que tinham sido homens outrora, imagens desses santos veneradas de joelhos, milagres operados nesses
templos eram provas irretorquíveis da mais consumada idolatria. Contudo, não há nada disso. Os cristãos
não adoram, na verdade, senão um Deus único e não veneram nos seus bem-aventurados senão a própria
virtude de Deus que age em seus santos. Os iconoclastas e os protestantes lançaram a mesma tacha de
idolatria à igreja e a mesma resposta lhes foi dada.
Como muito raramente tiveram os homens idéias precisas e menos ainda exprimiram suas idéias por
termos precisos e inequívocos, apelidamos idólatras os gentios e sobretudo os politeístas. Escreveram-se
volumes imensos, debitaram-se sentimentos diversos sobre a origem desse culto rendido a Deus ou a
vários deuses sob figuras sensíveis: esta multitude de livros e de opiniões não atesta senão ignorância.
Não se sabe quem inventou as vestes e os calçados e quer-se saber quem primeiro inventou os ídolos?
Que importa um trecho de Sanconiáton, que viveu antes da guerra de Tróia? Que nos ensina ele quando
diz que o caos, o espírito, isto é, o sopro, enamorado de seus princípios, lançou-lhes os alicerces, que
tornou o ar luminoso, que o vento Colpo e sua mulher Bau geraram Éon, que Éon gerou Genos, que
Cronos, seu descendente, tinha dois olhos atrás como na frente, que se tornou Deus e que presenteou o
Egito a seu filho Tot? Aí tendes um dos mais respeitáveis monumentos da antigüidade.
Orfeu, anterior a Sanconiáton, nada nos poderá dizer de novo em sua Teogonia, que Damácio nos
transmitiu. Apresenta o princípio do mundo sob a figura de um dragão de duas cabeças, uma de touro,
outra de leão, um rosto à metade, a que chama rosto-deus, e asas douradas nas costas.
Podeis, porém, dessas estranhas idéias, tirar duas grandes verdades: uma, que as imagens sensíveis e
os hieróglifos são da mais alta antigüidade; outra, que todos os filósofos antigos reconheceram um
primeiro princípio.
Quanto ao politeísmo, o bom senso vos dirá que, desde que existiram homens, isto é, frágeis animais
capazes de razão e de loucura, sujeitos a todos os acidentes, à doença e à morte, esses homens sentiram
sua fraqueza e sua dependência; reconheceram facilmente a existência de alguma coisa mais poderosa
que eles; sentiram uma força na terra que fornece seus alimentos, uma no ar que os destrói com
freqüência, uma no fogo que consome e na água que submerge. Que mais natural, em homens ignorantes,
que o imaginar seres que presidissem a esses elementos? Que mais natural que venerar a força invisível
que fazia luzir diante dos olhos o Sol e as estrelas? E, desde que se desejou formar uma idéia dessas
forças superiores ao homem, que mais natural ainda que o figurá-las de uma maneira sensível? Poderia
ser de outra forma? A religião judaica, que precedeu à nossa e que foi dada por Deus, estava repleta
dessas imagens sob as quais se representa Deus. Ele se digna falar num espinheiro a linguagem humana;
aparece sobre uma montanha; os espíritos celestes que envia vêem todos sob forma humana; enfim o
santuário está repleto de querubins, que são corpos de homens com asas e cabeças de animais. É o que
deu lugar ao erro de Plutarco, Tácito e tantos outros que reprovaram aos judeus o adorar uma cabeça de
asno. Deus, apesar de sua proibição de se pintarem e esculpir figuras, dignou-se pois proporcionar-se à
fraqueza humana, que solicitava que se lhe falasse aos sentidos por meio de imagens.
Isaías, no cap. 6, vê o Senhor sentado sobre um tronco e a cauda de seu vestido que enchia o templo.
O Senhor estende sua mão e toca a boca de Jeremias, no capítulo 1 desse profeta. Ezequiel, no capítulo 3,
vê um trono de safira, e Deus lhe aparece como um homem sentado em seu trono. Essas imagens não
alteram em nada a pureza da religião, que jamais empregou quadros, estátuas, ídolos, para representar
Dicionário Filosófico.
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