126
consciência moral, passa a vigorar como uma premissa propriamente dita do
argumento
120
. Com efeito, após caracterizar a lei prática pura como a “forma
legisladora universal da razão de que uma máxima deve ser capaz” Kant introduz a
figura do “facto da razão” para assim denominar a consciência desta lei, que ele
finalmente define como o próprio facto, “o único factum puro da razão”. E
imediatamente após a introdução da figura do facto da razão Kant declara, não mais
hipoteticamente, mas de modo categórico: “A razão pura é por si só prática e dá (ao
homem) uma lei universal, que chamamos de lei moral” (CRPr, A 56). Estas
considerações, embora breves, já dão indícios dos motivos pelos quais contra Kant
se levantaram suspeitas de que com o “apelo” ao “facto da razão” ele teria
abandonado o projeto crítico e recaído no dogmatismo
121
. Invariavelmente a doutrina
do facto da razão é associada com a questão da dedução, e em geral com a não
dedução, ou, impossibilidade de dedução da lei moral
122
.
O problema intrínseco à própria figura do “facto da razão”, elemento
aparentemente estranho a uma Filosofia Crítica, parece agravado pela linguagem
imprecisa de Kant, que refere como “facto da razão” ora a consciência da lei
moral
123
, ora a própria lei
124
, e também a autonomia na lei moral
125
. Dado o inusitado
120
“What is it that authorizes Kant to make this change in the status of the hypothesis that pure reason
can be practical? A change in mood does not of itself constitute a step in argument.
There are two reasons for it: the alleged “fact of pure reason” and the somewhat equivocally titled
“deduction” of the principle.
What was previously only a methodological standpoint, the assumption of moral consciousness, now
functions as an actual premise of the argument, in spite of Kant`s having acknowledged that it might
be illusory” (BECk, A Commentary, p. 166).
121
Quem nos auxilia neste aspecto da questão, a título de informação pelo menos, é Guido de
Almeida. Em seu artigo “Crítica, Dedução e Facto da Razão” Guido de Almeida nota que “[o]
abandono da dedução pelo apelo ao ‘facto da razão’ não satisfez a maioria dos leitores de Kant,
mesmo simpáticos à nova doutrina” (p. 60). Em nota de rodapé, ele indica Schopenhauer e Hegel
como iniciadores dessa recepção negativa da doutrina kantiana. Na medida em que o projeto crítico
gira em torno do êxito da “dedução”, e como aparentemente Kant teria fracassado em sua tentativa
de uma dedução da lei moral na Fundamentação, o “facto da razão” foi entendido como um “apelo”
sem base crítica e, por isso, também condenado ao fracasso. E até hoje se levanta a questão se o
“facto da razão” permanece dentro do marco crítico do pensamento kantiano. (Guido de Almeida,
“Crítica, Dedução e Facto da Razão”, in. Analytica, vol. 4, n. 1, 1999, p. 62). É importante ressaltar
aqui que Guido de Almeida justamente procura defender que o projeto crítico de Kant não é posto em
risco pela doutrina do “facto da razão”. Afora isso, ele parece sustentar a tese da impossibilidade da
dedução da lei moral. Ver Guido de Almeida, “Crítica, Dedução e Facto da Razão”, in. Analytica, vol.
4, n. 1, 1999.
122
Cf. Guido de Almeida, “Crítica, Dedução e Facto da Razão”. Neste artigo, cf. nota anterior, o autor
dedica-se a explicar “a impossibilidade de uma dedução do princípio de nossos juízos morais”, e
analisa as razões por que Kant considera a lei moral um “facto da razão” (cf. p. 72). De acordo com
as considerações iniciais do autor neste ensaio, Kant teria abandonado a dedução da lei moral pelo
apelo ao “fato da razão” .
123
“Pode-se denominar a consciência desta lei fundamental um factum da razão [...]” (CRPr, A 55-6).
124
“Contudo, para considerar esta lei como inequivocamente dada, precisa-se observar que ela não é
nenhum fato empírico mas o único factum da razão pura [...]” (CRPr, A 56).