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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
UM OLHAR GEOGRÁFICO SOBRE A QUESTÃO DOS
MATERIAIS RECICLÁVEIS EM PORTO ALEGRE: SISTEMAS
DE FLUXOS E A (IN)FORMALIDADE, DA COLETA À
COMERCIALIZAÇÃO
RICARDO DE SAMPAIO DAGNINO
Porto Alegre, 2004
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
UM OLHAR GEOGRÁFICO SOBRE A QUESTÃO DOS
MATERIAIS RECICLÁVEIS EM PORTO ALEGRE: SISTEMAS
DE FLUXOS E A (IN)FORMALIDADE, DA COLETA À
COMERCIALIZAÇÃO
RICARDO DE SAMPAIO DAGNINO
NOME DO ORIENTADOR
Prof. Roberto Verdum
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Nelson Rego
Prof. Luiz Fernando Mazzini Fontoura
Trabalho de Conclusão do Curso de Geografia apresentado na forma de
monografia, junto à disciplina Trabalho de Graduação II, como requisito parcial
para obtenção do grau de Geógrafo.
Porto Alegre, 2004
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que contribuíram com essa pesquisa, que teve início há mais de
um ano, foi crescendo e ficando cada vez mais complexa, por vezes fugindo do meu
controle. Meu respeito pela colaboração de todos os que compreenderam a importância
desta pesquisa e contribuíram para o encerramento desta etapa de minha vida.
Aos meus familiares, em especial os pais, Maria Lúcia e Renato; os avós, Norma
e Zeca, e meu irmão Miguel, pelo estímulo contínuo e “infinita” paciência.
Agradecimento mui especial à Tati, companheira que, mesmo à distância, acompanhou
de perto essa pesquisa.
Aos colegas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: o André da Rocha e
a Liliane Maroni, meu grande respeito por longos anos de experiência em pesquisas de
campo, à bibliotecária Sônia pela ajuda.
Aos parceiros do Departamento Municipal de Limpeza Urbana: todo pessoal da
Divisão de Destino Final, em especial ao Milton e os engenheiros e músicos Arceu
Rodrigues e Eduardo Fleck; também ao bibliotecário Almerindo e o engenheiro André
Machado.
Aos companheiros do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais
Recicláveis: em especial os colegas, Cristiano Oliveira e Rafael Escurus, que se
tornaram ativistas importantes neste movimento e que tanto me ensinam.
Agradeço a esta entidade superior que é o curso de Geografia da UFRGS, grande
mãe receptora dos estudantes sem-destino, como eu e tantos amigos “easy-riders”:
Mauro Messina, Marcos Freitas, André “Sid” Barreto, Glauco Nery e outros...
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Aos colegas e professores desse curso: pelo rico espaço de discussão, em especial
os colegas “piratas-pirados” Daison da Paz, Juliano Timmers, Guilherme Sanches e
Evandro Martins e os colegas “lixeiros” Alexandre Denardi, Agnaldo Lima e Silva,
Leonardo Cotrim e Rodrigo Rocha. Aos colegas do “amorismo” Rogério Uagoda,
Michelle de Aguiar, Cláudio “Violeiro” Santos, Judeci da Silva, e os colegas do
“pessimismo” Luciano Silveira, Fabiano Gonzáles e Gabriel Hofmann. Ao colega Fábio
Guadagnin que consegue ser um pouco de tudo isto. Ao Rodrigo Queiroz “Plágio,
violão e voz”, que inaugurou uma nova tendência entre os geógrafos, por formação e/ou
por natureza: os Geoguis. Aos professores Nelson Rego, pela força, e ao Ulisses Bremer
e Luis Fernando Fontoura pelos incentivos numa época de minha vida que a Geografia
não passava de uma “disciplina simplória e enfadonha”.
Agradecimentos especiais às colaborações e às orientações do Professor Roberto
Verdum, que soube selecionar os melhores conteúdos e direcionar esta pesquisa para
um final..., até agora?! Meu profundo respeito por este que se tornou um grande
parceiro e amigo, o grande maior impulsionador desta pesquisa, permitindo que depois
de quinze anos retomássemos este tema.
Ao final mas muito importante: aos amigos “highlanders”, mostrando o caminho
e imunizando-nos um pouco mais a cada dia, ao casal feliz Enrique e Tati, à Marisa
Nascente que sempre deu alta força na arrumação da casa, ao Cláudio “Homem que
copiava” Santos pela xerocagem garantida e à professora Sonia Taborda que, de olho
nas filigranas, deixou o texto tinindo.
Enfim, nada se faz sozinho...
e isto teria sido muito difícil se não fosse por vocês todos.
SERES TUPY
(Pedro Luís)
Seres ou não seres, eis a questão
raça mutante por degradação
seu dialeto sugere um som
são movimentos de uma nação
raps e hippies
e roupas rasgadas
ouço acentos
palavras largadas
pelas calçadas
sem arquiteto
casas montadas, estranho projeto
beira de mangue, alto de morro
pelas marquises, debaixo do esporro
do viaduto, seguem viagem
sem salvo conduto é cara a passagem
por essa vida, que disparate
vida de cão, refrão que me bate:
de Porto Alegre ao Acre
a pobreza só muda o sotaque
RESUMO
Esta pesquisa trata da coleta e comercialização de materiais recicláveis, valiosos
componentes dos resíduos sólidos urbanos, na cidade de Porto Alegre. O foco está
voltado para a indissociabilidade das relações entre os principais agentes envolvidos
nesta questão: os catadores, organizados ou não em associações, que colaboram com o
retorno dos materiais ao processo produtivo; a indústria, encarregada do beneficiamento
e reindustrialização dos materiais; os intermediários, elo de ligação na reciclagem dos
materiais e exploração do trabalho nas relações entre os catadores e a indústria; e o
poder público, responsável pela regulação e pela normatização dessas relações. O olhar
geográfico utilizado tem o seu ponto de vista localizado na base da questão, o que
propõe uma percepção maior dos problemas enfrentados pelos catadores. Como
referência teórica e metodológica, foram utilizados os estudos de Milton Santos sobre os
sistemas de fluxos da economia urbana e as formas de representação gráfica utilizando
modelos explicativos.
PALAVRAS-CHAVE: Gerenciamento de resíduos sólidos, coleta seletiva, catadores de
materiais recicláveis, Geografia urbana, Milton Santos, teoria dos sistemas de fluxos da
economia, Porto Alegre.
SUMÁRIO
LISTA DE QUADROS ................................................................................................... 9
LISTA DE TABELAS .................................................................................................. 10
LISTA DE FIGURAS ................................................................................................... 11
LISTA DE MAPAS ....................................................................................................... 12
LISTA DE GRÁFICOS ................................................................................................ 13
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 14
2 CONCEITUANDO A QUESTÃO ............................................................................ 18
2.1 Geração de resíduos e metabolismo .................................................................. 18
2.2 Resíduo: lixo ou matéria- prima ......................................................................... 23
3 DELIMITANDO ESPACI ALMENTE A QUESTÃO ........................................... 27
3.1 Pesquisas nacionais do saneamento básico ....................................................... 27
3.2 Macro e mesoescalas: Brasil e Rio Grande do Sul ........................................... 29
3.3 Microescala: Porto Alegre ................................................................................. 34
4 ANALISANDO OS ASPECTOS NORMATIVOS E JURÍDICOS DA
QUESTÃO ..................................................................................................................... 40
4.1 Esclarecimentos iniciais ...................................................................................... 40
4.2 Norma técnica ABNT ......................................................................................... 40
4.3 Resoluções CONAMA ........................................................................................ 43
4.4 Legislação de Porto Alegre ................................................................................ 44
4.5 Legislação do Rio Grande do Sul ...................................................................... 46
4.6 A política nacional de resíduos sólidos (e saneamento ambiental) ................. 47
5 ENTENDENDO OS CONDICIONANTES SOCIOAMBIENTAIS DA
QUESTÃO ..................................................................................................................... 50
5.1 Uma caracterização operacional de material reciclável.................................. 50
5.2 A coleta informal de materiais recicláveis ........................................................ 55
5.3 Os catadores informais de materiais recicláveis .............................................. 57
6 ESCOLHENDO AS FERRAMENTAS PARA TRATAR A QUESTÃO ............. 62
6.1 A ciência geográfica no contexto ....................................................................... 62
6.2 Milton Santos: sistemas e circuitos ................................................................... 64
6.2.1 Os sistemas de fluxos e os lugares centrais ................................................... 65
6.2.3 Os circuitos da economia urbana ................................................................... 68
6.3 Materiais recicláveis: objetos e ações................................................................ 71
6.3.1 Sistemas de objetos: modelo cíclico .............................................................. 73
6.3.2 Sistemas de fluxos de ação: modelo complexo ............................................. 75
6.4 Observações sobre estudos acerca do tema ...................................................... 77
6.4.1 Os Empresários do Lixo ................................................................................ 77
6.4.2 Os Bilhões Perdidos no Lixo ......................................................................... 78
7 APLICANDO O MODELO ...................................................................................... 80
7.1 O modelo como caminho .................................................................................... 80
7.2 O modelo em movimento .................................................................................... 82
7.2.1 Primeiro movimento: o caos na coleta ........................................................... 87
7.2.2 Segundo movimento: organização dos catadores .......................................... 90
7.2.3 Terceiro movimento: central de comercialização .......................................... 95
7.2.4 Quarto movimento: entreposto regional ........................................................ 98
7.2.5 Quinto movimento: usina de beneficiamento .............................................. 100
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 105
8.1 O jogo da reciclagem e os catadores ............................................................... 105
8.2 A reciclagem vista pelos empresários e pelos catadores................................ 107
8.3 Reciclagem e políticas públicas ........................................................................ 109
8.4 Cidades Saudáveis ............................................................................................ 115
8.5 Cidades e Sociedades Sustentáveis .................................................................. 116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 119
ANEXO ........................................................................................................................ 128
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Quantidade de lixo coletado destinado à reciclagem ............................. 35
QUADRO 2 – Aspectos normativos e jurídicos dos resíduos ........................................ 42
QUADRO 3 – Tipo de plástico e o objeto que o contém ............................................... 53
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Dados gerais sobre o serviço de coleta de resíduos sólidos ..................... 33
TABELA 2 Agente s envolvidos na coleta seletiva, nas cinco regiões do Brasil ........ 34
TABELA 3 Correlação viabilidade entre utilização e reciclagem de materiais .......... 52
TABELA 4 Preço aproximado da tonelada de cada material (em reais),
comercializado em Porto Alegre no primeiro trimestre de 2004 .................................... 54
TABELA 5 Relação de tempos e ritmos na questão dos materiais recicláveis. .......... 83
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Metabolismo urbano: receptor de recursos e produtor de resíduos .......... 20
FIGURA 2 Sistema de objetos: modelo cíclico ........................................................... 74
FIGURA 3 Sistemas de fluxo de ação: modelo complexo .......................................... 76
FIGURA 4 Primeiro movimento no modelo da questão coleta comercialização ..... 88
FIGURA 5 Segundo movimento no modelo da questão coleta comercialização ..... 92
FIGURA 6 Terceiro movimento no modelo da questão coleta comercialização ..... 96
FIGURA 7 Quarto movimento no modelo da questão coleta comercialização ..... 99
FIGURA 8 Quinto movimento no modelo da questão coleta comercialização ...... 102
LISTA DE MAPAS
MAPA 1 Localização dos municípios com coleta seletiva formal.............................. 31
MAPA 2 Número de domicílios atendidos com coleta seletiva de resíduos sólidos ... 32
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 Evolução da coleta de resíduos domésticos em Porto Alegre ................ 38
GRÁFICO 2 Evolução da coleta de materiais recicláveis em Por to Alegre ............... 39
GRÁFICO 3 Proporção de material reciclado pelas indústrias, no Brasil .................. 55
1 INTRODUÇÃO
O problema do lixo vem inquietando crescentemente a sociedade brasileira, e os
resíduos sólidos vêm preocupando desde as donas-de-casa até os planejadores e
governantes, passando pela academia e os empresários. Têm também crescido, nos
últimos anos, os espaços de diálogo sobre esses temas. Seminários e encontros
sinalizam para a necessidade de que o Estado intervenha buscando uma solução
mediante o estabelecimento de acordos e consórcios multilaterais, seja em nível
internacional, seja em nível intermunicipal.
Ao mesmo tempo se constata que aumenta cada vez mais o número de famílias
que sobrevivem da coleta e comercialização dos materiais recicláveis encontrados junto
aos restos do consumo. O trabalho terceirizado ou “quarterizado” junto às lixeiras passa
a ser uma oportunidade para grupos sociais que, em face do desemprego, do
subemprego e até de regimes de semi-escravidão, não possuem outras formas de
sobrevivência.
Esta pesquisa trata da reciclagem dos materiais recicláveis, componentes
importantes dos resíduos sólidos urbanos, como uma alternativa de inclusão social e
desenvolvimento de uma sociedade sustentável, tendo como perspectiva os interesses e
as metas daqueles que são os principais agentes deste processo: os catadores.
Assim, como objetivo geral desse estudo delineamos a utilização do sistema de
fluxos da economia urbana para analisar o processo de evolução da questão dos
materiais recicláveis, as relações de trabalho e sua coleta e comercialização, em Porto
Alegre. Os objetivos específicos são o levantamento de dados sobre a coleta formal e
informal de materiais recicláveis, análise de quantitativos e qualitativos de materiais
15
coletados, análise de leis e normas referentes à questão e levantamento dos agentes
envolvidos.
Nosso olhar geográfico sobre a questão dos materiais recicláveis e sobre os
agentes envolvidos nesta questão se apoiou numa trajetória que abarcou a seqüência de
quatro passos.
O primeiro passo foi o levantamento de dados existentes, que forneceu a base
informacional da análise realizada. Esse passo compreendeu quatro dimensões que são
exploradas nos quatro capítulos que seguem. O de conceituação da questão, onde se
mostra como diferentes autores visualizam os distintos aspectos da problemática que
analisamos, dentro de um contexto da produção e do consumo de bens em massa; o de
delimitação espacial, onde se apresentam dados relevantes sobre a geração, coleta,
comercialização e processamento de resíduos sólidos no Brasil, no Rio Grande do Sul e
em Porto Alegre; o de análise dos aspectos normativos e jurídicos que classificam os
resíduos e que impõem responsabilidades aos agentes que lidam com sua coleta e
processamento e o que trata dos condicionantes socioambientais, onde se analisa a
maneira como se vem desenvolvendo a discussão sobre o processo de coleta seletiva e a
organização dos trabalhadores catadores.
A elaboração destes quatro itens, além de proporcionar a base informacional para
a análise, indicou os elementos que conduziram à montagem do referencial utilizado
para tratar o sistema de circulação de materiais recicláveis, objeto do segundo passo de
nossa trajetória. Esse referencial, que constitui o fundamento metodológico da análise, é
apresentado a seguir.
O quinto item apresenta os elementos de abordagens complexa e sistêmica, em
especial a teoria dos sistemas de fluxos e os circuitos econômicos, proposta pelo
geógrafo Milton Santos. Em seguida se propõe a utilização de um modelo analítico-
16
conceitual baseado nessa teoria, já empregada anteriormente para tratar a questão dos
materiais recicláveis, que foi considerado como possuidor de uma capacidade
explicativa coerente com os objetivos deste trabalho.
No sexto capítulo, que corresponde ao terceiro passo de nossa trajetória,
apresentamos uma modelagem concebida para representar os sistemas de fluxos e os
circuitos econômicos dos materiais recicláveis. Mediante este modelo se esquematizam
os limites espaciais de cada circuito e a configuração que possui o sistema em cada
movimento da evolução histórica da valorização do trabalho com materiais recicláveis
em Porto Alegre. Cada movimento é entendido como um estágio que contribuiu para
conformar a atual organização das relações de trabalho e a sua complexificação ao
longo do tempo, incluindo o processo de formação das associações e cooperativas e o
surgimento de um movimento nacionalmente organizado, passando pelo aumento da
coleta informal e pelas políticas governamentais que foram elaboradas.
Tendo como referência os movimentos da evolução observada, avançamos em
direção a um prognóstico sobre a questão, construindo um cenário que tem como foco a
possibilidade de inclusão social dos catadores de materiais recicláveis, aliada aos
objetivos de eficácia ambiental e desenvolvimento econômico sustentável.
No capítulo destinado às considerações finais, que corresponde ao quarto passo de
nossa trajetória, enfocamos algumas das iniciativas que poderiam ser implementadas no
sentido de valorizar as potencialidades cognitivas desses trabalhadores - constantemente
desqualificados pela evolução do conhecimento tecnicista - e abrir possibilidades
econômicas dotadas de maior autonomia, capazes de proporcionar sua inclusão social.
Finalmente sugerimos medidas de políticas públicas de cunho alternativo que estimulem
a inovação tecnológica e social junto às redes de solidariedade e cooperação e que
capacitem esses trabalhadores a melhor negociar e mesmo competir com as indústrias,
17
avançando para frente e para trás nas cadeias produtivas que têm os materiais
recicláveis como insumos econômica e tecnicamente relevantes.
2 CONCEITUANDO A QUESTÃO
Este capítulo conceitua a questão dos resíduos sólidos no contexto do atual
estágio da produção e do consumo em massa de bens. A reflexão sobre as trajetórias da
relação natureza-sociedade, o princípio que orienta este trabalho, embora esta análise
não seja longamente aprofundada aqui. No primeiro item, trataremos o resíduo como o
produto de diversos tipos de metabolismo biológico, social e urbano - e depois, no
segundo, veremos como se dá a valorização do resíduo enquanto matéria prima.
Primeiramente abordaremos a forma como a geração de resíduos sólidos vem
preocupando a humanidade, e o que é considerado material reciclável dentro dos
resíduos gerados. Para tanto, partimos da idéia de que o desenvolvimento da
humanidade, desde o tempo das primeiras comunidades isoladas, tem implicado a
diversificação das suas necessidades. Desde lá, a transformação da natureza, expressada
na apropriação-acumulação-reprodução dos recursos naturais, é a conseqüência e, ao
mesmo tempo, a causa da diversificação das necessidades e das relações ambientais
desequilibradas.
2.1 Geração de resíduos e metabolismo
A geração de resíduos pode ser tratada sob dois aspectos. Primeiro como um
importante produto final do metabolismo humano, em função de sua natureza biológica,
movida por necessidades primárias como a alimentação. Em segundo lugar, pelo
metabolismo social e urbano que caracteriza o homem como ser social e econômico,
impulsionado por motivações culturais, como no seu limite, o consumismo (BÉRRIOS,
1999).
19
O metabolismo social, repleto de significados subjetivos, pode valorizar ainda
mais o conceito de material reciclável que procuramos. Nos dias de hoje, as
necessidades primárias - motor do metabolismo biológico - estão cada vez mais
subordinadas às necessidades secundárias, como um elemento contido no metabolismo
social.
A atual forma de organização das sociedades em grandes aglomerações faz aflorar
necessidades que estão diretamente ligadas à vida urbana e que raramente são
satisfeitas, tais como a necessidade de saneamento e de ha bitat adaptado à vida urbana.
Pelo fato de essas necessidades objetivas resultarem da acumulação de população sobre
espaços restritos e/ou disputados, somam- se necessidades secundárias que resultam, em
última análise, das modernizações (LACOSTE, 1985).
Por isso, optamos pela generalização do termo metabolismo urbano como uma
síntese desta relação entre oferta de espaço e serviços e demanda de necessidades e
bem- estar (WOLMAN, 1972).
Ademais, preferimos utilizar a expressão metabolismo urbano por entender a
sociedade como um organismo; um organismo que se apropria de ambientes. Nesses
ambientes é onde se processam o dia - a- dia dos homens em suas funções biológicas,
assim como as multivariadas funções de trabalho, circulação, consumo e, também, as
práticas sociais e culturais (AB’SABER, 1995).
De qualquer forma, ambos os tipos de metabolismo geram um produto final, um
excremento ou uma matéria residual proveniente de diversos processos de apropriação e
reprodução da natureza. No caso do metabolismo urbano, o que temos é uma
dinamização desta lógica e um produto final rico em matérias reutilizáveis em outros
processos. A Figura 1 procura mostrar o metabolismo urbano como expressão máxima
da relação natureza-sociedade na atualidade.
20
FIGURA 1 Metabolismo urbano: receptor de recursos e produtor de resíduos.
Fonte: DIAS et al, 2003.
É importante frisar que essa relação sofre importantes modificações ao longo do
tempo. As informações que um depósito de lixo pré-histórico apresenta ao arqueólogo, e
que podem em muito ser comparadas às análises estratigráficas dos paleontólogos, são
exemplo disso. Algumas análises dos resíduos gerados permitem remontar ao tipo de
organização de uma sociedade, quais eram os seus conhecimentos tecnológicos e qual a
disponibilidade dos recursos naturais, entre outras características (EISELEY, 1969).
De modo geral, uma análise do passado aponta que as primeiras comunidades
humanas eram bastante pequenas: grupos nômades que coletavam diretamente os
alimentos e ferramentas, em função das suas necessidades básicas, de um lado, e da
disponibilidade e da proximidade espacial em relação aos recursos, de outro. Essas
comunidades geravam resíduos. No entanto, parecia haver um equilíbrio entre a
disposição de rejeitos e a capacidade de sua absorção e transmutação pelo ambiente.
Sobre este período, entendemos que o metabolismo estava em harmonia com a
21
capacidade da natureza. Nas palavras de Rubem Alves (ALVES, 1999: 9): “o lixo
estava integrado à vida” .
Com o passar do tempo, através da crescente manipulação tecnológica da
natureza e das relações desequilibradas dos homens organizados em sociedade, as
formas de utilização dos recursos têm impulsionado o crescimento dos impactos
socioambientais negativos.
Alguns autores referiam-se ao passado como era da pedra lascada, era da pedra
polida e era dos metais e assim sucessivamente. Atualmente alguns propõem a
denominação de “era do descartável” ou “era do plástico”, dado que a característica dos
tempos atuais é a problemática que se estabelece quando novos e “fantásticos” materiais
produzidos pela ciência e pela indústria invadem o nosso cotidiano (MARI, 2000).
Outros autores mais radicais, ante o processo tecnológico, têm chamado este período de
“era do lixo” (LIEBMANN, 1976).
A produção em massa de bens é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência do
consumo em massa, e esta relação engendrou modificações na maneira de se pensar os
objetos. Diariamente são criados tantos tipos de necessidades quanto aquelas que a
indústria resolve determinar, caracterizando o que se poderia chamar de um
aprimoramento da “engenharia de obsolescência” (ASSOCIAÇÃO DOS EX-
BOLSISTAS DA ALEMANHA, 1989) a serviço da “produção do supérfluo”.
(ORTEGA Y GASSET, 1961 apud WATSON, 1997).
Através da criatividade e da propaganda, consegue-se fazer crer à população que
os bens que as empresas desejam produzir sejam imprescindíveis à sua existência. A
criação de novas necessidades de consumo, de lazer, entre outras, vem acompanhada de
datas específicas para a renovação deste ritual, e a valorização crescente da propriedade,
22
em detrimento do ser e sentir humanos, tem alimentado um pensamento de que
“consumindo mais, teremos nossa vida enriquecida” (GALEANO, 1994).
Pelo fato de vivermos hoje em um mundo desigual, o resíduo entendido como
resultado do metabolismo urbano expõe as diferenças de acesso aos bens de consumo
como marcas da desigualdade socioeconômica. O que ocorre é que nem todos podem
consumir igualmente e, mesmo se conseguissem, nosso planeta não suportaria. Devido a
restrições ambientais cada vez mais fortes, os padrões atuais de consumo dos países
desenvolvidos não poderão ser estendidos ao conjunto da humanidade (LACOSTE,
1985).
Alguns setores da sociedade dos países desenvolvidos estão convencidos disto e
já aceitaram que o desenvolvimento econômico, nos padrões que conhecemos, está com
os dias contados. Uma alteração nos modos de vida parece estar em curso. Neste sentido
é que ganha força a idéia de um “desenvolvimento sustentável” que entendemos como
sendo um novo modo de vida e ou de produção baseado em cinco sustentabilidades
básicas: a social, a econômica, a cultural, a espacial e a ambiental (MONTIBELLER,
2000).
No tema que tratamos aqui o desenvolvimento sustentável da reciclagem deve ser
entendido como um arranjo entre a produção industrial baseada em tecnologias
alternativas que alguns denominam tecnologias limpas -, a utilização e a reutilização
de insumos e matéria-prima e, a gestação de uma ciência e tecnologia apropriada para o
desenvolvimento da igualdade entre os homens (HERRERA et al, 1976).
É neste contexto que vem ganhando força a iniciativa de buscar incorporar os
trabalhadores catadores, mediante a elaboração de políticas públicas, na atividade de
reciclagem, em direção a um desenvolvimento sustentável. Para que isso seja possível
23
num futuro próximo, entendemos que deve haver uma caracterização do que é o resíduo
inservível e o que pode ser reutilizado como matéria-prima em outros processos.
2.2 Resíduo: lixo ou matéria-prima
A economia pode ser definida, de modo bem simples, como o estudo da produção
e da distribuição das riquezas. Entretanto a riqueza é o produto da combinação de dois
fatores interligados: (1) a inteligência e o trabalho humanos e (2) sua capacidade de
exploração das matérias proporcionadas pelo ambiente. Tais matérias, ao serem
utilizadas no processo de produção, são definidas como “recursos naturais”
(HERRERA, 1977).
Assim, os recursos podem ser entendidos como “aquelas partes da natureza que
podem ser aproveitadas num momento dado. É, portanto, um conceito dinâmico, pois
são o trabalho e a inteligência humanos que fazem com que a matéria passe à condição
de recurso” (BENJAMIM, 1990: 10; apud SILVEIRA, 2000).
Neste sentido, o estudo dos resíduos oferece um rico suporte para a análise das
implicações geradas através da natureza. Se “nada se perde e tudo se transforma”, temos
um sistema fechado onde o resíduo é o resultado da transformação da natureza. Por isto
opta-se por falar em resíduos ao invés de lixo.
Na língua portuguesa, o termo resíduo sólido tem substituído a palavra lixo numa
tentativa de desmistificar o produto do metabolismo social. A palavra lixo vem
constantemente carregada de significados ligados ao que não serve mais e, como
sabemos, este não servir é carregado de dinamismo, sendo o lixo o produto na saída de
um sistema (output), ou seja, aquilo que foi rejeitado no processo de fabricação, ou que
não pode mais ser reutilizado em função das tecnologias disponíveis (BÉRRIOS, 2003).
24
De uma forma geral, a gestão de resíduos está referida a dois tipos de atitude: (1)
aplicação de tecnologias na remedição e tratamento de resíduos pós-consumo e (2)
adoção de medidas preventivas para a conservação de recursos e regulação da produção
de bens (BÉRRIOS, 2003).
Alguns países desenvolvidos já têm a primeira atitude como plano de gestão
obrigatório. Entretanto, para a maioria dos países, é a segunda alternativa que tem
motivado o desenvolvimento da reciclagem.
A reciclagem pode ser definida tecnicamente como uma forma de tratamento dos
resíduos, que contribui para a minimização dos impactos causados ao ambiente. Por este
método, diversos materiais que seriam enterrados retornam ao ciclo de vida de outro
produto como matéria-prima. Entre os principais benefícios desta atitude estão: (1) a
diminuição de áreas reservadas ao destino final, aterros e lixões; (2) a redução da
exaustão dos recursos não renováveis; (3) economia de energia e água ao poupar
matéria-prima virgem (OGATA, 1999).
Por outro lado, a reutilização e a reciclagem são conceitos carregados de
significados subjetivos, muitas vezes calcados em crenças e tabus relacionados aos
conceitos de higiene, de morte e de degradação moral. Como se vê nas obras do artista
alemão Hundertwasser pelo seu entendimento da relação natureza-sociedade através das
cinco peles epiderme, roupas, casa, identidade, Terra e do “Manifesto da Santa
Merda” que chama a atenção para o tabu do excremento (RESTANY, 1999).
Isto mexe com questões bastante profundas como, por exemplo, nossos
sentimentos religiosos. Se a morte é a fonte de uma nova vida e deve ser vencida pela
transformação, pela conquista de uma nova vida como entendem algumas religiões mais
antigas, então o próprio resíduo “vida em abundância” - enquanto algo que quer
“renascer” é reintroduzido, através da reciclagem, no “ciclo” da natureza, superando
25
assim a sua “morte” (EIGENHEER, 1989). No mesmo sentido, mas a partir de outra
matriz religiosa, se partimos do princípio de que a reciclagem dá aos descartes uma
“nova vida”. A reciclagem, então, implica em “ressuscitar” materiais, permitir que outra
vez sejam aproveitados (CALDERONI, 1999).
Contudo não são estes os motivos que atraem as indústrias a desenvolverem a
reciclagem, além da recuperação das propriedades físicas e químicas dos materiais; a
reciclagem também reincorpora de certa forma a energia despendida na sua produção.
Por outro lado, além da reprodução ampliada do capital empregado na produção, o
interesse maior recai sobre a revalorização do trabalho que foi socialmente utilizado em
sua produção e que nele continua incorporado. Mais do que recuperar o valor de uso dos
materiais, o que interessa nos processos de reciclagem é resgatar o seu valor de troca
(LEAL et al, 2002).
Numa tentativa de relativizar estes conceitos de eterno retorno que abrangem a
vida e a morte dos materiais e a reciclagem enquanto superação da matéria e
transmutação do valor de uso em valor de troca dos materiais, cabe citar um trecho de
Karl Marx da obra “O Capital”, que é seguidamente lembrado por outros autores. Ele
diz, no capítulo 7 do volume I, intitulado “Processo de trabalho e produção de mais-
valia”, que:
O ferro enferruja, a madeira apodrece. O fio que não se emprega, na
produção de tecido ou de malha, é algodão que se perde. O trabalho vivo tem
de apoderar-se dessas coisas, de arrancá-las de sua inércia, de transformá-las
de valores-de-uso possíveis em valores-de-uso reais e efetivos. O trabalho,
com sua chama, delas se apropria como se fossem partes do seu organismo, e
de acordo com a finalidade que o move lhes empresta vida para cumprirem
suas funções; elas são consumidas, mas com um propósito que as torna
elementos constitutivos de novos valores de uso, de novos produtos que
podem servir ao consumo individual como meios de subsistência ou a novo
processo de trabalho como meios de produção. (MARX, 1986, p.148)
26
Assim sendo, podemos dizer que, de uma forma geral, resíduos são porções de
materiais sem significado econômico aparente, em função de sua quantidade ou
qualidade, sobras de processamentos industriais, domésticos ou comunitários a serem
descartados, ou, ainda, qualquer coisa de que se deseje desfazer-se o mais rápido
possível.
Finalizando, e para retornar à questão da determinação histórico-social do
conceito de resíduo, é interessante notar que não basta verificar apenas quanto e o que
tem sido produzido ao longo dos tempos, mas também estudar quais são as relações
subjetivas que engendram as formas de produção, bem como as diferentes maneiras de
destinação, sejam elas lineares - disposição final em lixões ou aterros - ou cíclicas -
reciclagem, reutilização ou compostagem (SILVEIRA, 2000).
Em suma, o que nos interessa destacar em função da abordagem adotada neste
trabalho que, como apresentado na Introdução, privilegia o interesse dos catadores, e
como porta de entrada aos capítulos que seguem, é que o conceito de resíduo sólido que
neles se irá utilizar está referido aos objetivos de inclusão social deste ator.
3 DELIMITANDO ESPACIALMENTE A QUESTÃO
Este capítulo tem por objetivos caracterizar a geração e o gerenciamento dos
resíduos sólidos, situando a questão em diferentes níveis de abordagem: macroescala
para o Brasil, meso para o estado do Rio Grande do Sul e micro para o caso do
município de Porto Alegre.
Para fins de exposição, resolvemos agrupar a macro e a mesoescalas em um único
item. Essa opção deveu-se ao fato de que a base de dados é uma para a escala local e
outra para as escalas nacional e regional.
Desta forma, apresentamos então uma primeira seção onde comentamos a
metodologia de coleta de dados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), tanto para o nível nacional quanto para o estadual. Na segunda seção,
apresentamos as macro e meso escalas e, na terceira, o caso local. Para este último
nível, a base de dados foi bastante enriquecida através de contatos periódicos com o
Departamento Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre DMLU - e o
Compromisso Empresarial para a Reciclagem - CEMPRE. Além dessas, outras fontes
foram de grande utilidade na delimitação espacial da questão, como veremos a seguir.
3.1 Pesquisas nacionais do saneamento básico
As fontes de dados sobre os resíduos sólidos no Brasil são, em grande parte,
compilações de pesquisas primárias realizadas pelos municípios. As Pesquisas
Nacionais do Saneamento Básico, realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística IBGE - desde a década de 1990, são exemplo disso. Os dados destas
pesquisas são coletados de forma padronizada e compilados segundo as regras do
28
método exigido. Entretanto podemos dizer que a profundidade da análise parece ficar
comprometida em função da amplitude da aquisição dos dados.
Os dados publicados dificilmente fornecem subsídios para a interpretação de uma
sociedade desigual. A ausência de dados confiáveis sobre o número de catadores e suas
carroças na cidade e dos lixões nas periferias são exemplos desta deficiência. A seguir,
procuraremos explicitar algumas falhas desses dados oficiais, agregando a eles alguns
outros, levantados através de pesquisa bibliográfica.
Na realização das pesquisas do IBGE, a tarefa de coleta de dados fica a cargo das
prefeituras, departamentos de limpeza pública, secretarias de meio ambiente, e outros
órgãos. Não existe um padrão na forma da coleta nem nos conceitos e definições
utilizados, o que pode gerar confusões, decorrentes do tratamento dos dados brutos
coletados de forma desigual. Desta maneira, algumas diferenças entre os indicadores
municipais não passam de desajustes na metodologia empregada na pesquisa.
Os órgãos responsáveis pela coleta das informações primárias (prefeituras,
departamentos de limpeza, secretarias de meio ambiente, etc) não estabelecem um
padrão na forma da coleta nem dos conceitos e definições utilizadas. Cabe notar que
existem muitas definições diferentes de resíduos sólidos e, dependendo das definições
utilizadas em determinado município, podem ser geradas confusões, acarretando uma
série de diferenças estatísticas entre as cidades, as quais, na realidade, não existem.
Mais adiante falaremos sobre essas diferentes definições.
A seguir, apresentaremos alguns dos dados mais recentes, de 2000, que estão
incluídos dentro dos Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (IBGE, 2000), uma
atualização da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (IBGE, 2002) realizada no ano
de 2000, e publicada dois anos mais tarde, a qual também será utilizada como
referência.
29
3.2 Macro e mesoescalas: Brasil e Rio Grande do Sul
Apesar da escassez de dados sobre a situação dos catadores no Brasil, uma rápida
olhada nos lixões nas periferias das cidades grandes e nas ruas das cidades de interior
chama a atenção pelo número de trabalhadores que cada vez mais sobrevivem da coleta
de lixo.
Dados oficiais apontam que mais de 24 mil brasileiros vivem dentro de áreas
reservadas ao destino final dos resíduos sólidos - aterros sanitários e controlados, ou em
lixões. Deste total de trabalhadores, quase 8 mil vivem em lixões, como são conhecidas
as áreas de disposição final, sem controle administrativo ou técnico, que correspondem
a 30% das áreas de disposição no Brasil. São estes trabalhadores que de certa forma
colaboram com a limpeza urbana, alimentando-se a partir dos resíduos do metabolismo
urbano.
No Rio Grande do Sul, 114 municípios, ou cerca de 24% do total, admitem haver
catadores morando em áreas deste tipo. Deste total de municípios no estado, cerca de
30% desenvolvem algum tipo de serviço social com estes trabalhadores (IBGE, 2002).
Os serviços de limpeza urbana existem em quase 100% das cidades brasileiras e
empregam aproximadamente 320 mil pessoas, entre serviços públicos e/ou terceirizados
(IBGE, 2002). Fontes não-oficiais citam que no Brasil existem entre 200 e 800 mil
pessoas que, trabalhando na informalidade e, às vezes, na ilegalidade, contribuem com a
limpeza urbana (GRIMBERG, 2002).
De maneira geral, as grandes cidades - com mais de 200 mil habitantes - são as
que mais produzem resíduos e também as que têm planos de gerenciamento de resíduos
mais qualificados, com sistemas de coleta domiciliar e seletiva bem estruturados. Nestas
cidades, a coleta diária de resíduos varia em torno de 1 kg por habitante, ao passo que,
30
em cidades com população inferior a 200 mil, este número cai pela metade (IBGE,
2002).
Estudos demonstram que a produção de resíduos tem relação estreita com o nível
de vida da população. Tanto a quantidade quanto a qualidade dos resíduos é diferente
em função da variação deste nível. Em Porto Alegre, sabe-se que o resíduo dos bairros
ricos é composto de muito material reciclável, ao passo que o resíduo dos bairros pobres
tem maior proporção de matéria orgânica biodegradável. Soma-se a isto o fato de que o
bairro rico produz um volume total bem maior de resíduos (REIS, 2002).
Os dados produzidos pela pesquisa realizada tendo como referência a microescala
podem, com alguns ajustes, ser generalizados para todo Brasil e servir de insumo
informacional para trabalhos que temos desenvolvido. O primeiro é utilizar unidades de
setores censitários como base de dados socioeconômicos, ao invés dos bairros. Outro
ajuste importante seria a correlação dos dados de renda e educação, por exemplo, com
informação sobre saúde e saneamento, que poderiam formar um índice de qualidade de
vida e de qualidade ambiental. O que temos por certo é que somente o critério de renda,
normalmente utilizado nestas pesquisas, se não for correlacionado com outros
indicadores, apresenta-se como insuficiente para retratar a complexidade dos processos
socioeconômicos e ambientais associados à geração de resíduos.
Os planos de gerenciamento integrado de resíduos sólidos são ainda muito
recentes, tanto no Brasil como no Rio Grande do Sul. Em ambas as escalas, estes planos
necessitam de medidas regulatórias que venham a qualificá-los enquanto políticas
públicas. Entretanto o que se percebe é que, embora o estado e sua capital estejam
necessitando de maior investimento, é justamente nestas localidades aqui que a coleta
seletiva tem mais força.
31
O Mapa 1 apresenta os municípios que possuem programas de coleta seletiva
institucionalizada. Percebe-se a cidade de Porto Alegre e sua região metropolitana em
posição destacada dentro do contexto nacional da coleta de materiais recicláveis. Apesar
de recentes, as iniciativas neste sentido parecem ser de grande impacto, em face do que
ocorre no restante do País.
MAPA 1 - Localização dos municípios com coleta seletiva formal.
Fonte: Atlas do Saneamento (IBGE, 2004)
É basicamente em função destas iniciativas de coleta seletiva domiciliar em
microescala, que o estado, na meso escala, se apresenta com posição de destaque, como
32
se evidencia no Mapa 2. Este, apesar de diluir as informações através da representação
coroplética, nos padrões da série “como enganar com mapas”, pode ser didaticamente
útil justamente pelo que possui de mais repreensível que é o mascaramento (CÂMARA,
2000).
MAPA 2 - Número de domicílios atendidos com coleta seletiva de resíduos sólidos
LEGENDA
Fonte: IBGE, 2000.
33
Outras informações importantes sobre este quadro geral são as correlações que
podem ser feitas entre a produção de resíduos nos grandes centros urbanos, geralmente
localizados na faixa litorânea. Da população urbana no Brasil - 169,5 milhões - apenas 8
milhões de pessoas são abrangidas pela coleta seletiva. Isto é ainda mais grave pelo fato
de que as cidades com mais de 200 mil hab. são as que mais geram resíduos totais -
cerca de 800 a 1200g hab/dia (IBGE, 2002).
A Tabela 1 apresenta uma parte importante do banco de dados e colaborou para a
formação do Mapa 2. No Brasil, a coleta seletiva a cargo do poder público abrange uma
pequena parcela de municípios, apenas 8%, o que corresponde a somente 1% de todo o
resíduo sólido que é coletado e pesado no País é importante lembrar que nem todo
resíduo que é coletado passa pelas balanças para ser pesado (IBGE, 2000).
TABELA 1 - Dados gerais sobre o serviço de coleta de resíduos sólidos
Serviço de coleta de resíduos sólidos
Número de
municípios
Número de Residências Quantidade de Lixo
Coletado
Coleta
Seletiva
Coleta
Seletiva
Coleta
Seletiva
Total
Total
%
Total
Total
estimado
%
Total (t/dia)
Total
(t/dia)
%
Brasil
5.507
451
8
44.795.101
2.680
6
228.413,0
4.290,0
1
Rio
Grande do
Sul
467
138
29
3.042.039
383
27
7.468,3
597,0
8
Fonte: Extraído da Tabela 78 dos Indicadores de desenvolvimento sustentável (IBGE, 2000).
A Tabela 2 apresenta o número de agentes envolvidos na coleta seletiva, nas
cinco regiões do Brasil. A Região Sul, que produz o terceiro maior volume de resíduos
no País, é a que tem maior número de agentes envolvidos na coleta seletiva. Cabe
destacar o fato de que existem 26 associações que participam na Região Sul, 15 destas
34
em Porto Alegre. Resta saber se a pesquisa considerou estas como parte da prefeitura ou
como associações propriamente ditas.
TABELA 2 - Agentes envolvidos na coleta seletiva, nas cinco regiões do Brasil
Agentes envolvidos em iniciativas de coleta seletiva, por Regiões
Regiões
Prefeitura
Associações
ONG’s
Empresas
Igreja
TOTAL
Norte
50 - 2 2 - 54
Nordeste 187 9 12 4 1 213
Sudeste 510 22 19 16 5 572
Sul 533 26 9 15 5 588
Centro-oeste
81 - 1 1 1 84
Fonte: Atlas do saneamento (IBGE, 2004)
3.3 Microescala: Porto Alegre
Em Porto Alegre, constata-se uma situação de desequilíbrio entre os dados
compilados pelo IBGE e os dados apresentados pelo DMLU. Além da confrontação das
estatísticas, a experiência adquirida através da observação empírica e a comparação com
outros dados em 1990 - permitem apontar algumas lacunas nesses dados.
Por exemplo, no Quadro 1, consta que apenas 4% do que é coletado é
formalmente encaminhado para triagem nas unidades ligadas ao poder público, que
totaliza uma média de 60 toneladas por dia. Entretanto ocorre que, desde o ano 2000,
este volume é estimado - não pesado - pela Prefeitura; o que gera uma baixa
confiabilidade em relação a eles (IBGE, 2002).
Sobre os resíduos orgânicos que são destinados à unidade de compostagem,
também não existe informação confiável. Apesar de haver uma unidade deste tipo,
35
ligada à Prefeitura, e operando em escala de produção quase industrial, a pesquisa do
IBGE não apresenta informação relativa a esta unidade. Uma análise que não levasse
em consideração esses fatos poderia concluir precipitadamente que as unidades de
compostagem, no universo de dados, não estão funcionando (IBGE, 2002). Isso
mereceria atenção em trabalhos futuros, inclusive tratando de recalcular a viabilidade
técnica e econômica da compostagem, muitas vezes questionada.
QUADRO 1 - Quantidade de Lixo Coletado destinado à reciclagem
Fonte: Pesquisa nacional de saneamento básico (IBGE, 2002)
Estima-se que o volume de material gerado seja muito superior ao que é
apresentado para a coleta formal, configurando-se um desvio na destinação dos resíduos
ou o “roubo do lixo” como gostam de publicar os jornais.
A Prefeitura, na propaganda na mídia, aponta que existe coleta em 100% dos
domicílios - nos quais vivem mais de 1 milhão de habitantes, considerados urbanos.
Mas este dado não pode ser levado a sério. Sabe-se que a entrada do poder público em
vilas e favelas é sempre difícil. Para a coleta de resíduos, a coisa não é muito diferente.
Quantidade de Lixo Coletado
Destino
TOTAL
Estação de Compostagem Estação de Triagem
Localidade
t/dia t/dia % t/dia %
Brasil 228413 6 549 3 2265 1
Rio Grande
do Sul
7468 126 1,7 697 9,3
Porto
Alegre
1610 0 0 60 3,7
36
Em primeiro lugar, não existe motivação para retirar através da coleta convencional -
o material que entope as ruas quando das enxurradas: na vila ninguém reclama. Em
segundo lugar, o resíduo que se quer retirar na coleta seletiva - é, muitas vezes, a fonte
de sobrevivência de muitas famílias, e elas não querem perder um dos poucos trabalhos
que lhe restou, a catação.
A coleta seletiva foi iniciada em 1990 como uma das propostas do programa de
governo do Partido dos Trabalhadores - constituído de políticas públicas bastante
audaciosas como esta - em sua primeira gestão da Prefeitura de Porto Alegre. Apesar
deste acúmulo de experiência de 14 anos, o que percebemos é que ainda não existe um
banco de dados próprio deste órgão. Neste sentido, a grande quantidade de estudos
atualizados sobre a questão deverá servir como impulsionador na formulação de um
banco de dados que permita estruturar as informações dispersas - em diversos
departamentos e secretarias da administração e em diversos trabalhos acadêmicos e
jornalísticos - sobre a questão da coleta e comercialização dos materiais recicláveis
nesta cidade.
O estudo recente mais aprofundado sobre a questão foi realizado em 1997 e
indica que, naquela época, existiam 1140 pessoas coletando informalmente resíduos
domiciliares de todo gênero. A pesquisa mostra também que esses trabalhadores eram
responsáveis por uma carga de 125 toneladas diárias, equivalente a três vezes a
quantidade estimada para a coleta formal (COSTA; SATTLER, 2000).
Notícias jornalísticas apontam para outros números mais recentes. Na sua edição
de 19/5/2003, o Correio do Povo, após entrevista com vereadores da cidade, publicou
reportagem intitulada “Carroceiro desvia 20 t de lixo por dia”, em que é apresentada
uma quantidade menor de material coletado informalmente do que a recém-citada,
embora o número de catadores seja apontado como sendo de 7 mil pessoas.
37
Na edição de 7/05/2003, o Jornal do Comércio declara que conversou, alguns dias
antes, com o presidente da empresa pública municipal que regula o transporte e a
circulação nesta cidade e, em reportagem intitulada “O enquadramento das carroças”,
aponta a existência de 4200 carroças, equivalente a 15 mil pessoas trabalhando
informalmente na cidade. Ou seja, o dobro do que foi apontado pelo Correio do Povo.
De uma forma geral, um aspecto importante é que o número de catadores é hoje
apresentado como significativamente maior que o da pesquisa de 1997. Isto é coerente
com o que foi prognosticado pelos administradores. O que parece fugir do esperado é a
quantidade excessiva de resíduos domiciliares desviados e que, por mais subestimados
que possam ser estes valores - de 125 mil toneladas, em 1997, para 25 mil toneladas, em
2003 –, a redução na coleta é uma realidade inegável.
O Gráfico 1 apresenta a evolução histórica da coleta seletiva e da coleta
convencional de resíduos domésticos em Porto Alegre, de 1992 a 2002. Pode-se
observar um aumento na coleta de resíduos domésticos, compatível com a tendência
exponencial de geração, em função do aumento da população e outros. É digno de
atenção o intervalo entre 1998-2001, que apresenta uma oscilação e, logo após este
período, uma curva descendente que mostra a involução das quantidades coletadas após
o ano de 2001.
É importante ressaltar que estes dados referem-se às quantidades de resíduos de
todo tipo, incluindo os materiais recicláveis coletados pela Prefeitura. O que concluímos
é que isto ocorre menos em função da redução dos resíduos produzidos pela população e
mais em decorrência de uma interceptação crescente dos materiais recicláveis dentro do
universo de resíduos urbanos gerados e coletados.
38
GRÁFICO 1 - Evolução da coleta de resíduos domésticos em Porto Alegre
Fonte: Banco de dados (DMLU, 2004).
O Gráfico 2 apresenta uma outra fonte de dados sobre a coleta formal de resíduos,
abarcando também um intervalo de dez anos próximos do anterior. Ele mostra uma
projeção do que vem sendo coletado pela Prefeitura em termos de materiais recicláveis.
Note-se que justamente os materiais que são interessantes para os catadores informais é
que apresentam queda na coleta formal.
A comparação dos dois gráficos permite concluir que não é a quantidade total de
resíduos que está decaindo, mas sim o serviço de coleta seletiva que não está
conseguindo atender as demandas internas dos planejadores e externa das
associações organizadas nas Unidades de Triagem.
EVOLUÇÃO DA COLETA DE RESÍDUO DOMÉSTICO EM PORTO ALEGRE
756,81
913,50
860,77
972,84
950,66
920,08
959,15
844,23
664,20
651,30
591,80
300,00
400,00
500,00
600,00
700,00
800,00
900,00
1.000,00
1.100,00
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
ANO
COLETA (t)
39
GRÁFICO 2 - Evolução da coleta de materiais recicláveis em Porto Alegre
Material Reciclável Coletado em Porto Alegre
0
500
1000
1500
2000
2500
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
ano
ton/mês
Fonte: Adaptação de CEMPRE (2004b)
Reportagens do Correio do Povo permitem esboçar um panorama desta questão.
No dia 9/02/2003, esse jornal publicou matéria intitulada “Recicladores precisam de
auxílio”, que aponta a incapacidade da Prefeitura em fornecer quantidades suficientes de
materiais às Unidades de Triagem. No dia 25/02/2003 o jornal publicou que
“Recicladores solicitam materiais” e forneceu o endereço e o número de telefone de
associações que necessitam de ajuda externa, para que os leitores colaborassem
espontaneamente. O que sugere que o poder público não estava conseguindo dar
respostas ao problema.
4 ANALISANDO OS ASPECTOS NORMATIVOS E JURÍDICOS DA
QUESTÃO
4.1 Esclarecimentos iniciais
Os resíduos sólidos podem ser classificados de muitas maneiras, dependendo dos
organismos, das instituições, ou dos pesquisadores e atores sociais que elaboram e
fazem uso destas classificações. Para o estudo das atividades ligadas aos materiais
recicláveis, buscamos analisar nas normas técnicas e nas resoluções ambientais
pertinentes aos resíduos sólidos, os conceitos que as fundamentam.
O Quadro 2 apresenta o resultado preliminar a que se chegou durante a
comparação entre as diferentes resoluções sobre a questão. No decorrer deste capítulo,
esse quadro deverá ser seguidamente consultado como mecanismo auxiliar na análise.
De um modo geral, ele procura realçar algumas peculiaridades dos resíduos sólidos e
principalmente aquelas que tangem aos materiais recicláveis, especialmente a
dificuldade de estabelecer um conceito operacional para os catadores, além de
colaborar, no quarto capítulo, com a formulação de uma classificação adequada aos
objetivos dos catadores desses materiais.
4.2 Norma técnica ABNT
A definição de resíduos sólidos que orienta a maior parte dos estudos técnicos e
acadêmicos chama a atenção, entre outras coisas, por ser a mais antiga. Elaborada em
1987, a NBR 10004 feita pela Associação Brasileira de Normas Técnicas classifica os
resíduos sólidos em função de suas características intrínsecas, a partir da identificação
41
dos contaminantes presentes em sua massa. Assim, os resíduos podem pertencer a três
classes (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 1987):
I Perigosos: que podem apresentar risco à saúde pública e ao ambiente;
II Não Inertes: que não se enquadram em nenhuma das outras classes;
III Inertes: que não possui nenhum de seus constituintes solubilizados, em
concentrações superiores aos padrões definidos.
Esta forma de classificação é bastante complexa e, algumas vezes, pouco precisa.
Ao exigir a análise das propriedades físicas, químicas ou infecto-contagiosas dos
materiais, o que demanda uma série de etapas laboratoriais, esta normatização se torna
muito cara, em face das limitações impostas pelos laboratórios nacionais e
internacionais, tornando este tipo de classificação impraticável, ou comprometendo sua
utilização correta. Atualmente tem-se levantado a proposta de reformulação desta norma
técnica, considerando algumas falhas com a que valoriza demasiadamente as
características intrínsecas dos materiais.
Uma nova classificação deveria agregar outros fatores como pressupostos
adicionais, quanto às características extrínsecas ao material ou substância, isto é, os
relativos à forma como ele se apresenta. Pesquisas recentes mostram que a classificação
pela forma constitui uma ferramenta bastante útil para o enquadramento de um material
residual. Este enquadramento pode ser de três tipos, de acordo com as formas
características de cada material, ou parte dele: côncavo-convexa, como pneus ou
garrafas; perfurocortante, como agulhas; materiais particulados de granulometria fina
e/ou materiais desagregados de elementos maiores, como pós de alumínio. Na prática,
esta proposta pode facilitar e proteger o trabalho dos coletores de materiais. Na teoria, a
42
inclusão dessas características permite não só a classificação do resíduo em função dos
seus componentes (substância, material ou elemento), mas também, sob outro método
de análise, perceber qual o nível de periculosidade que a configuração geométrica
apresenta (ROHDE et al, 2004).
QUADRO 2 - Aspectos normativos e jurídicos dos resíduos
Fonte: Dados organizados pelo autor.
ABNT
CONAMA Legislação Municipal
5/1993
Classes
Iniciais
Resíduo
NBR
10004
275/2001
Lixeiras
283/2001
Saúde
307/2002
Construção
Lei nº
234/1990
1
Lei nº
274/1992
Saúde Branco
A, B
Radioativo Roxo
C
Perigoso
I
Laranja
A, B, C
D Especial
Orgânico Marrom ---
2
Orgânico
Plástico Vermelho
Papel/papelão
Azul
Metal
II
Amarelo
Vidro Verde
Madeira
III
Preto
D
B
Regular
Seco
Geral
3
(?) Cinza (?) (?) (?) (?)
1 Esta classificação não segue a taxonomia biológica, que divide os materiais em orgânicos e
inorgânicos. Ela é voltada para quem exerce a seleção dos resíduos no domicílio, numa proposta de
facilitar o trabalho de separação na fonte e colaborar com os serviços de coleta.
2 - Os resíduos orgânicos não figuram entre os provenientes da construção civil.
3 - “Resíduo geral não reciclável ou misturado, ou contaminado não passível de separação.”
(CONAMA 275/2001) Este tipo de resíduo não é encontrado em nenhuma outra classificação
pesquisada, embora exista um recipiente para o seu descarte.
43
4.3 Resoluções CONAMA
As classificações contidas nas Resoluções do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (CONAMA) também são bastante utilizadas no meio técnico, embora não
possuam uma metodologia de classificação passível de fácil generalização.
A primeira resolução a classificar os resíduos sólidos data de 1993 e trata dos
resíduos provenientes dos serviços relacionados à saúde, estabelecendo uma
classificação quanto ao risco ambiental e à saúde pública (BRASIL, 1993). Na
Resolução nº 5/1993 os resíduos recebem uma definição ampla, como sendo resíduos
nos estados sólidos e semi-sólidos que resultam de atividades, da comunidade, de
origem industrial, doméstica, hospitalar, comercial, agrícola, de serviços de varrição.
Esta definição reaparece posteriormente na Resolução nº 283/2001 que também
lida com resíduos de saúde (BRASIL, 2001). Para estas duas resoluções, os resíduos
sólidos podem ser divididos basicamente em duas grandes categorias e depois são
subdivididos em grupos, de um lado, aqueles que oferecem algum risco à saúde e ao
meio ambiente (Grupos A, B, C) e, de outro, os que não oferecem risco, os “resíduos
comuns” (Grupo D). Entretanto o próprio CONAMA parece estimular algumas
confusões. Ao tratar dos resíduos da construção civil na resolução n° 307/2002, diz-se
que os resíduos recicláveis são aqueles que formam um novo grupo chamado B,
enquanto os materiais de construção em geral pertencem aos outros grupos (BRASIL,
2002).
Além disso, ao definir as cores para as lixeiras através da resolução nº 275/2001,
confunde-se ainda mais a situação ao determinar que os recipientes para coleta de
resíduos deverão apresentar dez cores diferentes para cada tipo de resíduo, totalizando
uma subclassificação de dez novos tipos (BRASIL, 2001). Além da abundância de
44
cores, essa resolução apresenta uma outra novidade, um novo tipo chamado de “resíduo
geral” que não aparece em resoluções, normas técnicas nem mesmo nas interpretações
anteriores. Por essa resolução teríamos uma caixa coletora de cor cinza onde haveria
algo como um resíduo incapaz de classificação separação, definição - de origem
alienígena e/ou substância desconhecida. Assim estamos separando preliminarmente o
resíduo do que é rejeito e inservível.
4.4 Legislação de Porto Alegre
A legislação vigente em Porto Alegre é um mosaico de leis complementares em
sobreposição que, umas sobre as outras, procuram sustentar a Lei Orgânica do
Município. A primeira Lei Complementar n° 234/1990, classifica os resíduos em função
da coleta e limpeza públicas e pode ser incluída dentro do movimento que, viabilizando
a coleta seletiva, forneceu instrumentos jurídicos para a reciclagem (PORTO ALEGRE,
1990). A classificação dos resíduos é feita pela identificação dos grupos geradores e
pode ser dividida em dois grandes tipos, quanto à coleta, e seus subtipos quanto à
origem:
A. Regular (se o resíduo se apresenta acondicionado em sacos plásticos):
+ público - provenientes de vias e logradouros públicos;
+ ordinal domiciliar - produzidos em imóveis.
B. Especial (se o resíduo não está devidamente acondicionado):
+ público ou domiciliar, que não estejam corretamente dispostos para coleta;
45
+ outro proveniente de: serviços de saúde, de atividades ou eventos instalados em
logradouros públicos, de comércio ambulante, de alimentos para consumo imediato, de
abastecimento público;
+ todos os outros que não se enquadrem em nenhuma das classificações
anteriores. O resíduo industrial e/ou radioativo, não pertence a esta classificação por ser
objeto de legislação própria.
Além desta definição, temos outra posterior, a Lei Complementar nº 274/1992
que foi criada para orientar somente os serviços de coleta do resíduo regular do tipo
“ordinário domiciliar”, como define o Inciso III do Artigo 12 (PORTO ALEGRE,
1992). O Departamento Municipal de Limpeza Urbana DMLU - conta com esta
ferramenta para atingir os geradores domiciliares com uma classificação bastante
simples. Esta outra proposta divide o subtipo dos resíduos domiciliares (que pertence ao
Tipo “A” - Ordinal), em duas outras modalidades de lixo:
+ “lixo seco”: composto de materiais recicláveis;
+ “lixo orgânico”: outros materiais não-recicláveis, por sua composição ou por
estarem misturados.
Note-se aqui a simplicidade desta classificação dos resíduos que, de maneira
binária - é reciclável ou não é reciclável - pode implicar algumas confusões. Uma delas
é a dificuldade em definir o limite entre o lixo regular ordinal domiciliar e o regular
público, quando um saco é rasgado ou depositado na rua, por desatenção.
Por outro lado, esta classificação pode gerar interpretações equivocadas quanto ao
destino final dos resíduos de construção e os inertes. Esses resíduos, de origem pública e
46
particular, coletados de forma regular ou especial podem, muitas vezes, apresentar
substâncias tóxicas; em outros momentos, esses resíduos podem apresentar-se
genuinamente orgânicos, como aqueles provenientes das podas de árvores ou
restaurantes, compostos de matéria, animal ou vegetal, putrescível e biodegradável. O
próprio DMLU aplica dois projetos que visam à reutilização destes materiais através da
compostagem e da suinocultura. Neste sentido, esta proposta de chamar de orgânico
tudo que não é reciclável se apresenta como um desserviço.
4.5 Legislação do Rio Grande do Sul
A legislação estadual que trata de resíduos sólidos apresenta-se como um marco
na regulação deste tema. De acordo com a lei n° 9921/1993, os resíduos são definidos,
com bastante amplitude, como os provenientes de atividades industriais, comerciais,
rurais, urbanas - domiciliar e limpeza pública -, de extração de minerais e de serviços de
saúde (RIO GRANDE DO SUL, 1993).
Além disto, ela traz algumas indicações sobre o gerenciamento de resíduos
através de procedimentos de coleta seletiva. Neste sentido, o primeiro parágrafo desta
lei (RIO GRANDE DO SUL, 1993), apresenta-se como um dos pontos mais
importantes:
Art. 1º - A segregação dos resíduos sólidos na origem, visando seu
reaproveitamento otimizado, é responsabilidade de toda a sociedade e deverá
ser implantada gradativamente nos municípios, mediante programas
educacionais e projetos de sistemas de coleta segregativa.
Par. 1º - Os órgãos e entidades da administração pública direta e
indireta do Estado ficam obrigados à implantação da coleta segregativa
interna dos seus resíduos sólidos.
Par. 2º - Os municípios darão prioridade a processos de
reaproveitamento dos resíduos sólidos, através da coleta segregativa ou da
implantação de projetos de triagem dos recicláveis e o reaproveitamento da
fração orgânica, após tratamento, na agricultura, utilizando formas de
47
destinação final, preferencialmente, apenas para os rejeitos desses
procedimentos.
Ademais, esta lei determina alguns aspectos importantes que foram excluídos
quando de sua regulamentação, cinco anos mais tarde no Decreto n° 38356/1998 (RIO
GRANDE DO SUL, 1998).
Alguns exemplos são a implantação gradativa da coleta seletiva nos municípios, a
obrigatoriedade deste tipo de coleta para os órgãos públicos do estado e a criação de um
novo hábito embasado na responsabilização de toda a sociedade.
Por outro lado, o decreto que regulamenta a lei propõe no artigo 1 a formulação
de uma meta de “não-geração” de resíduos, na forma de “minimização, reutilização,
reciclagem, tratamento ou destinação adequada dos mesmos” (RIO GRANDE DO SUL,
1998).
Este decreto indica, também, algumas formas de implementação dos objetivos
expostos, como por exemplo: a implantação de programas de capacitação; a criação de
linhas de crédito para auxiliar os municípios no projeto e implantação do
reaproveitamento de resíduos; o estimulo à implantação de indústrias recicladoras; o
incentivo à criação e o desenvolvimento de associações e/ou cooperativas de catadores e
classificadores. Um importante passo em direção a estes objetivos é a criação, no artigo
30, de uma comissão intersetorial e interdepartamental coordenada pela Secretaria
Estadual do Meio Ambiente (RIO GRANDE DO SUL, 1998).
4.6 A política nacional de resíduos sólidos (e saneamento ambiental)
A proposta de uma legislação federal que conceitue os resíduos sólidos de forma
única e inequívoca é o debate que está sendo travado entre legisladores, empreiteiras,
48
setores da indústria e do comércio, além de pesquisadores da área e movimentos sociais
interessados. Uma discussão técnica e por que não, também, política - tem levado
muitos defensores de uma política nacional de resíduos sólidos que trate exclusivamente
deste assunto a repensarem a importância dos resíduos. Principalmente dentro de um
novo contexto mais geral em que a manutenção dos recursos naturais, a inovação na
área de mecanismos produtivos, a regulação energética e a preservação dos ambientes e
promoção do saneamento básico e da inclusão social estariam todos interconectados à
redução, geração e tratamento de resíduos. A partir de um entendimento complexo, mais
crítico e abrangente do problema dos resíduos sólidos, estar-se-ia viabilizando a
unificação de algumas das resoluções vistas anteriormente, além do direcionamento
deste processo político para um novo rumo.
A base do debate legislativo era o Projeto de Lei nº 3606/2000 (BRASIL, 2000)
que propunha a formulação da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Esse projeto
vinha somando-se a outras muitas tentativas que, há mais de dez anos, desde o primeiro
projeto de lei sobre o tema foi o de nº 203/1991 (BRASIL, 1991) e vem procurando
estabelecer as diretrizes do gerenciamento dos resíduos e tentando acertar uma
concordância entre as diversas classificações.
Entretanto, em termos práticos, estes projetos de lei se apresentam muito mais
como um arremedo das definições anteriores (especialmente do CONAMA e da
ABNT), dado que não apresentam nenhuma proposta nova que possa enriquecer a
reconceituação dos resíduos. Além disso, esses projetos de lei não têm procurado refletir
os anseios de grande parte da sociedade que convive diretamente com o problema,
primeiro no momento do descarte e depois, na coleta do resíduo. Uma nova legislação
para o tema poderia balizar a discussão entre os atores sociais que tratam do assunto,
inclusive sinalizando a mutação do conceito de material reciclável.
49
Está colocada a necessidade de uma nova lei que trate da inclusão social
relacionada ao gerenciamento dos resíduos sólidos, além de incluir este tema dos
resíduos dentro de uma pauta maior, como por exemplo, o projeto da Política Nacional
de Saneamento Ambiental n° 4147/2001 (BRASIL, 2001). Sabemos que existem
diversas críticas sobre os méritos destes dois projetos, tanto no Congresso quanto na
base da sociedade, mas é justamente por isto que pensamos que a discussão deva crescer
e gerar frutos. Pensamos também que o embate crítico deve guiar o debate legislativo e
que as políticas, não só as que tratam dos resíduos sólidos, devem ser elaboradas de
forma popular e democrática, para um desenvolvimento social e ambientalmente
sustentável e ser motivo de orgulho para as gerações futuras do nosso país e uma
referência em escala mundial. (GRIMBERG, 2002).
As formas como estas normas técnicas ou resoluções incidem sobre a população
que deposita o resíduo, de um lado, e dos trabalhadores que coletam, de outro, é um
ponto importante que será colocado no próximo capítulo.
5 ENTENDENDO OS CONDICIONANTES SOCIOAMBIENTAIS
DA QUESTÃO
Temos visto que grande parte das leis ou resoluções editadas, reeditadas e
sobrepostas, sem uma correta delimitação do que seja material reciclável dentro do
resíduo sólido, não contribuem para que os processos de reciclagem e de coleta, se dêem
de maneiras mais adequadas. Na maior parte dos casos, o que temos é uma grande
imprecisão legal e um quase conflito institucional. Tudo isso permeado por motivações
de ordem social e econômica, uma vez que o que gera a disputa pela posse dos materiais
é o valor de mercado que este material possui quando é encontrado no lixo.
Aqui apresentamos um tema central para os objetivos dos capítulos seguintes,
qual seja a necessidade de uma caracterização operacional de material reciclável que
esteja vinculada ao funcionamento do ciclo de valorização destes materiais.
5.1 Uma caracterização operacional de material reciclável
Uma caracterização operacional dos materiais pode ser conseguida a partir da
análise dos principais constituintes dos resíduos sólidos urbanos. Entendemos que
nestes podem ser encontrados basicamente três tipos de resíduo:
- Os resíduos úmidos, formados por: restos de alimentos, cascas de frutas e
legumes, guardanapos usados, filtro de papel para café, restos de alimentos, folhas de
árvores, plantas e hortaliças. Estes resíduos podem, através da compostagem, ser
“reciclados”.
51
- Os resíduos secos, constituídos por: papéis: papelão, revistas, jornais, cadernos,
caixas de leite longa vida (TetraPak); plásticos: potes de margarina e outros produtos,
embalagens de materiais de limpeza, xampu, sacos; vidros: garrafas em geral, copos,
toos os tipos de vidro inteiro ou em cacos (exceto lâmpadas fluorescentes); metais: latas
de alumínio, tampas de garrafas, pregos, latas de óleo e de leite, marmitex, grampos,
arames, panelas, embalagens de alumínio.
- Os rejeitos, representados por: objetos que não podem participar da reciclagem
por serem constituídos de materiais cujo processamento não possua tecnologias
apropriadas, em função dos altos custos envolvidos e/ou que possuam propriedades
nocivas à saúde humana e/ou nocivas ao ambiente como: papéis higiênicos, papéis
molhados ou sujos de gordura, papel de fax, fraldas descartáveis, absorventes
higiênicos, isopor, celofane, embalagens compostas da fusão de diversos materiais
(papel plastificado, aluminizado, carbono), cerâmicas, espelhos, cristais quebrados,
fotografias, cinzas, tocos de cigarro, restos humanos ou de outros animais.
Pela via formal e institucionalizada com a coleta seletiva, os resíduos podem
seguir por dois caminhos: aqueles aptos à reciclagem, sendo recolhidos por caminhões
de coleta seletiva domiciliar ou entregues em postos de entrega voluntária, distribuídos
pela cidade, chegam até as organizações sociais de catadores, divididas em Unidades de
Triagem (UTs); os rejeitos, junto com boa parte dos resíduos orgânicos, são destinados
à coleta domiciliar convencional que, somada a algumas quantidades de material
rejeitado no processo de triagem nas UTs, deverá ser depositado em aterros sanitários.
52
Importante notar que muito pouco resíduo orgânico é mandado para a Unidade de
Triagem e Compostagem (UTC), o que representa um verdadeiro desperdício de
material reaproveitável e uma sobrecarga aos aterros.
A Tabela 3 apresenta vários tipos de materiais recicláveis normalmente
encontrados no resíduo sólido urbano. Ela correlaciona a quantidade de material que, se
reutilizado, pode gerar certa quantidade de matéria-prima reprocessada na indústria,
além do seu tempo de decomposição ao natural e de quanta matéria-prima é utilizada
para cada tonelada de matéria virgem.
TABELA 3 - Correlação viabilidade entre utilização e reciclagem de materiais
Fonte: CALDERONI, 2003.
1 Tonelada
de Material
Utilizou
Tempo de
decomposição ao
natural
Reciclado
Papel
20 árvores de 7
anos de idade,
energia e água
2 a 4 semanas para
decomposição
1,2 t de sucata de papel
Metais
ferrosos
2 tons. de minério
de ferro
100 anos 1 t de sucata ferrosa
Vidro
1,3 t areia, energia
e água
Tempo indeterminado
para decomposição
no solo (talvez 4000
anos)
1 t sucata de vidro
Alumínio
5 tons. de bauxita,
energia e água.
Tempo indeterminado
para decomposição
no solo (talvez não se
decomponha)
1 t sucata de alumínio
53
O Quadro 3 mostra os vários tipos de plásticos encontrados nos objetos coletados
para reciclagem. Por possuírem, enquanto matérias- primas, va lores de mercado bastante
diferentes, uma importante capacidade a ser desenvolvida pelos catadores é a
identificação de cada tipo de plástico mediante exame visual ou de testes simples, tais
como densidade, dureza, facilidade de combustão, cor da chama, etc.
QUADRO 3 - Tipo de plástico e o objeto que o contém
Fonte: CALDERONI, 2003.
De uma forma geral, pode-se dizer que o ciclo da reciclagem tem início no
descarte do resíduo pós-consumo. Na lixeira das casas ou nas unidades de triagem, os
materiais são separados pelos catadores, segundo sua natureza (papel, plástico, vidro,
etc). A seguir, os diferentes materiais são acondicionados, enfardados e pesados. Cada
material que constitui o resíduo possui um preço de mercado diferenciado. Dá-se, então,
a comercialização entre os catadores e os intermediários que, depois, revendem o
material à indústria recicladora.
Tipo de Plástico Objeto
Polietileno tereftalato (PET) Garrafas de refrigerante
Polietileno de alta densidade
(PEAD)
Engradados de bebida, baldes, tambores, autopeças
Polietileno de baixa densidade
(PEBD)
Embalagens de biscoitos e massas, sacos de leite
Cloreto de polivinila (PVC)
Tubos e conexões, garrafas de água mineral e de
detergente líquido
Polipropileno (PP)
Embalagens de biscoitos e massas, potes de
margarina, seringas descartáveis
Poliestireno (PS)
Copos descartáveis, componentes de
eletrodomésticos
54
Neste processo, quanto mais o material percorre o ciclo em todos os seus atalhos
e desvios, desde a separação até a indústria, a ele vai sendo agregado valor, e maior
tende a ser o seu preço. De modo geral, isto significa que o catador situado no início do
processo recebe proporcionalmente bem menos dinheiro pelo mesmo material que é
vendido pelos intermediários às indústrias. Isso faz com que o catador opte por trabalhar
materiais mais valorizados pelo mercado. A Tabela 4 mostra o preço do material pago
pela indústria e pelos intermediários em Porto Alegre.
TABELA 4 - Preço aproximado da tonelada de cada material (em reais), comercializado
em Porto Alegre no primeiro trimestre de 2004.
Fonte: Indústria CEMPRE, Intermediário DMLU.
Não é de surpreender que, tendo em vista os preços indicados na tabela, exista a
preferência pela reciclagem das latas de alumínio em detrimento de outros materiais.
Como fica visível no Gráfico 3 que apresenta a proporção dos materiais reciclados pelas
indústrias brasileiras.
Papel Lata Vidro Plástico
Cidade
Papelão
Branco Aço Alumínio
Incolor
Colorido
Rígido PET Filme
Tetra
pak
Indústria
360 480 40 3000 40 40 550 800 280 25
Intermediário
220 420 - 2200 - - - 350 - -
55
GRÁFICO 3 - Proporção de material reciclado pelas indústrias, no Brasil
Fonte: Indicadores de desenvolvimento sustentável (IBGE, 2000)
5.2 A coleta informal de materiais recicláveis
A questão da coleta informal dos materiais em via pública tem significado um
fator de atrito importante nos embates entre os catadores e o poder público. Muitas
propostas estão sendo colocadas em discussão pelo poder municipal, no sentido de
dificultar o trabalho dos catadores. A legislação municipal, como vimos anteriormente,
determina que a responsabilidade da coleta fica a cargo exclusivo da Prefeitura, o que é
visto como uma limitação ao trabalho dos catadores.
Na Câmara de Vereadores, por exemplo, tramita um projeto de lei “proibindo” o
tráfego de veículos movidos por tração animal, dificultando o trabalho dos condutores
de carroça. Outra proposta é a da coleta automatizada dos resíduos urbanos; ao invés de
lixeiras nas ruas haveria containeres para receber os resíduos e caminhões munidos de
56
braços mecânicos para o seu recolhimento. Países da Europa, Estados Unidos e Japão
têm instituído eficientes e sofisticados programas de automação da coleta e da separação
dos resíduos domiciliares. Entretanto, a falta de integração vertical dos agentes locais
tem desestimulado a indústria a reciclar o material resultante destes processos.
O Código Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre - Lei Complementar
234/1990 (PORTO ALEGRE, 1990) -, a exemplo do que em geral ocorre, determina
que todo gerador é responsável pelo resíduo que gera, inclusive o doméstico. Ela prevê,
ademais, a obrigatoriedade da separação na fonte, mas ela ainda não é cumprida. O que
ocorre é: se os resíduos - de qualquer tipo - não estiverem acondicionados da maneira
correta, ou nos dias e horários corretos ou se o catador informal, revirando a lixeira em
busca dos materiais recicláveis, deixou os sacos abertos ou jogados, o “domicílio
gerador” fica responsabilizado, recebendo a multa. O que se percebe é uma tendência de
punir, ao invés de facilitar a coleta realizada pelos informais.
Outro fator importante nesta questão são as lixeiras das calçadas. Algumas
pesquisas vêm concluindo que a coleta dos materiais esbarra muitas vezes na própria
incapacidade do agente depositador em classificar os resíduos (frente a um arco-íris de
lixeiras coloridas) e do órgão público em padronizar um recipiente para a deposição do
material. Além disso, a proibição de instalação destes equipamentos urbanos pelos
particulares, a sua distribuição espacial irregular e sua ergonomia, em muitos casos,
demonstra a ausência de um planejamento voltado para a utilidade dos serviços -
formais e informais - de coleta (LOUZADA et al, 2004).
De um modo geral, se observa que os projetos de lei têm caminhado na direção da
autopromoção dos legisladores e governantes, paralelamente ao beneficiamento dos
empresários interessados na crescente flexibilização do trabalho (terceirização,
57
quarterização, etc) e na desregulamentação dos serviços de coleta e disposição final
(privatização do lixo).
Agora que entendemos um pouco dos motivos que orientam o trabalho destas
pessoas resta entender melhor quem são elas, como vivem e como se têm organizado
para continuar exercendo seu trabalho de coleta e comercialização de materiais
recicláveis. O item a seguir propõe traçar um breve perfil dos catadores.
5.3 Os catadores informais de materiais recicláveis
Se já dissemos anteriormente que o grande motivador para a reciclagem industrial
é a recuperação do valor de trabalho socialmente necessário embutido nos materiais,
temos que notar que isto só é possível em função da apropriação do trabalho não pago
aos catadores (LEAL et al, 2002). Dito de outra forma: se não fosse pela exploração dos
catadores, a reciclagem não valeria a pena. E isto não só pela ocorrência de uma
desigualdade de mercado, entre o preço de venda e o de compra, mas em função de um
mecanismo interno do capitalismo. A reprodução ampliada do capital é que determina
as especificidades econômicas, sociais e ambientais.
Os catadores, depois da coleta, podem reutilizar o material, trazendo de volta a
vida os objetos em função do seu valor de uso, ou podem transformá-lo em mercadoria,
incorporando-lhe valor mediante sua apropriação pelo trabalho e posterior
comercialização (COLLA, 2002).
Na realidade, a atividade de reciclagem se apresenta, em nosso meio, como uma
atividade bastante contraditória. Notícias de jornal são uma boa fonte para ilustrar estas
características.
58
Na sua edição de 21/03/2004, o Correio do Povo, em reportagem intitulada “País
lidera reciclagem no mundo”, informa que o Brasil reciclou 89% de todas as latas de
alumínio vendidas no ano passado, tendo sido, pelo terceiro ano consecutivo, o líder
mundial em reciclagem de latas, considerando as nações onde esta atividade não é
obrigatória. Embora sem negar os aspectos positivos associados a esta atividade
(segundo a Associação Brasileira do Alumínio, a sucata gera 160 mil empregos da fase
de coleta à de transformação) há que considerar que as razões pelas quais aqui se
reciclam as latas de alumínio ligadas diretamente à exclusão social são muito
distintas daquelas que levam os países que ocupam as posições inferiores na
classificação mundial, como o Japão, os EUA, etc.
Na sua edição de 22/02/2002, a Folha de São Paulo, em reportagem intitulada
“Garrafa plástica vira moeda em Favela no Rio” informa que empresas de reciclagem
trocam produtos (alimentos, cestas básicas, materiais de construção, material escolar,
televisões e computadores) por garrafas PET no Complexo do Alemão. Indica também a
tabela de conversão que estaria sendo usada: 1kg de Arroz ou Feijão 250 garrafas; 1
cesta básica com 30Kg - 5050 garrafas; 1 milheiro de tijolos 17 mil garrafas; 1 Perna
Mecânica de R$ 15 mil 4 milhões de garrafas; 1 Computador com impressora 250
mil garrafas; 1 carro 5 milhões. Na mesma edição, a Folha de São Paulo, informa que
“Aposentado vai trocar 70 mil garrafas por TV colorida”, que “Embalagens viram
móveis”, e que, no entanto, o “Reaproveitamento de garrafas PET atinge somente 33%
da produção”.
Mas esta valorização do trabalho dos catadores é relativamente nova. Até a
década de 80, a ocupação de catador era extremamente desvalorizada e apontava para
um problema de difícil solução para aqueles dias, algo que deveria ser escondido aos
59
olhos para que não chegasse nem perto dos questionamentos sociais e ecológicos que
retomaram a força mais tarde.
Os catadores, em sua totalidade, viviam nas ruas como indigentes e/ou conviviam
nos lixões com urubus e tratores, buscavam alimentos, roupas (reuso) e materiais para
vender (reciclagem). Além de figurar lendas urbanas, como personagens - “Velho das
Garrafas” e “Homem do Saco” que vinham pedir sucatas e que, no imaginário incutido
nas crianças, queriam mesmo era levá-las.
Quando se falava em catadores vinha à cabeça aquela condição de vida exposta
no premiado filme de curta-metragem de Jorge Furtado gravado em 1989, “Ilha das
Flores”. Ou nos vídeos de Marcelo Tas e Fernando Meirelles quando da formação, na
década de 1980, do grupo Olhar Eletrônico.
Na mesma época, as pesquisas acadêmicas também tiveram um impulso
interessante. As pesquisas desenvolvidas pela antropóloga Idalina Costa, no Rio Grande
do Norte concluíram que a condição social era tão excludente quanto a racial, e diz que
a favela que ela estudou tinha as mesmas características de todas as favelas do mundo
(COSTA, 1981; COSTA, 1986). O prefácio da monografia de 1981, assinado pelo
geógrafo Manuel Correia de Andrade, aponta que os catadores são um grupo de
consumidores de resíduos, de detritos e de restos daquilo que é gerado por uma minoria
que detém o controle dos meios de produção (COSTA, 1981).
Outras pesquisas importantes são fruto do trabalho de dois geógrafos. A primeira,
de Maria Ogata, trata da organização do espaço e da qualidade ambiental relacionada ao
problema da localização de aterros sanitários (OGATA, 1983). A outra, de Roberto
Verdum, será objeto de análise aprofundada adiante, pois apresenta a questão através de
uma perspectiva socioeconômica muito importante para a nossa pesquisa (VERDUM,
1988).
60
Atualmente temos acompanhado a valorização destes trabalhadores, reconhecidos
pelas prefeituras de muitas cidades como “agentes ambientais” e possuidores de uma
posição de destaque nos serviços de limpeza pública.
Evoluiu-se desde a situação identificada pelo geógrafo Milton Santos. Em 1981,
este autor escreveu que catadores de lixo caracterizavam-se por um emprego mais ou
menos temporário que chegava quase sempre aos limites da mendicidade (SANTOS,
1981). Esta característica de mendicidade é que tem sido o ponto diferencial da
evolução das organizações de catadores.
Temos visto que formas de organização dos catadores têm contribuído para a
redução de atitudes de exclusão social e para o aumento da auto-estima destes
trabalhadores, além de garantir-lhes a participação em fóruns de discussão sobre o tema
da reciclagem e do saneamento ambiental. É importante lembrar que este espaço é um
reconhecimento merecido em função da estimativa que 30% dos materiais reciclados no
Brasil vêm diretamente do seu trabalho (GRIMEBRG, 2004).
Se antigamente a existência de lixões é o que garantia o trabalho do catador,
desde a formação do Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis MNCR, no
final da década de 1990, os catadores posicionam-se contra esta forma de disposição de
resíduos, por justamente dificultar o trabalho dentro de um outro contexto histórico.
Atualmente a luta dos catadores já ultrapassou o objetivo imediato de reconhecimento
pelos serviços, os catadores querem ser remunerados pelos serviços prestados na
limpeza das cidades.
Como fica claro na “Carta de Brasília”, documento anexado ao final deste
trabalho , assinado conjuntamente pelos participantes do 1º Congresso Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis e 1ª Marcha Nacional da População de Rua,
realizados em Brasília, em junho de 2001, o que se pretende é a promoção da
61
reciclagem feita pelos próprios catadores, com remuneração e legislação trabalhista
condizente a esta iniciativa. A seguir um curto trecho deste documento (MOVIMENTO
NACIONAL DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS, 2001):
Conscientes da nossa cidadania e da importância do trabalho que
desenvolvemos e das tecnologias por nós elaboradas, já qualificadas em mais
de cinco décadas de atuação cotidiana, tomamos a iniciativa de apresentar ao
Congresso Nacional um anteprojeto de lei que regulamenta a profissão de
catador de materiais recicláveis e determina que o processo de
industrialização (reciclagem) seja desenvolvido, em todo o país,
prioritariamente, por empresas sociais de catadores de materiais recicláveis.
Cabe à sociedade e aos governos valorizar o trabalho dos catadores e posicionar-se
favoravelmente a sistemas de coleta seletiva que os integre de forma organizada e
autônoma, o que certamente contribuirá para cidades mais justas, humanas e
sustentáveis. E é neste ponto que o social e o ambiental se interligam: separar materiais
em casa ou no local de trabalho é um ato de cidadania "ambiental", e levá-los até a
organização dos catadores é um ato de solidariedade e de cidadania plena. Ainda que a
dimensão social seja extremamente relevante, o poder público e a sociedade devem
priorizar a educação para a minimização de resíduos para então valorizá-los do ponto de
vista econômico.
A seguir colocaremos a discussão dos materiais recicláveis sob o enfoque das
metodologias e das formas de representação, para, nos capítulos finais, retornarmos a
este tema específico.
6 ESCOLHENDO AS FERRAMENTAS PARA TRATAR A
QUESTÃO
Para entendermos os mecanismos que envolvem a coleta dos materiais e a
dinâmica dos circuitos econômicos, podemos utilizar diferentes modelos explicativos. O
que escolhemos foi um referencial que serve para o estudo do problema a partir de um
enfoque geográfico. Partimos da idéia de que a análise dos mecanismos deveria abarcar
os processos geradores e transformadores da realidade social e ambiental, integrando a
análise da unidade e da diversidade da coleta de materiais recicláveis ante a realidade
econômica.
6.1 A ciência geográfica no contexto
De maneira geral, as pesquisas científicas sobre resíduos sólidos são levadas a
cabo pelas Engenharias - ambiental, química, civil e sanitária - de um lado, e das
Humanidades - Sociologia, Economia e Antropologia -, de outro. Pulverizando a
discussão do problema através da clássica compartimentação dos saberes (físico versus
social), perde-se o que a discussão sobre os resíduos traz de mais rico em complexidade.
Isto é, a capacidade de permitir ver e pensar a sociedade a partir da apropriação e da
reprodução da natureza, ou de entender a natureza em função do uso e valorização que
as classes dela extraem e nela depositam, numa relação dialética (ENGELS, 1962). Essa
dialética é um movimento que possui três elementos básicos, aqui expressos em:
I) a quantidade de matéria-prima original é transformada em uma nova qualidade
residual;
63
II) a complementaridade existente entre o material produzido e o descartado,
resultando num sistema fechado;
III) o resíduo se apresenta como a síntese de um processo de transformação.
A Geografia, no último período de reafirmação e valorização de seu status
científico, tem contribuído bastante para abordar a complexidade do tema. Algumas
pesquisas realizadas no âmbito desta disciplina tornam-se referência para outras
ciências, na medida em que estas pesquisas qualificam a Análise do Ciclo de Vida dos
materiais, uma análise que, muitas vezes, fica eclipsada por outras discussões devido à
amplidão do tema. A análise geográfica tem a capacidade de perceber como isto ocorre
de forma desigual, apesar de combinada, nas diversas escalas do espaço. Mais do que
isto, a qualificação desta análise geográfica parece ser incrementada ao separar
dialeticamente este amplo ciclo de vida em dois pequenos meio-ciclos: de um lado,
aquele que envolve o processo de gênese e configuração dos materiais (processos
sociais e mentais que impulsionam a extração, produção, propaganda, consumo e o
descarte) e, de outro, o ciclo de sobrevida dos mesmos (processos orgânicos e
geológicos que influem no aterramento, incineração e reaproveitamento).
A partir desse entendimento, procuramos estudos geográficos que analisassem
criticamente esses fatores geradores e reprodutores do ciclo amplo em integração,
trabalhos que objetivassem propostas para uma sociedade sustentável com
desenvolvimento humano e econômico. Também foram utilizadas fontes que buscaram
entender e explicar a coleta e reutilização dos materiais, pelos catadores e separadores,
como uma necessidade social e econômica.
Entretanto a referência que constitui a ferramenta para o nosso estudo provém das
análises do geógrafo Milton Santos, como um marco nos estudos de organização do
64
trabalho, de geografia urbana e das ciências sociais como um todo. Este marco,
embasado na noção de sistemas de fluxo, contribui para a “localização econômico-
espacial do que vem sendo chamado de ‘pobreza urbana’ ou trabalhadores do setor
informal” (COELHO; VALLADARES, 1987: 221).
6.2 Milton Santos: sistemas e circuitos
Depois de uma longa jornada de formulação de conceitos para a Geografia e
outras ciências, figurando entre os maiores pensadores da realidade brasileira, Milton
Santos avançou bastante na conceituação de espaço geográfico. No início desta jornada,
o autor (SANTOS, 1980) oferece uma idéia que vem contribuir muito na nossa procura,
pois se “a análise de sistemas parece servir ao conhecimento da realidade já que ela se
interessa pelas partes e pelas modalidades de sua interação”, isto se dá principalmente
pelo fato de que:
O conhecimento real de um espaço não é dado pelas relações e, sim
pelos processos. (...) [Assim] esse método de análise [sistêmico] permite
reconstituir o todo, se tenta compreender a situação atual por intermédio da
evolução das variáveis, do seu funcionamento e dos resultados sucessivos,
para cada subsistema do ponto de vista espacial. (SANTOS, 1980, p. 61)
Mais tarde, ocorreu a incorporação da complexidade ambiental ao que, antes,
fazia parte de dois subsistemas diferenciados (SANTOS, 2002: 22):
A partir da noção de espaço, como um conjunto indissociável de
sistemas de objetos e sistemas de ações, podemos reconhecer suas
características analíticas internas. Entre elas estão as paisagens, a
configuração territorial, a divisão territorial do trabalho, o espaço produzido
ou produtivo, as rugosidades e as formas-conteúdo. Da mesma maneira e
com o mesmo ponto de partida, levanta-se a questão dos recortes espaciais,
propondo debates de problemas como o da região e o do lugar, o das redes e
das escalas. Paralelamente, impõem-se a realidade do meio com seus diversos
conteúdos em artifício e a complementaridade entre a tecnosfera e uma
psicosfera. E do mesmo passo podemos propor a questão da racionalidade do
65
espaço como conceito histórico atual e fruto, ao mesmo tempo, da
emergência das redes e do processo de globalização.
O conteúdo geográfico do cotidiano também se inclui entre esses
conceitos constitutivos e operacionais, próprios à realidade do espaço
geográfico, junto à questão de uma ordem mundial e de uma ordem local.
O que temos, então, é uma articulação de dois subsistemas, o sistema de objetos e
o sistema de fluxos e/ou ações. No caso do presente estudo, o sistema de objetos
representa os caminhos que o material reciclável percorre entre o descarte e a
reciclagem. Por outro lado, o sistema de fluxos recebe aqui uma atenção especial pelo
fato de permitir o entendimento do espaço invisível onde ocorre este sistema de objetos
este espaço é subjetivo, diferentemente do espaço objetivo que abriga o sistema de
fixos, embora ambos participem do que se chama espaço total (SANTOS, 2002).
A noção de sistemas de fluxos, sendo este indissociável do outro sistema, permeia
toda a discussão da apropriação do espaço total, e isto fica exemplificado na abordagem
do espaço dividido, que veremos nos próximos itens.
6.2.1 Os sistemas de fluxos e os lugares centrais
O modelo de sistemas de fluxos, juntamente com o conceito de espaço dividido,
intrínseco a este modelo, foi sistematizado por Milton Santos a partir do final da década
de 60, com base em outros trabalhos pioneiros (CORRÊA, 1989). A validade deste, em
contraposição aos modelos estanques dos Lugares Centrais, amplamente utilizados nos
estudos espaciais e nas ciências sociais, está representada pelo enfoque do espaço como
uma entidade da qual os agentes sociais se apropriam, ou utilizam de maneira desigual e
antagônica.
66
Este modelo é viável pela interpretação do processo de evolução da rede urbana
que este entende como dinâmico. Principalmente em função da análise, através de
diferentes escalas de tempo e de espaço, que propõe a percepção de quais os agentes que
determinam o direcionamento desse processo. Justamente pela análise diferenciada, em
função dos diferentes circuitos inferior e superior - de circulação dos objetos e das
ações, determinados pela ação dos atores que atuam no espaço, é que este modelo
merece nossa atenção.
Uma boa definição desta teoria vem dos estudos sobre o fluxo de dispersão da
Aids, no Brasil (BASTOS; BARCELLOS, 2004). Eles dão uma demonstração dos
motivos pelos quais algumas abordagens não servem mais para explicar certas
realidades:
A teoria dos lugares centrais tem sido objeto de críticas por
supervalorizar parâmetros econômicos, considerar o espaço como um meio
físico contínuo e uniforme e a sociedade como constituída por grupos de
igual acessibilidade a bens e serviços. O geógrafo brasileiro Milton Santos
formulou a teoria de dois circuitos econômicos (inferior e superior), que
formam redes complementares de diferentes extensões e funções. O circuito
inferior se desenvolve em um território contínuo, interligando pequenos
centros urbanos através da oferta de bens e entre oferta e demanda destes
bens. O circuito superior é descontínuo e liga centros urbanos de maior nível
hierárquico que suprem as demandas de grupos sociais de maior poder
aquisitivo.
Algumas críticas podem ser válidas para o nosso trabalho, principalmente pelo
fato de que a teoria dos Lugares Centrais (esboçada por Christaller) e também a sua
complementação - a teoria da Polarização (de Lösch) - foram desenhadas dentro de um
contexto europeu historicamente determinado, embora muitas vezes tenham sido
utilizadas em outros países de forma indiscriminada.
Esboçadas há mais de 50 anos para explicar os processos regionais de arranjo
territorial e distribuição das inovações naquele continente, elas se vêm revelando pouco
adequadas para explicar a realidade dos países periféricos. Os pressupostos de
imutabilidade temporal e da neutralidade do espaço, em grande parte decorrentes da
67
ciência positivista, além de objetivos políticos imperialistas bem fundamentados, fazem
com que não possam ser aplicadas diretamente e sem alterações àqueles países.
Segundo a economista Áurea Breitbach, as teorias cristalizadas e cristalizantes do
espaço, como as de Christaller e Lösch, podem ser entendidas como “concepções
convencionais”, que podem ser contrapostas a outras mais dinâmicas e sensíveis, que
ela chama de “concepções avançadas” (BREITBACH, 1988). O trabalho de Milton
Santos, mais próximo destas “concepções avançadas”, permite uma apropriação deste
tipo de estudo pela ótica do subdesenvolvimento, além da importante contribuição
epistemológica a uma geografia geral (CORRÊA, 1989).
Concluindo que a utilização destas teorias convencionais parece ser inviável sem
uma reformulação, Milton Santos (SANTOS, 1977: 38) propõe um novo paradigma
para os estudos espaciais. A idéia inicial é a de que uma reformulação eficiente das
teorias importadas deveria reconhecer que:
Este novo tema de estudo é útil não só para a compreensão do
funcionamento da cidade como uma máquina de subsistência, mas também
para a explicação, sob uma nova ótica, do relacionamento externo que a
cidade desenvolve, quer com sua região de influência, quer com outras
cidades.
O tema dos dois sistemas de fluxo da economia urbana aparece então
como um verdadeiro e novo paradigma de Geografia Urbana e do
planejamento em países subdesenvolvidos.
Assim, as cidades e suas relações espaciais devem ser entendidas como um
sistema formado a partir da articulação e do equilíbrio instável de um sistema de fluxo
que é composto de dois subsistemas do sistema urbano ou simplesmente circuitos da
economia urbana.
68
6.2.3 Os circuitos da economia urbana
A teoria formulada por Milton Santos está baseada na existência de dois circuitos,
cada um caracterizado por uma apropriação diferenciada da ciência e da tecnologia, da
informação, e de políticas organizacionais e de distribuição. E voltados, ademais, para
mercados distintos. Esses dois circuitos são entendidos no âmbito desta teoria como
subsistemas que compõem o sistema urbano. Milton Santos (SANTOS, 1979: 204)
entende que:
Relações de complementaridade e concorrência resumem toda a vida
do sistema urbano. Os dois subsistemas estão em permanente estado de
equilíbrio instável. Sua complementaridade, ocasional ou durável, não exclui
a concorrência; a própria complementaridade não representa outra coisa
senão um momento privilegiado de uma certa evolução que conduz a uma
dialética dos dois circuitos.
Os dois circuitos podem ser diferenciados da seguinte forma:
- Circuito Superior: espaço de ação de minorias economicamente privilegiadas e
institucionalizadas, proprietárias dos meios de produção, que controlam os processos
produtivos e orientam a acumulação do capital, no âmbito local e internacional.
Representa uma organização burocrática monopolista ou oligopolista. Seu espaço de
ação se dá na escala local, regional, nacional e internacional.
- Circuito Inferior: como um reflexo (ou sombra) do superior, circuito inferior
caracteriza-se por um grande número de indivíduos despossuídos dos meios de
produção que vendem sua força de trabalho em condições de subemprego, emprego
temporário, informal e, às vezes, semi-escravista. Nos países periféricos, esse circuito
69
possui um espaço de ação local bem mais amplo, com conexões, por vezes bem mais
fluidas e complexas que o superior.
Muitas vezes é difícil enquadrar as empresas ou atores sociais dentro de tipologias
fixas. O que pode facilitar este trabalho é o entendimento de que não são estas entidades
que pertencem a um ou outro circuito e sim as atividades que elas exercem ou os
processos que delas decorrem. Poderíamos complexificar esta questão ao entender que
um componente de um circuito não encerra em si a cadeia de relações, pelo contrário,
este componente pode estar relacionado a outros processos, de acordo com o objeto
estudado.
De qualquer forma, a coexistência de dois circuitos funcionando simultaneamente
produz um dinamismo econômico que é muito característico dos países periféricos.
Segundo o geógrafo Roberto Lobato Corrêa (CORRÊA, 1989: 129):
Os dois circuitos econômicos, no entanto, não podem ser vistos como
constituindo um dualismo ou uma dicotomia urbana. Ao contrário,
constituem uma bipolarização, pois possuem a mesma origem, o mesmo
conjunto de causas, apresentando-se interligados: não estão isolados entre si,
havendo articulação de complementaridade e de dependência, envolvendo
intercâmbio de insumos entre os dois circuitos.
A articulação exposta acima pode ser entendida como uma conexão entre os dois
circuitos, efetuada pelo sistema de objetos e de ações que parecem muitas vezes cortar
transversalmente os circuitos. Isso fica claro com a análise das formas de consumo da
classe média ou dos caminhos percorridos pelos materiais recicláveis, desde a coleta até
a comercialização final.
A força de trabalho é um elemento bastante importante deste referencial, tanto
que a validade da teoria dos circuitos aparece renovada no atual estágio do capitalismo.
O entendimento do circuito inferior e de sua importância para o estudo dos países
70
periféricos, é que as formas de trabalho que incidem sobre as atividades desse circuito,
substituem o uso de tecnologias intensivas em capital por tecnologias intensivas em
trabalho. Essa substituição leva ao aumento da exploração dos trabalhadores do circuito
inferior pelas empresas situadas no circuito superior. Ainda mais no atual período
histórico de desregulamentação, em que empresas do circuito superior tendem
crescentemente a recrutar trabalhadores através de serviços terceirizados (ALMEIDA,
2003, p. 219):
A cooptação para o mercado, sobretudo das classes menos favorecidas,
torna-se um dos laços mais forte de solidariedade existente entre os dois
circuitos, e nele as contradições e complementaridades fazem parte de uma
mesma lógica, gerada pela seletividade sócio-espacial.
Desta forma, a reutilização da teoria dos circuitos e dos conceitos desta em
diferentes movimentos parece ser possibilitada pelo entendimento conceitual e por
ajustes sistêmicos, o que é facilitado pelo conceito de modernização que dá flexibilidade
à teoria dos circuitos. Estas modernizações levam em consideração os “processos”,
chamando a atenção pela sua mutabilidade.
Ao tratar da evolução da história, com base na modernização tecnológica, a teoria
ressalta que o geógrafo deve utilizar o conceito mais amplo de “modernizações”, no
plural, como a expressão material de um processo de “difusão das inovações”. Desta
forma, escaparia da armadilha tecnicista, encarando a totalidade das implicações
temporais. Assim, aponta-se a necessidade de reformulação constante da teoria, de
maneira a acompanhar as modernizações e inovações tecnológicas.
Milton Santos (SANTOS, 2003: 126) destaca que:
Na medida em que novos gostos são difundidos em escala nacional e
que subsistem gostos tradicionais, a organização econômica é forçada e
adaptar-se tanto a novas realidades como a realidades herdadas, bem como à
necessidade de modernização dinâmica. Isto é verdadeiro tanto para os meios
de produção como para os meios de distribuição. Assim são criados nas
71
cidades dois circuitos econômicos responsáveis não apenas pelo processo
econômico urbano mas, também, pelo processo de organização espacial.
Em alguns textos, o autor utiliza a expressão “tradicional” para denominar o
circuito inferior pois este parece trazer a herança de uma época em que as relações
econômicas eram interpessoais, como ainda hoje acontece em cidades do interior do
país ou nos bairros pobres das metrópoles. O circuito superior ou “moderno”, por sua
vez, pertence ao desenvolvimento do capitalismo que tem a organização burocrática do
Estado como controladora da vida social.
6.3 Materiais recicláveis: objetos e ações
Tem-se notícia de, pelo menos, três trabalhos que utilizam a teoria dos sistemas
de fluxos dos circuitos econômicos aplicadas aos materiais recicláveis. Um é do
geógrafo Manuel Bérrios que utiliza essa teoria para explicar como diferentes estratos
sociais tem acesso aos objetos e serviços oferecidos na sociedade de consumo
(BÉRRIOS, 1999). Os outros dois trabalhos são do geógrafo Roberto Verdum que, em
dois momentos diferentes, utilizou essa teoria para entender e explicar os processos que
atuavam sobre o ciclo do papel reciclável em Porto Alegre. O primeiro, de 1988, retrata
uma realidade onde os catadores atuavam em completa informalidade - a coleta seletiva
do resíduo domiciliar seria institucionalizada dois anos mais tarde - o que dá o contraste
na comparação com o atual período (VERDUM, 1988).
Posteriormente, esse mesmo pesquisador retomou o tema dessa pesquisa inicial.
Escrevendo em retrospectiva, ele argumenta que, nas atividades dos dois circuitos, são
encontradas as diferentes formas de relações de trabalho, resultando na marginalização
das pessoas que são a base do processo de beneficiamento industrial do papel: os
papeleiros (VERDUM, 2000).
72
A reutilização desta teoria permanece viável, pois, se por um lado, abre a
possibilidade de análise sobre a articulação entre diferentes escalas de espaço, absoluto
e grafável, por outro, possibilita também a análise através da escala do tempo,
incorporando o espaço vivido.
É ainda este autor que avança no sentido de oferecer uma caracterização dos materiais
recicláveis, baseada na teoria dos circuitos econômicos:
A construção realizada aos poucos do que convencionamos chamar de
ciclo do papel, com a identificação dos seus vários sujeitos e como cada um
deles se apresenta no contexto da sociedade urbana, resultou na
caracterização contraditória explícita da teoria dos dois circuitos econômicos
dos países periféricos. Assim, (...) existe um grupo de pessoas definidas como
papeleiros/catadores, sobre os quais era [e deverá continuar sendo]
imprescindível realizar uma localização social, histórica e espacial de suas
existências [grifo nosso]. (VERDUM, 2000: 202)
O circuito inferior do ciclo do papel incorpora uma parte da massa de
desempregados que é expelida do circuito superior; estes trabalhadores marginalizados
são o resultado da modernização tecnológica. Isto pode ser comprovado pelo fato de os
catadores e papeleiros terem sido profissionais da construção civil, que hoje não têm
oportunidade de emprego. De maneira geral, as relações de trabalho no circuito inferior
são informais ou temporárias, cabendo às empresas desse circuito inferior a função de
fornecedores de ocupação para a população pobre da cidade, uma mão-de-obra pouco
especializada que não interessa para esta indústria.
No ciclo dos materiais recicláveis, as empresas localizadas no circuito superior, as
indústrias de reciclagem, utilizam uma tecnologia de nível relativamente elevado de
especialização, usualmente intensiva em capital e proveniente dos países avançados.
Assim, as atividades do circuito superior tendem a concentrar poder e controlar a
economia por inteiro. É importante lembrar que o mercado dos recicláveis se configura
como oligopsônio - poucas empresas têm capacidade de adquirir determinadas
73
mercadorias - , o que demonstra ainda mais a concentração exercida pelo circuito
superior. Desta forma, os materiais que são coletados pelos trabalhadores do circuito
inferior são separados e depois remetidos às indústrias. Neste processo o material vai
agregando valor, à medida que percorre o ciclo em direção ao circuito superior.
Essa configuração não sofreu muitas alterações na sua estrutura fundamental
desde a implantação da coleta seletiva, embora alguns aspectos devam ser enfatizados
na análise do período atual, no qual a coleta se letiva dinamiza e acelera ainda mais estas
relações entre os dois circuitos. O capítulo que segue procura complementar as
pesquisas anteriores sobre o tema, agregando ilustrações que propõem a visualização
dos circuitos como ferramenta auxiliar para a sua compreensão e representa
graficamente o resultado de um olhar geográfico sobre a questão dos materiais
recicláveis em Porto Alegre.
6.3.1 Sistemas de objetos: modelo cíclico
A utilização de um modelo simplificado para explicar a questão dos materiais
rec icláveis pode ser alcançada a partir da utilização do símbolo clássico da reciclagem
como base para uma analogia. O símbolo das três setas que se vão contorcendo em
movimento circular, criado a partir da pesquisa matemática feita por August Ferdinand
Möbius no século XIX e se transformou num ícone cultural moderno, pode servir de
base para ilustrar o subsistema de objetos, um dos sistemas dos materiais recicláveis.
O modelo cíclico, como vemos na Figura 2, demonstra os caminhos percorridos
pelo material desde o seu descarte domiciliar até chegar na indústria beneficiadora,
retornando o produto para o consumidor como matéria prima utilizada na produção de
bens. Interessante notar que este modelo enfatiza o sistema de fixos como o lugar onde
74
transcorre o sistema de objetos. O sistema de fixos, neste modelo, está representado pelo
domicílio gerador de material, o caminhão de coleta, a unidade de triagem de resíduos e
a indústria de reciclagem.
Neste modelo, o caminho de um material está representado por este movimento
cíclico que pode ser muito rico na abordagem de um sistema fechado e simples, como
muitas vezes a reciclagem é tratada. Entretanto o que procuramos foi integrar a questão
do caminho ou do ciclo em uma abordagem que fugisse da análise dos equipamentos
fixos, optando por uma ferramenta que fornecesse subsídios à interpretação dos papéis
dos diferentes atores que atuam neste processo e qual o seu peso dentro da questão.
O estudo da coleta dos materiais recicláveis isoladamente, em si mesma, não nos
pareceu uma boa idéia. No item seguinte apresentamos o modelo teórico que melhor
serviu aos nossos objetivos.
FIGURA 2 - Sistema de objetos: modelo cíclico
Fonte: Desenhos de Moa sobre símbolo de domínio público. Organizado pelo autor.
75
6.3.2 Sistemas de fluxos de ação: modelo complexo
Na tentativa de ilustrar as conexões entre os sistemas de objetos dentro de um
contexto do sistema de fluxos e da condição econômica que envolve a questão dos
materiais recicláveis, utilizamos o modelo de holarquização semelhante, mas
antagônica ao modelo de hierarquização que descende do conceito de hólon.
O hólon foi pensado por Arthur Koestler enquanto teorizava sobre a
sincronicidade e tentava entender o mito de Jano, o deus de duas caras. Ele pensou em
uma estrutura auto- organizada, em que as partes e o todo estão constantemente
conectados. Baseado em um pressuposto sistêmico básico, muitas vezes esquecido o
da indissociabilidade encontrada entre a união das partes e a divisão do todo- , este autor
escreveu:
O organismo vivo e o grupo social não são agregados de peças
elementares. São sistemas hierarquicamente organizados, multinivelados, de
subtodos constituídos de subtodos de ordem inferior ou ‘holons’(...) São
entidades que [apresentam] tanto as propriedades independentes de um todo
como as propriedades dependentes de uma parte. (KOESTLER, 1972: 102)
No caso particular dos sistemas de fluxos e os subsistemas econômicos, esta
interpretação permite enxergar como Jano, quer dizer, enxe rgar por dois pontos de vista
- de fora para dentro e de dentro para fora sem perder a noção de encadeamento do
processo.
Milton Santos admite existir uma forma semelhante à holarquia de Koestler. Pelo
fato de que entre os dois sistemas, além da interdependência, que faz com que ambos os
sistemas de fluxo tenham o mesmo conjunto de causas e ambos estejam interligados,
parece haver uma dependência do sistema inferior em relação ao superior (SANTOS,
1977). A Figura 3 procura ilustrar esta relação holárquic a, que também pode ser
76
entendida sob dois aspectos fundamentais. De um lado, temos a forma como as
modernizações são irradiadas e, por outro, em função da maneira oligopsônica que o
mercado de recicláveis se organiza das indústrias, no sistema superior, em direção aos
catadores, no inferior.
No item que segue apresentamos algumas observações sobre leituras importantes
na questão dos materiais recicláveis, principalmente em função do peso que estas obras
representam dentro do contexto nacional da questão. Depois disso, no capítulo seis,
apresentamos a aplicação do modelo complexo aqui proposto.
FIGURA 3 - Sistemas de fluxo de ação: modelo complexo
Fonte: Adaptação do autor sobre representação da holarquia de Koestler.
77
6.4 Observações sobre estudos acerca do tema
Dois livros recentes, muito importantes no delineamento desta pesquisa e que
colaboraram para entendermos a importância deste assunto, principalmente devido à sua
ampla divulgação, não apresentaram um marco conceitual capaz de sugerir um
embasamento teórico para este trabalho. Aqui serão rapidamente apresentadas algumas
críticas a estes trabalhos.
6.4.1 Os Empresários do Lixo
O primeiro texto importante nesta análise é intitulado Os Empresários do Lixo
Um Paradoxo da Modernidade, de Márcio Magera (MAGERA, 2003) e não capta a
importância das estruturas (econômicas, históricas, geográficas) que orientam o
processo da reciclagem no Brasil. Atualmente entendemos que o crescimento do
trabalho de catação e organização dos trabalhadores em associações ligadas à
reciclagem deve-se à desregulamentação e à terceirização ou “quaterização” das formas
de trabalho. Estas formas de reorganização social do trabalho se apresentam como um
paradoxo de um período posterior à modernidade.
Positivamente este estudo oferece grande quantidade de dados a respeito do
funcionamento interno de algumas associações e das formas de cooperativismo
implementadas por seus trabalhadores. A riqueza da sua análise está no fato de que - ao
tomar como exemplo cinco associações que se organizam a partir de ideologias e/ou
interesses diferentes - o trabalho permite que a diferença entre o catador “empresário do
lixo” e o catador que briga por seus direitos, possa ser encarada em termos práticos.
Desta forma, a análise de Magera levanta a importante questão das “coopergatos” - as
78
cooperativas que servem apenas de fachada para empreendimentos com características
nitidamente capitalistas.
Este é um grande passo, no sentido de que a análise destas organizações passa a
fornecer subsídios para outras análises em diferentes escalas - na medida em que uma
organização local faz parte e influencia na configuração e funcionamento do todo. Isso
faria sentido se analisássemos as conexões de uma associação local ligada, por exemplo,
ao Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e outra que, apesar de
atuar localmente, não funcionasse nos moldes propostos pelos primeiros cooperativistas,
ou não pensasse globalmente; mas disso o livro não trata.
6.4.2 Os Bilhões Perdidos no Lixo
O segundo livro relevante nesta discussão é a tese de doutoramento em Geografia,
de Sabetai Calderoni, chamada Os Bilhões Perdidos no Lixo (CALDERONI, 2003). O
livro é centrado basicamente na análise da viabilidade econômica da reciclagem. Esta
análise se dá sob dois enfoques: de um lado, a viabilidade enquanto alternativa para os
governos, através da redução dos gastos com disposição final dos materiais e, de outro,
a viabilidade de uma oportunidade, principalmente para os governos federais e órgãos
internacionais, de se protegerem os recursos naturais e reutilizar aquilo que viraria um
passivo ao ser devolvido (descartado) no ambiente.
Calderoni não aprofunda a discussão sobre as alternativas que, olhando de baixo
para cima da pirâmide social, poderiam tornar ainda mais viável a reciclagem. Se
fossem inseridos na sua base de cálculo fatores como, por exemplo, a geração de
empregos e a inclusão social, a viabilidade econômica da reciclagem seria maior,
79
agregando à viabilidade econômica a viabilidade social e, com isso, podendo reduzir
ainda mais os bilhões perdidos no lixo.
Outro ponto importante é que a tese de Calderoni utiliza como referência a Teoria
dos Lugares Centrais, ao explicar as formas de circulação espacial dos materiais
recicláveis em direção às indústrias, centralizadas em pólos regionais. Esta análise
funcionalista parece ser insuficiente para responder algumas perguntas como: quais são
as forças que direcionam esta centralização em direção às indústrias; quais políticas
econômicas viabilizam a reciclagem, e qual é o fator de impedimento maior para que a
periferia possa influenciar nas decisões tomadas nos lugares centrais (indústria).
Uma indicação interessante de pesquisa futura é uma análise que advém da ótica
cruzada de Magera e de Calderoni. Poder-se-ia analisar a viabilidade econômica dos
diferentes tipos de associações ou cooperativas de trabalhadores de reciclagem, como
qual tipo de organização otimiza os investimentos públicos fornecendo maior retorno
econômico e social a um maior número de trabalhadores.
7 APLICANDO O MODELO
7.1 O modelo como caminho
Neste capítulo, as teorias até agora expostas serão aplicadas na demonstração
gráfica do funcionamento e da evolução dos movimentos do sistema de fluxos de
materiais recicláveis em Porto Alegre. Serão enfatizados os processos de coleta e
comercialização, como sendo os mais importantes no processo de transformação do
valor de uso em valor de troca dos materiais, de um lado, e na valorização do trabalho
dos catadores, por outro.
Para isso, apresentaremos um modelo concebido no capítulo anterior como forma
de representar os sistemas de fluxos e os circuitos econômicos dos materiais recicláveis.
Este modelo apresenta os limites espaciais de cada circuito e a configuração que possui
o sistema em cada movimento da evolução histórica da valorização do trabalho com
materiais recicláveis em Porto Alegre.
Cada movimento é entendido como um estágio que contribuiu para conformar a
atual organização das relações de trabalho e a sua complexidade ao longo do tempo,
incluindo o processo de formação das associações e cooperativas e o surgimento de um
movimento nacionalmente organizado, passando pelo aumento da coleta informal e
pelas políticas governamentais que foram elaboradas.
Desta forma, cada movimento implica uma complexificação do modelo em
função da modificação das unidades componentes, ora anexando novas entidades, ora
abandonando outras ultrapassadas.
81
Nessa tentativa de construção gráfica, alguns aspectos epistemológicos sobre as
representações modelísticas mereceram atenção especial. Por exemplo, o fato de que, no
estudo de um sistema, uma dupla tarefa se impõe ao pesquisador:
- Estudar quais são os elementos deste sistema e suas relações em um tempo da
evolução desse sistema (análise sincrônica).
- Estudar como foram formados e evoluíram esses elementos e suas relações
durante o tempo de duração desse sistema (análise diacrônica, ao mesmo tempo, teoria
da gênese e da evolução da um sistema).
Assim, devemos colocar em evidência o tempo e evitar fazer crer que a análise de
uma estrutura possa realmente ser efetuada sem a análise de sua evolução. Devemos
também abandonar a dicotomia entre análise estrutural e dinâmica, como se uma
existisse sem a outra, “como se o tempo fosse uma variável exterior ao funcionamento
de um sistema que se pudesse introduzir, repentinamente, nesse funcionamento”
(GODELIER, 1965, p. 323).
Além disso, a opção por modelos explicativos surge da necessidade de
constituição de uma ponte entre os níveis de observação e os teóricos que tem como
objetivos: a simplificação, a redução, a concretização, a experimentação, a ação, a
ampliação, a globalização, a formação de teorias e a explicação. Uma de suas funções
principais é psicológica, pois permite que determinado grupo de fenômenos seja
visualizado e compreendido, o que de outra forma não seria possível em função da
magnitude e da complexidade dos fenômenos (HAGGETT; CHORLEY, 1975).
82
No item seguinte, partimos para análise sincrônica dos elementos dos modelos e
suas relações em um determinado tempo da evolução desse sistema. Juntamente a essa
faremos a análise diacrônica estudando como se formaram e como evoluíram os
elementos e suas relações durante o período de tempo tomado como referência.
Para este propósito utilizamos uma terminologia musical para tratar dos tempos e
dos ritmos evolutivos de cada sistema de fluxos, chamando cada uma das fases da
evolução de movimentos, em função da velocidade e dos ritmos do andamento. Em
Geografia a utilização deste tipo de analogia foi feita pelo professor Carlos Augusto de
Figueiredo Monteiro no tratamento das questões ligadas aos estudos do clima
(MONTEIRO, 2001) e da análise da ciência geográfica (MONTEIRO, 1995).
7.2 O modelo em movimento
Optamos pela apresentação de cada componente dos movimentos à medida que
estes surgem durante o andamento do processo. Esse surgimento de novos componentes
se dá na realidade do fato e/ou em juízo, perante a legislação. De maneira geral, este
processo pode ser caracterizado pela complexificação das relações formais e/ou
informais - entre os agentes sociais envolvidos. Relações que são impulsionadas por três
fatores:
1 - A proposição da reciclagem e coleta seletiva como instrumento do
desenvolvimento sustentável, em todas suas esferas.
2 - A luta por uma organização cada vez maior dos trabalhadores catadores.
3 – A contrapartida dos empresários, de um lado, e do poder público, de outro, em
atender a estas demandas.
83
A representação gráfica que propomos abarca estes três fatores. A conjunção
destes pode ser entendida como o motor - ou o metrônomo, na analogia musical, que
marcará o passo indicando o ritmo do andamento. Por isso, resolvemos tratar a
questão dividindo-a em cinco movimentos, como se fosse uma sinfonia com cada
andamento representando um ritmo crescente - largo, andante, moderato, allegro, presto.
Pode ser feita uma relação com os momentos de um exercício de caminhada - iniciamos
calmamente, com passos largos e lentos, passando gradativamente para o andante mais
rápido até que já estamos correndo. Da mesma forma, consideramos o andamento da
questão da reciclagem especificamente os sistemas de fluxos e as relações de trabalho
que se estabelecem a partir desta questão, como podemos ver na Tabela 5:
TABELA 5 Relação de tempos e ritmos na questão dos materiais recicláveis.
Os movimentos foram divididos em função da sobreposição de formas novas em
cima de outras e pelo fato de que, na maioria das vezes, elas convivem dentro de um
mesmo período, intervalo que vai de um movimento a outro. Alguns movimentos
podem ser mais lentos ou mais rápidos, podendo haver sobreposição e coexistência de
mais de uma forma de articulação entre os agentes envolvidos, ao mesmo tempo e no
mesmo espaço.
84
Na analogia musical, podemos dizer que a estrutura da sinfonia permanece a
mesma: as notas, os acordes, a afinação, os instrumentos, os músicos, o maestro.
Entretanto a alteração se dá no aparecimento de novos instrumentos no decorrer do
evento, na harmonia desta relação e no ritmo que acelera e que permite a entrada de
mais músicos.
Os movimentos foram divididos em função das primeiras políticas municipais de
apoio à reciclagem e de subsídios atendendo as reivindicações dos trabalhadores
catadores. Desta forma a velocidade do metrônomo vai acelerando na medida em que os
catadores se vão organizando e os movimentos vão avançando. Acontece que, por
motivos bastante interessantes, a harmonia não é perfeita e ocorre que temos, algumas
vezes, instrumentos e agentes em desarmonia, desequilibrando o andamento do
processo. Isto ocorre pois os objetivos muitas vezes são contraditórios.
A forma como descrevemos o ciclo do material reciclável permite visualizar esta
desarmonia que envolve a questão:
(1) Os materiais são separados pelos catadores segundo sua natureza e valor de
mercado.
(2) Depois são vendidos para um ou mais intermediários.
(3) Estes últimos revendem os materiais à indústria recuperadora ou
beneficiadora, que poderá repassar à indústria recicladora ou ser ela própria a
beneficiadora do material.
Neste processo, quanto mais o material percorre o ciclo dos catadores até a
indústria recicladora , atravessando os circuitos econômicos ou campos de ação de
cada um desses agentes, a este material vai sendo agregado valor, e maior fica o seu
preço ao longo do caminho que percorre até a reciclagem. Isso significa que o catador
85
situado no início do processo recebe proporcionalmente bem menos dinheiro pelo
mesmo material que é vendido pelos intermediários às indústrias e que será finalmente
reciclado.
No final do ciclo, o agente que mais ganha com o processo são dois tipos de
empresas da indústria: em primeiro lugar, as recicladoras e, em segundo, as
beneficiadoras. Lembrando que a conexão destas duas normalmente se dá em função de
uma harmonia entre os interesses políticos e econômicos destes dois agentes localizados
no topo da holarquia da reciclagem (GUADAGNIN e COLLA, 2002a).
Nos países desenvolvidos, grande parte das empresas se interessam pelo controle
das duas atividades industriais, de beneficiamento e de reciclagem. De certa forma, o
que temos no Brasil é uma herança de modernizações já ultrapassadas por aqueles
países. Assim, as atividades da indústria recicladora podem ser incluídas no circuito
superior, ao passo que as da indústria beneficiadora são incluídas em uma pequena área
de conexão periférica do circuito superior, chamado de circuito superior marginal:
A atividade de fabricação do circuito superior divide-se em duas
formas de organização. Uma é o circuito superior propriamente dito, a outra é
o circuito superior marginal, constituído de formas de produção menos
modernas do ponto de vista tecnológico e organizacional. O circuito superior
marginal pode ser resultado da sobrevivência de formas menos modernas de
organização ou a resposta a uma demanda incapaz de suscitar atividades
totalmente modernas. Essa demanda pode vir tanto de atividades modernas,
como do circuito inferior. Esse circuito superior marginal tem, portanto, ao
mesmo tempo um caráter residual e um caráter emergente. (SANTOS, 1979:
80)
Apesar dessa diferença sutil em termos da modernização, resolveu-se agrupar
essas duas indústrias em uma mesma unidade, colocando essa unidade como parte de
um único grande circuito superior. Representada graficamente como uma estrela, esta
unidade está no centro e acima na relação que se estabelece em função do mercado
oligopsônio onde tudo é vendido para poucos. As pontas da estrela procuram ressaltar
86
a característica fundamental da empresa capitalista, que é sua atitude de repulsa às
inovações que vêm de baixo na relação de luta de classes, e de fora dos processos de
inovação tecnológica.
O intermediário é outro agente que aparece em todos os movimentos,
representado graficamente como um tubo que canaliza os materiais destinados à
indústria. Um tubo que justamente representa o caminho de passagem do material do
circuito inferior no sentido do superior, numa interface entre os dois circuitos, que
poderia originar um “curto-circuito”, não fosse a relação harmoniosa entre os interesses
do intermediário e a indústria ambos sustentados pela exploração dos catadores.
Componente fundamental nestas relações de trabalho entre a indústria e os
catadores, o intermediário vai perdendo força à medida que a organização dos
trabalhadores avança. Com a formação das primeiras associações, o intermediário perde
gradativamente a função de intermediação, o que procuramos representar com a
utilização de uma tonalidade cada vez mais clara.
Indicamos a seguir a representação de cada um dos movimentos de evolução
desta questão através de cinco movimentos, caracterizados pelas ações políticas que
tomamos como as mais significativas, buscando a percepção dos processos, para além
do movimento encerrado em si. De maneira geral os processos de mudança na ação
poderão ser encontrados no intervalo de dois movimentos próximos.
Contudo devemos notar que, para o caso de Porto Alegre, a sinfonia está
inacabada. Nem todos os movimentos foram acionados, e existe uma carência bastante
grande de articulação e de encadeamento das ações. Por isso é que a evolução da
questão da coleta e da comercialização de materiais recicláveis está inacabada.
87
Entretanto a evolução que pensamos para a questão pode ser entendida como um
exercício de lógica econômica e de “engenharia política”, enquanto propostas de
políticas públicas a serem implementadas no futuro.
7.2.1 Primeiro movimento: o caos na coleta
A presença de um agente específico constitui característica marcante deste
movimento. Ele arrecada materiais separados pelos catadores para vender aos
intermediários maiores - os aparistas. Este agente aglutinador de materiais, conhecido
por atravessador ou “picareta”, é o elo de ligação entre os catadores e os intermediários
que negociam com a indústria (VERDUM, 1988). A ação do atravessador é viável em
função de que intermediários maiores necessitam de volumes estáveis. Como os
catadores não possuem áreas de armazenamento para acumular material, eles acabam
vendendo para este atravessador por preços extremamente baixos.
Assim, a falta de uma estrutura adequada para armazenar e também pesar o
material acaba expondo o catador a situações e preços impostos de fora pelo
atravessador que compra, muitas vezes, “enganando a balança” e faturando duplamente
em cima dos catadores, que não entendem ou não questionam a pesagem realizada. O
símbolo escolhido para representar o atravessador tem dois significados: (1) como uma
seta, indicando o sentido do fluxo dos materiais recicláveis que depois de separados são
comercializados; (2) como um funil, expressando a concentração dos diversos fluxos de
materiais sendo acumulados pelo atravessador.
88
FIGURA 4 Primeiro movimento no modelo da questão coleta comercialização
LEGENDA
Por dois motivos, intrínsecos ao desenvolvimento do capitalismo, esta
configuração do sistema de fluxos parece estar condenada ao fim. Em primeiro lugar,
pelo fato de deixar de ser interessante para a indústria, pois, com a difusão de uma
89
“ideologia da reciclagem”, o que se pretende é cada vez mais aumentar os ganhos dos
empreendimentos tornando-os, de alguma forma, sustentáveis. Assim, o problema maior
das indústrias é que a inconstância do sistema de fluxos de materiais acaba encarecendo
o produto final, o que não é interessante para a reprodução e acumulação do capital, e
acaba reforçando ainda mais a cadeia da exploração do trabalho.
Como podemos perceber no trecho a seguir:
A instabilidade do sistema de coleta, beneficiamento e enfardamento
das aparas, isto é, a instabilidade do ciclo do papel torna complicado o
sistema de preços, homogeneidade do material e conseqüente qualidade do
produto final.” (...) “É basicamente o sistema de preços associado ao fluxo de
aparas no mercado que causam acirramento da exploração da força de
trabalho atuante na coleta. (VERDUM, 1988, p.41)
O outro fator que impulsiona para o fim deste período são as relações sociais de
produção que, com o desenvolvimento dos meios de produção, contribuem para a
complexificação das relações de trabalho, através da organização dos catadores.
Sob outro ponto de vista, a organização dos catadores é uma busca por inclusão
social, através da participação formal no mercado de trabalho, que não é exclusiva dos
catadores e que pode ser reconhecida em muitos setores da sociedade. Particularmente o
que chama a atenção nas reivindicações dos catadores é a necessidade de diminuir a
hostilidade quanto a este tipo de trabalho (GUADAGNIN e COLLA, 2002b).
O aumento da autoconsciência de serem uma parcela altamente explorada, aliado
às novas percepções das possibilidades de ação dos catadores, cria uma situação em
que, além das conquistas sociais, estes trabalhadores começam a desejar conquistas
econômicas (LORENZETTI, 2003).
Desta forma começam a surgir idéias de organização e de luta dos catadores, de
modo a valorizar o trabalho e agregar maior valor comercial aos materiais por eles
90
coletados e separados. Estas idéias são, num primeiro momento, bem-vindas pela
indústria, interessada na regularização dos fluxos.
Este movimento é bastante lento, demorando décadas até a configuração de uma
alternativa organizacional, que veremos no segundo movimento.
7.2.2 Segundo movimento: organização dos catadores
Em 1989, o Partido dos Trabalhadores é eleito para gerir a prefeitura de Porto
Alegre. Esta administração leva adiante o processo de organização dos catadores
concomitantemente com o desenvolvimento de um Plano de Gerenciamento Integrado
de Resíduos Sólidos, iniciando a coleta seletiva de resíduos sólidos domiciliares.
Este tipo de coleta propõe a separação dos resíduos como vimos no terceiro
capítulo em seco e orgânico, respectivamente, recicláveis e “não” recicláveis. Assim o
Departamento Municipal de Limpeza Urbana - DMLU recolhia os materiais
recicláveis nos domicílios e encaminhava até as associações de catadores.
Todos os trabalhadores que já estavam ligados à coleta e à comercialização de
materiais recicláveis - carroceiros, carrinheiros, papeleiros, catadores, etc. ou aqueles
que pretendiam trabalhar na questão desempregados, trabalhadores temporários e ou
informais, etc. - deveriam então organizar-se em associações. A coleta seria
exclusividade do DMLU que, depois, forneceria às associações; essas, por sua vez,
estariam proibidas de adquirir materiais de qualquer outra fonte (ALVES, 2002).
Desta forma, cada associação é organizada em torno de uma Unidade de
Triagem UT com um galpão, com equipamentos como balanças e prensas, e com
um escritório com telefone, etc. Mais tarde, a Prefeitura monta, no ano 2000, uma
Unidade de Triagem e Compostagem UTC que, além desta infra-estrutura para lidar
91
com os recicláveis, recebe também o maquinário apropriado à geração de composto
orgânico.
Embora a organização das primeiras associações seja datada do período anterior
à coleta seletiva, uma em 1986 e outra em 1988, foi com a implantação da coleta
seletiva que o surgimento dessas organizações tomou força. Bem como a conquista da
independência dos catadores ante a Igreja Católica e as Organizações Não
Governamentais, que tanto colaboraram com esses trabalhadores no início.
Exemplo disto é o envolvimento cada vez maior dos catadores nos fóruns
promovidos pelo Orçamento Participativo OP -, um instrumento de gestão aplicado
em Porto Alegre pelo Partido dos Trabalhadores. Nota-se o gradativo distanciamento da
Igreja concomitantemente ao processo de democratização de parte das contas do
Município. Além disso, a configuração de uma organização “classista” que defende os
interesses dos catadores enquanto grupo, agente social e político: o Movimento
Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis - MNCR.
92
FIGURA 5 Segundo movimento no modelo da questão coleta comercialização
LEGENDA
A criação dessa entidade foi muito importante na adesão dos catadores ao OP. A
sua presença deve-se também a outros motivos como: a convocação do poder público
que, através da mídia, mobiliza a população; a articulação das lideranças locais em
torno da comunidade, mobilizando esta a participar das reuniões; o crescimento do
93
programa de coleta seletiva municipal, que fomenta o surgimento de novas associações
e, conseqüentemente, a necessidade de maior participação dos catadores como forma de
garantir investimentos em treinamento, maquinários e galpões (LORENZETTI, 2003).
Importante notar que, a curto e médio prazos, a organização dos trabalhadores
promovida pela instituição da coleta seletiva é aprovada pela indústria como uma
alternativa à irregularidade dos fluxos de materiais recicláveis. Assim a coleta seletiva
demonstra sanar alguns dos problemas que o primeiro movimento não poderia resolver,
propondo a organização dos catadores e a regulamentação da coleta de materiais,
garantindo uma oferta relativamente constante, em relação ao material reciclável gerado
pelos habitantes da cidade.
Para a Prefeitura, a coleta seletiva gerou certo ganho econômico, primeiro, ao
diminuir os custos de destinação final depositando menos materiais em aterros e, em
conseqüência indireta da coleta seletiva, deu-se a dinamização dos processos de limpeza
pública e de coleta de resíduos urbanos pelos catadores informais. Além disso, a coleta
seletiva é uma das mais baratas do Brasil, devendo-se isto ao fato de que não se tem
praticamente nenhuma despesa com a triagem. A triagem e comercialização é feita pelas
associações, o que gera receita para os trabalhadores destas unidades, proporcionando o
“resgate social” e, ao mesmo tempo, desonerando o DMLU com os custos da tarefa
(HIWATASHI, 1998).
Disto decorrem duas situações. A primeira é que o catador organizado quer ser
remunerado pelo seu trabalho realizado para a Prefeitura. Aquilo que é conhecido como
um contrato de terceirização de serviços, quando é realizado entre uma empresa privada
e um órgão público, não poderá mais ser entendido como “resgate social”, quando
realizado pelos catadores associados. O catador quer ser remunerado pelo serviço
94
prestado na coleta de resíduos, tarefa que, como já vimos, deveria ser exclusiva da
Prefeitura (GRIMBERG, 2004).
A segunda situação abarca o que se tem chamado de trabalho “quarterizado”
quando as indústrias, as grandes produtoras de materiais recicláveis, ao invés de
gerenciarem os resíduos gerados como ocorre em países desenvolvidos - estão
terceirizando os serviços e as responsabilidades para o poder público. Este, por sua vez,
não consegue dar conta da tarefa e contrata mão-de-obra, as associações. Acontece que
o número de associações formadas até hoje e o tipo de organização que se tem formado
pela Prefeitura não é viável em face das quantidades de resíduos gerados, e de modo
geral, não são condizentes com o momento político que vivemos (MOVIMENTO
NACIONAL DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS, 2003).
Devemos apontar que as associações são entidades relativamente autônomas, em
relação ao poder público, às igrejas e às ONG's. Além disso, elas possuem constituição
histórica diversa. Seu desenvolvimento interno também apresenta diferenças bastante
acentuadas. Existem associações que conseguem estabelecer uma dinâmica
democrática, tanto no trato entre iguais e na definição de planos e rumos, quanto nas
eleições de diretoria. Por outro lado, existem outras que têm uma presença externa
marcante ou a manutenção das mesmas lideranças por longo tempo (LORENZETTI,
2003).
Deste modo, muitos catadores, não querendo sujeitar-se às decisões externas ou
de cima, ainda preferem o trabalho na informalidade como alternativa, o que indica a
convivência de formas antagônicas de organização do trabalho num mesmo movimento.
Mais do que isso, indica os motivos pelos quais a forma mais antiga sobrevive, mesmo
num tempo de mudanças.
95
Tudo isto permite afirmar que foi durante este movimento que se deu o grande
impulso para os seguintes. É no segundo movimento, com um ritmo andante, que a
questão dos recicláveis toma novas dimensões. A forte participação no OP, a tomada de
consciência sobre as questões associadas ao trabalho na reciclagem, o estímulo da
Prefeitura e da indústria, sinalizaram aos catadores uma nova e mais ampla perspectiva
de luta. Através destas experiências acumuladas é que se configurou o movimento
seguinte, caracterizado pela formação das centrais de comercialização.
7.2.3 Terceiro movimento: central de comercialização
No ano de 1999, durante as rodadas do OP, vota-se pela criação de uma “Central
de Vendas”. Trata-se de uma unidade para negociar a comercialização dos materiais
com os catadores informais e com os atravessadores, ou até mesmo diretamente com a
indústria. Esta central de comercialização serviria como espaço de acumulação dos
materiais triados pelas diversas associações, resolvendo assim um dos maiores
problemas relativos aos atravessadores: o problema do volume de material necessário
para a indústria (ALVES, 2002).
Nessa etapa, a comunicação entre os órgãos públicos e as associações, e as
associações entre si, deveria ser a mais harmoniosa possível, a fim de garantir o bom
desenvolvimento desta política pública, com troca de informações e de materiais para
assegurar a igualdade nos preços dos materiais.
96
FIGURA 6 Terceiro movimento no modelo da questão coleta comercialização
LEGENDA
O intercâmbio de informações entre as associações, além de fortalecer os laços
subjetivos entre os grupos, também fortalece o poder de negociação. Em primeiro lugar,
97
com os intermediários, que teriam que negociar os mesmos valores por material, com as
diferentes associações, inibindo também a competição entre os catadores.Em segundo
lugar, com o poder público que antes favorecia determinadas associações fornecendo
materiais mais valorizados, provenientes de bairros ricos (LORENZETTI, 2003).
Entretanto a central votada em 1999 só começou a ser efetivada no final de 2003,
em Porto Alegre. Sua inauguração foi muito festejada pelos catadores, inclusive pelo
jornal Correio do Povo que, em sua edição de 25/01/2004, publicou a reportagem
“DMLU vende material reciclável”, o que reflete o impacto futuro que essa atitude
poderá ter no mercado dos recicláveis. Essa primeira unidade deverá funcionar, junto à
UT Wenceslau Fontoura e, mais tarde, outras associações deverão seguir o exemplo.
Além dos objetivos econômicos, outros podem ser indicados para entendermos o
motivo do impacto da notícia. Esta possibilidade de as associações comercializarem os
materiais com catadores e intermediários permite a organização econômica e a inclusão
social dos catadores informais, diminuindo o “roubo do lixo” e aumentando o retorno
financeiro para os catadores associados, desestimulando a sua saída das unidades. Além
disso, esta política proporciona a diminuição do descarte irregular dos resíduos
rejeitados na seleção dos materiais recicláveis (ALVES, 2002).
Essa central tendo sido votada paralelamente à usina de beneficiamento dos
materiais recicláveis, exige uma conexão direta ainda maior entre os atores citados
anteriormente e entre a central e a usina, para que se configurasse um pólo de
contraposição ao circuito superior marginal da reciclagem, a indústria de
beneficiamento de materiais recicláveis, neste caso, o beneficiamento do plástico. No
movimento seguinte, veremos como esta conexão deve ser estimulada, para garantir a
valorização dos materiais recicláveis e a otimização do gerenciamento dos resíduos em
Porto Alegre.
98
7.2.4 Quarto movimento: entreposto regional
A formação de entrepostos regionais contribui para a conexão entre cada uma das
diversas centrais, ligadas diretamente às UT’s. Distribuída espacialmente de modo a não
encarecer o transporte entre as centrais, e destas em relação à indústria, esses
entrepostos deverão lidar com volumes suficientes para atender as necessidades da
indústria. De outra parte, o grau de “pureza” dos materiais deverá ser conveniente aos
interesses desse agente.
Trata-se de um movimento intermediário entre o ritmo rápido de ação
proporcionado pela usina de beneficiamento e o ritmo moderado da central de
comercialização. Assim, este movimento pode ser entendido como o ritmo que faltava
para que a usina planejada em 1999 pudesse entrar em funcionamento e, mais do que
isso, sustentar-se em funcionamento.
Como se pode perceber no modelo deste movimento, o entreposto regional
propõe uma atuação na interface dos dois circuitos: um tipo de curto-circuito promovido
pelo desenvolvimento da organização dos catadores, que repele o intermediário para
uma outra função. Estas são algumas hipóteses ainda não investigadas, em função da
inexistência deste movimento, no processo de evolução da questão. Entretanto tendemos
a pensar que o intermediário não se extingue, mas toma força junto à indústria ou ao
outro antigo gênero de intermediários pré-coleta seletiva, que ainda se prevalecem da
desorganização de alguns catadores.
99
FIGURA 7 Quarto movimento no modelo da questão coleta comercialização
LEGENDA
100
7.2.5 Quinto movimento: usina de beneficiamento
Seguindo a construção do projeto iniciado em Porto Alegre, o Partido dos
Trabalhadores inicia o OP no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul. Da mesma forma
que antes, os catadores participam ativamente das decisões, reservando grandes
investimentos para servir aos interesses da reciclagem sob o ponto de vista destes
agentes. É com estes recursos do OP estadual que é construída a usina de
beneficiamento de plásticos, no bairro Restinga. Sua localização vem no sentido da
criação de um pólo de reciclagem, dentro do Distrito Industrial da Restinga.
O plástico foi o escolhido por conta da constatação de que este material era o que
mais crescia em volume e em preço dentro das associações segundo constatado por
pesquisa realizada pela Fundação Maurício Sirotski Sobrinho, do Grupo Zero Hora. A
usina foi, então, pensada segundo quatro demandas estratégicas: 1) qualificação da
triagem dos plásticos, através da capacitação dos catadores; 2) comercialização conjunta
para a inserção do material diretamente na indústria; 3) pré-beneficiamento do material
como forma de agregar valor e 4) capacitação operacional para o gerenciamento de um
projeto de grande porte (LORENZETTI, 2003).
Assim, a usina busca agregar valor ao resultado do trabalho dos trabalhadores, ao
mesmo tempo que procura otimizar o processo de coleta ao dar vazão à produção e
proporcionar um destino, ou melhor, um retorno ecologicamente correto aos resíduos
plásticos que, após passarem por um primeiro processo de triagem, voltam a ser
matéria-prima para a fabricação de novos produtos plásticos (MACHADO, 2002).
Algumas fontes indicam que a usina ainda não havia iniciado suas atividades até
o ano de 2003 em função do atraso na execução de uma estação de tratamento de
efluentes (LORENZETTI, 2003). Outras, como o MNCR, por exemplo, indicam a
101
ausência de um plano de gerenciamento que procure, na prática, integrar os catadores e
o circuito inferior, de modo geral, no processo de beneficiamento.
Desta forma, os catadores vão perdendo a esperança em um projeto que um dia
mobilizou centenas de pessoas. Entretanto a mobilização dos catadores de Porto Alegre,
em torno do MNCR, mantém a luta pela usina como fonte de captação de recursos para
os catadores, contrariamente ao que pretende a Prefeitura em edital lançado
recentemente, pelo qual grande parte do lucro gerado vai para os bolsos do
empreendedor que irá gerenciar a usina. A partir das análises de manifestações do
MNCR e das principais bibliografias sobre o tema (LORENZETTI, 2003; MACHADO,
2002), bem como segundo nossas experiências profissionais, entendemos que o rumo
ideal que pensamos para o bom funcionamento de uma usina de beneficiamento, dentro
de uma política comprometida com os cinco critérios de sustentabilidade, deveria seguir
as indicações abaixo enumeradas:
(1) Gerenciamento pelos próprios associados e catadores como forma de capacitar
tecnicamente a comunidade e se manter próximo ao funcionamento da usina, garantindo
o controle da situação.
(2) Possibilitar que outros grupos, tais como catadores informais e carroceiros,
possam vir a processar os plásticos por eles separados, na usina, apropriando-se de um
valor maior na comercialização destes materiais.
(3) Atuação integrada das centrais e dos entrepostos em constante renovação das
relações.
(4) Utilização de tecnologias desenvolvidas localmente.
102
FIGURA 8 Quinto movimento no modelo da questão coleta comercialização
LEGENDA
1
03
Dessa forma, poder-se-iam atingir as metas maiores pensadas para a usina:
A partir do seu início, as atividades da Usina darão um salto de
qualidade ao trabalho até então por eles desenvolvido: deixam de ser simples
‘Triadores’, passando à categoria de ‘Recicladores’, propriamente ditos. A
partir da transformação do material com que trabalham em material
previamente beneficiado, agregarão até 200% ao valor do produto final por
eles oferecido. (MACHADO, 2002)
Assim sendo, podemos entender que a simples constituição de associações,
unidades de triagem, centrais de comercialização, entrepostos regionais e usinas de
beneficiamento são passos importantes como alternativas viáveis para a valorização do
trabalho dos recicladores, favorecendo o rendimento econômico e a melhoria de
condições ambientais. Afora isto, devemos atentar para o fato de que as alternativas de
maior ritmo devem ser desencadeadas a partir de um movimento inicial bem
sedimentado.
Em suma, as iniciativas devem ir gradualmente evoluindo desde a formação de
associação até a complexidade que representa uma usina de beneficiamento. Para isso,
estas iniciativas devem estar localizadas dentro de políticas públicas orientadas para o
bemestar social e ambiental:
Isto significa considerar, como alternativa, a adoção, por parte do
estado, de uma postura distinta do laissez-faire, ou seja, mais direcionada
para o modelo de Estado regulador, promotor e, principalmente na esfera
municipal, empreendedor. (CALDERONI, 1999, p. 91)
Concluindo, o que se percebe é que o impulso orientador na reformulação dos
modelos é dado pelas iniciativas do circuito inferior, apesar do fato de que as
modernizações e as inovações tecnológicas são irradiadas a partir do circuito superior.
Através da pressão exercida pelos componentes do circuito inferior é que temos uma
104
aproximação destes em direção ao circuito superior e uma reação do superior através de
resoluções e de medidas políticas compensatórias visando evitar essa aproximação.
No capítulo seguinte, passamos às considerações finais e avançamos em direção a
um prognóstico sobre a questão, construindo um cenário que tem como foco a
possibilidade de inclusão social dos catadores de materiais recicláveis, aliada aos
objetivos de eficácia ambiental e desenvolvimento econômico sustentável.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este capítulo final está organizado em torno de algumas idéias que foram sendo
suscitadas ao longo da realização da pesquisa e da elaboração deste trabalho e que têm
como referência o propósito de encaminhar soluções para a questão delineada.
Assim, além de sistematizar essas idéias, as considerações finais exploram a
formulação de políticas públicas relativas aos processos que se dão em torno da coleta e
reciclagem de materiais recicláveis. Temos como perspectiva o desenvolvimento de
uma sociedade sustentável e a inclusão social dos agentes que hoje se apresentam como
os principais interessados nestes processos - os catadores.
8.1 O jogo da reciclagem e os catadores
A pressão dos catadores de materiais recicláveis sobre as administrações públicas
ocasionou modificações na forma como os governantes e a iniciativa privada têm lidado
com estes trabalhadores, enquanto segmento organizado da sociedade. Elemento
importante dessa pressão foi a criação da rede nacional de troca de informações e de
resistência dos catadores no final dos anos 90. O Movimento Nacional dos Catadores de
Materiais Recicláveis - MNCR que, a exemplo do que vem ocorrendo com outros
movimentos sociais, resolveu incrementar sua luta com a criação de uma organização
nacional.
Esta situação, em que, pelo menos, três agentes empresários, catadores e
gestores governamentais atuam no sentido de defender seus interesses e cumprir seus
objetivos influenciando a elaboração das políticas públicas, sugere que a questão da
reciclagem dos resíduos sólidos urbanos seja abordada segundo a perspectiva da análise
106
de políticas públicas (HAM; HILL, 1993). Tal perspectiva pode, também, ser entendida
a partir de um arcabouço sociológico mais amplo, proposto por Pierre Bourdieu, como a
forma de garantir que a interação em jogo - entre agentes sociais envolvidos no campo
da política pública conduza à elaboração de arranjos econômicos, sociais, institucionais
ou de habitus - que levem em conta os interesses presentes e futuros do conjunto da
sociedade (BOURDIEU, 2000).
Neste sentido, e sem pretender apresentar aqui as características destes enfoques,
cabe destacar dois de seus conceitos básicos, a partir dos quais se iniciaria o tratamento
da questão com vistas à elaboração de uma política pública para os materiais recicláveis,
com atributos de racionalidade técnica e viabilidade política. O conceito de agente
social é entendido como sendo uma pessoa, grupo ou organização que participa de
algum jogo social, que possui um habitus, um projeto político, controla algum recurso
relevante, tem, acumula (ou perde) forças no seu decorrer e possui, portanto, um campo,
uma capacidade de produzir fatos capazes de viabilizar seu projeto. E o conceito de
jogo, como algo inerente ao habitus ou o agir social, que pode ser de natureza
cooperativa ou conflitiva, em que diferentes agentes, com perspectivas que podem ser
comuns ou divergentes, possuem recursos distribuídos segundo suas histórias de
acumulação de forças em jogos anteriores. As “regras” do jogo podem alterar-se
segundo o interesse dos agentes em função de jogadas e acumulações, reconfigurando
as condições em que ele se desenvolverá. É mediante estas acumulações que eles podem
ampliar, ou reduzir, sua capacidade de produzir novas jogadas e alterar a situação
inicial.
O enfoque da análise sociológica de políticas, se aplicado sistematicamente sobre
a base informacional e metodológica elaboradas ao longo deste trabalho, adicionaria
uma perspectiva mais ampla para torná-las capazes de gerar um processo para tratar as
107
condições objetivas que, em conjunto com outras de caráter subjetivo ambas situadas
no âmbito de ação ou governabilidade dos agentes que participam no jogo , delimitam
o campo de possibilidades da política pública (DAGNINO et al, 2004).
Com essa perspectiva, as seções que seguem exploram algumas linhas de ação que
poderiam vir a ser perseguidas por estes agentes.
8.2 A reciclagem vista pelos empresários e pelos catadores
Os aspectos econômicos envolvidos com a atividade de reciclagem não são
considerados da mesma forma pelas associações ou cooperativas de catadores e pelas
empresas.
Usualmente a visão das empresas está dividida em dois pontos de vista, dado que
existem diferentes tipos de empresas que se preocupam com esta questão de forma
antagônica. As que geram resíduos vêem a reciclagem como uma possibilidade de
minimizar custos de produção. Outras, por exemplo, que geram energia através da
utilização de resíduos ou que cuidam do gerenciamento dos resíduos de outras
empresas, entendem o resíduo como gerador de receita. Entretanto, para ambos os
casos, para fins de contabilidade e de tomada de decisão, os custos da reciclagem ou do
descarte adequado do material é contrastado com o custo ambiental e econômico que
representa o material depositado de maneira inadequada.
Por outro lado, para os catadores, a atividade de reciclagem é vista como uma
oportunidade de sobrevivência uma das poucas ao alcance do segmento social a que
pertencem. É neste sentido que Milton Santos define o circuito inferior - o campo destes
agentes como o circuito movido pela sobrevivência e pela criatividade:
108
O circuito inferior também poderia ser bem definido segundo a fórmula
de Lavoisier: ‘Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma...’ O jornal
usado torna-se embalagem, o pedaço de madeira se transforma em cadeira, as
latas, em reservatórios de água ou em vasos de flores, etc. isso ocorre
também com as roupas que passam de pai para filho, do irmão mais velho
para o irmão mais novo, se já não foi comprada de segunda mão; na
construção das casas aproveitam-se todos os tipos de materiais abandonados
ou vendidos a baixo preço. (SANTOS, 1979: 156)
É importante destacar que algumas associações que funcionam como empresas,
valendo-se de mecanismos organizacionais relativamente frágeis, tentam avançar para
além da sobrevivência, proporcionando aos seus dirigentes uma condição mais elevada
em comparação aos cooperativados (MAGERA, 2003). Estes questionamentos apontam
para a oportunidade de uma outra pesquisa que possa abarcar as diferenças entre uma
cooperativa do tipo empresa e uma de outro tipo, como o proposto pelo MNCR, grupos
com independência e com auto-organização.
De modo geral, independentemente do tipo de organização interna adotado, a
diferença crucial das associações e cooperativas em relação às empresas privadas parece
ser fruto de uma desigualdade estrutural que permeia o sistema econômico vigente.
Diferença essa que só pode diminuir mediante a luta por igualdade de direitos e por
melhores condições de trabalho que levem a uma alteração na pirâmide socioeconômica
e que impliquem uma interpenetração do circuito inferior e do superior, bem como a
apropriação, pelo circuito inferior, de fatores como fluxos - relações de trabalho - e
fixos - meios de produção - que caracterizam o superior.
Esta proposta pode parecer radical ou extremosa, mas, no entanto, ela está
propondo que a questão seja encarada sob o ponto de vista do desenvolvimento
socialmente sustentado e do aumento e da diversificação de materiais reciclados. No
jogo da “harmonização” entre os agentes e os seus respectivos campos, a proposta que
merece maior atenção é aquela que prevê a participação dos pobres, dos países em
109
desenvolvimento, nas decisões acerca da utilização de recursos e da aplicação de
tecnologias (SACHS, 1977).
Uma análise de conjuntura sobre a questão demonstra que, apesar dos incentivos
governamentais à reciclagem, o contexto político e econômico é balizado por uma
estrutura de poder desigual. Este poder é estruturado devido à formação histórica de
nossa sociedade e é também estruturante, no sentido de que restringe seriamente a
capacidade de negociação do movimento dos catadores. Esta condição leva à
necessidade de alterações estruturais que somente no longo prazo, e com o engajamento
de outros setores da sociedade, parecem viáveis.
8.3 Reciclagem e políticas públicas
O terceiro agente que participa do jogo da reciclagem os gestores
governamentais -, consciente dessa nova possibilidade de ação conjunta, deverá pautar-
se por um cálculo embasado em fatores qualitativos que consigam abarcar o conjunto
dos aspectos que formam a viabilidade da reciclagem, abarcando basicamente a
viabilidade econômica, a social e a ambiental.
Dessa forma, o subsídio governamental direcionado a organizações localizadas no
circuito inferior deverá servir de estímulo à criação de novas formas de coleta,
tratamento, processamento e até comercialização dos materiais recicláveis, tendo como
objetivos finais a valorização dos materiais, a elevação da condição de vida e a
otimização dos mecanismos de reciclagem e de reutilização dos recursos.
Tudo isso entendido como a dinamização dos processos de inovação tecnológica,
se orientados ao circuito inferior, fruto da criatividade e/ou amadurecimento intelectual,
poderão conduzir a alternativas de produção e organização do trabalho que sejam
110
revertidos em ganho substantivo para os agentes envolvidos e o conjunto de toda a
sociedade.
Para uma caracterização estrutural dos processos políticos de incentivo e das
motivações que impelem o Estado na formação de uma política para a reciclagem,
devemos localizar o Brasil dentro de um contexto político e econômico global.
Entendendo assim que, de alguma forma, o que estamos tratando aqui transcende as
barreiras nacionais, Milton Santos diz que, tratando-se da evolução de uma sociedade
mais equilibrada:
Nas condições atuais, essa evolução pode parecer impossível, em vista
de que as soluções até agora propostas ainda são prisioneiras daquela visão
segundo a qual o único dinamismo possível é o da grande economia, com
base nos reclamos do sistema financeiro. Por exemplo, os esforços para
restabelecer o emprego dirigem-se, sobretudo, quando não exclusivamente,
ao circuito superior da economia. Mas esse não é o único caminho e outros
remédios podem ser buscados, segundo a orientação político-ideológica dos
responsáveis, levando em conta uma divisão do trabalho vinda ‘de baixo’,
fenômeno típico dos países subdesenvolvidos, mas que agora também se
verifica no mundo chamado desenvolvido. (SANTOS, 2001: 162-163)
Um dos mecanismos para reverter ou minimizar este quadro é a adoção de
algumas formas de apoio governamental ao processo de reinserção do material
reciclável no ciclo da economia, nitidamente dirigidas à consolidação de uma política de
valorização do trabalho dos catadores. Faz-se necessário a elaboração de uma legislação
e de programas de governo que possam pautar os objetivos da reciclagem e direcionar
os processos sociais e econômicos que a constituem. A articulação de diferentes esferas
de governo (federal, estadual, municipal) poderá constituir uma base sólida de
intercâmbio de experiências, atuando como propagadora dessas políticas;
principalmente se as legislações forem homogeneizadas em torno de pontos de
concordância já existentes.
111
Três formas de atuação governamental emergem como dignas de destaque:
+ subsídio para órgãos do governo, organizações de caráter público, associações
etc;
+ incentivo para empresas privadas, idealmente envolvendo contrapartida;
+ estabelecimento de parcerias que, em função de sua maior flexibilidade, possam
respeitar os ritmos internos e os fundamentos políticos das organizações que
participarem em programas e em projetos apoiados pelo governo.
Em função de sua visão e de sua particular inserção num contexto contraditório e
desigual, cada organização preferirá uma forma de atuação. Uma entidade que tenha
optado pela liberdade de ação preferirá uma alternativa que assegure a democracia
participativa como balizamento dos processos políticos.
O foco da atuação do governo, como já dissemos, deverá ser o circuito inferior,
incluindo as empresas privadas e as organizações de interesse público (ONG’s) que
atuam neste circuito, sempre e quando exista a disposição em atender as necessidades de
uma sociedade sustentável e de contribuir para o bem-estar social, além da viabilidade
econômica e ambiental da reciclagem.
A ação do governo deve buscar que um incentivo para a realização de uma
atividade planejada de reciclagem sirva como uma demonstração de que a atividade
gera resultados, econômicos e sociais (retorno econômico e inclusão social) positivos.
Principalmente se, por exemplo, sua atuação for centrada na escala local dando
prioridade de incentivos às iniciativas comunitárias. Neste sentido, é conveniente
destacar que a dispersão dos investimentos, no interior das instituições públicas e na sua
interface com organizações privadas, é tanto maior quanto maior é o tamanho dos
112
projetos. Nos países subdesenvolvidos os projetos em macroescala quase sempre
nascem fracassados, fato que deve ser levado em conta a partir de uma perspectiva de
racionalidade social (SACHS, 1977).
Os incentivos governamentais podem ser de duas formas. Temos, por exemplo,
incentivos diretos, no caso da destinação preferencial de materiais recicláveis de maior
valor para uma determinada associação (ao contrário do favorecimento de uma empresa
privada). Ou incentivos indiretos, através de programas de renda mínima, educação e
saúde ambiental, bolsa-escola, voltados à comunidade envolvida em projetos de
reciclagem.
Outras sugestões de atuação em microescala são os incentivos que propõem a
ação dentro das empresas ou das associações, como:
A) cursos de engenharia de produção, de gerenciamento empresarial, de
caracterização de mercado;
B) abatimento em impostos (ICMS diferenciado para produtos) e criação de
linhas de crédito bancário;
C) campanhas de alfabetização funcional, saúde pública, formulação de políticas
de saneamento comunitário e educação ambiental.
Outras formas de incentivos economicamente rentáveis e socialmente eficazes
deverão contemplar a geração e utilização de “tecnologias apropriadas”. Ocorrendo isso,
os trabalhadores envolvidos com a coleta do material reciclável serão capazes de se
apropriar de um saber produtivo e produzir outros objetos. Agregando valor a eles, de
acordo com suas necessidades primárias (construindo móveis a partir de garrafas PET,
113
ou telhados com embalagens de longa vida) e necessidades secundárias (confeccionando
bolsas e blusas de plástico junto com metais).
Interessante como Milton Santos referiu-se ao processo de apropriação
espontânea, característica do circuito inferior:
Muitos utensílios comerciais e domésticos são produtos de recuperação
e a vida de uma peça, aparelho ou motor pode ser prolongada pela
engenhosidade dos artesãos. A idade média tão elevada dos veículos talvez
seja o exemplo mais surpreendente dessa miraculosa capacidade de
recuperação que é uma das maiores características das economias pobres, em
posição ao desperdício das economias ricas e modernas. (SANTOS, 1979:
156)
Através da potencialização da produção de bens dotados apenas de valor de uso
pela e para a camada mais pobre da sociedade envolvida com a reciclagem, seria
possível gerar um benefício maior do que aquele que seria obtido mediante a realização,
no mercado, do valor de troca dos bens produzidos com esta finalidade. Neste sentido,
talvez seja mais indicado remanufaturar os materiais, transformando-os em bens para
uso dos próprios catadores e da população de baixa renda do que convertê-lo num
insumo comercializável de interesse das empresas.
O professor Sérgio Luís Boeira (2000) fala de um “nó sistêmico” que poderia
contribuir na resolução destes problemas:
Predomina, no país, um enfoque ecológico-econômico unilateral, nele
os administradores pretendem apresentar percentuais de crescimento da
coleta e sua viabilidade econômica. Falta agregar a este uma visão social
mais ampla, na qual se incluam as necessidades de cidadania dos catadores. É
justamente na falta de encaixe, dos sistemas tecnicamente idealizados com os
sistemas construídos, social e historicamente, que está o nó sistêmico.
Uma das formas de viabilizar este projeto no curto prazo é a implementação de
uma proposta que possui diversos nomes, mas que será chamada aqui de coleta
solidária. Uma ferramenta na busca pela inserção social e dinamização da coleta de
114
materiais dentro de um contexto mais abrangente de economia solidária, para além da
coleta seletiva que beneficia poucos agentes (GRIMBERG, 2003).
Esta proposta se diferencia da usual, pois, ao invés de simplesmente selecionar os
materiais, pegando apenas o que é valorizado pela indústria, na coleta solidária o
catador é estimulado a participar dos processos de educação ambiental, atuando como
um verdadeiro agente transformador, pelo fato de conviver com o resíduo de cada
domicílio. Esse catador poderá inclusive sugerir modificações com relação às formas de
disposição e separação dos materiais, entre outras. Este tipo de coleta não só integra o
catador como potencializa sua capacidade de ação (da sobrevivência do catador surge a
limpeza da cidade). Cabe lembrar que, enquanto os sistemas de coleta com fins
estritamente ecológicos não forem harmonizados com os sistemas de coleta com fins de
sobrevivência imediata , as cidades permanecerão insustentáveis (BOEIRA, 2000).
De qualquer forma, o objetivo maior dessas políticas governamentais deverá ser:
(1) impedir que os intermediários interceptem o material e (2) retardar a reincorporação
do material pela indústria recicladora, evitando a apropriação do material fruto da ação
pelo trabalho do catador, através da exploração indireta de sua mão-de-obra.
Proposições contraditórias ao desenvolvimento de uma reciclagem solidária
devem ser evitadas. A criação de centrais de comercialização, entrepostos regionais,
usinas de beneficiamento, entre outras, controladas pelos catadores são passos
importantes neste sentido. Entender que os catadores são prestadores de um serviço
público e que merecem ser valorizados necessitando ser remunerados por este trabalho;
que a terceirização ou “quarterização” das atividades dos governos favorecendo
empresas de mão-de-obra e as indústrias recicladoras devem ser evitadas.
Estes aspectos que os governos, e também o município de Porto Alegre, têm
relutado em encarar podem ser a alternativa mais viável - social, ambiental e
115
economicamente - no gerenciamento dos resíduos sólidos, e em especial dos materiais
recicláveis. Cabe enfatizar uma vez mais que a resolução para os nós sistêmicos, devido
à complexidade de aspectos que eles contêm, muitas vezes está mais próxima do que
podemos imaginar.
8.4 Cidades Saudáveis
Este conceito foi cunhado há alguns anos no Canadá e ganhou corpo no Simpósio
de Cidades Saudáveis, realizado em 1986, em Portugal. Sua origem remonta às
sociedades maia, inca e asteca e a algumas cidades gregas consideradas os embriões da
idéia de uma cidade sustentável, em função do relacionamento de equilíbrio que
apresentavam com a natureza.
Atualmente a Organização Mundial da Saúde, por meio de sua representação
regional, a Organização Pan-americana de Saúde - OPS - tem contribuído para o
crescimento de ações orientadas segundo este (OPS, 1997). Este órgão propõe o
estabelecimento de políticas, formas de gestão e participação comunitárias, criação de
ambientes favoráveis e a reorientação dos serviços de saúde em benefício de todos os
habitantes, representando uma concretização local dos postulados gerais para a
promoção da saúde.
A cidade de Curitiba realizou algumas das políticas sugeridas, inclusive com a
organização da coleta seletiva e da inauguração, no início da década de 1990, de uma
usina de beneficiamento e de pré-processamento de materiais (TOCCHIO, 1999). De
acordo com a OPS, essa cidade implementou políticas públicas na direção de uma
cidade sustentável que tem indicado um caminho a ser seguido por outras cidades
brasileiras (OPS, 1997).
116
Como exemplo disto cabe destacar aqui algumas características originais dessa
política:
- As decisões bem sucedidas se relacionam à seleção de tecnologias e, muitas
vezes, podem ir de encontro às idéias contemporâneas imperantes.
- O planejamento presta atenção não apenas às estruturas visíveis (tais como o
transporte, a moradia, o uso do solo), mas também às invisíveis.
- As relações econômicas formais e informais devem ser estimuladas.
Uma cidade auto-suficiente usa o mínimo de recursos, conservando-os ao
máximo. Isto requer a promoção de programas de reciclagem, bem como políticas de
emprego (em oficinas de separação e classificação de resíduos, em atividades de
educação ambiental). As cidades modernas podem reduzir consideravelmente suas
necessidades energéticas aumentando a eficiência do uso das fontes convencionais de
energia e introduzindo sistemas de energia natural.
A criatividade pode compensar a escassez de recursos financeiros e, esta última
não deve impedir nem justificar a falta de ação (OPS, 1997). Por exemplo, as idéias
criativas que utilizam bastante mão-de-obra podem, em algumas ocasiões, substituir a
tecnologia que requer grandes capitais, como já vimos anteriormente.
8.5 Cidades e Sociedades Sustentáveis
A cidade saudável está contida numa abordagem mais ampla da sustentabilidade.
Se a cidade saudável equivale a dizer metabolismo urbano saudável, então o
funcionamento de uma cidade tem relação direta com as relações entre os seus
habitantes. Como vimos no primeiro capítulo, a um gênero de metabolismo urbano
117
corresponde um tipo de metabolismo social. Se pretendermos alcançar uma cidade
sustentável na questão do gerenciamento dos resíduos e da utilização dos recursos,
devemos tentar resolver o maior número de desigualdades existentes dentro e fora deste
espaço.
Acima de tudo, o que devemos buscar são soluções que respeitem as experiências
locais. Neste sentido, a força do trabalho intelectual, além da força mecânica do homem,
constitui um importante recurso a ser economicamente aproveitado (SCHUBERT,
1977). Os países subdesenvolvidos podem ser caracterizados por dois fatores: por um
lado, pela ausência de investimentos financeiros externos em infra-estrutura, por outro,
pela grande massa de trabalhadores em situação de desemprego ou subutilização da
força de trabalho.
Os estudos de Milton Santos (SANTOS, 1977: 44) apontam que “no sistema
inferior as atividades de trabalho intensivo utilizam menos capital e podem progredir
sem uma organização burocrática”. Da mesma forma, o trabalho intensivo torna o
circuito inferior o responsável por importante parcela de postos de trabalho oferecidos à
maior parte da população (XAVIER, 2003).
Aplicadas as técnicas de “desenvolvimento comunitário” que utilizam
intensivamente os recursos humanos combinados às limitadas inversões de capitais no
incremento da infra-estrutura básica, não só estaremos reduzindo os custos como
também estaremos gerando um recurso humano intelectual e físico para projetos de
futuro (SCHUBERT, 1977).
Nesta linha, a Agenda 21 brasileira se apresenta como uma alternativa aos
ditames estrangeiros a respeito da organização do território e da gestão dos recursos
naturais. Esta não é a única ferramenta, mas é a mais reconhecida, tendo em vista a
necessidade de auto-afirmação de um país subdesenvolvido. Muitas partes deste
118
documento são uma afronta aos interesses dos países desenvolvidos, e nele existem
propostas de promover uma maior integração entre as políticas públicas e as
comunidades pobres.
Uma das estratégias recomendada é a implantação de políticas que venham a
construir uma cidade sustentável, como sendo o espaço de ação de uma sociedade mais
equilibrada. Entre as medidas apontadas para se alcançar uma cidade sustentável
destaca-se uma que especialmente trata da questão dos materiais recicláveis, nosso foco
principal neste trabalho:
Reduzir significativamente a quantidade de lixo (resíduos sólidos)
produzida nas cidades, levando o setor produtivo e a população a
desperdiçarem menos, consumirem somente o necessário e reutilizarem
materiais que são jogados fora. (BEZERRA; FERNANDES, 2000: 120)
Para tanto, propõem-se as seguintes ações: (1) fortalecer e ampliar as parcerias
entre órgãos e instâncias do próprio governo; (2) investir na criação de redes de
pesquisa voltadas para minimização, reutilização, e reciclagem de resíduos e (3)
incentivar a instalação, no âmbito dos municípios, de unidades de reciclagem
administradas por associações comunitárias ou de catadores, gerando emprego para a
população de baixa renda e fortalecendo a gestão participativa (BEZERRA;
FERNANDES, 2000).
Talvez seja este o caminho que poderá levar-nos à construção de uma cidade que
abrigue uma sociedade sustentável, dentro de um processo de desenvolvimento desigual
nos seus ritmos, mas cada vez mais combinado, na disseminação da igualdade social e
ambiental. Uma sociedade que, mais integrada aos aspectos éticos, ambientais,
econômicos e sociais poderá ser o berço do homem de amanhã, num tempo em que não
estaremos mais falando em reduzir, em reciclar e em reutilizar...
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______________. A Natureza do Espaço Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
_______________. Uma Revisão da Teoria dos Lugares Centrais. In: SANTOS,
Milton. Economia Espacial - Críticas e Alternativas. São Paulo: Ed. USP, 2003.
SCHUBERT, Clarence. El hombre es un recurso. Mazingira, nº12, 1977.
SILVEIRA, Rosí. Algumas considerações acerca da relação ser humano
ambiente, a partir da produção de resíduos no decorrer da história. Ágora, v.6, n.
2, p. 99-121. Santa Cruz: UNISC, 2000.
VERDUM, Roberto. O Ciclo do Papel, da Coleta ao Processamento: Personagens e
Estrutura. Trabalho de Graduação em Geografia, UFRGS, 1988.
_______________. O Ciclo do Papel, da Coleta ao Processamento: Personagens e
Estrutura. In: SUERTEGARAY, Dirce (org.) Ambiente e Lugar no Urbano: A Grande
Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000.
WATSON, Lyall. A natureza das coisas. 10 ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
127
WOLMAN, Abel. O metabolismo das cidades. In: DAVIS, K. (Org.) Cidade - A
urbanização da Humanidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
XAVIER, Marcos. Rede Urbana e Circuitos Espaciais da Produção. O caso de São
José do Rio Preto. In: SOUZA, Maria, Adélia de (Org.). Território Brasileiro Usos e
Abusos. Campinas: Territorial, 2003.
ANEXO
129
CARTA DE BRASÍLIA
Os participantes do 1º CONGRESSO NACIONAL DOS CATADORES DE
MATERIAIS RECICLÁVEIS, realizado em Brasília nos dias 4, 5 e 6 de junho de 2001,
que contou com a participação de 1.600 congressistas, entre catadores, técnicos e
agentes sociais de dezessete estados brasileiros, e os 3.000 participantes da 1ª
MARCHA NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA, no dia 7 de junho do mesmo
ano, apresentam a toda a sociedade e às autoridades responsáveis pela implantação e
efetivação das políticas públicas, as reivindicações e propostas que seguem. E o fazem
contando com a força nascida de um longo processo de articulação, apoiado pelo Fórum
Nacional de Estudos sobre População de Rua, que teve seu ponto alto no 1º Encontro
Nacional de Catadores de Papel, realizado em Belo Horizonte, MG, em novembro de
1999, onde se decidiu pela organização do presente Congresso.
Conscientes da nossa cidadania e da importância do trabalho que desenvolvemos
e das tecnologias por nós elaboradas, já qualificadas em mais de cinco décadas de
atuação cotidiana, tomamos a iniciativa de apresentar ao Congresso Nacional um
anteprojeto de lei que regulamenta a profissão catador de materiais recicláveis e
determina que o processo de industrialização (reciclagem) seja desenvolvido, em todo o
país, prioritariamente, por empresas sociais de catadores de materiais recicláveis.
Em relação ao Poder executivo, propomos:
1.1 Garantia de que, através de convênios e outras formas de repasse, haja
destinação de recursos da assistência social para o fomento e subsídios dos
empreendimentos de Catadores de Materiais Recicláveis que visem sua inclusão social
por meio do trabalho.
1.2 - Inclusão dos Catadores de Materiais Recicláveis no Plano Nacional de
Qualificação Profissional, priorizando sua preparação técnica nas áreas de gestão de
empreendimentos sociais, educação ambiental, coleta seletiva e recursos tecnológicos
de destinação final.
1.3 - Adoção de políticas de subsídios que permitam aos Catadores de Materiais
Recicláveis avançar no processo de reciclagem de resíduos sólidos, possibilitando o
aperfeiçoamento tecnológico dos empreendimentos com a compra de máquinas e
equipamentos, como balança, prensas etc.
130
1.4 - Definição e implantação, em nível nacional, de uma política de coleta
seletiva que priorize o modelo de gestão integrada dos resíduos sólidos urbanos,
colocando os mesmos sob a gestão dos empreendimentos dos Catadores de Materiais
Recicláveis.
1.5 - Garantia de que a política de saneamento tenha, em todo o país, o caráter
de política pública, assegurando sua dimensão de bem público. Para isso, sua gestão
deve ser responsabilidade do Estado, em seus diversos níveis de governo, em parceria
com a sociedade civil.
1.6 - Priorização da erradicação dos lixões em todo o país, assegurando recursos
públicos para a transferência das famílias que vivem neles e financiamento para que
possam ser implantados projetos de geração de renda a partir da coleta seletiva. E que
haja destinação de recursos do programa de Combate à Pobreza para as ações
emergenciais.
2 - Em relação à cadeia produtiva:
2.1 Garantir nas políticas de financiamentos e subsídios, que os recursos
públicos sejam aplicados, prioritariamente, na implantação de uma política de
industrialização dos materiais recicláveis que priorizem os projetos apresentados por
empresas sociais de Catadores de Materiais Recicláveis, garantindo-lhes acesso e
domínio sobre a cadeia da reciclagem, como estratégia de inclusão social e geração de
trabalho e renda.
3 – Em vista da cidadania dos(as) Moradores(as) de Rua
3.1 – Reconhecimento, por parte dos governos, em todos os níveis e instâncias, da
existência da População de Rua, incluindo-a no Censo do IBGE e garantindo em lei a
criação de políticas específicas de atendimento às pessoas que vivem e trabalham nas
ruas, rompendo com todos os tipos de discriminação.
3.2 – Integração plena da População de Rua na política habitacional que garanta e
subsidie a construção de casas em áreas urbanizadas, e que parta da recuperação e
desapropriação dos espaços ociosos nos centros das cidades, garantindo-lhes o direito à
cidade.
3.3 - Priorização da geração de oportunidades de trabalho, com garantia de acesso
a todos os direitos trabalhistas, aos Moradores de Rua, superando especialmente as
131
discriminações originadas na falta de domicílio e ou na indicação de endereços de
albergues.
3.4 Promoção de políticas públicas de incentivo às associações e cooperativas
de produção e serviços para e com os Moradores de Rua.
3.5 Garantia de acesso à educação de todos os Moradores de Rua,
especialmente das crianças, em creches e escolas, independente de comprovante de
residência, possibilitando também a inclusão das famílias que moram nas ruas no
programa Bolsa-Escola.
3.6 Inclusão dos Moradores de Rua no Plano Nacional de Qualificação
Profissional, como um segmento em situação de vulnerabilidade social, garantindo seu
encaminhamento a formas de trabalho que geram renda.
3.7 - Garantia de atendimento no Sistema Único de Saúde - SUS aos Moradores
de Rua, abrindo também sua inclusão nos programas especiais, como “saúde da família”
e similares, “saúde mental”, DST/AIDS/HIV e outros, instituindo “casas-abrigo” para
apoio dos que estão em tratamento.
Frente à significativa representação destes eventos, não temos mais dúvidas
quanto à força e importância de nosso movimento, e acreditamos que a transformação
da realidade atual será progressiva e crescente.
Acreditamos que a partir deste momento o Estado e a sociedade brasileira não
terão condições de negar o valor do nosso trabalho. Lutaremos para alcançar maior
autonomia e condições adequadas para exercer nossa profissão, comprometendo Estado
e sociedade na construção de parcerias com nossas associações e ou cooperativas de
trabalho.
Trabalharemos cotidianamente pela erradicação do trabalho infantil e do trabalho
nos lixões, colocando nossa força e nossas tecnologias a serviço da preservação
ambiental e da construção de uma sociedade mais justa.
Pelo fim dos lixões!
Reciclagem feita pelos catadores, já!
Brasília, junho de 2001.
132
Dagnino, Ricardo de Sampaio
Um olhar geográfico sobre a questão dos materiais recicláveis
em Porto Alegre: sistemas de fluxos e a (in)formalidade, da coleta à
comercialização. / Ricardo de Sampaio Dagnino - Porto Alegre :
UFRGS, 2004.
[131 f]. il.
Trabalho de Conclusão do Curso de Geografia. - Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Geociências. Porto
Alegre, RS - BR, 2004.
1. Geografia Urbana. 2. Gerenciamento de Resíduos Sólidos.
3. Coleta Seletiva. 4. Catadores de Materiais Recicláveis. I. Título.
_____________________________
Catalogação na Publicação
Biblioteca Geociências - UFRGS
Renata Cristina Grün CRB10/1113