Download PDF
ads:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós Graduação em História
Mestrado em História Política
“A Frente Negra Brasileira:
Política e Questão Racial nos anos 1930”
Professora Orientadora: Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva
Laiana Lannes de Oliveira
Rio de Janeiro
2002
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
RESUMO
Esta dissertação trata da Frente Negra Brasileira, organização política criada em
1931, em São Paulo, e extinta em 1937, à luz do contexto histórico da época. As fontes
nas quais está baseada são jornais e memórias de lideranças negras envolvidas com o
movimento negro brasileiro.
ads:
3
ABSTRACT
The text discusses a political organization created in São Paulo in 1931, and
dissolved in 1937, called Frente Negra Brasileira. The sources on wich we base our
analysis, in the light of the historical context of the period, are newspapers and the
memoirs of black leaders envolved in the brazilian black movement.
4
AGRADECIMENTOS
Durante estes 30 meses de curso, muitos me auxiliaram e devem ser lembrados
neste momento. Primeiramente gostaria de agradecer aos meus professores: Lúcia Bastos,
Fernando Faria, Carlos Maia, Lúcia Guimarães e Silvio Carvalho. As aulas ministradas
por eles foram valiosíssimas e muito contribuíram para a estruturação teórica e
metodológica da dissertação. Agradeço, sinceramente, ao professor André Campos que
inicialmente orientou a pesquisa, apresentando-me a Frente Negra Brasileira. À
professora Marilena Nogueira, orientadora da pesquisa, pelas suas sugestões, sua
paciência e sua elegância em tratar as pessoas.
Outra professora fundamental para a conclusão do curso foi Lená Medeiros. Além
de participar da Banca do Exame de Qualificação, com sugestões valiosas, como diretora
do curso, concedeu-me uma bolsa de estudos durante os últimos 10 meses, financiada
pela CAPES. O auxílio foi essencial para a conclusão do curso.
Agradeço também à Leila Medeiros, Celi e Leonardo, colegas de turma que
proporcionaram discussões relevantes e enriqueceram ainda mais o curso, além é claro,
dos momentos de descontração e amizade.
Gostaria de lembrar também de Débora, secretária do PPGH, sempre disposta a
ajudar e operacionalizar as questões burocráticas, e de Bianca, aluna de História da FFP,
por ter me auxiliado na transcrição das fontes da Biblioteca Nacional.
Reiterando o ditado: “os últimos serão os primeiros”, agradeço a José Roberto, por
suas sugestões e correções como historiador, e por sua paciência e carinho como marido.
5
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO-----------------------------7
INTRODUÇÃO
História Política ---------------------------- 8
O Tema ---------------------------- 12
As Fontes ---------------------------- 15
CAPÍTULO I: ---------------------------- 19
“A Ausência do Acaso: o contexto político, econômico e cultural
que determinou o surgimento da Frente Negra Brasileira ”.
1.1. O Incentivo Político: A “Revolução de 1930” -------------- 20
1.2. O Incentivo Econômico: A Pauperização do
Negro na Cidade de São Paulo. -------------- 28
1.3. O Incentivo Cultural: A Substituição das
Teorias Racistas “Científicas” --------------- 33
CAPÍTULO II: ---------------------------- 48
“ A Frente Negra Brasileira: origem e organização.”
2.1. O Embrião: A Imprensa Negra e o Centro
Cívico Palmares. ---------------- 48
2.2. Fundação e Organização. ----------------- 57
6
CAPÍTULO III: ----------------------------- 72
“ Um espelho do país: a Frente Negra Brasileira refletindo a
conjuntura nacional”.
3.1. A crise do liberalismo e o nacionalismo dos anos 30
“contaminando” os negros. ---------------------72
3.2. Atuação Político-eleitoral -------------------- 78
3.3. O oficialismo --------------------81
3.4. As divergências --------------------84
CONCLUSÃO: ---------------------------- 91
ANEXOS ---------------------------- 95
Anexo 1: Estatuto da Frente Negra Brasileira ------------- 95
Anexo 2: Hino da Frente Negra Brasileira --------------97
Anexo 3: Hino da criança frentenegrina ------------- 98
FONTES PRIMÁRIAS --------------------------------100
BIBLIOGRAFIA ------------------------------- 101
7
APRESENTAÇÃO
O tema desta dissertação é a Frente Negra Brasileira, organização criada em São
Paulo, em 1931, com o propósito (segundo consta do primeiro artigo de seu estatuto) de
afirmar os “direitos históricos” da “Gente Negra Nacional”, “ em virtude da sua atividade
material e moral no passado”, e reivindicar “seus direitos sociais e políticos, atuais, na
Constituição Brasileira”. A Frente Negra Brasileira foi extinta em 1937, interrompida
pelo advento do Estado Novo. A instituição, além de revelar os conflitos raciais no
momento da substituição das teorias de branqueamento e racismo científico pelo mito da
democracia racial e a valorização da “raça mestiça”, surgiu sob a égide da “revolução de
30”, revelando as contradições e os conflitos não só dos afro-descendentes, como também
as ebulições e a luta dos trabalhadores em um momento de reorganização do Estado
Nacional.
Na Introdução, busco situar a pesquisa no campo da História Política e apresento
o tema do qual ela se ocupa e as fontes que a tornam possível. No primeiro capítulo, trato
dos contextos político, econômico e cultural aos quais estava estreitamente vinculada a
organização. No segundo capítulo, reconstituo as origens da Frente em meio à história do
movimento negro em São Paulo, além de tratar de sua organização institucional. No
terceiro capítulo, examino características da Frente (a exemplo do seu “oficialismo”),
procurando pensá-las no contexto da crise do liberalismo e da intensa disseminação das
idéias nacionalistas, característico dos anos 1930. Abordo também as dissensões havidas
entre as lideranças da Frente, à luz deste mesmo contexto histórico. Após a conclusão,
apresento, em anexo, o estatuto e dois hinos da Frente Negra Brasileira.
8
INTRODUÇÃO
“Começando nas próprias origens
do Brasil como nação e
continuando até hoje, a relação
entre raça e política nesse país tem
sido próxima e integral
1
.
História Política e Micro História
Durante muito tempo, a história política foi a forma predominante de construção
do conhecimento histórico. Tinha como principais características o relato de fatos e
acontecimentos, com um interesse maior, senão único, pelos grandes líderes do Estado,
negligenciando a influência da maioria da sociedade nas transformações sociais. História
estritamente narrativa, factual e linear, preocupava-se com fatos efêmeros e com a curta
duração.
Há aproximadamente sete décadas, essa história política - que atingiu o seu
apogeu no século XIX - começou a perder prestígio, principalmente após a consolidação
do movimento dos Annales. Esta nova tendência historiográfica muito se esforçou para a
desqualificação da história política tradicional, assim como o marxismo, o estruturalismo
e a história serial contribuíram para a sua respectiva condenação. A nova história
proposta pelos Annales afirmava a importância dos comportamentos coletivos e de
estruturas duráveis, inseridas na longa duração, onde a vida quotidiana e as relações
sociais se apresentam como essenciais para a compreensão da sociedade.
1
Andrews, George Reid. O protesto político negro em São Paulo - 1888-1988. In: Cadernos
Cândido Mendes nº 21. Centro de Estudos Afro-Asiáticos, dezembro de 1991.
9
O movimento dos Annales, a história social e das mentalidades, proporcionaram
uma contribuição imensurável para a construção do conhecimento histórico. Foi a partir
dessas críticas e do interesse e autocrítica dos próprios historiadores políticos, que foi
possível a construção de uma nova história política. Esta nova história não nega - e nem
mesmo ignora - a proposta dos Annales. Soube ouvir as críticas e busca resolver antigas
limitações.
Não é possível mais condenar a história política, confundindo as insuficiências
dos métodos anteriormente utilizados, com os seus objetos. O caminho seguido pela
“nova história política” passa pela transferência do estudo do Estado como instituição,
para o estudo do poder e suas múltiplas representações. Michel Foucault, muito
contribuiu para a dilatação do conceito de poder e para a própria história política, que
reconheceu a existências não só de um poder, mas de poderes.
2
O desafio da Nova História Política é demonstrar que se pode inscrevê-la na longa
duração. Segundo René Remond, é através do estudo das formações políticas e das
ideologias, e da noção de “cultura política”, que essa nova história se libertará do rótulo
de história événementielle.
3
A noção de cultura política, segundo o autor, implica
continuidade na longuíssima duração, e ideologia deve ser pensada como um conjunto de
idéias e representações que definem determinado tempo histórico.
O conceito de cultura política é dinâmico, e não deve ser pensado de forma
autônoma e individual. Segundo Serge Berstein, a cultura deve ser pensada como
representações de grupos políticos, como a herança de um passado, que influencia a
construção do presente.
4
Por cultura política entendo as práticas, discursos,
manifestações, valores e representações que refletem o comportamento político de uma
sociedade. Por um lado ela define as maneiras pelas quais a ação política pode ou não ser
expressa; e por outro, as maneiras pelas quais essa ação será ouvida e compreendida.
A História Política “nouvelle manière” não é menos total e abrangente do que a
história social, econômica ou cultural. Através de um contato principalmente com a
2
Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed.Graal, 1982.
3
Rémond, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996.
4
Berstein, Serge. La culture politique. In: Jean-Pierre Rioux & Jean François Sirinelli. Pour une
histoire culturelle. Paris: Seuil, 1997.
10
Ciência Política e a Sociologia, superou as principais limitações da história política
tradicional e substituiu o estudo da política pela análise “do político”.
A noção de “político” aqui utilizada é universalizada, sem fronteiras e recortes
determinados. Parte da perspectiva adotada por Pierre Rosanvallon, onde o político não
representa uma instância ou domínio entre outros da realidade, e sim um locus
privilegiado onde se articula o social e suas representações.
5
Ao contrário de privilegiar
aspectos econômicos, culturais e até mesmo político, a nova história política localiza-se
na articulação entre os diferentes aspectos, abandonando as teorias deterministas e
pesquisando os vestígios de continuidade, que influenciam as formações políticas.
A História Política foi consideravelmente influenciada pelo movimento dos
Annales, mas a sua renovação não implicou em deixar de atribuir aos comportamentos
individuais a importância que têm nos processos sociais. Talvez por isso também possa se
valer das contribuições da Micro História.
Como salienta Jacques Revel, a Micro História não é um “corpo de proposições
unificadas” nem uma escola.
6
É, antes, um leque de escolhas teóricas e metodológicas, no
interior da disciplina histórica, que surgiu na década de 1970, em função de sentidas
insuficiências da história social, como então se praticava. Entre as contribuições
apontadas por Revel está a presunção de que “a escolha de uma escala particular de
observação produz efeitos de conhecimento”.
7
Para Carlo Ginzburg, uma multiplicidade
de espaços e de tempos pode ser entrevista nos marcos de um destino individual. Pois,
segundo Revel, “cada ator histórico participa, de maneira próxima ou distante, de
processos... de dimensões e de níveis variados, do mais local ao mais global”.
8
Optar por uma escala menor de análise não significa, necessariamente, abdicar de
explicações. A micro-história pretende, e, na maioria das vezes realiza, uma pesquisa
com conclusões de alcance geral. Quanto menor for a escala, mais detalhes e
complexidades podemos observar. Não há hierarquia de importância entre as escalas.
Todas são relevantes na medida que cada uma revela algo novo e demonstra o caráter
5
Rosanvallon, Pierre. Por uma história conceitual do político ( nota de trabalho). Revista
Brasileira de História. São Paulo, 15 (30): 9-22, 1995.
6
Revel, Jacques (org). Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed
FGV, 1998.P. 16.
7
Idem, p. 20
8
Idem, p. 28
11
limitado e parcial de observação. Variar sempre as escalas de análise nos permite
compreender melhor as incoerências e irracionalidades da sociedade. A pesquisa baseou-
se na idéia de que uma escala não tem privilégio sobre outra e que “o seu cotejo é o que
traz maior benefício analítico”, como escreveu Jacques Revel.
9
9
Idem, p. 14
12
O Tema
Como não poderia deixar de ser, em se tratando do Brasil, cultura política e
relações raciais são temas interligados. O tema da pesquisa é a Frente Negra Brasileira,
organização criada em 1931 e extinta em 1937. Formada por intelectuais e militantes
negros, possuía uma estrutura burocrática e interesses políticos específicos, sendo
identificada como o primeiro momento do movimento negro no Brasil. A análise da
Frente Negra Brasileira é relevante na medida em que, sendo tema muito pouco
estudado, possibilita uma contribuição ao conhecimento histórico existente sobre um
período de mudanças aceleradas na nossa histó ria, além, evidentemente, de contribuir
para uma melhor compreensão da história do movimento negro no Brasil e das questões
raciais, consideravelmente intrínsecas ao cotidiano brasileiro.
A contribuição do estudo da Frente Negra transcende o movimento negro e as
questões raciais, possibilitando também um auxílio valioso na compreensão do governo
de Getúlio Vargas. Se a relação entre Vargas e os trabalhadores - maior força do seu
governo - baseou-se numa lógica material e numa lógica simbólica, e se essa lógica
simbólica caracterizou-se pela tentativa de representar a identidade coletiva dos
trabalhadores, torna-se essencial e extremamente relevante, na tentativa de compreender
o governo Vargas, a análise dessa cultura política dos trabalhadores, apropriada pelo
Estado varguista.
Pensar nessa relação entre Vargas e os “trabalhadores do Brasil”, ignorando os 350
anos de relações escravistas e considerando apenas as manifestações organizadas dos
anarquistas, comunistas e socialistas do início do século, é fazer “ tábula rasa do
passado”, é ignorar as heranças culturais de longa duração, e com isso, a própria História.
Não podemos entender a cultura política predominante entre os trabalhadores da década
de 1930, ignorando as culturas políticas dos trabalhadores dos quatro séculos anteriores.
Ignorar a herança e a influência do trabalho escravo na formação da classe trabalhadora
da década de 30 significa acreditar no determinismo do acontecimento, do
13
événementielle, onde bastam a Lei Áurea e a Revolução de 30, para o surgimento de uma
classe trabalhadora com uma cultura política própria e independente.
Na tentativa de compreender a força e o poder do governo Vargas, o estudo da
Frente Negra Brasileira justifica-se na medida que, mesmo influenciada e até mesmo
motivada pelas mudanças sociais da década de 30, ela representa, em alguma medida, a
continuidade das lutas dos antigos trabalhadores negros, marcados pelo recente passado
escravista. Mesmo não sendo o único movimento negro da época, a FNB diferenciava-se
pela “arregimentação, e pela tentativa de estruturação orgânica dos quadros com uma
liderança burocrática bem definida e com uma disciplina mais ou menos
delimitada”,segundo bem observou Florestan Fernandes.
10
Os negros, mais que os outros trabalhadores, possuem uma proximidade maior
com o passado escravista, através da permanência do racismo, das desigualdades e da
exclusão social. Por outro lado, os integrantes da FNB viviam no século XX,
influenciados por suas idéias e envolvidos com as questões da época. Logo, a FNB reflete
tanto as mudanças e os anseios dos trabalhadores do anos 30, como as heranças e anseios
dos trabalhadores escravos, por isso é um instrumento rico e que muito auxilia na análise
da identidade da classe trabalhadora brasileira.
Não foi localizado nenhum trabalho de pesquisa específico sobre a FNB, mas
alguns livros e artigos remetem-se a ela. Em praticamente todos esses estudos, à
“revolução de 30” é atribuído um papel fundamental na organização da FNB, visto que as
perspectivas de mudanças sociais contribuíram para o processo de conscientização e
incentivaram os negros a se juntarem à agitação contra a Primeira República.
Em São Paulo, no ano de 1931, um grupo de negros remanescente do Centro
Cívico Palmares, associação com caráter beneficente e recreativo, funda a Frente Negra
Brasileira. O primeiro artigo de seu estatuto sintetiza as suas propostas e revela a sua
validade e funcionalidade, como objeto de estudo, na interpretação e convergência dos
anseios e necessidades tanto dos antigos trabalhadores escravos, como dos trabalhadores
das primeiras décadas do século:
10
Fernandes, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Ed. Cortez, 1989. P.73.
14
Art.1º - Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se
irradiar por todo o Brasil, a Frente Negra Brasileira, união política e
social da Gente Negra Nacional, para a afirmação dos direitos
históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no
passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políticos,
atuais, na Comunhão Brasileira”.
11
Mesmo representando um curto período, 1931 / 1937, a FNB possui grande
significância. Além de revelar os conflitos raciais no momento de substituição das teorias
de branqueamento e racismo científico, pelo mito da democracia racial e a valorização da
raça mestiça, surgiu sob a égide da revolução de 30, revelando as contradições e os
conflitos não só dos afro-descentendes, como também as ebulições e as lutas dos
trabalhadores num momento de reorganização do Estado Nacional.
11
Estatuto da Frente Negra Brasileira. In: Revista Proposta - Experiências em Educação Popular
- A questão étnica e os movimentos sociais. Nº 51, ano XV, novembro de 1991. ( p/s: os grifos
são meus.)
15
As Fontes
Carlo Ginzburg discute o surgimento, em fins do século XIX, de um novo paradigma
de construção do conhecimento histórico, influenciado pelos métodos de Morelli, Freud e
Arthur Conan Doyle. O método consiste na investigação e observação de pistas e indícios
aparentemente considerados irrelevantes, mas que na verdade são formas essenciais de
acesso a uma determinada realidade.
12
Segundo esse paradigma, o que aparentemente são
considerados detalhes, podem ser sinais reveladores de uma rede de significados sociais e
psicológicos mais profundos, inatingíveis por outros métodos.
Em se tratando de heranças culturais e cultura política, parece-me adequado que o
tratamento dado às minhas fontes de pesquisa se baseie neste método, denominado
“paradigma conjectural”. A questão principal é buscar nas fontes não somente o que
intencionalmente está sendo revelado, mas sobretudo as revelações inconscientes. O
próprio René Remond afirma que toda apreensão do político implica uma certa
antropologia, e a que atualmente é utilizada, peca por um excesso de racionalidade, como
se os atores políticos ordenassem suas escolhas segundo um cálculo racional de
rentabilidade e eficácia. O autor conclui que a inclusão de elementos irracionais na
tentativa de alcançar uma inteligibilidade mais ampla, que inclui e ultrapassa o racional, é
uma questão que exige reflexão e muito pode contribuir na compreensão do político.
13
O primeiro tipo de fonte analisado são jornais, conservados na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. São eles: os exemplares dos jornais “A Voz da Raça”,
periódico oficial da Frente, editados entre 1933 e 1937; os exemplares do jornal “Clarim
da Alvorada”, ligado ao movimento socialista, editados entre 1924-1937, por José
Correia Leite, o dissidente ligado ao socialismo que abandonou a Frente quando esta
passou a apoiar as idéias integralistas; os exemplares do jornal “A Chibata”, também
publicado por dissidentes da Frente e os exemplares do jornal “O Progresso”, editado
12
Ver Ginzburg, Carlos.Mitos, emblemas e sinais.
13
Berstein, Serge e Milza, Pierre (direction). Axes et méthodes de l’histoire politique. Paris:
Presses Universitaires de France.
16
entre 1929 e 1937. Outra fonte importante é a auto-biografia de José Correia Leite,
intitulada “E disse o velho militante”, organizada por Luis Silva. O livro consta de
depoimentos de Correia Leite sobre a sua trajetória desde a década de 20, passando pela
sua participação na fundação da FNB e pela sua respectiva saída.
14
A pesquisa nos jornais pretendeu analisar os impasses frentes aos quais se
deparavam as lideranças da organização e as escolhas que fizeram. Evidentemente, nos
discursos que produziram e nas atitudes que tomaram se pode identificar os traços de
permanência de elementos de uma cultura política antiga, bem como as ocasiões em que
foi possível existir rupturas. No caso do jornal “A voz da Raça”, informativo oficial da
FNB, busquei detectar as propostas e o conjunto de idéias que norteavam a Frente, assim
como sua estrutura interna e a sua estratégia de luta.
A pesquisa no jornal “Clarim d’Alvorada” foi dividida em dois momentos. No
período entre 1924, ano de sua fundação, e 1931, a pesquisa revelou como as lideranças
negras vinham se organizando antes da FNB. E na medida que o grupo do “Clarim”
participou da fundação da Frente, sua análise revelou também o que os integrantes do
jornal mais importante da imprensa negra da época, esperavam que fosse a FNB, que tipo
de organização queriam e quais eram as suas esperanças no momento da adesão. No
período entre 1932 a 1937, os principais integrantes do jornal abandonaram a Frente e
passaram a criticá-la com veemência, propondo novas estratégias de luta. Busquei,
portanto, nesse período, identificar as principais insatisfações desse grupo diante das
propostas da FNB, além da postura e a trajetória assumida pela Frente, que a
impossibilitou de representar o discurso daquelas lideranças negras. No jornal “A
Chibata” foi adotado o mesmo procedimento do segundo período do jornal “Clarim
d’Alvorada”, já que esse jornal foi editado por dissidentes da FNB que também
criticavam a sua atuação. O jornal “ O Progresso” foi escolhido entre tantos outros da
imprensa negra, por ter o seu período de publicação coincidindo com o período de
fundação e atuação da FNB. Busquei, através dele, investigar como as lideranças negras,
que não estavam participando diretamente, se posicionavam diante da FNB.
14
Leite, José Correia Leite. ... E disse o velho militante José Correia Leite. Organização e
textos de Luiz Silva ( Cuti ). São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
17
O livro “E disse o velho militante” revela, a partir da análise do próprio José
Correia Leite, a sua experiência como integrante da Frente e um dos pioneiros na luta
contra a discriminação racial. O autor narra quais eram as suas expectativas ao ajudar a
fundar a FNB e quais foram as principais desilusões que levaram à sua saída.
Para a análise e compreensão dos discursos apresentados nos jornais da imprensa
negra, especificamente no caso do “A Voz da Raça” e no “Clarim d’Alvorada”, é
essencial levar em conta, além da própria mensagem, a relação entre o locutor, o ouvinte
e o contexto em que o discurso foi produzido. O Ouvinte possui um papel decisivo na
construção do discurso:
“... o locutor tem necessidade de ter garantido um certo número de
significações que considera suficientemente aceitas e assimiladas pelos
ouvintes, e cujo desconhecimento pode levar o ouvinte a simplesmente
recusar o discurso que lhe é dirigido, colocando em risco a tentativa de
o locutor fazer valer sua intenção.”
15
Há uma finalidade prática e um caráter individualizado no discurso, composto e
refletido pela ação do locutor. Entretanto, o fato do discurso ter uma fisionomia
individual, não o exime da necessidade de sujeitar-se à um quadro de “condições de
produção”.
A análise não se limita a sistematizações gramaticais. Procurei trabalhar com os
textos e as informações publicadas nos jornais atentando menos para a quantidade e a
repetição de determinadas palavras, do que para a forma na qual as palavras se articulam,
formando um sistema de significações. Isto não significa que busquei apenas um único
sentido fundamental, ignorando e negando as ambigüidades presentes no texto. Essas
ambigüidades são levadas em conta, na medida que representam pistas importantes não
só para nos revelar a intenção do locutor, como também para nos fazer entender a
amplitude do alcance e a diversidade dos ouvintes de certos discursos.
O contexto, a conjuntura política dos anos de 1930, será ponto fundamental para a
compreensão da Frente Negra. Mas buscar-se-á “constituir a pluralidade dos contextos
15
Debert, Guita Grin.Ideologia e Populismo. São Paulo: Ed. T. A . Queiroz, 1979. P.31
18
que são necessários à compreensão dos comportamentos observados”.
16
De acordo com
as variações das escalas de pesquisa, nos deparamos com inúmeras realidades. A cada
combinação diferente de situações particulares, mais conclusões e respostas podemos
obter.
16
Revel, Jacques. Op. Cit. P. 27.
19
CAPÍTULO I
“A AUSÊNCIA DO ACASO”
O contexto político, econômico e cultural que determinou o surgimento da
Frente Negra Brasileira.
As associações de negros vinham sendo fundadas desde 1902, todavia,
inicialmente, não se propunham à arregimentação da raça negra, possuindo um caráter
mais cultural e beneficente. Essas associações, mesmo não propondo uma luta política
organizada, foram de vital importância para a ressocialização do negro, cultivando o
auto-respeito e a solidariedade.
Em 1930, o movimento negro adquire um conteúdo novo. Por mais que já
existissem grupos negros e associações que reivindicavam e denunciavam a situação do
negro, foi nesta década, mais especificamente com a Frente Negra Brasileira, que as
lideranças negras buscam arregimentar uma massa de adeptos, criando estratégias mais
eficientes na tentativa de alcançar definitivamente seus objetivos.
O que proponho nesse capítulo é demonstrar que o surgimento da Frente Negra
Brasileira, na cidade de São Paulo, e no ano de 1931, não ocorreu por mero acaso, ou
seja, não representou um resultado natural do desenvolvimento e do crescimento do
movimento negro brasileiro.
Primeiramente, identifico na “Revolução de 1930” o grande incentivo político para
a organização e estruturação da Frente Negra Brasileira, na medida que as lideranças
negras, motivados pela mudança do regime político e pela recomposição das elites
brasileiras, integram-se verdadeiramente na luta “pela conquista efetiva de oportunidades
e garantias sociais legalmente consagradas pelo novo regime”, como salientou Florestan
20
Fernandes.
17
Posteriormente busco demonstrar que o surgimento da Frente na cidade de
São Paulo ocorreu devido à características muito próprias dessa cidade, que deu um
verdadeiro “salto” em direção à industrialização e recebeu uma quantidade incomparável
de imigrantes. Por último, não menos importante, identifico nesse momento - início da
década de 1930- um período de transição cultural, no que diz respeito às relações raciais.
A chegada de Getúlio Vargas ao poder, com uma política de valorização da “raça
mestiça”, assim como a publicação de “Casa-Grande e Senzala”, do sociólogo Gilberto
Freyre, acabam por eliminar a hegemonia das teorias biológico-deterministas e do
racismo científico, que tanto prejudicaram os negros, eliminado sua auto-estima e
dificultando a sua conscientização e organização.
1.1 - O INCENTIVO POLÍTICO: “A REVOLUÇÃO DE 1930”.
A “Revolução de 30” representa um dos fatores determinantes na consolidação e no
amadurecimento do movimento negro no Brasil. Desde o início do século há associações
de negros, contudo, as mudanças decorrentes da “Revolução de 30” propiciaram às
lideranças negras mais ambição e esperança de verdadeira participação política.
O termo “revolução” é utilizado aqui de forma pragmática. Não cabe, no contexto
desta pesquisa, uma análise mais prolongada acerca de sua adequação aos eventos de que
trata. A questão principal é que, como veremos mais adiante, para os integrantes da
Frente Negra Brasileira, o movimento de 1930 significou de fato uma revolução. Além
disso, como afirmou Lincoln de Abreu Penna:
“Empregando-se com rigor o conceito de revolução, é evidente
que o que aconteceu em 1930 não se enquadra nessa concepção. À
primeira vista, estaria mais próximo de um golpe de Estado, pelo
menos seus cruciais acontecimentos conduzem a esta avaliação. Mas,
17
Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática,
1978. Volume I. P. 10 e 11.
21
visto no decorrer do tempo, seus desdobramentos induzem a uma
reavaliação se a intenção é privilegiar o processo histórico”.
18
Segundo o autor, a forte presença de grupos oligárquicos no interior da Aliança
Liberal, impediu que os fundamentos estruturais da sociedade fossem afetados. Todavia,
o movimento de 30 promoveu uma verdadeira revolução, se formos considerar as futuras
relações entre o Estado e a Sociedade, na medida que “elevou, por exemplo, o nível das
aspirações políticas de parcelas expressivas da população até então excluídas do
processo político do País”.
19
Essa citação é exemplar, introduz e reflete claramente a
importância de 1930 para a organização da população negra, que será explicitada a
seguir.
Por sua importânc ia e sua influência para o início da estruturação do movimento
negro, e mais especificamente da Frente Negra Brasileira, cabe aqui uma breve análise
sobre o que representou a “Revolução de 30” no Brasil. Não me proponho a fazer, de
forma alguma, um estudo denso, seguido de uma nova interpretação. Mesmo porque,
acredito que esse tema já foi suficientemente estudado por vários autores e partindo de
diferentes matrizes teóricas. A minha interpretação sobre a “Revolução” não se fixa em
uma única pesquisa, assim como não está enclausurada em nenhuma matriz teórica ou
tendência historiográfica. O que entendo hoje sobre o tema, foi construído a partir da
colaboração de vários trabalhos, que ao meu ver não se contradizem na sua essência, ao
contrário, se complementam.
A “Revolução de 30” foi uma revolução “pelo alto”, de acordo com a denominação
utilizada por Barrington Moore Jr.
20
Segundo o autor, foram três as principais vias de
transição de uma sociedade pré-capitalista para uma sociedade capitalista. A primeira
delas possui como exemplos principalmente a Inglaterra, a França e os EUA. Neste caso,
a transição para o capitalismo consistiu de “assaltos” político-militares por parte de
grupos sociais com base econômica independente. Um segundo caso teria como
principais exemplos a China e a URSS, e se caracterizaria pela ausência de um processo
18
Penna, Lincoln Abreu. Uma História da República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. P.
162.
19
Ídem. P. 183.
20
Moore, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins
Fontes, 1983.
22
de modernização, que por sua vez acabava por abrir espaços para uma intervenção das
massas camponesas. O terceiro caso seria a denominada revolução “pelo alto” ou via
prussiana, na qual as lideranças agrárias tradicionais lideravam o processo de
modernização preservando suas formas autoritárias de controle social. Os principais
exemplos identificados pelo autor foram a Alemanha e o Japão.
Luís Werneck Vianna também utiliza-se da análise de Barrington Moore e afirma
que o capitalismo no Brasil, porque não hegemônico, não pode se sustentar na sua forma
pluralista e ortodoxa liberal.
21
A acumulação capitalista brasileira baseou-se na recriação
de relações de trabalho não-capitalistas, uma vez que a agroexportação continuava a
desempenhar papel-chave na geração de divisas, necessárias à importação e ao
investimento necessário para a industrialização. Segundo o autor, o Brasil seguiu a via
prussiana porque a burguesia industrial não foi capaz de estabelecer sua hegemonia sobre
a sociedade civil. Vale ressaltar que embora a elite industrial brasileira não fosse
hegemônica no processo inaugurado em 1930, ela seria a principal beneficiária das
mudanças políticas e econômicas que se processaram, sendo contudo, indispensável o
apoio do Estado. Se nos anos 1920 o empresariado insistia na manutenção dos postulados
liberais, recusando as legislações do mercado de trabalho, ao final, se convenceriam que
apenas um Estado não-liberal e coorporativo seria capaz de assegurar o processo de
acumulação capitalista.
Na opinião de Werneck Vianna, no período de 1891-1919 há no Brasil um
momento de ortodoxia liberal, que impede a interferência do Estado na economia. Já no
período entre 1919-1930 o governo se obriga a legislar sobre as relações de trabalho
devido à ação reivindicatória dos movimentos operários. A burguesia industrial vai
resistir ao máximo às tentativas de legislar sobre o mercado de trabalho. Foram as ações
dos operários as responsáveis pela ruptura do liberalismo ortodoxo e pela burguesia ter
cedido na construção do Estado coorporativo. Quem vai promover a transição para uma
sociedade moderna é a elite agrária, que até se propõe a normatizar as relações de
trabalho, em resposta às reivindicações operárias, mas principalmente buscando aumentar
suas bases sociais, mesmo porque, os trabalhadores rurais não seriam beneficiados por
essas legislações.
21
Vianna, Luís Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1978.
23
Assim como afirmou Sônia Regina Mendonça, a construção do capitalismo no
Brasil esteve diretamente ligada à ação do Estado.
22
Estado, nesse caso, significa as
tradicionais elites agrárias, que propõem uma modernização extremamente controlada,
objetivando resguardar suas formas autoritárias de controle social, preservando o caráter
conservador do sistema político.
Durante a Primeira República, de 1891 a 1930, o poder estava nas mãos das
oligarquias rurais ligadas ao setor agro-exportador. Este primeiro momento republicano
ficou marcado pela não participação popular nos pleitos eleitorais, pelas fraudes e por
uma política de compromissos entre o poder local e os governos estadual e federal.
A legitimação do poder político, agora referendada pelo voto, exaltava a
importância dos líderes locais, na medida que estes influenciavam diretamente o
eleitorado rural. A influência que os coronéis exerciam sobre o eleitorado rural é
compreensível. Vivendo em condições miseráveis, os trabalhadores rurais dependiam dos
“favores” dos coronéis para tudo: alimentação, saúde, moradia, trabalho... Segundo
Victor Nunes Leal, é perfeitamente compreensível que o eleitor da roça obedeça à
insistente orientação do coronel em votar em determinado candidato, afinal, além de lhe
ser concedido algum benefício, o ato de votar lhe era completamente indiferente.
23
A essência do coronelismo parte, portanto, do total apoio - por parte dos coronéis -
aos candidatos “oficiais” nas eleições estaduais e federal. Em contrapartida, os governos
estaduais e federal concedem carta-branca, ou seja, autonomia extra-legal, aos chefes-
locais em todos os assuntos relativos ao município.
A liderança e prestígio de um coronel baseava-se nos benefícios que ele trazia para
sua comuna. Segundo Victor Nunes Leal, o coronelismo é muito mais produto da
decadência do que do vigor dos senhores rurais, porque é na dependência da legitimação
de seu poder ante esferas superiores que o poder do coronel se recria. Foi principalmente
a fraqueza financeira dos municípios, que os tornavam tão dependentes de compromissos
com os governos estaduais e federal. A debilidade dos fazendeiros só aparentava força
em contraste com a massa de miseráveis que vivia sob suas “asas”.
22
Mendonça, Sônia Regina. Estado e Economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Graal, 1985.
23
Leal, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
24
Assim como Victor Nunes Leal define o coronelismo como uma política de
compromissos, Francisco Weffort, a partir dos textos de Gramsci, utilizou a expressão
“Estado de compromisso” para definir o Estado brasileiro do pós-30.
24
O Estado de
compromisso seria a resultante de uma conjuntura onde nenhum setor de classe obtinha
condições de construir sua hegemonia, em decorrência da crise cafeeira, da fraqueza dos
demais setores e da dependência da classe média em relação aos interesses tradicionais.
Francisco Weffort, assim como Werneck Vianna, conclui que não havia nenhum setor de
classe capaz de impor sua hegemonia no contexto de 1930. Há várias forças em jogo, e
todas dependem umas das outras para permanecerem no controle político.
Um outro historiador, Boris Fausto, embora não concorde com a interpretação que
identifica na Revolução de 30 a ascensão ao poder da burguesia industrial, como afirma
Werneck Vianna, ou a ascensão ao poder da classe média, como concluiu Virgílio Santa
Rosa, também utiliza-se da expressão “Estado de compromisso” ao definir o momento
pós-30.
25
Para Boris Fausto, a tentativa de vincular episódios revolucionários à ascensão
de uma classe, deriva de uma leitura simplista da história do ocidente europeu e de uma
historiografia vinculada principalmente ao marxismo. Todavia, conclui que o “Estado de
compromisso” vivido no pós-30 foi uma resposta para o vazio de poder que se instaurou
após a Revolução, devido à decadência política da burguesia do café e da incapacidade de
outros setores de assumir o poder de modo exclusivo. Embora utilizando-se de matrizes
teóricas diferentes, os autores concordam que não havia hegemonia de nenhum setor de
classe no pós-30. O Estado brasileiro passou a se organizar a partir de uma recomposição
das elites políticas, tendo como característica o precário equilíbrio entre as forças sobre as
quais se fundara, movendo-se numa difícil margem de compromissos.
A nova recomposição das elites políticas, desencadeada pelo fim da hegemonia do
setor agro-exportador cafeeiro, assim como a nova redefinição do papel do Estado,
funcionaram como estímulo e esperança para as lideranças negras. Todavia, não podemos
ignorar como determinante nesse processo de transformações, a maior conscientização e
participação política das classes trabalhadoras. Como afirmou Werneck Vianna, no início
do século XX, há uma forte ação reivindicatória dos operários em busca de direitos
24
Ver, Weffort, Francisco. Classes populares e política. Tese de Doutoramento , SP, 1968.
25
Fausto, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
25
sociais e melhoria da qualidade de vida. De acordo com Ângela de Castro Gomes, no
período de 1891-1934, a “palavra” está com as lideranças trabalhadoras e são elas que
colocam suas demandas publicamente.
26
Anarquistas, comunistas e cooperativistas
começam a criar uma identidade para os trabalhadores, e, embora com propostas
distintas, possuem algumas concepções semelhantes do que diz respeito à valorização do
trabalhador. Segundo a autora, a Constituição de 1934 constitui um marco no tipo de
competição que vinha sendo travada entre diferentes propostas de participação política,
sendo o período de 1931-1933, um momento de franca disputa física e ideológica pela
liderança do movimento operário organizado, caracterizado pela existência paralela de
um sindicalismo oficial e um sindicalismo independente. O maior debate e
conscientização dos trabalhadores acabaram por influenciar as lideranças negras a se
unirem, na tentativa de reverter o estado de pauperização vivido pelos negros.
A “palavra estava com as lideranças trabalhadoras”, eis aqui um fio de meada que
levou Edgar De Deca a tentar elaborar um “contra-discurso” acerca dos eventos da época,
procurando mostrar como a memória do que se convencionou chamar de “a revolução de
1930”, elaborada a posteriori pelos vencedores, cumpre o papel de ocultar a luta de
classes do período. Buscando dar voz aos vencidos, De Deca propõe uma periodização
distinta da tradicional, enfatizando o ano de 1928, considerando alternativas políticas
possíveis, à época, mas que foram derrotadas no contexto das lutas de classes de então.
27
De todo modo, o que cumpre ressaltar é que o início da participação política,
institucional, do movimento negro, ocorreu num contexto histórico bem específico, onde
vários fatores influenciaram na sua organização. A abolição, o fim da primeira Guerra, a
imigração e os movimentos sociais da década de 20 foram determinantes nesse processo.
Entretanto, foi o extremo estado de desemprego e miséria, agravados com a crise de 29,
assim como as mudanças políticas desencadeadas com a revolução de 30, os fatores
essenciais nesse processo.
Os anos 30 foram marcados por uma considerável mudança na política brasileira e
pela inserção de Getúlio Vargas no cenário político nacional. As reflexões sobre o
governo Vargas, ainda hoje, são consideravelmente influenciadas pelas pesquisas que o
26
Gomes, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
27
De Deca, Edgar Salvadori. O Silêncio dos Vencidos. São Paulo, Brasiliense, 1981.
26
identificam, estritamente, como um governo do tipo populista. (De acordo com esta
interpretação, não fosse pela permanência das elites latifundiárias, o governo Vargas
representaria uma ruptura total com o passado). A utilização do conceito “populismo”
para compreender o período Vargas não é utilizado apenas por historiadores brasileiros.
Eric Hobsbawn o caracteriza como populista-nacionalista
28
. Grosso modo, esta definição
descreve um Estado centralizador e intervencionista, representado por um líder
carismático, que apresenta-se como “salvador”; um governo nacionalista, empenhado no
desenvolvimento nacional e na industrialização, supostamente em luta contra as elites
oligárquicas, em benefício dos trabalhadores, recorrendo com freqüência à propaganda
doutrinária e à repressão política. Esse conceito, no entanto, não é suficiente para explicar
a influência e a permanência de Vargas no poder.
Parece inquestionável, contudo, a idéia que identifica a política trabalhista como
o maior sustentáculo do governo Vargas. No entanto, o longo alcance desta política não
deve ser entendido apenas por uma lógica material, representada pela implantação do
salário mínimo e da legislação do trabalho de uma forma geral. Para compreender o que
de fato representou Vargas para a história do Brasil, é necessário introduzir a lógica
simbólica intrínseca ao projeto, representada pela criação da imagem de Vargas como
“pai dos pobres” e doador da legislação trabalhista
29
. O Estado varguista busca, nos
próprios discursos dos trabalhadores da década de 20, elementos essenciais na construção
de sua auto-imagem, intencionando representar a própria identidade coletiva da classe
trabalhadora.
A denominada “Segunda Abolição”, ou seja, a luta pela verdadeira libertação e
integração do negro, enquadra-se no contexto de inquietações e esperanças políticas que
culminaram com a Revolução de 30. A revolução possui um papel fundamental na
organização da FNB, visto que as perspectivas de mudanças sociais contribuíram para o
processo de conscientização e incentivaram as lideranças negras a se juntarem à agitação
contra a Primeira República.
28
Hobsbawn, Eric. Era do Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. P.7.
29
Ver Gomes, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. 2º ed. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994.
27
Segundo Andrews, os negros se encontravam profundamente excluídos da
sociedade.
30
A “República-Velha”, além de representar os interesses das oligarquias
latifundiárias, limitando a participação política e ignorando os interesses e as
necessidades dos recém-libertos, havia incorporado as doutrinas do racismo científico e
da “teoria de branqueamento”.
A “Revolução de 30” representava, portanto, não apenas o fim da República
Velha, mas, sobretudo, a possibilidade de participação política; e a própria expansão
inicial da FNB pode ser explicada pelo “... sentimento generalizado entre os negros sobre
as novas oportunidades de participação política criadas pela mudança do regime”.
31
Nas palavras de um participante dos encontros da época:
“ (...) o negro queria participar, pois se sentia como o maior
beneficiado daquela revolução. Apeados do poder foram os
escravocratas, os homens que sempre espezinhavam os negros. Então
era a hora de o negro participar.”
32
30
Andrews, George Reid. O protesto político negro em São Paulo 1888-1988. In: Cadernos
Cândido Mendes nº21. Centro de estudos Afro-Asiáticos, dezembro de 1991
31
Idem. P. 32
32
Movimento de arregimentação da raça negra no Brasil. Diário de São Paulo, 17 de setembro
de 1931, p.5; Depoimentos. Cadernos Brasileiros, nº 47 ( 1968), p. 21. In: Andrews, Geroge
Reid, op.cit. p. 33
28
1.2 - O INCENTIVO ECONÔMICO: A PAUPERIZAÇÃO DO NEGRO NA
CIDADE DE SÃO PAULO.
Um outro fator foi decisivo na organização e estruturação do movimento negro: o
total estado de desamparo vivido pela população negra no período pós-abolicionista. Ao
contrário do que as teorias racistas afirmavam, a dificuldade dos negros de ascenderem
socialmente, não eram decorrência de nenhuma herança genética e hereditária, nenhum
“vício da raça”, mas sim efeito de um completo estado de abandono e descaso. Nas
palavras de José Correia Leite:
“ Sempre é bom reprisar o óbvio sobre a questão do negro ter
saído da noite escura de três séculos de escravidão e caído na
marginalidade. Depois daqueles horrores todos, houve o desamparo,
nenhum apoio. Nós estávamos próximos de “88” nos anos 20. Eram
trinta e poucos anos. Dava a impressão que a gente estava ainda com a
sombra da senzala na frente. O negro - como até hoje continua sendo
era um elemento desamparado, não tinha retaguarda. Era vítima de
tudo quanto era injustiça.”
33
Na opinião de Florestan Fernandes, toda essa situação de desamparo, abandono e
pauperização do negro foi mais aguçada na cidade de São Paulo, exatamente o local de
organização da Frente Negra. Corroboro com essa opinião e acredito que a Frente não
surgiu em São Paulo por mero acaso. O peculiar desenvolvimento econômico paulista
influenciou diretamente a organização não só da Frente, mas de várias outras associações
e clubes ligados aos negros.
O cativeiro e a falta de assistência e interesse, por parte da elite brasileira, sobre as
condições sociais dos negros, eram os principais responsáveis pela péssima situação dos
ex-escravos e seus descendentes. Após a abolição os negros não tinham onde morar. A
33
Leite, José Correia Leite. ... E disse o velho militante José Correia Leite. Organização e
textos de Luiz Silva ( Cuti ). São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. P. 81.
29
dificuldade de conseguir trabalho estável e bem remunerado, os levou para a rua ou para
os cortiços. Viviam em péssimas condições, faltava o mínimo de higiene. Pequenos
espaços eram compartilhados por várias pessoas que se alimentavam, na maioria das
vezes, de restos trazidos da rua ou do trabalho. Segundo Florestan Fernandes, faltavam
uma estrutura familiar e sentimentos de solidariedade e responsabilidade entre os negros.
As crianças ficavam sozinhas enquanto as mães estavam trabalhando ou se prostituindo.
Devido ao subemprego dos pais, as crianças ingressavam no mercado de trabalho
precocemente, também de forma instável, mal remunerada e muito pouco valorizada,
criando um novo ciclo vicioso: “ Ir à escola exigia uma vida organizada e
disponibilidade de recursos. Raramente as duas condições se apresentavam em
conexão”.
34
A péssima qualidade de vida e a ausência de formas de lazer, direcionava-os para o
alcoolismo e o sexo desregrado. A carência de espaço nos cortiços, fazia com que as
relações sexuais fossem realizadas na frente de outras pessoas, inclusive crianças. Era
através do sexo que os homens e mulheres negras se igualavam aos outros ( ou
acreditavam que ...). Essa postura diante do sexo, assim como a ausência da estrutura
familiar e de laços de solidariedade, podem ser remetidas, na opinião de Florestan
Fernandes, ao passado escravista.
O agravamento da vida social desorganizada, a dificuldade de manter o emprego, a
desilusão e desesperança, fizeram com que os negros deixassem de acreditar em sua
capacidade e possibilidade de inverter essa situação. Interiorizaram uma aceitação
fatalista do presente, não só não buscando soluções, como principalmente agravando-as,
desqualificando totalmente as suas vidas, caminhando para os vícios como o alcoolismo e
a prostituição, assim como para a criminalidade. O que muitos denominavam de “vícios
da raça” não eram inatos, e sim um reflexo, uma reação contra o abandono social.
34
Fernandes, Florestan. A Integração do Negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática,
1978. Volume I. P. 219. (José Correia leite foi um caso exemplar, impossibilitado de freqüentar o
grupo escolar devido à ausência dos pais.)
30
“ Se a bebida, o jogo e as maquinações criminosas ganharam
certo relevo, aqui e ali, isso não deve ser atribuído a uma
predisposição incoercível, criada pela ‘natureza do negro’ em situação
grupal. Porém, a circunstâncias econômicas, sociais e culturais bem
conhecidas, que barravam o caminho para outras modalidades de
ocupação construtiva do ócio ou de utilização das aptidões do
trabalho.”
35
“ Por isso, não é de se estranhar que muitos preferissem trilhar
outro caminho, para “não ser otário”, “não bancar o trouxa” ou “não
vender o sangue como escravo”. O vagabundo, o ladrão e a prostituta
enfrentavam riscos bem menores e construíam um destino
comparativamente melhor. Em certo sentido, só eles conseguiam êxito
e podiam ostentar as marcas dos seus triunfos no gênero de vida que
levavam, na roupa que vestiam e no fascínio que acabavam exercendo
na imaginação dos outros.”
36
“ A pauperização do negro e do mulato na cidade de São Paulo
possui traços específicos. Ela decorre da degradação que ambos
sofreram com a perda do monopólio de certos serviços e sua exclusão
concomitante, só corrigida incidentalmente, do sistema emergente de
relações de produção. Trata-se, em suma, de uma pobreza associada
quer à privação, em larga escala, de fontes regulares de ganho e de
sustentação, quer à adaptação inevitável a ocupações flutuantes,
descontínuas e infimamente retribuídas.”
37
Estas transcrições bem revelam a opinião de Florestan Fernandes.
São Paulo foi a única cidade brasileira que deu um verdadeiro “salto” na
consolidação da ordem social competitiva. Com a crise do escravismo, no final do século
XIX, e com o rápido crescimento econômico proporcionado pela grande indústria
cafeeira, passa a predominar, na cidade, relações capitalistas de produção. O surto urbano
coincide com a imigração, e ambos são produtos da expansão econômica interna
desencadeada pelo café. São Paulo importa mão-de-obra em proporções incomparáveis
com qualquer outra região do país, desalojando os negros recém-libertos, das
oportunidades de trabalho urbano:
35
Fernandes, Florestan. Op. Cit. P. 166.
36
Idem. Op. Cit. P. 145.
37
Ibdem. P. 223.
31
“... a presença do imigrante operou como um fator indireto de
desalojamento do negro ou do mulato do sistema de produção ,
portanto, de perpetuação indefinida do estado de anomia, responsável
pelos índices negativos de crescimento vegetativo da população
negra”.
38
A nova ordem social, somada à grande entrada de imigrantes, dificultou muito a
integração do negro na sociedade. Durante a escravidão, apesar de toda a crueldade do
regime, os negros tinham moradia e alimentação. Com a abolição, realizada no Brasil
sem nenhum tipo de assistência, os ex-escravos tornaram-se desamparados e muitas
vezes, despreparados para esse “novo mundo do trabalho”. O elevado índice de
imigrantes proporcionou uma alta concentração demográfica, acirrando ainda mais essa
nova ordem social competitiva. Como escreveu Fernandes:
“ Esta situação, agravou, ao invés de corrigir, a exclusão social
vivida e transplantada do cativeiro. (...) As condições de anomia social
não só preservaram o nível de pobreza inicial da população negra
paulistana. Agravaram-na, continuamente, de várias maneiras,
convertendo o pauperismo numa constante do estilo de vida do negro
na cidade e a pauperização no processo de seu ajustamento normal ao
mundo urbano”.
39
A dificuldade de integração na nova ordem deveu-se, principalmente, às barreiras
impostas aos negros e mulatos nas suas tentativas de tornarem-se operários. Essa
dificuldade possui causas e consequências determinantes para a vida do negro. Segundo
Florestan, a falta de preparo técnico, a valorização do trabalhador estrangeiro e o próprio
retraimento dos negros, foram as principais causas. As consequências diretas e imediatas
dessa situação, dificultou e retardou a integração do negro no mercado de trabalho formal
e estável.
40
No comércio, dificilmente empregavam-se negros. Nas fábricas, os negros só
38
Fernandes, Florestan. Op. Cit. P. 132.
39
Idem. P. 99 e 100.
40
Cabe aqui uma ressalva. Havia exceções. Há estudos sobre a escravidão no Brasil que
apontam para a existência de grande quantidade de ex-escravos, negros livres, antes da
32
faziam serviços rejeitados pelos imigrantes, os mais mal pagos e que exigiam pouca ou
nenhuma especialização. As mulheres negras eram, via de regra, domésticas e os homens,
seguranças e capangas. Enfim, havia um círculo vicioso que prendia o negro aos serviços
instáveis e pouco valorizados, impedindo ou dificultando muito, a sua transição para um
novo status social, um novo lugar na sociedade urbana paulista. Continua Florestan
Fernandes:
“ ( essa perspectiva) ... que o mantinha eternamente preso aos
“serviços de negro”, que consumiam o físico e a moral do agente de
trabalho, dando-lhe em troca parca compensação material e uma
existência tão penosa quanto incerta.”
41
“ ... a impossibilidade de “ganhar a vida” de maneira segura,
compensadora e constante, através de ocupações conspicuamente
urbanas, está na própria raiz de todos os males que se abateram sobre
a “ população de cor” da cidade de São Paulo.”
42
Enfim, a situação sócio-econômica dos negros acabava por reforçar o racismo,
servindo de justificativas para as teorias racistas. As teorias racistas, por sua vez,
reforçavam e escondiam as desigualdades, eximindo a elite dominante de qualquer culpa
ou responsabilidade.
A enorme dificuldade econômica sofrida pela população negra durante o período
pós-abolicionista, especificamente em São Paulo, foi consideravelmente agravada pela
crise de 1929, que gerou mais desemprego, fome e miséria. A dificuldade de
sobrevivência motivou-a a lutar na tentativa de reverter, ou pelos menos de minimizar o
estado de pobreza e miséria vivido por eles.
abolição. A maior mobilidade social e facilidade em conseguir carta de alforria, em comparação
com os EUA, fez com que muitos negros já estivessem habituados e inseridos no mundo urbano
do trabalho. Sobre a mobilidade social dos negros ver Luna, Francisco Vidal e Costa, Iraci Del
Nero. Minas Colonial: economia e sociedade. São Paulo: FIPE e Pioneira, 1982; e Bairickman,
Bert. As cores do escravismo: escravistas pretos, pardos e cabras no Recôncavo Baiano, 1835.
In: População e Família. Nº2, 1999. Acerca do trabalho urbano da população negra, ver
Nogueira, Marilene Rosa. Negro na Rua: a nova face da escravidão. São Paulo: Hucitec, 1988.
41
Fernandes, Florestan. Op. Cit. P. 145.
42
Idem. P. 141.
33
1.3 - O INCENTIVO CULTURAL: A SUBSTITUIÇÃO DA TEORIAS RACISTAS
CIENTÍFICAS .
O estudo da Frente Negra Brasileira transcende a análise do movimento negro nos
anos 30. A sua pesquisa e análise exige um retorno ao final do século XIX, às teorias
racistas travestidas de científicas e às péssimas condições de sobrevivência sofridas pelos
ex-escravos e seus descendentes diretos.
43
A segunda metade do século XIX, mais especificamente a década de 1870,
representou um momento crucial, no que diz respeito ao problema das relações raciais no
Brasil. Durante esse período, além da desestruturação do regime escravocrata brasileiro,
instaurado no Brasil desde o início do século XVI, iniciam-se as discussões sobre a
adoção de um novo regime político. Paralelo à isso, temos o amadurecimento e
fortalecimento de centros de estudos nacionais, que buscam diante de todas essas
transformações, pensar e analisar projetos para uma nova nação que estava por começar.
A guerra do Paraguai, o fim da escravidão e o republicanismo fizeram da segunda metade
do século XIX um momento de inovação. A elite intelectual tentava criar um esboço de
uma nova nação que, ao mesmo tempo em que buscava se libertar de certas amarras do
43
Alguns autores utilizam o termo racialista para definir o campo ideológico e/ou teórico em que
o conceito de “raça” é reconhecido e tem vigência. Não há, todavia, um consenso em torno de
uma única definição conceitual do racialismo. Antônio S. A . Guimarães, por exemplo, baseia-se
em Kwame Anthony Appiah, que define racialismo como uma doutrina segundo a qual “há
características hereditárias, partilhadas por membros de nossa espécie, que nos permitem dividi-
la num pequeno número de raças, de tal modo que todos os membros de uma raça partilhem
entre si certos traços e tendências que não são partilhados com membros de nenhuma outra
raça. Esses traços e tendências característicos de uma raça constituem, na perspectiva
racialista, uma espécie de essência racial; (essa essência) ultrapassa as características
morfológicas visíveis cor da pelo, tipo de cabelo, feições faciais com base nas quais fazemos
nossas classificações formais”. Guimarães, no entanto, chama atenção para dois aspectos e
propõe algumas considerações sobre a definição elaborada por Appiah. Primeiramente, segundo
o autor, é preciso ficar claro que essa “essência racial” não possui características absolutas, ao
contrário, representa valores morais, intelectuais e culturais. Paralelo a isso, é preciso
reconhecer também que a forma de transmissão dessa “essência” é muito variada, muito mais
dependente do contexto histórico e social do que do sangue propriamente dito. Teorias
racialistas não são sinônimos, necessariamente, de teorias racistas. No entanto, toda teoria
racista possui como condição básica, ser racialista. Cf. Guimarães, A . S. A . Racismo e Anti
Racismo no Brasil. São Paulo: Ed 34, 1999. P. 27-8.
34
Império, não possuía ainda um novo projeto político claro. A mudança era inevitável e
algumas vezes até mesmo desejada. Todavia, a conservação da secular hierarquia e
exclusão social parece ter sido a motivação principal, assim como nos revela Lilia
Schwarcz:
“Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e
final da escravidão, e pela realização de um novo projeto político para
o país, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico
viável na justificação do complicado jogo de interesses que se montava.
Para além dos problemas mais prementes relativos à substituição da
mão-de-obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social
bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados
de cidadania”.
É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicações
negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o
estabelecimento das diferenças sociais”.
44
Os discursos evolucionistas e deterministas penetram no Brasil como argumento
para explicar e justificar as diferenças internas. Buscando a conservação dessa hierarquia
social, os intelectuais brasileiro, os “Homens da Sciencia”, passam a importar as teorias
cientificistas da Europa Ocidental, se auto-representando como essenciais e fundamentais
para as soluções e o destino do país. A supervalorização das ciências naturais, tendo na
biologia o grande modelo de análise, não foi feita de forma aleatória. Ao contrário,
buscavam-se em teorias claramente excludentes, leituras e usos paralelos e até mesmo
complementares, recriando novas teorias adaptadas para o caso brasileiro. O Brasil era
um país novo, desejava se apresentar internacionalmente como uma sociedade científica
e moderna. Todavia, para muitos cientistas europeus, o Brasil era o exemplo de uma
nação degenerada de raças mistas condenadas ao fracasso. Por isso mesmo, a escolha e
interpretação das teorias feita pelos intelectuais brasileiros foi sui generis. Utilizava-se o
darwinismo social e sua suposta diferença e hierarquia natural entre as raças, sem,
contudo, problematizar a questão da miscigenação. Paralelo à isso, buscava-se no
44
Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil –1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P.18
35
evolucionismo social a noção de permanente evolução e aperfeiçoamento das raças
humanas.
Muitos foram os intelectuais brasileiros que pensaram a questão racial no Brasil
inspirados no cientificismo europeu. Silvio Romero, assim como os principais autores da
época, baseou-se em pesquisadores de linha evolucionista, que buscavam explicar a
história humana através de critérios físicos e biológicos, como o meio e a raça. Segundo
Romero, a história do Brasil não deve ser entendida como a história dos portugueses, ou
dos índios, ou dos negros. A história do Brasil passa pela história de um novo tipo, o
mestiço, que não somente resulta da interseção entre os portugueses, índios e negros,
como também tem influência, nesse novo tipo, o meio físico e a imitação estrangeira.
A ideologia do cientificismo, suas investigações e conclusões, desencadearam uma
ideologia pessimista no que diz respeito ao futuro do Brasil. Sílvio Romero foi um dos
representantes desse rompimento com a anterior interpretação otimista nacionalista. Para
Romero, os fatores determinantes do atraso brasileiro seriam primários ou naturais,
secundários ou étnicos e terciários ou morais. No que diz respeito aos primários ou
naturais, os principais problemas se concentrariam no calor excessivo e nas secas, em
determinadas regiões, e nas chuvas excessivas e ausência de vias fluviais, em outras. Os
secundários referem-se, principalmente, à incapacidade das “três raças” que formaram o
Brasil. Já os terciários dizem respeito aos fatores históricos como política, legislação e
costumes, que inicialmente eram efeitos, mas que já se transformaram em causas.
Por acreditar na incapacidade das “três raças” que formaram o Brasil, Silvio
Romero insiste no branqueamento da população através da imigração constante, até
porque acredita que a miscigenação transcende o sangue, e atinge também as idéias.
Outro importante autor foi Nina Rodrigues, que, assim como a maioria dos
intelectuais da época, possuía, indiscutivelmente, uma concepção racista em relação ao
negro e ao índio. Sua originalidade e importância residem no seu interesse real em
pesquisar as populações negras trazidas para o Brasil, assim como os vestígios e a
recriação de certas heranças culturais, como a língua e a religião. Dante Moreira Leite
chega a afirmar que embora Nina Rodrigues “... sustentasse uma teoria cientificamente
inaceitável, parece ter andado perto de uma concepção cultural do negro”.
45
45
Leite, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1983. P. 236
36
Uma outra peculiaridade de Nina Rodrigues reside num certo paternalismo em
relação às “raças inferiores”. Defendeu a tese de que, tendo as raças inferiores uma
mentalidade infantil, não deveriam ser tão responsáveis quanto as raças “superiores”, ou
seja, não poderiam ter o mesmo tratamento no Código Penal. Contudo, apesar desse
racismo paternalista, sempre afirmou que a presença da raça negra no Brasil, sempre iria
constituir um dos fatores de nossa inferioridade como povo. Qualquer qualidade atribuída
a um negro, ou mestiço, derivava de alguma descendência branca. O autor aceitava
integralmente o evolucionismo do século XIX, e, na comparação com os EUA, afirmava
que o desenvolvimento daquele país somente foi possível devido à enorme presença de
brancos e à rígida separação entre brancos e negros; já no Brasil, o atraso e as más
qualidades do povo deviam-se à menor presença de brancos puros, à miscigenação e ao
clima tropical, que favoreciam os negros e os mestiços.
Ao contrário de Nina Rodrigues, as obras de Oliveira Viana eram muito criticadas
no que diz respeito às qualidades ou virtudes científicas, mesmo para os padrões da
época. Muitos o criticaram, entre eles, Nelson Werneck Sodré, afirmando que sua obra
revelava “a falsidade irremediável dos seus métodos, a falta de um mínimo de
informação, bem como suas tolices e sua fidelidade ideológica à aristocracia
brasileira”
46
. E Dante Moreira Leite acrescentou: “O que nele parece teoria é
imaginação gratuita, grosseira deformação de fatos e teorias alheias.”
47
Na opinião de Leite, no que diz respeito ao seu compromisso com a aristocracia e a
sua teoria sobre o arianismo, Oliveira Viana buscava identificar-se com o grupo
dominante, na medida que era mulato escuro. Viana afirmava que o Brasil entrou numa
fase de desorganização profunda e geral após a abolição, visto que todas as diretrizes de
nossa evolução coletiva, foram completamente quebradas e desviadas. Para ele, quando
os negros se mantinham na disciplina rígida da senzala, conservavam costumes de
moralidade e sociabilidade da raça superior, e quando foram entregues à sua própria
direção, degeneram-se. Por outro lado, faz uma distinção entre mulatos superiores e
mulatos inferiores. Os superiores estariam mais próximos dos arianos, pelo caráter e pela
inteligência, suscetíveis mesmo de arianização e capazes de auxiliar os brancos no
46
Apud. Leite, Dante Moreira. Op. Cit. P. 242.
47
Idem. P.242
37
processo de organização e civilização do país, deslocando-se para a aristocracia. Os
mestiços inferiores, por outro lado, conservavam as qualidades da raça inferior. Na
opinião de Dante Moreira Leite, poucos brasileiros escreveram palavras tão cruéis e
injustas a respeito dos negros, demonstrando a crueldade do domínio de um grupo por
outro e a hierarquização da sociedade de acordo com as raças.
Segundo Viana, o móvel de ação do comportamento é sempre psicológico e as
características psicológicas resultam das raças. Acredita numa arianização progressiva, na
medida que a imigração ariana faz com que as raças inferiores sejam absorvidas, além da
maior mortalidade de negros e mestiços. Chega mesmo a afirmar que a abolição retardou
a eliminação do africano, visto que, mantido em cativeiro, teria desaparecido mais
rapidamente, devido à espantosa mortalidade e à baixa natalidade.
Arthur Ramos reconhece as qualidades da obra de Nina Rodrigues, mas não a
repete simplesmente, renova os seus métodos e as suas teorias, sendo o grande divulgador
do novo conceito de cultura. Não absorve a doutrina de superioridade racial e denuncia os
sofrimentos vividos pelos negros brasileiros.
O fato de não ser um adepto da doutrina de sup erioridade racial não significa que
ele não era preconceituoso, pois apesar do negro não ser visto como uma raça inferior,
era possuidor de uma cultura inferior, da qual deveria se libertar. A concepção
evolucionista permanecia. Sua teoria baseava-se em dois modelos de pensamento: o
lógico, do civilizado; e o pré-logico, do primitivo. Se Nina Rodrigues fala de raça, Arthur
Ramos fala de cultura, mas ambos concluem que o negro, por ser negro, ainda não pode
acompanhar a civilização e dificulta o branco brasileiro a sair do primitivismo. A questão
é que a influência negra, seja ela racial ou cultural, foi um dos fatores do atraso da cultura
branca brasileira.
Dante Moreira Leite corrobora com a opinião de Nelson Werneck Sodré, na qual
as teorias raciais aqui empregadas seriam reflexo das doutrinas empregadas pelos
ideólogos do movimento imperialista europeu.
48
Além disso, na opinião de Thomas
Skidmore, a interpretação dessas teorias não foram feitas de forma coerente e satisfatória.
Segundo o autor:
48
Ver Sodré, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 1938
38
“ Os brasileiros liam tais autores, de regra sem nenhum
espírito crítico. E ficavam profundamente apreensivos. Caudatários, na
sua cultura, imitativos, no pensamento e cônscios disso - os
brasileiros de meado do século XIX, como outros tantos latino-
americanos, estavam mal preparados para discutir as últimas
doutrinas sociais da Europa.”
49
Dante Moreira Leite, Sodré e Skidmore compartilham a idéia de que a utilização
de tais teorias racistas e deterministas se deveu muito mais às influências externas que
propriamente às demandas nacionais.
Particularmente, concordo mais com a tese de Lilia Schwarcz, segundo a qual os
intelectuais brasileiros não absorveram de forma grosseira e aleatória as teses européias.
Ao contrário, utilizaram-se delas de forma original, sabendo extrair o que melhor lhes
convinha, na tentativa de recriar a hierarquia social e de responder às questões que se
colocavam no contexto da abolição da escravatura. Nas palavras da autora:
“ O desafio de entender a vigência e absorção das teorias
raciais no Brasil não está, portanto, em procurar o uso ingênuo do
modelo de fora e enquanto tal desconsiderá-lo. Mais interessante é
refletir sobre a originalidade do pensamento racial brasileiro que, em
seu esforço de adaptação, atualizou o que combinava e descartou o que
de certa forma era problemático para a construção de um argumento
racial para o país”
50
A autora afirma que as teorias racistas foram apropriadas tardiamente no Brasil,
mas o consumo dessas teses foi feito de forma proposital, estratégica mesmo, buscando
responder questões nacionais. Se essas teorias fossem mero reflexo do imperialismo
europeu, carentes de uma interpretação própria e de uma inserção no contexto nacional,
não teriam obtido tanta influência e não teriam sido tão absorvidas e aceitas como foram.
As suas influências e o poder exercido por elas foi enorme. O racismo científico não foi
49
Skidmore, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1976. P.13
50
Schwarcz, Lilia M. Op. Cit. P. 19
39
aceito apenas pela elite branca, e não é implausível supor que mesmo muitos negros,
interiorizassem os valores expostos por essas teorias, disseminadas pela elite dominante.
Como afirma Dante Moreira Leite:
“ o grupo dominado acaba por se ver com os olhos do grupo
dominante, a desprezar e a odiar, em si mesmo, os sinais do que os
outros consideram sua inferioridade”.
51
O próprio José Correia Leite, um dos fundadores da Frente Negra Brasileira e um
dos mais importantes líderes do movimento negro do século XX, confessava:
“ No começo eu fui influenciado pelo fato de muita gente ter
admiração pelo índio. Também entrei nessa de ser descendente de
índio. Não conheço muito bem a minha origem, mas como o índio é
uma das três raças da formação da nacionalidade brasileira, então eu
fiquei nessa de dizer que a minha descendência era de índio. Eu queria
fugir do mulatismo para entrar nessa linhagem do branco com o índio,
tirando o africano do meio”.
52
Enfim, essa breve discussão sobre as teorias racistas do final do século XIX tem por
objetivo demonstrar que grande parte dos negros, ao começarem a se organizar, estavam
impregnados desse racismo defendido como “científico”. Segundo Florestan Fernandes,
dificilmente o protesto negro da década de 1930 poderia ter ido mais longe, na medida
que naquele momento, o protesto dos trabalhadores estava muito diluído dentro da
demagogia da classe dominante.
53
A presença ainda forte dos ideais racistas dos séculos
anteriores dificultou e retardou a própria conscientização do negro, que interiorizava e
realizava como verdadeira muitas teses e conclusões dessas teorias. Na opinião de Maria
Angélica Motta Maués,
51
Leite, Dante Moreira. Op. Cit. P. 253
52
Leite, José Correia Leite. ... E disse o velho militante José Correia Leite. Organização e
textos de Luiz Silva ( Cuti ). São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. P. 53.
53
Fernandes, Florestan. Significado do protesto Negro. São Paulo: Cortez, 1989. P. 73
40
“...as lideranças da década de trinta, apesar de uma percepção
bastante aguçada da situação do negro e das formas de combatê-la,
revelam em seu discurso nítida assimilação da ideologia do
branqueamento, o que, aliás, seria difícil não ocorrer.”
54
Apesar de reconhecerem o preconceito racial e a situação miserável da população
negra, grande parte da responsabilidade dessa situação acabava sendo atribuída ao
próprio negro, que precisava realizar em si a imagem e os valores dos brancos,
abandonando “os vícios da raça”.
O grupo da Frente Negra Brasileira e do A Voz da Raça ( jornal informativo
oficial da Frente) estava sempre, através de um discurso moralista e acusatório, tentando
libertar os negros dos denominados “vícios”. O trecho seguinte, do próprio jornal, ilustra
a questão:
“ Segundo uma antiga máxima que simboliza uma verdade
profunda, é a ociosidade a mãe de todos os vícios...
Trabalhar para a grandeza do Brasil deverá ser o nosso lema,
para que sejamos respeitados e para isso é necessário guerra de
morte ao álcool e a desmoralização de nossos bailes, que está
arriscando a nossa raça e os nossos costumes, prevenindo nossa
mocidade, principalmente nossas mocinhas, que devido à isso estão
sendo preteridas nos empregos em benefício das estrangeiras...”
55
Quando Getúlio Vargas assume o poder, em 1930, apenas 42 anos após a
abolição, propondo a “construção de uma ‘nova’ cultura política nacionalista para o
país”
56
, concentra a sua ação numa política paternalista em relação aos trabalhadores,
utilizando-se, como já foi dito, dos anseios da própria classe trabalhadora. A busca de
uma nova identidade brasileira, pelo Estado varguista, leva à valorização de uma “raça
mestiça” e pacífica, que se compõe a partir das contribuições de várias raças.
54
Maués, Maria Angélica Motta. Da “branca senhora” ao ” negro herói”: a trajetória de um
discurso racial. In: Cadernos Cândido Mendes. Nº 21. Centro de Estudos Afro-Asiáticos,
dezembro de 1991. P. 121
55
A Voz da Raça. Nº46.
56
Gomes, Ângela de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996. P 207.
41
Nos anos 30, portanto, a compreensão que se possuía das relações raciais no
Brasil mudou significativamente, e essa mudança não se deveu apenas à política de
valorização do mestiço e das “três raças” que formaram o Brasil, proposta por Vargas.
Outro marco importante apontado para essa mudança foi a publicação da obra mais
conhecida do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala.. Até
então, como já foi discutido, predominava entre a intelectualidade brasileira um certo
pessimismo sobre os destinos do Brasil, proveniente das teorias racistas, travestidas de
científicas, importadas da Europa desde o último quartel do século XIX..
57
Como dizia
Nina Rodrigues:
“Para a ciência não é esta inferioridade mais do que um
fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual
do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas
divisões ou seções”.
58
Segundo Carlos Guilherme Mota, esta valorização do “mestiço”, levada adiante
por Freyre, era uma nova estratégia de um novo funcionamento do capitalismo no Brasil
(agora em bases industriais), interessado em incorporar a mão de obra de descendência
africana às fábricas que se iam multiplicando pelo país.
59
Contudo, concordando ou não
com essa interpretação, o essencial é que a publicação do livro de Gilberto Freyre marcou
uma mudança radical no que diz respeito ao assunto. Ele insistiu em que a miscigenação
racial, característica do Brasil, era um fato positivo, talvez a mais importante e melhor
herança herdada da colonização portuguesa. Gilberto Freyre remonta à própria formação
do povo português fruto do cruzamento de variados grupos étnicos, mas sobretudo
marcado pela presença do contato com os mouros para explicar a mestiçagem do Brasil.
Plástico, adaptável, africanizado mesmo, o colonizador criaria aqui na América uma
civilização única no que diz respeito à integração de três raças (índios, portugueses e
africanos) num povo moreno e mestiço. Segundo Freyre, o português não tinha orgulho
de raça, era ele mesmo já um miscigenado, e foi isso que propiciou a miscigenação.
57
Lilia Schwarcz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
58
Nina Rodrigues. Africanos no Brasil, Brasília: Editora UNB, 1988. P. 5.
59
MOTA, C. G. Ideologia da Cultura Brasileira. São Paulo: Ed. Ática, 1977. P. 60
42
A presença negra não comprometeu a colonização portuguesa e inclusive foi,
também, civilizadora do Brasil. A miscigenação, portanto, não foi degenerativa, pelo
contrário, criou o tipo de homem ideal para os trópicos. A inferioridade física se deve à
desnutrição e à sífilis, e não à raça. “ São razões históricas e corrigíveis, e não biológicas
e incorrigíveis.” Para José Carlos Reis, Gilberto Freyre é - além de genial - conservador,
continuísta e neovarnhageniano, na medida que propõe um reelogio da colonização
portuguesa.
Não se pode dizer que o chamado “mito da democracia racial brasileira” tenha
nascido com Casa Grande & Senzala, pois ao menos desde o século passado os letrados,
sobretudo os reunidos no IHGB, sustentavam existir no Brasil uma escravidão amena e
receptiva à influência dos negros.
60
Mas o livro de Freyre se converteu, de fato, no mais
bem acabado argumento da tal “democracia racial”.
Gilberto Freyre, influenciado pelo historicismo de Dilthey e pelo seu orientador,
Franz Boas, deu ênfase ao conceito de cultura, combatendo o evolucionismo biológico-
racial. As palavras são de José Carlos Reis:
“A raça não seria determinante sobre o meio cultural. Grupos
de uma mesma raça respondem diferentemente aos desafios
geográficos, econômicos, sociais e políticos, criando culturas distintas.
(...) Boas negava o determinismo, o evolucionismo, o cientificismo e se
aproximava do historicismo alemão com sua ênfase na cultura e na
relatividade dos valores”.
61
Freyre, apesar de privilegiar o conceito de cultura, não abandona o conceito de
raça. Segundo Reis, Freyre mistura meio a meio, raça e cultura. Também Ricardo
Benzaquen, nota que Freyre utiliza o conceito neolamarkiano de raça, que se baseia na
aptidão dos seres humanos para se adaptarem às mais diferentes condições ambientais e
60
Ver, por exemplo, o ensaio de von Martius, Como deve escrever a história do Brasil, premiado
pelo IHGB ainda na primeira metade do século XIX.
61
Reis, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV,
2000. P.53.
43
para incorporarem e transmitirem as características adquiridas na interação com o meio.
Logo, o conceito de raça é histórico, sendo mais efeito do que causa.
62
Durante muito tempo, as Ciências Sociais passaram a recusar o uso do conceito de
raça em suas análises. Isso ocorreu devido à definição do conceito, que, por um longo
período, esteve ligada a um argumento biológico opressivo e determinista. Atualmente, já
podemos perceber em alguns trabalhos o retorno do conceito e sua utilização. Todavia, os
que defendem o seu uso, buscam reconstruir de modo crítico essa noção. Antônio Sérgio
Alfredo Guimarães está entre os que defendem a retomada do conceito de raça, embora,
através de uma forma sociológica e nominativa, e não biológica ou natural. Para o autor,
essa é a única forma de evitar o paradoxo de impregnar de cientificidade um conceito
cuja principal razão de ser é justificar uma postura ideológica.
63
Durante o século XVI, raça significava um grupo de pessoas conectadas por uma
origem comum. A partir do século XIX, com as teorias poligenistas, começa-se a
identificar espécies de seres humanos distintos física e mentalmente. No pós guerra, com
os horrores do nazismo, a própria biologia passa a recusar o conceito de raça, que é
substituído por “população”. Conclui-se então que diferenças fenotípicas, intelectuais e
morais não podem ser atribuídas a diferenças biológicas. Percebe-se atualmente uma
necessidade de se reteorizar as “raças”, não de uma forma biológica, mas social.
64
Como
sustenta Guimarães:
“ Se as raças não existem em um sentido estrito e realista de
ciência, ou seja, se não são um fato do mundo físico, elas existem,
contudo, de modo pleno, no mundo social, produtos de formas de
classificar e de identificar que orientam as ações humanas”.
65
Para Guimarães, a necessidade de conceitualizar e analisar as raças possui um
objetivo muito claro e pragmático. O Brasil não vive em uma “democracia racial”. Há,
portanto, racismo no Brasil. Não podemos combater o racismo se negamos “ o fato de
62
Araújo, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto
Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
63
Ver Guimarães, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34,
1999.
64
O conceito de raça utilizado nesta pesquisa será baseado na definição de raça social,
elaborada por Antônio Sérgio Alfredo Guimarães.
65
Guimarães, Antônio Sérgio Alfredo. Op. Cit. P. 64.
44
que a idéia de raça continua a diferenciar e privilegiar largamente as oportunidades de
vida das pessoas”.
66
Alguns cientistas sociais afirmam que no Brasil não há preconceito racial, mas
preconceito de cor. Este é o caso de Degler, que afirma ser a aparência e não o legado
genético ou racial, o determinante no caso brasileiro. Segundo o autor, o Brasil é “ uma
sociedade na qual as distinções são feitas entre uma variedade de cores, e não entre
raças, como nos Estados Unidos.”
67
Parece inquestionável que, de fato, isso ocorre no Brasil. Contudo, vale ressaltar o
parêntese feito por Guimarães, que afirma ser a cor uma imagem figurada da raça:
“... alguém só pode ter cor e ser classificado num grupo de cor
se existir uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum
significado. Isto é, as pessoas têm cor apenas no interior das ideologias
raciais”.
68
Os estudos sobre racismo no Brasil não podem ser compreendidos de forma
homogênea. A diversidade histórica e social das áreas estudadas representa um fator
diacrítico nas pesquisas. Para Guimarães, os estudos realizados na Bahia e no norte do
país revelou a preservação das interpretações de Gilberto Freyre e Donald Pierson, nas
quais o preconceito racial era fraco, senão inexistente. Segundo Pierson, o Brasil seria
uma sociedade multirracial de classes. Por outro lado, nas pesquisas realizadas no sul e
sudeste do país, identificou-se a existência de um preconceito racial forte, porém negado.
Um anti-racismo, o preconceito de ter preconceito.
As interpretações sobre racismo, preconceito e grupos raciais são diversas,
dependem dos métodos utilizados e da linha teórica seguida. Para os marxistas, os grupos
raciais são fenômenos da estrutura social. Mas são as classes, e não as raças, as categorias
mais importantes de dominação política.
66
Idem. P. 64.
67
Degler, Carl N. Neither Black or White. Madison: University of Wisconsin Press, 1991. In:
Guimarães, A. S. Alfredo. Op. Cit. P. 43.
68
Guimarães, A. S. Alfredo. Op. Cit. P. 44.
45
Segundo Florestan Fernandes, o preconceito de cor surge, no Brasil, da tentativa
das oligarquias dominantes de preservarem os seus privilégios, mesmo após a abolição. O
preconceito não existe devido à escravidão, e sim devido à competição e à busca de
defesa dos privilégios. Portanto, seria maior no sul e sudeste do Brasil, onde brancos e
negros ficam em posição de concorrência. Na opinião do autor, a democracia racial não
virá da miscigenação, da harmonia entre as raças ou da ausência de regras de pertença
grupal. Mas sim de uma nova ordem social competitiva e do pleno florescimento
capitalista, que prescinde de uma coerção extra-econômica. A não hegemonia da classe
burguesa no Brasil e a persistência de uma ordem estamental, ou seja, a imperfeição da
nova ordem, foi a responsável pela persistência do passado racial. As discriminações
raciais representam a permanência do poder das oligarquias e seriam, portanto,
obstáculos ao avanço da ordem social competitiva.
Essa conclusão de Florestan Fernandes fica desafiada, contudo, pela comparação
com o caso Norte-americano, visto que lá, mesmo com a hegemonia da classe burguesa e
da ordem social competitiva, o preconceito racial foi, e é, severo e vio lento.
O movimento negro, via de regra, não compartilha das idéias marxistas, que
identifica nas classes sociais o grande problema das desigualdades sociais, minimizando
ao máximo a influência das questões raciais. Todavia, vale ressaltar que os sociólogos do
projeto UNESCO - realizado em 1955 principalmente Costa Pinto, Florestan
Fernandes, Thales de Azevedo e Oracy Magalhães, identificam uma confluência nas
barreiras de classe e de cor à integração dos negros, reconhecendo a existência de
preconceito racial no Brasil.
Na verdade, não existe “democracia racial” nem, tampouco, um preconceito
racial que seja determinante nos conflitos sociais e no destino do país. Tem razão Thales
de Azevedo, que afirma ser a “cor”, no Brasil, muito mais que pigmentação. Aqui, a
textura do cabelo, o formato do nariz e dos lábios, assim como as vestimentas, a
educação e o modo de falar, também são identificadores de “cor”. O preconceito no
Brasil não é estritamente racial e possui múltiplas variáveis. Nas palavras de Azevedo,
haveria “uma tendência dos negros e mulatos em ascensão social para se transformarem
em brancos, já que a “cor” significa mais que simples pigmentação.”
69
69
Guimarães, A . S. Alfredo. Op. Cit. P 106.
46
Opinião parecida tem Guerreiro Ramos, grande destaque na liderança do
movimento negro brasileiro:
“ ... o negro brasileiro pode branquear-se , na medida em que
se eleva economicamente e adquire os estilos comportamentais dos
grupos dominantes. O peneiramento social brasileiro é realizado mais
em termos de cultura e status econômico do que em termos de raça.”
70
O passado escravista, os vestígios de uma sociedade estamental, a raça, a cor, a
situação sócio -econômica, a cultura, a educação... Vários são os fatores que podem ser
identificados como as causas do preconceito no Brasil. A questão, no momento, é que há
preconceito no Brasil e que até hoje os negros ainda permanecem como os mais
prejudicados na sociedade. Os mais pobres, com menor grau de instrução, com os
empregos menos remunerados e valorizados. Enfim, com o menor acesso à educação,
saúde, emprego e moradia; a condições básicas de uma vida com um mínimo de
dignidade.
Apesar de ter sido criada no momento de substituição das teorias de
branqueamento e racismo científico pelo mito da democracia racial e a valorização da
raça mestiça, a Frente Negra Brasileira sempre buscou combater a tendência de se
acreditar na ausência de preconceito racial no Brasil. O objetivo era reconhecer, encarar e
combater o racismo. Contudo, vale ressaltar que a busca era de integração e não de
segregação. Condenavam sempre o ódio e a solução segregacionista norte-americana. A
intenção não era criar uma escola para negros, e sim fazer com que os negros
frequentassem tranquilamente as escolas dos brancos. Afastavam-se do academicismo e
buscavam se aproximar da “massa” negra, montando “ uma estratégia brusca, direta e
tosca, que o grosso da massa podia entender e acompanhar”.
71
Essa falta de entrosamento, ou, mais que isso, essa crítica ao movimento negro
norte-americano, vinha demonstrar que “ o Movimento Negro brasileiro tem fortes raízes
70
Apud. Guimarães, A S. Alfredo. Op. Cit. P. 106/107.
71
Fernandes, Florestan. Op. Cit. P. 54.
47
em nosso próprio solo, não constituindo, como pretendem alguns, mero reflexo da luta
desenvolvida em outros países, em especial nos Estados Unidos.”
72
A Revolução de 1930, a situação sócio-econômica dos negros na cidade de São
Paulo e o maior debate sobre a suposta democracia racial brasileira foram determinantes
para o surgimento da Frente Negra Brasileira. O mito da democracia racial, em particular,
teve um efeito duplo. De um lado, minimizou os efeitos do determinismo biológico e da
inferioridade racial irreversível, proporcionando dessa forma incentivo, esperança e
estímulo para que os negros revertessem sua situação de anomia e pauperização, na
medida que estas não eram determinadas racialmente. Por outro lado, incentivou os
negros a se unirem na tentativa de demonstrar que esse “mito” era de fato um mito, e que
democracia racial não existia e não existe no Brasil.
72
Idem. P. 56.
48
CAPÍTULO II
“ A FRENTE NEGRA BRASILEIRA ”
Origem e Organização.
2.1- O EMBRIÃO: A IMPRENSA NEGRA E O CENTRO CÍVICO PALMARES.
No capítulo anterior, analisamos o contexto político, cultural e econômico que
determinou o surgimento da Frente Negra Brasileira. De uma forma ampla, englobando
não só aspectos locais, mas também nacionais e até mesmo internacionais, chegamos à
conclusão de que vários foram os fatores que incentivaram a reunião de lideranças
negras, na cidade de São Paulo, na década de 1930. Neste capítulo, vamos nos deter mais
especificamente na trajetória da Frente Negra Brasileira. Embora vários fatores tenham
influenciado na união destas lideranças, essa união não ocorreu, evidentemente, de uma
hora para outra. Um caminho já estava sendo percorrido, já estava sendo traçado e é a
partir desse caminho inicial que começaremos a entender a história da Frente Negra
Brasileira.
A proibição das religiões africanas, que perdurou até 1937, a necessidade de
recreação, que não era oferecida e/ou permitida aos negros e o exemplo bem sucedido das
associações de imigrantes, incentivaram os negros a se unirem em busca de melhor
qualidade de vida. Desde o início do século, mais especificamente no ano de 1902, já
estavam sendo fundadas associações de negros, que, não obstante, alheias à luta política
organizada, possuíam um caráter cultural e beneficente. As associações de negros no
início do século não estavam, portanto, em aberto litígio com a ordem econômica, social
e política estabelecida. Ao contrário, muitas vezes pode-se até mesmo identificar um alto
grau de “oficialismo” em suas propostas, assim como posturas bastante conservadoras.
49
Regina Pahim Pinto, somente até 1937, ano em que se encerram as atividades da
Frente Negra Brasileira em decorrência do Estado Novo, computa cerca de 123
associações negras apenas na cidade de São Paulo, não incluindo nessa amostra as
associações exclusivamente carnavalescas e/ou esportivas.
73
Dessas 123 instituições
paulistanas, todas possuíam atividades voltadas para a assistência social, a educação e a
cultura. Grande parte dessas associações publicava periodicamente um jornal,
dinamizando consideravelmente a imprensa negra. Aproximadamente 30 jornais eram
publicados por lideranças negras no período entre 1907 e 1937.
A Frente Negra Brasileira não foi, portanto, a primeira instituição ligada ao
movimento negro, a publicar um jornal com conotação política. Antes do jornal “A Voz
da Raça”, porta-voz oficial da Frente, já existiam periódicos que denunciavam e
apontavam soluções para os problemas vividos pela população negra. Esses periódicos
representavam claramente o embrião da organização e da luta dos negros no início do
século XX.
A imprensa negra era consideravelmente influenciada pela imprensa operária.
Ambas possuíam o mesmo objetivo: denunciar os problemas vividos pelo seu grupo.
Embora, vale ressaltar, as denúncias e reivindicações das lideranças negras eram bem
mais modestas, na medida que estavam em estágio embrionário e não recebiam
instruções de nenhum órgão ou movimento internacional. Muitos negros apoiavam vários
jornais simultaneamente e as dificuldades eram incomensuráveis. O amadorismo era
evidente. Havia dificuldades técnicas de produção, dificuldade financeira, falta de
colaboração e dificuldades para a distribuição do jornal, com retorno financeiro
praticamente nulo.
A luta travada pelas lideranças negras no início do século era integracionalista. A
principal preocupação era com o comportamento social e moral. Elas buscavam ajudar e
amparar, reconhecendo como princípio fundamental, a união dos negros. Na opinião de
José Correia Leite, a luta principal naquele momento era de conscientização e união dos
negros. Era preciso que eles realizassem o fim do regime escravocrata e lutassem pela
igualdade de direitos, agora ratificada pelas leis do novo Estado. Todavia, o próprio Leite
73
Pinto, Regina Pahin. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. São Paulo, 1993.
Tese (Dout.) FFLCH/USP. P. 84
50
afirmava que era enorme a dificuldade de congregar os negros. Dificilmente se conseguia
uni-los, caso não houvesse algum tipo de motivação de lazer e recreação. Como
confessou Correia Leite:
“ Só havia participação maciça em coisa que fosse para
divertir, dançar senão... Era a luta que se travava na época. O negro
propriamente não era culpado disso. Sabia que um igual a ele não
podia ter força para dirigir. Então havia aquela desconfiança.”
74
Formavam-se várias sociedades beneficientes, que logo tornavam-se
exclusivamente recreativas. Como exceção podemos identificar o Centro Cívico
Palmares, que fundado em 1926, foi o grande precursor da Frente Negra Brasileira. A
luta do CCP não era diferente das travadas na época pelo movimento negro. O objetivo
principal era a união e aproximação dos negros, eliminando a dispersão. Um dos seus
principais líderes foi Isaltino Veiga dos Santos, que posteriormente seria o Secretário
Geral da Frente Negra. Na opinião de Luiz Silva, líder negro que organizou a
autobiografia de José Correia Leite, várias associações com tais características
surgiram. Mas o que marcou o Palmares foi a união de pessoas com senso crítico
bastante aguçado para as questões políticas.”
75
O Centro Cívico Palmares foi idealizado e fundado por Antônio Carlos, um
sargento da Força Pública de Campinas que foi para São Paulo por ocasião da rebelião de
1924. Participou do levante em São Paulo e acompanhou Miguel Costa na sua caminhada
ao encontro de Luís Carlos Prestes. Incorporou-se na Coluna Prestes percorrendo o
interior do Brasil até 1926, quando retornou a São Paulo e fundou o Centro Cívico
Palmares. Segundo matéria publicada no jornal Progresso:
“ Antônio Carlos fora investido da incumbência de ir ao
encalço, nos sertões do norte, daqueles que se batiam pelo seu ideal.
Nas poucas horas de folga da penosa via crucis pelo assolarado
extremo do país, o sargento Antônio Carlos, que sempre se bateu pela
74
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 57.
75
Silva, Luiz (Cuti). Frente à Frente Negra Brasileira. In: Revista Proposta experiências em
educação popular. N 51, ano XV, novembro de 1991.
51
emancipação moral de sua raça, não deixava de auscultar os meios
onde viviam os pretos.
Regressando à São Paulo, requereu sua baixa da Força
Pública, dedicando-se então, de corpo e alma à Raça Negra.”
76
Em outubro de 1926 é fundado O Centro Cívico Palmares, associação que,
segundo expressões da época, reunia a “nata” do elemento negro paulistano. O próprio
jornal Progresso exalta o CCP, reconhecendo a sua importância para a integração do
negro na sociedade. Não apenas o “meio negro” o reconhecia, outros segmentos da
sociedade paulistana também reconheceram a seriedade e competência da associação em
representar os interesses dos negros. Numa passagem bastante reveladora dos hábitos
mentais da época, Vicente Ferreira abordou o assunto, nas páginas do jornal Progresso,
em 1928:
“Frei Vicente, esse luminar do púlpito brasileiro, não nos
surpreendeu quando na Igreja de Santa Cecília exclamou: ‘Negros
feitos da essência da brancura, a nata do elemento negro são
encontrados em Palmares’ ...”
“Toda a obra sã tem o apoio de todas as classes sociais. E a
agremiação que Mr. Gittens capitaneia o tem.”
77
Duas coisas revelam o artigo: a respeitabilidade do CCP, que fazia parte dos
sermões da Igreja Católica, e o preconceito racial. Para o representante da Igreja, a “nata”
do elemento negro era composta por negros feitos da “essência da brancura”. Ferreira
parecia não ver problemas nisso.
76
Jornal Progresso. Nº 10. 24/03/1929. (O jornal Progresso” foi criado por ocasião da
comemoração do aniversário de nove anos do Grupo Carnavalesco Campos Elysios.
Representou uma importante publicação do “meio” negro, reconhecida e elogiada por vários
jornais da época, como por exemplo: Jornal do Comércio, A Gazeta, Correio Popular, Diário
Nacional, Clarim d’Alvorada e Folha da Noite. O seu proprietário era Argentino C. Wanderley, o
fundador do G. C. Campos Elysios e integrante de várias associações negras, entre elas o
Centro Cívico Palmares. Foram publicados quarenta e dois exemplares no período
compreendido entre 23 de junho de 1928 e 15 de novembro de 1931. O seu editor era Lino
Guedes, importante intelectual negro da época. A partir de 28/07/1929 João Baptista Ferreira
passa a ser proprietário juntamente com Argentino C. Wanderley.)
77
Jornal Progresso. Nº 1. 23/06/1928. Texto de Vicente Ferreira. ( Grifos meus )
52
A atuação efetiva do Centro Cívico Palmares, na defesa dos interesses da
população negra era louvada no jornal:
“Palmares seguiu passo a passo o progresso do Brasil. Criou
bibliotecas. Fundou escolas. Deu seu curso secundário que contava
com um afinado corpo docente preto, e existem alunos nas escolas
superiores do país. Foi ao chefe da nação ... sustando ordem da não
entrada de pretos na Guarda Civil. Tomando providências para a
inscrição de crianças pretas nos concursos. Levou o líder do governo
nos seus salões.”
78
Por motivos não conhecidos, Antônio Carlos mudou-se para Uberaba e se afastou
do Centro Cívico Palmares.
79
Assumiu a direção do Centro o Sr. J. Foyes Gittens, um
inglês, que realizou uma reestruturação na instituição.
80
Gittens passou a ser o presidente
absoluto do CCP e, devido ao centralismo e autoritarismo de sua direção, várias
lideranças negras acabaram por se afastar e criticar o Centro. Isaltino Veiga dos Santos se
retirou do CCP por discordar da presença de um estrangeiro na presidência.
81
Em fevereiro de 1929, o jornal Progresso protestou:
“Pela vitória da causa do negro brasileiro, e em particular do
paulistano, Mr. Gittens deve submeter-se à vontade dos palmarinos,
que clamam por um presidente representativo.”
“Infelizmente, o Centro Cívico Palmares está sendo dirigido
por uma verdadeira ditadura, que afastou os elementos antigos e de
prestígio da família palmarina.”
82
78
Jornal Progresso. Nº 10. 24/03/1929.
79
No livro de José Correia Leite, o autor afirma que Antônio Carlos foi para a Força Pública de
Minas Gerais, onde fez carreira, chegando a coronel reformado. Morou em Belo Horizonte e
fundou em sua própria casa uma biblioteca bem catalogada sobre assuntos negros.
80
J. Foyes Gittens, também chamado de Mister Gids era um negro inglês, que segundo José
Correia Leite, conseguiu o apoio de algumas pessoas negras porque era um sujeito “bem posto”.
Era gerente de uma grande papelaria chamada Casa Vanorte.
81
O nacionalismo exacerbado de Isaltino Veiga dos Santos, futuro Secretário Geral da Frente
Negra, será discutido no terceiro capítulo.
82
Jornal Progresso. Nº 9. 24/02/1929. Texto de Vicente Ferreira.
53
Gittens reestruturou Palmares, mas acabou por dar sepultura ao CCP. Em março
deste mesmo ano, o jornal Progresso informava:
“O Centro Cívico Palmares, entre discursos inflamados, boas
a uns, e a indicação da Rocha Tarpeia a outros, fechou suas portas.”
83
O encerramento das atividades do CCP não foi aceita sem reações. Muitas
lideranças negras depositavam nele suas esperanças de reverter a difícil situação do
negro. Por esse motivo, um grupo liderado por Ignácio Amorim, reabre o Centro, que
agora passa a ser dirigido por uma junta governativa. Criaram-se novas expectativas,
sendo até mesmo realizada uma vultuosa obra, onde edificou-se uma respeitosa e
imponente sede. Em novembro de 1929, o jornal Progresso informava:
“ O novo Palmares, que o espírito de abnegação de Ignácio
Amorim, esquecido de si e dos seus, vai dotar São Paulo, será um
florilégio onde experimentaremos emoções várias através das reuniões
- capítulos do livro da vida de um povo, que traz na história origens
épicas, feitos gloriosos e paixões profundamente humanas e
sentidas...”
84
Mas apesar das mobilizações para reerguer o CCP, há visivelmente um
enfraquecimento da luta pela integração e soerguimento moral do negro. O Centro Cívico
Palmares passou a realizar apenas atividades recreativas, aproximando-se das outras
associações negras existentes, o que levou o jorna l Clarim d’Álvorada a lamentar:
“... nós temos que lastimar com franqueza o modo insincero e
censurável com que os negros palmarinos deixam falecer a idéia do
abnegado lutador que fora Antônio Carlos.”
85
83
Jornal progresso. Nº 10. 24/03/1929.
84
Jornal Progresso. Nº 18. 24/11/1929.
85
Jornal Clarim d’Alvorada. Nº 18. 14/07/1929. ( O jornal iniciou sua publicação sob o nome de
Clarim em 06/01/1924 e permaneceu com esse nome até 06/04/1924. As edições posteriores
passaram ter o nome de Clarim d’Alvorada porque um mulato foi à redação do jornal afirmando
ter um jornal registrado com o mesmo nome e ameaçando de mover uma ação. A inclusão do
“alvorada” no nome do jornal ocorreu, portanto, pela já existência de outro jornal com o mesmo
nome. A direção do jornal era de Jayme de Aguiar e José Correia Leite.
54
Por outro lado, o CCP abriu espaço para a criação de uma outra instituição, que
reuniu a elite intelectual negra, preocupada e engajada na luta pela integração e
arregimentação da população negra.
Desde 1929, com o fim do Centro Cívico Palmares, um grupo da liderança negra
já estava com a intenção de fundar um órgão que se relacionasse com as questões
políticas e sociais, indo além do caráter meramente beneficiente e recreativo. Em
setembro de 1931, um grupo de remanescente do Centro Cívico Palmares e o grupo do
jornal “Clarim d`Alvorada” fundam a Frente Negra Brasileira. Segundo Regina Pahim
Pinto, não há indícios claros sobre os motivos imediatos do surgimento da Frente, embora
seja possível reconhecer, na iniciativa, a influência do sucesso das sociedades dos
imigrantes e da experiência anterior com o Centro Cívico Palmares.
86
No que diz respeito
especificamente à questão dos imigrantes, na opinião de Florestan Fernandes, a
influência exercida foi dupla. Por um lado, desalojando os negros, acirrando a
competição e com isso estimulando as lutas e reivindicações dos negros. E, por outro
lado, não menos importante, os negros viam nos imigrantes exemplo de pessoas humildes
e bem sucedidas, com isso absorveram lições, hábitos e “filosofias de vida” como as
ligados ao trabalho, à poupança, à solidariedade e ao sacrifício.
Outro grupo bastante importante na organização do movimento negro no início do
século, e que também participou do Centro Cívico Palmares e da fundação da Frente
Negra, foi o grupo do jornal “Clarim d`Alvorada”. O jornal, fundado em 1924, foi
dirigido por Jayme de Aguiar e José Correia Leite, e sempre manteve na imprensa negra
um local de destaque. Arlindo Veiga dos Santos, irmão de Isaltino Veiga dos Santos e
também militante do Centro Cívico Palmares, foi um dos colaboradores do jornal e,
posteriormente, seria o Presidente Geral da Frente Negra Brasileira.
Como já foi dito anteriormente, várias eram as associações de negros no início do
século. O Centro Cívico Palmares, entretanto, diferenciava-se por reunir pessoas críticas
e com vontade de discutir concretamente a situação do negro no Brasil. No que se refere
ao Clarim d’Álvorada, temos a mesma situação. Evidentemente, existiam vários
86
Pinto, Regina Pahin. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. São Paulo, 1993.
Tese (Dout.) FFLCH/USP.
55
periódicos organizados pelas lideranças negras. A chamada “imprensa negra” era
dinâmica e possuía muitos jornais, já tendo sido bastante pesquisada.
87
Todavia, o que
diferenciava o “Clarim d’Álvorada” era o fato de ir muito além dos informativos sociais,
como batizados, casamentos, bailes. Na opinião de José Correia Leite, foi a partir do
Clarim d’Álvorada que a imprensa negra partiu, verdadeiramente, para uma militância
ideológica.
Jayme de Aguiar e José Correia Leite, fundadores do Clarim d’Álvorada,
encontraram-se num baile para negros, evento comum na época. Jayme de Aguiar propôs
à José Correia Leite a fundação do jornal. O primeiro número foi impresso no primeiro
mês de 1924, ainda sem conotação política, bem pequenino e com um caráter mais
literário, intitulado apenas “O Clarim”.
Pouco a pouco o jornal foi crescendo e ganhando impulso e respeito. Até que um
certo dia, em meados de 1929, Jayme de Aguiar anunciou que ia se casar e pretendia
abandonar a direção do jornal. Inicialmente, Aguiar pretendia acabar com o periódico,
pois duvidava que José Correia Leite, sozinho, tivesse capacidade para editar o jornal.
Veja um depoimento de Leite, contanto o episódio:
- Não. O jornal não vai acabar. Você vai casar, mas o Clarim
vai continuar. Eu dou um jeito.
- Mas José, você não tem preparo para isso... e veio com
aquela conversa, ao que eu logo respondi:
- O jornal pode sair com vírgula errada, com erro de
concordância, mas vai sair. Porque agora eu tenho umas idéias. Eu
acho que estamos fazendo um jornal errado.
Então ele saiu, certo de que eu ia fazer besteira.”
88
A partir da edição de 28-09-1929, o “Clarim d’Álvorada” passou a circular sob a
responsabilidade de José Correia Leite. Quando ele assumiu o jornal, o periódico tornou-
se cada vez mais denunciador e reivindicatório. O jornal circulava nas concentrações de
87
Ver, por exemplo, Miriam Ferrara (1981), Roger Bastide ( 1951) e Ubirajara Motta ( 1986).
88
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 40.
56
rua e principalmente nos bailes, que representava o mais forte centro para a distribuição
de periódicos.
José Correia Leite não participava ativamente do Centro Cívico Palmares devido
aos seus compromissos e tarefas referentes ao Clarim d’Álvorada. Tornou-se cada vez
mais ativo e participante no meio político. Aceitava o ideal comunista de denunciar a
desigualdade entre ricos e pobres, mas acreditava que a situação do negro era pior. Na
sua opinião, mesmo entre o proletariado, o negro era inferior ao branco. Procurava
sempre não misturar suas idéias políticas com as questões dos negros. Acreditava que
podia manter atitudes distintas.
Inicialmente, participava das discussões para a formação da Frente Negra
Brasileira. Entretanto, logo no início, entrou em conflito com os irmãos Veiga dos
Santos, Arlindo e Isaltino, que, ao contrário de José Correia Leite, simpático às idéias do
socialismo, defendiam o Patrianovismo, teoria autoritária com vários pontos em comum
com o movimento Integralista e o fascismo.
89
Antes, portanto, da Frente Negra Brasileira se organizar, as principais lideranças do
“meio negro” estavam aglutinadas no Centro Cívico Palmares e no jornal Clarim
d’Álvorada. Foram essas lideranças que pensaram e iniciaram as discussões sobre a
fundação de um órgão que lutasse pela efetiva inserção do negro na sociedade brasileira.
Por se tratar de uma entidade com militância política, existiram muitas divergências, e
nem todos permaneceram na Frente.
89
As divergências políticas entre as lideranças negras e suas matrizes teóricas serão discutidas
no terceiro capítulo.
57
2.2- FUNDAÇÃO E ESTRUTURA.
A Frente Negra Brasileira foi fundada pela “elite negra” de São Paulo. Talvez esta
afirmação não seja apropriada, ou ao menos é preciso fazer algumas considerações.
Quando afirmamos existir uma elite negra em São Paulo, na década de 1920,
evidentemente não estamos usando como parâmetros critérios econômicos, sociais e até
mesmo culturais, considerando os padrões da época. À luz desses critérios, essa “elite
negra” nem mesmo seria classificada como pertencente às classes médias. Apesar disso,
havia um grupo de negros que se diferenciava da grande maioria, basicamente por três
fatores: eram majoritariamente alfabetizados, estavam passando por um processo de
conscientização dos problemas vivenciados pelos negros após a abolição e, finalmente,
estavam interessados em discutir esses problemas e transmiti-los ao maior número
possível de pessoas, buscando respostas e soluções.
A Frente foi fundada por essa “elite” que, durante toda a década de 1920, já vinha
se organizando nos jornais e nas outras associações. Oficialmente, o fundador da Frente é
Francisco Costa Santos, contudo, havia um grupo de lideranças negras que possuía
importância semelhante no que se refere ao momento de organização e fundação da
instituição.
90
Dois anos após a criação da Frente, o ato de fundação ainda era recordado nas
páginas do jornal A Voz da Raça:
“ A Frente Negra Brasileira foi fundada nesta cidade de São
Paulo em reunião efetuada no salão das classes laboriosas, à rua do
Carmo nº 25, perante regular assistência no dia 16/09/1931.
90
Os principais organizadores foram: David Soares, Horácio Arruda, João Francisco de Araújo,
Roque Antônio dos Santos, Alberto Orlando, Gervásio de Morais, Alfredo Eugênio da Silva,
Oscar de Barros Leite, Cantidio Alexandre, Arlindo Veiga dos Santos, José Benedito Ferraz,
Leopoldo de Oliveira, Jorge Rafael, Constantino Nóbrega, Lindolfo Claudino, Ari Cananéa da
Silva, Messias Marques Nascimento, Isaltino Veiga dos Santos, Raul Joviano do Amaral e
Justiniano Costa. ( Informações obtidas nas fontes primárias e no trabalho de Regina Pahim
Pinto)
58
No dia 12 de outubro, no mesmo local, perante mil e tantos
negros, foi lido e aprovado por unanimidade o presente estatuto.
Publicados no Diário Oficial e registrado em 4 de novembro de
1931”.
91
Não contavam toda a verdade, como veremos a seguir.
Francisco Costa Santos faleceu antes de 1933, quando o jornal A Voz da Raça
começou a circular. Durante toda a existência da Frente, de 1931 a 1937, a instituição
teve apenas dois presidentes: Arlindo Veiga dos Santos, que exerceu o mandato até junho
de 1934, e Justiniano Costa, que permaneceu até a dissolução. Inicialmente, a Frente
Negra ocupava duas salas no Palacete Santa Helena, mas por necessidade de mais espaço,
transferiu-se para um prédio na rua da Liberdade, número 196, que permaneceu alugado
pela Frente até a sua dissolução.
Sobre a sua estrutura administrativa, é inquestionável o elevado grau de
organização. O Grande Conselho reunia-se semanalmente e era composto por todos os
associados responsáveis pela administração, estando subdividido em vários setores:
- Presidente: máxima autoridade dentro do Conselho e da própria Frente Negra,
referendando ou não, todas as decisões;
- Conselheiros: tinham função fiscalizadora, salvaguardando as diretrizes do Grande
Conselho;
- Secretário Geral: substituto do presidente em sua ausência. Era o responsável pelo
bom andamento das atividades da sede. Possuía também a importante função de
controlar e muitas vezes censurar as comunicações e publicidades da Frente.
92
- 1º Secretário: responsável pela correspondência das delegações , atas e portarias.
- 2º Secretário: atendimento direto aos associados, buscando atender suas solicitações.
- Cabos: agentes externos da Frente Negra, com autoridade sobre os sócios.
- Tesoureiro Geral: responsável pela parte financeira da instituição.
- Fiscais: responsáveis pela ordem material e moral da sede, cuidando da limpeza e do
policiamento.
91
A Voz da Raça. Nº 5. 1933.
92
Esse cargo foi ocupado por Isaltino Veiga dos Santos, irmão do presidente, Arlindo Veiga dos
Santos. O cargo foi extinto em 1933, quando Isaltino pede demissão.
59
De todos esses cargos, os cabos possíam grande destaque e importância para a
expansão da Frente Negra. Além de serem os responsáveis pela “doutrinação”,
disseminando as orientações e atuações da instituição, exerciam a função de cobradores,
recolhendo as mensalidades dos associados. Todo o funcionamento da Frente Negra
somente era possível graças ao pagamento das mensalidades. A venda do jornal mal
cobria as despesas de sua publicação, sendo até mesmo sua publicação reduzida de
semanal para quinzenal e, posteriormente para, mensal.
93
A atividade dos cabos era rigidamente acompanhada pelo Grande Conselho. Em
várias edições do jornal, há anúncios solicitando a presença de cabos que se afastaram
sem realizar a prestação de contas das mensalidades. Muitas vezes, eles eram ameaçados
de expulsão da Frente e até mesmo de serem denunciados à polícia, caso não
aparecessem com o valor das mensalidades. Por outro lado, os cabos que mais
arrecadavam eram premiados com medalhas, com o intuito de incentiva-los e motiva-los,
na medida que o trabalho não era remunerado. No número 39 do jornal A Voz da Raça,
eles eram convocados:
“ Convidam-se todos os frentenegrinos e particularmente aos
Srs. Cabos, a comparecerem no próximo dia 21, na hora esportiva, isto
é, às 16:00 horas, afim de assistirem a entrega de 2 medalhas, uma de
prata e outra de bronze, aos 2 cabos que mais se distinguiram nas
arrecadações destes últimos três meses.”
94
Outra fonte de renda para a sede central, teoricamente, seria a verba vinda das
delegações do interior. A Frente possuía várias filiais espalhadas por estados como São
Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Rio Grande do Sul.
95
Embora essas
93
Do número 1 ao 18 a publicação foi semanal. Do número 18 ao 45 foi quinzenal e do 46 ao 70
foi mensal.
94
Jornal A Voz da Raça.nº 39.
95
Minas Gerais: Guaxupé, Carmo do Rio Claro, Muzambinho, Passos, São Sebastião do
Paraíso, Vargem Grande, Cabo Verde, Monte Santo, Belo Horizonte, Lavras, Três Corações,
Três Pontas, São João Del Rey, Juiz de Fora, Laura de Oliveira, Vila Carnevali, Itajubá,
Pedrões, São Domingos do Prata, Bonsucesso, Varginha, Dianópolis.
Rio Grande do Sul: Pelotas.
Espírito Santo: Sant’anna.
60
delegações devessem pagar um percentual de 10% de suas arrecadações à sede central,
raramente isso acontecia, visto que o que arrecadavam mal dava para suprir as suas
despesas locais.
Os cargos administrativos citados anteriormente eram preenchidos por aclamação.
O Conselho indicava os candidatos, que eram submetidos à aprovação de uma assembléia
composta pelos associados. Nenhum cargo era remunerado, todos os serviços eram
prestados gratuitamente, sendo todo o dinheiro arrecadado utilizado na própria
instituição.
A Frente Negra Brasileira tinha como principal objetivo a “elevação moral” do
negro brasileiro. Na sua tentativa de consolidar a auto-estima do negro, precisava, antes
de mais nada, exaltar a si mesma. Uma das principais estratégias da Frente era
supervalorizar a instituição, enquanto cobrava comportamentos e atitudes adequadas de
seus membros, sejam eles simples sócios ou parte da diretoria. Servindo sempre como
exemplo, como modelo a ser seguido, a Frente exaltava as suas realizações e conquistas,
na tentativa de ganhar credibilidade e confiança dos negros.
A seriedade e confiança na Frente transcendiam o meio negro. Muitas famílias
tradicionais de São Paulo, quando precisavam de empregados domésticos, dirigiam-se à
sede da Frente, na certeza de que um associado jamais cometeria uma falta, seria sempre
uma pessoa séria e idônea.
Cada visita ilustre recebida na sede, (como por exemplo, a visita do Chefe de
Polícia do Estado, Sr. Bento Borges da Fonseca, e de sua esposa, à sede da FNB em
março de 1933), cada artigo publicado por um associado, cada vez que um jornal
publicava um artigo referindo-se à Frente, enfim, tudo que pudesse demonstrar a
importância e o reconhecimento público da entidade, transcendendo o meio negro, era
registrado e divulgado amplamente. Para obter participação era preciso mostrar
eficiência, resultados concretos, caso contrário ninguém iria se envolver e se engajar
verdadeiramente, essa era a lógica da instituição.
Bahia: Salvador.
São Paulo: Campinas, Itapira, Tieté, Porto Feliz.
61
“ E tudo isso se dá ( a miserável situação do negro), porque a
lei que libertou os pretos não cuidou de os instruir, de os elevar mental
e moralmente.
Por isso, para levar a efeito a obra que o governo não quis ou não
pode fazer, formou-se em São Paulo a FNB. O fim dessa nobre
associação é difundir intensamente a instrução e civilização...
procurando sobretudo, infundir-lhes o patriotismo, o amor por esta
terra que tanto lhes deve”.
96
Após acreditar na força da instituição, era preciso aumentar a auto-estima dos
negros de uma forma geral. Se acreditassem de fato que eram pessoas inferiores, com
menor capacidade que os brancos, possuidoras de vícios e insuficiências congênitas e
hereditárias, jamais teriam força para lutarem na tentativa de reverterem a situação
marginalizada em que viviam. O trecho a seguir é exemplar do empenho da Frente em
relação à auto-estima da população negra:
“ De fato, todo negro cônscio das aptidões , dos predicados e
das capacidade físicas e intelectuais da grande raça a que pertence, só
encontra motivos de ufanias, porque atentando bem, conclui ele
pertencer a uma raça superior e maravilhosa.
... e a prova disso temo-as de negros não só do Brasil, mas do
mundo todo, que depois de lutar com todas as dificuldades, venceram-
nas, atingiram graus de desenvolvimento por poucos alcançados, e
mostraram aos preconceitistas não serem eles de raça inferior como
assoalharam, mas sim superior entre as superiores.”
97
Além disso, a Frente publicava em seu jornal, artigos de cientistas discutindo a
origem comum dos homens, sejam eles pretos ou brancos. Exemplo disso é o artigo
publicado no jornal Progresso, em 1929:
96
A Voz da Raça. Nº2 . Artigo de Joaquim Pedro.
97
A Voz da Raça. Nº6. Texto de Pedro Rodrigues.
62
“ A teoria mais corrente é que os homens descendem todos de
um tronco comum. Se cada raça tivesse uma origem diferente, o
cruzamento de brancos com pretos ou amarelos não produziria
mestiços, mas híbridos. E os híbridos, é sabido, são estéreis. Ora isso
não acontece com os mamelucos e os mulatos, de que há milhões no
Brasil. Assim se prova que os caucásicos, os mongólicos, os pretos, os
vermelhos e os azeitonados da Europa, da Ásia, da África, da América
e da Oceania, todos tem um único avô, fosse Adão, fosse o macaco de
Darwin, fosse qual fosse.”
98
Paralelo à isso e com o mesmo objetivo, ou seja, consolidar a auto-estima dos
negros, a FNB analisa a importância do negro na construção do Brasil, salientando o fato
de que, durante quase 400 anos, foi o trabalho do negro escravo que construiu as riquezas
do país. Exemplos são as duas transcrições a seguir:
“ ... erguei-se a Raça que com o maior contingente contribuiu
para que se originasse, para que se construísse esse grande Brasil-
Nação, esta Pátria imortal que enche de orgulho as veias nacionais.”
99
“ A Raça Negra, cuja atuação foi tão intensa na formação do
Brasil, produzindo toda a expressão de força nos engenhos no norte e
nos cafezais do sul ...”
100
Apesar de todo o esforço da Frente Negra Brasileira, não era tarefa fácil, fazer
com que os negros acreditassem nos seus valores. A todo o momento eles eram vítimas
de preconceitos e, no mercado de trabalho, muitas vezes eram preteridos em relação aos
imigrantes. Em um de seus exemplares, o jornal A Voz da Raça descreve um fato
ocorrido quando um operário negro, desempregado, buscou emprego na firma Teodoro
Wille e Cia: “O capataz, apontando o lugar destinado aos trabalhadores disse a
Amâncio Silva: -Entre e veja se ali há negros como você...”
101
A firma não aceitava brasileiros e com isso Amâncio foi procurar emprego num
Armazém que fazia o embarque de café por conta do governo. Todavia, lá também foi
98
Jornal Progresso. Nº17. 31/10/1929.
99
A Voz da Raça.nº 5. Texto de Henrique Diaz.
100
A Voz da Raça. Nº6. Texto de Vicente Ferreira.
101
Jornal Progresso. Nº 42. 15/11/1931.
63
rejeitado, também preferiam os estrangeiros. Amâncio falou com o capataz e lembrou-lhe
da lei dos 2/3, que, teoricamente, lhe garantia o serviço. Imediatamente o capataz lhe
respondeu: “Qual lei, nem meia lei, ( respondeu colérico, o empreiteiro). A lei aqui sou
eu.”
102
O jornal denunciava vários casos de racismo, como por exemplo, o de um pai que
rejeita e humilha o filho porque ele se casara com uma negra. O truculento pai estendera
uma faixa na entrada de sua casa, afirmando que seu filho tinha morrido porque se casara
com uma negra.
A Voz da Raça mostrava que mesmo quando um negro estudava e conseguia
ascender socialmente, possuindo uma profissão respeitada, ainda assim era discriminado,
talvez até mais, na medida que desafiava os outros, invadindo um espaço que
teoricamente não lhe pertencia. Exemplo disso foi o incidente ocorrido na delegação de
médicos brasileiros do Congresso de Medicina em Paris. Os médicos paulistas se
insurgiram contra a presença de um médico baiano negro - Enoch Carteado - na
delegação. Contudo, a grande maioria não aceitava a atitude descarada dos paulistas. O
incidente pode estar a nos revelar que o racismo em São Paulo era mais explícito, sendo
mais um motivo para a organização dos negros, não ocorrendo semelhança intensidade
em outros estados, como o Rio de Janeiro e a Bahia. Conforme noticiou o jornal, “Em
primeiro lugar é preciso firmar a consideração de que a maioria dos médicos da
caravana repugna a lamentável iniciativa dos médicos paulistas...”
103
Vale ressaltar, que os frentenegrinos, apesar de denunciarem os casos de racismo,
afirmavam que esses eram casos isolados, que de fato precisavam ser eliminados, mas
que não representavam uma regra geral da sociedade, como nos EUA. Ainda no jornal
Progresso, o otimismo era explícito:
102
Jornal progresso. Nº 42. 15/11/1931.
103
Jornal Progresso. Nº7. 16/12/1928.
64
“Se o governo não olhasse para o negro só nas ocasiões que
dele precisasse, estamos certos, que mais depressa do que suponhamos
não teríamos outro caso de preconceito a registrar.”
104
“ No Brasil, teoricamente, preconceitos de cor, há muito
tempo não existem, uma vez que a República de 89 desconhece
qualquer privilégio de nascimento, para amparar os portadores de
dotes morais e intelectuais.
Entretanto, observa-se um desprezo infundado por parte de
alguns que julgar ter praticado um ato de bravura ao nascerem
brancos, pelo que cometem a ignominiosa ação de terem a pele escura.
Esse desprezo, já por ser odioso torna-se cada vez mais digno
de repulsão, se tivermos em conta que a maior causa da obscuridade
em que vivem os originários do continente negro, é, sem a menor
dúvida, a condição servil a que foram tiranicamente reduzidos pelos
brancos.”
Um outro caso de racismo ocorreu com integrantes do corpo cênico da FNB,
homens e mulheres, que ao saírem da sede após o ensaio, foram abordados por policiais.
O inspetor deu ordem de prisão e eles só não foram presos devido aos protestos dos
presentes. Todos portavam-se dignamente e caminhavam em direção das suas respectivas
residências. Não havia motivo para tal atitude dos policiais. A FNB criticou a atitude e
pediu em seu jornal que abusos como este não fossem mais cometidos.
No número 8 do jornal A Voz da Raça há uma denúncia contra uma professora de
escola pública que declarou em plena classe “negro comigo não aprende”.
Embora a estratégia da Frente Negra Brasileira passasse pela denúncia das
atitudes racistas, a instituição não eximia de culpa os próprios negros, que muitas vezes
acabavam por incentivar essas atitudes. Os denominados “vícios da raça”, ou seja,
atitudes comportamentais praticadas por grande contingente de negros, eram veemente
combatidas. A desunião dos negros, a prostituição feminina e principalmente o
alcoolismo, representavam inimigos internos a serem eliminados.
Buscando valorizar o negro, há sempre no jornal campanhas para livrar os negros
dos “ vícios da raça”. No nº 8 encontramos um artigo lançando uma campanha contra o
alcoolismo:
104
Jornal Progresso. Nº 20. 31/01/1930.
65
“ Dentro do ilimitado programa da FNB, que tem por mira a
elevação moral da raça negra brasileira, torna-se preciso um grito de
guerra contra o alcoolismo, essa praga devastadora de tantas
felicidades...”.
105
Maria Angélica Maués, ao analisar a trajetória do discurso racial, conclui que
embora as lideranças da década de 30 tenham representado um grande impulso na luta
contra o preconceito racial e a situação miserável da população negra, revelavam em seu
discurso nítida assimilação da ideologia do branqueamento.
106
Acusavam os brancos
pelos séculos de escravidão e pelo abandono pós-abolição, mas culpavam-se pelos
denominados “vícios da raça”. O trecho seguinte reflete a questão citada:
“E havemos de vencer. Vencer antes a nós mesmos; vencer as
paixões ruins que nos dominam; as qualidades más, o álcool, o samba
desenfreado, o descrédito imerecido; vencer a incompreensão, a
cobiça, o orgulho, o despeito que vem confirmar a lúgubre frase de
Patrocínio - inimigo do negro é o próprio negro (...) ”
107
A Frente Negra Brasileira preocupava-se muito com a conduta dos negros.
Absorvendo os modelos de organização e comportamento dos brancos, buscava redefinir
a posição do negro na sociedade. Este seria um meio para se atingir o fim desejado. O
negro modificava a sua concepção de status e de valores, na tentativa de absorver os
modelos compartilhados pelos brancos. Muito tempo depois, um importante ativista do
movimento negro brasileiro, Abdias Nascimento, reconheceria:
“ ... a ênfase que os frentenegrinos colocavam em espectos da
natureza moral, por exemplo, pode parecer não apenas retrógrada ou
reacionária, mas uma capitulação diante dos valores ocidentais,
105
A Voz da Raça. Nº 8.
106
Maúes, Maria Angélica Motta. Da “branca senhora”ou “negro herói”: a tragetória de um
discurso racial. In: Cadernos Cândido Mendes. Nº 21. Centro de estudos Afro-Asiáticos,
dezembro de 1991.
107
A Voz da Raça, ano III, nº 62, fevereiro de 1937. In: Maúes, Maria Angélica Motta, op.cit.
(Grifos meus ).
66
procurando criar um “novo negro” que fosse o reflexo invertido da
imagem que deles faziam os brancos”
108
Eliminar os antigos hábitos, pelos quais eram discriminados e criticados, passava
por um processo educacional de integração do negro na sociedade. Evidentemente, os
vícios não eram decorrência da “raça”, mas conseqüência da situação vivida até então.
Elimina-los dependia basicamente de uma mudança no modo de vida desse grupo, desde
que encontrassem trabalho, educação e possibilidades de criarem uma estrutura familiar.
A Frente cobrava dos pais a responsabilidade de educar os seus filhos, mas para isso,
antes, era preciso que eles próprios fossem educados, eliminando primeiramente os
“vícios da raça”:
“Quais os motivos que os obrigam andar maltrapilhos, cobertos
de chagas, dormindo em bancos públicos e sendo muitas vezes
pensionistas da polícia?
É porque se deixaram dominar pelos vícios. Pela embriaguez,
constantemente, vemos chefes de família abandonar seus lares...
Aquele que se deixa dominar pelos vícios, de como poderá
ministrar no lar uma educação...”
109
A educação, citada acima, também era fator crucial na estratégia da Frente Negra
Brasileira em sua luta pela inserção efetiva do negro na vida nacional. Além de cobrar do
governo, reconhecia e cobrava dos pais a responsabilidade pela educação dos filhos. Era
preciso ação, força de vontade e comprometimento de todos para reverter mais de quatro
séculos de total desamparo educacional. A força de vontade necessária, fica clara nos
trechos transcritos abaixo:
“Vemos, todos os dias, pelas ruas de nossa capital, grande
número de meninos pretos em abandono. A quem cabe a culpa por esse
triste estado de coisas ?!...
A nos certamente.
108
Nascimento, Abdias. Discurso proferido no Senado Federal em 16/10/1997. In: Revista
Thoth. Nº 3. Setembro/Outubro de 1997. P. 55.
109
Jornal Clarim d’Alvorada. Nº 3.02/03/1924. Texto de Moysés Cintra.
67
Já vamos para quatro décadas que somos livres, filhos da terra
de Santa Cruz, e ainda não temos um rancho, ao menos, onde se
ministre as primeiras letras a nossos irmãos de cor. (...)
É urgente uma reação. Temos força de vontade, brio em
demasia, mas falece-nos coragem. (...)
Outro intuito essas linhas não tem, senão de apelar para os pais
de hoje que coloquem nas pequeninas mãos de seus rebentos a
Cartilha.”
110
“Os nossos pais são os primeiros que devem preocupar neste
sagrado dever, para mais tarde, quando homens, sabermos de como
educar os nossos.
A educação é a cultura do coração; tem por fim corrigir nossos
vícios, reformar os hábitos e costumes e polir os males. É necessário
esforçarmos! Contra os ignorantes é que devemos labutar, afim de
chegarmos à perfeição.”
111
Na tentativa de não depender apenas do governo, trazendo para si a
responsabilidade de educar, a Frente Negra Brasileira possuía vários cursos voltados para
a educação de jovens e adultos. O Liceu Palmares aceitava alunos mesmo que não fossem
sócios da Frente, assim como brancos, brasileiros ou não, propondo-se a ministrar ensino
primário, secundário, comercial e ginasial. Havia também escola de alfabetização, um
departamento musical e aulas de teatro. O inimigo era a ignorância:
“ Não sabemos de mal maior que copia entre nós do que a
ignorância. Não sabemos se também é uma das contas de fatalidades,
que muito pesa no rosário pesadíssimo da infortuna lendário, que a
raça descendente de Cam carrega através dos tempos.
Ela, a ignorância, como um estigma ferrenho e cruento,
aniquila o espírito de compreensão e tolerância, que deverá ser o das
massas negras no Brasil.
Ela é responsável pela anarquia social do meio e opera como
geradora de ódio inconcebíveis e mesquinharias inimagináveis ...”
112
110
Jornal Progresso. Nº 1.23/06/1928. Texto de Horácio Cunha.
111
Jornal Clarim d’Alvorada. Nº 2. 03/02/1924.
112
A Voz da Raça. Nº 55. Texto de Rajovia.
68
Para atender melhor as necessidades de seus associados e com o intuito de
facilitar a administração das inúmeras atividades, a Frente Negra criou vários
departamentos.
O Departamento de Instrução e Cultura era responsável pela educação escolar,
oferecendo curso primário e alfabetização de adultos; o departamento Musical ensinava
os associados a tocarem instrumentos musicais; o esportivo organizava competições
esportivas, possuindo times organizados; No departamento médico, O Dr. Antônio
Ferreira Dias realizava mais de 2000 consultas por ano. Toda pessoa, para ser atendida,
precisava obter uma autorização na secretaria da instituição. Havia também um gabinete
dentário; o departamento de imprensa era responsável pela publicação do jornal A Voz da
Raça; o departamento de Artes e Ofício oferecia aulas de arte e pintura, além de ensinar
algumas profissões como marcenaria, pedreiro, costura, ornamentação, cabeleireiro, etc;
o departamento Dramático oferecia cursos de teatro a adultos e crianças, encenando
várias peças durante a existência da Frente. Finalmente, havia o departamento Jurídico-
Social, que deveria defender o direito dos seus associados e dos negros em geral.
Além desses departamentos, a Frente ainda possuía uma biblioteca, uma comissão
responsável pela realização de eventos, um grupo de sócios responsável pela manutenção
física da sede e um bar em suas próprias dependências. Durante as eleições de 1934 e
1937, a Frente Negra instalou, em sua sede, um posto de alistamento eleitoral, com a
finalidade de fornecer título de eleitor aos que ainda não o possuíam.
Podemos perceber claramente a preocupação da instituição em amparar os negros
em todos os aspectos. Oferecendo educação - aqui entendida em seu sentido amplo,
incluindo pintura, música e teatro -, atendimento médico e odontológico, cursos
profissionalizantes, atendimento jurídico, além de uma caixa-beneficiente para socorrer
os associados em casos emergenciais, a Frente Negra Brasileira buscava auxiliar os
negros a superaram os problemas decorrentes de quatro séculos de regime escravocrata.
Além do amparo e assistência que disponibilizava aos negros, a Frente Negra
Brasileira buscou, durante toda a sua existência, a criação de uma identidade para o
grupo. Acreditava que a união e arregimentação só seriam possíveis quando estivessem
69
amarrados por uma identidade única, de grupo, que os identificasse uns com os outros e
os diferenciasse dos demais.
Em busca dessa identidade a Frente criou vários símbolos, como por exemplo uma
bandeira e dois hinos, um oficial e outro para as crianças negras. A bandeira possuía
quatro cores: o branco, representando o português, o vermelho, representando o índio, o
preto homenageando os negros e o verde, representando a epopéia do negro na Serra da
Barriga.
113
Além desses símbolos, possuía também uma milícia, comandada por Pedro Paulo
Barbosa. Não utilizava armas e embora jamais tenha entrado em ação, na medida que a
Frente Negra nunca se envolveu em agitações públicas, tinha importância simbólica e era
extremamente valorizada, convocando voluntários em quase todas as edições do jornal.
Todo associado tinha uma carteira contendo todos os seus dados, semelhante a uma
carteira de identidade. Esse documento conferia respeitabilidade e muitas vezes garantia
segurança e proteção, devido à confiança que a Frente Negra possuía perante à sociedade.
Algumas festas eram tradicionais, como a festa de aniversário de fundação da
instituição, as festas juninas, as domingueiras e a festa de natal, onde distribuía presentes
às crianças, e se substituía a figura estrangeira do Papai Noel, ícone importada dos EUA,
pela do Pai João, tentando afirmar uma identidade de origem afro-brasileira. Sobre isto, A
Voz da Raça afirmava, no seu número 42:
“ Convêm nossos leitores ficarem lembrados, que como no ano
passado, e como haverá de verificar todos os anos, quem fará a
distribuição de brinquedos, a patrizada é Pai João.
A FNB, organização nacionalista como é e será, vai assim, aos
poucos, abrasileirando os nossos costumes.
Pai João é um preto velho, de cabelos e cavanhaquinho todo
alvo, que aparecerá de surpresa à criançada, que depois de algumas
palavras de entusiasmo dirigidas por algum membro da comissão dos
festejos, passará a fazer a distribuição de presente...”
114
113
A epopéia do negro na Serra da Barriga refere-se ao Quilombo dos Palmares.
114
A Voz da Raça. Nº 42.
70
O sentimento nacionalista estava tão presente quanto a luta contra o preconceito
racial. Na verdade, a luta da Frente Negra Brasileira não era exclusivamente contra o
preconceito racial. O seu interesse maior era a união dos negros com o objetivo de
superar as dificuldades decorrentes do passado escravista. A sua orientação e atuação não
estava centrada no passado, nas injustiças e desumanidades cometidas pelos “brancos”.
Sua preocupação era com o presente e o futuro, apagando definitivamente as “marcas da
escravidão”.
O fato da Frente Negra não discutir intensamente o modelo escravocrata brasileiro
e as suas conseqüências para os negros não significa que a instituição não reconhecia na
escravidão a origem de todos os problemas do grupo. Não só reconhecia o papel
fundamental do passado escravista, como admitia a existência do preconceito racial. Mas
exortava os seus membros a deixar de lado as “queixas inúteis” quanto ao passado. No
dia 13 de maio de 1936, A Voz da Raça conclamava os seus leitores:
“ Estamos novamente no dia do povo negro.
13 de maio de 1936 ... instantemente 48 anos de distância dos
nossos antepassados tão desafortunados. Na verdade, nós de hoje,
também não somos menos, porque eles tiveram a liberdade material, e
nós a despeito de sermos libertos, continuamos presos a escravidão
pelo lado moral...
Continuaremos pois na luta pela liberdade, que nos há de
imortalizar também nos corações dos novos, como sendo uma raça
valorosa, um outro povo empreendedor...
Retrocesso? Para que retroceder. Que cada um cumpra o seu
dever de negro e brasileiro, e prossigamos a caminhada, sempre para
frente, sem um gesto de suplica, de lamento. De queixas inúteis ...”
115
A estratégia da Frente era de evitar ao máximo as polêmicas e confrontos. Sua
postura era oficialista e cordial. Seu diálogo era voltado para os próprios negros e
raramente para o governo ou classes dominantes. As disputas vivenciadas pela Frente
eram plantadas pelos próprios negros, na medida que absorviam as disputas políticas do
cenário político nacional.
115
A Voz da Raça. Nº 53. Texto de Isniam.
71
A década de 1930 foi muito dinâmica no que diz respeito à política. A Frente Negra
espelhou esse dinamismo. Todas as correntes políticas em disputa no país tinham seus
representantes entre os negros. Os confrontos políticos havidos na Frente Negra refletiam
o momento político não apenas nacional, como também internacional, e serão discutidos
no próximo capítulo.
72
CAPÍTULO III
“ UM ESPELHO DO PAÍS
A Frente Negra Brasileira refletindo a conjuntura política nacional.
3.1 - A CRISE DO LIBERALISMO E O NACIONALISMO DOS ANOS 30
“CONTAMINANDO” OS NEGROS.
O início da década de 1930 foi um momento de mudanças consideráveis na política
mundial. Na verdade, a década de 30 foi o clímax e a consolidação de mudanças que
vinham sendo realizadas desde o fim da Primeira Grande Guerra. O sentimento anti-
liberal e nacionalista crescia avassaladoramente e o governo de países com importante
papel no cenário internacional passaram a ser dirigidos por líderes fortes que defendiam
esses ideais. Na Europa, por exemplo, a Itália com Mussolini, Portugal com Salazar,
Alemanha com Hitler e Espanha com Franco.
O contexto de crise econômica, vitória do socialismo na URSS e nacionalismo
revanchista de guerra fez com que grandes líderes autoritários recebessem majoritário
apoio popular. Na América, os EUA, que após o fim da Guerra tornou-se o maior credor
do mundo, também sofreu transformações. O caso dos EUA é exemplar. Desde a sua
origem, o país defendeu ardorosamente os princípios liberais inspirados na teoria da
“mão invisível” de Adam Smith, ou seja, da não intervenção do Estado na economia.
Durante a década de 1930, após três governos do Partido Republicano, fiel defensor do
liberalismo econômico, assumiu o poder, em 1932, o democrata Franklin Delano
Roosevelt, anulando o liberalismo e intervindo ferozmente na economia, inspirando-se
nas teorias de John Keynes.
73
Nacionalismo, autoritarismo, militarismo e anti-comunismo estavam quase sempre
presentes e, no caso brasileiro, com Getúlio Vargas, não foi diferente. A Frente Negra
Brasileira, como já foi dito anteriormente, era oficialista. Na medida que não
representava oposição ao governo Vargas, ao contrário, defendia e apoiava as suas
propostas, a FNB acabava por absorver esses mesmos ideais nacionalistas e autoritários.
Antes de tratar especificamente da Frente Negra, neste contexto, cabe um breve
comentário sobre o Patrianovismo. Arlindo Veiga dos Santos, antes mesmo de fundar e
dirigir a Frente Negra Brasileira, participou, em 1928, da fundação do Pátria-Nova
(Centro Monarquista de Cultura Social e Política), embrião da AIPB ( Ação Imperial
Patrianovista Brasileira). O patrianovismo foi um movimento político que possuía entre
os seus associados brancos e negros, chegando até mesmo a publicar a revista Pátria-
Nova, que teve o seu primeiro exemplar em 1929. O patrianovismo era um movimento
nacionalista, antiesquerdista e visceralmente anti-republicano, na medida que defendia o
retorno da monarquia no Brasil.
Podemos perceber nítida influência de grande maioria dos ideais patrianovistas na
administração de Veiga dos Santos na Frente Negra, embora ele sempre tenha negado
esse fato. Na verdade, todos os integrantes da Frente tinham como um dos princípios
básicos a não interferência de ideais estritamente políticos na instituição, embora muitas
vezes isso não fosse possível.
Os integrantes do movimento patrianovista participaram da fundação da AIB (Ação
Integralista Brasileira) em outubro de 1932, quando a organização ainda não declarava
abertamente o seu caráter fascista. O que pude perceber é que tanto o patrianovismo
como o integralismo tinham alguns pontos em comum. Em um momento de forte
reivindicação dos operários, tanto o patrianovismo como o integralismo representaram
movimentos de reação das classes médias, alicerçados nos ideais católicos e
ardorosamente contra o capitalismo liberal e o comunismo.
A ligação estreita entre Arlindo Veiga dos Santos e o integralismo pode ser
evidenciada por um artigo publicado no A Voz da Raça e escrito por Plínio Salgado:
“ O Brasil está devendo até a raiz dos cabelos. O Brasil está em
20 naçõesinhas petulantes que não respeitam a Grande Nação.
74
O Brasil está repleto de companhias, sindicatos, bancos
estrangeiros que lhe desceram as entranhas. O Brasil tem na barriga
uma flora de partidos imorais. O Brasil sofre s sarna de uma imprensa
escandalosa, quase toda vendida a grupos de panelinhas. O Brasil está
atacado de grangenas comunistas. O Brasil está deformado, feio,
triste, gafaento. Sempre deitado, até o Hino Nacional.
Um gigante “deitado eternamente em berço esplêncido”.
Ridículo.
Alerta! Alerta! Alerta! Mocidade da Pátria.
De pé, Moços!
Entremos violentamente na história!
Salvemos o Brasil.”
116
O anticomunismo era uma das maiores lutas, não apenas pelo que representava o
regime político em sí, mas também porque grande parte dos que defendiam os ideais
comunistas eram estrangeiros e internacionalistas. Essa luta anticomunista é um exemplo
claro da influência patrianovista de Arlindo Veiga dos Santos na Frente Negra. O
presidente afirmava que democracia e comunismo não são antagônicos, ao contrário, “ a
democracia é o comunismo em potência”. A verdadeira oposiç ão ao comunismo seria a
monarquia, defendida por ele. Também o chefe da milícia frentenegrina, Pedro Paulo
Barbosa, criticava com veemência o comunismo, afirmando que o regime assassinava
mulheres e crianças, não respeitando a família e abstraindo o Homem:
“ Na Rússia, o comunismo implantou o mais despótico regime de
que se há notícia... Portanto, se não quiseres cair nas garras aduncas
desse mostrengo, fujamos dele e o evitamos e, ainda mais, cerremos
fileiras em torno das autoridades legitimamente constituídas.”
117
O anticomunismo estava diretamente ligado ao autoritarismo, embora, como se
saiba, a história tenha mostrado não haver propriamente incompatibilidade alguma entre
comunismo e autoritarismo. Mas as idéias de igualdade social, e a perspectiva futura de
116
A Voz da Raça. Nº 38
117
A Voz da Raça. Nº 19
75
ausência de hierarquia amedrontavam os patrianovistas e esse sentimento contagiou os
frentenegrinos.
A democracia liberal era extremamente questionada e o autoritarismo estava
presente de forma clara. Inúmeros são os artigos que condenam os métodos democráticos
de participação popular e exaltam a obediência e a hierarquia. Por exemplo, este,
publicado no número 40 do jornal A Voz da Raça:
“ Nunca um povo que manda pode andar direito. Nunca povo
algum em que assembléias decidiram realmente valeu coisa alguma no
mundo. Onde mandam muitas mil cabeças, aí tudo vai a guerra.
Atentando à isso, deve o povo frentenegrino seguir o bom
caminho a respeito do governo no meio social.
Nada de apelar para assembléias gerais, que são contra os
nossos Estatutos! Nada de quererem todos mandar!
Por isso CONFIANÇA NOS CHEFES.
Os povos que ilusoriamente pretendem mandar vão todos
ficando roubados, encrencados, arruinados. Vede os Estados Unidos
com todo o seu orgulho!
Mandaram tanto e se estragaram tanto, por isso que agora
apelam para a disciplina de um governo forte, autoritário, como é
Roosevelt.
Quais as nações mais poderosas e marcantes atualmente no
mundo? As que obedecem: Japão, Itália, Portugal, Alemanha, Turquia,
Rússia (apesar da lama comunista), Inglaterra...
Quais as mais estragadas? Todos os países liberais-
democráticos, como os infelizes povos que mandam da nossa querida
AMÉRICA IBÉRICA.”
118
A Frente Negra Brasileira orgulhava-se de ter implantado internamente uma
disciplina rígida e unidade de comando, onde ninguém discutia ou questionava o poder
do chefe. O encantamento com os regimes autoritários era tanto que as lideranças da
Frente Negra exaltavam, sem o menor pudor, as atitudes racistas de Hitler. Para os
frentenegrinos, Hitler era um exemplo de governante forte, que estava recuperando um
país em processo de decadência. No número 29 do jornal A Voz da Raça, o próprio
Arlindo Veiga dos Santos escreveu:
118
A Voz da Raça. Nº40.
76
“ Nações que se prezam, que tem uma doutrina nova e séria
como a Itália e a Alemanha atuais, não podem permitir que uns
pândegos da democracia liberal, os ladrões que até hoje vivem
gritando os “imortais princípios” da revolução francesa, os
socialistas anarquizadores e os comunistas criminosos pregam
libertariamente a sua estupidez...
Hitler, na Alemanha, anda fazendo uma porção de coisas
profundas. Entre elas a defesa da raça alemã, defesa que chega até o
exagero.
E um aspecto vivo desta atuação está no incêndio de muitos
livros de escritores alemães traidores da época de fraqueza do Estado
Alemão, livros que pregavam coisas inconvenientes à afirmação e
renovação da Germânia. E especialmente na questão da Raça. Hitler
quer a afirmação da Raça alemã. Por isso, age logicamente. Fogo nos
livros inimigos da pureza social germânica! Fogo em tudo que possa
diminuir o orgulho alemão!”
119
Parece contraditório uma instituição que defende os interesses dos negros, exaltar
um governo que ultrapassava todos os obstáculos em busca da construção de uma
sociedade composta apenas por “arianos puros”. Parece, mas não é. A liderança da Frente
possuía uma argumentação defensiva para essa acusação. Não se colocava em questão
qual era a “raça” superior, qual era melhor e qual era pior em relação às outras. A
questão principal era defender sempre a “raça” formadora do país, valorizando o tipo
nacional:
“ Que nos importa que Hitler não queira, na sua terra, o sangue
negro? Isso mostra unicamente que a Nova Alemanha se orgulha de
sua raça. Não queremos saber de arianos. Queremos o Brasil negro e
mestiço, que nunca traiu nem trairá a Nação.
Nós somos contra a importação do sangue estrangeiro que vem
atrapalhar a vida do Brasil, a unidade da Nossa Pátria, da nossa
Raça, da nossa língua.
Hitler afirma a raça alemã. Nós queremos a raça brasileira,
sobretudo o seu elemento mais forte: o Negro Brasileiro.”
120
119
A Voz da Raça. Nº 29. Texto de Arlindo Veiga dos Santos.
120
A Voz da Raça. Nº 27.
77
“ Nós também temos uma raça! Se não há, como não pode
haver, um só tipo nacional, somos uma Raça Mestiça, com os nossos
negros, cafusos, caboclos, negróides, brancóides, e até os bugres que
ainda moram no mato”.
121
Evidentemente, a Frente Negra não defendia a valorização de uma “raça” pura,
formada por uma única origem étnica. Todavia, reconhecia a existência de uma “raça”
brasileira, que deveria ser defendida e priorizada sempre:
“ Vem encrencando nossa vida, essa mania que inúmeros
imbecis têm de querer fazer da Nação Brasileira um povo Ariano,
destruindo assim a Raça Mestiça que o brasileiro é!
...
Porquê, então, não afirmamos sempre a nossa Raça negro-índio-
lusa que era e continua a ser qualquer coisa de novo e soberbo no
mundo?!”
122
Percebe-se claramente a tentativa de eliminar as influências das teorias racistas do
século XIX, assim como criar um sentimento de identidade nacional, de individualidade
em relação aos outros países. Na verdade, a Frente Negra Brasileira absorvia toda a luta
nacionalista do governo Vargas. Apesar de ser uma instituição para defender os direitos
dos negros, a Frente colocava a luta nacionalista paralelo à luta racial, como o mesmo
peso e a mesma medida.
121
A Voz da Raça. Nº 12.
122
Idem. Texto de Arlindo Veiga dos Santos.
78
3.2 - ATUAÇÃO POLÍTICO-ELEITORAL
Durante toda a trajetória da Frente Negra Brasileira, a instituição sempre procurou
evitar assumir claramente seu caráter político. Todavia, é possível perceber uma
mudança na segunda metade do ano de 1934.
Desde 1931, ano de sua fundação, até junho de 1934, a presidência esteve sob o
comando de Arlindo Veiga dos Santos. O então presidente, que, como foi mencionado
anteriormente, já tinha participado da fundação de um órgão com caráter político, o
patrianovismo, tinha por costume evitar ao máximo discussões estritamente políticas. A
meu ver, há algumas hipóteses que podem explicar essa atitude. Inicialmente é preciso
compreender que a população negra, no início do século, era muito dispersa. O primeiro
passo para o êxito de qualquer organização era estimular a união e o sentimento de
solidariedade entre seus membros. Quando se parte de questões políticas, a probabilidade
de surgirem divergências é muito maior. Por isso, tentando congregar os negros, a Frente
tinha como estratégia evitar polêmicas e debates sobre vertentes políticas. O início
deveria ser baseado em questões do senso comum, em lutas e anseios que fossem
compartilhados por todos, como, por exemplo, saúde, educação, moradia etc. Por outro
lado, o fato de Arlindo Veiga dos Santos ser presidente da Frente e fazer parte do
patrianovismo, uma doutrina polêmica que defendia o retorno da monarquia, poderia
fazer com que muitas pessoas reconhecessem no patrianovismo e na Frente Negra a
mesma coisa, dificultando e prejudicando a aceitação da Frente.
Além disso, cabe ressaltar também que as discussões mais idealistas e politizadas
eram evitadas na tentativa de impedir a acusação de que a Frente Negra estava criando o
ódio racial e a segregação, até então inexistente (para muitos) no Brasil. Enfim, a
neutralidade e cordialidade eram perseguidas a todo custo, pois a Frente necessitava do
apoio de todos os segmentos da sociedade.
Apesar de tudo isso, nas eleições para a Constituinte de 3 de maio de 1933, Arlindo
Veiga dos Santos candidatou-se. As eleições para a Assembléia Nacional Constituinte
revelaram grande impulso na participação popular e partidária, embora o resultado tenha
79
demonstrado a força das elites regionais. Não existia um grande partido de proporções
nacionais, visto que os comunistas estavam na ilegalidade. A constituinte eleita
promulgou a nova constituição em 14 de julho de 1934, inspirada do modelo de Weimar,
e, no dia seguinte, elegeu Getúlio Vargas pelo voto indireto para a presidência da
república. Questões importantes transformaram-se em leis: a nacionalização das minas,
jazidas e quedas d’água de interesse nacional; ensino primário gratuito e freqüência
obrigatória, com exceção da disciplina religiosa; serviço militar obrigatório; eleições
diretas para presidente da repúb lica, marcada para maio de 1938 (que acabou não
acontecendo); e importantes leis trabalhistas, como a proibição de diferença salarial pela
prestação de mesmo serviço, salário mínimo, descanso semanal, férias remuneradas e
indenização por dispensa sem justa causa. Além disso, adotava-se um sistema de
representação classista, obtida através de associações profissionais e patronais, que
reunissem tanto empregados como empregadores, inspirada no regime fascista.
A candidatura de Arlindo Veiga dos Santos não estava vinculada à Ação Imperial
Patrianovista Brasileira, visto que a mesma não se organizara como partido político por
orientação da Igreja católica. Segundo as fontes, não houve tempo hábil para a
candidatura sair oficialmente vinculada à Frente, por isso Arlindo disputa como candidato
avulso, embora, na prática, a Frente Negra tivesse assumido todas as responsabilidades.
O programa “Orgânico-Sindicalista” apresentado pelo candidato no jornal A Voz
da Raça, em abril de 1933, reflete a ideologia patrianovista:
“ O meu programa poderia resumir-se nesta fórmula simples:
A TERRA, O SANGUE, O TRABALHO E O ESPÍRITO.
O Estado que defenderei para o Brasil, como necessidade
absoluta da valorização da Terra, do Sangue, do Trabalho e do
Espírito, é o ESTADO ORGÂNICO-SINDICALISTA, em que se
representarão realmente as forças produtoras da nação, destruindo
automaticamente todos os agentes da exploração nacional que se
criam e sustentam no desmoralizado Estado liberal-democrático. ( ...)
A nacionalização do comércio e a proteção à lavoura, às
indústrias nativas, abandonadas a si mesmas ...
Esse plano de renovação, agora dificílimo de executar, sê-lo-á
gradualmente com mais facilidade para o futuro, com a educação do
povo coordenado nas corporações de ofícios cuja técnica e
80
funcionamento, esboçado na Colônia, foram vedados pela Era
democrática, para mal do povo brasileiro e gozo de alguns
demagogos e politiqueiros. Fundados, pois, os sindicatos verticais,
dentro do espírito cooperativo cristão, harmonizar-se-ia a questão do
capital e do trabalho ...
Nas corporações está toda a felicidade do operário:
aprendizagem profissional, seguros, assistência de toda espécie,
salário familiar garantido ...
Afinal, no problema da terra, estabelecemos a fórmula incisiva:
TODA A TERRA DO BRASIL A TODOS OS BRASILEIROS.
EXTINÇÃO DAS CONCESSÕES ESTRANGEIRAS. (...)
No problema do sangue, isto é, da raça, será a primeira medida:
A SUSPENÇÃO DA IMIGRAÇÃO POR VINTE ANOS.
Valorização moral, intelectual, física e econômica das
populações negras e mestiças ...
Enforquemos o tal espírito de arianos, que faz tanto mal aos
negróides do Brasil...
Se o Brasil não tem um tipo racial, tem todavia uma raça. Essa
precisa ser defendida, valorizada, educada, melhorada por si mesma e
não por transfusão de outros sangues, apenas teoricamente melhores.
O Estado Orgânico-Sindicalista é o Estado dos Produtores, dos
que de qualquer maneira trabalham. Parasitas não tem lugar...
Quanto à defesa do Espírito, isto é das tradições nacionais, dos
costumes nacionais, que não podem ser perdidos por causa de uma
minoria de alucinados por doutrinas materialistas...”
123
Como já era de se esperar, Arlindo Veiga dos Santos não se elegeu, mas a Frente
Negra considerou a sua candidatura como uma vitória moral, na medida que existia um
candidato representando os negros brasileiros.
A questão é que pouco a pouco a instituição vai assumindo mais seu lado político.
A reviravolta ganha mais impulso quando Arlindo Veiga dos Santos sai da presidência,
em junho de 1934, e assume Justiniano Costa, acompanhado de Conselheiros mais
jovens. A Frente Negra percebe que os negros sempre eram utilizados como cabos
eleitorais, mais nunca obtinham oportunidades concretas. A nova estratégia era apresentar
e eleger candidatos, para que os negros tivessem verdadeiramente seus representantes nas
esferas do poder público.
123
A Voz da Raça. Nº 7.
81
Em agosto de 1936 a Frente Negra transforma-se oficialmente em partido político,
e por ter delegações em vários estados, torna-se um partido de proporções nacionais, o
que não era comum na época. A vida do partido, contudo, é efêmera, pois todos os órgãos
políticos são dissolvidos em 1937 pela lei do Estado Novo.
3.3 - O OFICIALISMO
O perfil doutrinário do Estado Novo começou a ser moldado no início dos anos de
1930, utilizando idéias e referenciais discutidos desde a década de 1920. Durante esse
período, o governo sempre buscou legitimar suas ações a partir de uma ideologia, um
sistema de símbolos externos, que tentava justificar os seus empreendimentos. A urgência
deste sistema foi assim apontada por Lúcia Lippi de Oliveira:
“Quando a influência de uma tradição diminui em uma
sociedade, quando os comportamentos cotidianos não fornecem uma
imagem aceitável do processo político, as ideologias tendem a assumir
um papel de destaque. As ideologias surgem como resposta à perda de
orientação e representam ‘mapas de uma realidade social
problemática e matrizes para a criação da consciência coletiva’.
(...) é no contexto nacional e internacional dos anos 30 que
podemos entender o significado das propostas autoritárias e
centralizadoras dos intelectuais ocupados em formular uma nova
ideologia, capaz de responder aos impasses da nação e às orientações
para o Estado”.
124
Embora não caiba aqui uma análise sobre a doutrina do Estado Novo, vale a pena
mencionar os três alicerces fundamentais que, segundo Lúcia Lippi Oliveira, sustentavam
o regime, na medida que também estavam estruturalmente presentes na Frente Negra
Brasileira.
124
Gomes, A . M. de C.; Oliveira, L. L. e Velloso, M. P. Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de
Janeiro: Zahar, 1982. P. 10.
82
De acordo com a autora, três grandes eixos marcaram o pensamento dos anos 30, e,
conseqüentemente, do Estado Novo: o elitismo, o conservadorismo e o autoritarismo.
Analisando o texto de Lúcia Lippi, podemos perceber que os ideais e as doutrinas oficiais
do governo de Getúlio Vargas, citados por ela, estavam presentes no interior da Frente
Negra Brasileira.
No que diz respeito ao elitismo, havia uma nova geração, formada principalmente
por intelectuais e militares, que se auto-denominavam “boa-elite”, como se fossem uma
minoria estratégica possuidora de um papel central no processo político. Essa elite
“iluminada” condenava o uso da maioria para a organização do governo. A Frente Negra
Brasileira incorporou esse elitismo, na medida que não concordava com a democracia
liberal e condenava a atuação do povo nas decisões políticas. Como já foi demonstrado
anteriormente, a Frente Negra exaltava seu caráter autoritário e hierárquico, onde os
chefes teriam poder absoluto.
O conservadorismo, que para Lippi Oliveira não seria a defesa intransigente do
status quo, e sim uma concepção de mundo onde a ordem, a hierarquia e a tradição
possuiriam um papel preponderante, também era personificado pela Frente Negra. A
estrutura e organização interna da instituição exaltavam sempre o respeito à hierarquia,
cobravam comportamentos inseridos no padrão dominante da sociedade e buscavam
também seguir tradições e costumes sugeridos pelo governo.
Sobre o nacionalismo, a relação era evidente. Assim como já foi demonstrado
anteriormente, a ideologia nacionalista do governo de Getúlio Vargas foi aceita
integralmente pela Frente Negra Brasileira. A centralização política do governo federal,
controlando todo o território brasileiro, era admirada pelos integrantes da Frente, assim
como a exaltação dos símbolos nacionais, a valorização das “raças” formadoras do país e
a preocupação em desenvolver a economia nacional.
Esse tripé - elitismo, conservadorismo e nacionalismo -, que, segundo Lúcia Lippi,
era a base da doutrina ideológica do Estado Novo, esteve presente na Frente Negra
Brasileira, evidenciando claramente o caráter oficialista da instituição. Na verdade, a
Frente realizava um simulacro, absorvendo e repassando o discurso dominante do
governo de Getúlio Vargas.
83
Desde o início da sua formação, a Frente Negra Brasileira sempre defendeu o
governo de Getúlio Vargas. Sua posição política ante o cenário nacional sempre divergiu
da posição adotada pelo grupo do jornal Clarim d’Álvorada. Essa divergência refletia
suas ideologias políticas. Enquanto a Frente Negra era liderada por Arlindo Veiga dos
Santos, patrianovista convicto, o jornal Clarim d’Álvorada era liderado por José Correia
Leite, adepto dos ideais socialistas. Durante a eleição presidencial de 1930, o Clarim
apoiou a candidatura de Júlio Prestes, contra Getúlio Vargas, mesmo sendo Prestes um
candidato do PRP, representante da aristocracia paulista, identificada pelos negros como
a responsável pelos males decorrente da escravidão.
A Frente Negra, ao contrário, sempre apoiou Getúlio Vargas. Durante a Revolução
Constitucionalista de 1932, a Frente recebeu até mesmo ameaças por não ter ficado ao
lado dos paulistas, sendo acusada de traidora. Foi neste contexto que um grupo de negros,
descontente com a posição assumida pela instituição, afastou-se dela e, liderados por
Guaraná de Santana, fundou a Legião Negra. José Correia Leite rememorou, depois, o
papel desta Legião nos sucessos de 1932:
“ Por fim, para resguardar a situação do negro diante dos
acontecimentos, o Guaraná de Santana entrou em contato com um
coronel do exército, chamado Goulart, e então foi fundada a Legião
Negra, instalada num velho casarão da Chácara do Carvalho, na
Barra Funda. ( ...)
Comemoram a Revolução de 32, mas ninguém cita, e muita gente
nova não sabe que existiu a Legião Negra e o que ela fez. Muitas vezes
saíram caminhões para a Chácara do Carvalho para dar reforço. Eles
não desfilavam aí pela cidade para ganhar flores, Iam direto para as
trincheiras. (...)
... eram preparados às pressas. Não levavam mais do que dois ou
três dias para aprender a lidar com o fuzil e essas coisas, e já estavam
aptos para ir para a guerra. E eram só negros. Era mesmo uma
entidade só de negros.”
125
Enquanto o grupo do jornal Clarim d’Álvorada criticava Getúlio Vargas, a Frente
Negra Brasileira estava sempre exaltando a sua capacidade administrativa, a sua
125
Leite, José Correia. Op.Cit. P. 104.
84
liderança. Toda essa exaltação passava principalmente pelo caráter autoritário de seu
governo, pela ausência da democracia liberal, tão criticada por Arlindo Veiga dos Santos.
As divergências políticas entre os dois principais grupos negros da década de 1930,
dificultaram a união em uma só instituição. Apesar de apoiar e participar da fundação da
Frente, José Correia Leite e o grupo do jornal se afastaram logo no início de 1932,
realizando forte oposição.
3.4 - AS DIVERGÊNCIAS
Desde o início da fundação do jornal Clarim d’Alvorada, em 1924, os membros do
jornal, principalmente José Correia Leite, já afirmavam a necessidade de união dos
negros em apenas uma instituição. A intenção era congregar as diversas associações. Em
1925 o jornal inicia uma campanha para fundar um partido político, o Congresso da
Mocidade dos Homens de Cor. As dificuldades de unir os negros eram imensas:
desconfianças, disputas de poder, além de críticas por parte de alguns, que afirmavam
que o grupo estava criando o ódio e a segregação racial, até então inexistentes no Brasil.
Em 1926, o jornal substituiu a idéia do partido político pela criação de uma
Associação Cristã de Moços de Cor. As dificuldades foram as mesmas. Ainda no
mesmo ano, o grupo do Clarim d’Alvorada tentou organizar o Primeiro Congresso de
Pretos do Brasil, intencionando até mesmo obter financiamento internacional para a
realização do evento. Um ano após, o jornal ainda publicava artigos discutindo as
dificuldades e as barreiras encontradas para realizar com êxito o encontro. Por isso, em
1929, minimizava a idéia inicial, tentando organizar o Congresso da Mocidade Negra
de São Paulo. José Correia Leite, nas suas memórias, comentou os eventos da época:
“ Nós soltamos a idéia da realização de um congresso com o
nome de Congresso da Mocidade Negra. Agora, você pode imaginar o
espanto desse evento, numa época em que se procurava negar a
existência de qualquer questão ou problema racial no Brasil. No
85
entender de muitos era mais uma questão de atrevimento, de querermos
criar um quisto racial. Isso em 1928.”
126
A tentativa de realizar o congresso mobilizou todos os líderes negros, membros de
jornais da imprensa negra, diretores das associações recreativas e também os intelectuais
negros, futuros fundadores da Frente Negra Brasileira. Eventos eram realizados com o
objetivo de angariar fundos e até Arlindo Veiga dos Santos publicou um longo artigo no
Clarim d’Alvorada, defendendo a organização do congresso e explicitando as vantagens
da união dos negros.
Apesar de toda a luta das lideranças negras, o congresso não teve condições de ser
realizado. Faltavam recursos materiais e apoio tanto dos negros como dos brancos, como
já foi citado acima. Em 1930, o jornal reconheceu a incapacidade de realizar, naquele
momento, qualquer tipo de organização mais ampla entre os negros. Arlindo Veiga dos
Santos também reconhecia a derrota e afirmava que a incapacidade de realizar o
congresso evidenciava claramente a incompetência moral e intelectual em que se
encontravam os negros brasileiros.
Parece bem razoável reconhecer que a decepção pela não realização do congresso
tenha motivado Arlindo Veiga dos Santos a organizar a Frente Negra. Inicialmente, como
foi descrito, o grupo do jornal Clarim d’Alvorada e as lideranças que fundaram a Frente
se entendiam muito bem e possuíam as mesmas aspirações. Tanto o Clarim como o jornal
Progresso publicavam constantemente notícias, artigos e informações sobre a nova
entidade negra paulistana, mesmo porque o periódico oficial da Frente, o jornal A Voz da
Raça, somente iniciou sua publicação em 1933.
Em 1931, ano de fundação da Frente Negra Brasileira, o Clarim d’Alvorada
publicou um editorial da Frente Negra em que José Correia Leite aparecia como diretor
de redação da entidade. Todavia, a união e o apoio não durariam muito. O caráter
autoritário e antidemocrático adotado pela instituição, inspirados na ideologia
patrianovista de Arlindo Veiga dos Santos, desagradaria o grupo do jornal Clarim
d’Alvorada. O clímax do desentendimento ocorreu no dia da aprovação do estatuto.
126
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 83.
86
Segundo José Coréia Leite o grupo do jornal foi impedido de entrar no Palacete Santa
Helena, na medida que iriam votar contra àquele estatuto que consideravam fascista.
“ Quando nós chegamos ao Palacete Santa Helena, fomos
barrados. Não deixaram a gente entrar e os estatutos foram
aprovados. Eu era membro do conselho e mesmo assim não me
deixaram entrar, porque sabiam que eu ia denunciar aquela coisa do
Arlindo Veiga dos Santos estar usando a Frente Negra pra veicular as
idéias monarquistas do patrianovismo dele. Eu fui consignado para
participar do Conselho da Frente Negra antes da aprovação dos
estatutos. De modo que quando houve a assembléia para a aprovação,
aí que iam formar legalmente o conselho, que já tinha sido escolhido
antes. Quando aprovaram os estatutos, com apenas dez artigos,
comecei a pensar na minha demissão.”
127
Pensou e fez. Correia Leite escreveu uma carta à direção da Frente Negra e pediu
demissão do cargo. O pedido foi imediatamente aceito. O motivo principal da
divergência, segundo Correia Leite, foi o autoritarismo da instituição e as idéias políticas
defendidas por seu presidente:
“ Nós do grupo d’O Clarim d’Alvorada, no dia que foram
aprovados os estatutos finais, íamos combater porque não
concordávamos com as idéias de Veiga dos Santos (Arlindo). Era um
estatuto copiado do fascismo italiano. Pior é que tinha um conselho de
40 membros e o presidente desse conselho era absoluto. A direção
executiva só podia fazer as coisas com ordem desse conselho. O
presidente do conselho era Arlindo Veiga dos Santos, o absoluto.”
128
Embora esse tenha sido o motivo principal, ocorreu um outro fato importante: um
caso extraconjugal de Isaltino Veiga dos Santos, irmão do presidente. A moral era muito
valorizada. As lideranças negras deveriam servir de exemplo para os outros negros e
comportamentos inadequados não eram tolerados. Quem segue contando é ainda José
Correia Leite:
127
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 94.
128
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 94.
87
“ Houve um convite da cidade de São Sebastião do Paraíso
para a abertura de uma sucursal da Frente Negra Brasileira. Foi o
Isaltino, o Vicente Ferreira e outro cidadão que eu não me lembro o
nome. Mas não passou muito tempo, veio um ofício de lá contando que
Isaltino tinha se engraçado com uma moça de uma das mais
importantes famílias da cidade, começando um namoro, e prometido
mundos e fundos. Mas acabaram descobrindo que o Isaltino era um
sujeito casado que não podia fazer nada daquilo. E a moça estava
certa de que tinha arranjado um noivo. Aí o pessoal da cidade queria
que o Isaltino fosse punido. Então naquele ofício, que eles enviaram
para nós, diziam que tinham escrito várias vezes para a Frente Negra
sem obter resposta, e por isso estavam apelando para o Clarim
d’Alvorada.”
129
O grupo do jornal, que já estava insatisfeito com as atitudes da Frente e com o
autoritarismo dos irmãos Veiga dos Santos, assumiu a responsabilidade de obter
satisfações de Isaltino. Dirigiu-se à sede da instituição com a carta em mãos e, segundo
Correia Leite, foram tratados com descaso e a atitude imoral de iludir com mentiras uma
jovem do interior de Minas Gerais foi justificada apenas como uma “leviandade de
jovem”. Esse caso acirrou ainda mais as divergências entre os dois grupos e
periodicamente eram publicados artigos com críticas agressivas de ambos os lados.
Com a intenção de preservar a seriedade e o trabalho até então realizado pelo
Clarim d’Alvorada havia quase dez anos, José Correia Leite decidiu fundar um outro
jornal, tipo pasquim, intitulado Chibata, para poder criticar amplamente a Frente Negra
Brasileira.
“Quando eles começaram com certas provocações, nós
deixamos claro que não íamos manchar o nome do jornal numa luta de
bate-boca. Suspendemos as edições d’O Clarim d’Alvorada e fundamos
um jornal com o nome de “Chibata”. E aí começamos a atacar
frontalmente todos eles. Saiu o primeiro número da Chibata, saiu o
segundo, quando ia sair o terceiro eles mandaram uns fanáticos
empastelar o jornal. Mas o negócio não era bem empastelar, a
129
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 99.
88
intenção era dar uma surra na gente, porque eles vieram armados de
paus. Mas acho que eles chegaram lá e não tiveram coragem.”
130
O caso citado acima, no depoimento de Correia Leite, de fato ocorreu. Outros
jornais da imprensa negra publicaram artigos de solidariedade ao grupo do Clarim
d’Alvorada. Não houve ataque às pessoas, mas a redação do jornal, que funcionava nos
fundos da casa de Correia Leite, foi parcialmente destruída.
131
Correia Leite foi à delegacia denunciar o ocorrido e acusar Arlindo Veiga dos
Santos como o mandante do crime. A polícia aceitou a queixa e intimou o presidente da
Frente Negra a depor sobre o ocorrido. Veiga dos Santos foi até a delegacia
acompanhado de Guaraná de Santana, membro da Frente Negra e advogado. Ao chegar à
delegacia, também acusou Correia Leite de ser um subversivo e comunista, levando como
prova da denúncia a carta de demissão escrita por Correia Leite à direção da Frente
Negra. Segundo Correia Leite, o delegado o defendeu, alegando conhecer o jornal Clarim
d’Alvorada e afirmando que se alguém era contra a ordem estabelecida, esse alguém era
o próprio Arlindo, que defendia o retorno da monarquia no Brasil.
Apesar de ter havido um inquérito policial, este foi arquivado por falta de provas.
Todavia, o lançamento do jornal Chibata, que nos modestos dois exemplares, teve o seu
conteúdo dedicado integralmente a criticar a Frente Negra, assim como o ataque à sede
do jornal Clarim d’Alvorada, refletiram claramente o grau da divergência que assolava os
dois lados, que meses antes estavam do mesmo lado da luta. Após esse fato, o Clarim
d’Alvorada ainda teve mais um número publicado e depois realizou uma paralisação
temporária, somente voltando a ser editado em 1940, devido a dificuldades financeiras
sofridas por Correia Leite, que tinha perdido seu emprego e não podia mais pagar o
aluguel da casa onde morava e funcionava a redação do jornal.
132
Enquanto isso, a Frente
Negra Brasileira continuava criticando o grupo, acusando-o de ser formado por “judas da
130
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 100.
131
O empastelamento ocorreu em 19 de março de 1932.
132
O jornal Clarim d’Alvorada teve três fases: a primeira corresponde ao período entre
06/01/1924 e 15/10/1927. Durante esse primeiro período, até a edição de 06/04/1924, o nome do
jornal era apenas O Clarim. O título Clarim d’Alvorada surge na edição de 13/05/1924, devido à
motivos já explicitados. A segunda fase inicia em 05/02/1928 e termina em 13/05/1932. A
terceira somente vai iniciar em 28/09/1949.
89
raça”, por traidores invejosos que não aceitavam o sucesso do trabalho realizado pela
Frente Negra Brasileira.
Nas suas memórias, José Correia Leite informa que, após a paralisação da
publicação do Clarim, José de Assis Barbosa, vulgo Borba, lhe ofereceu uma casa para
que morasse e também fizesse dela a sede de uma nova entidade. Em julho de 1932, o
grupo do jornal Clarim d’Alvorada fundou o Clube Negro de Cultura Social:
“ ... aqueles ideais de pregação d’O Clarim d’Alvorada, o
esforço para ser criada uma ideologia a fim de que o negro pudesse se
orientar, não por uma pessoa, mas por idéias, tudo aquilo dentro de
um clube não era possível. Não sei porque cargas d’água as pessoas
que eram conhecidas como militantes não deram tanta atenção para o
Clube Negro de Cultura Social, que acabou sendo um chamariz para a
mocidade. Eu não sei como a sociedade se tornou um clube
tipicamente de moços. Então eu virei um esportista. O clube, depois de
terminada a revolução, começou a se estruturar na base do
esporte.”
133
A crise e o enfraquecimento não atingiram apenas o grupo do Clarim. A Frente
Negra também passou por outras divergências internas que desencadearam a saída dos
irmãos Veiga dos Santos.
Quando terminou a Revolução de 32, a Frente se sentia pessoalmente vitoriosa, na
medida que apoiara Getúlio Vargas. Os frentenegrinos organizaram uma passeata para
parabenizar o interventor paulista, mas não foram recebidos. Posteriormente, Isaltino
Veiga dos Santos foi para o Rio de Janeiro, com todas as despesas pagas pela Frente
Negra, para uma audiência com o presidente, mas não trouxe nada de positivo. Não há
indícios concretos sobre os motivos que levaram à saída dos irmãos Veiga dos Santos,
mas tudo indica que não houve uma única causa, e sim desgastes gradativos.
Cabe aqui um parêntese sobre Isaltino Veiga dos Santos. Segundo José Correia
Leite, os seus ideais e suas perspectivas não tinham muita aproximação com as idéias de
seu irmão Arlindo. Parece que Isaltino era um aventureiro, que na verdade buscava uma
133
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 110, 111.
90
promoção pessoal, sem grandes compromissos políticos. Correia Leite descreve um fato
ocorrido após a saída de Isaltino da Frente Negra, que pode melhor explicitar o assunto:
“ Mas o Isaltino, depois de um tempo fora da Frente Negra,
entrou num movimento político de esquerda muito sério. Foi quando
começou a Aliança Libertadora. E, como o Isaltino na Frente Negra
teve uma atuação meio revolucionária ( ele publicava circulares
agressivas contra o regime capitalista), pensaram mesmo que ele fosse
de esquerda.”
134
Isaltino chegou até mesmo a ser preso pela publicação de um manifesto e, após a
prisão, desistiu de militar na esquerda, negando sempre ser um comunista.
A partir de 1934, quando Arlindo Veiga dos Santos se afastou da presidência da
Frente Negra, a instituição começou a assumir mais explicitamente um caráter político.
Mas nos últimos dois anos de existência, o enfraquecimento da Frente foi gradativo e
constante. A saída de Arlindo, o grande líder, é exemplar. Paralelo à isso, podemos até
mesmo refletir se não foi essa nova atuação mais política, que acabou por afastar muitos
associados, enfraquecendo a instituição. É preciso nos reportarmos também para o
momento político vivido pelo país. A tensão aumentava dia após dia. Em 1935, o
Tribunal de Segurança Nacional prendeu várias pessoas, acusadas de subversoras da
ordem social. A lei do Estado Novo foi o golpe final. Por ter se transformado em partido
político, a Frente Negra Brasileira estava oficialmente proibida de continuar suas
atividades. A repressão e violência impostas pelo Estado Novo fizeram com que o grupo
da Frente se dispersasse de fato, sem deixar vestígios. Mesmo porque durante toda a sua
existência, nunca foi sua intenção ir contra as ordens do governo Vargas.
Alguns jornais e associações recreativas continuaram atuando. Todavia, movimento
negro, com caráter reivindicatório, só vai retornar de fato na década de 1970 e com
características e idéias bem diferentes das defendidas pela Frente Negra. Cada um sendo
fruto do seu tempo.
134
Idem. P. 116.
91
CONCLUSÃO
A pesquisa sobre a Frente Negra Brasileira foi muito reveladora. Pessoalmente,
apesar de reconhecer as dificuldades em manter a tão sonhada imparcialidade diante do
objeto de estudo, acredito que, na medida e no limite em que esse distanciamento é
possível, ele foi alcançado nessa pesquisa. Evidentemente, a partir do momento em que
optamos por um objeto, em detrimento de outros, já estamos sendo parciais, revelando
nossas preferências e afinidades. No meu caso, por exemplo, o estudo da Frente Negra
Brasileira se apresentou altamente instigante por apresentar, concomitantemente, três
elementos que muito me interessam: relações raciais, representações políticas e o governo
de Getúlio Vargas. Até então, nada de imparcial. O que poderia confirmar a afirmação
feita inicialmente, de que um desejado grau de distanciamento foi alcançado?
A questão é que quando iniciei as primeiras pesquisas sobre a Frente Negra, o que
mais me chamou a atenção, o que mais me pareceu interessante e inédito, era o fato de
que o início do movimento negro “institucionalizado” no Brasil, tinha como base e
influência política, teorias autoritárias, antidemocráticas, oficialistas e até mesmo
fascistas. Uma primeira leitura rápida e superficial não consegue eliminar um certo
sentimento de estranhamento e contradição ao se deparar com uma organização
reivindicatória formada por negros - grupo “dominado”, agredido e forçado ao trabalho
e ao cativeiro, sem em contrapartida, receber assistência e recompensa adequada - que
defenda o autoritarismo, a desigualdade de direitos políticos, o governo oficial e teorias
políticas baseadas no racismo.
135
Foi justamente essa contradição que me interessou e que
guiou os meus estudos durante grande parte da pesquisa.
A contradição era evidente. No entanto, foi esse certo grau de distanciamento e
imparcialidade que fez com que eu chegasse, na leitura das fontes, a conclusões que vão
além das minhas hipóteses originais. Se inicialmente existia uma análise baseada na
135
As aspas vêm por conta do fato de que os escravos, embora sob o domínio dos senhores,
encontram meios de legar uma herança cultural que, hoje, marca de maneira determinante a
sociedade brasileira.
92
crítica e na acusação, buscando descobrir nessas características citadas, as causas do
fracasso da Frente Negra em servir de porta-vos dos negros por mais de seis anos,
posteriormente as perspectivas foram invertidas. Ao concluir a pesquisa percebo que as
estratégias utilizadas pela Frente Negra foram extremamente relevantes e estavam muito
mais próximas da eficiência e do bom senso, do que muitas idéias defendidas pelo
movimento negro pós década de 1970.
A Frente Negra Brasileira não deve ser entendida isoladamente. Assim como tudo e
todos, foi influenciada pelo momento, sendo fruto de seu tempo. No primeiro e em parte
do terceiro capítulo busquei contextualizá-la, somando elementos para melhor
compreender as escolhas e atitudes tomadas pela Frente. Ao pensarmos no autoritarismo
antidemocrático da Frente Negra, não podemos nos esquecer que o seu período de
existência foi quase integralmente a primeira metade da década de 1930, momento em
que a democracia liberal passava por séria crise. Quando analisamos o nacionalismo e o
oficialismo da instituição, não podemos ignorar o fato de que era Getúlio Vargas o
presidente do Brasil. Vargas manteve sua popularidade, exercendo forte presença junto
aos trabalhadores. Não foi um presidente qualquer, sendo até hoje citado nas campanhas
políticas, uns querendo acabar com a Era Vargas, outros querendo retoma-la, mas todos
concordando que sua influência na formação política do Brasil, principalmente da classe
trabalhadora, foi intensa.
Quando exaltavam Hitler e o fascismo, é preciso lembrar que no início dos anos 30
as crueldades do nazismo ainda não eram amplamente conhecidas. Quando defendiam
uma raça nacional, admitiam que no Brasil esse tipo racial jamais seria “puro”, ao
contrário, sempre seria miscigenado, formado pela união positiva de brancos, índios e
negros, assim como representavam em sua bandeira. Na verdade, a defesa desse “tipo”
brasileiro, nada mais era do que uma das faces do nacionalismo, também tão exaltado
nesta década.
Apesar dessas características, das posturas políticas posteriormente aceitas como
equivocadas, a Frente Negra Brasileira possuía um projeto sério e bem estruturado de
auxiliar negros e mulatos a se integrarem de forma digna na nova sociedade urbana e
industrial que começava a se configurar.
93
Entre as estratégias que mais chamam a atenção está a ausência de um certo
paternalismo que vitimava o indivíduo. A Frente Negra, apesar de reconhecer que o
passado escravista deixou marcas definitivas, e na maioria das vezes, até mesmo
degenerativas, sempre buscou incentivar os negros a olharem para frente, para o futuro.
Analisavam a estrutura escravocrata, mas este não estava entre os pontos centrais de
discussão. O objetivo principal e primeiro era estimular a educação e a auto-estima,
incentivando o esforço individual e responsabilizando os próprios negros, nesse caminho
de superação do estado de anomia e marginalização em que viviam. Lutavam e
reivindicavam ações do governo, todavia acreditavam que uma mudança de postura
individual e coletiva era essencial e facilitaria muito na concessão das justas reclamações.
Buscavam integração e acreditavam que ela viria com uma reestruturação completa
no cotidiano de cada um. A reestruturação passaria, necessariamente, pela educação,
abandono do alcoolismo e da prostituição, acesso à cultura pela qual se pode pagar, e
principalmente uma casa digna, com uma sólida estrutura familiar.
Apesar de criarem toda uma estrutura de auxílio, valorizavam a auto-estima do
negro, afirmando sempre que são tão capazes quanto os brancos em todas as atividades,
inclusive nas intelectuais.
Com o início da ditadura Vargas, a Frente Negra Brasileira foi extinta. O breve
período “democrático”, de 1946 a 1964, não foi suficiente para a ressurreição do
movimento negro em grande escala. Somente na década de 1970 ressurgiu com força,
mas com outras estratégias de luta. Esse novo momento supervaloriza a origem africana e
reafirma explicitamente a separação e diferença racial, com slogans tipo 100% NEGRO.
Para os frentenegrinos, os brasileiros eram mestiços, miscigenados e de todas as cores. A
mãe não era a África, e sim o Brasil. A construção do grupo negro no país não deveria se
reportar a origens exógenas. Antes de serem negros, brancos ou mulatos, eram acima de
tudo, todos brasileiros e com direitos iguais.
A pesquisa foi extremamente relevante e contribuiu para a compreensão de vários
meandros da História do Brasil. Primeiramente, e de forma mais ampla, como já foi
explicitado na introdução, auxilia a análise da formação da classe trabalhadora e do
94
próprio governo de Getúlio Vargas.
136
As décadas de 1920 e 1930 foram cruciais para a
construção da classe trabalhadora no Brasil. Foi um momento de intenso debate, com
várias correntes ideológicas sendo discutidas. Assim como afirma Ângela de Castro
Gomes, “a palavra” estava com os trabalhadores. Justamente nesse momento é que se
inicia a organização do movimento negro, inevitavelmente inserido nesta discussão,
debatendo e sendo influenciado pelas idéias que circulavam. A formação da Frente Negra
Brasileira reflete todas as correntes políticas dominantes na época, e as divergências
internas eram, na verdade, reflexos dessa disputa mais ampla, que se configurava não
apenas no Brasil, mas também em outros países europeus e americanos.
Como não poderia deixar de ser, contribui para a análise e compreensão da
trajetória do movimento negro no Brasil. As relações raciais, tão “intrínsecas ao cotidiano
brasileiro” desde o início da formação do país, devem ser exaustivamente estudadas, em
vista de humanizar e socializar cada vez mais as oportunidades no Brasil.
Em um momento de intenso debate sobre políticas afirmativas e cotas para negros,
talvez seria recomendável lançarmos um olhar para as origens do movimento negro e
suas respectivas estratégias de inserção social. Essa atitude pode nos livrar de, na
tentativa de compensar e corrigir os erros do passado, cair em armadilhas e acabar por
cometer os mesmos erros, discriminando e beneficiando uns em detrimento de outros, de
acordo com a sua origem étnica.
Apesar da Frente Negra Brasileira ser uma instituição já conhecida no meio
acadêmico, não localizei nenhum trabalho de pesquisa específico sobre ela. Espero que a
ordenação cronológica, a contextualização e as idéias aqui expostas tenham contribuído
para uma melhor compreensão das relações raciais e da própria História do Brasil. Ao
menos para mim, a contribuição foi incomensurável.
136
Ver, Gomes, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1994.
95
ANEXOS
* Anexo 1
ESTATUTO DA FRENTE NEGRA BRASILEIRA
“ Art. 1º - Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se irradiar para todo o
Brasil, a Frente Negra Brasileira, união política e social da Gente Negra Nacional, para
a afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e
moral no passado, e para a reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais, na
Comunhão Brasileira.
Art. 2º - Podem pertencer à Frente Negra Brasileira todos os membros da Gente
Negra Brasileira de ambos os sexos, uma vez capazes, segundo a lei básica nacional.
Art. 3º - A Frente Negra Brasileira, como força social, visa à elevação moral,
intelectual, artística, técnica, profissional e física; assistência, proteção e defesa social,
jurídica, econômica e do trabalho da Gente Negra.
Par. Único Para a execução do art. 3º, criará cooperativas econômicas, escolas
técnicas e de ciências e artes, e campos de esportes dentro de uma finalidade
rigorosamente brasileira.
Art. 4º - Como força política organizada, a Frente Negra Brasileira, para mais
perfeitamente alcançar os seus fins sociais, pleiteará, dentro da ordem legal instituída no
Brasil, os cargos eletivos de representação da Gente Negra Brasileira, efetivando a sua
ação político-social em sentido rigorosamente brasileiro.
96
Art. 5º - Todos os meios legais de organização necessários à consecução dos fins
da Frente Negra Brasileira serão distribuídos em tantos departamentos de ação quanto
forem precisos, constando de regulamento especial.
Art. 6º - A Frente Negra Brasileira é dirigida por um Grande Conselho, soberano
e responsável, constando de 20 membros, estabelecendo-se dentro dele o Chefe e o
Secretário, sendo outros cargos necessários preenchidos a critério do Presidente. Este
Conselho é ajudado em sua gestão pelo Conselho Auxiliar, formado pelos cabos
distritais da Capital.
Art 7º - O Presidente da Frente Negra Brasileira é a máxima autoridade e o
supremo representante da Frente Negra Brasileira, e sua ação se limita pelos princípios
que a orientam.
Art. 8º - A Frente Negra Brasileira representa-se ativa e passivamente, judicial e
extra-judicialmente pelo Grande Conselho, na pessoa do Presidente, e, na falta deste,
por um dos outros diretores. Os membros, não respondem, subsidiariamente, pelas
obrigações sociais.
Art. 9º - Tem força de lei os regulamentos, ordens, avisos e comunicações
emanados pelo Grande Conselho, e os casos omissos nestes Estatutos serão regidos
pelas leis e praxes em vigor no país.
Art. 10º - A Frente Negra Brasileira somente se extinguirá pela vontade unânime
do Grande Conselho e da maioria do Conselho Auxiliar e de todos os sócios reunidos na
Assembléia Geral Especial, convocada pelo Presidente Geral em harmonia com o
Grande Conselho. Se, por acaso, for extinta, seus bens passarão para uma sociedade
beneficiente de gente negra, que se mostrar digna da doação.
Estes Estatutos são irreformáveis nos artigos 1º, 2º, 6º e 7º, a não ser por vantade
unânime dos Conselheiros.”
137
137
Leite, José Correia. Op. Cit. P. 95. ( Os Estatutos foram publicados no Diário Oficial e
registrados em 04 de novembro de 1931)
97
* Anexo 2
HINO DA FRENTE NEGRA BRASILEIRA
Canto da Gente Negra
Salve! Salve! Hora gloriosa em que aponta no país,
Esta aurora luminosa que fará a pátria feliz.
Os herdeiros dos Lauréis, do trabalho, a ciência, a guerra,
Surgem nobres e fiéis pelo amor da Pátria Terra.
Gente Negra, Gente Forte, ergue a fronte varonil.
És a impávida coorte - Honra e glória do Brasil.
São do sangue escravo herdeiros, de Tupis e de Africanos,
Que confiantes brasileiros bradam soberbos e ufanos.
Cesse a voz dos preconceitos! Caia a bastilha feroz,
Que o valor dos nossos feitos ruge altivo dentro em nós.
Nossa cor é o estandarte que entusiasma Norte e Sul;
Une a todos para o marte sob o cruzeiro azul.
Ouve os clarins dos PALMARES vêm falar da pátria nova!
Ressoa o clangor nos ares chamando os bravos à prova!
Seja o toque da alvorada que diga a todos “Reunir”,
E a Nação alvoroçada, corra à voz de ressurgir.
138
138
A Voz da Raça. Nº 7. ( Letra de Arlindo Veiga dos Santos e música de Alfredo Pires )
98
* Anexo 3
CANTO DA CRIANÇA FRENTENEGRINA
Criança frentenegrina,
Quero meus pais imitar.
É ordem que recebi:
Aprender e trabalhar.
Quem recua, trai a Raça:
Quem duvida é Judas vil.
Eu aceito a Disciplina,
Pela glória do Brasil.
Trabalho por minha Pátria,
Progrido por minha Gente.
Criança frentenegrina
Sempre avança para a frente.
Posso o que podem os outros,
O que sabem também sei;
Numa coisa eu venço a todos
No Trabalho o negro é rei!
99
Menino Negro! Esta Pátria,
Desde o Prata até o Pare
Chama por ti esperançosa:
Que esperar, Negro? Vem já!
Ouve, Negrinho valente!
O Brasil grita por ti
E o grito da Pátria ansiosa
Vem do peito de Zumbi!
139
139
A Voz da Raça. Nº . 46. ( Letra de Arlindo Veiga dos Santos)
100
FONTES PRIMÁRIAS
1 - Periódicos micro-filmados na Biblioteca Nacional
A Voz da Raça PRSPR 00820 ( 70 exemplares entre os anos de 1933
à 1937)
A Chibata _ PRSPR 00819 ( 2 exemplares em junho de 1932)
Clarim d’Álvorada PRSPR 00808 ( 06/01/1924 à 13/05/1932, apenas
a primeira e a segunda fase, 30 exemplares)
O Progresso - PRSPR 00818 (23/06/1928 à 15/11/1931, total de 42
exemplares)
2 -Fonte impressa
LEITE, José Correia. ... E disse o velho militante. Organização e
textos de Luiz Silva ( Cuti). São Paulo, 1992. (AUTOBIOGRAFIA)
101
BIBLIOGRAFIA
ANDREWS, George Reid. O protesto político negro em São Paulo - 1888-1988.
In: Cadernos Cândido Mendes nº 21. Centro de Estudos Afro-Asiáticos,
dezembro de 1991.
------------------------. Negros e Brancos em São Paulo ( 1888-1988). Ed: EDUSC.
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa-Grande e Senzala e a obra
de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: ed. 34,1994
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
_______ . As Origens do Totalitarismo: totalitarismo, o paroxismo do poder: Rio
de Janeiro,Editora Documentário,1978.
AZEVEDO,Thales de . Democracia Racial. Petrópolis, 1975.
-------------------------. As elites de cor. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1955
BARROSO, Gustavo. A palavra e o pensamento Integralista. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1935.
BERNARDO, Teresinha. Memória em Branco e Negro: olhares sobre São
Paulo. São Paulo: EDUC, 1998.
BERSTEIN, Serge. La culture politique. In: Jean-Pierre Rioux & Jean François
Sirinelli. Pour une histoire culturelle. Paris: Seuil, 1997.
102
BERTONHA, João Fábio. Fascismo, Nazismo, Integralismo. Rio de Janeiro:
Ática.
BOBBIO, N. , Metteucci N. e Pasquino G. Dicionário de Política. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 11º edição, 1998
BRAUDEL, F. História e Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1972.
CARDOSO, C.F.S. Escravo ou Camponês? O Protocampesinato Negro nas
Américas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
_______________ e BRIGNOLI, H. Os Métodos da História. 4
ª
ed. Rio de
Janeiro: Ed. Graal, 1987.
_______________ e VAINFAS, R. Os Domínios da História: ensaio de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1997.
CARONE, E. A República Velha: instituições e classes sociais. 3
ª
ed. São Paulo:
Difel, 1975.
___________. A República Velha: evolução política. 2º ed. São Paulo:
Difel,1972.
___________. O Estado-Novo. São Paulo: Difel,1976.
CARVALHO FRANCO, M. S. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São
Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros,1969.
CASTRO, H.M.M. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no
sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
103
CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um
partido. EDUSC.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
DE DECA, Edgar S. O Silêncio dos Vencidos. São Paulo: Brasiliense. 1988.
DEGLER, Carl N. Nem Preto, nem Branco. - Escravidão e relações raciais no
Brasil e nos EUA. Rio de Janeiro: ed. Labor do Brasil, 1976.
FAORO, R. Os Donos do Poder. 2º ed., São Paulo: Editora da USP, 1975.
FAUSTO, B. A Revolução de 1930: historiografia e história. 16
ª
ed. São Paulo:
Cia das Letras, 1997.
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Ed. Cortez,
1989.
----------------------------- A integração do negro na sociedade de classes. o
Paulo: ed. Ática, 1978.
FERRARA, Mirian Nicolau. A imprensa negra paulista ( 1915-1964). São Paulo:
FFLCH/USP, 1981.
FERREIRA, J. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
FLORENTINO, M.G. e GÓES, J.R.P. A Paz das Senzalas: famílias escravas e
tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997.
104
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed.Graal, 1982.
FREITAS, Marcos Cézar de. Integralismo: Fascismo Caboclo. Ed: Ícone.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 25a. ed., Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1987.
GENOVESE, Eugene D. A Terra Prometida: o mundo que os escravos criaram.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988
_________________. O Mundo dos Senhores de Escravos: dois ensaios de
interpretação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
GOMES, A. M. C. A Invenção do Trabalhismo. 2
ª
ed. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994.
_____________ História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora da Fundação
Getúlio Vargas, 1996.
GOMES, Ângela M. C.; OLIVEIRA, Lúcia Lippi e VELLOSO, Mônica Pimenta.
Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
IANNI, O. O Colapso do Populismo no Brasil. 5
ª
ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1994.
------------. Escravidão e Racismo. São Paulo: ed. Hucitec, 1978.
LARA, S.H. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
105
LEAL, V. N. Coronelismo, Enxada e Voto. 2
ª
ed. São Paulo: Alfa-ômega, 1975.
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro. São Paulo: ed. Pioneira,
1983.
LEITE, José Correia. ... E disse o velho militante. Organização e textos de Luiz
Silva ( Cuti). São Paulo, 1992.
LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. São Paulo: Papirus, 1986.
MACHIAVELLI, N. O Príncipe. 30º ed. Rio de Janeiro: Ediouro,1998.
MAGALHÃES MARTINS, F. D. G. Pioneiro e Nacionalista. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira,1963.
MAÚES, Maria Angélica Motta. Da “branca senhora”ou “negro herói”: a
tragetória de um discurso racial. In: Cadernos Cândido Mendes. Nº 21. Centro
de estudos Afro-Asiáticos, dezembro de 1991.
MENDONÇA, S. R. de. e FONTES V. História do Brasil Recente. 3º ed. São
Paulo: Ática, 1996.
__________________. Estado e economia no Brasil: opções de
desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal.1986.
MOORE, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São
Paulo: Martins Fontes, 1983.
MOTA, C. G. Ideologia da Cultura Brasileira. São Paulo: Ed. Ática, 1977.
106
MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo e a mau cidadão? Rio de Janeiro,
1977.
-------------------. Brasil: As raízes do protesto negro. São Paulo: ed. Global,
1983.
-------------------. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: ed. Ática, 1988.
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 1988.
NOGUEIRA, Marilena Rosa. Negro na rua: a nova face da escravidão. São
Paulo: ed. Hucitec, 1988.
PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira,
PENNA, Lincoln de Abreu. Uma História da República. Rio de Janeiro: Zahar,
1989.
PEREIRA de QUEIROZ, M. I. O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira.
São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.
REICH, W. Psicologia de Massas do Fascismo. 2
ª
ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
REIS, J. J. e SILVA, E. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
________ e GOMES, F.S. Liberdade por um Fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
107
REMOND, R. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora UERJ /
Fundação Getúlio Vargas, 1996.
REVEL, Jacques. Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de
Janeiro: FGV, 1998.
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político ( nota de
trabalho). Revista Brasileira de História. São Paulo, 1995.
ROUSSEAU, J.J. O Contrato Social. Rio de Janeiro: Publicações Europa
América, 1974.
SALGADO, Plínio. Integralismo perante a Nação. Rio de Janeiro: Ed. Clássica
Brasileira, 1950.
SCHUARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das
letras, 1995.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
_________________ Brasil: de Getúlio a Castelo.
SINGER, P. “A Política das Classes Dominantes” in: Política e Revolução Social
no Brasil, por O . Ianni, P. Singer, G. Cohn e F. Weffort. Rio de janeiro: Editora
Civilização Brasileira,1965.
SOUZA, M. C. de. Estado e Partidos políticos no Brasil. São Paulo: Alfa-
Ômega,1976.
108
TRINDADE, Helgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. São
Paulo: Difel, 1974.
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão: os letrados e a sociedade escravista
no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1986.
VARGAS, G. As Diretrizes da Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: editora José
Olympo,1942.
___________. A Política Trabalhista no Brasil. Rio de Janeiro: Editora José
Olympo,1950.
VIANNA, Luiz Werneck. Prática Política e questão racial. Cadernos Cândido
Mendes, nº 12, agosto de 1986.
-----------------------------. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1978.
VILAÇA, M. V. e ALBUQUERQUE, R. C. Coronel, Coronéis. 2º ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
WEFFORT, F. “ Política de massas” in: Política e Revolução Social no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1965.
109
LANNES, Laiana.
A Frente Negra Brasileira: Política e Questão Racial nos anos 1930 /
Laiana Lannes Rio de Janeiro, 2002.
Dissertação ( História Política ) Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
UERJ, 2002.
Bibliografia:
1. Relações Raciais 2. São Paulo 3. Movimentos Sociais
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo