituem, na acepção mais literal da palavra, algo que inter-essa, que está entre
as pessoas e que portanto as relaciona e interliga. Quase sempre a ação e o discurso se referem a essa mediação,
que varia de grupo para grupo, de sorte que a maior parte das palavras e atos, além de revelar o agente que fala e
age, refere-se a alguma realidade mundana e objetiva.” (ARENDT. The human Condition, p. 182; A Condição
Humana, p. 195).
62
O uso da fala era uma realidade presente na vida da antiga polis grega, isto é, nela a sua utilização era
constante, ou seja, ocorria no seu dia a dia. Hannah Arendt remonta à Grécia para explicitar a forma
especificamente política de falar. (ARENDT. Filosofia e Política. In: ABRANCHES (Org.). A Dignidade da
Política, p. 91). Para a nossa autora, essa forma de falar se dava pelo uso da persuasão. Pois, no espaço do
mundo político-cultural grego, a persuasão era considerada uma arte. Nesse caso, os argumentos políticos
procediam por meio do uso da persuasão. A palavra persuasão é relacionada à deusa Peithô, pois dela deriva o
verbo pheithein, que significa persuadir. O verbo peithein era sinônimo “de discurso convincente e persuasivo
tido pela tradição grega como forma tipicamente política de falarem às pessoas umas as outras.” (ARENDT.
Entre o Passado e o Futuro, 227). Temos como exemplo de valorização da fala na Antiguidade clássica, além da
persuasão efetuada pelos gregos, a retórica romana. Para os romanos ela era de uma importância considerável.
63
COLLIN. Du prive et du public. Les cahiers du Grif, p. 56 – 57.
31
Se o entendimento da concepção natural de natalidade não se enquadra naquilo que
Arendt compreende como natalidade política.
64
Nesse caso, somente a natalidade assinalada
como categoria política, pode explicar a garantia de continuidade da vida. O surgimento de
uma nova ordem política, significa a realização de um segundo nascimento. A esse respeito,
nos adverte Jonathan Schell:
Na medida em que a extião o fim não de um indivíduo, mas das espécies é uma
segunda morte que, quando concretamente definido, significa o fim do nascimento, a
fundação de uma ordem política que garanta a continuidade da vida seria um
verdadeiro “segundo nascimento” um renascimento pelo qual esta segunda morte
foi derrotada.
65
Percebe-se que onde existe vida, existe nascimento. uma ordem biológica que
garante o princípio dos ciclos vitais das espécies que habitam o nosso planeta. A natalidade é
uma categoria que não se processa da mesma maneira em todos os seres vivos. Nesse sentido,
a natalidade, quando concebida como uma categoria que vai além do ato do nascimento
biológico, se estabelece por uma concepção de significado político inerente à espécie humana.
No ato do nascimento, em sua dimensão biológica, chegamos a esse mundo, quando no
momento oportuno, somos levados por um conjunto de contrações a rompermos com os
limites da vida intrauterina e, conseqüentemente, somos então lançados, por causa dessas
contrações, à luz do mundo exterior. Em se tratando de natalidade do ponto de vista de
aspectos biológicos, os animais passam a conhecer a luz do mundo pelo ato do nascimento,
atividade natural que marca o fim dos laços do filho com a sua antiga morada no útero
materno. Mas, em termos arendtianos, ao contrário de alguém que vem a este mundo no
momento em que ele rompe com o espaço da vida uterina e passa então a vivenciar a luz
exterior, nascer significa lançar-se em uma série de ações necessárias que são capazes de
64
Sobre alguns pressupostos de uma filosofia da natalidade em Hannah Arendt, ver obra de Patrícia Bowen-
More intitulada Hannah Arendt’s Philosophy of Natality, St martin’s Press, 1989.
65
SCHELL. Politics of Natality, p. 461. In: Social Research, vol. 69, nº 2 (summer 2002).
32
transformar o mundo. É nesse sentido que, para a nossa autora, a ão é a efetivação da
condição humana da natalidade.
66
É a partir dessa linha de interpretação adotada por Hannah Arendt que podemos
perceber que a natalidade não pode ser considerada como uma categoria que se apóia somente
no âmbito do preceito natural.
67
É, por essa razão, que o nosso propósito é o de reforçar que o
significado de natalidade em termos arendtianos se no âmbito da análise da ação política.
Nessa perspectiva, Paul Ricouer, citado por Françoise Collin, escreve:
Este recurso ao tema da natalidade nos confunde mais do que nos ajuda na nossa
justificativa da definição proposta em torno do poder. A natalidade, o nascimento, o
ser nascido: essas palavras são tiradas do âmbito da biologia, enquanto todo
pensamento político é retirado do campo do fenômeno supramente humano. Nesse
sentido, sem antecedente político, mesmo a violência é estritamente humana,
malgrado essas tenebrosas razões da agressividade.
68
A natalidade é uma condição do homem político, isto é, ela está presente na vida do
homem, cuja natureza é potencialmente política (bios politikos). Ricouer parece nos
apresentar a natalidade como uma condição pré-política, algo que não se distancia da
concepão arendtiana da natalidade como categoria potencialmente política. Nesse sentido, o
tema da natalidade em Hannah Arendt possui uma interpretação de caráter político, ou seja,
trata-se de um elemento inerente à nossa condição de homo politikos. Em se tratando de
66
ARENDT. The Human Condition, p. 178; A Condição Humana, p. 191.
67
Por não se apoiar somente no âmbito do preceito de ordem natural, a condição humana da natalidade é
explorada por Arendt no âmbito de suas análises a respeito da educação. Nesse sentido, a natalidade é uma
categoria que se apresenta como essencial para o exercício da educação. Essa concepção se ampara no fato de
que é por via da natalidade que novos seres humanos vivem no mundo, sempre velho desde a perspectiva deles.
É por isso que a tarefa de educar em termos arendtianos é a de preparar “os novos”, os recém-chegados, para o
seu segundo nascimento. Diz a autora: “O que nos diz respeito, e que não podemos delegar às ciências
específicas da pedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-los em termos ainda mais
gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de
ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento.” (ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 247).
Nesse caso, recomenda-se a leitura do Debate com Mèlich e Barcena: La educación como acontecimiento ético.
Natalidad, narración y hospitalidad, Paidós, 2000.
68
RICOUER apud COLLIN. Agir e donné. Hannah Arendt et la modernitè. Annals de I’institut de philosophie
et de sciences morales, p. 42 - 43.
33
assuntos políticos em termos arendtianos, o tema da natalidade, na sua dimensão política,
aparece como um tema a ser abordado no universo da condição humana.
Trataremos nas linhas que se seguem sobre o significado dado por Arendt à palavra
ação, que conseqüentemente encontra-se radicada ontologicamente na natalidade.
Demonstraremos em seguida a reinterpretação que Arendt faz da concepção agostiniana da
natalidade e, posteriormente, explicitaremos como a nossa autora lida com a questão do
processo enquanto elemento fundamental para o significado político da categoria da
natalidade.
É específico de Hannah Arendt, quando ela aborda determinados temas, utilizar-se de
recursos que se voltam para o sentido originário das palavras. A nossa autora faz parte de uma
tradição de filósofos que em suas abordagens enfatizam as raízes dos conceitos empregados
por eles, utilizando-se de significação lingüística. Heidegger
69
é um expoente que pertence a
esse tipo de tradição filosófica que lança mão desse artifício, ou seja, esse pensador busca na
etimologia das palavras os elementos para a interpretação de conceitos.
De acordo com Elizabeth Young-Bruehl,
70
Arendt denominou o seu método filosófico
de “análise conceitual.” Esse método possui a tarefa de descobrir “de onde vêm os conceitos.”
Ora, um método caracterizado dessa maneira, recorre à ajuda da filologia ou da análise
lingüística para retraçar o caminho dos conceitos políticos se dirigindo até as experiências
históricas concretas e políticas. Esse tipo de caminho que a nossa autora se propunha a
percorrer era no sentido de buscar a origem dos conceitos dessas experiências históricas e
69
Martin Heidegger, filósofo contemporâneo alemão, foi professor de Hannah Arendt na universidade de
Marburg, quando ela tinha somente 18 anos de idade. Atualmente, ambos são considerados gigantes intelectuais
do século XX. No que tange à relação entre Arendt e Heidegger a respeito da natalidade política, diz Elizabeth
Young-Bruehl: “Hannah Arendt trouxe a ‘natalidade para a luz conceitual em seu trabalho posterior,
resgatando-a da negligência filosófica. Nisso se afastou de Heidegger: para ele a mortalidade, era a condição
existencial crucial. Heidegger não se preocupou com a ação ou, em geral com o âmbito político. Hannah Arendt
foi muito influenciada pelas descrições da vida cotidiana em Ser e Tempo, mas achavam que elas não iam longe
o bastante. Heidegger apresentou o “lançar-se” do homem em direção à morte, seu precipitar-se de cabeça para o
futuro que vem em sua direção, mas não apresentou a força do passado, a presença de inícios” (YOUNG-
BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 431).
70
YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: Por amor ao mundo, p. 286.
34
políticas concretas. Nessa investida, Arendt se apresenta como capaz de avaliar a que ponto
um conceito se afastava de suas origens, como também mapear a variedade de conceitos
através do tempo, que conseqüentemente marcaram pontos de confusão lingüística e
conceitual.
Hannah Arendt apresenta o sentido original da palavra ação, apoiando-se em um
recurso que se faz a partir das tradições lingüísticas grega e romana. Dessa maneira, Arendt
nos situa no âmbito de um tipo de pensar e traduzir palavras que certamente não nos faz
perder de vista significados construídos dentro do contexto das tradições grega e romana. A
experiência dos mundos grego e romano da Antigüidade é impregnada de uma certa
relevância devido ao fato de se constituírem como pilares da cultura que envolve a História do
pensamento ocidental. Daí, a pertinência desse tipo de recurso adotado por Hannah Arendt:
recorrer ao sentido original do significado das palavras não deixa de ser um instrumento capaz
de possibilitar o resgate de algo perdido no desenrolar dos acontecimentos que envolvem os
processos históricos. Esse tipo de resgate revela a importância dada por Hannah Arendt ao
recurso do sentido do verbo agir em suas origens etimológicas.
Para Hannah Arendt, o verbo agir no seu sentido mais geral significa tomar iniciativa,
isto é, iniciar. O termo iniciar é indicado pela palavra de origem grega denominada archein,
que é o mesmo que começo ou ser o primeiro. Dito de uma outra maneira, para a autora, o
termo grego archein significa iniciar e comandar, isto é, ser livre.
71
O verbo grego archein é
correlato ao verbo prattein que significa atravessar, realizar e acabar. Diferentemente das
línguas modernas, o latim e o grego concebem as palavras archein e prattein a mesma
correlação no que se refere à designação do vergo agir, embora sejam palavras diferentes.
Esses dois verbos gregos correspondem a dois verbos latinos: agere (pôr em movimento,
guiar) e gerere que significa conduzir. A autora assinala que o uso desses dois verbos é para
71
ARENDT. Será que a política ainda tem de algum modo um sentido? In: ABRANCHES (Org.). A Dignidade
da Política, p. 122.
35
demonstrar que a divisão da ação se em duas partes: o começo que é feito por uma
pessoa e a realização a qual muitos aderem para conduzir, acabar e levar a cabo o
empreendimento. Por essa forma de entendimento pratteim e gerere passam a designar a ação
em geral.
72
Ambos os verbos revelam a necessidade do agir humano voltado à perspectiva do
começo.
Percebe-se que, no que diz respeito ao recurso arendtiano relativo à noção grega do
termo agir, nos é apresentado o sentido do agir humano como começo. Por esse ângulo,
compreende-se que o agir é um tema amparado na tradição lingüística grega e significa
tomada de iniciativa. Agir significa algo voltado para instauração do novo, isto é, sua tarefa
consiste em criar novidades em um mundo considerado por Hannah Arendt como o habitat
natural da espécie humana.
73
O recurso assumido por Hannah Arendt, através do viés da
tradição grega, demonstra que se trata de uma investigação em que se aplica ao termo iniciar
uma configuração política em seu conteúdo. Tal recurso considera que a política, a partir da
concepção assumida por Hannah Arendt, pode ser somente fruto da ão humana,
diferentemente de qualquer outra espécie que habita o planeta Terra.
A autora diz que, em alguns casos, o termo agir possui o significado de “governar,”
que, em outras palavras, pode ser descrito como algo capaz de imprimir movimento a alguma
coisa. Nesse sentido, agir assemelha-se ao significado original vindo da tradição romana.
Vinculado à tradição da antiga Roma, o significado do agir ampara-se no termo latino agere.
74
Evidencia-se que esse recurso utilizado por nossa autora ao termo latino sobre o significado
do agir humano comporta o sentido da ação sob o ponto de vista do ato entendido como
movimento. O termo latino agere entendido como movimento tem o mesmo significado de
72
ARENDT. The Human Condition, p. 189; A Condição Humana, p. 202.
73
ARENDT. Será que a política ainda tem de algum modo um sentido? In: ABRANCHES (Org.). A Dignidade
da Política, p. 141.
74
AREDNT. The Human Condition, p. 177; A Condição Humana, p. 190.
36
desencadeamento de um processo.
75
Agere, então compreendido como um termo
originalmente de língua latina, é um verbo de tradição romana, cujo conteúdo se pauta no ato
de movimentar. Partindo desse ponto de vista, evidencia-se que o sentido da palavra ação
encontra-se relacionado à atitude de provocar movimento a alguma coisa e que, portanto, é
algo típico do comportamento daqueles que possuem a tarefa de governar e daqueles que se
dispõem a discutir e a deliberar no âmbito do espaço público. Um dos resultados que se pode
obter dessa análise feita por Hannah Arendt é que se torna pertinente empregar o termo latino
agere, adaptando-o ao exercício de movimentar, quando se trata de funções relativas a algum
tipo de exercício relacionado a diferentes formas de governo e a diferentes formas de
participação política.
Um outro recurso adotado por Arendt pode ser percebido quando ela lança mão da
filosofia de Agostinho com o objetivo de reinterpretar, do pensador da Patrística,
76
a sua visão
de natalidade. Na parte conclusiva de sua obra intitulada As Origens do Totalitarismo, diz que
“o começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem;
politicamente, equivale à liberdade do homem.”
77
Dito de uma outra maneira, o homem é
75
ARENDT. Será que a política ainda tem de algum modo um sentido? In: ABRANCHES. A Dignidade da
Política, p. 122.
76
A Patrística é um momento da História da Igreja que se firma como caracterizado pelo surgimento de uma
teologia cristã com bases na filosofia grega, nos ensinamentos e tradição da Igreja Primitiva. Nesse período
vários padres se destacaram como formuladores da ortodoxia das Igrejas cristãs ocidental e oriental. No
entendimento de Tiago Adão Lara “Agostinho é sem dúvida, no Ocidente, o Padre mais brilhante, ainda que não
possamos esquecer figuras importantes como as de Ambrósio e de Jerônimo, seus contemporâneos; Leão I e
Gregório I, posteriores a Agostinho. (LARA. Curso de História da Filosofia: a Filosofia nos Tempos e
Contratempos da Cristandade Ocidental, Coleção: Caminhos da Razão no Ocidente, p. 31). Hannah Arendt na
introdução de sua tese de doutorado intitulada O Conceito de Amor em Santo Agostinho, faz menção à herança
do Novo Testamento (ao mandamento do amor e a São Paulo) às filosofias gregas e neoplatônicas como
influenciadoras do pensamento agostiniano: “Santo Agostinho tenta compreender o amor e procura dizer
qualquer coisa sobre o mesmo, introduzindo sempre pelo menos o amor ao próximo, se bem que a questão da
importância do próximo se transforme numa crítica do conceito dominante de amor, da posição do homem em
relação a si e a Deus (é dito: ‘Deves amar o próximo como a ti mesmo, e só o fazes porque és obrigado por Deus
e pelo seu mandamento). Essa crítica nunca significa uma crítica absoluta a partir de um ponto de vista filosófico
ou teológico fixo, é apenas uma mera crítica, porque este conceito de amor é suposto ser um conceito cristão.
Cristão significa, por outro lado, nada mais do que paulino, visto que, em Santo Agostinho, vida e pensamento,
por mais que sejam efetivamente religiosos e não sejam determinados por influências gregas e neoplatônicas,
são-no sobretudo a partir de São Paulo, tal como o próprio Santo Agostinho reconhece na obra Confissões.”
(ARENDT. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 8).
77
Arendt doutorou-se com uma tese sobre o conceito de amor em Santo Agostinho, sob a orientação de Karl
Jaspers. Elizabeth Young-Bruehl afirma que “A tese de doutorado de Hannah Arendt Der Liebesbegriff be
37
livre para começar e ele é um animal que foi criado para esse propósito. Esta é uma colocação
que Hannah Arendt remete à filosofia de Agostinho.
78
Tal afirmação significa que o homem,
ao nascer, é a garantia desse começo, ou seja, cada um de nós possui a capacidade de garantir
o surgimento da novidade no mundo. Se formos criados para o começo, temos, evidenciado
em nós, uma motivação inicial que impulsiona a nossa capacidade para começar, isto é, a
nossa capacidade de fundar o novo.
O recurso adotado por Arendt em relação à concepção agostiniana de natalidade
caminha no sentido de transpor essa categoria para o campo da filosofia política. Elizabeth
Young-Bruehl apresenta uma sinopse a respeito da tese de Hannah Arendt: O Conceito de
Amor em Santo Agostinho (Der Liebesbegrif), onde sugere demonstrar como essa obra se
relaciona com as preocupações políticas e filosóficas posteriores de Arendt.
79
Constata-se que a intenção da autora é voltar-se para a dimensão política da categoria
da natalidade, assumindo considerações feitas por Agostinho, pois esse é o filósofo cristão no
qual Arendt se baseia para obter apoio a partir de uma análise a respeito do sentido político da
categoria da natalidade. A nossa autora reinterpreta a concepção agostiniana da natalidade e a
transfere para o território da filosofia política.
Para uma explicitação da interpretação do conteúdo político da categoria da natalidade
via concepção agostiniana, Hannah Arendt remonta a uma das expressões mais centrais a esse
respeito: Hence, that such a beginning ‘might be, man was created before whom nobody
was’ (‘quod initium, e o modo antea nunquam fuit. Hoc ergo ut esset, creatus est homo, ante
Augustin, empressa em caracteres góticos, recheada de citações latinas e gregas, são traduzidas e escritas em
prosa heideggeriana, não é uma obra fácil de entender. E. B. Ashton esboçou uma tradução, no ínicio dos anos
1960, mas Arendt não quis dar a tradução revisada para a publicação. Esperava acrescentar material novo ao
trabalho e assim tornar mais claro o que existia. Em 1965 renunciou ao projeto, desencorajada pelo volume de
trabalho necessário e preocupada com outras tarefas” (YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo,
p. 427).
78
O recurso feito por Arendt à filosofia de Agostinho pode levantar a questão de que a morte é um acontecimento
que aproxima os homens dos animais. Isso do ponto de vista biológico. Ao morrer, nossos corpos se assemelham
ao dos animais quando estes também morrem. Ao nascerem, os animais instintivamente prosseguem no seu ciclo
de acordo com os ditames da natureza, que não se faz por novidades. O homem, ao contrário, possui o propósito
do nascimento contínuo que o possibilita aprender a lidar com o inusitado.
38
quem nulhus fuit’”). “Portanto, para que um tal começo ‘pudesse ser, foi o homem criado sem
que ninguém o fosse antes dele’”
80
O conteúdo que a interpretação dessa expressão pode nos
oferecer à primeira vista é a sua contribuição para nos auxiliar a compreender que, pela ótica
interpretativa de Arendt, torna-se impossível se referir a abordagens em torno da política, sem
voltar-se para sua relação com a ação e a natalidade. Em outros termos, se torna possível
ter uma compreensão menos passível de erro em termos do entendimento do significado
arendtiano de política, caso estejamos prontos para lançarmos mão das análises que giram em
torno da categoria da natalidade. Sobre isso, diz Hannah Arendt: “Como a ação é a atividade
política por excelência, a natalidade e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do
pensamento político.”
81
Nesse sentido, ação e natalidade são categorias que se relacionam.
Referindo-se à investida arendtiana centrada na natalidade, diz Elizabeth Young-Bruehl:
A natalidade e a mortalidade tornaram-se no pensamento político posterior de Hannah
Arendt, as molas mestras da ação como início de algo novo e da ação como luta por
palavras e feitos imortais. As ações renovam as vidas dos homens e também concedem
aos homens a imortalidade que eles, como mortais, podem alcançar: continuam vivos
na memória humana. Arendt deslocou a ênfase do lado teológico desses determinantes
existenciais, predominante no contexto da dissertação agostiniana, para o lado
político. Ou, sob outro ponto de vista, considerou a vida política como aquela pela
qual devemos ser gratos.
82
Depreende-se daí que, no âmbito da perspectiva arendtiana, a ação humana é uma
atividade que se funda na capacidade de transformar o mundo. Nessa investida, a ação,
enquanto atividade de potencialidade política inerente à nossa condição humana, apresenta-se
como capaz de trazer ao mundo uma novus ordo saeclorum, ou seja, ela possui o papel de
mudar a ordem das coisas do mundo.
Para assuntos referentes à fundação do corpo político, interessa-nos direcionar a nossa
atenção à questão da durabilidade dos feitos políticos iniciados pelo homem. O corpo político
79
YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 427.
80
ARENDT. The Life of the Mind. Two: Willing, p. 108; A vida do espírito, p. 266.
81
ARENDT. The Human Condition, p. 09; A Condição Humana, p. 17.
39
como uma qualidade da ação humana é algo que precisa ser percebido e manter-se durável no
mundo. É por isso que a ação conjunta,
83
contrariando todas as formas de isolamento, se
impõe como elemento de durabilidade em um ambiente que em termos políticos na visão
arendtiana não podem transformar em desertos. A ação respeita o fato dos indivíduos serem
únicos, mas não concorda com o comportamento apoiado no individualismo que leva ao
isolamento. Uma vez isolados, os homens formam um deserto distante da riqueza da teia das
relações que a ação proporciona. Nesse sentido, Adriano Correia lembra a advertência de
Arendt: “A ação tanto depende da pluralidade quanto a afirma, pois ao agir, o indivíduo
confirma sua singularidade e aparece a outros indivíduos únicos.”
84
É contra as ciladas do
individualismo, bem como das várias formas de corrupção na política, que a permanência do
exercício da ação e da fala no interior do corpo político procura assegurar. De acordo com
Silvana Winckler, para Hannah Arendt “o mundo é construído pelas atividades da vita activa
e pelas atividades do espírito, cada qual em diferente medida. A mundanidade das primeiras
será assegurada pela durabilidade de seus produtos, isto é, pelo fato de permanecerem no
mundo o tempo suficiente para serem percebidos como objetos mundanos.”
85
82
YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 430.
83
A ação é para Hannah Arendt uma das atividades que mais intimamente se relaciona com a condição humana
da natalidade. É por isso que a ação é uma atividade política por excelência, daí ela ser a expressão do bios
politikos. A movimentação, ou seja, a dinâmica no seio do corpo político depende da ação humana para poder
acontecer. Pode-se dizer que a ação, enquanto segundo nascimento dos seres humanos, é a mola mestra
responsável para o surgimento de novas estruturas políticas, bem como o surgimento de novos encaminhamentos
que de maneira imprevisível e indeterminada venham a acontecer no seio de um novo corpo político. Na
perspectiva arendtiana, não é possível que um corpo político seja fundado composto por indivíduos isolados, até
porque, a presença em seu interior do elemento ação, que lhe é indispensável, constitui-se como um elemento
que os homens lançam mão, sustentados pelo fato deles permanecerem na dependência de seus semelhantes.
Para Hannah Arendt, não é possível realizar a ação em meio ao isolamento dos seres humanos. Pois, segundo a
nossa autora, estar isolado, é o mesmo que estar privado da capacidade de agir. Corpos políticos na perspectiva
apresentada por Arendt se fazem considerando em seus interiores a existência de teias de relações. Seja qual for
o conteúdo específico da ação, ela é um elemento do corpo político que sempre estabelece relações.
84
CORREIA. Apresentação da Tradução “Labor, work, action” (Hannah Arendt). In:___________(0rg.).
Hannah Arendt e a condição humana, p. 336.
85
WINCKLER. A mundanidade das atividades humanas. In: CORREIA (Org.). Hannah Arendt e a condição
humana, p. 95.
40
Se Agostinho é o autor a quem Arendt se dirige para buscar uma referência centrada
na tópica da natalidade,
86
a expressão Initium ergo ut esset, creatus est homo, ante quem
nulhus fuit,por constituir-se como uma frase central no que tange à filosofia política voltada
para a categoria da natalidade, estabelece-se como um recurso utilizado por Hannah Arendt
para demonstrar a dimensão política da filosofia do bispo de Hipona. Quando Arendt se refere
a essa expressão utilizada por Agostinho, ela quer considerar que se trata de uma frase
composta de um conteúdo que se estabelece como base de sua concepção de ação que é
norteada pela natalidade então compreendida como categoria de significado político. Isso se
evidencia quando a nossa autora traduz a expressão latina e completa: “portanto, o homem foi
criado para que houvesse um começo, e antes dele ninguém existia, diz Agostinho na sua
filosofia política.”
87
Sobre isso, comenta Young-Bruehl: “A preocupação de Hannah Arendt
com a natalidade, que é igual e quase sempre maior que sua preocupação com a mortalidade,
emergiu em seu estudo sobre Santo Agostinho, mas foi rapidamente trazida para o centro de
seu pensamento por suas experiências políticas.”
88
Nota-se que a nossa preocupação é a de explicitar o conteúdo político adotado por
nossa autora na reinterpretação que ela faz da filosofia de Agostinho, principalmente no que
diz respeito a essa expressão agostiniana que acabamos de mencionar. Filosofia essa que se
constrói a partir do ponto de vista da dimensão política do conceito agostiniano de natalidade.
É entendendo dessa maneira que podemos dizer que o ponto inicial da concepção arendtiana
86
De acordo com Adriano Correia: “Agostinho afirmou, em uma frase que é seguramente a mais citada em toda
obra publicada de Hannah Arendt (concluiu, por exemplo, as Origens doTotalitarismo, A vida do espírito/O
querer e “O que é liberdade,”em Entre o Passado e o Futuro comentando esta setença), que ‘para que houvesse
um início o homem foi criado, sem que antes dele ninguém o fosse [Initium] ergo ut esset, creatus est homo, ante
quem nullus fuit)’ De cada novo homem se pode esperar o inesperado e o improvável, e isto é possível ‘apenas
porque cada homem é único, de modo que com cada nascimento algo singularmente novo vem ao mundo’”
(CORREIA. O significado político da natalidade considerações sobre Hannah Arendt e Jürgen Habermas. In:
____________ (Org.). Hannah Arendt e a condição Humana, p. 230).
87
ARENDT. The Human Condition, p. 177; A Condição Humana, p. 190.
88
YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 431.
41
de natalidade política se faz através da referência pautada na visão que Agostinho
89
possui a
respeito daquilo que ele apresenta como conceito de natalidade. Para o pensador patrístico da
cidade de Hipona, antes que o homem fosse criado, não existia no mundo alguém que
assumisse a responsabilidade pelo ato de iniciar.
90
Com essa afirmação, Agostinho não quer
dizer que antes do aparecimento do homem não havia novidades no mundo. O movimento das
leis da natureza traz novidades. Mas somente o homem é capaz de abrir-se ao novo, ao
contingente e de recriar a responsabilidade pelo mundo. Arendt interpreta Agostinho no
sentido de que ele assinalava que enquanto iniciador não havia ninguém no mundo que
cumprisse esse papel antes que o homem fosse criado. Ela diz que “este início não é como o
mesmo início do mundo, não é o início de uma coisa, mas de alguém que é iniciador de si
mesmo.”
91
Essa assertiva arendtiana coaduna com o comentário de Leonardo Avritzer de que
“o conceito de natalidade, na sua dimensão privada, expressa o fato de que cada novo
nascimento define a condição humana enquanto realidade única.” Considerando que, na
medida em que cada novo nascimento se estabelece como único, esse nascimento é também
um novo começo. Essa dimensão da filosofia de Agostinho assumida pelo pensamento de
Arendt, revela a expressão da idéia de indeterminação da trajetória humana no domínio
privado.
92
Se muitas coisas que fazem parte desse mundo existiam nele antes da chegada
do homem, a interpretação da perspectiva agostiniana, adotada por Hannah Arendt, ampara-se
89
De acordo com François Collin: “La réflexion d’Hannah Arendt sur la naissance, qui court à travers toute son
oeuvre et s’appuie sur la lecture de textes de saint Augustin, est parallèle à sa réflexion sur la fondation
politique.” (COLLIN. Du prive et du public. In: Les cahiers du Grif, p. 57).
90
Em termos da relação entre criador e criatura, Arendt remontando a Agostinho, diz que a criatura é apenas
aquilo que é enquanto ente que veio por meio da existência. A estrutura do Ser da criatura é a de dever (fieri) e a
de mudar (mutari). Já o criador é um ser absoluto, por isso é aquele que por questão de princípio está antes de
qualquer coisa (ante ommia). No caso da criatura, existe a característica da natalidade, algo que lhe é inerente,
porque o ante-criatura por meio dela possui um modo de ser que lhe é específico. Enquanto há a mutabilidade da
criatura, o criador permanece o mesmo, independentemente daquilo que ele cria. Para o criador nãotempo no
sentido daquilo que podemos compreender como extensão. (ARENDT. O Conceito de Amor em Santo
Agostinho, p. 70 - 71).
91
ARENDT. The Human Condition, p. 177; A Condição Humana, p. 190.
92
AVRITZER. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. In: Lua Nova, número 68: p. 160-161.
42
na assertiva de que somente com a criação do homem que o initium
93
se estabeleceu.
94
Com o
aparecimento do homem na face da Terra, foi inaugurada a possibilidade de criação daquilo
que é o próprio início, isto é, o homem é o começo por excelência. O homem é o começo
necessário ao mundo, para que as coisas que compõem esse mundo sejam por ele
modificadas. Nesse sentido, Arendt adverte que o homem possui o preceito de início, que
também pode ser chamado de liberdade.
95
Evidencia-se que, à luz da perspectiva dessa análise
arendtiana, o homem surge no mundo simultaneamente à capacidade que ele próprio possui
de tomar iniciativas, que certamente nunca ocorreram antes. Esse preceito humano é, para
Arendt, “somente uma outra maneira de dizer que o preceito de liberdade foi criado ao mesmo
tempo, e não antes do homem.”
96
Percebe-se que Arendt nunca deixou de lado o legado agostiniano. A preocupação da
obra de Agostinho é a fundamentação cristã da busca da verdade que o inquietava.
97
Mas, o
que fez Arendt foi se apropriar da concepção do homem enquanto começo para então
transportá-la para o campo da política. É interessante ressaltar que nas análises arendtianas em
torno da faculdade da vontade, a autora provoca uma comparação de Agostinho com Kant no
que tange à categoria da natalidade. Para Hannah Arendt, “se Santo Agostinho tivesse levado
93
A esse respeito diz Celso Lafer: “Com efeito, para Hannah Arendt, é a natalidade e não a mortalidade a
categoria central do pensamento político em contraposição ao pensamento metafísico, realçando ela neste seu
grande livro (A Condição Humana) a possibilidade do novo, dada pelo potencial do initium que é inerente à
condição humana. É esta posição que a diferencia explicitamente de Heidegger, cabendo lembrar que ela conclui
o segundo volume de A Vida do espírito evocando a categoria do initium, de inspiração agostiniana, e
apontando que tem a sua raiz na natalidade.” (LAFER. Hannah Arendt e Norberto Bobbio uma proposta de
aproximação. In: CORREIA (Org.). Hannah Arendt e a condição humana, p. 18).
94
ARENDT. The Human Condition, p. 177; A Condição Humana, p. 190.
95
A liberdade institui permanentemente um novo começo, ela é uma concepção decisiva de Agostinho. A esse
respeito comenta Eugênia Sales Wagner: “Mas a liberdade tematizada por Hannah Arendt é justamente a
revelação da potência transformadora do querer, a espontaneidade desvinculada do compromisso com processos
‘externos’ impositivos, a força de propor e buscar ‘novos começos.’ Retorna assim uma concepção decisiva de
Agostinho, a da liberdade como instituição permanente de um ‘novo começo’ para a vida, agora com a roupagem
moderna da recuperação revolucionária do controle sobre os rumos da existência humana.” (WAGNER. E. S.
Hannah Arendt: ética e política. Prefácio intitulado: Do Amor como Conceito de autoria de Jorge Grespan, p.
14).
96
ARENDT. The Human Condition, p. 177; A Condição Humana, p. 190.
97
Sobre a inquietude agostiniana, salienta Tiago Adão Lara: “A inquietude é o ponto de partida do filosofar de
Agostinho. Ele se sentiu, na vida, como que perdido, desorientado. O primeiro problema filosófico que se lhe
propôs é, justamente, o que nós hoje chamamos a questão crítica ou epistemológica: é possível, ao ser humano,
43
essas especulações às suas conseqüências, teria definido os homens não à maneira dos gregos,
como mortais, mas como ‘natais’, e teria definido a liberdade da Vontade não como liberum
arbitrium, a escolha livre entre querer e não querer, mas como liberdade de que Kant fala na
Crítica da razão pura.”
98
O homem, através da sua experiência de nascimento, se apresenta a este nosso planeta
como um ser recém-chegado. Pois é através do nascimento que os homens instauram a
novidade no mundo. Isso quer dizer que cada recém-chegado a esse mundo inaugura mais
uma situação que se desponta como uma novidade. Nossa atitude face à natalidade encontra-
se no fato de que todos nós viemos ao mundo por intermédio do nascimento e de ser o mundo
pelo qual chegamos constantemente renovado mediante o nascimento.
99
É nessa perspectiva que o homem se coloca como um animal que renova o seu habitat,
ou seja, ele é um ser responsável pela ação renovadora em nosso planeta. “Por eles serem um
initium, por serem recém chegados e iniciados em virtude do fato de terem nascido, os
homens tomam iniciativas, são impelidos à ação.”
100
O mundo, uma vez compreendido a
partir desse ponto de vista, é então admitido como um espaço privilegiado que acolhe os seus
recém chegados. É por meio do nascimento que se torna explícita a nossa condição de seres
sempre inacabados. A cada momento da História nos apresentamos como novos recém
chegados. Diante dessa situação, não temos como nos sentirmos como seres acabados, pois o
nosso estado é um estado de vir-a-ser. É nessa perspectiva que a busca do pathos do novo
produz, como uma de suas conseqüências, a chama que mantém viva a esperança política de
que dias melhores poderão vir. É por essa via de interpretação que o nosso planeta pode ser
visto como algo que se constitui como o habitat natural do ser humano, que por sua vez é um
animal que possui a característica própria da capacidade de tomar iniciativa. Por essa ótica, é
atingir a verdade? (LARA. Curso de História da Filosofia: a Filosofia nos Tempos e Contratempos da
Cristandade Ocidental, Coleção: Caminhos da Razão no Ocidente p. 35).
98
ARENDT. The Life of the Mind. Two: Willing, p. 109; A vida do espírito, p. 267.
99
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 247.
44
tarefa do homem, em termos arendtianos, transformar esse mundo no qual ele se instalou. É
no espaço da mundanidade que “os atos dos humanos refletem a natalidade humana por
começar, dar início a algo novo, e ultrapassar a mortalidade continuando a viver na memória
dos homens após a morte de seu autor.”
101
Por isso, a conseqüência imediata daqueles que se
encontram no mundo é a de serem impelidos para a ação. Nesse caso, pode-se dizer que
vivemos neste mundo investindo a todo momento contra a morte.
102
É dessa maneira que os
atos humanos continuam presentes na lembrança dos homens mesmo após o fim definitivo
daqueles que se lançaram na ação inovadora.
Na perspectiva arendtiana, Agostinho nos conduz por um fio pelo qual o homem é
visto como um ser capaz de voltar-se para a ação política. Visto por esse ângulo, o homem é
concebido como fator de iniciação política em um mundo para o qual ele foi criado. Para
Agostinho, o homem é condicionalmente responsável pelo ato de iniciar algo nesse mundo. O
homem, por causa dessa sua tarefa de dar início a algo antes nunca existido, sob esse ponto de
vista, possui a responsabilidade de tornar tangível o começo de novas realidades neste mundo
no qual habitamos.
O mundo existe de fato, isto é, trata-se de uma condição real que é perceptível aos
nossos sentidos. Para que isso viesse a acontecer, foi necessário que existisse um princípio
que se encarregasse disso. Convivemos neste mundo com uma variedade de coisas criadas
antes da existência do ser humano, e que somente com a capacidade dada ao homem de
começar é que se tornou possível a transformação de tais coisas. Percebe-se que existe no
100
ARENDT. The Human Condition, p. 177; A Condição Humana, p. 190.
101
YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 434.
102
Pode-se dizer que a “humanidade” do ser humano brota da condição humana da natalidade. Mas como
humanos, também morremos. A nossa “humanidade” se localiza entre a finitude que se encontra na morte e o
começo que se encontra na vida. As atividades humanas, ou seja, aquilo que os homens fazem, fabricam e
quando agem em conjunto, trazem à existência, reafirmam e realizam o início que o homem é. Esses feitos
humanos permanecem duráveis após a morte. Segundo Ana Miriam Wuensch a condição humana da natalidade
traz conseqüências para uma filosofia da cultura, uma antropologia filosófica e uma teoria política (in mini-curso
intitulado “Elementos para pensar uma filosofia da natalidade’ em Hannah Arendt” ministrado no
Symposium Internacional: A Vida como Amor Mundi Hannah Arendt entre a filosofia e a política 9
a 14 de
outubro de 2006 – Brasília – UNB).
45
homem a responsabilidade contínua de lidar com a novidade. Pode-se dizer que é da condição
de o homem na Terra ser condenado ao nascimento contínuo, isto é, a ação humana é
inovadora e se traduz no ato permanente de possibilitar o surgimento de algo que antes não
havia existido. Pois, “é da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser
previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes.”
103
Nesse sentido, percebe-se que é
pela ação que se efetiva no mundo o contínuo nascimento do homem. A natalidade é um
processo, na medida em que ela vai se constituindo enquanto insersão constante no mundo por
meio de palavras e ações.
104
Analisemos como a categoria da natalidade é admitida por
Hannah Arendt como um processo.
No momento em que o homem se empenha em dar início a alguma coisa, torna-se
impossível que ele consiga prever e determinar até onde irão as implicações oriundas desse
seu ato de tomar iniciativas. Em se tratando de natalidade, enquanto categoria inerente à nossa
condição humana, Arendt quer demonstrar que não é próprio da natureza do homem admitir a
sua ação política numa perspectiva que concebe seus atos como que pré-determinados e
dotados de possibilidades previsíveis. “Este caráter de surpreendente imprevisibilidade é
inerente a todo início e a toda origem.”
105
Nunca se sabe até onde poderão ir as conseqüências do processo iniciado. As
conseqüências imprevisíveis dos processos da ação humana a tornam um acontecimento
caracterizado pela singularidade. Isso porque, a cada nascimento, deparamos com algo
singularmente novo.
106
Por isso, cada ser humano é dotado de singularidade. “A respeito
103
ARENDT. The Human Condition, p. 177; A Condição Humana, p. 190.
104
Uma vez que os homens se manifestam uns aos outros por via dos elementos do discurso e da ação, essas
manifestações não se fazem como aquela que ocorre entre os animais e entre os objetos inanimados. O que temos
aqui é um tipo de manifestação em atos e palavras que os homens realizam, enquanto homens. O homem vive
para o mundo, quando ele se lança nesse tipo de manifestação. Portanto, sem o discurso e a ação, a vida humana
morre para o mundo. A vida humana precisa ser efetivada no âmbito das relações entre os homens.
Compreendido dessa maneira, viver, no sentido arendtiano, é lançar-se no inter homines esse que significa
estar entre os homens. Sem o discurso e sem a ação, o homem morre, pois ele deixa de estar entre os homens
inter homines esse desinere.
105
ARENDT. The Human Condition, p. 178; A Condição Humana, p. 190.
106
ARENDT. The Human Condition, p. 178; A Condição Humana, p. 191.
46
desse alguém que é único, pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia ninguém.”
107
Cada ser humano é dotado de uma singularidade inaugural.
108
Nesse sentido, todo nascimento
se constitui como uma inauguração diferenciada que é lançada no seio do mundo.
De acordo com Odílio Alves Aguiar, em se tratando da questão da singularidade,
Hannah Arendt é uma pensadora que se situa no conjunto daqueles pensadores que podemos
chamar de fenomenólogos. Visto que a fenomenologia é uma maneira de pensar que apareceu
no contexto do final do século XIX e se explicitou no século XX. Contrariando ao aspecto da
coisificação do homem de acordo com as definições tradicionais, os fenomenólogos procuram
recuperar a dimensão da singularidade dos homens como um aspecto e uma tarefa que
perpassa suas obras. É em meio a isso, que se evidencia a importância da reflexão de Hannah
Arendt, porque a nossa autora conjuga a preocupação relativa à questão da singularização dos
homens com a questão da política. Odílio Aguiar ressalta também que a singularização
permite que o si próprio inerente a cada ser humano ao acontecer implica em um movimento
de aparição que se não houver a presença da esfera pública, fica reduzido a algo fictício ou
virtual.
109
Quando Hannah Arendt enumera as principais atividades da vita activa, as classifica
como Trabalho-Obra-Ação, e obviamente considera que a ação deve ocupar um lugar de
destaque na medida em que ela está ligada à esfera política da vida humana.
110
Em se tratando
de processo, a situação muda de acordo com a natureza de cada uma dessas atividades. Ter
um começo capaz de ser definido e um fim definível constitui a marca da atividade da
107
ARENDT. The Human Condition, p. 178; A Condição Humana, p. 191.
108
Para que possa haver novidade, ele [Agostinho] diz, de haver um começo: “e esse começo jamais existir
antes”, isto é, antes da criação do homem. Logo, para que um tal começo “ pudesse ser, o homem foi criado sem
que ninguém o fosse antes dele.” E Santo Agostinho distingue este começo do começo da criação usando a
palavra initium’ para a criação do Homem, mas principium’ para a criação dos céus e da Terra. Quanto às
criaturas vivas feitas antes do Homem, elas foram criadas ‘no plural’, como começo de espécies, ao contrário do
homem que foi criado no singular e continuou a propagar-se a partir de indivíduos. (ARENDT. The Life of the
Mind. Two: Willing, p. 108; A vida do espírito, p. 266).
109
AGUIAR. Política e finitude em Hannah Arendt. In: OLIVEIRA, __________, SILVA SAHD (Orgs.).
Filosofia Política Contemporânea, p. 103 -104.
47
fabricação. É devido a essa característica que a fabricação se diferencia de todas as outras
atividades humanas. O trabalho, considerado por Arendt como uma atividade aprisionada no
movimento cíclico do processo biológico, não tem nem um começo e nem um fim. Ele
carrega consigo pausas, intervalos que vão da exaustão à regeneração. O destaque político da
ação enquanto processo é que, embora possa ter um começo definido, trata-se de uma
categoria que uma vez iniciada, nunca tem um fim previsível.
111
A singularidade do agente torna também singulares os processos de ação. O homem é
capaz de dar fim ao que ele criou em termos de artefatos, como também é capaz de destruir
até mesmo o que ele não criou. Mas, por outro lado, o homem não pode fazer ou desfazer
processos iniciados através da ação. Sobre isso, salienta Hannah Arendt:
Embora os homens sempre tenham sido capazes de destruir tudo o que fosse produto
de mãos humanas e, ainda hoje, sejam capazes até de destruir aquilo que o homem não
criou – a Terra e a natureza da Terra – nunca foram e jamais serão capazes de desfazer
ou sequer controlar com segurança os processos que desencadeiam através da ação.
112
Verifica-se apartir daí que, se o homem não pode desfazer processos iniciados por
meio de sua ação, ela é, então, caracterizada pela irreversibilidade e pelo indeterminado.
Considera-se, na perspectiva arendtiana, que a ação é marcada pela irreversibilidade e, por
isso, ela não possui limite assinalável. Essa interpretação é explicada por Taminiaux: “Porque
esta rede é aberta, a ação é imprevisível. Porque a aparição do novo vem renovar esta rede, os
efeitos da ação não possuem limite assinalável.”
113
Analisando por esse ponto de vista,
percebe-se que a política não pode ser concebida no campo da previsibilidade e dos
determinismos, características essas presentes no comportamento dos tiranos. A esse respeito,
salienta Arendt:
110
ARENDT. Trabalho, obra , ação. In: Hannah Arendt e a condição humana. Tradução de Adriano Correia e
revisão de Thereza Calvet de Magalhães, p. 348.
111
Ibidem, p. 356.
112
ARENDT. The Human Condition, p. 232 – 233 ; A Condição Humana, p. 244.
113
TAMINIAUX. La fille de thace et le penseur professionnel Arendt e Heidegger, p. 45.
48
O perigo (e a vantagem) inerente a todos os corpos políticos assentados sobre
contratos e pactos é que, ao contrário daqueles que não se baseiam no governo e na
soberania, não interferem com a imprevisibilidade dos negócios humanos nem com a
inconfiabilidade dos homens, mas encaram-nas como se fossem uma espécie de
oceano do qual podem instalar certas ilhas de previsibilidade e erigir certos marcos de
confiabilidade.
114
O homem, na sua capacidade de mudar a natureza e a História, assim o faz devido
ao fato de ele poder dar conta de iniciar processos. “Se podemos conceber a natureza e a
História como sistemas de processos é porque somos capazes de agir, de iniciar nossos
próprios processos.”
115
Se não fosse por via dos processos, o homem não seria um ser
histórico e modificador da natureza.
116
O homem é um animal cujas ações são identificadas
como processuais. Tanto a História quanto a ciência natural, baseiam-se na ação. Nesse
sentido, História e ciência estão contidas no nascimento do homem. “O conceito central das
duas ciências inteiramente novas da era moderna, tanto da ciência natural como da ciência
histórica é o conceito de processo, e a experiência humana real em que esse conceito se baseia
é a ação.”
117
Percebe-se que as conseqüências da natalidade não têm como ser medidas, isto porque
os atos que se desencadeiam a partir do initium instaurado são processos caracteristicamente
contínuos. Daí, pode-se dizer que não existe no pensamento de Arendt, naquilo que é relativo
aos resultados da ação humana, uma perspectiva teleológica. Não um telos seguro, onde o
114
ARENDT. The Human Condition, p. 244 ; A Condição Humana, p. 256.
115
Ibidem, p. 232; p. 244.
116
O homem se utiliza da natureza para o seu trabalho com o objetivo de sastifazer as suas necessidades
puramente biológicas e da obra ou fabricação para produzir objetos duráveis. Pela obra o homem estabelece a
mundanidade, ou seja, a sua presença durável no mundo. A esse respeito, salienta Adriano Correia: “A atividade
do trabalho (labor) corresponde ao processo biológico do corpo humano e consiste no metabolismo do homem
com a natureza, em vista da satisfação das necessidades permanentemente repostas no processo vital. Da
interação do homem com a natureza através do trabalho não resta qualquer vestígio duradouro. O trabalho
apenas preserva a vida no eterno ciclo de esgotamento e regeneração, de produção e de consumo. A vida, em seu
sentido puramente biológico, é a condição humana do trabalho. A obra ou fabricação (work ou fabrication), por
sua vez, produz um mundo artificial de coisas, diferente de qualquer ambiente natural.” (CORREIA.
Apresentação da tradução: “labor, work, action [Hannah Arendt]. In: CORREIA (Org.). Hannah Arendt e a
condição Humana, p. 335 - 336).
117
ARENDT. The Human Condition, p. 232; A Condição Humana, p. 244.
49
agente que inicia o ato possa então nele se apoiar, isto é, não existe possibilidade de se
vislumbrar um fim do processo da ação humana.
No âmbito da atividade da fabricação, é possível que haja percepção do fim. Situação
contrária é a da atividade da ação. Pois, “enquanto a força do processo de produção é
inteiramente absorvida e examinada pelo produto final, a força do processo de ação nunca se
esvai num único ato.”
118
Podemos ter como exemplo o fato de um escultor que, ao pretender
fabricar uma escultura do deus grego Apolo, tem diante de si diversas condições que o
possibilitam prever como será o fim da obra. Situação diferente é a de uma cidadã que se
encontra disposta e intencionada a criar uma nova realidade política no bairro onde reside;
neste caso, não como ela prever as conseqüências desse ato. A título de exemplo, fundar
uma associação de moradores em um bairro é uma atitude em que nunca se saberá como
poderá ser a adesão da população em relação ao projeto iniciado pelos seus fundadores. Não
possibilidade de prever o fim das ações encaminhadas por essa associação de moradores.
Nesse sentido, a tarefa de iniciar um trabalho numa associação de moradores significa ter que
lidar com uma situação que não se esvai num único ato. Ao contrário, em se tratando de ação,
ela pode aumentar na medida em que se lhe multiplicam as conseqüências.
119
Por isso,
percebe-se que não existe determinismo e possibilidade de prever o fim naquilo que se refere
ao campo das ações humanas.
O processo que se inicia pelo nascimento é o responsável pela durabilidade da
humanidade. Para Hannah Arendt, o mundo comum é compreendido como o mundo existente
entre os homens. A durabilidade desse mundo depende da preocupação que os homens
possuem em poder salvá-lo. Essa situação implica tornar duráveis as ações humanas no
mundo. Mesmo após a sua morte, o homem é de uma espécie, cuja característica é a de ser
capaz de deixar as suas marcas duráveis no mundo. “É fato que, contrariamente aos animais,
118
Ibidem, p. 233; p. 245.
119
ARENDT. The Human Condition, p. 233; A Condição Humana, p. 245.
50
os homens não se reduzem à vida biológica. Dotados de uma História, sua imortalidade
jamais poderia ser garantida pela simples reprodução da espécie.”
120
Não somos seres que, por
via do instinto, repetimos sempre os mesmos atos. Não nos estabelecemos como um tipo de
espécie animal que constrói uma única forma de abrigo desenvolvido desde um primeiro
momento a partir das características de sua evolução. Somos, ao contrário de todos os outros
animais, seres processuais, ou seja, demonstramos nossa capacidade de modificar o meio que
nos circunda, através de ações indeterminadas. A humanidade existe devido ao fato de o
ser humano ser processo, ou seja, suas ações desencadeiam o aumento de conseqüências que
torna inviável o seu controle pelo ator que se lançou na ação.
121
“As únicas ‘coisas’ que
penduram na esfera dos negócios humanos são esses processos e sua durabilidade não é
limitada, mas é tão independente da perecibilidade da matéria e da mortabilidade dos homens
quanto o é a durabilidade da humanidade”
122
Tratam-se de processos que envolvem a muitos,
fazendo da ação um conjunto de várias histórias. A vida de cada pessoa se envolve com a vida
de outras.
123
Os processos de ação garantem a durabilidade da humanidade. A esse respeito,
explica Eugênia Sales Wagner:
120
COURTINE–DENAMY. O cuidado com o mundo: diálogo entre Hannah Arendt e alguns de seus
contemporâneos, p. 182.
121
Essa situação pode ser compreendida pela tensão que o homem vive no tocante à questão em que a
temporalidade deva ser superada para que ele possa revelar a sua existência no agir. A esse respeito adverte
Young Bruehl: “Ao preencher sua vida presente com desejo pelo futuro o homem antecipa um presente
imtemporal, a eternidade. Adotando a compreensão romana do tempo, Agostinho concebeu o futuro como vindo
para o presente, correndo ‘para trás’, para o passado; a imagem do movimento do tempo é o oposto da imagem
linear que acompanha a palavra progresso. Quando o futuro está, por assim dizer, se precipitando sobre nós, o eu
presente é negado e o mundo esquecido. Para Agostinho, afirmou Arendt, a temporalidade e o ser são opostos: a
temporalidade deve ser superada para que o homem seja. Essa tensão era fundamental no pensamento de
Agostinho – e no de Heidegger. (YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt:por amor ao mundo, p. 429).
122
ARENDT. The Human Condition, p. 233; A Condição Humana, p. 245.
123
Jacques Taminiaux comenta a impossibilidade da ação se efetivar no isolamento: “Etant donné que la
condition de l’action est la pluralité, elle est impossible dans l’isolement, qui, em revanche, est souvent propice à
la fabrication. Comme elle suppose toute une trame de relations, elle ne saurait être l’apanage de l’homme fort et
supérieur, alors que c’est sous ces traits que s’accopmplit I’homo faber. Dans la mesure elle est intrinsèquent
relationnelle et ne cesse de susciter de nouveaux rapports, elle tend à briser toutes limites et à provoquer des
réactions en chaîne dont la propagation est infinie, alors que de chaires limites définissent à chaque pas le
processus de fabrication. Cette infinitude même rend l’action foncièrement imprévisible, alors que la fabrication
est en droit de se réclamer constamment de la maxime: savoir pour prévoir afin de pouvoir (cfr. Section 26).
Enfin, et pour toutes ces raisons, lalumière dans laqualle se tient l’action en tant qu’elle révèle des agents
insubstituables reste paradoxalement cachée à ceux-ci, ce qui faisait dire aux Anciens que nul ne peut être dit
51
Porque as conseqüências da ação se perdem na teia, preexistente, dos negócios
humanos e em outras teias às quais ela início, não apenas o resultado do processo é
desconhecido, como, também, o seu autor - só o agente e seu cometimento são
conhecidos, a autoria pertence a todos que estiveram envolvidos no processo. Assim é,
também, com a História da humanidade e com a história da vida de cada pessoa.
Porque a História é fruto da ação – um conjunto de várias histórias -, dela só é possível
saber quem são os agentes e quais foram os seus atos; a História tem muitos autores e
narradores, mas nunca “autores tangíveis.” Esse é o motivo pelo qual uma pessoa
jamais é autora da sua própria vida.
124
Evidencia-se que Arendt quer, por meio de sua compreensão a respeito da categoria da
natalidade, demonstrar um laço, cuja capacidade é a de unir os homens no âmbito da esfera
pública. Como já mencionamos, é por intermédio da natalidade que os homens se iniciam
politicamente no mundo. Porém, os corpos dos homens que ocupam o espaço do mundo o
vão ficar permanentemente nele. A cada nascimento ou a cada ação política, os feitos da
durabilidade originários da presença humana na Terra tornam-se uma possibilidade perante
nossos olhos. No lugar do corpo humano que possui o seu limite de vida por meio da chegada
da morte, permanecerão os feitos políticos que são frutos de uma categoria da natalidade que
caracteriza o homem, diferenciando-o dos outros animais.
A permanência dos feitos políticos, após a morte dos agentes da ação se assemelha ao
papel da obra ou fabricação (work ou fabrication). Essa atividade da vita activa produz coisas
artificiais que se diferenciam do ambiente natural. A obra ou fabricação produz coisas que
permanecem no mundo após a morte do homem. Há aqui, um ponto de semelhança da
fabricação com a ação no sentido de que ambas não se assentam na natureza do homem.
Entretanto, se a permanência da ação se no campo de sua institucionalização, a fabricação
possui objetos que dependem da ação humana. De acordo com Leonardo Avritzer, referindo-
se à durabilidade da fabricação, o mesmo exemplifica dizendo: “a cadeira sem uso volta a ser
eudaimôn avant d’être mort (cfr. 192).” [TAMINIAUX. Performativité et Grécomanie? Revue internatinale de
Philosophie, p. 195].
124
WAGNER. E. S. Hannah Arendt e Karl Marx: o mundo do trabalho, p. 71.
52
um pedaço de madeira. No entanto, é a sua característica de durabilidade
125
que irá interessar
a Arendt.”
126
Constata-se que é pelo viés da durabilidade que encontramos um ponto de
interseção entre as atividades da fabricação e da ação. É nessa pesrpectiva, ou seja, por meio
da durabilidade que ocorre a permanência do homem no mundo traduzida em imortalidade.
Sobre o caráter duradouro da obra, salienta Adriano Correia:
Da interação do homem com a natureza através da fabricação, por seu turno, surgem
coisas para serem usadas e que, por conseguinte, portam uma durabilidade de que não
desfrutam os produtos do trabalho, feitos para serem consumidos. A obra corresponde
ao caráter não natural da existência humana, cuja mortalidade é redimida não pelo
sempre recorrente ciclo vital da espécie, mas pela produção de um mundo de coisas
cuja duração tende sempre a ultrapassar o tempo da vida dos próprios fabricantes. A
condição humana da obra é a mundanidade.
127
Constatado que a fabricação e a ação se identificam quando a questão é a durabilidade,
verifica-se que, enguanto a fabricação requer a mediação de objetos naturais com as coisas
fabricadas, a ação necessita da pluralidade humana. A ação é uma atividade que ocorre em
meio à manifestação dos homens através de atos e palavras.
Nesse sentido pode-se falar da humanidade do homem que se processa por meio do
discurso e da ação no âmbito da interpretação arendtiana. Odílio Alves Aguiar comenta que a
humanidade do homem não se estabelece como algo que possamos então garantir a partir de
125
Adriano Correia comentando Arendt, diz: “O que constitui o artifício humano e garante a durabilidade do
mundo é a obra, a atividade do fabricante (homo faber) de ‘operar sobre’ os materiais, em contraposição ao
trabalho, a atividade do trabalhador (animal laborans), que se mistura com os materiais. Muito embora o produto
da atividade do homo faber se desgaste com o uso que dele fazemos, ele não se consome no próprio processo
vital, tal como se com os produtos do trabalho. A diferença entre fabricação e trabalho é equivalente à
distinção entre o uso e o consumo, entre o desgaste e a destruição. Embora o uso tenha como conseqüência o
desgaste dos produtos da fabricação, estes não são produzidos para ser desgastados, mas para serem usados; o
desgaste provocado pelo uso atinge diretamente a durabilidade do produto, mas eles são feitos para (também)
portar durabilidade. As coisas destinadas ao consumo, no entanto, são destruídas no mesmo momento em que se
servem delas. Elas são integralmente absorvidas no ciclo vital de sobrevivência do organismo humano: elas são
digeridas. Enquanto a durabilidade empresta uma certa independência aos objetos em relação ao homem que os
produziram e os utilizam, a assimilação dos produtos destinados ao consumo pelos organismos vivos os deitui de
qualquer existência, objetiva.” (CORREIA. Tradução: Labor, obra, action (Hannah Arendt). In: __________
(Org.). Hannah Arendt e a condição humana, p. 336 - 337).
126
AVRITZER. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. In: Lua Nova, número 68: p. 152.
53
uma definição que caminha em uma direção determinada. Para esse comentador de Hannah
Arendt, a humanidade do homem se revela por meio de suas ações, palavras, pensamentos e
obras. Encontramos ao partirmos dessa revelação, o fato de os homens não se apresentarem
como coisas que possam então ser definidas uma vez por todas. Porque o ser próprio do
homem, ou seja, o seu “quem,” só se revela no momento em que dele se conta a História, seus
feitos e suas palavras. É por esse motivo que a dignidade humana é pensada se for levada
em consideração quando relacionada com a estatura do homem no mundo, bem como a sua
importância e o seu valor. Tudo isso, em momento algum, significa uma caída na visão que
aponta o homem como alguém que se situa no fim último da criação, e, conseqüentemente, o
seu papel de senhor da natureza e da sociedade.
128
Os processos de ação garantem a durabilidade da humanidade. É a partir daí que
podemos falar de uma antropologia filosófico-política, cujo fio condutor está alicerçado na
crença de que o homem é um animal que se distingue dos outros animais devido à sua
capacidade de se lançar na busca de algo novo.
Se o nascimento é contínuo, a ação não pode ter fim. A cada ação, inaugura-se algo
inteiramente novo no âmbito da singularidade da espécie humana. “A razão pela qual jamais
podemos prever com segurança o resultado e o fim de qualquer ação é simplesmente que a
ação não tem fim.”
129
A ação se confirma em si mesma. Se a continuidade da ação se realiza
por meio do desencadeamento de um processo de ação inerente ao ser humano, somente o fim
da humanidade pode levar a ação ao seu fim último. “O processo de um ato singular pode
prolongar-se, literalmente, até o fim dos tempos, até que a própria humanidade tenha chegado
ao fim.”
130
Essa assertiva significa que, enquanto o ser humano existir, haverá processo,
127
CORREIA. Tradução: Labor, obra, action (Hannah Arendt). In: _____________ (Org.). Hannah Arendt e a
condição humana, p. 336.
128
AGUIAR. A categoria de condição humana em Hannah Arendt. In: CORREIA (Org.). Hannah Arendt e a
condição humana, p. 82.
129
ARENDT. The Human Condition, 233; A Condição Humana, p. 245.
130
Ibidem, p. 233; p. 245.
54
haverá nascimento ou ação. Uma vez que somos seres que fomos lançados no mundo pela
aventura do nascimento, nos resta esperar o novo, pois somos condenados a enfrentar o
desencadeamento de processos contínuos. Considerando que o mundo em que habitamos é
marcado pelo indeterminado e pela imprevisibilidade, resta-nos admitir que somos
condenados à liberdade. A esse respeito, comenta Newton Bignotto: “assim, do simples fato
de que nascemos, podemos esperar o novo, tanto porque somos seres condenados à liberdade
quanto pelo fato de que essa condenação implica que vivemos num mundo cuja natureza é
indeterminada e indeterminável para todo o sempre.”
131
Ora, diante da irreversibilidade, o que resta à ação? Para Arendt, o recurso contra a
irreversibilidade e a imprevisibilidade do processo que a ação desencadeia não provém de
uma outra faculdade possivelmente superior, mas das potencialidades contidas na própria
ação.
132
A solução está no próprio homem e ela reside na natalidade enquanto categoria de
potencialidade política. Por conseguinte, evidencia-se que é inerente à condição humana da
natalidade o ato de dar início a um novo começo na História, assunto que focaremos no
próximo ítem.
1.2- A natalidade e o novo começo na História
Temos como uma de nossas pretensões, explicitar o papel da natalidade como
condição necessária para manter viva a ação contínua do homem na História. O nosso foco se
pauta em apresentar o papel da dimensão política da natalidade enquanto categoria que reside
no homem através do seu poder de criar novas realidades, apoiando-se na força do perdão, da
promessa e do milagre.
131
BIGNOTTO. Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Hannah Arendt. In: _____________ & MORAES
(Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 121.
132
ARENDT. The Human Condition, p. 237; A Condição Humana, p. 248.
55
Falar de fundação e de um novo começo na História no âmbito das análises levantadas
por Hannah Arendt, nos convoca a lidarmos com os conceitos do perdão, da promessa e do
milagre. São conceitos relevantes para esclarecer o papel da natalidade na História, ou seja,
tratam-se de temas importantes para a explicitação do agir como começo que implica na
criação de novas realidades. Os problemas inerentes à faculdade do agir, diante da sua tarefa
de iniciar uma nova ordem das coisas, voltam-se para a necessidade de se apoiarem nos
conceitos de perdão, promessa e milagre. O apelo a esses conceitos ocorre porque eles trazem
consigo condições que possibilitam atender às exigências demandadas pela ação de fundação.
Quanto ao perdão, Arendt o considera como uma faculdade, assinalando o seu papel
como a solução para o problema da irreversibilidade da ação. Compreende a autora, que
diante do fato da impossibilidade do homem em desfazer o que foi feito, resta-nos nos
apegarmos à faculdade de perdoar. Trata-se de uma faculdade que serve para desfazer os atos
do passado, pois os pecados do passado pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova
geração.
133
Quando nos inserimos no mundo, e por isso, realizamos o nosso segundo nascimento,
deparamos com atos que desfazem os propósitos iniciais da ação. A faculdade de perdoar é
um dos temas trabalhados por Arendt para explicitar as implicações da categoria da natalidade
quando ela se dosdobra na ação e na sua relação com a pica da fundação. O perdão existe,
porque se não fôssemos perdoados ou eximidos das conseqüências do que fizemos
anteriormente, teríamos a nossa faculdade do agir limitada a um único ato do qual jamais nos
recuperaríamos. O perdão serve para não nos tornarmos vítimas eternas das conseqüências de
nossos atos à semelhança de um aprendiz de feiticeiro que não dispõe de uma fórmula mágica
para desfazer o feitiço.
134
133
ARENDT. The Human Condition, p. 237; A Condição Humana, p. 248 - 249.
134
ARENDT. The Human Condition, p. 237; A Condição Humana, p. 249.
56
Arendt nos lembra que o descobridor da função do perdão naquilo que se refere aos
negócios humanos, foi Jesus de Nazaré. O fato de Jesus ter feito a descoberta do perdão em
um contexto religioso e de tê-la enunciado no âmbito de uma linguagem religiosa, não deve
ser motivo para levá-la menos a sério quando a mesma deva ser compreendida num sentido
estritamente secular. Os ensinamentos de Jesus de Nazaré, em certos aspectos, não se
relacionam basicamente com a mensagem religiosa cristã.
135
É devido a esse entendimento,
que Arendt recorre a um tema da tradição cristã para poder transportá-lo para a esfera da ação
humana que se encontra radicada ontologicamente na natalidade.
Além da herança cristã do sentido do perdão, Arendt nos expõe o princípio romano de
poupar os vencidos (parcere subjectis) como o único e rudimentar vestígio da percepção de
que o papel do perdão é um corretivo necessário aos danos inevitáveis causados pela ação. A
tradição romana provavelmente se apoiou também no direito de comutar a pena de morte, que
é segundo Hannah Arendt, prerrogativa de quase todos os chefes de Estados ocidentais.
136
Percebe-se que o perdão é uma faculdade que se insere no liame com o tema da
natalidade, enquanto possibilidade de um novo começo na História. Essa afirmação se
sustenta no fato de que a ação, ao estabelecer constantemente novas relações, precisa do
perdão que funciona como uma forma de liberação do agente, para que a vida possa
continuar.
137
O fio do tecido das relações humanas tem no perdão a possibilidade de
recomeçar sempre. O perdão impulsiona o agente para a liberdade dando-lhe condições de
permanecer no processo da ação. Sobre isso, diz Hannah Arendt:
O perdão é o exato oposto da vingança, que atua como re-ação a uma ofença inicial, e
assim, longe de porem fim às conseqüências da primeira transgressão, todos os
participantes permanecem enredados no processo, permitindo que a reação em cadeia
contida em cada ação prossiga livremente.
138
135
ARENDT. The Human Condition, p. 238 - 239; A Condição Humana, p. 250.
136
Ibidem, p. 239; p. 250 – 251.
137
Ibidem, p. 240; p. 252.
138
Ibidem, p. 240; p. 252.
57
A ação na sua maneira de seguir livremente, se revela como radicada na natalidade.
Essa situação aproxima o perdão na sua ligação com a ação. O quem que se revela na ação e
no discurso é o sujeito do perdão. Ninguém pode perdoar-se a si próprio, porque no perdão
como na ação e no discurso, dependemos uns dos outros. Se ficássemos encerrados em nós
mesmos, jamais seríamos capazes de nos perdoar por alguns de nossos defeitos ou
transgressões, pois careceríamos do conhecimento da pessoa em consideração à qual se pode
perdoar.
139
Se nossa inserção no mundo por meio da ação e do discurso, é o nosso segundo
nascimento, considerando que essa ação necessita do perdão para prosseguir livremente,
podemos então dizer que existe uma relação entre o ato de perdoar com a categoria da
natalidade.
Se a irreversibilidade da ação demanda a existência do perdão, a sua imprevisibilidade
vai requerer uma outra faculdade, ou seja, para Hannah Arendt a imprevisibilidade da ação
que caracteriza o seu processo, nos faz recorrer à faculdade da promessa. Segundo a nossa
autora, “a força estabilizadora inerente à faculdade de prometer sempre foi conhecida em
nossa tradição.”
140
Os homens são seres que se lançam para o futuro, apesar das incertezas
que o caracteriza. Para se adaptar a essa condição, cercada de incertezas, resta ao homem
recorrer ao poder da promessa.
141
O homem precisa se apoiar em uma faculdade que pode
funcionar como um porto seguro para sustentar a ação diante do desafio da imprevisibilidade
que ela
142
contém. Podemos perceber que devido a sua relevância para a ação, o poder de
prometer encontrou sustentação em nossa tradição política.
143
139
Ibidem, p. 243; p. 255.
140
ARENDT. The Human Condition, p. 223; A Condição Humana, p. 255.
141
De acordo com Miguel Pereira, Hannah Arendt tem na ação existencial a âncora de dois verbos centrais que
envolve o seu pensar filosófico. De um lado o verbo perdoar, do outro o verbo prometer. A ênfase dada a esses
dois verbos não se trata apenas de algo de caráter original no pensamento contemporâneo, mas de uma
especulação ativa que diz respeito ao ajustamento do subjetivo com o social. (PEREIRA. Mulheres de palavras,
ação e reflexão, p. 10).
142
De acordo com Eugênia Sales Wagner como forma de minimizar a imprevisibilidade da ação, as promessas
estabelecem segundo Arendt, como que “ilhas de segurança no futuro,” sem as quais as relações entre os homens
58
A imprevisibilidade é eliminada, pelo menos, parcialmente quando o homem recorre
ao ato de prometer. Esse recurso tem dupla origem: encontra-se na “treva do coração
humano,” sinônimo de inconfiabilidade fundamental dos homens, porque eles jamais podem
ter a garantia de como serão no amanhã e da impossibilidade de se prever as conseqüências de
um ato numa comunidade de iguais, lugar onde todos possuem a mesma capacidade de
agir.
144
No momento em que nascemos continuamente devido a nossa inserção no mundo da
esfera pública, pagamos o preço dessa liberdade: “o fato de que o homem não pode contar
consigo mesmo nem ter absoluta em si próprio (e as duas coisas são uma só).”
145
Nesse
caso, a função da faculdade de prometer constitui a única alternativa a uma supremacia do
homem baseada no domínio de si mesmo e no governo de outros. É a força da promessa que
mantém as pessoas que se reúnem para agir em conjunto.
146
Essa ação contínua revela o
nascimento político dos homens que se sustentam pela promessa. O que se percebe é a
importância da promessa como uma faculdade ligada ao significado político da categoria da
natalidade. Se nascer continuamente faz parte da condição do homem, é através da promessa
que ele se apresenta de maneira a demonstrar a sua capacidade de lidar com o surgimento de
um novo começo na História.
não alcançariam continuidade e nem durabilidade. Esta comentadora de Hannah Arendt diz que pelo fato das
ações serem imprevisíveis e irreversíveis, elas seriam insuportáveis aos homens se elas não encontrassem no
perdão e na promessa formas de amenizar as suas conseqüências. (WAGNER. E. S. Hannah Arend e Karl Marx:
o mundo do trabalho, p. 71-72).
143
Hannah Arendt nos chama a atenção para a influência da faculdade da promessa em nossa tradição. Assim ela
se expressa: “In contrast to forgiving, which perhaps because of its religious context, perhaps because of the
connection with love attending its discoverry has always been deemed unrealistic and anadmissible in the
public realm, the power of stabilization inherent in the faculty of making promises has been known throughout
our tradition. We may trace it back to the Roman legal system, the inviolability of agrements and treaties (pacta
sunt servanda); or we may see its discoverer in Abraham, the man from Ur, whose whole story, as the Bible tells
it, shows such a passionate drive toward making covenants that it is as though he departed from his country for
no other reason than to try out the power of mutual promise in the wilderness of the world, until eventually God
himself agreed to make a Covenant with him. At any rate, the great variety of contract theories since the Romans
attests to the fact that the power of making promises has occupied the center of political thought over the
centuries.” (ARENDT. The Human Condition, p. 241 - 242; A Condição Humana, p. 255).
144
ARENDT. The Human Condition, p. 243 - 244; A Condição Humana, p. 256.
145
Ibidem, p. 244; p. 256.
146
Ibidem, p. 244; p. 256.
59
Para demonstrar a força da promessa contida no âmbito da natalidade, Hannah Arendt
utiliza-se do poder do milagre. Se não sabemos até onde poderão ir as conseqüências da ação
humana, a natureza do novo se estabelece de forma surpreendente. Nesse sentido, o milagre
funda-se numa única certeza: a certeza de que não podemos enxergar o fim último das
implicações do initium instaurado pela ação humana. É devido às implicações do initium, que
a novidade se faz através do milagre que nos é apresentado pelo poder humano de provocar o
surgimento de coisas novas.
É por causa do milagre proporcionado pela categoria da natalidade que o ineditismo
nos aparece. Hannah Arendt menciona por várias vezes que a ação possui, no seu conjunto, a
força do ineditismo, do imprevisível e do indeterminável. Tudo isso, do ponto de vista dos
processos automáticos que aparentemente determinam a trajetória do mundo, parece um
milagre.
147
Por esse motivo, podemos dizer que a ação humana se distingue da ação de outros
animais, por ser dotada de uma dimensão milagrosa.
148
Os homens convivem com o milagre
em suas vidas. No que diz respeito à relação existente entre a ação humana e o milagre,
salienta a autora:
A ação é, de fato, a única faculdade milagrosa que o homem possui, como Jesus de
Nazaré, que vislumbrou essa faculdade com a mesma originalidade e ineditismo com
que Sócrates vislumbrou possibilidades do pensamento, deve ter sabido muito bem ao
comparar o poder de perdoar com o poder mais geral de operar milagres, colocando a
ambos no mesmo nível e ao alcance do homem.
149
147
Ibidem, 246; p. 258.
148
Para Arendt, a diferença decisiva entre as “improbabilidades infinitas”, sobre as quais se apóia a vida humana
terrestre, e os acontecimentos milagrosos no próprio âmbito das ocupações humanas está naturalmente no fato de
que há, aqui, o fator dos milagres e de que o próprio homem é, de um modo extremamente milagroso e
misterioso, manifestadamente dotado para fazer milagres. Em nossa linguagem comum e bem usual, chamamos
esse dom de agir. É peculiar ao agir o desencadeamento de processos cujo automatismo, em seguida, parece
muito semelhante ao dos processos materiais, e lhe é peculiar também estabelecer um novo início, começar algo
novo, tomar iniciativa, ou, falando como Kant, iniciar a partir de si mesmo uma cadeia. O milagre da liberdade
está inserido nesse poder de iniciar, que, por sua vez, está inserido no (factum) de que todo homem, ao nascer, ao
aparecer em um mundo que estava aí antes dele e que continuará a ser depois dele, é ele mesmo um novo início.
(ARENDT. Será que a política ainda tem de algum modo um sentido? In: ABRANCHES (Org.). A Dignidade da
Política: ensaios e conferências, p. 121).
149
ARENDT. The Human Condition, p. 246 - 247; A Condição Humana, p. 258.
60
Jesus de Nazaré, segundo a autora, vislumbra a faculdade milagrosa como algo inédito
nos homens. Tanto Arendt quanto Jesus de Nazaré acreditam na capacidade do homem de
lançar-se no aparecimento do novo. É na própria condição humana que se encontra depositada
a dimensão miraculosa para que possamos lidar com a promessa que nos prepara para encarar
o novo que rompe com o continuum do tempo e da História. Nesse caso, o ponto que nos
interessa é que, em se tratando de análises arendtianas, o poder de fazer milagres está
direcionado à própria condição humana, não se prendendo ao poder divino.
Referindo-se a Sócrates, a nossa autora afirma que as possibilidades apresentadas pelo
pensamento são também carregadas de ineditismo, portanto convivem com a imprevisível
situação privilegiada por onde o milagre aparece. Visto por esse ângulo, seria o milagre a
situação que faltava ao homem para que as adversidades da natureza forçassem a sua melhor
adaptação ao meio ambiente terrestre, no que tange à sua diferença em relação aos outros
animais.
Para Hannah Arendt, os processos com os quais lidamos são de natureza histórica, isto
é, eles não transcorrem sob a forma de desenvolvimentos naturais, mas o, sim, cadeias de
acontecimentos em cuja estrutura aquele milagre de improbabilidade infinita acontece com
tanta freqüência que nos parece estranho falar aqui de milagre. Mas isso reside somente no
fato de que esse processo histórico surgiu de iniciativas humanas e que ele é continuamente
rompido por novas iniciativas.
150
Considerando que o fato de poder criar coisas novas é uma
realidade presente em nossa condição humana, percebe-se que é pela natalidade que o homem
consegue vislumbrar o futuro, não de forma previsível, mas através da crença contida no
milagre de novos começos.
É notório, em termos arendtianos, que, por causa da natalidade, o milagre acontece,
permitindo o estabelecimento do novo na História. Portanto, é importante analisar como a
150
ARENDT. Será que a política ainda tem de algum modo um sentido? In: ABRANCHES (Org.). A Dignidade
da Política: ensaios e conferências, p. 120.
61
categoria da natalidade é potencialmente capaz de manter viva a promessa de algo novo, que
surge na História, considerando por um lado a experiência trazida pelo totalitarismo e por
outro a experiência da fundação na modernidade.
Após abordar sobre as conseqüências trazidas pelos instrumentos do terror e da
ideologia, Hannah Arendt nos surpreende com a idéia de que a capacidade humana de
começar permanece presente no homem, mesmo estando ele vitimado pela experiência do
totalitarismo.
151
Conclui-se a partir daí que, embora a experiência totalitária possua como meta a tarefa
de investir contra as manifestações públicas da liberdade do agir humano, permanece no
homem a faculdade de começar. Mesmo a mais dura investida contra a liberdade humana não
seria capaz de impedir que o potencial de poder iniciar algo de novo desaparecesse por
completo da condição do homem. Por isso, em termos arendtianos, apesar das brutais
conseqüências oriundas dos instrumentos do terror e da ideologia, a surpresa trazida pela
autora encontra-se no potencial humano de abrir-se para o novo. Analisando por esse ângulo,
Arendt conclui:
Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui
necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única mensagem que
o fim pode produzir. Começo, antes de tornar-se um evento histórico, é a suprema
capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem.
152
Estando o homem diante do mal totalitário, ou algo que lhe assemelha, resta somente a
ele depositar suas esperanças no milagre. Isso quer dizer que na ausência de um mundo
151
Sobre estudos a respeito do totalitarismo, adverte Zagorka Golubovié: “apesar de certos cientistas sociais
tratarem o conceito de totalitarismo como um conceito vago, isto não pode ser dito da descrição que Arendt faz
de tal tendência, particularmente afirmando quanto ao que se refere ao final do século XX. Paralelo com o seu
trabalho, os outros autores também apresentaram uma imagem muito similar de um regime totalitário (veja:
Aldous Haxly’s Brave New Word, George Oswel’s 1984, Zamjatin’s Mi, e várias outras análises científicas de
escritores modernos). [Conferência intitulada What one can learn Hannah Arendt’s critical political
philosophy for inspiring critical social moviment”? que foi proferida no dia 11 de outubro de 2006, durante a
realização do Symposium Internacional a Vida como Amor Mundi: Hannah Arendt entre a filosofia e a Política
de 9 a 14 de outubro/2006 – UNB - Brasília].
62
público, onde a liberdade política possa se manifestar, resta-nos então, remontarmo-nos ao
“milagre” com o objetivo de tentar responder a uma demanda que é própria da condição
humana: manter viva a chama da possibilidade de um novo começo. Nesse sentido, o milagre
passa a exercer o papel que assegura a sua resistência diante do poder devastador que se
encontra presente nos sistemas totalitários. A continuidade do nascimento, inerente à nossa
condição humana, responde firmemente de uma maneira contrária ao poder avassalador do
totalitarismo. “Milagre é a palavra que a nossa autora usa repetidamente em sua obra para
compreender a possibilidade de um novo começo na História.”
153
Por esse ponto de vista,
pode-se afirmar que, em termos arendtianos, possuímos o dom de começar. Pode-se dizer que
nascemos com a capacidade extraordinária de projetar o dom da liberdade de criar realidades
novas. É pertinente considerar o milagre como expressão de um novo começo,
conseqüentemente ele se liga ao tema da fundação.
É importante considerar que devido algumas análises feitas por Hannah Arendt, somos
levados a admitir que a questão que mais se adequa à faculdade humana de começar é a do
tema da Fundação. Trata-se de uma posição que vem ao encontro do propósito do primeiro
capítulo dessa nossa pesquisa que é mostrar a combinação existente entre natalidade e
fundação na perspectiva arendtiana.
A História da Filosofia Política trata da demiurgia das formas políticas. A origem das
instituições nas quais elas se inserem, constituem-se como tema de investigação da filosofia
política. Portanto, tratar dos problemas que envolvem a gênese do poder político é uma tarefa
que é recoberta pelo problema da fundação. Trata-se, também, de um tema instigante, pois
envolve um conjunto de reflexões em torno do problema do fenômeno do novo.
Onde seres humanos, vivendo em sociedade, a tópica da fundação torna-se uma
realidade presente em suas vidas. As comunidades humanas tecem as suas relações de
152
ARENDT. Origens do Totalitarismo, p. 531.
63
convívio social por via de atos que criam regras e leis que se lançam como condição de
manter a viabilidade da vida coletiva. “Ora, a natureza da fundação está expressa em grande
medida nas leis e regras que regem a relação coletiva, e é essa dimensão palpável das
sociedades que uma das medidas de sua força.
154
No interior de uma sociedade humana,
os atos fundantes de regras e leis fortalecem medidas de criação de corpos políticos capazes
de sustentá-las organicamente. Por esse ponto de vista, torna-se explícito o quanto é
necessário abordar o tema da fundação no âmbito da História da Filosofia Política e também
dessa Tese.
No decorrer do processo que envolve a História da Filosofia Política, o tema da
fundação é utilizado, visando ao objetivo de explicitar o fenômeno do novo diante de tudo
aquilo que diz respeito à criação de novas realidades políticas.
No interior do pensamento político contemporâneo, a figura de Hannah Arendt
aparece trazendo um conjunto de análises em torno da problemática da fundação.
155
Arendt é
uma pensadora política, cujas análises a respeito da fundação perpassam quase todas as suas
obras. Para Bignotto, basta lembrar a importância que o conceito de fundação tem em sua
última obra A vida do espírito. Pois, para esse comentador da obra de Hannah Arendt, o
problema da fundação possui relação direta com os atos de criação de novos regimes e, nesse
153
BIGNOTTO. Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Hannah Arendt. In: _____________ & MORAES
(Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 117.
154
BIGNOTTO. Maquiavel e o novo continente da política. In: NOVAES (Org.). A Descoberta do homem e do
mundo, p. 397.
155
Arendt é uma pensadora contemporânea. Suas análises em torno da fundação podem contribuir para
abordagens relacionadas com temas inerentes à atualidade política. De acordo com Zagorka Gulubovié da
Universidade de Belgrado: “quando se a produção escrita de Hannah Arendt na assim chamada era s-
moderna, pode-se surpreender por sua sabedoria, o que a capacitou a antecipar os problemas e dilemas cruciais
do mundo moderno a partir de uma perspectiva de meados do século XX. Isto soa como se Hannah Arendt
falasse sobre o mundo que está por vir, prevendo com precisão com que dificuldades os cidadãos seriam
confrontados, as reações dos novos movimentos sociais de massa, em particular na América Latina.”
(Conferência intitulada What one can learn Hannah Arendt’s critical political philosophy for inspiring critical
social movement? que foi proferida no dia 11 de outubro de 2006, durante a realização do Symposium
Internacional A Vida como Amor Mundi: Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política de 9 a 14 de outubro
/2006 – UNB – Brasília ).
64
sentido, está muito próximo das discussões sobre a fundação de novas políticas abordadas por
Arendt em muitas de suas obras.
156
Se o problema da fundação encontra-se centrado na relação direta com a criação de
novos corpos políticos, esse tema aparece como um assunto fundamental. Trata-se de um
trabalho, cujo problema central se dará no âmbito do corpo político almejado nas análises
encaminhadas por Hannah Arendt. Mas, nesse momento, a nossa intenção é mostrar que a
natalidade, enquanto categoria potencialmente política, sob o ponto de vista da perspectiva
arendtiana, se traduz na efetivação da ação fundadora. A esse respeito, Leonardo Avritzer
comenta Arendt dizendo: “o nascimento ou novo começo é um ato pragmático originado da
capacidade humana de dizer não a uma ordem política.”
157
Nesse caso, a natalidade admitida
por Arendt se desenvolve no âmbito da criação de novas realidades políticas, a exemplo da
gênese de um novo corpo político. Torna-se claro que é impossível nos referirmos à
concepção de natalidade em Arendt sem que nos voltemos para a sua relação com o tema da
fundação.
Segundo Bignotto, o tema da fundação é investigado desde a Antiguidade, ou seja,
discussões a seu respeito já eram feitas no interior da História da Filosofia Antiga. Bignotto
explora questões em torno da fundação desde o legislador Sólon, passando por Platão,
Maquiavel e Hannah Arendt.
Para destacar a fundação no mundo grego antigo, Bignotto recorre a um dos seus mais
célebres legisladores: Sólon. Para tal, utiliza-se de um artigo que trata da condição desse
legislador no momento em que ele se dedica à fundação do corpo político. A idéia da
demiurgia política encontra-se na tradição política grega. O legislador Sólon é um exemplo de
fundação de leis. A experiência da colonização grega é uma experiência de fundação.
Bignotto destaca que, seja como for, a fundação na Grécia Antiga era sempre pensada como
156
BIGNOTTO. A Solidão do Legislador. In: KRITERION. Número 99, p. 8.
157
AVRITZER. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. In: Lua Nova, número 68: p. 164 -165.
65
um ato que reunia os homens aos deuses que entregava a alguns uma tarefa, que por sua
natureza estava na fronteira entre o divino e o humano.
158
A figura do legislador, denominada
pelos gregos de monothetés, trata-se de um tipo de ator da vida política.
159
Nesse contexto, o
legislador grego aparece como um ator que precisa consagrar as ações políticas com uma
cultura rodeada de mitos. Uma política norteada pela mitologia possui significações que
compreendem a ligação do terreno com o divino. Por essa perspectiva nota-se que a fundação,
quando tratada no universo da mitologia grega, apresenta características diferentes da tópica
de outros tempos. O tema da fundação é voltado para a dimensão imaginária e simbólica
constitutiva da vida política de uma sociedade, dentro da qual o tema da fundação e as ações
políticas a ela associadas podem produzir efeitos que ultrapassam em muito os limites
estritamente históricos dentro dos quais as ações efetivamente acontecem.
160
Em sua obra intitulada O Tirano e a Cidade, Bignotto nos lembra que a arte da
fundação constitui-se como um tema de evidência capital em toda a filosofia política antiga.
Para esse comentador de Hannah Arendt esse tema é tratado em pelo menos três dos grandes
diálogos platônicos, a saber: República, Leis e o Político, embora possua, segundo o autor,
ramificações importantes em diálogos de quase todas as fases.
161
Nota-se que abordar uma
teoria da “polis” incluiu certamente o tratamento da tópica da fundação no contexto da
cultura grega antiga.
O tema da fundação perpassa todas as fases da História. Visto por essa ótica, esse
assunto é também assinalado por Bignotto por meio de algumas análises que ele faz a respeito
do período histórico que compreende o século XV e o século XVI no ambiente político da
península itálica dessa época.
158
BIGNOTTO. A Solidão do Legislador. In: KRITERION, número 99, p. 20.
159
Ver a esse respeito: M GAGARIN. Early Greek Law, p. 58 - 60. Recomendação feita por Newton Bignotto
em nota de roda pé. (BIGNOTTO. A Solidão do Legislador. In: KRITERION, número 99, p. 20).
160
BIGNOTTO. Problemas atuais da teoria republicana. In: CARDOSO (Org.). Retorno ao Republicanismo, p.
34.
161
BIGNOTTO. O Tirano e a Cidade, p. 103.
66
É pertinente voltarmos para as abordagens a respeito da problemática que envolve a
tópica da fundação no âmbito do despontar da Idade Moderna. Trata-se de um período da
História constituído de novas visões a respeito da vida política das cidades renascentistas.
Considerando que a pica da fundação é caro à tradição republicana, torna-se então
relevante nos remetermos a um dos elementos presentes nas origens do republicanismo
moderno. É o caso da referência devida àquilo que se denominou chamar a partir de Hans
Baron de humanismo cívico. Segundo a trilha aberta por Newton Bignotto, pode-se dizer que
com o advento da obra The Crisis of The Early Italian Renaissance, cuja publicação se deu
em 1955, inicia-se um período de estudos referentes ao humanismo do Renascimento.
Embora, os debates que dizem respeito ao caráter político do humanismo italiano do
Renascimento tiveram início no século XIX, esses eram compostos por considerações que
fazem referências ao Estado e ao indivíduo. Tratam-se de considerações formuladas por
Burckhardt em seu hoje célebre A civilização do Renascimento Italiano.
162
É no coração do Renascimento italiano que se dá uma série de discussões em torno do
que se denominou de Humanismo cívico. É um momento que se caracteriza por ruptura e por
abandono de uma compreensão de mundo que se faz amparado em uma ética da salvação de
cunho escatológico. O humanismo cívico assinala com rigor o papel do homem frente aos
desafios que lhe são impostos pela demanda da vida ativa. A renascença florentina revela em
boa medida, segundo Quentin Skinner algo que ia além das realizações apontadas por Matteo
Palmieri: pintura, escultura e arquitetura. Para o próprio Palmieri, as preocupações desse
período se davam também através da expansão da filosofia moral, social e política.
163
Se por um lado, a Idade Média valorizou a vida contemplativa que se sustentava por
uma compreensão teocêntrica do mundo, por outro, o advento dos tempos modernos
162
BIGNOTTO. Humanismo Cívico Hoje. In: ____________ (Org.). Pensar a República, p. 49.
163
SKINNER. As Fundações do Pensamento Político Moderno, p. 91.
67
renascentistas, ao contrário, se sustentou amparado pela própria ação do homem. Podemos
considerar esse momento como o declínio de Deus e o acontecimento do homem.
164
Na sua aposta no homem, o Renascimento se constituía como uma aventura
antropocêntrica que se utilizou de vínculos com o passado da Antigüidade clássica para dar
suporte a teorias políticas da modernidade que por hora se despontava. De acordo com
Bignotto, “os humanistas cívicos faziam questão da origem de um tema fundamental, mas
apelavam para os vínculos do passado como garantia contra os perigos enfrentados pela
cidade.”
165
Por isso, é importante tratar do tema da fundação numa perspectiva que possa se
encaminhar para além da concepção assumida por Hannah Arendt. Dessa maneira, é
importante lançar mão da tradição republicana renascentista, apostando assim que essa é uma
atitude capaz de contribuir para uma análise que gira em torno da questão da natalidade
enquanto categoria que possibilita a fundação do corpo político que se no âmbito dos
acontecimentos que são inerentes às Revoluções Modernas.
Uma das características fundamentais do humanismo cívico, é o seu diálogo com o
passado. São poucos os períodos da nossa História que conheceram um grupo de intelectuais
que apostaram e fizeram do diálogo com o passado uma mola mestra ou eixo de suas
reflexões no que tange às questões que envolvem o presente. Esse foi o caso do Renascimento
italiano. Segundo Bignotto, desde o século XIV em um movimento iniciado por Petrarca, a
utilização do recurso a textos oriundos da Antigüidade constitui-se como ferramenta utilizada
por filósofos, historiadores e artistas. Essa investida, consistia em abandonar os cânones
medievais e em contrapartida constituírem um mundo diferente daquele da Idade Média que
Leonardo Bruni classificou pela primeira vez de “idade das trevas.”
166
164
Essa expressão é de Tiago Adão Lara. Para informações a respeito, ver Coleção Caminhos da razão no
Ocidente, editada pela Vozes; volume III intitulado: A filosofia ocidental do Renascimento aos nossos dias.
165
BIGNOTTO. Humanismo Cívico Hoje. In: ____________ (Org.). Pensar a República, p. 58.
166
BIGNOTTO. Republicanismo e Realismo: um perfil de Francesco Guicciadini, p. 23.
68
Não nos ocupemos aqui com a questão do Humanismo cívico considerando todos os
aspectos que lhes são inerentes. Tomemos a análise sobre o Humanismo cívico somente pela
sua referência naquilo que diz respeito às suas abordagens relacionadas à tópica da fundação
que se no contexto do Renascimento, pois um dos aspectos do Humanismo cívico que nos
parece importante é o fato dele trabalhar o problema da fundação dos regimes.
167
Incentivados pelos caminhos de abordagens em torno da fundação no seio do
humanismo cívico, o nosso propósito aqui é o de descrever os pontos de aproximação e de
distanciamento do entendimento de Arendt em relação a esse momento da História de nossa
tradição republicana. É importante analisarmos em que medida Arendt se amparou na tradição
do republicanismo renascentista para construir uma filosofia política capaz de sustentar a
fundação do corpo político no âmbito das Revoluções do século XVIII.
No contexto do decorrer desse período, a obra de Bignotto possui um destaque
relevante a um dos teóricos mais importantes que trata a respeito da fundação. É o caso de
Maquiavel a quem Bignotto considera um responsável pela descoberta de um novo continente
na política. Para ressaltar a importância do tema da fundação no campo da investigação em
torno de uma teoria geral da política, adverte Newton Bignotto:
Se podemos, portanto, como procuramos demonstrar, falar de uma teoria da fundação, ela
se torna consistente na medida em que faz parte de uma teoria geral da política. A separação
entre fundação e vida política ordinária é pertinente do ponto de vista analítico, mas não serve
para descrever o mundo completo e múltiplo que se abre com a introdução perigosa de novas
ordens e modos e a descoberta de um novo continente da política.
168
Com a instauração do novo aparecem questões das quais a problemática da fundação
procura se encarregar. Tomando como referência a interpretação de Newton Bignotto de que
Maquiavel, na sua teoria da fundação se lançou em um novo continente da política, podemos,
167
BIGNOTTO. Humanismo Cívico Hoje. In: ______________ (Org.). Pensar a República, p. 53.
168
BIGNOTTO. Maquiavel e o novo continente da política. In: NOVAES (Org.). A Descoberta do homem e do
mundo, p. 403.
69
a partir daí, associar essa interpretação à investida arendtiana no que diz respeito ao
aparecimento do novo trazido pelo fenômeno revolucionário. O destaque dado por Maquiavel
no tocante à tópica da fundação constitui-se como uma situação reconhecidamente assumida
por Hannah Arendt. Dito de um outro modo, em se tratando de uma teoria da fundação no
seio da tradição republicana renascentista, Maquiavel é lembrado de uma maneira
considerável por Arendt. Neste caso, as análises de Newton Bignotto a respeito de uma teoria
da fundação também se dirigem a uma teoria da fundação no âmbito da obra de Hannah
Arendt. A esse respeito, comenta Newton Bignotto:
Nesse sentido, o ato de fundação, a criação de novos espaços humanos, é o ato que
melhor expressa nossa capacidade de inventarmos nossa condição de seres livres.
Dizendo de outra maneira, os atos de fundação são para Arendt as ações livres mais
importantes que podemos levar a cabo, uma vez que derivam diretamente de nossa
capacidade, única na natureza, de começarmos repetidamente a obra de nossa própria
condição.
169
Evidencia-se que, em se tratando de fundação, é necessário associá-la à categoria da
natalidade. Pois, em Arendt, natalidade e fundação constituem-se como temas que se
entrelaçam.
Pelas análises encaminhadas por Newton Bignotto relativas ao tema da fundação,
percebe-se que a nossa tradição republicana renascentista também se utiliza da idéia de
começo. É devido a isso, que a fundação possui um lugar de destaque na elaboração de uma
filosofia política na Idade Moderna. Daí, a afirmação arendtiana referente a Maquiavel de que
“o que torna tão importante para a história das revoluções, da qual foi um precursor, é que ele
foi o primeiro a refletir sobre a possibilidade da criação de um corpo político estável,
permanente e duradouro.”
170
169
BIGNOTTO. Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Hannah Arendt. In: _____________ & MORAES
(Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 118.
170
ARENDT. Da Revolução, p. 29.
70
A ação fundadora no contexto da tradição renascentista acontece caracteristicamente
na ruptura com os postulados doutrinários do teocentrismo medieval que se sustentava por
meio da tutela do domínio religioso-político assumido pela Igreja romana. Nesse sentido,
Arendt adverte que o mais importante é que coube a Maquiavel ser o primeiro a visualizar a
ascenção de um domínio puramente secular.
171
Newton Bignotto nos ajuda a remontar aos elos entre algumas questões levantadas
pelos humanistas cívicos e por Hannah Arendt. A nossa autora por ser uma pensadora
contemporânea aborda temas que também foram analisados pelos humanistas renascentistas.
É nesse sentido que para Bignotto existe uma ponte das discussões contemporâneas
levantadas por Arendt com o humanismo renascentista. O tema da liberdade que é associado
por Arendt à tópica da fundação, foi veiculada pelos humanistas e depois veio a ser
apropriada e transformada por Maquiavel, pode nos ajudar demarcar uma posição clara para
as discussões contemporâneas.
172
Esse comentador de Arendt diz que desde os estudos
assumidos por Baron ficou claro que a liberdade constitui-se como o eixo norteador da
reflexão em torno do político que caracterizou o período do Renascimento.
173
A liberdade discutida no contexto do humanismo renascentista aparece ligada ao
nascimento do indivíduo. Bignotto diz que a afirmação de valores ligados a essa nova posição
no mundo, talvez não seja mais tão relevante quanto foi no debate realizado no começo do
século XX. Ele nos chama a atenção para estarmos atentos para alguns aspectos que
conservam todo o seu frescor. Pocock por exemplo, é lembrado como alguém que fez com
que vejamos a importância do ideal de participação e de comunidade quando nos servimos do
humanismo como ponto de partida para a investigação das origens do ideário que presidiu a
formação da República Americana.
174
171
Ibidem, p. 29.
172
BIGNOTTO. Problemas atuais da teoria republicana. In: CARDOSO (Org.). Retorno ao Republicanismo, p.
173
Ibidem, p. 20.
174
Ibidem, p. 20 – 21.
71
A postura assumida por Pocock e comentada por Newton Bignotto, demonstra o
quanto os temas como o do ideal de participação e o de comunidade, estavam presentes tanto
no humanismo renascentista como em debates que fizeram parte do nascimento da República
Americana. É nesse sentido que se evidencia o elo entre algumas análises anteriores e
abordagens encaminhadas por Hannah Arendt que giram em torno do tema da fundação.
A ruptura instaurada com os ensinamentos cristãos na esfera pública é uma
característica da ação fundadora no âmbito do Renascimento. Esse domínio secular pelo ponto
de vista de Maquiavel segundo as análises encaminhadas por Hannah Arendt, se pauta em leis
e postulados da ação que se apresentavam como independentes dos ensinamentos da Igreja.
175
Nesse contexto, livrar-se dos ensinamentos da Igreja, significava apostar no homem, ou seja,
no humanismo.
A aposta no homem enquanto um agente capaz de criar novas realidades políticas,
evidencia-se como uma das características do legado de Maquiavel. Portanto, pelo caminho
trilhado pela interpretação arendtiana, Maquiavel é importante para o contexto da fundação no
seio do Renascimento por ele acreditar na capacidade do homem de agir secularmente criando
um novo corpo político. Por conseguinte, em Maquiavel, a liberdade também aparece na sua
obra, mas não necessariamente associada à idéia de começo no sentido arendtiano tomado de
Agostinho. A liberdade constitui-se como uma questão presente em Maquiavel
176
quando a
consideramos como ligada à criação de novos corpos políticos.
Se natalidade para Arendt é sinônimo de novo começo, a sua conexão com Maquiavel
torna-se visível, uma vez que para o pensamento político do florentino, liberdade não deixa de
ser um começo quando associada à criação de novas realidades políticas. A importância de
175
Ibidem, p. 29.
176
Eugênia Sales Wagner em Hannah Arendt: Ética e Política comenta Hannah Arendt dizendo que para essa
nossa autora a influência da idéia de liberdade em Maquiavel foi diminuta na Era Moderna, pois teria
prevalecido naquele momento e até a atualidade a noção agostiniana de liberdade interior. (WAGNER. E. S.
Hannah Arendt: Ética e Política, p.103).
72
Maquiavel no que se refere ao asssunto fundação merece ser destacada por ele ter somado à
tradição política um continente totalmente novo. Newton Bignotto a esse respeito, salienta:
Maquiavel fundou um continente totalmente novo, não se limitando a repetir fórmulas
consagradas pela tradição. Isso pode ser constatado, por exemplo, quando ele nos fala
da fundação contínua, que não tem o mesmo significado que as antigas teorias da
criação das constituições. Ou ainda, quando deixa inteiramente de lado a noção de
“cidade ideal,”que servia como termo regulador de toda teoria política antiga.
Maquiavel não aceita que modelos ideais, ou mesmo exemplos históricos, possam
servir de guias absolutos” para nossas ações. Se utiliza em sua obra repetinamente a
imagem da potência romana, é menos para fazer-lhe o elogio, e mais para mostrar-nos
que as exigências do presente não podem ser satisfeitas pela simples imitação do
passado.
177
Constata-se que a natalidade entendida como segundo nascimento, se associa ao tema
da fundação que é o mesmo que a capacidade humana para o começo, constitui-se como uma
categoria assumida tanto por Arendt como por Maquiavel. Para uma análise da conexão entre
esses dois pensadores por meio da categoria da natalidade, no que tange à reflexão filosófico-
política, as abordagens feitas por Newton Bignotto constituem-se como um referencial teórico
de apoio fundamental.
Somos capazes de lidar com a criação de novas realidades políticas, como no caso da
fundação de um novo corpo político. Por esse motivo, a associação entre natalidade e
fundação é pertinente. Ao agir, os homens criam e fundam o novo. Somos caracterizados por
nascermos sempre e, por causa disso, somos artífices da fundação. É o mesmo que dizer que a
arte de fundar novos corpos políticos é inerente à nossa condição humana. Daí, considerarmos
que só é possível entender a capacidade humana da ação fundadora, se compreendermos a sua
conexão com a concepção da natalidade política, traçada em termos arendtianos.
Arendt aposta na capacidade humana de lidar com as rupturas. A nossa autora pertence
a uma certa tendência do pensamento alemão que encontra nos instantes de ruptura
177
BIGNOTTO. Maquiavel Republicano, p. 214 - 215.
73
oportunidades extraordinárias de mudança.
178
Logo, justifica-se que, diante do mal totalitário
ou das situações que a ele se assemelham, cuja realidade é marcada pela inexistência de um
mundo público, resta ao homem voltar-se para uma forma de ruptura total com o tempo
presente. Sobre isso, comenta Newton Bignotto:
O ato que transforma um regime totalitário em um mundo político só pode ser, a nosso
ver, um ato de fundação, que ocorre independentemente das condições anteriores ao
momento em que ele acontece e que depende de uma característica do ser humano
que nomeamos, a justo título, liberdade.
179
Verifica-se que a condição humana é caracterizada pela singularidade que se traduz na
liberdade do ato de fundação. Nessa perspectiva, a liberdade de criar situações novas,
traduzida pela ação fundadora, encontra-se inerente à nossa condição humana. É por essa via
de compreensão que se evidencia que somos seres dotados da capacidade de criar ordens
temporais distintas. “A fundação de uma nova forma política é um ato que entrelaça duas
ordens temporais distintas e que expõe o fundador a todos os perigos de uma condição incerta
e sem referência.”
180
O fato de agirmos politicamente no mundo nos torna seres envolvidos nas teias dos
problemas próprios da fundação. Pois, trata-se de uma situação inerente à condição do homem
que, enquanto ser dotado pelo dom da criação de novidades, alimenta esse dom através da
esperança. Newton Bignotto nos alerta, comentando que “de fato, Arendt parece dizer que não
é a ação em geral que poderá servir de pano de fundo para a esperança, mas sim a
possibilidade que temos de agir de uma determinada maneira, fundando mundos que não
existiam ainda, senão como possibilidade de nova natureza.”
181
178
DRUCKER. O destino da tradição revolucionária: auto-incompreensão ou incompatibilidade ontológica? In:
BIGNOTTO & MORAES. (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 197.
179
BIGNOTTO. Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Hannah Arendt. In: _____________ & MORAES
(Orgs). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 119.
180
Ibidem, p. 118.
181
Ibidem, p. 119.
74
Segundo Cláudia Drucker, Arendt “deposita sua esperança na capacidade de as
pessoas nos surpreenderem, mesmo nas situações mais desfavoráveis.”
182
Nesse sentido, em
termos arendtianos, a ação anuncia o milagre da natalidade na vida activa, que pode ser
compreendida por meio do estabelecimento da fundação de novas realidades políticas. “O
começo do novo, de maneira privilegiada, é a fundação de uma esfera pública.”
183
É a
natalidade que confere ao homem o possibilidade de fundar corpos políticos, que nunca
existiram antes. O ser humano é livre no sentido em que ele encarna a aposta da natalidade.
Visto por esse ângulo, “o ato de iniciar espaços públicos e mantê-los abertos encarna, como
nenhuma outra atividade, a liberdade humana.”
184
A ação que é conservada no mundo pela
promessa, anuncia o milagre da natalidade enquanto categoria potencialmente política que
coincide com a liberdade de criar novas realidades. Essa coincidência se no campo da
instauração de novos espaços públicos. É no âmbito da esfera pública que o nascimento,
enquanto experiência de liberdade, acontece. A esse respeito, comenta Claudia Drucker:
Ação e liberdade são como nascimentos de segunda ordem. Onde se encontram esses
nascimentos de segunda ordem? Em geral eles não estão na vida privada, seja ela a
vida afetiva ou a profissional. Uma vida familiar realizada, uma grande paixão não
mudam o mundo. Nem mesmo a criação da grande obra de arte tem um impacto
imediato sobre ele.
185
Percebe-se que é no mundo público que a ação humana acontece, visando à criação do
novo. É por esse motivo que a autora, quando aborda a respeito da categoria da natalidade, a
analisa no sentido de denominá-la como a capacidade humana de começar algo de novo na
História.
O caminho que percorremos, nesse primeiro capítulo foi no sentido de explicitar que a
concepção arendtiana de natalidade é a de que a mesma é uma categoria potencialmente
182
DRUCKER. Sociologia do populismo e pensamento político. In: CORREIA (Org.). Transpondo o abismo:
Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política, p. 104.
183
Ibidem, p. 104.
75
política, e, portanto, pode vincular-se diretamente ao tema da fundação de novas realidades
políticas. A partir dessas análises, podemos verificar que, em Hannah Arendt, existe um liame
entre o que ela compreende como natalidade e fundação, enquanto Revolução, pois a nossa
intenção é a de demonstrar que uma associação do ato de começar com o fenômeno
revolucionário analisado por essa nossa autora.
O fenômeno revolucionário, tal como Hannah Arendt o analisa, foi uma novidade na
História e trouxe à tona a fundação de um novo corpo político. Esse tipo de fundação na
modernidade foi a caracterização de algo, cujo sentido de novidade se apresentou por meio de
alguns aspectos que revelam singularidades. Portanto, Arendt ao se referir à categoria da
natalidade como um elemento inerente à nossa condição humana, reforça a sua ligação com o
tema das Revoluções, isto é, o evento revolucionário é a concretização da novidade na
História que tem a sua ação de fundação radicada na categoria da natalidade.
Para Hannah Arendt é devido à natureza fundante, presente em cada ser humano, que
nos é proporcionada a possibilidade da instauração de um novo começo na História, tomando
como exemplo os acontecimentos denominados Revoluções Modernas.
186
Assim, Arendt cria
condições para uma base teórica capaz de fundamentar um conjunto de análises acerca do
fenômeno das Revoluções. Considerando, pois, que a nossa autora demonstra em sua obra que
existe ligação entre os conceitos de natalidade e de fundação, Bignotto diz que “em Arendt,
são as Revoluções que devem ser compreendidas a partir do tema da fundação e não o
contrário.”
187
A partir daí, pode-se afirmar que, em termos arendtianos, a natalidade se traduz
184
Ibidem, p. 104.
185
Ibidem, p. 103.
186
Nessa perspectiva, é salutar trabalhar a categoria da natalidade associando-a ao tema da fundação, onde, a
partir daí, podem-se criar bases para uma análise da fundação do corpo político no âmbito do fenômeno
revolucionário. Essa atitude é justificada, porque o fenômeno das Revoluções analisado por Hannah Arendt
encontra-se diretamente ligado com aquilo que a autora compreende como a capacidade humana de iniciar algo
de novo. Em função disso, constata-se que a problemática da categoria da natalidade levantada por Arendt está
vinculada diretamente com a questão da fundação do corpo político no âmbito do fenômeno revolucionário,
principalmente no que diz respeito aos acontecimentos relacionados com as experiências francesa e americana.
187
BIGNOTTO. Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Hannah Arendt. In: _____________ & MORAES
(Orgs). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 120.
76
no ato da fundação abrindo um caminho de compreensão de que esses dois conceitos são
relevantes para garantir uma análise a respeito do fenômeno moderno das Revoluções. Dito de
uma outra maneira, evidencia-se que a pretensão de Hannah Arendt ampara-se na crença de
que uma análise acerca do que ela compreende por natalidade, enquanto categoria inerente à
nossa condição humana, nos auxiliará no trabalho de compreender uma explicitação da
fundação do corpo político no âmbito do contexto do fenômeno revolucionário moderno. Esse
tipo de alusão é referendado por Claudia Druker quando diz: “A revolução aparece como
atualização da natalidade, ou seja, do potencial humano para romper a ordem do tempo
cotidiano.”
188
É a partir daí que a dignidade da natalidade lugar e um sentido para o
extraordinário.
189
Abordemos, nas linhas que se seguem no próximo capítulo, como o fenômeno
revolucionário se apresenta como a efetivação da categoria da natalidade enquanto condição
necessária para manter viva a promessa de um novo começo na História. Nessa investida,
daremos atenção às análises encaminhadas por Arendt no campo das Revoluções Francesa e
Americana.
188
BIGNOTTO. O destino da tradição revolucionária: auto-incompreensão ou impossibilidade ontológica? In:
BIGNOTTO & MORAES (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 210.
189
A esse respeito, salienta Hannah Arendt: “Estas situações únicas, feitos ou eventos, interrompem o
movimento circular da vida diária no mesmo sentido em que a bíos retiliniar dos mortais interrompe o
movimento circular da vida biológica. O tema da história são essas interrupções o extraordinário, em outras
palavras.” (ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 72).
77
CAPÍTULO II
O Sentido da Revolução
“Até mesmo o austero filósofo Immanuel Kant, de
Königsberg, cujos bitos, conforme se comentava, eram
tão regrados que permitiam aos cidadãos daquela cidade
acertassem por eles seus relógios, postergou a hora de seu
passeio vespertino ao receber a notícia, de modo que
convenceu a cidade de Königsberg de que um fato que
sacudiu o mundo tinha deveras ocorrido. O que é mais
importante é que a queda da Bastilha divulgou a
revolução para cidades provincianas e para o campo”
Eric J. Hobsbawn. A Revolução Francesa
190
Em abordagem anterior, fizemos alusão à associação existente entre a categoria da
natalidade e a questão da fundação. Esse segundo momento do nosso trabalho, tem como
objetivo preparar o caminho para uma análise da fundação do corpo político na perspectiva
assumida por Hannah Arendt. Por isso, o que nos interessa explicitar nesse segundo capítulo é
a maneira como a Revolução nos é apresentada como uma experiência de fundação dotada de
significados sem precedentes na História. Dito de um outro modo, a nossa pretensão nesse
segundo momento da pesquisa é discorrer a respeito do sentido da Revolução apresentada por
nossa autora, para que possamos alicerçar as análises referentes à fundação do corpo político
configurada em seu pensamento.
190
HOBSBAWN. A Revolução Francesa, p. 25.
78
Dessa maneira, compreende-se que, para desenvolver uma autêntica apresentação da
Fundação do corpo político no pensamento de Hannah Arendt, é necessário que antes
trilhemos um caminho de explicitação do sentido da Revolução abordada por ela. Segundo a
nossa autora, no caso da Revolução Americana, os homens "...julgaram que podiam começar
a agir segundo as circunstâncias, e a política inglesa não lhes deixou outra alternativa senão a
fundação de um corpo político inteiramente novo."
191
Foi necessário que se estabelecesse uma
realidade política nova, ou seja, fundou-se um corpo político com características diferentes
daquele que existia do outro lado do Atlântico.
192
Esse tipo de análise demonstra que para Arendt o que ela concebe como idéia de
Fundação se desenvolve através das Revoluções. Daí, a relevância de se ter um capítulo
voltado para o tratamento do sentido do evento
193
revolucionário, pois, não podemos perder
de vista, o nosso propósito central que é examinar como se processa a fundação do corpo
político no seio de tal fenômeno.
O pensamento político arendtiano possui duas vertentes que se contrapõem: por um
lado, as abordagens sobre o totalitarismo e, por outro, as análises referentes ao fenômeno
revolucionário. Se em uma vertente temos o tema do totalitarismo como um assunto central e
célebre da teoria política arendtiana, em outra, podemos afirmar que a contraposição a esse
191
ARENDT. Da Revolução, p. 45.
192
As implicações inerentes à investida na fundação de um novo corpo político na América do Norte é descrita
por Bernard Bailyn da seguinte maneira: “Por volta de 1776, suas idéias, baseadas na tradição de oposição mas
reconstruídas de forma original, haviam adquirido forma sólida. As doutrinas chave estavam prontas: uma
redefinição do que era uma ‘constituição’ e como poderia dominar o sistema político, uma interpretação original
da separação dos poderes, uma crença na compatibilidade de poderes federais duais; um sentido de que ‘direitos’
individuais numa sociedade civil eram reais e poderiam ser identificados e defendidos; e, sobretudo, um temor
veemente do poder político, seu efeito mortal sobre a sobrevivência da liberdade e a absoluta necessidade de
coibir seu abuso. Em 1760, nenhum desses elementos estava claro no pensamento deles, por volta de 1776, eram
vívidos, impelentes e inspiradores. Nos anos que se seguiram, essas idéias iriam formar as contradições de vários
estados que fizeram a união da América do Norte e finalmente a constituição delineada para a nação em 1787.”
(BAILYN. As Origens ideológicas da Revolução Americana, p. 09).
193
De acordo com Adriano Correia, “esses eventos são os únicos acontecimentos que dão lugar ao
extraordinário, à grandeza; são momentos singulares em que como que uma ocultação da fragilidade da
existência humana e uma revelação da possibilidade de que ela transcenda suas próprias limitações. Desses
eventos Hannah Arendt destaca a polis grega, a civitas romana, o fenômeno revolucionário, a desobediência
civil.” (CORREIA. Introdução. In: ____________ (Org.). Transpondo o Abismo: Hannah Arendt entre a
filosofia e a política, p. 05).
79
tema é a análise feita por Arendt no que tange à novidade inaugurada pelo evento
revolucionário. A esse respeito comenta André Enegren:
A investigação histórica de Arendt gira em torno de dois pólos extremos que encerram
a modernidade: o primeiro é o totalitarismo, sinônimo de completa anulação do
político pela mobilização desenfreada das massas, em outro extremo da escala, a
época moderna é estruturada in statu nascendi no fato revolucionário definido como
abertura e momento de incandescência do político, durante o qual a história se
entreabre à liberdade da ação.
194
Dessa maneira, percebe-se que o pensamento político de Arendt uma vez concebido
como duas vertentes contrapostas, pode ser também compreendido como composto por dois
tipos de rupturas que se contrapõem: a experiência totalitária, que se constitui como uma
ruptura ou novidade radical em relação à tradição da História política ocidental, e a outra, que
se contrapõe à primeira, tratando do fenômeno revolucionário, caracterizando-o de forma a
considerá-lo responsável pelo surgimento de espaços públicos de liberdade e de ação na
modernidade.
Nessa perspectiva, Heloísa Starling
195
comenta que o pensamento político de Arendt
se sustenta pelo fio da narrativa. Por essa razão, ela diz que nesse contexto as vertentes
totalitária e revolucionária não se configuravam como num fio linear, pois se constituíram
quase como uma trama.
194
ENEGREN. Revolución y Fundación. In: Nueva Sociedad. El Resplandor de lo Público em torno a Hannah
Arendt, p. 53.
195
Heloísa Starling recorre ao estudo de obras literárias para mostrar através delas como a narrativa no que
tange a assuntos políticos como o republicanismo aparece como uma questão fundante de nossa experiência
histórica. Sua obra procura explorar as brechas existentes entre o discurso da modernidade e a realidade
brasileira. Ver artigos intitulados A outra Margem da Narrativa: Hannah Arendt e Guimarães Rosa In:
BIGNOTTO & MORAES (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 246 - 261; e Travessia: a
narrativa da república em Grande Sertão Veredas. In: BIGNOTTO (Org.). Pensar a República, p. 155 -178).
Para essa comentadora de Hannah Arendt: “a narrativa de Arendt comporta uma trama infindável de histórias
sobre as esperanças truncadas da modernidade, no interior do qual um fragmento esquecido, no tempo, pela
tradição do pensamento político ocidental, dará margem a uma nova história que, embutida dentro dele, por sua
vez, trará à superficie do presente o fragmento de uma outra história e, assim por diante. Em boa medida, essa
trama produz a figura de um narrador preocupado em enxergar, nos tempos que correm uma multiplicidade
descontínua de eventos onde se sucedem as oportunidades perdidas, os projetos incompletos, as causas
inacabadas” (STARLING. A outra margem da narrativa. In: BIGNOTTO & MORAES (Orgs.). Hannah Arendt:
diálogos, reflexões e memórias, p. 247 - 248).
80
Na primeira vertente, temos a completa anulação do sentido da política, por meio de
um sistema complexo e sistemático de manipulação das massas; na segunda vertente, ou seja,
na outra ponta, temos a revolução, situação definida por Arendt como um momento
privilegiado da manifestação do político. É no seio da Revolução que a História deixa visível
o espaço em que a liberdade se abre através da ação humana.
196
Diante dessas duas vertentes
contraditórias percebe-se a complexidade do pensamento de Hannah Arendt no que tange o
tema da novidade revolucionária, visto que, o totalitarismo também foi em termos
arendtianos, uma novidade radical. Isso porque o terror e a ideologia, instrumentos utilizados
pela investida totalitária, caracterizou esse regime como um fenômeno novo.
197
As formas de
manipulação das massas por meio do uso da propaganda, bem como todos os efeitos
produzidos pelo terror e pela ideologia constituem-se como elementos que caracterizam a
experiência do totalitarismo como uma novidade.
Considera-se que, são esses elementos constitutivos do fenômeno totalitário que o
possibilita ser uma experiência diferenciada dos despotismos e das tiranias até então
registrados pela nossa tradição de pensamento político. Em outras palavras, nesse caso, o
totalitarismo, uma vez concebido como uma novidade, assim se apresenta trazendo consigo as
características de uma ruptura com a nossa tradição de pensamento político, ou seja, trata-se
de uma realidade que o faz ser considerado um fenômeno moderno sem precedentes na
História do pensamento político ocidental.
Uma das grandes marcas que o totalitarismo nos legou foi a sua investida na
destruição da espontaneidade, isto é, coube aos seus mecanismos cuidar da destruição dessa
espontaneidade inerente à condição dos seres humanos, considerada por Hannah Arendt como
196
Ibidem, p. 247 – 248.
197
Para que o totalitarismo alcançasse eficiência, duas qualidades foram acrescentadas a ele. A esse respeito diz
Hans Morgenthau: “O totalitarismo moderno acrescentou às tradicionais características da tirania duas novas
qualidades: uma ideologia que, ao ser analisada em suas conclusões gicas, torna inevitáveis os abusos do
totalitarismo, e a burocratização do terror em particular e do poder político em geral, proporcionando ao poder
81
a mais geral e elementar manifestação da liberdade humana.
198
Veremos mais adiante que
essa espontaneidade traduzida em manifestação de liberdade ao contrário do que lhe ocorre no
totalitarismo, é garantidora e apoiadora do fenômeno das Revoluções Modernas.
O problema da fundação implica em investigar como ocorre ou como se preside a
interrupção de um fluxo de costumes e de leis. Isso implica em lidar com essas questões a
partir de um ponto zero. É por esse ponto de vista que a idéia contida nas Revoluções é a de
anular a lei. Anulam-se as leis como aquelas que sustentavam o Antigo Regime com o
propósito de se criar outras leis. No caso da Revolução Americana temos uma teoria da
fundação baseada no rompimento com o modelo do corpo político inglês. Em se tratando da
Revolução Francesa, sua instauração significou uma ruptura com o modelo do corpo político
do Antigo Regime.
Hannah Arendt destaca-se como uma pensadora precursora,
199
por ela se lançar em
uma abordagem a respeito da fundação associando-a ao fenômeno revolucionário ocorrido no
contexto da modernidade. Diante disso, evidencia-se a pertinência que existe em demonstrar
como as Revoluções se apresentam como um fenômeno de fundação moderna. O nosso
propósito é explicitar nas linhas que seguem que em termos arendtianos, o sentido das
Revoluções ocorridas na América do Norte e na França constitui-se como um exemplo de
fundação na modernidade capaz de sustentar a criação de uma teoria política a seu respeito.
200
Newton Bignotto comenta esse assunto advertindo:
político uma eficiência que ele não possuía.” (MORGENTHAU. Hannah Arendt: Totalitarismo e democracia. In:
Revista Política, p. 46).
198
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 133.
199
Esse precursionismo de Arendt é lembrado por Étienne Tassin, quando afirma: “La contribution d’Arendt à
la philosophie politique, est d’avoir ouvert la pensée politique à ce qui en constitue l’enjeu propre: l’institstion d’
un sens humain du vivre-ensemble dans l’instauration d’un monde comun” (TASSIN. Le Trésor perdu : Hannah
Arendt l’ action politique, p. 558).
200
A rigor, isso ocorre como decorrência do legado imaginário e simbólico deixado no tempo por essas ações
legado considerado definitivamente essencial para a preservação das leis fundamentais e dos valores inaugurais
que presidem a constituição do corpo político.
82
Ao problema histórico da fundação, Arendt dedicou uma obra capital, o seu ensaio
Sobre a Revolução. Concebido como um longo debate sobre o fenômeno
revolucionário, esse escrito pode ser lido como um verdadeiro tratado sobre a
fundação na Idade Moderna. Deixando de lado as polêmicas sobre o significado de
várias de suas passagens e mesmo sobre o sentido de sua interpretação das várias
revoluções que constituem sua matéria prima, é possível dizer que Arendt não faz
da fundação um problema central de sua teoria política quanto dedica uma atenção
especial à sua dimensão histórica.
201
Nessa perspectiva, é importante também explicitar por quais motivos as Revoluções
tornaram-se, segundo a nossa autora, um fenômeno nunca antes vivenciado na História da
humanidade. Arendt realça a significação política e o papel do evento revolucionário na
História Moderna. Elizabeth Young-Bruehl nos lembra essa importância que Arendt dá a esse
fenômeno, citando a seguinte afirmação da autora: “Nós queremos aprender o que é uma
revolução suas implicações gerais para o homem como um ser político, sua significação
política para o mundo em que estamos vivendo, seu papel na história Moderna.”
202
Em síntese, apresentaremos nesse segundo capítulo as principais razões apontadas por
Hannah Arendt para considerar como é relevante o sentido do fenômeno das Revoluções para
contribuir com uma abordagem de como se processa a fundação do corpo político em seu
pensamento.
Nessa investida, de se destacar que o sentido da Revolução, pode ser tratado de
maneira a considerar cinco aspectos que lhes são inerentes. O primeiro desses aspectos a ser
trabalhado é o do entendimento da Revolução como uma experiência de fundação nunca
vivenciada antes na História da humanidade, ou seja, trata-se de demonstrar as razões que
fazem essa novidade ser considerada como algo sem precedentes na História. O segundo
aspecto será explicitado no momento em que demonstraremos o significado dado pela autora
à palavra Revolução, considerando a sua dimensão semântica.
203
O terceiro aspecto se
201
BIGNOTTO. Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Hannah Arendt. In: _____________ &
MORAES. (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 119.
202
YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 355.
203
Marcelo Gantus Jasmim lembra o caráter absoluto e universalista que é próprio da filosofia das luzes
salientado por Koselleck. “Descrevendo estas transformações no campo da consciência histórica européia,
83
pautará no esforço de Arendt em se referir ao reaparecimento da liberdade política no cenário
do fenômeno revolucionário. Nesse momento enfatizaremos que a idéia de Revolução
encontra-se associada à concepção de liberdade política. Em um quarto momento,
explicitaremos como o aspecto da questão social influenciou no desdobramento do evento
revolucionário. E, por último, apresentaremos o aspecto da secularização como sendo uma
questão que se relaciona à Revolução, pois, tratar da relação entre revolução e secularização é
analisar a importância da fundação do Estado laico.
Portanto, nossa pretensão nas linhas que se seguem é demonstrar através dos cinco
aspectos supracitados, o elemento novidade revolucionária como algo que subjaz a todos eles.
Em outras palavras, trata-se, neste caso, de considerar a novidade do evento revolucionário
como um elemento que se desenvolve como um fio condutor desses cinco aspectos que por
hora iremos analisar.
2.1- A Revolução como Fundação sem Precedentes
Antes de iniciar a explicitação do desencadeamento das Revoluções como um
fenômeno de fundação moderna sem precedentes na História, Hannah Arendt em sua obra On
Revolution recorre a uma análise a respeito da relação entre guerra e Revolução. Percebe-se
que não é por acaso que a autora faz esse recurso, visto que diferentemente da tópica
revolucionária, a guerra não é uma realidade nova na História da humanidade.
Hannah Arendt, ao lançar mão de uma abordagem a respeito de algumas diferenças
existentes entre guerra e Revolução, assim procede com o objetivo de sustentar a sua
Koselleck chamou a atenção para o fato de que a substituição da pluralidade descosida das experiências pelo
‘singular coletivo’ da história fora parte do evento filológico geral e singularização e simplificação dirigido
social e politicamente contra a sociedade de ordens. Liberdade, Justiça, Progresso e Revolução assim com
maiúsculas – foram algemas das expressões que manifestaram o caráter abstrato e universalista próprio à
filologia das luzes em seu ímpeto de ruptura com a sociedade da desigualdade que queria ultrapassar. (JASMIM.
Aléxis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política, p. 22).
84
concepção que se ampara na alusão de que nada deu origem a algo inteiramente novo a
exemplo dos acontecimentos que foram intitulados como Revoluções Modernas.
Embora o nosso propósito nesse momento da pesquisa não seja o de trabalhar essas
distinções e relações entre guerra e Revolução apontadas pela autora, analisaremos um pouco
delas para melhor compreendermos o fenômeno das Revoluções como uma experiência de
fundação que não teve nenhum precedente histórico.
204
Para Hannah Arendt “historicamente, as guerras incluem-se entre os mais antigos
fenômenos do passado de que se tem registro.”
205
Nessa perspectiva, a guerra é compreendida
como um fenômeno humano muito antigo, portanto, constitui-se como uma realidade que
perpassa a História das sociedades humanas. Na nossa tradição literária ocidental judaico-
cristã, temos alguns exemplos de conflitos registrados pela História bíblica. Temos como um
desses exemplos narrados pela tradição bíblica, o caso do fraticínio de Caim sobre Abel.
206
Embora o conflito entre dois irmãos não seja considerado uma grerra, ele demonstra, no fato
ocorrido entre esses dois personagens bíblicos, um caso de fraticínio marcante na história
judaido-cristã do ocidente. É um acontecimento que mostra o primeiro conflito entre seres
humanos da mesma família e que teve a morte de um deles como conseqüência. E uma vez
classificadas como justas ou injustas, as guerras, assim como o conflito inaugurado entre Cain
e Abel, sempre estiveram presentes na vida dos seres humanos.
204
Segundo Eric Hobsbawn, a Revolução Francesa “foi, diferentemente de todas as revoluções que a precederam
e a seguiram, uma revolução social de massa, e incomensuravelmente mais radical do que qualquer levante
comparável. Não é casual que os revolucionários americanos e os jacobinos britânicos que emigraram para a
França, em razão de suas simpatias políticas, tenham sido vistos, na França, como moderados. Tom Paine era um
extremista na Grã-Bretanha e na América; mas, em Paris, ele estava entre os mais moderados dos girondinos.
Resultaram das revoluções americanas grosseiramente falando, países que continuavam a ser o que eram, apenas
sem controle político dos britânicos, espanhóis e portugueses. O resultado da Revolução Francesa foi o de que a
era Balzac substituiu a era Mme. Dubarry.” (HOBSBAWN. A Revolução Francesa, p. 11).
205
ARENDT. Da Revolução, p. 10.
206
Segundo a tradição bíblica, Cain e Abel eram filhos de Eva e Adão. Seus pais se constituíram como um casal
considerado fundadores da comunidade humana de acordo com a crença judaica e cristã expressa no livro do
Gênesis, o primeiro na ordem dos livros que compõem as chamadas Sagradas Escrituras. Segundo a tradição,
Caim matou o irmão Abel por inveja. O sucesso de Abel e os conseqüentes elogios vindos do seu pai, teriam
criado uma inveja incontrolável em Caim a ponto de levá-lo a cometer o primeiro fraticídio da História biblica.
85
Se por um lado temos as guerras que representam uma realidade que sempre esteve
presente na História da humanidade, por outro, o fenômeno revolucionário desponta como
uma novidade que se instaurou sem que tivesse qualquer precedente na História. As
Revoluções constituem-se como uma realidade que somente veio a se desenvolver no seio da
modernidade
207
em curso. O ambiente moderno se constituiu como um solo fértil capaz de
garantir o seu desenvolvimento. Isso porque, nas palavras de Hannah Arendt, as Revoluções
“em seu sentido próprio, não existiam antes da Idade Moderna.”
208
Portanto, sob esse ponto
de vista, Revolução e modernidade são realidades intrínsecas. Nesse caso, uma necessita da
outra para que ambas se justifiquem, isto é, tratam-se de fenômenos que se explicam um pelo
outro.
Em se tratando da relação entre guerra e Revolução, é importante considerar que
apenas em casos raros as guerras tiveram como objetivo a luta pela liberdade. Embora a
autora enfatiza que o alvo das Revoluções foi, como sempre tem sido, a causa da liberdade
contra a tirania.
209
Mas, apesar das diferenças existentes entre guerra e Revolução, Arendt faz referência
ao inter-relacionamento existente entre ambas. Para a nossa autora, no momento em que ela
tratou dessas questões referentes ao inter-relacionamento entre guerra e Revolução, sua
reciprocidade, e sua dependência mútua, estavam aumentando de maneira gradual. Trata-se de
um inter-relacionamento que não se constitui como um fenômeno recente, uma vez que as
207
Em se tratando do conceito de modernidade, Koselleck nos adverte: “O conceito de ‘tempos modernos’, ou
‘modernidade[Neuzeit], segundo o dicionário de Grimm, é documentado a partir de 1870, em Freiligrath.
Embora possam ser apontados exemplos anteriores – Ranke claramente evitou o conceito, se é que o conheceu - ,
o conceito de ‘modernidade’ só veio a impor-se depois de decorridos cerca de quatro séculos do período que ele
englobava. Lexicalmente se implantou no último quartel do século XIX. Esta constatação surpreendente não
deve provocar nossa admiração se constatarmos a naturalidade com que o conceito é usado hoje nos estudos
histórico-linguísticos que tratam do século XVI. Um período qualquer pode ser reduzido a um denominador
diacrônico comum, a um conceito que enfeixe estruturas comuns, depois de decorrido certo tempo.”
(KOSELLECK. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, p. 269).
208
ARENDT. Da Revolução, p. 10.
209
Ibidem, p. 09.
86
guerras
210
podem estar presentes no âmbito das Revoluções. É por essa razão que a autora diz
que a Revolução Americana foi precedida por guerra e a Revolução Francesa foi levada a
guerras de defesa e de agressão.
211
Eric Hobsbawn no que tange aos acontecimentos que
foram denominados de Revolução Francesa diz que no decorrer de sua crise, a jovem
República Francesa descobriu ou inventou a guerra total. Isso se deu por meio de uma
mobilização de recursos da nação com o recrutamento, através de racionamento no âmbito de
uma economia de guerra bastante controlada, da virtual abolição no país e no exterior e da
distinção entre soldados e civis. O resultado de tudo isso é que atualmente podemos enxergar
que o que se passou na República Jacobina e no “Terror” de 1793 a 1794, possui um sentido
que nos esclarece sobre os termos de um esforço moderno de guerra total.
212
No caso da Revolução Americana, a guerra precedeu à declaração de Independência,
pois seria necessário vencer a reação inglesa a partir de uma realidade política nova que se
encontrava em funcionamento. Isso porque, devido ao contexto de uma colonização de
povoamento que resultou na fundação de uma nova nação com a criação de uma nova
realidade política, foi possibilitada a gestação de um país com capacidade de auto gestão que
não se abalou no momento em que houve a ruptura com o Velho Mundo.
Nem mesmo esse inter-relacionamento entre guerra e Revolução foi capaz de tirar da
R
evolução a insistência no seu objetivo principal e distinto: a causa da liberdade política.
Mesmo que em raros momentos da História, as guerras também almejaram a liberdade, ela,
portanto não deixa de ser a categoria que o fenômeno revolucionário crucialmente pleiteou. A
210
Sobre isso, podemos conferir em História universal siglo XXI La época da las revoluciones europeas 1780
1848: “Porque gracias a la guerra, la revolución exporta sobre todo sus problemas políticos y su dialéctica
interna. Después de Varennes, la pareja real desea un conflicto seguido de una derrota francesa, como última
posibilidad de su restauración: imagina de la manera más natural una Francia debilitada, desintegrada por la
revolución, incapaz de resistir a los ejércitos coaligados de primos y cunãdos. En realidad, va dar a la revolución
toda su fuerza y toda su unidad; frente al derrotismo real y aristocrático, el patriotismo revolucionario
democratiza a guerra, al mismo tiempo que la aureola con una misión universal. El sentimiento nacional deja de
definir únicamente a la nueva Francia para convertirse en un modelo ideológico, en una bandeira de cruzada. Al
mismo tiempo, se convierte, cada vez más, en el elemento unificador de la ‘gran nación’ que funde clases
ilustradas y clases populares en una pasión común.” (BERGERON, FURET e KOSELLECK. La época de las
revoluciones europeas, p. 44 - 45).
87
liberdade se constituiu como principal motivo de busca assumida pelas Revoluções do século
XVIII. Daí evidencia-se que foi por meio da busca teleológica pela liberdade que o fenômeno
revolucionário se desenvolveu como uma novidade visível no cenário da modernidade em
curso.
Considerando que existem diferenças entre guerra e Revolução, Arendt admite que
devido ao inter-relacionamento entre ambas, a violência passou a ser uma espécie de
denominador comum entre elas.
213
Embora possamos assegurar que segundo a própria autora,
nem mesmo as guerras, e muito menos os acontecimentos revolucionários são sempre
inteiramente marcados pela violência.
214
Não nos ocupemos aqui com o problema da violência face à problemática que envolve
as guerras e as Revoluções, pois é pertinente analisarmos a questão central a ser tratada nesse
primeiro ítem desse segundo capítulo de nossa pesquisa, que é não perder de vista o propósito
de procurar explicitar como a Revolução se traduz como uma experiência de fundação sem
precedentes na História. As guerras por elas mesmas, não possuem o propósito de serem uma
novidade sem precedentes. Esse propósito foi prestado pelas Revoluções.
A Fundação é um fenômeno que pode ser registrado desde as narrativas lendárias da
Antigüidade. Hannah Arendt, em suas análises sobre a História romana, considera que esta
sempre esteve alicerçada na idéia da fundação e que nenhuma das grandes concepções
políticas romanas, tais como o tripé: Autoridade, Tradição e Religião, bem como a idéia de
Lex poderiam, segundo nossa a autora, ser entendidos sem uma compreensão aprofundada do
211
ARENDT. Da Revolução, p. 14.
212
HOBSBAWN. A Revolução Francesa, p. 36.
213
Margareth Canovan enfatiza a ligação histórica entre fundação política e violência salientada por Hannah
Arendt. Por isso, comenta: “It is the same vein that she begins On Revolution with a chapter on ‘War and
Revolution’ which includes reflections on the close historical link between political foudation and violence. The
intimate conection between the two seems to be expressed in the legends (both sacred and secular) of founders
who were not merely criminal, but fratricidal. Cain, biblical founder of the first city, slew his brother Abel, and
Romulus, founder of Rome, slew his brother Remus. These stories, Arendt remarks, which ‘have traveled
through the centuries with the force which human thought achieves in the rare instances when it produces cogent
metaphors or universally applicable tales,’ seems to suggest that ‘whatever brotherhood human beings may be
88
grande feito que marca o início da História e da cronologia romana, o feito da Urbs Condita
que se traduz na fundação da cidade eterna.
215
Roma é um exemplo de fundação que acontece
no contexto da Antigüidade. A partir desse contexto, Arendt uma atenção considerável à
fundação, pois, para ela, no âmbito da História romana, a fundação era algo que se processava
no âmago da política assumida por Roma que se instalou desde o início da República até o
fim da era imperial. Para os romanos, o caráter sagrado da fundação permitia que aquilo que
fosse fundado permanecesse para todas as gerações futuras. Nesse sentido, ao participar da
política, o cidadão romano estaria preservando a fundação da cidade de Roma. Portanto,
ampliar o Império Romano significava, antes de tudo, repetir a fundação de Roma.
216
Todavia
a idéia de fundação não é uma tópica que diz respeito somente à Antiguidade. O problema da
fundação é uma questão a ser tratada por toda a História do pensamento político ocidental.
Por que ela é uma tópica que sempre esteve presente na origem dos corpos políticos em todos
os momentos da História política ocidental. No entanto, aqui os nossos propósitos estão
amparados na tentativa de explicitar as análises arendtianas que visam abordar o problema da
fundação do corpo político no âmbito do exame das Revoluções Francesa e Americana.
A concepção de lei aqui é entendida como de lex anima, ou seja, lei viva, pois no caso
arendtiano a lei se torna viva quando ela é legitimada pela ação fundadora que ocorre no
interior do espaço público. Visto nesses termos, considera-se que o problema da origem da lei
é uma questão que cabe ao papel da fundação.
Evidencia-se, a partir daí, que as Revoluções, enquanto fenômeno de fundação
moderna, tal como Arendt as concebem, não se constituiem como um evento exclusivo da
Modernidade.
217
Por isso, torna-se relevante frisarmos que a fundação no contexto das
capable of has grown out of fraticide, whatever political organization men may have achieved has its origin in
crime.” (CANOVAN. Terrible Truths: Hannah Arendt on politics, contingency and evil, p. 176).
214
ARENDT. Da Revolução, p. 15.
215
Ibidem, p. 166
216
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 162.
217
Para Newton Bignotto: “De fato, a questão da fundação dos regimes foi um tema central desde Platão. Na
esteira da tradição grega de recorrer ao mito no momento original para compreender a identidade das cidades, o
89
investigações referentes à História da Filosofia Política Moderna tem na Revolução a sua
própria expressão, que por si constitui-se como a própria instauração do novo.
218
Isso quer
dizer que a própria instauração do evento revolucionário é uma novidade em si mesmo, ou
seja, a falta de um outro evento que o precedesse, fez dele uma novidade relevante. A
novidade aqui tem como um de seus aspectos a própria ausência de precedência. Contudo,
essa ausência de precedência histórica é compreendida dentro dos aspectos que compõem o
elemento novidade.
O fenômeno revolucionário é compreendido como uma novidade que surge nesse
mundo em que habitamos por meio de um começo, cuja característica principal repousa no
fato dele ser marcado pela inevitabilidade. "As revoluções são os únicos eventos políticos que
nos confrontam, direta e inevitavelmente, com o problema do começo."
219
Nessa perspectiva,
Claude Lefort afirma que “a revolução não era para H. Arendt um objeto de curiosidade;
significava, para ela, o tempo do começo ou do recomeço.
220
O comentário de Lefort nos
traça o sentido de que a Revolução registra o momento por onde a capacidade de nascer
continuamente se concretiza pelo ato de fundação que se faz pelo desenrolar da trama dos
filósofo ateniense procurou em vários de seus diálogos, como A república, O político, e As Leis, mostrar como
era possível pensar e realizar a criação de uma cidade a partir de um ponto de vista inteiramente racional. Ao
esforço mais geral de pensar o mundo com as armas da razão e à distância do mito, juntou-se à tentativa de
substituir a narrativa mitológica das origens por uma análise das causas e dos nexos implícitos na fundação de
uma nova cidade. No Político, Platão procura investigar a natureza dessa arte, que ele chama de real e que
consistia em ordenar da melhor maneira possível a experiência da vida em comum dos homens, depois de ter
estabelecido na República o paradigma do governante ideal. Essa forma de abordar a questão terá grande
repercussão no mundo antigo e no Renascimento e continuará a servir como referência no mundo
contemporâneo, mesmo quando o apelo às principais picas do pensamento político grego já não possa passar
de complexas mediações. O que nos interessa aqui é situar nosso esforço dentro dos debates tradicionais em
torno da fundação dos regimes, a exemplo do que fez Hannah Arendt em vários de seus escritos.” (BIGNOTTO.
Três maneiras de se criar uma cidade. In: NOVAES (Org.). A crise do Estado-Nação, p. 84).
218
No que tange à Revolução Francesa, um fato que registra o anúncio de uma era inteiramente nova, lembrado
pela autora, é o da criação do calendário revolucionário, onde a execução do rei, seguida da Proclamação da
República eram contados como o ano um. (ARENDT. Da Revolução, p. 23). De acordo com Eric Hobsbawn, foi
por volta de agosto e setembro de 1792 em meio a uma guerra declarada desde abril daquele mesmo ano, que a
monarquia foi derrubada. Em seguida a República foi estsbelecida na França. O que estava acontecendo era a
proclamação de uma nova era na História humana, que se fez com a instituição do ano I do calendário
revolucionário e pela ação armada das massas sansculottes de Paris. (HOBSBAWM. A Revolução Francesa, p.
35).
219
ARENDT. Da Revolução, p. 17.
220
LEFORT. Hannah Arendt e a questão do político. In: Pensando o Político: ensaios sobre democracia,
revolução e liberdade, p. 36.
90
acontecimentos que lhes são inerentes. Aqui temos a Revolução como uma garantia concreta
de que o homem é potencial e concretamente começo e recomeço, isto é, o surgimento do
fenômeno revolucionário é um marco que registra a realização do potencial humano da
natalidade política. Pode-se dizer também que a natalidade, neste caso, é compreendida como
uma categoria de potencialidade política que se concretiza por meio da novidade
revolucionária. O fenômeno revolucionário é fruto do desdobramento político da natalidade,
ou seja, sua novidade é de caráter histórico e radicada ontolologicamente no nascimento.
Por esse ponto de vista, o fenômeno do novo ou a concretização da natalidade política
é um problema que ocorre no âmbito da fundação moderna e que se constitui como uma
realidade comum às duas Revoluções do século XVIII. Em se tratando da experiência das
Revoluções Francesa e Americana, salienta a nossa autora:
E essa experiência relativamente nova, pelo menos para aqueles que a viveram, foi, ao
mesmo tempo, a experiência da capacidade do homem para iniciar alguma coisa nova.
Essas duas coisas juntas – uma nova experiência que revelava a capacidade do homem
para a novidade estão na base do enorme pathos que encontramos tanto na
Revolução Americana como na Francesa, essa sempre reiterada insistência de que
nada comparável em grandeza e relevância jamais acontecera antes em toda a História
documentada da humanidade.
221
Temos algo que é nodal do ponto de vista daquilo que Arendt compreende como
base de um grandioso pathos. É a experiência da capacidade do homem para aventurar-se na
novidade que se constitui como a base dessa paixão que sustenta o evento revolucionário e o
torna incomparável em grandeza e relevância na História que se tem registro até então. Para
Claudia Drucker, a natalidade se atualiza no âmbito da Revolução, isto é, a Revolução aparece
como a manifestação do potencial humano capaz de romper com a ordem do tempo
cotidiano.
222
221
ARENDT. Da Revolução, p. 27.
222
DRUCKER. O Destino da tradição revolucionária: auto-compreensão ou impossibilidade ontológica? In:
BIGNOTTO & MORAES. (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 210.
91
O que Arendt quer explicitar é a sua compreensão de que o fenômeno revolucionário
apresenta-se na forma de acontecimentos que caminham numa direção que se projeta para
muito além daquilo que pode se considerar como acontecimentos que se apresentam como
meras mudanças. A prova de que a Revolução não significou uma mera mudança reside no
famoso diálogo travado entre o rei Luís XVI com o duque de La Rochefoucauld-Liancourt.
Trata-se de um diálogo cujo núcleo é a notícia da queda da Bastilha
223
e a conseqüente
libertação de uns poucos prisioneiros e da defecção das tropas reais frente a um ataque
popular. Arendt adverte que esse diálogo entre o rei e o seu mensageiro tornou-se famoso e de
caráter lacônico e revelador. Nessa ocasião, o rei teria exclamado que os fatos ocorridos na
noite de 14 de julho de 1789, em Paris, teriam sido uma revolta C’ est une révolt.” Logo
em seguida, o seu mensageiro Liancout o corrigiu afirmando que aquele célebre
acontecimento não se tratava de uma revolta Non, sire, c’est une revolution.Em termos
da interpretação arendtiana, esse diálogo marca talvez pela primeira vez, que a ênfase antes
dada ao significado de Revolução enquanto movimento giratório e cíclico dos astros estava
sendo transposto para o sentido político de um movimento dotado de irresistibilidade.
224
Nesse sentido, o movimento agora passa a ser visto como algo incapaz de ser detido,
pois Liancourt replicou que o que havia acontecido tratava-se de uma situação de caráter
irrevogável e capaz de ir além do poder de um monarca.
225
Comparado àquilo que antes era
compreendido como uma revolta controlável, a partir daquele momento tratava-se de uma
Revolução que, enguanto ação fundadora se apresentava demonstrando a sua característica de
um evento marcado pela irrevogabilidade ou pela irreversibilidade. Os seres humanos por
serem possuidores da capacidade de lidar com os problemas específicos do início e com cada
223
A notícia a respeito da gueda da bastilha foi muito marcante, conforme comentário: “Entre mayo y octubre de
1789, em cinco meses, poco más de una estacón, se desfondó todo el Antiguo régimen francés. Tras la
extraordinaria brutalidad del acontecimiento, que subvierte el calendario del reformismo ilustrado, hay en
realidad varias revoluciones que se entrecruzan o se encadenan; la intervención popular es la que en definitiva
determina el ritmo de la historia.” (BERGERON, FURET e KOSELLECK. História Universal siglo XXI la
época de lass revoluciones europeas 1780 – 1848, p. 30).
224
ARENDT. Da Revolução, p. 38.
92
novo começo, encontran-se abertos para o caráter irrevogável e irreversível da ação. Por esse
motivo, os homens são devotados às mudanças.
Somos seres capacitados para mudar o mundo por meio de nossas ações, pois a
dinâmica das relações do homem no interior do seu habitat faz dele um ser capaz de se
adaptar a vários tipos de mudanças. É sob essa perspectiva que a mudança é algo inerente à
nossa condição humana. É nesse habitat
226
em que o homem vive e o transforma que ele se
manifesta, demonstrando assim a sua capacidade de compartilhar o mundo público em
palavras e atos.
As Revoluções são realmente muito mais do que meras mudanças, pois a humanidade
encontra-se acostumada com inúmeras transformações. Mas, as Revoluções, não se
constituem como algo tão comum na História a exemplo de muitas transformações já
ocorridas. Arendt diz que “a Antiguidade estava bem familiarizada com a mudança política e
com a violência que a acompanhava, mas nenhuma delas parecia dar origem a algo
inteiramente novo.”
227
Coube ao fenômeno revolucionário moderno a concretização dessa
novidade. Em outras palavras, percebe-se que, para Hannah Arendt, existem algumas
singularidades no seio do fenômeno revolucionário da Idade Moderna que ao serem
comparadas com o que se viveu em épocas anteriores apontam para aquilo que o caracteriza
como algo inteiramente novo.
O fenômeno revolucionário analisado por Hannah Arendt no que tange aos
acontecimentos ocorridos na França e na América do Norte na segunda metade do século
XVIII, constitui-se como um conjunto de novidades notadamente marcantes. Uma das
características que aponta as novidades do evento revolucionário abordado por Arendt
225
ARENDT. Da Revolução, p. 38.
226
Para Étienne Tassin, neste caso, o mundo tal como Arendt o concebe, situa-se na Terra, lugar onde ocorre a
manifestação do humano. Por isso diz: “La Terre est le lieu de l’ human. Elle est d’ une part le lieu d’ ancrage d
une humanité, le lieu conditionnel des hommes. À quel monde appartiendrait une humanité errante, extra-
terretre? Elle est d’ autre part le lieu d un habitat, et à ce titre la condition d’ um monde humain. Seule la Terre
peut accueillir um monde ou ‘faire monde.’” (TASSIN. Le Trésor perdu : Hannah Arendt l’ action politique, p.
353).
93
encontra-se na assertiva de que o que ela considera como Revolução foi um fenômeno que
tem pouco em comum com a experiência de mudança da História romana.
228
Uma outra característica que diferencia o fenômeno revolucionário de outros
acontecimentos que o precederam, encontra-se na alusão que Hannah Arendt faz quando ela
se refere aos acontecimentos denominados de Revoluções no sentido de que tal fenômeno
também tinha pouco a ver com aqueles eventos que se constituíam a exemplo da luta que
perturbava a polis grega.
229
Os pontos que diferenciam o fenômeno revolucionário moderno da História romana e
do dia-a-dia da polis grega são aqueles relativos à mudança e à violência, ambas faziam
parte da vida na Antigüidade. Mas nem as mudanças e nem a violência eram capazes de dar
origem a algo inteiramente novo. Arendt nos chama a atenção sobre as mudanças nesse
período, dizendo que elas não interrompiam o curso daquilo que a Idade Moderna passou a
denominar de História. Ora, longe de começar com um novo princípio, as mudanças e a
violência permitiam que o curso das coisas apenas recaíssem num estágio diferente de seu
ciclo. O que ocorria, é que tudo seguia um curso pré-ordenado pela própria natureza dos
acontecimentos humanos, situação que significava que ele era imutável em si mesmo.
230
André Enegren comenta que a Revolução deixa de ser entendida a partir de um
conceito de vaga noção de mudança de governo, por ela ser definida estritamente como uma
ruptura inaugural e como a fundação da liberdade. Segundo ele, a concepção arendtiana de
Revolução como novidade se sustenta no fato de que nem as insurreições e nem mesmo as
227
ARENDT. Da Revolução, p. 17.
228
ARENDT. Da Revolução, p. 17.
229
O que se chamou de Revolução por Fustel de Coulanges, não teria sido Revolução no entendimento de
Arendt, isso porque para a autora uma Revolução é capaz de transformar a constituição da sociedade. Podemos
ver essa interpretação em Coulanges quando, no caso da Grécia, ele afirma: “A revolução que derrubou a realeza
modificou a forma exterior de governo, sem contudo transformar a constituição da sociedade. Não fora obra das
classes inferiores, as que tinham interesse em destruir as antigas instituições, mas da própria aristocracia que
desejava mantê-las. A revolução não foi feita, pois, para alterar a antiga organização da família, mas para tentar
conservá-la. Os reis tiveram, muitas vezes, a tentação de elevar as classes inferiores e enfraquecer com isso as
gentes; por isso, estas os derrubaram. A aristocracia só se empenhou na revolução política, com o fim de impedir
uma revolução social e doméstica.” (COULANGES. A cidade Antiga, p. 279).
94
guerras civis seriam suficientes para confirmar aquilo que ela compreende como uma
Revolução. A observação de Enegren se aplica à afirmação de Hannah Arendt de que as
transformações do governo platônico, os ciclos de Políbio, a mutatio rerum e os levantes da
Idade Média não foram suficientes para serem considerados Revolução, no sentido de ruptura
e de fundação da liberdade.
231
A alusão de Enegren a respeito da comparação feita por Arendt no que se refere às
diferenças entre Revolução e revolta procede, porque o fenômeno revolucionário se distinguiu
das experiências anteriores devido às suas singularidades, situação que representou algo
inteiramente novo no processo que envolve a História da Filosofia Política.
232
São três as
singularidades apontadas por Enegren, a saber: a partir do advento do evento revolucionário
que foi criado um conceito de poder de um governo legitimado por aqueles que o construíram;
o conceito moderno de Revolução parte da idéia de que o curso da História parte bruscamente
do novo, algo nunca antes conhecido e nem contado; para Arendt, o essencial para a
Revolução é a liberdade entendida como participação, o que para Marx é insuficiente.
Enegren destaca que o evento revolucionário é compreendido por Hannah Arendt como algo
que se distancia da tradição marxista naquilo que diz respeito à relação da questão social com
a liberdade.
233
A efetivação da verdadeira Revolução no sentido arendtiano, não seria
possível somente com o fim da opressão social, sua instauração dependeria da instauração da
liberdade.
Os aspectos que realçam a singularidade do evento revolucionário apresentados por
Enegren, vão de encontro aos aspectos que propomos apresentar nesse momento da pesquisa.
230
ARENDT. Da Revolução, p. 17.
231
ENEGREN. Revolución y Fundación. El Resplandor de lo público en torno a Hannah Arendt. Nueva
Sociedad, p. 55 – 56.
232
De acordo com Hegel, as novidades no campo da História são relevantes para o desenvolvimento do processo
que envolve a História da Filosofia. A esse respeito, diz: “A história da filosofia não tem por objeto sucessos ou
acontecimentos externos, uma vez que ela própria é evolução do conteúdo da filosofia, e como conteúdo aparece
no campo da história.” (HEGEL. Introdução à História da Filosofia, p. 12).
233
ENEGREN. Revolución y Fundación. El Resplandor de lo público en torno a Hannah Arendt. Nueva
Sociedad, p. 55 – 58.
95
Tratemos nas linhas que se seguem a respeito das abordagens em torno do significado do
conceito de Revolução.
2.2 – O Significado da Palavra Revolução
Hannah Arendt pertence a uma tradição de filósofos alemães que dão atenção especial
à busca da origem dos significados das palavras. A essa tradição eram filiados Husserl,
Jaspers e Heidegger, os quais influenciaram o pensamento de Arendt. Nesse caso, a
fenomenologia teria contribuído para a efetivação dessa filiação da autora a um método
filosófico de análise conceitual. Elizabeth Young-Bruehl, biógrafa de Hannah Arendt, afirma
que a autora recorre à ajuda da filosofia ou da chamada análise lingüística, por onde retraça o
caminho dos conceitos políticos em direção às experiências históricas concretas, geralmente
políticas, que davam origem a esses conceitos. Nessa perspectiva, Arendt apresentava-se
capaz de auxiliar em que medida um conceito se colocava em relação às suas origens. A
autora buscava também mapear a diversidade de conceitos no curso do tempo, assinalando os
diversos pontos de confusão lingüística e conceitual.
234
No que tange às suas análises em torno da Revolução, Hannah Arendt busca explicitar
o significado deste termo com o objetivo de destacar que o fenômeno revolucionário
constitui-se como algo que em sua interpretação houve também recurso a uma palavra que
anteriormente era usada no campo das ciências astronômicas.
Percebe-se que Hannah Arendt na busca do significado do termo Revolução se
colocou diante de uma tarefa bastante complexa devido às várias compreensões largamente
disseminadas com relação ao uso dessa expressão.
234
YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: Por amor ao mundo, p. 286.
96
Para Reinhart Koselleck,
235
poucas foram as palavras que foram tão largamente
difundidas e que pertencem de maneira muito evidente ao vocabulário político moderno
quanto ao termo “revolução.” Para ele a palavra Revolução constitui-se como uma dessas
expressões que são empregadas de maneira enfática. Sua imprecisão conceitual é tão grande
que se trata de um termo que poderia ser definido como um clichê. Koselleck adverte que é
preciso reiterar que o uso e a extensão do termo são variáveis, do ponto de vista lingüístico.
236
Em uma investida que objetiva explicar a origem da palavra Revolução, Hannah
Arendt remonta à expressão latina De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico. Nesse
caso, a referência original do vocábulo Revolução se ampara em uma expressão de língua
clássica, cujo significado era oriundo da aplicação às ciências naturais, isto é, uma expressão
que era necessária às ciências do campo da astronomia. Nesse tipo de entendimento, a idéia de
movimento era condição para a compreensão do papel das ciências dos astros. Copérnico se
situa em um contexto por onde o método experimental começou a ganhar espaço a partir do
período do Renascimento.
Segundo Reinhart Koselleck, foi em 1543 que surgiu a obra pioneira de Copérnico
sobre o movimento circular dos corpos celestes. O astrônomo nos apresentou o legado contido
nessa obra de “Sobre as revoluções dos orbes celestes” atravéz do latim De revolutionibus
orbium coelestium. Tratava-se de uma obra que uma vez oriunda das ciências astronômicas
235
Reinhart Koselleck é um historiador que se destaca pelo seu trabalho em torno da história dos conceitos.
Sobre isso, comenta Gabriel Motzkin: “Todo o trabalho de Reinhart Koselleck com a Begriffsgeschichte (história
dos conceitos) foi realizado a partir de dois parâmetros centrais. O primeiro é a idéia de que a descontinuidade
histórica pode ser localizada por meio da análise conceitual. Se a história é caracterizada tanto por rupturas
quanto por continuidades, então estas rupturas estão refletidas na linguagem. Além disso, a linguagem pode ser o
contexto de origem de uma descontinuidade histórica que, então, se irradia da linguagem para os acontecimentos
e as instituições. Esta intuição, que substitui a história das idéias pela história lingüística dos conceitos como
uma realidade histórica, tem sido compartilhada por muitos historiadores da última geração. Quando a história
intelectual do nosso século for escrita, a historicização do método lingüístico será provavelmente vista como um
contra-movimento ao resoluto anti-historicismo da lingüística contemporânea.” [MOTZKIN. A intuição de
Kosellec acerca do tempo na história. In: JASMIN & FERES (Org.). Revista História dos Conceitos: debates e
perspectivas, 77].
236
KOSELLECK. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, p. 61.
97
viria desembocar no campo da política. Por esse motivo, originalmente o termo Revolução
teria sido um conceito “físico-político.”
237
Evidencia-se a partir daí que a expressão revolutionibus orbium coelestium, uma vez
que foi inicialmente utilizada no contexto da ciência moderna, possibilitou que o vocábulo
Revolução retivesse o seu significado latino.
238
Pelo visto, se trata de uma expressão em
língua latina que uma vez utilizada inicialmente na astronomia passou a ser transmitida por
meio de metáfora
239
para o campo dos acontecimentos políticos. Nos termos do significado
latino, a palavra Revolução encontra-se relacionada com a dinâmica das estrelas, isto é, ela
apresenta-se como que designando o movimento regular, sistemático e cíclico das estrelas.
240
Para Koselleck, da mesma maneira que as estrelas se descreviam em sua órbita de
forma independente em relação a todos os habitantes da Terra, ao mesmo tempo em que
influenciavam, ou até mesmo determinavam o comportamento dos homens, também no
conceito político de Revolução era encontrado desde o século XVII, a mesma ambigüidade.
Essa ambigüidade se define por meio da certeza de que as Revoluções ocorriam acima das
cabeças dos envolvidos, sendo que ao mesmo tempo cada um desses envolvidos permaneciam
presos às suas leis.
241
Visto por esse ângulo, percebe-se que o movimento dos astros não depende das
influências do homem, uma vez que, aquilo que acontece no céu é algo independente da
atuação do seres que habitam a Terra. Nessa perspectiva, o ser humano é visto como incapaz
237
.Ibidem, p. 64.
238
ARENDT. Da Revolução, p. 34.
239
O conjunto das análises encaminhadas por Hannah Arendt que forma a sua obra é enriquecido por metáforas.
Por esse uso de expressão de linguagem, a autora trabalha as suas análises que se referem a diversos temas. Um
exemplo disso é que em seu trabalho de referências a personalidades marcantes do mundo contemporâneo
intitulado Men in darks times, a autora utiliza a expressão Les sombres temps.” Para Hannah Arendt, Les
‘sombres temps’, au sens le plus large qui est celui que j’ádopte ici, ne sont pas, en tant que tels, assimilables aux
monstruosités de ce siècle qui sont certainement d’ une horrible nouveauté. Les temps sonbres, au contraire, non
seulement ne sont pas nouveaux mais ne sont pas même exceptionnels dans l´histoire, quoiqu’ ils furent peut-être
inconnus à celle de l´Amérique qui par ailleurs a, elle aussi, son lot de crimes et de désastres. (ARENDT. Vies
Politiques, p. 9 - 10).
240
ARENDT. Da Revolução, p. 34.
241
KOSELLECK. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, p. 64.
98
de exercer algum tipo de controle no movimento que ocorre na órbita na qual os astros
encontram-se submetidos. Mas disso, segundo a autora, todos sabiam.
242
Ora, o que Arendt quer demonstrar é que o termo latino Revolução é uma palavra
relativamente antiga e que lentamente foi adquirindo o significado que se adequou aos
acontecimentos modernos, como no caso das Revoluções Francesa e Americana.
243
Diante
disso, nota-se que o que Arendt pretende destacar é que o significado de Revolução foi
sofrendo uma transformação à medida que a ação desenvolvida pelos seus protagonistas foi
tomando um rumo sem retorno.
Em termos de entendimentos arendtianos, uma associação que parte da
originalidade do vocábulo Revolução com os acontecimentos da segunda metade do século
XVIII.
244
O surgimento da novidade revolucionária tanto na França como na América do
Norte caracterizam-se como se o mundo se apropriasse de uma palavra que desceu dos céus
para então efetivar-se por meio de uma praxis que se realiza através de ações desenvolvidas
por iniciativas de agentes mortais. Para André Enegren, esta inversão de significação concede
permissão a Hannah Arendt para poder acreditar na tese segundo a qual a concepção moderna
de Revolução, uma vez intrinsecamente unida à idéia de que o curso da História recomeça
bruscamente do novo, ampara-se na assertiva de que terá lugar uma História (story)
completamente nova. Trata-se, neste caso, de uma História nunca antes conhecida e nem
contada antes, ou seja, era algo desconhecido antes do século XVIII.
245
O esforço de tratar o
242
ARENDT. Da Revolução, p. 34.
243
Ibidem, p. 33.
244
Não é somente a base semântica que determina o significado de um conceito. Um vocábulo carrega na sua
significação os supostos do tempo nele embutido. A esse respeito, comenta Gabriel Motzkin: “No entendimento
de Kosellec, os conceitos não variam apenas de acordo com o seu campo semântico, mas também de acordo com
os supostos temporais neles embutidos assim, um conceito como Volk torna-se um conceito orientado para o
futuro no começo do século XIX. A mudança do passado para o futuro implica não apenas no sentido diferente,
por exemplo, da palavra Volk, mas também num outro senso de futuro. Ademais, esta mudança remete outros
conceitos para o passado, o qual, por sua vez, é também re-concebido.” [MOTZKIN. A intuição de Koselleck
acerca do tempo na história. In: JASMIN & FERES (Org.). Revista História dos Conceitos: debates e
perspectivas, 77].
245
ENEGREN. Revolución y Fundación. El Resplandor de lo público en torno a Hannah Arendt. Nueva
Sociedad, p. 56.
99
evento revolucionário demonstrando o seu significado semântico constitui-se como um dos
aspectos que demonstram a novidade presente nesse fenômeno moderno.
Nota-se que, uma vez visto por essa ótica, em se tratando do uso de uma linguagem
que ocorre por meio de metáfora,
246
o que antes teria sido empregado somente na aplicação
das ciências astronômicas, passa a partir desse momento, a ser utilizada no âmbito do
desenrolar da ação humana. Sobre isso, diz a autora:
Se o caso das revoluções modernas fosse tão nítido como uma definição dialética, a
escolha da palavra revolução seria mais intrigante do que realmente é. Quando, de
início, a palavra desceu dos céus e foi introduzida para descrever o que acontecia na
Terra entre os mortais, apareceu claramente como uma metáfora, transpondo a noção
de um movimento eterno, irresistível e sempre recorrente às oscilações aleatórias, aos
altos e baixos do destino humano, que haviam sidos comparados ao nascer e ao pôr do
sol, da lua e das estrelas, desde tempos imemoriais.
247
Partindo dessas observações feitas por Arendt, o que se percebe é que a sua investida a
respeito da metáfora do movimento dos astros, possui a tarefa de demonstrar o quanto ela se
aplica no campo da movimentação tipicamente voltada para uma órbita dos desdobramentos
do território da política. Se por um lado, existe a movimentação no céu, por outro, a
Revolução apresenta-se como uma referência propícia para demonstrar o movimento dos
homens no âmbito da realidade terrena. Registra-se aqui um tipo de transposição de uma
realidade antes vista como celeste que agora se aplica ao campo das realidades da vida
terrestre.
Compreendendo que o movimento das estrelas possui um ciclo pré-estabelecido, nota-
se que a intenção de Arendt é destacar o caráter do movimento dos astros. Nessa intenção, a
nossa autora não se importa a priori se esse movimento possui ou não um fim pré-
246
Para Koselleck, o termo Revolução quando inicialmente passou a ser utilizado no campo da política, ainda
estava carregado de significado de movimento de repetição. Por isso, salienta: “A metáfora de cunho natural para
a ‘revolução’ política apóia-se no pressuposto de que também o tempo histórico tem sempre uma mesma
qualidade, é fechado em si mesmo e passível de repetição.” (KOSELLECK. Futuro Passado: contribuição à
semântica dos tempos históricos, p. 65).
247
ARENDT. Da Revolução, p. 34.
100
determinado. Astros são corpos que quando vistos a partir da Terra, constituem-se como
realidades situadas em um determinado espaço e em um tempo. Mesmo que esses astros,
enquanto corpos celestes possuem naturalmente um retorno estabelecido de um movimento
outrora iniciado, o que importa para Hannah Arendt é a comparação desse movimento com a
idéia de Revolução, pois, Revolução e corpos celestes são realidades que se movimentam. A
esse respeito, temos como exemplo, o movimento dos planetas, pois, eles se constituem como
corpos que giram em órbitas e seguem um caminho pré-determinado. Isso porque, as órbitas
que registram e ordenam o movimento regular dos planetas são caracterizadas por linhas que
se apresentam de uma maneira pré-determinada e pré-estabelecida.
248
Hannah Arendt afirma que foi no culo XVII, que a palavra Revolução foi utilizada
no campo do significado da política. Nesse período, o conteúdo metafórico da palavra
Revolução ainda se encontrava bem mais próximo do seu significado astronômico.
249
Nessa
trilha de abordagem, afirma Koselleck que foi no século XVII que, o conceito de Revolução
assinala o sentido dessa experiência quase natural.
250
Segundo o historiador, foi como definiu então Leroy a respeito da trajetória das
formas constitucionais Telle est la révolution naturalle dês polices... Trata-se da
revolução natural das constituições de Estado, por onde, segundo a sua medida, ocorre a
transformação contínua da vida da coletividade para então finalmente poder voltar ao ponto
de partida.
251
Diante disso, a autora considera que a palavra ''era usada em relação a um
movimento de circulação e de retorno a uma ordem pré-determinada'.'
252
Foi nesse contexto
do século XVII, que um acontecimento relevante como a chamada Revolução Gloriosa
248
Koselleck lembra que “em 1842, um erudito francês fez uma observação histórica de caráter bastante
produtivo. Haréau chamou a atenção para o fato, então esquecido, de que ‘revolução’ se referia a um retorno,
uma mudança de trajetória, que correspondia ao uso latino da palavra e que conduzia de volta ao ponto de
partida do movimento. Uma revolução significativa então, primordialmente, de acordo com a etimologia da
palavra, um movimento cíclico.” (KOSELLECK. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos, p. 63).
249
ARENDT. Da Revolução, p. 34.
250
KOSELLECK. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, p. 63.
251
KOSELLECK. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, p. 63.
101
ocorrida na Inglaterra, passou então a fazer parte do sentido da palavra Revolução. Pois, é
também nesse período que a História e a política uma vez combinadas vão se desembocando
no significado da palavra Revolução. A esse respeito, salienta Hannah Arendt:
Portanto, a palavra foi inicialmente usada não quando aquilo que denominamos
revolução rebentou na Inglaterra, e Cromwell assumiu a primeira ditadura
revolucionária, mas ao contrário, em 1660, após a derrubada do Parlamento, e por
ocasião da restauração da monarquia. Precisamente com o mesmo sentido, a palavra
foi usada em 1688, quando os Stuarts foram expulsos e o poder real foi transferido
para Guilherme e Maria. A Revolução Gloriosa, o acontecimento em que, muito
paradoxalmente o termo encontrou guarida definitiva na linguagem histórica e
política, não foi entendida, de forma alguma como uma revolução, mas como uma
reintegração do poder monárquico à sua antiga Glória e honradez.
253
Percebe-se que Arendt quer conceber que a Revolução Gloriosa foi uma
reinterpretação do poder monárquico, que já não estava mais sob o comando dos Stuarts, mas
dos reis Guilherme e Maria. Essa abordagem é também compartilhada por Koselleck que diz
que a palavra Revolução traz ambigüidades. Segundo ele, o que diferencia o uso anterior da
palavra Revolução e o nosso uso atual desse conceito, é que antes havia uma consciência de
um movimento de retrocesso, conforme é iniciado pela sílaba re na palavra revolutio. É
nesse sentido que Hobbes apud Koselleck descreveu o período compreendido pelos vinte anos
transcorridos depois da Grandiosa Revolução Inglesa de 1640 a 1660: I have seen in this
revolution a circular motion” [Eu vi nessa revolução um movimento circular]. Koselleck
afirma que Hobbes viu nesse acontecimento um movimento de natureza circular, por onde a
trajetória iniciava-se na monarquia absoluta, passando pelo Long Parliament indo em direção
ao Rump Parliament (denominação para a câmara dos Comuns, cujos membros de confissão
presbiteriana foram expulsos por Crommwell em 1648). Para o historiador Koselleck o
movimento continua indo a partir daí em direção à ditadura de Crommwell, e o mesmo diz
que prossegue retrocedendo finalmente, passando por formas oligárquicas intermediárias à
252
ARENDT. Da Revolução, p. 34.
253
Ibidem, p. 34.
102
monarquia renovada de Charles II. Se hoje o termo Revolução se distanciou de restauração, o
que nos parece incompreensível, possuía então uma conexão clara pautada na concepção de
que o objetivo das rebeliões dos vinte anos foi uma restauração. Nessa perspectiva, tanto os
monarquistas, como os republicanos estavam próximos do que enunciaram. Isso porque para
ambos os lados, o que se tratava terminologicamente da restauração do velho direito se dava
por meio de um movimento de retorno em direção à verdadeira Constituição.
254
Nessa perspectiva, o corpo político da chamada Revolução Gloriosa não se constitui
como uma novidade carregada de ruptura como aquela das Revoluções do século XVIII.
Apesar da utilização da palavra Revolução, o que aconteceu no território da Inglaterra, não
passou de uma mera reintegração do poder monárquico. Evidencia-se que, para Hannah
Arendt, a palavra Revolução significou originalmente restauração. Assim, sob essa
perspectiva, a chamada Revolução Gloriosa inglesa foi uma restauração.
É a própria Arendt que ao referir-se à Revolução Gloriosa nos adverte que o seu
propósito naquele momento não era o de ocupar-se com a História das Revoluções no que diz
respeito ao seu passado, suas origens ou com a trajetória de seu desenvolvimento. Para a
autora, se quisermos saber algo sobre o significado do termo Revolução e suas implicações
gerais para o homem, sua significação política para o mundo em que vivemos, bem como o
seu papel na História moderna, o que devemos fazer é nos voltarmos para as Revoluções
Francesa e Americana. Isso porque, para Arendt, foi por via desses momentos históricos que a
Revolução apareceu em sua plenitude. Nesse caso, as Revoluções teriam assumido uma
espécie de papel definitivo, lançando encanto na mente dos homens, apesar dos abusos,
crueldades e privações de liberdade que esses encantos levaram à rebelião.
255
Um ponto a destacar a respeito do significado original da palavra Revolução, é o fato
de que existe, segundo Hannah Arendt no movimento giratório das estrelas uma tragetória
254
KOSELLECK. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, p. 64 - 65.
255
ARENDT. Da Revolução, p. 35.
103
pré-determinada que independe da influência dos poderes humanos. É o que acontece com a
noção de irresistibilidade.
256
Para melhor compreendermos a o evento revolucionário como
um movimento irresistível, podemos nos apoiarmos no sentido da Revolução como fundação
da liberdade política. É o que faremos nas linhas que se seguem.
2.3 –Revolução e Fundação da Liberdade Política.
Hannah Arendt, em uma de suas conferências, intitulada: “Será que política ainda tem
algum sentido,”
257
salienta que para a questão referente ao sentido da política, há uma
resposta tão simples e conclusiva em si mesma que se poderia pensar que as outras respostas
são totalmente desnecessárias. Segundo a nossa autora, a resposta é a seguinte: “o sentido da
política é a liberdade.”
258
Ora, por essa afirmação percebemos o quanto Hannah Arendt, no
processo que envolve a sua filosofia política, articula estreitamente a temática da questão da
liberdade com a da política.
Interessa-nos analisar a questão da liberdade em Arendt, a partir do desenrolar dos
acontecimentos revolucionários do século XVIII, uma vez que esses acontecimentos
possibilitam a coincidência entre Revolução e fundação da liberdade. Para a autora, uma das
principais finalidades pretendida pelas Revoluções foi o estabelecimento de uma liberdade
política, ou seja, instaurar a liberdade era um foco principal perseguido pelas Revoluções. É
por isso que, em termos arendtianos, as Revoluções constituem-se como eventos de expressão
da fundação da liberdade política no seio da modernidade.
256
Ibidem, p. 38.
257
Em notas de referências, diz a autora: “Ao que sabemos, este artigo foi escrito originalmente em alemão e
deveria constituir uma espécie de prefácio ou introdução a um texto mais amplo, que recebeu o título provisório
de Einleitung: der Sinn von Politik. O contaêiner número 67 dos papers de Hannah Arendt na Biblioteca do
Congresso, Washington, reúne entre outras coisas este material, em vários drafts datilografados, bastante
corrigidos, e todos aparentemente inacabados. O texto não traz data ou qualquer referência que possa situá-lo.”
[Notas de ARENDT referente ao texto Será que a política de algum modo ainda tem sentido? In: ABRANCHES.
(Org.). A Dignidade da Política: ensaios e conferências, p. 191].
258
Ibidem, p. 117.
104
Arendt, em suas análises a respeito do fenômeno revolucionário, insiste em
demonstrar que existe uma associação desse evento com a fundação da liberdade política.
Todavia, cria-se uma situação que confere ao tema da fundação e da liberdade um destaque
importante para o encaminhamento de análises a serem feitas em torno dos desdobramentos
ocorridos no processo revolucionário. A esse respeito, salienta Alan Keenan:
Arendt devota considerável atenção em seus escritos à fundação de comunidades
políticas, mais diretamente em sua interpretação das revoluções francesa e americana
em On Revolution. A fundação de um novo corpo político é uma instância
particularmente privilegiada da liberdade humana para Arendt: o corpo político
assegura a liberdade de trazer alguma coisa nova ao mundo, a sempre presente
possibilidade daquilo que Arendt chama de “começo,” e ele estabelece o domínio
público ou político em si mesmo, o mesmo domínio da ação e da liberdade.
259
Evidencia-se, através do comentário de Alan Keenan que, para Hannah Arendt, é no
contexto dos acontecimentos revolucionários norte-americanos e franceses que o tema da
fundação da liberdade política se associa à tópica da fundação de um novo corpo político.
Como o processo de fundação se traduz no aparecimento do novo, a novidade na modernidade
em termos arendtianos, não pode ser vista fora da compreensão do processo das Revoluções.
Essa novidade se traduz sem dúvida quando na criação de novas realidades políticas.
Mas, abordar a liberdade não se constitui como uma tarefa fácil, uma vez que a
liberdade é uma categoria que possui compreensões e conceituações diferenciadas e
complexas. Diante disso, a nossa intenção nesse momento do nosso trabalho de pesquisa é
explicitar como Arendt trabalha a fundação da liberdade na sua associação com a idéia da
Revolução. Portanto, a partir desse ponto de vista, torna-se impossível abordar a respeito da
fundação do corpo político em termos arendtianos, sem antes explicitar o que realmente é a
associação entre a Revolução e a questão da fundação da liberdade política.
259
KEENAN. Promises, Promises: The Abyss of Freedom and the Loss of the Political in the Work of Hannah
Arendt. In: Political Theory, p. 297 - 298.
105
Segundo nossa autora, “nenhuma causa subsiste afora a mais antiga de todas, aquelas
que de fato, desde o início da nossa história, tem determinado a própria existência da política,
a causa da liberdade contra a tirania.''
260
Visto por esse ângulo, em se tratando de análises
políticas em torno do problema da dominação tirânica ou algo que se assemelha a ela, a causa
da liberdade aparece como um contraponto a essa situação. É por esse motivo que para
Hannah Arendt, no tocante às questões relativas à problemática política, a questão da
liberdade se apresenta de uma maneira crucial.
Arendt associa a Revolução à questão da fundação da liberdade política, porque ela
concebe essa categoria como um fenômeno que ocorre fora do domínio interno, ou seja, o da
liberdade interior.
261
O que temos é uma recusa arendtiana de admitir a liberdade interior
como uma categoria que é própria do campo da ação política. A partir desse entendimento, a
noção de liberdade quando concebida no campo da visão metafísica, deixa de abranger o
campo da política. E esse distanciamento metafísico, da liberdade, em relação ao espaço
ocupado pela ação, quando ocorre, origem a formulações teóricas com tendências voltadas
para a afirmação de um comportamento de natureza política caracterizada pelo exercício de
comportamentos antidemocráticos. Durante a Idade Média, a liberdade de opinião no campo
político foi refutada devido a um ambiente que era então constituído de um doutrinarismo
religioso amparado pela perspectiva teocêntrica de mundo.
262
Nesse mundo visto pelo ângulo
260
ARENDT. Da Revolução, p. 09.
261
Sobre a relação entre liberdade e espaço público e a insuficiência da liberdade interna de manifestar-se
publicamente, alerta João Mauricio Leitão Adeodato: “De acordo com Hannah Arendt, para que se possa falar
em legitimidade, e até mesmo na mera existência do poder e do espaço público, é indispensável a liberdade
como realidade perceptível no mundo das aparências; uma ‘liberdade’ interna ou simplesmente contemplativa,
mesmo que tenha parecido suficiente a muitos, revela-se uma ilusão se não se puder manifestar publicamente.
Este é o axioma de onde devemos partir, já que a liberdade de Arendt pertence àvita activa’ e, mais
especificamente à esfera da ação.” (ADEODATO. O Problema da Legitimidade no rastro do pensamento de
Hannah Arendt, p. 165).
262
Pode-se dizer que historicamente o advento da doutrina da liberdade interior que recebeu o seu arcabouço
teológico no contexto da Patrística estabeleceu com força a perda do papel político da fala porque enclausurou a
opinião no interior do próprio homem. A História da Filosofia Política passou a conviver por muito tempo com
uma postura que considera a opinião como uma manifestação isolada dos assuntos da esfera pública. Porque
nesse contexto de liberdade cristã, o que importava era a salvação que deveria ocorrer pela abstenção da política
por parte do filósofo. Essa abstenção era em termos da abordagem arendtiana a esse respeito, como um requisito
prévio para a adoção de um modo de vida que seus defensores julgavam ser mais superior: a vita contemplativa.
106
teológico, esse tipo de convicção se transferiu para o território da política. Considerando que a
opinião manifesta-se através da fala e também da expressão literária, quando ela é usada, é a
manifestação da liberdade no espaço público. Pois a liberdade política em termos arendtianos
ocorre por meio da manifestação da opinião no dia-a-dia do espaço público, uma vez que para
Arendt “o campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, é claro,
mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da política.”
263
Por isso, a liberdade na sua dimensão interior quando ligada à perspectiva agostiniana
da vontade concebida no âmbito da filosofia medieval não se constitui como um tipo de
categoria em condições suficientes de provocar a fundação das novas realidades políticas a
exemplo do que ocorreu com as Revoluções modernas. Nesse sentido, evidencia-se que a
liberdade política do ponto de vista das análises arendtianas, constitui-se como o oposto à
manifestação da liberdade interior. Sobre isso diz a autora:
A liberdade que admitimos como instaurada em toda teoria política e que mesmo os
que louvam a tirania precisam levar em conta é o próprio oposto da ''liberdade
interior,'' o espaço interno no qual os homens podem fugir à coesão externa e sentir-se
livres. Esse sentir interior permanece sem manifestação externa e é portanto, por
definição, sem significação política.
264
Percebe-se a partir daí, que em termos arendtianos uma liberdade que não se manifesta
no campo da ação humana constitui-se como um tipo de liberdade que não é política por
definição. Pois, para Hannah Arendt, a liberdade é política por definição quando ela se
manifesta no âmbito das movimentações externas do cotidiano dos homens. Dito de um outro
modo, nesse caso, somente a ação confere à liberdade o seu caráter político, pois, a ação
fundadora é a manifestação da liberdade política.
(ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 197). Em um tipo de visão de mundo onde o paradigma do modus
vivendi baseado na vita contemplativa deveria ser para todos, não poderia então haver a contrapartida da
manifestação da opinião, pois essa carece de um espaço concreto para aparecer.
263
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 191.
264
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 193.
107
Considerando que existe uma recusa arendtiana daquilo se que pode admitir como
liberdade da interioridade,
265
nota-se que a liberdade política assumida pela autora se traduz
por meio de manifestações distintas daqueles que propõem como modo de vida a retirada do
mundo, no sentido de adoção de um tipo de comportamenro caracterizado pela ausência de
compromisso com ele. Isto se aplica uma vez que o sentimento de liberdade interior
permanece distante das manifestações externas do cotidiano e, portanto, se define sem o
verdadeiro significado da política. Sobre o que Arendt diz a respeito da liberdade interior,
Gerard Lebrun nos alerta que não é verdade que a liberdade encontra-se alojada dentro de nós.
A verdadeira liberdade para a nossa autora é aquela assumida pelos gregos no século IV, pois
era um conceito de liberdade política e não filosófica.
266
A liberdade necessita do espaço público para sobreviver. A esse respeito, Arendt nos
adverte que as experiências de liberdade interior são caracterizadas por aspectos que
pressupõem sempre uma retirada do mundo onde a liberdade foi negada para uma
interioridade na qual ninguém mais tem acesso.
267
Para que isso ocorresse, a tradição de
pensamento filosófico desprezou a liberdade que se dava no âmbito da ação, isto é, no
contexto da realidade concreta do cotidiano político a exemplo do que acontecia na antiga
polis grega.
268
Contudo, no lugar da liberdade política, foi assumida a liberdade do interior do
mundo das manifestações da vida privada. A esse respeito, comenta Claude Lefort:
A liberdade que se encontrava na ação, no caso das cidades democráticas, no debate,
na manifestação, foi rejeitada pela filosofia, transferida ao pensamento que se
265
Para Hannah Arendt, a liberdade, na sua capacidade de começar algo novo, exprime a função de assinalar no
homem a sua capacidade de mudanças. Arendt aponta que “a liberdade como capacidade interior do homem,
equivale à capacidade de começar, do mesmo modo que a liberdade como realidae política equivale a um espaço
que permita o movimento entre os homens” (ARENDT. Origens do Totalitarismo, p. 525).
266
LEBRUN. A Liberdade segundo Hannah Arendt. In: Passeios ao Léu, p. 53.
267
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 192.
268
A filosofia política arendtiana, com as suas análises feitas a respeito do espaço público, possui uma relação
estreita com o estudo da antiga polis grega. Nesse caso, a experiência política da antiga polis grega é um
referencial para o pensar político de Hannah Arendt. Newton Bignotto a esse respeito, nos diz: sabemos
perfeitamente que a grande invenção grega foi a do espaço público ou, mais genericamente, da política, que,
entre os regimes que caracterizam essa experiência inovadora, a democracia é certamente o mais importante e
original.” (BIGNOTTO. O Tirano e a Cidade, p. 14).
108
separava do mundo terreno, o qual era visto como reino da confusão. Para Hannah
Arendt, a distinção entre sagrado e profano, ou então, entre o universo encantado da
política e a vida prosaica, regida pelas coerções naturais, essa distinção que punha o
sagrado ou encantamento do invisível, no surgimento do espaço público, mudou de
sentido com a filosofia, pois, para essa, o invisível (invisível outrora vinculado às
ocupações privadas) é que se acha vestido da nobreza própria à interioridade, ao passo
que a vileza atinge a atividade política.
269
Nesse caso, nota-se que o dom que nós seres humanos possuímos para o começo,
consiste no dom da liberdade que se traduz por meio da iniciação de algo no domínio público.
Aqui liberdade é compreendida como o outro nome da natalidade.
270
Uma vez que “a
liberdade filosófica, a liberdade da vontade, é relevante somente para pessoas que vivem fora
das comunidades políticas, como indivíduos solitários.”
271
No que tange a esse distanciamento do mundo, essa atitude foi assumida por alguns
como uma retirada sem retorno. Muitos pensadores que contribuíram para a construção de
nossa tradição de pensamento concentraram suas atenções na primazia da vontade e do
pensamento assinalados pela recusa de retorno ao mundo das aparências, que é sinônimo de
mundo comum ou do espaço das manifestações concretas do cotidiano da política. O que
houve foi uma ocorrência de um desvio na História de nossa tradição filosófico-político
naquilo que diz respeito à relação entre liberdade e política. Essa relação ficou comprometida
devido ao fato de a liberdade em seu sentido original ter sido abandonada por muitos
pensadores profissionais Denker von Gewerbe. Trata-se de um desvio que divorciou a
liberdade da política, isto é, o que ocorreu foi uma separação, cujo amparo, a nossa autora
buscou na concepção de liberdade assumida por Agostinho.
269
LEFORT. Hannah Arendt e questão do político. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e
liberdade, p. 70.
270
Etienne Tassin comenta a liberdade em Arendt admitindo-a como o outro nome da natalidade. “Ce qui
confère um sens politique à l’existence est la liberté, autre nom de la natalité, autre nom du commencemt.
Honorer la liberté, se porter responsable des commencements, c’est-à dire du monde, est le geste politique par
excellence. Il ne s’accomplit qu’avec d’autres acteurs, c’est-à-dire qu’ avec d’autres libertés, qu’ avec d’autres
commencements.’’ (TASSIN. Le Trésor perdu : Hannah Arendt l’ action politique, p. 563).
271
ARENDT. The Life of Mind. Two: Willing, p. 199; A vida política, p. 335.
109
Sobre isso, Hannah Arendt diz que é interessante notar que, historicamente, o
aparecimento do problema da liberdade filosófica de Agostinho foi assim precedido na
tentativa consciente de divorciar da política a noção da liberdade de chegar a uma formulação
através da qual fosse possível ser escravo no mundo e assim ser livre.
272
Portanto, uma
liberdade que não se realiza de maneira concreta, permite ao escravo sentir-se como se fosse
livre, sendo que essa liberdade não se trata de uma realidade palpável, ou seja, tangível aos
acontecimentos do cotidiano.
Para a autora, esse divórcio entre política e liberdade, uma vez amparado segundo ela
na tradição agostiniana, foi superado com o advento do fenômeno revolucionário. Isso porque
Hannah Arendt considera que o lugar da manifestação da liberdade é o espaço público e o que
as Revoluções fizeram foi se encarregarem de criar espaços públicos onde a liberdade política
encontra um solo fértil para se desenvolver.
273
O fenômeno revolucionário instaurou mudanças no cotidiano das pessoas. Por esse
ângulo, a autora diz que o campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um
problema, é claro, mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da política.
274
Amparado
nessa assertiva arendtiana, Claude Lefort comenta que “quanto a Arendt, ela sugere que a
política, tal como ela entende, se deixar de se encarnar no real, não será mais política.”
275
Para Hannah Arendt, no mundo grego antigo, antes que a liberdade se tornasse um
atributo do pensamento ou uma qualidade de vontade, ela era entendida como o estado do
homem livre. Ao rastrearmos o pensamento de Arendt percebemos que o termo política,
empregado por ela, é aquele voltado para o sentido que era concebido no âmbito da polis
grega. Por isso, em sua reflexão, a autora tenta recuperar a noção do político vivido no interior
272
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 193.
273
Sobre isso, afirma André Duarte: “Tanto para Nietzsche quanto para Arendt, a liberdade é possível no
espaço público, ao qual se contrapõe o espaço privado dos interesses materiais, que inspira a covardia e o terror
da ação entre os homens.” (DUARTE. Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política.
In: CORREIA (Org.). Transpondo o Abismo: Hannah Arendt entre a filosofia e a política, p. 70).
274
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 191.
110
da antiga polis grega, que foi, segundo ela, desprezado pelos profissionais do pensar, desde o
momento em que a polis, ou seja, a cidade-estado grega perdeu a sua dinâmica centrada numa
atitude que se por meio do uso da palavra e da ação que ocorre no interior do seu espaço
público. A autora nos adverte a respeito da necessidade de recuperar o sentido original da
liberdade política que havia se desviado dos assuntos inerentes ao cotidiano do domínio
público.
O termo público denota em primeiro lugar que tudo aquilo que vem a público é algo
que pode ser visto e ouvido por todos, e possui a maior divulgação possível. O público, nesse
caso, é a expressão do mundo da aparência,
276
que para Hannah Arendt é aquilo que é visto e
ouvido pelos outros, bem como por nós mesmos. Nesse sentido, o que chamamos de
aparência, se constitui como a própria realidade.
277
O blico caminha lado a lado com a
transparência.
Portanto, recuperar a importância da política constitui o principal desafio arendtiano.
A esse respeito Celso Lafer salienta que: “restaurar, recuperar, resgatar o espaço público que
permite, pela liberdade e pela comunicação, o agir conjunto e com ele a geração do poder, é o
grande tema unificador da reflexão de Hannah Arendt.”
278
De acordo com Leonardo Avritzer dois motivos que levaram Arendt a fazer um
reexame da política no mundo antigo, considerando esses motivos como os mais modernos
possíveis. O primeiro deles, refere-se à crítica da autora à predominância do conceito de
fabricação no mundo moderno que surge como uma crítica vigorosa ao pensamento
275
LEFORT. Hannah Arendt e questão do político. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e
liberdade, p. 74.
276
Arendt nos chama a atenção em The Human Condition a respeito da durabilidade que é uma característica do
mundo da aparência. A autora considera ser o mundo das aparências um espaço que surge a partir do momento
em que os homens se reúnem para discutirem e agirem juntos. Toda e qualquer forma de governo é precedida
por esse espaço de aparência e de poder. Se os homens cessam de reunir para falar e agir em conjunto, esse
mundo de aparências encontra o seu fim. A esse propósito, se refere Hannah Arendt: “The space of appearance
comes into being wherever men are together in the manner of speech and action, and therefore predates and
precedes all formal constitution of the public realm and the various forms of government, that is, the various
forms in which the public realm can be organized. Its peculiarity is that, unlike the spaces which are the work of
our hands, it does not survive the actuality of the movement which brought it into being, but disappears not only
with the dispersal of men as in the case of great catastrophes when the body politic of a people is destroyed
but with the disappearance or arrest of the activities themselves.”(ARENDT. The Human Condition, p. 199).
277
ARENDT. The Human Condition, p. 50.
111
marxiano.
279
Esse comentador de Arendt afirma que ela, em A Condição Humana, estabelece
uma diferença existente entre a naturalidade e a artificialidade, atitude assumida justamente
para trazer à tona uma alternativa ao pensamento marxiano. O segundo motivo considerado
como absolutamente moderno na condução do exame de Arendt ao mundo antigo, é o da
individualização do conceito de liberdade. Aqui se evidencia que no mundo antigo a liberdade
se configurava como uma categoria coletiva, e por esse motivo, implicava na existência de um
mundo comum. Em Entre o Passado e o Futuro, com ênfase ao artigo referente ao tema da
“liberdade,” a autora busca um conceito de liberdade que se apresenta como uma alternativa
ao liberalismo com o objetivo de refundá-lo. Leonardo Avritzer adverte que nesse sentido,
tanto a Condição Humana quanto Entre o Passado e o Futuro se constituem como obras que
possuem uma incursão pelo mundo antigo e trazem uma fundamentação eminentemente
moderna.
280
É nessa tentativa de recuperar por meio de seu pensamento político, a noção de
política vivida na polis grega da Antigüidade, que a filosofia política arendtiana se insere no
processo que envolve a História da Filosofia Contemporânea trazendo à tona a questão da
fundação da liberdade associando-a ao surgimento do evento revolucionário. Ora, dessa
maneira temos aí, a liberdade política como um dos principais aspectos que caracterizam o
fenômeno revolucionário como algo que não teve precedentes na História dos acontecimentos
políticos do ocidente.
A liberdade assumida, pelos gregos antigos, era vivenciada por cidadãos livres, ou
seja, por aqueles que não eram escravos e, portanto, não estavam sujeitos à força superior
vinda de outros. A função da polis, uma vez estendida a todos os cidadãos que dela
278
LAFER. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder, p. 37 - 38.
279
Para Leonardo Avritzer “tanto o pensamento de Marx quanto o marxismo estão baseados em uma identidade
entre o ato de transformação da natureza e o processo reflexivo. Para essa corrente, apenas a transformação da
natureza pode ser considerada um ato reflexivo gerador de consciência. Nesse sentido, Marx seria o fundador do
paradigma da produção e o defensor maior da identidade entre artificialidade e política. (Vide Marx, 1976;
Habermas, 1968; Avritzer, 1996).” [AVRITZER. Em nota de roda do artigo intitulado Ação, Fundação e
Autoridade em Hannah Arendt. In: Lua Nova, número 68: p.151].
112
participavam, era estabelecer e manter um espaço
281
em que a liberdade, enquanto
virtuosidade pudesse aparecer. “Tudo que acontecia nesse espaço era político por definição,
mesmo quando não era produto direto da ação.”
282
Esse espaço de liberdade significa que o
homem possuía a capacidade de se mover e de se afastar de casa, sair para o mundo e ir se
encontrar com outras pessoas utilizando-se de palavras e de ações.
Para explicitar a distinção entre esfera privada e esfera pública da vida, Arendt
remonta à filosofia política de Aristóteles.
283
Nessa investida, Arendt se refere ao
comportamento do homem grego vivido no âmbito público e no âmbito privado. Por essa
perspectiva, o cidadão possuia a sua existência ordenada em duas direções. A primeira era
vivenciada na casa privada (a oikia), por onde se manifestava o cotidiano da esfera familiar.
Era o mundo da vivência doméstica, ou seja, o espaço do oikos. A segunda se constituía como
uma vivência direcionada para o bios politikos, isto é, para a ação que acontecia no interior de
uma comunidade política (a polis).
284
Arendt pensa a política dentro dos parâmetros
apresentados pela dinâmica dos elementos que compõem a polis grega. Essa adoção da polis
grega como parâmetro para as suas análises referentes ao corpo político encontra respaldo em
abordagens feitas por Francis Wolff. Segundo ele, para os habitantes da polis grega, toda a
esfera da vida pública era num certo sentido uma esfera política. Assim como toda a esfera da
vida privada, era muito mais estreito do que ela é para nós nos dias de hoje. Isso porque, nem
280
Ibidem, p. 151.
281
Leonardo Avritzer, referindo-se a esse espaço, salienta: “Uma das precursoras da recuperação do conceito de
espaço público na modernidade tardia, Arendt supõe que a ação só poderia se desenrolar nesse espaço. O modelo
para o conceito arendtiano de ação é a pólis ateniense com sua diferenciação radical entre a oikia e o público. A
oikia, a esfera privada, é o lugar da tirania, da hierarquia, do domínio de indivíduos uns pelos outros. Nesse
sentido, há uma desigualdade inerente à oikia motivada não pelas relações humanas e sim pela mediação
exercida pela natureza que implica necessariamente violência. Ao mesmo tempo, o público arndtiano é mais
radicalmente igualitário do que o espaço político nas formulaçãoes dos autores da dialética do reconhecimento.
A igualdade e a pluralidade são constiuídas da noção arendtiana de público (Canovam, 1992) através da qual as
atividades puramente humanas ocorrem no interior de um espaço constituído em comum pelos indivíduos. É
nesse espaço que a política tem lugar e é com a recuperação desse espaço, tão claramente identificada pelos
gregos, que Hannah Arendt vincula a sua obra.” (AVRITZER. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah Arendt.
In: Lua Nova, número 68: p. 154).
282
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 201.
283
Sobre questões da vida pública e privada referentes ao pensamento político de Aristóteles, ver Francis Wolff
1999.
113
a “moral,” nem a religião e nem a educação das crianças, uma vez tomados como exemplos
em relação aos dias de hoje, se tratavam de questões que nunca poderiam estar fora do campo
da política. Para Wolff isso não quer dizer que “tudo seja político,”que equivaleria dizer que
“nada é político” para não negar a sua especificidade. Para nós hoje o “econômico” é um
exemplo de algo que é altamente político, sendo que para os gregos ele pertencia à esfera
privada e tinha a ver com a gestão do patrimônio (estava envolvido no oikos, que significa
“casa” ou propriedade).
285
Daí pode-se afirmar que a liberdade interior é aquela cuja manifestação era uma
realidade específica do campo do mundo privado da esfera doméstica, enquanto a liberdade
política, que ocorre em meio a manifestações de palavras e ações, era de uma realidade
tangível e própria do mundo público constituído pelo espaço da polis. A liberdade admitida
por Arendt é a manifestação do bios politikos, realidade que se opõe à liberdade da
interioridade no sentido agostiniano que se caracteriza como algo sem retorno ao domínio
público. A liberdade, nesse sentido, se apresentava por meio da dinâmica das ações e das
palavras no âmbito do espaço público.
286
Eram livres aqueles que estavam libertos das
necessidades da vida e não se acomodavam na esfera da vida privada vivenciada no âmbito do
espaço doméstico oikia.
287
Nesse contexto, a polis grega havia fundado uma liberdade que
diferentemente da libertação das necessidades biológicas elementares à sobrevivência, era um
284
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 158.
285
WOLFF. Aristóteles e a Política, p. 10.
286
Claude Lefort diz que para Hannah Arendt em se tratando do caso da Grécia Antiga, o espaço público era
assumido como um espaço que estava distante dos assuntos privados, aqueles assuntos próprios ao conceito de
oikos, pois ele se refere à unidade de produção doméstica, na qual prevalecem as coerções da divisão do trabalho
e das relações entre dominantes e dominados. É nesse espaço público, contrário ao modus vivendi estabelecido
no oikos, que os homens reconhecem-se como iguais, bem como discutem e decidem em comum. É também um
espaço, que os homens em termos arendtianos, podem rivalizar e procurar por meio de “belas palavras” e de
“façanhas,”destacar imprimindo a sua imagem na visão e memória públicas. (LEFORT. Pensando o Político:
ensaios sobre democracia, revolução e liberdade, p. 69).
287
O termo oikos, que em grego quer dizer casa é o responsável em dar origem a outras palavras que são muito
usadas na atualidade. Palavras como ecologia, ecumenismo e economia possuem as suas origens em oikos.
Trata-se de palavras que se inter-relacionam. Segundo Leonardo Boff, “economia é a arte de conduzir a casa e
ecumenismo, a forma como os seres que habitam a Terra se relacionam com Deus. Portanto, ecumenismo,
economia, ecologia tem a mesma raiz, o habitat humano.” (BOFF. Dimensão Política e Teológica da Ecologia,
p. 03).
114
mundo politicamente organizado. Os participantes da polis tinham suas vidas resolvidas do
ponto de vista das necessidades biológicas.
Os gregos afirmavam que ninguém podia se considerar como uma pessoa livre, a não
ser que fosse uma liberdade praticada entre os seus pares. A liberdade almejada teria que ir
além da libertação das necessidades biológicas, ela somente era possível na companhia de
outros homens. Ora, isso é possível, por meio da existência de espaços públicos. Eles são
ambientes que se apresentam caracterizados como solos férteis que possuem o objetivo de
admitir em seu interior o desenvolvimento da liberdade política. A autora se refere a esse
assunto, da seguinte maneira:
A liberdade necessitava, além da mera libertação, da companhia de outros homens que
estivessem no mesmo estado, e também de um espaço público comum para encontrá-
los um mundo politicamente organizado, em outras palavras, no qual cada homem
livre poderia inserir-se por palavras e feitos.
288
Arendt, ao associar a existência da liberdade à existência do espaço público, não quer
dizer com esse seu procedimento que toda forma de inter-relacionamento humano e toda
espécie de comunidade se caracterizam pela vivência da liberdade. Muitas formas de
organizações humanas como a intimidade da vida doméstica e as sociedades tribais, não se
constituem como comunidade caracterizada pela liberdade. Isso porque, os fatos que dirigem
as ações desses espaços de convivência não é a liberdade, e sim as necessidades da vida, bem
como a preocupação com a sua preservação. A liberdade concebida em termos arendtianos
precisa ser demonstrada.
289
Essa demonstração somente é possível quando ela é efetivada por
meio de atos e palavras no âmbito do espaço público. Nesse tipo de demonstração ocorre a
valorização ou a exposição negativa do homem. A política necessita do contato com o outro.
288
ARENDT. Crises da República, p. 194.
289
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 194 -195.
115
Percebe-se que Arendt compreende o sentido da política como algo que não se insere
somente na perspectiva da alusão socrática configurada no ato do pensar consigo mesmo, isto
é, do dois-em-um, onde cada indivíduo é cúmplice de sua própria companhia. A política se
insere em um contexto que vai além daquele apontado pela alusão socrática, pois ela aparece
em meio a uma perspectiva por onde o seu campo de atuação é o da pluralidade
290
no espaço
público. Ora, mesmo que o pensar socrático tenha tido na História da Filosofia, uma atitude
voltada para a realidade do mundo, o significado de liberdade e de política em Arendt não se
acomoda somente na esfera do dois-em-um.
Para a autora, pensa-se o mundo das aparências estando sempre atento à pluralidade
que se constitui como sendo a lei da Terra.
291
Mas não é esse pensar comprometido com o
domínio público que assinalou o comportamento da maioria dos pensadores profissionais no
sentido kantiano do termo. Diferentemente de Arendt, tais pensadores levaram a filosofia para
um lugar cada vez mais distante do espaço público.
Não nos ocupemos aqui com a questão do Pensar,
292
pois trata-se de uma faculdade da
vida do espírito que por si só implica em grandes abordagens.
A postura assumida por Arendt na interpretação que ela faz a respeito da Crítica do
Juízo de Kant nos apresenta uma maneira de pensar no plural, que consiste antes de tudo, no
momento em que as pessoas se colocam a pensar, elas passam a se colocar no lugar do outro,
ou seja, é o colocar-se em posição alheia. Portando, agindo assim, estaremos exercendo aquilo
290
A idéia de pluralidade, analisada por Hannah Arendt, encontra-se pautada numa visão que situa o homem no
âmbito das diversidades inerentes à nossa própria condição como habitantes deste mundo. Mas a nossa insersão
neste mundo, requer a articulação entre discurso e ação. O homem enquanto ser que desfruta dessa pluralidade
no mundo, necessita da ação e do discurso. É na ação e no discurso, que estão contidos os pontos de encontro e
de desencontro entre os homens. Daí, eles precisarem do exercício da ação e do discurso para se fazerem
entender. A propósito disso, Hannah Arendt observa que: “se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de
comprender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das
gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existe
ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender.” (ARENDT. The
Human Condition, p. 175 -176; A Condição Humana, p. 188).
291
ARENDT. The Life of the Mind, p. 17; A vida do espírito, p.17.
292
Desenvolvemos mais longamente esse tema em OLIVEIRA J. Luiz “A Faculdade do juízo no pensamento
político de Hannah Arendt”, dissertação defendida na UFMG, em 28 de setembro de 2001.
116
que o filósofo de Konigsberg denominou de mentalidade alargada.
293
O conceito de
mentalidade alargada, presente na faculdade kantiana do juízo, refere-se à faculdade humana,
de abrir-se para os outros por meio de um espaço que se alarga através do uso do diálogo, ou
seja, através da palavra, tornando-se então um lugar privilegiado para a ação acontecer de
forma conjunta.
Em termos arendtianos, a polis grega conduzia os seus negócios por intermédio do
discurso, utilizando-se da força da persuasão, e ao mesmo tempo desprezando a violência.
294
Esta afirmação traz para a filosofia política arendtiana a sua conotação contrária à utilização
da violência, que implica certamente em ser contrária à tirania. Portanto, para a nossa autora,
é preciso, mais do que nunca, garantir a fundação de um espaço que possibilite o exercício da
liberdade política. Tratava-se de uma prática de liberdade que colocava o homem na sua
dimensão de político dentro da esfera do espaço público. Visto por esse ângulo, a liberdade
política distingue-se da liberdade filosófica por ela ser claramente uma qualidade que se apóia
no eu-posso e não no eu-quero. Tem-se aí, uma liberdade que é possuída pelo cidadão, e não
pelo homem em geral. Daí, termos uma liberdade que somente pode se manifestar em
comunidades em cujos interiores aqueles que vivem juntos são, tanto no falar quanto no agir,
regulados por uma variedade de relações – rapports – leis, costumes, hábitos e similares.
Nas trilhas do pensamento arendtiano, concebe-se que a liberdade política é
possível quando a mesma se manifesta na esfera da pluralidade humana, diferentemente da
liberdade filosófica, que ocorre simplesmente no âmbito do eu-e-eu-mesmo.
295
Por essa razão,
293
No tocante à noção de mentalidade alargada, comentando Hannah Arendt, Celso Lafer lembra a referência
feita por ela a Karl Jarspers: “Jarspers é, segundo Hannah Arendt, o único sucessor de Kant, e Kant, segundo
Hannah Arendt, na leitura que faz da Crítica do Juízo, foi um dos poucos que chegou a uma filosofia política,
pois deu-se conta que, politicamente não existimos no singular, mas coexistimos no plural. A pluralidade da
intersubjetividade requer a comunicação, e esta pressupõe o que Kant chama de mentalidade alargada, isto é,
um pensar sempre ligado ao pensamento do que o outro pensa.” (LAFER. Hannah Arendt: pensamento,
persuasão e poder, p. 22 - 23).
294
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 50.
295
Sem o diálogo do eu consigo mesmo, torna-se impossível em termos arendtianos a realização da experiência
de pensamento. No momento em que o totalitarismo destrói a capacidade do diálogo do eu consigo mesmo ele
atinge a experiência de pensamento, anulando-a. Eduardo Jardim de Moraes, seguindo a trilha aberta por Hannah
117
a ação uma vez comprometida em mudar o nosso mundo comum, coloca-se em oposição
aguda com a atividade solitária do pensamento, que funciona no diálogo de mim comigo
mesmo.
296
É por isso que em termos arendtianos, em se tratando de Revolução estamos lidando
com a ão fundadora da liberdade política.
297
Isso porque, segundo a nossa autora, nós não
podemos conceber essas duas capacidades e potencialidades da vida humana, sem ao menos
admitir a existência da liberdade.
298
Nessa perspectiva, Revolução e liberdade andam juntas,
como nos lembra André Enegren:
Não nos surpreendamos de que revolução e liberdade andam juntas e que, muito
precisamente a idéia central da revolução é a fundação da liberdade, é a fundação de
um corpo político que garanta o espaço onde a liberdade possa manifestar-se. Em
outras palavras, a revolução se define rigorosamente por seu próprio fim, que é a
constituição da liberdade: isto é, voltada para si própria, o que ativa a reflexão de
Arendt sobre a revolução como instalação de um novo corpo político.
299
Evidencia-se que a intenção contida nas abordagens encaminhadas por Hannah Arendt
relativas à liberdade é no sentido de demonstrá-la como uma manifestação que acontece no
seio do espaço público, por meio de palavras e ações. Nesse sentido, para Hannah Arendt,
''sem ela a vida política como tal seria destituída de significados, pois, a raison d’etre da
política é a liberdade, seu domínio de experiência é a ação.''
300
Arendt, comenta: “(...) as experiências totalitárias são a prova de que certas circunstâncias políticas podem
efetivamente anular a experiência de pensamento. Os homens de massa comprimindo-se uns contra os outros, e
que não podem estar a s, não podem também iniciar o diálogo de si consigo mesmo que caracteriza o
pensamento (MORAES. Filosofia, mulheres e política, Caderno Mais – Jornal Folha de São Paulo, 22 de agosto
de 1993, p. 16).
296
ARENDT. The Life of the Mind. Two: Willing, p. 200; A vida do espírito, p. 336.
297
Essa conexão entre liberdade política e Revolução, uma vez que para Hannah Arendt, Revolução significa
ruptura com o automatismo do fluxo temporal, de acordo com Adriano Correia “essa liberdade exige, com efeito,
a coragem para instaurar novos começos, eventos inesperados que são dotados de grandeza suficiente para
interromper o automatismo do fluxo temporal.” (CORREIA. Introdução. In: ____________ (Org.). Transpondo
o Abismo: Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política, p. 06)
298
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 192 - 193.
299
ENEGREN. Revolución y Fundación. In: Nueva Sociedad. El Resplandor de lo blico em torno a Hannah
Arendt, p. 55.
300
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 192.
118
A Revolução constitui-se como um momento privilegiado de manifestação da ão
criadora. Em meio a essa manifestação, é a liberdade que torna possível a ação política
revolucionária. É nesse sentido que a Revolução se associa à liberdade, pois apresenta-se
como um fenômeno no qual a ação humana garante a criação de novas realidades políticas.
Podemos dizer que é pertinente admitir que a liberdade em Arendt se traduz em fundação da
liberdade política.
Segundo Newton Bignotto, Arendt privilegia a idéia de que a liberdade é sempre um
começo, uma criação que é ao mesmo tempo uma fundação.
301
E a Revolução em termos
arendtianos, foi um exemplo significativo de fundação na modernidade.
De acordo com a perspectiva das análises arendtianas relativas ao fenômeno
revolucionário, antes que se engajassem naquilo que resultou em Revolução, não havia
clareza por parte dos atores de que o enredo de um novo drama estava para acontecer. Por
outro lado, uma vez iniciado o curso das Revoluções, a novidade da História veio à tona. O
resultado disso é que esse enredo, tanto para seus atores como para os espectadores
302
foi
inegavelmente o aparecimento da liberdade. Justifica-se que a associação entre Revolução e
liberdade pode ser entendida no contexto do inesperado. Por esse motivo a autora, citando
Condorcet, diz que: "a palavra revolucionário pode ser aplicada à revolução cujo
objetivo seja a liberdade."
303
Não se pode falar de novidade no âmbito da Revolução sem se considerar a marca do
ineditismo que caracteriza a liberdade política. Nesse sentido, Revolução para Hannah Arendt
301
BIGNOTTO. Maquiavel Republicano, p. 215.
302
Hannah Arendt quer demonstrar que existe uma oposição entre o modo de vida do ator e aquele do
espectador. As figuras do ator e do espectador, tal como Hannah Arendt as concebe, caracterizam-se como uma
das chaves de compreensão de sua filosofia política. Hannah Arendt relaciona a função do espectador com a
palavra “teórico”, remontando o seu significado às origens gregas: “O termo filosófico ‘teoria’ deriva da palavra
grega que designa espectadores theatai. A palavra ‘teórico’, a alguns séculos, significava ‘contemplando’
observando do exterior, de uma posição que implica a visão de algo oculto para aqueles que tomam parte do
espetáculo e o realizam. É óbvia a inferência que se pode fazer a partir dessa antiga distinção entre agir e
compreender: como espectador pode-se compreender a ‘verdade’ sobre o espetáculo; mas o preço a ser pago é a
retirada da participação no espetáculo.” (ARENDT. A vida do espírito, p. 72 - 73).
303
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 23.
119
é sinônimo da entrada em cena da liberdade no conjunto da trama de seus acontecimentos e
dos seus conseqüentes desdobramentos.
Nessa perspectiva, tratar da Revolução concebendo-a como o início de um novo rumo
na História é demonstrar o quanto o homem é livre e capaz de mudar o curso dos
acontecimentos, isto é, torna-se claro a partir daí, o quanto a capacidade de começar algo
inteiramente novo é uma característica tipicamente do ser humano. Somos seres
potencialmente dotados de condições de nos lançarmos para a novidade, isto é, para a
fundação da liberdade. O enredo da liberdade quando desencadeia o processo revolucionário,
deixa então visível a concretização do nosso potencial fundador.
Para Newton Bignotto, Hannah Arendt tem razão quando em sua referência à
liberdade a coloca como algo que existe necessariamente no âmbito do político. É nessa
descrição que encontramos o sinal de uma possibilidade que, embora se encontrasse presente
nos homens, teria desaparecido do seio da filosofia moderna, bem como de nossas
experiências cotidianas.
304
Arendt se refere a uma coincidência entre a liberdade e a
experiência de um novo começo, que nesse caso se expressa por meio do desenrolar das
Revoluções na Idade Moderna. Portanto, ela nos adverte da seguinte maneira:
É crucial, portanto, para a compreensão das revoluções na Idade Moderna, que a idéia
de liberdade e a experiência de um novo começo sejam coincidentes. E desde que a
noção corrente no mundo livre é de que é a liberdade, e não a justiça, nem a grandeza,
o critério mais alto para o julgamento de constituições de corpos políticos, não é
apenas o nosso entendimento de revolução, mas nossa concepção de liberdade,
nitidamente revolucionária em sua origem, que se pode medir até que ponto estamos
preparados para aceitar ou rejeitar essa coincidência.
305
Registra-se que ser livre em termos arendtianos significa o mesmo que se aventurar no
ato de começar algo novo. No entendimento de Hannah Arendt, a capacidade de começar é
compreendida como liberdade que se apresenta como revolucionária em sua origem.
304
BIGNOTTO. Maquiavel Republicano, p. 214.
305
ARENDT. Da Revolução, p. 23.
120
Constata-se ser relevante para a compreensão das Revoluções na Idade Moderna que a idéia
de liberdade seja coincidente com a experiência humana do começo. O homem se abre para o
futuro,
306
ou seja, o homem quando se lança na liberdade, instaura um novo começo na
História. O exemplo maior desse empreendimento encontra-se na coincidência entre liberdade
e o contexto da trama das Revoluções. Torna-se evidente a partir dessas considerações, que a
capacidade fundadora do homem reside na sua vocação à liberdade política, ou seja, o ato de
lançar-se à liberdade coincide com o potencial para o começo que existe em cada ser humano.
Trata-se de um potencial para começar uma Revolução que é inerente à nossa própria
condição humana. É nesse sentido, que articulação entre Revolução e fundação da
liberdade política. Pode-se dizer que a Revolução na perspectiva arendtiana acontece devido à
capacidade iniciadora presente em cada ser humano que se expressa por meio da liberdade.
É por essa razão que o fenômeno das Revoluções constitui-se como realidade política
que têm na liberdade um dos principais aspectos dessa novidade ocorrida na História. Trata-se
de acontecimentos de fundação moderna que se dão por meio de um processo de instauração
de ruptura com a realidade absolutista, como no caso do Antigo Regime francês. É por esse
motivo que a liberdade que funda a Revolução sustenta um conceito da História no qual a
idéia de ruptura lhe é subjacente.
2.4 - A Revolução e a questão social
O fenômeno revolucionário teve ligação com a questão social e com a sua natureza
caracteristicamente desumanizadora e urgente. É por esse motivo que para Hannah Arendt em
306
Conforme Margareth Canovam, para Hannah Arendt o futuro é aberto. Por essa razão, salienta que “only
consider the new beginnings that men have made in the twentith century - not just the fundation of the United
Nations but the initiation of Nazism, not just antibiotics but also nuclear weapons”. (CANOVAM. Terrible
Truths: Hannah Arendt on Politics, contingency and evil. Revue Internationale de philosophie, p. 182).
121
suas análises que dizem respeito ao evento revolucionário reconhece na questão social um
aspecto que se constitui como algo relevante para o conjunto de seus desdobramentos.
Dessa maneira, podemos dizer que houve no desenrolar do processo revolucionário
uma ênfase à questão social revelada pela necessidade do processo vital dos seres humanos
que se impunha de maneira avassaladora e imediata. Era a expressão da pobreza que se fazia
ouvir por meio da submissão dos corpos ao estado real de carência no sentido de privação
daquilo que é básico para se manter fora da miséria. Isso quer dizer que no desencadear da
Revolução, a exemplo da Revolução Francesa, a pobreza revelou sua face que clamava pela
superação de suas necessidades básicas de sobrevivência.
307
Assim, explica Arendt:
A realidade que corresponde a essa imaginária moderna é aquilo que desde o século
XVIII, veio a ser chamado de questão social, e que poderíamos, melhor e mais
simplesmente, denominar de a existência da pobreza. Pobreza é mais do que privação,
é um estado de constante carência e aguda miséria, cuja ignomínia consiste em sua
força desumanizadora; a pobreza é abjeta porque submete os homens ao império
absoluto de seus corpos, isto é, ao império absoluto da necessidade, como todos os
homens a conhecem a partir de suas experiências mais íntimas independente de todas
as especulações.
308
Percebe-se que é por meio da expressão da pobreza que encontramos a marca principal
daquilo que em termos arendtianos denomina-se questão social. A pobreza é uma realidade
em que o homem, uma vez estando envolto nela, apresenta-se como um ser dominado pela
força oriunda das necessidades de seu corpo. Uma pessoa faminta ou que apresenta outros
tipos de necessidades biológicas encontra-se numa situação absolutamente desumanizadora.
307
Margareth Canovam em artigo intitulado Terrible truths: Hannah Arendt on Politics, contigency and evil,
mostra a problemática em torno da diferença entre liberdade e libertação das necessidades básicas de
sobrevivência que arendt apresenta. Diz a comentadora de Hannah Arendt: “She argued on the one hand that ‘the
meaning of Revolution’ is freedon in action, the capacity to start a new enterprise and to make the political world
anew; but on the other hand that in the French Revolution and most of its successors, that initial emphasis on
freedom had been overtaken by a sense of helplessnen in the face of necessity. She goes on to maintain that the
source of this experience of unfreedon was ‘the social question’, that is to say the emergence into the political
realm of the poverty, misery and sheer biological necessity. What prevented the French Revolution from
establishing a free polity was the irruption into politics of the multitude of the poor, whose needs were so urgent
that they swamped all other considerations” (CANOVAN. Terrible Truths: Hannah Arendt on Politics,
contingency and evil. In: Revue Internationale de philosophie, p. 173 -174).
308
ARENDT. Da Revolução, p. 48.
122
Quando os homens são desprovidos dos elementos básicos que garantem a sua sobrevivência,
eles passam a ter as suas condições humanas biológicas afetadas.
Dessa maneira, verifica-se que a realidade da pobreza possui um lugar relevante nas
análises em torno do fenômeno das Revoluções. Visto por esse ângulo, a autora afirma que as
necessidades dos processos históricos que originalmente foram assimiladas à imagem do
movimento cíclico regular dos corpos celestes teriam encontrado sua poderosa contrapartida
na necessidade recorrente a que toda vida humana está sujeita.
309
O problema da pobreza
trouxe à tona a necessidade de duas convivências difíceis. Por um lado, a modernidade em
curso teve que conviver com o aparecimento do novo que rompeu com o Antigo Regime,
deixando para trás o passado absolutista e instaurando situações nunca antes vivenciadas na
História da humanidade. Por um outro, em meio ao conjunto das manifestações oriundas da
explosão revolucionária, registra-se a pobreza que aparece como uma força avassaladora e
que submete os homens à prisão das necessidades do corpo.
Essas duas manifestações simultâneas, ou seja, a pobreza e a explosão revolucionária,
significaram a contraposição existente entre essas duas necessidades humanas. Nesse caso,
trata-se de uma necessidade política que por meio da liberdade impulsiona os seres humanos
para a instauração do novo, bem como da necessidade biológica que reivindica do corpo
humano, soluções urgentes para manter as suas condições vitais em funcionamento.
Evidencia-se que para Hannah Arendt, a necessidade política se revela através da
liberdade política manifestada no seio do espaço público e a pobreza possui sua motivação
ligada às necessidades biológicas do corpo. A presença da pobreza, isto é, da questão social,
não é a instituição da liberdade e sim a busca urgente de libertação. Segundo a nossa autora
"foi sob o ditame dessa necessidade que a multidão acendeu ao apelo da Revolução Francesa,
309
.ARENDT. Da Revolução, p. 47.
123
inspirou-a, impulsionou-a, para frente e finalmente, levou-a à destruição, pois essa era a
multidão dos pobres."
310
Segundo a afirmação da autora, houve a destruição dos propósitos de fundação da
liberdade da Revolução Francesa pelos pobres que a desviou substituindo a instituição da
liberdade pela busca da libertação das suas necessidades biológicas. Nesse caso, a instauração
da liberdade política foi substituída pela necessidade de libertação das amarras sociais.
311
Percebe-se que por meio da questão social, é possível em termos arendtianos,
analisarmos as implicações que ela teve no decorrer do processo da fundação do corpo
político via fenômeno revolucionário ocorrido nos dois lados do Atlântico. A autora afirma
que quando os homens da Revolução Francesa acreditavam que todo poder residia no povo,
eles queriam dizer que esse poder era uma força natural, cuja fonte e origem se situava para
além do domínio político. Para Arendt, tratava-se de uma força que, em sua própria violência,
fora desenvolvida pela Revolução que, como um furacão, arrastou instituições muito fortes
como o Antigo Regime.
312
Analisando por esse ponto de vista, não estamos, portanto, deixando de demonstrar
que o verdadeiro objetivo da Revolução foi a instituição da liberdade política, mas estamos
dentro de nosso propósito que é o de dar ênfase ao papel exercido pelos pobres, quando na
movimentação de um fenômeno que se apresentou muito mais que uma mera rebelião.
Para Claude Lefort, a articulação entre a idéia de política em Arendt como uma leitura
da História Moderna, leva-nos a indagar de que maneira isso pôde acontecer. Para esse
310
.ARENDT. Da Revolução, p. 48.
311
Berenice Cavalcante comenta que a convenção jacobina é assinalada por Arendt como um momento de
emergência da “questão social” no contexto do mundo moderno. Essa questão traz consigo a politização do tema
da pobreza. Afirmação que segundo essa comentadora de Arendt, traz reforço e fundamento para o impasse
existente entre liberdade e necessidade, razão pela qual jacobinos e sans-culottes não teriam feito nada mais que
um movimento de “libertação.” De forma alguma, esse movimento se confundiria com a fundação da liberdade.
Apesar dessa deturpação, o jacobinismo não deixou de merecer por parte de Arendt uma análise cuidadosa que
foi capaz de identificá-lo como um movimento caracterizado pelo espírito revolucionário. Teria o jacobinismo
algo do tesouro perdido, desaparecimento do qual a nossa autora ressente e se lança na busca para compreender
suas razões.
(CAVALCANTE. Hannah Arendt em companhia dos historiadores. In: BIGNOTTO & MORAES
(Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 181).
124
comentador de Hannah Arendt, os tempos modernos podem ser compreendidos como um
teatro de uma mudança considerável, pois a Antigüidade no tempo da polis foi marcada pela
ausência da sociedade, ou seja, no lugar de uma sociedade inexistente, havia um mundo
dividido entre os assentos da cidade e os assentos do oikos. O surgimento da modernidade é
compreendido por um dos seus traços distintos que se atém ao advento do social.
313
Na
perspectiva de Lefort, Arendt não desvincula o advento da modernidade do advento da
questão social.
Nos dois lados do Atlântico houve mobilização dos pobres, quer fosse daqueles que
deixaram a Grã-Bretanha para fundarem uma nova nação na América,
314
quer fosse dos
necessitados franceses que invadiram as ruas da antiga Gália gritando pelo fim das amarras
opressoras do Antigo Regime. Os primeiros, por causa da perseguição ao protestantismo, a
pobreza constituiu-se para eles como um fator determinante para a busca de um Novo Mundo.
Eles estavam convencidos de que era necessário buscar uma nova terra que lhes pudesse
garantir a liberdade religiosa, a liberdade política e o fim da pobreza. Analisando por esse
ângulo, embora a pobreza tivesse sido superada nos territórios da América do Norte, a
ocupação desse espaço deu-se inicialmente e em grande quantidade por emigrantes pobres. A
fundação da nação americana inicialmente contou com o sonho dos pobres que emigraram da
Grã-Bretanha. Os habitantes do Velho Mundo que foram vítimas do Antigo Regime ansiavam
por uma França que os libertasse de forças irresistíveis das necessidades biológicas. Pois, para
312
ARENDT. Da Revolução, p. 145.
313
LEFORT. Hannah Arendt e questão do político. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e
liberdade, p. 71.
314
A situação social dos emigrantes da Grã-Bretanha que foram ocupar a América se distinguia da situação dos
pobres franceses. A esse respeito salienta Aléxis de Tocqueville: “Os emigrantes que em períodos diferentes
foram ocupar o território agora abrangido pela União Americana , diferiam uns dos outros sob muitos aspectos;
seu objetivo não era o mesmo e governavam-se a si próprios sob princípios diferentes. Esses homens, no entanto,
tinham certas particularidades em comum, estavam todos colocados em uma posição análoga. O elo da língua é,
talvez, o mais forte e durável que pode unir a espécie humana. Todos os emigrantes falavam a mesma língua;
eram todos rebentos do mesmo povo. Nascidos num país agitado durante séculos por lutas de facções, e no qual
todas as partes tinham sido obrigadas, por seu turno, a se colocarem sob a proteção das leis, sua educação
política fora aperfeiçoada nessa rude escola; e estavam mais familiarizados com as noções do direito e os
princípios da verdadeira liberdade, do que a maior parte de seus contemporâneos europeus.” (TOCQUEVILLE.
A Democracia na América, p. 30).
125
a nossa autora, a questão social se deu no campo das necessidades do corpo e se caracterizou
como algo independente de nossa vontade. O momento que os pobres saíram às ruas da
França foi o momento no qual a irresistibilidade frente às necessidades biológicas veio à tona,
pois trata-se de uma necessidade ligada ao processo vital, capaz de arrastar multidões em
protestos pedindo pelo seu fim.
No momento em que houve uma eclosão de movimentação popular nas ruas da
França, o encaminhamento da Revolução estava em curso. Nesse caso, evidencia-se que em
termos arendtianos, a questão social exerceu uma função de relevância naquilo que diz
respeito ao despertar inicial do fenômeno revolucionário. Trata-se de uma questão que revelou
a nova postura assumida por multidões de famintos naquilo que se refere ao surgimento do
evento das Revoluções. Diante disso, nota-se que existe uma relação entre a questão social e a
Revolução. Essa relação é explicada por Arendt da seguinte maneira:
A questão social começou a desempenhar um papel revolucionário quando, na
Idade Moderna, e não antes, os homens começaram a duvidar que a pobreza fosse
inerente à condição humana, a duvidar que a destruição humana entre os poucos que,
por circunstâncias, força ou fraude, conseguiram libertar-se dos grilhões da pobreza, e
a miserável multidão dos trabalhadores, fosse inevitável e eterna.
315
Depreende-se daí que a força dos pobres na eclosão do fenômeno revolucionário
advém de uma nova concepção assumida por eles de que diante da força das necessidades
biológicas, a pobreza não se tratava mais de algo inerente à condição humana. O importante
na assertiva arendtiana, é que os pobres saíram às ruas, sustentados pela concepção de que a
pobreza não é uma condição imutável. O importante para a nossa autora, é que a crença que
movia as multidões dos pobres, sustentava-se por meio da necessidade de superação de sua
condição de necessitados socialmente. Sem essa superação, a liberdade política ficaria
comprometida. Para Hannah Arendt, a preocupação com as necessidades físicas (anagkaia)
315
ARENDT. Da Revolução, p. 18.
126
era uma ocupação da comunidade familiar, uma vez que se tratava de um tipo de necessidade
inerente à manutenção da vida individual e da garantia da sobrevivência da espécie humana.
Por isso, para os gregos, caracteristicamente contrário ao procedimento moderno, o cuidado
naquilo que tange à preservação da vida do indivíduo, como da sua espécie, pertencia com
exclusividade à esfera familiar. Os seres vivos precisam controlar as suas necessidades físicas
ou biológicas para não serem arrastados por elas. Esse fato demonstrava que os pobres
estavam assumindo a concepção de que a pobreza não era fruto da providência divina, ou seja,
ela não provinha da vontade de Deus. As multidões que se dirigiram às ruas da França
estavam certas de que as estruturas injustas do Antigo Regime tinham a ver com a condição
de pobreza na qual elas estavam submetidas.
Claude Lefort afirma que quando voltamos à interpretação de Hannah Arendt a
respeito da Revolução Francesa, torna-se difícil perceber como ela pôde separar a igualdade
política da luta que foi levada contra a hierarquia do Antigo Regime. Essa luta se inscrevia na
concepção de Tocqueville como um processo de igualdade de condições que não se confunde
com evidência com a igualdade econômica. Mas Tocqueville também mostrou que tudo isso
poderia apenas ter efeitos a um tempo de ordem social e de ordem política. Nesse caso,
tratava-se da liberdade e ao mesmo tempo do reconhecimento do semelhante pelo semelhante
no seio da sociedade.
316
Por essa razão, a questão social aqui levantada é no sentido de considerar que a
pobreza é uma realidade que pode ser superada.
Visto dessa maneira, é possível a instauração da liberdade em termos arendtianos,
se houver dominação ou superação das amarras do campo da necessidade.
317
Evidencia-se que
a crença na superação da pobreza pelo fato de ela não ser inerente à nossa condição é uma
concepção própria do contexto da Idade Moderna. O ambiente renascentista creditou no
316
LEFORT. Hannah Arendt e questão do político. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e
liberdade, p. 73.
127
homem a sua capacidade de mudar os rumos dos acontecimentos. Podemos dizer que o
humanismo renascentista, que mais tarde desdobrou-se em princípios do Iluminismo, garante
ao homem a sua autoconfiança política. Nesse sentido o homem moderno, deposita em si
mesmo a confiança de que ele pode mudar o rumo da História. Portanto, convencer-se dessa
realidade é ser moderno. A modernidade em curso por meio da exposição da força
mobilizadora dos pobres contra a pobreza se afirma como um momento novo, ou seja, trata-se
de um momento que no período da Antigüidade e no da Idade Média o mundo não o
conhecia. O modelo de sociedade estamental próprio do período medieval, era como uma rede
em que, uma vez envolta nela, o pobre não conseguia encontrar condições de compreender a
possibilidade de se libertar da sua situação social. Compreendendo a organização da
sociedade feudal como uma pirâmide, é como se os pobres que faziam parte da sua base,
jamais poderiam se ascender a uma dimensão maior da divisão da pirâmide, tampouco ao seu
topo. Acreditava-se naquele contexto que nascer pobre e sem possuir a herança genética da
nobreza era o mesmo que nascer condenado a nunca se libertar da privação das necessidades
biológicas. A Antigüidade conviveu com a escravidão e viu em Aristóteles
318
a sua
justificativa. A pobreza e a escravidão encontraram justificativas ao longo da História.
Nota-se que o entendimento da pobreza e da escravidão como sendo fruto da condição
de nascimennto, foi cedendo lugar à idéia de superação dos problemas sociais por via da
liberdade política. O resultado disso repousa no fato de os despossuídos socialmente e
economicamente das necessidades de sobrevivência serem por meio do espírito
revolucionário auto compreendidos como atores das mudanças políticas, isto é, eles passam a
317
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 159.
318
A esse respeito salienta Aristóteles: “existem, na espécie humana, seres inferiores a outros quando o corpo o é
em relação à alma, ou a besta ao homem; são aqueles para os quais a utilização da força física é o melhor que
deles se consegue. Segundo os nossos princípios, esses indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão,
pois , para eles, não há nada mais simples do que obedecer. A utilidade que tem os escravos é quase a mesma dos
animais domésticos: auxiliam-nos com a sua força física em nossas diárias necessidades. A natureza mesmo
parece desejar dotar de características diferentes os corpos dos homens que são livres e dos que são escravos.
Uns, efetivamente, são fortes para o trabalho a que são destinados, os outros são inteiramente inadequados para
128
serem os legitimadores das novas ordens políticas criadas por eles mesmos. Por esse ponto de
vista, o sentido da Revolução passa pela superação da questão social.
2.5 - Revolução e Secularização
Em suas análises a respeito do fenômeno revolucionário,
319
Hannah Arendt se ocupa
com a problemática da secularização. Por isso, é pertinente demonstrar em nossa proposta de
pesquisa que nessas abordagens encaminhadas por nossa autora a respeito do fenômeno das
Revoluções, ela identifica o caráter secular de tais eventos. A partir daí, temos como explorar
no pensamento político arendtiano um problema típico da modernidade em curso: a relação
entre religião e política. Falar de Revolução em termos arendtianos é também referir-se ao
fenômeno moderno da secularização.
Em se tratando de Revolução, ficamos diante da instauração de uma realidade política
nova e dos seus possíveis e inevitáveis desdobramentos. No fenômeno revolucionário francês
e americano, essa realidade política nova instaurada teve como um dos seus principais fatores
a questão da secularização, visto que, para Hannah Arendt, "a secularização, a separação da
religião e da política, e o surgimento de um reino secular, com sua dignidade própria, é
serviços tais, porém são de utilidade para a vida civil, que desta forma se encontra dividida entre os trabalhos de
guerra e os de paz.” (ARISTÓTELES. Política, p. 18 - 19).
319
A Revolução Francesa constitui-se como um acontecimento que teve implicações no seio da vida da Igreja
Romana. Sobre isso, diz Pierre Pierrard: “Durante um quarto de século – de 1789 a 1814 - , a História do mundo
esteve ligada à história da França; conseqüentemente, toda a Igreja romana viveu os problemas da Igreja da
França. Sem dúvida, a Revolução Francesa prolongada pelo Consulado e o Império representou, segundo a
expressão de Barnave, o ‘cume’ de uma revolução européia produzida pela burguesia enriquecida. À França
coube naturalmente orientar aquela enorme orientação das forças: foco da filosofia das luzes, nação jovem,
estruturada e dinâmica, seus exércitos iriam semear através da Europa idéias que, a longo prazo, dariam seus
frutos. Os papas da Idade Média haviam conseguido fazer a unidade da Europa na cristandade; a França
revolucionária agruparia os espíritos em torno de algumas idéias generosas – liberdade, igualdade, fraternidade –
que, embora se liguem ao Evangelho através da ‘religião natural,’ não se escrevem verdadeiramente num
contexto cristão: o trunfo da burguesia que marcaria o século XIX se faria acompanhar de uma profunda
laicização das mentalidades. Pode-se dizer com Matriez que, embora tenha sido ‘a condenação implícita dos
antigos abusos’, a Declaração dos Direitos do Homem (26 de agosto de 1789) foi sobretudo ‘o catecismo
filosófico da nova ordem.’” (PIERRARD. História da Igreja, p. 211).
129
certamente um fator crucial no fenômeno da revolução."
320
Percebe-se então o quanto é
tangível o fato da questão de a secularização ser apresentada por Hannah Arendt como algo
inerente ao processo de desencadeamento do fenômeno revolucionário, o que significa que
questões relativas à necessidade ou não, de um apelo ao transcendente surgem como um
problema que clama por solução no seio das Revoluções
321
em curso.
Ao se referir à questão da secularização, logo ocorre a demonstração de que o
problema do transcendente aparece na pauta da agenda dos revolucionários como um assunto
relevante apresentado por Hannah Arendt. No caso da Revolução Francesa, Arendt nos chama
a atenção quando nos apresenta a desesperada tentativa de Robespierre de encontrar um novo
culto - o culto a um Ser Supremo, isto é, o que esse ator da Revolução Francesa queria era
reforçar a necessidade da presença dos deuses no organismo político para que ele pudesse ser
legitimado. Essa atitude de Robespierre é tratada pela nossa autora como ridícula, pois para
ela, o que Robespierre buscava com esse seu desespero era um “Legislador Imortal” que fosse
capaz de se constituir como um manancial de justiça, que por meio do qual, as leis do corpo
político derivariam a sua legitimidade.
322
No caso da Revolução Americana, por meio de John
Adans existiu também a tentação a um apelo transcendental. Isso, no momento em que Adans
exigia a adoração a um Ser Supremo, que ele denominou de “o grande Legislador do
Universo.”
323
Hannah Arendt reforça a afirmação de que as atitudes de Robespierre e de John Adans
são equivocadas, porque, segundo ela, nem a Antigüidade romana e nem a grega se
perturbavam com a necessidade de um Ser Supremo no que tange à legitimidade
320
ARENDT. Da Revolução, p. 21.
321
O momento revolucionário rompe com esse aprisionamento do religioso ao político. O evento revolucionário
é a manifestação do imanente político das forças humanas que não apelam para os céus, mas para si mesmas.
Aqui há uma mudança de paradigma que se ampara na pespectiva arendtiana de que mesmo que os Pais
Fundadores tenham voltado suas atenções para o trancendente em busca de um porto seguro para algumas de
suas investidas, uma certeza podemos ter, a saber: no processo de instauração da novidade revolucionária o
homem por si já estava resgatando a sua capacidade de gerir negócios humanos, sem precisar recorrer a um
Ser Superior.
322
ARENDT. Da Revolução, p. 149.
130
indispensável às leis do corpo político. Isso quer dizer que nem a concepção romana de
legislação, nem a grega se valiam do recurso à inspiração divina. Esse tipo de recurso nem
sempre existiu em nossa tradição política ocidental. Ora, nesse caso, um recurso à divindade
no processo de legitimação da legislação inerente ao corpo político pode parecer um
retrocesso, uma vez que a modernidade em curso não poderia ser palco de uma concepção
medieval e que a Antigüidade grega e romana não admitia.
324
Constata-se que, é interessante ressaltar que nem a concepção romana de lex e nem a
concepção grega de legislação eram de origem divina. O sentido original da palavra lex é
“conexão íntima,” pois, refere-se a um relacionamento ou de “algo que vincula duas coisas ou
dois parceiros que foram levados a se unir por força de circunstâncias externas.”
325
A lex não
condizia com um tipo de apoio ao transcendente. A concepção antiga de lex se dava levando
em conta a vinculação entre parceiros, afirmação que nos leva a admitir que para os romanos
a lei partia da criação feita pelos próprios homens.
Mas, apesar de alguns teóricos das Revoluções do século XVIII terem caído na
tentação de se buscar um apelo transcendente que almejasse sancionar o novo corpo político,
para Hannah Arendt, no campo do fenômeno revolucionário “a perda da sanção religiosa na
esfera política é um ato inconteste.”
326
Era a força avassaladora dos homens assumindo o
espaço que antes era ocupado pela sanção de Deus. Essa situação era a revelação do acontecer
do homem no seio de uma humanidade que naquele momento avançava em seu curso
caracterizado pela irreversibilidade.
Dessa maneira, o lugar que antes o Ser Transcendente ocupava para sancionar a esfera
política passa, devido à instauração do processo revolucionário, a ser ocupado pelo próprio
ato de fundação. Em outros termos, coube por meio da fundação revolucionária, a legitimação
323
ARENDT. Da Revolução, p. 149.
324
Ibidem, p. 149.
325
Ibidem, p. 150.
326
Ibidem, p. 157.
131
desse ato por meio dela mesma, pois, é aqui, que a Revolução, enquanto sinônimo de
fundação moderna
327
instaura uma realidade secular no âmbito do domínio político.
Diante dessa afirmação, percebe-se que a Revolução e a secularização apresentam-se
como duas novidades, em cuja relação de aproximação passam a fazer parte da teoria política
pós-medieval. No entendimento de Luca Savarino, secularização e modernidade são
sinônimos, isso porque o surgimento do mundo moderno traz consigo o fim da sanção
religiosa tradicionalmente exercida pela Igreja no que tange a questões políticas. Nesse
sentido, o desaparecimento da autoridade do cristianismo no que se refere às coisas mundanas
recoloca, deste modo, a necessidade de se buscar um espaço de permanência e durabilidade
estritamente secular e mundana.
328
Desde então, evidencia-se a necessidade que temos de
explicitar as implicações da combinação entre os fenômenos da secularização e da Revolução
no que se refere à configuração da Fundação do corpo político no pensamento de Hannah
Arendt.
As Revoluções, ao instaurarem uma realidade política de caráter secular, assim o
fizeram, rompendo uma tradição que unia o poder civil com o poder eclesiástico. A ruptura
dessa antiga união trazida pelas Revoluções instaurou realidades políticas caracterizadas pela
novidade do Estado laico.
329
As Revoluções inauguraram um momento novo na fundação do
327
Fundou-se em meio ao advento da modernidade, um momento político novo, por onde a secularização se fez
através do próprio ato de fundação quando este ocupou o lugar que antes fora do domínio da autoridade
transcendental ou de um legislador universal. O ato de começar nos coloca diante de um ponto onde o retorno
não seria mais possível, pois o homem quando lançado na aventura da fundação coloca-se diante de si mesmo o
desafio da responsabilidade da fonte de autoridade, antes ocupada por um Ser Superior e transcedente. Sobre
isso, observa Luca Savarino: “La modernità è un fatto, un punto di non ritorno che pone il problema de un nuovo
inizio. La perdita della sanzione religiosa in campo político, mentre offre all´uomo moderno nuove posibilità
emancipative, tra cui quella di riassa porare il gusto della libertà política, crea allo spazio d’apparenza deversi
problemi derivanti dall’ instabilità constitutiva a cui questo risulta esposto: ponendosi in modo radicale di fronte
al fallimento della tradizione assolutistica europea, la Arendt ravvisa una possibile via d’uscita dalle aporie della
modernità nel principio scaturito dalla rivoluzione americana. Un principio che richiana la pluralità dello spazio
político e l’atto stesso della fondazione: ‘L’atto stesso di fundazione sarebbe alla fine divenuto la fonte di
autorità nel nuovo stato, e non un Legislatore Immortale o uma verità auto-evidente o qualsiasi altra fonte
trascendente e sovrumana. Ne conseque che è inutile cercare um assoluto per spezzare il circolo vizioso in cui
ogni inizio è inevitabilmente prigioniero, perché questo ‘assoluto’ è insito nell’atto stesso Del cominciare.’”
(SAVARINO. Política ed estética: saggio su Hannah Arendt, p. 104).
328
Ibidem, p. 93.
329
A palavra laico refere-se a leigo, que para os gregos significava laikos, que tem a ver com povo. Leigo no
mundo grego era aquele que não participava de nenhuma elite aristocrática ou sacerdotal. Para a Igreja católica o
132
estado moderno conferindo-lhe natureza laicizante, ou seja, segundo Jorge Dotti “nesse
sentido, o ponto central é que a revolução moderna encontra seu significado como laicização
política do motivo teológico fundacional do Ocidente: a criação ex nihilo.
330
Por isso, a
autora afirma que "de fato é bem possível que no final, acontece que aquilo que chamamos de
revolução seja precisamente aquela fase transitória que dá origem a um mundo novo e
secular."
331
O fenômeno revolucionário marca um ponto alto das manifestações das ações de
autoria meramente humanas. Claudia Druker diz que o problema da fundação sobre bases
imanentes constitui-se como um problema decisivo da modernidade política. Segundo ela,
isso é o que Arendt chama de “problema do começo.”
332
Portanto, o caráter das Revoluções
modernas não se constituía como um movimento vindo dos céus. As manifestações que
impulsionaram o surgimento do fenômeno revolucionário não tinham como base de sua
sustentação ideológica a ênfase na perspectiva de uma ordem transcendental. Entretanto, foi o
caráter secular, ou seja, o movimento meramente humano que se formou como uma mola
mestra para que eclodissem as Revoluções mais marcantes da História Moderna. "Mas se isso
for verdade, então é a própria secularização, e não o conteúdo dos ensinamentos cristãos, que
constitui a origem da revolução."
333
Claudia Drucker também comenta que o pensamento
político de Hannah Arendt é impactado pelo problema da secularização, porque a nossa
leigo é aquele que não foi ordenado para algum tipo de função clerical, seja ela episcopal, presbiteral e diaconal.
Em termos da doutrina católica, leigo é aquele que não participa da hierarquia da Igreja. Durante o período
medieval, a Igreja esteve unida ao poder civil. Sem a união com a Igreja, o Estado é chamado de laico, ou seja,
livre das interferências da religião. Com relação ao propósito do estado laico, observa Rousseau: “Ora, importa
ao Estado que cada cidadão tenha uma religião que faça amar seus deveres; os dogmas dessa religião, porém,
não interessa nem ao Estado nem aos seus membros, a nação ser enquanto se ligam à moral e aos deveres que
aquele que a professa é obrigado a obedecer em relação a outrem.” (ROUSSEAU. Do Contrato Social, p. 240).
330
DOTTI. Arendt y la revolución. In: Revista de cultura, p. 33.
331
ARENDT. Da Revolução, p. 21.
332
DRUCKER. O Destino da tradição revolucionária: auto-compreensão ou impossibilidade ontológica? In:
BIGNOTTO & MORAES. (Orgs.) Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 206.
333
ARENDT. Da Revolução, p. 21.
133
tradição de pensamento político é fruto da fusão da filosofia grega, teologia cristã
334
e poder
secular romano.
335
Em termos arendtianos, o despertar revolucionário, nos trouxe uma nova realidade
política que se caracterizou como uma ruptura com os poderes institucionais da religião cristã.
É nesse sentido que a secularização traz à tona a realização da ruptura do poder político com o
poder religioso.
Esse tipo de ruptura seria impensável em termos de cristandade medieval.
336
Nesse
caso, o que a Idade Média uniu, a Idade Moderna tratou de separar, isto é, de um Estado
confessional passamos a conviver com o Estado laico moderno. Segundo Hannah Arendt, a
secularização teve o seu estágio inicial amparado no absolutismo. Para provar essa afirmação,
Arendt se sustenta na ação desencadeada por Lutero. A esse respeito, ela nos adverte:
O primeiro estágio dessa secularização foi o aparecimento do absolutismo, e não a
Reforma; pois a "revolução" que, segundo Lutero, abala o mundo, quando a palavra de
Deus é libertada da autoridade tradicional da Igreja, é constante e se aplica a todas as
formas de governo secular; não estabelece uma ordem secular, mas, de forma
constante e permanente, abala os fundamentos das instituições mundanas.
337
334
Paidéia é um arcabouço de conhecimentos, que para os gregos podia ser concebida como a totalidade do
processo de formação ou de educação. A Idade Média assinalada pela fusão da Paidéia dos gregos com a
Paidéia cristã, sendo a segunda alicerçada na tradição romana, pois a igreja cristã foi herdeira do Império
Romano. Comentando essa questão, Tiago Lara afirma: “quando os pensadores cristãos tiveram de haver-se com
a filosofia grega, Parmênides, Heráclito, Pitágoras, Sócrates, Platão e Aristóteles eram já personagens do
passado. Suas figuras e suas mensagens continuavam, contudo atuando, através de escolas que, duma maneira ou
de outra, implicitamente, apelavam para esses grandes mestres da sabedoria. Os cristãos não puderam deixar de
conhecê-los e, até impressionar-se com eles.” (LARA. Curso de História da Filosofia: a filosofia nos tempos e
contratempos da cristandade ocidental. In: Caminhos da Razão no Ocidente, p. 17).
335
DRUCKER. O Destino da tradição revolucionária: auto-compreensão ou impossibilidade ontológica? In:
BIGNOTTO & MORAES. (Orgs.) Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 198.
336
Se admitirmos aqui, a concepção arendtiana de que a vontade emerge como ‘mola mestra da ação,’ tal
faculdade humana então assumida à maneira kantiana de poder começar espontaneamente uma série causal
torna-se visível que se trata de uma faculdade humana capaz de lidar com a ruptura. Até porque em se tratando
de ruptura, a noção de progresso é em boa medida uma característica dos tempos da inauguração da era
Moderna. Sobre isso, alerta Hannah Arendt: “Aqui é de se esperar que haja um interesse ainda mais forte do que
no período medieval em um órgão espiritual próprio para futuro, uma vez que o conceito principal e
completamente novo da Era Moderna a noção de Progresso como força que governa a história humana
colocou uma ênfase sem precedentes no futuro.” (ARENDT. The Life of the Mind. Two: Willing, p. 19; A vida do
espírito, p. 201).
337
ARENDT. Da Revolução, p. 21.
134
Pelo exposto acima, percebe-se que a secularização é uma questão que se adequa ou se
aplica a todas as formas de governo que se estabelece sem a tutela de uma religião. Por isso,
ela ganha um terreno a partir da instauração dos governos absolutistas. O momento do
aparecimento do Luteranismo é simultâneo à formação dos Estados Nacionais europeus. As
teses luteranas correspondem bem a esse momento histórico. A fundação do Estado Moderno
provoca diferença na relação entre Estado e Igreja, diferentemente do que ocorria na Idade
Média. Lutero, enquanto fundador de uma nova Igreja, constitui-se como um ator importante
para uma análise que gira em torno da relação entre Igreja e o mundo da política. O
luteranismo constitui-se como uma importante fonte de contribuição para a análise da relação
entre religião e política no contexto do fenômeno revolucionário moderno, sobretudo, quando
este é visto como um momento de fundação de um novo corpo político.
Referindo-se a essa questão, Claudia Druker afirma que o problema apontado por
Hannah Arendt em sua obra Sobre a Revolução, funda-se na concepção de que a
modernidade política envolve um problema novo e específico. A especificidade e a novidade
inerentes a esse problema consistem em compreender como a fundação do corpo político
torna-se possível sem que aja apelo a um fundamento de natureza transcendente.
338
A
separação entre Igreja e política é uma questão moderna,
339
visto que ela aconteceu em meio a
outras descobertas, como explica Arendt:
No limiar da era moderna três grandes eventos que lhe determinaram o caráter: a
descoberta da América e a subsequente exploração de toda a Terra; a Reforma que,
expropriando as propriedades eclesiástica e monástica, desencadeou duplo processo de
expropriação individual e acúmulo de riqueza social e a invenção do telescópio,
338
DRUCKER. O Destino da tradição revolucionária: auto-compreensão ou impossibilidade ontológica? In:
BIGNOTTO & MORAIS. (Orgs.) Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 202.
339
A secularização inaugurou a laicidade do novo corpo político implantado por via das Revoluções. A fundação
do Estado laico por si é a expressão da novidade. O Estado laico possui natureza desprovida do amparo de um
Ser Superior. As religiões sempre se apoiaram em instituições para sobreviveram ao longo do tempo. O difícil
era imaginar no período pré-revolucionário que essas instituições pudessem sobreviver longe da aliança com as
organizações políticas de caráter civil. Era como se a instutição religiosa respaldasse o poder político temporal
com a trancendência ligada aos céus.
135
ensejando o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra
do ponto de vista do universo.
340
Nesse contexto, aplica-se a observação feita pela autora de que Martinho Lutero, por
ter se tornado eventualmente o fundador de uma nova Igreja, poderia ter sido
reconhecidamente incluído entre os grandes fundadores da História.
341
É considerável que, ao
fundar uma nova Igreja, Lutero tinha se colocado como o autor cuja realidade de sua ação é a
de ruptura. Nesse caso, a ruptura se deu no seio da cristandade. A autoridade da Igreja
Romana, a partir da ação fundadora encaminhada por Lutero, foi negada abrindo o território
para a criação de problemas inerentes à relação entre autoridade e tradição. Mas com isso,
Hannah Arendt não quer negar que a dissolução do elo entre autoridade e a tradição, que
Lutero havia possibilitado, bem como sua tentativa de basear a autoridade na própria palavra
divina ao invés de apoiá-la na tradição, teria contribuído para o enfraquecimento da
autoridade na Idade Moderna.
342
Por conseguinte temos na ação de Lutero a evidência de que foi o seu ato de fundar
uma nova Igreja que deu à sua obra um destaque novo, marcado consideravelmente pela
ruptura com a tradição eclesial romana.
343
Em outros termos, isso, por si só, sem a fundação
de uma nova Igreja, teria continuado ineficaz.
344
É o ato fundador que, por meio da criação
de uma nova Igreja, conferiu a ruptura com a tradição católica romana. Seria o mesmo que
340
ARENDT. The Human Condition, p. 248; A Condição Humana, p. 260.
341
ARENDT. Da Revolução, p. 21.
342
Ibidem, p. 21.
343
Essa ruptura deu-se de uma maneira que Lutero criou uma outra instituição eclesial com modificações em sua
estrutura organizacional e sacramental, isso quando comparado à ortodoxia da Igreja católica romana. A esse
respeito, salienta o historiador da Igreja Pierre Pierrard: “O manifesto à Nobreza Alemã (agosto de 1520), apesar
de seu título, é um apelo a outros cristãos: às pretensões dominadoras e Roma – ‘à rubia prostituta da Babilônia’-
, ele opõe o sacerdócio universal dos cristãos; ao mesmo tempo, reclama a reforma da cúria e a supressão do
celibato eclesiástico, lembrando que a ‘verdadeira reformação deve se fazer no coração’ do homem. No pequeno
tratado Da Liberdade cristã (outubro), Lutero define a Igreja como uma igreja invisível, da qual fazem parte
aqueles que vivem da verdadeira fé; à autoridade da Igreja, fundada na Escritura e na Tradição, ele opõe a
autoridade da escritura. É em um latim destinado aos teólogos que O cativeiro da babilônia (outubro) esboça
uma doutrina dos sacramentos; deles, Lutero mantém o batismo, a ceia, a rigor, a penitência, critica a missa e
a transubstanciação, reclama a comunhão sob duas espécies e opõe a sagrada Escritura à ação automática dos
sacramentos.” (PIERRARD. História da Igreja, p. 172).
344
ARENDT. Da Revolução, p. 21.
136
dizer que os feitos de Lutero não teriam tido a importância que tiveram, caso o ato de fundar
uma nova Igreja não tivesse sido estabelecido. Pois, para Hannah Arendt, a contribuição do
Luteranismo com o enfraquecimento da autoridade na Idade Moderna e a conseqüente ruptura
com a tradição, contribuíram em boa medida, para o surgimento de um ambiente que fosse
propício ao estabelecimento do novo. A fundação de uma nova Igreja possibilitou a quebra do
monopólio católico firmado na autoridade. A esse respeito, diz a autora:
Mas isso, por si só, sem a fundação de uma nova igreja, teria continuado tão ineficaz
como as expectativas e especulações escatológicas da baixa Idade Média, de Joaquim
de Fiore ao Reformatio Sigismundi. Tem sido sugerido recentemente que esses últimos
podem ser considerados precursores um tanto inocentes de ideologias modernas,
embora eu duvide disso; da mesma maneira, os movimentos escatológicos da Idade
Média podem ser vistos como os precursores das modernas histórias de massa.
345
Lutero teria sido bem sucedido por ter criado novas realidades eclesiais, que
conseqüentemente teve influências no campo político, principalmente no que diz respeito a
um estágio inicial do processo de secularização. O importante para os propósitos da nossa
pesquisa é que a análise da relação entre secularização e Revolução baseia-se na perspectiva
de que tal relação reflete, ou seja, influencia na configuração de um novo corpo político. Por
esse ponto de vista, o corpo político do fenômeno revolucionário é então constituído por
características seculares.
Uma característica também importante da modernidade secularizada é a invenção do
telescópio que, para Hannah Arendt, desencadeou o desenvolvimento de uma nova ciência.
Ao considerar a natureza da Terra sob o ponto de vista do universo, as abordagens feitas por
Hannah Arendt a respeito da invenção do telescópio, desmistificam e desmontam todo o
arcabouço medieval geocêntrico que dava à teologia o caráter de “ciência altior” em relação
às demais ciências. O telescópio na visão arendtiana deu poderes ao homem na interpretação
do Universo. A partir do momento em que o homem passou a ser o ator das investigações em
137
torno da Terra e do Universo, as teses teológicas decaíram e a possibilidade do secularismo se
ascendeu. O importante nas análises de Arendt é que o secularismo trouxe contribuições
novas para a História Moderna.
346
A contribuição da secularização para o campo do desencadeamento das Revoluções se
traduz em um momento novo na História, pois, esse momento se fez por causa daqueles que
se lançaram na aventura de fundar novas realidades políticas caracterizadas pela ausência de
intromissão de assuntos da religião oficial no âmbito do novo corpo político. Pois, nessa
perspectiva, a nova realidade política não se encontrava prisioneira do poder das
instituições religiosas. Ora, o novo no contexto da modernidade como não se podia mais se
dar em nome de Deus, como princípio, ou por Ele, foi se afirmando cada vez mais em nome
dos próprios homens.
Em outras palavras, trata-se de um momento da História em que o poder religioso
não seria mais um empecilho para que a fundação de um novo corpo político secularizado se
concretizasse, pois o homem por si só já estava resgatando a sua capacidade de gerir negócios
humanos, sem precisar recorrer a um Ser Superior.
Percebe-se por meio das análises encaminhadas por Hannah Arendt que, na relação
Revolução e secularização é importante destacar as tensões entre as ações de Robespierre e os
pontos de vistas defendidos pela nossa autora. O tema da Revolução e sua conseqüente,
fundação de um novo corpo político tratado por Arendt na sua relação com a secularização
revela as tensões que surgem entre religião e política, marcando a dificuldade do
estabelecimento de uma fundação que se apresenta exclusivamente como obra dos homens.
Tais tensões são demonstradas, sobretudo quando Ropespierre insiste na necessidade
345
ARENDT. Da Revolução, p. 21.
346
Nessa perspectiva adverte Jorge Dotti: A medida que la modernidad socava el sentido de la trascendencia
cresce em los hombres la responsabilidad de tener que crear un orden conforme a lo que sus consciencias
individuales les dicen ser lo racional y lo justo; crear un orden a través de cambios revolucionarios que aceleran
la marcha de la historia hacia esa meta de redención y bienaventuranza, pero ahora immanente y mundana.”
(DOTTI. Arendt y la revolución. In: Revista de cultura, p. 34).
138
desesperada de colocar deuses no organismo político e no momento em que Arendt realça o
fracasso desse ator da Revolução Francesa, quando o mesmo insiste nessa tentativa.
347
A tópica da fundação implica em analisar questões que são inerentes à legimização
daquilo que por hora está sendo iniciado. É por isso que nesse momento, o problema do
absoluto vem à tona, por ser algo que se apresenta acima das leis e dos homens. O absoluto
nos aparece como uma força transcendental capaz de assegurar a legitimação dos assuntos
humanos, por esse motivo, recorrer a ele constitui-se como uma grande hesitação por parte
dos homens. Pais fundadores de ambas as Revoluções dos dois lados do Atlântico não
conseguiram se livrar dessa hesitação.
Arendt diz que quando Robespierre assumiu a tentativa de encontrar um culto
inteiramente novo, ou seja, um culto a um Ser Supremo, na ocasião, pareceu que o objetivo
principal desse culto era colocar freio na Revolução, devido ao fato dela ter se tornado
incontrolável.
348
Como justificar essa postura de Robespierre, se por um lado, as Revoluções
da Idade Moderna pressuporam a derrocada propriamente dita das crenças religiosas, e por
outro, se torna evidente que a busca de um absoluto para legitimar o novo corpo político
demonstram uma atitude que tomou conta de alguns Pais Fundadores?
A atitude de Robespierre e de outros atores revolucionários, demonstra o quanto não
se constitui como uma tarefa fácil a fundação de um novo corpo político sob bases imanentes.
As Revoluções demonstraram a capacidade do homem em definir fronteiras entre as esferas
da religião e da política. Mas isso não ocorreu sem tensões e sem paradoxos. De acordo com
Arendt, nem mesmo os próprios homens “iluminados” do século XVIII se livraram da atitude
de advogar alguma espécie de sansão religiosa à fundação.
349
É paradoxal a convivência entre
o Iluminismo e a união entre política e religião. Mas o que define que a secularização se
consolidou com o advento das Revoluções, foi o fato da política ter se separado da religião.
347
ARENDT. Da Revolução, p. 148.
348
Ibidem, p. 148.
139
Hannah Arendt realça que na modernidade “a perda da sansão religiosa na esfera política é
um fato inconteste.”
350
Por isso, a atitude de voltar aos assuntos religiosos para a legitimação
da política, como foi a de Ropesbierre, não se justifica diante das análises de Arendt.
A fundação de um novo corpo político ocorrida com o advento das Revoluções,
reforça o caráter secular no domínio dos assuntos públicos que se consolidou através da
separação entre religião e política. As novas realidades políticas fundadas nos dois lados do
Atlântico valeram-se das lendas fundadoras da Antigüidade clássica e se constituiram por
meio de características que as diferenciaram e as assemelharam uma das outras. Trataremos
desse assunto no próximo capítulo.
349
ARENDT. Da Revolução, p. 149.
140
CAPÍTULO III
A Fundação do corpo politico no âmbito das Revoluções
Arendt too sees that the decline of tradition offers “the
great chance to look upon the past with eyes unditracted
by any tradicion, with a directness which has disappered”
sice the demise of the ancient Greeks.
By Jeffrey C. Isaac
351
Abordamos nos dois capítulos anteriores o papel a ser desempenhado pela categoria da
natalidade como possibilidade de um novo começo na História e o sentido da Revolução
como a concretização desse novo começo. Por isso, esses dois capítulos iniciais se
caracterizaram como um momento relevante para contribuir com a análise acerca da
relevância da fundação do corpo político no pensamento de Hannah Arendt.
Portanto, o nosso principal objetivo nesse terceiro capítulo, é trabalhar por meio de
análises específicas, a explicitação da questão da fundação do corpo político no âmbito da
experiência das Revoluções Americana e Francesa. Para isso, abordaremos a investida
arendtiana a respeito do recurso feito pelos homens das Revoluções às tradições hebraica,
grega e romana
352
e trataremos também sobre as diferenças e semelhanças existentes no
processo de fundação do corpo político, ocorrido no seio das duas Revoluções.
350
Ibidem, p. 157.
351
ISAAC. Arendt Camus, and Modern rebellion, 106.
352
Sylvie Courtine-Denamy nos adverte: “Lembremo-nos de que as experiências fundamentais do político no
Ocidente, ‘a polis, a re publica e o exílio (Moisés), promoveram um certo número de virtudes políticas
fundamentais: a distinção entre o espaço público e o privado, o princípio do Estado de direito, a polis como um
governo de leis e não de homens, a liberdade e a igualdade como fundamentos da democracia moderna, a noção
de sujeito de direito, a de contrato, o princípio de poupar os vencidos e de comutar a pena de morte, o de
141
3.1 O Recurso dos “Pais Fundadores” às Tradições Hebraica, Grega e Romana
A influência que a Antiguidade clássica teve na História do pensamento e da práxis da
política ocidental é bastante visível nas análises encaminhadas por Hannah Arendt. Por isso,
ela observa que “é bem provável que cheguemos à conclusão de que, sem esse exemplo
clássico a cintilar através dos séculos, nenhum dos homens das Revoluções, em ambos os
lados do Atlântico, teriam tido a coragem de empreender aquilo que resultou ser um feito sem
precedentes.”
353
Em outras palavras, em termos arendtianos, a novidade do fenômeno
revolucionário, para que fosse de fato um evento sem precedentes na História, dependeu do
recurso aos feitos políticos ocorridos na Antigüidade clássica.
Considerando pois, que a fundação é para Hannah Arendt o próprio evento de uma
Revolução, faz-se necessário preocupar-se com dois elementos que, à primeira vista, nos
parecem irreconciliáveis e contraditórios. Trata-se dos elementos estabilidade e inovação.
Possibilitar a durabilidade da novidade que foi inaugurada é uma tarefa que norteia o papel da
fundação de novas realidades políticas. Logo, tanto a prática, quanto a teoria política,
vivenciadas e acumuladas pela tradição ocidental constituem-se como elementos necessários
aos vislumbres tidos pelos Pais Fundadores. É nesse sentido, que percebemos o quanto o
vocabulário político precisa ser amparado em experiências passadas. Por isso, para Hannah
Arendt “não é, de forma alguma, irrelevante que o nosso vocabulário político remonte à
Antiguidade Clássica greco-latina, ou possa ser inequivocadamente identificado nas
Revoluções do século XVIII.”
354
cidadania universal apesar de seu caráter oligárquico na prática romana -, a resistência, a tentativa de criar
novos valores sociais fundados na justiça e a normalização de um povo disperso e oprimido em um Estado
independente.” (COURTINE-DENAMY. O Cuidado com o Mundo: Diálogo entre Hannah Arendt e alguns de
seus contemporâneos, p. 128 e 129).
353
ARENDT. Da Revolução, p. 158.
354
Ibidem, p. 178.
142
Evidencia-se que o recurso à tradição de pensamento político vivenciada na
Antigüidade foi uma das atitudes assumidas pelos Pais Fundadores, quando esses se
depararam com a necessidade de fundar novas realidades políticas. Hannah Arendt sustenta
em várias de suas análises sobre o fenômeno revolucionário, a necessidade que os homens das
Revoluções Francesa e Americana tiveram de recorrer às tradições hebraica, grega e romana.
É bastante conhecido o quanto os chamados Pais Fundadores se orgulhavam de buscar
amparo teórico e prático no passado. Eles sentiam com agudeza a novidade apresentada por
meio do empreendimento do processo de Fundação por haverem aplicado com ousadia e sem
preconceito, o que na verdade, já era conhecido pela História e havia sido aplicado no
passado.
355
Bernard Bailyn também demonstra em suas análises a relevância das inúmeras fontes
e tradições que fundamentam a teoria da Revolução norte-americana. Para ele, as fontes da
visão de mundo assumida pelos colonos, foram expressas em documentos formais e
informais, em declarações de natureza particular e pública, bem como em panfletos
explanatórios e discursivos. Essas fontes, revelam-se à primeira vista, um ecletismo
apresentado de maneira geral e indiscriminada. Tais fontes se caracterizam por essas
generalidades que lhe eram próprias e eram demonstradas a partir de uma enumeração das
citações daquilo que os colonos tinham em mãos. Os colonos utilizaram grande porção da
cultura ocidental (de Aristóteles a Moliére, de Cícero a “Philoleutherus Lipsiensis” [Richard
Bentley], de Virgílio a Shakeespeare, Ramus, Pufedeorf, Swift e Rousseau).
356
De acordo com Gordon Wood, o interesse apresentado pelos pais fundadores para
com as bases sociais e morais das antigas Repúblicas foi crucial para atender as exigências do
355
ARENDT. Da Revolução, p. 97.
356
BAILYN. As origens ideológicas da Revolução Americana, p. 42.
143
momento da fundação em terras americanas. O mundo clássico foi fonte de inspiração e de
conhecimento para o esclarecimento da política desde Maquiavel.
357
Essa investida dos homens das Revoluções ocorrida tanto nos Estados Unidos da
América, quanto na França no sentido de remontar à tradição política da Antiguidade,
contribuiu sem dúvida para uma fundamentação teórica que se faz em torno do momento
extraordinário da ação fundadora.
Referindo-se ao ocorrido na França, Arendt se volta para os chamados hommes de
lettres para se dirigir àqueles que possuíam um acúmulo de teoria política que foi se
condensando a partir de experiências do passado. Esses hommes de lettres haviam aprendido
com o estudo e com a reflexão a considerar relevante o conteúdo da tradição política grega e
romana. É por esse motivo, que eles se voltaram, propositalmente, para o estudo trilhado por
autores gregos e romanos.
De acordo com o comentário de Franco Venturi os philosophes, os girondinos e os
jacobinos se voltaram para Camilo e para Brutus justamente porque na História dos franceses
havia pouco ou nada que pudesse servir de referência para aqueles que se dispuseram a criar
novas realidades políticas. O que eles buscavam com essas referências ao passado, era algo
que pudesse servir de modelo e de inspiração republicana. Por isso, eles tentaram repensar no
passado das cidades medievais e em Etienne Maciel, buscando na liberdade de seus
antepassados francos. Eles seguiam desejando, contudo, procurar não somente exemplos de
virtude, mas também formas de organização e de constituição livres. Tiveram eles que
recorrer às referências do passado de Atenas e de Roma. Pois, somente o modelo clássico
podia aos olhos dos fundadores, assumir a grandiosidade e o vigor de um mito.
358
No que diz respeito ao recurso dos Pais Fundadores ao passado, o que ocorreu no
Novo Mundo foi que no dizer de Bernard Bailyn, em relação aos homens da Revolução
357
WOOD. The Creation of the American Republic, 1776 – 1789, p. 50.
358
VENTURI. Utopia e Reforma no Iluminismo, p. 53 - 54.
144
Americana, constatou-se que “... a influência mais notória nos escritos do período
revolucionário foi a da Antigüidade Clássica. O conhecimento dos autores clássicos era
universal entre os colonos com algum grau de educação e referências a eles e às suas obras
são abundantes na literatura.”
359
Apesar desse recurso assumido pelos habitantes do Novo
Mundo ao período clássico, Bailyn salienta a respeito da superficialidade que lhe era inerente,
ou seja, a exibição de autores clássicos feita pelos colonos americanos não passava de ilusão.
Isso porque, freqüentemente, o que se aprendia dessas citações era algo de superficial. Baylin
nos diz que vários exemplos que comprovam essa superficialidade presente nos colonos
quando o assunto se dirige aos textos clássicos. Locke, embora seja citado com freqüência em
pontos referentes à teoria política, é também tratado por muitas vezes de maneira descuidada.
Esse tratamento caracterizado pelo descuido apresentava-se como se fosse possível por parte
dos colonos recorrer à teoria de Locke para sustentar qualquer coisa. Baylin também nos
lembra que autores como Bolingbroke e Hume são às vezes misturados com reformadores de
tendência radical. Nesse caso, figuras consideradas secundárias como Burlamaqui recebem o
mesmo tratamento que Locke.
360
Ora, as citações se apresentavam como introduzidas fora de propósito. Parecia que a
finalidade dessas citações não passava de uma “decoração de vitrine com a qual ornamentava-
se uma página ou um discurso para comentar o peso de um argumento.”
361
Para esse estudioso
da Revolução Americana, é importante considerar que o que os colonos extraíram em termos
de citações referentes à literatura do mundo antigo, era aquilo que compreendia uma época e
um pequeno grupo de escritores. Seus conhecimentos específicos e interesse pessoal se
limitavam a essa época e a esses escritores.
362
359
BAYLIN. As origens ideológicas da Revolução Americana, p. 42.
360
Ibidem, p. 46.
361
BAYLIN. As origens ideológicas da revolução Americana, p. 43.
362
Ibidem, p. 43.
145
Mas, mesmo Franco Venturi que é um autor que destaca em suas análises a respeito
do iluminismo em termos de influência para a fundação republicana do século XVIII, não
deixa de afirmar que “... quando se fala da tradição republicana e da importância que ela teve
na formação das idéias políticas do século XVIII, o pensamento corre logo para a
Antigüidade, para os grandes exemplos de Atenas e de Roma.”
363
Nesse caso, a literatura a
que os colonos recorreram possui sua importância, enquanto ela se apresenta como um
recurso a uma tradição clássica, na medida em que ela serve de guia para as suas ações. E, é
isso o que interessa para a explicitação dos propósitos apresentados por Hannah Arendt
referentes ao momento extraordinário do estabelecimento da fundação de um novo corpo
político.
Evidencia-se, que o recurso à Antigüidade utilizado pelos homens das Revoluções do
século XVIII foi decisivo para a sustentação do conteúdo teórico e prático do propósito que
eles tinham de conceber para as instituições políticas que desejavam criar.
364
Isso, por causa
do testemunho que esse tipo de literatura podia oferecer, ou seja, a leitura dos antigos gregos e
romanos, consistia em um tipo de pesquisa que servia para oferecer elementos concretos
capazes de o fazerem idealizar e almejar a liberdade política.
365
Ora, o ato de recorrer ao
passado das fundações antigas se justifica pelas palavras de Newton Bignotto, quando o
mesmo afirma: “O tema da fundação é de toda evidência capital em toda a filosofia política
antiga.”
366
363
VENTURI. Utopia e Reforma no Iluminismo, p. 53.
364
Para Hannah Arendt, o momentum de preparação para um começo inteiramente novo, a novus ordo saeclorum
forçou os homens de ação a vasculharem os arquivos da Antiguidade romana em busca de um instrumento que
pudesse guiá-los para o estabelecimento de uma República, que para eles se traduzia em um governo de “leis e
não de homens.” Para que isso se efetivasse, eles precisavam familiarizar-se com a arte da fundação, ou seja,
necessitavam aprender como lidar com as perplexidades inerentes a todo começo. Nesse caso, o recurso à
Antigüidade clássica foi o caminho que os homens de ação das Revoluções encontraram para aprender a lidar
com a arte da fundação. Diante do desafio que a novidade impôs a todos, eles estavam conscientes da
espontaneidade do ato da ação livre. (ARENDT. The life of the Mind, p. 211; A vida do espirito, p. 343).
365
ARENDT. Da Revolução, p. 88 – 89.
366
BIGNOTTO. O Tirano e a Cidade, p. 103.
146
O nosso propósito nessa terceira parte de nossa pesquisa é o de tratar do apelo ao
passado que foi uma atitude assumida por aqueles que apostaram na tarefa da fundação no
âmbito das Revoluções Americana e Francesa.
367
Em se tratando de fundação do corpo
político nesse contexto, Arendt destaca em suas abordagens o que poderíamos talvez chamar
de recurso à herança tríade da fundação, a saber: Hebraica, grega e romana. José Eisenberg se
refere a esse recurso arendtiano salientando que o tom saudoso com que a autora fala da polis
grega, de Roma, e dos pais da Revolução Americana, não pode ser interpretado como uma
atitude nostálgica ou como busca por um tempo que se perdeu. É do conhecimento de
Arendt, que o passado não é recuperável, portanto, o que ela deseja é sempre um retorno dos
homens do presente às virtudes cívica e política que periodicamente se manifestam nos feitos
de grandes homens do passado. Enfim, os homens conseguem escapar da História, caso
eles consigam escrever a sua própria.
368
Embora o recurso à tradição se ampare em toda a
tríade: hebraica, grega e romana, é esta última a que mais contribuiu com a tópica relativa à
criação de novas realidades políticas. O nosso interesse aqui é demonstrar como Hannah
Arendt trata da influência dessa herança tríade no campo da fundação do corpo político no
âmbito das Revoluções Francesa e Norte-Americana.
Por isso, nas linhas que se seguem, vamos abordar em um primeiro momento como o
fenômeno das Revoluções, naquilo que tange à tópica da fundação foi influenciado segundo
Arendt, pela tradição hebraico-cristã. Posteriormente, trabalharemos a influência do recurso
aos gregos. Em seguida, abordaremos a respeito dos reflexos deixados pela tradição romana
367
Leonardo Avritzer se refere ao itinerário de Hannah Arendt que a levou à experiência da Grécia e de Roma
voltadas para o os conceitos de ação e fundação. Esse comentador de Arendt, assim se manifesta: “No primeiro
caso, Hannah Arendt vai a Atenas para buscar, no conceito de ação utilizado pelos gregos, o fundamento de um
conceito de política e de público. Nesse empreendimento, como é sabido, Arendt rompe não apenas com os
modernos, mas também com a visão da política dos principais pensadores do mundo helênico, em particular
Aristóteles e Platão (Villa, 1996). No segundo caso, Hannah Arendt vai a Roma para tentar resgatar, nas obras de
Virgílio e Cícero, um conceito de autoridade que explique a facilidade da conquista do coração das massas
modernas pelo totalitarismo e apontar a quebra nas sociedades modernas de uma dimensão intermediária de
autoridade que permitiria ao Estado totalitário relacionar-se diretamente com as massas.” (AVRITZER. Ação,
Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. In: Lua Nova, número 68: p. 148).
147
na tarefa de fundação encaminhada pelos fundadores do corpo político nas Revoluções do
século XVIII.
O universo mental dos colonizadores da América do Norte estava povoado pelas
doutrinas judaico-cristãs, ou seja, esse tipo de tradição religiosa refletiu de maneira que, de
acordo com Arendt, “as reações mentais dos homens das Revoluções pudessem ainda estar
dominadas pela tradição judaico-cristã.”
369
Tratava-se de uma religião que trouxera para a
América toda uma tradição milenar de herança judaico-cristã que inevitavelmente teve as suas
implicações na fundação da nova realidade política. Um dos elementos que norteou a tradição
hebraica foi a liberdade almejada pelo povo e que se constituiu como o sonho que ao se
realizar poria fim à opressão vivida no Egito.
A familiaridade dos fundadores da República norte americana com a Antiguidade
bíblica,
370
fez com que eles se sentissem como conquistadores de uma nova liberdade. No
momento em que esses conquistadores se deparavam com a necessidade de fundar um novo
corpo político, enquanto novos habitantes da América do Norte que então iam se constituindo
como nação, tiveram eles que vasculhar os arquivos da História à procura de amparo. Para
tanto, resolveram se lançar à procura de ajuda recorrendo às lendas bíblicas centralizando suas
atenções no universo do Pentateuco.
371
Os Pais Fundadores ficaram motivados em recorrer à
368
CAVALCANTE. Hannah Arendt em companhia dos historiadores. In: BIGNOTTO & MORAES (Orgs.).
Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memória. p. 173.
369
ARENDT. Da Revolução, p. 165.
370
No que se refere à tradição judaico-cristã, a mesma foi se consolidando desde o prolongamento de seus
princípios contidos no triunfo da Igreja Católica no início da Idade Média. O catolicismo romano por ter
conduzido de maneira hegemônica, a ação dos homens daquele contexto, protagonizou no ocidente, esse tipo de
tradição. A Europa cristã abasteceu-se da fonte hebraica, uma vez que o cristianismo é uma tradição que se
constitui como um ramo do Judaísmo por ele manter um liame do Novo Testamento bíblico com o Antigo
Testamento. Se a cultura política da Antiguidade Grega e Romana contribuiu em grande medida com a nossa
tradição de pensamento político ocidental, não temos como ignorar que em boa medida, o cristianismo que foi
um dos fatores responsáveis pela constituição do Império Romano, também influenciou o modo de pensar e o
modus vivendi do povo europeu.
371
A respeito das referências que Arendt faz ao Pentateuco, diz Sylvie Courtine-Denamy: “É raro que Arendt
faça referência ao Pentateuco. Numa passagem de A Condição Humana, contenta-se em sublinhar o fato de que,
no Antigo Testamento, ao contrário da Antiqüidade clássica, a vida era sagrada. Nem o trabalho nem a morte
eram considerados como males e os patriarcas não de preocupavam em absoluto com a imortalidade terrestre
individual ou com a imortalidade da alma.” (COURTINE-DENAMY. O Cuidado com o Mundo: diálogo entre
Hannah Arendt e alguns de seus contemporâneos, p.117).
148
narrativa bíblica do Pentateuco na tentativa de buscar a solução para um problema – o
problema do começo. Pois é para esse problema que a questão da fundação se direciona, ou
seja, fundar algo é ter que se apresentar diante dos desafios que são inerentes à tópica
referente ao começo.
Os imigrantes que vieram da Europa e, conseqüentemente, formaram os Estados
Unidos da América, trouxeram consigo a herança da formação cristã de cunho protestante.
Puritanos
372
em sua grande maioria, eles colonizaram a América e trouxeram as verdades da
cristã caracterizada pela influência hebraica. Por esse motivo, não possibilidade de
pensar o Cristianismo sem admitir o Judaísmo, pois o Cristo, o Messias almejado por muitos
anos, era uma esperança dos filhos de Israel. Nesse caso, Cristo para os cristãos, é o
cumprimento da promessa do Deus dos Hebreus que por meio dele se fez presente no meio
dos homens.
373
Portanto, falar do nascimento de Cristo é acreditar que essa foi a esperança de
um povo que teria se constituído, principalmente a partir de sua fixação na Terra Prometida,
após terem vivido por muitos anos como escravos no Egito.
Dessa maneira, a História dos caminhos trilhados pelo povo de Israel, isto é, pelos
hebreus, conseqüentemente, serve de amparo para a questão da Fundação, quando esta passa a
ser tratada pelos habitantes da América do Norte no contexto da eclosão da Revolução
Americana. Como normalmente acontece com todos os tipos de religião e seus seguidores os
colonos trouxeram consigo os princípios doutrinários capazes de influenciar assuntos e ações
referentes ao campo da esfera pública.
372
O puritanismo possui também a denominação de pietismo. Sobre isso, observa Max Weber: “Quase todos os
principais representantes do puritanismo foram classificados de pietistas. É mesmo bastante legítimo considerar-
se toda a conexão entre a predestinação e a doutrina da prova, como seu fundamental interesse pela obtenção da
certitudo salutis.” (WEBER. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, p. 90).
373
O Evangelho de Lucas registra a confirmação de que o nascimento de Cristo constitui-se como a
concretização de uma espera longa por um Messias. O cumprimento dessa promessa ao povo de Israel é
anunciado da seguinte maneira: “Nasceu-vos hoje um salvador, que é o Cristo Senhor, na cidade de Davi. Isto
vos servirá de sinal: encontrareis um recém- nascido envolto em faixas deitado numa manjedoura” (Lucas, cap.
2, 11-12. In: Bíblia de Jerusalém).
149
Os colonos da América do Norte, sendo, em sua maioria, cristãos puritanos,
cultivaram no espaço do Novo Mundo a sua no Velho Testamento, e por isso, acreditavam
ser ele um “instrumento capaz de explicar quase todas as relações do homem com o homem, e
do homem com Deus.”
374
Portanto, as relações homem e trabalho, homem e comunidade,
homem e família consistiam em se manterem fielmente ligados com a presença de Deus.
Assim, Deus, em termos da fé hebraico-cristã, estava presente na construção do Novo Mundo.
Logo, a convicção religiosa daqueles que migraram para a América do Norte, ao se pautarem
na crença de que começar a vida do outro lado do Atlântico era como se fosse a fundação de
uma Nova Israel. Os sentidos que norteavam o imaginário desses fundadores era os de
transpor o que seria a crença na fundação da Nova Israel para a fundação da Nova Inglaterra.
A Israel das narrativas bíblicas configuradas na Terra Prometida
375
e que foi conquistada
pelos hebreus sob a liderança de Moisés, passou a ser para os imigrantes que saíram da Grã-
Bretanha o que se constituiu como as Treze Colônias da América do Norte. Nessa
perspectiva, a fundação das Treze Colônias passou a ser vista como se ela fosse a fundação de
uma Nova Israel, com o diferencial de que naquele momento, ela estava acontecendo em
terras americanas.
Em se tratando da manifestação de uma fé, capaz de ser traduzida em obediência,
compreende-se analogicamente que se o povo de Israel uma vez que tendo se comportado
como um povo obediente ao seu Deus, assim também, da mesma maneira, foram os habitantes
das Treze Colônias em relação à crença cristã de tradição puritana. Em termos arendtianos, os
colonos sustentaram os seus acordos bíblicos convencidos de que havia um pacto entre Deus e
374
ARENDT. Da Revolução, p. 137.
375
O livro do Êxodo se refere a essa Terra Prometida, da seguinte maneira: “Iahweh disse: ‘Eu vi, eu vi a
miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas
angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra boa e vasta,
terra que mana leite e mel...’” (EX, Cap. 3, 7-8. In: Bíblia de Jerusalém).
150
Israel.
376
É por meio dessa linha de interpretação que se tornou plausível admitir que havia
também um pacto selado entre Deus e os colonos do Novo Mundo.
É importante destacar que, apesar da forte influência da religião cristã na vida dos
novos habitantes do Novo Mundo, a escolha pela fundação de um novo corpo político acabou
por se constituir como um evento de natureza secular. Mesmo assim, Arendt adverte a
respeito do problema apresentado pelos homens das Revoluções no sentido de se buscar um
absoluto para justificar a legitimidade da nova realidade política. Em meio às muitas
discussões que nortearam o processo de Fundação do corpo político tanto na França como nos
Estados Unidos, o problema do absoluto
377
se fez presente. Sobre isso, adverte Hannah
Arendt:
Essa parece ser a razão pela qual os homens que eram “esclarecidos” demais para
acreditar no Deus-Criador hebraico-cristão se voltaram com rara unanimidade para
uma linguagem pseudo-religiosa quando tiveram de lidar como problema da
fundação como o começo de uma “nova ordem das eras”. Temos o “apelo a Deus no
céu”, que Locke considerava necessário a todos aqueles que se engajaram na
novidade de uma comunidade que emergia do “estado de natureza”, temos “as leis da
natureza e o Deus da natureza” de Jefferson; o grande Legislador do universo” de
John Adams e o “legislador imortal” de Robespierre, seu culto a um “Ser
supremo.”
378
Percebe-se que houve por parte dos Pais Fundadores uma espécie de hesitação em
buscar apoio transcendente para que o corpo político fosse legitimado. Era a necessidade de se
ter uma força superior que pudesse respaldar o ato de fundação. Mas o espírito político
secular da modernidade prevaleceu até mesmo no mundo puritano dos colonos da América do
Norte. Arendt destaca que em se tratando de secularização do mundo e mundanismo dos
homens, em qualquer época “podem ser mais bem aquilatados pela intensidade com que a
376
ARENDT. Da Revolução, p. 138.
377
Tratamos desse problema no capítulo anterior. A diferença é que nesse momento, nossa atenção à questão do
absoluto é no sentido de abordá-lo sob o prisma do recurso que os Pais fundadores fizeram a uma tradição de
caráter religioso a tradição hebraico-cristã. Anteriormente o nosso foco se fez voltado para a relação entre
Revolução e secularização, no qual o problema do Estado laico foi apresentado como um dos aspectos que
151
preocupação do futuro do mundo se sobrepõe, nas mentes humanas, às preocupações como
seu próprio destino final, numa vida futura.”
379
Se esses colonos não estavam envolvidos com os dogmas da perspectiva medieval que
excluía do homem a sua crença no seu próprio destino político, então, aceitar que o futuro
político depende da ação humana é aderir-se a um tipo de comportamento que é próprio da
modernidade. Nesse sentido, os colonos se enquadraram na modernidade política do
setecento, pois, a separação entre religião e política é uma das fortes marcas da modernidade.
Arendt adverte que se tratava de um sinal de secularização daquela época o fato de que
mesmo as pessoas muito religiosas desejavam “estabelecer um governo [...] mais propício à
dignidade da natureza humana [...] e legar esse governo à sua posteridade juntamente com o
modo de mantê-lo e preservá-lo para sempre.”
380
Evidencia-se, que não é possível considerar aão dos colonos cristãos considerando-
os apenas como meros peregrinos de Deus em um mundo religioso. É importante salientar que
os puritanos foram modernos em termos políticos à medida que ansiaram em criar um corpo
político secularizado, ou seja, algo apoiado somente na ação dos homens. Arendt diz que
“John Adams atribuía aos puritanos o papel de Pilgrim Fathens fundadores de colônias que
arriscavam sua sorte e suas esperanças não na vida futura, mas neste mundo de homens
mortais.”
381
A idéia de que vale a pena depositar esperanças na vida futura dos homens
mortais é fruto de uma concepção secular do entendimento do mundo. Essa situação tem
muito a ver com Arendt que aposta numa filosofia da natalidade, repudiando com esta atitude
uma filosofia centrada na mortalidade. Nota-se que a autora se filia a uma das principais
características que faz com que a modernidade se diferencie do período medieval, isto é,
caracterizam a novidade revolucionária. A questão do absoluto aqui é analisado no âmbito da fundação do novo
corpo político.
378
ARENDT. A vida do espírito, p. 342.
379
ARENDT. Da Revolução, p. 184.
380
Ibidem, p. 184.
381
ARENDT. Da Revolução, p. 184.
152
Arendt aposta no homem como condutor dos negócios públicos sem a interferência da tutela
da Igreja ou de uma outra instituição religiosa. A separação entre Religião e Estado é uma
exigência fundamental quando o assunto se volta para a fundação de um novo corpo político.
Para Hannah Arendt, os desafios da fundação se apresentam em momentos de
rupturas, pois, nesse caso, a autora diz que o que importa é o fato de que existe um hiatus
entre o desastre e a salvação, entre a liberação da velha ordem e a nova liberdade
corporificada em uma novus ordo saeclorum, uma “nova ordem das eras” com cujo
nascimento o mundo se modificara estruturalmente.”
382
Na perspectiva da narrativa, não temos como atribuir a Arendt que ela conceba a
noção de tempo como algo de natureza contínua, linear ou retilínea, uma vez que a sua visão é
a de um tempo que se faz por meio de rupturas. Por esse ponto de vista, a idéia de hiato
assinalada pela autora está amparada naquilo que se situa entre um não mais e um ainda não.
É importante mostrar que nesse hiatus legendário da narrativa bíblica do Êxodo, a liberdade
não pode ser concebida como um resultado automático da liberação, e nem o fim do velho
pode ser necessariamente o começo do novo. É por isso que para Hannah Arendt, a noção de
que existe um continuum no tempo, não passa de uma mera ilusão.
As narrativas interpretadas por Hannah Arendt se referem a um período transitório.
Nessas abordagens, esse período transitório é exemplificado com características dialéticas que
vai da servidão à liberdade ou do desastre à salvação. Tais narrativas possuíam grande apelo,
porque os seus conteúdos tratavam de lendas que se concentravam nos feitos de grandes
líderes. Os líderes aos quais essas lendas se referiam eram pessoas que apareciam no palco da
História nesses intervalos precisos do tempo histórico. Uma vez que esses líderes eram
pessoas que se encontravam insatisfeitas em mudar o mundo de uma maneira gradual, eles
optaram em mudar a antiga ordem por meio de um hiatus no fluxo contínuo da seqüência
temporal. Era como se os homens de ação tivessem sido forçados a aceitarem a possibilidade
153
desse hiatus.
383
Portanto, para a nossa autora, foi essa rejeição à mudança gradual que
caracterizou os homens de ação do século XVIII, como também em uma elite intelectual
secularizada, isto é, em homens de Revoluções.
384
É no momento em que os fundadores se colocam diante do problema do começo é que
eles então se deparam com o abismo do nada. É o que acontece de uma maneira inevitável
com todos aqueles que se dispõem a se aventurar no caminho extraordinário da fundação de
um novo corpo político. No momento em que o homem de ação se lança na tarefa de fundar
algo inteiramente novo, ele se depara com o abismo da liberdade. Trata-se de um momento no
qual é revelado a existência de um hiatus da contingência que não traz uma solução imediata
para os problemas que surge nos instantes de ruptura. É por isso que as lendas fundadoras
apontam no meio de seus hiatus entre a liberação e a constituição da liberdade para um
problema sem resolvê-lo. Não se trata, nesse caso, de uma concepção de tempo onde os
efeitos são atos sucessivos das causas, onde por meio dessas causas pode-se resolver os
problemas dos efeitos, uma vez que determiná-los não é uma tarefa difícil. Isso quer dizer que
na concepção de tempo linear ou contínuo, existe uma causa que logo se transforma em efeito
e que assim sucessivamente vai prosseguindo formando uma linha de cadeia caracterizada
pelo binômio causa e efeito.
Contrariamente a essa noção de tempo contínuo, existe a concepção creatio ex nihilo,
isto é, trata-se da idéia arendtiana de que um hiatus no tempo é possível. Para que algo surja
no tempo não é necessário que ele venha de uma rede de conexões ou de um fluxo linear
constante. Portanto, em termos arendtianos é possível admitir a possibilidade da fundação de
um evento novo e desconectado capaz de romper com o continuum do tempo, quebrando a
382
ARENDT. The Life of the Mind, p. 204; A vida do espírito, p. 339.
383
François Collin se refere a esse hiatus da seguinte maneira:“Le mouvement de la libération, qui comporte
toujours un débat, une lutte avec l´ancien, ce dont on se libère, nécessite une sorte d´hiatus pour devenir royaume
de la libertè. Ainsi, les ‘pères fondateurs’ de l’Amèrique vont-ils devoir se séparer par un acte public de la patrie
d´origine, l´Angleterre, pour être à l’iniciative d’une nouvelle collectivité. La fascination qu´exerce sur Arendt la
révolution américaine, réelle ou mythique, n’est pas accidentelle: toute sa pensée est dominée par l’ autochtonie
et par l’idée de commencement.” (COLLIN. Du privé et du public. Les Cahiers du Grif, 1998, número 33, p. 57).
154
seqüência do tempo cronológico.
385
É nesse sentido que a lendária fundação de Israel traduz
essa realidade.
No que tange à interpretação arendtiana referente ao recurso feito pelos Pais
Fundadores à tradição grega,
386
nos parece à primeira vista algo de pouca importância para a
análise da tópica da fundação do corpo político, uma vez que a influência romana no caso das
Revoluções Americana e Francesa foi muito maior. Hannah Arendt faz referência a Thomas
Paine como alguém que “costumasse pensar que aquilo que Atenas foi em miniatura, a
América será em magnitude.”
387
Essa é uma prova que nos é apresentada para manifestar a
relevância do referencial ateniense no processo de fundação do corpo político em termos de
paradigma para iluminar os acontecimentos ocorridos na América do Norte.
Percebe-se que a movimentação e a vitalidade política da antiga cidade-estado grega,
bem como, o conjunto de suas virtudes,
388
constituiu-se como uma tradição capaz de
contribuir com a busca de modelos práticos e de fundamentação teórica desejados pelos Pais
Fundadores. Os axiomas políticos da antiga experiência da polis
389
grega não deixaram de se
384
ARENDT. The Life of the Mind, p. 205; A vida do espírito, p. 339.
385
ARENDT. The Life of the Mind, p. 208; A vida do Espírito, p. 341- 342.
386
Em Arendt, no que diz respeito à configuração do corpo político, o recurso à tradição da prática política,
principalmente a da antiga polis grega, é assinalado em suas análises. Isso porque o espaço oferecido pela polis
grega era um lugar em que a experiência política se manifestava de forma significativa. Francis Wolff comenta
esse destacado papel da polis: “O terreno político pertence, para os gregos, ao Koinon, o comum, e ‘abarca todas
as atividades e práticas que devem ser partilhadas, isto é, que não devem ser o privilégio exclusivo de ninguém,’
‘todas as atitudes relativas a um mundo comum,’ por oposição àquelas ‘que concernem à manutenção da vida.’
Assim, ‘fazer política,’ isto é, participar da vida comum, não é, na época clássica, uma atividade entre outras
possíveis: é a atividade nobre por excelência, a única que vale o sacrifício de sua vida.” (WOLFF. Aristóteles e a
Política, p. 11-12).
387
ARENDT. Da Revolução, p. 157.
388
A respeito da abordagem em torno de como as virtudes políticas eram concebidas na Antigüidade Grega e
Romana, nos adverte Hannah Arendt: “Da Ética a Nicômaco até Cícero, a ética ou a moral era parte da política,
aquela parte que não tratava das instituições, mas do cidadão, e todas as virtudes na Grécia ou em Roma são
definitivamente virtudes políticas. A questão nunca é se um indivíduo é bom, mas se a sua conduta é boa para o
mundo em que vive. No centro do interesse está o mundo, e não o eu. Quando falamos sobre as questões morais,
inclusive a questão da consciência, queremos dizer algo completamente diferente, algo, na verdade, para o qual
não temos uma palavra pronta. Por outro lado, como usamos essas palavras antigas em nossas discussões, essa
conotação muito diferente está sempre presente.” (ARENDT. Responsabilidade Coletiva. Responsabilidade e
Julgamento, p. 218).
389
A relevância do referencial da cultura grega para a filosofia política ocidental é destacada por Francis Wolff,
que diz: “Já se conseguiu dizer que a filosofia fala grego. É possível. Em todo caso é certo que a política, sim,
fala grego. Não se pode, com efeito, falar acerca da política sem a língua grega: ‘Tirania’, ‘monarquia,’
‘oligarquia’ ‘aristocracia’, ‘plutocracia’...Todo o nosso vocabulário político saiu dela. E, em primeiro lugar, a
própria palavra política.” (WOLFF. Aristóteles e a Política, p. 7).
155
apresentarem para os fundadores do novo corpo político oriundo das Revoluções, como um
suporte do qual eles deveriam se apoiar para então se espelhar na solução dos problemas
surgidos pela aventura do ato fundador. Nessa perspectiva, Hannah Arendt lembra a
expressão dita por James Wilson: “A glória da América se igualará ou mesmo ofuscará a
glória da Grécia.”
390
Pelo visto, o que se tinha era uma tentativa de equiparação ou até mesmo
de superação dos grandes feitos realizados pela Grécia.
391
Nesse sentido, a Glória do mundo
grego apresentou-se como fonte de luz para iluminar a fundação da nação norte americana.
O recurso à Grécia Antiga feito pelos Pais Fundadores se no âmbito da narrativa
quando o assunto é a tópica da fundação, porque o mundo grego se constitui como um espaço
de discernimento político único da Antigüidade. Portanto, não é sem razão ou sem motivos
que os pais fundadores recorreram à experiência da antiga polis grega para justificar o feito da
fundação do novo corpo político. O retorno aos antigos, como foi o caso do recurso ao mundo
grego, possui a sua razão baseada na necessidade de modelos e precedentes que a experiência
de fundação na modernidade reivindicava. A Glória de Atenas e de toda a Grécia é o grande
modelo e precedente.
392
Para André Duarte, segundo Arendt, os revolucionários tanto na França, como na
América do Norte, vasculharam os arquivos da Antiguidade em busca de referências
paradigmáticas para sustentar em termos práticos e teóricos os eventos revolucionários com a
finalidade de encontrar um tipo de homem ou de cidadão, no qual a forma de governo
desejada por eles pudesse se espelhar. Dessa investida, o que realmente aconteceu foi o
ressurgimento da política tal como ela se efetivava na Antigüidade. Duarte afirma que os
390
ARENDT. Da Revolução, p. 157.
391
Dana Villa realça o papel essencial da polis como referencial de vivência política. Diz a comentadora de
Arendt: “The essence of Arendt’s view of Athenian politics is that it was a politics of incessant public talk.
Indeed, she goes so far as to claim that this was the Greeks’ own understanding of politics: ‘To be political, to
live in a polis, meant that everything was decided through words and persuasion and not though force and
violence …. [It was] a way of life in which speech and only speech made sense and where the central concern of
all citizens was to talk to each other.’” (VILLA. The Philosopher versus the Citizen: Arendt, Strauss and
Sócrates. Polical Theory/April 1998, p.149 -150).
392
ARENDT. Da Revolução, p.158.
156
revolucionários do século XVIII queriam encontrar um modelo de homem e de uma
República. Para isso, encontraram no homem da polis ateniense esse tipo de modelo
almejado. Nesse caso, eventos como o das Revoluções, nos quais a política é reapropriada
pelos cidadãos por meio da utilização de atos e palavras, Arendt vislumbrou o lado perdido e
esquecido da política. Duarte se refere a esse período como um momento da História dotado
de fenômenos raros e singulares com a possibilidade de se renovarem no presente e no
futuro.
393
Embora o recurso aos gregos, feito pelos Pais Fundadores dos eventos revolucionários
do século XVIII aparece nas abordagens apresentadas por Hannah Arendt, numa intensidade
menor que o recurso feito por eles aos romanos, é importante salientar que as narrativas da
Antiga Grécia e de Tróia aparecem nas abordagens feitas pela nossa autora a partir das
referências sobre a fundação de Roma encaminhadas pelo poeta latino Virgílio. Arendt se
utiliza da Eneida
394
de Vírgilio para demonstrar o quanto as experiências grega e troiana
podem ser reinterpretadas por meio de um tipo de transposição dos papéis dos personagens
estabelecidos nesse tipo de narrativa. Portanto, vale lembrar que ao tratarmos da experiência
da fundação de Roma como referência para os homens das Revoluções do século XVIII,
vamos em alguns momentos voltar com mais intensidade para a abordagem a respeito do
recurso aos gregos, uma vez que Arendt trabalha a experiência romana utilizando-se de
analogias com a experiência da destruição de Tróia pelos gregos. O poeta Virgílio procura
explicitar a fundação de Roma apoiando-se no referencial dos acontecimentos de Tróia e
393
DUARTE. Hannah Arendt e a Modernidade: esquecimento e redescoberta da política. In: CORREIA. (Org.).
Transpondo o Abismo, p. 74 - 75.
394
Vejamos o que diz Henri Goelzer a esse respeito: “Virgile commença lÉnéide em l’ année 29 avant Jésus-
Crist; il y travailla onze ans et mourut em lán 19, si désolé de návoir pu y mette la dernière main quíl demanda à
ses amis de brûler son oeuvre. Heureusement as méthode de composition n´avait point ralenti as marche; il ne
s´attardait pas aux petites difficultés de la route et ne s’arrêtait pas aux endroits il sentait lui-même faiblir son
inspiration. On dit qu’il avait d’adord écrit son poème em prose, comme Racine ses tragedies. En tout cas, il
avait été jusqu’au bout, laissant çà et llà un vers incomplet, un passage à retoucher et ne s`était pas embarrassé de
légères contradictions ou d’obscurities qui disparaitraient à la revision. ‘L Énéide n’est pas un poème inachevè;
cést un poème qui n’a pas été corrige ou, pour mieux dire, dont toutes les parties n’ont pas étés corrigés et
étroitemente ajustées. Mais le lecteur s’ en aperçoit à peine. Il n’ y a guère à le remarquer et parfois à em souffrir
157
utilizando-se da concepção de que uma nova fundação se ampara em fundações
ocorridas.
395
É a própria Arendt que nos lembra o fato de que “não foi por acaso que o
ressurgimento do pensamento antigo e o grande esforço para resgatar os elementos da antiga
vida política deixaram de lado (ou interpretaram mal) os gregos e se valeram quase
exclusivamente do exemplo dos romanos.”
396
Para os nossos propósitos, é bom lembrar que
Arendt se utiliza da expressão “quase exclusivamente dos exemplos romanos” e esclarece
com essa afirmação que ela não quer com isso demonstrar a absoluta exclusividade da
herança romana no tocante à sua contribuição para a fundação do corpo político na
modernidade. A expressão “quase exclusivamente” demonstra em si que o esplendor e a
relevância da Grécia são também reverenciados e lembrados pelos Pais Fundadores.
Entretanto, Roma,
397
uma vez considerada em relação à tradição hebraica e grega,
constitui-se como um referencial de fundação muito mais lembrado e apreciado em termos de
que les commentateurs et les traducteurs à qui ces imperfections donnent um peu plus de tablature.” (GOELZER.
Introduction du poème de Virgile - Énéide : p. V).
395
Trata-se de uma situação de fundações que ocorrem motivadas pelo gesto de liberação com o objetivo de
conquistar a Terra Prometida, que se traduz em uma nova liberdade. A esse respeito salienta Syvie Courtine-
Denamy: “. . . é preciso destacar o paralelo que a autora estabelece entre essas duas ‘lendas fundadoras, a
narrativa bíblica dos padecimentos das tribos judaicas ao longo da marcha no deserto após o Êxodo e a narrativa
de Virgílio sobre o exílio de Enéias e seus companheiros para longe de Tróia. Seu ponto comum é que ambas
começam por um gesto de ‘liberação’, manifestando a vontade de conquistar uma nova liberdade, seja ‘uma terra
prometida que tem mais a oferecer do que o Egito, seja a fundação de uma comunidade nova, preparada por uma
guerra feita para anular a guerra de Tróia. Ambas as lendas colocam em cena o hiato entre uma ordem antiga, o
‘não mais e a ordem nova, o ‘não ainda’, ou seja, a interrupção de um encadeamento temporal contínuo,
designado pelo século XVIII como ‘revolução.’ E não seria por acaso que os ‘Pais Fundadores’ da República da
América, conscientes de estarem se confrontando com o inédito, com um começo radicalmente novo e, nesse
sentido, naturalmente portador do arbitrário, se voltarem para a história antiga, capaz de lhes fornecer um
modelo apto a desembaraçá-los da creatio ex nihilo, do pensamento de um começo absoluto.” (COURTINE-
DENAMY. O Cuidado com o Mundo: Diálogo entre Hannah Arendt e alguns de seus contemporâneos, p. 128 –
129).
396
ARENDT. Da Revolução, p. 166.
397
A relevância de Roma para as fundações na modernidade constitui-se como algo com a capacidade de encher
o deserto político que antes existia. Sylvie Courtine-Denamy confirma isso, dizendo: “É ao povo romano, o povo
político por excelência cujo gênio na legislação e na fundação serão celebrados pela autora em A Condição
Humana que devemos o nascimento do mundo. Foram os romanos, ‘povo gêmio dos gregos, que,
politicamente falando, deram nascimento ao mundo: ‘existem inúmeras civilizações extremamente ricas e
grandes antes dos romanos, mas apenas um deserto através do qual, no melhor dos casos, estabeleciam-se laços
como fios tênues, como atalhos numa paisagem inabitada e que, e no pior dos casos, degenerava em guerras de
extermínio que arruinavam o mundo existente. O aparecimento do político é, portanto, a garantia da
constituição do mundo por oposição ao deserto antes existente.” (COURTINE-DENAMY. O Cuidado com o
Mundo: Diálogo entre Hannah Arendt e alguns de seus contemporâneos, p. 105).
158
paradigmas prático-teóricos pelos homens das Revoluções do século XVIII. Alia-se a essa
situação, o fato de que a autora diz que a História de Roma encontra-se toda alicerçada na
idéia de fundação. É por isso que, para Bernard Bailyn, o que prendia a atenção das mentes
dos colonos de maneira mais notória era a influência da Antigüidade clássica principalmente
no que diz respeito à História política de Roma. Esse historiador nos lembra que Jefferson era
um leitor cuidadoso dos clássicos, assim como James Ortis, que escreveu tratados sobre
prosódia latina e grega.
398
Hannah Arendt, em suas análises se refere às três grandes concepções presentes na
política romana: autoridade, tradição e religião. Podemos chamar essas três concepções de
trindade clássica. Dessas três grandes concepções clássicas e outras que a tradição romana nos
legou, não se pode entendê-las sem que haja uma compreensão a respeito da fundação da
cidade eterna. É nessa perspectiva que o surgimento de Roma é muito relevante para as
análises de Arendt sobre a tópica da fundação. Porque a fundação de Roma para a autora,
marca o início da História e da cronologia dessa civilização.
399
Trata-se do fato da urbs
condita, ou seja, da fundação da cidade romana.
400
Sylvie Courtine-Denamy nos lembra que
Roma para Arendt é a encarnação da trindade autoridade-tradição-religião, com a qual a
modernidade cortou para sempre um fio que nunca mais poderá ser refeito. Para essa
comentadora de Arendt, mesmo que essa tradição não se confunda com o passado, ao perdê-
la, passamos a perder o “fio condutor através do passado e à cadeia a qual cada nova geração
conscientemente ou não se ligava em uma compreensão do mundo a partir de sua própria
398
BAILYN. As origens ideológicas da Revolução Americana, p. 43.
399
Quanto ao interesse dos colonos pela literatura política da Antiguidade romana clássica, salienta Bernard
Bailyn: “O que prendia suas mentes, o que conheciam com detalhes, e o que formava sua visão de conjunto do
mundo antigo era a história política de Roma desde as conquistas no Oriente e as guerras civis, no início do
primeiro século a.C. até o estabelecimento do Império sobre as ruínas da República, no final do segundo século
d.C. Para o conhecimento desse período eles tinham em mãos, e precisavam apenas de Plutarco, Lívio e,
sobretudo, Cícero, Salústio e Tácito escritores que viveram ou quando a República estava ameaçada em seus
fundamentos ou quando seus grandes dias haviam passado e suas virtudes morais e políticas decaído. Eles
haviam odiado e temido as tendências de seu próprio tempo, e em sua escrita haviam contrastado o presente com
um passado melhor, que eles dotavam de qualidades ausentes de sua própria era corrupta. O passado longínguo
159
experiência.” O desaparecimento da tradição pode em termos arendtianos nos colocar em
perigo de esquecimento. O efeito da tradição repousa em sua capacidade de conservar e de
preservar o passado quando se transmite de geração em geração o legado de ancestrais que,
primeiramente, foram testemunhas e criadores da fundação sagrada. Nesse caso, efetuava-se
também o aumento da autoridade da fundação através dos séculos. A autoridade dos
chamados “Pais Fundadores” encontrava o seu respaldo na tradição. O que podemos notar é
que essa tradição na qual, repousa essa autoridade é retomada por Hannah Arendt em suas
análises sobre a Revolução Americana.
401
A experiência romana iluminou os Pais Fundadores da América do Norte a respeito do
tema da origem do poder político. Em meio às discussões sobre como deveria ser a forma de
poder a ser exercida na América do Norte, os colonizadores decidiram se apoiar no
significado do potestas in populo romano. Essa investida dos colonizadores tomada no seio de
suas discussões baseava-se no fato de que eles apostaram na crença de que o poder reside no
povo.
Os colonos que saíram da Grã-Bretanha conquistaram na América um tipo de poder
que não impossibilitava que eles tivessem o progresso econômico. Dessa maneira, o que eles
precisavam garantir era o estabelecimento da autoridade. Portanto, estes tinham consciência
de que o que norteava o potestas in populo o poder, ou seja, a autoridade que nasce no seio
do povo - era o princípio capaz de inspirar uma forma de governo que o acrescentasse por
meio da auctoritas in senatu (autoridade presente no Senado). Com isso, se garantia que a
autoridade nascida do povo era sustentada pela concepção de que essa autoridade reside no
fora repleto de virtude: simplicidade, patriotismo, integridade, amor, à justiça e à liberdade, o presente era venal,
cínico e opressivo” (BAILYN. As origens ideológicas da Revolução Americana, p. 43 - 44).
400
ARENDT. Da Revolução, p. 166.
401
COURTINE-DENAMY. O Cuidado com o Mundo: Diálogo entre Hannah Arendt e alguns de seus
contemporâneos, p. 111.
160
Senado. Seria então o Senado, uma espécie de casa do povo onde o potestas in populo seria
assegurado pelo auctoritas in senatu.
402
O que aconteceu na História dos Estados Unidos da América, é que posteriormente
parte da autoridade do Senado passou para o ramo judiciário do governo. A partir daí, a sede
da autoridade está na Suprema Corte Americana. Mas, nas palavras de Arendt “o que
permaneceu próximo ao espírito romano foi a necessidade de estabelecimento de uma
instituição concreta que, diferindo nitidamente dos poderes das áreas legislativa e executiva
do governo, fosse destinada aos exercícios da autoridade.”
403
Sobre o que Arendt diz a
respeito da necessidade do estabelecimento de uma instituição que assegure a autoridade,
afirma Anne Amiel:
A autoridade encarna-se no Senado. Mas o que interessa Arendt em primeiro lugar é o
adágio cum potestas in populo auctoritas in senatu sitc ‘o poder no povo e a
autoridade no Senado,’ Se o Senado desprovido de poder pode dar ‘conselhos’ ou
‘avisos’ constringentes – e ligados aos auspícios – é que a autoridade volta ao passado
que encarnamos, à ligação que mantém com este mesmo, com o caráter de modelo que
é autorgado a tudo o que acontece. Se utiliza a imagem corrente da pirâmide para
ilustrar a hierarquia fundada sobre a autoridade, cuja fonte é sempre exterior ao poder
que encarna, com os romanos o cume desta pirâmide não é o além dos cristãos, mas a
profundidade de um passado terrestre. A tradição é então conservação e transmissão
do passado, que cada geração deve preservar e aumentar. E assim “agir sem autoridade
e sem tradição, sem a ajuda da sabedoria dos Pais Fundadores, seria inconcebível.”
404
Evidencia-se a partir daí, o quanto o Senado na América do Norte é herdeiro da
tradição política romana. Esta evidência demonstra o quanto a influência da tradição política
da Antigüidade Romana, foi observada por Hannah Arendt, com freqüência nas ações dos
homens das Revoluções. É por essa razão, que Arendt lembra que Saint-Just exclamou que “o
mundo tem estado vazio desde a época dos romanos, e apenas repleto de suas memórias, que
representam agora nossa única profecia de liberdade.” Com essa afirmação Arendt adverte
que Saint-Just estava era representando John Adams. Segundo a autora, “a constituição
402
ARENDT. Da Revolução, p. 142 -143.
403
Ibidem, p. 160.
161
romana moldou a nação mais nobre e o mais alto poder que jamais existiu.” O que se percebe
a partir dessa afirmação de nossa autora, é o quanto havia de entusiasmo com a contribuição
teórica e prática dada pelos antigos. Parece que o recurso aos antigos com o objetivo de
iluminar o processo de fundação de uma nova realidade política se apresentava de uma
maneira irreversível.
Não se trata aqui de uma atenção dada às referências do passado como se tudo
caminhasse num fio ou numa linha de continuidade histórica. O que sabemos, é que a
experiência do passado iluminou um tipo de ação que resultou em ruptura. Portanto, quando
voltamos nossas atenções para as Histórias do passado o que estamos fazendo é buscar o
sentido das oportunidades perdidas que esse passado outrora nos apresentou. Os motivos que
inspiraram a busca de uma orientação no passado da Antigüidade não foi para Arendt apenas
um anseio romântico por feitos esplendorosos realizados, mas sim a chama da necessidade
que impunha aos fundadores a realização do ato de criação de um novo corpo político.
Heloísa Starling, comenta que para Arendt todas as vezes que ela contou Histórias,
estas, por vezes, revelaram a sua apropriação pessoal e também personalizada de uma espécie
muito própria de solidão. Trata-se de um tipo de solidão sem precedentes, que se apresenta de
maneira inseparável dos efeitos provocados por uma tradição configurada em ruínas que,
conseqüentemente, expõe a modernidade a um futuro imprevisível. O que temos é que as
Histórias traziam para Hannah Arendt o sentido das possibilidades perdidas no passado. Com
efeito, essa atitude de nossa autora jogava a solidão com a necessidade imperiosa de poder
meditar sobre as palavras e ao mesmo tempo recolher as imagens do passado. Imagens estas,
que de outra forma acabariam se diminuindo e se extinguindo de maneira gradual no tempo.
Heloísa Starling afirma também que de um modo muito específico, essa era a obrigação de
Hannah Arendt com o mundo, que por sua vez se traduzia em deixar falar aos destroços da
tradição quando tudo o mais parecia ter emudecido. Nessa perspectiva, a própria ão se
404
AMIEL. Hannah Arendt: política e acontecimento, p. 93.
162
apresentava como que encerrada e se transformava em matéria-prima de uma História
passível de ser narrada.
405
A fundação de um novo corpo político ao se realizar, passa a exigir que muitos dos
desafios que aparecem nesse momento tão relevante, possam então ser superados.
Considerando que a fundação do corpo político almejado pelas Revoluções do século XVIII
era algo inteiramente novo e sem precedentes históricos, evidencia-se que seria então
necessário se amparar em outras realidades precedentes e que significasse um grande modelo.
“E o grande modelo e precedente, não obstante toda a retórica ocasional acerca da glória de
Atenas e da Grécia, foi para eles, como fora para Maquiavel, a república romana e o esplendor
de sua história.”
406
Daí, ser notório o quanto o passado político romano
407
teve forte e quase
exclusiva influência para ajudar os fundadores das Revoluções do século XVIII.
O exemplo romano referente à questão da fundação teve influências no tipo de poder e
autoridade assumidos por instituições americanas. A diferença está no fato de que em Roma, a
fundação da autoridade era política e caracterizava-se por oferecer aconselhamento, enquanto
que na República Americana a função da autoridade encontra-se na lei pela qual se exerce por
meio de interpretação.
408
Daí termos um dos motivos que torna possível que a Constituição
seja considerada muito relevante para a cultura política e institucional norte-americana.
A autoridade da Suprema Corte norte-americana deriva da Constituição, pois
enquanto carta Magna, ela é fonte de interpretação e de união da nação que nasceu das Treze
Colônias Inglesas. A Constituição é a mantenedora da unidade entre os Estados norte-
405
STARLING. A outra margem da narrativa: Hannah Arendt e João Guimarães Rosa. In: BIGNOTTO &
MORAES. (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 246.
406
ARENDT. Da Revolução, p. 158.
407
É como se esse passado tivesse sido combinado pelos deuses, isto é, o esplendor de Roma teria tido o seu
destino decretado por Jupiter. Tudo isso é confirmado por Henri Goelzer, que diz: “Rome est la grande pensée
des dieux. Derrière les ruines fumantes de Troie, d’où s’échappent ceux qui ne sont pas tombés sous le fer des
Grecs, jupiter nous appairait veillant à l’exécution des décrets du destin. Um peuple-roi doit naître qui soumettra
la terre et les mers à son empire, et les hommes de qui ce peuple sortira sont em ce moment des figitifs
misérablement ballottés par les vents et les flots. Tout l’intérêt du ciel se concentre sur eux pour hâter leur
mission ou pour la retarder, car les puissances divines sont partagées, celles-ci déjà romaines de coeur, celles-là
163
americanos. Trata-se também de um documento escrito de onde dele deriva a fonte de
autoridade da mais alta instância judiciária dos norte-americanos. “E essa autoridade é
exercida através de uma formulação contínua da Constituição, pois a Suprema Corte é, de
fato, uma espécie de assembléia constitucional em sessão permanente.”
409
O Senado romano, instituição onde se encontravam os patres ou os pais da República
Romana, constituía-se como um instrumento investido de autoridade, porque os seus próprios
membros eram detentores dessa autoridade pelo fato de representarem diretamente os
fundadores da cidade de Roma. Era através desses patres que o espírito de fundação se
mantinha, ou seja, era a partir deles que Roma não perdia o seu vínculo com o principium que
provocou a gestação (regestae) da qual a História de Roma se formou.
410
O ambiente da fundação romana possui um significado que se ampara na raiz
etimológica do termo auctoritas que é o mesmo que augere, cujo significado é aumentar e
desenvolver-se. O sentido do termo augere tem a ver com a vitalidade do espírito da
fundação. É por essa razão, que é por meio do processo fundador que se torna possível
aumentar, desenvolver e ampliar os fundamentos que os ancestrais haviam estabelecido. A
continuidade dos valores e de toda a cultura política contida nos princípios que norteiam o ato
de fundação só pode ser mantida por meio da tradição. É por causa disso que é preciso manter
a fidelidade ao princípio inaugural que é estabelecido na fundação. Portanto, o paradigma, a
quem tanto os Pais Fundadores das Revoluções recorreram, se apóia na interpretação dessa
linha ininterrupta de sucessos. Essa foi a maneira que Roma encontrou para se manter ligada
aos primitivos fundadores com piedosa reverência e fidelidade. Pietas et fides piedade e
nas origens, era o que caracterizava o ser “religioso” ou o “estar ligado” aos princípios
hostiles a um empire futur qui menace leurs protégés et qui cependant finira par triompher de leurs résistance.”
(GOELZER. Introduction du poème de Virgile - Énéide : p. VII).
408
ARENDT. Da Revolução, p. 161.
409
SOUKI. Da crise da autoridade ao mundo invertido. In: BIGNOTTO & MORAES. (Orgs.). Hannah Arendt:
Diálogos, reflexões e memórias, p. 131.
410
ARENDT. Da Revolução, p. 161.
164
fundantes de Roma.
411
O que temos, com base no paradigma romano, é um religare político
que se estabelece por meio de um fio de Pietas et fides que se processa no âmbito das origens
apresentadas no momento sagrado da fundação.
Evidencia-se que, nessa perspectiva, a religião no seu sentido etimológico de religare
estava presente na cultura política romana. Ela significava unir-se a algo, e o sentido de estar
ligado aos princípios fundantes da cidade eterna não deixa de ser um tipo de manifestação
religiosa. Religio ou Religare significa o mesmo que dizer “estar ligado ao que está atrás,”
isto é, ser religioso quer dizer estar vinculado ao passado. A religião se liga à pica da
fundação, pois a segunda também se utiliza de recursos voltados para o passado. É devido a
isso, que Sylvie Courtine-Denamy nos lembra que para Hannah Arendt a atividade religiosa
juntamente com a atividade política puderam ser consideradas como quase idênticas. A ponto
de Cícero dizer: “Em nenhum outro domínio a excelência humana se aproxima de tão perto
das vias divinas (numem) quanto na fundação de comunidades novas e na conservação das
que já foram fundadas.”
412
É dessa forma, que para Hannah Arendt “a própria coincidência da autoridade, da
tradição e da religião, foi a espinha dorsal da história romana, do princípio ao fim.”
413
Nesse
caso, a ação política não pode ser vista como um fenômeno que ocorre fora da tradição e nem
mesmo fora da religião. Tradição e religião se apresentam como águas que correm no leito do
mesmo rio. Daí, o conceito de mundo para os romanos ser algo que se estabelece no âmbito
da tríade autoridade, tradição e religião. Nessa perspectiva, Anne Amiel diz que pelo conceito
central de mundo, nós somos então levados ao paradigma romano que por sua vez domina
411
ARENDT. Da Revolução, p. 161.
412
COURTINE-DENAMY. O Cuidado com o Mundo: Diálogo entre Hannah Arendt e alguns de seus
contemporâneos, p. 112.
413
ARENDT. Da Revolução, p. 161.
165
todos os textos de natureza política de Arendt, bem como todos os textos relativos à
experiência moderna das Revoluções e da fundação das Repúblicas.
414
Essa trindade clássica da cultura política romana: autoridade, tradição e religião, uma
vez levada à sério pelos cidadãos romanos, conseqüentemente, teve reflexos na expansão do
Império Romano. Pois, Roma legitimava o seu Império por acreditar que a sua ampliação era
a repetição da fundação inicial. Todas as conquistas que tiveram como resultado o aumento ou
a ampliação do Império Romano se integrava à época da fundação. O que havia entre os
romanos era o espírito de se manterem permanentemente integrados à época que deu início ao
corpo político de Roma. É por isso, que Arendt cita Catão que afirmou que a constitutio rei
publicae ‘não era obra de um só homem e de uma só época.’”
415
Percebe-se que está na fundação da cidade de Roma o propósito que Arendt se ancora
para assinalar a necessidade de que os homens das Revoluções tinham em se apoiar nos
clássicos para adquirirem respostas aos desafios trazidos pelo próprio ato fundador. Dito de
um outro modo, não é sem motivo que os Pais Fundadores tiveram que recorrer aos clássicos
da escola romana, pois eles precisavam absolver seus ensinamentos para aplicá-los na tarefa
de fundar um novo corpo político que a realidade naquele momento exigia.
Os norte-americanos são adoradores da Constituição e desde a Fundação dos Estados
Unidos da América que os habitantes dessa nação encontram-se preocupados em conferir
permanência para o corpo político. Por isso, sempre buscaram reforçar a sua autoridade. E foi
na concepção de autoridade vinculada à tradição romana que os habitantes da Nova Inglaterra
buscaram se apoiar. Sobre isso, adverte a autora:
A própria concepção romana de autoridade sugere que o ato de fundação gera,
inevitavelmente, a sua própria estabilidade e permanência, e, nesse contexto,
autoridade o é, nada mais nada menos, do que uma espécie de “aumento”
necessário, em virtude do qual todas as inovações e mudanças permanecem ligadas à
fundação original, ao mesmo tempo em que a fazem aumentar e desenvolver-se.
414
AMIEL. Hannah Arendt: política e acontecimento, p. 93.
415
ARENDT. Da Revolução, p. 161.
166
Assim sendo, as emendas à Constituição apenas aumentam e ampliam os laços
originais da República Americana, desnecessário é dizer que a própria autoridade da
Constituição Americana repousa em sua inerente capacidade de ser emendada e
ampliada.
416
Constata-se a partir dessas consideraçções que a República Americana quando efetua
emendas na sua Constituição ela amplia a sua fundação inicial. A concepção de que a
Constituição Americana pode ser ampliada e ao mesmo tempo manter-se fiel à fundação da
República tem tudo a ver com a concepção de autoridade enquanto aumento conforme
assinala a perspectiva de fundação presente na tradição romana. Pois, tal concepção se apóia
na raiz da cultura política romana para manter o ato de fundação interligado ao ato de
preservação do mesmo.
Para a nossa autora, essa coincidência entre fundação e preservação encontra-se
amparada na palavra latina relativa ao verbo fundar que é condere, cuja raiz estava
relacionada a um primitivo deus
417
campestre latino chamado Conditor, cuja função era
proteger a agricultura e as colheitas obviamente, ele era, ao mesmo tempo, um fundador e um
preservador.”
418
É notório que na raiz etimológica da palavra fundação, o verbo fundar
anuncia que o ato de fundação implica na necessidade da sua preservação. Nesse caso,
percebe-se que em termos de filosofia política, quando tratamos da tópica da fundação,
conseqüentemente, abordamos a questão da sua preservação. Sylvie Courtine Denamy afirma
que, graças a esse culto, relativo a essa conservação do passado, os romanos admiravam os
grandes “ancestrais gregos” devido a sua autoridade na teoria, na poesia e na filosofia. Foi
entre os romanos e não entre os gregos que seus grandes autores se efetivaram como
autoridades. Os romanos passaram a adotar o pensamento e a cultura clássica formulados
pelos gregos como sua própria tradição espiritual. Eles decidiram de forma histórica, que a
416
ARENDT. Da Revolução, p. 162.
417
Sobre os diversos personagens da mitologia Greco-romana, ver obra de René Ménard, 1991.
418
ARENDT. Da Revolução, p. 162.
167
tradição deveria ter uma influência de natureza formadora e permanente no âmbito da
civilização européia.
419
Como se percebe, até mesmo a interligação entre fundação e preservação possui raízes
no âmbito da cultura religiosa romana, e isso se confirma, devido aos significados contidos
naquilo que o deus Conditor representa. Nesse sentido, referir-se ao ato de fundar uma
realidade política nova, como é o caso da criação de um novo corpo político, é deparar-se
inevitavelmente com a necessidade que surge em ter que preservá-lo. Marcelo Gantus Jasmim
compartilha esse comentário de Arendt dizendo que agir de acordo com a tradição é o mesmo
que orientar-se pela vitória dos métodos empregados ao longo do tempo, bem como orientar-
se também pelos resultados verificáveis pela experiência na perpetuidade do corpo político.
Esse tipo de orientação é o mesmo que seguir os princípios básicos de “conservação” e de
“começo” mantendo-se de acordo com a autoridade configurada nos exemplos dos
antepassados.
420
E nessa perspectiva, para os fundadores, fundar e preservar é manter-se fiel e atento
aos princípios que deram origem à fundação romana. No caso dos Estados Unidos da
América, manter a fidelidade à Constituição é o mesmo que garantir a permanência dos
princípios que são inerentes à fundação da cidade de Roma.
Um outro traço da raiz do espírito romano que Hannah Arendt enfatiza está na
expressão “Pais Fundadores.” Segundo a nossa autora, a utilização dessa expressão pode
parecer à primeira vista um tipo de arrogância. Interpretar a expressão “Pais Fundadores”
constitui-se em uma tarefa muito simples. “Eles se consideraram fundadores porque se
dispuseram conscientemente, a imitar e a reproduzir o exemplo e o espírito romanos.”
421
419
COURTINE-DENAMY. O Cuidado com o Mundo: Diálogo entre Hannah Arendt e alguns de seus
contemporâneos, p.111).
420
JASMIN. Racionalidade e História na Teoria Política, p. 84.
421
ARENDT. Da Revolução, p. 163.
168
Em páginas anteriores, fizemos referências às lendas narrativas da fundação ocorrida
na tradição hebraica. Vamos agora tratar das lendas narrativas da fundação apresentadas pelo
poeta Virgílio e demonstrar a partir daí, o quanto esse autor latino se abastece da fonte da
narrativa grega que se expressa por meio daquilo que foi segundo Homero, o fim da cidade de
Tróia.
422
Newton Bignotto, afirma que a importância da tópica da fundação é atestada nos
escritos de Homero e de Hesíodo e mais tarde nos poemas de Virgílio.
423
Daí, a necessidade
de precisarmos levar em conta que o importante aqui, é considerar que as ruínas de Tróia não
representou o seu verdadeiro fim.
Para Hannah Arendt, os homens das Revoluções encontravam-se familiarizados com a
História de Virgílio a respeito das perambulações de Enéias. Virgílio centra mais atenções no
contexto da fuga de Enéias, depois que Tróia foi devastada pelas chamas. Semelhantemente à
História Bíblica do Êxodo das tribos israelenses do Egito, as perambulações de Enéias,
constituiem-se também como uma lenda que narra uma promessa de liberdade futura. Essa
liberdade almejada seria possível, ou seja, a sua realização somente se concretizaria por
meio da conquista de uma outra Terra. Trata-se de uma lenda
424
que expressa a fundação de
uma nova cidade dum conderet urbem. De uma maneira bastante identificada com as lendas
bíblicas do livro do Êxodo, o conteúdo apresentado por Virgílio, uma vez sendo transposto ou
422
A importância da Guerra de Tróia, bem como o significado que a caracteriza é tratado por Myriam Revault d’
Allonnes, da seguinte maneira: “La grerre de Troie, à laquelle Arendt a recours pour dégager un certain nombre
de traits essentiels, constitue une sorte d´archétype de la guerre d´anéantissement, mais elle témoigne également
de la manière dont l’ esthétisacion par le récit arrache (ou tente d’ arracher) à l’ oubli um tel anéantissement. Non
seulement Homère chante une ‘guerre d’anéantissement vieille de plusieurs siècles’ (c’est alors la ‘mémoire
poétique’ qui empêche que l’ evenement ne soit totalement effacé: le récit efface leffacement, il est lui-même
effacement de l’ effacement), mais il chante la glorie des vaincus autant que celle des vainqueurs, il ne rend pas
moins justice à Hector qu’il ne glorifie Achille, il ne rend pas plus juste la cause des Grecs ni plus injuste celle
des Troyens.” [ALLONNES. Hannah Arendt et la question du mal politique. Hannah Arendt, la “banalité du
mal” comme mal politique, 1998. p. 6].
423
BIGNOTTO. O Tirano e a Cidade, p. 103.
424
A respeito das lendas narrativas de fundação, nos lembra Anne Amiel: “Ora, um grupo de relatos, de lendas,
corre ao longo de toda a obra Sobre a Revolução; Abel e Caim e a saída do Egito, Remo e Rômulo e a Eneida.
Servem para indicar o hiato entre a libertação e a promessa de liberdade, o caráter impensável da novidade
(Roma é menos uma fundação do que uma refundação de Tróia), e a violência sobre a qual se baseia o edifício
político, o fraticídio de onde é originada qualquer fraternidade, pelo qual a ficção do estado de natureza seria
apenas uma paráfrase purificada teoricamente. No seu próprio relato da Revolução Americana, Arendt apresenta
o acto de fundação dos Estados Unidos como fundação per se, cujo princípio contrabalança a plausibilidade das
lendas de fraticídios.” ( AMIEL. Hannah Arendt: política e acontecimento, p. 127).
169
reinterpretado para o campo das Revoluções do século XVIII, apresenta-as como se fossem
um hiatus entre o fim da antiga ordem e o início da nova.
425
Na expressão da linguagem utilizada por Virgílio, a fundação da cidade de Roma é
apresentada como o restabelecimento de Tróia.
426
É por isso que Hannah Arendt, quando se
refere em suas abordagens sobre a lendária fundação de Roma, remonta ao que teria ocorrido
após a destruição de Tróia. É como se a partir daí, Roma se efetivasse como uma segunda
Tróia. Dito de um outro modo, a cidade eterna é o renascimento da velha e fortalecida Tróia,
que por causa da luta travada por Enéias e por outros personagens, ela renasce em terras
italianas.
Heloísa Starling lembra - nos que Arendt quando tenta capturar a partir de um ponto
vazado do tempo, a fragância das coisas distantes que fugiram e foram esquecidas, ela está
buscando ver com que luz particular as fazem iluminar a época presente. Starling nos adverte
que, quando isso acontece, Arendt argumenta que uma História irrompe, para que o relato
ocorrido a partir de um ser humano se detenha a uma narrativa composta e a um parágrafo a
mais, acrescentando-se com isso aos recursos do mundo. Essa comentadora de Hannah
Arendt, prossegue a sua advertência dizendo que uma vez, ratificada pelo poeta ou pelo
historiador, conseqüentemente, a narração da História se integra à realidade dos homens e
com isso, passa a obter a permanência e a estabilidade.
427
Nessa perspectiva, o que vemos é
425
ARENDT. Da Revolução, p. 164.
426
Um certo restabelecimento de Tróia era a intenção dos fundadores, mas com o objetivo de garantir a
durabilidade daquilo que foi fundado, ou seja do novo corpo político. Assim, se expressa Myriam Rivault D
Allonnes: “Il revient aux Romains et nous abordons maitenent second paradigne à l’oeuvre dans ce texte -
d’avoir en quelque sorte inscrit dans la durrée le monde de relations que les Grecs n’avaient Inscrit que dans un
espace publico-politique spatialment delimité, coïncident avec ‘les remparts de la ville, de la polis, ou plus
exactement encore, avec lagora qu´elle circonscrivait’ (107). ‘Peuple jumeau des Grecs’ ‘peuple politique par
excellence’ comme le souligne la Condition de l’ homme moderne, les Romains ont inversé la mytologie
fondatrice des Grecs. La fudation de Rome est présentée comme une renaissance de la Troie anéantie, son
existence politique est issue d’une faite suivie par une nouvelle fondation em terre étrangère. Mais le plus
important est que la fin de la guerre ne signifie pas le trionphe du vainqueur et la destruction totale du vaincu:
elle marque avant tout l’institution d’um ‘nouveau corps politique.’” (ALLONNES. Hannah Arendt et la
question du mal politique. Hannah Arendt, la ‘banalité du mal’ comme mal politique, 1998. p. 6 - 7).
427
STARLING. A outra margem da narrativa: Hannah Arendt e João Guimarães Rosa. In: BIGNOTTO &
MORAES. (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 246.
170
que a memória de Tróia apresentou-se como necessária para que Roma pudesse encontrar nela
o respaldo para a sua permanência e sua durabilidade no tempo histórico.
Para tratar da fundação de Roma, Virgílio recorre ao desastre que marcou a destruição
de Tróia, e por isso, ele não se referiu à lenda de Rômulo que matou seu o próprio irmão
Remo.
428
Virgílio, ao optar pela narrativa da fundação romana utilizando-se do fio da
destruição de Tróia, ou seja, por meio da narração feita por Enéias, demonstra então, a
importância que a cultura grega possui para o legado deixado pelas narrativas de fundação. A
lenda grega sobre o legado de Tróia é significativa para Virgílio para que ele possa sustentar
uma teoria da tópica da fundação da cidade de Roma.
429
Nessa perspectiva, a partir do momento em que os homens das Revoluções quase
exclusivamente recorrem à experiência do espírito de fundação apresentada na Antigüidade
romana, indiretamente eles se lançam também no recurso à cultura grega dos poemas de
Homero. Nesse caso, recorrer à experiência de fundação do espírito que norteou a fundação
de Roma é também recorrer à cultura grega relativa à tópica do começo. Por esse ângulo, a
fundação do corpo político almejado pelos “Pais Fundadores” remonta também a cidade de
Tróia.
Em termos arendtianos mesmo que a fundação de um corpo político se apresente
como algo inteiramente novo e sem qualquer precedente na História, ela precisa se amparar
em fundações passadas. É como se os elementos inerentes ao processo de fundações passadas
pudessem servir de diretrizes capazes de iluminar as fundações vindouras. Isso significa que
428
ARENDT. The Life of the Mind, p. 211; A vida do espírito, p. 344.
429
Observações a esse respeito são feitas por André Enegren, que diz: “Como la historia romana estaba
completamente centrada em la idea de fundación, fuente de la tríada conceptual religión –autoridad-tradición,
hacer política significaba esencialmente para un romano conservar la fundación dela ciudad; no es entonces
sorprendente que Arendt retenga en particular el ejemplo paradigmático del errar de Eneas ‘antes de que fundara
la ciudad’ (Eneida). Interpretando, como otros comentadores, la Eneida como una imagen invertida de la Ilíada,
insiste particularmente en el hecho de que la fundación de la Ciudad se presenta como un simple renacimiento de
la Troya aniquilada y no como una creación original. La continuidad de la tradición prevalece entonces de
entrada sobre una novedad que sólo se valdría de si misma, ya que inclusive la primera fundación se da ya como
una repetición de lo ancestral. Eneas lleva sobre sus espaldas no solamente a Anquises sino todo el pasado
171
as fundações na História não necessitam ocorrer de maneira equivalente às anteriores. Pois
essa fundação, que se por meio de uma ruptura no continuum do tempo não é uma mera
repetição de uma outra fundação. Para Hannah Arendt, nunca se deve perder o fio da Tradição
política, pois o recorrer a ela é importante, embora a História não seja para ela um fio
linear.
430
Seguindo os passos do poeta Virgílio, para Hannah Arendt, o fato de Roma significar
o ressurgimento de Tróia em terras italianas teve como objetivo salvar o que teria restado do
povo grego e da ira de Aquiles. Para se referir a esse ressurgimento, Arendt se utiliza da
expressão latina illia fas regna resurgere Troiae. Portanto, para retratar a cidade de Roma
como a manifestação do renascimento de Tróia, Virgílio se utiliza de alguns personagens e até
mesmo inverte a História assumida por Homero.
431
Os “Pais Fundadores” norte-americanos quando recorreram à História da fundação de
Roma não estavam intencionados em fundar “Roma mais uma vez,” mas sim de fundar uma
“Nova Roma.” Por essa razão, segundo Arendt, os novos habitantes da América do Norte
tomaram a decisão de alterar o verso de Virgílio que de magnus ab integro saeclorum
nascitum ordo” cujo significado é “a grande ordem das eras é [re] nascida assim como era no
princípio” passou para novus ordo saeclorum:
432
a nova ordem. Isso porque, “o fio de
troyano.” (ENEGREN. Revolución y Fundación. El Resplendor de lo Público en torno a Hannah Arendt. p. 80 -
81).
430
Sobre isso, alerta Hannah Arendt: “O que para nós é difícil perceber é que os grandes feitos e obras de que
são capazes os mortais, e que constitui o tema da narrativa histórica, não são vistos como parte, quer de uma
totalidade ou de um processo abrangente, ao contrário, a ênfase recai sempre em situações únicas e rasgos
isolados.” ( ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 72).
431
ARENDT. Da Revolução, p. 168.
432
Luca Savarino se refere a esse assunto nos seguintes termos: “In termini filosofici, sostiene Hannah Arendt
citando Platone e Agostino, la saggezza dei padri fondatori risiedeva nell’aver istituito un novus ordo saeclorum,
sulla base della sostanziale identità di inizio e principio. Il principio che scaturi dalla rivoluzione americana fu l’
enorme potenzialità ínsita nella capacità umana di iniziare, costituendo un mondo che si separi dalla
processualità naturale, per mezzo della facoltà di promettere. ‘Il principio che venne alla luce durante quegli anni
faticidi in cui furono poste le fundazioni non con la forza di um solo architetto ma col podere conbinato di
multi – era il principio della mutua promessa e della comune deliberazione1.’ L’autorità di un corpo político co
costituito non consiste piú, in tal modo, in uma sanzione transcendente, ma rinvia allá fondazione medesima e al
ricordo di tale impresa: l’ autorità risiede nella memoria dell’ inizio comune. È questo l’ único senso possible del
tentativo di riportarsi al concetto romano di autorità, e dell’ interesse degli uomini delle rivoluzioni per l
antichità clássica, verso cui furono spinti dalle loro stesse esperienze, per le quali avevano bisogno di modelli e
indicazioni.” (SAVARINO. Política ed estética: saggio su Hannah Arendt, p. 104 - 105).
172
continuidade que ligava a política ocidental à fundação da cidade eterna, e que vinculava essa
fundação às memórias pré-históricas da Grécia e de Tróia, fora rompido e não pôde mais ser
renovado. Essa constatação foi inevitável.”
433
Eis aqui a explicitação de Arendt sobre a
ruptura que se encontra presente no fenômeno da Revolução Americana. Nesse caso, não se
trata de negar a relevância que a tradição possui para nortear o presente, mas por meio de seu
fio garantir uma precedência para iluminar pela tradição aquilo que está por vir. O fenômeno
revolucionário do século XVIII é sem precedentes na História, mas ele não deixa de se apoiar
em experiências de fundações que o precederam. Não importa que haja repetições de
fundações, mas uma fundação que se no hiatus da ruptura e não abandone a experiência de
antigas fundações. Pois, o recurso à Antiguidade Clássica não impediu que a Revolução
Americana fosse uma realidade especificamente nova, como salienta Hannah Arendt:
A Revolução Americana, única nesse aspecto a a derrocada do sistema colonial
europeu, e a emergência de novas nações em nosso próprio século, representaram, em
grande parte, não apenas a fundação de um novo corpo político mais ainda o início de
uma história nacional específica.
434
Um exemplo de que a fundação da República Americana não foi uma mera repetição
está na forma como os “Pais Fundadores” a conduziram. A História da Revolução Americana
se inicia com a fundação da República. A forma republicana de governo atraía os
pensadores pré-revolucionários até porque eles se encontravam motivados pela promessa de
durabilidade que caracterizava essa forma de governo. É devido a essa atração que se explica
o surpreendente e profundo respeito que os séculos XVII e XVIII nutriam pelas formas de
governo que existiram em Esparta e Veneza. O que existia por parte dos fundadores da
República Americana, era uma devoção à História dessas duas Repúblicas do Ocidente. Eram
433
ARENT. Da Revolução, p. 170.
434
Ibidem, p. 170.
173
duas repúblicas, que apesar das limitações a elas impostas na época de seus funcionamentos,
carregavam a marca da História de governos estáveis e duráveis.
Quentin Skinner se referiu à importância que a cidade de Veneza obteve como guia
para os fundadores da República. Para ele, dos vários centros por onde as idéias republicanas
continuaram a ser debatidas e celebradas no contexto do final do período renascentista, foi a
cidade de Veneza a que mais procurou exibir o mais duradouro apego no que tange aos
tradicionais valores de independência e de auto-governo. O historiador afirma também que no
momento em que o resto da Itália sucumbia à regra dos signori, os venezianos demonstraram
que jamais seriam capazes de renunciar a suas antigas liberdades. Para isso, os venezianos
deram continuidade à constituição de governo, então estabelecido no ano de 1297 alicerçado
em três elementos principais, a saber: o Consiglio Grande (corpo responsável pela eleição da
maior parte dos magistrados; o Senado (controlava as relações exteriores e as finanças); e o
Doge (por meio de seu conselho, possuía o papel de chefe eleito do governo).
435
E devido ao
importante papel que os espaços de constituição e continuidade de governo possuem, que para
Hannah Arendt vem a predileção dos homens das Revoluções aos “senados,” uma vez que
cabe a estas instituições a manutenção da estabilidade que é respaldada pela autoridade das
mesmas.
436
Evidencia-se que Arendt quer assinalar que é justamente o fato das Revoluções serem
algo inteiramente novo que os seus patronos tiveram necessidade de buscar ajuda no passado.
O novo é caracterizado pela insegurança. A novidade é como um abismo onde a aventura
iniciada pelo fundador é efetivada.
Quando somos lançados a um abismo, somos então forçados a nos agarrar a algo para
então nos apoiar em algum tipo de segurança, uma vez que desconhecemos ou não
conseguimos vislumbrar até onde podemos chegar. Portanto, o ato de agarrar-se às lendas
435
SKINNER. As Fundações do Pensamento Moderno, p. 160.
436
ARENDT. Da Revolução, p. 179.
174
fundadoras como a da fundação de Roma expressa na Eneida de Virgílio, foi o recurso em
que os homens de ação da Revolução se apoiaram para lidar com o abismo no qual eles se
entranharam. As lendas fundadoras passaram a funcionar como um instrumento para esses
homens de ação resolverem os problemas inerentes ao começo. A fundação por ser um evento
que nos coloca diante do abismo do começo faz com que por causa dela o homem fique diante
da necessidade de se utilizar da sua liberdade. Portanto, lidar com o começo é realmente um
problema que se caracteriza por certas singularidades a respeito do poder de tomada de
decisões, porque ele traz consigo um elemento de completa arbitrariedade. Isso porque,
lançar-se no abismo da liberdade, significa fazer ou não fazer algo. Esse lançar-se no abismo,
significa também a “crença clara e precisa de que uma vez que uma coisa é feita não pode ser
desfeita, de que a memória humana, contanto a História sobrevive ao arrependimento e à
destruição.”
437
É por isso que se diz que os homens de ação das Revoluções modernas lançaram-se
em um abismo da liberdade. Eles precisavam superar o desafio da novidade, fruto da
capacidade humana de lidar com a natalidade política presente em cada um de nós, isto é,
precisavam lidar com a liberdade traduzida na natalidade política que é uma categoria inerente
à nossa condição humana.
Dessa maneira, foi abraçando o novo e ao mesmo tempo buscando ajuda no passado
que os homens das Revoluções do século XVIII estabeleceram a fundação de um corpo
político com características sem precedentes na História de nosso pensamento político
ocidental. Porém, nessa investida ocorreram diferenças e semelhanças no processo de
fundação do corpo político das Revoluções, assunto que abordaremos nos próximos ítens.
437
ARENDT. The Life of the Mind. p. 207; A vida do espírito, p. 341.
175
3.2 Diferenças ocorridas no Processo de Fundação do Corpo Político nas
Revoluções
Por se tratar de duas importantes Revoluções ocorridas no século XVIII, as análises
arendtianas a respeito da fundação do corpo político no seio de ambas não poderiam somente
apontar semelhanças em ambos os processos de criação das novas realidades políticas. Seria
uma situação de muitas coincidências, caso não fossem apresentadas as diferenças ocorridas
no processo de fundação do corpo político nas experiências dessas duas grandes Revoluções
que marcaram o curso da modernidade.
Como salientamos, o propósito central desse nosso trabalho de pesquisa é o de
explicitar como se processa a fundação do corpo político no âmbito das Revoluções
Americana e Francesa segundo Hannah Arendt. Para que tenhamos um bom entendimento de
como isso ocorre, lançar mão da demonstração das diferenças registradas no processo de
fundação dessas novas realidades políticas pode nesse caso, se constituir como um de nossos
auxílios indispensáveis para a explicitação do propósito central desse nosso trabalho.
Hannah Arendt aponta várias diferenças entre as Revoluções Americana e Francesa.
Pois, é por meio de pontos de vistas variados que a autora vai construindo de uma maneira
comparativa as suas análises que evidenciam as diferenças ocorridas no interior das duas
importantes Revoluções. Interessa-nos analisá-las sob o ponto de vista da fundação do corpo
político. Eis, o nosso interesse em salientar que as diferenças existentes entre essas duas
formas de corpos políticos, historicamente constituídas e que ambas as Revoluções herdaram,
certamente, influenciaram a configuração dos novos corpos políticos que foram concebidos
por cada uma dessas duas grandes Revoluções. Por isso, nesse ítem exporemos somente as
diferenças condizentes com este propósito central de nossa pesquisa.
176
Para Hannah Arendt, em primeiro lugar, houve diferenças entre as duas Revoluções
naquilo que diz respeito à influência que os ideais de cada uma delas tiveram no tocante ao
resto do planeta. Arendt pretende demonstrar em que medida os fundamentos teóricos e
pontos práticos presentes nas Revoluções Francesa e Americana refletiram em outros
acontecimentos políticos que se efetivaram depois do século XVIII.
Existe uma advertência de Hannah Arendt quando ela interpreta a Revolução Francesa
classificando-a como a Revolução que ateou fogo no mundo e ao mesmo tempo nega esse
papel à Revolução Americana.
438
Ora, atear fogo é um tipo de atitude cujo significado é o de
provocar a expansão das chamas. O avanço do fogo, ou seja, o seu alastramento por meio das
chamas, conseqüentemente, transforma ambientes e ilumina os lugares por onde ele se situa.
A visibilidade apresentada pelas suas chamas, são focos de luzes que dificilmente passam
despercebidos por aqueles que deparam com elas quando colocadas em suas direções. Por
onde passa, o fogo deixa marcas que por sua vez influenciam os ambientes que são tomados
pelos efeitos de sua expansão. Por esse motivo, as conseqüências deixadas pela influência do
fogo nos ambientes por onde ele passa, podem ser percebidas por muito tempo.
E assim, como um fogo abrasador que produz inúmeras chamas, que quando ateadas
influenciam ambientes por muito tempo, foi que a Revolução Francesa no entendimento de
Hannah Arendt incendiou o resto do mundo por meio do arcabouço de seus princípios
teóricos, bem como dos acontecimentos que caracterizam a sua praxis. O fato de a Revolução
Francesa ter influenciado o mundo de maneira diferente em relação a outras Revoluções,
principalmente em relação à Revolução Americana que veio antes dela, é visto como um
lamento por parte de Hannah Arendt.
438
ARENDT. Da Revolução, p. 44.
177
Esse lamento arendtiano baseado naquilo que ela denominou de “triste verdade da
questão,”
439
é também devido ao fato da Revolução Francesa ter sobressaído mais que a
Americana em termos de influências teórico-políticas pelo resto do mundo. Essa situação é
verificada pela autora, quando ela se refere por meio de elogios e destaques práticos a
questões relevantes ocorridas no seio da Revolução Americana. Por isso, ela declara que “a
colonização da América do Norte e o governo republicano dos Estados Unidos constituem
talvez o maior e certamente o mais audacioso empreendimento do povo europeu.”
440
Um desses motivos é que para Hannah Arendt a fundação dos Estados Unidos da
América se efetivou por iniciativa própria. Foi uma experiência que se consolidou por meio
da fundação de auto-governos. Nota-se, que esse projeto de auto-governo que os colonos
empreenderam na América falou mais alto para eles próprios do que para o restante do
mundo. Mesmo que os frutos desse empreendimento tenham tido resultados eficazes, o
desapego político dos colonos com relação ao Velho Continente, teve como conseqüência, o
seu esquecimento pelo resto do mundo. O empreendimento dos colonos da América do Norte
foi por pouco mais de cem anos efetivado de uma maneira esplendorosa e ao mesmo tempo
isolada do continente mãe.
441
O que temos a partir dessa experiência de colonização, é que ela resultou em um tipo
de comportamento dos colonos que se expressou por meio de um certo desapego ao Velho
Continente. O que se verificou é que no outro lado do Atlântico, os colonos passaram a
439
Esse lamento arendtiano reside na denominação que a autora lhe de “triste verdade da questão.” Tal
demonstração significa que o fato da Revolução Francesa, embora tenha redundado em desastre, tenha feito
História no mundo, ou seja, muitas mudanças políticas de caráter estrutural que aconteceu em outras regiões do
mundo sofreram a influência dos acontecimentos revolucionários ocorridos na França. Diante disso, o que temos
é a considerável marca da Revolução Francesa influenciando diversas partes do mapa político de nosso planeta.
O que aconteceu foi que os ideais da Revolução Francesa se desdobraram por meio de acontecimentos políticos
de caráter revolucionário, ocorridos em outras regiões do planeta; ao passo que a Revolução Americana,
considerada pela autora como triunfalmente vitoriosa não conseguiu obter o mesmo êxito que a Revolução
Francesa. Isso porque, enquanto a Revolução do Velho continente teve suas idéias alastradas pelo mundo, a
Revolução do Novo Mundo permaneceu como um acontecimento caracterizado por uma importância quase que
apenas local. (ARENDT. Da Revolução, p. 45).
440
Ibidem, p. 44.
441
ARENDT. Da Revolução, p. 44.
178
conquistar tudo aquilo que precisavam para sobreviver e a partir daí, o resultado foi a
fundação de uma nova pátria.
O que se percebe é que a fundação dos Estados Unidos da América se fez amparada
no trabalho pela sobrevivência caracterizado pelo sentido de busca de enriquecimento, que
acabou por provocar a mudança do mapa político do mundo do século XVIII. Do final do
século XIX em diante, os norte-americanos tiveram que conviver com o que Arendt considera
como tríplice investida traduzida na urbanização, na industrialização e na imigração em
massa.
442
O resultado dessa tríplice investida é que os americanos a partir daí, não tiveram
outra saída a não ser a de constituir uma nação e um país moderno e desenvolvido em termos
de progresso.
443
Mas essa relevância política e econômica da nova nação edificada no Novo
Continente, caracterizada como fruto de um projeto de colonização bem sucedida, não bastou
para que os feitos da sua Revolução fundadora pudessem conseguir influenciar o resto do
mundo.
Para Hannah Arendt, esse desinteresse do resto do mundo pelos ideais da Revolução
Americana é também considerado um tipo de esterelidade, ou seja, a influência da Revolução
Americana, em termos de política mundial, possui um resultado caracterizado como de baixa
fertilidade paradigmática. Essa esterelidade reside no fato de o interesse pelo pensamento e
pela teoria política terem se esgotado logo após o momento em que a tarefa da fundação dos
Estados Unidos foi realizada. A nossa autora realça que não houve interesse do resto do
mundo pelo paradigma apresentado pelas teorias que fundamentaram a Revolução Americana.
O resultado dessa esterelidade ou da baixa fertilidade paradigmática foi a maneira pela qual
442
ARENDT. Da Revolução, 44.
443
O mito do progresso é rejeitado por Arendt no momento em que ele é equiparado com o desafio trazido pela
categoria do novo. Sobre isso, comenta Françoise Collin: “La passion du nouveau, dans la pensée arendtenne, va
de pair avec une récusation du mythe du Progrès. Car si le nouveau est lié à l’inattendu, le Progrès implique au
contraire le développement linéaire fût-il exponentiel d´un modèle déjà présent. Aussi paradoxal que cela puisse
paraître, l’idée moderne du Progrès interdit tout nouveau, car le progrès c’est la continuation et le développement
d´un monde définí, selon les mêmes schèmes.” (COLLIN. Du privé et du public. Les Cahiers du Grif, p.
57).
179
como as idéias da Revolução Americana foram recebidas por atores e espectadores de outras
Revoluções que ocorreram em outras partes do mundo.
444
É importante lembrar que a posição de Arendt a respeito da influência da Revolução
Americana no estabelecimento de outras Revoluções no resto do mundo, no sentido de que ela
teria sido estéril, em termos de receptividade, é motivo de discordância. De acordo com Isabel
Andrade Maison, a Revolução Americana, no entanto, influenciou até mesmo a
Independência do Brasil, contrariando a posição de Arendt. Essa comentadora de Arendt diz
que “sua análise da revolução americana possibilita o esclarecimento das afinidades entre os
objetivos, estratégias e concepções existentes entre os cidadãos que se comprometeram com
um projeto de independência nos Estados Unidos e no Brasil.”
445
Por outro lado, a autora acredita que houve por parte dos homens da Revolução
Francesa um acentuado interesse teórico e de pensamento conceitual por pensadores
446
e
filósofos europeus, que contribuíram de forma decisiva para o seu sucesso mundial, com base
no seu fim desastroso.
447
Para Franco Venturi, “não é por acaso que a forma antiga e clássica
444
ARENDT. Da Revolução, p. 175.
445
MARSON. Hannah Arendt e a Revolução: resonâncias da Revolução americana no império brasileiro. In:
DUARTE, LOPREATO e MAGALHAES (Orgs.). A banalização da violência: a atualidade do pensamento de
Hannah Arendt, p. 228. “Podemos reconhecer ressonâncias destes princípios na luta política e nos projetos que
engendraram a independência do Brasil e caracterizaram o jogo parlamentar vivido nas primeiras décadas de
vida da nação brasileira. Elas aparecem, com clareza, em inúmeras circunstâncias: por exemplo, nos protestos da
Câmara do Recife, sistematizados por Frei Joaquin do Amor Divino Caneca quando da outorga da Constituição
de 1824; em registros contemporâneos ou rememorativos da ‘revolução do 7 de abril de 1831’ data da abdicação
do Imperador, mais particularmente nos escritos do comerciante e historiador inglês John Armitage, e dos
políticos Teófilo Ottoni, Francisco Sales Torres Homem, o Timandro, e de Justiniano José da Rocha. E também
nas restrições à centralização política e ao poder moderador apresentadas por Tavares Bastos, na década de 1870.
Tais depoimentos seriam posteriormente retomados, por Joaquim Nabuco, Raimundo Faoro, e por Paulo Perira
de Castro, para identificar uma fracassada ‘experiência republicana’ intentata particularmente durante o período
regencial (1831-1840). Portanto, minha interveção tem por objetivo abordar um possível diálogo entre a
revolução americana na leitura apresentada por Hannah Arendt e situações vivenciadas no Brasil registradas
em alguns destes depoimentos mencionados.” (Ibidem, p. 229 - 230).
446
Nesse caso, o Iluminismo absolvido pelos franceses e por outras nações, teria contribuído consideravelmente
para o embasamento teórico que motivou a Revolução de 1789 e para outras que a sucederam. Obviamente, em
contraposição ao feudalismo. É por isso que, para Franco Venturi: “Não dúvida de que o iluminismo, ou
certos aspectos dele, tornaram-se em um certo momento instrumentos de defesa e de ataque na luta contra a
sobrevivência do mundo feudal, senhorial, medieval na França, na Itália, na Espanha e alhures. Também é
verdade que esta função não foi sempre nem em todo lugar a tarefa do iluminismo.” (VENTURI. Utopia e
Reforma no Iluminismo, p. 4).
447
ARENDT. Da Revolução, p. 175 - 176.
180
do pensamento republicano foi particularmente evidente na França, durante os últimos
decênios do século, até se tornar explosiva durante a Revolução.”
448
O fato de ter havido por parte da Revolução Francesa um maior interesse teórico dos
seus fundamentos, não significa que a Revolução Americana não tenha se apoiado
relevantemente em teorias políticas que a fomentaram. Parece que o divisor de águas dessa
questão, encontra-se no fato da Revolução Americana já ter vivenciado na prática antes
mesmo dela acontecer, o que a cultura política livresca anunciava em seus conteúdos. As
teorias políticas que sustentaram as duas Revoluções do Século XVIII eram semelhantes, a
diferença estava no fato de que em uma delas já se praticava o conteúdo dessas teorias e, em
outra, o sentido contido nessas teorias não havia se concretizado. Sobre isso diz Hannah
Arendt:
Uma certa desconfiança de generalidades históricas que tinham os fundadores da
pátria, fazia parte, inegavelmente de sua herança inglesa, mas mesmo um
conhecimento superficial de seus escritos mostra claramente que eles eram mais
versados nos caminhos da “antiga e nova prudência” do que os seus colegas do Velho
Mundo, e mais inclinados a buscar nos livros uma diretriz para suas ações. Ademais,
os livros por eles consultados eram exatamente os mesmos que, na época,
influenciaram as principais vertentes do pensamento europeu, e, embora seja verdade
que a experiência real de ser um “participante do governo” fosse relativamente bem
conhecida na América antes da revolução, quando os homens de letras ainda tinham
de pesquisar o seu significado arquitetando utopias ou “rebuscando os arcanos da
história antiga,” não é menos verdade que os conteúdos daquilo, que de um lado,
representava uma realidade, e do outro, um mero sonho, eram simplesmente
diferentes.
449
Percebe-se que o apego aos fundamentos teóricos por parte da Revolução Francesa
antes e depois de seus acontecimentos teve reflexos no mapa georevolucionário do mundo dos
séculos XIX e XX. Para Hannah Arendt depois que a Revolução tornou-se uma das
ocorrências de caráter comum na vida política dos diversos países e continentes, eles
448
VENTURI. Utopia e Reforma no Iluminismo, p. 53.
449
ARENDT. Da Revolução, p. 175.
181
passaram a falar e a agir em nome das Revoluções Francesa, Russa
450
e Chinesa. Aconteceu
que essas diversas Revoluções não se entusiasmaram com a Revolução Americana no sentido
de tê-la como referência teórica e prática para as suas ações. É como se os revolucionários
desses países nunca tivessem ouvido falar sobre uma Revolução ocorrida na América do
Norte. Esses revolucionários certamente conheciam o conteúdo da Revolução Americana,
mas em termos de recepção, nunca a assumiram como paradigma para as suas ações. Nesse
sentido, é como se eles nunca tivessem ouvido falar da Revolução Americana.
Um outro aspecto que acentua as diferenças ocorridas entre as Revoluções Francesa e
Americana, repousa na questão social. As implicações da questão social referentes à fundação
do corpo político merece nossa atenção.
Hannah Arendt remonta a Marx no momento em que ela se refere à questão social.
Para ela, Karl Marx é o teórico da questão social quando salienta que “mais de meio século
decorreu antes da transformação dos Direitos do Homem nos direitos dos san-culottes, e que a
abdicação da liberdade em face dos ditames da necessidade, encontrasse o seu teórico.
451
É
por essa razão que a nossa autora, ao tratar da questão social no âmbito das Revoluções
recorre a conceitos cunhados por Karl Marx. Eugênia Sales Wagner observa que para Hannah
Arendt, Marx uma vez inspirado na Revolução Francesa passou a associar o evento
revolucionário às necessidades do movimento histórico. Ela nos lembra que Marx foi
considerado pela nossa autora como “o mais teórico que as revoluções jamais tiveram” e que
era “muito mais interessado em História do que em política.” O autor de O Capital teria
colocado em destaque a questão social, que por sua vez havia ocupado o palco da Revolução
450
David Watson nos lembra a ilogicidade do conceito de revolução permanente quando aplicado à Revolução
Russa, considerando o fato desse evento ter se apegado à Revolução Francesa em detrimento da Revolução
Americana. Para ele, “no caso da Rússia, e especialmente abordando o que é, para Arendt, o ilógico conceito de
revolução permanente, os resultados são ainda mais catastróficos. Ao ater-se ao ‘curso dos acontecimentos’ da
Revolução Francesa em detrimento dos homens da Revolução Americana, os bolcheviques teriam se tornado
vítimas da ideologia e arquitetos do terror. O que eles aprenderam foi ‘história e não a ação’ (essa última
discutida nos termos estritos de A Condição Humana): ‘foram iludidos pela história e se tornaram os bobos da
história.’” (WATSON. Hannah Arendt, p. 96).
451
ARENDT. Da Revolução, p. 49.
182
Francesa, em detrimento dos objetivos que deram início à mesma, que se encontravam
voltados, na versão dos próprios revolucionários, para a fundação da liberdade.
452
Hannah
Arendt compactua com Karl Marx a idéia de que “a razão pela qual a Revolução Francesa
falhou em instituir a liberdade foi porque fracassou em resolver a questão social. Daí ele
concluir que a liberdade e pobreza eram incompatíveis.”
453
Devido ao propósito central desse nosso trabalho de pesquisa, não nos interessa aqui
analisar o lugar que a teoria marxista relativa à questão social ocupa nas análises de Arendt. O
que nos interessa nesse momento é que, em Arendt, a questão social constitui-se como um
divisor de águas naquilo que se refere à fundação de um corpo político que concebe em seu
interior a manifestação da liberdade política. Dito de um outro modo, a questão social teve
implicações que mudaram os rumos das Revoluções Francesa e Americana e que possibilitou
que houvesse diferenciação em cada uma delas.
Do ponto de vista de Hannah Arendt, o corpo político caracterizado pela liberdade
política tem que apresentar em seu interior a possibilidade da participação dos membros nele
envolvidos por meio de atos e palavras no âmbito do espaço público. Acredita a autora que
uma vez que os homens estão presos à pobreza e à opressão, eles ficam amarrados ao campo
das necessidades do corpo e por causa disso, eles ficam propícios e carentes por libertação.
Isso, porque, para a autora “falando de uma maneira geral, liberdade política ou significa
‘participar do governo’ ou não significa nada.”
454
Nesse caso, enquanto os pobres se
preocupam em se libertarem das necessidades da vida biológica, não tem como eles se
ocuparem com a liberdade no sentido de participação nos negócios públicos. De acordo com
André Duarte, Hannah Arendt nunca teve a pretensão de reduzir o trabalhador ao plano da
pura animalidade, ao contrário disso, o que Arendt procurava era que apesar do fato de todo
homem ser necessariamente um animal laborans, ele pode se tornar algo que avance mais que
452
WAGNER. E. S. Hannah Arendt e Karl Marx: o mundo do trabalho, p. 120.
453
ARENDT. Da Revolução, p. 49.
183
isso. Por esse motivo, antes de exigirmos idealismo aos pobres, temos primeiramente de
torná-los cidadãos. Mas, essa medida envolve mudanças de circunstâncias das vidas privadas
desses pobres, para que eles possam realmente desfrutar do ‘público.’”
455
Percebe-se que é no campo da questão social, por meio da diferenciação entre
liberdade e libertação que a Revolução Francesa se diferencia da Revolução Americana. Essa
diferenciação leva a nossa autora a lidar em suas análises sobre essas duas Revoluções com
delimitação e separação conceitual. Esse comentário é compartilhado com Luca Savarino, que
afirma que a análise comparativa dessas duas maiores Revoluções quando conduzida por
Hannah Arendt se faz no campo da delimitação e da separação conceitual, confrontando o
âmbito político com a esfera privada, bem como, a política com a economia. Savarino não
deixa de comentar que o único caso de Revolução bem sucedida, aos olhos de nossa autora,
foi exatamente aquela que não foi reconhecida como a melhor na maior parte das vezes.
456
Esse, é o caso da Revolução Americana.
Se para Arendt, liberdade política, significa antes de tudo participação no corpo
político, não se pode conceber um corpo político que seja caracterizado pela liberdade se não
não constar em seu interior a participação por meio de atos e palavras. A necessidade de
libertação das amarras da pobreza não se compatibiliza com a participação política. Pelo viés
da interpretação arenditiana, enquanto a liberdade se no campo da política, a libertação
ocorre no campo das necessidades biológicas. Por essa via de interpretação, libertar-se da
pobreza constitui um passo importante para caminhar em direção à conquista da liberdade
política. Conquistar a libertação, constitui-se como um pré-requisito para se chegar à vivência
efetiva da liberdade política.
454
ARENDT. Da Revolução, p. 175.
455
DUARTE. Hannah Arendt e a Modernidade: esquecimento e redescoberta da política. In: CORREIA (Org.).
Transpondo o Abismo: entre a Filosofia e a Política, p. 68.
456
SAVARINO. Política ed estética: saggio su Hannah Arendt, p. 102.
184
Em se tratando de contato com a pobreza, passamos a nos referir a algo que não se
constitui como uma realidade presente na Revolução Americana. Hannah Arendt quer dizer
com isso que, em termos de convivência com a pobreza, a Revolução Americana obteve
sucesso, pois o mesmo não aconteceu com a Revolução Francesa. Por esse motivo, nossa
autora nos adverte dizendo que “a razão do sucesso da primeira e do fracasso da última foi
que o estado de pobreza estava ausente no cenário americano, mas presente em todos os
lugares do mundo.”
457
Tratava-se de um tipo de pobreza que não significava miséria e não se
equiparava com a pobreza reinante na França. Por não pertencerem ao círculo dos miseráveis,
os norte-americanos estavam libertos do campo das necessidades biológicas que a natureza
nos impõe.
458
Mas, a falta de pobreza sócio-econômica predominante na América do Norte, e que,
portanto, é lembrada por Arendt, possui suas raízes na luta pela conquista da riqueza por parte
dos colonizadores, que como ex-pobres da Europa tiveram como motivação atingir a meta de
se enriquecerem em solo americano. Não é porque houve enriquecimento dos imigrantes
europeus em terras do Novo Mundo, que podemos nos esquecer apoiando-se nas análises de
Hannah Arendt da questão dos negros na América. Queremos dizer com isso, que para a nossa
autora, a questão dos negros residentes na América não pode ser deixada de lado. Para ela, “a
inexistência da questão social no cenário americano era, no final das contas, bastante ilusória,
e a miséria abjeta e degradante estava presente em toda a parte, na forma da escravidão e do
trabalho dos negros.”
459
457
ARENDT. Da Revolução, p. 54.
458
A esse respeito, comenta Françoise Colin: “Le grand malheur de la révolution française et de la plupart des
révolutions contemporaines, sur lesqueles tranche la volution américaine c’est qu’ elle épuise tout son élan
dans la résolution de la misère. Certes, pour permettre la fondation de la liberté, l’instauration d’une vie
politique, il faut que les besoins soient satisfaits, mais cette satisfaction, selon Arendt, relève plus d’une gestion
en quelque sorte tecnocratique que de l’iniciative politique. Si l’un est un préalable de l’autre, ils ne sont
cependant pas de même nature. Et la grande chance de la révolution américaine c’est de n’avoir pas d’abord
gérer la misère. Car il n’y a de véritable espace de liberte qu’ une fois dépassée celle-ci.” (COLIN. Du privé et
du public. Hannah Arendt: Les Cahiers du Grif,mero 33, p. 50.).
459
ARENDT. Da Revolução, p. 56.
185
A escravidão negra norte-americana não influenciou os homens da Revolução, no que
tange à questão do sentimento da compaixão, isto é diferentemente de outras Revoluções no
caso da Revolução Americana, a compaixão não desempenhou nenhum papel naquilo que diz
respeito à motivação dos seus atores. Nota-se o quanto o escravo, e não o pobre, era
totalmente desprezado pelos homens da Revolução Americana. O que se percebe, é que o
escravo no caso do tratamento dado a ele pelos norte-americanos, não era levado em conta
nem como pobre. É nessa perspectiva, que a questão de inclusão social do negro é tida por
Hannah Arendt como algo que a faz lembrar a primeira relutância dos pais fundadores da
República norte-americana em seguir o conselho de Jefferson no que diz respeito a abolição
do crime de escravidão. A autora nos lembra que Jefferson acabou cedendo às pressões
impostas por seus parceiros de fundação por razão de natureza prática. Mas Jefferson,
continuou mantendo o seu senso político para dizer depois de ter visto a luta vencida: “Tremo
quando penso que Deus é justo.” Nesse caso, ele não tremia pelos negros e nem pelos
brancos, mas centrava a sua preocupação no âmbito do destino da República, porque ele tinha
consciência que um dos seus princípios vitais fora violado ainda no seu início. Pois não era a
segregação racial e a discriminação, independente das formas em que elas pudessem se
apresentar, mas naquele momento o que estava em evidência era um crime original que
pudesse se perpetuar na História dos Estados Unidos e que se encontrava na própria legislação
racial.
460
Viviam na América em meados do século XVIII, aproximadamente 400.000 negros
e cerca de 1.850.000 brancos. Evidencia-se, então, que a escravidão negra não estava naquele
momento enquadrada na questão social. Portanto, para os americanos, bem como para os
europeus, a escravidão não fazia parte da questão social. Questões relativas aos direitos civis e
à liberdade, eram tratados a partir da perspectiva dos homens brancos que se apresentavam
como os únicos detentores dessas prerrogativas.
460
ARENDT. Reflexões sobre Little Rock. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 264 - 265.
186
O ambiente de prosperidade que tomou conta da população branca da América do
Norte era tão forte que não foi considerado o fato de que a escravidão era uma questão de
desigualdade social. Nas palavras de Arendt: “É como se a Revolução Americana tivesse se
encerrado numa torre de marfim, na qual o tenebroso espetáculo da miséria humana e as
vozes fantasmagóricas da pobreza abjeta jamais penetraram.”
461
A partir daí, percebe-se que a
diferença entre a Revolução Americana e a Francesa no que tange ao aspecto da questão
social é para Hannah Arendt uma questão relevante. Porque no caso atribuído às Treze
Colônias, o que se assinala é que elas nunca foram avassaladas pela pobreza e essa situação
foi substituída por uma “paixão fatal pelo enriquecimento rápido.” Foi essa paixão, que ao
contrário do que ocorreu na França, tomou o lugar da necessidade e, conseqüentemente,
constituiu-se como o caminho trilhado pelos Pais Fundadores da República. Ela diz que no
caso da nação francesa, a liberdade ficou comprometida porque “o resultado foi que a
necessidade invadiu o domínio político, o único domínio em que os homens podem ser
verdadeiramente livres.”
462
Evidencia-se que a fundação do corpo político na América do Norte baseou-se na luta
dos imigrantes pobres da Europa britânica que vieram para as terras do Novo Mundo
inspirados na fundação da liberdade. Essa empreitada resultou no enriquecimento econômico
e político desses imigrantes, porque o que os novos habitantes brancos da América almejaram
e conseguiram foi se libertarem das amarras do campo das necessidades biológicas e fundar
uma nova realidade política, situação bastante diferente da que aconteceu com a França. O
que aconteceu no Velho Mundo foi o fato de que a França na época da Revolução, ainda
estava presa ao campo das necessidades biológicas,
463
conseqüentemente tinha que lidar com
461
ARENDT. Da Revolução, p. 75.
462
Ibidem, p. 90.
463
As amarras da questão social implica sofrimentos, porque, devido à situação de miséria, as necessidades
biológicas do corpo humano não são satisfeitas. A França é insistentemente lembrada por Arendt como o palco
em que tudo isso aconteceu. Essa situação é lembrada por André Enegrén que diz: “Qué sucedioó em Francia?
‘De entrada la Revolucion Francesa se separó del camino de la fundación en razón dela presencia inmediata del
sufrimiento’ la irrupción del sufrimientoen la escena revolucionaria, traducción de la urgente solicitación del
187
os anseios de libertação das amarras da questão social. Por essa razão, enquanto o sonho da
Revolução Americana se baseou na instituição da liberdade,
464
a Revolução Francesa se
prendeu ao sonho da libertação do homem.
465
No entanto, a instituição da liberdade em terras
do Novo mundo, não incluiu os negros em suas fileiras.
Quando se fala em questão social em termos da interpretação arendtiana, remonta-se
diretamente à questão da liberdade política. Isso porque uma não se compatibiliza com a
outra. Para se compreenderem os entraves que a questão social teve no âmbito da Revolução
Francesa, torna-se necessário perceber que esse entrave não fez parte dos ditames dos homens
de ação da Revolução Americana.
Portanto, temos também como um dos aspectos que diferenciam as duas Revoluções
do século XVIII, a questão da liberdade política. Esse diferencial se evidencia quando ele é
abordado por ela na perspectiva de que a liberdade política se consolidou notadamente de
maneira mais presente na América do Norte. Arendt insiste em demonstrar esse diferencial
quando salienta ao dizer que enquanto no Velho Mundo existiam homens que sonhavam com
a liberdade pública, no Novo Mundo existiam homens que haviam saboreado a felicidade
pública.
466
Essa contraposição é relevante, e, é lamentável que a inclusão política do negro
não ocorreu da mesma maneira que ocorreu com os brancos, em terras americanas.
proceso vital que somete a los hombres a lo que en ellos hay de biológico, ahogaría el impulso propiamente
político de los hombres de 1789. En efecto, Saint-Just tenia mucha razón y ‘los malheureux son las potencias de
la tierra’ pero la voz de la naturaleza, que lleva en ella ‘la fuerza viva del verdadero sufrimiento’, sigue siendo,
precisamente, una fuerza incapaz de transformarse en poder político en el sentido de Arendt. Pretender con los
sans-cullotes la felicidad del pueblo por medio de los derechos a la vestimenta, a la alimentación y a la
reproducción de la especie es optar por la simple liberación, la liberty from podríamos decir, que es solo una
condicion exterior de la liberdad ganada por la fundación política, que es liberty to, liberdad para la acción.”
(ENEGRÉN. Revolución y Fundación. Nueva Sociedad, p. 59).
464
A fundação da liberdade política na América do Norte, situação que representou a vitória do político sobre o
social, é um fator de contribuição para o entendimento do conceito de Revolução. Berenice Cavalcante nos
adverte sobre isso, dizendo: “Para ela, a Convenção Jacobina assinala o momento de emergênciada ‘questão
social’ no mundo moderno, isto é, da politização do tema da pobreza. Esta afirmação reforça e fundamenta o
argumento anterior, acerca do impasse entre liberdade e necessidade, pois jacobinos e sans-cullottees não teriam
feito jamais do que um movimento de ‘libertação,’ que de forma alguma se confundiria com a fundação da
liberdade.” (BIGNOTTO & MORAES. Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias, p. 181).
465
ARENDT. Da Revolução, p. 111.
466
Ibidem, p. 113.
188
O que se compreende em Hannah Arendt por liberdade política, é a que acontece no
campo da ação humana, que se na esfera do mundo prático, ou seja, ela ocorre no espaço
público. Em termos de liberdade política, a América do Norte experimentou um tipo de
pragmatismo da liberdade.
467
Torna-se necessário afirmar que aquilo que na França se
desejava, na América do Norte se tratava de uma realidade sem volta. A esse respeito
salienta Hannah Arendt:
O que na França era uma paixão e um “gosto,” na América era nitidamente uma
experiência, e a pragmática americana que, especialmente no século XVIII, falava de
uma “felicidade pública,” enquanto os franceses se referiam a “liberdade pública,”
mostra com propriedade essa diferença. A questão é que os americanos sabiam que a
liberdade pública consistia em haver participação na gestão pública, e que as
atividades ligadas a essa gestão não constituíam, de forma alguma, um ônus, mas
davam àqueles que as exerciam em público um sentimento que não usufruiriam em
nenhum outro lugar.
468
Podemos a partir daí, perceber que no caso da realidade política dos norte-americanos,
a felicidade pública era a prática da liberdade pública ou política, ou seja, os habitantes do
Novo Mundo experimentaram o sabor da participação na gestão dos negócios públicos.
469
Em
467
O destaque do político sobre o social como resultado dos acontecimentos da Revolução Americana em
relação à Revolução Francesa é comentado por André Enegrén da seguinte maneira: Los acontecimientos
tomaron um giro muy diferente em América, donde la ambición primitiva de los padres fundadores era
ciertamente de orden político; en el centro de su análisis Arendt coloca el tema de esta pursuit of happiness que
Jefferson incluyó, inesperadamente, em el lugar de la propriedad entre los derechos enunciados en la Declaración
de Independencia. Pero no es la extravagancia de este derecho indefinible y sobre el cual parece imposible
legislar lo que la retiene, ya que ella lo interpreta muy resueltamente en el sentido de esa felicidad pública que la
América pre-revolucionaria había experimentado por la participación espontánea de los colonos en los asuntos
públicos. Basándose en tal interpretación, Arendt cita, entre otros, un texto de Adams que refleja perfectamente
su propio punto de vista sobre la felicidad de la acción: ‘Todo individuo es estimulado ardentemente por el deseo
de ser visto , oído, discutido, aprobado y respetado por el círculo de pesonas que lo rodea y que él conoce’”
(ENEGRÉN. Revolution y fundación. Nueva sociedade, 1994. p. 61).
468
ARENDT. Da Revolução, p. 95.
469
É importante observar no trabalho de Hannah Arendt a questão da relação entre os aspectos politicos e
temporais da liberdade, situação lembrada por Alan Keenan da seguinte maneira: “One of the central difficulties
that confronts Arendt’s theory of freedom (as well as any analysis of it), however, is the tension that exists
within her work between the temporal and the political aspects of freedon. Arendt’s political theory, in its
essence a theory of freedom, is deephy indebted to her understanding of time as radically open to new
possibilities; yet politics for her is clearly not only a matter of time. This tension becomes particularly acute
when the issue at hand is the foudation of political bodies, or the constitution of the political realm itself. If the
political is valuable for Arendt as the espace for, or the mode of, the appearance of freedom, which is itself
inseparable from a particular aspect of time, then the act of founding the political ‘realm’ must be consistent with
that free temporality. But the political realm needs the stability of foundations precisely because freedom cannot
simply be left up to time; for freedom to be active and effective as a force in the world, it requires the continuous
189
termos referentes à realidade política francesa, o que se evidencia é que havia o desejo e a
paixão pela felicidade pública. Mas entre os franceses, o curso das coisas paravam na esfera
do desejo, isto é, elas não chegaram a se constituírem em uma realidade que viesse a fazer
parte do corpo político almejado pelos revolucionários.
É por isso, que Hannah Arendt afirma que Jonhn Adams, em boa medida demonstrou-
se ousado. Tratava-se de uma certa ousadia para mostrar muitas vezes que o povo americano
comparecia às assembléias municipais, participava das discussões das deliberações e das
tomadas de decisões. Nessa perspectiva, os habitantes do Novo Mundo estavam unidos pelo
interesse público da liberdade, porque conseguiram efetivá-la por meio da fundação de um
novo corpo político.
Mas para a nossa autora “comparada a essa experiência americana, a preparação dos
hommes de lettres franceses que haveriam de fazer a revolução, foi exatamente teórica.”
470
Nesse caso, aquilo que na França, não passou de uma teoria, na América tornou-se uma
prática do novo corpo político. Pois, diferentemente da França, a Revolução Americana no
âmbito de seu novo corpo político, soube como criar uma instituição que pudesse comportar
no seu interior a formação pública de opiniões. Porque, para a autora, essa liberdade política
baseada na opinião foi descoberta tanto pela Revolução Francesa como pela Revolução
Americana, mas apenas essa última soube manter a manifestação pública de opiniões dentro
da própria estrutura da República que ela criou.
471
O que temos no âmago dessas análises é a explicitação de que a diferença mais óbvia
e mais decisiva entre as Revoluções do século XVIII consiste em que, por um lado, a herança
histórica da Revolução Americana foi a “monarquia limitada,” porquanto, a Inglaterra
possuía o exemplo da experiência de uma monarquia limitada pelo Parlamento. E por outro
support of political foundations. (KEENAN. Promises, promises: The abyss of Freedom and the loss of the
Political in the Work of Hannah Arendt. Political Theory, p. 298).
470
ARENDT. Da Revolução, p. 96.
471
Ibidem, p. 182.
190
lado, a Revolução Francesa herdou um Absolutismo que segundo a autora, aparentemente
remontava aos séculos do início do Império Romano.
472
O Absolutismo francês se pautava na potestas legilus soluta, ou seja, na idéia de que a
pessoa do rei se constituía como a fonte de todo o poder que se encontra sobre a Terra. As leis
no contexto do Absolutismo, dependiam da vontade do rei. No caso norte-americano, não
havia nenhum potestas legilus soluta, isto é, não existia nenhum poder isento de leis.
473
Luca
Savarino nos adverte que diferentemente da Revolução Americana que nasceu da luta contra
uma monarquia constitucional, o Absolutismo foi uma herança que fortemente pesou no curso
da Revolução Francesa. As conseqüências disso foi que esta Revolução não conseguiu romper
com os conceitos inerentes à tradição do poder e da autoridade do período absolutista. Tanto
que, do ponto de vista estritamente político, Arendt, realça que o erro fatal da Revolução
Francesa foi o de ter elevado juntamente com Sieyes, a soberania da nação ao posto que antes
era ocupado por meio do príncipe absoluto.
474
A nossa autora salienta que em relação ao conflito entre o rei e o parlamento, as
conseqüências tanto na França como na América foram completamente diferentes. Esse
conflito residia na natureza diferenciada que compunha a configuração dos corpos políticos de
ambos os lados do Atlântico. O corpo político criado na América seguiu o fio do viés do
republicanismo moderno, diferentemente do corpo político inglês que se apresenta
caracterizado pela monarquia limitada pelo poder do parlamento. O que aconteceu na
América foi a fundação de uma República que contou com a conseqüente renúncia da
lealdade dos colonos no âmbito de suas relações com o rei. No momento em que a América
rompeu os laços de lealdade com a coroa britânica não houve um colapso político. Porque,
quando isso aconteceu, a América do Norte conseguiu sobreviver enquanto nação, por meio
de uma estrutura organizacional de um corpo político inteiramente novo. Quando eclodiu a
472
ARENDT. Da Revolução, p. 124.
473
Ibidem, p. 125.
191
Revolução Americana a Europa não conhecia nenhum tipo de corpo político que se
diferenciasse daqueles baseados no modelo do Estado-Nação, fosse ele absolutista ou de uma
monarquia constitucional de natureza limitada como no caso da Inglaterra.
475
O grande evento que ocorreu na América do Norte do século XVIII ficou
reconhecidamente considerado de maneira plausível por Hannah Arendt por ele ter resultado
na criação de um corpo político novo nas terras do Novo Mundo, localizadas no outro lado do
Atlântico. Sobre isso, declara a nossa autora:
Do ponto de vista estrito, não havia corpos constituídos em nenhuma parte do Velho
Mundo. O próprio corpo político já era uma inovação nascida das necessidades e do
engenho daqueles
europeus que decidiram deixar o Velho Mundo, não apenas para
colonizar um novo continente, mas também com o propósito de instituir uma nova
ordem mundial.
476
Evidencia-se que a ousadia das massas de imigrantes vindos da Europa resultou numa
estrutura política nova, ou seja, criou-se um corpo político com características bem diferentes
daqueles que o Velho Mundo conhecia.
Com o advento da Independência política dos habitantes do Novo Mundo, eles não
tiveram que conviver com o caos administrativo, pois eles haviam se acostumados com a
experiência de auto-governo no dia-a-dia político das colônias. O que se percebe, é que os
novos habitantes da América já haviam se constituídos, enquanto sociedade, por meio de uma
organização política caracterizada como capaz de sustentar as necessidades ligadas à
construção de uma nova pátria. Essa criação nova surge por meio do viés da participação
política. A partir daí, os americanos passaram a assentar num poder que residia neles próprios.
474
SAVARINO. Política ed estética: saggio su Hannah Arendt, p. 102.
475
Sobre isso, diz a autora: “O que aprendi naqueles primeiros anos, entre a imigração e a naturalização, acabou
por representar mais ou menos um curso autodidata sobre a filosofia política dos Patronos Fundadores, e o que
me convenceu foi a existência factual de um corpo político, totalmente diferente dos estados-nação europeus,
com suas populações homogênias, seu sentido orgânico de história, sua divisão mais ou menos nítida entre
classes, sua soberania nacional e sua noção de uma razão de Estado.” (ARENDT. O Grande Jogo do Mundo. In:
ABRANCHES (Org.). A Dignidade da Política, p. 169 - 170).
476
ARENDT. Da Revolução, p. 145.
192
Em termos de herança histórica, a Revolução Francesa deparou-se com uma realidade
distinta daquela que a América do Norte já conhecia. Essa situação que demonstra a diferença
em termos de herança histórica entre as duas grandes Revoluções encontra sustentação na
afirmação de Arendt: de fato, a ruptura entre o rei e o parlamento lançou toda a nação
francesa num estado de Natureza.”
477
Para Hannah Arendt, os norte-americanos foram bem sucedidos por construírem uma
História política distante do absolutismo, por outro, os franceses uma vez que estavam diante
da ruptura do rei com o parlamento, depararam com as seguintes conseqüências: a dissolução
automática da estrutura política do país e a destruição dos laços de heranças feudais entre seus
habitantes.
Enquanto na América, os colonos não haviam deparado com nenhum tipo de corpo
político nascido naquelas terras e que precedesse à fundação de uma estrutura política nova,
no Velho Mundo ocorreu que o poder que antes estava concentrado nas mãos do rei, com
advento da Revolução, tratava-se de um tipo de poder que passou então a residir no povo. Ao
compreender que o poder encontra-se no povo, ele foi concebido como uma força natural que
por meio da Revolução se viu no direito de arrasar com todas as instituições do Ancien
Regime. Nesse caso, diferentemente da América do Norte, coube à França ter que viver com o
desafio de lidar com a fundação de um novo corpo político em meio a um ambiente
historicamente influenciado pelo absolutismo.
Há um outro aspecto a ser considerado no âmbito das diferenças entre as duas
Revoluções do século XVIII. Trata-se do aspecto da conquista de direitos civis por parte de
ambas as Revoluções. No caso da América do Norte, o novo governo nunca restringiu os
direitos civis. Essa situação analisada pelo ponto de vista apresentado por Hannah Arendt, diz
que por um lado teria logrado o êxito da Revolução Americana, sendo que por outro seria o
motivo por onde a Revolução Francesa teria fracassado. Em outras palavras, o que significou
477
ARENDT. Da Revolução, p. 145.
193
sucesso para os americanos em termos de conquistas de direitos civis, teria sido fracasso para
os franceses ainda na tarefa da fundação.
478
A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” desempenhou um papel
importante no curso da Revolução Francesa. Esses direitos se constituíram como o próprio
fundamento do governo legal. Em se tratando de direitos do homem e do cidadão, existem
diferenças no que tange às duas Revoluções do século XVIII. A Declaração de que “todos os
homens nascem iguais” no caso da França, é repleta de implicações revolucionárias. Tais
implicações se justificavam como necessárias porque a Revolução Francesa se fez no interior
de um país que naquela época ainda possuía estruturas feudais em sua organização política e
social.
479
Devido à influência da estrututura feudal, tradicionalmente dizer que “todos os
homens nascem iguais” não podia soar bem em uma sociedade dividida por estamentos, onde
a nobreza detinha privilégios que o povo não usufruía. O que impedia o povo de ter os
privilégios que existiam de posse da nobreza, era o fato das pessoas não terem nascido em
famílias nobres. A condição social de todas aquelas pessoas que viveram no contexto do
feudalismo era, conseqüentemente, determinada pelo viés do nascimento. Nesse caso, quem
nascesse pobre não poderia ser nobre. Na interpretação de Hannah Arendt, de se destacar
que existe uma diferença de ênfase no que diz respeito à convicção em torno da idéia de que
“todos os homens nascem iguais.” Evidencia-se que, enquanto na França, a idéia de que todos
os homens nascem iguais se deu em meio a uma herança histórica de influência feudal, nos
Estados Unidos, a ênfase dada a esse princípio era outra. Hannah Arendt confirma isso,
dizendo:
a diferença ainda mais significativa na ênfase relativa ao único aspecto
absolutamente novo na enumeração dos direitos civis, que foi a confirmação solene de
478
ARENDT. Da Revolução, p. 107.
479
Ibidem, p. 118 - 119.
194
que esses direitos, a partir de agora, eram direitos de todos os homens sem se levar em
conta a pessoa ou o lugar de seu nascimento
.
480
Evidencia-se que na América a declaração dos direitos civis ocorreram em um
ambiente que não possuía a influência do feudalismo que por sua vez levava em conta a
necessidade de associar os direitos dos homens à condição social herdada por via do
nascimento.
Percebe-se que o que os norte-americanos fizeram foi garantir os direitos civis de
igualdade entre os homens naquilo que diz respeito à constituição do corpo político, ou seja,
para eles “todos os homens devem viver subordinados a um governo constitucional
‘limitado’”
481
num contraponto à herança medieval, a proclamação dos direitos humanos na
França “significou literalmente, que todos os homens, pelo simples fato de haverem nascido,
tornavam-se detentores de certos direitos.”
482
E por último, no campo das diferenças entre as Revoluções Francesa e Americana, o
aspecto que reside na maneira como a Constituição foi elaborada no âmbito de cada uma
delas, constitui-se como algo relevante para ser levado em conta em nossas análises.
No Velho Mundo apostou-se na elaboração de uma Constituição a partir de uma
assembléia central. Mas, no Novo Mundo a situação foi diferente, porque:
O que Madison propôs a respeito da Constituição Americana, isto é, fazer provir sua
“autoridade geral [...] inteiramente das autoridades subordinadas,” repercutiu apenas,
em escala nacional, o que fora feito pelas próprias colônias ao constituírem seus
governos estaduais. Os delegados dos congressos provinciais ou das convenções
populares que esquematizaram as constituições dos governos estaduais, fizeram sua
autoridade promanar das várias jurisdições subordinadas e devidamente organizadas –
distritos, municípios, comarcas; conservar intacta a fonte de sua autoridade.
483
480
ARENDT. Da Revolução, p. 119.
481
Ibidem, p. 119.
482
Ibidem, p. 119.
483
Ibidem, p. 132.
195
O que temos a respeito do exemplo norte-americano de elaboração da Constituição é
que esse processo se realizou por meio de uma metodologia de participação que se processou
de baixo para cima. Numa situação contrária, tivemos a elaboração da Constituição Francesa
que se apoiou em assembléias centrais. Por essa razão, não tinha como o resultado se
apresentar de maneira diferente.
No caso norte americano, os Pais Fundadores tiveram sucesso em suas empreitadas no
que tange à elaboração de uma Constituição vinda dos auto-governos das colônias e devido a
isso, tiveram a seu favor a fundação de um novo corpo político suficientemente estável. Essa
estabilidade provinha da própria Constituição, que se fez como referência “adorada” pelos
novos habitantes do Novo Mundo.
484
A Constituição possui o papel de tornar durável no tempo o enraizamento da fundação
do corpo político. Enfatizaremos essa questão na última parte desse nosso trabalho.
3.3- Semelhanças existentes no processo de Fundação do Corpo Político no
interior das Revoluções
Se por um lado, vimos que existem muitas diferenças entre o evento revolucionário
norte-americano e o francês. Por outro, podemos demonstrar que semelhanças que nos
ajudam a entender como acontece a fundação do corpo político no âmbito das duas
Revoluções do século XVIII. Analisadas através do olhar de Hannah Arendt, essas
semelhanças apresentam pontos de aproximação entre os dois eventos revolucionários
ocorridos nos dois lados do Atlântico.
Diante disso, em termos arendtianos, primeiramente, podemos voltar nossa atenção
para o aspecto da herança histórica no que diz respeito àquilo que se apresenta como fator de
semelhança entre essas duas grandes Revoluções.
196
Para Hannah Arendt, tanto a Revolução Francesa quanto a Americana, foram
protagonizadas em seus estágios iniciais por homens que se encontravam solidamente
convencidos de que antes de tudo teriam que embarcar na tarefa de restaurar uma antiga
ordem de coisas que o despotismo dos monarcas absolutos e os abusos dos governos coloniais
violaram.
485
No desdobramento das ações, o que seria uma restauração, transformou-se em
uma Revolução. Esse foi o destino herdado da herança histórica que os revolucionários dos
dois lados do Atlântico tiveram que enfrentar. Os atores do evento revolucionário tiveram que
lidar com a imprevisibilidade e com o indeterminismo da ação.
Um outro aspecto a ser levado em conta no que tange à questão das semelhanças entre
as Revoluções Americana e Francesa, é o aspecto da busca pela instauração da liberdade
política. Vimos em páginas anteriores que a liberdade política teve conotações práticas de
maneiras diferenciadas no tocante às duas Revoluções, ou seja, os caminhos que essas
Revoluções trilharam dependeram muito de como a liberdade política se fez presente em cada
uma delas. Entretanto, mesmo que a questão da liberdade política tenha levado as duas
Revoluções para caminhos divergentes, numa coisa, ainda durante o curso inicial do
fenômeno revolucionário, elas se convergem. O ponto de encontro entre ambas nessa questão
reside no interesse apaixonado que elas tiveram pela liberdade pública.
486
Nesse caso,
vivenciando ou não a liberdade, o interesse pela sua efetivação no âmbito público, foi algo
comum entre as duas Revoluções ocorridas em lados diferentes do Atlântico.
Percebe-se que, em termos arendtianos, independentemente do sucesso ou do fracasso
referentes às Revoluções Americana e Francesa, mesmo que circunstâncias e acontecimentos
as conduzissem para caminhos diferentes, num aspecto os norte-americanos teriam
concordado com Robespierre no que se refere àquilo que era considerado o objetivo maior da
484
ARENDT. Da Revolução, p. 159.
485
Ibidem, p. 35.
486
Ibidem, p. 94.
197
Revolução: a constituição da liberdade.
487
Liberdade para se livrar das taxações britânicas, no
caso dos colonos americanos, liberdade frente ao poder do absolutismo, no caso dos
franceses. De uma forma ou de outra, a fundação dos corpos políticos de ambas as
Revoluções seriam motivadas pela fundação da liberdade.
O caráter político da liberdade almejada pelos homens das Revoluções dos dois lados
do Atlântico foi se pautando em alguns elementos como a exemplo da opinião. Esse tipo de
liberdade que vai se configurando como uma liberdade política, que vai além do desejo de
derrubar o rei absolutista e a imposição por meio de taxação, é uma categoria que por ser
política implica no uso da opinião. É por esse motivo que Hannah Arendt afirma que “a
opinião foi descoberta tanto pela Revolução Francesa quanto pela Revolução Americana.”
488
A opinião como um elemento inerente à liberdade, era almejada pelos franceses
revolucionários que tinham no fator absolutismo a confirmação política da negação da opinião
e a adesão à obediência. É característico do comportamento dos tiranos do absolutismo buscar
amparo na obediência. Essa atitude não deixa de ser uma forma de consolidação do apoio ao
seu despotismo. É por esse motivo, que Arendt declara que “em política, obediência e apoio
acabam sendo a mesma coisa.”
489
Anne Amiel comentando Hannah Arendt, afirma que as
duas Revoluções foram responsáveis pela descoberta do papel da opinião, até porque,
descobrí-la foi necessário, pois nela se baseia qualquer governo. A opinião aparece, devido
também à crise aberta pela recusa da obediência, isso porque em política, por não ser uma
‘creche,’ nesse caso, obediência e apoio são a mesma coisa.
490
No caso da Revolução Americana, a opinião foi muito importante. Sua relevância
repousa no fato dela passar a ser assumida no âmbito das experiências das assembléias de
deliberação das colônias. No que diz respeito ao padrão da criatividade da Revolução
487
ARENDT. Da Revolução, p. 113.
488
Ibidem, p. 182.
489
Ibidem, p.182.
490
AMIEL. Hannah Arendt: política e acontecimento, p. 116.
198
Americana ela “soube como criar uma instituição duradoura para a formação pública de
opiniões dentro da própria estrutura da República.”
491
É nessa perspectiva que os americanos
conseguiram manter um espaço de manifestação desse tipo de opinião. Mesmo que a questão
da criação de espaços duradouros de manifestação de opinião na França tenha redundado em
fracassos, era essa opinião que se constituía comprovadamente em interesse inicial que foi
capaz de perpassar o desenvolvimento do processo de encaminhamento das duas Revoluções.
Um outro aspecto a ser considerado relevante no conjunto das semelhanças que
envolveram o desenrolar das Revoluções Francesa e Americana foi a forma de governo pela
qual ambas optaram. A fundação de uma República constitui-se em ambos os governos
revolucionários a verdadeira meta.
492
Considerando que essa meta não foi pleiteada pela
França antes de 1792, ou seja, nos seus estágios iniciais, optou-se por um governo de
monarquia constitucional. Em outros termos, o republicanismo foi a forma de governo
almejada pelos homens das Revoluções do Velho e do Novo Mundo, mesmo que essa não
tenha sido a opção primeira da França. A monarquia era a forma de governo que compunha a
realidade do corpo político da Inglaterra e se tratava de uma monarquia limitada pelo
parlamento. No caso da França, o que existia era uma monarquia notadamente absolutista.
Evidencia-se a partir daí, que é no âmbito das duas Revoluções que se pretendeu a
substituição da forma monárquica de governo pelo republicanismo, mesmo que em momentos
diferentes. Portanto, a origem de tornar possível a fundação de corpos políticos republicanos
foi uma realidade comum ao universo das duas Revoluções do século XVIII, não deixando de
realçar que a primeira opção de forma de governo da França não foi republicana.
493
As
Revoluções deixaram em evidência o antagonismo entre Monarquia e República, como
salienta Hannah Arendt:
491
ARENDT. Da Revolução, p. 182.
492
Ibidem, p. 113.
199
No entanto, o ponto a destacar é que ambas as revoluções foram rapidamente levadas
a uma insistência no estabelecimento de governos republicanos, essa insistência,
justamente com o novo e o violento antagonismo entre monarcas e republicanos,
originou-se diretamente das Revoluções.
494
Foi dessa maneira que os homens das Revoluções Francesa em plena harmonia com
os princípios da Revolução Americana depositaram no povo a fonte do poder e da origem das
leis.
495
Nessa perspectiva, o povo assumiria o lugar que antes era ocupado somente pelo rei.
Na América do Norte a opção pela República ocorreu desde o início com a Declaração da
Independência e na França em agosto-setembro de 1792. Foi devido a esse motivo, que os
revolucionários escolheram fundar um corpo político que em seu interior o povo fosse capaz
de se constituir como fonte da condução do poder e da origem das leis necessárias ao
funcionamento dos negócios públicos. É por essa razão que Arendt nos adverte sobre algumas
semelhanças encontradas entre as Revoluções Americana e Francesa naquilo que se refere à
origem do poder.
Quanto à origem do poder, Hannah Arendt nos adverte por meio da convicção de que
a fonte e a origem do legítimo poder político residente no povo constitui-se como um dogma
assumido pelas duas Revoluções dos dois lados do Atlântico. Essa concordância entre ambas
não se fazia somente no que tange à aparência. Na França do Ancien Regime le peuple não
fazia parte do corpo político até então constituído, pois o que existia no Velho Mundo, nesse
sentido, é que o pertencimento a “corpos constituídos” somente era possível por via de
privilégios, nascimento e ocupação.
496
Revolucionários norte-americanos e franceses depararam com o desafio de como
alcançar a autoridade da lei maior, ou seja, da Constituição da qual todas as leis derivam. É
493
Eric J. Hobsbawm afirma que “a constituição de 1791 rechaçou a democracia excessiva com um sistema de
monarquia constitucional baseado num direito devoto dos ‘cidadãos ativos,’ reconhecidamente, bastante amplo.”
(HOBSBAWM. A Revolução Francesa, p. 31-32).
494
ARENDT. Da Revolução, p. 107.
495
Ibidem, p. 125.
200
esse o problema que movimentou os ânimos dos homens das duas Revoluções na tentativa de
buscar uma fonte de autoridade vindo de uma posição de caráter transcendental.
497
“E com
esse problema, que apareceu como necessidade urgente de um absoluto, os homens da
Revolução Americana se envolveram da mesma forma que seus colegas da França.”
498
Para Luca Savarino, tais Revoluções, quando, na tentativa de instaurar um novo
início, elas assinalaram o reaparecimento por meio de vestes diferentes do antigo problema do
absoluto, ou ainda, na dificuldade encontrada de lidar com a novidade da fundação, não restou
outra alternativa para os revolucionários a não ser a de recorrer a antigas fórmulas do passado.
Dessa maneira, o antigo problema do absoluto seria convocado para tentar solucionar os
impasses e as ambigüidades que o processo de secularização de maneira inevitável colocava
para o homem moderno.
499
Em se tratando da Revolução Francesa, Arendt nos apresenta o comportamento do
líder Robespierre frente à questão da necessidade de um respaldo de autoridade superior à
realidade imanente. O que ele almejava era se apoiar numa âncora que pudesse dar
legitimidade à autoridade do novo corpo político. Nesse sentido, a divindade por se encontrar
situada numa dimensão superior, seria a âncora que apoiaria a própria autoridade de
Robespierre. Suas ações precisavam, naquele contexto, de legitimação.
Para a nossa autora, trazer à tona a necessidade de introduzir deuses no âmbito do
corpo político, tratava-se de uma atitude caracterizada por um tipo de desespero. No caso
francês, era como se Robespierre estivesse pretendendo frear o processo revolucionário que
até então, se encontrava como algo incontrolável.
500
Nessa situação, temos de maneira
496
ARENDT. Da Revolução, p. 144.
497
Retomamos mais uma vez ao tema da religião com o objetivo de focar o quanto a busca do absoluto para
legitimar o poder e as leis, foi uma tarefa pleiteada pelos atores das duas Revoluções analisadas por Arendt. Não
queremos lidar com repetições de conceitos e de análises em torno do tema da religião. Nosso propósito nesse
momento, é realçar o quanto a questão do absoluto foi fator de semelhança entre as duas Revoluções que
ocorreram no Velho e no Novo Mundo.
498
ARENDT. Da Revolução, p. 148.
499
SAVARINO. Política ed estética: saggio su Hannah Arendt, p. 102.
500
ARENDT. Da Revolução, p. 148.
201
evidente a marca da irreversibilidade da ação revolucionária, ou seja, naquele momento os
acontecimentos revolucionários haviam se desdobrado por meio de acontecimentos
inesperados. Nesse contexto, o que se percebe, é que a categoria da natalidade enquanto
inerente aos homens de ação da Revolução Francesa, estava fazendo a demonstração de que
agir é cair no abismo da liberdade e, que conseqüentemente, tal atitude era capaz de provocar
o surgimento de uma nova ordem das eras – a novus ordo saeclorum.
Em meio ao desafio apresentado pela ação incontrolável, esse apelo ao transcendente
assumido por Robespierre e intitulado por ele de “Legislador Imortal,” parece não ter
funcionado conforme suas pretensões. Aos olhos interpretativos de Hannah Arendt, o fracasso
dessa empreitada resultou em um grande ato de ridicularidade ou até mesmo numa situação
patética para aqueles que compareceram às cerimônias iniciais, como também para as
gerações posteriores a esses fatos. Para Arendt, essa atitude do líder revolucionário francês se
apresentou como algo compensado ao desprezo anunciado por Lutero e Pascal ao “deus dos
filósofos.” Para ela, era é como se esse “deus dos filósofos” tivesse tomado a decisão de
revelar-se finalmente por meio de um disfarce de palhaço de picadeiro.
501
Também em termos de Revolução Americana, o espetáculo da busca de um absoluto
que respaldasse a legitimação da fonte do poder e de autoridade do novo corpo político não
deixou de ser apresentado por alguns de seus personagens. Tratava-se de homens da
Revolução Americana que marcaram a sua História com intervenções referentes ao papel do
absoluto na questão da legitimização do poder, da origem das leis e da autoridade do novo
corpo político. Um desses homens lembrado por Hannah Arendt, é John Adams que de acordo
com ela se referiu ao transcendente, isto é, ao Ser Supremo denominando-o de Legislador do
Universo. Adams dizia que existem direitos anteriores a todos os governos da Terra que
emanam desse Legislador do Universo. Para mostrar a pertinência dessa sua afirmação John
Adams baseou-se no argumento de que “era opinião geral das nações antigas que apenas a
202
divindade podia desempenhar o importante ofício de dar as leis aos homens.” Segundo
Arendt, nessa assertiva evidencia-se o equívoco de John Adams, pois parece que ele havia
esquecido que nem a Antigüidade romana e nem a grega jamais se perturbaram com isso, ou
seja, a tradição legisladora greco-romana não se baseava na inspiração divina para que ela
pudesse com isso se legitimar.
502
Para a autora, a própria noção de que a lei deve implicar em
ter um legislador fora e acima das leis não se constituía como uma característica típica da
Antigüidade. Pois nesse período da História, depositava-se na figura do tirano o fato dele ser o
personagem que impunha as leis ao povo, às quais ele se submetia. Nesses momentos da
História, não era cabível a idéia de um Legislador que se colocasse acima dos homens. Dessa
busca de um absoluto para fins de legitimação da autoridade e do poder, bem como da origem
das leis no corpo político, nem Jefferson, enquanto personagem importante da Revolução
Americana, escapou desse tipo de tentação. Tanto que, na solenidade de Declaração de
Independência das Treze Colônias, Jefferson se referiu “as leis da Natureza e ao Deus da
Natureza.”
503
Em meio à busca do absoluto que foi encadeada por homens de ação das Revoluções,
Arendt destaca no campo da teoria política as idéias de Montesquieu que se apresentaram
como um contraponto a essa questão. Dito de um outro modo, o recurso à esfera do absoluto
para legitimar a fonte e a origem do poder, não encontrou respaldo na teoria das idéias
políticas de Montesquieu, devido ao fato de que:
501
ARENDT. Da Revolução, p. 148.
502
Margaret Canovan comenta que tanto para os gregos, quanto para os romanos, a concepção de lei jamais
buscava legitimidade na esfera transcendental e que Montesquieu no contexto da tradição ocidental compreendeu
a concepção romana de leis baseada nas relações entre as pessoas. Por isso, ela nos alerta: “Greck and Roman
understanding of law were very different, but both of them were concerned with relations between people rather
than with some transcendent source of authority. Nomos in Greek meant something man-made rather than
natural, and referred to the boundaries that hedge in and limit human activities, thereby providing some stability
amid the endless flux of human affairs. The Roman lex, while quite different, is equally mundane and spatial,
having originally meant a relationship, an ageement or alliance between different parties. Within the Western
tradition, only Montesquieu had understood and revised this Roman conception by describing laws as ‘rappors.’”
(CANOVAN. Hannah Arendt: a reinterprettation of her political though, p. 220 - 221).
203
Isso está intimamente relacionado com o fato de que apenas Montesquieu usou a
palavra “lei” no seu sentido estritamente romano definindo-a, logo no primeiro
capítulo do Espirit des loi, como o rapport a relação subsistente entre entidades
diferentes. É certo que ele também presume a existência de um “Criador e
Mantenedor” do universo, e que ele também fala de um “estado de Natureza” e de
“leis naturais,” mas os rapports que subsistem entre o Criador e a criação, ou entre os
homens no estado de natureza, não são mais do que “regras” ou rigles que definem o
governo do mundo, e sem as quais o próprio mundo não existiria. Por conseguinte,
nem as leis religiosas, nem as leis naturais constituem, para Monstesquieu uma “lei
maior,” no sentido estrito, elas não passam de relações existentes que preservam os
diferentes estados do Ser.
504
Evidencia-se a partir das abordagens feitas por Montesquieu, que ele não despreza a
existência de Deus. Mesmo assim a não faz dele um teórico que necessita recorrer à idéia
de uma lei maior ou de um absoluto que se apresenta acima dos legisladores. Por essa via de
interpretação, Montesquieu mantém a ligação com o fio da tradição da Antigüidade Romana,
assumindo o seu entendimento a respeito da lei no sentido de lex. Trata-se da conexão íntima
que se caracteriza como algo que relaciona duas coisas. Uma vez analisada pelo viés da
tradição romana, a lei se estabelece como ponte que faz ligação entre duas coisas e dessa
maneira ela se apresenta como relativa por natureza e por causa disso não depende de
nenhuma autoridade superior.
505
Ora, de onde teria vindo a necessidade dos fundadores de tomar a atitude de se
amparar em um Ser Supremo ou Superior que pudesse dar respaldo à fonte e à origem do
poder, das leis e da autoridade do corpo político? Para Hannah Arendt, as causas dessa
necessidade repousam na herança do absolutismo que, por sua vez, herdou a tradição do
contexto medieval que se caracterizava como ancorada nos respaldos divinos concedidos ao
poder.
506
No seio do teocentrismo medieval, era inconcebível que houvesse um corpo político
caracterizado pela secularização, ou seja, pela separação entre o poder político e o
503
ARENDT. Da Revolução, p. 149.
504
Ibidem, p. 151.
505
Ibidem, p. 151.
506
Ibidem, p. 152.
204
religioso.
507
Cabia à Igreja, naquele contexto, desempenhar o papel de intermediadora entre a
lei dos homens e a lei de Deus.
Para justificar essa necessidade de conceder amparo religioso às leis dos homens,
Arendt recorre à perda do sentido clássico da palavra lei. A autora adverte que ao longo dos
séculos, o sentido romano de lei foi perdendo lugar. Apesar de toda a força da tradição da
jurisprudência romana, o que prevaleceu foi o sentido de lei como mandamento. Esse sentido
baseia-se nos Mandamentos do Decálogo. Hannah Arendt nos esclarece, dizendo que:
Apenas na medida em que entendemos a lei como um mandamento ao qual os homens
devem obediência, independentemente de seu consentimento ou acordos mútuos, é
que a lei passa a demandar uma fonte transcendente de autoridade para a sua validade,
isto é, uma origem que deve estar acima do poder humano.
508
Dessa maneira, a lei compreendida como possibilidade de garantir legitimamente o
funcionamento do corpo político no caso da Idade Média e do Absolutismo, se prendeu a uma
obediência amparada no poder divino. No contexto das Revoluções Modernas, nos parece
necessário compreender que imaginar uma atitude dos homens das Revoluções que
expressasse uma ausência de apelo a um respaldo transcendental que pudesse legitimar a fonte
de poder, da origem das leis e da autoridade, seria talvez desprezar o quanto em termos
históricos uma tradição não se esvai assim tão rápido. A força de expressão de uma cultura
política mantém influências que refletem por muito tempo. Nesse sentido, o apego a um Ser
Superior anunciado por Robespierre, John Adams e Jefferson soa como se eles estivessem sob
a sombra da herança do absolutismo dos reis e da influência do teocentrismo medieval.
507
De acordo com Luca Savarino, o advento do cristianismo representou uma queda no valor da dignidade da
política, pois quando baseada em contatos ultra-terrenos, a política perde o seu significado de autonomia exigido
pela vida terrena. Confirmando esse seu entendimento, esse comentador, observa: “Con l’avvento del
Cristianesimo, di conseguenza, il valore e la dignità della política decadono irremediabilmente. Una volta posto
come obiettivo primário il conseguimento della vita ultraterrena, la política perde ogni significato autonomo e
viene ridotta ad attività destinata a provvedere alle necessità della vita terrena e a salvaquardare la possibilità di
una riparazione nei confronti delle conguenze dello stato di peccato.(SAVARINO. Política ed estética: saggio
su Hannah Arendt, p. 95 - 96).
508
ARENDT. Da Revolução, p. 152.
205
Por outro lado, a figura de Montesquieu aparece como alguém que se apresenta com a
capacidade de manter viva a chama do fio da tradição antiga clássica. Tradição essa que não
devota a um Ser Transcendental a necessidade de legitimar leis pelo caminho do Absoluto,
isto é, esse descuido Montesquieu não chegou a cometer.
Diante do fato que levou os homens das duas Revoluções a caírem na provocação de
buscar um absoluto que legitimasse as leis que assegurassem o poder do novo corpo político,
houve um tipo de acerto. Trata-se para Hannah Arendt de um acerto que se deu do ponto de
vista político. Significa nesse caso, que os homens das Revoluções acertaram quando
procuraram fundar um novo corpo político acreditando que sua estabilidade e autoridade
deveriam partir de seu próprio início, ou seja, do próprio ato de fundação.
509
De acordo com
Luca Savarino, é aí que reside o sucesso da Revolução Americana e de seus founding
fathers”, pois eles investiram no estabelecimento de um princípio de autoridade sem recorrer
ao auxílio de um elemento de soberania que fosse alicerçado a um princípio de legitimação
que transcendesse o campo político. Os revolucionários passaram a recorrer à tradição
amparada na fundação, voltando-se então para a profundidade do passado, de um modo
especial à tradição do pensamento político romano.
510
A estabilidade do poder do novo corpo
político iria justificar a sua legitimidade no recurso ao ato do começo, isto é, o recurso à
fundação seria em boa medida, sempre lembrado.
Um outro aspecto que demonstra nitidamente semelhanças entre as Revoluções
Francesa e Americana é o aspecto da recuperação dos “antigos direitos” da liberdade e da
propriedade. No contexto dos séculos XVII, XVIII e XIX se acentuou a função das leis como
responsáveis pela proteção da propriedade. Até então, era a propriedade, muito mais que a lei,
que assegura a liberdade.
511
Dito de uma outra maneira, havia uma conexão entre propriedade
509
ARENDT. Da Revolução, p. 159.
510
SAVARINO. Política ed estética: saggio su Hannah Arendt, p. 104.
511
ARENDT. Da Revolução, p. 144.
206
e liberdade, ao passo que a lei ao proteger a propriedade, encontrava-se também cuidando do
asseguramento da liberdade.
Mas em termos da interpretação arendtiana, foi somente no século XX que as pessoas
passaram a ficar expostas e sem poder contar com a proteção contra as pressões do Estado e
da Sociedade. Na interpretação de Hannah Arendt, foi a partir do século XX, em meio a essa
falta de proteção a que as pessoas estavam submetidas que surgiram pessoas que eram livres
sem possuírem propriedade. É nesse contexto que as leis passaram então a se tornar
necessárias para proteger os indivíduos e suas liberdades individuais. Portanto, as duas
Revoluções do culo XVIII foram semelhantes na recuperação dos “antigos direitos” da
liberdade e da propriedade, porque nos seus contextos, tais direitos ainda eram coincidentes.
Isso significou em termos arendtianos, que falar de um desses direitos era o mesmo que se
referir ao outro direito. Portanto, recuperar um desses direitos, seria o mesmo que recuperar o
outro. Desse tipo de entendimento nenhuma das duas Revoluções conseguiu escapar.
512
O tema dos direitos constitucionais suscita uma série de análises a serem feitas no
âmbito do evento revolucionário. Esse tema nos convida a ficarmos atentos a uma outra parte
de nosso trabalho que deve ser voltado para a relação corpo político e Constituição.
Trabalharemos essa relação no próximo capítulo.
512
ARENDT. Da Revolução, p. 145.
207
CAPÍTULO IV
Configuração do Corpo Político e Constituição
Arendt celebrates the spaces of political freedon and
equality in which citizens talk and act in concert to create
a common world. She commemorates historical instances
of the founding of the new political orders; and she
insists that political freedom means the right ‘to be a
participator in government,’ or it means nothing.”
By Joan B. Landes
513
Nos capítulos anteriores, trabalhamos as análises de Hannah Arendt referentes à
natalidade como categoria de significação política e a Revolução como fundação que acontece
na História criando um novo corpo político.
Após termos feito essas análises, é chegado o momento de trabalharmos essa nossa
pesquisa, movidos por alguns questionamentos. Podemos nos guiar pelas seguintes perguntas:
Como é o modelo de corpo político assinalado por Hannah Arendt? Como o tema da
Constituição se estabelece nas abordagens de Arendt como um momento de enraizamento da
fundação do corpo político no tempo?
Trilhando o caminho em busca das respostas a essas perguntas, percebe-se que a nossa
pretensão é a de demonstrar a partir da ótica interpretativa de Hannah Arendt como ocorre a
sua análise referente ao tema da fundação do corpo político no que diz respeito ao modelo do
mesmo. Nesse caso, deparamos com um momento relevante de nossa pesquisa, pois buscar
208
demonstrar como é a configuração do corpo político em Arendt e como a sua fundação se
enraíza no tempo por meio da criação de Constituições é a prova de que estaremos dando um
passo importante para a clareza da Tese que estamos desenvolvendo.
A busca de um modelo de corpo político passa pela demonstração da
institucionalização da ação em Hannah Arendt. O novo começo ou a natalidade se realiza na
História pela ação de fundação de um novo corpo político. No momento em que ocorre a
criação de novas realidaddes institucionais, a exemplo do corpo político, surge a necessidade
de se formar uma estrutura organizacional visando a sua configuração. Aqui, a expressão
estrutura organizacional significa a forma de institucionalização dos elementos que compõem
um corpo político. A ação, uma vez institucionalizada, por meio da fundação de um novo
corpo político, necessita da preservação para se manter no tempo. Essa é uma tarefa que
encontra solução através da criação de Constituições. Nesse sentido, os elementos
relacionados à institucionalização da ação de fundação da estrutura organizacional do corpo
político arendtiano e a criação de Constituições se relacionam reciprocamente.
É por esse motivo que desenvolveremos esse capítulo nos guiando por dois objetivos.
Em um primeiro momento, explicitaremos que a concepção arendtiana de fundação do corpo
político se sustenta apoiando-se em uma estrutura de organização a exemplo dos órgãos
populares que brotaram espontâneamente do seio do povo. Em um segundo momento, iremos
centrar nossas atenções no tema da Constituição como um momento de enraizamento da
fundação do corpo político no tempo.
4.1 A estrutura organizacional do corpo político arendtiano
513
LANDES. Novus Ordo Saeclorum: Gender and Public Space in Arendt´s Revolutionary France. Edited by
Bonnie Honig. Feminist Interpretations of Hannah Arendt, p. 195.
209
Considera-se que em Arendt não há a priori uma explicitação acabada
514
de um
modelo institucionalizado de um tipo de corpo político. Percebe-se que, devido a alguns
elementos que lhes são constitutivos, torna-se possível chegar perto daquilo que a autora
concebe como corpo político. Diante disso, é necessário apresentar os elementos abordados
pelas análises encaminhadas por Arendt. Assim sendo, poderemos nos aproximar do modelo
daquilo que seria o seu entendimento acerca do corpo político em seu pensamento. Para que
isso possa ocorrer, nos apoiaremos em elementos que são apontados pelas análises arendtianas
e, portanto, considerados pela autora, características importantes para a efetivação da estrutura
organizacional do corpo político. A configuração do corpo político na perspectiva arendtiana
passa pela articulação dos elementos constituídos, a saber: o poder político nascido do próprio
povo, os órgãos populares ou organizações de base, as formas de deliberação e de
coordenação.
Em se tratando de um tipo de poder político nascido no meio do povo, o que temos
através das análises de nossa autora é que o poder nas Treze Colônias eclodiu por meio da
doutrina da soberania do povo que se estabeleceu como algo que emergiu de baixo, ou seja, o
seu surgimento se deu no âmbito das municipalidades a ponto de tomar conta do Estado.
Coube ao povo assumir o poder de constituir as bases legais do novo corpo político. Essa era
a concepção de poder voltada para o domínio público.
515
Tal concepção de poder atuou como
514
A obra arendtiana não se apresenta de uma maneira elaborada como ocorre em um sistema, a exemplo da
produção filosófica organizada por Hegel. Pois, nela não se tem uma sistematização estruturada em partes que
em cada uma das tópicas trabalhadas são efetivadas com idéias que se articulam estruturalmente em princípio,
meio e fim. As análises encaminhadas por Arendt são repletas de informações variadas, que tornam os assuntos
trabalhados por ela cheios de conexões com situações inerentes a períodos diferenciados da História da Filosofia
Política. Um exemplo de produção filosófica caracterizada como um sistema é a célebre obra de G. W.F. Hegel
intitulada Fenomenologia do Espírito. De acordo com Henrique Cláudio de Lima Vaz essa obra, “é sobretudo a
descrição de um caminho que pode ser levado a cabo por quem chegou ao seu termo e é capaz de rememorar os
passos percorridos; o próprio filósofo na hora e no lugar da escritura do texto filosófico, Hegel no seu tempo e
história e na Iena de 1806. Esse caminho é um caminho de experiências e o fio que as une é o próprio discurso
dialético que mostra a necessidade de se passar de uma estação a outra, até que o fim se alcance no desvelamento
total do sentido do caminho ou na recuperação dos seus passos na articulação de um saber que funda e justifica.
Hegel pretende fazer da Fenomenologia o pórtico grandioso desse sistema que se apresenta orgulhosamente
como Sistema de Ciência.” (VAZ. A Significação da Fenomenologia do Espírito. Apresentação da obra
Fenomenologia do Espírito, p. 13).
515
ARENDT. Da Revolução, p. 133.
210
um amortecedor para diminuir os impactos trazidos pelo domínio da Coroa Britânica, pois foi
a soberania do povo que conduziu suas comunas distanciando-se cada vez mais da estrutura
política da Inglaterra. É por causa desse amortecimento, que Tocqueville afirma que “a
Inglaterra reinou outrora sobre o conjunto das colônias, mas o povo sempre dirigiu os
negócios comunais. A soberania do povo na comuna é, pois, não apenas um estado antigo,
mas um estado original.”
516
Por muitos anos os colonos da América do Norte viveram ligados à monarquia
limitada inglesa, mas ao mesmo tempo eles ensaiavam a fundação dos Estados Unidos,
vivendo uma política doméstica no âmbito das municipalidades. Marcelo Gantus Jasmin disse
que Tocqueville observou nas comunas
517
da Nova Inglaterra, a experiência de um tipo de
autonomia local. Pois nessas comunas, se exercia a experiência do auto-governo. Existia ali
um tipo de democracia direta que se estabelecia como a responsável pelas melhores provas
apresentadas por meio dos benefícios de uma participação pública que permitia que os seus
resultados se tornassem palpáveis.
518
Tocqueville por ocasião de sua visita à América
constatou: “Na América não existem instituições comunais, como ainda um espírito
comunal que as sustenta e vivifica.”
519
É nesse sentido que o corpo político fundado em terras
americanas foi uma novidade sem precedentes na História. Isso porque para Hannah Arendt
“o próprio corpo político já era uma inovação nascida das necessidades e do empenho
daqueles europeus que decidiram deixar o Velho Mundo, não apenas para colonizar um novo
continente, mas também com o propósito de instituir uma nova ordem mundial.”
520
516
TOCQUEVILLE. Democracia na América, p. 59.
517
Aléxis de Tocqueville explicita a respeito do que se entendia por comuna na Nova Inglaterra: “A comuna da
Nova Inglaterra (Township) situa-se a meio caminho entre o canton e a comuna da França. Cada uma delas tem
em geral dois a três mil habitantes (71); por isso, não é tão grande que todos os seus habitantes não tenham mais
ou menos os mesmos interesses, e, por outro lado, é suficientemente povoada para que se tenha sempre a certeza
de se acharem no seu seio os elementos de uma boa administração.” (Ibidem, p. 54).
518
JASMIN. Interesse bem compreendido e virtude em Democracia na América. In: BIGNOTTO (Org.). Pensar
a República, p. 77.
519
TOCQUEVILLE. Democracia na América, p. 58.
520
ARENDT. Da Revolução, p. 145.
211
É devido a essa experiência política singular vivenciada pelos colonos na América do
Norte, que o papel do povo na formulação do corpo político se firmou por meio de pactos
associativos que caminharam numa perspectiva de poder horizontal, ou seja, era um tipo de
poder vindo de baixo. Nesse caso, a força do povo se revelou no âmbito da participação
política, isto é, a instauração do poder político residia no seio do próprio povo.
A presença do povo no novo corpo político fundado nas Treze Colônias era tão
acentuado que:
O conflito das colônias com o rei e o Parlamento da Inglaterra acabou com os
direitos que as cartas asseguravam aos colonos, e com os privilégios que gozavam por
serem ingleses, privou o país de seus governantes, mas não de suas assembléias
legislativas, e o povo, ao renunciar sua lealdade ao rei, não se sentiu, de forma alguma,
desobrigado do cumprimento de seus próprios pactos, acordos, promessas mútuas e
“associações.”
521
Percebe-se que, com o fim da ligação das Treze Colônias com a coroa britânica, o
terreno político trabalhado pelos colonos por meio de um poder assentado em pactos, acordos,
promessas e associações permitiu um tipo de amparo institucional, ou seja, com isso evitou-se
que houvesse um vazio de poder. Portanto, o que se evidencia com essa situação, é o fato da
fundação do corpo político, poder então, garantir a sobrevivência da estrutura política
organizacional assumida pelos novos habitantes da América do Norte.
No caso da França, quando os homens da Revolução diziam que todo o poder reside
no povo,
522
o entendimento deles a respeito do que é o poder, era como se esse poder fosse
uma força “natural,” com fonte e origem que vai além do domínio político. Essa força do
povo foi demonstrada como uma força sobre-humana que apareceu de forma intensa, devido à
521
ARENDT. Da Revolução, p. 145.
522
Até mesmo Lênin, no ano de 1905, vendo no povo a verdadeira sede e fonte do poder saudou a sua força
admitindo-a como uma força de criatividade revolucionária. Esse povo havia demonstrado espontaneamente, o
quanto ele próprio podia estabelecer em termos de uma estrutura de poder inteiramente nova. É daí que surge, a
admissão do lema: “Todo poder aos soviets.” (ARENDT. Da Revolução, p. 205). Lênin, assim como
Robespierre, sabia do potencial revolucionário que estava presente no povo. Embora esses líderes tenham vivido
em contextos históricos diferenciados, o conhecimento que todos eles tinham a respeito do povo enquanto sede
212
violência com que as multidões, assim como um furacão, deixaram arrasadas todas as
instituições do Ancien Regime. O que se percebe, é que a força do povo na eclosão da
Revolução Francesa trouxe à tona o “estado de natureza.” Trata-se de um poder em que a sua
força é denominada por Hannah Arendt, como uma força pré-política.
523
Uma multidão quando dominada pelas necessidades do corpo que são impostas pela
pobreza, e, conseqüentemente, ansiosa por libertação, ao sair pelas ruas e destruir instituições,
demonstra que se encontra ainda fora da prática política. Presos a essas necessidades, a prática
da liberdade política - que em termos arendtianos somente ocorre na participação por meio da
opinião e da ação conjunta - torna-se impossível de se realizar. Por esse motivo não se pode
considerar como política uma multidão em estado de natureza. É por isso que Arendt
denominou esse estágio das multidões que se encontravam enfurecidas e ansiosas por
libertação, como multidões tomadas por uma força pré-política.
Nota-se que é por meio da participação política por via de pactos ou associações ou
até mesmo através da violência, que a força do povo eclodiu nas ruas. Quando isso ocorreu, as
multidões estavam demonstrando que antes desse acontecimento elas estavam com suas
forças adormecidas. No momento em que o povo francês saiu às ruas com o objetivo de
destruir o Antigo Regime, ele colocou à prova a exaltação de seu estado de natureza. Nesse
momento, se evidenciava que se estava diante de algo contrário à manifestação política, era
apresentado um tipo de manifestação pré-política. Em contraposição a essa manifestação pré-
política dos franceses, estavam os Estados Unidos, amparados no fato de terem obtido sucesso
em sua Revolução, porque:
Para eles, o poder surgiu quando e onde o povo passou a se unir e a se vincular através
de promessas, pactos e compromissos mútuos; apenas o poder alicerçado na
reciprocidade e na mutualidade era poder real e legítimo, ao passo que o assim
e fonte do poder serviu como referência para que eles pudessem guiar suas ões como líderes políticos que
eram.
523
ARENDT. Da Revolução, p. 145 - 146.
213
chamado poder dos reis, monarcas e aristocratas, porque não provinha da mutualidade,
mas, quando muito, se apoiava apenas no consentimento, era espúrio e usurpador. Eles
próprios sabiam perfeitamente por que tinham tido êxito onde todas as outras nações
iriam fracassar; foi, nas palavras de John Adams, o poder da “confiança depositada
ums nos outros e no povo em geral que permitiu aos Estados Unidos superar, com
sucesso, uma revolução.”
524
O que se evidencia é que o sucesso da Revolução Americana, se alicerçou no espírito
da participação política, situação nova e diferenciada do poder de monarcas e aristocratas que
se assentavam em consentimentos que a autora considera como espúrios e usurpadores. A
Revolução Americana apostou numa alteridade política que se fez presente por meio de
pactos, promessas e compromissos mútuos que foram encaminhados no âmbito do novo corpo
político.
Mostrar a participação do povo
525
no âmbito do corpo político pleiteado pelas duas
Revoluções do culo XVIII, constitui como um dos aspectos necessários para se
compreender o processo de ação que ocorre no interior do corpo político arendtiano. Trata-se
de conceber um corpo político baseado em discussões e deliberações nascidas no meio do
povo. O resultado disso, é a gestação de um tipo de poder político pautado na horizontalidade
que se apresenta diferentemente da verticalidade dos poderes assentados em consentimentos.
Pelo viés da interpretação apresentada por Hannah Arendt, essas organizações políticas
aparecem na forma de conselhos ou em outras formas espontâneas de organização.
Na França, esse tipo de organização política, apareceu antes da tomada do poder por
Robespierre. Antes de assumir o poder, o líder Robespierre considerou essas organizações
524
ARENDT. Da Revolução, p. 146.
525
A participação dopovo no corpo político revela um novo conceito de poder em Arendt. Sobre isso, comenta
Renato M. Perissinotto: “Arendt propõe retornar a uma outra tradição do pensamento político, qual seja, a greco-
romana, que fundamenta o conceito de poder no consentimento e não na violência. Essa tradição alternativa pode
ser encontrada na Cidade-Estado ateniense e na Roma antiga, pois tanto o conceit de ‘isonomia,’ no primeiro
caso, cmo conceito de civitas, no segundo, trabalham com uma idéia de poder e de lei cuja essência não se
assenta na relação de mando-obediência e não identifica o poder como o domínio ( Id.:34). Apesar de utilizara o
termo ‘obediência’- mas sempre obediência às leis em vez de aos homens o que eles de fato queriam dizer era
‘apoio às leis para as quais cidadãos haviam dado o seu consentimento’ (p. 34). Desse modo’poder,’ em Arendt,
refere-se sempre a uma relação de consentimento em que as instituições sustentam-se no ‘apoio do povo.’
(PERISSINOTTO. Hannah Arendt, Poder e a Crítica da “Tradição,” In: Revista Lua Nova, Número 61: p. 117,
2004).
214
políticas nascidas do povo como verdadeiros “pilares da democracia.” Para justificar essa
denominação, Robespierre dizia que esses “pilares da democracia” eram assim chamados,
porque no seu interior haveria de ter homens para substituir os seus líderes e também por eles
se constituírem como “fundamentos da liberdade.” Interferir no funcionamento dessas
instituições, era o mesmo que “atacar a liberdade,” dizia o líder jacobino. Robespierre chegou
a acentuar que o maior crime a ser cometido contra a Revolução, seria o de perseguir essas
sociedades. No entanto, lamentavelmente, o que ocorreu foi que Robespierre, ao assumir o
poder, inverteu essa sua posição, ou seja, de defensor dos “pilares da democracia” passou a
ser um opositor deles.
526
Temos nas análises de Hannah Arendt uma insistência por parte dela em levantar
pontos que registram o caráter da estrutura organizacional do corpo político, tal como ela o
concebe. Percebe-se que o aspecto da organização de base é o primeiro elemento que
possibilita uma estrutura organizacional que ocorre no seio do corpo político almejado por
Arendt. Realidade esta que se situa no fato dele se constituir como uma instituição que
obedece primeiramente às instâncias de organização elementar, ou seja, por meio do povo,
respeitando os diversos espaços nos quais ele se situa no dia-a-dia.
Envolvidos numa estrutura organizacional basicamente popular, os novos habitantes
da América do Norte, desde o início da colonização, distintamente de outros
empreendimentos coloniais se congregava em “corpos políticos civis.” Esse tipo de
organização não era concebido como governo, no sentido estrito da palavra, pois neles não
havia a divisão entre governantes e governados, ou seja, a sua estrutura não implicava na
dominação de um pelos outros. Os norte-americanos desfrutaram dessa estrutura de
organização política por mais de 150 anos e mesmo assim permaneceram nesse período como
súditos do governo britânico.
527
Essa situação à primeira vista nos parece parodoxal. O que
526
ARENDT. Da Revolução p. 192.
527
Ibidem, p. 134.
215
ocorreu, é que esse período significou momentos de política de interesses domésticos que
envolviam o dia-a-dia dos colonos acompanhados de uma dominação externa que por sua vez
não conseguiu influenciar o aspecto da presença da organização política espontânea no âmbito
da estrutura organizacional do corpo político. Não é por acaso que Tocqueville afirma que “é
a comuna a única associação que se mostra tão perfeitamente natural que, em toda parte onde
há homens reunidos, forma-se uma comuna espontaneamente.”
528
Devido à dominação externa, o corpo político norte-americano que teve sua gênese
efetivada antes da Declaração de Independência, com esse seu caráter pré-revolucionário se
constituiu como “associações políticas” que gozava de poder e de autoridade para poder
reclamar direitos, sendo que, por causa da dominação externa, ele não podia reivindicar
soberania. Arendt acentua em suas análises que esses organismos serviram de base, ou seja,
constituíram-se como uma referência para o princípio federativo a ser aplicado em grandes
territórios. Devido ao tipo de estrutura interna desses organismos políticos que nós podemos
encontrar elementos que contribuíram com o sentido de confederação.
529
Por causa deles,
nos primórdios da História colonial, o termo união, que é um princípio básico de qualquer
federação, se afirmava como um conceito apropriado pelos fundadores da República norte-
americana.
530
Evidencia-se que o princípio federativo obteve suas raízes em corpos políticos
autônomos de movimentações políticas independentes no seio das colônias da América do
Norte. É por isso, que para formar os Estados Unidos da América, foi necessário recorrer ao
528
TOCQUEVILLE. Democracia na América, p. 53.
529
A advertência de Hannah Arendt a respeito de um Estado de vocação federalista baseado em uma estrutura
composta por conselhos em seu interior, é comentada por Anne-Marie Roviello da seguinte maneira: “Elle dit
par exemple dans les dernières lignes de Politique et révolution: ‘Um État constitde cette façon à partir de
Conseils (...) aurait admirablement vocation pour réaliser des fédérations de types divers, en particulier parce que
la base même de son pouvoir s´etablirait sur um plan horizontal et non vertical. Mais si vous me demandez à
présent quelles peuvent en être les chances de réalisation, je dois vous pondre qu’elles sont extrêmemente
faibles, pour autant même qu’elles existent; mais, peut-être, après tout, avec la prochaine révolution...’
(ROVIELLO. Sens Commun et modernité chez Hannah Arendt, p. 93).
530
ARENDT. Da Revolução, p. 134 – 135.
216
termo união, para então garantir a federação, nascida da autonomia de corpos políticos
diferenciados que brotaram do chão das colônias, ainda no período pré-revolucionário.
Experiência de autonomia foi a Comuna de Paris que desempenhou um papel decisivo
no curso da Revolução Francesa. Ao lado da experiência da Comuna de Paris, a França
vivenciou a experiência de um grande número de clubes e sociedades de caráter espontâneo.
Essas novidades formadas espontaneamente foram denominadas de Sociétés populaires.
531
O que se percebe, é que as organizações populares de caráter espontâneo foram uma
realidade presente nas duas Revoluções do século XVIII. Pois, no contexto da Revolução
Francesa, houve a emergência de uma nova forma de governo que se assemelhasse ao sistema
distrital de Jefferson. Situação que nos faz crer que em ambas as Revoluções, a experiência da
emergência dos órgãos populares, trouxe à tona a possibilidade de se criar uma estrutura
política nova. A esse respeito, salienta Hannah Arendt:
Não há dúvida de que a Comuna de Paris, nas seções, e as sociedades populares que se
espalharam por toda a França durante a Revolução constituíram os poderosos grupos
de pressão dos pobres, a “broca de diamante” da necessidade premente “a que nada
podia resistir” (lord Acton); mas elas também continham os germes, as primeiras
frágeis manifestações de um novo tipo de organização política, de um sistema que
faria com que as pessoas fossem participantes do governo,” como queria
Jerfferson.
532
Verifica-se o quanto as organizações populares, a exemplo das sociedades populares
da França e dos distritos de Jefferson, foram relevantes para a criação do corpo político na
perspectiva arendtiana. A partir dessa advertência feita por Hannah Arendt, é indispensável
conceber um tipo de corpo político que não traga consigo o elemento organização de base, ou
seja, um tipo de organização baseada nos anseios do povo no sentido de tê-lo como
participante do governo. No caso da realidade francesa, essa forma de organização tomou
conta de toda a França. Nas palavras de Arendt: “foi esse sistema de conselho comunal, e não
531
ARENDT. Da Revolução, p. 191.
217
as assembléias de eleitores, que se disseminou por toda a França, sob a forma de Sociedades
Revolucionárias.”
533
Em termos da realidade norte-americana, Jefferson realçou o sistema distrital, como
espaço privilegiado por onde pode ocorrer a participação do povo. Esse tipo de organização
era relativo às “repúblicas elementares,” e era por meio delas, que se poderia garantir a
própria existência da República.
534
O que temos a partir desse tipo de organização, é a
concepção de um corpo político no qual a coisa pública é realmente levada em conta por meio
da efetiva participação do povo.
Se a França com suas sociedades revolucionárias e a América do Norte com seu
sistema de auto-governo, não tivessem sido uma realidade palpável, nem que fosse por pouco
tempo, a almejada fundação do corpo político em ambas as Revoluções, não teria despontado
como um fenômeno político inteiramente novo. Dito de uma outra maneira, foram os órgãos
espontâneos que brotaram do seio do próprio povo nos dois lados do Atlântico, que
possibilitaram uma concepção inteiramente nova de corpo político, ou seja, suas criações
foram inesperadas, devido ao caráter espontâneo da força política residente no povo. Esses
organismos de base oriundos do contexto histórico das Treze Colônias da América do Norte e
da França do século XVIII acabaram por influenciar Revoluções dos séculos XIX e XX. A
esse respeito, salienta Hannah Arendt:
Tanto o plano de Jefferson como as Sociétés Revolutionaires francesas prenunciaram,
com uma posição fantástica, aqueles conselhos sovietes e Räte que haveriam de
aparecer em todas as genuínas Revoluções, ao longo dos séculos XIX e XX. Eles
sempre surgiam como organismos espontâneos do povo, não apenas fora do âmbito de
todos os partidos políticos, como também de forma totalmente inesperada.
535
532
ARENDT. Da Revolução, p. 195.
533
Ibidem, p. 197.
534
Ibidem, p. 199.
535
Ibidem, p. 199.
218
O surgimento desses organismos políticos populares revela a imprevisibilidade da
ação humana, bem como a capacidade que o homem tem de iniciar algo novo na História. O
surgimento espontâneo e inesperado desses órgãos demonstra a força da natalidade como
categoria de potencialidade política inerente à nossa condição humana. Esse ineditismo
presente por meio do surgimento dos diversos tipos de órgãos populares nos é apresentado na
afirmação de Julia Kristeva no sentido de que a simpatia de Arendt segue indo em direção às
Revoluções do século XVIII. Para essa comentadora de Hannah Arendt tais Revoluções são a
expressão da renovação, da alegria e da felicidade públicas. É a partir daí que a autora
valoriza de maneira vivaz os sistemas de conselhos que podem ser considerados como “utopia
do povo.” Todas as Revoluções trabalhadas por Arendt tratam do aparecimento espontâneo de
órgãos populares. A nossa autora por preferir essa “utopia do povo,” segue sempre criticando
as utopias terceiro-mundistas da “nova esquerda” e sem tomar partido nem do “capitalismo”
nem do comunismo.
536
Referindo-se a Jefferson, Arendt diz que ele esperava que o Estado da Virgínia, por ter
sido pioneiro na elaboração de uma Constituição nas terras do Novo Mundo, fosse também o
primeiro Estado a adotar a subdivisão dos municípios em distritos em sua Constituição.
537
Isso seria para que esse relevante espaço público fosse então incorporado e legitimado na
Carta Magna. O resultado é que teríamos com isso uma experiência de corpo político de base
distrital no Estado da Virgínia e por sua vez, respaldado na legalidade.
Por causa dessa experiência, temos a prova do quanto era elementar a concepção de
corpo político na perspectiva de Jefferson, pois para ele o elemento da organização de base
em uma instituição era de fundamental importância. Não é sem motivo que para ele, o
primeiro dos elementos da estrutura organizacional desse novo corpo político, seria antes de
tudo o da organização de base. Através disso, Jefferson pleiteava que a Constituição pudesse
536
KRISTEVA. O Gênio Feminino: a vida, a loucura, as palavras: Hannah Arendt, Melanie Klein, Colette, p.
154.
219
ser um instrumento com a finalidade de garantir o espaço de participação política a ser
movimentado pelo povo.
Com um tipo de dinâmica política assentada na participação popular, Jefferson via a
possibilidade de se ter um controle do povo sobre as questões inerentes ao domínio público.
Acreditava ele que até mesmo a utilização de recursos que apontam contra o mau uso do
poder público pelos indivíduos se encontravam dentro do próprio domínio público. Para ele, é
no seio do domínio público, no que se refere a tudo que acontece em suas fronteiras e é visível
ao que lá se encontram, que o controle do mau uso do poder público pode ser efetuado.
538
Por causa disso, Arendt nos lembra que nesse contexto onde se situam as investidas de
Jefferson, o voto secreto não era uma práxis utilizada como nos dias de hoje, mas mesmo
assim, ele via na participação dos cidadãos restrita somente no ato de votar, como um perigo
mortal para a vida da República. Essa desconfiança de Jefferson encontra justificativa na
necessidade que ele tinha em reivindicar a criação de um corpo político que se revelasse como
uma instituição de participação política trilhando uma prática que pudesse ir muito além de
uma eleição. O propósito era de um tipo de corpo político constituído por uma estrutura
organizacional caracterizada como uma instituição de participação política mais ampla que
pudesse ir muito além da capacidade de uma urna receptora de uma votação.
539
Nesse sentido, cada indivíduo necessitava de maiores oportunidades para que sua voz
pudesse ser ouvida para além dos dias de eleição. Vislumbra-se o quanto seria necessário criar
um respaldo de legitimação dessas ações políticas. Pois uma Constituição que concede poder
aos cidadãos somente através da urna de votação é um instrumento institucional que não lhes
oferece a oportunidade de agirem como cidadãos dentro do espaço público.
540
537
ARENDT. Da Revolução, p. 200.
538
Ibidem, p. 201.
539
Ibidem, p. 202.
540
Ibidem, p. 202.
220
A necessidade da incorporação dos espaços públicos, a exemplo dos conselhos, na
constituição do corpo político originado no contexto das Revoluções se pautava na concepção
de Arendt
541
de que a Revolução não tinha como objetivo simplesmente acabar com um tipo
de Estado. A Revolução do ponto de vista da compreensão arendtiana ao invés de abolir o
Estado: “buscava o estabelecimento de um novo Estado e de uma nova forma de governo.”
542
Portanto, o surgimento dos conselhos representou a possibilidade de que um novo corpo
político poderia ser fundado. Tratava-se da possibilidade do estabelecimento de um Estado-
Conselho, algo nunca visto antes na História política ocidental.
543
Para uma melhor compreensão do que seria um corpo político fundamentado em um
sistema de conselhos, é bom lembrar que Arendt nos adverte a respeito de outras realidades
existentes além das experiências das organizações populares que existiram na França e na
América do Norte. Para a nossa autora, essas outras realidades, são assim demonstradas:
... o ano de 1905, quando a onda de greves espontâneas ocorrida na Rússia
desenvolveu repentinamente liderança política própria, estranha a todos os partidos e
grupos revolucionários, e os operários das fábricas se organizaram em conselhos, os
sovietes, com o objetivo de formar um auto-governo representativo; a Revolução de
Fevereiro de 1917, na Rússia, em que “apesar das diferentes tendências políticas
existentes entre os trabalhadores russos, a organização propriamente dita, isto é, o
Soviete, jamais foi sequer posta em discussão” os anos de 1918 e 1919, na Alemanha,
quando, após a derrota do exército, os soldados e os trabalhadores em franca rebelião,
se constituíram em Arbeiter-und Soldatenráte, exigindo em Berlim, que esse
Rätesystem se tornasse a pedra fundamental da nova constituição alemã, e fundando,
em companhia dos boêmios dos cafés e bares de Munique, na primavera de 1919, a
541
A respeito da espontaneidade dos orgãos populares relata Paolo Flores D’Arcais: “Hannah Arendt se mueve
por una constatación de hecho. En múltiples ocasiones (muy diversas en cuanto a contigencia histórica), los
ciudadanos tienden espontáneamente a dar vida a formas de participación política que reclaman el ideal de
Jefferson de las ‘repúblicas elementares’. Las ‘sesiones’ parisinas en algunos momentos de la Revolución
francesa, la Comuna de 1871, los soviets en 1905 y en febrero del 17 ( y después en el 21 con la insurrección de
Kronstadt) los Räte en Astria y Alemanha en la crisis que sigue al primer conflicto mundial, finalmente la
difusión, con increíble rapidez y en todos los pliegues del tejido social, de los consejos durante la revolución
húngara de 1956. Todo ello, según Arendt, y es éste un punto de particular relevancia, en ausencia de alguna
memoria historica, puesto que precisamente la actividad de los partidos que se pretenden revolucionarios, que
organizan revoluciones por profesión, y que representan la forma extrema y nefasta de la professianalización del
actuar político, de vez en cuando, pero sistemáticamente, despedazan, ocultan y destruyen aquella tradición y
memoria. De aquí la consecuencia: se trata de una tendencia espontánea, insustituible,recurrente porque está
propiamente contenida de alguna manera en las modernas condiciones de existencia.” (D’ARCAIS, Flores
Paolo. Hannah Arendt: Existência y liberdad, p. 96).
542
ARENDT. Da revolução, p. 209.
543
ARENDT. Crises da República, p. 201.
221
Räterepublik bávara, de curta duração; a última data, finalmente, é o outono de 1956,
quando que se constituiu e se organizou por meio do próprio curso da revolução.
544
Nota-se que os conselhos são frutos de um clima que se revela aliadamente aos
acontecimentos das Revoluções. Eles se constituem como organismos que revelam a
capacidade inerente à condição humana no que tange ao aspecto de tornar realizável a política
em termos de organização de base. Esses organismos demonstram a efetivação da força do
povo enquanto principal sustentáculo da organização nascida no seio do próprio povo.
Entendendo aqui, base como a movimentação política vinda de baixo, ou seja, no emergir da
participação política de caráter horizontal.
Diante disso, parece que não seria possível conceber uma configuração do corpo
político, sem a participação do povo, que em boa medida, é visto nesse caso, como uma elite
formada no interior do espaço público. Essa idéia da existência de uma elite popular se
sustenta em Arendt, quando ela diz que os homens que participavam dos conselhos
“representavam também uma elite, talvez mesmo a única elite nascida do povo que o mundo
moderno jamais vira.”
545
Como um exemplo de elite nascida do povo, Arendt se refere à Revolução Húngara,
546
que segundo ela, desde os primórdios, reproduziu o sistema de conselhos em Budapeste de
onde se espalhou por todo o país “com incrível rapidez.”
547
Os conselhos surgidos no seio da
544
ARENDT. Crises da República, p. 199.
545
ARENDT. Da Revolução, p. 222.
546
De acordo com Leonardo Avritzer: “O elemrnto central da análise arendtiana sobre a Hungria é a maneira
pela qual o agir coletivo se destaca do conrtinuum da história. Um conjunto de estudantes realiza uma
manifestação e, no dia seguinte, vai até a rádio de Budapeste pedir a divulgação de um manifesto de 16 pontos.
A polícia política presente no prédio tenta dispersá-lo, mas uma reação de uma massa indistinta de indivíduos
que, ao ser atacada pela policia política, reage e toma asa suas armas. Os trabalhadores nas fábricas ficam
sabendo do episódio e se juntam a essa massa de indivíduos. O exército ao ser chamado, nega-se a intervir e,
com isso, a revolução está em movimento. Para Hannah Arendt, “[ ...] não foram os programas ou o manifesto
que jogaram qualquer papel. O que desecadeou a revolução foi o puro momento do agir em comum da população
como um todo cuja demanda era tão óbvia que dispensa uma formulação maia específica” (ARENDT, 1966:
496). Ou seja, o elemento central do que Arendt identifica como ação durante a revolução Húngara é o agir em
em concerto, por um certo momento. O fato de que todos os episódios duraram doze dias é para ela
absolutamente irrelevante diante do fato, de importância superior, que é a demonstração pública de que o
autoritarismo pode ser derrotado pela ação concertada da população.” (AVRITZER. Ação, Fundação e
Autoridade em Hannah Arendt. In: Lua Nova, número 68: p. 161-162).
547
Ibidem, p. 209.
222
revolução Húngara é a demonstração arendtiana da possibilidade da efetivação de um novo
corpo político que naquele momento apresentava sinais de que emergia com a finalidade de
se contrapor insistentemente ao estado nacional de dominação das massas.
548
Por isso, esses
conselhos que surgiram durante a Revolução ngara são apresentados por Hannah Arendt
como fator de esperança para a instauração de uma novidade em termos de estruturas
políticas. Em citação extraída de um artigo que Arendt publicou por ocasião da segunda
edição de As Origens do Totalitarismo, em 1958, ela diz:
A revolução húngara ensinou-me uma lição. Se levarmos em consideração o
surpreendente ressurgimento do sistema de conselhos durante a revolução húngara,
então é como se estivéssemos diante de duas novas formas de governo em nosso
próprio tempo, as quais, podem serem compreendidas no contraponto da falência
do corpo político do Estado nacional. O governo da dominação total é o que
certamente corresponde da melhor forma às tendências inerentes de uma sociedade de
massas em relação a qualquer outra coisa que conhecíamos. Mas o sistema de
conselhos tem sido claramente, já desde um longo tempo, o resultado dos desejos do
povo, e não o das massas, e é quase possível que ele contenha os próprios remédios
contra a sociedade de massas e contra a formação do homem de massa, que vimos
procurando em vão em outro lugar. (...) Não estou de modo algum segura ou certa em
minha esperança, mas estou convencida de que tão importante quanto confrontar
impiedosamente todos os desesperos intrínsecos do presente é apresentar todas as
esperanças inerentes a ele.
549
Esses conselhos, por se tratar de uma experiência que surgiu em vários lugares, são
vários tipos de órgãos populares que se caracterizam como fenômenos importantes a ponto de
548
Hannah Arendt demonstra que o processo revolucionário húngaro se contrapôs à massificação utilizando-se
de uma organização baseada em conselhos. Em The Human Condition, a autora nos lembra que na Revolução
Húngara a expressão le peuple inclua também os operários. Naquele contexto foi considerado povo o sistema
político baseado em conselhos. A esse respeito, diz a autora: “The political significance of the labor moviment is
now the same as that of any other pressure group; the time is past when, as for nearly a hundred years, it could
represent the people as a whole if we understand by le peulpe the actual political body, distinguished as such
from the population as well as from society. (In the Hungarian revolution the workers were in no way
distinguished from the rest of the people; what from 1848 to 1918 had been almost a monopoly of the working
class – the notion of a parliamentary system based on councils instead parties had now become the unanimous
demand of the whole people.)” [ARENDT. The Human Condition, p. 219]. Sobre a origem da expressão le
peuple, Arendt em nota de roda de número 55, diz: “Originally, the term le peuple, which became current at
the and of the eighteent century, designated simply those who had no property. As we mentioned before, such a
class of complerely destitute people was not known prior to the modern age. {Ibidem, p. 219}.
549
Trata-se de uma citação cuja origem encontra-se em um artigo que Hannah Arendt publicou no momento da
segunda edição de As Origens do Totalitarismo, em 1958. Essa citação é também utilizada por DUARTE,
André. Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política. In: CORREIA. (Org.).
Transpondo o Abismo: Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002
223
merecerem atenção de análises vindas da filosofia política e das ciências sociais. Diante disso,
parece ser essa a intenção assumida por Hannah Arendt, pois ela lamenta que esses
organismos foram vistos com um certo desprezo por estadistas, historiadores e teóricos da
política. No caso dos historiadores, Arendt diz que eles os consideravam nada mais do que
órgãos essencialmente temporários e vistos somente no âmbito da luta pela libertação. No
momento em que os historiadores acreditavam que os órgãos populares de manifestação
espontânea não passavam de uma luta revolucionária temporária com o objetivo de libertação,
os historiadores estavam assinando o atestado da não percepção por parte deles de que o
sistema de conselho se tratava de uma realidade inteiramente nova. É pertinente a importância
de considerarmos que não basta apenas voltarmos nossa atenção somente para o elemento
organização de base, pois é necessário nos voltarmos para o elemento da deliberação, ou seja,
das formas de encaminhamento da ação conjunta no espaço público.
Abordemos como o corpo político, na perspectiva arendtiana, se estrutura na
organização de sua ação naquilo que se refere ao elemento deliberação.
O funcionamento de um corpo político na perspectiva arendtiana depende do
encaminhamento dos seus projetos por meio de formas de deliberação. Considerando que o
corpo político admitido por Hannah Arendt se torna possível se o mesmo contar com a
existência de espaços públicos em seu interior, a atenção ao elemento deliberação, constitui-se
como uma atitude que se apresenta de uma maneira relevante para a clareza de nossos
propósitos.
Sem a existência do sistema de conselhos, o corpo político tal como Hannah Arendt o
concebe, teria dificuldades de se apresentar como uma realidade política inteiramente nova.
Podemos dizer que esses órgãos populares seriam como a ponta do iceberg para poder dar ao
corpo político a conotação da novidade como algo que nunca fora visto antes na História
p. 55 - 78. É um trecho citado a partir do livro de Richard Bernstein: Hannah Arendt and the jewish question,
Cambridge: POlity Press, 1996, p. 133.
224
política do Ocidente. A respeito da importância dos conselhos, enquanto ação política de
caráter deliberativo no mundo moderno, salienta Leonardo Avritzer:
Os conselhos cumpriram o papel fundamental no mundo moderno de propiciar uma
deliberação que não esteja completamente vinculada a interesses pré-determinados.
Eles cumpriram o papel de abertura nas formas de mediação entre o indivíduo e a
política institucionalizada. Com isso, cria-se a possibilidade de uma forma distinta de
ação passível de institucionalização e capaz de atualizar os elementos fundacionais da
primeira modernidade.
A participação do povo no corpo político é vista por Arendt como uma realidade
voltada para a intervenção deste no âmbito do domínio público.
550
Esse tipo de participação
baseia-se no sentido de conceber o povo como agente dos encaminhamentos dos negócios
referentes à esfera pública. É daí que emerge a necessidade de que a organização do corpo
político a partir do elemento de sua organização, que parte do povo venha a se articular
utizando-se de formas de deliberação. O que podemos perceber, é que não existe domínio do
público pelo povo sem que haja articulação entre os elementos organização e deliberação. O
controle do espaço público pelo povo que se organiza por meio dele, é possível quando a
sua intervenção é feita por vias do elemento deliberação. Nessa perspectiva, o que se tem é o
fato de que quando as decisões são tomadas, leva-se em conta a participação de todos os
atores envolvidos na constituição do espaço público. Por esse caminho, no seio dos conselhos,
as pessoas que deles participavam, conseqüentemente, utilizavam-se do uso da fala ao
debaterem e suas vozes passavam a ser ouvidas em público. O resultado dessa participação do
povo nos conselhos se revela por meio da sua intervenção no curso político do país.
551
Nesse
550
O significado do termo público, para Hannah Arendt, também denota mundo. Aqui o mundo é compreendido
como aquilo que é comum a todos nós. Mundo, nesse sentido, não é a Terra ou a natureza enquanto espaço
limitado para a manifestação dos seres humanos e condição para a vida orgânica. (ARENDT. A Condição
Humana, p. 50). Por essa razão, o mundo é o mundo da esfera pública, que se produz enquanto mundo comum,
baseado na articulação entre as pessoas por meio das ões e das palavras livres. Nesse mundo onde pode
acontecer o develamento do mundo das aparências através da articulação entre palavras e atos, não
ocultamento de opiniões. Nesse território de manifestações humanas o confronto de pontos de vista é bastante
salutar. Essa articulação também se estende por meio da pluralidade. A raiz dessas manifestações encontra-se na
natalidade.
551
ARENDT. Da Revolução, p. 200.
225
caso, o povo passa a ser agente do destino de um país, mas não somente como governado,
mas também como governante. Anne-Marie Roviello afirma que Arendt “apresenta o sistema
dos conselhos como o único sistema político realizável que representa autenticamente o
princípio da participação de cada um na ação e nas decisões políticas.”
552
Arendt considera, a partir daí, que o sistema de conselhos, enquanto espaços públicos,
e, conseqüentemente, como células de um corpo político, revela-se como a solução para que
países como aqueles de grande extensão territorial possam por meio da união, poder tratar dos
seus destinos políticos.
553
Essa solução apresentada por Arendt se justifica quando se parte do
princípio de que o sistema de conselhos tornaria viável a discussão dos problemas nacionais a
partir de níveis locais. Pois, a centralização do poder político impede que a manifestação das
discussões e das ações se em todas as regiões de um país, principalmente quando se trata
de um país de grande extensão territorial. No caso de um corpo político que leve em conta a
descentralização da ação política por meio do sistema de conselhos, a ação conjunta dos seus
membros parte de deliberações que dizem respeito a todas as realidades de cada região de um
país.
A fragmentação do poder no âmbito da Revolução Húngara é tratada por Paolo Flores
D´Arcais, no sentido de que em um sistema de conselhos o que ocorre é que esse tipo de
estrutura de organicidade política, leva-se em consideração a concepção garantidora de um
balance dês pouvoirs. Dessa forma, dividir o poder possui o significado de difundí-lo
seguindo com isso a lógica dos contrapesos. Trata-se de um poder disseminado e disperso. É
um poder em cuja divisão existe a tendência de que as coisas funcionem garantindo a cada
cidadão o respeito a cada centro de poder. Surge daí um tipo de poder que se apresenta de
maneira fragmentada em instituições numerosas.
554
552
ROVIELLO. Sens Commun et Modernitè chez Hannah Arendt, p. 92 - 93.
553
ARENDT. Da Revolução, p. 200.
554
D’ARCAIS. Hannah Arendt: Existência y liberdad, p. 96.
226
O resultado, é que quando ajuntadas, as deliberações das partes distintas de um
território, atenderão a demanda política de um país inteiro. Em um corpo político que conta
com uma estrutura organizacional na qual a participação do povo é uma possibilidade
concreta, os problemas inerentes à vida de um país vem à tona e são, portanto, analisados de
maneira ampla. É por isso que Hannah Arendt nos adverte que situação contrária a essa
realidade é aquela do envolvimento do povo que se encerra com o depósito do voto na urna
em dias de eleição. O limite do simples ato de depositar o voto em uma urna, se justifica
porque: “as cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvidas, muito
pequenas, pois tem lugar para um.”
555
Aqui temos uma situação que contradiz o sentido da
política, pois a mesma só se realiza em conjunto pelo viés da pluralidade.
556
O que se evidencia a partir de análises encaminhadas por Hannah Arendt, é que o
corpo político concebido por ela é assinalado pela capacidade do envolvimento político do
povo por meio de elementos que garantem a ação deliberativa. Nesse sentido, é notável o fato
do povo se constituir como pilar do corpo político. Ao considerarmos o povo como um
suporte principal de uma estrutura política, podemos dizer que o corpo político sem povo, em
termos arendtianos, não cria nada de novo.
O elemento deliberação no espaço público, se efetiva apoiando-se também por meio
do uso da opinião que culmina com a ação conjunta. Ao tratar do tema da opinião, Arendt faz
555
ARENDT. Da Revolução, p. 200.
556
Arendt valoriza também as atitudes solitárias quando voltadas para a atividade de pensamento. O estar a sós
consigo mesmo é um momento privilegiado para que um indivíduo consiga estabelecer o ato de estar em
companhia dele mesmo. Com esse comportamento nos colocamos na busca do sentido das coisas que envolvem
o nosso mundo das aparências. Diferentemente da ação política, o pensamento é uma atividade solitária que
ocorre quando buscamos a nossa própria companhia. Um dos principais pontos de partida assumidos por Arendt
para fundamentar a importância da atividade solitária do pensamento, encontra-se na tradição socrática. A
investida filosófica admitida por Hannah Arendt no que se refere ao modelo socrático, isto é, ao dois-em-um,
parte de sentenças afirmativas orientadas pelo próprio Sócrates. Assim explicita Arendt: “As duas sentenças
afirmativas de Sócrates são as seguintes: A primeira, ‘é melhor sofrer o mal do que o cometer.’ Ao que Cálicles,
o interlocutor no diálogo, responde o que todo grego teria respondido: ‘Sofrer o mal não é digno de um homem,
mas de um escravo, para quem é melhor morrer do que viver, para quem não é capaz de socorrer nem a si
mesmo nem àqueles que para eles são importantes.’ A Segunda afirmação é: ‘eu preferiria que minha lira ou um
coro por mim dirigido desafinasse ou produzisse ruído desarmônico, e [preferiria] que multidões de homens
discordassem de mim do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me”
227
a seguinte distinção: Diferentemente do chamado domínio da opinião pública, a autora se
refere à liberdade de opinião. Assinalar essa diferença é um fator importante para um
entendimento do papel da opinião no âmbito da fundação do novo corpo político. A opinião
pública é aquela que, movida por uma paixão comum, mantém-se pelo viés da manutenção da
unanimidade. Em termos arendtianos, “a opinião pública, por causa da unanimidade, provoca
uma oposição unânime e, por conseguinte, sufoca as verdadeiras opiniões que surgem em
qualquer lugar.”
557
Nesse caso, as opiniões das minorias em meio ao domínio da opinião
pública não são respeitadas. O que se efetiva nessa situação é um atentado contra a
pluralidade, ou seja, impede-se a manifestação daquilo que é diferente, prevalecendo a partir
desse desrespeito às diversas formas de opinião a manipulação de todos ou a vontade
dominadora da maioria
Se por um lado a opinião pública é algo que sufoca e impede a pluralidade dos pontos
de vista a serem expressos por meio da opinião, por outro, a liberdade de opinião
558
é aquela
que garante a defesa da multiplicidade de pontos de vista encaminhados por uma variedade de
pessoas.
Evidencia-se que a chamada liberdade de opinião interessa a Arendt por se tratar de
uma das principais características inerentes ao corpo político. Isso porque no seio da
movimentação política, fenômenos como a opinião e os interesses aparecem naturalmente.
Por ser uma realidade que envolve a manifestação de diferenças, o movimento político
comporta dentro de si os fenômenos da opinião e do interesse. Sobre isso, diz a autora:
(ARENDT. A vida do espírito, p. 136). Tratamos desse assunto na dissertação de mestrado OLIVEIRA, A
Faculdade do Juízo no Pensamento Político de Hannah Arendt, p. 94).
557
ARENDT. Da Revolução, p. 180.
558
Nota-se que a manifestação da opinião é possível quando ela acontece no campo das idéias livres ou
quando estas se revelam individualmente. É por essa razão, que a opinião necessita da pluralidade. Daí,se
percebe que existe uma articulação entre fala e pluralidade. Isso porque, para Hannah Arendt, a pluralidade
humana, enquanto condição básica do discurso, possui o duplo aspecto relativo à igualdade e à diferença. Os
homens necessitam trilhar o caminho do entendimento, para que a convivência humana torne-se possível de se
concretizar. Para que os homens se façam entender, eles necessitam da igualdade da condição humana. Esse
entendimento como seres humanos é devido a ligação que os homens estabelecem com os seus ancestrais e
228
Interesse e opinião são fenômenos políticos completamente diversos. Politicamente, os
interesses são relevantes como interesses de grupos, e para a depuração desses
interesses de grupos parece ser suficiente que eles se façam representar de tal forma
que seu caráter parcial seja preservado em quaisquer condições, mesmo na
circunstância em que o interesse de um grupo possa eventualmente ser o interesse da
minoria. As opiniões, ao contrário, nunca dizem respeito a grupos, mas
exclusivamente a indivíduos, que “manifestam livre e desapaixonadamente os seus
pontos de vista,” e nenhuma multidão, seja ela representativa apenas de uma parte da
sociedade, seja de sua totalidade, jamais será capaz de formar opiniões.
559
A partir dessas considerações, nota-se que para Hannah Arendt o exercício da
manifestação livre da fala garante a expressão das diversas opiniões que se encontram
presentes em pontos de vista diferenciados. A autora também enfatiza que a importância da
opinião individual contrasta com os interesses apaixonados dos grupos. Opinião é antes de
tudo expressão dos indivíduos sem que o domínio da opinião pública centrada em interesses
possa então anulá-la. É somente estando livre das paixões comuns, que cada um dos membros
do corpo político tornam-se capazes de manifestar suas opiniões.
Enquanto os grupos pautam suas aspirações em interesses, as opiniões se apresentam
por meio da liberdade de expressão amparada em pontos de vista diferenciados. Portanto, o
corpo político na perspectiva arendtiana é compreendido como uma instituição que seja capaz
de garantir em seu interior a existência de espaços públicos onde a opinião de todos os
participantes possa então se manifestar.
A participação nos espaços públicos se efetiva por meio dos conselhos ou órgãos
semelhantes a eles. Tais organismos espontâneos se estabelecem como o primeiro estágio ou
momento em que ocorre o envolvimento de um cidadão no âmbito daquilo que em Hannah
Arendt diz que se configura como corpo político. Em função dessa situação, as formas de
deliberação encaminhadas pelos indivíduos envolvidos nos diferentes espaços públicos, são
também pelo fato de ao mesmo tempo eles fazerem planos para o futuro e conseguirem prever as
necessidades
das gerações vindouras. Tal comportamento não é o mesmo das outras espécies que habitam o nosso planeta.
559
ARENDT. Da Revolução, p. 181.
229
muito importantes, porque elas se constituem como um dos elementos responsáveis pela
estrutura organizacional do corpo político arendtiano.
É trilhando esse caminho, que Arendt se refere a um corpo político aberto à
participação de todos os cidadãos residentes em um determinado país. Uma vez nele
envolvidos, os membros do corpo político se apresentam como que vocacionados à
deliberação. A autora nos adverte que de modo algum todo indivíduo que reside em um
determinado país, precisa ser membro de conselhos, ou algo parecido, e, conseqüentemente,
ser membro participativo de forma ativa em um corpo político. É uma advertência que para
Hannah Arendt se justifica, porque nem todas as pessoas são tomadas pelo desejo e pelo
interesse relativos aos assuntos de caráter público. O resultado disso é a possibilidade do
encaminhamento de um processo que se intitule como auto-seletivo e que possua a função de
agrupar uma verdadeira elite política de um país. Visto por esse ângulo, o corpo político
almejado por Arendt, é marcado pela oportunidade de participação política, pois a cada pessoa
é dada a oportunidade de se envolver como ator político no espaço público de opinião e de
ação conjuntas. Entretanto, a nossa autora também adverte, que aqueles que não despertarem
interesses pela participação efetiva no seio do corpo político através de organização de base
como a dos conselhos, terão simplesmente que se conformar e se satisfazerem com o rumo
tomado pelos negócios públicos, que certamente caminharão sem que seus passos tenham sido
discutidos por eles.
560
Nota-se que a concepção de corpo político assumida por Hannah Arendt se contrapõe
a outras formas de estruturação política. Pois, um tipo de corpo político, que se apresenta
como capaz de abranger o maior número possível de pessoas para a participação dos negócios
da esfera pública, veio a se contrapor às tiranias e às diversas formas de governos baseados na
força das minorias autoritárias ou até mesmo das maiorias dominadoras. Para a segurança do
corpo político que se baseia no sistema distrital, como aquele assinalado por Jefferson, não
230
tinha como objetivo fortalecer o poder da maioria, pois esse tipo de poder se contrapunha às
ditaduras das maiorias que poderiam manipular as massas e com isso forçar a adesão a
opiniões comuns. Pelo contrário, cabia aos distritos, dentro dos limites de sua competência,
fortalecer o poder de cada um dos participantes. Era necessário fragmentar a “maioria” em
assembléias, para que cada um pudesse fazer a sua voz ser ouvida.
561
Dessa maneira, cada cidadão se sentiria envolvido na função de garantir a sua
contribuição naquilo que se refere ao funcionamento do corpo político. Nessa perspectiva,
ninguém que aceitasse participar dos organismos de deliberação, ficaria fora do corpo
político. É por causa desse envolvimento na deliberação de assuntos públicos que o modelo de
corpo político concebido sob o ponto de vista de Hannah Arendt não se pauta em nenhum
órgão de representação e de facções ideológicas a exemplo dos partidos políticos. O que
Arendt ressalta, é o direito e a garantia de cada cidadão em ser participante dos espaços
públicos, a ponto de possibilitar a configuração de um corpo político que se movimenta a
partir dos discursos e ações conjuntas encaminhadas por cada um deles. O que se verifica é
que a ação dos membros do corpo político se dirige a eles mesmos, ou seja, cada cidadão é
autor das deliberações que pelas quais a eles próprios elas se destinam. Em função dessa
autoria do povo nas deliberações, a dinâmica política do corpo político arendtiano, se auto-
sustenta, por meio da ação de indivíduos que são seus elaboradores e ao mesmo tempo seus
destinatários.
Evidencia-se que o modelo de corpo político arendtiano possui a sua efetivação no
âmbito das experiências dos conselhos, isto é, os conselhos se efetivam como instituições que
possuem em seu interior aspectos que permitem a realização da ação. A autora se refere a um
tipo de corpo político oriundo do contexto da modernidade de onde emergiu no século XVIII
a experiência revolucionária em suas vertentes Francesa e Norte-Americana. É em meio a
560
ARENDT. Crises da República, p. 201.
561
ARENDT. Da Revolução, p. 203.
231
tudo isso que o aparecimento dos conselhos é assinalado como órgãos tanto de ordenamento,
quanto de ação. Diferentemente de partidos e assembléias centralizadoras, os conselhos eram
órgãos de ação direta. Sobre isso, esclarece Hannah Arendt:
É bem verdade que os membros dos conselhos não se contentavam em travar debates e
manterem-se “esclarecidos” a respeito das medidas tomadas por partidos e
assembléias; eles, conscientes e explicitamente, almejavam a participação direta de
todos os cidadãos nos assuntos públicos do país, e, enquanto existiram, não dúvida
de que “todo indivíduo encontrou neles sua própria esfera de ação e pôde constatar,
como que com seus próprios olhos, sua contribuição pessoal aos acontecimentos do
dia.”
562
O que destaca a experiência dos conselhos enquanto novidade na História Política do
Ocidente é a possibilidade que eles oferecem em garantir aos indivíduos que deles participam,
a atuação direta no encaminhamento dos negócios públicos. A partir daí, o que se tem em
vista é que a experiência dos conselhos nos fornece o surgimento de um novo corpo político
que se configura trazendo em seu seio a participação direta dos cidadãos. Podemos destacar
essa novidade apoiada na participação política direta dos cidadãos nos negócios públicos,
porque o sistema pautado em instituições como o parlamento e os partidos políticos não
possibilitam essa ação direta dos cidadãos na esfera dos assuntos públicos.
563
562
ARENDT. Da Revolução, p. 210.
563
Para Hannah Arendt, o parlamento surgiu como um meio que foi encontrado para que os sectarismos das
facções pudessem estabelecer um espaço propício ao seu desenvolvimento. Era preciso também encontrar um
meio para que as massas populares pudessem se organizar fora do parlamento e utilizar o terror como um
instrumento para pressionar a Assembléia por meio de métodos que deveriam vir de fora para dentro dela. Na
França, o meio encontrado para dominar o curso da Assembléia, foi o de infiltrar no interior da vida das
sociedades populares com o objetivo de controlá-las. O resultado esperado era o de proclamar que apenas uma
facção parlamentar, nesse caso, a dos jacobinos, se estabeleceria como verdadeiramente revolucionária. Por essa
razão, os jacobinos se viam no direito de desconsiderar as outras sociedades populares, pois somente aqueles que
eles infiltravam mereciam crédito de confiança política. Arendt nessa atitude o nascedouro de uma ditadura
unipartidária, nascida de um sistema pluripartidário. Essa situação revela o que queria o líder Robespierre. O seu
objetivo era congregar todo o povo francês em uma máquina partidária gigantesca, com base na máxima de que
“a grande sociedade popular é o povo francês.” Para tanto, caberia ao clube jacobino espalhar-se por toda a
França na forma de células partidárias. Tais organismos, ao contrário das sociedades populares não se reuniam
com o objetivo de trocar opiniões e discutir sobre o cotidiano político, muito menos para adquirir o aprendizado
e a informação mútua sobre os negócios públicos, pois o objetivo delas era espionar umas às outras e denunciar
indiferentemente a todos. (ARENDT. Da Revolução, p. 197). Essa realidade é comparada por Arendt, com o que
aconteceu com os rumos tomados pela Revolução Russa. No contexto da Revolução Russa de 1917, o partido
Bolchevista procurou esvaziar e desvirtuar os princípios e as estruturas políticas do sistema soviético
revolucionário. Essa semelhança do que ocorreu na Rússia em relação aos fatos ocorridos na França, revelam a
face do moderno sistema partidário quando no conflito com os órgãos populares. O que vemos são dois sistemas
232
Contrariamente à prática desses partidos políticos, as sociedades e outros tipos
semelhantes de órgãos populares, não se apresentavam como instituições sectárias. É curioso
para Hannah Arendt, que de todos os pontos dos conflitos que foram abertos entre as
sociedades e o governo, o mais marcante e de natureza decisiva veio a ser o caráter não
sectário das sociedades populares. Os partidos, ao contrário das sociedades, não nascem no
seio do povo, suas origens brotaram em meio ao fanatismo e às ambições desenvolvidas no
interior da Assembléia. A partir do momento em que não havia mais concordância entre as
facções parlamentares, tornou-se uma questão de morte ou de sobrevivência, forçando para
que a partir daí, cada uma dessas facções se empenhassem para poder dominar todas as
outras.
564
André Duarte comenta que as análises de Arendt demonstram que a História das
verdadeiras Revoluções políticas, tomadas desde o século XVIII até os dias atuais, se
estabelecem como a História do jogo recorrente que se situa entre o surgimento e a obstrução
da participação e da organização política da população. Duarte diz que esse jogo recorrente
pode existir devido ao fato de a Revolução ter sido sufocada, seja por ela ter perdido os seus
rumos através do uso do terror e da violência, ou seja, porque o evento caracterizou ou
represou o desejo de participação política lançando mão do sistema representativo de forma
centrada no aparato burocrático dos partidos políticos. Duarte insiste em dizer que é nessa
História secreta da modernidade que reside sempre a manifestação do conflito entre o Estado-
nação que se faz por meio de uma organização em torno dos interesses particulares
representados pelos partidos e o princípio da participação presente nas formas de exercício de
de natureza diferente, embora o conflito entre esses dois sistemas tenha aparecido no mesmo contexto. Tanto os
partidos de esquerda, quanto os de direita, foram hostis ao sistema de conselhos. O advento do Estado-Nação
elevou os partidos e esmagou os sistemas de auto-governo. É por essa razão que o parlamento encontra a sua
razão de ser por via do sistema partidário. Situação que implica na abdicação do poder político do povo em favor
de seus representantes. Nesse sentido, por mais que um partido venha a obter sucesso em sua aliança com as
massas, ele esbarrará sempre em uma facção. O sistema parlamentar propicia esse tipo de sectarismo. Dessa
maneira, o partido acaba tendo que se comportar como um órgão que possui um contato com o povo de forma
vertical, ou seja, de cima ou de fora do âmbito popular. (ARENDT. Da Revolução, p. 198).
564
ARENDT. Da Revolução, p. 197.
233
política direta nas diversas instâncias de caráter federativo.
565
O que Hannah Arendt quer
demonstrar, de acordo com esses comentários de André Duarte é que o conflito entre a idéia
de Estado-nação que se ampara em partidos políticos e o princípio da participação política
direta presente em sistemas como o dos conselhos, revela a tensão que existe entre a
participação política e a representação política. Essa tensão, típica da época moderna, nos traz
à tona a própria dignidade do espaço público.
566
Nota-se que uma das características que demonstra a novidade do corpo político
arendtiano encontra-se contida nas formas de encaminhamento da ação política, pois no seu
interior, ou seja, o modelo anunciado por Hannah Arendt vai de encontro a um tipo de
redefinição das estruturas de deliberação do poder político. Nesse sentido, partidos e
parlamentos por serem órgãos que lidam essencialmente com interesses de facções
ideológicas teriam a dificuldade de incluir em seus quadros decisórios pontos fundamentais
que fossem inerentes ao cotidiano da vida em sociedade no âmbito do ambiente das cidades
ou de um país inteiro. Arendt parece nos apontar que um corpo político aberto à participação
de todos aqueles que se dispõem a aventurar-se pelo caminho do envolvimento em atos e
palavras, por si carrega em sua estrutura a possibilidade de todos os envolvidos se
afirmarem constantemente como seres politicamente livres e adaptados ao exercício da práxis
deliberativa. Envolvidos dessa maneira, esses participantes dessa nova ágora não se prendem
ao engradramento de facções como aquelas que são próprias das burocracias partidárias.
565
Após fazer essas considerações, André Duarte remonta a Arendt: “Tanto o plano de Jefferson [de estabelecer
‘repúblicas elementares’ distritais e municipais] como as sociétés révolutionnaires francesas anteciparam com
estranha e total precisão aqueles conselhos, os sovietes e os Räte, que viriam a aparecer em cada verdadeira
revolução durante todo o século XIX e XX. Sempre que apareciam, espalhavam-se como órgãos espontâneos do
povo, não apenas fora de todos os partidos revolucionários, mas completamente inesperados para eles e para os
seus chefes. Tal como as propostas de Jefferson, eles foram completamente desconsiderados pelos estadistas,
historiadores, teóricos políticos e, com maior importância ainda, pela própria tradição revolucionária. (...) eles
falharam em compreender em que medida o sistema de conselhos os punha diante de uma forma de governo
inteiramente nova, diante de um novo espaço público de liberdade que fora constituído e organizado no decorrer
da própria revolução.” (André Duarte fez essa citação com base em: Hannah Arendt, Sobre A Revolução, Lisboa,
Moraes, 1971, p. 245 - 246, tradução modificada).
566
DUARTE. Hannah Arendt e a Modernidade: esquecimento e redescoberta da política. In: CORREIA (Org.).
Transpondo o Abismo: Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política, p. 75.
234
Essa situação é visível nas abordagens de Arendt, tanto que para ela, o fato notável
acerca dos conselhos
567
era o de que com evidência que eles além de ultrapassarem todas as
linhas partidárias, permitiam que membros de diversos partidos tomassem assento junto a
eles. Essa situação ocorria sem permitir que a filiação partidária dessas pessoas influenciasse
o andamento da política encaminhada por esses conselhos. É por esse motivo, que os
conselhos, se estabeleceram como únicos órgãos políticos que permitiam que pessoas que não
possuíam filiações partidárias deles pudessem participar. Pode-se, partindo dessa abertura dos
conselhos à participação popular encontrar as razões que levaram esse órgão de expressão da
política moderna entrar em conflito com parlamentos e assembléias, uma vez que é
importante considerar que tais instituições são frutos do sistema partidário.
568
A prática do elemento deliberação é sustentada no corpo político por meio dos
conselhos, devido a vivência da liberdade política. No interior do corpo político arendtiano,
existe articulação entre conhecimento e ação, pois se espaço para o exercício constante da
opinião, a ação uma vez articulada a ela, se ilumina pelo conhecimento, porque este é
567
Referindo-se ao papel dos conselhos no seio da Revolução Húngara, comenta Leonardo Avritzer: “Há um
segundo elemento de importância seminal de suas reflexões sobre a Hungria que é a valorização positiva do
papel dos conselhos. Hannah Arendt resgata uma discussão que pertence à tradição marxiana, mas como
interpretação radicalmente distinta. Para ela, ‘os conselhos operários são a mesma organização com mais de cem
anos de vida, que surgiu sempre que se permitiu ao povo por alguns dias, por algumas semanas, ou meses
desempenhar as suas atividades políticas, sem um governo (ou programa partidário) imposto por cima’ (Arendt,
1966: 497). A colocação arendtiana difere da marxiana em um aspecto mais evidente que é a negação de
qualquer elemento no entendimento dos conselhos (Sitton, 1992). Mas ela difere da interpretação marxiana em
um segundo aspecto ainda mais relevante: para Arendt os conselhos não eram conselhos operários e sim
conselhos revolucionários ou de bairro. Na sua análise sobre os conselhos húngaros, ela diferenciou os conselhos
revolucionários dos conselhos de trabalhadores. A sua atenção esteve voltada para as funções políticas dos
primeiros. Para ela, os conselhos revolucionários eram uma resposta à tirania política e, ao mesmo tempo uma
alternativa a um sistema representativo baseado em facções: ‘[...] assim se a origem histórica do sistema de
partidos se assenta no parlamento e nas facções, [por outro lado] os conselhos emergem exclusivamente das
ações e das demandas espontâneas do povo e não fazem paarte dele ideologias préconcebidas ou qualquer teoria
sobre a melhor forma de governo’ (Arendt, 1966: 499). Ou seja, Hannah Arendt apresenta, na sua análise sobre
os conselhos húngaros, uma alternativa tanto ao problema da representação quanto à concepção marxiana de
conselhos operários. O que ela busca com a sua concepção é desvincular política de elementos estratégicos de
disputa do poder e vinculá-la ao ato de ação coletiva. Para ela, os conselhos assumiam um papel vago no modo
moderno de pensar a ação para além da facção. Esse papel significa pensar a política como uma categoria que
vai além dos partidos e que gere elementos comuns de ação.” (AVRITZER. Ação, Fundação e Autoridade em
Hannah Arendt. In: Lua Nova, número 68: p. 162 – 163).
568
ARENDT. Da Revolução, p. 210.
235
possível existir devido a existência da opinião. Para Hannah Arendt, “onde quer que haja
divórcio entre o conhecimento e a ação, deixa de existir espaço para a liberdade.”
569
No interior dos conselhos, a liberdade se manifestava em atos e palavras. Dessa
forma, um corpo político que comportasse em sua estrutura organizacional o sistema de
conselhos, possibilitaria que o espírito novo da Revolução não se extinguisse. O corpo
político, firmado através de bases por meio de organismos de participação popular de ação
política direta, seria a instituição apropriada para manter viva a chama da Revolução, que em
um momento, devido a uma série de ações imprevisíveis, começou a mudar o rumo da
História.
Vimos até aqui que os elementos de organização de base e de deliberação são
essenciais para a efetivação do corpo político assumido por Hannah Arendt. A partir daí, é
importante salientar que, na estrutura organizacional do corpo político, esses dois elementos
clamam por um outro elemento. Trata-se do elemento coordenação, uma vez que, organizados
em suas bases e deliberando em conjunto, os cidadãos carecem de coordenação. Sem o
elemento coordenação, teríamos um corpo político caracterizado como uma instituição por
onde as coisas correriam soltas. Para que possamos entender como o corpo político na
perspectiva arendtiana se configura, abordar a respeito do elemento coordenação do poder em
seu interior, constitui-se como uma medida importante para a efetivação do propósito central
de nossa pesquisa.
Para uma explicitação de como ocorre o processo de coordenação do corpo político,
Hannah Arendt recorre a Jefferson. Para esse homem de destaque na Revolução Americana,
um tipo de organização política baseada em distritos era o que ele apostava para se encontrar
uma configuração do corpo político. Acreditava Jefferson que em todo o país, teria uma rede
desses órgãos, que consequentemente, cada cidadão a partir dessa realidade, poderia dar a sua
contribuição a um corpo político de caráter horizontal. Diante disso, emerge a pergunta:
569
ARENDT. Da Revolução, p. 211.
236
Como cada um dos membros desses conselhos poderia assegurar a sua participação na
estrutura governamental da União? Perguntando de uma outra maneira: Como a ação desses
conselhos poderia refletir no âmbito da estrutura mais alta do governo? Segundo Hannah
Arendt, a resposta de Jefferson foi:
As repúblicas elementares dos distritos, as repúblicas dos municípios, as repúblicas
estaduais e a república da União formarão uma gradação de autoridades, cada uma
delas respaldada na lei, detendo todas o seu quinhão de poder delegado e constituindo
verdadeiramente um sistema de freios e contrapesos, fundamental para o governo
570
Verifica-se com base nessa observação de Jefferson, que o corpo político se configura
assumimdo como uma de suas características o elemento coordenação, que pode ser traduzida
por uma gradação de autoridades. Essa gradação se inicia por meio de uma perspectiva de
poder e de autoridade que se apresenta inicialmente de maneira horizontal, ou seja, vinda de
baixo, assentada no povo.
Admitindo-se por esse ponto de vista, a estrutura organizacional do corpo político
possui o seu despertar na subdivisão dos municípios, ou seja, ela começa a acontecer no
âmbito dos distritos. Após passarem por inúmeras discussões e deliberações os pontos da ação
conjunta trabalhados no seio dos distritos, seriam legalmente levados pelos delegados para o
conselho do município, que respeitando as decisões dos distritos enviariam delegados para o
conselho dos Estados. Cada Estado seria constituído por uma rede de conselhos municipais.
Finalmente, os conselhos dos Estados, encaminhariam as propostas trazidas pelos conselhos
municipais para a estrutura do conselho da União.
Dessa maneira, as propostas de ação encaminhadas nos conselhos distritais, teriam seu
eco prático no âmbito da estrutura governamental da União. Devido a esse tipo de
encaminhamento, a estrutura governamental da União, não teria como desprezar os apelos da
base. Nessa estrutura, os elementos da organização iniciada na base dos municípios no que se
237
refere à deliberação e à coordenação caminhariam de forma articulada. É como se um
elemento se prendesse ao outro, garantindo assim, a efetivação de um corpo político que
verdadeiramente levasse em conta que a fala e a ação de cada cidadão pudessem ser
respeitadas.
Marcelo Gantus Jasmin disse que Tocqueville presenciou na América do Norte algo
semelhante a esse tipo de configuração de estrutura política. O historiador francês observou
um tipo de “patriotismo municipal,” também considerado por ele como um tipo de “liberdade
política local.” Tudo isso se compunha de uma energia criadora que anima os indivíduos na
tomada de resoluções conjuntas acerca dos seus problemas comuns. O que sustentava esse
patriotismo e essa liberdade de nível local era a prática cotidiana da cidadania, que pode ser
considerada como o verdadeiro antídoto contra o espírito “teórico” ou “literário” da soberania
popular.
571
É de Hannah Arendt a advertência de que Jefferson teria sido omisso na questão da
definição de como seriam as funções específicas das Repúblicas elementares. Se por um lado
essa questão não ficou esclarecida, por outro, a autora afirma que Jefferson encontrava-se
convencido de que as divisões em distritos somente teriam sido iniciadas para coletar a voz do
povo até a estrutura governamental da União e, com o tempo, ficaria evidenciado que para
atender a outros propósitos, elas seriam os melhores instrumentos.
572
No caso dos conselhos na Rússia e na Hungria, Hannah Arendt também se refere ao
aspecto de como era coordenado o poder que existia em cada um deles. Para ela, na Rússia, os
conselhos ou os Soviets se espalharam por toda parte. Eram organismos que se caracterizavam
como que independentes uns dos outros. Eles se apresentavam como conselhos compostos por
trabalhadores, soldados e por camponeses. Na Hungria, os conselhos eram mais variados, pois
570
ARENDT. Da Revolução, p. 203.
571
JASMIN. Interesse bem compreendido e virtude em Democracia na América. In: BIGNOTTO (Org.). Pensar
a República, p. 77.
572
ARENDT. Da Revolução, p. 201.
238
havia os conselhos de bairro e outros. Os conselhos húngaros estavam presentes em todos os
distritos residenciais, denominados conselhos revolucionários, e cabia a eles encaminhar as
lutas de rua. Além de os conselhos da Hungria envolverem todos os moradores, naquele país,
formaram conselhos de escritores e artistas que se reuniam nos bares e nos cafés de
Budapeste. Havia também conselhos de jovens e estudantes nas Universidades húngaras,
conselhos de operários no espaço das fábricas, conselhos no exército e no serviço público
civil. Porém, os diversos tipos de conselhos, não paravam por aí. Em função dessa presença
marcante dos conselhos por diversos lugares, Arendt diz que esses órgãos, uma vez que se
encontravam espalhados por diversos ambientes, se aproximaram muito de uma instituição
política.
573
Daí, percebe-se o quanto esse tipo de organização política era abrangente, ou seja,
tratava-se de um sistema que procurava ocupar todos os espaços e tipos de profissionais de
um país. Referindo-se ao elemento da coordenação do poder entre os conselhos, Arendt
adverte:
O aspecto mais surpreendente desses desenvolvimentos espontâneos é que, em ambos
os exemplos, esses órgãos independentes e altamente diferenciados levaram não mais
que umas poucas semanas, no caso da Rússia, ou alguns dias, no caso da Hungria,
para iniciar um processo de coordenação e integração, através da formação de
conselhos superiores, de caráter regional ou provincial, no âmbito dos quais podiam
ser finalmente escolhidos os delegados para uma assembléia representativa de todo o
país.
574
O que se explicita é que o elemento relativo à coordenação do poder, no caso dos
conselhos da Rússia e da Hungria, é que foi criada uma articulação entre esses órgãos
populares presentes em todos os lugares, de maneira que a escolha de delegados regionais ou
provinciais, tornaram possível uma articulação das necessidades levantadas por meio das
discussões. Nessas instâncias superiores, os delegados se pautavam nos problemas levantados
em suas localidades de origem e assim atuavam na grande assembléia representativa de todo o
573
ARENDT. Da Revolução, p. 213.
239
país. É dessa forma que se efetivava o processo de ação desses organismos espontâneos do
povo.
Evidencia-se o quanto a existência do corpo político na perspectiva arendtiana seria
impensável caso não houvesse a articulação entre os elementos da ação encaminhada por
esses organismos populares. O que se percebe, é que o caráter horizontal da ação política em
um corpo político, seja vindo da experiência americana, ou seja, vindo da experiência
européia, se constitui amparando-se em uma rede de órgãos populares a exemplo dos
inúmeros tipos de conselhos. Ora, esse caráter horizontal da ação é evidenciado no fato do
órgão superior admitir respeitar as decisões originais vindas dos órgãos menores. Nesse
sentido, o poder de constituir originado do povo, nunca seria abandonado pelos órgãos
superiores.
Em meio às análises sobre o aspecto de como se articula o elemento coordenação do
poder em um corpo político fundamentado em organismos como os conselhos, pode surgir a
pergunta: como ocorre a separação dos poderes nesse novo tipo de estruturação de governo?
Comentando a esse respeito diz a autora: “ciosos de sua capacidade de agir e de formar
opinião, seriam compelidos a descobrir, tanto a divisibilidade do poder, como a sua
conseqüência mais importante, a indispensável separação de poderes no governo.”
575
Por
serem esses órgãos populares um espaço da opinião e da ação conjunta, o que se percebe é
que se trata de um tipo de manifestação capaz de convocar para dentro de si a separação de
poderes. Para que a opinião tenha mais desenvoltura para se manifestar, o apelo à necessidade
para que exista um poder judiciário escolhido pelos participantes na base do Estado-conselho
é uma questão que se assinala. Seria o judiciário, pelo que nos parece à primeira vista, um
poder absolvido por um tipo de ação nascida dos anseios discutidos no interior dos conselhos.
574
ARENDT. Da Revolução, p. 213.
575
Ibidem, p. 213.
240
A autora não abordou com detalhes a respeito de como seria na teoria e na prática a
divisão entre os poderes Legistativo, Executivo e Judiciário. Mas, ela nos deixa claro que
nenhum desses poderes teria as suas funções estabelecidas fora do alcance do poder de
atuação dos órgãos populares estabelecidas em níveis locais. Dessa maneira Hannah Arendt
nos esclarece que o Estado-conselho - que possui a sua base de sustentação da ação política
em organismos a exemplo dos conselhos - leva também em conta a necessidade de considerar
a separação de poderes do novo corpo político.
Os participantes de conselhos ou algo de estrutura semelhante, se constituíam como
indivíduos que se apresentavam como uma espécie de elite política do povo. O ponto de
partida para a ação dessa elite política encontrava-se no fato dessas organizações escolherem
seus representantes para o conselho imediatamente superior. Esses representantes escolhidos
eram selecionados por seus pares, sem pressões tanto de cima como de baixo. A posição
desses membros participantes escolhidos era respaldada tão somente pela confiança de seus
iguais. Não era uma igualdade natural e sim política, diferentemente de a terem possuído por
direito de nascença. O que caracterizava essa igualdade era o fato dela ser o sinal do
comprometimento com a empresa conjunta na qual todos se encontravam engajados. No
momento em que uma pessoa era eleita, e, conseqüentemente, enviada a um conselho superior
imediato, essa pessoa, enquanto representante encontrava-se novamente entre os seus pares.
Essa pessoa escolhida apresentava-se diante de outras pessoas que tal como ela, deveria falar
em nome daqueles que a elegeram no âmbito das organizações elementares. Tratava-se de um
sistema, em que todos os escolhidos para o conselho superior haviam recebido um voto
especial de confiança.
576
Diante disso, percebe-se que, nessa gradação de autoridade, o fio que conduzia cada
etapa desse processo de ação, se caracterizava como o garantidor de tudo aquilo que se
576
ARENDT. Da Revolução, p. 222.
241
decidia no seio do corpo político. O resultado desse processo é a consolidação de um corpo
político caracterizado por um movimento expresso em atos e palavras.
Em relação à proximidade do corpo político arendtiano com formas de estruturação
dos corpos políticos divididos em estamentos, temos o fato de que a própria Hannah Arendt
diz não ter tido dúvidas que esse tipo de corpo político, uma vez desenvolvido, assumiria de
novo a forma de pirâmide.
577
Comentando a esse respeito, André Duarte afirma que em termos arendtianos em um
sistema de conselhos plenamente desenvolvido, conjecturou-se a possibilidade do
aparecimento de uma estrutura política de caráter piramidal com a capacidade de conciliar
simultaneamente igualdade e autoridade de uma maneira em que nenhuma outra forma de
governo moderno tenha conseguido até hoje. Ao mesmo tempo, Hannah Arendt pensou que
seriam os conselhos a melhor forma de fragmentar e politizar as grandes massas tão comuns
no povoamento das sociedades contemporâneas. Pois, o que Arendt queria com isso era
impedir que as massas fossem arregimentadas e organizadas pelos partidos políticos de
caráter demagógicos inseridos em movimentos totalitários de massa.
578
Hannah Arendt nos apresenta um tipo de autoridade nascida do uso da fala por meio
da expressão da opinião de cada um dos componentes do corpo político. Verifica-se que é no
seio dos conselhos que ficaria claro qual dos seus membros seria o melhor indicado para
apresentar os pontos de vista daquele conselho inferior a um conselho mais alto seguinte.
Pois, é no conselho superior que os pontos de vista dos participantes do conselho inferior
serão esclarecidos pela influência de outros pontos de vista. Esses momentos se revelam como
de revisão de opiniões e de demonstração de erros.
579
Registra-se um espaço que se constrói
577
ARENDT. Da Revolução, p. 222.
578
DUARTE. Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política. In: CORREIA.
Transpondo o Abismo, p. 77.
579
ARENDT. Crises da República, p. 200.
242
por meio daquilo que se revela através do discurso e prossegue também acontecendo
juntamente com o desenvolvimento da ação conjunta.
O novo corpo político então baseado em articulações ocorridas entre os elementos que
o compõe, passa a traçar um papel estrutural diferente daquilo que nos é comumente
apresentado em termos de conceito de Estado. Pois, com o advento da formação do Estado,
esse tipo de corpo político nunca assumiu em sua estrutura organizacional a presença de
espaços públicos de manifestação da ação popular.
Temos originalmente nas análises levantadas por Hannah Arendt, a apresentação da
possibilidade da criação de um tipo de corpo político configurado em um Estado-conselho.
Esse tipo de corpo político, seria composto por diversas espécies de federações. Nota-se que
nesse tipo de corpo político as decisões, uma vez tomadas à luz da ação encaminhada a partir
dessas federações, teria como resultado a gestação de um tipo de poder constituído de maneira
horizontal, ao contrário dos Estados que são estruturados verticalmente.
580
Essa forma de estruturação do corpo político seria a formulação arendtiana da
possibilidade da instauração do novo no âmbito do funcionamento da política contemporânea.
Arendt nos apresenta à luz de suas análises um caminho original para a instauração de um
Estado-conselho, que mesmo com pouca probabilidade de ser realizado, nunca deixaria de ser
um motivo para poder contribuir com o despertar do espírito revolucionário. Nas palavras de
nossa autora:
Nessa direção eu vejo possibilidade de se formar um novo conceito de Estado. Um
estado-conselho desse tipo, para o qual o princípio da soberania fosse totalmente
discrepante, seria admiravelmente ajustado às mais diversas espécies de federações;
em particular, porque nele o poder seria constituído horizontalmente e não
verticalmente. Mas se você me perguntar qual a probabilidade dele ser realizado, então
devo dizer: muito pouca, se tanto. Todavia, apesar de tudo, talvez, no despertar da
próxima revolução.
581
580
ARENDT. Crises da República, p. 201.
243
O que Arendt ressalta é a demonstração de uma estrutura organizacional de um corpo
político inteiramente novo. Aqui temos o empenho de nossa autora em procurar explicitar a
possibilidade de uma nova estrutura política atuando como uma lança no âmbito dos negócios
públicos, ou seja, Arendt não esconde o seu desejo de ver a instauração do novo como uma
lança que segue o seu rumo apontando para o futuro. É por essa razão que podemos então
garantir que Arendt contribuiu com o processo que envolve a História da Filosofia Política
por meio de abordadens que tratam da efetivação de um novo modelo de corpo político.
Para que esse modelo de corpo político se perpetue, ou seja, se enraíze no tempo é
necessário a criação do instrumento Constituição. O estabelecimento de um instrumento capaz
de legitimar, normatizar e tornar o corpo político durável é uma necessidade que surge quando
o assunto em pauta é a tópica da fundação. Demonstremos nas linhas que se seguem como
ocorre a relação entre fundação e Constituição.
4. 2 - Fundação e Constituição
O novo corpo político, assentado em leis, se caracterizou como uma estrutura política,
de um governo constitucional onde o poder era limitado por essas leis e ao mesmo tempo se
pautava naquilo que deveria ser elaborado pelos homens: as próprias leis. Essa era a
possibilidade que o clima revolucionário da modernidade em curso apresentava ao povo, isto
é, esse contexto era assinalado pela concepção de que o povo possui o poder constituinte das
leis. É devido a isso que Arendt assinala a necessidade recorrente tanto na França, quanto na
América, de se estabelecer assembléias constituintes e de convenções especiais com a tarefa
única de esboçar uma Constituição. No caso norte-americano, essa tarefa consistia na
necessidade daqueles que se encontravam envolvidos no processo de elaboração das leis em
levar o esboço para a casa e voltando com ele para o povo, deveriam debater ítem por ítem
581
ARENDT. Crises da República, p. 201.
244
relativos ao conteúdo dos seus artigos. Esse trabalho de debates era feito nas sedes das
municipalidades e posteriormente nos congressos estaduais. Nesse caso, era o povo que
dotava o governo de uma Constituição e não o inverso.
582
Esse tipo de comportamento levou
Marcelo Gantus Jasmin a afirmar que, para Tocqueville, “o espírito republicano e cívico
encontrado nas comunas da Nova Inglaterra pareceu-lhe preencher o conteúdo indispensável à
realização da vida política democrática moderna.”
583
Para Hannah Arendt, essa necessidade de limitação do poder político por meio do
povo, tinha o objetivo de impedir a manifestação do domínio voraz que o homem possui em
relação ao poder. Pois, é devido à natureza humana que possui a tendência de transformar
homens “em vorazes animais de presa” que se torna necessário colocar freio em seus instintos
políticos. O governo limitado por leis, apresenta-se como a solução capaz de dar fim a esse
problema. Essa reflexão sobre a fragilidade da natureza humana frente ao poder, acabou por
influenciar as mentes dos fundadores do novo corpo político, pois encontrava-se enraizado
neles a necessidade de criar mecanismos capazes de limitar a natureza humana naquilo que se
refere ao poder político. É dessa fragilidade humana frente ao poder, que nasce a necessidade
de se voltar para a diferença que existe entre uma Constituição que é um ato de governo, e
uma Constituição que por meio dela o povo constitui um governo.
584
Diferentemente dos comportamentos revelados por governos tirânicos que
apresentavam Constituições para o povo, o que a concepção de corpo político oriundo das
Revoluções propunha era um tipo de horizontalização das suas Constituições. No novo corpo
político as leis deveriam ser emanadas do seio do próprio povo. Portanto, de leis oriundas do
seio do próprio povo que se evidencia a força do poder popular em se efetivar como algo
capaz de influenciar e limitar a ação dos governantes.
582
ARENDT. Da Revolução, p. 116.
583
JASMIN. Interesse bem compreendido e virtude em democracia na América. In: BIGNOTTO (Org.). Pensar
a República, p. 77.
584
ARENDT. Da Revolução, p. 117.
245
No caso dos Estados Unidos da América, o que preocupou os fundadores da
República, foi a possibilidade de garantir a existência de um novo corpo político que pudesse
evitar a instalação de um vazio de poder após a Declaração da Independência. E esse vazio de
poder não chegou a existir, porque a América do Norte passou por uma febre de elaboração de
Constituições alicerçadas em discussões e esclarecimentos vindos do povo.
585
A criação de
Constituições seria a maneira encontrada para impedir que houvesse esse vazio de poder. A
Constituição aparece como o instrumento responsável em garantir as conquistas obtidas pelo
novo corpo político a exemplo da liberdade política.
Para garantir a fundação da liberdade política no âmbito do corpo político, Hannah
Arendt volta-se para a advertência feita por Jefferson no momento em que ele ficou assustado
por se encontrar diante da catástrofe originada pelos rumos tomados pela Revolução Francesa.
Baseados nos resultados desviantes do ideal de liberdade assinalado pela Revolução Francesa
na sua gênese, Jefferson viu a necessidade de se criar um instrumento necessário para apoiar a
existência dessa liberdade. Naquele contexto, Jefferson se colocou atento aos resultados
apresentados pela Revolução Francesa, na qual a violência da luta por libertação havia
provocado uma onda de frustração nascida de todas as tentativas de se criar um espaço seguro
por onde a liberdade pudesse se manifestar de maneira permanente. Portanto, Jefferson propôs
que a Constituição Norte Americana fosse então, a provedora dos instrumentos capazes de
garantir a necessária manutenção da liberdade. Os habitantes do Novo Mundo edificaram uma
liberdade política que ansiava por preservação. Queria Jefferson que a Constituição
respeitasse o direito de revisão em períodos estabelecidos pelas sucessivas gerações. Pois,
para ele, cada geração tinha o direito de escolher para si própria, a forma de governo que ela
julgasse mais apta para a promoção de sua própria felicidade.
586
585
ARENDT. Da Revolução, p. 119.
586
Ibidem, p. 187.
246
Evidencia-se que a preocupação de Jefferson, é a de que a Constituição
587
se afirmaria
como o meio plausível de se garantir a manutenção dos princípios característicos da liberdade
política, enquanto um elemento inerente ao corpo político assinalado pela experiência
revolucionária do século XVIII.
Como vimos anteriormente, a experiência das Revoluções trouxe um tipo de corpo
político que se constrói por meio do poder assumido pelo povo através de seus feitos e
palavras no âmbito dos espaços públicos, a exemplo dos conselhos. Em meio a essa
construção política de fonte popular, a criação de Constituições aparece como uma
conseqüência desse tipo de movimentação. O povo cria leis para sustentar a legitimidade de
suas ações políticas. É devido a essa necessidade do povo que as Constituições criadas por ele
passam também a contar com o respaldo desse mesmo povo para que elas passem a existir de
maneira permanente e, conseqüentemente, possam sofrer intervenções dos seus criadores ao
longo dos tempos.
É por esse motivo que Jefferson, sustentado por seu espírito de ator político e com a
responsabilidade de manter as conquistas obtidas no seio do novo corpo político, salienta a
necessidade de garantir ao povo o direito de formulação e de intervenção na Carta Magna.
Tais intervenções deveriam ocorrer por meio de revisões com o objetivo de evitar que no
futuro pudesse haver o impedimento de interferências de formas o-republicanas de
governos. O que se percebe é que Jefferson sinaliza a sua crença de que a Constituição seria a
salvaguarda do novo governo estabelecido e também do espaço da liberdade.
588
Uma vez
estabelecido o novo corpo político, ele não poderia ser concebido sem a presença da liberdade
política em seu interior.
587
A pluralidade e a relevância da Constituição Norte-Americana é expressa por Bernard Bailyn da seguinte
maneira: “A constituição norte-americana é a expressão final e o clímax da ideologia da Revolução Norte-
Americana. Como tal, tornou-se, nos dois séculos de sua existência, objeto dos mais elaborados e detalhados
exames e comentários que m sido dedicados a qualquer documento exceto a Bíblia. Ninguém dominou todos
os competentes escritos sobre a Constituição; ninguém jamais dominará.” (BAILYN. As Origens ideológicas da
Revolução Americana, p. 287).
588
ARENDT. Da Revolução, p. 188.
247
Segundo Arendt, Jefferson dava tanta importância ao que ele chamava de pequenas
Repúblicas, que o mesmo dizia que a essência daquilo que se tornaria a força maior da grande
República se encontrava nessas pequenas Repúblicas.
589
Essa visão de Jefferson lembrada
pela nossa autora nos faz compreender que a essência do corpo político não deveria residir no
espaço do Parlamento, no poder executivo do governo da União e nem somente no poder
Judiciário.
Nessa perspectiva, a força do corpo político reside nas pequenas subdivisões,
590
de
modo que todas as pessoas possam participar opinando, discutindo e agindo em conjunto. Isso
não quer dizer que nessa estrutura organizacional de governo, não haja diferenças entre as
suas funções e que também não haja hierarquias. O que Jefferson gostaria que fosse
preservado pela Constituição era o poder de participação contínua do povo no dia-a-dia do
corpo político. Visto por esse ângulo, no caso da França, os conselhos ou as sociedades
populares nunca poderiam ser excluídos do processo de fundação da estrutura do corpo
político.
Trilhando esse caminho, assinalado por Jefferson, evidencia-se que a Constituição se
estabelece como o instrumento responsável em garantir a manutenção de elementos criados na
fundação de um novo corpo político. É por isso que Hannah Arendt afirma que uma das
questões que se discutiam no interior das sociedades populares da França é aquela que admitia
a Constituição como instrumento concebido como imortal e que, conseqüentemente, deveria
então assegurar a todos os franceses o direito de formar essas sociedades populares.
591
589
ARENDT. Da Revolução, p. 202.
590
A esse respeito Bernard Bailyn lembra a postura de Hamilton como alguém que expôs o medo de que a lei e a
ordem fossem inexecutáveis perante as grandes e distantes fronteiras da América do Norte caso vingasse a idéia
das minúsculas Repúblicas. Por isso, Para Bailyn, Hamilton dizia que: “O povo das fronteiras será igualmente
bem representado no governo central, será igualmente bem informado sobre a eficiência de seus representantes
em servir seus interesses e, além disso, seus interesses serão vigilantemente protegidos pelos governos estaduais,
ao menos ‘da rivalidade de poder’” (BAILYN. As origens ideológicas da Revolução Americana, p. 324).
591
ARENDT. Da Revolução, p. 194.
248
Percebe-se que tanto na França, quanto na América do Norte, a preocupação em
fundar Constituições se pautava no anseio de assegurar os espaços de manifestação da
liberdade que para Hannah Arendt é a razão de ser da política.
592
Nesse caso, assegurar que as sociedades populares possam ser legitimadas pela
Constituição, é o mesmo que afirmar que em termos arendtianos, não se concebe uma
Constituição que não seja um instrumento que possibilite o asseguramento de espaços
públicos no interior do corpo político. Isso porque, para a segurança dos membros das
sociedades populares francesas, uma vez conquistado o direito de congregar-se em espaços de
liberdade política, esse direito passaria a ser preservado por um instrumento, ou seja, pela
Constituição. A destruição do direito à liberdade política não seria uma atitude inerente à
concepção arendtiana de Constituição. A esse respeito, afirma Hannah Arendt: “Se o direito
de nos congregarmos em sociedade fosse abolido ou mesmo modificado, a liberdade não
passaria de uma palavra vã, a igualdade seria apenas uma quimera, e a república teria perdido
o seu mais sólido baluarte.”
593
Aqui, a Constituição é concebida como um instrumental sólido
e como um baluarte da liberdade política. Tal liberdade deve ser vivenciada no interior de
espaços públicos que se constituem, a exemplo dos conselhos, como marcas elementares do
novo corpo político a ser preservado.
594
Observa-se que, é inegável a associação que deve existir entre corpo político e
Constituição. A segunda é fruto do primeiro e a principal razão de sua preservação. Em outras
palavras, a Constituição admitida por esse ponto de vista, se revela como o amparo legal de
592
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 192.
593
ARENDT. Da Revolução, p. 194.
594
Preservar a liberdade política e os espaços públicos nascidos na modernidade tal como Arendt nos apresenta
constitui-se como uma novidade. Essa novidade encontra-se na rearticulação no sentido político da liberdade e
do espaço público em termos de política contemporânea. A esse respeito salienta Albrech Wellmer: “If we call
the realization of that ‘value’ I spocke about a moment ago – I mean ‘public freedom’ in Arendt’s sense
‘participatory democracy,’ it becomes clear that Arendt’s idea of public freedom has indeed been around for
quite a while in the political imagination of modern societies. What is original in Arendt is not the Idea itself, but
the way she has re-articulated it against the dominant traditions of modern political – and anti-political – thought.
If I am not mistaken in my reading of Arendt, her ideas still pose a challenge to contemporary political thought.”
(WELLMER. Hannah Arendt on Revolution. In: Revue Internationale de Philosophie, p. 221 - 222).
249
um corpo político. O papel da Constituição, em meio aos princípios que nortearam as
Revoluções Francesa e Americana, não era o de sustentar uma mera reforma ou
complementação das Constituições já existentes. O que se percebe é que esse papel deveria se
revelar como um instrumento capaz de possibilitar a existência e a manutenção da liberdade e
a constituição de um espaço onde a liberdade pudesse aparecer.
595
É por isso que ela recebeu
o nome de Constitutio Libertatis a Constituição da Liberdade.
596
Ela poderia também ser
chamada de Constituição do corpo político fundamentado ou alicerçado em órgãos populares
de manifestações políticas espontâneas.
Sonhar com a liberdade pública no Velho Mundo e saborear a felicidade pública no
Novo Mundo, foi o que se revelou como causas relevantes que provocaram as Revoluções e
que conseqüentemente, abalaram os dois lados do Atlântico. No que diz respeito ao caso
norte-americano, o levante armado nas colônias e a Declaração de Independência efetivaram-
se espontaneamente ao aparecimento de projetos de Constituição em todas as Treze Colônias.
Hannah Arendt nos lembra essa situação fazendo um recurso à expressão de John
Adams, que, segundo a nossa autora, ele teria dito que o aparecimento desse projeto de
Constituição em todas as colônias americanas era como se “treze relógios tivessem soado ao
mesmo tempo.
597
O que vemos, é que a América do Norte estava vivendo, naquele momento,
um tipo de investida na formulação de Constituições que deveriam, portanto, preservar os
595
WELLMER. Hannah Arendt on Revolution. In: Revue Internationale de Philosophie,, p. 203.
596
Para Albrecht Wellmer a Constitutio Libertatis pode ser considerada a institucionalização da liberdade
inerente à Revolução, ela representa a condição de preservação das instituições republicanas. Por isso diz: “To
start with I would argue that Arendt’s conception of evolution must be understood in terms of its internal
relationship to the concept of ‘instituition’ – in the double sense of instituition as a (collective) act and institution
as the result of this act (i. e. a system of institutions). Not only is the institution (the institutionalization) of public
freedom (the ‘constitutio libertatis’) the terminus ad quem of revolutions in Arendtsense, but, at the same time,
for Arendt the institutions of freedom are inherently related to revolution as their terminus a quo. This means
that, one the one hand, the inherent goal of what Arendt calls revolution is an institution – an institutionalization
of freedom, which can only emerge from the common willing of people who begin to act in concert and
thereby transform their common world and create a space of public freedom On the other hand, the internal
correlation of ‘revolution’ and ‘institution’ also means, that a performative and inventive element belongs to the
very reservation of republican institutions, so that – as one might say – the spirit of revolution becomes
something like a condition of the permanence of republican institutions.” (WELLMER. Hannah Arendt on
Revolution. In: Revue Internationale de Philosophie, p. 217 - 218).
597
Ibidem, p. 113.
250
motivos que fizeram que seus habitantes saboreassem a felicidade pública. Aspectos dessa
felicidade pública como as experiências de auto-governo precisavam de um referencial
legítimo onde eles pudessem encontrar as razões que possibilitaram a sua perpetuação no
tempo.
Dessa maneira, o estabelecimento de Constituições se efetivou como um importante
sustentáculo para o novo corpo político que emergiu com o advento da Declaração de
Independência. Para tanto, o surgimento de Constituições nesse contexto, foi feito respaldado
como um instrumento legitimado pelo povo, isto é, a necessidade de legitimação se amparou
nos levantes assumidos pela população. É por isso, que na América do Norte, a Constituição
aparece como um instrumental capaz de não permitir um vazio referente ao respaldo do poder,
pois antes do seu surgimento, esse papel era assumido pela metrópole inglesa. Aqui se
percebe que a Constituição surge trazendo consigo o caráter de uma soberania nascida do seio
do povo. O estabelecimento de Constituições é um ato efetivador que é capaz de assegurar a
soberania de um país e de garantir a sua independência. Isso é um fato que para Hannah
Arendt não significa que o estabelecimento de Constituições tenha que ser acompanhado ou
até mesmo resultar em uma Revolução. Por isso, Arendt observa que:
De fato, a concepção de governo constitucional não é absolutamente revolucionária
em conteúdo ou origem; significa, nada mais nada menos, do que o governo limitado
pela lei, e que a salvaguarda das liberdades civis, através de garantias constitucionais
definidas pelas diversas declarações de direitos incorporadas às novas constituições, e
muitas vezes consideradas como sua parte mais importante, nunca pretendeu traduzir
os novos poderes revolucionários do povo, mas, ao contrário, foi tida como necessária
para limitar o poder do governo, mesmo no corpo político recentemente fundado.
598
Estando Arendt ciente do papel limitador das Constituições, o que interessa para ela,
na aproximação entre Revolução e Constituição, é o fato da segunda poder ocorrer
simultaneamente à primeira no que diz respeito à fundação da liberdade política e quando
598
ARENDT. Da Revolução, p. 114.
251
associadas à criação de um novo corpo político. Nesse caso, a liberdade instituída com o
advento do evento revolucionário deveria lançar mão da substituição da tirania, que foi uma
característica do Ancien Regime, pela instauração de uma estrutura nova de corpo político. O
importante para Arendt, é que a liberdade instituída encontre no estabelecimento da
Constituição o espaço que possa garantir a sua preservação. Portanto, se a finalidade de uma
Revolução, é para Hannah Arendt, a instituição da liberdade política, uma Constituição que
não absolva a legitimação dos espaços
599
de liberdade política em seu contexto, não pode ser
considerada como uma Constituição caracteristicamente revolucionária.
Mas, considerando que uma Constituição é naturalmente um instrumento que possui a
tarefa de limitar o poder, seja esse poder tanto do povo, como do governante, torna-se uma
tarefa difícil articular o seu conteúdo e a sua forma com aquilo que diz respeito à fundação de
um corpo político caracterizado pela adoção de liberdades civis e de declaração de direitos.
Pois, uma declaração de direitos, como observou Jefferson, se apresentava como aquilo que o
povo tinha em termos de direito para reivindicar contra qualquer governo da Terra, coletiva
ou individualmente, e que nenhum governo justo deveria recusar ou mesmo deixar sem
solução.
600
Nota-se a partir dessa declaração de Jefferson, é que nela reside a concepção
arendtiana de Constituição, como um instrumento assegurador da liberdade. Visto por esse
ângulo, pode-se dizer que a Constituição da liberdade é aquela que se caracteriza como um
instrumento capaz de garantir o comportamento do povo voltado para a prática da
599
Uma vez que os espaços públicos se constituem como ambientes necessários à manifestação da liberdade
política, a preservação desses ambientes de discussão e ações conjuntas é uma das pretensões do pensamento
político de Hannah Arendt. A preservação desses espaços públicos – que em nosso momento histórico, poderiam
ser chamados de ágoras da modernidade em curso nos é apresentada como sendo de fundamental importância
para que o corpo político assinalado pela perspectiva arendtiana não se perca. Porquê qualquer corpo político,
que não seja dotado desses espaços, não se configura como o corpo político no sentido assinalado por Hannah
Arendt. Isso quer dizer, que essa preservação permite o resgate da liberdade política. Trata-se de um tipo de
corpo político que é em boa medida, semelhante àquela vivenciada pelos gregos da antiga polis. O espaço
público em tempos modernos necessita também de demonstrar em seu seio a manifestação da liberdade. É por
isso que a nossa autora associa a existência da liberdade à existência do espaço público.
600
ARENDT. Da Revolução, p. 114.
252
reivindicação contra qualquer governo instituído em qualquer época. Nesse sentido, a
reivindicação se faz de forma coletiva ou individualmente, sem que coubesse a esse governo a
recusa ou o abandono da busca da solução. É por isso que para Albrecht Wellmer, por via da
interpretação arendtiana, a liberdade política concebida dessa maneira, significa muito mais
que uma garantia constitucionalmente que se faz em direitos básicos dos cidadãos. Pois estes
são, como observa Arendt, uma precondição da liberdade, mas não da liberdade política em
si.
601
A partir daí, o que temos assinalado, é o estabelecimento de um paradigma de
Constituição que se efetiva como a garantia da participação do povo nos negócios de governo.
Trata-se pois, de um tipo de corpo político que se apresenta como algo respaldado em virtude
da lei. Dessa maneira, a lei continua mantendo o seu caráter de limitar o poder daqueles que
se aventuram na tarefa de extinguir o processo de geração do poder nascido no seio do povo.
Toda forma de poder, possui princípios que a norteia. Isso quer dizer que, quando nos
referimos a governos constitucionais, nos voltamos para poderes que em virtude da lei
encontram-se sujeitos a limitações. Segundo a interpretação arendtiana, um governo
constitucional, era no contexto do século XVIII, quando se referia a uma “monarquia
limitada”, de fato, um governo de caráter limitado, isto é, trata-se de um governo que se
confronta com os limites assinalados em virtude da lei.
Evidencia-se que a concepção de governo e dos instrumentos que o limita, é para
Hannah Arendt, uma alusão que a caracteriza como uma pensadora que se apresenta como
alguém que de maneira alguma faz adesão ao anarquismo. Não se percebe em Arendt
qualquer filiação dela às concepções políticas tirânicas ou anárquicas. Sua vida e sua obra são
um arcabouço que denuncia a essas formas de manipulações políticas.
601
WELLMER. Hannah Arendt on Revolution. In: Revue Internationale de Philosophie, p. 214.
253
Percebe-se que para Arendt, existe a possibilidade da combinação entre governo
constitucional e garantias de direitos civis. A existência de um governo, mesmo que seja ele
um governo que se situe no seio de um corpo político caracterizado pela participação política
do povo que se faz por meio de conselhos, trata-se de um governo que precisa ser dotado de
mecanismos que possam limitá-lo. Nesse caso, é importante admitir que os direitos
conquistados pelo povo, bem como, o direito de participação nas assembléias deliberativas
que ocorrem no âmbito de espaços públicos, estejam de fato circunscritos em uma
Constituição. Para Arendt, os direitos civis,
602
assim como o bem estar individual acabam por
serem circunscritos na esfera do governo limitado.
603
Uma vez que se evidencia que existe uma associação entre o fator limitação de poder e
a Constituição, ocorre que o estabelecimento de Constituições revela-se como um fato que
deixa perplexos os governantes tiranos. Pois, os tiranos vêem nas Constituições o freio para as
suas ações que não possuem limites.
604
Quando o assunto é o de impedir a participação da
população nos negócios públicos, uma Constituição que garanta esse tipo de participação, é
conseqüentemente, refutada por qualquer tirano.
605
602
É importante para os nossos propósitos destacar que, para Arendt, mais que direitos civis a serem
conquistados e incluídos no conteúdo de uma Constituição, esta deveria garantir, antes de tudo, a preservação da
liberdade política e do espaço público que a comporta. Não fosse a necessidade de se recorrer à instauração da
liberdade política, as Revoluções do século XVIII, não teriam sido um marco histórico caracterizado como uma
experiência inteiramente nova. Dito de um outro modo, para Hannah Arendt, uma vez que a liberdade política,
consiste antes de tudo na “participação nas coisas públicas ou admissão ao mundo político,” a Revolução não a
teria estipulado como meta a ser atingida, caso essa meta significasse meramente buscar alcançar a garantia dos
direitos civis.
603
ARENDT. Da Revolução, p. 115.
604
Os limites estabelecidos entre a função do legislador e a do tirano são tratados por Newton Bignotto da
seguinte maneira: “Ora, o que a tirania tem de especial é o fato de que nela não distância entre o desejo do
governante e seu poder. Por isso, o tirano é levado a acreditar que age como um deus. O grande legislador
também se aproxima dos deuses no momento em que fornece as bases para a vida política, mas longe de querer
guardar para si este poder, transfere-o para as leis. Isso é possível, no entanto, porque o que ele lega para a
cidade é fruto de um convívio com a razão e com o saber, e não com o desejo. Assim, o tirano percebe
corretamente que sua condição tem algo de divino, mas no lugar da sabedoria apenas o seu inverso. Como
Eros é insaciável, não como transferir o produto de sua busca para a cidade; ao contrário, o tirano deve
aniquilar o desejo de todos, para que o seu possa ser satisfeito. Na ausência do outro, na destruição da distância
que separa poder e querer, o mundo da política se desfaz, para dar lugar ao caos e à violência. (BIGNOTTO. O
Tirano e a Cidade, p. 130 - 13).
605
Os tiranos refutam os tipos de Constituições que garentem os direitos civis e de participação política do povo,
porque tais direitos esbarram na prática desses tiranos que consiste o direito do outro, satisfazendo assim as suas
irregularidades. A esse respeito observa Locke: “assim como a usurpação consiste em exercer um poder a que
254
Em se tratando da relação entre poder e liberdade, Hannah Arendt diz que os tiranos
tratam dessa relação da mesma forma que os criminosos. Para a nossa autora, o que os
criminosos e os tiranos possuem em comum e que os isolam do resto da comunidade, é o fato
de ambos acreditarem no uso dos instrumentos de violência como substitutos do poder. A
utilização de instrumentos como um modo de substituição de poder é, segundo a nossa autora
uma tática que funciona somente para os objetivos almejados pelos criminosos em curto
prazo. Tais criminosos, após completarem seus crimes, podem e têm que tomar suas partes na
comunidade.
Por outro lado, o tirano sempre aparece como um lobo vestido de cordeiro ou como
alguém que pode resistir na medida em que ursupa a posição justa da liderança, situação
que o torna dependente de auxiliares para que ele possa avançar na efetivação dos projetos
oriundos de sua própria vontade. Devido a essa atitude do tirano, o que podemos ver é que a
violência limita o poder. Embora o poder e a liberdade que se dão no âmbito da pluralidade
humana são considerados por Arendt como sinônimos. Tanto um quanto outro significam que
são associados a uma liberdade política que é sempre um tipo de liberdade limitada.
606
Hannah Arendt insiste em apontar dificuldades existentes no âmbito da relação entre
Revolução e processo constitucional. Para a nossa autora, existem razões ou motivos que
tornam difícil o reconhecimento do elemento genuinamente revolucionário naquilo que tange
ao processo constitucional. Uma dessas razões apontadas por Arendt, encontra-se na
experiência das Revoluções dos culos XIX e XX. Essas experiências revolucionárias não
um outro tem direito, a tirania consiste em exercer o poder além do direito legítimo, o que a ninguém poderia ter
permitido. É isto que ocorre cada vez que alguém faz uso do poder que detém, não para o bem daqueles sobre os
quais ele exerce, mas para a sua vantagem pessoal e particular; quando o governante, mesmo autorizado, governa
segundo a sua vontade, e não segundo as leis, e suas ordens e ações não são dirigidas à preservação das
propriedades de seu povo, mas à satisfaçção de sua própria ambição, vingança, cobiça ou qualquer outra paixão
irregular.” (LOCKE. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites, e os fins
verdadeiros do governo civil, p. 206).
606
ARENDT. The Life of the Mind, p. 201.
255
conseguiram atingir em suas práticas, a instituição da liberdade.
607
Essa posição de Hannah
Arendt deixa-nos em ponto de compreender que muitas Revoluções, como foi o caso da
Revolução Russa de 1917, nem sequer conseguiram introduzir em seus conteúdos as garantias
constitucionais dos direitos e liberdades civis que, para a nossa autora, não são o mesmo que
liberdade política. Daí se dizer que elas não deram origem a Constitutio Libertatis, ou seja,
passaram longe da idéia de admitir uma constituição da liberdade. Entretanto, no caso da
Revolução Americana, mesmo que a sua Constituição não tenha garantido a inclusão em seu
conteúdo dos espaços públicos asseguradores da liberdade política, ela não deixou de se
estabelecer como um instrumento portador de garantia de direitos e de liberdades civis.
Tais garantias fazem parte daquilo que a autora considera como características de um
governo limitado. Contudo, em relação a outras Revoluções que tiveram como resultado a
opção pela tirania ao invés de aderirem ao governo limitado, a experiência americana é sem
dúvida notadamente marcante, naquilo que diz respeito à conquista de direitos constitucionais
e de liberdades civis. Mas, o que se conquistou em termos desses direitos e dessas liberdades
civis, revela-se como uma distância muito grande em relação à verdadeira liberdade política a
exemplo do que se viveu nas comunas da América do Norte, nas sociedades revolucionárias
francesas, nos sovietes, nos conselhos da Hungria e na ágora grega. O que essas Revoluções
anunciavam na qualidade de mantenedoras do governo revolucionário não passou de um tipo
de desprezo com os direitos civis que deveriam ser assegurados por suas Constituições.
608
Diante disso, notamos que a relação entre Revolução e o estabelecimento de Constituições
como aquelas que incorporam a liberdade política no sentido arendtiano nem sempre se
apresenta como uma realidade harmoniosa.
607
Sobre isso, salienta Hannah Arendt: “Finalmente, é perfeitamente correto, e, na verdade, um fato melancólico,
que a maioria das assim chamadas revoluções, longe de darem origem à Constitutio Libertatis, não foram sequer
capazes de oferecer as garantias constitucionais dos direitos e liberdades civis, os benefícios do ‘governo
limitado’, e não vida de que, em nossas relações com as outras nações, devemos ter em mente que a
distância entre a tirania e o governo constitucional limitado é, no mínimo, tão grande como a distância entre
governo limitado e liberdade.” (ARENDT. Da Revolução, p. 174).
608
ARENDT. Da Revolução, p. 115.
256
Para que haja um entendimento a respeito do sentido de uma Constituição que se
apresente de maneira associada ao evento revolucionário do século XVIII, é necessário que
fiquemos atentos à diferença existente entre uma Constituição que se estabelece como fruto de
um ato de governo e a Constituição através da qual o povo constitui um governo. Constata-se
diante disso, é que se trata de uma diferença bastante óbvia.
609
Para uma análise, a respeito das diferenças que existem entre uma Constituição feita
pelo povo e uma outra conduzida pela ação vertical de governantes, precisamos remontar às
abordagens que Hannah Arendt faz para explicitar o significado verbal da palavra
Constituição. Na interpretação de nossa autora, a palavra Constituição tem o seu significado
pautado no ato de constituir. É o caso das leis ou normas de governos que são “constituídas,”
seja na forma corporificada em documentos escritos, ou a exemplo do modelo britânico de
Constituição, que é uma realidade implícita nas instituições, bem como nos costumes e nos
fatos que o precederam.
610
A nossa autora recorre a Thomas Paine quando ele diz que “uma constituição não é o
ato de um governo, mas de um povo que constitui um governo.” Dessa maneira, a
Constituição na perspectiva de Hannah Arendt, deve ser compreendida como o resultado de
um processo construído a partir do esforço deliberado do povo em fundar um novo corpo
político. E, por essa via, a Constituição não se traduz como o resultado de um ato de governo,
ela é obviamente a Constituição através da qual o povo constitui um governo.
Para Hannah Arendt, se havia algo em comum entre os atores das Constituições dos
séculos XIX e XX com seus antepassados americanos do século XVIII, era em relação à
desconfiança na voracidade de poder inerente ao homem. Nesse sentido, o estabelecimento de
Constituições se faz necessário para refrear a sede de poder que se encontra em cada homem,
pois esses são sempre propensos a se transformarem “em vorazes animais de presa.” Os
609
ARENDT. Da Revolução, p. 117.
610
Ibidem, p. 116.
257
fundadores das Repúblicas, tanto do século XVIII, como do século XIX, tinham enraizado em
suas mentes a concepção de que o homem necessita ser refreado em sua ânsia voraz pelo
poder.
611
Essa situação nos faz lembrar a teoria política de Hobbes,
612
uma vez que a prática
republicana procura lidar com mecanismos capazes de frear a voracidade humana no que se
refere à sua adesão ao poder. Mas é a concepção de poder nascido e controlado pelo povo que
não faz parte da teoria hobbesiana de soberania.
De acordo com Renato Janine Ribeiro, considerando que a questão republicana
encontra-se nas formas de auto-governo, na autonomia e na responsabilidade daqueles que
decretam a lei e ao mesmo tempo ampliam a sua obediência a ela, Hobbes não se enquadra
nessa concepção de forma de governo. Isso porque o autor de o Leviatã no capítulo XIV dessa
mesma obra ao cindir jus e lex, ou seja, direito e obrigação, colocou enormes dificuldades
para um pensamento e uma prática republicanos. A construção do Estado Hobbesiano tende à
efetivação da monarquia, porque nele o essencial se pauta no exercício de quem manda e de
quem obedece de uma maneira bem recortada. A doutrina hobbesiana estabelece que quem
obedece constitui aquele que manda como seu representante, obedecendo, por assim dizer, a
si próprio. Mas no dia-a-dia da mecânica do sistema, os encaminhamentos não procedem
dessa maneira. Pois, trata-se de uma mecânica de poder que nega ininterruptamente essa semi-
identificação entre o governante e os súditos.
613
Renato Janine nos adverte que se a lei é uma simples expressão da vontade
injustificada do soberano, não tem como ele estar sujeito a ela. Por isso Hobbes pode admitir
a democracia, porém nem menciona a República. Haja visto que o regime popular possa ser
611
ARENDT. Da Revolução, p. 117.
612
Sobre a importância que Arendt à figura de Thomas Hobbes, adverte Nadia Souki: “Thomas Hobbes é um
filósofo citado por Hannah Arendt diversas vezes ao longo de sua obra. Em suas reflexões sobre a era moderna,
em A Condição Humana, a referência a Thomas Hobbes é recorrente. Entre os filósofos modernos, Arendt
confere, de forma especial, ao filósofo inglês do século dezessete o papel de fundador com essas palavras: ‘a
filosofia política da era moderna, cujo maior representante é ainda Hobbes.’” [SOUKI. Multidão e Massa
reflexões sobre o “homem comum” em Hannah Arendt e Thomas Hobbes. In: CORREIA. (Org.). Hannah
Arendt e a condição humana, p. 131].
258
bem mais aceito em sua teoria do que aquele no qual quem manda precisa ser sempre
contido.
614
Esse é um fator que justifica a necessidade da Constituição ser o referencial
legítimo de limite para controlar esse tipo de comportamento instintivo do animal homem.
Observa-se que Hannah Arendt quer ressaltar que o estabelecimento de uma
Constituição, a exemplo da experiência norte-americana, não se fundamenta somente no seu
conteúdo de salvaguarda de direitos civis, mas no estabelecimento de um poder inteiramente
novo. O que se revela, não é simplesmente o fato de se estabelecer uma Constituição
asseguradora de direitos, mas sim um instrumento associado ao fenômeno da novidade
revolucionária.
Os fundadores da República Norte-Americana na expressão de uma linguagem clara e
inequívoca, não estavam preocupados com o constitucionalismo, quando este é compreendido
no seu sentido de governo legal de natureza limitada, pois o que os preocupava, era como
fundar um novo corpo político. Viver submetidos a um tipo de constitucionalismo, era uma
realidade que fazia parte da vida dos habitantes das Treze Colônias, porque, como colonos
vindos da Inglaterra, eles já tinham vivido sob a influência de uma monarquia limitada.
615
Uma vez que constatamos em Arendt a alusão de que havia por parte dos fundadores
da República Americana, uma preocupação com a Constituição entendida como instrumento
do novo corpo político que se dirige para além do constitucionalismo, percebe-se, por essa
razão, que a ênfase à questão de uma Constituição voltada para a novidade é muito maior. O
que temos a partir daí, é que nesse sentido, a ênfase apresentada por Arendt, é focada mais
naquilo que se refere à Constituição do novo poder do que na salvaguarda dos direitos civis.
613
RIBEIRO. Democracia versus República: a questão do desejo nas lutas sociais. In: BIGNOTTO. Pensar a
República, p. 21 - 22.
614
Ibidem, p. 22.
615
Sobre isso, observa Bernard Bailyn: “Ninguém conhecia história? Patrick Henry perguntou. Será que
ninguém se recordava que na Grã-Bretanha o povo e a Coroa tinham lutado por um século sobre as incertezas do
direitos implícitos até que a questão fora finalmente resolvida na aceitação de uma declaração de direitos
explícita e que essa fora precisamente a primeira coisa que o povo norte-americano havia pensado quando se
deparou com a necessidade de se proteger contra o poder do Parlamento?” (BAILYN. As origens ideológicas da
Revolução Americana, p. 311 - 312).
259
Considerando que os habitantes do Novo Mundo estavam praticando direitos civis
conquistados por eles, admite-se que tais direitos se constituíam como “um assento sobre o
qual tinham, com certeza, mais conhecimento do que qualquer república anterior.”
616
A elaboração de uma Constituição que fosse considerada uma novidade no sentido de
associar-se ao novo corpo político em gestação, se apresentava como um desafio atribuído aos
pais fundadores da República Norte-Americana. Isso significa que a questão de como deve ser
a efetivação de uma Constituição que se apresenta como uma novidade, justamente por ser
objeto de legitimação legal do novo corpo político, dentre as várias questões que aparecem no
momento da fundação, trata-se de uma questão que surge de uma maneira no mínimo
relevante. Por causa dessa relevância, o estudo da Constituição associada ao estabelecimento
do novo corpo político tornou-se um dos objetos de pesquisa a ser investigado pela ciência
política.
Podemos então dizer que, para Hannah Arendt, a tarefa de criação de poder assumida
pelos fundadores ou homens da Revolução, fez com que esses atores lançassem mão de todo o
arsenal de que eles dispunham e que eram chamados por eles mesmos de ciência política.”
Para esses fundadores, a ciência política consistia em descobrir “as formas e as combinações
do poder na república.”
617
Na busca da fomentação de uma “ciência política” na forma apresentada pelos
fundadores da República norte-americana, abriu-se a partir dela uma fenda para a exposição
de um tipo de teoria das idéias políticas que gira em torno da fundação do novo corpo político
que se estabeleceu em terras do Novo Mundo. Para a efetivação dessa busca, esses homens,
conscientes de sua própria ignorância pois toda fundação expõe os seus atores diante de
situações nunca antes vivenciadas, e por isso precisam agir perante o desconhecido tiveram
que se voltar para a História recorrendo a modelos do passado, fossem esses modelos reais ou
616
ARENDT. Da Revolução, p. 120.
617
Ibidem, p. 120.
260
fictícios, de Constituições. O que eles estavam buscando eram fundamentos que
disponibilizassem elementos que pudessem sustentar o projeto de Constituição que
legitimasse um novo tipo de poder. Na insistência para encontrar esses fundamentos, os pais
fundadores passaram a exercer um grande fascínio pela teoria das idéias políticas de
Montesquieu relativas à questão da divisão entre poderes.
618
Para Arendt, esse fascínio encontra-se alicerçado no papel exercido por Montesquieu
no âmbito da Revolução Americana. Segundo a nossa autora, esse papel foi semelhante
àquele que as idéias políticas de Rousseau tiveram no âmbito da Revolução Francesa. Dito de
uma outra maneira, considerando que Rousseau influenciou marcadamente com suas idéias a
Revolução Francesa, o mesmo aconteceu com Montesquieu no que tange à Revolução
Americana. Tudo isso porque o tema principal da monumental obra desenvolvida por
Montesquieu era o da “constituição da liberdade política.” Essa obra fez de Montesquieu um
autor estudado e citado durante a década que antecedeu à Revolução Norte-Americana.
619
Isso
quer dizer que na ânsia de buscar fundamentos filosófico-políticos para sustentar a criação de
uma Constituição da Liberdade – a Constitutio Libertatis a obra de Montesquieu, apresenta-
se naquele contexto como uma fonte irrecusável aos olhos dos fundadores dos Estados Unidos
da América.
620
618
ARENDT. Da Revolução, p. 120.
619
Ibidem, p. 120.
620
Arendt encontra em Montesquieu um suporte teórico capaz de lidar com a articulação entre poder e liberdade,
duas palavras que segundo a nossa autora eram praticamente sinônimas no universo dos homens que fundaram a
República Norte-Americana. A esse respeito, diz a nossa autora: “The emphasis here is clearly on power in the
sense of the I- can; for Montesquieu, as for the ancients, it was obvious that an agent could no longer be called
free whem he lacked the capacity to do what he wanted to do, whether this was due to exterior or interior
circunstances. Moreover, the Laws which, according to Montesquieu, transform free and lawless individuals into
citizens are not God´s Ten Commandments or the voice of conscience or reason’s lummen rationale enlightening
all men alike, but man-made rapports, ‘relations,’ which, since they concern the changeable affairs or mortal
men - as distinguished from God’s eternity or the immortality of the cosmos-must be ‘subject to all the accidents
that can happen and vary in proportion as the will of man changes.’ For Montesquieu, as for pré-Chistian
antiquity and for the man who at the end of the century founded the American Republic, the words ‘power’ and
‘liberty’ were amost synonymous. Freedom of movement, the power of moving about unchecked by disease or
master, was originally the most elementary of all liberties, their very prerequisite.” (ARENDT. The life of the
Mind. Volume Two: Willing. p. 199 - 200).
261
Para Hannah Arendt, o recurso a Montesquieu que foi assumido pelos Pais Fundadores
repousa precisamente no fato, de ele ter sido o único que naquele processo de
desenvolvimento da Revolução Americana, sustentava teoricamente que o poder e a liberdade
possuem relação um com o outro. Em função desse recurso, é importante salientar que, para
Montesquieu, a liberdade política não estava pautada no querer, mas sim no poder. A
conseqüência dessa situação é que o universo político devia ser construído e edificado de uma
forma que fosse possível a combinação entre o poder e a liberdade. Verifica-se a partir daí que
Montesquieu confirmou aquilo que os pais fundadores, por meio da experiência vivenciada no
interior das Treze Colônias, sabiam que estavam certos, isto é, eles tinham a convicção de
que a liberdade era “um poder natural de fazer ou não fazer tudo o que temos em mente.” Por
isso, Arendt nos lembra que, quando lemos: “Os representantes assim escolhidos terão o
poder e a liberdade de decidir.” O que se percebe, tendo essa assertiva arendtiana como
base, é o quanto era natural, para aquelas pessoas, usarem essas duas palavras quase como
sinônimas.
621
Dessa maneira, se a Constituição possui a sua razão de ser vinculada à existência do
poder, considerando que ela deva existir enquanto instrumento para limitá-lo, a liberdade
associada à geração desse poder constituinte pelo povo, também encontra nessa mesma
Constituição os princípios para limitá-lo. Temos aqui a concepção de que a liberdade não é
fazer o que nos apraz. Não é possível admitir em Hannah Arendt a existência de um corpo
político, que não leve em conta uma Constituição que não seja acompanhada de uma
liberdade vivenciada no âmbito dos espaços públicos. Resta ao corpo político arendtiano
conviver com a tensão entre os limites inerentes a uma Constituição e a liberdade política.
O estabelecimento de Constituições é uma questão relevante para os assuntos inerentes
ao equilíbrio entre poderes distintos. Problemas como a separação e o equilíbrio entre poderes
são para Hannah Arendt, um assunto antigo e que portanto precede à teoria filosófico-política
621
ARENDT. Da Revolução, p. 120.
262
de Montesquieu. A autora nos adverte que a idéia do equilíbrio e da separação de poderes não
condiz com a visão mecanicista e newtoniana do mundo.
622
É importante salientar que o século XVIII, enquanto um momento no qual se
processaram as principais Revoluções analisadas por Hannah Arendt, constituiu-se como um
contexto privilegiado para que a influência das idéias mecanicistas e newtonianas
implicassem até mesmo na concepção de corpo político daquela época.
O advento da modernidade não se constitui somente por meio de novidades surgidas
em termos de teorias políticas. A modernidade em curso foi se processando em meio ao
avanço das ciências dotadas de caráter experimental. Trata-se de um contexto onde o método
de Newton, Galileu, Francis Bacon e Copérnico, baseado no empirismo científico, ganhou
força com o advento do Renascimento. É um método que subjaz às ciências naturais e que
influenciou muitos pensadores daquela época. Não podemos deixar de levar em consideração
a influência desse mecanicismo até mesmo no campo das idéias políticas.
Mesmo que de maneira implícita, os discursos a respeito das formas mistas de
governo, remontam a Aristóteles
623
ou a Políbio. O segundo teria sido de acordo com a
interpretação arendtiana, talvez o primeiro a ter consciência de que existem algumas
vantagens que são inerentes às fiscalizações e aos equilíbrios mútuos. Mesmo assim, Arendt
ressalta que a fundação da República na América foi enormemente influenciada pela teoria de
Montesquieu naquilo que se refere à divisão de poderes.
622
ARENDT. Da Revolução, p. 120.
623
Sobre a concepção aristotélica relativa à classificação dos regimes, comenta Francis Wolff: “Aristóteles
começa com efeito por definir o que é um ‘regime’ (ou uma ‘constituição’, politeia): é a ‘organização de
diversas magistraturas e sobretudo daquela que é soberana entre todas... o governo da cidade’ (1278 b 9 - 11).
Um regime é portanto determinado pelas relações dos diversos órgãos políticos de decisão – os diferentes
poderes – e pelas suas relações com o poder político central, o governo. Todo regime político supõe portanto um
entrosamento entre todos os poderes (quem faz o quê?, quem decide a respeito de quê?, quem obedece a quê?),
mas é, em última instância, a resposta à pergunta ‘quem governa?’ que parece bastar para definir um regime. É
por isso que Aristóteles pode afirmar: ‘A constituição é o governo.’ Desta definição, ele poderá tirar no capítulo
seguinte um primeiro critério de classificação dos regimes de acordo com a resposta à pergunta ‘quem governa,
isto é, de acordo com a extensão do soberano: ‘Uma vez que governo e constituição significam a mesma coisa, e
um governo é aquilo que é soberano nas cidades, é necessário que seja soberano quer um indivíduo, quer um
grande número de pessoas’” (1279 a 26 - 8). [WOLFF. Aristóteles e a Política, p. 105 - 106].
263
Salientando que Montesquieu poderia não ter ficado cônscio das teorias sobre formas
mistas de governos assinalados por Aristóteles e Políbio, Arendt nos chama a atenção para a
descoberta desse personagem do Iluminismo de que em termos de poderes separados, somente
“o poder controla o poder.” O autor do L’Espirit des Lois segue acrescentando que esse
controle do poder pelo próprio poder não deve destruí-lo e nem torná-lo impotente.
624
Desse modo, a questão do poder exercido no seio do corpo político, ampara-se na
força da lei para que o equilíbrio e a separação entre os poderes de natureza distinta, tornem-
se uma realidade visível. É por essa via de entendimento que a Constituição é concebida no
âmbito do corpo político como garantidora do equilíbrio e da separação entre os poderes.
Cabe a ela preservar esse patrimônio político de um poder constituído sem a presença da
violência.
Dessa forma, vê-se que Arendt concebe o poder diferentemente do entendimento que a
tirania tem a seu respeito. O poder para a nossa autora nasce a partir do momento em que
ocorre a união entre as pessoas e também a partir do instante em que essas mesmas pessoas
iniciam juntas as suas ões. Mais que a capacidade humana de agir, o poder se constrói por
meio do agir em comum acordo. É por isso que, uma vez concebido dessa maneira, o poder
nunca é considerado propriedade de um único indivíduo. Pode-se afirmar que o poder é
sinônimo de grupo unido.
625
Compreendido assim, o poder é construído sem a presença da
violência. Pois onde as palavras e as ações conjuntas se estabelecem em um espaço de
manifestação de liberdade, o resultado é o surgimento de um tipo de poder a ser preservado
por uma Constituição nascida do povo.
Se por um lado a Constituição tem a tarefa de preservar o poder, por outro, é natural
que o poder seja destruído pela violência.
626
É assim que ocorre com as tiranias, uma vez que
624
ARENDT. Da Revolução, p. 121.
625
ARENDT. Crises da República, p. 123 - 129.
626
Como salientamos em páginas anteriores, Hannah Arendt faz parte de um contexto por onde o pensamento
uma vez influenciado pela fenomenologia teve reflexos na tentativa de pensadores nele envolvidos procurarem
264
esse tipo de governo se caracteriza pela violência de um único governante que destrói o poder
da maioria. Arendt afirma que em termos de poderes tirânicos, Montesquieu diz que o poder é
destruído a partir de dentro. O que temos é um tipo de um poder que se utiliza da força da
violência, porque ele é assinalado pela força multiplicada de um governante que monopoliza o
poder de muitos. Nessa perspectiva, em um confronto entre lei e poder, dificilmente a vitória
final será da lei. Devido a essa presunção, acredita-se que as leis impostas sobre o poder,
podem pelo menos resultar na diminuição de sua potência. Por essa via, é possível caminhar
na perspectiva de Montesquieu
627
de que somente o poder controla o poder, e com isso é
possível impedir a monopolização desse poder por parte do governo.
628
Em Arendt o controle
do poder fica a cargo do próprio povo.
629
O monopólio de poder que caracteriza as tiranias é uma forma de violência, pois
quando ele não nasce do povo o resultado é tê-lo caminhando lado a lado com a violência.
lidar na análise de conceitos, partindo sempre do resgate etimológico. Os termos poder e violência se constituem
como análise feita por Arendt no que se refere à separação de conceitos. A esse respeito salienta Paul Ricour:
“J´ai dit: la distinction entre pouvoir et violence. Et tout de suite on est confronté à cette surprenante vigilance
sémantique d’une pensée qui se donne pour tâche – et souvent pour première tâche de séparer les concepts, de
batailler contre les confusions tant dans le discours que dans l’action.” (RICOEUR. Autour du Politique, p. 20).
627
Habermas reforça esses princípios de Montesquieu que segundo ele são assinalados por Arendt. Para
Habermas, de acordo com o entendimento arendtiano que se diz que o poder do espaço público é o poder
controlador de si mesmo, uma vez que ele somente pode ser considerado poder se o mesmo brotar a partir de
palavras e ações conjuntas. A esse respeito, Habermas comenta: “Daí resulta a hipótese central que H. Arendt
repete infatigavelmente: nenhuma liderança política pode substituir impunemente o poder pela violência; e
pode obter o poder através de um espaço público (Deffentlichkeit) não-deformado.” (HABERMAS, Jürgem. O
conceito de Poder em Hannah Arendt, p. 105). A visão arendtiana de poder lembrada por Habermas se contrapõe
à concepção de poder monopolizador assumido pelas tiranias
628
ARENDT. Da Revolução, p. 121.
629
Sobre críticas de Habermas a Arendt relacionadas ao conceito de poder, adverte Amiel: “Num artigo dedicado
ao ‘conceito comunicacional de poder em Arendt’, Habermas, reconhecendo a sua dívida para com ele,
diferencia o seu conceito de poder do de Weber, nomeadamente. O fenômeno do poder seria ‘a formação de
uma vontade comum’, respondendo à <<capacidade de se conciliar [...] com uma comunicação não vinculadora’;
o poder besear-se-ia em convicções, e o consenso medir-si-ia ‘com a exigência de uma validade racional
imanente ao discurso’. À partida, demasiadamente comprometida na teoria aristotélica da praxis, procedendo
não de uma investigação mas de uma construção filosófica, Arendt pagaria um preço muito elevado: a rejeição
da política e as suas realidades socioeconômicas, a incapacidade de captar a violência institucional. Prisioneira
do antigo conceito de conhecimento, Arendt não poderia apreender o processo de acordo sobre questões práticas
como um discurso racional, e, duvidando da existência de um critério crítico para a diferenciação entre
convicção ilusória ou não, seria obrigada a mudar-se para a figura do contrato. Num artigo muito elegante, M.
Canovan salienta que Habermas ‘substitui a palavra pela ação, o consenso pelo desacordo, e a unidade pela
pluralidade [...] o ponto mais fundamental é que Arendt não partilha a convicção crucial de Habermas na
possibilidade de um consenso racional sobre questões políticas [...] ela não acreditava que no fim do caminho
houvesse alguma coisa que se parecesse com uma convergência universal para a verdade, ou com uma
Aufhebung das opiniões pessoais em vontade geral.’” (AMIEL. Hannah Arendt: política e acontecimento, p. 131
- 132).
265
Pois, os tiranos se utilizam das formas de violência para conseguir a obediência daqueles que
são dominados por eles. Nesse caso, acima da lei encontramos a força, mas nunca o poder.
Referindo-se a essa questão, Arendt nos diz: “A violência sempre pode destruir o poder; do
cano de um fuzil nasce a ordem mais eficiente, resultando na mais perfeita e instantânea
obediência. O que nunca pode nascer daí é o poder.”
630
O que Arendt quer demonstrar é a relevância que o estabelecimento de Constituições
possui para legitimar um poder nascido de maneira contrária à violência. Essa legitimidade se
estabelece como uma justificação, que ao contrário da violência, não desaparece no futuro,
pois seu fim existe no futuro.
631
Trilhando esse caminho, os formuladores dos princípios que
vão compor uma Constituição baseiam-se nela considerando-a como uma resposta aos anseios
do futuro do corpo político.
Referindo-se à República fundada nos Estados Unidos da América, Arendt diz que no
Novo Mundo o poder e o direito dos Estados constituíram-se como fontes de poder que
favoreceram a consolidação de um projeto republicano como um todo. O tipo de poder de
caráter descentralizado dos Estados se contrapôs à força do poder centralizado. Por isso,
afirma a autora:
O caso é que a força pode e, na verdade, deve ser centralizada para ser eficaz, mas o
poder o pode e não deve. Se as várias fontes das quais ele se origina são secadas,
toda a estrutura se torna impotente. E os direitos dos estados neste país estão entre as
fontes mais autênticas de poder, não somente para a promoção dos interesses e
diversidades regionais, mas para a República como um todo.
632
É partir daí que o povo se estabelece como constituinte do poder. O resultado disso, é
o surgimento de um poder capaz de provocar a elaboração de Constituições numa perspectiva
horizontal, ou seja, por meio do povo. Aqui o controle do poder pelo próprio poder ganha uma
630
ARENDT. Crises da República, p. 130.
631
Ibidem, p. 129.
632
ARENDT. Reflexões sobre Little Rock. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 278.
266
faceta de controle dos negócios públicos que tem como agente impulsionador o próprio povo.
A idéia de corpo político, pautada no preceito de que os seus participantes são os elaboradores
de suas leis, é regida pelo princípio de que limites ao governo e ao povo haverá, mas nunca
será limitado o direito de participação da população nos negócios públicos. Compreendido
dessa maneira, não participa da vida política quem não quiser, considerando também que
em um corpo político concebido por Hannah Arendt não se obriga ninguém a participar dos
debates e das decisões a respeito da coisa pública.
O que aconteceu na América do Norte, foi que o povo das Treze Colônias estabeleceu
adequadamente um centro de poder e fundou uma Constituição estruturada de uma maneira
inteiramente nova. A fundação dos Estados Unidos da América com um novo corpo político
que assegurasse a união das ex-colônias e evitasse que o poder constituído de forma
confederada se extinguisse, foi fruto exclusivo da Revolução. É por isso que os fundadores
tiveram que contar com a chamada Constitutio Libertatis, uma vez que a meta da Revolução
era garantir o fundamento da liberdade.
633
Arendt adverte que a Revolução Americana ao ser conduzida para a elaboração de
uma Constituição, assim a fez com base em um terreno político que ela considerou como uma
boa sorte inegável e singular.
634
Essa boa sorte de caráter inegável e singular, residia na experiência política que os
colonos herdaram da Inglaterra e pelo que eles construíram de experiências que brotaram nas
Terras do Novo Mundo. Os colonos conheciam a experiência política de governo monárquico
limitado, pois eram subjugados à monarquia constitucional inglesa. Os habitantes das Treze
Colônias desconheciam a difícil situação da miséria popular, além de terem se acostumado a
conviver com a experiência de auto-governo. É nesse terreno de fertilidade política
notadamente singular, que a Constituição dos Estados Unidos encontrou guarida, pois o
633
ARENDT. Da Revolução, p. 123.
634
Ibidem, p. 125.
267
respeito à lei já fazia parte do seu cotidiano. Os habitantes do Novo Mundo não conheciam
nenhum potestas legibus soluta, ou seja, nenhum poder isento de leis. Foi nesse contexto que
ficou visível para os norte-americanos que a base do poder reside no povo e que a fonte da lei
devia ser a Constituição.
635
Considerando que a Constituição é fruto da participação política do povo, percebe-se
logo que a lei é também o resultado das aspirações do povo. Por essa razão, o povo passa a tê-
la como referência para suas ações políticas. Sobre isso, diz a autora:
... um documento escrito, uma coisa objetiva durável, a qual, certamente, podia ser
abordada de diferentes ângulos e estar sujeita a muitas interpretações
diferentes, e que
podia ser mudada ou reformulada segundo as circunstâncias, mas que, no entanto,
jamais seria um estado de espírito subjetivo, como a vontade. Manteve-se sempre
como uma entidade terrena tangível, mais durável do que eleições ou pesquisas de
opinião pública. Mesmo quando, em data relativamente recente, e provavelmente sob
a influência da teoria constitucional continental, a supremacia da Constituição foi
defendida “exclusivamente por fundamentar-se na vontade popular,” chegou-se à
conclusão de que, após ter sido tomada a decisão, a constituição permanecia
obrigatória para todo o corpo político a que ela dera origem; e mesmo que houvesse
pessoas que argumentassem que, num governo livre, o povo deveria reter o poder
para, “em qualquer época, por qualquer motivo, ou simplesmente ao seu bel prazer,
alterar ou anular o modo ou a essência de qualquer governo anterior, e adotar um outro
em seu lugar”, essas pessoas seriam figuras isoladas na Assembléia.
636
É devido a essas considerações que a Constituição, no caso da fundação da República
dos Estados Unidos da América, passou a ser o referencial que possibilitava o encontro com
as origens manifestadas no ato fundador. Rememorar o instante inaugural do corpo político é
abrir-se para a necessidade de nos mantermos sempre cônscios da importância que é o ato de
fundação. Dessa maneira, os sentimentos vividos e as questões levantadas em meio ao ato que
início ou funda o corpo político, podem ser relembrados. A maneira encontrada para
garantir a rememoração do ato fundador do corpo político foi o estabelecimento de
Constituições. Nesse sentido, o conjunto de leis expressas na Constituição absolveram os
diversos direitos conquistados pelo povo, e que por meio dela, seriam então conservados.
635
ARENDT. Da Revolução, p. 125.
268
A relevância que a Constituição passou a ter para os revolucionários americanos,
levou-a a ser um instrumento de adoração. Isso porque, somos levados a acreditar que em boa
medida, o sucesso dos fundadores americanos encontra-se ancorado no fato da Revolução
simplesmente ter obtido êxito onde todas as demais fracassaram. Esse fracasso, baseia-se no
fato em que se registrou que as demais Revoluções não conseguiram fundar um novo corpo
político, que fosse suficientemente estável a ponto de poder resistir ao violento assédio
imposto pelos séculos futuros. No processo de fundação da nação norte-americana, coube à
Constituição impedir que esse tipo de fracasso ocorresse com ela. O seu sucesso amparou-se
no fato dela ter sido “adorada,” mesmo antes que ela começasse a produzir efeitos.
637
Arendt
se refere aos pontos marcantes das instituições americanas, dizendo:
Em tais momentos da história, quando o registro dos acontecimentos se torna
demasiado assustador, a maioria das pessoas foge para a confiança renovadora da vida
cotidiana com as suas demandas urgentes e constantes. E essa tentação hoje em dia é
ainda mais forte, porque qualquer visão da história de longo alcance, outro roteiro de
fuga favorito, também não é muito encorajadora: as instituições americanas de
liberdade, fundadas duzentos anos, têm sobrevivido mais tempo do que quaisquer
glórias similares na história. Esses pontos luminosos do registro histórico do homem
tornaram-se com razão os modelos paradigmáticos de nossa tradição de pensamento
político; mas não devemos esquecer que, em termos cronológicos, eles sempre foram
exceções. Como tais permanecem de forma esplêndida na memória para iluminar o
pensamento e a ação dos homens em tempos sombrios.
638
Em termos de Revolução Americana, a Constituição pôde garantir a legitimidade da
autoridade do corpo político contida no próprio ato da fundação. O seu papel foi o de manter
uma autoridade assentada em leis que foram produzidas pela ação política do povo. O que se
propôs foi o compromisso de garantir a legitimidade de uma Constituição caracterizada por
um propósito do limite do poder e não na vontade de um soberano ou na crença a ser
depositada na figura de um Legislador Imortal. O que se tem a partir desse propósito, é o
636
ARENDT. Da Revolução, p. 126.
637
Ibidem, p. 159.
638
ARENDT. Tiro pela culatra. In: Jerome Kohn (edição e introdução americana). Responsabilidade e
Julgamento, p. 330.
269
estabelecimento de Constituições de Liberdade apresentando-se em condições que permitam a
garantia da preservação do corpo político em sua versão arendtiana.
Sustenta-se que todas as vezes que houver discussões em torno de questões inerentes
ao conteúdo de uma Constituição, o ato de fundação será então lembrado. Por esse ângulo de
compreensão pode-se dizer que a Constituição é a salvaguarda do ato inaugural do corpo
político. Mesmo que o estabelecimento de uma Constituição surja após a criação de um corpo
político, caberá a esse instrumento preservar os motivos ou as razões que deram origem a essa
nova estrutura de organização política.
Proceder-se na invocação do início, é lembrar-se da importância do ato fundador. Essa
atitude nos remete ao valor da durabilidade. É este o caso do papel a ser desempenhado pelas
Constituições. Pois, para Hannah Arendt, a preservação
639
do corpo político depende do
esforço em manter a lembrança constante do ato da fundação. É partir daí que podemos
afirmar que, em termos da análise apresentada por Hannah Arendt, a fundação encontra na
Constituição a possibilidade da sua preservação.
639
Preservar o gesto fundador para conservar os efeitos do princípio é o que diz Newton Bignotto: “No momento
em que o legislador ou o príncipe ‘decidem’ criar uma nova forma política, são tragados pela necessidade de
agir. Essa ‘necessidade de agir’ mostra-nos simplesmente que todo ocupante do poder tende a lutar por sua
conservação, a conservar os efeitos de sua conquista e, assim, fazer durar no tempo os efeitos do ‘primeiro
gesto.’ Esse confronto do ator político com a conservação é, acima de tudo, o confronto do ator com o tempo e
suas mazelas. (BIGNOTTO. Maquiavel Republicano, p. 135).
270
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um momento no qual a renovação das
possibilidades políticas é mais urgente do que nunca,
a obra de Hannah Arendt parece ter muito a dizer
sobre como reconstituir o político na modernidade
tardia.
Por Leonardo Avritzer.
640
Iniciamos as nossas atividades de pesquisa com o propósito de examinar o problema
da fundação do corpo político no âmbito do pensamento de Hannah Arendt. Nessa investida
optamos por dividir o nosso trabalho em guatro capítulos. Utilizamos dessa divisão com a
finalidade de abordar os principais elementos necessários à compreensão da questão da
fundação do corpo político por meio da tríade: Natalidade, Revolução e Constituição.
Nossa aposta caminhou no sentido de investigar o tema da fundação do corpo político
no contexto das análises históricas das Revoluções Americana e Francesa que Hannah Arendt
aborda em Da Revolução.
Em nossa démarche argumentativa no que diz respeito à natalidade, vimos nos
primeiros momentos dessa nossa pesquisa, que ela é uma categoria em cuja raiz se sustenta a
ação humana e o discurso. Ao longo de nossa pesquisa, foi ficando cada vez mais claro o
quanto a categoria da natalidade é apresentada por Hannah Arendt como a capacidade
inerente à condição humana que possui a tarefa de possibilitar a fundação de novas realidades
políticas. A natalidade apresentada por Arendt como raiz da ação e do discurso humanos, é
também a raiz da fundação. Não se pode conceber a fundação do corpo político sem se voltar
para a questão da natalidade, isto é, evidencia-se que ao agir criando novos corpos políticos,
271
os homens nascem politicamente. O nascimento político pode acontecer constantemente na
vida do homem, por isso, percebemos que o homem nasce continuamente. Portanto, em um
corpo político, o nascimento não se estrutura por meio de ações limitadas. É devido à
infinitude da movimentação dos projetos políticos encaminhados pelos homens, que o corpo
político se apresenta como uma instituição caracterizada pela presença da categoria da
natalidade. Tal categoria, apresenta-se como condição primeira na qual reside a
pontencialidade política que diferencia os homens dos animais. É por causa dessa categoria
que, ao contrário dos animais, o homem não nasce somente para a vida biológica, pois o
nascer biológico é inerente a todos os seres animados do planeta, enquanto o nascer político é
uma condição somente dos homens.
Insistimos no primeiro capítulo que em termos arendtianos, o homem não nasce
político, mas em condições de potencialidades políticas, pois ele se torna político no inter
homines esse que forma uma teia de relações. É em meio a essa teia de relações, que o falar e
o agir em conjunto assinala a responsabilidade do homem pelo mundo em que ele habita.
Mundo, no qual, o homem permite que por meio da categoria da natalidade aconteça a
superação da dimensão biológica da mesma. Dessa maneira, esclarecemos que quando se diz
que o homem é um ser potencialmente político, não se trata de afirmar que ao nascer, o
homem se revela como um animal político. O fato de nascermos seres humanos demonstra
o caráter ontológico e antropológico da natalidade, bem como a potencialidade política que
existe nessa categoria, a ponto dela poder se efetivar através da ação de fundação.
Arendt quando se refere ao nascimento político do homem demonstra a sua postura de
abordagens que se traduz em uma antropologia filosófica. Mas a sua análise de natureza
filosófico-antropológica se estende à atuação do homem enquanto homo politikos. Para a
autora, a realização do homem depende de que ele viva a dignidade da política. Nesse sentido,
640
AVRITZER. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. In: Lua Nova, número 68: p. 166.
272
o homem ao criar um corpo político, passa a garantir a efetivação da dignidade da política.
Isso quer dizer que, enquanto nos colocamos como homens que se lançam no mundo político,
efetivamos por meio da ação, esse segundo nascimento. Daí, o segundo nascimento do
homem ser a efetivação da sua ação política que ocorre quando o mesmo concretiza a sua
capacidade de criar novos corpos políticos. Nesse sentido, não temos como conceber a
categoria da natalidade desarticulada da ação humana no interior do corpo político.
O corpo político radicado na natalidade, ao se realizar, ocorre no tempo por meio do
ato da fundação, que é apresentado por Hannah Arendt através do fenômeno das Revoluções.
Nesse caso, o que se vê, é que o tema da fundação garante a efetivação da potencialidade
política da natalidade no âmbito dos acontecimentos históricos. Dito de um outro modo, a
natalidade na sua dimensão ontológica, somente se revela no mundo quando completada pela
efetivação da ação de fundação que ocorre na História.
Por essa razão, nesse percuso pudemos perceber o quanto o fenômeno das Revoluções
revela-se como a expressão da associação existente entre a categoria da natalidade e a questão
da fundação, ou seja, ao explorar o tema da natalidade, demonstramos o quanto é oportuna a
articulação entre essa categoria e o sentido da Revolução em Arendt. Abordar o sentido da
Revolução após termos trabalhado a categoria da natalidade, nos permitiu perceber o quanto
essa categoria se revela no decorrer do processo do aparecimento das Revoluções. Portanto,
essa associação contribuiu para abrir o caminho para uma análise do que é o corpo político
anunciado por Hannah Arendt. Visto que para a nossa autora a análise das Revoluções se
concebe a partir da idéia de que para ela a fundação se desenvolve através dessa novidade
instaurada no contexto do século XVIII.
A própria falta de precedência instaurada com o advento das Revoluções, tráz
consigo o aspecto de uma novidade anunciada com requintes de relevância. Ao demonstrtar
que as Revoluções são a expressão da novidade instaurada no mundo, Hannah Arendt estava
273
nos apresentando a manifestação concreta da natalidade como condição humana que por meio
do começo permite que o homem se lance no abismo da responsabilidade para com o mundo
em que ele habita.
641
A revelação semântica da palavra Revolução pode ser considerada como o abandono
do entendimento de uma simples revolta para um movimento giratório de caráter irrevogável
e irreverssível assumido pelo povo nas ruas de Paris ou na condenação efetiva ao domínio de
taxação imposto aos habitantes das Treze Colônias pelos ingleses. A própria semântica que
envolve o significado moderno de Revolução revela algo mais complexo que as revoltas, pois
algo antes comparado ao movimento das estrelas inatingível pelo homem agora é feito por ele,
mas sem o seu controle no que tange aos desdobramentos da ão. O que vimos é que o
sentido da Revolução nos traz a evidência de um movimento sem controle por parte dos seus
iniciadores e que por si próprio mostra como o caráter da irreverssibilidade da ação radicada
na natalidade se apresenta no mundo como fundação.
No momento em que tratamos o sentido da Revolução associando-a à liberdade
política, passamos a explicitar o quanto a contribuição que o pensamento filosófico
comtemporâneo a partir desse tratamento pôde ofercer uma perspectiva de uma visão política
contrária aos modelos impostos pela experiência totalitária vivenciada por essa pensadora dos
problemas que aflingem o mundo contemporâneo. Arendt ao conceber a associação entre
experiência revolucionária e a busca de seus atores por liberdade política nos convoca à
instauração de um corpo político que comporte em sua estrutura organizacional espaços de
liberdade por onde ela possa espontaneamente se manifestar. O aparecimento da liberdade
política em experiências trazidas por órgãos populares no curso do processo revolucionário
641
Pelo nascimento nos responsabilizamos pelo mundo que se torna um espaço habitável através da interação do
homem com os seus pares. A esse respeito comenta Adriano Correia: “O que Arendt assume é justamente que o
mundo se torna um lugar habitável e a convivência suportável e desejável se assumirmos por amor ou
gratidão a responsabilidade por ele e se por amizade e respeito interagimos com nossos pares. Sem isto, o mundo
converte-se em um deserto. (CORREIA. O significado político da natalidade considerações sobre Hannah
Arendt e Jürgen Habermas. In: ___________ (Org.). Hannah Arendt e a Condição Humana, p. 229).
274
demonstra que o sentido da Revolução é o de lançar ao mundo o testemunho político de uma
ação que se na esfera pública, ao contrário da liberdade da interioridade admitida pelos
filósofos medievais ou a partir do momento em que Platão e Aristóteles priorizaram a vida
contemplativa em detrimento a vita activa.
642
Vimos ao longo de nossas abordagens que o sentido da Revolução se revela também
no âmbito da questão social. As análises arendtianas referentes à questão social se traduzem
como um aspecto relevante da novidade revolucionária porque traz consigo uma visão sem
precedentes no que se refere ao fato dos pobres descobrirem que a sua condição de vida ia
além do que se acreditava como fruto do destino. Mas, se por um lado a questão social se
mostrou como uma força propulsora de libertação, por outro, ela não demonstrou avanço no
que se refere à instauração da liberdade política no seio do novo corpo político que foi criado
como resultado da ação irreverssível outrora iniciada pelos Pais Fundadores. A contribuição
do pensamento de Hannah Arendt no que tange ao aspecto da questão social em sua relação
com o fenômeno das Revoluções nos lega uma relevante análise conceitual a respeito do que é
libertação e liberdade. Tais análises revelam a limitação da liberdade, pois presos ao campo
das necessidades o homem encontra dificuldades de transitar na liberdade política. O
habitante da cidade ou qualquer cidadão residente no Habitat terrestre necessecita se
responsabilizar com o seu ambiente. Mas, para que isso aconteça, é condição sine qua non
liberta-se das amarras que caracterizam o estado de pobreza. Somente libertos dessa situação
é que o homem irá vivenciar plenamente a sua liberdade política envolvido com a dinâmica
do espaço público. A libertação é necessária para que o caminho da liberdade esteja aberto
para a realização política do homem. Temos em Arendt a demonstração de que a pobreza
afeta a condição humana e impede o estabelecimento da sua dignidade politica.
Um outro aspecto relevante para Arendt que se associa à novidade do evento
revolucionário encontra-se na questão da secularização. Entendido por ela como a separação
642
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 45.
275
da política da religião, a nossa autora destaca que a secularização traz consigo o
desmerecimento da força do apelo transcendental no que diz respeito à ação fundadora do
corpo político. Ora, pensar o corpo político despreendido das amarras das estruturas do poder
eclesiástico não se caracteriza como um comportamento hegemônico antes da explosão
revolucionária. O Antigo Regime se nutria da aliança entre Igreja romana e nobreza. O poder
do Estado inglês inaugurou com Henrrique VIII o casamento do Estado com a Igreja nacional
anglicana. A secularização abriu terreno para a liberdade religiosa fundada na América pelos
colonos ávidos de se libertar das restrições aos diversos cultos surgidos com as ramificações
do catolicismo romano e do anglicanismo. Em Arendt a contribuição mais relevante no que se
refere ao fenômeno da secularização é que ele põe fim à crença de que a fundação necessita
do amparo das forças trancendentais para poder se realizar. Mesmo assim a nossa autora não
deixa de esclarecer que os fundadores uma vez iniciados na tarefa da criação de novas
realidades políticas caíram na hesitação de se voltarem em busca de justificativas para
algumas das iniciativas inerentes ao momento da fundação.
Vimos no decorrer de nossas análises o quanto a tópica da fundação é cara à nossa
tradição do pensamento político. Buscamos demonstrar no terceiro capítulo de nosso trabalho
como Arendt em suas análises recorre ao papel que as lendas fundadoras tiveram em termos
de referência para as ações dos Pais Fundadores. Trilhando esse caminho, ressaltamos a
influência que a Antigüidade clássica teve na História do pensamento e da práxis da política
ocidental, segundo as análises encaminhadas por Hannah Arendt. Demonstramos que a nossa
autora insiste na necessidade do recurso dos fundadores, às tradições hebraica, grega e
romana, abrindo espaço para as tradições do republicanismo clássico renascentita e iluminista
expondo um ponto paradigmático para as suas ações no âmbito do corpo político. Arendt não
despreza o valor que é inerente à tradição. Por esse motivo, ela se apóia no fio condutor das
experiências do passado que em momentos de hiatos no tempo apresentam o novo sem deixar
276
de valorizar ações empreendidas. Para essa nossa autora, a História não é cíclica, o tempo
não é contínuo, são as rupturas que anunciam a novidade da ação fundadora. O homem ao
fundar novas realidades políticas apresenta ao mundo a novidade que lhe é inerente pelo fato
dele um dia ter vindo a esse mundo. Acontece que este segundo nascimento do homem não
simplesmente o lança no abismo da liberdade da sua vocação de iniciador. O lançar-se para a
novidade é também o lançar-se para o apoio a tradições passadas que dizem respeito ao
momento extraordinário do ato fundador. Nossa tarefa consistiu em explicitar que o recurso à
Antigüidade utilizado pelos homens das Revoluções do século XVIII constitui-se como fator
relevante para sustentar o conteúdo teórico das instituições políticas que eles fundaram. A
leitura dos antigos demonstra que a fundação está presente nos primórdios da História de
nossa Filosofia Política.
Na tarefa de explicitar como Hannah Arendt concebe o corpo político, nos apoiamos
nas análises encaminhadas por ela no que diz respeito às semelhanças e às diferenças entre as
Revoluções Americana e Francesa.
No quarto e último momento inserimos em nossa pesquisa análises de Arendt
referentes à configuração do corpo político em seu pensamento e o papel das Constituições
como momento de fixação da ação de fundação no tempo. Enfatizamos nessa parte de nossa
Tese a aposta de Arendt nos sistemas de conselhos ou em outras formas de manifestação
política espontânea, Arendt nos lega um corpo político inserido em problemas locais, sendo
portanto, elementares nas formas de organização e de deliberação. Tomando como base esse
legado das investigações arendtianas, o difícil é pensar como aplicá-lo nos dias de hoje,
sobretudo porque o Estado se tornou uma realidade distante do dia-a-dia das pessoas.
As análises desenvolvidas por Arendt nos levam a acreditar que não estamos mais
acostumamos a conceber a participação política como um comportamento que deveria ser tão
relevante como o ato de freqüentar uma cerimônia religiosa, um ambiente destinado ao lazer
277
ou até mesmo o ato de ingerir alimentos para manter nosso sistema biológico funcionando
normalmente. Na sua ânsia de refutar partidos e parlamentos desconsiderando-os como
verdadeiros espaços de exercício da dignidade da política, Arendt ao aderir-se a um corpo
político do tipo Estado-conselho nos deixa a imprensão de que política é algo do cotidiano das
pessoas, pois somente assim é possível criar uma alternativa diferente de Estado do modelo do
qual estamos acostumados a conceber na atualidade.
Verificamos a partir dessas considerações que a novidade da produção filosófico-
política arendtiana está também no ato dela reconhecer nos órgãos espontâneos que surgiram
do povo e tratados por ela nas análises a respeito do evento revolucionário, a expressão da
natalidade política sem precedência na História da Filosofia Política Moderna e
Contemporânea. A novidade apresentada por essa pensadora do século XX nos deixa cientes
de que mesmo que os corpos políticos criados pelas duas Revoluções do século XVIII não
tenham sido a expressão plena da novidade que se perdeu como um tesouro - enfatiza-se aí, o
caso da inclusão do sistema de conselhos ou outros órgãos espontâneos de iniciativa popular –
tais corpos políticos, comparados ao modelo de Estado-Nação vivenciado pela França e pela
Inglaterra no contexto pré-revolucionário, significaram novidades sem precedentes na
História do Ocidente. Realidades como a implantação de uma estrutura baseada na tripartição:
Legislativo, Executivo e Judiciário e inclusão do voto para garantir a rotatividade nos cargos,
revelam-se como um tipo de corpo político com elementos, de tradições anteriores, mas no
conjunto representam uma novidade devido ao seu diferencial.
Evidenciamos em nossas abordagens que é por meio da Constituição que as
Revoluções conseguem enraizar a fundação no tempo. Muitas conquistas no campo dos
direitos civis e de uma estrutura política não absolutista se efetivaram como frutos das
Constituições que foram formuladas nos dois lados do Atlântico. A elaboração de
Constituições aparece como um instrumento cabível ao momento necessário de solucionar o
278
problema de Arendt que reside no conflito entre inovação e durabilidade. É tarefa de uma
Constituição tornar possível a perpetuação no tempo de algo que apareceu na História como
uma inovação.
Mas, muitas das novidades surgidas no contexto do aparecimento das Revoluções não
foram incorporadas nas Constituições, pois elas não assumiram os espaços públicos de
manifestação conjunta. As Constituições desprezaram o maior tesouro das Revoluções.
Situação que significa que o ideal de corpo político assinalado pela perspectiva arendtiana,
ficou comprometido com a perda do tesouro que a tradição revolucionária nos legou.
Arendt diz que o terreno da tradição revolucionária, uma vez manifestado nas
experiências de auto-governo e em outras formas efetivadas de espaços públicos, se perdeu,
por não ter conseguido encontrar uma instituição apropriada que a tornasse durável. Os
critérios políticos ancorados em palavras e atos conjuntos e sustentados por um ambiente de
pluralidade formavam o Espírito Revolucionário. Para que esse Espírito não se perdesse,
necessitava ele de uma instituição apropriada para que ele pudesse se manter e perpetuar na
História. A ausência dessa instituição que pudesse acolher esse Espírito Revolucionário e
tornar possível o seu prosseguimento, revelou o grande fracasso das Revoluções Modernas.
643
Se o tesouro das Revoluções
644
no sentido assinalado por Hannah Arendt encontra-se
no momento em que todos os participantes se estabelecem na prática do uso das palavras por
643
ARENDT. Da Revolução, p. 223.
644
Verifica-se, que o que ocorreu tanto na América, e na França quanto na União Soviética foi que o tesouro das
Revoluções, que se manifestou por meio dos órgãos populares, perdeu-se quando esses órgãos populares foram
substituídos por elites políticas organizadas em partidos políticos. A tradição revolucionária que Arendt se refere
é aquela nascida da espontaneidade dos conselhos, comunas, Räte, distritos e Sovietes. Pois, como abordamos
anteriormente, pode-se dizer que é dessa maneira que se constitui os espaços públicos da tradição revolucionária
assinalada pela nossa autora. A dificuldade em fundar e preservar um corpo político que fosse estruturado e
organizado em sistemas como o dos conselhos, estava em ter que vencer a barreira entre aqueles que
acreditavam na força desses órgãos populares como instituições permanentes do governo e entre aqueles que
consideravam esses espaços de liberdade como órgãos temporários da Revolução. O que finalmente prevaleceu
foi a vitória do segundo caso. É importante ressaltar que a vitória desse segundo caso, não foi somente o que
ocorreu com as Revoluções do século XVIII. O século XX viu sepultada a força revolucionária dos organismos
populares, como salienta a nossa autora: “Foi nada mais nada menos do que essa esperança de uma
transformação do Estado, de uma nova forma de governo que permitisse a cada membro da sociedade igualitária
moderna se tornar um “participante” dos assuntos públicos, que ficou sepultada nas desastrosas revoluções do
século XX.” (ARENDT. Da Revolução, p. 211).
279
meio de opinião, bem como quando todos agem em conjunto. Nesse caso, é necessário que
seja efetivado um espaço que em seu interior o haja necessidade do uso de máscaras e de
fantasias para que possa acontecer a manifestação do mundo público das aparências. Num
mundo político marcado pela mentira vinda de muitos daqueles que detém o poder, tornou-se
necessário o resgate e a valorização de espaços que possibilitam a livre manifestação dos
participantes em palavras e atos.
Diante do fracasso das Revoluções em garantir uma herança de tradição política
focalizada em um corpo político caracterizado por espaços públicos, Hannah Arendt para
compensá-lo, recorre aos arcanos da memória e da recordação. A autora demonstra que era
necessário criar uma instituição que pudesse manter e fazer acontecer permanentemente o
espírito da Revolução “um espírito novo, e o espírito de dar início a algo inteiramente
novo.” Quem guarda esses arcanos da memória e os preservam, são os poetas. É a eles que
Arendt recorre. Valoriza-se a memória da tradição perdida, e, conseqüentemente dá-se
importância a seus guardiães poetas.
645
Na sua aposta em garantir a relevância da preservação da memória e da recordação,
Arendt volta-se para dois poetas, um antigo e um moderno. O poeta moderno que ela recorre é
René Char. Para a nossa autora, precisamos atingir precisamente o ponto nodal daquela frase
de autoria desse poeta da resistência francesa na Segunda Guerra Mundial, referente à
“herança que nos foi deixada sem testamento.”
646
Ela também nos recomenda uma atenção ao
poeta antigo, Sófocles, quando este se refere ao esplendor da antiga polis. Acredita Hannah
Arendt que ambos os poetas são importantes, porque ao nos referirmos a eles estaremos “a
645
ARENDT. Da Revolução, p. 223.
646
No prefácio do texto intitulado A Quebra entre o Passado e o Futuro, diz Hannah Arendt: Notre héritage
nést precede d’aucun testament ‘Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento.Talvez esse seja o
mais estranho dentre os aforismos estranhamente abruptos em que o poeta e escritor francês René char
condensou a essência do que vieram a significar quatro anos na Résistance para toda uma geração de escritores e
homens de letras europeus.” Em nota de roda de mero 1(um), que vem logo após essa citação, a nossa
autora recomenda: “Ver, para essa citação e as subseqüentes, René Char, Feuillets d’Hypnos, Paris, 1946.
Escritos durante o último ano da Resistência, de 1943 a 1944, e publicados na Collection Espoir, organizada por
280
fim de encontrarmos uma expressão que possa traduzir o verdadeiro conteúdo de nosso tempo
perdido.”
647
De acordo com Hannah Arendt, o poeta moderno René Char talvez seja o mais
expressivo entre os muitos outros artistas e escritores da França que na época referente à
Segunda Grande Guerra Mundial se uniram ao movimento de Resistência a esse
acontecimento.
648
Foram quatro anos de movimento de Résistance que teve em seus quadros uma
geração composta por escritores e por homens de letras europeus.
649
No seio dessa produção
literária Arendt enfatiza a obra de René Char Feullets d’ Hypnos por ser a obra de onde ela
extrai a frase: “Notre Héritage n’est précéde d’aucum testament” Nossa herança nos foi
deixada sem nenhum testamento.
650
A autora enfatiza a expressão de René Char como a frase mestra que indica o que
representa a Resistance. Ao escrever o seu livro de aforismos durante o último ano da Guerra,
o poeta René Char estava demonstrando apreensão quanto a libertação não daquela que
dizia respeito ao fim da ocupação alemã, quanto aquela referente ao fim do “fardo” imposto
aos seus negócios públicos. Os homens da resistência européia teriam que retornar ao
épaissem triste de suas vidas e ocupações privadas, denominada de “estéril depresão” própria
dos anos anteriores à Guerra.
651
A invasão alemã ocorrida na França, foi um acontecimento inesperado que esvaziou
de um dia para o outro, o cenário político do país, levando os homens da resistência a serem
sugados fortemente como um vácuo para a política da Terceira República. Alguns escritores e
homens das letras resolveram reagir ao colapso causado pela invasão alemã:
Albert Camus, tais aforismos, juntamente com obras posteriores, apareceram em inglês sob o título Hypnos
Waking; Poems and Prose, New York, 1956. (ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 28).
647
ARENDT. Da Revolução, p. 224.
648
Ibidem, p. 224.
649
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 28.
650
ARENDT. Da Revolução, p. 224 - 254.
651
Ibidem, p. 224.
281
Desse modo, sem presenti-lo e provavelmente contra as suas inclinações conscientes,
vieram a constituir, quer o quisesem ou não, um domínio público onde – sem a
parafernália da burocracia e ocultos dos olhos de amigos e inimigos – levou-se a cabo,
em feitos e em palavras, cada negócio relevante para os problemas do país.
652
O que os homens da Resistance fundaram foi um espaço público compreendido como
um tesouro. Por causa da maldição do domínio alemão e por um tempo de Resistance que não
durou muito, criou-se um espaço sem máscaras. Foi um espaço em que a descoberta desse
tesouro significou muitos momentos em que todos encontravam-se aos outros e cada um deles
consigo mesmo. Nesse espaço não havia necessidade do uso de máscaras e de fantasias para
aparecer, pois não havia necessidade de remoer suspeitas de “insinceridade.” Constituíram um
mundo público de aparências.
653
A Resistance significou originalmente para os seus protagonistas um tipo de “fardo.”
Quando na certeza expressa por René Char de que eles deveriam voltar à vida estabelecida
nos anos anteriores à Guerra, sentiram-se que teriam que voltar para um lugar sem aparência
demonstrada em atos e palavras.
654
Eles:
Se recusavam a “voltar às [suas] verdadeiras origens, a [seu] miserável
comportamento,” nada lhes restava senão retornar à velha e vazia peleja de ideologias
antagônicas que, após a derrota do inimigo comum, de novo ocuparam a arena
política, cindindo os antigos companheiros de armas em grupelhos sem conta, que não
chegavam sequer a constituir facções, e alistando-os nas intermináveis polêmicas de
uma guerra de papel. Aquilo que Char previra e antecipara lucidamente enquanto a
luta real ainda prosseguia “Se sobreviver, sei que teria de romper com o aroma
desses anos essenciais, de rejeitar silenciosamente (não reprimir) meu tesouro.”
655
O tesouro que despe ou desnuda, é também o tesouro que se faz por meio do encontro
com os outros e consigo mesmo.
656
É o tesouro da liberdade daqueles que resistem à
652
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 29.
653
ARENDT. Da Revolução, p. 224.
654
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 29.
655
Ibidem, p. 29
656
Ibidem, p. 30.
282
dominação totalitária e a todas as outras formas de impedimento do surgimento de espaços
públicos.
Para atingir mais abertamente ao âmago daquela “herança que nos foi deixada sem
testamento” a peça de Sóflocles,
657
em Oedipus at Colonus é mais um dos recursos assumidos
por Hannah Arendt para dar importância à preservação dos espaços de manifestação de
liberdade.
658
Os versos criados por Sófocles e a literatura da Resistênca de René Char revelam o
valor do tesouro a ser preservado, mesmo que isso ocorresse somente na memória. Esse
tesouro perdido é um paradigma que ilumina as ações do presente e do futuro.
Em termos arendtianos: “O testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito,
lega posses do passado para um futuro”
659
Eis aí, o sentido do tesouro das Revoluções quando
elas são assinaladas como um paradigma de uma tradição que não se esvai com o passado,
pois, o paradigma que pode iluminar qualquer pretensão de fundação de um novo corpo
político, passa pela experiência vivida por muitos que ansiavam pela novidade do fenômeno
revolucionário.
Mesmo que o tesouro desses anseios tenha sido perdido, vale a pena se apegar à
tradição política vivida na antiga polis grega, lembrada por Arendt quando ela recorre ao
poema de Sóflocles para dizer que esse tesouro é como: “O espaço das ações livres e das
palavras vivas dos homens, aquilo que podia dotar a vida de esplendor.”
660
No momento em que trilhamos nesse trabalho o caminho de versar sobre um tema
importante da obra de Hannah Arendt e, em boa medida, da tradição do pensamento político
ocidental, percebemos que não dúvidas no que se refere à importância da contribuição
657
Ao se referir a Teseu como fundador de Atenas utilizando-se de uma peça teatral de focles, evidencia-se o
recurso à tradição política do ato fundador e à tradição literária grega.
658
ARENDT. Da Revolução, p. 224.
659
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 31.
660
ARENDT. Da Revolução, p. 224.
283
desse tema para o debate em torno da História da Filosofia Política a ser realizado em nossos
dias.
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