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FACULDADE DE DIREITO DE VITÓRIA
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO
ANDRÉ AZEREDO CARVALHO
A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
NOS CURSOS DE DIREITO
VITÓRIA - ES
2008
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FACULDADE DE DIREITO DE VITÓRIA
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO
ANDRÉ AZEREDO CARVALHO
A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
NOS CURSOS DE DIREITO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direitos e Garantias
Fundamentais da Faculdade de Direito de
Vitória, como requisito para obtenção do grau de
Mestre em Direito.
Orientadora: Profa. Dra. Gilsilene Passon
Francischetto.
VITÓRIA - ES
2008
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ANDRÉ AZEREDO CARVALHO
A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NOS CURSOS DE DIREITO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos e Garantias
Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória, como requisito para obtenção do
grau de Mestre em Direito.
Aprovada em: 19 de Março de 2008.
COMISSÃO EXAMINADORA:
________________________________
Profa. Dra. Gilsilene Passon Francischetto
Faculdade de Direito de Vitória
Orientadora
________________________________
Prof. Dr. Aloísio Kroling
Faculdade de Direito de Vitória
________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos Wolkmer
Universidade Federal de Santa Catarina
A Deus. Que concedeu absolutamente
tudo de excelente que recebi.
Principalmente minha mãe, meu pai e meu
irmão.
“Tratando nossa causa com descaso, o poço
da sabedoria para alguns é raso (...)
Acreditando ser superior, julga pela cor.
Escravizados pela vaidade, egoísmo,
empurrando qualquer um para o abismo.
Gananciosos, poderosos no rosto, o cinismo”.
“O Guerrilheiro não larga o posto. Defendo o
oposto. A lança expulsa o encosto”.
(MVBill)
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, Dra. Gilsilene Passon, que mesmo com todos afazeres e com
a distância de um Pós-Doutorado em Portugal se fez presente em todos os
momentos necessários.
A Dra. Elda Bussinger Coelho, que participou ativamente de mais uma etapa
vencida, sempre se preocupando e antecipando cada detalhe e obstáculo.
Aos professores Dr. José Bittencourt, Dra. Eneá Stutz, Dr. Aloísio Kroling, Dr. Tárek
Moussallem, Dr. Geovany Jeveaux e Dr. Erly dos Anjos, cujos ensinamentos
formaram a base para a pesquisa que se encontra aqui desenvolvida.
À FDV. Instituição que contribui não para formação técnica e profissional, mas
que incentiva a humanização do ensino jurídico, e preza pela ética e qualidade do
ensino.
RESUMO
A pesquisa desenvolvida objetivou demonstrar a possibilidade da utilização da
extensão universitária com a finalidade de promover a humanização do ensino do
direito, bem como discutir a necessidade de mudança na abordagem da questão dos
direitos humanos nas academias jurídicas e fazer valer o cumprimento de sua
função social. Por meio do levantamento do histórico do ensino jurídico no Brasil, foi
possível depreender que data do Império até os dias atuais a dominação desse
ensino pela ideologia tecnicista e acrítica. Essa forma de desenvolvimento do ensino
entra em choque com as concepções do saber utilizado como poder, diálogo
emancipatório, poder simbólico e multiculturalismo, encampadas por autores como
Michel Foucault, Paulo Freire, Pierre Bourdieu e Boaventura de Sousa Santos,
produzindo uma diferente ótica sobre as práticas acadêmicas atuais e seu reflexo na
formação dos estudantes de direito. Dessa forma, surge a problemática acerca da
possibilidade de humanização da formação proporcionada aos estudantes por meio
da extensão universitária nos moldes do diálogo equilibrado entre os saberes,
científico e tradicional. A metodologia utilizada foi a dialética, com base na análise
entre o conflito da teoria posta na legislação, e a prática que vem sendo
desenvolvida no ensino jurídico.
PALAVRAS-CHAVE: ENSINO JURÍDICO, EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA,
DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS, DIÁLOGO EMANCIPATÓRIO.
ABSTRACT
The developed research intended to demonstrate the possibilities of using university
extension in a way to promote the humanization of the law teaching, as well as to
discuss the need of modifying the approach of the human rights issue at the juridical
academies and to make their social responsibility worthy. Trough the historical
gathering of the juridical teaching in Brazil, it was possible to conclude that since the
days of the Brazilian Empire until the actual days, this teaching is dominated by the
technical and non critic ideology imposed by the occidental capitalism. This form of
teaching development shocks with the conceptions of knowledge used as power,
liberty dialogue, symbolic power and multiculturalism defended by authors as Michel
Foucault, Paulo Freire, Pierre Bourdieu, Boaventura de Sousa Santos, producing a
different optic when analyzing the actual academic activities and its effects on the law
students formation. This way, emerges the problem about the possibilities of the
humanization of the formation of these students using the university extension by the
equilibrated dialogue between scientific and traditional knowledge’s. The dialectic
methodology was used by the analysis between the theory described by the
legislation and the reality that has been practiced on the juridical teaching.
KEY WORDS: JURIDICAL TEACHING, UNIVERSITY EXTENSION,
FUNDAMENTAL HUMAN RIGHTS, EMANCIPATORY DIALOGUE.
SUMARIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................
10
1 ENSINO JUDÍDICO NO BRASIL
1.1 HISTÓRICO DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL........................................... 16
1.2 CARACTERÍSTICAS MARANTES DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL........... 28
1.2.1 Dogmatismo...................................................................................................... 28
1.2.2 Liberalismo........................................................................................................ 34
1.2.3 Formalismo........................................................................................................ 39
1.3 A PORTARIA 1886/94 DO MÊS E A RESOLUÇÃO 09/04 DO CNE.................... 45
2 O PAPEL SOCIAL DAS UNIVERSIDADES E DAS ATIVIDADES DE EXTENSÃO
2.1 O PAPEL SOCIAL A SER DESEMPENHADO PELAS UNIVERSIDADES..........
52
2.2 A UTILIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO
SIMBÓLICA.........................................................................................
57
2.2.1 O Poder Simbólico........................................................................................... 61
2.2.2 A Racionalidade Ocidental.............................................................................. 66
2.3 A EXTENSÃO COMO ATIVIDADE INDISPENSÁVEL NA UNIVERSIDADE....... 70
2.3.1 Surgimento e características da extensão no Brasil.................................... 70
2.3.2 A visão tradicional-compensatória da extensão universitária nos cursos de
Direito..........................................................................................................................
80
3 DIREITOS HUMANOS E OS CURSOS DE DIREITO
3.1 A RESOLUÇÃO 09/04 DO CNE E A EXIGÊNCIA DE UMA FORMAÇÃO
HUMANÍSTICA............................................................................................................
86
3.2 A FORMA CONVENCIONAL DE ABORDAGEM DOS DIREITOS HUMANOS
NAS FACULDADES DE DIREITO..............................................................................
92
3.2.1 A visão linear da afirmação histórica dos direitos humanos...................... 92
3.3 POR UMA VISÃO INTERCULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS..................... 103
3.4 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS COMO TEMA TRANSVERSAL
NOS CURSOS DE DIREITO.......................................................................................
113
4 A EXTENSÃO COMO INSTRUMENTO DE DIÁLOGO HUMANÍSTICO COM A
SOCIEDADE
4.1 A IDÉIA DE DIÁLOGO EM PAULO FREIRE........................................................ 122
4.2 CONHECIMENTO PRUDENTE PARA UMA VIDA DECENTE............................ 127
4.2.1 As ecologias e o trabalho de tradução.......................................................... 133
4.2.2 Conhecimento Pluriversitário......................................................................... 138
4.3 A NECESSIDADE DE UMA EXTENSÃO EMANCIPATÓRIA............................... 140
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................
149
REFERÊNCIAS...........................................................................................................
152
11
INTRODUÇÃO
A história do ensino jurídico no Brasil é marcada por uma série de eventos que
determinaram, por meio da influência do capitalismo colonizador e outros fatores de
dominação, seu caráter tecnicista e acrítico. Inúmeros esforços legislativos foram
feitos no sentido de conferir à formação do estudante de direito um caráter social e
humanista, no entanto a massificação do ensino reprodutor de saberes dogmáticos
limitou o âmbito de visão desse futuro profissional, bem como dificultou o próprio
cumprimento da função social da instituição de ensino superior.
Ao falarmos em emancipação do estudante de direito, rapidamente somos levados a
considerar as cadeias das quais se deseja livrar, e no que diz respeito à pesquisa
em comento, consideraremos as crises da modernidade ocidental, que descortinam
um ambiente de fabricação intelectual, numa sociedade fundada pelo controle social.
Diante dessa realidade, a pesquisa propõe-se a traçar meios para o
desenvolvimento de um dos pilares do tripé ensino / pesquisa / extensão posto pela
portaria 1886/94 do MEC, onde a atividade eleita para investigação será a extensão.
De maneira ampla, os caminhos percorridos envolverão traçar um histórico do
ensino superior jurídico, identificar o amparo legal para o instituto que se deseja
explorar, e descrever as teorias de emancipação educacional propostas pelos
autores indicados na base teórica, bem como efetuar o cruzamento entre essas
teorias e uma possível forma de extensão universitária emancipatória.
O embasamento teórico-filosófico que orientará a pesquisa segue a linha de
raciocínio de autores como Paulo Freire, Boaventura de Sousa Santos, Michel
Foucault, Eduardo Bittar, Gilsilene Passon Francischetto, Pierre Bourdieu, dentre
outros.
No entanto, para contextualizar a temática que se deseja explorar, surge a
necessidade de explorar sucintamente os deslindes que sucederam até o
surgimento da legislação destinada à extensão universitária em vigor.
12
A intenção clara do ensino no império era a formação de mão de obra para os
postos burocráticos da máquina estatal que se formava na época. Na queda do
império, estabelece-se o estado tripartido laico, e a república determina inúmeras
alterações no ensino jurídico, como: abertura para disciplinas eletivas, instauração
da prática forense, surgimento da prova da OAB, abertura curricular para filosofia e
sociologia, e o surgimento das faculdades livres (que retiram o monopólio de São
Paulo e Recife), modificações essas que terminam por apenas massificar o ensino
superior.
Em 1969, a lei 4024 cria as diretrizes e bases da educação, que não conseguiu
aproximar o aluno da realidade social na qual estava inserido. Após a LDB, aparece
o ponto de encontro com a portaria 1886/94 e a resolução 09/04.
Tomando por base o artigo 43 de Lei 9394/96, que define as Diretrizes e bases da
Educação, podemos apreender que a intenção do legislador a respeito da formação
dos docentes do ensino superior tem por finalidade estimular a criatividade, o
desenvolvimento da sociedade, promover a extensão aberta à participação da
população, visando difundir os conhecimentos produzidos.
Somado a esse diploma legal, podemos ainda citar a importância da portaria
1886/94, que em seu art. instituiu as três colun as de base na formação do aluno,
que teria sua graduação sustentada pelo ensino, pesquisa e extensão.
Essa portaria foi posteriormente repetida pela Resolução 09/04 do CNE, que
adicionou em seu art. a questão humanística na f ormação superior. Pela leitura
conjunta da legislação vigente, resta claro que os objetivos oficiais do ensino nos
cursos de Direito demonstram um caráter humanitário e emancipatório na formação
do discente, porém, nosso corte se concentrará nas intenções extra-oficiais,
mascaradas em uma racionalidade auto-suficiente a que Boaventura de Sousa
Santos denomina razão indolente (2002), e que Paulo Freire descreve como anti-
diálogo, (2006) questões que afloram, quando analisadas pela concepção
foucaultiana de saber como poder (1996).
13
É dentro desse contexto que propomos investigar o seguinte problema, como a
extensão universitária pode ser um meio eficaz para a concretização de uma
formação humanística nos cursos de Direto?
A dissertação desenvolvida com vistas a indicar caminhos para solução desse
problema foi dividida em quatro grandes capítulos, que tratam a temática
inicialmente da história e características do ensino jurídico no Brasil aa edição da
portaria 1886/94 do MEC e da resolução 09/04 do CNE.
O segundo capítulo trata da função social da universidade e o papel da extensão
nessa atividade, bem como a utilização prática que tem sido dada à universidade,
concedendo-lhe o manto de instrumento de dominação simbólica. O terceiro capítulo
promove um contraponto entre a forma clássica de abordagem dos direitos humanos
e o multiculturalismo pregado por Santos, face ao choque entre o texto da resolução
09/04 do CNE e a prática acadêmica.
Por fim, no quarto capítulo propondo o uso da extensão dialógica como contato
humanístico entre academia e sociedade foram abordados os temas de diálogo
em Paulo Freire, conhecimento pluriversitário, ecologia de saberes e sociologia das
ausências e emergências em Boaventura de Sousa Santos, bem como o relato de
experiências práticas que se mantiveram nessa linha de pensamento.
Como objetivo ao alcance da resposta para esse problema, visa-se repensar a
maneira como a extensão jurídica vem sendo abordada nas instituições de ensino
superior, com vistas a modificar o paradigma meramente compensatório, que tem
sido comumente obtido como resultado com a atividade em comento, bem como,
ainda iremos realizar um histórico da educação superior brasileira, definir a
conjuntura atual da extensão universitária, e verificar a compatibilidade dessa
extensão com a teoria que se deseja desenvolver.
Dessa forma, buscamos comprovar a hipótese inicial da pesquisa, que objetiva
demonstrar a ineficácia do modelo atual de extensão universitária, com caráter
puramente unilateral e anti-dialógico, e demonstrar que um dos meios para atingir
essa eficácia é a construção de um ambiente propício à troca de saberes entre a
14
comunidade acadêmica e a tradicional, onde o diálogo parte da igualdade e do
respeito ao próximo.
A justificativa da pesquisa situa-se primeiramente no caráter inovador do estudo,
haja vista que, em pesquisa ao site da CAPES (em nível de mestrado e com corte
entre 2002 e 2006), foram encontradas 02 pesquisas que tratassem mesmo
que indiretamente do assunto, sendo que uma delas consta na área de Psicologia
e a outra em Direito. Essa é do autor André Luis Lopes dos Santos, e possui o
seguinte tema: Ensino jurídico: Acentuando a dimensão educacional dos debates, e
aquela é da autora Regina Célia do Prado Fiedler, com o título: Um estudo sobre a
construção da identidade de alunos em escola freiriana
1
. A pesquisa se efetivou com
base na busca dos seguintes termos: pedagogia, ensino jurídico, extensão,
universidade, diálogo e emancipação.
Justifica-se também, pela conjuntura atual do ensino superior no país que remonta
ao caráter tecnicista e acrítico do ensino jurídico imperial pela escassez de
pesquisas interdisciplinares no âmbito jurídico.
Esse é o contexto em que a pesquisa irá se desenvolver, bem como a problemática
que deseja discutir e os objetivos que propõe alcançar a hipótese lançada.
Deparamo-nos agora, com o momento de determinar o arcabouço teórico que será
utilizado para orientar a investigação do tema, em para cada intento, de se
mostrar uma base científica que irá sustentá-lo.
Inicialmente, as teorias que irão capitanear a confecção da pesquisa são
desenvolvidas por Michel Foucault, no que trata da questão de saber como poder,
Boaventura de Sousa Santos, no que tange à sociologia das ausências e das
emergências e à discussão dos rumos do racionalismo ocidental, bem como os
conceitos de dialogicidade e educação bancária de Paulo Freire. Contamos também
com os ensinamentos de Pierre Bourdieu, quando desenvolve os conceitos de
reprodução e poder simbólico.
1
A escola freiriana envolve o ensino dialógico praticado por Paulo Freire no que tange à educação
popular por meio da participação ativa do aluno no processo de aprendizagem.
15
O método adotado para a pesquisa será o dialético, sendo baseado na diferenciação
de conceitos por meio da argumentação dentro do diálogo. A dialética, com base
nos ensinamentos de Lakatos (2002, p. 83), possui quatro leis fundamentais, a
saber: ação recíproca, mudança dialética, passagem da quantidade à qualidade e
interpenetração dos contrários.
Concebendo o mundo como um conjunto de processos, a dialética vai ao encontro
daquilo que é dito pelos autores citados no embasamento teórico, na medida em que
as teorias utilizadas se sustentam no emaranhado de relações e interações sociais,
com vistas a determinar o constante movimento e dinâmica das relações que se
deseja definir. Essa regra sustenta não o constante movimento, mas a
interdependência das coisas que não existem isoladas, destacadas umas das outras
e independentes, mas como um todo unido, coerente.
Com base na mudança dialética, nega-se uma afirmativa primitiva, e ao negar sua
negação, atinge-se outra afirmação, o que não importa retornar à primeira tese, e
sim atingir um novo conceito (síntese). Com base nessa teoria, nada na dialética
segue como definitivo ou absoluto, o que confirma o caráter da pesquisa que se
intenta desenvolver, sustentada na mudança paradigmática proposta pelos autores
em comento.
É nesse ponto que a terceira lei se relaciona com o estudo a ser desenvolvido.
Seguindo o pressuposto de que, após uma determinada quantidade de mudanças,
atinge-se a qualidade ou mudança de estado bem como o fato de que tudo se
relaciona e essas relações não se dão ao acaso, nossa abordagem deseja
desconstruir o processo de formação jurídica atual. Esse objetivo se busca alcançar
através da identificação das etapas quantitativas e qualitativas do processo descrito,
bem como identificar a relação e os propósitos dessa formação em conjunto com as
relações sociais existentes dentro e fora dos muros institucionais.
Essa identificação não pode ocorrer sem que se defina a mola propulsora desse
processo de mudança, que, de acordo com a quarta lei da dialética, seria a própria
contradição interna entre os contrários que compõem todas as coisas.
16
Dessa forma o estudo pretende operar no campo da incoerência entre a legislação e
a prática, que envolvem o tema da extensão universitária, com vistas a identificar os
fatores-causa dessa realidade, por meio da análise do processo de formação e
produção dessa práxis.
Como método de procedimento, será utilizado o monográfico. A escolha parte de
sua definição, ou seja, do princípio de que qualquer caso estudado em profundidade
pode ser considerado representativo de muitos outros, e nessa busca por uma
generalização, que se proceder ao estudo de instituições, grupos, comunidades,
etc. As cnicas de pesquisa utilizadas serão, documental e bibliográfica, haja vista
que o estudo será embasado na análise de livros, revistas, reportagens, seminários.
17
1 ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
1.1 HISTÓRICO DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
Nessa etapa inicial da pesquisa, busca-se fazer um apanhado dos principais eventos
que marcaram o histórico do ensino jurídico, desde o tempo do Brasil Império, até os
dias atuais.
Inúmeros fatores determinaram as características do sistema de ensino no Brasil,
como sua independência, a proclamação da República, e as lutas de interesses que
ora aproximavam, ora afastavam o caráter do aprendizado dos interesses do
Estado.
De acordo com Bastos (2000, p. 01) o surgimento e desenvolvimento do ensino
jurídico no Brasil estaria estritamente vinculado ao estabelecimento da máquina
estatal em nosso território.
Dom Pedro I foi o imperador do Brasil até 1831. Em julho de 1822 (antes da
declaração de independência) uma Assembléia Constituinte havia sido
convocada, e veio a ser realizada somente em 1823 (LINHARES, 2000, p. 129-135).
Essa assembléia foi dissolvida pelo imperador para evitar a possibilidade da votação
de dispositivos que viessem a restringir seus poderes. Por meio do Poder
Moderador, Dom Pedro se manteve estável, dispondo ainda do controle sobre o
Judiciário, Legislativo e Executivo.
A Confederação do Equador, os Farroupilhas e a Noite das Garrafadas
representaram o descontentamento social com os poderes absolutos do Império,
que acarretaram a renúncia de Dom Pedro I em abril de 1831.
Ainda com base na mesma fonte (LINHARES, 2000, p. 135-141), até 1840 o país foi
governado por regentes que tiveram seus poderes limitados pelo aumento da
autonomia das províncias e a criação de um governo mais centralizado. Após o
Golpe da Maioridade, Dom Pedro II assume o poder, dando início ao Segundo
Reinado (1840), que vem durar até a Proclamação da República em 1889.
18
Nota-se, que o Brasil passou por um período transitório muito intenso de colônia
para estado soberano, e para república e a luta de interesses entre liberais e as
elites ligadas ao governo marcaram uma época de constantes embates, ora
armados, ora baseados no lobby político.
Contextualizado politicamente o período de interesse, é possível adentrar os fatos
que marcaram a educação de uma maneira geral, e em especial o ensino jurídico no
Brasil.
Em 1823, na Assembléia Constituinte, foi elaborado o projeto de lei que
estabeleceria a instituição de duas universidades uma em São Paulo e outra em
Pernambuco onde seriam instituídos cursos jurídicos inicialmente governados
pelos estatutos da Universidade de Coimbra.
No entanto, levando-se em conta o contexto geral de debates e disputas que vinham
sendo travados para a consolidação da independência do Estado brasileiro, bem
como para a promulgação da primeira Constituição, restou frustrada a primeira
tentativa de consolidação de um curso jurídico em solo nacional.
Em 1825, com a Constituição de 1824 outorgada, o imperador decidiu criar o que
seria o primeiro curso jurídico nacional no estado do Rio de Janeiro (BASTOS, 2000,
p. 3-4), que teria suas bases no estatuto criado por Luis José de Carvalho Melo para
esse fim. Mais uma tentativa foi frustrada pelas pressões das elites liberais, o que
acarretaria também a recusa de instalação de uma Universidade em Minas Gerais.
A recusa na instalação de ambos os cursos jurídicos tinham relação direta com o
momento político que era vivido no Brasil. No caso do Rio de Janeiro, buscava-se
evitar o gasto e as pressões possivelmente exercidas pelos novos universitários, e
em Minas Gerais, o medo rondava a instituição de uma universidade no berço das
idéias revolucionárias da Independência.
É interessante frisar que os rumos tomados pelo ensino jurídico determinam uma
constante luta entre as elites liberais, as imperiais e o grupo que se encontrava
dentro da máquina estatal do império. Dessa forma, a cada nova proposta, surge o
embate de interesses dessas forças sociais.
19
Os motivos para tal impulso eram os temores de gastos do erário com a criação da
instituição, e dos ideais que poderiam surgir com os ensinamentos provenientes dos
cursos jurídicos, que certamente entrariam no caminho do “bom andamento dos
negócios do Estado (...) e da pressão que os jovens poderiam representar no
processo do andamento político das decisões imperiais” (BASTOS, 2000, p. 04).
Seguindo as tentativas frustradas, tentou-se instalar cursos jurídicos na Bahia, que
foi alvo de resistência por parte da maioria que nem sequer concordava com a
independência do país.
O autor supracitado (2000, p.07) divide a realidade do Brasil império em três grupos
distintos de elites, sendo que a imperial detinha o controle do Estado, a elite civil
se movimentava de acordo com os interesses estatais e uma fração desta elite (que
seria o terceiro grupo) era mais liberal e estaria mais engajada no processo de
independência. Sendo assim, o debate era sempre heterogêneo, pois, dependendo
do teor e do momento, nem sempre as mesmas posições eram defendidas.
Para Francischetto, após a falência do sistema de capitanias hereditárias no Brasil
colônia, da instauração de uma administração-geral e sua substituição pela vinda da
família real portuguesa, o ensino no Brasil se deu sempre em um ambiente de
manutenção da hegemonia dominante, de cunho colonialista-escravizador. As
primeiras lições foram ministradas pela Companhia de Jesus, que, no intuito de
difundir a fé do império, iniciou a alfabetização dos colonizados (no prelo).
A influência da igreja se alterna após a difusão das idéias iluministas trazidas pelos
bacharéis brasileiros formados em Portugal, somadas aos desejos por uma
educação laica do Marquês de Pombal, domínio esse que retorna, em 1827, com a
instauração dos primeiros cursos jurídicos no Brasil (São Paulo e Olinda), sediados
em infra-estrutura eclesiástica.
A intenção clara do ensino no império era a formação de mão de obra para os
postos burocráticos da máquina estatal que se formava na época. Os bacharéis
eram técnicos advindos de uma elite dominadora, num ambiente em que
preocupação social era sinônimo de uma retórica liberalista abafada por uma prática
imperial descompromissada com as mazelas da sociedade.
20
Em 8 de agosto de 1826 (BASTOS, 2000 p.12), Francisco de Paula Sousa propôs a
alteração do artigo do projeto de lei sugerido p or Marcos Antonio (que restituía a
intenção do imperador de criar o primeiro curso jurídico no Rio de Janeiro), ora
confeccionado por Januário da Cunha Barbosa e José Cardoso Pereira de Melo,
instituindo, assim, São Paulo e Olinda como as capitais que receberiam as primeiras
faculdades.
A proposta foi então confirmada pela Lei de 11 de agosto de 1827 (BASTOS, 2000
p.12), que adotava uma postura simpatizante com a elite civil de cunho liberal,
embora ainda recebesse influência direta dos estatutos da Universidade de Coimbra,
exigência do Estatuto de Visconde de Cachoeira. Essa influência, de acordo com o
autor supra, terminou por esvaziar a lei de seu conteúdo mais liberal, funcionando
como um contrapeso de objetivo a manter o envolvimento do ensino superior com os
interesses do Estado e das elites que operavam sua máquina.
A lei foi promulgada, restando uma lacuna quanto a quem competiria a direção das
instituições, haja vista a supressão de seu artigo 15, bem como as demais propostas
de emenda, que buscavam esvaziar a vitória das elites civis liberais.
Sendo assim, o projeto de 5 de julho de 1826 representa um pacto muito mais
voltado para os interesses da sociedade civil dominante do que para os interesses
do Estado, o que demonstra a posição de dependência em que a elites se
posicionavam para com o Estado (o hipertrofiando), e que vem a ser declarado pelo
Visconde de Cairú, nos relatos de Bastos (2000, p. 15):
É hoje quase geralmente reconhecido, por estadistas práticos, que não
convém facilitar demasiado a todas as classes os estudos superiores, a fim
de que somente a justa proposição do Estado segundo a demanda do país
e para que também dêem garantias ao público, como pertencentes a certas
famílias remediadas e de consideráveis posses. Além disso, estes
estadistas, como disse, saem da classe mais abastada, e essa pode com
a despesa.
Esse vínculo entre sociedade civil de elite e Estado fez com que, ao invés de se
priorizar a educação fundamental, ou mesmo a formação jurídica de advogados que
pudessem articular os interesses da população, se concentrassem todos os esforços
em possibilitar a graduação dos futuros ocupantes dos cargos públicos estatais. Isso
demonstra a vitória do acordo entre as elites imperiais e a fração conservadora das
21
elites civis na busca pela formação de uma casta puramente política e
administrativa.
Após essa etapa, e até a promulgação da lei de 11 de agosto de 1827 (BASTOS,
2000, p.20-26), seguiu-se o debate acerca do currículo jurídico que seria aplicado
nas futuras IES, sendo que, ao final das deliberações, concluiu-se que, nas
faculdades de o Paulo e Olinda, seriam ministradas as seguintes matérias: Direito
Público, Análise da Constituição do Império, Economia Política, Diplomática, Direito
Mercantil e Teoria e Prática do Processo.
As discussões mais intensas, segundo Bastos (2000, p. 27), surgiram em torno da
adoção das cadeiras de Direito Romano, Direito Eclesiástico e Direito Pátrio Civil,
que, ao final dos debates, originaram a Lei de Criação dos Cursos Jurídicos no
Brasil, rubricada pelo Imperador Pedro I e assinada no Palácio do Rio de Janeiro por
José Feliciano Fernandes Pinheiro.
Ao levar-se em conta estes elementos, Bastos (2000, p. 32-34) indica a formalização
do que seria a primeira cadeira dos cursos jurídicos na época. Inicialmente, no
primeiro ano, o aluno cursaria Direito Natural, Direito Público, Análise da
Constituição do Império, Direito das Gentes e Diplomacia.
No segundo ano do curso, a primeira cadeira compreendia a continuação das
matérias antecedentes, e a segunda cadeira ministrava Direito Público Eclesiástico.
No terceiro ano, ensinava-se Direito Pátrio Civil na primeira cadeira e Direito Pátrio
Criminal com a Teoria do Processo Criminal na segunda cadeira.
No quarto ano, a primeira cadeira do curso compreendia a continuação do Direito
Pátrio Civil, e a segunda cadeira almejava o ensino do Direito Mercantil e Marítimo.
Por fim, no último ano, a primeira cadeira tratava de Economia Política, ao passo
que a segunda ministrava a Teoria Prática do Processo adotada pelas Leis do
Império.
Nota-se o desprezo para com a prática forense, que se reflete no primeiro
documento normativo de instituição de cursos jurídicos no Brasil, bem como o
22
desejo de se manter a influência imperial nos cursos jurídicos através da regulação
destes pelo Estatuto de Visconde de Cachoeira.
Esse estatuto, que mesmo sendo quase todo contrário à lei de 1827 era adotado
como base de sua aplicação e interpretação, determinava a adoção da cadeira de
direito romano (mesmo que o currículo da lei não a contivesse), e representava a
conexão entre o império e as elite civis de forma a frustrar os objetivos de um curso
aberto e livre das influências imperiais.
Não se pode negar sua preocupação com a metodologia do ensino jurídico, que, nos
dizeres de Bastos (2000, p. 38), “esclarece ainda que o método a ser usado deve
ser resumido, expor com clareza e contar só o essencial”.
De 1827 até 1879 (BASTOS, 2000, p. 39-43), quando surgiu o ensino livre, o
currículo jurídico sofreu diversas transformações. Em 7 de novembro de 1831
(BASTOS, 2000, p. 44-45), surge a regulamentação da lei de 1827, como
determinava seu artigo 10, suspendendo a vigência do estatuto de Visconde de
Cachoeira.
Essa lei regulamentou o ensino jurídico, retirando de vez a duvida sobre a cadeira
de Direito Romano (que foi excluído como disciplina) trazida pelo Visconde de
Cachoeira e, por o tratar da metodologia de ensino da mesma forma que seu
antecessor, concedia maior autonomia aos lentes. No entanto, a influência do Direito
Romano ainda persistiu no âmbito do Direito Civil e Natural, e finalmente foi
formalizada no currículo jurídico com o Decreto 608 de 16 de agosto de 1851
juntamente com a cadeira de Direito Administrativo.
Mais uma vez se fazia notória a fragilidade do direito pátrio como fundamento
jurídico, frente à influência do colonizador. O liberalismo radical era sobreposto pelos
romanistas e nova crise instaurava-se acerca do ensino jurídico no Brasil. Poder
Legislativo e Executivo iniciaram o debate acerca da competência legislativa para
criação de novos estatutos e para o aumento de despesas em sua execução. Sendo
assim, sempre que uma nova disciplina era criada, o Estado entrava em choque
interno acerca dos custos e da competência para legislar acerca dessa matéria.
23
Em 1853, surge o decreto 1134 de 30 de março (BASTOS, 2000, p. 53-55), que
visou concretizar as cadeiras de Direito Administrativo e Romano e conter o
liberalismo pregado pelas elites radicais por meio da tentativa de se restaurar as
intenções do Estatuto de Cachoeira. Sendo assim, deixava de lado o ensino do
Direito Pátrio, para submeter os estudantes a um misto de Direito Romano e
Eclesiástico.
É em meio a essas crises que, com base nos argumentos do deputado Augusto de
Oliveira, se faz a primeira menção à necessidade de capacitação do corpo docente,
visando à melhoria do ensino jurídico brasileiro. Com base nos dizeres de Bastos
(2000, p. 57):
Na história de nosso ensino jurídico, essas são as primeiras e básicas
observações sobre a questão docente. Em nenhum momento de nossa
história imperial se incentivou ou viabilizou qualquer política para a
formação do magistério jurídico, deixando que o pessoal docente, nem
sempre formado em Direito, se confundisse com os advogados e militantes
da advocacia e, principalmente, da política e parlamentares, o que é, aliás,
uma das características de parlamentares do império (...) Era freqüente as
escolas admitirem lentes nem sempre concursados e que as administrações
estivessem sempre subservientes às pressões das autoridades
administrativas.
Durante a crise entre executivo e legislativo e o patronado imperial, que a todo o
momento corrompia o sistema de ensino jurídico, vem o decreto 1.386 de 1854, que
trouxe o regulamento aprovado pelo decreto 1.568 de 1855.
A partir da década de 50, com o aumento da demanda, o Estado passou a não ter
condições de atender toda a necessidade populacional voltada à educação, o que
abriu aos particulares a possibilidade de prestação desses serviços e iniciou a
diminuição da influência eclesiástica nas aulas.
Em 1871, surge o decreto 4675 (BASTOS, 2000, p. 75-76), determinando a
obrigatoriedade do exame para estudantes das faculdades, visando ampliar o
controle do ensino por provas escritas e orais.
O ensino jurídico brasileiro seguiu essa marcha até a data de 19 de abril de 1879
(BASTOS, 2000, p. 90-91), quando o decreto 7247, assinado por Carlos Leôncio de
Carvalho, retomou a proposta concreta do ensino livre no império.
24
Na verdade, não se trata de uma independência total do ensino, haja vista que a
intervenção governamental e até seu patrocínio para o ensino primário obrigatório
eram elementos vigentes na época.
A partir desse decreto, dividiu-se o curso jurídico em ciências jurídicas e ciências
sociais, de forma que no segundo o foco seria a formação de pessoal administrativo
e no primeiro se formariam os advogados e magistrados. Nota-se também a
sobrevivência do Direito Romano como disciplina autônoma e a colocação do Direito
Eclesiástico como matéria opcional.
Após o decreto 7247 (BASTOS, 2000, p. 103-114), segue-se o parecer de Rui
Barbosa acerca do mesmo, que, em 1882, declarou a defesa do ensino livre, porém
a Comissão de Instrução Pública buscou uma forma de limitar as instituições
privadas ao Estado, valendo-se de requisitos como a necessidade de prestar exame
em instituição pública após a conclusão de curso particular.
O maior indicativo de insucesso das reformas no ensino jurídico é apontado por
Bastos (2000, p. 121) como a tentativa de se resolver o problema por meio de leis e
não de um plano geral de educação, o que por fim deu-se no decreto 9360 de 1885,
que reproduziu o seu antecessor e concretizou a possibilidade de existência para o
ensino livre, mesmo que sendo vago sobre seus exames e sua freqüência.
De acordo com Francischetto (no prelo), na queda do império, estabelece-se o
estado tripartido laico, e a república determina inúmeras alterações no ensino
jurídico, como: abertura para disciplinas eletivas, instauração da prática forense,
surgimento da prova da OAB, abertura curricular para filosofia e sociologia e o
surgimento das faculdades livres (que retiram o monopólio de São Paulo e Recife),
modificações essas que terminam por apenas massificar o ensino superior.
Com o decreto 10361 de 1890, foi suprimida a cadeira de Direito Eclesiástico do
currículo jurídico, ilustrando a separação entre Estado e Igreja.
Em 1891 surge a Reforma Benjamin Constant com o decreto 1232, que buscou
descentralizar o ensino jurídico através do ensino livre e confirmou os ideais liberais
do parecer de Rui Barbosa, mas também trouxe consigo o “oficialismo que
25
predominava entre os grupos republicanos positivistas, herdeiros do centralismo
imperial” (BASTOS, 2000, p. 153). Alvo também de mudanças, foi a criação de três
cursos distintos nas Faculdades de Direito, a saber, Ciências Sociais, Ciências
Jurídicas e Notariado.
A reforma republicana do ensino segue com a Constituição de 1891, determinando a
fundação do estado laico, porém sem romper com a linha ideológica do ensino
imperial, que, nos dizeres de Bastos (2000, p. 155), reflete:
Na verdade, se não houve uma ruptura com os fundamentos do ensino
jurídico do império, uma vez que o Direito Eclesiástico era o fundamento
institucional, simbolizado pelo ensino do Direito Romano, houve uma visível
mudança do ensino do Direito Natural, essência tradicionalmente dominante
do conhecimento jurídico, pelo ensino da Filosofia do Direito acoplada à
História do Direito. (...) [o que] mostra uma abertura para um certo
“nacionalismo jurídico” e compreensão de nossas próprias instituições (...)
em 1895, a Lei 314 amplia a duração dos cursos jurídicos para 5 anos e, de
acordo com Fracischetto (no prelo), nota-se que, nessa fase, o ensino ainda
continua tecnicista, havendo as três áreas de concentração do curso jurídico criadas
pelos decretos 10361/1890 e 1232/1891 Ciências Jurídicas, Ciências Sociais e
Notariado – fundidas na primeira.
Passa-se a adotar livro de presença nas faculdades para regulamentar o
comparecimento dos alunos em sala de aula, ressalvados os direitos adquiridos
pelos alunos que ingressaram no ensino superior antes da lei, tudo de acordo com o
Decreto 2226 de 1896 (BASTOS, 2000, p. 164-165). Em 1901, regulamenta-se a
possibilidade de freqüência feminina (separada) nos cursos jurídicos, por meio da
Lei 746.
A junção dos três cursos em um fez com que se acentuasse a presença de uma
elite administrativa dentro das Faculdades de Direito, trazendo o surgimento
desenfreado de bacharéis com conhecimentos jurídicos limitados e desviados para
os quadros funcionais do Estado.
Em 1915, a Reforma Rivadávia Corrêa fez (BASTOS, 2000, p. 167-171) a fusão das
faculdades livres existentes no Rio de Janeiro em um Instituto de ensino jurídico,
trazendo, para tanto, a obrigatoriedade de freqüência para os alunos que
26
estudassem nas faculdades e que optassem por essa metodologia, e a vinculação
do mesmo professor para as cadeiras subseqüentes de uma mesma disciplina.
Essas reformas se deram com a publicação do decreto 11530 de 1915, apoiado na
lei 2924 de 1915.
De acordo com Bastos (2000, p.183), as reformas que se deram na época
republicana não foram de profundo impacto no ensino jurídico brasileiro, no entanto
tiveram o condão de eliminar o Direito Eclesiástico formalizando a instituição do
estado laico mas mantiveram a interpretação com base no direito romano e, na
verdade, representaram a solidificação dos interesses das novas elites que se
firmavam no poder.
Em 1929, a Associação Brasileira de Educação começa a reivindicar uma proposta
pedagógica democrática na educação superior, que resulta na Fundação
Universidade do Distrito Federal (na época no Rio de Janeiro), instituição feita nos
moldes universitários, porém subsidiada pelo setor privado. Surge o início da busca
pelo raciocínio jurídico, com a adoção de diferentes formas de pesquisa e fontes de
estudo. Conforme descreve Bastos (2000, p. 225):
O espírito da Universidade do Distrito Federal (UDF) estava impregnado das
novas teorias educacionais de vocação globalizante (...). Diferentemente do
projeto pedagógico da Universidade do Rio de Janeiro, que estava
determinado pela necessidade burocrática de se congregarem as unidades
isoladas de ensino, a Universidade do Distrito Federal (UDF), desvinculada
de qualquer base ou compromisso educacional (...) estava voltada para um
novo e especial projeto pedagógico livre de todos os vícios e situações que
envolveram o ensino superior brasileiro, visíveis na preocupação de se criar
varias unidades, como: Biblioteca Central, Escola de Radio, Escola
Secundaria, Escola Elementar e Jardim de Infância (...).
Em 1961, a lei 4024 cria (BASTOS, 2000, p. 267) as diretrizes e bases da educação,
que, somada com as alterações anteriormente mencionadas, não tiveram o condão
de aproximar o aluno da realidade social na qual estava inserido.
A LDB, como define Bastos (2000, p. 267-268),
foi o documento referencial da educação no Brasil Moderno e a primeira lei
que definiu os seus princípios educacionais básicos, bem como o sistema
de competências e as autoridades destinadas a viabilizá-la. (...) Assim, a lei
que autorizou a criação da UnB foi um prenúncio dos seus objetivos e uma
certeza que sua promulgação provocaria profundas mudanças na vida
educacional brasileira.
27
A lei a que o autor se refere, que define a criação da Universidade de Brasília, é
datada também de 1961, apenas 5 dias antes da LDB (n. 4024/61). A década de 50
até o início de 60 comporta inúmeras modificações na estrutura educacional do
Brasil, como a criação da CAPES
2
em 1951, e o desdobramento do Ministério da
Educação e Saúde em Ministério da Educação e Cultura.
A lei em comento autorizava, na mesma linha da Constituição de 1946, o direito dos
educadores particulares em organizar suas próprias escolas, sem nenhuma
interdependência com o Estado ou limitações à transmissão de conhecimentos por
parte dos professores. Tudo de acordo como o artigo 166 da CF/46, que dispunha a
educação “como direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se
nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana” (BASTOS, 2000,
p.268).
Certo é que a Lei de Diretrizes representou um marco no ensino brasileiro, no
entanto, o ensino jurídico ainda continuou divorciado da realidade social e
predominantemente tecnicista no que tange à formação dos seus estudantes.
Rodrigues (1993, p. 35-60) descreve esse panorama ao dissertar sobre as crises
que se alojaram no ensino jurídico e que serão posteriormente tratadas com maior
profundidade. Para tanto, o autor divide essas crises em estrutural onde analisa o
paradigma político-ideológico e o epistemológico funcional onde faz o exame da
crise do mercado de trabalho e da identidade e legitimidade dos operadores de
direito – e operacional – onde descreve a crise administrativa e acadêmica do ensino
jurídico e, dentro dessa última, a crise didático-pedagógica e a crise curricular.
Nesse ponto, após o levantamento histórico dos principais eventos que ajudaram a
construir a caminhada do ensino jurídico, surge a necessidade de se identificar o
paradigma ideológico que se desenvolveu desde o período imperial e que ainda vige
na atualidade universitária do país. Após essa etapa, iremos retornar com as
modificações que foram instauradas com a portaria 1886 e a resolução 09/04,
ambas no item 1.3 deste capítulo.
2
A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) visa a melhoria da pós-
graduação brasileira, através da avaliação, divulgação, formação de recursos e promoção da
cooperação científica internacional. Disponível em http://www.capes.gov.br. Acesso em 23 mai. 2007.
28
Precisamos compreender que as mudanças que foram empregadas pela legislação
promulgada no prazo eleito para o esquema histórico apresentado foram apenas
formais e não abarcaram as questões de fundo que de fato representavam o real
entrave à melhoria do ensino jurídico.
A questão que se levanta seria o motivo por que, após tantas modificações na
legislação brasileira, o ensino jurídico permaneceu tão atrelado à sua função de
fornecer mão de obra para os quadros administrativos do Estado.
A resposta se encontra no modelo de racionalidade levantado por Santos (2005, p.
60-68) que presidiu as ciências naturais desde o século XVI e passa a dominar
também as ciências sociais a partir do século XIX, recusando o senso comum e os
estudos humanísticos, de forma a solidificar o fechamento epistemológico que
caracteriza esse paradigma.
Esse modelo nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não
estiverem baseadas em seu modelo científico, mostrando, assim, seu caráter
absolutista e totalitário e configurando a arrogância capaz de considerar o
fechamento sistemático desse paradigma frente à realidade que o circunda.
Nesses termos, o conhecimento científico é pautado na mera “observação
descomprometida e livre, sistemática e tanto quanto possível rigorosa dos
fenômenos naturais” (SANTOS, 2005, p. 62), em que a lógica trazida pela
matemática passa a quantificar como forma única de conhecer, e o futuro é
considerado como mera repetição do passado.
O autor qualifica a forma de conhecimento adotada pelo paradigma apontado como
vigente e dominante em utilitário e funcional, “reconhecido menos pela capacidade
de compreender profundamente o real do que pela capacidade de dominar e
transformar” (SANTOS, 2005, p.64). Nessa medida, fica possível entender por que
questões de tamanha importância para a real evolução do ensino jurídico foram
ignoradas e a tratativa dispensada foi apenas de ordem formal dentro da legislação
vigente.
29
Há que se entender por que a metodologia de estudo das ciências naturais passou a
ser utilizada nas ciências sociais, bem como, após o surgimento do Iluminismo, a
consciência filosófica da ciência moderna se transformou no positivismo do século
XIX, que admite apenas a lógica, a matemática e as ciências empíricas baseadas no
modelo das ciências naturais como formas de conhecimento científico.
Sendo assim, faremos a análise de alguns pontos que ligam as características do
ensino jurídico com os elementos definidores dessa racionalidade apontada por
Santos, de forma a identificar como se opera a influência desse paradigma sobre os
cursos de Direito, reforçando as idéias do dogmatismo, do liberalismo e do
formalismo jurídicos.
1.2 CARACTERÍSTICAS MARCANTES NO ENSINO JURÍDICO NO
BRASIL
1.2.1 Dogmatismo
O dogmatismo jurídico representa um corte metodológico que limita o âmbito de
investigação do pesquisador. É um tipo de pensamento que estabelece limites para
a investigação de casos, momento em que o intérprete se depara com fórmulas
postas para aplicar a todos os casos que a ele se apresentem.
Ao diferenciar a dogmática da zetética, Francischetto afirma que:
A dogmática jurídica pode constituir-se num importante meio de
desempenhar as atividades dos profissionais do Direito na medida em que
forneceria subsídios para o início da reflexão em torno de uma questão
juridicamente relevante. O problema que se coloca é que o pensamento
dogmático acabou sedimentado no ensino jurídico como um parâmetro
seguro, eficaz e inquestionável para se lidar com os conflitos sociais, sendo
a norma o balizamento único do jurista (no prelo).
Na realidade, não se trata de uma crítica desavisada do dogmatismo, pois não se
pode olvidar que o mesmo pode ser interpretado e reinterpretado dentro dos limites
por ele próprio estabelecido, de forma a permitir um alcance maior da realidade
social. No entanto, quando se fala em dogmatismo no ensino jurídico, podemos
depreender dos dizeres de Santos (2002a, p. 62) que:
30
A crítica ao dogmatismo que acentua a racionalidade orientadora de nossos
cursos jurídicos decorre do fato de que a dogmática ligada ao direito
positivo apenas pode produzir um conhecimento reprodutor e não
renovador. (...) a crítica se dirige ao dogmatismo (tomado como postura
intrinsecamente o-problematizante dos termos abordados, fruto da
“certeza de ter razão”), e não aos dogmas, em si mesmo considerados.
O autor indica que, considerados corretamente, os dogmas concederiam ao
investigador certa margem de discricionariedade, na medida em que esse poderia
interpretá-los, mostrando, dessa forma, que dogmática não se limita apenas a mera
afirmação de dogmas.
O resultado dessa postura assumida nos cursos jurídicos tem sido, na ótica de
Francischetto:
A maneira equivocada com que se tem tratado a dogmática no ensino
jurídico tem ocasionado o seu distanciamento com a realidade social e tem
formado profissionais apegados a um legalismo acrítico e não-
intervencionista. Além da descontextualização e do dogmatismo, o ensino
jurídico tem sido marcado por uma visão unidisciplinar do Direito, evitando
qualquer contato com outros ramos do conhecimento humano. Sob uma
influência da pedagogia tradicional e tecnicista, o conteúdo de ensino do
direito passou a ser um produto acabado e que o aluno apenas irá
acumulando, como um “depósito” de leis, conceitos e jurisprudências (no
prelo).
A classificação descrita pela autora tem refletido o caráter do ensino desde o império
até os dias atuais, em que o “pacto de mediocridade
3
entre docente e discente
perpetua a mera reprodução de conceitos e limita a postura dos futuros profissionais
jurídicos, que se portarão como meros técnicos ao invés de articuladores de direitos.
Nesse contexto, Direito e Lei são tidos como equivalentes, e o profissional se limita a
mero aplicador de regras jurídicas tidas como inquestionáveis desde a academia.
A sedimentação do positivismo jurídico e seus dogmas irrefutáveis deu-se com o
advento da teoria pura do Direito de Hans Kelsen (2000, p. 1), bem como suas
demais obras, onde se afirma a ciência do direito como aquela cujo único objeto de
estudo seria o direito positivado em cada Estado. Recusa, portanto, todo e qualquer
fenômeno estranho a seu objeto de estudo, de forma a purificar a metalinguagem
que diria sobre a linguagem do Direito Positivo, em que o Estado seria a
materialização desse Direito posto e daí viria a legitimidade para sua coação.
3
Aguiar (1994) utiliza-se do termo para definir o acordo tácito entre alunos e professores, que
perpetua a queda na qualidade do ensino jurídico.
31
De forma a ilustrar a postura adotada pelo dogmatismo jurídico, discorreremos sobre
alguns apontamentos feitos por Moussallem (2001, p.01) quando descreve alguns
contornos da interpretação neopositivista do Direito. Vale ressaltar que o
pensamento de Kelsen nasce do positivismo de Comte e Hart e do neokantismo,
para a partir do Círculo de Viena, se formular o Neopositivismo Lógico e seus
dogmas.
O intento em demonstrar mesmo que de forma repetitiva certas nuances
lingüísticas e filosóficas do dogmatismo se justifica na intenção de fazer o
contraponto entre essa teoria e o diálogo descrito por Freire (2006), quando esse
desconstrói o conceito de extensão e passa a sugerir a adoção da comunicação
entre o sujeitos em torno de um objeto mediador, em lugar da mera expansão de
saberes pré-definidos.
Ao adentrar a questão do dogmatismo jurídico, Moussallem (2001, p. 25-28) inicia o
texto, definindo “giro lingüístico”
4
como a fase atual de emancipação da linguagem,
que se torna figura autônoma da realidade, chegando ao ponto de sobrepô-la,
porém, essa linguagem deveria ser purificada de termos que não tivessem o rigor do
conhecimento científico.
Nota-se que constantemente a teoria busca separar o Direito da realidade social e
de outras formas de conhecimento que não operem pela metodologia o dogmatismo
jurídico, como a filosofia, a sociologia, a ciência política, etc.
De acordo com a descrição de sua teoria, podemos depreender que busca tão
somente o autor, enxergar o direito (ciência) nos parâmetros do estudo de um objeto
ideal e não cultural, visto que se preocupa cientificamente com o direito em forma de
dever ser (linguagem prescritiva) e o em forma de ser (linguagem descritiva), sem
descartar que no que tange ao direito como objeto, seria o mesmo cultural.
É nesse ponto que o positivismo jurídico determina a possibilidade de análise do
Direito por meio da metodologia das ciências naturais, e com base neste
4
Para o autor, o giro lingüístico se opera a partir do momento que não podemos alcançar a realidade
senão por meio da linguagem, e em termos neopositivistas lógicos, essa linguagem deveria ser
depurada e formalizada de quaisquer vícios que pudesse atingir o caráter cientifico na investigação
do objeto de estudo.
32
entendimento, passa a descartar outras formas de conhecimento que não possam
ser empiricamente verificadas como conhecimento cabal.
No que tange ao conhecimento por meio da linguagem, trata-se de uma sistemática
não-exclusiva do positivismo jurídico. A diferença reside na forma como é encarada
a relação entre a linguagem, seu emissor, seu destinatário e a consideração ou o
do meio onde a mesma é produzida.
Paremos nesse ponto da explanação positivista para fazermos menção a Freire
(2006, p. 31), quando também tratando de linguagem, passa a demonstrar uma ótica
diferente do dogmatismo:
Este modo de pensar, como qualquer outro, está indiscutivelmente ligado a
uma linguagem e a uma estrutura como a uma forma de atuar. Sobrepor a
ele outra forma de linguagem, noutra estrutura e noutra maneira de atuar
lhe desperta uma reação natural. Uma reação de defesa ante o ‘invasor’
que ameaça romper seu equilíbrio interno.
Paulo Freire, quando passa a tratar o tema da extensão como comunicação entre
homens, e não uma simples expansão do saber a partir do sábio ao ignorante,
passa a desconstruir a metodologia dogmática, de forma a desenvolver o diálogo
dentro da busca pelo conhecimento.
Ao descrever o equivoco de se admitir a extensão universitária pelos parâmetros
anti-dialógicos do dogmatismo positivista, o autor alerta para o perigo de se
transmitir os conhecimentos jurídicos à populações necessitadas como um rito
mágico de atos inalcançáveis ao intelecto humano (FREIRE, 2006, p. 32-33).
É nessa etapa que define seu pensamento da seguinte maneira:
No fundo, a substituição de procedimentos mágicos por técnicas
‘elaboradas’, envolve o cultural, os níveis de percepção que se constituem
na estrutura social; envolve problemas de linguagem que não podem ser
dissociados do pensamento, como ambos, linguagem e pensamento, não
podem sê-lo da estrutura.
Assim, aponta para a necessidade de superar a separação pregada pelo positivismo
dogmático, na medida em que essa atitude ignora a “problematização do homem-
mundo ou do homem em suas relações com o mundo e com os homens, possibilitar
33
que estes aprofundem sua tomada de consciência da realidade (...)”. (FREIRE,
2006, p. 33).
Mas como reduzir o estudo do direito sob uma teoria positivista, onde a solução de
todas suas incoerências se resumiria a evitar a ambigüidade, vagueza e carga
emotiva dos signos que em conjunto formam o ordenamento jurídico? Resta no
mínimo temerária a abordagem unilateral do fenômeno jurídico, haja vista que ao
dissociar o direito da realidade social sobram apenas os diplomas legais que
permaneceriam inertes ate que a conduta que descrevem ocorra de fato.
Nota-se o purismo Kelseniano que ficou alastrado pela teoria positivista desde sua
obra Teoria Pura do Direito, e que ainda hoje estimula pensadores a conceber uma
idéia do Direito separado do fenômeno social.
Considerando portanto a palavra Direito como ordenamento jurídico, podemos
definir como sendo a ordem jurídica vigente (leia-se válida), o conjunto de normas
imperativo atributivas que em certa época e país, a autoridade política declara
obrigatório (MOUSSALLEM, 2001, p. 63).
Novamente podemos nos valer dos ensinamentos de Freire (2006, p.34 e 40):
Ao não perceber a realidade como totalidade, na qual se encontram as
partes em processo de interação, se perde o homem na visão ‘focalista’ da
mesma. A percepção parcializada da realidade rouba ao homem a
possibilidade de uma ação autêntica sobre ela.
Impõe-se que, em lugar da simples ‘doxa’ em torno da ação que
desenvolvemos, alcancemos o ‘logos’ de nossa ação. Isso é tarefa
especifica da reflexão filosófica. Cabe a essa reflexão incidir sobre a ação e
desvelá-la em seus objetivos, em seus meios, em sua eficiência.
Nota-se que para o positivismo, esse ordenamento não é uma regra e sim um
conjunto de regras que possui uma unidade, ou seja, um sistema. Esse sistema se
diferencia dos outros normativos por sua coercitividade e sua impermeabilidade pela
realidade social.
Essa teoria objetiva formalizar o conceito de direito, e não debater sobre seu
eventual conteúdo, o que, de acordo como o entendimento do positivismo, será
objeto de outras ciências, que não a Dogmática Jurídica.
34
Freire, (2006, p. 66-67) ao tratar do tema, inicia com a seguinte proposta:
Não há, realmente, pensamento isolado, na medida em que não homem
isolado. Todo ato de pensar exige um sujeito que pensa, um objeto
pensado, que mediatiza o primeiro sujeito do segundo, e a comunicação
entre ambos, que se dá através de signos lingüísticos. (...) Em relação
dialógica-comunicativa, os sujeitos interlocutores se expressam como já
vimos, através de um mesmo sistema de signos lingüísticos.
E ao fazer menção a essa práxis favorável ao diálogo entre homens, o mesmo autor
sugere a adoção do seguinte sistema:
Neste processo histórico-cultural dinâmico, uma geração encontra uma
realidade objetiva marcada por outra geração e recebe, igualmente, através
desta, as marcas da realidade. Todo esforço no sentido da manipulação do
homem para que se adapte a esta realidade, além de ser cientificamente
absurdo, visto que a adaptação sugere a existência de uma realidade
acabada, estática e não criando-se, significa ainda subtrai do homem a sua
possibilidade e seu direito de transformar o mundo.
Notamos o contraponto entre ambas as teorias propostas por Freire e Moussallem,
representando extratos de um universo que envolve o fechamento e abertura do
Direito para os fenômenos sociais e demais formas de conhecimento.
Essa postura interpretativa que representa a limitação dogmática do ensino jurídico,
de forma a limitar o investigador à mera re-interpretação dos dogmas, (quando o
dogmatismo é bem aplicado o que não ocorre no Direito) ignora sua real proposta
e simplesmente os encara como inquestionáveis.
Freire, (2006, p. 70) critica o divórcio que o positivismo institui com a realidade social
nas seguintes bases: “Não há pensamento que não esteja referido à realidade,
direta ou indiretamente marcado por ela, do que resulta que a linguagem que o
exprime não pode estar isenta dessas marcas”
.
Santos (2005, p. 61) também critica o fechamento dogmático instaurado pela nova
racionalidade científica, denominada razão indolente
5
nas seguintes bases:
Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um
modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as
5
Boaventura de Sousa Santos define como razão indolente o modelo de racionalidade ocidental que
recusa outras formas de saber estranhas à sua metodologia e se mostra em sua auto-suficiência,
negligência e unilateralidade.
35
formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios
epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.
O fechamento sistemático instaurado no Direito pelo dogmatismo fica latente ao
expormos as teorias dos autores reunidos no presente estudo, haja vista que o
confronto entre as teorias elencadas representa a luta pela emancipação do
conhecimento no Direito, de forma a torná-lo livre, transformador e emancipador.
De acordo com Francischetto (no prelo):
O paradigma positivista terminou por tornar o ensino jurídico unidisciplinar,
resumido à ordem jurídica vigente, sem qualquer incursão reflexiva no
campo de outros conhecimentos. (...) A partir do diálogo entre essas
ciências e o Direito é que se almeja inserir no ensino jurídico a
interdisciplinaridade. (...) Foi justamente em decorrência da
unidisciplinaridade imposta aos alunos de Direito até hoje que, em maior ou
em menor intensidade, tais profissionais não conseguem lidar com um
contexto de transformações sociais cada vez mais célere, para o qual o
Direito não tem dado respostas satisfatórias.
No entanto o dogmatismo não representa a única característica do ensino jurídico
brasileiro que perdura desde o tempo do Império. Não se pode deixar de mencionar
os ideais liberalistas que se adaptariam no Brasil sob o manto do bacharelismo
liberal, fenômeno que será alvo de discussão no próximo item deste capítulo.
1.2.2 Liberalismo
O Liberalismo configurou-se em uma nova concepção, que influenciaria os ideais
acerca da formação do Estado Brasileiro desde sua independência em 1822, até a
presente data, incrustado tanto na criação da sociedade quanto na instituição do
Estado e na formação dos estudantes de Direito.
O Liberalismo, de acordo com Wolkmer (2003, p. 74), surge como um contraponto
da elite em face ao autoritarismo monárquico e possibilita a criação de novas formas
de produção de riqueza e de relações sociais, tudo de acordo com a demanda do
mercado, seguindo-se sempre os ideais de liberdade individual.
Ao ser implementado no Brasil, porém, essa ideologia se deparou com uma
sociedade conservadora, patrimonialista e baseada na exploração de escravos, o
36
que divorciou o Liberalismo brasileiro de suas características originais européias.
Insta frisar ainda que a maioria da população era mantida em total alienação acerca
das concepções nacionais e importadas, o que impossibilitaria a incorporação do
liberalismo de acordo como foi criado na Europa.
Nos dizeres de Wolkmer (2003, p. 75):
O que sobretudo importa ter em vista é esta clara distinção entre o
liberalismo europeu, como ideologia revolucionaria articulada por novos
setores emergentes e forjados na luta contra os privilégios da nobreza, e o
liberalismo brasileiro canalizado e adequado para servir de suporte aos
interesses da oligarquias, dos grandes proprietários de terra e do
clientelismo vinculado ao monarquismo imperial.
Sendo assim, o liberalismo no Brasil passa a ser desenvolvido como meio de
manutenção do domínio das oligarquias agrárias, que estas buscavam a libertação
do colonialismo, enquanto a população cria na eliminação da escravidão e outras
formas de preconceito e discriminação.
Wolkmer (2003, p. 77) denomina o liberalismo brasileiro de absolutismo mascarado,
na medida em que nosso primeiro imperador se utiliza da distorção dos ideais
europeus para emancipar a colônia de Portugal e instituir o domínio do império sobre
a sociedade emergente brasileira. E segue sendo utilizado com as mais diversas
faces durante a história do Brasil, sempre de acordo com os interesses das elites
dominantes.
Faoro (2000, p. 501) indica que o liberalismo no Brasil reduziu o que se entendia
como povo a um núcleo de proprietários rurais com meios para falar em nome
próprio as reivindicações que possuíam em face ao Estado. O liberalismo político
traz consigo o liberalismo econômico que institui a livre concorrência e a queda das
barreiras que pudessem constranger o comércio da burguesia nacional.
A partir dessa ideologia, surge o patrimonialismo como forma de poder a ser
exercido com base nas posses, e no interesse de manutenção e constante
expansão desse domínio privado.
Nos dizeres de Faoro (2000, p. 733):
37
Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder,
institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade
assenta no tradicionalismo assim é porque sempre foi. O comércio da o
caráter à expansão, expansão em linha estabilizadora, do patrimonialismo
(...) No molde comercial da atividade econômica se desenvolveu a lavoura
de exportação, da colônia à República, bem como a indústria (...) o
patrimonialismo estatal, incentivando o setor especulativo da economia e
predominantemente voltado ao lucro como jogo e aventura, ou, na outra
face, interessado no desenvolvimento econômico sob o comando político
(...).
A posse individual segue determinando a relação entre burguesia x Estado e Estado
x população, numa situação onde o mercado passa a se expandir e os proprietários
passam a manejar o Estado de forma a retirar as barreiras comerciais e ao mesmo
tempo proteger a posse dos que exploram as atividades lucrativas.
Como não poderia ser evitado, o liberalismo brasileiro influiu fortemente na formação
do Estado, e se deu da seguinte maneira:
Trata-se da complexa e ambígua conciliação entre patrimonialismo e
liberalismo, resultando numa estratégia liberal-conservadora que, de um
lado, permitiria o ‘favor’, o clientelismo e a cooptação; de outro, introduziria
uma cultura jurídico-institucional marcadamente formalista, retórica e
ornamental. (WOLKMER, 2003, p. 79)
O autor determina que dois elementos tiveram grande importância e influência nessa
fase de instituição do que denomina “bacharelismo liberal”. Primeiro, a instituição
dos primeiros cursos jurídicos e da elite jurídica brasileira e, em segunda instância, a
criação de uma vasta coletânea legal no Império, com a edição de inúmeros
códigos, leis, etc.
Como a criação dos cursos jurídicos seguia na esteira da independência colonial, os
interesses que se buscava difundir na academia eram muito mais de cunho estatal
do que social, e dessa forma criaram operadores do Direito voltados para “as
prioridades burocráticas do Estado” (WOLKMER, 2003, p. 80), num ambiente onde o
paradoxo entre os objetivos originários do liberalismo entravam em choque com os
interesses das elites dominantes, fundindo-se na formação de uma ideologia que
mascarava o imperialismo da época.
Consubstanciando uma prática tradicional em nosso país, a importação dos
pressupostos portugueses para as universidades brasileiras criou um pensamento
38
jurídico totalmente distante da realidade agrária, produzindo na realidade, ao invés
de articuladores de direitos sociais, “atores jurídicos” (WOLKMER, 2003, p. 81).
O autor descreve a implantação dos dois primeiros cursos jurídicos no Brasil e
diferencia o caráter ideológico implantado em cada um deles. Em Pernambuco, o
foco era a preparação de doutrinadores e homens voltados para a realidade
científica da época, de forma a produzir o arcabouço teórico e intelectual
determinista, ao passo que em São Paulo, produziam-se os políticos e burocratas da
sociedade brasileira que seriam demandados com base no liberalismo elitista de
nossa terra.
No que tange à legislação da época, nota-se que desde a carta de 1824, as leis
promulgadas pelo império tinham sempre o caráter de soar de modo liberal, porem
sempre dando o direito com uma mão e retirando-o com a outra, numa falsa retórica
democrática em que se firmava a parceria entre o império e as elites da época.
De acordo com Wolkmer (2003, p. 85), não somente na legislação fundamental
como também nas leis ordinárias como o Código Criminal de 1830, o Código de
Processo Penal de 1832 e o Código Comercial de 1850 – participaram de um
sistema em que, ao mesmo tempo em que se asseguravam os direitos (como
proporcionalidade e individualidade da pena), esquecia-se dos índios e negros numa
possível tentativa de se omitir a escravidão e a recusa do reconhecimento civil aos
índios e negros, em uma legislação que se autodenominava liberal-democrática.
Não se pode olvidar que também no tempo da República, o Código Civil de 1916
representava os interesses da sociedade agrária da época, preocupada com a
manutenção de seus latifúndios e a manutenção de sua posição.
De toda essa conjuntura sócio-politico-ideológica, surge o que os autores
denominam como bacharelismo liberal
6
, e que se dá nas seguintes circunstâncias:
Tratava-se não da composição de cargos a serviço de uma
administração estatal em expansão, mas, sobretudo, representava um ideal
de vida com reais possibilidades de segurança profissional e ascensão a
um status social superior. Isso se revestia de demasiado significado numa
6
Antônio Alberto Machado explica essa aproximação bacharelismo/liberalismo:
“os nossos bacharéis,
através das cátedras e dos postos políticos que passaram a ocupar sistematicamente, disseminaram
uma pitoresca ideologia liberal que dava suporte a um projeto jurídico-político autoritário e político-
social excludente”
.
(2000, p. 79)
39
sociedade escravocrata em que o trabalho manual era desprezado em
função de letrados urbanos que se iam ajustando e ocupando as crescentes
e múltiplas atividades públicas.
Adorno (1988, p. 238) descreve a influência do liberalismo, que, em conjunto com o
jusnaturalismo, adentrou a universidade, disseminando a possibilidade de
representação de classes, mas que, na verdade, aflorava em meio a um ambiente
colonizador e elitista.
De fato, a proposta de democratização foi distorcida em manutenção patrimonial, por
aqueles que passaram suas vidas em contato com a exploração permanente. Na
verdade, o liberalismo segue desde a Independência e percorre o caminho da
escravidão e exploração de todo tipo de trabalho que rendesse posse e propriedade.
Coadunando com Adorno, Fracischetto (no prelo) acrescenta:
(...) que tal fato ficou patente no próprio texto da Constituição Imperial. Ao
mesmo tempo em que se declaravam inalienáveis os direitos civis e
políticos do cidadão, também previa a possibilidade de os mesmos serem
suspensos e a igualdade suscitada era freqüentemente remetida à
existência de desigualdades “naturais” entre os indivíduos.
Certo é que o choque do liberalismo com o patrimonialismo fez com que
surgisse uma figura peculiar na história do ensino jurídico no Brasil, o
bacharelismo liberal, que firmou a parceria entre as duas ideologias de forma
a justificar o discurso de legalização do projeto econômico da elite civil
ignorando o choque entre Democracia e escravidão.
Com esse resultado em os, os futuros e presentes operadores do direito
construíram seu latifúndio, amparados na máquina estatal que foi
cuidadosamente lapidada para proporcionar a manutenção do status quo
ante, independente do advento da ideologia democrática.
Como afirma Wolkmer (2003, p. 99), o bacharelismo não era encarado como uma
profissão, e sim como uma carreira política capaz de alavancar uma situação
confortável nos quadros estatais em preenchimento. Era a formação de um corpo
voltado para a satisfação de interesses individuais, e essa massa compunha
40
exatamente o poder legislativo e judiciário da época, o que permitia a constante
formação de alianças.
Rodrigues (2005, p.34) indica que:
Modificaram-se as exigências com relação à prática profissional do jurista,
mas o ensino do Direito não acompanhou essa evolução. Continua inerte,
estacionado na era da dogmática, não tendo, em muitas situações,
superado o século XIX, ainda reproduzindo a idéia de que a simples
positivação dos ideais do liberalismo é suficiente para gerar a democracia e
que o positivismo é o modelo epistemológico adequado para a produção do
conhecimento jurídico.
O autor define que o Direito pode ser utilizado para mascarar diferenças sociais e
econômicas sob a bandeira da retórica igualitária e liberal, que segue na exata
esteira de poder simbólico descrita por Bourdieu (2005).
Na verdade, tratamos de uma crise, que é apontada como dominante não do
setor jurídico, mas de todas as facetas da Administração Pública, quando o ensino
jurídico é atingido por fazer parte desse universo regido por um modelo falsamente
democrático.
E não podemos deixar de fazer a ponte com o próximo tópico, utilizando por base os
dizeres de Wolkmer (2003, p. 100) ao dizer que:
Na verdade, o perfil do bacharel juridicista se constrói numa tradição
pontilhada pela adesão ao conhecimento ornamental e ao cultivo da
erudição lingüística. Essa postura, treinada no mais acabado formalismo
retórico, soube reproduzir a primazia da segurança, da ordem e das
liberdades individuais sobre qualquer outro princípio.
Sendo assim, podemos notar que o liberalismo vem florescer e se fortalecer em
nosso território também com o advento de outra ideologia sócio-política, o
formalismo. Esse instituto será tratado no próximo tópico do estudo.
1.2.3 Formalismo
No estudo do formalismo jurídico, não como não fazer menção ao surgimento do
positivismo jurídico. Nota-se que, na Idade Média, ocorria a dominação do direito
41
natural sobre o positivo, porém, desde o século passado e até os dias atuais, a
concepção de direito vigora entendendo apenas o positivado como digno de
reconhecimento.
De acordo com Ferreira (2007), o formalismo jurídico desenvolvido no século XX por
Hans Kelsen teve suas origens na Jurisprudência dos Conceitos trazida por Puchta,
segundo o qual, por meio de uma regra lógica formal, o sistema de conceitos teria
uma hierarquia por meio da qual o conceito inferior teria sua validade no superior.
Com a formação do Estado Moderno e a conseqüente reunião dos ordenamentos
jurídicos das sociedades medievais da época na figura do Estado, o príncipe passa
a deter todos os poderes anteriormente distribuídos pelas camadas sociais, inclusive
o de criar o Direito.
A partir da reunião desses poderes na pessoa do Estado, elimina-se a
discricionariedade do julgador e do intérprete, no que tange à possibilidade de
recorrer tanto ao Direito Natural quanto ao positivo para a aplicação da norma ao
caso concreto. De acordo com Ferreira (2007), na primeira metade do século XIX, se
dá o surgimento do positivismo jurídico na Alemanha, por meio do Historicismo
influenciado por Savigny que foi um movimento filosófico (que considera o homem
em sua individualidade em oposição ao direito natural concebido pelo iluminismo)
que rompe com o Direito Natural e que abre as portas para o positivismo.
No formalismo jurídico, o Direito se resume à norma, e não cabe ao jurista
questionar a sua legitimidade ou buscar elementos externos a essa norma como
fundamento para análise. Não como manter uma postura neutra perante a
interpretação da norma.
Como dito anteriormente, vivemos um processo dinâmico em que não podemos nos
furtar dos acontecimentos que se desenvolvem, criando e modificando a realidade
social, onde a suposta separação do Direito iria apenas torná-lo obsoleto perante a
verdade dos fatos reais.
Interessante como, se observarmos alguns exemplos em que o legalismo foi levado
até suas possíveis últimas conseqüências, iremos nos deparar com os exemplos da
42
Alemanha nazista e a Itália fascista, onde essa paixão irracional pela norma permitiu
que a legalidade fosse manipulada, com vistas a, mais uma vez, manter a
hegemonia dominante.
Faz-se necessário citar os escritos de Bittar (2006, p. 25), apud Adorno, quando diz
que: “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a
educação. O que é Auschwitz para nós hoje? Seque a barbárie desapareceu no
ventilador da história ou a poeira foi empurrada para debaixo do tapete?”.
Quando descreve a dialética negativa proporcionada pelos fatos históricos citados, o
autor supra passa a advertir acerca do perigo de se encarar os acontecimentos
como fenômenos de retorno impossível, porém parece-nos que os caminhos
legislativos e interpretativos utilizados em nossos dias ainda persistem em legitimar
as mais diversas formas de exploração e opressão do individual e coletivo.
Não se pretende, com essa exposição, inferir que as leis não devam ser cumpridas.
Ainda mais num país com a realidade político-social do Brasil, onde o
descumprimento flagrante da Constituição acarreta a instalação dos níveis mais
sérios de miséria e desigualdade. O que se busca é a obediência às leis, no entanto
que essas leis sejam pensadas e interpretadas criticamente.
Dessa forma, torna-se possível o desenvolvimento de um caminho que não trilhe os
mesmos passos dos dizeres de Engisch:
É isto e apenas isto que significa perante o Direito (...) Tudo o mais, que nas
relações humanas, o conceito de <parentesco> evoca ou por ele é
sugerido: o sentimento de solidariedade e comunidade de destino, a
recordação de antepassados comuns e de uma origem comum (...) tudo isto
tem apenas para o Direito, quando muito, um significado mediato, pois que
imediatamente apenas lhe interessam aqueles direitos e deveres que são
reconhecidos como <conseqüências jurídicas>. Engisch (1979, p. 19-20)
[grifos do autor].
Não se podem ignorar fatores sociais, haja vista que são fundamento direto da
existência tanto da sociedade quanto do próprio Direito, e mudar o foco de análise
para que esses elementos sejam tidos como inexistentes ou simplesmente não
importantes. Essa é uma atitude, no mínimo, temerária diante dos problemas que se
deram no decorrer da história por conta desse tipo de postura.
43
No entanto, ao tentar decantar a norma pura (advinda de um sistema fechado e
autônomo), Kelsen deixa de lado a conduta do homem para se concentrar no dever
ser. Passa, então, a se dedicar somente às normas e não aos fatos e, nos dizeres
de Coelho (2001, p.56) “Distingue Kelsen duas espécies de interpretação. De um
lado, a autêntica, realizada pelo órgão com competência para aplicar a norma
jurídica, e, de outro, a não autentica, procedida pela ciência do direito e pelas
pessoas em geral”.
O Direito, portanto, para esse sistema fechado, trata das normas que são produzidas
de acordo com o processo legislativo instituído e aplicado pelas figuras que detêm
competência para tal. Deixa-se de lado todo o fenômeno social, sem dinamismo e
constante regeneração, no intento de se criar um sistema imutável e estático, como
uma fórmula matemática aplicável a todo e qualquer caso que venha a se dar
perante a presença do judiciário.
Haja vista o que foi descrito por Freire em uma das citações anteriores do presente
trabalho, não como se admitir a existência de um sistema estático que tenha
condições de reger a evolução dinâmica da sociedade como bem descreve Hume,
apud Morrison.
7
Dentro desse formalismo, o Direito regula a conduta dos homens de uma sociedade
com base nas regras estabelecidas por esse mesmo Direito, na medida em que a
validade da norma e seu reconhecimento dentro daquele sistema de outras regras,
irá depender de sua compatibilidade com a norma fundamental.
Trata-se de mais um dos dogmas do sistema jurídico positivo apoiético que afasta o
Direito da realidade social cada vez mais, em um processo onde os aplicadores e
articuladores são treinados num ambiente supostamente neutro e desinteressado,
tornando o ensino jurídico acrítico e a defesa dos direitos sociais meras retóricas de
um discurso jurídico obsoleto e simbolicamente justo.
7
David Hume define que nossa personalidade se forma e se reformula com base nas impressões que
temos dos objetos que nos rodeiam a cada momento, e assim não haveria como “congelar” a
sociedade, ou fazer um corte estático de suas características, de forma a se produzir uma fórmula
aritmética que pudesse regular todas as condutas. (MORRISON, 2006, p. 127-130)
44
O formalismo jurídico, como característica sobre a qual se deseja discorrer neste
ponto é, nos dizeres de Francischetto:
O que ainda se verifica é que os juristas, em razão da cultura normativista e
positivista que absorveram em sua formação, estão excessivamente
limitados aos preceitos legais e ao formalismo processual, não tendo a
preocupação necessária com a função social da atividade que
desempenham (no prelo).
Esse aspecto, bem como os outros anteriormente descritos, faz parte de uma
herança trazida desde Coimbra, que perpassou a instalação dos primeiros cursos
jurídicos na fase do Império, percorreu os tempos da República e ainda vigora até
nossos dias.
Tanto o dogmatismo, quanto o liberalismo e o formalismo constroem uma sólida
barreira dentro das universidades que impede qualquer tipo de contato com a
realidade social que circunda esses muros. Sendo assim, os estudantes passam a
valorizar apenas o bojo de leis escritas como regra de e prática, ao passo que
desconsideram os fenômenos sociais que deram origem a essas leis, bem como as
demais ciências que colaboraram para a formação do pensamento e da filosofia
jurídica.
Nesse diapasão, desconsidera-se a Filosofia, Ciência Política, a Sociologia, como
ciências e, na esteira de Hans Kelsen, tenta-se elaborar um sistema fechado que
produza aplicadores de leis secas, totalmente alheios ao que se passa na realidade
em que estão inseridos.
Não se trata apenas do fechamento sistemático de um complexo de normas
apoiético que nega qualquer contato ou reconhecimento de elementos externos a
ele. Faz-se necessário ainda reconhecer a unidisciplinaridade que o Direito assume
com a postura formalista. A postura de assumir-se como forma de conhecimento
racional em si impede qualquer intercâmbio científico, com outras ciências, e atinge
não esse diálogo externo, como também o diálogo interno entre seus próprios
pressupostos.
Rodrigues (2005, p. 37) aponta, dentro do que denomina “As crises do Ensino do
Direito”, uma série de crenças adotadas em nosso modelo legalista, e para tanto
45
lista as seguintes: o contrato social como fundador do Estado com seus direitos e
deveres advindos desse contrato; o individuo componente da sociedade como um
ser livre e capaz de manifestar autonomamente sua vontade dentro do contrato
social e demais relações jurídicas; a figura do Estado como mantenedor da
democracia, justiça e segurança jurídica; e o direito do Estado como fonte para as
relações públicas e privadas.
O autor aponta a necessidade de uma mudança paradigmática dessa ideologia que
distancia tanto a teoria da prática e impede que o estudante de direito seja graduado
em um ambiente que proporcione o contato direto com o meio social no qual se
encontra inserido.
É o que, nos dizeres de Wolkmer (2003, p. 103-104), se define da seguinte maneira:
Mas, se a tradição do bacharelismo juridicista no Brasil foi,
predominantemente, um espaço de manutenção e defesa de uma
legalidade dissociada da sociedade concreta e das grandes massas
populares, nada impede de se redefinir, contemporaneamente, o papel do
advogado enquanto profissional e cidadão. de se repensar o exercício
da prática jurídica, tendo m conta uma nova lógica ético-racional, capaz de
encarar a produção dos direitos como inerentes ao processo histórico-
social, um Direito que transpõe os limites do Estado, encontrado-se na
práxis social, nas lutas cotidianas, nas coletividades emergentes, nos
movimentos sociais, etc.
O ideário apontado pelo autor reflete alguns dos objetivos da legislação que será
trazida à baila no próximo tópico da presente explanação, de forma a tornar possível
visualizar as intenções do legislador na positivação dos diplomas em comento, e o
contraponto dessas intenções com a realidade flagrada nos cursos jurídicos
atualmente.
Nota-se, portanto, que a influência do formalismo acarretou um engessamento da
hermenêutica restritamente àquilo que se encontra positivado, desconsiderando
juntamente com o dogmatismo, qualquer fenômeno social, mesmo que tenha
relação direta com a formação, extinção ou modificação do Direito.
Entretanto, tomando por base os diplomas legais que serão tratados no próximo
tópico depreende-se que a intenção do legislador foi a de dar uma direção diferente
da que atualmente segue o ensino jurídico no Brasil.
46
1.3 A PORTARIA 1886/94 DO MEC E A RESOLUÇÃO 09/04 DO CNE
Após a LDB e os elementos que foram trazidos como características do ensino
jurídico, aparece o ponto de encontro da portaria 1886/94 do MEC e a resolução
09/04 do Conselho Nacional de Educação.
Mas antes desses diplomas legais, vale frisar alguns acontecimentos que se deram
desde a década de 60 até a promulgação das leis em comento. Em 1962, com base
no experimento de Paulo Freire no interior de Pernambuco, o Governo passa a criar
círculos culturais pelo Brasil. Em 1964, com o Golpe Militar, educadores como Paulo
Freire, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira são impedidos de realizar sua militância em
prol da educação no país e, em 1967, o Governo institui o Movimento Brasileiro de
Alfabetização (Mobral), baseado em alguns métodos desenvolvidos por Paulo Freire.
em 1968, surge a LDB do ensino superior e, em 1971, vem a LDB do ensino
básico. Em 1983, Darcy Ribeiro cria os Centros Integrados de Ensino Público e, em
1996, é promulgada a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Tomando por base o artigo 43 de Lei 9394/96, que define as Diretrizes e Bases da
Educação, podemos apreender que a intenção do legislador a respeito da formação
dos docentes do ensino superior tem por finalidade:
I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do
pensamento reflexivo;
II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a
inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento
da sociedade brasileira e colaborar na sua formação contínua; (...)
VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à
difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da
pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição (BRASIL, 2007).
No entanto, notamos que, mesmo com as intenções sendo positivadas, a realidade
do ensino continuou eivada com as características de tecnicista
8
, acrítica
9
,
8
A forte necessidade de provisão para os cargos públicos estatais acarretou a produção de uma
massa de profissionais especializados em notariado, e não advogados, juízes, promotores,
capacitados para articular socialmente os direitos da população.
9
O caráter acrítico latente nos estudantes de direito decorre do fechamento sistemático aplicado ao
Direito, que impede o investigador de entrar em contato com a realidade social, pensá-la e passar a
atuar criticamente em sua transformação.
47
dogmática, formalista e liberalista, que eram presentes desde o início de seu
processo de criação.
De acordo com Rodrigues (2005, p. 77-78), em 1993, o MEC nomeou uma comissão
integrada por especialistas em Direito, que passou a realizar uma rie de reuniões
regionais com dirigentes de cursos e centros acadêmicos. Após três reuniões (nas
regiões sul, norte e nordeste, e Sudeste) foi realizado o Seminário Nacional dos
Cursos Jurídicos, cujo tema principal era a elevação de qualidade e avaliação
desses cursos e seus currículos.
O autor supra define a legitimidade das decisões votadas nesse seminário da
seguinte maneira: ”Em primeiro lugar, as decisões que ele contém possuem
legitimidade. Todas elas nasceram em seminários regionais. (...) Em segundo lugar,
foram definidas como propostas oficiais da comunidade acadêmica para serem
encaminhadas ao MEC” (RODRIGUES, 2005, p. 80).
Dessa forma, o que foi disposto, votado e aprovado seguiu para o Ministro de
Educação, que ordenou a publicação das disposições sob o manto da portaria 1886
de dezembro de 1994, o que ocorreu em janeiro de 1995. Mais uma vez, o legislador
segue e institui novos diplomas para tentar solidificar as mudanças necessárias no
ensino.
Em 1994, o MEC baixou a portaria 1.886, que, em seu art. , instituiu as três
colunas de base na formação do aluno, que teria sua graduação sustentada pelo
ensino, pesquisa e extensão.
Para o diploma legal, os conceitos de ensino, pesquisa e extensão devem ser
encarados da seguinte maneira:
Art. 4º Independente do regime acadêmico que adotar o curso (seriado,
créditos ou outro), serão destinados cinco a dez por cento da carga horária
total para atividades complementares ajustadas entre o aluno e a direção ou
coordenação do curso, incluindo pesquisa, extensão, seminários,
simpósios, congressos, conferências, monitoria, iniciação científica e
disciplinas não prevista no currículo pleno.
Art. 14 As instituições poderão estabelecer convênios de intercâmbio dos
alunos e docentes, com aproveitamento das respectivas atividades de
ensino, pesquisa, extensão e prática jurídicas. (BRASIL, 2007)
48
Além dessa, outras modificações foram trazidas pelo diploma citado, como a
exigência de monografia no final do curso, a fixação de carga horária mínima de 300
horas para estágio curricular com atividades práticas, dentre outras (RODRIGUES,
2005, p. 95-96).
De acordo com Rodrigues (2005, p. 97), a portaria 1886/94 surge após a discussão
de uma série de fatores, como o rompimento com o positivismo e com o conceito de
que apenas o bacharel em direito poderia exercer atividades forenses, a
desvinculação com a auto-suficiência do Direito e da educação apenas dentro de
sala de aula, bem como a formação interdisciplinar do estudante.
Em 1995, a lei 9131 definiu a competência do Conselho Nacional de Educação para
o estabelecimento de diretrizes e bases para a educação, o que se inicia em 1997
com o parecer do CNE 776/1997, sempre pautado na necessidade de assegurar a
flexibilidade e qualidade do ensino fornecido aos estudantes. Esse parecer fez com
que o MEC, através do edital 4/1997, convocasse as instituições de ensino superior
para apresentarem propostas para criação das novas diretrizes de ensino para os
cursos.
Em 2001, o Congresso aprovou a lei 10172/01 que trazia o Plano Nacional de
Educação, de acordo com a dicção do artigo 214 da Constituição Federal
10
, a saber.
Na parte que se refere à educação superior (RODRIGUES, 2005, p. 107), o PNE
determinava que as IES deveriam seguir diretrizes curriculares que assegurem a
necessária flexibilidade e diversidade de seus programas de estudos, de forma a
atender as peculiaridades regionais de cada localidade. Assim, essa determinação
não necessitava mais de ser extraída do texto da LDB por meio de interpretação.
Em 2002 (RODRIGUES, 2005, p. 108-109) foi emitido o parecer n. 146 CNE/CES
que, na esteira de seus antecessores, repetia o intento de conferir maior autonomia
às IES e proporcionar a reestruturação das atividades de ensino, pesquisa e
extensão sob as seguintes bases:
10 Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando à
articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do
Poder Público que conduzam à: I - erradicação do analfabetismo; II - universalização do atendimento
escolar; III - melhoria da qualidade do ensino; IV - formação para o trabalho; V - promoção
humanística, científica e tecnológica do País. (BRASIL, 2007)
49
Art. 5º As atividades complementares são componentes curriculares que
possibilitam o reconhecimento, por avaliação, de habilidades,
conhecimentos e competências do aluno, inclusive adquiridas fora do
ambiente escolar, incluindo a prática de estudos e atividades
independentes, transversais, opcionais, de interdisciplinaridade,
especialmente nas relações com o mundo do trabalho e com ões de
extensão junto à comunidade.
Art. 8º O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do
graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de
análise, (...) interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais,
aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade
e aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica (..).
Art. O curso de graduação em Direito deve possibilitar a formação
profissional que revele, pelo menos, as seguintes habilidades: VI
Utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de
reflexão crítica.
Nota-se que o intuito dos conselhos é o de fornecer uma formação de caráter
humanístico e multi-disciplinar, com reflexos de criticidade sobre o processo de
aprendizagem, e forma que o aluno possa desenvolver a capacidade autodidata,
para interagir com o fenômeno social e transformá-lo de forma dinâmica.
De acordo com Rodrigues (2005, p.114-123), esse parecer, homologado,
despertou a discordância de organismos como a OAB (que impetrou mandado de
segurança no STJ, que concedeu o pedido contra o referido parecer
11
), ABEDi e
Colégio Brasileiro das Faculdades de Direito.
O debate entre OAB e CNE foi mediado pela ABEDi, que, por algumas reuniões, e
duas audiências públicas apresentou novas propostas, visando adequar os
interesses envolvidos e solidificar a base do ensino superior no Brasil. Após a
realização dos debates, o parecer 146 acabou por conferir corpo ao que, em 2004,
seria a Resolução 09 do CNE.
A portaria 1886/94 do MEC foi posteriormente repetida pela Resolução 09/04 do
CNE, que adicionou em seu art. a questão humanís tica na formação superior
como segue:
Art. 3º. O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do
graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de
análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada
argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e
sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a
11
O Mandado de Segurança teve por objetivo combater a redução da duração do curso de cinco para
três anos por violar a lei 9131/95.
50
capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica,
indispensável ao exercício da ciência do Direito, da prestação da justiça e
do desenvolvimento da cidadania. (BRASIL, 2007)
Com essa nova redação, o artigo da portaria 1886 deixa de simplesmente
determinar a aplicação do ensino, pesquisa e extensão, com o caráter único de
proporcionar ao estudante de direito uma formação fundamental, sócio-política e
técnico-jurídica, para então buscar uma ótica humanizante desses futuros
profissionais, num ambiente em que o conhecimento possa florescer livre dos
grilhões do dogmatismo jurídico exacerbado em nosso ensino superior do Direito.
Lendo em conjunto os diplomas legais supracitados, encontramos armas deixadas
pelo legislador para a concretização de um mecanismo de ensino e aprendizagem,
por meio do qual é possível ocorrer a formação de juristas conscientes dos
problemas sociais e aptos a desenvolver soluções práticas para esses entraves.
Nessa etapa, o ensino jurídico é descrito como aquele que prima pela figura do
aluno como sujeito passivo no processo de ensino, cuja relação com o professor é
vertical, dentro de uma aula-conferência que ignora por completo as atividades de
pesquisa e extensão.
Nessas conferências, o que ocorre é a mera leitura dos códigos, onde o aluno
aprende a lei, mas não seus pressupostos sócio-político-econômicos, tudo sempre
sob o prisma positivista e dogmático. Sendo assim, apenas recebe o depósito pronto
do professor e não aprende a raciocinar, pois recebe um paradigma pronto e tido
como imutável.
A dúvida surge quando, mesmo com as possibilidades criadas pelo legislador, nosso
ensino ainda continua tecnicista e acrítico, formando apenas um mero quadro
funcional para o Estado. Trata-se de um paradigma ideológico que se encontra
instaurado no Estado, na sociedade e, consequentemente, nas instituições de
ensino superior, o que será tratado no quarto capítulo dessa dissertação.
No entanto, desde podemos notar que as características tanto do ensino jurídico,
quanto do próprio aspecto ideológico da formação do Estado brasileiro nos dão
51
indicativos sérios de que o apego pela legislação como solução para os problemas
enumerados tem sido uma constante em nosso país.
O formalismo positivista que vige atualmente encara a legislação como única saída
para a solução das críticas levantadas, o que traz à tona um problema ainda maior.
Com o divórcio entre o Direito e a realidade social trazido pelo dogmatismo
positivista, fica muito difícil superar o paradigma vigente, pois coloca-se a
responsabilidade pela solução de um problema numa alternativa totalmente alheia à
causa desse problema.
Sendo assim, inúmeras leis sucedem pelos tempos e, a cada dia, o Direito se
encontra mais afastado da realidade que pretende regular, num movimento
constante de distanciamento dos institutos jurídicos e seus equivalentes reais.
Seguiremos tratando acerca da extensão universitária, objeto de estudo da presente
pesquisa e pilar escolhido como recorte metodológico investigatório. Porém,
independente das circunstâncias acima elencadas, não podemos nos furtar de
considerar o que está positivado em nosso ordenamento, pelo simples fato de que o
paradigma interpretativo não possibilita sua efetivação.
De acordo com a Resolução citada anteriormente, podemos extrair as intenções do
legislador acerca da metodologia e aplicação da extensão no ensino jurídico
brasileiro:
Art. As atividades complementares são componentes curriculares
enriquecedores e
complementadores do perfil do formando, possibilitam o reconhecimento,
por avaliação de habilidades, conhecimento e competência do aluno,
inclusive adquirida fora do ambiente acadêmico, incluindo a prática de
estudos e atividades independentes, transversais, opcionais, de
interdisciplinaridade, especialmente nas relações com o mercado do
trabalho e com as ações de extensão junto à comunidade.
Nota-se que o diploma legal em voga estimula a busca de conhecimento fora dos
limites físicos da instituição de ensino, frisando a importância da interdisciplinaridade
no que tange à prática da extensão.
Mas para que possamos entender de maneira mais ampla a coluna do tripé ensino-
pesquisa-extensão, sobre o qual desejamos discorrer, faz-se necessário um estudo
52
mais aprofundado sobre as nuanças que determinaram a formação da extensão
universitária e que instituíram seu modo de operação nos dias atuais.
53
2 O PAPEL SOCIAL DAS UNIVERSIDADES E DAS ATIVIDADES DE
EXTENSÃO
2.1 O PAPEL SOCIAL A SER DESEMPANHADO PELAS
UNIVERSIDADES
O presente tópico tem o condão de tentar reunir as características atribuídas à
Universidade, com base em sua função social em meio aos fenômenos que a
circundam no dia-a-dia social.
De acordo com os dizeres de Silva (2002, p. 113):
Ensinando tais conhecimentos, [a universidade] prepara homens para
atuarem em lugares sociais, contribuindo para a inserção social dos
indivíduos. Por estar inserida na diversidade e complexidade das relações
sociais, ela própria é, ao mesmo tempo, uma relação social, expressão e
orientadora de relações sociais.
O autor em comento (SILVA, 2002, p. 137) define que esse papel social da
Universidade sempre se adaptou à época em que era discutido. Na universidade
medieval, por meio da influência papal, eram moldados os indivíduos que iriam
preencher os quadros funcionais da Igreja. Após o advento da Revolução Industrial,
a Universidade mudou suas funções, para formação de técnicos que pudessem
assumir os postos do Estado.
Como entidade voltada para a disseminação do conhecimento sempre associado ao
ensino, a Universidade necessitava de autonomia perante a Igreja, o Estado e a
burguesia vigente em sua época. No entanto, mesmo que dependa do Estado para
financiamento da pesquisa, por exemplo, ela deve se encontrar em posição de
autonomia científica, para que possa produzir com legitimidade o conhecimento que
irá proporcionar o desenvolvimento da sociedade e do próprio Estado.
Bittar (2006, p. 89-90) remonta o início da vigência universitária desde a comunidade
pitagórica, onde indivíduos se reuniam em torno da discussão de saberes
intelectuais e espirituais em sua formação acadêmica.
54
Define, porém, a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles como os dois
exemplos mais nítidos de locais de formação cultural, onde os iniciados eram
preparados intelectual e racionalmente para assumirem os postos de governo na
Grécia Antiga.
No caso de Roma, o autor associa o início das atividades universitárias com o
advento do Ateneu, local onde os detentores do saber se reuniam para discuti-lo e,
dessa forma, prepararem os jovens em três etapas (educação elementar, escolas do
gramático e escola do retórico) que se assemelham ao ensino básico, secundário e
posteriormente o universitário (BITTAR, 2006, p. 90).
Nessa fase, e durante um longo período, a autonomia universitária era simplesmente
impossível, face à forte influência eclesiástica que difundia os dogmas cristãos, e
que impunha a vinculação dos mesmos ao que era ministrado como conhecimento.
Bittar (2006, p 92) afirma que esse ambiente autônomo iria aparecer em meados
dos séculos XI a XIII com os centros universitários de Paris, Oxford e Bolonha,
quando o ensino laico passa a ser disseminado em um ambiente com condições
sociais, políticas e econômicas favoráveis. Segundo ele,
A gestação da cultura universitária foi longa, e não sem atropelos. Para o
nascimento do perfil de ensino cultivado pela Universidade, foi necessária a
ruptura com certos dogmas, foi necessária a vitória sobre certas
resistências sociais, foi necessária a reivindicação de espaços, foi
necessária a adoção de autorizações de ensino, até que se firmasse esta
categoria como forma autônoma de ensino.
É importante frisar que a Universidade não surge como tema incitado pela Igreja ou
Estado, mas sim como objeto de articulação docente e discente, em que os centros
de fomento de conhecimento passam a tomar forma a partir da decorrência dos
séculos.
O ensino foi sempre tido como função principal da Universidade, ao passo que à
pesquisa vem a ser dada maior importância com a Revolução Industrial e as novas
demandas que surgiram com seu advento. No entanto, não há como falar em função
social da universidade sem tocar no recorrente tema da extensão universitária, que,
55
em tese, buscaria a integração social dos indivíduos com os conhecimentos
produzidos na Universidade (SOUZA JUNIOR, 2000, p. 120).
De acordo com Souza Junior (2000, p.120), as universidades foram criadas no
Brasil, e depois de bastante tempo surge a necessidade de se construir um
conceito e características do que seria a extensão (tema que setratado no item
2.3) praticada por essas universidades. Sendo assim, pela indissociável relação
entre extensão e função social da Universidade, nota-se que as IES foram
estabelecidas no país, e somente depois de um longo período foi iniciada a
discussão acerca de sua função social.
Mas após o surgimento e desenvolvimento da Universidade e de suas
características, qual – de fato – seria sua função perante a sociedade que se
encontra além dos muros desse local de fomento de conhecimento?
De acordo com Silva (2000, p. 120), a função social da Universidade pode ser
resumida no intuito de “colaborar na integração social da maioria dos indivíduos”.
Essa função concede à Universidade o status de antena sensível para os
acontecimentos sócio-político-econômicos que se dão na sociedade, de forma a
articular (com base nos conhecimentos produzidos) maneiras de atualizar os
indivíduos a se relacionar com esses fatores e capacitá-los a produzir e transformar
a realidade que os circunda.
No entanto, ao fazer menção do fato de que a definição da função social da
Universidade não surge em conjunto com a sua própria criação, Silva (2000, p.121)
descreve a dificuldade de se firmar um conceito norteador da questão. Trata-se de
características e conceitos que se encontram em constante movimento e que
assumem diferentes formas de acordo com os interlocutores que assumem o papel
de defini-los
12
.
Não os conceitos e características citados acima possuem esse dinamismo, mas
também a própria sociedade se move a passo apressado, levada pelo progresso,
12
A autora define que a extensão universitária e consequentemente, a função social da universidade
são temas que se adaptaram às vozes de seus interlocutores no decorrer dos tempos, mudando ora
quando eram ditos pelo movimento estudantil, ora quando eram tratados pelo Estado, ora quando
foram assumidos pelas IES.
56
desenvolvimento, globalização, etc. Esses fatores que surgem sobre o manto da
solução de problemas na verdade arrastam a sociedade a um paradoxo onde
conhecimento não importa emancipação, e sim alienação.
E sempre que a crise social aumenta, mais se exige da Universidade. Mais
problemas são trazidos aos intelectuais e mais soluções são cobradas. Importa dizer
que (como será dito no próximo subitem) ao passo que soluções são cobradas
pela própria função social que a Universidade assume – a instituição de ensino se vê
diante de uma crise que afeta sua própria identidade.
Silva (2002, p. 110-111) descreve os diferentes conceitos que são lançados e
defendidos por aqueles que participam das discussões acerca da função social da
Universidade, na medida em que, de um lado, prega-se a necessidade de maior
autonomia científica (intelectuais e dirigentes de IES) e do outro busca-se firmar a
Universidade para atendimento das necessidades do mercado (membros do
governo e empresários).
O autor remete essa crise de identidade ao próprio caráter democrático da
Universidade, que por ser aberta ao fenômeno social, encontra-se sempre
recebendo o impacto de diversas vozes, quase sempre antagônicas e que sempre
se modificam com o decurso do tempo, o que demanda a constante e sensível
adaptação da Universidade à realidade em que se encontra envolta.
Nessa realidade de constante transformação, Silva (2002) faz um apanhado das
funções sociais da Universidade ao longo da história, iniciando o percurso pela
Grécia e Roma antigas, posteriormente sob a influência da Igreja e,
subsequentemente, do Estado laico, como foi explanado nos parágrafos anteriores.
O autor referenciado descreve esse período até o século XVIII como aquele em que
a unicidade dogmática do saber religioso e a formação técnica exigida pela política
promoveram o fechamento periférico da Universidade para a realidade social.
A partir da Revolução Francesa, as universidades assumiram o modelo positivista-
técnico e, ao assumirem o modelo estatal e não o público, passaram a figurar como
braço de atuação política. Com o avanço do capitalismo na Europa, esse modelo de
57
fortalecimento das instituições se adequou de forma a legitimar o domínio da
hegemonia vigente, por meio do adestramento de intelectuais ávidos pela integração
social (SILVA, 2002, p. 126-127).
Na Europa, as universidades assumiram o papel de promoção social dos indivíduos,
porém, com base na afirmação das idéias nacionais de cada Estado, no progresso
econômico e na formação das elites sociais (SILVA, 2002, p.129). Na Alemanha,
filósofos como Humboldt buscaram a autonomia universitária perante a Igreja, o
Estado e a burguesia, no entanto, com a aproximação entre Estado e Indústria, a
Universidade se viu obrigada a alinhar sua pesquisa e suas finalidades com os
interesses dessa coalizão.
Sob influência européia, as universidades na América foram instauradas com a
função de manter a hegemonia dominante, capacitar os filhos da burguesia aqui
então instalada, e propagar a fé cristã dos colonizadores. Suas funções variam de
acordo com a abordagem feita aos EUA, América Latina espanhola ou portuguesa.
Em suma (SILVA, 2002, p.135), as universidades napoleônicas (modelo francês)
buscavam a racionalização da vida social e do Estado forte e tiveram forte influência
na América Latina. As humboldtianas (modelo alemão) visavam preservar a
pesquisa e a formação profissional baseadas na ciência, ao passo que as inglesas
disseminavam a racionalidade voltada para a produção do sistema industrial e de
mercado.
Fica claro que, do contraponto entre a função social utópica da Universidade e o
caminho que a mesma percorreu na criação e desenvolvimento de sua identidade,
resulta um paradoxo que gera os mais diversos conflitos estruturais e institucionais
dentro das instituições de ensino superior.
Nota-se que, embora assumindo funções, finalidades e ideais distintos, a
Universidade seguiu o percurso de sua criação e evolução sempre vinculada a
algum interesse dominante. Dessa maneira, é possível concluir que sua
característica de massificação do ensino e capacitação técnica para o mercado de
trabalho reflete a influência da combinação dos interesses estatais, industriais e de
mercado, sempre alinhados com o capitalismo crescente após a Revolução
58
Industrial, e que perduram até nossos dias sob o manto de uma racionalidade que
será discutida no próximo item deste capítulo.
2.2 A UTILIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE COMO INSTRUMENTO DE
DOMINAÇÃO SIMBÓLICA
Como foi analisado anteriormente, a Universidade passou desde sua criação, até
os dias atuais por um período em que permaneceu sempre a serviço de algum
interesse em particular. Primeiramente o eclesiástico, em seguida o político e por fim
o de mercado.
Não se tratam de interesses necessariamente antagônicos, haja vista que co-
existiram sempre com a predominância de algum em particular, no entanto, essa
diversidade de objetivos trouxe uma crise de identidade nas IES, crise essa que tem
o condão de apagar sua função social e consequentemente, sua própria identidade
como promotora e propagadora do saber autônomo e norteadora de soluções
direcionadas aos conflitos sociais.
Santos (2005, p. 187) descreve as dificuldades enfrentadas pela Universidade em
meio a cobranças feitas pela sociedade e pelo próprio Estado, e ainda identifica o
paradoxo entre o fechamento institucional como meio de sustentar sua existência,
face às necessidades de mudança das IES.
Souza Junior (2000, p.15) define a crise que se impõe com base nessa contradição
da seguinte maneira:
As universidades sempre serviram a alguém, fosse no ensino, na pesquisa
ou Extensão; sempre mantiveram um compromisso com algum grupo de
seu meio social. A Universidade Brasileira, assim como as demais
Universidades dos países capitalistas, tem sofrido uma situação de
ambigüidade, pois, ao mesmo tempo que reproduz a estrutura de poder da
sociedade e se apresenta como instrumento de ‘utilização do saber’,
procura também exercer o papel de crítica do momento que vivencia e de
geradora do conhecimento.
O paradoxo firmado entre função social da universidade e o sistema capitalista de
produção de mercado gerou uma adaptação dos objetivos iniciais e basiladores das
59
IES brasileiras, separando o ensino do saber, e criando uma fábrica de profissionais
adestrados por meio de um ensino massificante, que não representa apenas um
fluxo de entrada maior nas universidades, mas também uma diminuição na
qualidade do ensino oferecido.
Desse conflito ideológico, surge o que nos dizeres de Silva (2002, p. 107):
Na década de 70, e mesmo na de 80, no Brasil, ela [universidade] se movia
pelos princípios da segurança, desenvolvimento econômico e integração
nacional, implícitos aos interesses da política antidemocrática do Estado (...)
Compreendia-se que a universidade deveria gerar lucro social (adestrar
mão-de-obra para o mercado) e de que apostar nela seria investir.
A partir desse choque entre função social da universidade e a ideologia mercantilista
potencializada com o capitalismo produtivista caso a universidade decidisse por
manter o seu caráter de transmissão, produção e extensão do ensino, esta se veria
num antagonismo irremediável com o Estado. Sendo assim, por meio da mitificação
da cultura e a banalização de suas obras, impede-se o seu acesso por parte da
população necessitada, que recebe apenas um “guia prático para viver
corretamente” (SILVA, 2002, p. 107).
Nota-se que o correto desenvolvimento tanto do ensino, quanto de pesquisa ou
extensão, faz parte da própria função social da universidade e compreende sua
própria identidade como formadora e transformadora de paradigmas, de forma que
não como tratar a extensão universitária, no divórcio do choque entre ideologia
libertadora e ideologia tecnicista.
Silva (2002, p. 108-111) descreve o conflito das diferentes concepções de extensão
com base no próprio embate acerca de qual seria a real função social da
universidade. O autor em comento considera, para tanto, além da enorme
diversidade organizacional das IES, o choque entre três diferentes ideologias.
Primeiro, a ideologia dos agentes universitários voltados para a comunidade
científica, que buscam incutir no discurso científico uma postura social. Em segundo
lugar, a concepção mercantilista, interessada apenas no resultado imediato e por
fim, a postura daqueles que visam quase que a uma substituição do Estado por
60
parte da universidade, que receberia um formato pró-ativo perante os problemas e
demandas sociais.
De fato, são diferentes conceitos acerca de qual postura a universidade deveria
assumir perante o território externo aos muros institucionais, no entanto não se trata
apenas da criação de diretrizes para o desenvolvimento de uma atividade de
extensão, e sim a determinação da postura que a IES irá assumir perante a
sociedade que a circunda.
Quando tratamos da universidade em si, a própria autora supra reduz o conflito para
dois extremos, ao invés de três:
De um lado, estão os intelectuais, dirigentes de universidades e
associações de docentes, que defendem maior autonomia científica, como
a única forma da universidade cumprir suas funções sociais; de outro lado,
estão os membros do governo e empresários, que tentam atribuir-lhe
funções bem mais próximas das necessidades do mercado permeado pela
cultura do lucro privativo (SILVA, 2002, p. 110).
Essa tensão acabou por definir, de certa forma, a ideologia dominante entre as
instituições públicas e privadas que buscaram, consecutivamente (porém não de
forma exclusiva), atividade social e lucro.
Santos (2005, p. 188-189), de acordo com pesquisa da OCDE (Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico), enumera dez funções principais
desempenhadas pelas universidades, multiplicidade essa que acarreta a
incompatibilidade entre algumas dessas funções.
(...) o relatório da OCDE sobre as universidades atribuía a estas dez
funções principais: educação geral pós-secundária; investigação;
fornecimento de mão-de-obra qualificada; educação e treinamento
altamente especializados; fortalecimento da competitividade da economia;
mecanismo de selecção para empregos de alto nível através de
credencialização; mobilidade social para os filhos e filhas das famílias
operárias; prestação de serviços à região e à comunidade local; paradigmas
d aplicação de políticas nacionais (...) preparação para os papéis de
liderança social.
A incompatibilidade entre determinadas funções não representa o cerne da questão.
O ponto chave da discussão, que foi levantado anteriormente, ilustra o choque
entre determinadas funções e a própria natureza da universidade, o que gera, em
61
diversos níveis, a dificuldade de relacionamento da universidade com o próprio
Estado e com a sociedade.
Mais uma vez, nos deparamos com a questão entre cultivar a produção da alta
cultura
13
e a produção de saberes dios, destinados à capacitação para funções
técnicas. Trata-se do choque entre perfil produtivista e perfil científico-sócio-
educativo.
Desse embate, Santos (2005, p. 190) extrai três diferentes crises da Universidade, a
saber: crise de hegemonia, crise de legitimidade e crise institucional. No que tange à
crise de hegemonia, o autor define a mesma como a incapacidade de equilibrar a
contraditoriedade de suas funções e, como resultado disso, a sociedade se vê
obrigada a recorrer a meios alternativos para sanar as necessidades.
Ao tratar da crise de legitimidade, segue definindo a mesma no momento em que
“uma dada condição social deixa de ser consensualmente aceite” (SANTOS, 2005,
p. 190) e, dentro da universidade, esta crise se manifesta na visível falência do
compromisso social firmado institucionalmente.
Por fim, como produto dos sintomas identificados na ruptura causada pela
incompatibilidade das funções sociais da universidade e a ideologia de mercado
instaurada nessas instituições, o autor supra trata da crise institucional, que ocorre
com a imposição de uma estrutura organizacional sempre mais eficiente e produtiva.
Após a reunião dos entendimentos dos autores citados, surge o questionamento
acerca de como se daria essa influência negativa sobre a função social da
Universidade, de forma a anular tanto a transmissão e produção da cultura
libertadora, quanto o alcance externo desse saber. Trata-se do tema que será
abordado a seguir.
13
Santos (2005, p. 190) define Alta Cultura como o conjunto de “conhecimentos exemplares
necessários à formação das elites de que a universidade se tem vindo ocupar desde a Idade Média”.
62
2.2.1 O poder simbólico
O tema a ser tratado neste item de capítulo sugere uma forma de dominação que
não envolve a manifestação física de poder. Trabalha com a inculcação de dogmas
e ideologias com objetivo de alijar mentes e impedir a frutificação do pensamento
emancipatório que se busca originariamente com o ensino, a pesquisa, e
consequentemente, a extensão.
De forma a tangenciar aquilo que se encontra positivado na lei quando tratamos
dos meios que o legislador colocou à disposição da sociedade para fazer valer os
objetivos da educação no país esse “poder” faz com que o agente responsável
pelo desenvolvimento e propagação do saber aja crendo que sua atitude é legítima e
extensionista, e que o destinatário dessa ação absorva também como legítimo esse
ato. Simboliza-se a imagem da eficácia técnica, jurídica e social
14
da Constituição
Federal, mas, na realidade, joga-se por terra o objetivo principal da Universidade.
“O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual pode ser exercido
com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou
mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2002 p. 7-8). Este é o conceito básico que o
próprio autor descreve, e de onde partiremos para tecer algumas considerações
sobre essa forma peculiar de dominação.
O instituto que desejamos tratar opera por meio da construção de uma realidade
baseada em estrutura definida, haja vista que os símbolos são instrumentos de
integração social trabalhando na formação do consenso entre as inteligências. A
atuação dessa forma de controle se pelos mecanismos de disseminação cultural,
como transmissores de comunicação entre os pertencentes daquele nicho social,
meios esses que podem ser exemplificados na escola, na família, na igreja, etc.
O sucesso dessa atuação acontece quando, no dominado, é criada uma sensação
de legitimidade da dominação, mecanismo que atua no inconsciente, mas que
projeta efeitos alienantes capazes de modificar a realidade. se encontra a
14
Carvalho (2004, p. 52-56) define eficácia técnica como atributo da norma em descrever fatos, que,
se ocorrerem, irão desencadear efeitos jurídicos. Eficácia jurídica é atributo do fato de estar agregado
à produção desses mesmos efeitos jurídicos e, por fim, eficácia social é a resposta da comunidade,
ou cumprimento das normas por seus destinatários.
63
violência simbólica criada na psiquê e manifesta na realidade social. A violência não
é um instrumento para se atingir um fim, mas uma estratégia caracterizada por
uma racionalidade política que cria e participa da rede de poder, em que estão
incluídos conceitos de instituição, “microfísica do poder” e tecnocracia, modificando
as relações interpessoais para o deslinde do objetivo que se deseja alcançar.
Bourdieu (1983, p.20) demonstra o funcionamento e estabelecimento desse poder
simbólico em outra de suas obras, ao descrever a imposição de um arbitrário cultural
por meio da repetida inculcação, em que, após esse processo, cria-se um hábitus no
sujeito que se encontra na base da dominação. Esse hábito significa a
“interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a
cessação da AP [ação pedagógica]” (BOURDIEU, 1983, p.44).
Ainda de acordo com Bourdieu (2002, p. 48), “a ideologia o aparece e nem se
assume como tal, e é desse desconhecimento que lhe vem a sua eficácia simbólica”.
Tratamos, portanto, de uma ingerência subjetiva que cria meios de dominação e
prepara terreno rtil para atuação do poder dominante, por meio de signos que, ao
mesmo tempo, criam e distorcem a realidade.
Nos dizeres de Faria (1988, p.130), “no campo do direito, ‘o jurista faz acreditar
graças à mistificação verbal, recorrendo aos atos de fabulação na realidade
substancial de certas instituições”, e segue dizendo que:
Ao mesmo tempo, como a efetividade das instituições de direito depende da
internalização dos valores de obediência, as leis e os digos são
revestidos de aparente neutralidade o que é possível graças à perversão
ideológica propiciada pelos mecanismos de violência simbólica, ocultando e
dissimulando as funções diretivas, operativas e fabuladoras das normas sob
o manto das funções informativas inerentes às prescrições jurídicas.
(FARIA, 1988, p. 130).
Nota-se que, sem a utilização de uma ideologia pelo menos aparentemente
lógica e consistente, não há como se convencer o indivíduo a agir ou deixar de agir
de determinada maneira.
Chaui faz um interessante apanhado acerca do modus operandi da ideologia e seu
papel na propagação da violência simbólica:
64
(...) a ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é uma
maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si
mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa
aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimos de
ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do
processo histórico, é o ocultamento ou a dissimulação do real. (...)
Universalizando o particular pelo apagamento das diferenças e
contradições, a ideologia ganha coerência e força porque é um discurso
lacunar que não pode ser preenchido (CHAUÍ, 1989, p.3).
Mas, conforme os próprios dizeres de Bourdieu (2002, p. 47), o poder simbólico “(...)
se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder
ao dominante, quando ele não dispõe (...) para pensar sua relação com ele (...)”. E
de acordo com os dizeres de Brandt (2006):
O poder simbólico é capaz de fazer ver e crer, de confirmar ou de
transformar uma visão de mundo. Os sistemas simbólicos, enquanto
instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de
conhecimento, cumprem a sua função política de instrumentos de
imposição ou legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a
dominação de uma classe sobre outra (caracterizando a violência
simbólica), dando o reforço da sua própria força às relações de força que as
fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Max Weber,
citado por BOURDIEU (2002, p. 11) para a "domesticação dos dominados".
(2006)
Essa descrição retrata o “conformismo lógico” descrito por Brandt (2006), na medida
em que o poder simbólico é um poder quase mágico pelo qual permite alcançar o
que seria possível por meio da força física, pois consegue se passar por legítimo
quando, na realidade, é nada mais que arbitrário e, nesse diapasão, a autora segue
definindo que:
Atualmente, o poder simbólico concentra-se nas mãos daqueles que detêm
o controle dos grandes grupos de comunicação: do conjunto dos
instrumentos de produção e de difusão dos bens culturais. Estes difundem
as tomadas de decisões ideológicas dos dominantes por meio de
estratégias de reprodução que tendem a reforçar, dentro e fora da classe, a
crença na legitimidade da dominação de classe, impondo a perpetuação
das estruturas que disseminam tais disposições de dominação como fatores
naturais
.
Sendo assim, nos vemos no meio de uma disputa em que não se utiliza mais a
imposição coatora pela vis física, mas onde se estrutura uma paisagem inexistente
que possibilita conduzir os cidadãos pelos caminhos que trarão a manutenção da
hegemonia que se deseja controlar. E se o cerne do foco de dominação necessita
do domínio de grupos de comunicação, produção e difusão do saber e da cultura, o
que dizer sobre a Universidade?
65
Faria (1988) discorre sobre a utilização do direito como instrumento de mudança
social, e seu papel na manutenção da hegemonia dominante em conjunto com
outros fatores de atuação. Não se pode olvidar que a IES funciona como meio para
moldar as futuras elites do saber e que a perversão de seus valores institucionais
seria um importante passo para a inculcação da ideologia que se deseja trazer ou
manter no poder.
No que concerne ao poder judiciário, faz um apanhado acerca daquilo que chama de
perversão ideológica do princípio da legalidade, pela comunhão da coação estatal
com outros meios de controle social, com objetivo de cooptar os atores desejados
por meio da aplicação de sanção e prêmio como veículo introdutor da mensagem
que se deseja interpenetrar nas mais variadas camadas sociais. Com base no que
foi dito no capítulo anterior, e nas palavras do mesmo autor, essa forma de
socialização é:
(...) o processo por intermédio do qual os indivíduos internalizam a cultura
especifica do seu grupo. Como decorrência dessa internalização, eles
aprendem a aceitar de modo acrítico a programação social dominante e agir
em conformidade com ela. Essa adesão ‘não questionadora’ é produzida
por uma sucessão de universos simbólicos articulados. Tais universos
mantém a ordem social estabelecida ao mesmo tempo em que criam, por
sua vez, novas estruturas simbólicas, as quais sustentam aqueles universos
de verdades indiscutíveis. (FARIA, 1988, p. 125)
Soma-se a “hipertrofia do executivo, (...) perda da titularidade de iniciativa legislativa”
com o esvaziamento do judiciário, e se forma caminho livre para o surgimento de
poderes autônomos, que se desenvolvem no âmbito das instituições e, nos dizeres
do autor:
Assim, ao se pautarem por ações políticas crescentemente autônomas,
regulando-se através de dispositivos interna corporis, tais centros escapam
aos controles jurídicos ortodoxos e acentuam o intercruzamento das frações
de classe(s) domintante(s) com segmentos tecnocráticos. (FARIA, 1988, p.
150)
E como trata da atuação simbólica das hegemonias paraestatais, não deixa de
abordar a obscuridade dessa atuação, na medida em que se pela racionalidade
dos projetos de expansão econômica e desenvolvimento social, bem como a
66
combinação das sanções premiais e as formas difusas de dominação, todas
buscando a concretização da eficácia social.
15
Ao passo que o Estado busca se resguardar em uma suposta neutralidade, que, na
verdade, nada mais é do que o escape à impossibilidade de administração, cria-se
um ordenamento cada vez mais abstrato e racional, que se justifica na introdução de
incertezas, sancionando, premiando e facultando a esses órgãos paraestatais a
dominação difusa dos anseios sociais. “Rejeitar as regras explícitas e implícitas
dessa estrutura, assim, é rejeitar a própria sociedade” (FARIA, 1988, p. 128).
É por essa razão, justamente, que a efetividade das instituições de direito
sempre depende da internalização do sentido de obediência: sem um
reforço ideológico de um sentimento genérico da legalidade, por meio do
qual os indivíduos são estimulados a assumirem sua “quota de
responsabilidade” na defesa dos valores considerados superiores, a
segurança formal propiciadas pelas normas jurídicas por si não
consegue manter a estabilidade social. (FARIA, 1988, p. 128) [grifo
nosso].
E para que as formas difusas de propagação das ideologias desejadas pela máquina
dominante possam atuar, necessário se faz a criação de anéis de envolvimento
social, que trabalhem nas mais diversas camadas da sociedade, anéis esses que
atuam por entre a lacunas de um ordenamento obsoleto, dogmático e distante da
realidade social. E no meio de toda essa burocracia, que cria os “anéis”
16
descritos
pelo autor, quem detém o poder o as instituições informais, que por meio de um
ordenamento formal disseminam suas ideologias, tendo papel fundamental na
manutenção desses interesses as formas simbólicas de dominação.
o que seu viu (...) foi o rompimento dos padrões de unidade e hierarquia
comuns aos princípios da constitucionalidade, legalidade e certeza jurídica
acompanhado da substituição das estruturas formais por intrincadas
práticas organizacionais informais. (FARIA, 1988, p. 154)
Unindo e associando o que foi dito desde o histórico e características do ensino
jurídico e Universidade no Brasil, pode-se perceber que, ao passo que o positivismo
15
O autor define com base em Mannheim e Weber, que, na medida em que não existe estabilidade
sem autoridade, esta mesma autoridade pode ser exercida de várias formas. Passa a enumerar os
controles difusos (costumes, tradição, religião) e explícitos (normas jurídicas), e definir que a eficácia
da dominação depende da conjugação dessas duas formas de controle (FARIA, 1988, p. 150).
16
Esses anéis seriam as diferentes fontes de disseminação ideológica-paraestatal, extremamente
importantes em um judiciário intencionalmente esvaziado, onde essas instituições passam a deter as
prerrogativas políticas informais (FARIA, 1998, p.150-157).
67
dogmático prestou-se a difundir um modo rígido e acrítico de interpretação e
aplicação do Direito, o capitalismo intensificou ainda mais o atropelamento da
formação dos estudantes, exigindo sempre um modelo cada vez mais produtivo e,
para isso, alterando e atrofiando a postura social da IES.
Sendo assim, aquilo que o autor chama de “anel burocrático” encaixa-se diretamente
na concepção de IES que se tem contemporaneamente, que tem o poder de reduzir
nossos dias a uma representação distorcida e adaptada do que ocorreu desde o
Brasil Império, na medida em que é utilizada para o fortalecimento da ideologia que
se deseja propagar. Dentro desse ambiente de massificação acrítica, os estudantes
são moldados para aceitar aquilo que é posto como incontestável e, na quase
maioria das vezes, esses argumentos vêm reforçar o domínio do ensino voltado para
a produção do mercado.
O resultado dessa dominação simbólica influi no próprio ordenamento jurídico
formal, que se mostra aparentemente neutro, mas que, na verdade, representa um
paradoxo com a realidade social que busca tutelar, na medida em que tenta difundir
o ensino libertador e a Universidade social, mas, na realidade, consagra-se um texto
sem qualquer alcance real sobre os acontecimentos que se dão no plano material da
sociedade. Abre-se caminho para que as mazelas sociais continuem separadas da
universidade por um fosso de descaso, num processo em que esse desalento fica
legitimado tanto para o estudante/profissional, quanto para o cidadão.
Nesta etapa, chegamos à conclusão dos meios de operação da ideologia descrita
como dominante no seio societário, no entanto chega o ponto em que precisamos
definir os contornos e características dessa ideologia classificada por Santos (2002)
como Razão Indolente.
2.2.2 A racionalidade-ocidental
Antes de iniciar o trato do tema por ora em voga, vale frisar que o mesmo se
delineado com mais propriedade no item 4.2, onde será contraposto com as teorias
que sugerem alternativas para o problema que está a ser fomentado na presente
pesquisa.
68
Santos (2002, p. 433-437) revela as características e definições do racionalismo
ocidental, bem como sua utilização pela classe hegemônica, com fins a sustentar
sua posição, mecanismo que se desenvolve exatamente como descrito por Foucault
(2003, p. 140-152) em sua correlação entre saber e poder
17
.
Foucault faz um paralelo com a tragédia edipana e identifica a estrutura que interliga
saber e poder numa concepção sofista de diálogo como discurso da seguinte
maneira:
Se (...) falar, discutir é procurar conseguir a vitória a qualquer preço, mesmo
ao preço das mais grosseiras astúcias, é porque, para eles, a prática do
discurso não é dissociável do exercício do poder. Falar é exercer um poder.
(2003, p.140)
Aliás, o mesmo se poderia dizer da Universidade, que também reconstitui
as relações de poder. (2003, p.152)
O autor baseia seu entendimento numa microfísica do poder, em que este não é
único, mas formado por inúmeras relações em diferentes níveis, que se apóiam e se
contestam a todo tempo. Com base nessa relação constante de choque e
aproximação, o poder é formado numa concepção não-originária, e sim fabricada,
conforme os dizeres de Nietzsche:
A invenção Erfindung para Nietzsche é, por um lado, uma ruptura, por
outro, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho,
inconfessável. (...) Foi por obscuras relações de poder que a poesia foi
inventada. Foi igualmente por obscuras relações de poder que a religião foi
inventada. (...) À solenidade de origem, é necessário opor, em bom método
histórico, a pequenez meticulosa e inconfessável dessas fabricações,
dessas invenções. (2003, p.15-16)
Partindo desse pressuposto, assimila a inexistência de origem do conhecimento,
para determinar que este não pode ser tratado como absolutamente inscrito na
natureza humana, principalmente quando se deseja atribuir um absolutismo
incontestável a determinado tipo de conhecimento.
Santos (2002, p. 261-271), ao descrever as relações entre direito, poder e
conhecimento, identifica o paradigma moderno positivista vigente em nossa
17
Dentro de uma concepção sofista de diálogo retórico, o autor baseia a manutenção do poder pelo
saber fabricado dentro de uma interpretação Nietzscheana onde “Se (...) falar, discutir é procurar
conseguir a vitória a qualquer preço, mesmo ao preço das mais grosseiras astúcias, é porque, para
eles, a prática do discurso não é dissociável do exercício do poder. Falar é exercer um poder” (2003,
p.140) e “Aliás, o mesmo se poderia dizer da Universidade, que também reconstitui as relações de
poder” (2003, p.152).
69
sociedade, em que o direito e o poder se originam apenas no Estado e o
conhecimento se origina apenas na ciência.
Compartilhando da convicção de pluralidade do poder pelas camadas estruturais da
sociedade e fazendo menção a Foucault, redireciona o foco do poder do Estado
para as regras autônomas da sociedade, que se propaga de forma horizontal,
formando novos sujeitos de conhecimento através da atuação das instituições
disciplinares, onde se encaixa perfeitamente a figura da instituição de ensino.
Dentro dessa definição de poder na instituição de ensino, o autor define poder como
qualquer relação social baseada em uma troca desigual, onde essa desigualdade é
mascarada por inúmeros mecanismos simbólicos que visam ganhar o aceite do pólo
desigual na medida em que esse não concebe a relação que se encontra como
desvantajosa ou prejudicial.
Essa realidade paradigmática vige em nossos dias e é com base nela que se
proliferam os indícios da mera reprodução do saber, também criticada por Bourdieu
e Passeron (1992) em termos educacionais. A hermenêutica jurídica encontra-se
aprisionada no paradigma positivista absolutista e a cada passo que se nessa
direção, mais o Direito se distancia da realidade social e suas necessidades.
Santos (2004, p. 777-815) propõe um novo modelo de racionalidade, cosmopolita,
que combina a sociologia das ausências, das emergências e o trabalho de tradução,
numa ótica de revalorização da experiência social e seu cruzamento com o
conhecimento científico atual. Para tanto, identifica o modelo ocidental de
racionalidade vigente como “razão indolente”, e sua forma de operação, que se
através da expansão do futuro e opressão do presente num ambiente desfavorável
ao conhecimento das experiências tradicionais e suas benesses.
Divide esse modelo de racionalidade filosófica-científica em razão impotente, que
não considera nenhum problema externo à sua órbita de alcance; razão arrogante,
que por se imaginar incondicionalmente livre, se permite não trabalhar; razão
metonímica, que se considera a única forma de razão; e razão proléptica, que julga
ter conhecimento sobre todas as coisas, inclusive sobre o futuro, considerando-o
como mera superação linear do presente (SANTOS, 2004, p. 780-781).
70
Remonta o início de sua vigência, há 200 anos (SANTOS, 2004, p. 780), juntamente
como o surgimento do estado liberal europeu e americano, somado à consolidação
do capitalismo e imperialismo, e descreve sua eficácia, como a habilidade de
transformar interesses hegemônicos em conhecimentos tidos como as verdades
absolutas criticadas por Foucault.
O autor faz um apanhado perspicaz sobre a concepção de tempo transmitida por
essa racionalidade, que, ao recusar toda forma de saber exterior aos seus limites,
comprime o presente numa idéia de escassez de saberes tradicionais e expande o
futuro, numa idéia de constante desconhecimento e distância daquilo que está por
vir. Todo esse emaranhado ideológico, quando difundido socialmente, produz os
novos sujeitos de conhecimento descritos nos parágrafos anteriores, que vivem o
presente como um momento fulgás, um mero estágio a ser rompido até o futuro
incerto, e portam-se absolutamente inertes a essa passagem.
As soluções apontadas pelo autor (SANTOS, 2004, p. 798-801) baseiam-se na
sociologia das ausências, que intenta revelar outras formas de saber – expandindo o
presente – e a sociologia das emergências, que sedimenta utopias alcançáveis
numa contração do futuro, transformando-o em realidade atingível. As idéias
expostas pelo autor, acerca das alternativas práticas e teóricas, serão devidamente
aprofundadas nos capítulos seguintes, mas não podem deixar de serem tocadas
pela inter-relação que mantêm com as demais figuras que estão sendo tratadas.
Esse trabalho da sociologia das ausências e emergências é sedimentado através da
tradução, procedimento que visa unir os saberes tradicional e científico dentro de
uma zona de contato, onde, pela identificação daquilo que for compatível entre os
diferentes saberes estabelecem-se diferentes alternativas para um único problema
(SANTOS, 2004, p.801-813).
A todo tempo, neste capítulo, foi tratado de um conflito entre ideologias. Ideologia da
universidade versus ideologia de mercado. Mas qual seria a conseqüência da
imperatividade da ideologia mercantilista dentro dos muros da universidade e a
influência daquela na função social desta? Qual seria o produto desse choque
quando se fala no cumprimento da função social da Universidade por meio da
Extensão Universitária?
71
Os questionamentos a seguir serão alvo de explanação no item seguinte, na medida
em que a presente pesquisa busca demarcar a influência do paradigma social
vigente sobre a Universidade e suas atividades.
2.3 A EXTENSÃO COMO ATIVIDADE INDISPENSÁVEL NA
UNIVERSIDADE
2.3.1 Surgimento e características da extensão no Brasil
De forma a perfazer um histórico da extensão brasileira, torna-se necessário
acompanhar o surgimento da educação e da universidade, bem como a relação de
ambas com a sociedade.
Souza (2000, p. 11) descreve a dificuldade em se firmar um conceito concreto de
extensão universitária, e para tanto prossegue suscitando:
A questão: o que é Extensão Universitária? Se impõe constantemente na
vida acadêmica. E a resposta surge sob as mais diversas definições, em
diferentes tentativas de criar limites para a prática ou, por outro lado, para
servir de justificativa para práticas que acontecem sem um espaço claro
dentro da academia. A polissemia é constante.
A autora em comento traz uma série de conceituações que, de acordo com a
mesma, se encontram ultrapassadas, mas que ilustram a contenda formada por
essa diversidade de definições. De acordo com ela, a extensão universitária foi
classificada como a projeção da Universidade no meio, como uma atitude de
abertura de Instituição de Ensino Superior à comunidade, bem como o instrumento
de formação humana do acadêmico e prestação de serviços à comunidade.
Mas volvendo ao histórico que se pretende fazer, notamos que a universidade surgiu
no ocidente por iniciativa corporativista de estudantes, no século XII, e seu
envolvimento social se restringia apenas ao ensino, deixando de lado a pesquisa e a
extensão (SOUZA, 2000, p. 13).
72
Com a Revolução Industrial no século XVIII, a universidade moderna substitui a
medieval e na, preocupação de atender as demandas sociais que a circundavam,
institui a pesquisa e a extensão. Inicialmente aparece na Europa e América do
Norte, onde os modelos transfomadores de Alemanha e Inglaterra vão ser
adaptados à realidade norte-americana.
no caso da América Latina, o modelo adotado foi o francês, que, ao invés de
buscar a transformação do meio social, possuía o objetivo de manter a ordem
vigente e estabilizar a mesma no comando (SOUZA, 2000, p. 14).
Bemvenuti (2007) define os contornos do surgimento da extensão universitária com
base em três marcos
18
que envolveram questões políticas e sócio-enconômicas,
mas, para o trabalho em questão, será focado o marco na América Latina.
A tradição latino-americana foi marcada pelos movimentos estudantis e se fez
presente no Brasil com os movimentos de vanguarda da década de 60, quando
diversos estudantes de direito tiveram participação ativa.
Em 1918, a partir do Manifesto de Córdoba, na Argentina, onde estudantes
manifestaram a necessidade de abrir a universidade para o contato com a realidade,
inicia-se a busca pela concretização do papel social da universidade.
Souza (2000, p. 15) diz que tal evento traduz a cobrança social perante as IES
latino-americanas de um posicionamento pró-ativo diante de suas funções externas.
Em 1949, ocorre o Primer Congreso de Latinoamerica na Univesidad de San Carlos,
onde, dentre outros temas, iniciam-se as discussões acerca da ação e difusão
universitária voltadas para a sociedade. Em 1957, ocorre a Primera Conferencia
Latinoamericana de Extensión, no Chile e, em 1972, no México, sucede a segunda
conferência, onde foram discutidos os parâmetros da extensão universitária voltada
para as peculiaridades da América Latina (BEMVENUTTI, 2007).
18
Já a tradição americana envolveu uma gama de serviços visando capacitar a sociedade para a
busca do preenchimento de suas necessidades, e a parceria (como a autora chama a terceira
tradição) definiu a extensão de serviços e conhecimento visando à melhoria do setor produtivo.
73
Nota-se a diferença ideológica que se demarca na instituição da extensão
universitária, quando se trata de América do Norte e América Latina, na medida em
que ambas o reivindicadas por parte do corpo discente, no entanto sua forma de
atuação é bem diferente.
A partir da abertura da Universidade Livre de São Paulo, em 1912, para o
movimento da universidade popular, surge a primeira experiência de extensão
universitária no Brasil. Por meio de conferências gratuitas e abertas ao público, fica
caracterizada a primeira tentativa de aproximar universidade e sociedade no Brasil.
Nessa etapa, o momento político que se passava no Brasil era ilustrado pela disputa
entre São Paulo, que buscava lançar sua imagem de estado estruturado, e Rio de
Janeiro, que era a capital do país na época.
Para Souza (2000, p.15), o surgimento da extensão no Brasil ocorre da seguinte
forma:
No caso da Universidade Brasileira, ela sempre foi caracterizada pelo
exercício de uma única função, que é o ensino. Mesmo que possam ser
identificadas preocupações esporádicas com a extensão desde o
nascimento das Universidades no País, não se tratava de uma função
reconhecida, e muito menos institucionalizada. Aqui, as primeiras
experiências extensionistas foram fruto de interesses e de atos de vontade
de segmentos da comunidade acadêmica, e não representavam respostas
às demandas sociais.
Bemvenutti (2007) faz um apanhado dos acontecimentos que marcaram o
surgimento da extensão universitária no Brasil de acordo com o que segue. A
primeira data frisada foi o período compreendido entre 1914 e 1917, quando na
Universidade Popular de São Paulo, são ministradas 107 conferências abertas ao
público, tratando de variados temas.
Em 1931, o decreto 19.851 (Estatuto da Universidade Brasileira) fez a primeira
menção à extensão universitária, concebendo a mesma como fonte de aprendizado
dos que não participavam da vida universitária. Souza (2000, p. 16) descreve que
esse primeiro aparecimento foi considerado a positivação “da vida social da
universidade, sendo reconhecida pelo oferecimento de cursos e conferências de
caráter educacional”.
74
Em 1934, a USP define a obra de extensão como meio de informalização das
ciências, das letras e das artes, através de palestras, conferências, etc, ao passo
que, em 1935, a Universidade do Distrito Federal manifesta o entendimento de
extensão como espaço de promoção de cursos isolados e autônomos.
Em 1961, a LDB, em seu artigo 69, definiu a extensão universitária como qualquer
forma de curso que fosse aberto a candidatos externos à instituição, seguindo a
esteira do Estatuto da Universidade Brasileira.
No período compreendido entre 1960 e 64, a UNE (União Nacional de Estudantes)
registrou as propostas para instauração de uma reforma universitária que tivesse a
extensão como peça chave em uma concepção que definisse a Universidade
comprometida com as classes populares (BEMVENUTTI, 2007).
Com o golpe militar de 1964, a extensão universitária foi institucionalizada como
meramente assistencialista, dentro da cultura de um ideal de desenvolvimento e
segurança do território nacional. Em 66, a Universidade Federal do Rio Grande do
Norte cria o CRUTAC, um projeto para produzir a inserção do universitário nas
comunidades carentes, de forma a ajustar os investimentos do governo às
necessidades da população (BEMVENUTTI, 2007).
Nesse mesmo diapasão, em 1968 o Ministério do Interior e Forças Armadas cria o
Projeto Rondon, que integrava universitários do sul e sudeste às regiões norte,
nordeste e centro-oeste. No ano citado, a LDB (5540/68) determina a indivisibilidade
entre ensino e pesquisa, inserindo nesse elemento também a extensão, porém de
forma não expressa. Souza (2000, p.16) define que não houve avanços na
legislação desde 1931, no sentido de se firmar um conceito ou características do
que se considerava extensão universitária.
Na cada de 70, o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras buscou
determinar um padrão para a instituição de uma extensão universitária mais
sensível, sempre alertando as direções das universidades para sua importância. Em
1975, após inúmeros debates com as IES, o MEC elabora a primeira política de
extensão universitária baseado na abertura da universidade a outras instituições e à
sociedade, na busca pela troca de saberes.
75
Segundo Silva (2002, p. 185), entre 1972 e 1976, cerca de 16.982 estudantes e
1224 professores desempenharam algum tipo de serviço comunitário dentro dos
moldes do CRUTAC (Centro Rural Universitário de Treinamento e ão
Comunitária), o que fortaleceu a ingerência do MEC na Universidade, criando o DUA
(Departamento de Assuntos Universitários) e a Codae (Coordenação de Atividades
de Extensão). No entanto esses dois órgãos encaravam a extensão como um
estágio estudantil que fortaleceria a relação Estado – empresa – universidade.
Na década de 80, dois encontros merecem destaque. O Fórum Nacional e o I
Encontro Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas
Brasileiras foram marcos determinantes na política nacional de extensão, na medida
em que buscaram um canal com o MEC para que as reivindicações de mudança
fossem implementadas na legislação. De acordo com Silva (2002, p. 189), essas
manifestações:
Pleiteavam maior precisão do conceito de extensão universitária, buscavam
organizar a extensão como um órgão próprio que articulasse programas,
projetos e atividades; pleiteavam uma real institucionalização da extensão,
com orçamentos próprios (semelhante à pesquisa); a criação de medidas
(aferição) claras das atividades; a divulgação da produção; manutenção de
fóruns regionais e nacionais para trocas de experiências de extensão.
A positivação da extensão universitária somada à organização do Fórum de Reitores
proporcionou à comunidade acadêmica a possibilidade de discutir e buscar um
termo mais preciso para este instituto. O intento externado pelo rum de Pró-
Reitores de Extensão Universitária não foi somente o de aproximar a Universidade
da realidade social na qual se encontra inserida, mas também retirar o caráter de
terceira modalidade concedido à extensão, para transformá-la em fio condutor das
práticas de ensino e pesquisa na Universidade (NOGUEIRA, 2005, p. 84).
no texto da Carta Magna de 1988, o legislador absorve o teor da lei 5540/68 no
artigo 207, e positiva expressamente a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão (SOUZA, 2000, p.16). Segue o teor do artigo 207 da Constituição federal,
“As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de
gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão”. (BRASIL, 2007).
76
De acordo com Bittar (2006, p. 71), a Constituição (num viés democrático) garante o
ensino superior gratuito nas instituições federais e estaduais, bem como o
financiamento da pesquisa e extensão por meio de fundos do Poder Público. A Carta
Magna ainda faculta aos particulares a criação de IES privadas sob o cumprimento
das normas gerais da educação nacional, bem como a autorização e avaliação de
qualidade feitas pelo Estado.
Em 1996, a Lei de Diretrizes e bases da Educação (Lei 9394/96) trouxe em seu
artigo 43, inciso VII, o seguinte texto:
Art. 43. A educação superior tem por finalidade:
IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e
técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber
através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação;
V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional
e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos
que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do
conhecimento de cada geração;
VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em
particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à
comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade;
VI - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à
difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da
pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição. (BRASIL, 2007).
No que tange à Extensão, a LDB (SILVA, 2002, p.190) positiva seus objetivos como
formar profissionais para o desenvolvimento da sociedade brasileira, prestar
serviços especializados para a comunidade, promover a extensão aberta à
participação para população.
Segundo Silva (2002, p. 190), a LDB de 1996 faz uma série de referências à
extensão universitária, no entanto não define seu conceito, assumindo tacitamente o
entendimento comum acerca do tema, o que como descrito pelo autor não
condiz com a realidade acerca das discussões sobre o assunto. O mesmo autor
determina que este conceito vem a ser determinado em 1999-2001 com o Plano
Nacional de Extensão.
Silva (2002, p. 111) relaciona o conceito de extensão universitária como a
integração da universidade regionalmente, de forma a unir ensino e pesquisa às
demandas sociais, bem como a dialeticidade estabelecida entre alunos e
professores imersos na realidade da população que envolve os muros da
77
universidade. Em outros dizeres, “(...) a contribuição da universidade para o
aprofundamento da cidadania organizativa da sociedade. A produção de
conhecimentos resultantes da troca de saberes acadêmicos e populares; enfim, a
transformação da universidade e da sociedade”.
Nesse diapasão, em 1998, o Fórum de Pró Reitores em parceria com o MEC,
desenvolveu o Plano Nacional de Extensão, que foi atualizado em 2000/01 e
dispunha sobre a extensão universitária nos contornos delineados pela descrição
de Boaventura de Sousa Santos:
Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em
configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da
universidade será cumprida quando as actividades, hoje ditas de
extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e
passem a ser parte integrante das actividades de investigação e de ensino.
(FORUM NACIONAL DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA, 2007).
Na apresentação do Plano Nacional, Santos define a necessidade do
comprometimento da universidade com a sociedade e suas necessidades, bem
como sua função transformadora da realidade na qual está inserida.
Ao definir o conceito e as características do instituto tratado, o autor em voga
demonstra a importância da universidade para a mudança da sociedade, a partir da
difusão de conhecimento e de sua abertura ao social para o compartilhamento dos
avanços adquiridos.
As universidades públicas brasileiras são instituições criadas para atender
às necessidades do país. Estão distribuídas em todo o território nacional e
em toda a sua existência sempre estiveram associadas ao desenvolvimento
econômico, social, cultural e político da nação, constituindo-se em espaços
privilegiados para a produção e acumulação do conhecimento e a formação
de profissionais cidadãos. Por isso, o Fórum de Pró-Reitores de Extensão
propõe a participação dessas universidades nas discussões, elaboração e
execução de políticas públicas que tenham a cidadania e o cidadão como
suas principais referências. (2007)
De acordo com o disposto no I Encontro de PReitores citado anteriormente, o
conceito de extensão universitária segue como o “processo educativo, cultural que
articula o ensino e pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação
transformadora entre Universidade e Sociedade”. (FORUM NACIONAL DE PRÓ-
REITORES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, 2007).
E ainda determina que:
78
A Extensão é uma via de mão-dupla, com trânsito assegurado à
comunidade acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportunidade de
elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à
Universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido
à reflexão teórica, será acrescido àquele conhecimento. (FORUM
NACIONAL DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, 2007).
Nota-se que a via de mão dupla descrita enseja o diálogo de Freire e as zonas de
contato definidas por Santos
19
, institutos esses que serão tratados no final do
presente estudo. No entanto, fica claro que esse intercâmbio de saberes, tradicional
e científico, terá como produto a formação de um novo elemento, comum a ambas
as partes, e capaz de indicar saídas para a problemática que se deseja tocar.
É com base nesse entendimento e nessa intenção que fica criado o Plano Nacional
de Extensão, cujas características básicas serão delineadas a seguir.
Seus princípios básicos determinam a necessidade de se aliar ciência, arte e
tecnologia às necessidades da população local, num ambiente em que a
universidade não irá se portar como proprietária de um saber imutável, mas estará
sempre atenta aos anseios sociais, buscando o contato direto com os movimentos
organizados nessa sociedade.
A ação cidadã das universidades não pode prescindir da efetiva difusão dos saberes
nelas produzidos, de tal forma que as populações cujos problemas tornam-se objeto
da pesquisa acadêmica sejam também consideradas sujeito desse conhecimento,
tendo, portanto, pleno direito de acesso às informações resultantes dessas
pesquisas.
Para o Plano Nacional, necessidades sociais são entendidas como: educação
superior e básica, na medida em que a universidade deverá participar do trabalho de
fortalecimento do ensino primário, através de contribuições científicas.
Como produto dessa postura, tem-se a figura do profissional cidadão, que irá
interagir com a sociedade na busca de situar-se com esta realidade através da união
19
Freire (2006, p. 68-69) descreve em suas obras a necessidade de se firmar um diálogo equilibrado
entre extensionista e cidadão, na medida em que o primeiro não poderá tratar o segundo como
ignorante ou fadado à permanecer à margem do saber. Já Santos (2004, p. 808-809) determina as
zonas de contato, como uma intercessão entre alta cultura e saber popular, unidos na busca da
solução de uma única questão.
79
do ensino e pesquisa, com fins voltados para a satisfação e melhoria das condições
sócio-econômicas da população na qual está inserido.
Dentro desse plano de extensão, existe ainda a figura da universidade cidadã,
voltada para a formação desse profissional enquanto ser humano e social, dentro de
uma práxis baseada em ações que visem à organização política das comunidades
carentes, contato com as lideranças dessas comunidades.
Outra característica importante é o diálogo entre universidade e comunidade,
visando articular os saberes populares em um processo que legitime o
conhecimento tradicional, dentro de um sistema científico.
Nesse diapasão, a extensão universitária deixa de ser enxergada como mera
atividade acadêmica, para transformar-se em busca de soluções sócio-econômicas,
e, consequentemente, ser reconhecida pelo poder público como tal.
Branco e Guimarães (2003, p. 31) descrevem que a extensão universitária vem da
busca pela “vivência da interdisciplinaridade e da indissociabilidade entre o ensino, a
pesquisa e a extensão”. Deve-se deixar de lado as antigas práticas bancárias de
ensino, e atentar para a função difusora de conhecimento à sociedade e que resgata
nessa própria sociedade os caminhos para a produção de novos conhecimentos.
Nessa concepção, não a extensão universitária, mas o seu desenvolvimento em
conjunto com o ensino e a pesquisa, podem proporcionar a efetiva emancipação dos
grupos sociais que se encontram marginalizados por meio da participação ativa
desses no processo de construção do conhecimento.
É fundamental, na práxis de extensão, a conscientização sobre questões
éticas que envolvam seu cotidiano, de modo que os atores sociais
comprometidos nesse processo possam crescer intelectual, pessoal social e
politicamente, enquanto as atividades cresçam, também, no sentido social,
político e ético, junto aos atores e à comunidade a que pertencem.
De acordo com o Fórum de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas
Brasileiras em 1998 (do qual o Espírito Santo é signatário), o termo extensão é
definido da seguinte maneira:
80
“A Extensão Universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o
Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora
entre Universidade e Sociedade”.
A Extensão é uma via de mão-dupla, com trânsito assegurado à comunidade
acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis
de um conhecimento acadêmico. No retorno à Universidade, docentes e discentes
trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será acrescido àquele
conhecimento. (FORUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO, 2007).
Sendo assim, com base na evolução da universidade e do ensino no Brasil,
poderíamos extrair os conceitos e características delineados como a moldura de
análise do instituto alvo do estudo. No entanto, Souza (2000, p. 17) perfaz essa
busca ainda com base nas vozes e ações dos agentes que, cada um a seu tempo,
colaboraram para o surgimento e solidificação da extensão universitária no país.
Primeiramente, a autora traz o corpo discente, em seguida o Estado (por meio do
MEC) e por fim, as Instituições de Ensino Superior (Fórum Nacional de Pró-Reitores)
como peças que movimentaram (e ainda movimentam) a extensão universitária de
acordo com seus interesses, ideologias e concepções (SOUZA, 2000, p. 20).
No que tange aos estudantes, define sua influência de forma mais ativa em três
períodos. Do Brasil Colônia até o Estado Novo, o corpo discente da época não era
organizado, porém realizava alguns movimentos isolados no sentido de estender o
saber adquirido para o meio social onde viviam. O segundo período compreende o
Estado Novo até o Golpe de 1937, quando foi criada a União Nacional dos
Estudantes. O terceiro período vai do Golpe Militar de 1964 até os dias atuais, tempo
em que as ações extensionistas do corpo estudantil vieram perdendo força (SOUZA,
2000, p. 20).
O papel do Estado, que também se deu em três períodos, pode ser dividido do Brasil
Colônia até o golpe de 64, quando foi criado o Primeiro Estatuto das Universidades
Brasileiras. No segundo período (de 1964 até a abertura política do país) surge o
projeto Rondon, e do período de abertura política até os dias atuais fica identificável
a interação do Estado com as Instituições de Ensino Público.
81
No que diz respeito às IES, a autora define o primeiro período desde o surgimento
das universidades até as primeiras experiências de extensão, como os cursos livres
oferecidos pela Companhia de Jesus. Numa segunda etapa, até o golpe de 1964,
surgem as universidades populares (1911) e as Escolas Agrícolas (1912). Em
seguida (golpe de 64 até a abertura política) ocorre a instituição do CRUTAC. Por
fim, no quarto período, surgem o rum de Pró-Reitores e a interação das IES com
o MEC.
Souza Junior (2006, p. 114) define que:
A interlocução com as IES, a respeito de sua construção de uma concepção
para a Extensão Universitária, nos mostrou um desenvolvimento de
conceitos. A extensão universitária ‘é o processo educativo, cultural e
científico’ que deve articular as demais funções da Universidade de forma
indissociável, proporcionando a ‘relação transformadora entre universidade
e sociedade’.
Dessa forma, o envolvimento da sociedade no processo de extensão universitária é
de suma importância, até para o cumprimento da função social da Universidade.
Conforme citado por Branco e Guimarães (2003, p. 34), a comunidade deve ser
envolvida nesse processo desde seu início, de forma a influenciar não os
caminhos que a extensão irá percorrer, mas indiretamente modificar as fontes de
desenvolvimento da pesquisa e a sistemática de ensino superior.
Entretanto, o que se atesta na realidade é um desequilíbrio entre o disposto e o
praticado, na medida em que as disposições definidas pelo Fórum de Pró-Reitores,
pela constituição, pelo MEC e pelos movimentos estudantis, embora tenham
conteúdo teoricamente libertador, entram em choque com uma série de ideologias
antagônicas. O resultado desse conflito será alvo do item a seguir.
2.3.2 A visão tradicional-compensatória da extensão universitária
O tema da extensão universitária é de suma importância para que se possa
entender a função social da Universidade, bem como a maneira de se concretizar
essa necessidade social. Como foi dito anteriormente, o legislador preparou (em
forma de dispositivos legais na Constituição Federal) o caminho para que essa
82
função social pudesse ser realizada sempre em conjunto com o ensino, a pesquisa e
a extensão, de forma a possibilitar a atuação da Universidade na realidade social.
Silva (2002, p.110-111) define que:
Relaciona-se, a extensão, (...) como uma metodologia de ação da
universidade no cumprimento de seu papel social; a extensão merece
estudos mais aprofundados, uma vez que estes sentidos idealistas
propagados podem não estar correspondendo ao papel que efetiva e
praticamente a extensão vem cumprindo junto as universidades.
Não se pode olvidar que a conjuntura da extensão universitária, por muitas vezes,
assume uma postura assistencialista, como se buscasse substituir as atividades de
responsabilidade do Estado, e que não são cumpridas adequadamente por este.
É nessa medida que o autor define que não se cria um novo conhecimento, mas sim
um novo sujeito de conhecimento que nos dizeres de Freire seria o acomodado,
adaptado, desumanizado de sua capacidade criadora (2007, p. 50) e que aprende
a aceitar sua situação como originariamente legítima, na medida em que é podada
toda a sua capacidade contestadora.
Santos (2003, p. 93-194) identifica a crise universitária por sua incongruência
ideológica com o capitalismo liberal, por meio do choque entre a alta cultura
(conhecimento prudente) e a massificação voltada para o modelo produtivista.
Assim, por uma falsa democratização do ensino, buscou-se a privatização e a
tecnificação da formação jurídica, estratificando o conhecimento e castrando a
inventividade e a autonomia de pensamento nas instituições de ensino.
Essa crise afeta não apenas a população que se encontra à margem do
conhecimento emancipatório, mas os próprios alunos e professores das instituições
de ensino, que se transformam em engrenagem de uma quina obsoleta e
totalmente alheia à realidade social que se encontra fora dos muros das
universidades.
Silva (2002, p. 161-168) faz um apanhado da extensão universitária no Brasil bem
como considera as críticas feitas por cada uma dessas pesquisas.
83
Com base nos dados angariados, descreve o “discurso demasiadamente
extensionista e de compromisso social que não correspondia à realidade” (SILVA,
2002, p. 161) como o marco do paradigma enfrentado pelas IES nesse assunto. A
extensão foi instituída como uma obrigação moral da Universidade para com os
problemas da sociedade, e não foi criada a estrutura adequada para o
desenvolvimento desta atividade, isolando-a da pesquisa e do ensino.
Concretizou-se um mecanismo de dissimulação do elitismo presente nas instituições
de ensino superior, por meio de uma assistência fornecida pelas universidades,
como se estivessem substituindo o Estado na prestação de suas obrigações. Esta
substituição, feita por pressão de um Estado falido, faz com que as instituições
públicas se posicionem de maneira assistencialista, e as privadas – que já nasceram
da falência do Estado, e nos moldes do mercantilismo sigam ainda mais
fortemente esse caminho.
Como resultado dessa inversão de papéis, as IES públicas e privadas passam a
utilizar a extensão como produto a ser vendido para financiamento de infra-estrutura
e pesquisa, pervertendo a extensão e, consequentemente, a própria função social
da Universidade (SILVA, 2002, p. 164).
Interessante é o conceito de caráter provisório da extensão que o autor descreve, na
medida em que esta seria somente necessária até que a Universidade fosse alvo de
alcance das camadas mais carentes da população. Nesse ambiente, a pesquisa e o
ensino teriam cumpridas suas funções de promover igualdade e liberdade, bem
como a emancipação do ser humano.
Critica ainda projetos como o Rondon, que, por meio da centralização do saber
(como poder), faz com que aqueles que seriam trazidos para dentro das discussões
– com objetivo de torná-los sujeitos críticos de sua realidade – ficassem submissos à
assistência que lhes é dada sem questionar os elementos que lhes são
apresentados como passíveis de solução de suas crises. Não cabe aqui criticar por
inteiro os projetos realizados por governo e IES, mas sim levantar questões de fundo
que merecem uma discussão mais ampla.
84
É nesse momento (após enunciar algumas críticas acerca da extensão praticada nas
Universidades em geral) que despertamos para uma questão de fundo, ainda mais
prejudicial a um provimento judicial justo e efetivo (cursos de Direito) do que a
criação de meios de acesso da população ao judiciário, ou a ingenuidade no tratar a
crise da formação dos profissionais do direito como mera decorrência da omissão
estatal e de órgãos de classe.
Não basta apenas enumerar os índices da crise instaurada na extensão dos cursos
jurídicos e a maneira como ela se desenvolve, mas importa ainda demonstrar a
influência desta crise nos estudantes e professores que participam dessa chamada
“extensão universitária”, haja vista que o problema questionado na pesquisa não se
limita apenas à fatia desamparada da população, mas também àqueles que se
julgam detentores do saber a ser estendido.
Aqui, nos deparamos com um sistema capaz não de alijar mentes, mas fabricar
novos indivíduos, totalmente alienados às possibilidades e à realidade a sua volta. E
esse sistema tem como um de seus fortes braços o ensino jurídico vigente, que nos
dizeres de Freire (2007, p. 116), “(...) implica numa relação vertical de A sobre B (...).
É desamoroso. É acrítico e não gera criticidade, exatamente porque desamoroso.
Não é humildade. É desesperançoso. Arrogante. Auto-suficiente. (...) Por tudo isso
(...) não comunica, faz comunicados”.
O aluno não é o único sujeito afetado por essa hegemonia racional-positivista. A
falta de humanidade provocada pela imposição simbólica, mitológica desumaniza o
opressor e o oprimido, numa relação onde o opressor por uma falsa generosidade,
em uma relação desigual de poder – retira a humanidade do oprimido e abre mão da
sua própria, num monólogo vertical, comunicando seu saber e o depositando no
receptáculo, em que se transforma o aluno nessa relação.
Baseado nesse raciocínio, Freire desenvolve a concepção bancária de educação,
que afeta não o aluno, como também o que leciona, e está presente não no
ensino, mas na pesquisa e na extensão desde o período imperial até os dias atuais.
Nesse ambiente, aquele que transmite o conhecimento (tido como absoluto) assume
o próximo como ignorante e se considera o único elo ativo no processo de
85
aprendizagem, ato que será reproduzido em termos descritos por Bourdieu (1992)
pelo aluno, ao lecionar ou entrar em contato com a realidade que o circunda, seja
pela vivência, seja pela própria atividade de extensão.
Esse sistema opressor só tende a alimentar a hegemonia dominante, e zelar por sua
manutenção no poder, figuras que o exploradas por Santos em todas as obras
citadas nesse trabalho.
Consubstanciando essa descrição, vem o relato de Freire (2007, p. 50), “Na medida
em que o homem perde a capacidade de optar, e vai sendo submetido a prescrições
alheias que o minimizam, e suas decisões não são suas, porque resultadas de
comandos estranhos, já não se integra. Acomoda-se. Ajusta-se”. [grifos do autor]
O autor descreve bem essa situação do homem moderno que renuncia a sua
capacidade sem saber, na medida em que as tarefas são postas por uma elite,
retirando toda a capacidade de decisão e o reduzindo a mero objeto em um mar de
massificação. Seu desejo por autenticidade é abafado por mitos criados pelas forças
sociais.
O novo sujeito de conhecimento fabricado por esse sistema capitalista não é o
homem intransitivo, ser fechado. Trata-se de ingenuamente transitivo, na medida em
que possui:
simplicidade na interpretação dos problemas. Pela tendência a julgar que o tempo
melhor foi o tempo passado. Por uma forte inclinação ao gregarismo, característico da
massificação. (...) Pela fragilidade na argumentação. Pela prática não propriamente
do diálogo, mas da polêmica. (FREIRE, 2002b, p.68-69)
Essa forma de ensino entra em choque com o disposto pela resolução 09/04 do
CNE, na medida em que contraria a concepção humanística que se deseja dar à
formação dos estudantes de Direito. Ao contrário do profissional ligado aos
fenômenos sociais, e preocupado com a mudança e emancipação social, forma-se o
sujeito descrito por Freire, alienado do que se passa fora das páginas dos códigos
que regem o ordenamento jurídico nacional.
Como resultado da formação ideológica desses novos atores da suposta extensão
universitária, de suma importância faz-se a discussão desses efeitos sobre a
86
hermenêutica trabalhada por esses sujeitos, acerca dos Direito Humanos, e nos
cursos jurídicos.
A necessidade de tal abordagem reside no fato de que a conseqüência da adoção
de uma postura acrítica, e dogmaticamente fechada ao fenômeno social, resulta na
formação de mentes reproduzidas por idéias de exclusão e diferenciação. O
presente tema será tratado no próximo capítulo da pesquisa.
87
3 DIREITOS HUMANOS E OS CURSOS DE DIREITO
3.1 A RESOLUÇÃO 09/04 DO CNE E A EXIGÊNCIA DE UMA
FORMAÇÃO HUMANÍSTICA
O objetivo com o relato descritivo dos eventos que acarretaram a criação da
resolução em tela tem a intenção de demonstrar os artifícios legislativos que foram
postos de forma a possibilitar a humanização da formação do estudante de direito.
Esta humanização compreende a concepção dos direitos humanos ou direitos
fundamentais
20
, na medida em que se pretende alargar o conceito ocidental de
afirmação desses direitos, incluindo nesse rol não as vozes dos países que não
foram reconhecidos nesse processo histórico, como despertar o interesse do
estudante para os fenômenos sociais externos à academia, que constantemente
criam e modificam esses mesmos direitos.
A resolução 09/04 do CNE (Conselho Nacional de Educação) veio substituir a
portaria 1886/94, e essa substituição se deu a partir de uma série de discussões
entre o MEC (Ministério da Educação e Cultura), a OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil), a ABEDi (Associação Brasileira de Ensino em Direito) e outros organismos
envolvidos no ensino brasileiro.
Com o advento da portaria 1886/94, foram instituídas, pela primeira vez, as diretrizes
curriculares para os cursos de Direito. As orientações contidas nesse diploma
buscavam vincular não a elaboração das grades curriculares, mas também o
conteúdo específico de cada matéria a ser ministrada nesses cursos.
Dentre as modificações trazidas pela portaria, em seu artigo 3º, foi sedimentada a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, o que vinculava as atividades
de transmissão e produção de conhecimento às demandas sociais, que seriam
atendidas com base nas atividades de extensão das IES públicas e particulares.
20
De acordo com a doutrina majoritária, os direitos fundamentais seriam os direitos positivados nas
constituições em nível interno dos Estados-nação, os direitos humanos seriam aqueles garantidos
nos tratados internacionais, sendo que a partir dessa positivação, bem como do momento histórico
em que ela ocorreu, surge a classificação desses direitos em gerações e/ou dimensões (LUÑO, 2004,
p. 44).
88
De acordo com Rodrigues (2005, p. 97), os pressupostos que precederam a criação
dessa portaria basearam-se em diversas discussões no âmbito jurídico, e tinham
como temas centrais:
a) o rompimento com o positivismo normativista; b) a superação da
concepção de que só é profissional do Direito aquele que exerce atividade
forense; c) a negação de auto-suficiência ao Direito; d) a superação da
concepção de educação como sala de aula; e e) a necessidade de um
profissional com formação integral (interdisciplinar, teórica, crítica,
dogmática e prática).
O mesmo autor indica que a intenção da portaria era a de modificar o paradigma
vigente nos cursos de Direito, mas esbarrou na indisposição daqueles que deveriam
engrossar as fileiras do movimento por essa mudança. Colidiu ainda com a ingênua
pressuposição de que o Direito tem a capacidade de modificar a realidade, mais
uma das facetas do ranço da auto-suficiência que o diploma em voga buscou
combater.
Sendo assim, restou revogada, em 2002, a portaria 1886/94
21
, e em seguida iniciou-
se uma nova etapa com a resolução 09/2004 do CNE, que naturalmente foi
precedida de uma série de discussões acadêmicas, políticas e institucionais.
Na doutrina, ainda existem inúmeros debates acerca da revogação ou derrogação
da portaria 1886/94, em virtude da resolução de 2004 não tratar de todas as
matérias abordadas pela portaria, como, por exemplo, a duração dos cursos de
Direito.
Rodrigues (2005, p. 100-101) contextualiza as discussões geradas em torno da
criação da Resolução 09/04 com base nos princípios constitucionais do direito
educacional brasileiro. Levando em conta o artigo 106 da CF/88, descreve o
processo de ensino e aprendizagem que busca flexibilidade, autonomia, pluralismo,
todos num ambiente de qualidade.
21
A referida portaria sofreu uma série de críticas e ataques de pareceres do CNE com relação a seu
conteúdo e a impossibilidade de concretizar seus objetivos, justamente por estar atrelada ao
positivismo dogmático que propunha combater (RODRIGUES, 2005, p. 94-98).
89
Com base nesses princípios e na competência firmada pela lei 9131/95, o Conselho
Nacional de Educação passou a deliberar sobre as novas diretrizes acerca da
educação superior no país.
Sendo assim, iniciando os trabalhos acerca do tema, o CNE estabelece os princípios
norteadores da elaboração das novas diretrizes curriculares visando assegurar a
liberdade das instituições em fixar sua carga horária e cadeiras a serem ministradas;
evitar a duração excessiva dos cursos; buscar uma sólida formação geral que
prepare o graduando para o mercado de trabalho; estimular o estudo independente;
buscar a sedimentação de conhecimento e habilidades adquiridas fora do ambiente
escolar; encorajar a relação teoria x prática, valorizando a pesquisa, os estágios e a
extensão (RODRIGUES, 2005, p.102-103).
Com o advento do Plano Nacional de Educação (já descrito anteriormente) os
princípios de flexibilidade deixaram de ser meramente interpretados para se
tornarem positivados. As IES foram chamadas a enviar propostas de reformulação
das diretrizes de educação superior, e com base nessas propostas e nos pareceres
emitidos pelas comissões de especialistas, o CNE passou a deliberar os novos
caminhos das diretrizes curriculares.
As propostas apresentadas mantiveram o ideal descrito pela portaria 1886/94 do
MEC, com algumas alterações, e em abril de 2002 foi aprovada pelo CNE a primeira
versão das novas diretrizes curriculares para os cursos de Direito. A OAB
encaminhou dois ofícios ao Ministro da Educação, manifestando sua preocupação
com uma formação diferenciada de bacharéis para atuarem em um mercado
uniforme, bem como a curta formação do estudante para o desempenho de uma
atividade de suma importância para o país e, consequentemente, sugerindo
mudanças no parecer já homologado.
A ABEDi (Associação Brasileira de Ensino do Direito) também encaminhou ofício ao
Ministro da Educação, manifestando sua discordância com as novas diretrizes
acordadas, o que ilustrou o conflito entre a comunidade acadêmica e profissional e
as disposições elencadas pelo CNE. Desse conflito (e também do mandado de
90
segurança da OAB perante o STJ
22
) resultou o recuo do CNE perante as requisições
feitas e o reinício das discussões acerca do tema.
Com essa nova etapa, vale destacar a participação da ABEDi nas reuniões com a
Câmara de Educação Superior do CNE, no II Congresso Brasileiro de Ensino do
Direito e nas duas audiências púbicas em 2003. Após essas discussões o CNE deu
origem ao parecer n. 55/04, que não traduzia os interesses manifestados pela
comunidade acadêmica e profissional, gerando o pedido de reconsideração enviado
pela ABEDi ao CNE. Esse pedido acarretou a elaboração de novo parecer, que
novamente, entrando em conflito com as intenções da comunidade acadêmica,
resultou em novo pedido de reconsideração por parte da ABEDi.
Em 23 de setembro de 2004, foi homologado pelo Ministro da Educação, com base
nos relatórios e intervenções feitas pelos organismos já citados, a resolução 09/2004
do CNE/CES que, em seu artigo segundo, dispõe (MEC, 2007):
Art. A organização do Curso de Graduação em Direito, observadas as Diretrizes
Curriculares Nacionais se expressa através do seu projeto pedagógico, abrangendo o
perfil do formando, as competências e habilidades, os conteúdos curriculares, o
estágio curricular supervisionado, as atividades complementares, o sistema de
avaliação, o trabalho de curso como componente curricular obrigatório do curso, o
regime acadêmico de oferta, a duração do curso, sem prejuízo de outros aspectos
que tornem consistente o referido projeto pedagógico.
§ O Projeto Pedagógico do curso, além da clara c oncepção do curso de Direito,
com suas peculiaridades, seu currículo pleno e sua operacionalização, abrangerá,
sem prejuízo de outros, os seguintes elementos estruturais:
I - concepção e objetivos gerais do curso, contextualizados em relação às suas
inserções institucional, política, geográfica e social;
IV - formas de realização da interdisciplinaridade;
V - modos de integração entre teoria e prática;
VI - formas de avaliação do ensino e da aprendizagem;
VII - modos da integração entre graduação e pós-graduação, quando houver;
VIII - incentivo à pesquisa e à extensão, como necessário prolongamento da atividade
de ensino e como instrumento para a iniciação científica.
Dessa forma analisando os elementos selecionados nota-se que a preocupação
com a instituição do projeto pedagógico das IES que ministram Direito perfaz o
caminho das necessidades e peculiaridades regionais nas quais estas encontram-se
inseridas, bem como a necessidade de realizar intercâmbio entre disciplinas
22
Em 2002, a OAB impetrou mandado de segurança perante o STJ em face das alterações propostas
pelo CNE de alteração das diretrizes curriculares dos cursos jurídicos pela eliminação de matérias
essenciais ao curso e ainda diminuir sua duração de 5 para 3 anos.
91
(saberes), teoria e prática, graduação e pós-graduação e, por fim, determina o
incentivo a pesquisa e extensão.
Rodrigues (2005, p. 187-189) critica a vagueza com que os temas da
interdisciplinaridade e associação entre teoria x prática são tratados, firmando
entendimento de que, para a concretização de tais elementos, faz-se necessário
analisar o mesmo objeto a partir de diferentes categorias do saber em um mesmo
momento e entre as categorias internas do direito, sempre visando à compreensão
completa do problema.
Medina (2006, p. 89-91) faz uma crítica com relação ao tratamento dispensado à
disciplina Introdução à Ciência do Direito, na medida em que ao não indicar as
matérias mínimas que devem compor o currículo jurídico, e sim apontar o conteúdo
que deve ser abordado – terminou por colocar a propedêutica no ensino como
facultado às grades curriculares de cada instituição.
No que tange à relação entre teoria e prática, o autor determina que ambas são
indissociáveis, na medida em que não se busca formar um “despachante de
segundo nível” (RODRIGUES, 2005 p. 188), mas sim um profissional capacitado
dentro de um ambiente onde pesquisa e extensão se desenvolvem em conjunto com
o estágio prático.
De acordo com o relato de Fagúndez (2006, p. 69-70), a resolução estabeleceu um
eixo fundamental, um eixo profissional e um eixo da prática. Determinou-se uma
direção para a formação do graduando com a preocupação do tipo de profissional
que se deseja produzir.
Deseja-se um educando com uma visão crítica e com a capacidade de
resolver os conflitos (...) O profissional tem que estar preparado para
enfrentar a mudança. Não se pode formar um profissional que apenas
memoriza leis e orientações jurisprudenciais. (...) Deve-se dar destaque à
Teoria Geral do Direito.
Seguindo na análise do documento, seu terceiro artigo institui um marco no ensino
superior, e ao ser associado à indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão,
propõe para os cursos de Direto o que segue:
92
Art. 3º. O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do
graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de
análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada
argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e
sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a
capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica,
indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e
do desenvolvimento da cidadania. (MEC, 2007)
O perfil do estudante formado nas IES deve refletir elementos de humanidade,
postura reflexiva, visão crítica e busca pelo desenvolvimento da cidadania. Essa
visão utópica colocada em prática tem o condão de tornar real o cumprimento do
propósito social da Universidade, na medida em que irá capacitar indivíduos não
para o mercado de trabalho, e sim agentes promotores da igualdade e preocupados
com a realidade social que os circunda.
Nessa mesma esteira, aponta Souza Junior (2006, p. 29-30) quando descreve que:
Trata-se, pode-se ver, de um esforço considerável para inserir indicadores
de qualidade no desenvolvimento de cursos jurídicos, ajustando-os à
exigência de compromisso social contidas na proposta atualmente em curso
de reforma da educação superior, segundo a qual, além de prever que a
educação é bem público, estabelece também que ela cumpre função social,
concretizada por meio daqueles compromissos.
Essa intenção se alinha perfeitamente com o texto do artigo 205 da Constituição
Federal, quando garante a educação como direito de todos, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa e ao preparo desse indivíduo para o exercício da
cidadania.
De acordo com Rodrigues (2005, p. 192):
O cumprimento dessa norma constitucional implica a formação fundamental
e sociopolítica. Sem ela o jurista não conseguirá captar o papel político
desempenhado pelo Direito e suas especificidades nas complexas relações
do mundo contemporâneo, tornando-se um servo alienado das leis. O
exercício cidadão de qualquer atividade jurídica passa necessariamente por
esse aspecto, imprescindível na formação profissional de todos os
operadores jurídicos.
Sendo assim, com a análise da legislação referente aos cursos de Direito e o tipo de
formação que esse legislador buscou firmar no país, notamos que os instrumentos
legais para o cumprimento da formação humanística dos acadêmicos em Direito
encontra-se apto e atualizado perante as necessidades sociais. Com estas
93
informações, podemos passar à análise da forma como os direitos fundamentais são
ministrados de maneira a verificar se os intentos do legislador foram cumpridos.
3.2 A FORMA CONVENCIONAL DE ABORDAGEM DOS DIREITOS
HUMANOS NAS FACULDADES DE DIREITO
O presente tópico não tem o objetivo de aprisionar todas as IES nos padrões que
serão descritos e criticados a seguir. Trata-se de apresentar a maneira tradicional de
(re) abordagem teórica dos direitos humanos, e os riscos que se corre ao tratar o
tema pelo prisma dogmático.
No trabalho desenvolvido, objetiva-se demonstrar como a forma atual de ensino
jurídico tem afastado o aluno da realidade social na qual o mesmo se encontra
inserido, sempre tentando identificar a ideologia que se encontra por trás dessa
intenção e como opera essa força de dominação.
Ao passo que se busca firmar conceitos estáticos e aprisionar os direitos positivados
em classes cronológicas, a discussão acerca do tema de direitos humanos tende a
rodar em círculos num processo que se afasta da discussão sobre sua real
efetividade, bem como os mecanismos sócio-culturais que impedem a aplicação
desses direitos.
Passa-se a debater sobre a hipótese de novas gerações ou dimensões de direitos
humanos, a necessidade de uma interpretação mais abrangente desses direitos e,
exatamente de acordo com a ideologia hegemônica, deixam-se de lado questões de
fundo que são a base de uma discussão hábil a mudar o paradigma vigente.
3.2.1 A visão linear da afirmação histórica dos direitos humanos.
A doutrina tradicional lida com os direitos fundamentais de maneira a classificá-los
dentro de classes que ora são denominadas “gerações”, ora são denominadas
“dimensões”. Dentro desse diapasão, são reconhecidos aqueles direitos que foram
94
positivados nas constituições e acordos internacionais no decorrer da história, e
essa sistemática termina por desconsiderar os direitos que não estão
documentados, e muito menos as forças sociais de onde todos eles se originaram.
A crítica que envolve a visão linear da afirmação histórica dos direitos humanos
combate a tentativa de se aprisionarem as supostas classes de direitos em
determinados tempos históricos, e a postura que se adota ao ignorar os fenômenos
sociais e sua influência na criação e modificação desses direitos.
O modelo ocidental de afirmação história dos direitos humanos no mundo, nesta
etapa, é descrito por autores como Comparato (2003) e Moraes (2006). Trata-se das
etapas (consideradas pelo lado desenvolvido do globo) que definiram primeiramente
a obediência e, consequentemente, a positivação de um rol de direitos assumidos
como essenciais à dignidade humana.
Essa postura absolutista (que desconsidera a diversidade cultural no mundo)
termina por ignorar a fala das culturas que, durante todo esse processo de afirmação
da dignidade humana, foram castigadas com as atrocidades que foram cometidas
em nome da defesa do ser humano racional. No entanto, no sentido de ser
(cientificamente apenas) criticada, primeiramente, faremos um apanhado dos
principais acontecimentos que deram causa à positivação do que se entende hoje
no mundo ocidental – como dignidade humana.
De acordo com Comparato (2003, p. 8-11), o período compreendido entre 600 e 480
a.C., (século VIII a.c. - Homero) foi o início do estabelecimento das diretrizes
fundamentais da vida que vigoram até nossos dias. Com o nascimento da filosofia,
ocorre a substituição da mitologia pela razão, e com a racionalização da religião, o
cristianismo monoteísta assume o amor universal como bandeira de sua missão.
Nesse contexto de aproximação dos diversos estados-nação da época, o ser
humano passa a ser considerado em sua igualdade, independente de suas
diferenças sexuais, religiosas, raciais, etc. Esse embrião veio a ser positivado na
primeira declaração quase-universal de direitos quase 25 séculos depois.
O início desse caminho pode ser determinado com o surgimento da lei escrita que
organizaria a vida política grega e instituiria a democracia ateniense e a defesa da
95
liberdade do indivíduo perante o governo. Mas também centra-se nesse período o
surgimento das leis não-escritas, que firmariam o reconhecimento dos costumes e
sua aceitação fora dos limites do Estado-nação (COMPARATO, 2003, p.13-14).
Moraes (2006, p. 6-7) define esse marco inicial no terceiro milênio a.C. no Egito e
Mesopotâmia, e sua primeira codificação a partir do código de Hammurabi em 1690
antes de Cristo. Segue descrevendo a influência causada pelas idéias de Buda
acerca da igualdade entre os homens para definir a força religiosa sobre o ideal de
direitos humanos (MORAES, 2006, p. 7).
A justificativa para a obediência dessas leis não-positivadas, inicialmente, encontrou
forma na religião, e, posteriormente, na natureza, de onde foi surgir o início do
conceito de personalidade desenvolvida posteriormente pelos estóicos com base na
diferenciação do indivíduo independente de suas atividades ou de sua aparência.
Posteriormente, a forte concepção religiosa trazida pelo Cristianismo, com a
mensagem da igualdade de todos os homens, independentemente de
origem, raça, sexo ou credo, influenciou diretamente a consagração dos
direitos fundamentais, enquanto necessários à dignidade da pessoa
humana (MORAES, 2006, p.7).
A separação entre judaísmo e cristianismo com a proclamação da igualdade de
todos perante Deus, feita por Paulo não deixou de admitir entre os ditos cristãos a
inferioridade feminina, a escravidão e outras mazelas para com o ser humano.
Sendo assim, seguiram-se as discussões acerca do fundamento da natureza comum
dos homens, que foi iniciada não com base nos atributos do homem, mas sim de
Cristo (que foi tido como divino e humano na mesma pessoa), em 325, em Nicéia
(COMPARATO, 2003, p. 18-19).
No século VI, Boécio contestou os dogmas proferidos pela Igreja e passou a definir
como pessoa a “substância individual da natureza racional” (COMPARATO, 2003
p.19) baseada nos escritos de Aristóteles e abraçada por Santo Tomás de Aquino
que definiu o homem como o conjunto da substância espiritual e corporal. Dessa
forma, no período medieval, foi entendido pelos doutrinadores escolásticos e
canonistas da época que todas as leis contrárias a essa natureza humana seriam
inválidas e sem força normativa.
96
Com Kant, (apud MORRISON, 2006 155-179) baseando seu entendimento na razão
prática (guiada pelos imperativos hipotéticos e categóricos) passou a definir a
dignidade humana como intrínseca a todo ser racional, que existe como um fim em
si mesmo. Esse ser, ao mesmo tempo em que obedece as leis por meio de sua
razão prática, figura como fonte dessas leis na medida em que elas se originam do
imperativo categórico que faz esse sujeito agir eticamente. Com base ainda nos
postulados kantianos, nota-se que a finalidade do sujeito é atingir sua felicidade, no
entanto, existem outros sujeitos que possuem esse mesmo objetivo e, dessa forma,
respeitar e ajudar ao próximo figura como conteúdo do imperativo categórico.
Em seguida, com a descoberta do mundo dos valores (COMPARATO, 2003, p. 24),
determina-se que o homem é o único ser que se dirige de acordo com suas
preferências valorativas e, consequentemente, os direitos humanos foram colocados
normativamente acima dos demais direitos. O homem passa a ser, ao mesmo
tempo, legislador e súdito das leis que valora como necessárias de serem
obedecidas (SALDANHA, 1999, p. 117).
Por fim, o último elemento eleito por Comparato (2003, p. 27-29) como formador da
personalidade humana vem com a filosofia da vida e o pensamento existencialista. A
teoria maximizava a idéia de indivíduo como essência em si, e não nos papéis que
desempenha ou em sua aparência exterior. Trata-se de um movimento contrário à
extensa despersonalização humana trazida inicialmente com o nazismo e,
posteriormente, com a política de mercado capitalista criticada por Marx.
Essa teoria trouxe não a essência humana individual (diversa dos demais
objetos) como também a formação dessa identidade com base nas circunstâncias
sociais em que esse indivíduo está inserido, e o dinamismo dessa constante
transformação.
Toda essa bagagem teórica embasou o artigo VI da Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, que sagrou, em seu texto, o direito de todo homem ser
reconhecido como pessoa em qualquer lugar. Moraes descreve a importância de tal
documento com base nos seguintes dizeres:
97
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada em 10 de
dezembro de 1948, constitui a mais importante conquista dos direitos
humanos fundamentais em nível internacional, pois como ensina Francisco
Rezek, “até a fundação das Nações Unidas, em 1945, não era seguro
afirmar que houvesse, em direito internacional público, preocupação
consciente e organizada sobre o tema dos direitos humanos” (MORAES,
2006, p. 18).
Dentre outros, a declaração supracitada garantiu a positivação internacional da
igualdade e dignidade humanas, proibição à discriminação, direito à vida, liberdade e
segurança pessoal, acesso ao judiciário, consciência, opinião, religião, reunião,
direito ao trabalho. Vale ressaltar que todos esses direitos foram valorados de
acordo com a razão ocidental e com base nos interesses da força capital.
Após o relato da formação teórica do conceito de pessoa e personalidade,
Comparato (2003, p. 36-57) passa a um relato histórico-cronológico dos
acontecimentos e governos mundiais que vieram a definir a afirmação e unificação
dos direitos humanos de acordo com o conceito que se tem hoje.
Inicia, para tanto, com o reino unificado de Israel sob o comando de Davi, que
figurava como rei, no entanto se submetia às regras divinas postas como prática em
Jerusalém. No século VI a.C., surge o embrião da democracia em Atenas e, no
seguinte, ocorre o advento da república de Roma (COMPARATO, 2003, p. 36).
Atenas enxergava as leis como não apenas produzidas pela vontade humana, mas
sim pela prudência e razão, o que acarretava a participação ativa dos cidadãos na
vida política e o respeito quase sacramental às leis (COMPARATO, 2003, p.41-42).
Dessa forma, os governantes eram limitados não pelas leis, mas também pelas
instituições populares da época, o que fazia exercer não a função autorizativa da
democracia, mas também a de prestação de contas.
Em Roma, o controle político exercido entre os órgãos políticos foi a chave da
limitação do poder estatal (COMPARATO, 2003, p.43). Os cônsules tinham natureza
monárquica (faziam as leis); o senado romano guardava características de
aristocracia (aprovava as leis com ou sem emendas); e os comícios formados pelos
cidadãos votavam as leis. Cada cargo de cônsul ou senador era ocupado por dois
cidadãos, que podiam fiscalizar os atos de seu co-exercente.
98
Com o fim do império romano, surge o início da Idade Média e, com o feudalismo,
vem o enfraquecimento dos poderes político e econômico. O imperador e o Papa
passaram a disputar a hegemonia completa sobre a Europa e dessa pretensão de
unificação do poder surgiram a Carta Magna de 1215 e a Declaração das Cortes de
Leão de 1188 (COMPARATO, 2003, p. 44). Inicialmente, as liberdades proclamadas
eram prerrogativas dos estratos nobres da sociedade, mas, com o advento do
comércio, a população geral passou a acumular riquezas, a diferenciação social
passa a se dar de acordo com o patrimônio, e não pelo nome.
Moraes (2006, p. 7) descreve a intenção de limitação do poder estatal na Idade
Média, face ao novo sistema de divisão de classes com base no capital e na
organização feudal. Esse modelo representava o interesse da classe
(economicamente) dominante frente às pretensões estatais para com seu
patrimônio, esquecendo-se, ainda, de sequer considerar os demais como seres
humanos.
Com o avanço de técnicas de comércio, produção de bens, navegação e a criação
da letra de câmbio, do seguro marítimo, etc, veio a necessidade de se limitar o poder
político como forma a conferir maior segurança aos negócios que eram firmados na
época. Mais uma vez busca-se impor limites aos poderes estatais, o que sempre
prenuncia a criação de direitos fundamentais.
A análise dessa limitação de poderes pode ser vista com base no conflito entre
capital x direitos fundamentais, ao invés da relação: Estado x direitos fundamentais.
No momento em que o capital passa a reger as relações e a influenciar a vida social
e política, vem a necessidade de adaptar a proteção de direitos e garantias ao
desenvolvimento econômico dos Estados-nação que surgiam na época. Dessa
forma, os atos abusivos provenientes do Estado o eram (e não são) enxergados
como a tortura, o desamparo, as prisões ilegais, mas sim o ataque ao patrimônio
burguês e a cobrança de impostos, quando atingia as classes dominantes.
Segundo Comparato (2003, p.47-48), no século XVII, a Europa passou por uma fase
de consciência da necessidade de retorno das liberdades ora asseguradas na
Magna Carta. O bill of rights e o habeas corpus inglês trouxeram uma maior
abrangência de sujeitos de direito, e o advento do parlamento passou a limitar a
99
monarquia da época, acenando para o início da concretização da representatividade
política como garantia institucional.
Esses institutos (Petition of Rights e Habeas Corpus) impediam a cobrança indevida
de impostos e outras contribuições, bem como a liberdade de indivíduos detidos
irregularmente (MORAES, 2006, p. 7-8).
Posteriormente, a independência americana e a Revolução Francesa
concomitantemente, declaram os direitos inerentes à condição de ser humano, e os
valores de igualdade, liberdade e fraternidade. As democracias americana e
francesa não guardavam semelhança muito próxima com a ateniense, pois ambas
visavam proteger os nobres das atitudes do governo, ao invés de garantir a
estabilidade do povo perante o Estado (COMPARATO, 2003, p. 52 e MORAES,
2006, p. 9-11).
Com a crescente pobreza instaurada pelo processo capitalista liberal, surge a
necessidade do reconhecimento dos direitos humanos econômicos e sociais,
bandeira levantada pelo movimento socialista no início do século XIX, e que iniciou o
choque entre capital e direito das massas oprimidas. Na segunda metade desse
século, começa a fase de internacionalização dos direitos humanos, sagrada com a
Convenção de Genebra em 1864, com o Ato Geral da Conferência de Bruxelas em
1890, e a criação da OIT em 1919. Protegia-se o direito humanitário, proibia-se a
escravidão e assegurava-se o direito dos trabalhadores no plano global
(COMPARATO, 2003 53-54).
De acordo com Piovesan (1997, p. 132-133), nesse momento de
internacionalização, foram redefinidos os conceitos de soberania estatal e
concepção de indivíduo para o plano internacional. Ela também aponta a criação da
OIT, da Liga das Nações e do Direito Humanitário como precedentes a esse novo
alcance hermenêutico.
Nota-se que todas essas organizações tiveram sua criação precedida de conflitos
armados e tentativas de dominação física, e refletem a tentativa de mudar o âmbito
de atuação do direito internacional para além de mero regulador das relações
governamentais entre Estados (PIOVESAN, 1997, p. 135-136).
100
Após a Segunda Grande Guerra, as atrocidades presenciadas pelo mundo inteiro
acarretaram a aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948
e a Convenção Internacional de prevenção aos crimes de genocídio. Esse período,
segundo o autor (COMPARATO, 2003, p.56-57) ainda vigora até nossos dias,
quando diversas outras declarações de âmbito internacional foram firmadas com o
intuito de assegurar a prevalência dos direitos humanos sobre qualquer tipo de ato
que os venha a coibir. É também o entendimento de Piovesan (1997, p. 139-142).
Depreende-se que, conforme relato do autor supra, o mundo se assombrou com os
massacres trazidos pela Segunda Guerra Mundial. Desse medo generalizado, surge
a vontade de se assegurar a defesa internacional da dignidade humana,
combatendo o genocídio. No entanto, esquece-se dos milhões de mortos em virtude
da exclusão e marginalização capitalista causada pelo mercantilismo excludente
praticado pelos países desenvolvidos, e o numero de mortes que custam o
desenvolvimento dos países ditos centrais.
Continua-se a contar a história dos vitoriosos e dos derrotados sob a perspectiva de
quem está no comando. Na verdade, não se trata de incluir um número de países
que estejam na faixa dos dominantes, e sim identificar qual o elemento comum entre
eles nesse processo de dominação. Esse elemento é o capital, e a capacidade que
um determinado Estado-nação tem de operá-lo e fazer com que sempre cresça é o
diferencial que irá incluí-lo ou colocá-lo à margem das decisões e políticas de
direitos humanos.
Ignora-se o terror praticado pelo capital através de um processo de inculcação da
aceitação do que ocorre na rua, no bairro, na cidade, no país e no mundo. Esse
processo que opera por meio de poderes simbólicos visa universalizar valores
ocidentais acerca desses direitos, tornando sem eco a voz de quem não opera o
capital da maneira desejada e ignorando qualquer concepção de direitos humanos
que possa representar perigo ao desenvolvimento.
Desse processo de positivação interna e internacional dos direitos do homem, a
doutrina tradicional tendeu por dividir em gerações, as etapas que cumpriram a
normatização de cada classe desses direitos.
101
As gerações ou dimensões de direitos fundamentais representam uma discussão
doutrinária sob o ponto de até onde uma geração não eliminaria sua antecedente e o
que esse tipo de interpretação poderia prejudicar na solidificação e eficácia desses
direitos.
O termo “gerações” foi utilizado por Karel Vasak na aula inaugural dos Cursos do
Instituto Internacional dos Direitos do Homem em 1979 (BONAVIDES, 2007, p. 563).
As gerações em que os direitos fundamentais foram emoldurados estaticamente
refletem o desejo de se firmarem os marcos históricos que deram origem à
positivação nas constituições mundiais desses direitos, de forma a identificar o
momento temporal em que foram instituídos.
Reside o conflito entre a doutrina tradicional e moderna acerca dos termos gerações
e dimensões. O cerne do debate se encontra na crítica firmada sobre o termo
gerações e o caráter de substituição de uma geração de direitos por outra que o
termo sugere. No caso das dimensões, a doutrina reconhece o caráter cumulativo e
não sucessivo desses direitos (SARLET, 2004, p. 53-54).
A discussão acaba por corroer ainda mais a efetividade desses direitos na medida
em que se desprende tempo, raciocínio e livros de doutrina acerca de um tema que
contribui apenas para a solidificação do absolutismo do caráter ocidental desses
direitos. Discute-se a divisão desses direitos em fases históricas, e se a
denominação dessa divisão teria o condão de excluir os direitos antecedentes, ao
passo que olvida-se dos direitos que são desrespeitados em face do capitalismo
globalizado e da colonização econômica dos países periféricos.
No entanto, a título descritivo, será elencado o rol de gerações (ou dimensões)
definido pela cultura dominante. A primeira geração de direitos fundamentais
engloba a liberdade dos direitos civis e políticos individuais oponíveis ao Estado, ao
passo que a segunda geração está focada nos direitos sociais, culturais e
econômicos (BONAVIDES, 2007, p. 562-564).
O pensamento liberal-burguês do século XVIII trouxe o advento dos direitos de
cunho negativo perante o Estado, sob inspiração jusnaturalista, que defendia a vida,
a liberdade, a propriedade e a igualdade perante a lei (SARLET, 2004, p. 54-55).
102
Ao passo que a primeira geração nasce a partir da ideologia liberal, a segunda
geração desses direitos fundamentais surge com base na necessidade do
reconhecimento da igualdade dentro da coletividade. Inicialmente, foram postos
como programas a serem cumpridos posteriormente pelo legislador e,
subsequentemente, tiveram sua eficácia transformada em imediata no mesmo
diapasão dos direitos de primeira geração (BONAVIDES, 2007, p. 564-565).
Surge, nesse momento, a intervenção do capitalismo na cultura mundial,
modificando os processos de produção e sempre na intenção de transformar tudo a
sua volta em bens e serviços passíveis de valor no mercado. O mundo dos valores
ocidentais passa, então, a submeter a dignidade humana ao conflito com os bens de
valor econômico.
A segunda geração de direitos veio como resposta ao impacto gerado pela
Revolução Industrial e pelo capitalismo, que, ao empobrecerem a classe
trabalhadora, criou a necessidade de proteger essa qualidade de cidadãos. O
socialismo constatou, em sua ideologia, que os direitos individuais não estariam
garantindo seu propósito, e a necessidade da época se fazia em impor obrigações
positivas ao Estado, ao invés de somente negar-lhe certos atos (SARLET, 2004, p.
55).
De acordo com Bonavides (2007, p. 569), a terceira geração de direitos se origina a
partir da realidade mundial bipartida do final do século XX, em que a fraternidade
surge defendendo a paz, o meio ambiente, a comunicação e o patrimônio comum da
humanidade e seu desenvolvimento.
No entanto, o patrimônio mundial tem sido constantemente depredado em nome do
progresso econômico, e as armas de defesa da paz e desses bens e espaços
comuns a todos tornaram-se ineficazes perante o domínio do capital.
A quarta geração dos direitos fundamentais discutidos no presente estudo envolve o
momento de globalização política que ilustra a necessidade de defesa da
democracia, do direito à informação e ao pluralismo. Essa democracia de que se fala
deve ser direta e livre das influências “da mídia manipuladora, do hermetismo de
103
exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder”
(BONAVIDES, 2007, p. 571).
Infelizmente, o pluralismo e a democracia defendidas por essa quarta geração de
diretos ainda não foram solidificados dentro do discurso hegemônico dos países
dominantes. A imposição de sua cultura e modo de produção tem causado a
marginalização de centenas de povos, e o absolutismo tem substituído a
democracia, na tentativa (bem sucedida) de substituir uma cultura tida como
obsoleta, por outra entendida como correta.
Saindo, porém, desse ritmo linear-histórico de afirmação dos direitos humanos
tidos como símbolo de emancipação social e da teoria utópica em que a cada
marco histórico rompido esses direitos tornaram-se de fato efetivos (e cumpriram o
propósito a que vieram), nota-se que:
(...) duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos,
complacência para com ditadores amigos do Ocidente, defesa do sacrifício
dos direitos humanos em nome dos objectivos do desenvolvimento tudo
isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório
(SANTOS, 2006, p. 433).
Com base na diversidade cultural mundial, por que os direitos humanos foram
impostos verticalmente de acordo com os padrões da cultura ocidental? Por que sua
afirmação história é eurocêntrica? Como falar em universalidade dos direitos
humanos se os padrões de dignidade humana (dentre outros direitos) são
completamente diferentes dentro de um mesmo Estado?
Saldanha (1999, p. 117) exemplifica a questão com a seguinte citação:
O tema dos direitos, enquanto produto histórico, envolve a influência do
cristianismo (embora tenham se passado séculos e séculos sem que tal
influência se manifestasse, nesse ponto), do individualismo moderno e do
igualitarismo também moderno: um produto, portanto, de tendências que se
encontram dentro da história da cultura ocidental. Salvo antecipações
precárias, não encontramos os “direitos”na antiga cultura chinesa nem na
egípcia, nem no islamismo nem no mundo greco-romano.
Santos passa a analisar a política liberal hegemônica sob a ótica das tensões
causadas pelas crises da modernidade ocidental, sucintamente descritas no tópico
2.2.2 do presente estudo, e que serão alvo de maior abrangência no próximo item e
no item 4.2 da pesquisa. Com base nos argumentos oferecidos por ele, tentaremos
104
discutir um possível caminho para responder alguns dos questionamentos
levantados acima.
3.3 POR UMA VISÃO INTERCULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS
Quando faz menção dessa crise, Santos (2006 p. 433-434) identifica a questão dos
direitos humanos e sua interpretação como fator chave para compreensão da crise
paradigmática trazida pelo racionalismo-capitalista-ocidental, na medida em que se
propõe a identificar como os “direitos humanos podem ser colocados a serviço de
uma política progressista e emancipatória”.
Antes de apontar as possíveis soluções para a utilização realmente emancipatória
desses direitos, o autor passa a descrever três tensões que determinam a crise da
modernidade ocidental por ele apontada, a saber, a tensão entre regulação e
emancipação social, a tensão entre Estado e sociedade civil e a tensão entre
Estado-nação e globalização.
Com base na dialética identificada nessas três crises, o autor extrai as
conseqüências que envolvem a interpretação e aplicação dos direitos humanos sob
a égide do paradigma que aponta como hegemônico. Analisa os direitos do homem
dentro de uma ótica de macro e microfísica do poder nas camadas sociais,
considerando, para tanto, o plano interno e internacional das políticas que envolvem
esses direitos.
Primeiramente, no que tange ao conflito entre regulação e emancipação social,
Santos (2006, p. 434-435) o identifica na crise da metáfora “ordem e progresso
23
”,
na medida em que (politicamente) a emancipação social que tinha o papel de
indicar um futuro melhor a ser alcançado pela superação do status quo
(representado pela regulação) passou a representar junto com esta uma
concepção negativa do futuro a ser atingido.
23
O brocado “ordem e progresso”, que faz parte de nossa bandeira, representa também uma das
facetas da ideologia positivista.
105
Sendo assim, com o capitalismo global, a esquerda (política), que deveria realizar o
papel de criticar a regulação presente – num sentido de se revolucionar esse
presente para atingir um futuro melhor passou a defender o status quo, tarefa para
a qual não possui desenvoltura.
Dessa forma, acabou-se com a tensão dialética entre regulação e emancipação
24
na
medida em que ambas passaram a representar um aspecto negativo tanto do futuro
a ser atingido quanto do presente que está sendo vivido, e os direitos humanos
que podem ser utilizados tanto na regulação quanto na emancipação encontram-
se emperrados nessa crise, ao mesmo tempo em que a tentam ultrapassar.
A postura identificada pelo autor assemelha-se com a sociologia das ausências e
emergências proposta em outras obras (SANTOS, 2004 e 2005), quando ao
dissecar o modus operandi do que chama de razão indolente, passa a descrevê-lo
como aquele que comprime o presente tirando toda a possibilidade de se atentar
para as experiências que podem ser encontradas nos povos alheios à globalização
capitalista – e expande o futuro, incutindo a idéia da eterna dúvida pessimista acerca
do que está por vir à frente.
Essa postura tende a castrar qualquer tipo de pensamento inventivo e
emancipatório, na medida em que impossibilita transformar o presente em momento
de intercâmbio de vozes equiparadas entre os povos e suas diferentes concepções
e experiências, e ainda coloca o futuro como algo inatingível e sempre passível de
trazer novas crises, impossibilitando qualquer intenção de se projetar e alcançar
utopias atingíveis.
Seguindo sua análise, identifica a tensão entre Estado e sociedade civil na medida
em que se joga por terra a concepção ultrapassada que se tem de espontaneidade
da sociedade civil e artificialidade do Estado. o mais como admitir que da
sociedade organizada seja produzido o Estado que a regula. Com base na produção
do Estado, a sociedade passa a se auto-reproduzir a partir do bojo legislativo (desde
que democrático) desse mesmo Estado, o que atribui o caráter artificial a ambos na
medida em que, ao passo que o Estado tem a legitimidade de reivindicar sua
24
Na medida em que o termo regulação representa o domínio ideológico da sociedade, a
emancipação aparece como força antagônica e defensora da libertação dessa dominação simbólica.
106
atuação, a sociedade possui a mesma legitimidade para reivindicar sua capacidade
auto-regulatória.
Assim, a diferenciação entre Estado e sociedade civil passou a ser o resultado da
luta política moderna em que não se tem mais a tensão entre essas duas figuras, e
sim entre os interesses de grupos sociais que se reproduzem na forma de Estado e
os grupos sociais que se reproduzem nas bases da sociedade civil. Nesse ambiente,
os direitos humanos deixam de ser o contra-balanço entre essas duas figuras e suas
prerrogativas, na medida em que os direitos de “primeira geração(indivíduo contra
Estado) e os de “segunda e terceira gerações” (Estado como garante dos direitos)
tornaram-se reféns dos interesses voláteis dos grupos sociais descritos acima
(SANTOS, 2006, p. 435-436).
Santos se aproxima da teoria da microfísica do poder descrita por Foucault (2003,
p.150-154), e passa a descortinar a pretensa relação entre Estado e sociedade na
simplicidade em que é tida e propagada. Para tanto, identifica as relações de poder
pelas diversas camadas sociais, bem como a relação dessas camadas com as
instituições (IES, Igreja, Escolas, etc.) e como se dão os contatos de poder entre
esses grupos, independente do controle estatal da mesma maneira descrita por
Faria (1998, p. 150-155).
A título de exemplo, Santos descreve que, ao longo do século XX, a passagem da
primeira para a segunda e terceira gerações de direitos refletia a sociedade como
problemática e dependente de um Estado intervencionista. Sendo assim, uma
sociedade forte seria sinônimo de um Estado forte. na década de 80, com o
advento do neoliberalismo, alteram-se totalmente esses papéis, pois a sociedade
civil forte passa a necessitar de um Estado fraco e não-intervencionista. Dessa
forma, a luta hegemônica e contra-hegemônica dos direitos humanos se viu
apanhada nessa crise de inversão de papéis, crise essa de que, segundo o autor,
nenhuma das duas forças ainda se recuperou (SANTOS, 2006, p. 436).
A terceira e última tensão apontada pelo autor figura no conflito entre Estado-nação
e globalização. O modelo da modernidade ocidental apontado por Santos (2006, p.
436) é composto por Estados-nação soberanos que coexistem globalmente com
outros Estados soberanos. A relação interestatal é apontada pelo autor como
107
anárquica e frágil na medida em que os tratados internacionais não-impositivos
figuram mais como aspirações programais do que a regulação e emancipação dada
internamente dos Estados-nação.
Resta claro que dezenas de atrocidades são cometidas, em nível internacional, em
nome do desenvolvimento e progresso sempre aliados ao acúmulo de capital e
continuam sem o devido tratamento e consideração pelos organismos internacionais
de defesa da dignidade humana.
Nesse contexto de fragilização do Estado-nação, a globalização acarreta o
enfraquecimento da própria política dos direitos humanos (que se dava internamente
e o globalmente) e se aprofunda no risco que se tem ao redimensionar a dialética
entre regulação e emancipação social para um patamar global de diferenças e
particularismos culturais e religiosos. Nessa diversidade, fica ainda mais difícil
estabelecer um fio condutor para um diálogo eqüilátero.
Santos (2006, p. 437-441) se detém na questão da globalização com a preocupação
de identificar a luta interestadual entre hegemonia e contra-hegemonia na medida
em que passa a definir os contornos do que chama de: “Globalização é o processo
pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo
globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição
social ou entidade rival” (SANTOS, 2006, p.438).
Globalização para o autor é um termo a ser utilizado no plural, representando os
feixes de relações sociais que envolvem vencedores e vencidos, num processo de
dominação e imposição da cultura que se deseja implantar como hegemônica.
Desses processos de pulverização de arbitrários culturais, o habitus da cultura
dominante é disseminado aos demais locais e nações na sistemática de
colonização. Dessa forma, impõe-se um modo de vida sem considerar as
peculiaridades regionais, universalizando o que se tem (dentro de determinada
cultura dominante) como valores supremos, e ignorando o que se pode ter de
contribuição pelo outro pólo da relação de domínio.
108
A dialética que se estabelece entre a globalização hegemônica e a contra-
hegemônica é analisada sob o aspecto dos elementos que dão origem a essas duas
forças antagônicas, na medida em que a hegemonia (neoliberal) busca suas forças
no localismo globalizado (ajustamento de determinado local ou sociedade aos
parâmetros desejados) e no globalismo localizado (impacto que essa dominação
acarreta nas condições locais), cresce cada vez mais o imperialismo global do
capitalismo vertical, sempre impondo de cima para baixo (dos países centrais para
os periféricos) diversas alternativas de globalismos localizados postos para que se
possa escolher a qual arbitrário se submeter (SANTOS, 2006, p. 439).
A imposição, como dito anteriormente, coloca o dominado em condição de não-
questionador, sem voz ativa no processo de diálogo. Numa macro-visão dos dizeres
de Freire (2007, p. 50), a força hegemônica tem o poder de submeter todo um
Estado-nação à condição de ingenuidade transitiva e aceitação passiva.
Dessa imposição, nascem os elementos que originam a contra-hegemonia global, o
cosmopolitismo subalterno insurgente composto por um conjunto de movimentos
contra exclusão, discriminação social, destruição do meio ambiente, que se
relacionam através dos meios de comunicação dispostos pela tecnologia – e o
patrimônio comum da humanidade, que trata da articulação global feita por grupos
de defesa de valores e recursos que, pela sua natureza, são tão universais quanto o
próprio planeta (camada de ozônio, preservação da Antártida, etc) (SANTOS, 2006,
p. 439).
Essa luta contra a dominação vigente é tão global quanto a força que se deseja
combater, e esse globalismo representa tanto a força quanto a fraqueza do contra-
movimento, na medida em que suas finalidades podem esbarrar no culturalismo das
diferentes regiões do planeta, e ainda na hipótese de se permitir o patrocínio desses
movimentos por parte do próprio rival (SANTOS, 2006, p. 440-441).
Esse é o alerta do autor para os riscos e a amplitude da dominação que se enfrenta
nos tempos ditos pós-modernos. O risco de se prevalecer uma fala sobre a outra
(mesmo que a fala dominada esteja sobre a dominante) pode simplesmente alternar
o domínio entre os locutores e dar continuidade ao processo de opressão.
109
Em resumo, é com base nesses pressupostos que o autor situa o problema dos
direitos humanos que podem ser utilizados tanto pela hegemonia quanto pela
contra-hegemonia e dessa forma passa a descrever como esses direitos poderiam
fazer parte de um movimento cosmopolita.
Para Santos (2006, p.441-444), no âmbito cultural, os direitos humanos
encontrarão sua real efetividade na medida em que não mais forem encarados como
universais, e sim como interculturais. Universalizados, não passaram de arbitrário
impositivo por parte do império ocidental, mantendo o desequilíbrio entre sua
competência global e legitimidade local.
Não como trabalhar com o conceito de universalidade dos direitos humanos,
tendo em vista sua relatividade cultural
25
. Ao assumir essa postura, tende-se a
universalizar aquilo que é posto como regra pelo ocidente (globalismo localizado).
Ao contrário, no entanto, pode-se equilibrar as relações entre diferentes culturas, e
dentro dessa troca igualitária tornar-se-ia possível a discussão de questões
isomórficas e a real busca pela solução de problemas em comum.
Luño (2004, p. 130) define o perigo da tirania de valores, ao descrever o risco de se
assumirem certos parâmetros como fundamento fechado para os direitos humanos e
fundamentais:
(...) tal fundamento jusnaturalista não deve situar-se em uma ordem
ontológica fechada e a-histórica de valores metafísicos, eternos e imutáveis,
que então se corre o risco de que um setor da sociedade, sentindo-se
intérprete e porta voz dessa ordem axiológica objetiva, busque impor uma
<<tirania de valores>> aos demais, o que é abertamente incompatível com
um sistema ética e politicamente pluralista. (tradução livre)
26
25
Santos (2006, p. 443) define que o conceito de universalidade defendido pelo ocidente tem suas
bases na figura do “direito inerente a todo ser humano”, que disfarça a impossibilidade de resposta na
medida em que assume ser possível uma concepção única de natureza humana. O guia para tal
resposta ainda é fornecido pelo próprio ocidente, com base nos pressupostos de conhecimento da
natureza humana por meios racionais, superioridade da natureza humana frente ao restante da
realidade, existência de um núcleo irredutível e universal de dignidade humana e a relação
indissociável entre autonomia do indivíduo e organização social.
26
(...) tal fundamiento iusnaturalista no debe situarse en un orden ontológico cerrado y ahistórico de
valores metafísicos, eternos e inmutables, ya que entonces se corre el riesgo de que un sector de la
sociedad, sintiéndose intérprete y portavoz de ese orden axiológico objetivo, intente imponer uma
<<tirania de valores>> a los demás, lo que es abiertamente inconpatible con un sistema ética y
políticamente pluralista.
110
Essa descrição revela ainda os trilhos do caminho que uma eventual contra-
hegemonia pode seguir ao assumir a postura de hegemonia e optar por transformar
o diálogo plural em monólogo de comunicados emitidos.
O modelo de pluralismo proposto por Wolkmer (2001, p. 171-172), que vai ao
encontro da proposta presente na pesquisa se descreve a partir dos seguintes
dizeres:
Ao contrário da concepção unitária, homogênea e centralizadora,
denominada de monismo”, a formulação teórica e doutrinária do
“pluralismo” designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas
formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com
particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos
autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si.
No sentido de se aplicar o pluralismo, faz-se necessário atentar para a diversidade
de espaços e experiências que se originam desses espaços, mantendo sempre a
cautela de não excluir nenhum dos elementos do diálogo, nem mesmo colocar uma
voz em precedência sobre a outra. Dessa forma, a solução de um problema similar a
duas culturas pode receber a contribuição de ambas e, desse contato, novos
elementos poderão ser incorporados por livre vontade, e não por imposição
arbitrária.
Santos (2006, p. 444) descreve alguns episódios pós-Segunda Guerra que ilustram
como a concepção “universal” dos direitos humanos tem servido os propósitos
capitalistas ocidentais, ilustrando como um discurso sedutor e protetivo é associado
a posturas excludentes e discriminatórias. No entanto, não deixa de mencionar as
pessoas e organizações que se têm lançado na luta emancipatória contra-
hegemônica, bem como as premissas que baseiam essa luta.
Como primeira premissa (SANTOS, 2006, p. 445-447), descreve a necessidade de
superação do debate acerca da universalidade dos direitos humanos e relativismo
cultural, para então se estabelecer um diálogo equilibrado entre as diferentes
culturas na busca da concretização de direitos similares sob diferentes prismas.
Em seguida, vem enumerar a necessidade de abertura do canal de discussões para
outras culturas que se encontram marginalizadas pelo processo capitalista ocidental
ao ponto de possuírem concepções de dignidade humana, mas não terem condições
111
de conceber essas concepções como direitos efetivos. Como terceira, premissa trata
do reconhecimento por parte dos povos, da incompletude de suas culturas no que
tange a concepções de dignidade humana. Essa postura permite a análise exterior
de problemas internos e a relação entre diferentes pólos culturais.
Como quarta premissa, define a necessidade de reconhecimento da divergência de
concepções acerca da dignidade humana dentro de uma mesma cultura, o que abre
portas para a análise dessas diferentes concepções na busca da mais abrangente.
Por fim, a quinta premissa envolve o reconhecimento de que toda cultura tende a
dividir os indivíduos e grupos sociais pelos princípios de igualdade e diferença,
sempre associados à idéia de hierarquia, que, muitas vezes, se misturam, fazendo
com que nem todas as igualdades sejam idênticas e nem todas as diferenças sejam
desiguais.
Essas premissas, em conjunto, possibilitam o desenvolvimento da atividade de
hermenêutica diatópica proposta por Santos (2006, p. 447-454):
A hermenêutica diatópica é um trabalho de colaboração intercultural e não
pode ser levado a cabo a partir de uma única cultura ou por uma pessoa
(...) A hermenêutica diatópica requer não apenas um tipo de conhecimento
diferente, mas também um diferente processo de criação de conhecimento.
A hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento colectiva,
participativa, interactiva, intersubjectiva e reticular.
Trata-se do diálogo equilibrado entre diferentes culturas, que passam a deliberar
acerca de uma questão ou direito isomórfico entre ambas, de forma a possibilitar o
exame de matéria comum sob diferentes concepções culturais.
Essa condição de trabalho intercultural com os direitos humanos possibilita a
diminuição da incompletude cultural (tanto dos povos periféricos, quanto centrais)
pela própria compreensão de seu estado inacabado. Trata-se de reconhecimento
que, por conseguinte, carrega consigo identificação e compreensão para com o
outro pólo do diálogo e, em grande parte, pelo reconhecimento do contato
estabelecido como diálogo legítimo e equilibrado.
Mas não se pode olvidar que, como os grandes monumentos mundiais
(contemplados por sua beleza e imponência) os direitos humanos foram construídos
112
sob milhares de barbaridades, conflitos, genocídios, etc. Essa conscientização
permite ao intérprete uma visão do perigo na ignorância da duplicidade que pode
envolver a hermenêutica e, consequentemente, a aplicação desses direitos.
Ressalva ainda Santos (2006, p.455-157) que não basta simplesmente abrir um
canal de comunicação com os países periféricos e concentrar em sua fala o possível
locus de interculturalidade. Muito da ideologia que se combate com hermenêutica
diatópica se encontra difundido nos países do sul, haja vista o poder de
dominação do império ocidental, que muito tempo promove a inculcação de seus
arbitrários culturais sob forma de localismos globalizados.
Outras duas importantes questões a serem analisadas no uso da diatópica o a
aparente impossibilidade de igualar culturas que, durante toda história, figuraram em
pontos desiguais de domínio e dominação e a possibilidade da fraqueza cultural de
um dos pólos do diálogo envolver seu domínio por parte da outra cultura mais
estruturada. Isso porque, ao assumir a incompletude de sua cultura, enfraquece seu
argumento e, consequentemente, corre o risco de completar suas lacunas com
bagagem cultural alheia de maneira vertical e não horizontal (SANTOS, 2006 p. 458-
459).
Sendo assim, algumas orientações são sugeridas para que o diálogo intercultural
seja firmado dentro do ambiente de troca igualitária e longe das circunstâncias de
dominação. Primeiramente, o reconhecimento da incompletude cultural que leva o
sujeito a se interessar por outros saberes que possam responder às questões que
não se resolvem com base apenas na cultura interna em seguida, o
reconhecimento da diversidade cultural interna, que permite a escolha de sua versão
mais ampla (no que tange aos direitos humanos) para que se possa obter do diálogo
intercultural o máximo de progresso possível.
Esse progresso se com base na ecologia de saberes
27
que segue descrita pelo
autor em comento como a utilização e consideração de diferentes saberes e
práticas, sempre sob a base da diversidade cultural e a necessidade desse
27
Santos (2006, p. 154-155) descreve o instituto como um conjunto de epistemologias baseadas na
diversidade e na globalização contra-hegemônica em que desconsideram-se as epistemologias que
se consideram neutras e as reflexões que se assentam apenas nos conhecimentos abstratos, e não
nas práticas de conhecimento e seus impactos nas práticas sociais.
113
reconhecimento por parte do pólo que considera a ciência moderna como a única
forma de saber. Essa é a ideologia hegemônica, que, descrita por Santos (2004, p.
83), define o saber hegemônico como:
A ciência moderna não e a única explicação possível da realidade e o
sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as
explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou
da poesia. A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento
assente na previsão e no controlo dos fenômenos nada tem de científico. É
um juízo de valor.
Sendo juízo de valor, nota-se que essa forma de conhecimento foi eleita não
como superior, mas como a única a ser reconhecida como realmente científica e
válida, o que fecha ainda mais os canais de diálogo entre as diferentes culturas e
suas práticas e saberes.
Outro item de importante observância reside no tempo de início e duração desse
diálogo. Santos (2006, p. 461) define que o início da conversa deve partir de uma
decisão bilateral, que irá envolver o preparo de cada cultura para discutir as
questões que foram eleitas. No entanto, o término desse contato irá envolver uma
decisão unilateral de cada lo, resguardando, assim, o risco do enfraquecimento e
dominação cultural por parte do lado mais forte da relação. A bilateralidade também
precisa envolver a escolha dos temas a serem tratados e, por fim, reside a
necessidade de se tratar a igualdade (quando a diferença discrimina) e a diferença
(quando a igualdade descaracteriza) como termos emancipatórios e não
dominadores.
Dentre esses riscos apontados pelo autor, soma-se a necessidade de
reconhecimento de uma série de direitos que foram suprimidos pelo império
ocidental, e que fazem parte do núcleo formador de uma dignidade humana utópica,
porém necessária ao desenvolvimento igualitário das diferentes culturas e povos.
Esses direitos são enumerados pelo autor (SANTOS, 2006, p. 464-470) como o
direito a conhecimento (que importa o reconhecimento de outros saberes); o direito
de se levar o capitalismo global a julgamento num tribunal mundial (e a conseqüente
verificação da destruição do cuidado para com o próximo e a natureza em nome do
progresso); a transformação do direito de propriedade colonial em solidário (que
114
combate o individualismo liberal das multinacionais que dominam serviços e setores
essenciais à humanidade e os operam de acordo apenas com o lucro).
Segue ainda com a concessão de direitos a quem ainda não tem capacidade de
deveres (que envolve assegurar o futuro da natureza e das gerações que ainda
estão por vir); o direito à autodeterminação democrática (que envolve a autonomia
de um povo em determinar seu estatuto político interno e de libertar-se da
dominação externa); o direito à organização e participação na criação de direitos
(organizar os pólos de combate ao imperialismo e influenciar na criação de novos
direitos que se identifiquem com essa solidariedade).
Trata-se de elementos que precisam ser incorporados no estudo do Direito, se o
objetivo de uma Instituição de Ensino Superior for o de formar profissionais
humanizados e preocupados com a realidade social que os circunda. Não basta se
fechar dentro do que se encontra positivado e deixar a realidade (produtora do
próprio direito) do lado de fora, por meio de discussões dogmáticas que nada fazem
além de aumentar a desigualdade social e o divórcio entre Direito e sociedade.
Dessa forma, faz-se necessário discutir a efetividade dessas medidas, de que
maneira poderiam ser implementadas no que tange à problemática que vem sendo
discutida na presente pesquisa (ensino jurídico desumano), bem como a forma de se
disseminar essa filosofia dentro do que se aponta como possível contribuição para a
mudança paradigmática (extensão universitária dialógica).
3.4 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
28
COMO TEMA TRANSVERSAL NOS CURSOS DE DIREITO
O perfil humanista pretendido pela resolução 09/2004 do CNE tem, conforme
demonstrado nos capítulos anteriores, esbarrado no ensino tecnicista que vem
sendo ministrado nas IES desde o império até os dias atuais. Essa barreira tem sido
formada não pela forma como os dogmas prontos vem sendo reproduzidos por
28
Para a presente pesquisa foi eleito o termo “Direitos Humanos Fundamentais” para designar
aqueles direitos diferenciadamente protegidos devido à sua importância à coesão do Estado
Democrático de Direito (multicultural).
115
meio da educação bancária, mas também pela maneira de abordagem dos direitos
humanos fundamentais adotada por essas instituições.
A investigação das causas desse tecnicismo acrítico e essa postura passiva com
relação aos direitos humanos (que o somente os considerados pela cultura
ocidental) possuem origem no paradigma em crise apontado por Santos, e pela
maneira como o capitalismo neoliberal tem se firmado como ideologia dominante no
mundo globalizado.
Mas como tratar a efetividade dos direitos humanos fundamentais sob as bases
contra-hegemônicas dentro das universidades e instituições privadas de ensino
superior? Trata-se de esforço conjunto com a indissociabilidade de ensino, pesquisa
e extensão sob a ótica intercultural de valorização social dos saberes tradicionais e o
contato consciente com essa realidade social.
A práxis acadêmica deve ter como fio condutor a idéia transmitida por Herkenhoff
(2000, p. 21):
Os Direitos Humanos expressam-se por um coro de vozes, por vozes
diferenciadas. Os Direitos Humanos são percebidos de maneira diferente no
discurso dos dominantes e no discurso dos dominados. As enunciações
sofrem, no seu entendimento, a influência dos destinatários, em razão de
variáveis como classe social, cultura, nacionalidade ou lugar social em
sentido amplo.
É preciso disseminar no ensino, dentro das salas de aula, nas pesquisas que
produzem o novo saber e no momento de se estender (por meio do diálogo) esse
saber, valores que considerem o outro pólo da relação como igual, que o estudante
e profissional tenham ouvidos e olhos para sua realidade, bem como interesse
genuíno em solucionar os problemas apresentados. A postura deve ser equilibrada,
com a consciência de que não se está levando um saber pronto e inquestionável,
mas sim buscando em conjunto uma solução para um determinado problema,
considerando para tanto as alternativas trazidas pela outra voz do diálogo.
O autor citado (HERKENHOFF, 2000, p. 61-69) faz um apanhado das diversas
declarações de direitos humanos fundamentais que positivaram, no plano
internacional, um núcleo (que chama de mínimo) dos direitos humanos, no entanto
116
não deixa de ressalvar a multiplicidade de interpretações que lhes são dadas,
conforme analisados sob a ótica dos países dominantes, dos povos indígenas, dos
mulçumanos ou do continente africano.
Trazendo essa realidade para uma instituição de ensino, urge atentar para as
diferentes concepções que podem advir das diferentes camadas sociais e culturais
dentro de uma mesma cidade ou estado.
De acordo com Silveira (2006, p. 121-122):
O ser humano constitui-se na relação com o outro ser humano, na vida em
sociedade. A busca da solução dos problemas e de novas alternativas é
questão social. “O pensamento dirigido é social. À medida que se
desenvolve, vai sendo cada vez mais influenciado pelas leis da experiência
e da lógica propriamente dita.” (...) A vivencia cultural e histórica de cada
um torna-se ponto imprescindível na inter-relação de construção humana,
contexto em que se situa a aprendizagem.
Esse fato ilustra a necessidade da abertura do ensino jurídico para as disciplinas
propedêuticas, buscando sempre afastar o fechamento dogmático em que o Direito
se enclausurou. Não há mais como conceber o ensino do Direito afastado das
demais ciências, e o mesmo ocorre com a pesquisa, que precisa se abrir para
estudos interdisciplinares. A busca por soluções necessita ser feita sob a ótica de
diferentes saberes científicos e tradicionais.
Medina (2006, p. 158-159) descreve o perigo do fechamento dogmático do ensino
jurídico sob a seguinte fala:
É por essa razão acrescenta que o estudo do direito, ao reconhecer
para a moral a sua pertinência costumeira, impedirá o teórico de lançar-se
em simplificações exageradas referentes tanto ao conteúdo das regras
quanto à sua aplicação a situações concretas. É essa uma postura
humanista em face do direito, que deve servir de norte ao ensino jurídico.
San Tiago Dantas advertiu para o fato do que o positivismo jurídico é a
expressão maior do anti-humanismo, exatamente porque “o Direito para o
positivismo independe de seu conteúdo teleológico ou finalista” ou seja,
do seu sentido ético.
O fechamento apontado pelo autor advém do desrespeito à ética quando se fala no
ensino das normas e dos princípios que orientam a ciência do Direito. Outro ponto
enunciado é o compromisso social que representa a profissão a ser exercida pelo
bacharel em direito, independente de ser advocacia ou assumir um cargo público.
117
Trata-se de abraçar a dignidade da profissão a ser exercida futuramente pelo
estudante.
O autor ainda defende a necessidade da ética humanista na disciplina de
Deontologia Jurídica a ser ministrada nos cursos de Direito, bem como nos núcleos
de prática jurídica e nas demais atividades complementares, que de acordo com o
mesmo – se encaixaria a extensão universitária (MEDINA, 2006, p. 163-167).
No entanto não o ensino e a pesquisa devem ser abordados e desenvolvidos
interdisciplinar e interculturalmente. O resultado desses dois processos de
aprendizagem e produção de conhecimento deve deixar a clausura da academia
para entrar em contato com a realidade social que envolve a instituição de ensino,
de maneira a levar o saber apreendido e produzido e voltar com outros elementos
para compor o conjunto científico que irá determinar o caminho mais viável para
solução de determinado problema.
Não o aluno (futuro profissional), mas também o professor deve atentar para sua
própria formação como canal facilitador de entrada do acadêmico no processo de
ensino-aprendizagem. Conforme os dizeres de Alves (2006, p. 98), as práticas
educacionais devem ser revistas com o firme propósito de proporcionar uma
formação integral do acadêmico do curso de Direito, que a sociedade atualmente
exige uma vivência interdependente com as diversas áreas do saber.
Porém, logo após o texto citado, a autora identifica a realidade da formação jurídica
universitária atual como deficiente em contribuir para uma visão integral do ser
humano, na medida em que não se comunica com os demais saberes. Esse fato
gera a impossibilidade de adquirir uma visão global dos fenômenos sociais que se
dão no decorrer do curso e o aluno (acríticamente) passa despercebido da realidade
social.
Em vários pontos, é ressaltada em sua obra (ALVES, 2006, p. 99) a necessidade de
se incentivar o aluno a participar ativamente da aquisição do conhecimento, pelo
contato com outros saberes, e também enumera os obstáculos que impedem esse
processo como: a dificuldade para inserção de outras fontes de saber nas grades
curriculares, a formação acadêmica fragmentada dos professores, bem como a
118
dificuldade de se transmitir em sala de aula o que algumas vezes encontra-se de
positivo nos planos de curso.
O que se tem como resultado dessa crise paradigmática dentro dos cursos de
direito, vem atentar contra um dos pilares da educação humanista, a
interdisciplinaridade, que segue descrita da seguinte forma:
A interdisciplinaridade desempenha papel de fundamental importância ao
propiciar o diálogo vertical e horizontal entre as diversas unidades
curriculares e outras áreas do saber, o que não implica a quebra das
peculiaridades de cada uma delas, mas da identificação de pontos de
conexão que permitem a análise, sob a ótica de diversos ângulos, do
mesmo objeto ou fenômeno social (ALVES, 2006, p. 99-100)
O conceito encaixa-se perfeitamente na concepção de direitos humanos
interculturais descrita por Santos (2006), bem como no modo de operação da contra-
hegemonia insurgente. Trata-se da aplicação teórica na práxis acadêmica, do que se
tem como o diálogo equilibrado entre saberes em torno de uma questão similar a
ambas as micro-culturas
29
.
Mas volvemo-nos à realidade do ensino jurídico, em que “a universidade encontra-se
hoje quase integralmente apartada do contexto das relações sociais no qual se
insere” (DRI, 2006, p. 190), para afirmar que, mesmo necessitando de autonomia
(distância aceita até pela Sociologia da Educação), a universidade tem se
distanciado demais do cotidiano social.
A autora defende como alternativa a mudança dos conteúdos e métodos utilizados
nos cursos jurídicos, mas também a gestão da IES com base na integração de
setores sociais, com base na extensão universitária.
Esse é o ponto no qual a teoria do ensino e da pesquisa vem se juntar à práxis
social por meio do contato direto com o locus onde nasce essa diversidade de
vivências e saberes tradicionais. Esse é o papel desenvolvido pela extensão
universitária, quando desenvolvida sob a ótica do diálogo.
O ensinar pela extensão pretende significar uma superação da análise
meramente teórica da realidade. Tal como a pesquisa se aparece como
29
O termo é utilizado para representar uma proporção bem menor do feixe de relações interculturais descrita por
Santos (2006) ao descrever a interculturalidade no plano da globalização.
119
essencial e quase cotidiana às atividades tanto de educadores quanto
de educandos, o contato direto com os problemas da sociedade é capaz de
incrementar substancialmente a qualidade da formação oferecida aos
futuros profissionais (DRI, 2006 193).
Dessa forma, os estudantes e professores passam ao contato direito com a
realidade social e têm a condição de formar um entendimento mais concreto na
busca conjunta de soluções com os agentes comunitários.
A extensão universitária representa assim uma tentativa de superação do isolamento
científico no qual o Direito se colocou por meio do contato direito com a realidade
social bem como a melhoria da precisão metodológica do ensino jurídico, através
da superação do conceito tradicional de pedagogia como mera transmissão de
conceitos para a variação dos métodos de ensino, colocando o aluno como sujeito
ativo no processo de aprendizagem e construção do conhecimento.
No entanto, do mesmo jeito que o ensino jurídico, a extensão universitária também
enfrenta a crise paradigmática do isolamento das IES face à sociedade. O mito do
cientista (DRI, 2006, p. 200) é transportado para a extensão, na medida em que os
conhecimentos produzidos na academia se auto-denominam superiores aos
tradicionais e muitas vezes os estudantes incorporam essa falsa superioridade,
acarretando a ineficácia do processo extensivo dialógico.
Esta circunstância deve-se ao caráter assistencialista que vem sendo aferido à
extensão, que, por meio da indissociabilidade com ensino e pesquisa acríticos,
termina por figurar como mera prestação de serviços comunitários, pela ampliação
de saberes postos para comunidades que receberão os elementos como místicos,
por não participarem ativamente do processo de aprendizagem.
A indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão faz com que a mesma
preocupação que vem sendo defendida para com a extensão universitária seja
aplicada às atividades de ensino e pesquisa.
No que tange ao ensino, a flexibilização curricular, a abolição do ensino bancário e
acrítico são elementos que visam instituir a prática não-reprodutória nas IES. A
maior oferta de disciplinas que concedam ao aluno uma formação humanística, e a
120
participação ativa deste no processo de aprendizagem são elementos que irão
proporcionar uma mudança paradigmática no ensino jurídico
De acordo com Cortegoso, et al (2003, p. 47):
Adotou-se, além disso, como premissas para fundamentar a flexibilização
curricular: o entendimento de que um curso é um percurso, ou seja, podem
haver alternativas de trajetórias; o entendimento de que cada aluno terá um
grau de liberdade relativamente amplo para definir seu percurso (curso); a
possibilidade de contemplar, além de uma formação em área específica do
saber, uma formação complementar em outra área; o currículo deve ser
entendido como um instrumento que propicie a aquisição do saber de forma
articulada.
Tendo-se em mente esses objetivos, desenvolver-se-á uma concepção de ensino
onde possa se admitir que existam conhecimentos que vão além do frame jurídico, e
que outras áreas do saber tem muito a acrescentar nas experiências que são
ensinadas nos cursos de Direito. Além disso, deve-se ter em mente que o ensino
não pode se ater a uma mera transmissão e aquisição de conteúdos, mas deve ter a
preocupação com o desenvolvimento de habilidades e atitudes que reflitam um
saber emancipatório, interdisciplinar e humano.
Com relação à pesquisa científica restou claro também que a interdisciplinaridade
deve orientar a produção do conhecimento, pois a relação do conhecimento jurídico
com as demais formas de conhecimento (outros conhecimentos científicos e
tradicionais) tem a acrescentar na formação dos pesquisadores e no resultado
prático de suas pesquisas.
Além dessa interdisciplinaridade, a abertura da universidade para a realidade social
cria a possibilidade de se modificar a fonte das pesquisas que serão desenvolvidas,
de forma a permitir que a própria sociedade seja o objeto de estudo das
universidades.
Dessa forma, torna-se possível produzir o real conhecimento emancipatório. A
universidade estará demonstrando a preocupação com a modificação social por
meio do estudo da sociedade e da busca de soluções que efetivamente alterem as
mazelas que afligem a população e que permitam a organização social dos grupos
que se encontram marginalizados pelo capitalismo global.
121
Sendo assim, o próximo capítulo tem o objetivo de traçar os contornos para a
criação e desenvolvimento de uma extensão universitária emancipatória.
122
4 A EXTENSÃO COMO INSTRUMENTO DE DIÁLOGO HUMANÍSTICO
COM A SOCIEDADE
Por meio da leitura dos conceitos que, identificados, demonstram a ideologia
hegemônica difundida pela cultura ocidental, nota-se que, como alternativa a essa
dominação, os autores reunidos apontam sempre o diálogo entre diferentes culturas
como processo hábil a produzir conhecimento emancipatório, e promover a
libertação do pensamento dogmático, universal e acrítico.
Essa mudança paradigmática importa não em rejeitar a ciência moderna, mas sim
em colocá-la em plano de igualdade com os demais saberes e experiências que
foram marginalizados pelo capitalismo neo-liberal e promover a troca de
conhecimentos e epistemologias em torno de um problema comum, na busca de
uma solução equilibrada a ambas as partes envolvidas no processo.
Dentro do tripé ensino/pesquisa/extensão não desconsiderando sua
indissociabilidade e analisando essas teorias dentro da ótica da Universidade foi
eleita a atividade de extensão como instrumento capaz de cumprir não a função
social das IES, mas também por ser meio capaz de estabelecer o diálogo entre
academia e sociedade, num processo que teria o objetivo de aproximar o aluno da
realidade social que o circunda.
Esse seria o processo de humanização do aluno, do professor e da instituição de
ensino, por meio do contato direito e equilibrado com a realidade social,
desconstruindo o paradigma racional-positivista que se encontra no ensino jurídico
desde sua fundação no Brasil, e produzindo indivíduos emancipados dentro e fora
da academia, alimentando, assim, as fileiras da contra-hegemonia
30
.
Dentro desse processo de humanização por meio da extensão universitária, faz-se
necessário discutir de que forma essa extensão deveria funcionar para que pudesse
servir de meio emancipatório, e deixar de ser mera assistência judiciária ou serviço
lucrativo para as IES.
30
A contra-hegemonia aqui descrita trata das atividades e organismos que promovem esse diálogo
emancipatório defendido na pesquisa e buscam maneiras de retirar as comunidades marginalizadas
desse confinamento promovido pelo capitalismo e pela cultura ocidental. Trata-se da tentativa de
difundir o multiculturalismo e o reconhecimento das culturas periféricas.
123
Este é o objetivo do diálogo defendido por Freire: emancipar ao invés de aprisionar.
Construir conhecimento, e não impor uma cultura sobre outra. Comunicar-se e
produzir o saber, ao contrário das práticas extensionistas que levam o conhecimento
pronto, místico e inquestionável até as comunidades tidas como ignorantes e
inferiores.
4.1 A IDÉIA DE DIÁLOGO EM PAULO FREIRE
Precedendo à tratativa do diálogo, Freire sedimenta em suas obras uma série de
conceitos e teorias que dão substância aos inúmeros detalhes que constroem em
conjunto essa dialogicidade que o autor defende como cerne de uma educação
libertadora.
De acordo com Zitkoski (2006, p. 16):
A humanização do mundo atual exige que repensemos muitos aspectos da
vida em sociedade. Dentre eles, destacamos a necessidade de
repensarmos a educação que praticamos, as relações humanas na sua
cotidianidade prática da economia e da vida privada, as posturas políticas e
as relações sociais delas resultantes e a produção do conhecimento
técnico-científico, que está na base da reprodução dos sistemas
hegemônicos da sociedade.
Trata-se de analisar novamente como procedem as relações em sociedade nas mais
diversas camadas e, principalmente, no que tange à educação e à produção de
conhecimento, que, de acordo com o próprio autor, situam-se na base do status quo
vigente.
O primeiro caminho apontado por Freire (2006b, p.58-64) para a emancipação do
oprimido é a tomada de consciência de sua situação. Da mesma forma como foi
descrita a atuação do poder simbólico (Bourdieu) e a reprodução dos interesses da
hegemonia ocidental (Santos), o fato é apontado por Freire como entrave ao diálogo
emancipatório e à conseqüente humanização do sujeito que se deseja libertar.
Essa reprodução, de acordo com Freire (2006, p. 41-42) ocorre através da invasão
cultural em que o sujeito invasor impõe sua concepção histórico-cultural de mundo
124
ao invadido, e reduz esse sujeito oprimido a mero espaço a ser colonizado. Esse é o
anti-diálogo:
O primeiro atua, os segundos têm a ilusão de que atuam na atuação do
primeiro; este diz a palavra; os segundos proibidos de dizer a sua, escutam
a palavra do primeiro (...) Para que a invasão cultural seja efetiva e o
invasor cultural logre seus objetivos, faz-se necessário que esta ão seja
auxiliada por outras que, servindo a ela, são distintas dimensões da teoria
anti-dialógica.
É o processo que se por meio da propaganda, dos slogans, dos mitos,
instrumentos que ajudam o invasor a persuadir o dominado por meio da
manipulação e da massificação, nunca organizando os indivíduos em posição capaz
de os emancipar.
Essa alienação cultural transmite a relação entre poder e conhecimento que se
estabelece a partir do momento em que as elites transformam o conhecimento em
dogma a ser retransmitido como comunicado que não ocorre numa relação de
comunicação, e sim num monólogo. E essa concepção de educação bancária sai do
plano de análise da sala de aula, e passa a ilustrar a realidade das relações de
poder que se estabelecem dentro da sociedade.
Em face dessa relação desumana entre dominante e dominado, a proposta contra-
hegemônica dialógica se dá com a seguinte bandeira:
Essa cultura brota do impulso de liberdade dos oprimidos e segue uma
lógica anárquica frente aos sistemas vigentes, porque se orienta por uma
racionalidade distinta. A racionalidade preconizada aqui define-se pelo seu
potencial dialógico, amoroso e humanista, como base para elaborar uma
cultura biófila, crítica e essencialmente libertadora (ZITKOSKI, 2006, p. 27).
Como alternativa social, política e econômica a essa hegemonia, Freire aponta o
diálogo como instrumento de libertação por meio da educação emancipatória. Mas
esse diálogo importa a análise de alguns pressupostos firmados pelo mesmo autor
em suas obras.
Na tomada de consciência de sua situação, pode o homem descobrir-se como ser
mais
31
, o que envolve a constante superação de seu estado atual, na busca pela
31
Ser mais é o conceito que o autor define para o dinamismo da construção histórica que se na
busca vocacional pela constante humanização, característica que se faz presente no ser humano
(FREIRE, 2006c, p. 99-100).
125
humanização que lhe é intrínseca, porém se dá num processo dinâmico de
construção do diálogo dentro do processo educativo, e não com base em um a priori
posto como balizador de um determinado modo de vida tido como aceitável.
Esse seria o primeiro passo na libertação do oprimido, e de acordo com Freire
(2006b, p. 46-47):
A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora terá dois
momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da
opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com sua transformação; o segundo,
em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do
oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente
libertação.
Se o primeiro momento importa compreender o modo como se a opressão pelo
dominador, o segundo envolve a desmistificação da posição de superioridade desse
opressor. No entanto, o autor defende a necessidade de que essa libertação parta
diretamente dos oprimidos, e não que a eles seja fabricada uma fórmula pronta,
advinda da academia ou dos ditos intelectuais, que segundo ele se encontram no
pólo ativo da dominação.
Na verdade, podemos assumir não os estudantes, mas também os professores e
as próprias instituições e ensino como parte oprimida nessa relação de
comunicação. Os canais que viabilizam as informações que serão passadas como
dogmas não passam de canais, e são adaptados de acordo com o interesse de
quem conduz esse monólogo criticado pelos autores reunidos na presente pesquisa.
É com base nesse entendimento que a tomada de consciência sobre a situação do
ensino jurídico e sobre o equívoco da abordagem clássica dos direitos humanos faz-
se tão necessária, quanto o esforço para sedimentar os meios de instituir o diálogo
que é pregado por Freire como forma de ensino emancipatório.
Esse diálogo tem de estar presente não só no ensino, mas na pesquisa e na
extensão, bem como em toda a relação que seja estabelecida entre a Universidade
e a sociedade, de forma a criar um ambiente genuinamente capaz de emancipar os
que necessitam e resolver as questões que se em como entrave à libertação dos
que precisam.
126
Mas como elenca o próprio autor, ”Há, indiscutivelmente, um equívoco nestas
dúvidas, que como dissemos, quase sempre são afirmações. E o equívoco resulta,
possivelmente em muitos casos, da incompreensão do que é diálogo, do que é
saber, de sua constituição” (FREIRE, 2006, p.51).
Freire descreve que o objetivo do diálogo não é reproduzir os caminhos trilhados na
constituição do conhecimento que nos é dado hoje, e sim problematizar esse
conhecimento e apreender o impacto desse conhecimento na realidade social.
Somente dessa maneira pode-se explicar e transformar essa realidade.
Sendo assim, “o processo de comunicação humana não pode estar isento dos
condicionamentos sócio-culturais” (FREIRE, 2006, p. 72), e não se pode mais
assumir a postura de que a realidade cultural ou social a ser interpretada é aquela
tida pela hegemonia como própria para tal.
Esse é o diálogo descrito pelo próprio autor (FREIRE, 2007, p. 115-116): ”E que é o
diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce da matriz crítica e gera
criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da
confiança. Por isso, só o diálogo comunica (...)”.
O diálogo envolve uma ação cultural composta de elementos utópicos e
esperançosos porque visa à libertação e à autonomia humanas. Mas também se
envolve na “Denúncia do totalitarismo, da pernúria, da matança das liberdades
cidadãs, da lavagem cerebral, da eliminação de opositores, do partido único, das
ditaduras (tenham elas qualquer pretexto), da superdeterminação da economia
sobre a vida cotidiana” (SCOCUGLIA, 2001, p. 75-76).
Essa denúncia engloba a tomada de consciência que liberta o oprimido de sua
condição de opressão. Faz-se necessário o combate dos meios simbólicos de
disseminação da cultura dominante, que introjetam a aceitação passiva da relação
de colonização cultural.
E ainda no “Anúncio da possibilidade do inusitado, do não dado, do indeterminado,
da possibilidade de criação de uma nova sociedade menos injusta, mais equilibrada,
127
mais cidadã efetivamente, democrática. Sociedade a ser construída pluralmente
(...)” (SCOCUGLIA, 2001, p. 75-76).
Essa utopia alcançável, bem como a denúncia das diferentes faces da dominação
econômica e ideológica disseminada pelo capitalismo ocidental, encontram guarida
na doutrina de Santos (2004, p. 798-807), quando o autor faz menção à sociologia
das ausências e emergências como alternativas à dominação universalista da
cultura ocidental e à possibilidade de se criarem metas para atingir utopias
alcançáveis.
No entanto Freire (2002, p. 12-13) reconhece os limites desse diálogo, na medida
em que passa a analisar a educação como um problema macro, para além das salas
de aula, onde o educador (e a IES) passa a ter o papel de organizar a própria
sociedade. Dessa forma, dentro da análise que a presente pesquisa se propõe fazer,
esse educador passa a associar tanto o diálogo quanto a suspeita crítica, numa
dialética entre diálogo e conflito, elementos que unem a parte fraca da corrente e
possibilitam a mudança social e política.
A Universidade, o educador e o educando precisam ter a consciência de que dentro
da própria instituição existem as diferentes classes sociais que se chocam entre si
pela prevalência de seus interesses, quanto mais fora dos muros da academia, onde
essa proporção microscópica toma um volume inimaginável dentro das enormes
disparidades entre dominados e dominadores.
A concepção de direitos humanos fundamentais, sua efetividade e garantia deve
abordar essas questões de fundo, pois sem elas o discurso será sempre
assistencialista e vazio, ecoando em ouvidos domesticados para receber o conteúdo
passado e simplesmente aceitar o status quo como algo imutável e totalmente fora
de seu alcance de ação.
Por meio da tomada dessa consciência, torna-se possível a criação de um ambiente
que:
(...) implica a formação da consciência dos oprimidos e em uma coerente
elaboração pedagógica que faça brotar das velhas estruturas socioculturais
um novo homem em constante processo de humanização do mundo. Dessa
forma, o processo de elaboração dessa autêntica pedagogia da luta de
128
libertação jamais poderá ser bancário ou antidialógico, mas radicalmente
solidário, democrático, problematizador e dialógico que respeite os
diferentes saberes que cada ser humano construiu em sua experiência de
vida (ZITKOSKI, 2006, p. 39).
E associada a esse fenômeno, segue ainda a necessidade de reinvenção das
estruturas do poder, onde sejam combatidos os símbolos, slogans e demais artifícios
que visam manter a relação de opressão entre a classe dominante e a dominada.
Da mesma maneira alertada por Santos em relatos anteriores, Freire aponta o risco
de se dogmatizar as teorias dialógicas, de forma que, nos dizeres de Zitkoski (2006,
p. 46):
Freire reforça a necessidade de não dogmatizarmos nossas teorias, visões
de mundo, explicações da realidade, e muito menos, a orientação do fazer
prático. Ao contrário, sua posição é claramente afinada com a dialeticidade
do universo humano, como totalidade que esem contínua transformão.
Nesse constante esforço de manter a estreita relação entre o pensar e o
agir, o educador reinventa a tradição dialética
.
Esse é o cumprimento da função social da Universidade, que não se dá apenas com
a extensão (como é ora proposto por hipótese) mas em cada ato pedagógico e em
cada contato com os fenômenos externos às instituições de ensino. Dessa monta, a
Universidade pode participar da vida social, estimular o crescimento humano dos
cidadãos de sua sociedade, e crescer como instrumento de produção de
conhecimento emancipatório.
4.2 CONHECIMENTO PRUDENTE PARA UMA VIDA DECENTE
Em obra cujo título nomeia este tópico, Santos (2004) reúne uma série de
contribuições doutrinárias voltadas a demonstrar a maneira como a cultura ocidental
tem colocado a sua “ciência moderna” acima das demais formas de conhecimento, e
dessa forma privilegiar sua cultura e instituir uma dominação ideológica sobre o
restante do globo.
129
Não esta faceta da hegemonia dominante, mas também o que chama de
cosmopolitismo subalterno
32
é identificado nas premissas para uma compreensão
intercultural dos direitos humanos, em que passa a atentar para as maneiras como a
ciência lida com o que tem por seu objeto de conhecimento e a apontar alternativas
epistemológicas para a produção e comunicação do saber.
Os impactos dessa forma capitalista neoliberal de enfrentamento das questões que
envolvem o saber ao terem seu objeto de análise metodologicamente reduzido
para a Universidade revela o que tem sido feito com o saber produzido e como
esse saber tem se dado na relação de aprendizagem. O resultado das análises tem
apontado para a crise epistemológica na qual o dogmatismo reside,
especificamente, no ensino jurídico.
Este é o ponto onde se pretende cruzar os caminhos e soluções apontados com a
realidade específica do ensino jurídico dentro da realidade de função social da
universidade e da extensão como forma de proporcionar um espaço equilibrado para
a troca entre diferentes saberes.
Santos (2006, p. 97-120 e 2004, p. 782-798), antes de apontar esses caminhos que
conduziriam à criação do conhecimento para um ambiente de igualdade dialogal,
identifica os modos de produção de inexistência, que são utilizados pela
racionalidade hegemônica no sentido de manter a universalidade de sua cultura
através da invisibilidade das demais.
Sempre fazendo menção à microfísica do poder que demonstra essas macro-
relações de poder em uma escala direcionada para os estratos de relações sociais
que se dão em um plano mais específico os institutos, teorias e relações
apresentadas são perfeitamente aplicáveis nas relações de conhecimento que
ocorrem dentro das universidades e das relações desta com a própria sociedade.
O autor identifica a razão indolente como o “conhecimento hegemônico, tanto
filosófico como científico, produzido no ocidente nos últimos duzentos anos”
32
Cosmopolitismo subalterno é indicado como os focos de contra-hegemonia que questionam a
universalidade do saber científico em sua teoria, e aplicam o diálogo equilibrado entre diferentes
saberes em sua práxis (SANTOS, 2006, 459-470).
130
(SANTOS, 2004, p. 780), e para tanto passa a descrever as formas como essa
razão se e se reproduz na sociedade. São descritas quatro formas para essa
razão, mas Santos se detém nas que indica como fundamentais desta, que seriam a
metonímica e a proléptica
33
.
A razão metonímica é apontada por Santos como a parte da razão indolente que
prega o saber científico moderno e a cultura ocidental como únicas formas de
conhecimento e práticas válidas, recusando assim as partes que compõem o todo
que compreende esse conhecimento (SANTOS, 2006, p. 97-98).
Sendo assim, universaliza-se o conhecimento colocando essa totalidade em
superioridade às partes que a compõem, e deixando-se de reconhecer qualquer
forma de saber que não tenha relação com essa totalidade tida como absoluta. Esse
é o processo pelo qual a razão ocidental recusa qualquer forma de conhecimento
tradicional e, dessa maneira, possui uma visão limitada de mundo e de si própria.
Fundada pela razão, a transformação do mundo não pode ser
acompanhada por uma adequada compreensão do mundo. Essa
inadequação significou violência, destruição e silenciamento para todos
quantos fora do Ocidente foram sujeitos à razão metonímica; e significou
alienação (...) no ocidente (SANTOS, 2006, p. 100).
Trata-se do que ocorre na relação Universidade x Sociedade, dentro das práticas
acríticas e assistencialistas que vêm sendo desenvolvidas no país no sentido de
estender um saber, que nada mais é que uma imposição de dogmas pré-fabricados
a uma massa rejeitada e considerada ignorante.
Essa visão encilhada do saber importa numa redução da compreensão do próprio
tempo presente e das experiências que ocorrem a nossa volta e, nos dizeres do
autor, “A pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a
expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos
valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a
podemos identificar e valorizar” (SANTOS, 2006, p. 101).
Essa tem sido a postura assumida por muitos integrantes da academia ao se
deparar com a realidade social que existe tanto dentro quanto fora dos muros da
33
As outras duas formas de razão apontadas pelo autor envolvem a discussão entre determinismo x
livre arbítrio e realismo x construtivismo (SANTOS, 2004, p. 781).
131
IES. O ensino que se ministra cria mentes acríticas com uma capacidade meramente
reprodutiva do saber dogmático imposto verticalmente, e ao se deparar com a
realidade (que ficou relegada à periferia por não se adaptar ao “progresso”) se
comportam como se aqueles fenômenos não tivessem qualquer importância,
validade ou necessidade de interpretação.
Essa produção de não existência, segundo Santos (2006, p. 101-105), incute nas
mentes uma concepção de tempo presente mínima, na qual as experiências
consideradas são apenas aquelas advindas da cultura ocidental, e a imensa
diversidade de conhecimentos e saberes que possuem extrema importância, mas
não operam pelos mesmos modos do capital neo-liberal, são fadados à invisibilidade
e descaso.
Essa postura assume cinco formas de produção de não-existência (SANTOS, 2006,
p. 102-105), que seriam a monocultura e rigor do saber, onde ao se considerar como
única forma válida de conhecimento, ignora as demais; a monocultura do tempo
linear, que afirma ter a história tempo e direção lineares e conhecidos por essa
cultura indolente, onde os países ou culturas que não se adaptam são considerados
atrasados e não-existentes; a lógica da classificação social, que distribui os
indivíduos em classes hierarquizantes (como raça, sexo) baseadas na relação de
capital x trabalho; a lógica da escala dominante, que define a globalização e a
universalização como elementos superiores numa escala onde as realidades que
dependem de contextos particulares e concretos (e não universais) e as localidades
que não participam do global são relegadas à inexistência; por fim, a lógica
produtivista, onde o crescimento econômico é o principal objetivo e sua forma mais
eficaz é o capitalismo.
Nesse ponto, as formas de dominação, reprodução e produção de inexistência da
cultura hegemônica ocidental ficam claras em seus objetivos. Trata-se da
manutenção do status quo a qualquer preço. Nesse ambiente, a produção e difusão
do conhecimento ficam restritas aos objetivos dessa cultura, que, por certo, tem nas
instituições de ensino uma forte arma de solidificação de ideologias.
A formação jurídica dos estudantes, baseada na dicotomia pregada pela cultura
ocidental, cria uma relação restrita somente ao que se encontra no conflito entre o
132
válido (saber científico moderno ocidental) e o inválido (demais saberes). Dessa
forma, o estudante permanece com uma concepção extremamente pequena tanto
do fenômeno jurídico quanto dos próprios direitos humanos fundamentais, porque
esse indivíduo é despido de sua própria humanidade para fazer parte das
engrenagens de um sistema acrítico, totalitário e desumano.
O outro componente dessa razão ocidental descrita por Santos (2004, p. 794-798) é
a razão proléptica, que, junto com a metonímica, compõe o modus operandi da
cultura hegemônica criticada pelo autor.
Diferentemente da metonímica (que contrai o presente, eliminando as experiências a
nossa volta), a razão proléptica é aquela face da indolência dominante que expande
a idéia de futuro, transformando-o (nessa concepção linear de tempo) em algo vazio
e fadado a se tornar passado. Encara-se o futuro como inalcançável e com uma
direção única e pré-fixada pelo progresso cultural e econômico pregados pelo
ocidente (SANTOS, 2004, p. 794-795).
Essa postura impede a busca por uma utopia alcançável, na medida em que
entende como pré-determinado o caminho que a sociedade trilha na constante
sucessão do tempo presente e elimina qualquer possibilidade de se investigar, em
outras culturas e saberes, os projetos e concepções acerca do futuro para esses
povos periféricos.
Como dito anteriormente, essa postura identificada sob o prisma macro-político tem
relação direta com a maneira como o ensino jurídico é transmitido nas
Universidades, o que termina por confinar o entendimento dos alunos e professores
dentro do anti-diálogo descrito por Freire, na concepção de saber como poder de
Foucault, e nas demais críticas e reflexões que foram reunidas acerca do ensino
jurídico no Brasil.
Entretanto, alguns caminhos e soluções são apontados no sentido de reverter essa
crise paradigmática, questões que visam ao diálogo intercultural e outras hipóteses
de trabalho que podem ser utilizadas também na realidade do ensino jurídico.
133
Trata-se do ora proposto por Santos (2004, p. 798-801 e 2006, p. 120-122), quando
se refere à sociologia das ausências e sociologia das emergências. São duas formas
de interpretação e busca do saber que contrariam essa concepção totalitária,
atacando para tanto as duas faces da razão indolente (proléptica e metonímica) e
seus modos de produção.
Ao passo que a razão metonímica visa manter a concepção do presente em um
prisma reduzido à cultura ocidental, a sociologia das ausências visa retirar da
invisibilidade ou não-existência as experiências sociais disponíveis que ficaram
relegadas ao descrédito em razão de sua incoerência com o totalitarismo do saber
científico (SANTOS, 2006, 120-121 e 2004, 798-799).
Da mesma forma, no momento em que a razão proléptica incita a visão expandida
de futuro – como um progresso temporalmente linear e fadado ao progresso, mesmo
que nos padrões ocidentais a sociologia das emergências intervêm com a idéia de
contração desse tempo e busca das utopias realizáveis e sempre diligente para com
a idéia de um futuro incerto, mas concreto.
Busca-se, assim, expandir o domínio do saber disponível e das experiências sociais
possíveis por domínios que são reunidos pelo autor da seguinte forma (SANTOS
2004, p. 799-801 e 121-122): experiências de conhecimentos, experiências de
desenvolvimento, trabalho e produção, experiências de reconhecimento,
experiências de democracia e experiências de comunicação e informação.
São os diálogos equilibrados entre diferentes formas de conhecimento em que as
“experiências mais ricas neste domínio ocorrem (...), na justiça (entre jurisdições
indígenas ou autoridades tradicionais e jurisdições modernas, nacionais).”
(SANTOS, 2004, p. 799), e para tanto ilustra o próprio trabalho de extensão ao
contrário
34
realizado na ecologia de saberes.
Esse diálogo envolve também o contato entre modos de produção capitalista e livre,
e outros de cunho justo, solidário e alternativo. Compreende também o campo do
34
Santos (2006, p. 105-115) defende a ecologia de saberes como forma de abrir as portas do
conhecimento científico (academia) para a entrada e contribuição do conhecimento tradicional, o
processo inverso da extensão universitária (quase sempre não praticada nos moldes ideais), onde se
leva o saber técnico até o saber tradicional.
134
conflito e diálogo entre deferentes extratos sociais classificados hierarquicamente,
na medida em que se prega o multiculturalismo progressista, o constitucionalismo
multicultural em face do racismo, sexismo e xenofobia.
Mais um campo de atuação é o da possibilidade de diálogo entre o modelo de
democracia representativa liberal e a democracia participativa, por meio de
orçamentos e planejamentos participativos, bem como o contato entre meios globais
de informação e comunicação, e as redes de comunicação independentes e
alternativas.
O tema da pesquisa, por se deter no ensino jurídico, e mais precisamente na
extensão universitária emancipatória (como alternativa paradigmática à crise
instaurada nesse ensino), concentra-se mais fortemente no que tange às
experiências entre diferentes formas de conhecimento, saber, produção e contato
entre esses saberes e o saber cnico-científico ocidental. Esse é o ponto onde são
tratadas a ecologia e a tradução, duas faces da operação das sociologias, da
ausência e da emergência.
4.2.1 As ecologias e o trabalho de tradução
As ecologias operam no âmbito de trabalho da sociologia das ausências, visando
sempre substituir a monocultura ocidental pela agregação da diversidade cultural,
por meio da interação entre entidades parciais e heterogêneas.
Santos (2006, p. 105-115) enumera cinco ecologias, na busca da desconstrução dos
cinco modos de monocultura ocidental e sua substituição por práticas multiculturais
que permitam o diálogo emancipatório dos indivíduos e sociedades periféricos.
Trata-se de processo que substitui a hermenêutica dogmática e totalitária do saber
científico, por zonas de contato entre diferentes formas de compreensão do mundo,
e especificamente do fenômeno jurídico e social.
Primeiramente, a ecologia dos saberes parte do pressuposto de que não
absolutismo nem no saber, muito menos na ignorância. A partir dessa premissa, a
sociologia das ausências visa legitimar as demais formas de conhecimento para o
135
debate entre si e para o debate com o próprio conhecimento científico. Nessa
premissa, o aprendizado não parte necessariamente da condição de ignorância
(como sendo inicial), e sim da necessidade do contato com outras formas de
conhecimento.
O problema enfrentado é justamente o fato de a cultura ocidental favorecer o saber
científico na resolução das relações entre os seres humanos, e destes com a
natureza. Sendo assim, as crises advindas do uso unilateral de um mesmo
procedimento hermenêutico e de execução são encaradas como preço a se pagar
em nome do progresso e sempre passíveis de uma futura solução, mas pelos meios
científicos.
Santos (2006, p. 106) ainda revela outro problema da indolência ignorante da razão
ocidental como segue abaixo:
Como o conhecimento científico o se encontra distribuído de uma forma
socialmente eqüitativa, as suas intervenções no mundo real tendem as ser as que
servem aos grupos sociais que têm acesso a este conhecimento. Em última instância,
a injustiça social se assenta na injustiça cognitiva.
Não basta, para tanto, a mera distribuição equilibrada de conhecimento científico
pelas camadas sociais, até porque, nas bases do capitalismo, essa distribuição seria
impossível. Mesmo assim, necessário é lembrar que o conhecimento científico
(sozinho) não tem a inteira concepção da realidade.
É nesse ponto (SANTOS, 2006, p. 107) que afirma não estar descartando o
conhecimento científico do debate, mas buscar um uso contra-hegemônico desse
conhecimento em conjunto com os demais saberes científicos alternativos e os
tradicionais. É outro princípio que orienta a ecologia de saberes, o da incompletude
de todos os saberes, que permite a mudança de dois ou mais interlocutores, da
ignorância relativa à sabedoria relativa.
Além da ecologia de saberes, Santos (2006, p. 110-111) identifica outras ecologias
que combatem os modos de produção de inexistência causados pela razão
metonímica. A ecologia dos reconhecimentos busca desassociar a idéia de
desigualdade (desqualificação) da idéia de diferença. O capitalismo, além de fazer
136
essa associação, se julga necessariamente legítimo para determinar quem é igual e
quem é desigual, mas quando se parte do pressuposto de que existem diferenças
iguais, os dois componentes do diálogo passam a identificar a desnecessidade da
hierarquia entre eles.
Esse pressuposto, indiretamente, permite o diálogo entre diferentes saberes, por
abrir o debate equilibrado entre diferentes raças, sexos e outros padrões de
diferenciação utilizados pela razão indolente para determinar simbolicamente o
domínio entre opressores e oprimidos por meio do isolamento hierárquico destes.
A ecologia das temporalidades também desconstrói a idéia de linearidade de tempo
monocultural adotada pelo ocidente, para permitir o diálogo dessa concepção com
as demais, que, conforme Santos (2006, p. 109), são muito mais praticadas do que a
ocidental. O presente, o passado e o futuro são encarados de maneira diversa, o
que possibilita a investigação mais ampla das experiências sociais disponíveis que
poderão se desenvolver por seu método temporal específico.
a ecologia das trans-escalas atenta para a necessidade de se confrontar o global
com o local e o universal-abstrato com o particular-concreto. Ao passo que o
universalismo retira das realidades concretas os princípios e regras sobre
democracia e direitos humanos por meio da adaptação dessas regras em escalas
globais que encaram abstratamente problemas concretos a sociologia das
ausências visa identificar locais e práticas localizadas, estabelecer o contato entre
essas partes e formar uma globalização contra-hegemônica que possa criar canais
credíveis entre as culturas periféricas (SANTOS, 2006, p. 113).
Por fim, a ecologia das produtividades procura favorecer o contato entre “sistemas
alternativos de produção, organizações econômicas populares, das cooperativas
operárias (...) da economia solidária, etc., que a ortodoxia produtivista capitalista
ocultou ou descredibilizou” (SANTOS, 2006, p. 113). Esse contato, como nas outras
ecologias, visa validar as práticas sociais tradicionais e alternativas por meio da
alteração dos pesos e medidas que se estabelecem no contato dessas culturas com
a ocidental hegemônica.
137
A sociologia das ausências (e suas ecologias) e a sociologia das emergências,
visam, portanto, à revelação de outros focos de práticas sociais que não operem por
meio da racionalidade ocidental, e a tentativa de possibilitar o diálogo entre esses
saberes e práticas, bem como entre eles e a própria razão científica moderna.
Esse processo é proposto por Santos (2006, p. 122-135 e 2004, p. 801-815) através
da tradução, que seria um processo integrador tanto de práticas quanto de saberes,
onde diferentes culturas são interpretadas no sentido de se identificar em problemas
isomórficos entre elas e diferentes respostas para os mesmos.
A tradução de saberes ou conhecimentos é denominado por Santos (2006, p. 124)
como hermenêutica diatópica, e cita como exemplo a tradução entre o conceito de
direitos humanos ocidental, islâmico e hindu, no que tange à dignidade da pessoa
humana. Cita ainda a tradução entre as diversas concepções de produtividade,
dentro dos conceitos de desenvolvimento capitalista e o swadeshi proposto por
Gandhi, bem como as diferentes concepções de filosofia no ocidente e na África.
A hermenêutica diatópica utiliza dos mesmos princípios que orientam a sociologia
das ausências e emergências, bem como a ecologia de práticas e saberes. Baseia-
se na incompletude de qualquer conhecimento, filosofia ou prática, bem como na
impossibilidade de uma teoria geral, abstrata e universal para determinar o caminho
a ser percorrido por esses conhecimentos e práticas.
Além da tradução entre diferentes saberes (hegemônico x não-hegemônico e não-
hegemônico x não-hegemônico), Santos (2006, p. 126-127 e 2004, p. 805-806)
propõe a diálogo entre diferentes práticas, ou saberes aplicados em ações e o
agentes que os praticam. É o caso em que não existem muitas discrepâncias entre
os saberes que se traduzem, mas as práticas que resultam desses conhecimentos
são completamente opostas.
Tanto no caso dos saberes quanto das práticas, a tradução visa identificar os pontos
que unem e que separam diferentes culturas, para que, a partir dos pontos similares,
possa-se construir uma ponte de contato equilibrado entre esses diversos pólos.
Assim, enquanto a sociologia das ausências e emergências aumentam o número de
experiências existentes e possíveis, a tradução visa “criar inteligibilidade, coerência
138
e articulação num mundo enriquecido por uma tal multiplicidade e diversidade”
(SANTOS, 2006, p. 129).
Esse é o ponto que atenta para a interdisciplinaridade, pois não há como conceber a
análise de uma determinada cultura ou prática, dogmaticamente apenas por uma
disciplina ou saber. A partir desses pressupostos, é possível identificar o que se
busca traduzir, entre quais entidades se opera a tradução, quem irá traduzir e
quando será traduzido o conhecimento, bem como os objetivos dessa tradução.
A tradução irá se dar entre as zonas de contato da cultura hegemônica e das
culturas não-hegemônicas. É a relação epistemológica entre conhecimento científico
moderno x tradicional e a relação entre colonizador x colonizado, assumindo sempre
que até mesmo dentro de uma mesma cultura existem diferentes concepções acerca
de uma mesma matéria (como os direitos humanos, por exemplo).
que se respeitar o ritmo de diálogo de cada comunidade, e os representantes
sociais que irão promover a tradução deverão ter a completa compreensão de sua
cultura, bem como uma visão intercultural das diversas culturas que irão travar esse
diálogo. Ainda de muita importância é o cuidado ao estabelecer os topoi que irão
guiar a argumentação entre os pólos do diálogo. Essas premissas argumentativas
irão conduzir o diálogo e, portanto, devem ser construídas em conjunto para que o
contato estabelecido seja inteligível.
Esses elementos e entendimentos direcionam a discussão ora proposta na presente
pesquisa para a questão das universidades, na medida em que possibilitam a
revisão epistemológica da produção e difusão de conhecimentos entre a IES e a
sociedade de uma maneira diferente da que vem sendo praticada.
Ao se colocarem as teses exploradas em nível macro-político dentro do prisma da
crise da função social da universidade e do modo como o ensino jurídico tem sido
reproduzido acriticamente nas instituições de ensino, surge a necessidade de propor
um novo tipo de conhecimento a ser gestado na academia, a saber, o conhecimento
pluriversitário.
139
4.2.3 Conhecimento pluriversitário
Em obra de 2004b, Santos disserta sobre as crises que se abateram sobre a
Universidade no século XXI e sugere alternativas para instituição de uma reforma
democrática e emancipatória do ensino superior.
Faz um apanhado da história da universidade no Brasil pelos últimos dez anos, e
critica a influência do capitalismo no estabelecimento de um regime de produção do
conhecimento voltado para atender as necessidades do mercado. Descreve a
diminuição dos investimentos governamentais, a transformação das atividades de
pesquisa, ensino e extensão em serviços rentáveis e, como conseqüência disto, a
perda da legitimidade da Universidade, que se reflete fortemente no cumprimento de
sua função social.
Dentre as vias alternativas que o autor sugere para a mudança epistemológica de
paradigma nas funções da Universidade, destaca-se (em virtude da temática
abordada na presente pesquisa) o conceito de conhecimento pluriversitário e as
conseqüências que essa linha de pensamento em conexão com a sociologia das
ausências e emergências que são geradas sobre o modo de aplicação da
extensão universitária e na própria função social da Universidade.
Nos dizeres do autor (SANTOS, 2004b, p. 40):
Ainda na lógica deste processo de produção de conhecimento universitário
a distinção entre conhecimento científico e outros conhecimentos é
absoluta, tal como o é a relação entre ciência e sociedade. A universidade
produz conhecimento que a sociedade aplica ou não, uma alternativa que,
por mais relevante socialmente, é indiferente ou irrelevante para o
conhecimento produzido.
Esse é o paradigma que domina não a produção e difusão de conhecimento da
academia, como também é a força motriz que impulsiona as relações sociais, e os
resultados e práticas advindos dessas relações, paradigma este que o autor indica
estar em crise, pela adoção de princípios universalistas abstratos e globais que
acarretam a marginalização de outras formas de conhecimento e práticas sociais
que não operem por estes princípios.
140
Toda essa dominação gera a parcialidade da concepção de mundo, juntamente com
a parcialidade na concepção de ensino, pesquisa e extensão, e nesse ponto surge o
conceito de conhecimento pluriversitário, como prática contra-hegemônica na luta
pela emancipação da fatia dominada da sociedade, bem como da própria
Universidade e suas práticas acadêmicas.
Esse novo conhecimento é norteado por sua capacidade de aplicação social. Dessa
forma, como o conhecimento depende da serventia social, a relação entre produtor e
consumidor tem que ser intensificada e baseada no interesse deste.
É um conhecimento transdisciplinar que, pela sua própria contextualização,
obriga a um diálogo ou confronto com outros tipos de conhecimento, o que
o torna internamente mais heterogêneo e mais adequado a ser produzido
em sistemas aberto menos perenes e de organização menos rígida e
hierárquica (SANTOS, 2004b, p. 41).
Por colocar a própria relação entre ciência e sociedade em questão, o conhecimento
pluriversitário atenta para a necessidade do efetivo cumprimento da função social da
Universidade, que é a articulação da sociedade visando a seu progresso igualitário
por meio da organização, produção de conhecimento emancipatório, etc.
Ao dissertar sobre a influência dessa nova postura nas universidades em países
periféricos, o contexto de aplicação identificado pelo autor tem sido (além do
mercantil), o “não-mercantil, e antes cooperativo, solidário, através de parcerias
entre pesquisadores e sindicatos, organizações não governamentais, movimentos
sociais, grupos sociais especialmente vulneráveis (...)” (SANTOS, 2004b, p. 42-43).
Trata-se do conceito de pesquisa-ação
35
e de ecologia de saberes, que o autor
entende funcionar como a extensão universitária ao contrário (pois visa à entrada do
conhecimento tradicional dentro da academia). O fio condutor da mudança se
mostra sempre ligado na diversidade de conhecimentos e na igualdade de
oportunidades para esses saberes, sempre partindo do pressuposto da
incompletude de cada saber e prática.
35
“A pesquisa-acção consiste na definição e execução participativa de projetos de pesquisa,
envolvendo as comunidades e organizações sociais populares a braços com problemas cuja solução
pode beneficiar dos resultados da pesquisa” (SANTOS, 2004b, p. 75).
141
Além da pesquisa-ação, da ecologia de saberes, da sociologia das ausências e das
emergências, Santos (2004b, p. 73-74) defende ainda uma nova utilização da
extensão universitária, sob os moldes do conhecimento pluriversitário.
Como todas as outras atividades da academia, a extensão também sofre a forte
influência do capitalismo global, na medida em que este busca transformá-la em
leque de serviços remunerados a serem prestados de forma mercantil e com base
nos interesses do capital. A mudança consiste em modificar a participação
universitária na sociedade, conferindo a essa última maior coesão em suas relações.
Mas para que esse objetivo possa ser concretizado, é necessário que a atividade de
extensão não “seja orientada para actividades rentáveis com o intuito de arrecadar
recursos extra-orçamentários. Nesse caso, estaremos perante uma privatização
discreta (ou não tão discreta) da universidade pública” (SANTOS, 2004b, p.74).
Para evitar isso, as actividades de extensão devem ter como objectivo
prioritário, sufragado democraticamente no interior da universidade, o apoio
solidário na resolução dos problemas da exclusão e da discriminação
sociais e de tal modo que nele se dê voz aos grupos excluídos e
discriminados.
Essa é a extensão universitária proposta não pelo autor em comento, mas pelas
demais teorias que foram categorizadas na presente pesquisa. Visa romper o
paradigma dogmático do conhecimento científico-jurídico, bem como a pretensão de
isolamento entre a universidade e a sociedade, com vistas a não só cumprir a
função social da IES, mas também promover humanização dos estudantes e
professores que venham a participar dessas atividades em conjunto com a
sociedade, e lutar pela emancipação dos grupos sociais dominados.
Essa necessidade de uma extensão dialogada entre academia e sociedade tem
suas bases nos ensinamentos reunidos no próximo e último item da pesquisa.
4.3 A NECESSIDADE DE UMA EXTENSÃO EMANCIPATÓRIA
No segundo capítulo da pesquisa, a extensão universitária foi tratada sob o prisma
da influência da razão indolente, transformando-a em mera prestação de serviços
assistenciais, sem qualquer objetivo emancipatório.
142
Pelo contrário. O paradigma em vigor no ensino jurídico tem perpetuado a
dominação simbólica em seu desenvolvimento, mas concreta em seus efeitos
negativos que é exercida pela hegemonia por meio da mera reprodução de
saberes, limitados a um leque de disciplinas fechadas, pela pesquisa totalmente
divorciada do interesse social e consequentemente, pela extensão universitária que
também não vem cumprindo sua função dialógico-emancipatória.
A necessidade de mudança paradigmática apontada pelos autores também acena
para os efeitos que essas práticas sociais dominantes têm causado sobre o ensino
jurídico, alterando a função social da IES para se adaptar ao mercado e, se
consequentemente, transformando a extensão universitária em opção de serviço
rentável a ser oferecido pela Universidade
36
.
Baseado nos dizeres de Freire (2006, p. 70):
(...) a comunicação verdadeira não nos parece estar na exclusiva
transferência ou transmissão do conhecimento de um sujeito a outro, mas
em sua co-participação no ato de compreender a significação do
significado. Esta é uma comunicação que se faz criticamente.
Retirar a significação do significado representa o trabalho de interpretação. E esse
trabalho hermenêutico (tanto no ensino, quanto na pesquisa e na extensão), quando
compreende a necessidade do contato com outros saberes e a sua interpretação
como válidos (porém nem sempre aplicáveis) cria a possibilidade de participação da
sociedade no conhecimento produzido pela Universidade.
Essa participação da sociedade na produção acadêmica faz com que as próprias
necessidades da sociedade sejam postas como norteadoras dessa produção. Nesse
prisma, a universidade cumpre não a sua função social de articuladora do saber
emancipatório na sociedade, como também permite um ambiente de ensino de
direitos humanos fundamentais concretamente efetivos.
Esse humanismo necessário ao trabalho de extensão universitária é retratado pelo
mesmo autor como segue:
36
Santos (2005, p. 74) entende que, a serviço do capitalismo global, a extensão universitária é
explorada como serviço rentável passível de arrecadação de fundos para as instituições, e ainda
indica que a prática é comum no Brasil
143
Aspecto humanista de caráter concreto, rigorosamente científico, e não
abstrato. Humanismo que não se nutra de visões de um homem ideal, fora
do mundo; de um perfil de homem fabricado pela imaginação, por melhor
intencionado seja quem o imagine. (...) É um humanismo, que pretendendo
verdadeiramente a humanização dos homens, rejeita toda forma de
manipulação, na medida em que esta contradiz sua libertação. (...)
Extensão ou comunicação?, respondamos negativamente à extensão e
afirmativamente à comunicação.
Ao criticar o assistencialismo da extensão universitária, Souza (2000, p. 124-125)
defende que o mesmo possui utilidade pública de substituição de prestação de
serviços do Estado, no entanto essa postura está desvinculada com a função social
da Universidade, e os conceitos de assistência e comunicação não podem ser
confundidos quando tratamos a extensão universitária como meio hábil para
concretização dessa função da academia.
Diante disso, voltamos a reafirmar, sem o receio de cairmos em raciocínio
simplista, que está nas mãos da Extensão Universitária fazer com que a
própria Universidade seja relevante socialmente. Esta forma de conceber a
Extensão instrumento articulador do ensino e da pesquisa entre si e da
Universidade com a Sociedade qual a rodeia” (...) É este o papel histórico
da Extensão: aproximar a Universidade da Sociedade; ser o instrumento de
resgate dessas possibilidades.
Com esse pensamento em mente, podem-se estabelecer meios hábeis para o
desenvolvimento da universidade em multiversidade de saberes interdisciplinares
socialmente aplicados por meio da extensão universitária emancipatória.
De acordo com Prado (2005, p. 79), para o estabelecimento do processo de
extensão dialogada, torna-se imprescindível o contato com a população e com as
lideranças formais e informais, no sentido de se determinar (por meio do diálogo
equilibrado) o objeto da pesquisa-ação.
Nesse contato, a academia estará colocando seus alunos em conexão direta com a
realidade social, por meio de parcerias estabelecidas com a comunidade local na
solução de problemas e na busca pela emancipação dos que necessitam. Dessa
forma, a produção do conhecimento dentro da universidade terá o norte como as
necessidades sociais, o ensino será humanizador e emancipatório para os alunos e
a extensão poderá levar esse conhecimento para fora dos muros da academia e
retornar com vários outros saberes.
144
Essa via de mão dupla intermediada pela extensão universitária possibilita o fiel
cumprimento da função social da universidade e, consequentemente, a própria
emancipação da instituição, a reconquista de sua legitimidade e a construção de
uma sociedade com seus direitos efetivamente protegidos.
No entanto, faz-se necessário enumerar algumas alternativas e planejamentos que
indiquem não experiências que vêm sendo desenvolvidas sob o paradigma que
foi defendido na presente pesquisa, mas também caminhos que permitam a
construção de um referencial teórico-prático de aplicação da extensão universitária.
Branco e Guimarães (2003, p. 38), descrevem a necessidade de se considerar a
gestão acadêmica e administrativa do projeto político pedagógico e a relação desse
projeto com a sociedade e os representantes comunitários que serão o alvo da
extensão. A organização administrativa dos diferentes setores da universidade e IES
deverá se organizar para construir mecanismos que permitam a instalação e
fiscalização das atividades de extensão universitária.
O incentivo aos alunos que desenvolvem o trabalho de extensão universitária
também é citado como meio de estímulo da prática o seio das universidades. O
aluno passa a ter sua participação reconhecida em seu coeficiente de rendimento
acadêmico.
O próprio Plano Nacional de Extensão Universitária organiza e determina caminhos
para a solidificação da extensão nas universidades:
O Plano Nacional de Extensão Universitária apresenta metas para a
efetivação da complexidade desse processo, incluindo, simultaneamente, a
organização da atividade de extensão (...) Para tanto, se faz necessário: a
consolidação do Sistema de Informações sobre Extensão Universitária
(SIEX) (...) uma proposta de Programa Nacional de Avaliação da Extensão
Universitária (...) e sua implementação nas Instituições de Ensino Superior
(IES); a definição de linhas prioritárias de extensão no planejamento
estratégico das universidades; indicadores quantitativos e qualitativos de
extensão para alocação de vagas de docentes e distribuição de recursos
orçamentários internos. (BRANCO E GUIMARÃES, 2003, p. 36)
Existe também a necessidade de se distribuir e separar as atividades de extensão
por linhas programáticas, de forma a separar a temática e os grupos sociais que são
atingidos pela extensão, bem como informar essas linhas ao banco de dados do
145
próprio SIEX, de maneira a proporcionar a identificação desses projetos por outras
instituições que estejam desenvolvendo a extensão universitária.
Conforme citado anteriormente, a flexibilização curricular também irá permitir a
reconstrução curricular das grades disciplinares com base em um ensino
emancipatório e de caráter humanístico que reflita os interesses da sociedade, e
tenha seus efeitos alargados à pesquisa e extensão.
Um exemplo prático que merece citação é o projeto de extensão “Pão Cidadão” que
vem sendo desenvolvido na Faculdade de Direito de Vitória-ES, onde os alunos da
graduação se envolveram no desenvolvimento de um projeto que pudesse capacitar
parte da sociedade que labora no ramo das padarias, no sentido de esclarecer
aspectos de direitos do consumidor, responsabilidade social e consumo sustentável.
Conforme consta no banco de dados da instituição de ensino superior citada acima,
a extensão universitária é tida como:
A FDV entende a extensão como um conjunto de atividades que
possibilitam o estabelecimento de uma interação entre a academia e a
sociedade na qual está inserida. Essa articulação se à medida que o
saber que aqui se produz faz sentido, sendo relevante e contribuindo para o
desenvolvimento social. É a FDV saindo dos limites de seus muros e
interagindo com a comunidade, seja buscando alimentar-se nela através da
observação de suas necessidades e compreensão de sua realidade, seja
socializando os saberes e experiências (FDV, 2007).
Nota-se a via de mão dupla que é descrita pelo diálogo de Freire, e a mudança na
fonte que embasa a produção do conhecimento, que se encaixa nos moldes do
conhecimento pluriversitário definido por Santos, até quando menciona a troca de
saberes entre as universidades que desenvolvem esses projetos.
Os objetivos que perpassam a elaboração de um projeto de atividade de extensão,
além de visarem a capacitação prática e teórica do aluno para o mercado de
trabalho, colocam a comunidade como centro das atenções no que tange à busca
por soluções e novos conhecimentos.
A capacitação – entenda-se emancipação – das comunidades que formam o entorno
das universidades também figura como objetivo do programa, que leva o Direito de
forma acessível à população e ainda (pela via de mão dupla) emancipa o estudante,
146
através do contato deste com novos conhecimentos e o cultivo do genuíno interesse
em criar o conhecimento em um ambiente emancipatório (leia-se ético).
Além do Pão Cidadão, a FDV ainda desenvolve projeto como o NASCI (Núcleo de
Assessoria ao Cidadão), e Empresa Cidadã. Embora o NASCI leve o termo
“assessoria” em seu título, este se propõe a ser:
diferente dos serviços tradicionais de cunho assistencialista. Substitui a
postura paternalista pelo trabalho de organização e conscientização
comunitária, proporcionando ferramentas para que o próprio cidadão,
inserido na comunidade, solucione seus conflitos e trabalhe na
(re)construção do seu meio.Por meio desse projeto, o NASCI leva às
pessoas, às comunidades e às entidades informações e debates de forma
acessível. Com isso, tenta-se mudar um pouco o quadro social, de forma
que seus integrantes não sejam meros expectadores excluídos de tal
processo. (FDV, 2007)
Esse projeto fornece à comunidade cursos nas áreas de criação, estabelecimento e
funcionamento de entidades populares, como exercer a cidadania, Direito de
Família, Sucessório, Direito do Trabalho, Seguridade Social, Estatuto da Criança e
do Adolescente e Direito Ambiental.
a Empresa Cidadã “é um projeto tanto científico quanto social que procura aliar a
pesquisa no âmbito do direito do consumidor com práticas sociais promovidas por
professores e alunos” (FDV, 2007).
A atividade visa a conscientização tanto de consumidores quanto das micro e
pequenas empresas para um consumo sustentável que seja baseado na ética e
respeito ao meio ambiente. Objetiva a relação entre consumidor, empresa e
sociedade, no sentido de aprofundar o conhecimento de todos acerca do Código de
Defesa do Consumidor e promover uma relação mais equilibrada entre as partes.
O Pão Cidadão, que dentre os três é o projeto mais recente, conta com a
participação de empresas como a CST (Companhia Siderúrgica Tubarão),
INTERAÇÃO Ensino, Pesquisa e Consultoria e SINIDIPÃES e mantém o seu foco
de atuação nas empresas que estão no ramo de padarias.
O projeto desenvolveu um diagnóstico do comportamento que os estabelecimentos
comerciais tinham perante o Código de Defesa do Consumidor, sobre a
147
responsabilidade social e o consumo sustentável. Após a sua execução foi montada
uma cartilha com questões fundamentais de consumo sustentável e ético, tudo com
base na legislação vigente. O documento em questão foi elaborado com linguagem
de cil acesso e visa proporcionar um melhor atendimento aos clientes desses
estabelecimentos comerciais, bem como o agir ético desses micro e pequenos
empresários.
Tratam-se de atividades de extensão universitária que visam o cumprimento da
função social da própria Universidade, a emancipação da população e o equilíbrio
das relações sociais.
A troca de saberes é efetuada no contato entre os estudantes e o blico alvo das
atividades, sendo que ambos saem desse diálogo com novos elementos, e o
conhecimento produzido a partir desse contato advém de saberes diversos, o que
permite o rompimento com o purismo científico moderno que impede o contato da
universidade com a realidade social.
Em entrevista com a professora Regina Murad, que participou de todas as etapas de
elaboração do Pão Cidadão, foi possível extrair alguns elementos que são
defendidos na presente pesquisa como fatores de suma importância para um ensino
emancipatório.
Primeiramente foi dito pela entrevistada que o paradigma de extensão universitária
teve que ser modificado, antes que qualquer projeto pudesse ter sido desenvolvido,
de forma a possibilitar que o contato da academia com a sociedade fosse baseado
na igualdade de saberes, e não na relação de saber como poder.
A partir dessa mudança, os projetos a serem desenvolvidos tiveram sua fonte em
experiências de professores dentro da sala de aula, que pudessem ter aplicação
prática. Sendo assim, com base na intenção de duas professoras da instituição
que desejavam prestar esclarecimentos acerca do Código de Defesa do Consumidor
a micro empresários – foi desenvolvido o Pão Cidadão.
148
A partir de então, esse projeto foi institucionalizado pela IES, que elaborou uma
equipe onde reuniu especialidades como: prática jurídica, direito do consumidor,
desenvolvimento de projetos sociais e pedagogia.
Oitenta alunos se inscreveram no projeto, que selecionou quarenta. Os selecionados
(e os professores) passaram por cursos de capacitação nas áreas acima citadas,
bem como em consumo sustentável, que contou com a participação de um técnico
da CST (Companhia Siderúrgica Tubarão – uma das patrocinadoras).
Desses quarenta alunos, vinte cinco permaneceram até o final do processo de
capacitação, e então passaram a visitar as padarias da comunidade em que se
encontravam. De dez padarias visitadas, quatro (que se dispuseram) foram
selecionadas para serem objeto de observação quanto a aspectos de consumo
sustentável e direito do consumidor.
Do contato e interação com os funcionários e consumidores foi produzida uma
cartilha provisória que foi levada para ser debatida com os micro-empresários e
desse diálogo foi produzida a cartilha definitiva que vigora no site da IES.
De acordo com o depoimento da entrevistada, dessa experiência os alunos
aprenderam a lidar com a sociedade, a construir conhecimento a partir de saberes
tradicionais e a trabalhar em equipe. Os empresários e seus funcionários
desmistificaram o CDC como elemento nocivo às relações de comércio e ao lucro,
bem como esclareceram diversas duvidas acerca de consumo sustentável e
relações com sua clientela.
A instituição que além da contribuição dos patrocinadores investiu mais de cem
mil reais na elaboração e execução do projeto, recebeu um prêmio nacional de
qualidade no ensino, e num prazo de seis meses será feita uma pesquisa com os
alunos e com a comunidade envolvidos no projeto, para a colheita de informações
acerca dos impactos gerados nesses atores do processo de construção do
conhecimento.
A prática da extensão universitária emancipatória, indissociada ao ensino e à
pesquisa interdisciplinares, permitem a possibilidade da efetivação dos Direitos
149
Humanos Fundamentais por meio da conscientização das Instituições de Ensino (e
de seus atores) e da própria população, que passa a desempenhar papel ativo na
construção de um conhecimento voltado para suas necessidades.
A função social da universidade, de articular a sociedade – visando sempre melhorar
as tensões e relações e promover o conhecimento na medida em que passa a ser
cumprida, possibilita uma visão dos Direitos Humanos Fundamentais que vai além
da mera sucessão de gerações de momentos históricos que marcaram a evolução
jurídica internacional do ocidente mundial.
Possibilita que o ensino não seja uma mera repetição de saberes dogmaticamente
postos, que a pesquisa não tenha como fonte somente o que for determinado como
“científico”, e que a extensão não seja uma mera assistência à população como
forma de saldar a dívida da instituição e de sua função social para com a sociedade.
Permite que os Direitos Humanos sejam construídos, defendidos, compreendidos e
efetivados dentro de um ambiente voltado para o contato equilibrado entre diferentes
saberes e práticas emancipatórias (subalternas insurgentes).
150
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final da presente pesquisa que não se julga exaustiva do tema podemos
perfazer uma análise dos temas que foram tratados, bem como da relação entre as
teorias apontadas e a prática que vem sendo realizada no que tange ao ensino
jurídico e demais elementos que compõem a formação do acadêmico em Direito.
De acordo com o histórico do ensino jurídico feito a partir do Brasil Império até o
advento da resolução 09/04 do CNE, foi possível analisar que desde seu processo
de criação até os dias atuais o objetivo principal da instalação das primeiras
faculdades de direito (São Paulo e Recife) era o de simplesmente aparelhar o setor
burocrático do Estado que estava por se formar.
O estilo coimbrão foi importado para as salas de aula no Brasil, e no decorrer do
tempo o dogmatismo, liberalismo e formalismo se adaptaram ao ensino jurídico
moldando o que viria a ser a ideologia de formação do bacharelismo liberal. Os
formandos finalizavam (e ainda o fazem) seus cursos por meio de um aprendizado
acrítico e totalmente divorciado dos acontecimentos que ocorrem na realidade
social, pois são tidos apenas como depósito de saberes pré-fabricados e
incontestáveis, que são transmitidos por meio de um ensino bancário e massificante.
No entanto, combinando os diplomas legais da portaria 1884/94 do MEC, a Lei de
Diretrizes e Bases e a resolução 09/04 do Conselho Nacional de Educação bem
como os dizeres da própria Constituição Federal nota-se que o objetivo do
legislador foi o de possibilitar que o estudante de direito tivesse em sua formação
acadêmica elementos de interdisciplinaridade, criticidade e de humanização, além
da formação técnica básica para o exercício de sua profissão.
Com a base legislativa formada, resta aos atores envolvidos no processo de
produção e ensino do conhecimento jurídico colocar em prática a criação de meios
hábeis a uma indissociabilidade humanística e critica entre ensino pesquisa e
extensão.
Não se pode olvidar que a influência do capitalismo bem como a forma simbólica
que atua no sentido de manter o mercantilismo como fio condutor de todas as
151
relações sociais – impõe uma barreira quase que intransponível à concretização dos
ideais de humanização do ensino jurídico, e a conseqüente eficácia na compreensão
e aplicação dos Direitos Humanos Fundamentais.
As imposições do mercado advindas do domínio da cultura ocidental fazem com que
qualquer modelo alternativo de compreensão e aplicação dos Direitos Humanos
Fundamentais seja desacreditado, em um processo que recusa toda e qualquer
forma de interpretação que não seja pautada nos dogmas da ciência moderna
ocidental.
Esse processo aliena as mentes não para a busca de soluções alternativas (leia-
se multiculturais), mas para a própria existência de direitos (e dos próprios
detentores desses direitos) que não tenham relação com o que se encontra
positivado pelos ordenamentos abstratos e vedados da realidade social.
Mesmo assim, são apontadas na pesquisa com base no que os autores eleitos
descrevem alternativas teóricas e práticas para a efetivação de um ensino jurídico
(englobando tanto a pesquisa quanto a extensão) que tenha um caráter crítico,
humano e em contato com a realidade social, por meio da mudança paradigmática
do processo de construção do conhecimento.
É onde surgem as idéias de diálogo emancipatório, onde os atores da construção do
conhecimento atuam ativamente nesse processo e permite-se a influência de outras
áreas do conhecimento que não somente a ciência jurídica (ecologia de saberes e
conhecimento pluriversitário). Vale ainda ressaltar que a abertura da instituição para
a realidade social, e o deslocamento da Universidade até a sociedade são
elementos de importância fundamental nesse processo, pois além de permitir que o
Direito se ajuste com a realidade externa da academia ainda possibilita o contato
entre saber científico e o saber tradicional das comunidades na solução de
problemas.
Esse é o cumprimento da função social da universidade. De fato ele se manifesta de
maneira mais forte na extensão universitária, que leva o conhecimento produzido a
a sociedade e retorna com as necessidades dessa mesma sociedade para, a partir
daí, produzir novos conhecimentos.
152
Sendo assim, é preciso abolir o ensino bancário, abrir tanto o ensino quanto a
pesquisa científica para a interdisciplinaridade, e conscientizar os estudantes e
professores da necessidade de se produzir o conhecimento para a emancipação
social, e não para a solidificação do capitalismo mercantilista.
E no caso da extensão universitária, que foi eleita como instituto principal de
investigação nesta pesquisa, as alternativas apontadas para sua concretização fora
dos parâmetros assistencialistas que são corriqueiramente praticados encontram-se
(da mesma maneira que no ensino e na pesquisa) no diálogo e na participação ativa
das lideranças comunitárias no sentido de se estabelecer as reais necessidades
sociais.
O diálogo na extensão universitária, conforme descreve Freire, emancipa o
destinatário da ação por permitir que ele atue no processo de criação do novo
conhecimento e na recriação do conhecimento que a ele é levado. Da experiência
criada em uma via de mão dupla, o alvo da ação extensionista (leia-se
comunicacional) apreende o conhecimento não como algo místico, posto e
inquestionável, mas como algo concreto, alcançável, útil e passível de uso sem
assistência de seu principal emissor.
Mas para alcançar esse objetivo faz-se necessária a quebra da barreira dogmática-
positivista que se encontra arraigada no ensino jurídico brasileiro, de forma a
possibilitar a criação do conhecimento multicultural descrito por Santos e
consequentemente equilibrar a relação de saber x poder que tem seu conceito
lançado por Foucault e seu modo operativo descrito por Bourdieu.
Nessas bases, a universidade (e demais instituições de ensino superior) pode
transformar-se na multiversidade de idéias também citada por Santos, e o
cumprimento de sua função social se traduzido na efetivação da extensão
universitária emancipatória.
Por meio dessa prática a efetivação dos direitos humanos fundamentais no âmbito
da sociedade não será o único resultado, mas também sua efetivação dentro do
ensino jurídico, sua interpretação e aplicação serão retiradas do frame
hermeticamente fechado da dogmática jurídica acrítica.
153
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