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Direito de superfície no direito romano
Mauricio Jorge Pereira da Mota
Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor da UERJ (graduação e pós-graduação).
Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
R
ESUMO
: A partir da analise das fases do direito romano, bem como da propriedade em
Roma, o autor analisa a evolução do Direito de superfície no direito romano.Além disso, o
autor preocupa-se em descrever todas as características inerentes ao direito de superfície no
direito romano, como a sua origem, extinção, direito e obrigações.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
: Direito de Superfície – Direito Romano
A
BSTRACT
: From the stage’s Roman law observation and also the property in Rome, the
author analyzes the evolution of the Surface’s right in the Roman law. Besides, he is
worried about describe all the intrinsic characteristics of the Surface’s right in Roman Law,
like it origin, extinction, rights and obligations.
K
EYWORDS
: Surface’s right – Roman Law
S
UMÁRIO
: 1. Introdução 2. As fases do direito romano 3. Os direitos reais e a
propriedade em Roma 4. A evolução do direito de superfície no direito romano 5. O
direito de superfície romano – 6. Conclusão – 7. Referências.
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1 - Introdução
O presente texto tem por objetivo fornecer um panorama, ainda que sucinto,
da provável origem do direito de superfície no Direito romano, seu desenvolvimento
histórico, os problemas para sua classificação na doutrina romanista, e as suas principais
características.
Principiamos por abordar as diversas fases do Direito romano, enfatizando a
divisão deste na classificação entre o direito pré-clássico, clássico e pós-classico,
ressaltando os caracteres mais marcantes de cada um desses períodos.
No item 3, Os direitos reais e a propriedade em Roma, passamos em revista
a idéia romana acerca destes e como surge na elaboração jurídica romana o conceito de
direitos reais sobre coisa alheia.
A seguir definimos, de acordo com as hipóteses dos romanistas, a origem do
direito de superfície e sua lenta e gradual afirmação como um direito real. Empreendemos a
discussão acerca da proteção jurídica garantida à superfície no direito clássico, enumerando
os argumentos dos estudiosos da matéria acerca da natureza jurídica desse direito no
período. Esse ítem aborda também o momento de transição do direito clássico para o
direito pós-clássico e as influências que se estabelecem nesse momento sobre o Direito
romano.
O quinto item, O direito de superfície romano, esmiúça as principais
características deste, como o seu objeto, os direitos e obrigações do concedente e do
concessionário e os modos de constituição e extinção do direito de superfície. Aborda
também esse capítulo as divergências primordiais dos romanistas na conceituação dos
institutos do direito de superfície, estabelecendo, quando possível, a corrente dominante.
Finalmente na Conclusão esboçamos um súmario acerca do que era o direito
de superfície no Direito romano, até que ponto chegou a evolução do instituto naquele
ordenamento e elaboramos, na medida em que nos permitem as fontes, uma tentativa de
entendimento do papel que representou o direito de superfície no desenvolvimento das
instituições romanas.
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2 - As fases do direito romano
Os historiadores costumam dividir o Direito Romano em três períodos
distintos:
1 - Direito pré-clássico - das origens de Roma até a Lei Aebutia (aproximadamente 149-
126 a.C.)
2 - Direito clássico - 126 a.C. até o fim do reinado de Diocleciano, em 305 d.C.
3 - Direito pós-clássico - 305 d.C. até o início do reinado de Justiniano; como divisão
dentro do Direito s-clássico, tem-se também o direito vigente no reinado de Justiniano
(527 a 565 d.C.), que, pelo seu caráter regenerador, recebe o nome de direito justinianeu.
O formalismo e o materialismo são as características essenciais do direito
pré-clássico. Os atos jurídicos revestem-se de solenidades que devem ser cumpridas à risca,
para que produzam os seus efeitos. Não é possível alterá-las sequer para atender às
exigências da equidade.
O direito se traduz no ius civile, composto de normas costumeiras e esparsos
preceitos legais aplicáveis aos cidadãos romanos. É um direito impregnado de religião;
muitas de suas normas jurídicas são de origem sagrada.
Ele se desenvolve, via de regra, pela atuação dos jurisconsultos, a princípio
os pontífices, depois com a laicização da jurisprudência, os juristas leigos. Partindo dos
costumes e da Lei das XII Tábuas e através de todos jurídicos como a ficção, a analogia
e a interpretação puramente literal os juristas desse período vão criando novos embriões de
institutos jurídicos. Essa criação do novo Direito porém se podia dar pela adaptação das
normas costumeiras ou legais existentes às novas exigências sociais
1
. O direito clássico é o
período áureo da história do direito romano. Decai o formalismo e atenua-se a influência
religiosa.
1
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. v. I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1965, p. 78/80
A partir do século III a.C. com a transformação de Roma num grande centro
comercial surge o problema da disciplina das relações jurídicas entre os romanos e os
estrangeiros, já que o ius civile aplicava-se únicamente aos cidadãos romanos, dominando o
princípio da personalidade da lei. Cria-se então a figura do praeter peregrinus, magistrado
com a função de dirimir conflitos entre estrangeiros ou entre romanos e estrangeiros.
Criou-se um Direito novo, o ius gentium, baseado nas praxes do comércio
internacional e assentado em princípios opostos ao do ius civile como a ausência de
formalidades e o respeito a fides, à boa-fé, à palavra empenhada.
Pelo direito romano os magistrados com funções judiciárias não podiam
atribuir direitos a alguém mas conceder ou negar ações o que também equivalia à criação
de direitos. O ius praetorium, deste modo, embora não revogasse as normas do ius civile
nem pudesse criar novos preceitos jurídicos, na prática alcançava esses dois resultados:
quando o magistrado se recusava a conceder a alguém ação que protegia direito decorrente
do ius civile, estava negando a aplicação deste; e quando concedia ação para tutelar
situações não previstas no ius civile, estava suprindo lacunas dessa ordem jurídica.
Com o ius praetorium entra em decadência a interpretatio dos jurisconsultos
na construção do ius civile. Ao invés de se valerem dos expedientes empregados no período
pré-clássico, os juristas podem chegar ao mesmo resultado de maneira mais simples:
solicitam ao pretor urbano ou ao pretor peregrino que, através de um édito, proteja
situações novas, tutele atos praticados sem a observância do formalismo rigoroso do ius
civile, e atente para a vontade dos contratantes
2
.
No direito romano pós-clássico o ordenamento jurídico passa a ser
elaborado quase que exclusivamente através do Estado, por meio das constituições
imperiais. Desaparece a distinção entre o ius civile, o ius praetorium e o ius
extraordinarium. O direito passa a sofrer influências do cristianismo, do direito dos povos
do Oriente e de províncias romanas e passa a predominar o empirismo. A despeito do
renascimento dos estudos jurídicos no século V, com o desenvolvimento das grandes
escolas de direito e, no século VI, com a elaboração das grandes compilações de Justiniano,
2
ALVES, José Carlos Moreira. op. cit., pp. 81/82
a ciência do direito priva-se da precisão técnica, do apreço pela teoria e da autonomia
mental que caracterizaram a época anterior
3
.
3 - Os direitos reais e a propriedade em Roma
Os romanos não conheceram as noções de direito real e direito pessoal tal
como as temos hoje. A propriedade não era entendida como um poder sobre as coisas. Tal
poder estava inserido na potestas do paterfamilias, sujeito ao seu arbítrio.
Ela possuia inicialmente um caráter sagrado, era o herctum familiar, que
abrigava o altar e o fogo sagrados, o túmulo e as demais referências sacras da família e que
portanto, não poderia ser alienada nem abandonada. Nessa terra sagrada o paterfamilias
enterrara seus antepassados, lhes rendia culto e recebia a proteção dos deuses para seu
cultivo e seu rebanho.
A Lei das XII Tábuas já vai expressar a dessacralização da propriedade, com
a inserção desta no âmbito do ius, do direito, e a conservação apenas do sepulchrum, na
esfera do fas, da religião.
Com a transformação de Roma numa potência mercantilista desmembra-se a
antiga potestas do paterfamilias: manus, sobre a mulher; patria potestas, sobre os filhos;
dominica potestas, sobre os escravos; dominium sobre as demais coisas corpóreas; sendo
proprietas vocábulo que só veio a surgir mais tarde, com sinonímia perfeita a dominium
4
.
Essa proprietas contudo não era concebida como um direito real hodierno
mas como um direito garantido no plano processual, através da dicotomia actio in rem -
actio in personam (ação real - ação pessoal). A primeira era uma ão erga omnes em que
o autor afirma o seu direito sobre a coisa, e em que o réu surge como a pessoa que se
colocou entre o autor e a coisa; a segunda é uma ação contra determinada pessoa (o
devedor), e em que o autor reclama contra a obrigação que o réu deixou de cumprir.
No período áureo do Império, de acordo com as grandes escavações
realizadas, neste século, no porto marítimo de Roma, Óstia, na foz do Tibre, houve uma
3
CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977, p. 16
4
TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O direito real de superfície. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1993, p.
13
transformação da típica moradia romana, o domus, térrea e ocupada por uma única família,
para a insulae - edífícios construídos verticalmente com vários andares (contignationes) e
compartimentos (cenácula), ocupados por inúmeras famílias.
Os censos urbanos (regionarii) indicam a existência na urbs romana, nesse
período, da imensa cifra de 46.602 insulae (96,3%) contra apenas 1.797 domus (3,7%)
5
.
As fontes literárias e jurídicas também atestam fartamente a abundância
dessas edificações em Roma e nas grandes cidades do Império, tendo sido encontradas
referências a estas em Cícero, Vitrúvio, Juvenal, Gélio, Suetônio, Estrabão, Tácito, Ulpiano
e Alfeno
6
.
Citam os estudiosos que a moradia nessas insulae era obtida por contratos
de locação (locatio), protegido o locatário contra o dominus pela actio ex conducto e contra
a turbação de terceiros pela cessão das ações pertencentes ao proprietário caso este não
exercitasse pessoalmente a tutela do domínio
7
. Surgem aqui os problemas, que serão
expostos mais adiante, da possível alienação desses compartimentos, da acessão e dos
direitos reais sobre coisa alheia.
O direito real sobre coisa alheia, no sentido romano, ou seja, aquele
garantido pela actio in re aliena, vai poder se consubstanciar após a recepção em Roma
da filosofia estóica grega e de sua concepção de coisa incorpórea.
Como comprovam a maioria dos autores
8
as figuras típicas que constituiram
as mais antigas servidões (iter e aquaeductus ou riuus) não eram, nas suas origens,
verdadeiras servidões, pois davam ao seu titular direito de propriedade sobre a faixa de
pedágio (iter) ou canal (riuus) que eram concebidos como entidades corpóreas.
No direito clássico vigorou o princípio da tipicidade das servidões. Havia
tipos de servidão (servitutes) reconhecidos pelo ius civile, não se podendo, via de regra,
criar outras servidões não admitidas por esse direito. Observe-se contudo que esta regra
nem sempre foi obedecida pelos pretores.
No chamado direito justinianeu, com a absorção da idéia estóica de res
incorporales e, portanto, iura (direitos) a recairem sobre coisas corpóreas, é que se pode
5
MARCHI, Eduardo C. Silveira. A propriedade horizontal no direito romano. São Paulo : Edusp, 1995, p.13
6
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 13/14
7
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 14
8
IGLESIAS, J. Derecho romano. v. 2. 2. ed., Barcelona : Alianza Editorial, 1953, pp. 254 e segs.
falar em efetivas servidões, porquanto passa a se admitir a existência de iura in re aliena
(direito real sobre coisa alheia)
9
. Desaparece o princípio da tipicidade das servidões
prediais e o direito passa a poder criar novos tipos de servidão, estabelecendo livremente os
poderes que seriam atribuídos ao dono do prédio dominante.
Após a servidão, surgiram como ius in re aliena o usufruto, o uso, a
habitação, a enfiteuse e a superfície.
4 - A evolução do direito de superfície no direito romano
No direito clássico, assim como ocorria no pré-clássico, vigorava em Roma,
de modo absoluto, a regra de que superficies solo cedit
10
, por força da qual tudo quanto
fosse acrescido ao solo (plantações e construções) passava a integrá-lo e ao seu dono
pertencia, não podendo ser objeto de transferência senão juntamente com o solo.
Esse princípio, no qual se funda a acessio, é uma decorrência da vis
attractiva da propriedade romana. Este caráter atrativo (ao lado de outros, como a absoluta
independência, inadmissibilidade de limites, exclusividade e perpetuidade) não se identifica
com a função econômico-social do dominium mas sim com a concepção política da
propriedade romana derivada da naturalis ratio
11
.
Durante o direito clássico, com a expansão de Roma, surgiu a necessidade
de se permitir que particulares explorassem, edificassem em solo público, ficando com o
gozo de edifícios construídos, mediante o pagamento de uma anuidade. Tais concessões,
que a princípio eram dadas apenas pelo Estado, passaram a sê-lo, depois, pelos municípios
e pelos particulares. Existem divergências entre os romanistas sobre a forma jurídica em
9
TEIXEIRA, José Guilherme Braga. op. cit., p. 14
10
GAIUS, II, § 73: “Praeterea id quod in solo nostro ab aliquo aedificatum est, quamvis ille nomine
aedificaverit, iure naturali nostrum fit, quia superficies solo cedit”.
“Além disso, o que é construído em meu terreno por outra pessoa, embora esta o faça por sua conta, torna-se
meu por direito natural, porque a superfície segue o solo”
cf. GAIUS. Institutas do jurisconsulto Gaio. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 86
11
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 15
que se davam essas concessões, mas acreditam a maioria dos autores que fosse através de
contratos de arrendamento disciplinados pelo poder público.
Max Weber em sua erudita História Agrária Romana esclarece as
características desses contratos:
“Como ocorria com frequência com o ager extra clusus [ terras
excedentes nas colônias romanas] as comunidades cediam-nas em
benefício de sua tesouraria, ou somente precario, ou, por último, em troca
de um foro. Se não havia nada estabelecido continuavam sendo ager
publicus populi Romani; e no caso em que a comunidade ou um
particular se dedicassem a cultivá-las, como sucedia muitas vezes com os
subseciva, vinham-se encontrar na mesma situação jurídica que se gerou
na época republicana com a ocupação do ager publicus. Utilizar essas
terras era algo verdadeiramente precário: em qualquer momento podiam
ser requisitadas por causa de novas assignações [doações de terra] ou de
arrendamento em nome do Estado”
12
Esse arrendamento público a título precário, com a disseminação do poderio
romano e das pressões da massa não proprietária pela assignação do ager publicus vai se
converter, segundo Max Weber
13
, numa posse hereditária dos arrendatários.
Essa posse perene vai ser garantida posteriormente, por obra do pretor - a
princípio ao concessionário do solo público, e, mais tarde ao de solo privado - pelo
interdito de superficiebus
14
, contra quem quer que o turbasse no seu direito de gozo sobre o
edifício.
12
WEBER, Max. História agrária romana. São Paulo : Martins Fontes, 1994, pp. 50/51
13
WEBER, Max. op. cit., p. 112
14
ULPIANO Digesto (43,18) L. 1, pr. “Ait praetor: uti ex lege locations sive conductionis superficie, qua de
agitur, nec vi nec clam nec precario alter ab altero frumini, quo minus ita fruamini, vim fieri veto. Si qua alia
actio de superficie postulabitur causa cognita dabo”.
ULPIANO Digesto (43,18) L. 1, pr. Comentários ao Édito, livro LXX. Disse o pretor: ‘Vedo que se faça
violência para que não desfruteis a lei de locação, ou de condução, ou da superfície, de que se trata, e de que
não disfruteis um pelo outro, nem com violência, nem clandestinamente, nem precariamente; e se a respeito
da superfície se pedir alguma outra ação, a darei com conhecimento de causa” (tradução livre).
cf. GARCÍA DEL CORRAL, Idelfonso (trad). Cuerpo del derecho civil romano. Primeira Parte. Digesto.
Tomo III. Tradução para o espanhol do Corpus Iuris Civilis, publicado por Krieger, Hermann e Osenbrüggen.
Edição fac-símile da publicada em Barcelona, 1897. Valladolid: Editorial Lex Nova, 1988, pp. 436/437.
Discute-se muito na doutrina romanista a questão se o direito de superfície,
garantido pelo interdito deve ser considerado, no período do direito clássico, um direito
pessoal ou se pode ser considerado um direito real, ou seja, direito modificativo da
propriedade privada, iura in rem, protegido por actio in rem, ordinária.
A discussão sobre essa configuração jurídica da superfície vai se orientar no
sentido de defender ou contestar o famoso trabalho de Biondo Biondi “La categoria
romana della servitutesno qual este admite o reconhecimento substancial (não formal) da
propriedade superficiária no direito clássico, mediante a tutela real pretoriana da superfície
e de sua plena admissão no direito justinianeu.
Biondi pondera que no sistema do ius civile a superfície faria parte
integrante do solo, não podendo ter destino jurídico diverso deste
15
. No direito pretoriano, a
superfície teria se configurado num instituto especial, destacado do solo. Ao conceder o
interdito de superficiebus - no período clássico - o pretor teria dado ao superficiário um
interdito análogo ao interdito uti possidetis (D. 43, 18, 1 pr.) que outorgaria a este a
proteção possessória da superficies ex lege locations.
A análise do interdito de superficiebus efetuada por Biondi salientava que
este forneceria ao superficiário três remédios jurídicos diversos: um interdito, uma actio in
rem no caso da locatio in perpetuum, análoga à ação real que protegia a locatio dos agri
vectigalis, e a alia actio para as outras hipóteses de proteção que não a locatio in
perpetuum. Esses remédios comprovariam a efetiva tutela real pretoriana da superfície.
Portanto, para Biondi, no âmbito do ius honorarium, a superfície era uma
entidade jurídica autônoma, distinta do solo e tutelada erga omnes como qualquer direito
real; poderia ser objeto de posse separadamente do solo; seria suscetível de transferência
intervivos ou mortis causa a terceiros e poderia ainda ser objeto de uso, usufruto e penhor.
A configuração jurídica da superficies na idade clássica seria, pois, delineada em função
dessa tutela real pretoriana e da tutela obrigacional do ius civile. Substancialmente o
superficiário seria proprietário da superfície, que teria à sua disposição a maior parte dos
poderes e faculdades normalmente atribuídas ao proprietário
16
.
15
BIONDI, Biondo. La categoria romana delle servitutes. Milano : Società Editrice Vita e Pensiero, 1938,
pp. 443 e ss.
16
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 19
Pastori procura suavizar as conclusões de Biondi argumentando que, embora
a concessão de algumas ações úteis ao superficiário, desse à superfície uma configuração
autônoma, aproximando-a de alguns direitos reais sobre coisa alheia como o usufruto e o
uso, aquela não chegaria no direito clássico a constituir um direito real do mesmo modo
que a actio de superficie não poderia ser classificada como uma actio in rem.
O fato de ser concedida, na idade clássica uma tutela real utilis ao
superficiário não justificaria a identificação (formal ou substancial) entre o direito de
superfície e a propriedade (quiritária ou pretoriana): a tutela real utilis o se confundiria
com a rei vindicatio, nem tampouco poderia ser classificada como extensão da actio
publiciana (como sustentava Biondi). Tal tutela não corresponderia nem mesmo à categoria
dos ius in re aliena embora os princípios do reconhecimento da natureza real da superfície
estivessem contidos implicitamente no sistema clássico. O direito clássico, para Pastori,
teria criado pois apenas uma tutela indireta da superfície
17
.
Fritz Schulz nega esse caráter real ao direito de superfície no direito
clássico, duvidando inclusive da autenticidade do interdito de superficiebus :
“Por lo que se refere a la superficies es indudable que la actio in rem del
superficiarius mencionada en nuestros textos no és clásica. Pudo ocurrir
que el pretor protegiese este derecho mediante un especial interdictum de
superficie. El caráter clássico de este interdicto es muy discutido, pero
aunque fuese realmente clásico, no convertiría el derecho protegido por él,
en ius in rem, ya que el interdicto protege algumas veces derechos de
caráter público”.
“Cualquiera que sea la opinión que se tenga sobre esse interdicto
(elaborado probablemente por los compiladores) la frase última si
qua...dabo debe ser necesariamente espuria ya que conforme a la
concepción clásica, el interdicto no es una actio
18
.
17
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., pp. 23/25
18
SCHULZ, Fritz. Derecho romano clásico. Barcelona: Bosch, 1960, pp. 380/381
Pellat irá, ao contrário, defender ardorosamente o caráter real do interdito,
falando mesmo na existência de uma “propriedade pretoriana” do edifício:
“Mais le préteur donne à ce possesseur de la maison un interdit
particulier, et même une action réelle utile.
Cet interdit est une sorte d’interdit uti possidetis utile, qui est soumis aux
mêmes règles que l’interdict direct.
L’action réele utile est accordée à la imitation de la revendication civile,
mais seulement en connaissance de cause, le préteur se réservant de ne l’a
donner qu’à celui qui a obtenu une concession à perpétuité ou au moins
pour un temps assez long.
Le superficiarius, qui a ainsi, même contre le proprietáire du sol, un
interdict spécial et une action réelle prétorienne, pourra, à plus fort
raison, se faire donner une exception pour se défendre contre l’action
civile et l’interdict direct uti possidetis, qui, en principe, compètent à ce
proprietaire pour l’édifice comme pour le sol, même contre le
concessionaire de la superficie.
Voilà donc le superficiaire assimilé par le préteur à un propriétaire: il a,
s’il est permis de le dire, la propriété prétorienne de la maison. Cette
assimilation est suive dans toutes ses conséquences”
19
.
A bibliografia brasileira sobre essa questão é modesta. José Carlos Moreira
Alves vai falar em “direito com coloração real” no período clássico
20
e Ebert Chamoun
evita se posicionar, argumentando com a infidelidade das fontes, e situando a superfície
como direito real no período clássico, se as fontes estiverem corretas ou então somente no
período pós-clássico
21
. Netto Campello, entretanto, enfrentando a questão afirma:
“Embora protegida pelo interdictum de superficiebus, a superficie não
produzia a princípio nenhum direito real.
19
PELLAT, C. A. Exposé des principes genéraux du droit romain sur la proprieté et l’usufruit. Paris :
Librarie de Plon Fréres, 1853, pp. 98/99
20
ALVES, José Carlos Moreira. op. cit., p. 402
21
CHAMOUN, Ebert. op. cit., p. 278
Quando o direito pretoriano concedeu ao superficiario uma rei vindicatio
utilis [no período pós-clássico] admissível contra todos, ela se tornou, por
assim dizer, um verdadeiro direito real”
22
Arangio-Ruiz, fazendo a crítica das fontes romanas, o argumento central
pelo qual, até a fase atual dos estudos românicos, não se pode aceitar o direito de superfície
como tendo um caráter real no direito clássico:
“Un nuevo passo en favor del superficiario lo del pretor al concederle,
contra todo tercero, la protección interdictal del ejercicio de su derecho.
Pero quando en el principio del fragmento citado, encontramos agregada
a la cláusula interdictal la frase si qua alia actio de superficie
postulabitur, causa cognita dabo’ y quando en los parágrafos sucesivos
encontramos explicada essa frase como alusiva a una acción real,
construída sobre o modelo de la rei vindicatio y correspondiente al
superficiario contra el dominus soli y contra cualquier tercero, es
inevitable el reconecimento de la interpolación:
1) porque, después de haber dado el esquema del interdictum (el cual,
como sabemos, no es una acción), no podia el pretor hablar de ‘alia
actio’; sólo el derecho justinianeu tiende a concebir los interdictos como
acciones;
2) porque toda regulácion de la institución sobre la base de las acciones
conducti y empti, tal como la hemos descrito, es incompatible con la
existencia contemporánea de una accion real;
3) porque en el sistema del Edicto pretorio se observa rigurosamente la
separación entre las fórmulas de las acciones, por una parte, y los
interdictos, por la outra; en particular, las acciones in rem, desde la
hereditatis petitio hasta la vindicatio usus fructus y servitutis están todas
agrupadas al principio de la pars de iudiciis (cfr. en el Digesto, del título
V, 3, al titulo VIII, 5), mientras los interdictos están en un apéndice (D.,
libro XLIII).Es, pues, absolutamente extraño el caso de una actio in rem
prometida en un inciso abandonado de la pars de interdictis.
22
NETTO CAMPELLO, Manoel. Direito romano. Direito das coisas e das ações. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves e Cia, 1914, p. 119
En la época clásica, pues, el proceso de transformación de la obrigación
que tiene por objeto una superficies en el derecho real del mismo nombre,
es apenas iniciado con las fatigosas adaptaciones de las acciones
contractuales y con la concesión del interdicto de superficiebus; la
consagración del nuevo derecho real es justinianea, aunque
probablemente precedida por el trabajo, para nosotros no controlable, de
la jurisprudencia posclásica”
23
No direito pós-clássico a questão não é menos controversa. Biondi sustenta
que com a extinção das fórmulas e do officium praetoris, ter-se-ia chegado ao aberto
reconhecimento da propriedade superficiária (parágrafo 98 do Livro Siro-Romano)
24
.
No direito justinianeu , desaparecidas as razões formais do sistema clássico,
o superficiário viria a ser considerado verdadeiro proprietário, dispondo de qualquer das
ações para a tutela do dominium. A superfície, pois, em época justinianéia, surgiria como
entidade autônoma distinta do solo e suscetível de propriedade separada. o princípio
superficies solo cedit continuaria vigente no direito justinianeu, passando, porém, a ser
plenamente derrogável.
Argumentava também Biondi , baseado em D. 30, 86, 4, que junto com a
propriedade superficiária o direito justinianeu teria concebido a superficies como servitus,
o que se explicaria pela especial relação estabelecida agora entre a superfície - considerada
propriedade - e o solo. Por força de necessidade física e jurídica, tal relação se configuraria,
pois, verdadeira servidão, ou, mais especialmente, como servitus de ocupar superfície em
solo alheio. Esta vinculação entre solo e superfície apresentaria, além disso, toda a estrutura
de uma servidão, já que se tratava de uma relação entre dois imóveis - a superficies e o
fundus - de proprietários diversos, tendo por conteúdo um pati, comparável ao da servitus
oneris ferendi.
A concepção justinianéia da superfície repousaria, pois, concluía Biondi,
nos conceitos de propriedade e servidão, não se tratando, porém, de duas figuras diversas,
mas sim das duas faces de um mesmo instituto
25
.
23
ARANGIO-RUIZ, Vincenzo. Instituiciones de derecho romano. Buenos Aires: Depalma, 1952, pp.
288/289
24
BIONDI, Biondo. op. cit., pp. 525 e ss.
25
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 20
Giovanni Pugliese em seu estudo “Note sulla Superficie nel Diritto
Giustinianeo” nega categoricamente que o superficiário se equiparasse a um verdadeiro
proprietário da construção e também a existência de uma servitus entre solo e superfície.
Argumentou este, através de cuidadosa exegese dos textos em matéria de
superficies, que a principal conclusão de Biondi, a de que em época justinianéia todos os
meios de tutela jurídica do proprietário foram concedidos ao superficiário, era
improcedente, pois tais ações teriam sido igualmente estendidas por Justiniano a outros
titulares de direitos reais como o enfiteuta, o credor pignoratício, o usufrutuário etc.,
tratando-se então de tendência geral do direito justinianeu. Refutada essa hipótese, não
poderia subsistir a tese de que a relação entre solo e superfície fosse de servidão
26
.
Como posição intermediária entre esses dois extremos temos as teses de
Giuseppe Branca Considerazioni intorno alla Propriettà nel Diritto Giustinianeo e
Franco Pastori “La Superficie nel Diritto Romano”.
Para Branca, de acordo com as fontes, pode-se admitir no máximo no direito
justinianeu uma tendência ao reconhecimento da propriedade superficiária.
Sua posição foi combatida por Carlo Alberto Maschi em “Fonti
Giustinianee e Fonti Bizantine in Tema di Proprietà Superficiaria. Com base no exame
das fontes justinianéias e, principalmente, bizantinas, buscou reconfirmar a hipótese de
Biondi. Para ele, o direito justinianeu sendo um sistema de direito positivo, não poderia
deixar de dar uma solução categórica para tal problema, afirmando ou negando que o titular
da superficies fosse um verdadeiro proprietário. Sua tese é a de que o reconhecimento da
propriedade superficiária resultaria não das declarações genéricas do legislador, mas de
decisões casuísticas obtidas através de interpolações comprovadas de certos textos nessa
matéria
27
.
Pastori, por seu turno, advoga a tese de que a superfície possuía uma
concepção prática, no direito clássico, que a considerava na praxe social como uma
entidade autônoma em relação ao solo. No direito pós-clássico, decaindo os obstáculos
jurídico-formais que coibiam a inovação da jurisprudência, tal praxe teria passado a
informar plenamente o ordenamento jurídico. Porém, Justiniano teria procurado conciliar
26
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 21
27
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., pp. 21/22
tal princípio informador com a tradição clássica, preocupado que estava com a restauracão
das instituições romanas. Os compiladores teriam assim, mantido a conceituação clássica
do instituto.
Portanto, conclui Pastori, a superfície no direito romano, no que se refere ao
sistema positivo é um ius in re aliena e o dogma da propriedade superficiária representa um
pressuposto ideológico do sistema, que guia o legislador, sem, todavia, obter um
reconhecimento positivo
28
.
Siro Solazzi em seu trabalho La Superficies nel Diritto Giustinianeo
desenvolve tese original sobre o assunto.
Argumenta que o direito justinianeu conheceu a propriedade horizontal e o
direito de superfície, mas não a propriedade superficiária. O cessionário de um edifício, ou
dos pavimentos dele, seria proprietário ou simplesmente superficiário, conforme o
alienante tivesse querido transferir-lhe a propriedade ou um direito real de superfície sobre
coisa própria. Tratar-se-ia, na primeira hipótese, de propriedade pura e simples, não
havendo, pois, nenhuma razão para qualificá-la de superficiária.
A superfície seria portanto um direito real que qualquer proprietário poderia
constituir sobre o que é seu, e seria, muito provavelmente, segundo Solazzi, incluída entre
as servidões. Tal servitus não se identificaria com uma servidão predial, já que, em tal caso,
o edifício deveria pertencer ao superficiário (titular apenas, segundo o autor, de um direito
real); haveria, mais provavelmente, um direito real sobre o edifício, hipótese esta, por outro
lado, coerente com a tendência dos juristas pós-clássicos e justinianeus de chamar servitus
a qualquer tipo de direito real sobre coisa alheia.
Assim, para Solazzi a construção sobre solo alheio pode ser no direito
justinianeu propriedade do construtor, mas essa propriedade não é superficiária. Se investe
o construtor somente de um direito real de superfície, ele não é proprietário
29
.
Francesco Stizia em seu Studi sulla Superficie in Epoca Giustinianeade
1979, retoma, com novas provas, os argumentos de Pugliese contrários à idéia do
reconhecimento da propriedade superficiária no direito justinianeu.
28
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 25
29
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 27
Fazendo a exegese dos documentos procurou provar a vigência, ainda na
época justinianéia do superficies solo cedit. Além dos textos especificamente romanos,
muito escassos, vai buscar auxílio no direito bizantino provando, com o uso de fontes do
século VI d.C., que esse direito teria sempre distinguido entre propriedade e superficies,
concebendo esta última como direito real sobre coisa alheia, de estrutura muito vizinha à
enfiteuse.
Assim, constituiria a superfície um direito real sobre coisa alheia, excluindo-
se, pois, qualquer reconhecimento de propriedade superficiária. no tardio direito
bizantino, como atestariam certas fontes do século XI d.C., em especial Tip. 58, 18, teria
surgido, acrecentava Stizia, a tendência, embora não categórica, ao reconhecimento da
propriedade superficiária
30
.
Pode-se concluir, desse acalorado debate doutrinário, no estágio atual de
desenvolvimento dos estudos romanísticos, a caracterização da superfície, no direito
justinianeu, não como uma propriedade mas como um direito real sobre coisa alheia. As
fontes não corroboram, apesar dos ingentes esforços de Biondi, a configuração de uma
autêntica propriedade superficiária neste ordenamento, espoucada de vidas. A tanto não
nos autorizam as pesquisas e mesmo considerando que no direito justinianeu se faz a
composição entre a construção doutrinária do direito clássico e as novas influências vindas
do direito das províncias helenísticas e bizantino, não se encontram nesses direitos, neste
período, concepções análogas à de propriedade superficiária que pudessem ter influenciado
o direito justinianeu.
A superfície não se constituiu, assim, no Direito romano, mais do que um
ius in re aliena (direito real sobre coisa alheia), sem atingir o patamar do domínio. Embora
o superficiário tivesse, sobre o edifício, todos os poderes do proprietário (uti, frui e
consummere) continuou em vigência, mesmo no reinado de Justiniano, o princípio do
superficies solo cedit.
O direito oficial justinianeu, tal como é enunciado no Corpus Iuris Civilis, e
as outras fontes de época não oferecem elementos para se configurar uma propriedade do
edifício atribuível ao superficiário separadamente da propriedade do solo.
30
MARCHI, Eduardo C. Silveira. op. cit., p. 28
Portanto, o superficiário possuía os poderes do proprietário somente pelo
período em que o ius superficiei fora concedido, findo o qual, incidia em toda a sua força o
princípio da acessão e o edifício passava ao domínio do proprietário do solo.
A superfície era, deste modo, no direito justianianeu, um direito real de uso
e fruição sobre edifício construído no solo de outrem, direito inalienável e transmissível aos
herdeiros
31
.
Estabelecida a superfície como um ius in re aliena o superficiário (ao
contrário do simples arrendatário, a quem assistia apenas a actio conducti, de natureza
pessoal, contra o proprietário) tinha ação real contra o dominus soli: uma actio in rem,
concedida utilitatis causa, análoga à res vindicatio; a actio de superficie, a actio
confessoria, para afirmar o seu direito, e a actio negatoria, para negar a existência de
gravames sobre o objeto desse direito
32
.
5 - O Direito de superfície romano
a). Conteúdo do direito de superfície
O conteúdo do direito de superfície é composto pelo objeto da superfície e
pelos sujeitos da relação jurídica superficiária, o proprietário do solo na qualidade de
concedente e o superficiário, na qualidade de concessionário.
31
CHAMOUN, E., em Instituições de Direito Romano, op. cit., p. 278 diz que a superfície tornou-se [pela
actio in rem] um “direito real, alienável e transmissível aos herdeiros”
ALVES, José Carlos Moreira em Direito Romano, op. cit., p. 401 afirma que “no direito justinianeu, a
superfície é um direito real, alienável e transmissível aos herdeiros, que atribui a alguém (o superficiário)
amplo direito de gozo sobre edifício construído em solo alheio”.
RICCOBONO, Salvatore, em Scritti di Diritto Romano, op. cit., p. 437 declara que “la dottrina odierna ha
potuto definire l’enfiteusi e la superficie como vera proprietà gravata da un peso reale in favore del
concedente”
SERAFINI, Filippo em Istituzioni di Diritto Romano, op. cit., p. 360 define o direito de superficie como “un
diritto reale alienabile e trasmissibile agli eredi, in virtú del quase si ha in perpetuo, o almeno per lungo
tempo, il pieno e illimitato godimento di tutta o di parte determinata della superdicie di una cosa immobile
altrui”
NETTO CAMPELLO, Manoel em Direito Romano, op. cit., p. 118 diz que a superfície é um direito real
sobre terreno alheio, em virtude do qual se pode usar e gozar ilimitadamente das construções que se acham
colocadas neste terreno”.
32
TEIXEIRA, José Guilherme Braga. op. cit., p. 20
Abrange ainda esse conteúdo os direitos e as obrigações do concedente e do
concessionário e seus respectivos laços de relações.
O direito de superfície romano tem por objeto toda construção que se eleva
acima do solo (superficiarae oedes, superficiaria aedificia).
Discute a doutrina se ele pode ter por objeto plantações. A maioria dos
civilistas entende como L. Salis que não
33
mas Van Wetter defende a afirmativa, expondo:
“Enfin, l’institut s’entendit à des bâtiments déjà existants et à des
plantations faites ou à faire”
34
.
Ao dominus soli eram assegurados: a utilização da parte do imóvel que não
era objeto da superfície; o recebimento do preço (pretium) da aquisição do direito de
superfície, se este tivesse sido convencionado de ser pago de uma única vez; o recebimento
do solarium periódico, desde que expressamente convencionado com o superficiário;
volver o edifício para o seu domínio uma vez extinta a superfície pelo princípio do
superficies solo cedit. Seu encargo era de omitir-se da prática de atos que impedissem a
construção superficiária ou o exercício do direito de superfície.
Ao superficiário competia usar e gozar dos edifícios, dispor deles
arbitrariamente doando-os,legando-os, constituindo neles usufruto, gravando-os de
servidões, hipotecando-os etc..
Podia ele ainda transmitir o direito a seus herdeiros ou aliená-lo, a título
oneroso ou gratuito, entre vivos ou causa mortis.
35
Seu poder sobre o edifício é maior do
que o do enfiteuta, pois não sofre as limitações deste, podendo inclusive destruir o edifício
ou alienar o seu direito de superfície à revelia do proprietário do solo que não tem direito
de preferência.
Ele também podia utilizar-se da actio de superficie (actio in rem utile) para
perseguir o seu direito
36
e das ações confessória e negatória, a primeira para afirmar o seu
direito e a segunda para excluí-lo de gravame de toda espécie; podia inclusive utilizar-se
dos interditos ordinários de vi e de precario.
33
SALIS, L. La superfície. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1949, p. 3
34
VAN WETTER, P. Cours élementaire du droit romain. T. I. Paris: Librarie A. Marescq Ainé, 1893, p. 405
35
NETTO CAMPELLO. op. cit., p. 120
36
Digesto 43, 18, 1, pr.; Digesto 6, 1, 74; Digesto 6, 2, 12, 3.
O superficiário tem a obrigação de pagar todas as imposições e tributos que
gravarem sobre a superfície, todas as despesas de conservação da coisa e o preço do direito
(pretium) ou uma retribuição anual (solarium) desde que esta tenha sido previamente
convencionada.
No caso do não pagamento do solarium o concedente além da ação pessoal
contra o superficiário dispõe da rei vindicatio e de todas as outras ações atribuíveis ao
dominus soli. Mas o superficiário dispõe contra ele da exceptio superficiei
37
.
Cabia também a ele entregar a edificação ao dominus soli, extinta a
superfície, não respondendo, porém, pelas deteriorações que, sem culpa sua, o edifício
tivesse sofrido
38
.
b). Constituição do direito de superfície
O direito de superfície se constituía por contrato, por legado, por doação, ou
por disposição da autoridade judiciária.
O modo primordial de constituição do direito de superfície entretanto era o
contrato. Na maior parte dos casos à concessão corresponde um cânone anual (solarium)
mas isso não é de fato necessário podendo constituir-se o direito de superfície mediante um
contrato de compra e venda contra o pagamento de uma soma fixa (pretium) e sem a
obrigação ulterior do pagamento da ânua correspondente
39
.
No caso da doação entende Ebert Chamoun que o solarium era objeto de
renúncia
40
.
Quanto à usucapião como modo constitutivo do direito de superfície
divergem os clássicos. Windscheid o estabelece como um dos modos constitutivos desse
direito, mas nas notas de seu livro ressalta que os textos romanos não negavam a
possibilidade de usucapião do direito de superfície mas da possibilidade de usucapir a
37
SERAFINI, Filippo. Istituzioni di Diritto Romano. v. I. 8. ed. Roma: Tipografico Editrice Torinese, 1909,
pp. 360/361
38
Digesto, 20, 4, 15.
39
SERAFINI, Filippo. op. cit., p. 361
40
CHAMOUN, Ebert. op. cit., p. 278 - op. cit. - p. 278
propriedade do edifício sem a propriedade do solo
41
. Mackeldey define essa mesma
hipótese, do usucapião ao mesmo tempo do solo com a construção superficiária, como não
sendo uma questão de direito de superfície
42
.
De fato, não creio que se possa falar em usucapião como modo constitutivo
do direito de superfície em Roma. Se o direito de superfície jamais atingiu em Roma o
domínio autônomo, com a constituição da propriedade superficiária, se permaneceu
jungido à propriedade do solo e passível de acessão sem reservas, parece que não cabe falar
em Roma de usucapião do direito de superfície.
c). Extinção do direito de superfície
O direito de superfície se extinguia pelo vencimento do prazo pelo qual fora
constituído; pela renúncia do superficiário; pelo resgate; pela confusão; pela destruição do
imóvel (a destruição apenas do edifício não levava à extinção da superfície, desde que no
instrumento de sua constituição o superficiário se houvera reservado o direito de
reconstruí-lo); pela prescrição.
Quanto à caducidade esta não extinguia a superfície porque o superficiário
não devia obrigações que, se não cumpridas, acarretassem a decadência de seu direito. Ao
contrário do enfiteuta, ao superficiário não competia pagar nenhuma quantia pela
transferência de seu ius superficiarium a terceiro e a falta de pagamento do solarium não
lhe acarretava a pena de comisso
43
.
Netto Campello inclui entre os modos de extinção da superfície a remissão feita por
consentimento do proprietário e a falta de pagamento, durante dois anos consecutivos, da
renda do superficiário. Não encontra porém apoio na doutrina romanista
44
.
6. Conclusão
41
WINDESCHEID, Bernardo. Diritto delle Pandette. V. I. ,parte 2. Torino: Tipografico Editrice Torinese,
s.d., pp. 324/325
42
MACKELDEY, F. Droit romain. Bruxeles: Ed. Société Typografique Belge, 1846, p. 170
43
TEIXEIRA, José Guilherme Braga. op. cit., p. 21
44
NETTO CAMPELLO. op. cit., p. 121
A superfície surgiu no Direito romano, na fase final do período clássico,
projetando sua aplicação durante o período pós-clássico e consagrando-se naquele direito
na época do imperador Justiniano. Tem sua origem provável nos contratos de arrendamento
de terras disciplinados pelo poder público, contratos estes que depois, no período da
expansão romana, vieram a gerar verdadeiras posses hereditárias dos arrendatários.
No período clássico recebe a proteção jurídica do pretor através do interdito
de superficiebus. Pairam entretanto dúvidas acerca da autenticidade desse interdito no
período clássico. A doutrina romanista conclui, em sua maioria, que esse interdito da época
clássica não eregia o direito de superfície num direito real pois que lhe faltava a
essencialidade de um direito real, no sentido romano, a actio in rem ordinária que o
garantisse.
No direito justinianeu, com a influência do direito helênico, passa a ser
aceito no direito romano a idéia da possibilidade de divisão da propriedade impbiliária por
planos horizontais e implanta-se o direito de superfície em sua plenitude.
O direito de superfície em Roma vai ter por objeto a construção
superficiária, não tendo os romanos admitido a plantação superficiária. O superficiário goza
por este direito do poder de dispor livremente de seu edifício, podendo doá-lo, transmiti-lo
inter vivos ou mortis causa, gravá-lo, hipotecá-lo e mesmo destruir a construção. Suas
obrigações quanto ao concedente limitam-se ao pagamento do preço ou de uma renda
anual, não perecendo contudo o seu direito no caso de inadimplemento da obrigação do
pagamento dessa renda ânua.
O direito de superfície pode se constituir por contrato, legado, doação ou
disposição da autoridade judiciária, sendo, todavia, mais usual em Roma a sua constituição
por contrato. Divergem os romanistas acerca da possibilidade da constituição do direito de
superfície por usucapião, entendendo contudo a corrente dominante que não se pode falar
em usucapião da propriedade do edifício pois esta se faz sempre conjuntamente com a
propriedade do solo.
O direito de superfície se extingüia pelo advento do termo ou condição do
contrato, pela renúncia, pelo resgate, pela confusão, pela destruição do imóvel (desde que
não houvesse cláusula de reconstrução) e pela prescrição.
Ele não chegou a atingir em Roma a sua expressão mais característica, ou
seja, a propriedade superficiária, pois jamais atingiu o patamar do domínio. Embora o
superficiário tivesse, sobre o edifício, todos os poderes do proprietário (uti, frui e
consummere) continuou em vigência, mesmo no reinado de Justiniano, o princípio do
superficies solo cedit.
O direito de superfície é, ao contrário da enfiteuse, de origem grega, uma
instituição essencialmente romana que encontra escassa correspondência nos outros direitos
antigos. Embora tenha uma rica história de construção e elaboração jurídica, o direito de
superfície parece ter tido uma escassa utilidade para o desenvolvimento das instituições
romanas. As fontes o contemplam de maneira fragmentária e episódica.
Os textos interpretados pelos romanistas citam apenas como exemplos da
aplicação prática do direito de superfície as estalagens para pousada dispostas ao longo das
estradas romanas e o direito de gozo de partes do solo no forum, praça central, concedido
às casas bancárias (tabernas argentarias) mediante uma contraprestação (solarium).
Max Weber em sua monumental análise sociológica da história agrária e da
colonização romana da Itália e das províncias, não se refere ao direito de superfície. Weber
analisou todos os principais institutos jurídicos e as instituições romanas como as
assignações, as colônias, as glebas isentas de impostos, as ações reais, o usucapião, a
proteção possessória, o comércio de imóveis, o ius coloniae, o ager publicus, o ager
compascuus, o arrendamento censitário, a enfiteuse, o ager vectigalis municipal, a
unificação do direito de posse imobiliária, e, em momento algum se refere à superfície,
deixando subentendido a pouca relevância que esta parece ter na história romana.
Entretanto, como é sabido, os institutos jurídicos e mormente os ligados ao
campo dos direitos reais, são entes perenes, que pairam ao longo do curso da História,
muitas vezes em estado adormecido, para logo após ressurgirem, modificados,
rejuvenescidos, passando a ter larga aplicação. Como é o caso da enfiteuse, de largo
emprego na Antiguidade e na Idade Média e agora relegada ao ostracismo.
Com o direito de superfície não é diferente, e, se ele não teve em Roma a
aplicação efetiva de todas as suas potencialidades, não quer dizer, de maneira alguma, que
agora, quando ele retorna ao nosso ordenamento jurídico através da lei 10.257/01
(Estatuto da Cidade) e se consagra nos artigos 1369 a 1377 do Código Civil de 2002, não
possa a vir a ser um instrumento jurídico extremamente útil e necessário para a
regularização fundiária no país.
7. Referências
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. v. I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1965
ARANGIO-RUIZ, Vincenzo. Instituiciones de derecho romano. Buenos Aires: Depalma, 1952
BIONDI, Biondo. La categoria romana delle servitutes. Milano : Società Editrice Vita e Pensiero, 1938
CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977
DERNBURG, Arrigo. Pandette. Diritti Reali. Torino: Fratelli Bocca Editori, 1907
GAIUS. Institutas do jurisconsulto Gaio. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004
GARCÍA DEL CORRAL, Idelfonso (trad). Cuerpo del derecho civil romano. Primeira Parte. Digesto. Tomo
III. Tradução para o espanhol do Corpus Iuris Civilis, publicado por Krieger, Hermann e Osenbrüggen.
Edição fac-símile da publicada em Barcelona, 1897. Valladolid: Editorial Lex Nova, 1988
IGLESIAS, J. Derecho romano. v. 2. 2. ed., Barcelona : Alianza Editorial, 1953
MACKELDEY, F. Droit romain. Bruxeles: Ed. Société Typografique Belge, 1846
MARCHI, Eduardo C. Silveira. A propriedade horizontal no direito romano. São Paulo : Edusp, 1995
NETTO CAMPELLO, Manoel. Direito romano. Direito das coisas e das ações. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves e Cia, 1914
PELLAT, C. A. Exposé des principes genéraux du droit romain sur la proprieté et l’usufruit. Paris : Librarie
de Plon Fréres, 1853
RICCOBONO, Salvatore. Scritti di diritto romano. V. II. Palermo: Universitá degli Studi di Palermo, 1964
SALIS, Lino. La superfície. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1949
SCHULZ, Fritz. Derecho romano clásico. Barcelona: Bosch, 1960
SERAFINI, Filippo. Istituzioni di Diritto Romano. v. I. 8. ed. Roma: Tipografico Editrice Torinese, 1909
TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O direito real de superfície. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1993
VAN WETTER, P. Cours élementaire du droit romain. T. I. Paris: Librarie A. Marescq Ainé, 1893
WEBER, Max. História agrária romana. São Paulo : Martins Fontes, 1994
WINDESCHEID, Bernardo. Diritto delle Pandette. V. I. ,parte 2. Torino: Tipografico Editrice Torinese, s.d.
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