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Carmem Lúcia da Silva
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Mestrado em Serviço Social
Universidade Federal de Santa Catarina
2004
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Carmem Lúcia da Silva
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Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Universidade Federal de Santa Catarina,
como exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em Serviço Social sob a orientação
da Profa. Dra. Beatriz Augusto Paiva.
Florianópolis
2004
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Carmem Lúcia da Silva
Banca Examinadora
Profa. Dra. Beatriz Augusto Paiva
Profa. Dra. Heloisa Maria José de Oliveira
Profa. Dra. Maria do Carmo Brant de Carvalho
Florianópolis, 2004.
4
Dedicatória
Ao meu amado Rodrigo, que compartilhou comigo cada
fase deste trabalho e que soube compreender as minhas
ausências, a necessidade de nos privarmos de momentos,
muitas vezes importantes, em nossas vidas, agradeço as
palavras de estímulo e a paciência, tão fundamentais
nesta trajetória.
É a você, meu amado, que dedico este trabalho, cuja
conquista, neste momento, compartilhamos.
5
A
GRADECIMENTOS
É sabido que a decisão de realizar um Mestrado muitas vezes pode ser feita de
maneira individual, autônoma; porém certamente a empreitada assumida é compartilhada por
muitas pessoas que, direta ou indiretamente, compõem este momento singular e cuja presença
especial, em todo o processo, culmina na conquista do resultado final.
Diante disso cabe aqui o meu reconhecimento por cada um em especial. Nomeá-
los todos é tarefa impossível, porém contemplarei algumas pessoas que foram fundamentais
neste percurso, e que apenas corporificam parte do meu agradecimento. O reconhecimento
pela presença de cada uma dessas pessoas também me faz pensar nos momentos em que a
minha ausência foi necessária, a fim de alcançar este objetivo, e por isso cabe aqui meu
pedido de desculpas pela imposição a vocês de algumas situações de privações, mesmo que
estas tenham acontecido de forma involuntária. No mais, deixo registrada a minha eterna
gratidão:
A Deus, aos meus santos protetores, que me deram saúde, inspiração e recursos
para realizar o mestrado e, em especial, a dissertação.
Ao meu pai,
in memorian
, por tudo que representou na minha vida.
À minha mãe amada, que sempre esteve ao meu lado, na alegria e na dor, seja
para dar uma palavra de consolo e incentivo, seja apenas para emprestar o seu colo, tão
necessário neste processo.
À minha irmã Márcia e meu cunhado Sérgio, pelo afeto e por todos os momentos
de alegria e conforto que as suas presenças proporcionam. Compartilhar com vocês a minha
vida só faz torná-la mais significativa e especial.
Ao meu irmão Élcio e minha cunhada Adir, pela torcida silenciosa, mas sempre
presente.
Aos meus amados sobrinhos Willian, Diego, José Henrique e Arthur, pela
oportunidade que me deram de viver momentos especialmente lúdicos e afetivos, dos quais
cada despedida suscitava a necessidade de um novo contato.
À minha companheira Judhy, minha cachorrinha amada, que, embora não sendo
classificada como pessoa, desempenhou um papel fundamental nesta trajetória,
acompanhando-me em todos os momentos. Fosse nos dias de calor extremo, fosse nas
madrugadas frias, sua presença ao lado da minha cadeira, ora dormindo, ora arranhando-me,
pedindo atenção, dava-me a certeza de que não estava só.
À minha sogra, Laura, pelo carinho dispensado, e a toda a família, aqui
representada por Andréa, Arnaldo, Jaílton e Potira, cuja presença foi importante neste
processo.
À minha orientadora, Beatriz Augusto Paiva, que, para além de ser uma
profissional de renome, comprometida com a profissão de Serviço Social, referência
importante na área, foi em especial companheira desta batalha. A você, Bia, meu eterno
reconhecimento, pelo apoio nas horas mais difíceis, pelo estímulo tão necessário nos
momentos em que desejava
jogar a toalha
e desistir de tudo. Esta conquista quero
compartilhar com você e sua família, que me acolheu em dias próprios para descanso e lazer,
revertidos em trabalho. A Camila, pela alegria e descontração; a Tita, pelos latidos e pedidos
de carinho; e a Rosane, pelas deliciosas refeições, formas importantes de cuidado.
À professora Dra. Heloisa Maria José de Oliveira, que não raras vezes atuou como
6
ponto de referência e de troca, com quem o contato sempre se balizou no conhecimento, no
respeito e na solidariedade. Agradeço pela oportunidade de tê-la na banca examinadora,
antecipando que suas considerações serão de valiosa contribuição.
À professora Dra. Maria do Carmo Brant de Carvalho, pela disponibilidade em
participar da banca, tendo em vista a temática desenvolvida neste estudo, na certeza de que
suas contribuições só qualificarão este trabalho. Este agradecimento é extensivo à sua
secretária, Mirene, que, com competência, articulou os contatos e proporcionou a
possibilidade da vinda da professora para Florianópolis.
À querida amiga Luziele, pelas palavras de estímulo e por sempre se colocar à
disposição na construção deste trabalho. Obrigada pelo aprendizado constante e por tê-la
como referência fundamental como profissional e como amiga.
Às professoras do Departamento de Graduação e Pós-Graduação da Universidade
Federal de Santa Catarina, bem como aos servidores desse programa, pelo apoio e
aprendizado, em especial à professora Dra. Catarina Schmickler que de maneira significativa
auxiliou com sugestões importantes na construção deste trabalho.
Aos companheiros da diretoria do Conselho Regional de Serviço Social, aqui
representados por Valéria, Kátia, Sueli, Jussara, Iracema, Monyk, Méri, Bete, Luiza, Matilde
e Rosângela, pela compreensão e respeito quanto à minha ausência em momentos importantes
para o CRESS. O agradecimento é extensivo aos funcionários, Lúcia, Fátima, Tânia Lurdinha,
Ricardo e Gustavo, que sempre foram suportes importantes no trabalho desenvolvido naquele
espaço.
Aos companheiros da vida, que são inúmeros, especialmente àqueles com quem
os momentos compartilhados fomentaram laços efetivos de amizade e dos quais a saudade
corresponde diretamente ao sentimento que sempre nos aproximou. Foram amigos
conquistados no meio profissional, no Mestrado e
na vida
, como a Cíntia, a Fê, a Paty W., a
Lenira, a Paty, a Jôsi, a Cleide, o Cacá, o Marcos, o Marco, a Néia, a Fernanda L. Maciel, a
Maria Luiza, a Edite, o Bid e a Teresa, a Merinha, a Marisa e o Luciano, a Eliete, o Paulo, o
Rogê e a Clarissa, Luciana, Marilda, Dolores, Damares, Deborah e Vera, que, mesmo à
distância, sempre estiveram presentes e foram inesgotáveis no afeto.
À Iza, que, neste período, mais do que nunca, foi suporte fundamental na minha
casa, cuja administração e cuidado foram méritos desta grande guerreira. A você meus
agradecimentos especiais, que vão para além do cuidado da casa, abrangendo a palavra de
apoio e o exemplo da sua história de vida, que encoraja todos a irem mais além.
Às famílias pesquisadas, cujo cotidiano foi partilhado e que, muito mais do que a
porta de suas casas, abriram espaço em suas vidas. O meu forte agradecimento e respeito pela
confiança e por acreditarem na possibilidade deste trabalho.
7
“A compaixão é, assim, essa virtude singular que nos abre
não apenas a toda a humanidade, mas também ao
conjunto dos seres vivos ou, pelo menos, dos que sofrem.
Uma sabedoria fundada nela ou nutrida dela, seria a mais
universal das sabedorias”.
Comte-Sponville
8
R
ESUMO
Silva, Carmem Lúcia.
A experiência das famílias com pessoas com necessidades especiais
em processo de envelhecimento:
uma nova dimensão da desproteção social. Beatriz Augusto
Paiva - Santa Catarina, 2004, 142f il. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa
Catarina. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social.
A experiência das famílias com pessoas com necessidades especiais em processo de
envelhecimento e sua caracterização histórica singular, mediatizada pelas medidas de
proteção social pública e pelo cuidado familiar, compõem o feixe temático central desta
dissertação. A intenção de desvendar esse universo familiar está diretamente vinculada à
hipótese de pesquisa de que o sistema de proteção social direcionado a essas famílias não
atende satisfatoriamente àquela problemática social, que apresenta como especificidade a
questão da deficiência. Nesse sentido, foi necessário escutar, das famílias, o relato de seu
cotidiano de lutas travadas diuturnamente, as quais configuram suas múltiplas estratégias de
vida, contextualizadas e caracterizadas como situações especiais, diferenciadas das demais, ou
seja, configuram a existência singular da pessoa com necessidades especiais, em processo de
envelhecimento. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, em que a metodologia adotada permitiu
o conhecimento desse universo familiar que, conjuntamente com o referencial teórico,
proporcionou a articulação dos discursos das famílias. O universo da pesquisa foi de nove
famílias, das quais os membros que apresentam necessidades especiais recebem atendimento
educacional na Fundação Catarinense de Educação Especial, especificamente no Centro de
Educação e Trabalho. Atrelado as entrevistas realizadas junto às famílias, foi realizada uma
pesquisa bibliográfica, objetivando obter subsídios para compreensão dessa dimensão
familiar, bem como do sistema de proteção social brasileiro. Posto isso, o trabalho em tela foi
balizado em três eixos fundamentais, que corporificaram as questões pertinentes ao tema
supracitado. O primeiro eixo refere-se às pessoas com necessidades especiais e suas famílias
diante do sistema de proteção social, na tentativa de vislumbrar que lugar esse segmento
especial ocupa ali. Para isso foi necessário percorrermos a trajetória histórica da deficiência e
a contemplação desse grupo especial no sistema de proteção social. Também coube
compreender os meandros deste sistema no Brasil e a forma como foi sendo materializado, e,
ainda, identificar de que maneira as famílias vêm sendo contempladas nas políticas públicas a
fim de terem garantidos os suportes necessários para assegurar aos seus membros condições
básicas de vida. O segundo eixo traz especificamente a problemática das famílias pesquisadas,
sendo que compõem este estudo a apresentação destes grupos e a análise de seu processo de
apropriação da deficiência, pelo qual se organizaram após a comunicação do fenômeno, esta
realizada por uma equipe de profissionais. Por fim, o eixo intitulado “As novas temáticas das
políticas públicas no contexto das famílias” direciona-se ao conhecimento desse fenômeno em
termos do cotidiano de lutas travadas pelas famílias, em razão das complexidades que
demanda esta população especial. Trata também da prioridade do cuidado destinado à figura
feminina, e da resposta à questão visceral da pesquisa que subsidiou este estudo, que aborda a
desproteção social pública frente ao universo singular das famílias.
Palavras-chave: Famílias
Pessoas com necessidades especiais
Sistema de proteção social
9
A
BSTRACT
Silva, Carmem Lúcia.
The experience of families with aging members with special needs:
a new dimension of social dis-protection. Beatriz Augusto Paiva - Santa Catarina, 2004,
142pp il. Masters dissertation - Federal University at Santa Catarina. Graduate Program in
Social Service.
The experience of families with aging people with special needs and their unique historic
characterization, mediated by public social protection measures and by family care, compose
the central thematic scope of this dissertation. The intention of unveiling this family universe
is directly linked to the research hypothesis that the social protection system directed at these
families does not satisfactorily attend the social problem of disability. To examine this
question it was necessary to discuss with the families the daily struggles that configure their
multiple living strategies - contextualized and characterized as special and distinct situations.
This was necessary to characterize the unique existence of aging people with special needs.
This is a qualitative study that adopted a methodology that allowed a better understanding of
this family universe, and together with theoretical references, helped in the organization of the
family discourses. The universe of the study included nine families in which the members
with special needs receive educational service at the Labor and Education Center of the Santa
Catarina Special Education Foundation. Bibliographic research was also conducted in order to
improve the understanding of this family dimension, and of the Brazilian social protection
system. The study was based on three basic pillars that incorporate the issues related to the
theme. The first concerns people with special needs and their families in relation to the social
protection system, in an attempt to determine what place this special segment occupies there.
To do so it was necessary to review the historic trajectory of disablement and the treatment of
this special group in the social protection system. It was also important to understand the
characteristics of this system in Brazil and the way it has evolved, and even to identify the
way that families have been considered in public policies in order to guarantee the support
they need to assure their members basic living conditions. The second pillar specifically
concerns the problematic of the families studied, given that this study includes the
presentation of these groups. An analysis of their process of appropriation of deficiency -
through which they organize after the communication of the phenomena - is conducted by a
team of professionals. Finally, the pillar entitled “The new themes of public policies in the
context of families” is aimed at the knowledge of this phenomenon in terms of the daily
struggle of the families caused by the complexities that place particular demands on this
special population. The study also analyses the priority given to women as caretakers and
responds to the visceral issue of the research that supports this study, which concerns the
public social dis-protection of the unique universe of these families.
Key-words: Families
People with special needs
Social protection system
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1.1 A construção histórica da deficiência..........................................................................................
22
1.2 Sistema de proteção social no Brasil: considerações teórico-históricas.....................................
32
1.3 O enfoque da deficiência na esfera do sistema de proteção social.............................................
43
1.4 A atenção às famílias nas políticas públicas................................................................................
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59
2.1 Muito prazer, eis um pouquinho da minha história
....................................................................
62
2.2 O processo de apropriação da deficiência pela família...............................................................
76
2.3 A equipe profissional e a comunicação da deficiência................................................................
82
3
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90
3.1
A expressão de um cotidiano de lutas..........................................................................................
92
3.2
O cuidado como responsabilidade feminina................................................................................
104
3.3
A desproteção social perpassando o universo familiar...............................................................
109
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Permanece atual um importante desafio: a investigação teórica do sujeito família e
suas contemporâneas conformações neste começo de século. É sabido que este grupo vem
ornamentado com padrões difusos de relacionamento, em que os “laços tornaram-se
esgarçados” (S
ARTI
, 2003a), inviabilizando os contornos que o delimitavam anteriormente.
Laços que são construídos por meio dos diferentes processos através dos quais a família vem
se (re)configurando, desde as distintas formas de reprodução da espécie, não necessariamente
atreladas a uma relação sexual, passando também pelas novas conotações do sistema
econômico-político e cultural em que estamos inseridos, e que afiança a inserção dos
membros da família na construção de estratégias de sobrevivência. Para Sarti (2003a, p. 21),
Vivemos uma época como nenhuma outra, em que a mais naturalizada de
todas as esferas sociais, a família, além de sofrer importantes abalos internos
tem sido alvo de marcantes interferências externas. Estas dificultam
sustentar a ideologia que associa a família à idéia de natureza, ao
evidenciarem que os acontecimentos a ela ligados vão além de respostas
biológicas universais às necessidades humanas, mas configuram diferentes
respostas sociais e culturais, disponíveis a homens e mulheres em contextos
históricos específicos.
Embora a família na contemporaneidade apresente novas configurações, ainda é
por meio deste espaço privilegiado que se configura um canal de aprendizado dos afetos e
vínculos, além das relações sociais, indiferente dos diversos desenhos e constituições deste
grupo. Sendo assim, é a família o “primeiro sujeito que referencia e totaliza a proteção e
socialização dos indivíduos” (C
ARVALHO
, 2002, p. 93).
Neste percurso, as famílias se reconstróem, sendo que os laços consangüíneos
passam a ser elementos secundários na definição dos pertencentes a este grupo. Segundo
Mioto (2000), os grupos familiares podem ser categorizados como núcleos de pessoas que
convivem em um determinado local, durante um período de tempo, além de serem marcadas
por relações de gênero e/ou de gerações, e que estão vinculados dialeticamente com a
estrutura social em que se inserem.
Apresenta-se, desta forma, a família como tema de estudo dessa dissertação,
embora com uma particularidade adensada: trata-se aqui de famílias que incluem, entre os
seus membros, uma pessoa com necessidades especiais em processo de envelhecimento. De
12
partida, vale assinalar que esse especial universo familiar, em função dos maiores cuidados,
necessidades e intervenções que um indivíduo com necessidades especiais requer, organiza-se
de forma singularmente determinada pelos fatores decorrentes desta condição. Deste modo, “a
capacidade de ultrapassar as condições de vida mais adversas revela-se também na forma
como estas famílias desenvolvem condições para cuidar dos elementos que necessitam de
cuidados suplementares” (H
ESPANHA
, 2000, p. 84). Tais condições, necessidades, capacidades
e aspirações constituem-se, pois, no campo temático correlacionado ao objeto dessa
dissertação.
Há que se ressaltar que, há poucos anos atrás, tais cuidados não implicavam
grandes desdobramentos, em razão das pessoas com necessidades especiais apresentarem
baixa expectativa de vida. Essa realidade, porém, paulatinamente tem-se alterado, em
consonância com o progresso registrado na medicina preventiva, no tratamento de doenças e
nos cuidados com a saúde (T
HOMAE
; F
RYERS
, 1982). Desta maneira, não se estima que estas
pessoas faleçam no período da adolescência, nem tampouco na segunda ou terceira etapa de
suas vidas, como acontecia anteriormente. Ao contrário, hoje a maioria delas sobrevive aos
pais.
No entanto, isto que de um lado causa-nos satisfação, em razão das possibilidades
abertas pela tecnologia e pelo progresso do conhecimento científico, que permitem maior
longevidade e mais qualidade de vida para os indivíduos acometidos de deficiências e doenças
vulnerabilizadoras e/ou incapacitantes, do outro cria uma nova problemática social, que
expressa a sobreposição de dois fenômenos: a velhice e a condição de deficiência. É preciso,
portanto, considerar a hipótese de que estamos diante de uma incipiente problemática dirigida
às políticas públicas, no entanto, para discuti-las faz-se necessário que realmente
identifiquemos esta população que apresenta uma condição especial e adversa de muitas
outras. Sendo assim, apresenta-se a grande questão de pesquisa, motivadora e orientadora
deste estudo:
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Balizados por esta indagação, sinalizamos a importância da investigação
acadêmica e da produção de conhecimento, objetivando compreender e contextualizar o
fenômeno das famílias que, na sua constituição, possuam uma pessoa com necessidades
especiais em processo de envelhecimento, frente à possibilidade concreta de evidenciar uma
nova problemática dirigida às políticas públicas.
13
Nesta perspectiva, não caberia apenas debruçarmo-nos sobre o contexto histórico
da deficiência e suas distintas conotações ao longo do tempo, nem tampouco apresentar as
famílias pesquisadas, descrever as suas trajetórias e os óbices enfrentados cotidianamente,
sem contextualizá-las no processo em que estão inseridas e, especialmente, sem indagar de
que forma este segmento social vem sendo contemplado no sistema de proteção social
1
.
Não obstante o fato de que a família possui uma função primordial no processo de
desenvolvimento do indivíduo, isto não significa que este grupo tenha que suprir isoladamente
todas as necessidades dos seus membros e responder a todas as demandas que lhe são
impostas, especialmente considerando a atual conjuntura econômica e social, que
sobrecarrega de atribuições e exigências ao grupo familiar.
Para além deste enfoque, pretendemos intensificar esforços para que o debate
público, acadêmico e político possa contribuir para a superação da perspectiva corrente, que
restringe apenas à esfera privada da família a responsabilidade pela resolução e pelo
atendimento de suas demandas. É o momento, pois, de problematizar este segmento, suas
características, necessidades e direitos dentro do sistema de proteção social. Portanto,
acreditamos que a relevância do debate está em demonstrar a necessidade de ampliação da
visão atual, restrita quanto ao papel atribuído à família nas estratégias de superação isolada de
seus óbices. É corrente, sabemos, a revalorização da função deste grupo “enquanto ‘célula
social’ encarregada da socialização primária dos indivíduos e enquanto provedora, dita
‘natural’, de bem-estar material, afetivo e emocional para seus membros” (F
ARIA
, 2000, p.
98). Tal processo fundamenta, no discurso do Estado, a legitimação da transferência de novas
responsabilidades para a família, naturalizando atribuições que antes haviam sido, de certa
forma, e ainda que precariamente assumidas pela esfera pública.
Direcionamos o enfoque da pesquisa empírica desse estudo visando publicizar e
conferir um caráter público e político à família cuja condição peculiar de apresentar na sua
constituição uma pessoa com necessidades especiais em processo de envelhecimento já atribui
outros cuidados, que não devem ser restritos aos muros familiares, mas estendidos ao contexto
de um sistema de proteção social que venha ao encontro deste segmento social
vulnerabilizado. Adensamos esta justificativa, sobretudo, pelo fato de que as demandas
1
Cabe pontuar que se entende por Proteção Social as formas “às vezes menos institucionalizadas que as
sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas
vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio, as privações. Incluo neste
conceito, também, tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o
dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobrevivência e a integração, sob várias
formas na vida social. Incluo, ainda, os princípios reguladores e as normas que, com intuito de proteção, fazem
parte da vida das coletividades (D
I
G
IOVANNI
, 1998, p. 10).
14
apresentadas por este segmento especial vêm sendo atendidas majoritariamente por suas
famílias, como se fossem atribuições e competências exclusivas destas as ações que visam a
satisfação das necessidades básicas deste grupo vulnerabilizado. Entendemos que, para estas
famílias, a deficiência representa um problema demasiadamente complexo, em dois sentidos,
mais enfaticamente:
Por um lado, um adulto inválido ou deficiente representa um elemento que
não contribui para o rendimento e, simultaneamente, uma fonte de despesa;
por outro lado, ao exigir cuidados suplementares, impede muitas vezes um
ou mais membros da família (quase sempre mulheres) de desenvolver uma
atividade remunerada
(H
ESPANHA
, 2000, p. 85).
Isto significa evidenciar que, de um lado, a família atende a um membro que não
está em condições efetivas de ser inserido no mercado produtivo, sendo muito mais um
demandante de serviços e cuidados especializados e, de outro, que a referência a estes
atendimentos familiares extrapola as despesas financeiras, exigindo a intervenção direta de
um outro membro para monitorar estes cuidados, o que dificulta ou impossibilita a dedicação
de mais uma pessoa às diferentes estratégias de sobrevivência.
Objetivando, assim, estudar este fenômeno, pretendemos dedicar nossa atenção às
famílias atendidas na Fundação Catarinense de Educação Especial - FCEE
2
, posto que foi
neste espaço que, a partir do cotidiano destes sujeitos e de suas famílias, emergiram muitas
inquietações que, por sua vez, nos permitiram
superar o desconforto frente ao diferente
, na
perspectiva da ampliação do conhecimento relativo ao universo das lutas travadas
hodiernamente pelas famílias, diante do desafio contínuo de tocarem suas vidas com
dignidade.
Para tanto, trata-se de uma pesquisa qualitativa, no qual a metodologia adotada,
irá privilegiar o uso de dois instrumentos de coleta de dados, sendo que o primeiro
corresponde a
entrevistas gravadas
, realizadas com nove famílias que possuem membros com
necessidades especiais em processo de envelhecimento, atendidas no Centro de Educação e
Trabalho -
CENET
II
3
. Por meio da utilização deste instrumento foi possível escutar as
2
O interesse nesta temática reflete o nosso processo de inserção profissional, enquanto assistente social que
começou sua trajetória na Fundação Catarinense de Educação Especial -
FCEE
, instituição de caráter estatal que
tem como missão desenvolver uma política de educação especial junto às escolas do Estado de Santa Catarina. É
responsável pelo atendimento às pessoas com necessidades especiais, após seu diagnóstico. E esta instituição
presta serviços como o de orientação à família, encaminhamento a serviços especializados, estimulação
essencial, reabilitação, educação infantil, ensino fundamental, educação e trabalho, entre outros.
3
Vale destacar que as famílias que configuraram a pesquisa em tela são atendidas em um dos Centros de
Educação e Trabalho existentes no Campus da Fundação Catarinense de Educação Especial, sendo que este
Centro é basicamente subdividido em dois blocos, definidos como bloco “I” e bloco “II”. O primeiro atende
15
narrativas destas famílias, dada a preocupação com a livre expressão de seus pontos de vista,
suas necessidades e suas formas de compreensão do mundo. Diante disto,
Não houve a intenção de buscar uma representatividade quantitativa,
buscou-se apenas recolher experiências de vida, “experiências humanas”[...]
Experiências que narradas fragmentariamente e em “falas” muitas vezes
assentadas em outros códigos, bem expressam as múltiplas espoliações de
seus narradores. Expressam também suas inquietudes, suas resistências e
seus desejos de libertação das condições em que vivem, mesmo como um
sonho (Y
AZBEK
, 1993, p. 30).
Nesse sentido, é imprescindível que a leitura dos relatos obtidos pela pesquisa
empírica leve em consideração o processo histórico no qual esta população está inserida e,
pelo qual ela foi caracterizada e construída. Com destaque para o segmento social alvo desse
estudo, foram cotejadas interpretações múltiplas, seja sob a ótica da piedade, seja sob o
enfoque da ética, da compaixão e da justiça, conforme a direção proposta, ou seja, a de que
uma nova dimensão analítica deve ser exercitada com relação a todos que são tidos como
desiguais por serem diferentes.
Desta forma, as entrevistas foram realizadas nos espaços disponibilizados e
desejados pelas famílias, sendo que sete abriram a porta de suas casas e de suas vidas, a fim
de contribuírem para a construção deste estudo, enquanto outras duas preferiram o espaço
institucional da
FCEE
, o que de modo algum interferiu no conteúdo de suas narrativas, na
relevância de suas informações e no resgate da trajetória de suas histórias.
Inicialmente, realizamos o contato com a instituição que, após ter aprovado a
pesquisa, viabilizou a intermediação com estas famílias, para as quais encaminhamos o
projeto explicitando o teor da pesquisa e o convite para que as mesmas fossem protagonistas
deste trabalho. Posteriormente, realizamos ligações telefônicas, a fim de verificarmos a
adesão e o desejo de comungarem deste processo de estudo. Por fim, agendamos - de acordo
com a disponibilidade da família - as entrevistas propriamente ditas, uma por família, uma vez
educandos com idade superior a quatorze anos e com diagnóstico de deficiência mental leve a moderada. Nesse
local são desenvolvidas atividades, como alfabetização, educação de jovens e adultos, orientação para o trabalho,
cursos em diversas oficinas, estágios na própria Fundação ou em empresas e encaminhamento ao mercado de
trabalho. É importante salientar que este bloco, apesar das dificuldades construídas historicamente e que são
enfrentadas quotidianamente, propõe à Fundação, à família, aos educandos e à sociedade uma porta de saída da
institucionalização destes sujeitos, através do mercado de trabalho competitivo ou protegido. Já no bloco “II”, os
usuários são educandos também com idade superior a quatorze anos, com um diferencial bem evidenciado do
bloco “I” no que concerne ao diagnóstico, com deficiência definida como grave a severa. Isto significa dizer que
existe um comprometimento físico e mental maior, que impossibilita a execução de muitas atividades da vida
diária. Torna-se inviável também sua inserção no mercado de trabalho, especialmente sob a ótica de trabalho
preconizada pelo sistema capitalista. O atendimento desenvolvido neste bloco se dá através dos grupos de
trabalho, das atividades laborativas ocupacionais e do grupo de convivência. Foi a partir deste grupo que
extraímos as famílias inseridas na pesquisa.
16
que não houve necessidade de retorno, tendo em vista a qualidade e intensidade das
informações fornecidas. O reconhecimento deste universo familiar pautava-se na necessidade
de aproximação do cotidiano destas famílias, juntamente com a compreensão do “significado
da tarefa assistencial enquanto mediação no acesso a direitos sociais” (Y
AZBEK
, 1993, p. 28).
Cabe salientar que todos os nomes utilizados nesta pesquisa são fictícios,
garantindo o sigilo necessário para o referido estudo. Com o mesmo apreço, houve o cuidado
em comunicar às famílias todo o processo desta construção, porém algumas salientaram que
não haveria a necessidade de sigilo, que suas identidades poderiam ser reveladas sem
qualquer restrição. Mesmo diante da permissão dos familiares, preferimos manter o sigilo, a
ética a respeito de seus nomes e de suas vidas.
Assim, temos nove famílias que foram caracterizadas pelos nomes da pessoa com
necessidades especiais em processo de envelhecimento, sendo constituídas por sete homens e
duas mulheres. Percebemos que o contexto das famílias apresenta-se de forma similar,
embora haja distinções básicas, que pode ser caracterizada pelo próprio diagnóstico
apresentado por este membro, ou ainda pela pessoa responsável em cuidá-lo, dentre tantas
outras complexidades que cada sujeito em particular demandam. Das famílias pesquisadas
apenas duas o protagonismo do cuidado é responsabilidade dos pais (
Pedro Henrique
e
Cleide
). Outras o cuidado fica restrito a figura materna que pode ou não contar com o auxílio
dos demais filhos, como é o caso de
Eduardo
,
Gustavo
,
Armando
e
Rebeca
. Nas famílias de
Clóvis
,
Richard
e
Fernando
o cuidado é redimensionando aos demais membros da família,
tendo em vista que já não possuem os genitores como referência, em razão do falecimento dos
mesmos.
O segundo instrumento correspondeu à
pesquisa documental
e
bibliográfica
, tanto
dedicada ao estudo desta população, quanto às demais temáticas que nos propusemos
trabalhar para subsidiar nossas ponderações. Ocorreu durante todo o processo de construção
desta dissertação, decerto.
Os procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa decorrem, assim, da
combinação destes dois instrumentos de análise complementares, na qual a articulação das
informações elencadas suscitou a construção dos três capítulos que compõem esta dissertação,
o que será sintetizado a seguir:
O primeiro deles é intitulado
“As pessoas com necessidades especiais e suas
famílias no contexto do sistema de proteção social: que lugar ocupam?”
e visa problematizar
a percepção histórica que se tem da questão da deficiência, seus mitos, estigmas e
17
preconceitos que, para além de se restringir a uma simples conceituação e categorização,
influenciam de forma direta a relação estabelecida com este segmento social e com suas
famílias.
Longe de ser restrita ao ambiente familiar, ou até mesmo às fronteiras das
comunidades em que estas famílias residem, tais relações inscrevem-se também na esfera
pública por meio do sistema de proteção social, o que justificou dois sub-itens neste capítulo:
inicialmente, abordamos esta temática no contexto brasileiro, perfazendo seus desenhos no
decorrer da história; a segunda linha de raciocínio enfoca especificamente a questão da
deficiência no sistema de proteção social, a fim de que tenhamos vislumbradas as formas de
engendramento deste processo. Frente a estas reflexões amplas e visando uma percepção
teórico-política quanto à questão das relações entre o sistema de proteção social e a
deficiência, surge a necessidade de elencar, nestas discussões, a relação destes com o
segmento familiar. É nesta direção que justificamos a construção deste item, que encerra as
ponderações do capítulo inaugurador desta dissertação.
Trata-se, portanto, apenas do início das abordagens no tocante à temática da
família que, nesta dissertação, tem um enfoque central. O título
“Famílias das pessoas com
necessidades especiais: de quem estamos falando?”
objetiva apresentar, assim, esta
população, que historicamente construiu uma vida paralela à das demais famílias, posto que se
sentia penalizada e/ou culpabilizada pela existência deste integrante, possuidor de algo
diferente e não apenas distinto, algo reprovado pela sociedade, que primava pela eugenia e
por uma moralidade homogênea.
Nesta direção, privilegiamos a apresentação destas famílias, sua constituição, o
perfil da pessoa com necessidades especiais, seu diagnóstico, sua renda familiar, com quem
reside, enfim, informações que aduzem como está posto este grupo familiar.
Em seguida, objetivamos compreender de que forma as famílias se apropriaram da
deficiência, como se organizaram, quais foram as angústias e receios que muitas vezes
comungaram, ou que estão diretamente vinculada à forma como esta família recebeu a
comunicação da deficiência. Neste sentido, argumentamos pela necessidade de elucidar estes
meandros, posto que a investigação da forma de comunicação adotada essencialmente pelas
equipes profissionais vinculadas à área da saúde, denota situações complexas e que suscitam a
resignificação urgente de algumas intervenções profissionais.
Ainda na tentativa de elucidar este universo que inicialmente nos é estranho,
buscamos resgatar das narrativas familiares as novas temáticas das políticas públicas no
18
contexto das famílias. Temáticas que são materializadas num cotidiano de lutas, visto que, no
momento das entrevistas,
o que saltava aos olhos
era a necessidade premente de travar lutas
diárias na tentativa de conquistar mais um dia, que significava e constituía uma grande vitória.
Vitórias diárias que são observáveis no controle das crises convulsivas, na obtenção de mais
um pacote de fraldas descartáveis, na ida ao médico e na aquisição dos medicamentos de uso
contínuo, no atendimento educacional realizado diariamente, enfim, nestes fatos que se
configuram como verdadeiras
batalhas
pois, no contexto destas famílias, os direitos são
sempre arduamente conquistados, quando o são.
O segundo tópico deste capítulo analisa o cuidado como responsabilidade
feminina. Esta, nos segmentos pesquisados, fica evidente e certamente produz implicações,
decorrentes tanto da condição de gênero, quanto da resignificação da família sob essas
características.
É na dimensão do cuidado que observamos grande parte das preocupações
familiares, posto que, em razão do envelhecimento da população com necessidades especiais,
competem à família (ao menos dentro do modelo em que está configurado o sistema de
proteção social brasileiro) as respostas a estas inseguranças. Tais inseguranças não devem ser
compreendidas de forma abstrata ou generalizada, mas sim com ênfase nas lacunas existentes
no sistema de proteção social, que deveria atender as demandas suscitadas por estas famílias.
A articulação dessas análises culminou, assim, no capítulo 3, denominado
“As
novas temáticas das políticas públicas no contexto das famílias: como problematizá-las?”
Termos conhecido e participado deste universo familiar proporcionou-nos a
renúncia aos nossos preconceitos e a resignificação de nossas posturas pessoais e
profissionais, não em nome da piedade ou da resignação, mas em prol de um novo desenho de
sociedade. O que se apresentava, antes, de forma tão embrutecida e indiferente, frente não
apenas às famílias das pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento
mas, de um modo geral, frente aos segmentos designados como vulneráveis, agora pode ser
percebido como matéria de direitos, ainda que especiais e inéditos. Resignificar este universo
faz emergir fortemente o compromisso com a justiça, que Comte-Sponville (1995, p. 93)
define como elemento essencial, ao dizer que
A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. Não são os
justos que prevalecem; são os mais fortes sempre. Mas isso, que proíbe
sonhar, não proíbe combater. Pela justiça? Por que não, se nós a amamos? A
impotência é fatal; a tirania é odiosa. Portanto, é necessário “pôr a justiça e a
força juntas”; é para isso que a política serve e é isso que a torna necessária.
19
Direcionamos esta dissertação na perspectiva da aplicabilidade da justiça e da
compaixão, entendendo-as como possibilidades a serem alcançadas de forma a
essencialmente, resignificar o cotidiano destas famílias, em prol da efetividade de um sistema
de proteção social e não da permanência e cristalização de um estado de coisas em que a
desproteção social perdure como estratégia de manutenção das desigualdades e indiferenças
sociais.
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As reflexões a serem tematizadas nesse primeiro capítulo nos remetem a três
registros teórico-conceituais distintos mas inter-relacionados: a deficiência tomada na sua
dimensão social e histórica, a família como principal esfera de socialização primária, e o
sistema de proteção social, com as reconfigurações processadas pelas conquistas político-
legais dos últimos anos. São elementos, portanto, essenciais na construção desta análise, que
constituem o lastro de toda a pesquisa teórica e empírica com base na qual esta dissertação é
construída. Assim sendo, compreendê-los significa conferir a dimensão e importância devidas
ao universo familiar, bem como ao sistema de proteção social, esfera complementar de
organização e enfrentamento das necessidades sociais, estruturas determinantemente
vinculadas à problemática da pessoa com necessidades especiais.
Privilegiar nesta pesquisa a construção histórica da conceituação da deficiência se
fez necessário, tendo em vista que ainda perduram dúvidas a respeito do fenômeno. Dúvidas
que não ficam restritas ao espaço privado das famílias que possuem um membro com
necessidades especiais, mas estendem-se à ausência de compreensão da sociedade em geral,
que se expressa de diferentes formas frente a esta população.
Outra questão relevante trata-se da forma como historicamente as políticas sociais
e setoriais minimalistas, banalizaram e até eclipsaram a família, de modo que a vertente destas
“grandes políticas sempre conduziu à compreensão da mesma isolada de seu contexto e dos
valores sócio-culturais com predominância generalizante” (T
AKASHIMA
, 2002, p. 77).
Nesta direção, enfatizamos a idéia de Hofmeister (2003, p. 13), que indica a
relevância de contextualizarmos a família, pois
Olhando para a realidade brasileira atual (considerando seu desenvolvimento
histórico) e nos deparando com a óbvia carência de vários fatores
importantes para a realização humana, podemos seguramente esperar que a
situação do núcleo familiar esteja também marcada por precariedade, falta de
preparação e ausência de projetos de vida positivos.
21
No Brasil, historicamente, a família representava um espaço secundário na
conformação de um sistema de proteção social que apresentava marcas clientelistas, focalistas
e corporativistas e não se constituía como reflexo de políticas destinadas ao grupo familiar.
A partir da Constituição Federal de 1988 e dos desdobramentos desta Carta (o
Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Orgânica de Assistência Social, por exemplo),
elementos como a convivência familiar e a participação comunitária são evidenciados como
direito social. É neste contexto que acontece uma revalorização do espaço familiar, que não
deve simbolizar a isenção do Estado na garantia de um sistema de proteção social, nem
tampouco a transferência de suas competências ao Segundo e Terceiro Setor
4
.
A sobrecarga que as famílias estão experenciando são fomentadas também pela
reconfiguração do Estado que, tendo legitimado sua intervenção com a regulação das relações
sociais nos diferentes contextos econômicos, mais do que nunca está
à mercê
dos ditames do
capital internacional, cujos interesses sacramentam várias normas e orientações a serem
obedecidas pelos países em desenvolvimento, na perspectiva da precarização dos direitos
sociais e do desinvestimento público nas políticas sociais, ao lado da destruição das garantias
mínimas e da proteção da população assalariada.
É na perspectiva de problematizar e esmiuçar estas três esferas - a deficiência, a
família e o sistema de proteção social, que alicerçaremos este capítulo, sendo que inicialmente
trataremos de privilegiar a construção histórica da deficiência, a fim de que este fenômeno
seja depurado do universo dos estigmas e mitos. Embora, em alguns aspectos, essas
incógnitas tenham sido atenuadas, muitos questionamentos perduram, tendo em vista que suas
origens correspondem ao próprio processo histórico, durante o qual a deficiência foi
conceituada, ora como doença mental, ora com um atributo a ser satanizado, ou santificado,
dependendo do percurso da humanidade. Objetivando minimizar o efeito deletério destas
indagações, construímos o primeiro tópico deste capítulo, a fim de delinear historicamente o
processo de compreensão da deficiência.
Posteriormente, evidenciaremos algumas considerações teórico-históricas do
sistema de proteção social no Brasil. Em seguida, realizaremos a discussão da deficiência na
4
Dirigimo-nos a Komeyama (2000, p. 199), a fim de conceituar estes setores que categorizam o Estado, o
Mercado e a Sociedade, sendo que o Terceiro Setor engloba “serviços não-exclusivos do Estado. Inserem-se
neste setor quaisquer iniciativas privadas na criação de entidades jurídicas não-governamentais que perseguem o
bem comum da coletividade, desenvolvendo atividades nas quais não existe o
poder do Estado
. [...] O primeiro
setor é constituído pelas atividades do governo, envolvendo os poderes executivo, legislativo e judiciário assim
como o ministério público. O segundo setor é o verdadeiro setor produtivo de todo país essencialmente
capitalista. Nele estão englobadas as empresas de diferentes ramos de produção [...] enfim, todo o setor
produtivo com fins de lucratividade”.
22
esfera do sistema de proteção social, visto que será por meio deste segmento em particular
que investiremos esforços de compreensão e desvendamento deste fenômeno tornando-o
visível, palpável, para que tenhamos condições de conhecer aquilo que nele se constitui como
núcleo temático central dessa investigação.
Por fim, registraremos a atenção destinada às famílias no âmbito das políticas
públicas, a fim de sustentar as argumentações do capítulo seguinte.
1.1 A construção histórica da deficiência
A temática que inaugura a análise construída nesse estudo é dedicada ao
reconhecimento da problemática da deficiência mental, entendendo que se trata de um longo
trajeto social e científico que suscitou, sobretudo, uma apreensão generalizadora do
fenômeno, como se toda manifestação comportamental, dissociada dos padrões da época,
fossem expressão da própria condição da deficiência.
Conforme Scheerenberger (apud M
ENDES
, 1995), há registros escritos que, desde
2.500 a.c., comprovam a caracterização de alguns comportamentos como sendo provenientes
da explicitação da deficiência mental. Contudo, somente no século
XIX
houve uma
delimitação da deficiência mental, num processo que atribuiu a ela uma esfera particular da
condição humana.
De qualquer forma, as características de generalização da deficiência registraram
sua marca na história, sendo evidenciada, desde os primórdios, esta
universalização
explicativa
, no sentido de responder às mais inquietantes dúvidas da época. Ou seja, por não
existirem informações mais precisas sobre as doenças e as questões sociais, os fenômenos
considerados destoantes da sociedade vigente eram agrupados sob a rubrica da deficiência,
responsabilizando somente o indivíduo por tal condição. Em outras palavras, a idéia de
deficiência caracterizou-se, no decorrer da história, como uma panacéia, sendo
remédio para
todos os males
do conhecimento insuficiente e pseudo-resposta para todas as indagações. Para
Goergen (1985, p. 9), “foi possível silenciar completamente sobre o deficiente mental e
esconder anonimamente aqueles que mais se distinguiam ou cuja presença mais incomodava”.
23
A percepção destes sujeitos, ora como
seres parasitários
, ora como elementos de
condescendência limitavam outras formas de conceber esta população e, mais ainda, atribuía
unicamente ao indivíduo sua condição incapacitante, reforçando estigmas
5
e fazendo
prevalecer a lógica de isolamento. Para Foucault (1992, p. 121), a prática de internamento da
loucura, no século
XIX
, coincide com o momento em que esta é percebida menos com relação
ao erro do que com relação à conduta regular e normal
6
. Este momento representa a loucura
não mais como julgamento perturbado, mas sim como uma desordem na maneira de agir, de
se expressar, de sentir paixões, enfim, de ser livre. Para o autor, “em vez de se inscrever no
eixo verdade-erro-consciência, [a loucura] se inscreve no eixo paixão-vontade-liberdade”.
Para Pessotti (1984) as políticas de atendimento vislumbradas no século
XIX
eram
direcionadas na perspectiva do abandono, do confinamento com objetivo educacional ou do
retorno ao hospício, dependendo do tipo de
anormalidade observável
, geralmente restrita às
pessoas deficientes mentais consideradas dentro das classificações severa, profunda e, talvez,
moderada, associadas às incapacidades acentuadas, aos estigmas físicos bem demarcados e,
por fim, adicionadas à inadequação social, dentro da concepção de ordem vigente na época.
Diante disto, constatamos que os padrões de
normalidade
e
anormalidade
estão
diretamente associados ao modelo econômico vigente, indiferente do período histórico
estudado, haja vista que qualquer alternância nos moldes deste exigiria a adaptabilidade das
demais estruturas sociais. Neste sentido, observamos que a população que apresenta alguma
necessidade especial esteve historicamente abandonada à sua própria sorte, na mesma medida
5
Esta categoria é trabalhada por Goffman (1988), que faz um resgate histórico da representação social do
estigma, sendo que, para os gregos, o termo significava sinais corporais, que permitiam identificar alguma
atitude criminosa realizada pelo seu “portador” ou, ainda, referia-se a pessoas discriminadas. Os sinais eram
feitos com cortes ou queimaduras, objetivando distinguir escravos, traidores, e criminosos dos demais membros
da sociedade. Na era cristã, duas interpretações dos sinais corporais eram evidenciadas: uma correspondia à
graça divina e a outra, contrariando a explicação religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Enfim,
várias foram as significações pontuadas ao longo da história, culminando numa identidade virtual que criamos,
identidade esta que ignora a identidade social real da pessoa estigmatizada, que muitas vezes caracterizamos
como sendo uma pessoa
estragada
e/ou
má.
6
Embora no texto intitulado “Sintomas mentais e ordem pública” Goffman (1978) não esteja fazendo uma
análise direcionada aos modelos comportamentais existentes no século
XVIII
, o autor pontua algumas críticas e
reflexões relevantes acerca dos padrões sociais de “normalidade”, especialmente retratando que estes ditames
nem sempre são tão claros e que, por trás destas condutas, há uma série de interesses que vão além de um
diagnóstico científico; ao contrário, aparece sob esta mácula a representação dos interesses político, econômico e
social. O autor reflete sobre estes aspectos, considerando a hipótese de não possuirmos recursos científicos para
distinguir o que caracterizamos realmente como “anormal” na sociedade, bem como a definição de uma doença
mental, haja vista que “ao passar tão rapidamente do delito social ao sintoma mental, o psiquiatra [Goffman
exemplifica a atuação deste profissional] tende a apresentar a mesma dificuldade que o leigo para avaliar a
impropriedade de um dado ato - o que é defensável no caso de atos extremamente desviantes, mas não quando se
trata de muitas outras impropriedades mais suaves. Isto é inevitável, pois simplesmente não possuímos um
mapeamento técnico dos vários padrões de comportamento aprovados em nossa sociedade” (Ibid., p. 10).
24
em que as parcas iniciativas públicas direcionadas a este público ficaram restritas às
patologias e aos mitos.
Reflexos desta síntese, entre desinformação e as pré-noções oriundas do senso-
comum, podem ser evidenciados também no discurso das famílias pesquisadas, no qual as
categorias de doença e de deficiência são usualmente confundidas.
Muita gente olhava pra ela e pensava que ela não era doente. Tratavam
normalmente. Teve um [dia] que eu fui consultar com ela [e ela] começou a
ficar agitada. Aí ele [funcionário] começou a engrossar. Aí eu assim: “Será
que o senhor não tá vendo que ela não é uma pessoa normal?”
Porque às vezes a Rebeca tem a característica [...] quem olha pra ela não
diz que ela é deficiente ou não (Família de Rebeca).
As irmãs acrescentaram ainda que, quando
“a gente conversa com ela, acha que
ela é normal”.
Evidenciamos também esta dicotomia na família de
Richard
, chamado de
Rick
,
pelos familiares:
Às vezes a gente diz assim do RicK que ele é doente, mas daí as minhas
filhas dizem - que já estudaram e tudo: “mãe, o RicK não é doente, o RicK é
uma pessoa especial, não é doente, porque o RicK, come, caminha, né?”
Eu não sei, eu acho que quem é deficiente é aquele que não consegue
caminhar, né? Se locomover? Até assim, tem gente com duas pernas que não
trabalha, como aqueles que não consegue se locomover [...] que não
consegue se expressar como uma pessoa normal, né?
A família de
Clóvis
pode ser também citada nesta análise:
É a mesma coisa com o Clóvis, que tem dia que vem gente aqui e diz: “ai,
tadinho”. Eu digo: “Ele não é tadinho, ele é debilitado na vida dele”.
O importante é como eu digo: não é tratar ele como doente, ele não é
doente, entende? Porque o Clóvis não é retardado como muita gente chama,
mas eu não gosto que chamem desse jeito, porque as pessoas se referem
assim: “Ah, aquele retardado, aquele doente lá [...] não sei porque eu tenho
em casa, mas a palavra, a forma como chama é tão forte [...] é pesada.
Ele tá bem, dentro das possibilidades dele, tá contente, tá feliz, ele transmite
energia pra todo mundo, entende? Então ele não é um tadinho [...] Não vou
criar ele como tadinho porque se fosse criar ele assim, ele já tinha morrido
há muito tempo [...] a gente dá as responsabilidades dele [...] ele não é um
inútil, ele tá aqui por alguma coisa, ele tem a missão dele, e tem muita gente
que não aceita.
Observa-se que as patologias e os mitos não fazem apenas parte de uma história
que ficou para trás, mas ainda está presente no contexto destas famílias. E era em função deste
risco
eminente
e
ameaçador
, simbolizado pela pessoa com necessidades especiais, que
25
existiam as instituições correcionais e religiosas, que atendiam todo e qualquer tipo de
desviante,
fazendo crescer consideravelmente, no final do século
XIX
e início do século
XX
,
um movimento a favor da institucionalização, já que os
idiotas
e os
imbecis
formavam,
juntamente com os
inaptos
à inclusão na força de trabalho, a categoria social dos
incompetentes
. O objetivo destas instituições era o de legitimar um simples cuidado custodial,
destinado a todos os
perturbadores
de uma
ordem social
.
De forma concomitante a este processo Alfred Binet (1905) institui o diagnóstico
psicológico, definindo esta incompetência como um déficit intelectual de grau leve,
denominando-o debilidade mental e associando-o às condições de desvio mental
anteriormente classificadas como
imbecilidade
e
idiotia
. Esta graduação estabelecida por
Binet permitiu compreender as categorias de “idiotia, imbecilidade e debilidade mental, com
base no pressuposto de que a atividade intelectual nestes indivíduos seria sempre a única
função comprometida independente da etiologia” (M
ENDES
, 1995, p. 80).
Desta maneira, é a partir de Binet (1905) que ocorre a dissociação entre o aspecto
psicológico e o biológico, sendo que o pesquisador privilegia o primeiro em detrimento do
segundo, argumentando que “para se obterem sinais seguros de retardo mental seria
necessário estudar o grau de inteligência” (M
ENDES
, 1995, p. 81). Assim sendo, a partir deste
período, as explicações psicológicas do retardo intelectual se constituíram como área
autônoma, visto que a classificação destas novas categorias se legitima muito mais com base
nos critérios psicológicos do que nas explicações etiológicas.
Esta nova abordagem trouxe consigo um temor social, já que a inclusão da
debilidade mental, na condição de inteligência subnormal, fomentou o alarmismo e o pânico
na sociedade, que entendia este fenômeno como um rótulo capaz de justificar qualquer desvio.
A partir do século
XX
esta generalização é posta em xeque como tentativa de
classificar esta população, uma vez que nem todos precisariam ser considerados
ameaçadores.
Este temor era evidenciado especialmente em duas situações: ora pelo fato de os deficientes
severos serem associados aos leves, como se fossem pertencentes à mesma categoria, ora pela
tomada de consciência quanto à grande incidência da debilidade mental na população.
Nesta direção, as descrições de Binet (1905) enfatizaram basicamente as
habilidades de linguagem, o que não afetou a compreensão, própria do senso comum, que
rotulava a debilidade mental como sendo atributo de
pessoas defeituosas
que eram vítimas da
hereditariedade e que, em função disto, eram repassadores desta
mazela biológica, psíquica
e
moral
à sua prole, pondo em risco toda a sociedade.
26
As associações profissionais de eugenia
7
assumiram a tarefa de coibir a
proliferação das ditas anomalias genéticas e dos distúrbios morais. O resultado desta
intervenção, somado aos estudos genealógicos que associavam deficiência mental,
hereditariedade e comportamento anti-social, serviu de base para a legitimação da legislação a
respeito da necessidade de esterilização, bem como para confirmar a relevância do
confinamento e da segregação das pessoas consideradas deficientes.
Em sintonia com este movimento, cresce o número de estudos demográficos que
se apropria dos testes formulados por Binet, objetivando relacionar o nível intelectual com
algumas peculiaridades atribuídas anteriormente à condição de
idiotia
, “tais como a natureza
hereditária, o crescimento de incidência na população e a relação entre a condição e os
problemas sociais que se supunha serem decorrentes do déficit intelectual” (M
ENDES
, 1995, p.
82).
Diante disto, pensar em estratégias de resposta a estas ameaças, como por
exemplo a condenação, a rejeição e o temor, reforçava consideravelmente o clima negativista
e alarmista criado em torno da população considerada deficiente mental.
No decorrer deste período, intensificaram-se os estudos que buscavam elaborar
descrições comportamentais destes indivíduos. No entanto, muitos deles eram mera expressão
de informações casuísticas, infundadas e contraditórias que, longe de serem explicações
fundamentadas cientificamente, restringiam-se a dados coletados de forma empiricista nas
instituições educacionais e escolas especiais, como também nos espaços hospitalares, tendo
em vista que as observações eram feitas no ambiente coletivo destas estruturas. Não se levava
em conta nestes estudos, por exemplo, que os indivíduos ali analisados estavam há anos sob
uma tutela institucional e que este elemento, por si só poderia ter contribuído para ou
agravado as incapacidades destas pessoas.
O movimento contraditório deste período trouxe um novo olhar sobre a forma de
estudo das características da pessoa deficiente mental que, por um lado, passou a se pautar no
7
Exemplo deste modelo encontramos na obra de Mendes (1995, p. 82), que se reporta ao estudo de Fernald em
que este descrevia parte das
anomalias
vinculadas à deficiência mental, relacionando-as aos comportamentos
“criminosos, pobreza, nascimentos ilegítimos, intemperança e outros problemas sociais complexos, [afirmando]
que seus portadores eram parasitas, completamente incapazes de bastar-se, que se tornavam um encargo público,
causavam um desgosto inconsolável à família e se constituíam numa ameaça à sociedade. Para ele as mulheres
portadoras de tal condição seriam invariavelmente imorais, agentes de propagação de doenças venéreas e de
crianças deficientes. Em relação aos imbecis leves, ele afirmava que eram criminosos em potencial que
necessitavam apenas de um meio favorável para desenvolver e exprimir suas tendências”.
27
estudo científico e, por outro, não conseguiu desvencilhar-se das formas descritivas e
negativistas direcionadas apenas às características comportamentais.
8
Com o progresso da área médica, que proporcionou a construção de diagnósticos
etiológicos mais precisos, houve uma diminuição no mito da hereditariedade como indício
probabilístico da deficiência mental, o que aumentou a possibilidade de prevenção das
deficiências. Paralelamente a este progresso médico, a psicologia também formula seu
diagnóstico na tentativa de diminuir a incidência dos fatores orgânicos e combater a
concepção unitária organicista, mesmo com a ampla utilização dos testes mentais.
A intenção destes esforços era dar outra conotação à deficiência mental,
diminuindo a importância da hereditariedade e buscando outras formas de classificação do
fenômeno, ampliando a abrangência de outras áreas do conhecimento e, especialmente,
fomentando uma visão mais otimista sobre a recuperabilidade da pessoa que apresentava tal
condição.
No entanto, percebemos que prevalecem ainda nos dias de hoje, os mitos e as
explicações incertas acerca da origem da deficiência, em cenários que configuram o contexto
das famílias que vivenciam o fenômeno, como observamos no resultado da pesquisa. Para
família de
Cleide
, a deficiência surgiu em razão do fato de que
“ela deu um pouquinho assim
de catapora, né? Não sei porque deu isso nela”
. Por trás desta justificativa está a concepção
vislumbrada pela família de
Pedro Henrique
, segundo o qual a deficiência decorre do parto.
No entanto, a família avalia este processo comparando-o com aquele que é vivenciado pelas
demais famílias com as quais tem contato, pois acredita que
“o Pedro Henrique é um pouco
[deficiente]. Mas tem deficientes muito pior do que ele, tu vê lá na Fundação, tem uns que
não andam, outros ficam numa cama [...] Que esperança vai ter com uma criança daquela
lá?”
É importante registrar que, nesta última família, ficou evidenciado que quanto
maior a debilidade da pessoa, mais sua situação física e mental é agravada;
proporcionalmente, os sentimentos de esperança são diminuídos, tendo em vista que a
deficiência está muitas vezes associada a doenças e, como conseqüência, à necessidade da
procura de curas.
8
Cabe destacar que um dos elementos comportamentais avaliados dizia respeito à vida sexual, já que os “homens
considerados sexualmente instáveis eram aqueles que apresentavam masturbação pública, exibicionismo, ataque
sexual às mulheres, violação e estupro. As moças e mulheres instáveis eram as promíscuas ou as sujeitas ao
abuso sexual” (M
ENDES
, 1995, p. 86).
28
A abolição da idéia de que a deficiência era algo herdado direcionou a psicologia,
para duas abordagens (M
ENDES
, 1995) que corroboraram a contestação acerca da importância
dada ao aspecto da herança genética como a única causa deste fenômeno. Uma delas foi
adotada por John Watson, na linha behaviorista, evidenciando que o condicionamento e a
aprendizagem explicavam mais adequadamente as aquisições humanas do que a própria
hereditariedade. A outra foi defendida por Sigmund Freud na área da psicanálise, e enfatizava
a aprendizagem social precoce, considerando especialmente a família como fator de mudança
da personalidade.
Intensificando este movimento, avaliações acerca dos estudos genealógicos e
demográficos foram revistas e questionadas, sobretudo no tocante às estimativas alarmantes
de incidência e proliferação desta condição, neutralizando o
fantasma
do rebaixamento da
inteligência nacional ao longo do tempo.
Outro aspecto considerado importante neste movimento, e que foi suscitado pela
compreensão das características da aprendizagem e pelas descrições dos comportamentos, foi
a composição de novas síndromes ou definições de quadros clínicos, os quais foram sendo
diferenciados gradualmente da categoria genérica
9
pela qual a deficiência mental era
reconhecida.
Netchine (1971) avalia este movimento como sendo reflexo da diminuição do
pânico
, atribuindo relevância aos progressos científicos, e reforçando a lógica de que o temor
estava diretamente vinculado ao que era estranho, desconhecido. Sem diminuir a importância
deste processo, o autor indica que não há como ignorar que razões puramente políticas podem
também ocasionar mudanças nas concepções e atitudes.
A partir desta concepção acerca da deficiência mental, estudos no sentido de
categorizar
10
este fenômeno foram desenvolvidos com o objetivo de chegar a novas
formulações teóricas, novas terminologias e novas políticas de atendimento para esta
população. Diante disto, a “condição perde, então, a referência à etiologia orgânica e
incurabilidade, e é assumida uma nova terminologia para as subcategorias: deficiência mental
leve, moderada, severa e profunda” (M
ENDES
, 1996, p. 11).
9
Para Mendes (1995, p. 90 - grifo da autora), “as categorias atualmente denominadas como
dificuldades
específicas de aprendizagem, distúrbio de conduta, psicoses infantis e dificuldades de linguagem
certamente foram categorias que se destacaram da condição genérica da deficiência mental.
10
O sistema de classificação comumente utilizado nas últimas décadas tem sido aquele endossado pela American
Association on Mental Retardation -
AAMR
. Para uma melhor análise, ver o texto intitulado “Definición,
classificación y sistemas de apoyo” (1992), traduzido por Ludwig (2003) em pesquisa realizada na F
CEE
.
29
Por meio do conceito de
deficiência mental leve
11
, tentou-se desmistificar parte
das características que pareciam cristalizadas, como a idéia de hereditariedade, os estigmas
físicos que resultavam em pouca atratividade física, a correlação com comportamentos anti-
sociais descritos como
criminalidade, vadiagem
e
delinqüência
, já que estes não eram
atributos inerentes a esta população.
Nos estudos comparativos entre o deficiente mental leve e as pessoas consideradas
normais
, os aspectos de psicomotricidade, aprendizagem, inteligência, sociabilidade e
personalidade eram avaliados, especialmente na esfera escolar, onde as aquisições acadêmicas
de crianças e adolescentes eram mais evidenciadas. Nesta análise comparativa, constatou-se
que há condições de aprendizagem para o deficiente mental leve, ainda que a velocidade deste
processo seja diferenciada em relação aos demais.
Outra explicação conceitual referente a esta população, diz respeito à disfunção ou
lesão cerebral mínima, justificando as dificuldades cognitivas, perceptivas e comportamentais
que resultavam em deficiências no aprendizado acadêmico. Para Mendes (1995) a
caracterização desta população englobando qualquer indivíduo que, por exemplo, apresente
dificuldades acadêmicas e/ou demonstre comportamentos tidos como anti-sociais no contexto
escolar é por demais extensa.
Neste entendimento, o deficiente mental leve é visto como vítima de um desvio
intelectual que afeta a sua escolarização, já que a idéia central é a de que estes indivíduos não
estão preparados para aprender a ler, e a escrever, pois sua idade mental não corresponde à
sua idade cronológica. Em síntese, a categorização da deficiência mental leve em nada
auxiliou no fortalecimento da idéia de educabilidade desta população.
Sujeitos com
deficiência mental moderada
, anteriormente chamados de
imbecis
,
rotulados de
treináveis
ou
organicamente defeituosos
, constituem uma população cuja
categorização fica mais evidente, tendo em vista que os casos diagnosticados como tal eram
visivelmente identificados pelos indicadores etiológicos orgânicos, em razão dos problemas
neurológicos, e glandulares, ou ainda dos
defeitos metabólicos
. Esta identificação geralmente
era feita precocemente, em virtude da existência de sinais evidentes de
anormalidades
, que
podiam ser observados a partir do nascimento ou em tenra idade, muitas vezes acompanhados
de estigmas físicos. Nesta categorização, não existia a distinção de nível sócio-econômico, no
tocante aos reflexos disto na apresentação do fenômeno.
11
Este termo foi considerado sinônimo de outras categorias, como “retardo mental leve” e outras expressões
mais antigas como “debilidade mental”, “moron”, “retardo mental familial”, “retardo familial cultural”, “retardo
psicossocial” e ainda “retardo educável”.
30
A
deficiência mental severa e profunda
12
,
anteriormente definida como a
categoria da
idiotia
, dos
dependentes
,
custodiais
e dos
severamente defeituosos
, era
facilmente identificável, em virtude da etiologia desta população, que estava associada à
diversidade de patologias clínicas conhecidas, como as advindas de problemas neurológicos, e
glandulares, de
defeitos metabólicos
,
anomalias
cromossômicas, e lesões no sistema nervoso,
dentre outras, além dos estigmas físicos e de diferenças marcantes no desenvolvimento.
Outras peculiaridades também eram freqüentemente reconhecidas e somavam-se
aos demais fatores, como as concernentes às dificuldades de linguagem, motora, sensorial,
comportamental e de saúde, o que dificultava o diagnóstico diferencial entre esta categoria e
aquela designada na literatura como deficiência múltipla (M
ENDES
, 1995). Os reflexos da
ausência de informações precisas acerca da deficiência caracterizada como severa motivaram
algumas famílias a buscarem formas de enfrentamento do fenômeno, já que, embora haja esta
tentativa, observamos ainda a predominância do desconhecimento. No discurso da família de
Armando
, fica evidenciado este contexto:
Tinha um médico em São Paulo - Dr. Benedito - porque o meu marido
viajava muito, porque nós tínhamos comércio. Então tinha um rapaz, que
dizia assim pro meu marido: “Ô S. Fernandes, leva o seu filho naquele
lugar, ele dá uma vacina no seu filho e não dá mais crise”. [refere-se as
crises convulsivas] justamente nós fomos lá [...] aí ele deu a vacina. Até
assim, ele não tinha casa, hospital, começou com numa garagem, até a
injeção, naquele tempo era fervida [...] então ele dava e dizia: eu dô a
vacina, mas tem que continua a dar o remédio. Eu indiquei pra muita gente
aqui em Florianópolis, aí elas disseram: “ah não, não é pra largar o
remédio, então eu não quero”.
Embora predominem as situações de incerteza, ou ainda a garantia da inexistência
de uma “cura”, a família persiste na possibilidade de encontrar algo que lhe garanta a não-
desistência deste membro.
Um limite apontado por Mendes (1995) com relação à população definida como
deficiente mental severa a profunda é que não havia material suficientemente claro e
fidedigno para caracterizar esta população, visto que os documentos encontrados eram
demasiadamente simplistas, omitindo uma realidade de potencialidades desta categoria.
Conforme indica a autora, os estudos mais recentes apontam que estas pessoas são diferentes
entre si, haja vista que a generalização deste grupo é um equívoco. Além disso, essas pessoas
12
Vale destacar que esta população considerada deficiente mental severa e profunda sofreu ainda mais os
reflexos do descaso social, da discriminação e da ausência de atendimentos, tendo em vista que “atinge uma
população mais restrita em número, que foi, por muito tempo, excluída do sistema educacional e esteve mais sob
31
mostraram-se bem mais capazes do que se imaginava dentro da perspectiva de
ineducabilidade.
Para Mendes (1996, p. 18), há uma série de riscos que apontam para esta
subcategorização, e que são evidenciados especialmente nos dias atuais, já que esta
classificação, embora seja questionável, é legítima e comumente utilizada. Diante desta
realidade, a autora destaca que:
Na área da
deficiência mental leve
pode-se constatar que o atual estágio de
conhecimento na área aponta para a existência de controvérsias e
especulações teóricas, aparentemente insolúveis, quanto à etiologia dessa
condição para explicar sua relação com a pobreza,
descoberta
há quase um
século. É nessa subcategoria que também se encontram os maiores
problemas em relação ao diagnóstico.
Na área da
deficiência mental moderada
poderíamos destacar que existem,
na atualidade, críticas em relação ao planejamento curricular tradicional,
caracterizado por objetivos de ensino limitantes e pessimistas e pela carência
de procedimentos de ensino de habilidades cognitivas superiores.
Tais críticas evidenciam a existência de baixas expectativas ainda presentes
em relação à educabilidade de tal condição e apontam para a necessidade de
uma evolução científica futura em bases mais otimistas e menos dogmáticas.
As denominadas como
deficiência mental severa e profunda
somente
começaram a despertar o interesse científico na área educacional em anos
recentes, particularmente quando, em alguns países desenvolvidos, foram
impostas legislações específicas que garantiram a provisão de serviços
educacionais para essas populações.
Embora sejam classificações que não ampliam ou definem de fato uma
conceituação apropriada para esta população, ainda constituem-se como paradigmas
privilegiados e que são adotados hodiernamente.
Existe ainda a classificação feita pela Organização Mundial de Saúde -
OMS
(1989) no tocante aos tipos de deficiências, na qual podemos enquadrá-las da seguinte forma:
- Deficiência física (tetraplegia, paraplegia, hemiplegia e outras);
- Deficiência mental (leve, moderada, severa e profunda), aqui incluídos os que
apresentam patologias neuropsiquiátricas;
- Deficiência auditiva (total ou parcial);
- Deficiência visual (cegueira total e visão reduzida);
- Deficiência múltipla (duas ou mais deficiências associadas).
a tutela do sistema de saúde, de outros setores sociais, ou então excluídas dos serviços públicos desde o início da
organização dos serviços” (M
ENDES
, 1996, p. 20).
32
Uma outra definição utilizada para indicar a pessoa com necessidades especiais é
a legitimada pela Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, no
seu Decreto n
o
. 914, de 06/09/93, Artigo 3
º
, que considera esta população como:
aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de
sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem
incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado
normal para o ser humano.
Como observamos na trajetória da compreensão do fenômeno, houve várias idas e
vindas, nem sempre refletindo a realidade desta população, que muitas vezes era exilada e
entregue à sua própria sorte pelo estigma e pelo descaso das autoridades.
Hoje o que também está evidenciado é a ausência de uma definição clara e
condizente com a realidade desta população, que passou de
débil mental
,
idiota
ou
imbecil
, a
portadora de deficiência
e até mesmo
pessoa com necessidades especiais,
conforme a
definição adotada neste trabalho. No entanto, acreditamos que cada uma destas conceituações
traz no seu bojo uma representação social diferenciada, ora estigmatizante, ora contraditória,
quanto à definição desta população. Portanto, um dos grandes problemas a serem enfrentados
reporta-nos para além de uma nomenclatura, mas essencialmente aos parâmetros de
atendimento e proteção direcionados a esta população que demanda serviços diferenciados.
Objetivando compreender, nesta direção, a forma como esta população vem sendo
contemplada no sistema de proteção social, faz-se necessário elencar primeiramente algumas
considerações teórico-históricas que configuraram este sistema no Brasil.
1.2 Sistema de proteção social no Brasil: considerações teórico-históricas
A idéia de um sistema de proteção social público, que garanta a cobertura de
riscos tais como a doença, a velhice e o desemprego, está indissoluvelmente vinculada ao
surgimento de uma sociedade de padrão industrial, e portanto, das classes trabalhadoras, em
especial o operariado urbano.
As diretrizes do sistema de proteção social brasileiro, diferentemente de alguns
modelos europeus, foram construídas sobre a não consolidação do pleno emprego, dadas a
33
ausência de políticas universais e a fragilidade da rede pública de proteção, sob o jugo da
perpetuação dos processos de exclusão social, entre outras características, conforme os
interesses de cada período histórico
13
.
Períodos que foram marcados por diferentes formas de enfrentamento às questões
sociais, que ora era entendida como uma “questão de polícia”, segundo Washington Luís, ora
era configurada como
pleitos politiqueiros
a favor de práticas focalizadas e populistas,
caracterizando-se por ações despolitizadas. Resultados disto, foi a solidificação de um regime
político-econômico excludente e antidemocrático, no sentido dos direitos sociais destinados à
população brasileira. Observa-se ainda que este regime autoritário criou para o sistema de
proteção social um aparato institucional tipicamente conservador.
Desta maneira, cabe destacar que o traçado político constitucional do sistema de
proteção social brasileiro se estabelece inovadoramente sob a égide do princípio da
seguridade social somente a partir de 1988. O próprio conceito de seguridade, na legislação
brasileira atual, retrata uma concepção mais abrangente, levando-se em conta as versões
anteriores.
Na Constituição Federal de 1988
14
inaugura-se uma primeira tentativa de se
estabelecer um sistema público de seguridade social que englobasse Saúde, Previdência e
Assistência Social, e que tivesse uma clara dimensão universalista, sendo válido para toda a
população, conforme as peculiaridades de cada política setorial e também atendendo às
especificidades de alguns segmentos populacionais.
Desde os anos de 1990, porém, processa-se uma interpretação restritiva dos
direitos constitucionais previstos pela seguridade social, fruto de diversificadas estratégias de
retração dos direitos sociais, tanto pela via da legislação regulamentadora dos preceitos
constitucionais, quanto pelas medidas concretas de implementação das políticas setoriais.
Todavia, sabe-se que as políticas sociais são produto da correlação de forças
sociais e políticas, em seus contextos determinados. Por essa razão, o exame da natureza e das
perspectivas de realização da proteção social a ser ofertada sobretudo no âmbito da seguridade
13
Para aprofundar estes períodos históricos, ver Pereira (2000), que elabora uma construção acerca da
experiência brasileira de proteção social.
14
Foi com a Constituição Federal de 1988 que se configurou uma tentativa de equiparação com relação às três
áreas da seguridade social: previdência, saúde e assistência social. Anteriormente, somente a previdência era
direito subjetivo, ou seja, aquele que poderia ser exigido judicialmente, enquanto as demais (saúde e assistência
social) eram eventuais, dependendo das decisões políticas, e das forças de pressão, e estando atreladas à
disponibilidade dos recursos. Outra distinção inicial diz respeito à concepção de seguro e seguridade. No seguro-
previdência, é indispensável a contribuição direta para que o possível usuário adquira o seu direito. Por esta
razão, ela é definida como de base contributiva, ou seja, “só recebe o benefício quem paga”. A seguridade, ao
34
social e da educação, exige um retrospecto histórico, ainda que breve, no sentido de se
recuperar sua dinâmica constitutiva.
Desde as primeiras décadas do século, quanto as idéias e a noção de seguridade
social ganham divulgação no mundo capitalista, correspondendo ao início da formação
concreta dos chamados Estados de Bem-Estar Social, consolidados no segundo pós-guerra.
Demo (2003, p. 101-2) aduz que o processo do
Welfare State
em alguns países desenvolvidos
representou a expressão da
cidadania popular (principalmente em seu início no pós-guerra),
evidenciada, entre outras marcas, pela educação básica universalizada e por
forte associativismo, mormente sindical, [posto que] políticas universais
alcançaram êxito memorável, não como “doação”, “concessão”, “extensão”
do Estado, mas como conquista da sociedade organizada e capaz de impor
efetivo controle democrático. Não se pode esquecer que já se tratava de
sociedades menos desiguais.
No Brasil, a influência desta concepção, elaborada originalmente pelo sociólogo
inglês Sir William Beveridge
15
nas primeiras décadas do século
XX
, pode ser identificada
sobretudo nas representações e discursos dos técnicos e dirigentes dos institutos
previdenciários, bem como do Ministério do Trabalho. Em documento do Serviço Atuarial do
Ministério do Trabalho e Comércio, de 1950, citado em Oliveira e Teixeira (1989, p. 175),
podemos constatar a seguinte ponderação:
É bem sabido que a tendência moderna nesta questão é ampliar o âmbito dos
antigos seguros sociais, para compreender nas finalidades do Estado, neste
setor, não somente a Previdência
stricto sensu
, como também a assistência, a
garantia do emprego, etc; numa palavra, a seguridade social do trabalhador
[...]; de, a par da Previdência Social propriamente dita (seguro de pensões),
desenvolver um amplo sistema de assistência social (prestações em natureza
ou em serviços) [...]. para que possa o segurado gozar dos benefícios da
Previdência, isto é, para que possa ser aposentado por velhice, precisa antes
de mais nada sobreviver; a condição primacial é a saúde, a qual depende em
grande parte de uma boa assistência médica, cirúrgica e hospitalar. Por outro
contrário, independe da contribuição, tendo em vista o seu princípio de universalidade, sendo destinada a todos.
É financiada pelo Orçamento Fiscal e não pressupõe a contribuição direta do trabalhador (B
ALERA
, 1999).
15
A expressão
Welfare State
foi gestada na década de 1940, ainda que a utilização do termo
Welfare Policy -
Política de Bem-Estar - ocorra desde o início do século
XX
. O Plano de Beveridge refere-se a um sistema
britânico de segurança social (1942) que marcou os princípios do
Welfare State
, indicando a independência entre
necessidades e mercado, tendo imediata repercussão em vários países, que passaram a organizar a sua política de
segurança social a partir de algumas diretrizes apontadas por Beveridge: “é um sistema generalizado, que
abrange o conjunto da população, seja qual for o seu estatuto de emprego ou o seu rendimento; é um sistema
unificado e simples: uma quotização única abrange o conjunto dos riscos que podem causar privações do
rendimento; é um sistema uniforme: as prestações são uniformes seja qual for o rendimento dos interessados; é
um sistema centralizado: preconiza uma reforma administrativa e a criação de um serviço público único”
(N
OGUEIRA
, 2002, p. 03).
35
lado, essa assistência, prevenindo os riscos de invalidez e morte prematuras,
alivia o encargo de seguros e pensões.
O padrão de seguridade foi sistematizado a partir do reconhecimento da
obrigatoriedade do fornecimento pelo Estado de respostas às demandas sociais, por meio da
expansão dos gastos públicos, ou também, segundo alguns especialistas, pela condição
oportuna que este tipo de intervenção propiciava para os setores vinculados ao capital.
Conforme os princípios elaborados pelos ideólogos da “Seguridade Social”, caberia ao Estado
viabilizar desde a garantia de renda mínima, em caso de perda de capacidade de ganhá-la, até
o acesso aos serviços estatais de saúde, educação e serviços sociais.
Nesse sentido, o ideário da seguridade social, nos moldes em que foi inicialmente
concebido pela comissão de Lord Beveridge e depois implantado pela maioria dos países da
Europa Ocidental, sob governos social-democratas e trabalhistas, é gestado no interior de uma
articulação política dos países capitalistas aliados, após a Segunda Grande Guerra, cujo
objetivo consistia na elaboração de novas estratégias de reconstrução da hegemonia:
Esse movimento corresponde, na verdade, a parte de um amplo processo de
enfrentamento, no plano ideológico, simultaneamente aos projetos fascista e
socialista de organização da sociedade, o primeiro dos quais, apesar de
derrotado militarmente, demonstra ter encontrado significativa aceitação em
amplos setores de diversos países, enquanto o segundo estava em plena
ascensão ao final do conflito [...]. A democracia liberal procurava
demonstrar, em síntese que, como seus interlocutores, também tinha uma
proposta avançada para a satisfação das “necessidades sociais” (O
LIVEIRA
;
T
EIXEIRA
, 1989, p. 176).
O desenho atual do sistema de proteção social no Brasil, que chamamos
Seguridade Social, é resultante direto das conquistas introduzidas pela Constituição de 1988 e
das leis específicas que a regulamentam e complementam. Seu formato compõe-se da Saúde,
Previdência e Assistência Social, atravessadas pelas políticas de proteção especial, à criança e
ao adolescente, ao idoso e à pessoa com necessidades especiais.
É assim que, na nova Constituição, aparecem contemplados como direitos sociais
a educação, a saúde, o trabalho, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e
à infância, a assistência aos desamparados (cf. Título II, “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”, Capítulo II, “Dos Direitos Sociais”, artigo 6
º
), antes mesmo do compromisso
com a seguridade social, declarados nos artigos 194 e 195.
A referência explícita à seguridade social se dá então no artigo 194 (Capítulo II,
“Da Seguridade Social, dotulo VIII,Da Ordem Social), no qual se diz:A seguridade
36
social compreende um conjunto integrado de ações e iniciativas dos Poderes Públicos e da
sociedade, destinadas a assegurar a saúde, a previdência e a assistência social”.
Nesta direção, são princípios fundamentais defendidos na Constituição (loc. cit.):
I - universalidade da cobertura e do atendimento;
II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços a populações
urbanas e rurais;
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV - irredutibilidade do valor dos benefícios;
V - eqüidade na forma de participação no custeio;
VI - diversidade da base de financiamento
16
;
VII - caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com
participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e
aposentados.
Um registro importante, que não se pode deixar de citar, diz respeito à própria
concepção de seguridade social como proteção universal, por meio da elevação da Assistência
Social a um patamar de política de direitos, como estratégia basilar de enfrentamento à
pobreza e à exclusão social, como política não contributiva acessível a todos que dela
necessitarem, conforme preconiza a Lei Orgânica de Assistência Social -
LOAS
. E, seguindo
esta lógica, Martins e Paiva (2003, p. 27) endossam que:
A perspectiva da política pública supõe a identificação das demandas na
perspectiva da universalidade e a construção de respostas que alcancem a
todos. Tradicionalmente a Assistência Social não era operada no campo
público com transparência e controle social. Seu acesso foi sempre mediado
por uma “regulação
ad hoc
” isto é, caso a caso e por isso, campo do favor,
campo de vínculos pessoais e não públicos e não de direitos sociais.
O reconhecimento de que existem necessidades que não afloram por
“fragilidades de indivíduos”, ultrapassando portanto o âmbito da
manifestação da bondade, da caridade, da benemerência, é que reposiciona o
campo da Assistência Social como política pública.
Desta forma, importantes conquistas foram asseguradas na Carta Constitucional
de 1988 no que se refere aos direitos de cidadania. Disso resultou a denominação que lhe foi
generosamente atribuída, ou seja, a de “Constituição Cidadã”.
No que se refere à Previdência Social, algumas conquistas também foram obtidas,
como por exemplo a regularização dos direitos do trabalhador doméstico, a ampliação da
16
Balera (1999, p. 34) aponta para algumas preocupações com relação às três esferas da seguridade social
(política, financiamento e gestão), sendo que todas devem caminhar necessariamente juntas; no entanto, “é
lamentável que isso não foi implementado pela legislação. A legislação não caminhou junto. Cada setor teve
uma dinâmica legislativa de tal modo que a primeira legislação disciplinar foi a da saúde que é de 1990; depois a
legislação da Previdência de 1991 e só agora no final de 1993 é que surgiu a legislação da Assistência Social
37
licença maternidade para 120 dias e a extensão de todos os benefícios e direitos trabalhistas ao
trabalhador rural.
Embora a Constituição Federal tenha sido qualificada como “Constituição
Cidadã”, é preciso relativizar e ponderar com mais cautela esses avanços. Apesar dessas
conquistas formais, não se pode deixar de constatar a não correspondência entre tais avanços
no âmbito da legislação, por um lado, e, por outro, o que foi possível consolidar enquanto
prestação efetiva dos serviços prescritos.
Nota-se ainda a fragilidade do compromisso político dos governos federal,
estatuais e municipais em implantar corretamente o Sistema Único de Saúde -
SUS
e, em
contrapartida, a dificuldade que os setores sociais comprometidos com a efetivação desses
direitos vêm encontrando para reverter essa situação. Exemplo disto é o próprio
SUS
, que
aponta para uma atenção hospitalar integral e indiscriminada a toda a população, superando-se
a perspectiva de atendimento segmentário, ou seja, relativo apenas aos segurados da
previdência e seus dependentes, e não aos cidadãos em geral. Nesta direção, percebemos que
alguns avanços estão a requerer maior radicalidade na sua tradução concreta.
Para tanto, cabe recordar alguns princípios norteadores da concepção política que
embasa esse padrão de Seguridade Social, a partir do qual se estruturam os Estados de Bem-
Estar - os
Welfare States
, dado que, historicamente, esse padrão se converteu na referência
teórico-política mais utilizada para pensar a legislação social como um todo, ainda que ela
venha sendo submetida a críticas severas pelos defensores do neoliberalismo, nos últimos
tempos. Entre esses princípios, destacam-se:
a) A contribuição será proporcional à capacidade do segurado e, também, não
compulsória;
b) Qualquer cidadão terá direito a uma renda mínima, independentemente de
contribuição ou não, que lhe garanta um padrão mínimo de bem-estar, determinado de acordo
com o contexto histórico concreto;
c) A concessão deste benefício não está condicionada a qualquer critério de
merecimento, estabelecido pelos motivos causadores da necessidade;
d) A seguridade social será, todavia, algo além de um mero sistema de concessão
de benefícios. Consistiria, também, num amplo sistema de proteção social, na sua acepção
mais abrangente, contemplando, além dos benefícios pecuniários tradicionais, ações de saúde,
(Lei Orgânica de Assistência Social -
LOAS
). Este caminhar em separado gera outro problema na integração da
disciplina constitucional da seguridade.”
38
saneamento básico, educação, habitação, medidas de garantia do pleno emprego, e
redistribuição de renda, entre outros direitos.
A rigor, aquela tendência, vislumbrada nos anos de 1950 e que expressava a
defesa de um modelo de proteção social com esses atributos, jamais se concretizou em nosso
país. Ao contrário, a configuração histórica das políticas sociais no Brasil tem se caracterizado
pela predominância de um perfil discriminatório e restritivo em termos de direitos sociais,
visto que “são políticas casuísticas, inoperantes, fragmentadas, sem regras estáveis ou
reconhecimento de direitos” (Y
AZBEK
, 1995, p. 15). Nesta direção, as relações clientelistas
estabelecidas não são, certamente, reconhecidas como direitos e espera-se lealdade dos que
recebem os serviços.
Trata-se de um padrão arcaico de relações que fragmenta e desorganiza os
subalternizados ao apresentar como favor ou como vantagem aquilo que é
direito. Além disso, as práticas clientelistas personalizam as relações com os
dominados, o que acarreta sua adesão e cumplicidade, mesmo quando sua
necessidade não é atendida (Ibid., p. 16).
Desde as primeiras medidas significativas no campo da legislação social e
trabalhista, que os interesses e aspirações igualitárias dos trabalhadores, são subordinados aos
interesses políticos da legitimação, em detrimento do compromisso com a necessidade social
e o direito.
Neste contexto, repõe-se o antagonismo entre capital e trabalho, próprio da
sociedade de classes, onde as “políticas universais correm o risco de embaralhar a dialética
social, ao ignorar que os ‘marginalizados’ não possuem, de modo algum, as mesmas armas de
luta” (D
EMO
, 2003, p. 102).
É a partir dessa relação que se deve demarcar os traços constitutivos
determinantes do perfil das políticas sociais no país, entre estas a Assistência Social, de forma
que se possa compreender, com suficiente nitidez, como essa questão se inscreve hoje na
sociedade brasileira e, dentro dela, perceber as alterações anunciadas na Constituição de 1988,
no tocante aos direitos do cidadão e ao dever do Estado no campo da proteção social, bem
como às potenciais alternativas de aperfeiçoamento ou de retrocesso em curso.
Neste entendimento, Yazbek (1995, p.18) contribui com as argumentações
refletindo que:
se de um lado o Estado brasileiro aponta constitucionalmente para o
reconhecimento de direitos, por outro se insere no contexto de ajustamento a
essa nova ordem capitalista internacional, onde se observa a desmontagem
39
de conquistas no campo social e onde as políticas ortodoxas de estabilização
da economia, com suas restrições aos gastos públicos, reduzem e direcionam
os investimentos sociais do Estado.
Desta feita, em pleno auge das novas formulações que a Constituição Federal de
1988 trazia, o modelo de intervenção estatal adotado pelos países hegemônicos já apresentava
sinais de saturação evidenciados desde a década de 1970, em função da crise
17
do capitalismo.
Esta nova configuração internacional exigiu dos países periféricos uma política de
ajustes estruturais propaladas pelo Consenso de Washington (1989), que impunha disciplina
fiscal, e o controle da inflação, além do discurso da redução drástica da presença do Estado na
economia e na sociedade. Ao construir o
Estado Mínimo
por intermédio das privatizações, da
flexibilização, do corte grotesco dos recursos sociais, e mercantilização dos serviços sociais, a
nação considerada periférica “globaliza-se para a economia e nacionaliza-se para o social”
(S
POSATI
, 1997, p. 14). Esta “opção por
menos Estado
não se converteu em melhor
distribuição de renda ou maior integração social, mas apenas em
mais mercado
” (N
OGUEIRA
,
2004, p. 54). É na base deste novo modelo de Estado que estão presentes os organismos
internacionais que fazem recomendações direcionadas ao mercado, exigindo a abstenção dos
instrumentos de controle político e a restrição na alocação de recursos públicos,
principalmente na área social. Como contribui Paiva (2003, p. 54):
Essa crise econômica, acoplada à crise política do regime
welfariano
, vem
sendo tratada pelo pensamento liberal conservador como um problema de
asfixia do mercado - reerguido à sua dimensão auto-reguladora -, gerada
pelo crescente espaço de intervenção do Estado na economia, sobretudo
enquanto instância pública de atenção aos direitos sociais. É o momento da
apologia neoliberal do Estado mínimo, cujo mote tem sido a privatização, ou
seja, a redução drástica da atuação pública no campo das necessidades
sociais, de forma que o Estado volte a se configurar como mais eficiente aos
interesses do grande capital. Trata-se, como já sabido, de um Estado mínimo
para os trabalhadores, porém máximo para o capital.
Nesta direção, o Estado atuou de forma imprescindível na formação de uma base
integrada aos interesses dos oligopólios internacionais. Desempenhou um papel de mediador
para o capital bancário, subsidiando investimentos internacionais privados com recursos
públicos, e passando a intervir na dinâmica econômica de forma sistemática e contínua. Esta
17
Esta crise foi evidenciada pela recessão, queda nas taxas de lucro, endividamento internacional, e esgotamento
do modelo keynesiano. Mota (1995, p. 53) acrecenta que os prenúncios da crise tiveram sua fecundação “com a
intensificação do processo de internacionalização do grande capital”. O fortalecimento da ideologia neoliberal
teve como alguns adeptos Margareth Thatcher (Inglaterra - 1979) e Ronald Reagan (EUA - 1980), que se
apoiaram nas mudanças tecnológicas, como também na alteração do modelo de regulação social existente, na
fragilidade estrutural do paradigma keynesiano/ beveridgiano/fordista de produção e reprodução social, além da
crise do socialismo real
e do enfraquecimento dos partidos e organizações de esquerda.
40
opção política
(A
BRANCHES
, 1997) foi crucial e acarretou uma grande perda - uma crise
econômica e inflacionária sem precedentes - com resultantes que estão presentes até os nossos
dias.
Dada esta conjuntura, as fronteiras foram esquecidas, “o capital desterritorializa-
se, autonomiza-se numa articulação supranacional, em uma estrutura de poder cuidadosa e
bem construída onde a dominação é anônima, difusa, virtual” (Y
AZBEK
, 1995, p. 5). Somado a
esta afirmação, vale citarmos a análise de Iamamoto (1997, p. 21) que se refere a uma falsa
proposta de inovação, em que:
o discurso neo-liberal tem a espantosa façanha de atribuir título de
modernidade ao que há de mais conservador e atrasado na sociedade
brasileira: fazer do interesse privado a medida de todas as coisas, obstruindo
a esfera pública, a dimensão ética da vida social pela recusa das
responsabilidades e obrigações sociais do Estado.
Neste processo conturbado, faz-se presente o Banco Mundial, juntamente com os
demais organismos financeiros multilaterais, que condicionam a aprovação dos seus projetos
de financiamento a metas que os países periféricos têm que cumprir, objetivando um
bom
governo
. Porém esta expressão é simbolizada pelos cortes grotescos de recursos destinados às
políticas sociais, pela responsabilização do Estado pela crise e pela transferência dos deveres
do Estado, como também pela ampliação do mercado como agenciador de serviços sociais,
atribuindo
direitos somente a quem pode pagar.
Corroborando esta idéia, Sposati (2002, p.
41) afirma que nem todas as pessoas que nascem num mesmo país têm acesso igualitário aos
direitos sociais, na medida em que:
A centralidade no mercado própria do neoliberalismo substitui o conceito de
cidadania pelo de consumidor, difundindo o conceito da regulação social
àqueles que não têm capacidade própria de prover suas necessidades pelo
consumo do mercado. A noção de direito ao acesso a respostas públicas
como condição universal fica fragilizada e é reforçado o modelo político da
subsidiariedade, que propõe a regulação estatal para o último plano ou só
quando ocorrer ausência de capacidade da família ou da comunidade em
prover tais necessidades. Reduz-se a responsabilidade pública como
condição básica do direito e se “compensa o mercado”- e não o cidadão -
transferindo precários recursos para que “indigentes” possam consumir ou
realizar os
bad jobs
.
Esta mesma defesa do modelo neoliberal é observada nos discursos demagógicos,
que proclamam a privatização como única alternativa eficaz e eficiente, já que o Estado que
não tem uma
função empresarial
e nem todas as atividades atreladas ao mesmo (saúde,
41
educação, previdência, segurança) são exclusivas. Enfim, estes
DIREITOS
serão garantidos
àquela parcela extremamente vulnerabilizada, caracterizando políticas pontuais e paliativas de
abrangência ínfima, aviltante e descontinuada.
Esta perspectiva pressupõe duas espécies de atendimento: de um lado, há a
“exuberância” de serviços privados, para a parcela restrita dos que podem financiar e, do
outro, a esfera pública, com orçamento ínfimo abrangendo uma parcela significativa da
população, popularizando esta última estratégia na expressão “política pobre para os pobres”.
Vieira (1997, p. 88) faz um recorte deste movimento histórico, em que “a classe
dirigente no Brasil tem oscilado entre a inércia e a modernização imposta de fora, entre a
promulgação da Constituição e a imediata proclamação de sua reforma”. Deste modo,
percebemos que a Constituição não foi integralmente validada e que na íntegra de seu texto
repousam as infinitas medidas provisórias que neutralizam seu caráter universal em prol da
economia maestrada pelas nações hegemônicas.
A prevalência do econômico em detrimento do social é claramente evidenciada na
alegação de que é necessário produzir para posteriormente distribuir. Silva (1997, p. 191)
relembra que “a história demonstrou à exaustão a falácia de tal proposição. A marca do
desenvolvimento capitalista é a concentração e não a redistribuição de renda”.
Reforçando este discurso, Abranches (1987, p. 10) completa que existe uma série
de opções políticas e enfatiza:
Os impactos que [...] as conjunturas cíclicas [causam] na economia e no
estágio de desenvolvimento são mais visíveis e criam a impressão de que
seus formuladores são prisioneiros de determinações inarredáveis; de que só
existe uma forma de resolver esse dilema e, portanto, que a atenção às
demandas sociais básicas deve ser postergada, sob pena de colapso
econômico e desordem inflacionária. Sofisma e ilusão. O padrão de
desenvolvimento comporta diferentes soluções: não é mais que a síntese
econômico-política geral do balanço final entre meios de acumulação e
utilidade social.
Preocupamo-nos em fazer este recorte com a intenção de demonstrar a demanda
que está excluída dos processos de produção existentes, onde as alternativas de consolidação
da sua cidadania ocorrem por intermédio dos sistemas de proteção social, hoje intensamente
ameaçados e precarizados. Nesta direção, Yazbek (1993, p. 83-4) observa que:
Marcados por um conjunto de carências, muitas vezes desqualificados pelas
condições em que vivem e trabalham, enfrentando cotidianamente o confisco
42
de seus direitos mais elementares, buscam, na prestação de serviços sociais
públicos, alternativas para sobreviver.
Diante do exposto, resistimos à alternativa posta pelo sistema neoliberal,
resistência esta que tem como sustentáculo a reafirmação dos valores da solidariedade e da
justiça social. Após décadas de embates, tais valores foram abandonados ou distorcidos,
retornando a simplificação da intervenção pública pela regulação
ad hoc
, abreviando toda a
dimensão do direito social pela ótica do voluntarismo e da piedade.
Em outras palavras, o Estado foi se eximindo de seus deveres sociais, atribuindo à
sociedade civil o protagonismo desta intervenção. Sendo assim, estamos submetidos aos
apelos sensacionalistas de uma
solidariedade
desprovida de projeto político, reduzida à noção
de ajuda mútua, de responsabilização privada e individual, como medida de todas as coisas,
como referência de sociedade. Enquanto este discurso persistir, estaremos transferindo a
titularidade do direito à suplência de concessões e benemerência, dando-lhe apenas uma nova
roupagem, que para Raichelis (1998, p. 21) “retira do leito das políticas sociais universais, de
estrita responsabilidade estatal, para o espaço das iniciativas emergenciais descontínuas e
focalizadas de práticas clientelistas” uma questão essencial para a cidadania.
Desta forma, Pereira (2000, p. 187) afirma que “concretizar direitos sociais
significa prestar à população, como dever do Estado, um conjunto de benefícios e serviços
que lhe é devido, em resposta às suas necessidades sociais”. Nesta perspectiva, na
compreensão de Balera (1999, p. 38), o Estado brasileiro não implantou o sistema de
seguridade social, que ainda está em processo de formação. Diante disto, não se pode dizer
que:
o Estado Brasileiro despende muito em seguridade porque na verdade o que
existe é uma arrecadação tributária para a seguridade. Só a sociedade
financia o sistema de seguridade brasileira. Não há um compromisso do
Estado com essa área porque se trata, efetivamente, de um Estado anti-
social. O Estado Brasileiro ainda é um Estado do século
XVIII
nessa área. É o
Estado Política.
É refletindo sobre este Estado brasileiro que direcionamos nosso enfoque para o
fenômeno da deficiência no âmbito do sistema de proteção social. De acordo com a forma
como era compreendida esta população suscitavam-se estratégias correspondentes de
atendimento a estas pessoas com necessidades especiais. Deste modo, faz-se essencial
compreender de que maneira o sistema de proteção social vem enfocando a deficiência, por
meio do atendimento a esta população, faz-se essencial, posto que é na materialização das
43
políticas dirigidas às pessoas com necessidades especiais que justificamos boa parte desta
dissertação.
1.3 O enfoque da deficiência na esfera do sistema de proteção social
A construção histórica do atendimento diferenciado às pessoas com necessidades
especiais perpassou distintas áreas, desde a saúde pública até educação, sendo
privilegiadamente direcionada também à política de Assistência Social, por intermédio dos
programas sociais especiais, e da implementação do benefício de prestação continuada -
BPC
18
. Para tanto, compreender esta trajetória requer que façamos o caminho de volta, no
sentido de observar como a deficiência foi sendo configurada e de que forma isto interferiu
nas políticas dirigidas a esta população.
Para Canzione (1999), o processo do pensamento político referente à questão da
pessoa com necessidades especiais, embora tivesse assumido um novo perfil nos anos de
1980, foi enraizando sua história em movimentos internacionais importantes, como a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Declaração dos Direitos das Pessoas
Portadoras de Deficiência, que foi proclamada em 1975, e o Programa de Ação Mundial para
as Pessoas com Deficiência, aprovado pelas Nações Unidas em 1982. Esses foram alguns
marcos legais em defesa dos direitos desta população.
Outro aspecto importante foi a criação, por meio da Lei 7.853, da C
ORDE
-
Coordenadoria Nacional para Integração das Pessoas Portadoras de Deficiências, vinculada ao
Ministério da Justiça, atendendo às pressões de entidades que prestam atendimento às pessoas
com necessidades especiais e como conseqüência do Ano Internacional das Pessoas
Portadoras de Deficiência. Este movimento fomentou a criação de um plano de ação mundial
das Nações Unidas, que sugere que os países disponham de um órgão de coordenação e
articulação interministerial, objetivando trabalhar dentro da esfera federal com as políticas
setoriais. Vale destacar que este órgão foi extinto no ano de 2003.
18
O benefício de prestação continuada veio substituir a renda mensal vitalícia, anteriormente vinculada à
Previdência Social, também com caráter assistencial, que concedeu durante os anos de 1975 até 1996 uma renda
às pessoas idosas e “inválidas”, desde que estivessem impossibilitadas de desenvolverem alguma atividade
remunerada e tivessem contribuído pelo menos por 2 anos no Sistema Previdenciário.
44
Paralelamente as mudanças ocorridas nos marcos legais referentes à pessoa com
necessidades especiais, sucedem-se os tipos de atendimento voltados a esta população. Como
já afirmamos anteriormente, a concepção desta população evidenciava modelos de
atendimento distintos, que perpassaram áreas como a de saúde, educação, e previdência. A
partir da Constituição Federal de 1988, foi garantido pela primeira vez, por meio do tripé da
Seguridade Social, o
status
da Assistência Social como direito, relativos privilegiadamente
aos idosos e às pessoas com necessidades especiais, entre outros segmentos especiais
regulamentados, então, pela Lei Orgânica de Assistência Social em 1993, Lei n. 8.742/93 e
implementado três anos depois.
Há, especialmente no artigo 20 da Lei Orgânica de Assistência Social, “A garantia
de um salário de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 anos
ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei”. Vale registrar que se, de um lado, a lei oficializou
direitos, de outro lado desenhou princípios bastante questionáveis com relação aos critérios de
elegibilidade, inclusive centrando na família a responsabilidade pelo provimento dos
segmentos mais vulneráveis e dando caráter subsidiário ao papel do Estado.
Estes critérios de elegibilidade destinados à população com necessidades
especiais, bem como aos idosos, refletem o princípio da ótica da exclusão, pois consideram
como família incapaz aquela que não consegue prover
condições adequadas
a estes sujeitos
com o ínfimo valor de ¼ de salário mínimo por cada membro do grupo familiar.
Concordamos com a análise de Gomes (2002, p. 68), quando esta reflete que os
destinatários do
BPC
vivenciam uma situação particular de vulnerabilidade,
pela contingência da idade ou da deficiência
incapacitante para o trabalho e
para a vida diária independente
. Tal situação de vulnerabilidade, por si,
ainda que em condições favoráveis de vida, coloca-os a exigir um conjunto
de necessidades especiais. Acrescida, então, de precárias condições de
existência, qual seja: no limite da indigência é forçoso reconhecer por um
lado que esta provisão é um direito por demais necessário e legítimo, e por
outro que seu valor é insuficiente e seu alcance limitado e excludente.
Nesta direção, Pereira (1998, p. 128) analisa o ônus que a Assistência Social
carrega após ser concebida como direito, pois “o critério de elegibilidade nela contido inovou
em matéria de retrocesso político. Nunca, no Brasil, uma linha de pobreza foi tão achatada, a
ponto de ficarem acima dessa linha cidadãos em situação de pobreza crítica”.
Percebemos que o reconhecimento da Assistência Social como direito não
extingue de imediato as práticas voluntaristas; ao contrário, segundo Gomes (2002, p. 63), as
45
ações representam muito mais uma “ajuda nas dificuldades e privações, atribuídas ao âmbito
privado de cada necessitado, e não campo de responsabilidade social do Estado”. Gomes
(2002) problematiza esta ambigüidade entre a caridade pública e privada, entendendo que esta
contradição não tem visibilidade pública, seja por meio do Estado, seja pela iniciativa da
filantropia privada, universo que começa a emergir. Neste sentido, partilhamos da idéia de
Canzione (1999, p. 129), que revela uma preocupação “quando ouvimos falar que o portador
de deficiência terá acesso à assistência social como qualquer cidadão que dela necessite”,
tendo em vista que as condições de inserção não são iguais, e que eles são também sujeitos
que demandam outros serviços.
Embora estes paradoxos estejam evidenciados no contexto da Assistência Social,
não podemos descartar que, com a Constituição Federal, houve uma abertura política e de
debate nacional acerca dos assuntos relacionados as pessoas com necessidades especiais,
espaço este inédito no contexto das constituições brasileiras. Para Canzione (1999, p. 130), “o
paternalismo deu lugar à equiparação de oportunidades. A tutela foi substituída pela
cidadania”, que certamente necessita ser materializada no cotidiano das pessoas.
Nesta direção, a população que historicamente foi compreendida de distintas
formas (como por exemplo, seres que não tinham direito à vida, e eram exterminados; que
eram considerados como
endemoniados
,
bruxos
e que em razão disto foram perseguidos pela
inquisição; que foram objeto de ações filantrópicas a partir da concepção de que são eternas
crianças e de que, em razão disto, são incapazes), passando pela fase que compreendia uma
etapa cientificista, e que estabelecia que, para trabalhar com esta população, era necessária
uma equipe de profissionais e especialistas, atualmente se vê diante da necessidade de
conceituar este sujeito não pela sua incapacidade, mas sim pelo seu potencial. A compreensão
deste recorte histórico é necessária, para que resignifiquemos os espaços e serviços destinados
a esta população pois, segundo Canzione (Ibid., p. 131), “são fantásticas as respostas que o ser
humano alcança quando lhe são dadas oportunidades para desenvolver suas potencialidades.
[...] A abordagem anterior era de tratamento, terapêutica, hoje é educativa”.
Percebemos que, além de compreendermos o fenômeno da deficiência no decorrer
da história, ainda há uma necessidade maior de a conceituarmos, tendo evidenciado que
estamos tratando de sujeitos que possuem não uma enfermidade, mas um impedimento ou
uma desvantagem que não impossibilita a vida, mas que requer outras oportunidades.
Precisamos ter claro que as conceituações explícitas ao longo da história são “constructos e
classificações, são sistemas lingüisticos arbitrários, que variam de acordo com o propósito
46
pretendido” (M
ENDES
, 1996, p. 21) e que isto interfere diretamente na vida das pessoas com
necessidades especiais, e no cotidiano das famílias, bem como nos serviços a eles
dispensados.
Sendo assim, estamos nos referindo a conceitos que, ao longo do tempo, têm sido
manipulados, tornando-se cada vez mais ininteligíveis e destituídos de uma correspondência
direta com o mundo real. Assim, seria ingenuidade acreditarmos que novas terminologias
geradas no âmbito da ciência iriam necessariamente substituir
completamente velhos termos pejorativos do discurso cotidiano. [...]
Também seria ilusório supor que o abandono total das definições e sistemas
de classificações científicas, iria impedir a ocorrência de sistemas sociais
informais de identificação, classificação, segregação, discriminação ou
estigmatização de tais indivíduos (loc. cit.).
A tradução desta prática, fundamentada na teoria de interesses, materializa as
relações desiguais e pulverizadas de “preconceitos culturais e sociais, que resultam ainda em
segregação, como condição de vida de grande parte desses indivíduos” (C
ARVALHO
, 1998, p.
12).
Os reflexos destas categorizações, como observamos, permearam e resultaram em
muitas injustiças e preconceitos que ainda hoje refletem, de forma ora transparente ora velada,
a questão do estigma, isto porque nossa sociedade é sistematicamente geradora e fruto de
modelos ideais que definem o
certo
, o
bonito
e o
desejável
, o que não teria importância “se,
como produtos ideológicos, não fossem interiorizados e não se tornassem um dos
fundamentos políticos de atribuições de caráter negativo e estigmatizante (M
ELLO
, 1997, p.
57).
Para além da questão do estigma, a formulação de políticas públicas destinadas às
famílias das pessoas com necessidades especiais é vital no contexto de um sistema de
proteção social da cidadania em nosso país. As demandas indiscutivelmente crescem
conforme aumenta a vulnerabilidade proveniente da deficiência, pois muitas dessas pessoas
dependem de cuidados diários especiais, ou seja, não conseguem realizar as atividades da vida
diária. Muitas destas pessoas são usuárias de medicamentos variados e contínuos, utilizam
fraldas descartáveis, e se locomovem com auxílio de cadeiras de rodas, carrinhos
Zeus
ou até
macas, entre outras necessidades especiais. Além disso, boa parte delas é impossibilitada de
trabalhar e, portanto, de acessar uma renda pela via do mercado.
As situações de deficiência podem ser inclusive fomentadas e resultantes da
ausência de políticas públicas básicas para atender a população, como no exemplo de uma
47
dieta alimentar insuficiente, relacionada diretamente ao desenvolvimento físico e mental do
indivíduo, e atrelada à maior exposição a agentes infecciosos, bem como a uma baixa
qualidade na assistência à saúde. Todos estes componentes devem ser considerados
fomentadores de desvantagens físicas incapacitadoras. Neste sentido, as políticas de saúde
pública, trabalho e renda, educação, e assistência social deveriam e devem ser direcionadas na
perspectiva da prevenção destes fatores.
A ausência de serviços de saúde dirigidos a esta população pode ser caracterizada
pelo discurso da família de
Richard
, em que a irmã do mesmo, fazendo menção à forma como
a sua genitora tentou buscar auxílio, e objetivando compreender as manifestações
comportamentais e de desenvolvimento diferenciadas apresentadas pelo irmão, revela que não
obteve êxito nas suas investidas. Diante deste quadro de incertezas, resta à família ficar
restrita a meras suposições quanto à origem da deficiência e às diversas formas de tentar obter
uma pseudo-cura, por meio de “simpatias”, e outras crenças populares. São trajetórias que
podem ser evidenciadas na narrativa familiar que as reinscreve por meio de sua fala:
Olha meu irmão: minha mãe veio de uma família bem humilde [...] então
por falta de muitos recursos de levar ele em especialistas, até porque na
cidade em que morávamos tudo era muito precário, não tinha esses serviços
[...] Eu sempre vi porque ele nasceu depois de mim, eu sempre vi que ele
tinha dificuldade no caminhar. A mãe fazia muitas simpatias, muito remédio
caseiro para ele. A mãe sempre falou que foi meningite que tinha dado nele.
A ausência de acesso aos direitos básicos, bem como a precariedade da inserção
das famílias vulneráveis nas políticas de saúde, saneamento, e garantia à alimentação, expõe e
aumenta mais os riscos sociais desta população, no seio da qual uma doença grave, mas
plenamente durável pode causar seqüelas irreversíveis, pois não houve uma intervenção
adequada. Os reflexos desta desproteção social expõem mais contundentemente os membros
destas famílias vulneráveis a possíveis quadros de deficiência física e mental.
É diante desta conjuntura que iremos problematizar de que forma a família
brasileira vem sendo inserida no contexto das políticas sociais, a fim de conhecermos as
particularidades da inserção destes grupos no campo dos direitos, devendo ressaltar de
antemão que, em diversos registros legais vigentes, a família passou a se constituir como
sujeito de direitos nas políticas públicas, em especial na assistência social e, por
conseqüência, na seguridade social. Na perspectiva de elucidar estes meandros, é que
desenvolvemos, portanto, o item a seguir.
48
1.4 A atenção às famílias nas políticas públicas
A atenção às famílias pelas políticas públicas no Brasil possui uma primeira
abordagem significativa já no início do século XX. Precisamente nos anos de 1930, como
demonstra Fonseca (2001), o tema se insere no debate sobre a nação, simultâneo ao esforço
das elites no sentido de conformar um país integrado política, econômica e culturalmente.
Nesse esforço, a questão da identidade nacional dos brasileiros ganha relevância indiscutível,
embora com uma abordagem singular. Para a autora, a articulação entre família e nação
responde, nesse primeiro momento, a dois registros bem particulares: o primeiro no contexto
do debate acadêmico sociológico, dedicado a investigar a composição das famílias
homogêneas ou heterogêneas do ponto de vista étnico, e o segundo registro que, conforme
afirma a autora, corresponde a um conjunto de propostas e de políticas sociais, lançadas com
o objetivo maior de conformar uma família que estivesse de acordo com os pressupostos
considerados ideais. Nesse sentido, Fonseca (2001, p. 22-3) explicita:
No primeiro, trata-se de conhecer as práticas matrimoniais prevalecentes
entre os imigrantes e seus descendentes e propor medidas no sentido de
evitar enclaves no território nacional. [...] No segundo registro, trata-se de
organizar um certo tipo de família por meio de medidas concretas que
deveriam incidir sobre os indivíduos: obrigatoriedade do exame pré-nupcial;
regulamentação do trabalho feminino [...]; facilidades para a aquisição de
casa própria aos indivíduos que pretendessem se casar. [...] No entanto,
também havia propostas concretas dirigidas às famílias já formadas [...] que
privilegiavam os casados com filhos.
Preocupados com a construção de uma nação forte, obrigatoriamente formada por
um padrão familiar ideal - homem, mulher e filhos saudáveis, propunham medidas como o
exame pré-nupcial e a interdição para os casos considerados inadequados, condizentes com a
idealizada noção de
união certa
, vitais para o modelo de família que se ambicionava. Para
Fonseca (Ibid., 23-4), é “por esse caminho que o aprimoramento físico e moral da raça se
realiza [...] seus membros teriam a mesma capacidade física e mental, compartilhariam os
mesmos valores e disto resultaria o fortalecimento da nação”.
Se, num primeiro campo, o debate sobre a família se dava em torno da
preocupação com a descendência e a integração nacional, focando a questão dos imigrantes
europeus e a necessidade de se impedir a formação de enclaves étnicos no território nacional,
49
o segundo enfoque centra-se na idéia da conformação de um modelo de família a ser
propagado. Assim:
não se trata de estrangeiros, mas de nativos que precisam ser corrigidos e
apoiados, no momento em que estão constituindo suas famílias, ou
amparados, quando as famílias já existem. [...] se no primeiro registro a
ênfase estava posta nas alianças - para examinar a reprodução dos grupos -,
no segundo, o foco é a reprodução, ou seja, as condições apropriadas para
gerar e educar uma prole saudável. Com este objetivo há uma série de
propostas e discussões nas áreas de higiene, habitação, saúde, trabalho etc. e,
no centro do debate, a idéia do aprimoramento da raça por intermédio da
família (F
ONSECA
, 2001, p. 52).
Contribuindo com esta ideologia estavam os eugenistas brasileiros, que
propagavam a idéia da esterilização como um remédio para o desenvolvimento da nação. A
questão da procriação não tomava uma dimensão de opção do casal ou grupo familiar, mas
suscitava um gesto de responsabilidade social, com objetivos econômicos definidos, exigindo
a reprodução de “gente normal”, dentro dos parâmetros do sistema que colocava o trabalho, a
disciplina, o autocontrole e a obediência como referências ideais. Diante disto, Godoy (1927,
p. 142) discursa que:
A procriação de homens sadios e produtivos é fundamental para o progresso
de um país. Um homem ativo, capaz e bom dá mais à sociedade do que lhe
pede. É um valor econômico. É uma força civilizadora. Um indivíduo, pede,
ao contrário, à sociedade mais do que lhe dá. Constitui um valor negativo,
um déficit econômico. É elemento receptor, passivo. Consome e não produz.
É esponja. É sanguessuga. Agarrado às artérias da raça, destrói seus
elementos nobres, debilitando-a. Inúteis, esses indivíduos nada produzem,
nada edificam mas, ao contrário, concorrem conscientemente,
criminosamente, para a miséria, a dor, a fome, a doença.
É nesta linha que a eugenia traçava seus objetivos, estimulando que as pessoas
bem dotadas
ou, mais claramente,
as pessoas robustas, inteligentes e bonitas
aumentassem a
sua prole, para que o número médio dessas pessoas se elevasse progressivamente. Quanto aos
considerados
medíocres,
caberia a eles a união matrimonial mais tardia, e a possibilidade de
reprodução era combatida pela contracepção.
No Brasil, a ameaça da degeneração populacional estava associada especialmente
à crescente e desordenada urbanização, que evidenciava a ausência de infra-estrutura básica
obrigando a população imigrante a se aglomerar em
ambientes caóticos
, o que demandava
uma resposta social no sentido de exercer um maior controle sobre esta classe. Estas respostas
materializaram-se por meio de estratégias que culminaram na educação pública compulsória,
no surgimento de orfanatos, de instituições destinadas à população reconhecida como
50
retardada
, de hospitais gerais, de refúgios para os considerados
delinqüentes
, enfim, toda e
qualquer forma de aparato que minimizasse o sentimento de ameaça gerado por esta parcela
de
desviantes
19
.
Desta maneira, tanto a classificação destes elementos anômicos ameaçadores
quanto a forma de tratamento destinada aos mesmos obedeciam aos ditames da ordem
econômico-social em questão, ao poder exercido pela classe dominante, cujas estratégias de
controle, acima de tudo, eram balizadas por valores morais, haja vista que qualquer esforço na
direção de exterminar esta
praga social
era compreendido como um “antídoto para a vida
perniciosa nas grandes cidades” (M
ENDES
, 1995, p. 77).
Estes preceitos eram fundamentados em estudos de eugenistas que lideraram este
movimento no Brasil, como o Dr. Renato Kehl (1917), Basílio de Magalhães (1913), e
Oswaldo Cruz (1907), dentre outros. As argumentações destes profissionais eram
materializadas em Congressos, relatórios e outros meios, cujo teor era balizado na
disciplinarização e normatização desta população. Este controle social era evidenciado, por
exemplo, em documentos como o de Oswaldo Cruz (1907), considerando que “a higiene
social objetivou impedir as obras resultantes da indisciplina de certos moradores, teimosos em
manterem o desasseio em suas casas, rebeldes por índole e educação aos conselhos de
higiene” (apud J
ANNUZZI
, 1985, p. 33).
Com base na
família ideal
, portanto, edificam-se as balizas dessa especial
estratégia de regulação no campo das políticas sociais. Sendo assim, para Calderón e
Guimarães (1994) a
família ideal
é constituída através de padrões culturais da nossa
sociedade, envolvendo valores e normas que se manifestam de distintas formas, seja por meio
do agir, e do pensar, seja pela transmissão destes de geração a geração. Como uma
referência/modelo cultural a ser seguido, tem nas próprias pessoas os vigilantes designados
para punir a violação das normas e rituais. Esta atribuição, que inicialmente é delegada à
19
No texto de Fonseca (1999) é trabalhada a noção de doença mental, embora no período de ascensão do
capitalismo, ainda fosse explícita esta confusão acerca do patológico e da deficiência. O autor pondera que esta
nova prática de exclusão se baseava nos preceitos da ordem econômica vigente, associados aos ditames
moralistas, cujo
apartheid
eugênico, estético e de ordem social justificava por si só qualquer tipo de
confinamento, não objetivando um atendimento terapêutico, mas sim com “um fundo essencialmente econômico.
No início da organização social e política das sociedades capitalistas torna-se intolerável a existência, livre na
sociedade, destes extratos de população ociosa. Daí sua rejeição com a decorrente exclusão representada pelo
internamento. Inserido nesta massa de população indefinida em relação à organização do trabalho, o louco perde
sua liberdade, e a loucura, antes experimentada em estado livre, é trancada. De marginalizado, o louco passa a
ser excluído materialmente da sociedade em função das normas de uma economia capitalista que se desenvolvia.
Neste sentido, o que é excluído [...] não é o louco enquanto louco, mas o louco enquanto pertencente à massa de
indivíduos irredutíveis à norma do trabalho” (F
ONSECA
, M., 1999, p. 122).
51
família, estende sua esfera de atuação, tornando-se comunitária, constituindo-se em diversos
mecanismos disciplinares que vigiam e punem, são os guardiões, decerto.
Nesta direção, as medidas inaugurais de “proteção às famílias”, portanto,
concretizaram intenções nas áreas de habitação, saúde, e educação, com forte ênfase no
controle das famílias operárias, especialmente na recusa em proteger o trabalho feminino.
Visam, ademais, estimular a dedicação integral aos filhos e ao lar pelas mulheres, de forma a
preservar sua saúde e capacidade de reprodução. Por essa razão, foram impostos inúmeros
obstáculos ao ingresso da mulher no mercado de trabalho, na perspectiva do preconceito e da
ausência de especial legislação social que apoiasse essa participação. Nos termos do projeto
de Estatuto da Família (artigos 13 e 14), ressaltados por Fonseca (2001, p. 68):
Às mulheres será dada uma educação que as torne afeiçoadas ao casamento,
desejosas da maternidade, competentes para criação de filhos e capazes da
administração do lar; o Estado adotará medidas que possibilitem a
progressiva restrição da admissão de mulheres em empregos públicos e
privados. Não poderão as mulheres ser admitidas senão em empregos
próprios da natureza feminina e dentro dos estritos limites da conveniência
familiar.
Como se pode constatar, são variadas as dimensões das relações entre a família e
as políticas públicas. Essa combinação encontra sua lógica no fato de que o Estado moderno e
a família, historicamente, vêm desempenhando papéis semelhantes. Ambas objetivam dar
subsídios à reprodução e à proteção social dos segmentos que estão sob sua tutela. Se,
anteriormente, nas comunidades tradicionais, o grupo familiar se ocupava quase unicamente
dessas atribuições, nas comunidades contemporâneas o que se observa é a intervenção do
Estado que, por meio das políticas públicas, compartilha com as famílias este
cuidado
. Como
demonstra Carvalho (2002, p. 268), em seus respectivos âmbitos de atuação, eles
regulam, normatizam, impõem direitos de propriedade, poder e deveres de
proteção e assistência. Tanto família quanto Estado funcionam de modo
similar, como filtros redistributivos de bem-estar, trabalho e recursos. [...]
Nesse contexto, pode-se dizer que família e políticas públicas têm funções
correlatas e imprescindíveis ao desenvolvimento e à proteção social dos
indivíduos.
Com diferentes formatos e dinâmicas, historicamente, as famílias vêm
assegurando o desempenho desses papéis socialmente atribuídos, com maior ou menor apoio
e vitalidade. Como salienta Sawaia (2003, p. 41), a família “continua sendo, para o bem ou
para o mal, a mediação entre o indivíduo e a sociedade”. Mas não só, afirma “assiste-se hoje
ao enaltecimento dessa instituição, que é festejada e está em evidência nas políticas públicas,
52
e é desejada pelos jovens” (loc. cit.). Entretanto, relembra a autora, a “família é um conceito
que aparece e desaparece das teorias sociais e humanas, ora enaltecida, ora demonizada”
(S
AWAIA
, 2003, p. 40).
Nesta lógica o berço que deflagrou uma nova concepção de família foi
evidenciado na revolução industrial, no século
XIX
, quando houve a cisão entre o mundo do
trabalho e o mundo familiar, emergindo assim a dimensão privada da família, em
contraposição ao mundo público. As grandes revoluções ocorridas estão associadas
diretamente ao desenvolvimento tecnológico, que atribuiu diferentes papéis à família,
especialmente à mulher. Estas novas atribuições foram observadas pela sua inserção no
mercado de trabalho, como também pela possibilidade de dissociar a maternidade da
sexualidade feminina, anteriormente tidas como elementos complementares e pertencentes ao
destino da mulher, fator este controlável pela adoção do uso de pílulas anticoncepcionais, a
partir na década de 1960.
A partir dos anos 1980, vê-se um outro movimento que afeta diretamente a
identificação da família com o
mundo natural
; trata-se do aparecimento das tecnologias
reprodutivas e de diversas técnicas de inseminação artificial, ou fertilização, o que resulta na
possibilidade de conceber um filho sem a necessidade de se ter uma relação sexual.
Indiferente dos recursos existentes, seja para evitar uma gravidez, seja para
induzi-la por meios considerados
não naturais
, um elemento deve ser referendado, no que
concerne à introdução da possibilidade de
escolha
. Para Fonseca (apud S
ARTI
, 2003, p. 23),
existe nesta lógica uma dimensão clara “no imaginário atual relativo à família, pelo menos no
amplo espectro do mundo ocidental, [que] opera uma tensão entre escolha e destino”.
Somando-se a este entendimento, o modelo de proteção social assentado no
padrão keynesiano, e fordista, cujo sustentáculo material e simbólico era a existência do pleno
emprego, sempre associado ao crescimento econômico constante, previa a participação das
famílias que, ainda que idealizadas numa composição nuclear e estável, atuavam
decisivamente como responsáveis pela socialização primária e proteção dos seus membros.
Nesta direção, processou-se a ampliação das atribuições das famílias, posto que o sistema
neoliberal caracterizado pelo Estado Mínimo transfere à esfera privada da família a
responsabilidade exclusiva pelo bem-estar dos seus membros. Vale lembrar que a composição
das políticas públicas capitalistas pressupõe, em maior ou menor medida, a depender do
processo histórico-político das conquistas da cidadania, que a provisão de bem-estar deve ser
assegurada, prioritariamente, pelas esferas denominadas como
naturais
, ou seja, a família e o
53
mercado. Sob a lógica de isentar-se dos deveres de prover o cuidado aos seus cidadãos é que o
Estado transfere essa responsabilidade à família, “conclamando-a a ser parceira da escola e
das políticas públicas, e a sociedade, atônita, na ausência de ‘lugares com calor’ elege-a como
o lugar da proteção social e psicológica” (S
AWAIA
, 2003, p. 42).
Esta particularidade da sociedade atual, que se vê absorta perante as instituições,
visto que não são vislumbrados modelos de identificação e confiabilidade, resulta na
tendência crescente de isolamento dos indivíduos que, fechados em si mesmos, encastelam-se
em seu narcisismo e num individualismo exacerbado. Evidencia-se, assim, o paradoxo ora do
fortalecimento da lógica individualista, ora do apelo para a preservação dos laços de
solidariedade familiar (M
IOTO
, 2000).
O que de um lado fortalece a família, certamente de outro a fragiliza, trazendo à
tona esta dicotomia entre forte e fraco. A família possui características fortes, que a associam
ao
locus
da
integração social
, do
porto seguro
contra o
desamparo
e a
exclusão
, da
reprodução dos valores culturais centrais, mas também revela seus aspectos de fragilidade por
ser vulnerável às diversas formas de violência, confinamento, desencontro e fragmentação.
Prova disto é o modelo observado por Losacco (2003), em que a ausência dos adultos na
dinâmica familiar, motivada pela busca de formas de subsistência, impossibilitam ou tornam
raros os momentos de troca nas relações pessoais, especialmente no contexto da família. A
necessidade de subsistência, bem como as novas demandas impostas à família, obrigam
muitas vezes os seus membros a buscarem outros laços na comunidade, tendo em vista que,
em algumas situações, tais alternativas podem ser opções de risco, associada por exemplo à
violência social. Nesta direção, a família não deve ser considerada isoladamente como o lugar
da proteção, da felicidade.
O florescimento da idéia de que a família é o lugar da felicidade está
vinculado justamente ao ocultamento de seu caráter histórico. Este
ocultamento permitiu pensá-la como um grupo natural, e com isso veio
também a naturalização de suas relações e o enaltecimento de sentimentos
familiares, tais como amor materno, amor paterno, amor filial. Esta ideologia
foi fortalecida, por um lado, pela ligação direta que se faz entre os fatos
naturais (sexo, nascimento, morte) e a família e, por outro, pela importância
que a experiência afetiva familiar passou a ter na vida das pessoas, no
contexto de uma sociedade industrial cada vez mais desumanizada (M
IOTO
,
1997, p. 117).
Levando-se em consideração as diferentes formas de organização familiar e os
diversos processos que a família vem experenciando, torna-se elucidativo o conceito
54
explicitado por Mioto (2000, p. 217), visto que engloba as diferentes situações do cotidiano
das pessoas. Nesse sentido, ao falarmos de família, estamos tratando de:
um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar, durante um
lapso de tempo, mais ou menos longo e se acham unidas (ou não) por laços
consangüíneos. É marcada por relações de gênero e/ou de gerações, e está
dialeticamente articulada com a estrutura social na qual está inserida.
Adotar esta conceituação de família implica em considerar as transformações na
sociedade contemporânea fomentadas pela nova ordem econômica e pela desorganização/
flexibilização das relações de trabalho, ao lado do enaltecimento da lógica individualista. Tais
projetos resultaram diretamente num processo de fragilização dos vínculos familiares que,
submetendo às famílias a situações de extrema vulnerabilidade, impulsionam a exigência de
atendimento das suas necessidades sociais básicas. Nesta perspectiva, “quando uma família
recorre à ajuda institucional para a solução de seus problemas, ela já não dispõe de recursos
para lidar com as suas dificuldades” (M
IOTO
, 1997, p. 124).
Nessa perspectiva, não é casual que, neste contexto mundial, estejam evidenciados
dois tipos de políticas sociais: o primeiro, mais generoso para o público ao qual é dirigido,
está umbilicalmente ligado ao mercado de trabalho e voltado para os trabalhadores mais
qualificados; o segundo, com uma faceta residual, seletiva e estigmatizante, é direcionado
para os segmentos mais marginalizados da sociedade. Estes processos repercutem diretamente
na organização e na estrutura familiar, que é sempre vista "pelo retrovisor", e não como foco
de atenção (T
AKASHIMA
, 2002). Ademais, afirma Pereira (1995, p. 106):
A conseqüência mais imediata da revolução tecnológica sobre a família foi
que sua importância na reprodução da força de trabalho deixou de ser vital.
[...] Além disso, a associação dos avanços científicos e tecnológicos
colocados à disposição da família (inclusive para planejá-la) com o maior
tempo livre imposto ao trabalhador pelo imperativo da automação, fez com
que aumentassem as necessidades espirituais dos membros da família,
especialmente daqueles sufocados com encargos domésticos, como foi o
caso das mulheres.
Deste modo, não podemos conceber a família atual tal como ela era há cinqüenta
anos e encarregá-la de todas as atribuições domésticas que ela já não pode realizar. Tais
atribuições são concernentes aos cuidados com crianças, idosos, enfermos e pessoas com
necessidades especiais. Devolver estas tarefas, em nome da descentralização das funções do
Estado e da parceria, é retroceder no processo histórico das conquistas e garantias sociais e
destituir a população mais vulnerável, a qualquer custo, daquilo que foi conquistado. Além
55
disto, dentro da lógica do pluralismo liberal
20
, é viável ou lícito se pensar na possibilidade de
dizer à mulher que retorne às tarefas domésticas? Ou seja, dada uma repartição dos custos
com a proteção bancada pela coletividade, quem poderia assumir estes cuidados com os
membros familiares dentro da esfera familiar?
Nesta perspectiva, a revalorização do papel da família acaba por reeditar a clássica
referência à família como a
célula social
designada para a socialização primária dos
indivíduos, considerada provedora
natural
de bem-estar material, afetivo e emocional aos
seus associados. Ao ser chamada pelo Estado, em diferentes processos históricos, a família
não pode deixar de inquirir e analisar o conteúdo ideológico dessa convocação, de maneira
que, ao atender às diversas finalidades que lhes são designadas e reprocessadas, não se
dissocie dos seus objetivos políticos (F
ARIA
, 2000).
É a revalorização dos setores informal, voluntário e comercial, sob a prerrogativa
da redução da ingerência do Estado, que vincula a destinação do dinheiro, do poder e da
solidariedade, como partes integrantes e indissolúveis do esforço individual em prol de uma
causa comum. Essa lógica pode ser melhor elucidada recorrendo-se às contribuições de
Carvalho (2002) a respeito da expansão da idéia de Sociedade-Providência, em oposição à
construção e/ou fortalecimento do Estado-Providência ou de Bem-Estar Social. O Estado
brasileiro, sabemos, estruturou-se muito mais como residual e coadjuvante, atribuindo à
sociedade o protagonismo nas atenções e serviços destinados às camadas populares, do que
propriamente como provedor da proteção social universal.
Nesta direção, Carvalho (2002) reflete que a lógica da Sociedade-Providência é a
da solidariedade, distintamente da lógica do Estado, que diz respeito ao direito proclamado e
requerido. Fazendo menção à pesquisa realizada em conjunto com Sposati, a autora faz um
recorte dessa complexa rede de solidariedade promovida pela Sociedade-Providência,
dividindo-a em quatro possibilidades.
20
Pereira (1995) aponta que, em razão da impoderabilidade dos resultados da ação, se faz necessária a distinção
entre duas principais concepções de pluralismo no campo das políticas de bem-estar: “o pluralismo liberal, que
concebe a descentralização como sinônimo de privatização e de transferência de responsabilidades do Estado
para a sociedade, sugerindo a restrição ou destituição de direitos conquistados e instituídos, em nome da
autonomia ou liberdade de escolha dos indivíduos. Trata-se, pois, da aplicação do modelo residual de políticas
públicas que se assenta nos princípios da seletividade e da menor elegibilidade, resgatando práticas de
assistência que não mais se coadunam com a estrutura das organizações sociais contemporâneas. [...] o
pluralismo coletivista, que valoriza a participação da sociedade mas não descarta a presença do Estado no
processo de provisão social e não sobrecarrega a família com tarefas que já não lhe cabem. Trata-se da aplicação
do modelo institucional de políticas públicas que se assenta no princípio da universalidade, visando a
manutenção e a extensão de direitos, bem como a congruência destes com demandas e necessidades particulares”
(P
EREIRA
, 1995, p. 110-1).
56
A primeira delas é a
solidariedade parental
e
contemporânea
, em que a
subsistência dos despossuídos nessa sociedade depende de uma rede próxima, formada por
parentes, vizinhos, compadres, para servirem de suporte nas situações de dificuldade. Nesta
ótica, é construída uma solidariedade do favor, pressupondo a troca, tendo em vista que tais
favores devem ser retribuídos nos momentos oportunos; sendo assim, há uma vinculação com
o compromisso moral.
A segunda, caracterizada como
solidariedade apadrinhada
, é definida pelo
contato que um ou mais membros da família possuem com alguém da classe média e alta por
meio do vínculo empregatício, que pode se referir a uma atividade doméstica ou aos serviços
prestados por porteiros de prédios, e jardineiros, entre outras funções. Nesta relação existe
uma possibilidade de estabelecer algum tipo de laço mais próximo com esta outra classe, à
qual não pertencem. Tal vínculo assegura um canal de doação, que pode envolver a
transferência de roupas, eletrodomésticos e demais objetos fundamentais na composição do
consumo dos grupos em situação de subalternidade.
A terceira possibilidade dessa rede de solidariedade é designada como
missionária
. É através dela que a igreja se faz presente no cotidiano destas famílias e
comunidades, pois trata-se da instituição que tem maior credibilidade junto a esta população.
“É através dela que flui a Sociedade-Providência organizada, que cria serviços assistenciais e
igualmente serviços de defesa para a imensa demanda de justiça que essa população expressa”
(Ibid., p. 74). Além disso, e de forma contraditória, essa forma de solidariedade amortece,
muitas vezes, a revolta e indignação com a injustiça.
Por fim, está posta a
solidariedade de luta
, que é estabelecida na malha de
relações intracomunidade e entre os agentes governamentais e não-governamentais atuantes
nela. Em geral, dela participam aqueles agentes externos com maior confiabilidade e
compromisso com os grupos comunitários e que estabelecem com os mesmos espaços de
reflexão e resignificação do cotidiano. É na solidariedade de luta que fica propenso o
nascimento dos movimentos sociais reivindicatórios e dos projetos coletivos de ações de
satisfação das necessidades comuns identificadas na comunidade.
É, portanto, forte a tradução das políticas sociais a partir de diretrizes balizadas
nas micro-solidariedades e sociabilidades familiares, como espaço privilegiado de produção
de bem-estar, proteção e inclusão social. E, neste espectro, a família tem ocupado um lugar de
destaque crescente nas políticas sociais, que objetivam a parceria nas ações sociais. Prova
disto são as alternativas de desinstitucionalização de alguns segmentos como crianças,
57
doentes mentais crônicos, e idosos, entre outros, transferindo para a família e para a
comunidade estes cuidados, sem os correspondentes apoios necessários ao cumprimento
dessas novas e difíceis tarefas.
Diante desta lógica, compreendemos que a intervenção destinada às famílias não
deve significar a renúncia do Estado, ou a sua modulação neoliberal como ator subsidiário
quanto às responsabilidades sociais, agravando a desproteção social das famílias mais pobres.
Nem tampouco deve representar um padrão tutelar de controle, que objetiva o amoldamento
das relações afetivas dentro de um ideal moral, violando direitos individuais e culturais
(P
AIVA
, 2003).
Dadas as mútuas dependências entre as estruturas políticas e sociais que articulam
as competências de bem-estar e justiça social entre as esferas do Estado, do mercado e das
famílias, houve, equivocadamente, uma valorização do papel do mercado, cujo espaço é
demarcado pela obtenção do lucro ou, em outras palavras, pela comercialização dos
direitos,
atualmente fragilizados
. A fragilização dos direitos, associada à revalorização da família,
levou, pois, a um afastamento do Estado na destinação de recursos de bem-estar aos cidadãos.
Por essa razão, os cuidados e recursos necessários à satisfação e ao bem-estar suportados e
atribuídos às famílias, insistimos, não devem eximir de responsabilidades o Estado, tendo em
vista que:
tal parceria só será promissora se a família não substituir o Estado nas
responsabilidades que lhe cabem, nem o Estado e a sociedade continuarem
fazendo de conta que a família não mudou. Neste caso, para que a
solidariedade informal dentro da família seja preservada, o Estado tem que
fazer a sua parte, suprindo tradicionais deficiências das políticas públicas
(P
EREIRA
, 1995, p. 112).
Conforme aponta Pereira (1995), qualquer política que objetive preservar e
intensificar os vínculos familiares deve considerar inicialmente o novo padrão familiar
existente e suas contradições. Outro ponto a ser referendado é que as condições pertinentes ao
vínculo familiar não devem constituir instrumento de opressão, nem tampouco camisa de
força. Ou seja, é fundamental que tanto a família como a comunidade local desempenhem um
papel relevante no futuro, desde que se democratizem e sejam sujeitos de políticas adequadas
às várias situações familiares particulares existentes.
Nesta direção, compreender as famílias como unidades de atenção, em oposição à
histórica prática fragmentada no âmbito das instituições, torna-se premente. Traduzir a
necessidade de inversão da lógica tradicional, que associava a atenção ao indivíduo
58
desvinculando-o do seu grupo familiar, ignorando as possibilidades de potencialização das
ações junto às famílias, configura-se como fundamental. Nesta perspectiva, considerar a
família como público-alvo das políticas, contando com a possibilidade de parceria, exibe
certamente resultados diferenciados, que vão para além de estratégias emergenciais, e se
baseiam, sobretudo, no reconhecimento da diversidade destes grupos.
Segmentos especiais como o das famílias que possuem na sua constituição
pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento, definiram para si
mesmos trajetos percorridos em solidão, e difundiram-se em múltiplas direções que
complexificaram este processo, em função dos obstáculos externos, materializados na
ausência e precariedade dos atendimentos, e das dificuldades econômicas, ou até mesmo das
habituais limitações familiares, bem como da incógnita decorrente da necessidade inédita de
se lidar com uma pessoa com necessidades especiais.
Para nos apropriarmos de aspectos significativos do cotidiano de luta dessa
população e de suas famílias, construiremos o segundo capítulo, em que conheceremos o
perfil e as peculiaridades das famílias pesquisadas, a apropriação da deficiência pela família e
a forma como foi noticiado o fenômeno. Dentro disto, objetivamos problematizar, neste
segundo capítulo, as particularidades das famílias que possuem em sua constituição pessoas
com necessidades especiais em processo de envelhecimento, trazendo, no transcorrer destas
interlocuções, os discursos provenientes deste segmento social, para quem sabe, desmistificar
concepções que ficaram estagnadas ao longo da história. Temos o propósito de olhar esta
população não com
comiseração
e
lástima
, mas como sujeitos de direitos que necessitam de
instrumentos que oportunizem condições de vida e de realização de suas potencialidades.
59
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Quando se trata de falar sobre a realidade das pessoas com necessidades especiais,
quer se trate de uma deficiência mental, física ou sensorial, muitas indagações aparecem; não
é o que acontece, porém, com as respostas. Quem são as pessoas com necessidades especiais?
Onde estão? A que famílias pertencem? Quais são as suas necessidades? Que dificuldades
enfrentam no cotidiano? Eles compreendem o que falamos? Como entender a fala dos que não
verbalizam palavras? Que sentimentos as famílias têm em relação a este membro e à
sociedade? Dor? Alegrias? Tristezas? Medos? Compaixão? Que embates enfrentam no
processo de aceitação/negação da deficiência? Quais os mitos vivenciados pela família, em
torno da deficiência? O diagnóstico representa uma limitação ou a expressão de uma
potencialidade a ser desenvolvida?
Estas são algumas dúvidas colocadas no nível do senso comum e que permeiam o
imaginário de pessoas cujo conhecimento a respeito desta população é distante, restrito e,
muitas vezes, adquirido apenas a partir das janelas dos carros ou das casas. Em geral, as
pessoas não têm a oportunidade de experenciar situações que envolvam estas famílias a ponto
de conhecê-las realmente, pois são “sujeitos que pouco conhecemos e que devemos
‘descobrir’, se é que essa é a palavra adequada, diante de um segmento social concreto ao
qual não pertencemos” (Y
AZBEK
, 1995, p. 84).
Diante disto, o enfoque deste estudo busca trazer à tona situações que
materializem estas famílias, que apresentam uma especificidade adicional: a de possuírem
entre seus membros uma pessoa com necessidades especiais e, além disso, em processo de
envelhecimento. Direcionaremos o enfoque para a apreensão desse específico cotidiano
familiar perpassado por adversidades inauditas, como veremos.
Nesse sentido, os argumentos problematizados neste trabalho não pretendem
corroborar “a existência de um maquiavelismo consciente que prefere se apresentar como
compassivo para exercer assim, mais livremente, o domínio e o poder” (C
APONI
, 2000, p. 18),
nem intentam, por outro lado, despertar sentimentos que vulnerabilizem ainda mais esta
população, seja pela mobilização da comiseração, seja pela conversão virtuosa dos que antes,
por ignorância, os estigmatizavam. Fazemos esta advertência com o intuito de não focarmos o
olhar nesta população como mero objeto de nossa “caridade”, numa atitude que apenas nos
60
liberta “de um sentimento de dor que é absolutamente nosso, a dor que inspira o espetáculo da
miséria, [posto que] e o que fazemos, então, é libertar-nos desse padecimento” (Ibid, p.19).
Os sentimentos que ora nos aproximam, ora nos distanciam desta população
alertam para a importância de que não façamos a leitura dessa complexa realidade concreta
balizados por facetas de nossa própria conveniência, uma vez que tal tema é perpassado por
estigmas e distorções.
Diante disto, a indagação explícita no título deste capítulo não foi feita
aleatoriamente; ao contrário, reporta-se à materialização do verbo
conhecer
, especialmente
referindo-se às famílias das pessoas com necessidades especiais, e se fundamenta na
necessidade de desvelar este mundo que, na maioria das vezes, não nos pertence mas que, ao
mesmo tempo, suscita reações as mais variadas e adversas, dependendo da forma como
compreendemos e recebemos esta população.
Em discussões anteriores, já chamamos a atenção, para a necessidade de
estabelecermos um paralelo entre a conceituação e construção histórica da deficiência e os
sujeitos que a apresentam, bem como suas famílias, a fim de que possamos elucidar parte de
nossas indagações. Sabemos, contudo, que esta aproximação não responde completamente a
todas as inquietações, pois a questão da deficiência possui outros aspectos a serem
compreendidos.
O entendimento sobre a temática das famílias também é um desafio a ser
perseguido e que, por si só, vem enredada de diferentes significações e conceituações que
foram sendo arquitetadas historicamente, dentro de um contexto econômico, político, social e
cultural. Para Sawaia (2003), o conceito de família já percorreu inúmeras significações,
especialmente nas teorias sociais e humanas, sendo ora enaltecido, ora demonizado.
Incansáveis foram os autores
21
que se debruçaram e que ainda não poupam
esforços para compreender esta instituição, cujo detalhamento faz-se premente, visto que não
estamos tratando apenas da questão da deficiência, mas sim da forma como estas famílias vêm
experenciando este fenômeno.
Precisamos, neste sentido, compreender que, embora tenhamos nossas
experiências pessoais, não devemos ficar restritos a estas concepções, para não tomá-las como
parâmetros ou modelos idealizados, fiéis apenas aos valores que alicerçaram nossa formação.
21
Entre estes autores chamamos a atenção para alguns que trabalham diferentes enfoques, quanto à temática
família, dentre eles: Mioto (1998; 2000); Sarti (2003); Pereira-Pereira (1995); Lopes (1994); Calderón e
Guimarães (1994); Fukui (1998); Carvalho (1998); Costa (2002); Neder (2002); Vicente (2002); Takashima
(2002); Draibe (2002).
61
Atentar para a existência de outros grupos familiares, distintos daquele em que fomos
gerados, não é apenas uma opção, mas precondição para exercitarmos uma outra postura e
possibilitarmos uma ruptura com a padronização de um modelo ideal. “Romper com a nossa
experiência pessoal significa apenas entender que outras possibilidades de organização
familiar são possíveis” (R
IBEIRO
, 1999, p. 17).
Nesta perspectiva, segundo a autora, as famílias - considerando-as na sua
dimensão
plural
- apresentam práticas diferenciadas e, por conseguinte, ora fortalecem, ora
fragilizam seus vínculos, seja por meio de suas relações de consangüinidade, seja pelas
relações de afinidade ou afetividade
22
estabelecidas.
As mudanças
23
no contexto interno das famílias nada mais são que respostas
diversificadas ao mundo externo, que as obriga a superar crises, representar novos papéis e,
acima de tudo, permanecer sob a égide da proteção de seus membros. Em síntese, as famílias
vão estruturar as suas relações, seu cotidiano, seus credos e valores, na tentativa de encarar as
vicissitudes que a vida lhes apresenta.
O entendimento deste mundo externo vai além dos muros das casas, ultrapassa
fronteiras e incide diretamente na esfera macroeconômica e social vigente, tendo em vista que
a condenação muitas vezes destinada às famílias quanto à sua
incompetência
no momento de
superação de crises vela e/ou escamoteia esta realidade, restringindo ao
privado
e ao
afetivo
,
uma questão que é maior.
22
A doutora em Psicologia Social Bader B. Sawaia, em sua fala apresentada no Seminário sobre Famílias:
Laços, Redes e Políticas Públicas, intitulada “Família e afetividade: a configuração de uma práxis ético-política,
perigos e oportunidades”, traz para análise a dicotomia e as diferentes representações que, em tese, o sentimento
de afetividade motiva. Inicialmente, aponta para a necessidade de considerarmos os laços de afetividade, visto
que estes são reflexo de um fenômeno privado cuja gênese e conseqüência são sociais, associando assim o social
e o psicológico, a mente e o corpo, a razão e a emoção. A autora considera ainda a forma como estes referenciais
estão sendo utilizados pelo modelo neoliberal, (re)significando estes conceitos e valores, transportando-os para a
esfera do mercado, em que se pode considerar que os “corpos e sentimentos são as novas mercadorias de
manipulação comercial e publicitária: vendem-se o ‘
fast love’
, o ‘bom humor
full time’
, além de todas as
variações do prefixo ‘auto’, especialmente a auto-estima, a auto-responsabilidade” (S
AWAIA
, 2003, p. 40). Por
fim, a autora alerta que as “redes de sociabilidade e de solidariedade que a família é capaz de promover ganham
nova importância política no contexto do Estado mínimo” (loc. cit.).
23
Não podemos subestimar a força e as mobilizações necessárias que estas mudanças fazem incidir sobre a
família, mudanças estas nem sempre facilmente reconhecidas. “O aumento da expectativa de vida [...] tende a
redefinir novos equilíbrios nas relações intergeracionais. [...] A mudança central da inserção da mulher no
mercado de trabalho, e do controle da natalidade gestam novos papéis masculinos e femininos, novos laços
conjugais e novos arranjos familiares [...] as mudanças penetram as relações familiares e implicam em ganhos e
custos emocionais e sociais” (V
ITALE
apud L
OSACCO
, 2003, p. 65). Nesta direção, Mioto (2000, p. 219) retrata
que o “terreno sobre o qual a família se movimenta não é o da estabilidade, mas o do conflito, o da contradição.
As relações são profundamente marcadas pelas contradições entre as expectativas que a sociedade tem e as
possibilidades objetivas de realização. Esta situação é condicionada tanto pela organização econômica e social da
distribuição dos recursos, como pela coexistência de modelos culturais (valores, normas, papéis) reciprocamente
contraditórios”. É nesta ambigüidade, na legitimação da cultura do
querer-e-não-poder
, que é estruturada a
identidade social, alicerçando valores, “procurando retraduzir em seus próprios termos o sentido de um mundo
que lhes promete o que não lhes dá” (S
ARTI
, 2003a, p.34).
62
Para compreendermos esta dimensão familiar, apresentaremos neste capítulo as
famílias pesquisadas, levantando alguns aspectos importantes, como a composição familiar,
de que forma a família está organizada para cuidar deste sujeito, que redes estão disponíveis,
enfim, situações experenciadas no cotidiano destas famílias. Posteriormente, abordaremos de
que forma as famílias se apropriaram da notícia da deficiência, trazendo elementos do
discurso destes familiares que materializaram este processo.
Por fim, traremos à tona a questão da comunicação da deficiência, a forma pela
qual a família foi notificada, posto que no discurso extraído deste segmento pesquisado
apareceram algumas situações que devem ser consideradas.
É na perspectiva de desvelar e conhecer estas famílias que este capítulo foi
concebido.
2.1 Muito prazer, eis um pouquinho da minha história...
Após estas considerações, apresentaremos nove grupos familiares cujo laço
comum, que os aproxima e os assemelha, é a existência de um membro que possui uma
deficiência e que está em processo de envelhecimento, embora existam tênues diferenças na
idade, renda familiar, diagnósticos, e rede de cuidadores, entre outros dados. Diante disto, a
opção adotada por este trabalho foi dar-lhes voz, para que possamos ouvir e conhecer a
história destas famílias. “Escutar suas narrativas, dar-lhes espaço, é uma tentativa de deixá-las
expressar seus pontos de vista, suas necessidades, suas formas de ver o mundo” (A
COSTA
, et
al. 2003, p. 144), o que não significa dizer que ficaremos restritos à contemplação como que
de um cenário imóvel, que pode nos sugerir e mobilizar distintos sentimentos de
espetacularização deste fenômeno.
Ao contrário, pretendemos, com a apresentação das famílias por meio de
fragmentos de suas narrativas, trazer questões relevantes, que reflitam suas histórias, a fim de
problematizá-las como segmento social que demanda outros serviços em razão de suas
distintas necessidades.
63
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Perfil
Tem 43 anos, sendo irmão gêmeo de uma mulher, além de ter também uma irmã
mais velha. Nenhuma das 2 possui algum tipo de deficiência. O genitor tem 78 anos e a mãe
77 anos de idade. A família é natural do Rio de Janeiro e, em função do trabalho do genitor,
percorreu vários estados do Brasil. A mãe cursou até o segundo ano do Ensino Médio e o pai
concluiu este período escolar.
!"
Renda familiar
O genitor é aposentado e recebe uma renda de aproximadamente 4 ½ salários
mínimos, já que
Pedro Henrique
não responde aos critérios de inclusão para o recebimento do
Benefício de Prestação Continuada.
!"
Com quem reside
Atualmente reside com seus pais.
!"
Diagnóstico
O diagnóstico de
Pedro Henrique
é deficiência mental. Segundo relatos da
genitora, no período da gestação a médica, desconfiada de uma gravidez gemelar, solicitou
que fosse realizada uma
radiografia
no final da gestação, em que foi confirmada a informação
de serem gêmeos.
Em virtude de ser uma gravidez de risco, a médica imediatamente autorizou a
internação. Embora a mãe se queixasse de dores, o parto aconteceu, segundo relatos da
genitora, de forma tardia. Diante destas complicações,
“o médico fez o parto e ele ao invés de
botar na incubadora não puseram, faltou oxigênio. O negócio foi esse”.
!"
A forma como perceberam a deficiência
Os pais começaram a perceber que
Pedro Henrique
tinha um desenvolvimento
diferenciado do da irmã, tendo dificuldades na amamentação, e nos reflexos, o que foi
confirmado após 1 ano de idade, com a primeira crise convulsiva,
“até porque hoje tem o
teste do pezinho, mas naquela época não tinha”.
Desde então, a família procurou vários tipos de atendimento a fim de suprir as
necessidades do filho, no tocante à sua saúde e ao desenvolvimento físico e mental.
!"
Medicamentos
64
Quando criança,
Pedro Henrique
precisou tomar uma série de medicações para
suprir suas carências, seja em termos do desenvolvimento físico, seja para minimizar os
efeitos perversos das crises convulsivas:
“antes era um monte de remédios, agora um faz o
efeito de um monte dos que ele tomava, mas isso faz mal para outras coisas também [...]
pro estômago, porque os remédios atacam mesmo. [...] De 3 em 3 meses eu tenho que levar
no dentista para fazer limpeza”.
!"
Políticas de atendimento
Atualmente
Pedro Henrique
é atendido pela F
CEE
, freqüentando o Grupo de
Convivência.
F
F
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A
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Perfil
Tem 42 anos de idade. A família de
Fernando
é procedente da Grande
Florianópolis. A irmã de
Fernando
tem 63 anos de idade e é deficiente auditiva, tendo
concluído o Ensino Médio, num curso técnico de contabilidade.
!"
Renda Familiar
Embora tivesse feito um curso técnico, a irmã trabalhou como costureira e
atualmente está aposentada, recebendo cerca de 2 salários mínimos.
Fernando
, por sua vez,
recebe a pensão do seu pai, de aproximadamente 3 salários mínimos.
!"
Com quem reside
A mãe de
Fernando
faleceu quando ele tinha 27 anos e o seu pai veio a falecer no
ano seguinte. Desde então,
Fernando
reside com a sua irmã. Segundo ela,
Fernando
é o
caçula entre 6, ou seja, eles têm mais 4 irmãos, sendo 2 mulheres e 2 homens, porém
“quando
os meus pais faleceram eu fiquei com ele [...] porque eu já cuidava dele, então resolvi ficar”.
Residem numa casa, nos fundos da casa do filho da irmã de
Fernando
, visto que,
segundo sua irmã, ele é muito metódico e
“gosta de ficar tranqüilo [...] não gosta de
agitação, só se é uma festa. Se é aniversário, se chega visita, aí ele adora, ele é muito
social”.
!"
Diagnóstico
Fernando
apresenta a Síndrome de Down.
!"
A forma como perceberam a deficiência
65
Segundo a irmã, quando
Fernando
nasceu ele teve desidratação. Disse-nos que a
sua mãe teve dificuldades no parto e que estas refletiram no desenvolvimento de seu irmão.
“Quando tinha 1 mês, ele era um ratinho, era uma coisinha, pequeninho, magrinho. Então
ele teve desidratação. Quando a minha mãe levou Fernando ao médico, atestaram que ele
era Síndrome de Down”.
!"
Medicação
Não apresenta um quadro com crises convulsivas, embora tenha que utilizar uma
medicação que serve como sedativo,
“onde deixou ele mais calmo [...] Até hoje se tu
incomodar ele, se tu não dá aquilo que ele quer, tem que ser tudo do jeito que ele quer”.
!"
Políticas de atendimento
Hoje
Fernando
é atendido na F
CEE
, onde freqüenta diariamente o Grupo de
Convivência.
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Perfil
Tem 47 anos de idade e a sua mãe tem 80 anos. A família é natural do município
de Alfredo Wagner/
SC
e vieram para São José motivados por oportunidades de trabalho,
educação e atendimento para o filho com necessidades especiais. A mãe de
Eduardo
não
chegou a concluir a Educação Infantil visto que, naquela época, além das dificuldades de
freqüentar a escola em função da distância e das condições precárias de ensino, não era algo
culturalmente e politicamente fomentado.
Eduardo
tinha 5 irmãos, sendo 4 mulheres e 1
homem, todos casados. A irmã mais velha já faleceu. O irmão de
Eduardo
, que auxiliava nas
demandas domésticas, especialmente no que se refere ao transporte, sofreu tempos atrás um
acidente de automóvel e ficou paraplégico, o que complicou ainda mais a dinâmica da família.
!"
Renda familiar
A mãe tem uma renda de aproximadamente 2 salários mínimos, tendo em vista
que
Eduardo
não se enquadra nos critérios para recebimento do Benefício de Prestação
Continuada, visto que na residência só vivem os dois. A genitora relatou-nos que, além deste
valor, recebe o auxílio dos filhos, posto que sozinha não possui condições financeiras de
prover as suas necessidades, bem como as de
Eduardo
. Exemplificou esta dificuldade
financeira com a despesa com a farmácia, que chega a quase 75% do salário que recebe.
!"
Com quem reside
Eduardo
reside com a sua mãe, sendo que o seu pai faleceu em 2001.
66
Para a mãe,
Eduardo
pode ser definido como um grande
“companheiro. Ele que
cuida de mim [...] Agora que me deu essa crise forte [refere-se ao problema de saúde que
teve], ele pegou o colchão dele e botou lá no quarto perto de mim, pra mim não ficar sozinha.
[...] Meu filho, graças a Deus, adora trabalhar [refere-se às atividades domésticas], me
ajuda na casa, adora trabalhar no quintal [...] ele arruma a cama dele. Ele troca a roupa,
sabe quando é pra trocar”.
!"
Diagnóstico
Eduardo
tem deficiência mental.
!"
A forma como perceberam a deficiência
Segundo relatos da mãe
“eu só sei que ele nasceu perfeito. Quando ele tinha 9, 10
meses deu uma convulsão. Daí disseram que tinha queimado uma célula do cérebro. Aí ele
começou a dar [...] como a gente dizia? Ataque? [...] É [...] deu até uns 2 ou 3 anos e depois
não deu mais. Eu fiz tratamento. Eu tratava ele lá em Rio do Sul.”
!"
Medicamentos
Somada à deficiência mental,
Eduardo
tem também diabetes, o que requer um
controle especial na alimentação, bem como o uso contínuo de outras medicações. Neste
caso, vale registrar que a mãe também apresenta alguns problemas de saúde e,
esporadicamente, necessita de atendimento hospitalar, posto que no período em que ela está
internada,
Eduardo
fica sob os cuidados de uma irmã.
!"
Políticas de atendimento
Eduardo
foi um dos primeiros alunos da F
CEE
, e hoje freqüenta o Grupo de
Convivência desta instituição.
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Perfil
Sua idade é de 50 anos. Tem 11 irmãos: destes, 7 são mulheres e 4 homens. A
procedência da família é do município de São José.
Rebeca
e seus irmãos tiveram uma infância marcada pela violência doméstica
perpetrada pelo pai, a exemplo de sua mãe que também foi vítima de várias formas de
agressão, como evidenciamos na fala da irmã:
“a história da Rebeca e a nossa também foi
difícil. O meu pai era um homem muito bruto; com ele era na base da paulada. Com ele era
tudo na hora, ele foi criado assim [...] ele foi criado nisso e ele usou a mesma criação pra
67
gente. Ele não precisava falar com a gente, só olhava pra gente e a gente já sabia o que era.
[...] Ele batia muito na mãe, a mãe apanhava muito. A gente crescia com isso.”
Essas informações são corroboradas pela genitora que, com pesar, relata que
Rebeca
“apanhava de fecho de lenha [...] Naquele tempo, eles vendiam fecho de lenha
grande [...] aquelas haste. Passava a mão no fecho de lenha que tava na rua. Ele dava na
mãozinha dela que ficava inchada. Ela dizia: mãe a minha mãozinha. [...] É [...] foi uma vida
de cão.”
!"
Renda familiar
A renda familiar atual é de aproximadamente 5 salários mínimos, já que
Rebeca
recebe a pensão do genitor.
!"
Com quem reside
O pai de
Rebeca
já é falecido, sendo que a mesma atualmente reside com a sua
mãe de 73 anos, 2 irmãs, com idades de 53 e 43 anos que estão divorciadas, 1 irmão solteiro
com 37 anos e mais 3 sobrinhos, que têm idades de 13, 23 anos e 1 bebê de 3 meses.
!"
Diagnóstico
O diagnóstico de
Rebeca
é deficiência mental.
!"
A forma como perceberam a deficiência
Segundo informações da mãe,
“foi na hora do parto, né? Faltou oxigênio na
cabecinha dela [...] Eu fiquei sabendo quando ela tinha 10 meses. Ela começou a enfiar os
dedos dentro do ouvido. Fazia coisas que a gente até duvidava”.
!"
Medicamentos
A família relata que houve um período em que
Rebeca
era muito agressiva, e que
lhe foi providenciado atendimento psiquiátrico. Foi necessária uma intervenção
medicamentosa, sendo que os remédios são utilizados diariamente até os dias de hoje. Foram
“erros e acertos”
até encontrarem uma medicação que possibilitasse conciliar a conter a
agressividade, sem que
Rebeca
ficasse
“o dia inteirinho dopada”
, como habitualmente vinha
ocorrendo.
!"
Política de atendimento
Rebeca
freqüenta a F
CEE
, atendimento este interrompido apenas no período em
que teve as crises de agressividade, no entanto posteriormente retornou às atividades
educacionais, participando atualmente do Grupo de Convivência.
68
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Perfil
Gustavo
tem 37 anos, é o caçula entre 3 irmãos. Um deles reside no município de
Biguaçú/
SC
e é caracterizado pela genitora como
“o meu socorro”
, enquanto o outro mora em
Curitiba/
PR
, não tendo um vínculo afetivo com a mãe, nem contato com a família.
A genitora relata que a sua família era do município de Imaruim/
SC
, onde o acesso
às informações era muito precário,
“uma pessoa que foi criada no sítio até os 14 anos, né,
não teve experiência nenhuma, eu era a mais velha, não tinha experiência de nada”.
Posteriormente a família da genitora, motivada pela oportunidade de trabalho, veio para o
município de Biguaçú/
SC
, onde ela se casou.
!"
Renda familiar
A família tem uma renda mensal de 1 ½ salário mínimo, posto que este valor é
proveniente da pensão de 1 salário deixada pelo marido e de um benefício
24
do Estado
destinado às pessoas com necessidades especiais, e em situação de vulnerabilidade
econômica.
Para incrementar a renda familiar, a genitora esporadicamente trabalha como
costureira numa fábrica de roupas de praia. No entanto, este trabalho é temporário e somente é
possível no horário em que
Gustavo
freqüenta a Fundação, pois no outro período ele necessita
de cuidados constantes e especiais.
!"
Com quem reside
Reside com a sua mãe de 59 anos, que é viúva desde os 30 anos.
Gustavo
é definido pela genitora como uma pessoa
“bem consciente, ele sabe
quem é, quem não é, ele conversa, ele é comunicativo, ele não é agressivo, ele é uma pessoa
carinhosa, gosta de festa, de passeios, gosta de estar no meio das pessoas.”
!"
Diagnóstico
O diagnóstico de
Gustavo
é deficiência múltipla, sendo aqui evidenciada pela
deficiência mental e física. É dependente para as atividades da vida diária, como: alimentação,
vestuário, controle dos esfíncteres (utiliza diariamente fraldas descartáveis), tendo como
agravante constantes episódios de crises convulsivas que tornam a sua saúde ainda mais
fragilizada.
24
Este recurso do Estado é fornecido a esta população após avaliação bio-psico-social realizada pela F
CEE
. Em
função dos critérios de elegibilidade do Benefício de Prestação Continuada,
Gustavo
não se insere na população
contemplada pela Lei Orgânica de Assistência Social.
69
!"
A forma como perceberam a deficiência
Segundo a genitora, no período gestacional, especificamente aos 5 meses de
gravidez, ela teve varíola, contraída do seu sogro, de quem estava cuidando naquele momento.
“E eu, quando me casei, eu não sabia nem de quanto tempo era uma gravidez. A
minha mãe tem um monte de filho, mas nunca falou nada [...] como que eu ia saber o que era
uma deficiência? Eu só sabia que o meu filho tinha problema, mas eu não sabia o que que
era.”
!"
Medicamentos
Em razão da fragilidade de sua saúde,
Gustavo
faz uso de uma série de
medicamentos - nem sempre disponibilizados gratuitamente nos postos de saúde - para coibir
e minimizar os efeitos das crises convulsivas. Por ter uma saúde mais vulnerável,
Gustavo
freqüentemente apresenta um quadro de pneumonia que se complexifica na estação do
inverno.
!"
Políticas de atendimento
Gustavo
freqüenta esta instituição educacional desde criança:
“eu acho que ele
começou a fazer fisioterapia na Fundação, bem na época do aniversário dele, parece que no
dia do aniversário dele de um aninho, ele tava fazendo fisioterapia.”
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!"
Perfil
Tem 44 anos.
Cleide
tem ainda mais 7 irmãos, sendo que 3 moram no município
de Tubarão/
SC
, e os demais na Grande Florianópolis. A família é procedente do interior do
município de Tubarão/
SC
. Os genitores não tiveram oportunidade de estudar
“a gente morava
na roça, né? E os pais não ligavam muito pra gente estudar, eles queriam que a gente
trabalhasse.”
!"
Renda familiar
A renda familiar é de 2 salários mínimos:
“ele ganha um salário e eu ganho
outro. A gente conseguiu se aposentar pela lavoura, né? [...] sempre trabalhou na lavoura,
parou quando a gente veio pra cá, porque tinha uma filha aqui [...] que via que a gente
passava muita dificuldade lá”
. O auxílio dos filhos, quanto ao incremento na renda mensal, é
fundamental, já que eles não possuem condições de prover sozinhos as despesas do lar, que se
tornam mais onerosas pelos custos adicionais, como por exemplo o transporte escolar de
Cleide
, para que esta possa freqüentar a Fundação.
70
Outra questão a ser considerada refere-se aos problemas de saúde do genitor:
“eu
tenho bronquite, pressão alta, problema no coração, osteoporose”
, o que demanda uma série
de medicamentos de uso regular.
“Tem remédio que eu tenho que tomar 4 por dia, mas eu
não dou conta de comprar, então eu diminuo, senão não dá. [...] Se não fosse os meus filhos
me ajudar, eu não daria conta”.
!"
Com quem reside
Reside com a sua mãe e seu pai, com idades de 64 e 68 anos respectivamente, e
também com o seu irmão de 26 anos. Quando necessário, os genitores contam com o auxílio
dos filhos para cuidar da irmã, seja em função de uma viagem para visitar familiares ou por
questões de saúde dos mesmos.
!"
Diagnóstico
O diagnóstico de
Cleide
é deficiência mental, apresentando dificuldades na parte
motora, especialmente no equilíbrio.
Cleide
utiliza fraldas descartáveis no período noturno,
pois não possui controle dos esfíncteres: no entanto, durante o dia pede para ir ao banheiro.
!"
A forma como perceberam a deficiência
Segundo informações da mãe,
“ela nasceu com saúde perfeitinha, mas depois foi
meningite que deu [...] Ela tinha 11 meses, ela deu meningite, convulsão junto, né? Aí, de lá
pra cá, ela ficou assim. Ela não nasceu assim.”
!"
Medicamentos
Embora
Cleide
tivesse tido na infância uma crise convulsiva, esta não mais se
repetiu, sendo considerada pela genitora
“uma pessoa normal [...]. Pelo menos ela tem
saúde”.
A medicação é utilizada por
Cleide
para conter a sua ansiedade, consistindo apenas
em comprimido com efeitos calmantes, que ela toma à noite.
!"
Políticas de atendimento
No período em que moraram no município de Tubarão/
SC
, tentaram matricular
Cleide
numa instituição de educação especial,
“aí disseram que não, que ela tá muito velha,
aí não quiseram ela lá. Aí quando eu vim pra cá, fui na A
PAE
de São José, aí eles disseram
que não tinha vaga, aí eu fui lá na Fundação, falei lá, aí eles botaram ela”.
Cleide
está
freqüentando a Fundação há 3 anos, sendo que atualmente participa das atividades do Grupo
de Convivência.
71
C
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Ó
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Perfil
Clóvis
tem 37 anos. A família é composta por mais 8 irmãos; destes, 3 já
faleceram, sendo que um dos óbitos foi o de uma criança de 7 anos, que tinha a mesma
deficiência de
Clóvis
. Os outros 2 faleceram em acidentes automobilísticos. Dos demais
irmãos, apenas uma mora em Curitiba/
PR
, posto que os outros residem na grande
Florianópolis/
SC
. Destes, 3 são mulheres e 2 são homens. A família é de Curitiba/
PR
e
mudaram-se para o município de São José/
SC
em função de problemas familiares.
!"
Renda familiar
A renda da família é de 1 ½ salário mínimo, proveniente da pensão que
Clóvis
recebe do seu pai já falecido e do benefício de meio salário que é fornecido pelo Estado
25
às
pessoas com necessidades especiais.
A sobrinha divide seu tempo entre os cuidados dispensados ao tio e o seu
trabalho. Sua função é a de professora de crianças de 3 a 4 anos, num Centro Comunitário.
!"
Com quem reside
Reside na casa de seus pais, já falecidos, com uma sobrinha de 19 anos. Após o
falecimento dos pais de
Clóvis
, uma irmã que residia no município de Balneário Camboriú/
SC
se mudou, junto com o seu marido, a fim de cuidar do irmão, visto que os seus filhos já
estavam residindo com os avós, genitores de
Clóvis
. No entanto, no ano passado houve um
acidente de automóvel em que o casal faleceu, como já mencionamos anteriormente.
Diante deste processo de “perdas e lutos”, a sobrinha de
Clóvis
, atendendo o
desejo do mesmo (que era o de que ela cuidasse dele após o falecimento dos seus pais),
conversou com os demais familiares, a fim de tornar pública sua decisão de cuidar do tio
Clóvis
, decisão esta aceita por todos. Segundo a irmã de
Clóvis
, a opção de sua filha no
sentido de cuidar do tio, foi um ato voluntário e conveniente para a família. Resulta do
processo pelo qual
Clóvis
foi atendido por muitas pessoas que, com o passar do tempo, foram
falecendo – algumas
obedecendo uma trajetória de vida
, considerada normal, outras de forma
bastante drástica. Diante disto, a opção da sua filha foi, segundo ela, bastante conveniente
para todos os familiares,
“mas acima de tudo foi opção dela”.
Embora residam na casa apenas
Clóvis
e a sobrinha, os demais parentes possuem
funções definidas pela família, seja no momento de auxiliar nas atividades da vida diária,
25
Situação semelhante aquela já evidenciada na família de
Gustavo.
Ver nota de rodapé 25, p. 83.
72
como banho, alimentação, troca de fraldas descartáveis, transporte para a Fundação, como
também na participação nas atividades educacionais, e nos passeios, entre outras demandas.
Vale ressaltar que tanto no relato da sobrinha como no da sua mãe, que também
participou deste processo de pesquisa, ficou evidenciado que a rede de cuidados de que
Clóvis
dispõe, para além da participação dos familiares, é extensiva às demais pessoas da
comunidade, em quem a família busca apoio.
!"
A forma como perceberam a deficiência
Segundo a irmã de
Clóvis
, antes dele nascer a sua mãe já havia tido uma filha com
as mesmas características do irmão, e que a família baseou-se pelo mesmo diagnóstico, que
foi inclusive confirmado por profissionais da área da saúde. Um aspecto que vale registrar é
que, além do diagnóstico, a expectativa de vida de
Clóvis
também era baseada na experiência
da família com sua irmã, que faleceu aos 7 anos, idade que, segundo os médicos, marcava o
limite máximo para o tempo de vida de uma pessoa com tal deficiência.
!"
Diagnóstico
O diagnóstico de
Clóvis
é paralisia cerebral,
“deficiência mental, ele não tem
nada, é só física. Mental ele é normal. [...] Ele só não fala, mas sabe tudo. [...] isso é a
informação que a gente tem até hoje. Afetou a parte motora dele.”
!"
Medicamentos
O quadro de saúde de
Clóvis
é considerado bom pela família, embora tenha
episódios freqüentes de pneumonia, o que requer maiores cuidados.
!"
Política de atendimento
Clóvis
freqüenta a F
CEE
há 3 anos, participando das atividades oportunizadas no
Grupo de Convivência.
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M
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N
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Perfil
Armando
, 49 anos, é procedente de Florianópolis. É o caçula de uma família de 7
filhos, sendo que destes 1 já é falecido, e os demais são casados; no total, são duas mulheres e
cinco homens.
!"
Renda familiar
73
A renda familiar é superior a 10 salários mínimos, provenientes dos investimentos
imobiliários realizados no período em que o pai de
Armando
era empresário e que, após o seu
falecimento, ficaram como patrimônio da família.
!"
Com quem reside
Reside com a sua mãe de 82 anos, que ficou viúva há 20 anos. A genitora tem
uma rotina diária definida, na qual seu filho participa de todas as atividades, passeios, e
compras em supermercado, entre outras situações. Para auxiliá-la no transporte de
Armando
,
conta com um motorista particular que minimiza as dificuldades de locomoção.
!"
Diagnóstico
O diagnóstico de
Armando
é deficiência mental, apresentando também
dificuldades motoras.
Armando
é dependente para as atividades da vida diária, sendo
auxiliado pela mãe:
“sempre sou eu, até porque em casa é tudo do jeitinho dele, o banheiro
tem os ferros dele [...] eu dô banho nele, ele tem as coisas dele [...] é mais comigo”.
!"
A forma como perceberam a deficiência
Segundo a mãe de
Armando
,
“quando ele tinha 2 anos [...] nós olhava pra ele e
não era normal como os outros irmãos”
. Percebia que o desenvolvimento de seu filho era
diferenciado dos demais, seja na alimentação que recebia com dificuldade, seja na morosidade
ao caminhar e falar.
!"
Medicamentos
A genitora controla as crises convulsivas com medicamentos diários, e ele faz
acompanhamento médico sistemático.
!"
Políticas de atendimento
Armando
foi um dos primeiros alunos da F
CEE
, onde participa atualmente das
atividades do Grupo de Convivência.
R
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I
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H
A
A
R
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!"
Perfil
Tem 46 anos. O pai de
Richard
faleceu há 20 anos e a sua mãe
aproximadamente 15 anos. A família é procedente do interior do município de Palhoça/
SC
e é
composta por 4 irmãs e
Richard.
!"
Renda familiar
74
A renda familiar é de aproximadamente 4 ½ salários mínimos, sendo que
Richard
não recebe nenhuma pensão, nem tampouco é incluído nos critérios do Benefício de Prestação
Continuada. Este rendimento é proveniente do salário da irmã de
Richard
, que é autônoma, e
das 2 sobrinhas que trabalham na área da saúde.
A irmã salienta que uma das dificuldades enfrentadas por
Richard
decorre do fato
de que ele tem algumas preferências na alimentação, rejeitando as carnes vermelhas, o que
exige a substituição por carnes brancas, especialmente peixes, o que aumenta o custo da cesta
básica, visto que este produto é mais oneroso.
!"
Com quem reside
Reside com a sua irmã de 50 anos e mais 2 sobrinhas que têm idades de 19 e 25
anos. Embora a composição familiar seja de 4 irmãs,
“quando a minha mãe faleceu, eu quis
ficar com ele mesmo, elas começaram a jogar uma pra outra, né? Eu tava me separando na
época também [...] os meus filhos eram tudo miudinho, eu trabalhava fora meio expediente.
Então a gente abraçou ele [...] já faz 15 anos que a gente tá com ele.”
Richard
é definido pela irmã como
“uma pessoa muito querida, ele é calmo, é
tranqüilo [...] ele consegue ir ao banheiro, ele faz tudo, né, consegue comer direitinho [...]
ele é assim muito ordeiro, não gosta de bagunça”.
Embora a irmã tenha elencado todas estas
características, também relativizou a responsabilidade e os cuidados de que o seu irmão
precisa
“porque querendo ou não eles sempre dão trabalho, preocupação, precisam de todo o
cuidado, como por exemplo na hora do banho, ele não toma banho sozinho, precisa que
alguém dê [...] ele não pede comida. Então eu já sei aquele horário é do almoço, aquele
outro é do café, entende?”
A irmã de
Richard
conta também com o auxílio de seu outro filho e de sua nora,
quanto aos cuidados com o irmão:
“[...] quando ele vem aqui, até a mulher dele, não precisa
pedir, eles já tão fazendo. O Richard tá com a unha grande, precisa de um banho, quando eu
vejo eles já tão fazendo [...] as minhas filhas são muito carinhosas com ele, acho que isso tem
o lado compensador”.
A irmã relata com pesar a situação de isolamento das demais irmãs,
visto que o seu irmão sente falta dos demais familiares:
“ele pergunta por elas, pelos meus
sobrinhos. Porque quando a minha mãe era viva, né, elas visitavam muito ela, então depois
não. Ele sabe que tem [...] e é triste, né?”
Embora haja esta dificuldade de mobilizar as demais irmãs, a rede de cuidados
também é extensiva ao seu ex-marido:
“ele vai pra casa dele e fica uns 15, 20 dias. Ele
75
mesmo diz: [...] ‘deixa o Richard ficar aqui o tempo que ele quiser’,”
pois os vizinhos olham
esporadicamente por
Richard
, quando os demais familiares não estão em casa.
!"
Diagnóstico
O diagnóstico de
Richard
foi, durante muito tempo, uma incógnita para a família.
Após o falecimento da genitora de
Richard
e da sua inserção na Fundação, que ocorreu
apenas há um ano e meio, a irmã de
Richard
levou-o a um médico, que diagnosticou
deficiência mental, contrariando as suposições da irmã, que acreditava que ele apresentava
Síndrome de Down.
!"
A forma como perceberam a deficiência
Quando
Richard
nasceu, seus pais residiam no interior do município de
Palhoça/
SC
, local onde o acesso a atendimentos especializados era muito precário. Segundo as
explicações da irmã de
Richard
;
“A [sua] mãe sempre falou que foi meningite que tinha dado
nele [...] demorou muito para caminhar [...] ele tinha uns 3, 4 aninhos, ele era todo molinho,
todo molinho.”
!"
Medicamentos
Richard
apresenta um quadro de saúde considerado pela família como bom, visto
que não tem crises convulsivas nem tampouco necessita do uso contínuo de medicamentos.
!"
Políticas de atendimento
Desde seu ingresso na Fundação,
Richard
freqüenta o Grupo de Convivência.
O que peculiariza e aproxima estas famílias são as experiências vivenciadas com
as pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento. Suas histórias, com
tênues diferenças, evidenciam um contexto de lutas que permeia suas vidas desde o
nascimento destes sujeitos, seja pela expectativa frustrada de terem um “filho perfeito”, seja
pela incerteza de contar com alguém para os cuidados deste familiar, depois da morte dos
pais, neste caso específico, uma preocupação mais explícita dos genitores.
O que faz ainda semelhantes os depoimentos dos familiares são as formas como as
famílias se apropriaram deste fenômeno. A ausência de informações mais precisas por parte
da equipe de profissionais que, na maioria das vezes, se encarrega de informar a família a
respeito da deficiência, também é uma questão importante identificada na pesquisa.
Para avançarmos neste estudo, necessitamos entender de que forma se deu o
processo de apropriação da deficiência pela família, o que poderá ser evidenciado através do
76
relato das experiências vivenciadas em torno dos momentos considerados difíceis e/ou bons,
bem como da forma como trataram este(a) filho(a) ou irmão(ã).
Não pretendemos, aqui, adotar nenhuma escala de valores, avaliando a postura
dos familiares para com este sujeito, ou indicando erros e acertos, até porque estas famílias
sempre tiveram que “levar a vida” (C
ALDEIRA
, 1984, p. 9) e fizeram isto de forma muito
solitária.
2.2 O processo de apropriação da deficiência pela família
Para muitas pessoas, um dos projetos de vida almejado e a ser perseguido refere-
se à constituição de uma família. Estes anseios perpassam o imaginário social e correspondem
à expectativa da união entre homem e mulher, de forma que o fruto deste vínculo seja
materializado na reprodução de sua espécie, ou seja, nos filhos.
A representação social dos filhos é, acima de tudo, a expressão da continuidade da
família e, assim sendo, deve estar associada às formas mais idealizadas de um modelo, pois
referem-se aos padrões de sucesso ou insucesso que estão vinculados à capacidade dos
familiares de superar as crises. No entendimento de Calderón e Guimarães (1993, p. 21),
“predomina no imaginário coletivo da nossa sociedade a idéia de uma família perfeita:
seguidora das tradições, formada pelos pais e filhos, vivendo numa casa harmoniosa para todo
o sempre”.
Quem nunca escutou, por exemplo, como resposta à pergunta dirigida aos pais,
especialmente à mulher gestante, quanto à sua preferência no sexo do bebê, que “o sexo não
importa, desde que venha com saúde.” Esta saúde está associada à não deficiência, à perfeição
física, e cognitiva, entre outros elementos que caracterizem um bebê saudável, além de
perspectivas futuras, como as expressas no desejo de que esse filho seja feliz, tenha êxito
profissional e afetivo, ou seja, que tenha um futuro promissor.
Não pretendemos, aqui, avaliar se estes anseios são malignos ou benignos para as
famílias, pois estão muito mais associados a elementos subjetivos (esperanças, sonhos,
ideais), porém evidenciamos estes aspectos para servirem de subsídios na compreensão das
famílias das pessoas com necessidades especiais, cuja idealização do
filho perfeito
já é
77
frustrada a partir do seu nascimento ou, quando muito, nos seus primeiros anos de vida, após a
constatação do fenômeno.
Sendo assim, a idealização desta família harmoniosa e perfeita esbarra na
realidade da família concreta, que lida cotidianamente com os sentimentos de frustração,
tendo em vista que não consegue atingir o ideal do que
deveria ser
. Para Szymanski (1997, p.
25):
Supõe-se ou aceita-se, irrefletidamente, um modelo imposto pelas
instituições, da mídia e até mesmo de profissionais, que é apresentado não só
como o jeito ‘certo’ de se viver em família mas também como um valor. Isto
é, indiferentemente, é transmitido e captado o discurso implícito de
incompetência e de inferioridade, referindo-se àqueles que não ‘conseguem
viver de acordo com o modelo.
Estes elementos subjetivos do fracasso estão presentes nestas famílias pois, diante
da realidade concreta e da representação que se faz dela, está implícita (ou explícita), a
sensação da incapacidade. Isto porque simplesmente padronizamos e naturalizamos um
modelo de família ideal, como se fosse possível construí-lo na realidade, penalizando as
famílias que não atingem tal padrão, rotulando-as de desajustadas, desestruturadas, recaindo
sobre elas boa parte da
intolerância social
(M
IOTO
, 2000).
As famílias das pessoas com necessidades especiais viram-se obrigadas, após o
recebimento da notícia, a inserir-se numa realidade diferente da que haviam almejado, como
nas palavras de Caetano Veloso, o que deflagrou “o avesso do avesso” de seus sonhos.
A família de
Pedro Henrique
evidencia este momento do seguinte modo:
“Pra
mim foi um choque. A princípio eu fiquei apavorado”.
E expõe as mudanças que ocorreram
no cotidiano da família após o nascimento do filho, tendo em vista que,
“na verdade, mudou
muito, na verdade a gente vive em função dele”.
Expressões como estas também foram observadas na família de
Fernando
:
“naquela época, isso há 42 anos atrás, não era tão divulgada a Síndrome de Down como
hoje [...] depois a gente veio procurar saber o que era, mas a família ficou meio chocada”.
Associada ao desconhecimento a respeito da Síndrome, está a interpretação dos genitores,
para o nascimento deste filho, que era a expressão de uma punição:
“eles acreditavam que era
um castigo, fruto de um pecado”.
Estes discursos refletem de que forma a família recebeu a notícia, e como
poderiam lidar com estas situações de sofrimento inesperadas e indesejadas.
78
São sonhos que foram de alguma forma despedaçados pois, no estabelecimento do
vínculo entre pais e filhos, subtende-se que haja uma consideração “dos filhos com relação
aos pais [posto que] os pais que
criam
e
cuidam
são merecedores de profunda retribuição,
sendo um sinal de ingratidão o não reconhecimento dessa contrapartida” (S
ARTI
, 2003a, p.
82).
Este reconhecimento, nada mais é que a obrigação moral estabelecida nesta
relação, explicitada pelo “compromisso afetivo de retribuição e compreensão diante das
dificuldades que pela vida afora seus pais enfrentaram” (R
IBEIRO
, 1999, p. 30), na dura tarefa
de dar condições de desenvolvimento a este filho.
Para Sarti (2003, p. 31), é sem dúvida a relação entre pais e filhos que representa o
vínculo mais forte, em que as obrigações morais caracterizam-se como legítimas. “Se, na
perspectiva dos pais, os filhos são essenciais para dar sentido a seu projeto de casamento, [...]
dos filhos espera-se o compromisso moral da retribuição dos cuidados”. No entanto,
diferentemente de um filho que segue uma trajetória de vida considerada “normal”, ou seja,
estuda, forma-se, trabalha, constitui sua própria família, podendo até, por vezes, auxiliar nas
despesas dos genitores que, muitas vezes, encontram-se recebendo uma aposentadoria cujo
valor é inferior ao necessário para o atendimento de suas necessidades básicas, a pessoa com
necessidades especiais, e especialmente esta população pesquisada, não se desvincula de suas
famílias; ao contrário, tornam-se ainda mais dependentes. Observamos esta frustração no
discurso da família de
Cleide
, já que a deficiência desta foi seqüela de meningite os pais
expressam os seus sentimentos dizendo:
“A gente ficou triste, né? Porque a gente teve uma
guria com saúde que podia trabalhar, mas depois a gente foi se acostumando”.
Esse se acostumar refere-se à forma como a família se organiza após apropriar-se
do fenômeno da deficiência. Não é um processo inerte, mas em constante movimento, posto
que as demandas familiares vão sendo alteradas, seja pelos aspectos externos à família como,
o trabalho, a renda, os serviços sociais disponíveis, entre outros, seja pela dinâmica interna da
família como, os casamentos, os nascimentos, os divórcios, os falecimentos de seus membros,
entre outras situações.
Para criar estratégias de enfrentamento destas situações, as famílias se vêem
envolvidas no código de obrigações morais, como forma de materializar a reciprocidade das
relações, seja dentro ou fora de suas casas, como alude Sarti (2003, p. 140-1 - grifo da autora):
A família, com seus códigos de obrigações, é uma
linguagem
através da
qual traduzem o mundo e, sendo assim, suas possibilidades de negociação e
79
de atuação no mundo social passam pelos caminhos onde é possível falar
essa linguagem.
Assim, é esta especificidade que define o horizonte de sua
ação política. [...]
Significa [...] acentuar que a reciprocidade é o fundamento da ordem social
para os pobres [e consideramos também as famílias das pessoas com
necessidades especiais] porque as relações sociais na sociedade brasileira
estão estruturadas de modo a fazer valer esse princípio como organizador de
sua percepção do mundo. Essa marca das sociedades tradicionais, o código
da reciprocidade, não é, então, uma “sobrevivência”, mas um traço que
existe e persiste pelas próprias características da sociedade.
As redes sociais de cuidado com a pessoa com necessidades especiais podem ficar
restritas ao ambiente familiar, como também expandir-se à comunidade, objetivando ampliar
as ramificações familiares, entendidas aqui não apenas como as pessoas que têm laços de
sangue, mas como todos aqueles que se vêem obrigados moralmente a auxiliar nesta
empreitada. Para Sarti (2003), esta prática aponta para um duplo sentido: primeiramente,
dificulta a individualização, mas também, simultaneamente, viabiliza condições para sua
existência por meio da garantia de atendimento de suas necessidades básicas.
Observamos claramente as estratégias de manutenção da vida da pessoa com
necessidades especiais na família de
Clóvis
, posto que os cuidados são atribuídos a todos os
familiares, aos seus irmãos, e aos vizinhos, embora quem esteja residindo com o mesmo seja
sua sobrinha de 19 anos. São familiares que já possuem seus papéis definidos diariamente no
cuidado de
Clóvis
: a troca de fraldas, o banho, a tarefa de carregá-lo no colo até o veículo que
irá transportá-lo até a Fundação, a alimentação; entre outras necessidades. Os demais irmãos,
que não residem próximo à casa de
Clóvis
ou possuem atividades de trabalho que
impossibilitam o cuidado diário, são responsáveis pelo pagamento do transporte da Fundação,
ou ainda são pessoas que vivem em permanente vigília, caso seja necessário seu auxílio.
“A
família tenta se dividir [...] ajuda no que pode”.
Realidade distinta vivencia a família de
Richard
, já que, após o falecimento dos
pais, a irmã mais velha assumiu os cuidados com o irmão. No entanto, a distribuição de
tarefas entre as demais irmãs não ocorre, ficando restrita apenas a este núcleo familiar, haja
vista que a manutenção e o cuidado para com
Richard
, são viabilizados por meio dos
sobrinhos, do ex-cunhado e dos vizinhos. No discurso da irmã, percebe-se o ressentimento
quanto à ausência dos demais familiares no cuidado de
Richard
:
E eu fico assim meio ressentida com as minhas irmãs, por causa disso, tu vê:
eu passo assim três, quatro anos e não as vejo. Eu fico muito sentida desde
que o meu irmão tá comigo [...] eu tinha outra visão, acho que ele precisa
de muito carinho, e ele pergunta, ele é muito inteligente, ele sente saudades,
mas elas não procuram.
80
Com este afrouxamento dos vínculos sociais, a representação da família vai além
da noção de apego, mas traduz, por meio de suas hierarquias internas, a concretização de que
a sobrevivência depende e se apóia nos recursos pessoais e nas motivações morais que os
familiares são capazes de mobilizar. E estes familiares devem ser compreendidos numa
dimensão mais ampla, visto que os fios foram
esgarçados
(S
ARTI
, 2003a) e a “extensão da
família corresponde à da rede de obrigações: são da
família
aqueles com quem se pode
contar
, quer dizer,
aqueles em que se pode confiar
26
(S
ARTI
, 2003, p. 33 - grifo da autora).
Esta caracterização da família responde à ausência de serviços públicos de uma
maneira geral, especialmente os destinados aos segmentos sociais vulneráveis, como é o caso
das pessoas com necessidades especiais. No entanto, a prerrogativa destas relações, segundo
Sarti (2003a), é a reciprocidade, o código de lealdade e de obrigações mútuas, ou seja, a
própria noção da ordem moral.
Com relação às regras morais, recorreremos a Émile Durkheim
27
(1967), que se
debruçou sobre esta temática e trouxe considerações relevantes, que foram inclusive
observadas no discurso das famílias, ora de uma forma velada, ora explicitamente.
Um dos aspectos evidenciados, por exemplo, é a própria noção da sanção que
pode lhes ser aplicada, mesmo nos tempos atuais, caso as famílias não correspondam
moralmente às normas impostas. Esta sanção não necessariamente diz respeito a uma
penalidade a ser aplicada concretamente, ao menos de forma objetiva, mas vincula-se muito
mais a uma
pena subjetiva
,
espiritual
, associada à noção da própria obrigatoriedade do dever
moral.
Desta maneira, as regras morais estão carregadas de significações que representam
primeiramente o dever e, num segundo plano, “aparece-nos como desejáveis, embora seu
cumprimento se dê com esforço” (Q
UINTANEIRO
; B
ARBOSA
; O
LIVEIRA
, 1995, p. 23).
Segundo Durkheim (1967), a moral, na verdade, retrata um sistema de normas de
conduta, que define de que forma os sujeitos devem agir em determinadas situações,
culminando na relevância dos homens aprenderem, por meio deste processo, a integrar-se à
vida social, o que dependerá inclusive de laços de solidariedade. É neste sentido que a moral é
definida pelo autor como sendo:
26
A disponibilização desta rede, com a qual a família pode contar ou na qual pode confiar, é evidenciada de
forma clara na pesquisa, cujos resultados serão apresentados posteriormente.
27
Sendo Durkheim um autor cuja matriz teórica é a sociologia positivista, vale ressaltar que esta não
corresponde ao quadro analítico adotado prioritariamente neste estudo, embora suas reflexões, remetidas ao
campo da moral, se revele especialmente fecunda.
81
tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o indivíduo a contar
com seu próximo, a regular seus movimentos com base em outra coisa que
não os impulsos de seu egoísmo, e a moralidade é tanto mais sólida quanto
mais numerosos e fortes são estes laços (
DURKHEIM
, Idem, p. 338).
Embora o autor retrate a importância desses elos e do respeito à solidariedade
como forma de regular e constituir um corpo de regras morais, dissocia claramente os
mais
aptos
dos
menos capazes
, prescrevendo a relevância destes últimos aceitarem a interferência
dos primeiros
28
. “Será, portanto, necessária ainda certa disciplina moral para forçar os menos
favorecidos pela natureza a aceitarem o que devem ao acaso de seu nascimento” (Ibid. p. 47).
Compreender a lógica da subordinação dos
menos favorecidos
com relação aos
considerados
mais aptos
é problematizar, inclusive, a noção da infantilização das pessoas com
necessidades especiais na convivência familiar. Não foi raro encontrar nos discursos
familiares as expressões
crianças, neném, menino,
referindo-se a sujeitos em idade adulta que,
por apresentarem uma deficiência, se lhes atribui a perigosa máscara de
incapazes
e
subservientes
. Estes termos infantis também se fizeram presentes na expressão do cotidiano
destes sujeitos, em que as funções atribuídas a estas pessoas eram restritas a simplificações
como
“as atividadeizinhas dele”, “faz uns aninhos”, “são crianças como ela”, “ela aceitou
[refere-se à deficiência] e tratou ele toda a vida como neném”
e
“a mãe fazia tudo pra ele”,
entre outras vivências que caracterizaram esta relação, já que são considerados como
crianças, passam a ser tratados como alheios a qualquer obrigação e,
conseqüentemente, a qualquer direito. Pode resultar assim politicamente
legítimo pensar esses doentes-crianças como não responsáveis; porém, essa
identificação não é gratuita: somente na responsabilidade é que a liberdade
acha sua condição e sua razão de ser. É, então, evidente afirmar que ausência
de responsabilidade haverá de ser idêntico a afirmar ausência de liberdade
(C
APONI
, 2000, p. 37).
Estes são os elementos observáveis, no cotidiano das famílias das pessoas com
necessidades especiais em processo de envelhecimento. Não pretendemos, como já
evidenciamos anteriormente, avaliar e julgar estas relações, especialmente por compreendê-
28
Embora não seja elemento de discussão deste trabalho, fizemos questão de pontuar este aspecto por observar
que esta prática está enraizada nas relações sociais estabelecidas com as pessoas com necessidades especiais,
posto que
já nasceram desfavorecidas pela sua natureza nata
, conforme as idéias do pensador, tendo em vista
que, como elemento de retribuição aos favores oferecidos, devem aceitar sem questionamentos estas imposições.
Observamos nos discursos dos familiares e na prática institucional dirigida a esta população - seja aquela junto à
qual estávamos inseridas profissionalmente, seja a que experenciamos como estagiária de graduação do Curso de
Serviço Social - que há uma predominância do pensamento positivista, onde presenciamos a supremacia e a
imposição de anseios pessoais do cuidador ou do profissional sobre o desejo de quem é cuidado, e/ou o sujeito a
quem se destina os serviços. Porém este estudo requer uma pesquisa aprofundada, para esmiuçar os meandros
destas relações.
82
las na sua totalidade, dissociando-as de possíveis parâmetros idealizados, bem como
compreendendo a forma como foi apreendida historicamente a deficiência. O que as famílias
fazem ou não fazem efetivamente perante a existência deste filho não pode ser elemento de
condenação, visto que não podemos analisar tais aspectos sem considerar os “recursos
(materiais, sociais, afetivos) que são disponibilizados para se manterem vivas; muito pouco se
diz [também] das estratégias utilizadas para responderem às demandas que lhe são impostas”
(M
IOTO
, 2000, p. 223).
No entanto, isto que limita uma avaliação não deve servir de instrumento de
cristalização desta prática, mas sobretudo fomentar novas significações para estas relações, a
fim de que sejam banidos os sentimentos de
dívida pelo bem recebido
, posto que o papel de
eterna gratidão representa a impossibilidade de se situarem “numa relação de paridade e de
poder participar de relações sociais que exijam julgamento e discernimento” (C
OLLIÈRE
,
1989, p. 69).
Rever posturas, práticas políticas e éticas, tanto no contexto familiar quanto nas
relações sociais, faz-se necessário, na perspectiva de vislumbrarmos um outro olhar dirigido a
esta população, com o intuito de fortalecê-los e não debilitá-los, de propiciar sua inserção em
novas redes sociais e não condená-los ao isolamento, enfim, de reconhecê-los como sujeitos
que, embora apresentem suas peculiaridades e necessidades especiais, não devem ficar
confinados e caracterizados como sinônimos de benevolência e inferioridade. Afinal de
contas, quem dentre nós não apresenta à sociedade e ao mundo demandas diferenciadas?
2.3 A equipe profissional e a comunicação da deficiência
Analisar o discurso dessas famílias, bem como a forma delas se apropriarem do
fenômeno da deficiência, obrigatoriamente faz com que nos reportemos ao momento da
comunicação do diagnóstico médico da deficiência. Esta comunicação é normalmente
verbalizada por profissionais vinculados à área da saúde, já que na maioria dos casos foi por
meio deste serviço que se buscou compreender os sintomas e a explicar o desenvolvimento
diferenciado desta pessoa, “que faz sua aparição ali onde se demandam a cura, o cuidado e a
assistência” (C
APONI
, 2000, p. 12). Salientamos que estamos fazendo referência a um período
83
localizado aproximadamente de 30 a 50 anos atrás, conforme o momento em que as famílias
das pessoas com necessidades especiais foram em busca de informações sobre seus filhos, ou
seja, foram comunicadas quanto à deficiência. Sendo assim, a forma como as famílias foram
acolhidas por esta equipe de profissionais, bem como o modo como foi anunciado o fenômeno
da deficiência, refere-se não a situações experenciadas nestes últimos anos, embora seja
pertinente cotejar se tais posturas finalmente foram alteradas, recentemente.
Desta forma, não pretendemos avaliar as práticas profissionais de determinadas
áreas, nem tampouco desqualificá-las, mas almejamos explicitar o contexto em que as
famílias foram informadas, procurando verificar como esta comunicação interferiu nas
relações estabelecidas dentro e fora da vida familiar. Como evidenciamos na pesquisa, a
comunicação da deficiência à família, por muitas vezes, ficou restrita aos limites, às
dificuldades e à expectativa de vida desta população, em geral com uma ênfase bastante
negativa, embora pretensamente realista.
Frente à incógnita do fenômeno da deficiência, resta às famílias buscar respostas
às suas inquietantes dúvidas, pois são vivenciadas circunstâncias-limite, em que é necessário
colocar-se “literalmente nas mãos do outro, de um outro no qual é preciso confiar quase que
cegamente” (Ibid., p. 13).
Na família de
Fernando
, a entrega deste nas mãos de um profissional fez com que
ele tivesse condições de sobreviver a uma desidratação, já que o seu desenvolvimento com
apenas um mês de vida estava bastante prejudicado. A família ignorou o primeiro diagnóstico
dado a
Fernando
, que condenava o menino à morte: relatavam que aquele bebê não teria
condições de sobreviver ao quadro de desidratação, nem tampouco aos sintomas da Síndrome
de Down. Na busca de outra opinião e intervenção profissional, a família medicou
Fernando
,
que
“custou a sentar, custou a andar, custou a falar, tudo foi lento [...] mas ele começou a
melhorar e foi desenvolvendo”.
No caso de
Cleide
, a demora de uma resposta mais precisa trouxe seqüelas
irreversíveis, reflexos de uma meningite não diagnosticada:
“quando descobriram, ela já
havia dado convulsão”.
Além destes tipos de intervenção a equipe de profissionais também se fez presente
no tocante à aceitação, por parte da família, daquela pessoa com necessidades especiais, como
observamos na família de
Eduardo
, à qual foi recomendado, após a comunicação da
deficiência, que o aceitasse, pois era uma espécie de cruz
“que tinha que carregar”.
84
Para Donzelot (apud C
APONI
, 2000), a lógica do aconselhamento praticada pela
política de filantropia - observada inclusive nos dias de hoje - foi deflagrada no século
XIX
de
forma complementar à que ocorria na época clássica, posto que a ética utilitarista ficava
evidenciada na forma de atendimento prestado à população pobre, já que havia uma relação
“entre uma necessidade que pode ser satisfeita e uma gratidão infinita que se apresenta como
pagamento esperado por essa dádiva" (C
APONI
, 2000, p. 75). Deste modo, o aconselhamento
pode ser considerado uma forma de aproximação entre aquele que recebe a informação e
aquele que a fornece, tendo em vista que o “conselho é o ato que melhor indica a igualdade,
pois resulta do desejo de influenciar de quem dá e da perfeita liberdade de quem recebe”
(Ibid., p. 67), ou seja, já não se trata de dar subsídios materiais àquele que deles necessita, mas
bons conselhos. Entretanto, há que considerar que há uma relação desigual entre os dois pólos
envolvidos, uma vez que, devido também ao saber profissional, aquele que aconselha está
imbuído de poderes institucionais e técnicos, oriundos da condição de especialista.
Foucault (1992) complementa essa análise lembrando que a lógica da filantropia,
no século
XIX
, legitimou a interferência de algumas pessoas, que passaram a se ocupar da vida
dos outros, de sua saúde, da sua residência, de sua alimentação e que, posteriormente, deram
origem a funções que, por sua vez, se personificaram em instituições e saberes, proliferando
algumas categorias de trabalhadores sociais. A esse respeito, Foucault (1992, p. 151-2)
acrescenta o papel de denominador comum desempenhado pela medicina.
Era em nome da medicina que se vinha ver como eram instaladas as casas,
mas era também em seu nome que se catalogava um louco, um criminoso,
um doente... Mas existe, de fato, um mosaico bastante variado de todos estes
‘trabalhadores sociais’ a partir de uma matriz confusa como a filantropia...
O interessante não é ver que projeto está na base de tudo isto, mas em termos
de estratégias, como as peças foram dispostas.
Ao nos reportarmos a políticas de atendimento referentes ao século
XIX
,
constatamos, a partir do desenrolar da pesquisa, que muitas posturas ainda perduram. Por
exemplo, ora a família é compreendida como elemento que tem uma dívida eterna para com
aqueles que lhe fornecem um serviço, um auxílio, uma assistência, ora prevalece a
multiplicação dos mecanismos de coerção, docilização e submissão.
Observamos isto na família de
Gustavo
: a mãe relata um episódio vivenciado em
uma das consultas médicas. Disse-nos que, certo dia, preparava seu filho para ir a uma
consulta quando ocorreu uma crise convulsiva muito forte, que impossibilitou seu
comparecimento. Em virtude de ser um atendimento rotineiro, objetivando muito mais a
85
aquisição da receita médica para permanecer com a medicação, a mãe preferiu ir sozinha ao
atendimento, já que o medicamento de uso contínuo estava terminando e o profissional
conhecia o quadro clínico de
Gustavo.
Ao chegar na Policlínica, descobriu que o profissional
que atendia
Gustavo
havia viajado e deixara os seus pacientes aos cuidados de outro
especialista, no qual que este se negou a efetuar o atendimento. A mãe, preocupada com a
possibilidade de ficar sem a medicação de seu filho, pediu para o profissional providenciar
somente daquela vez, e este respondeu-lhe rispidamente:
“decerto tu queria que eu fosse
consultar por telefone, na tua casa?”
A mãe sentiu-se muito ofendida e agredida pois,
segundo seus relatos, o seu filho nunca faltou a uma consulta, apesar de todas as dificuldades
de locomoção, situação financeira, crises convulsivas, enfim, fatores alheios à vontade da
família. Em função da resposta do profissional, a mãe disse que nem iria pegar mais a receita
médica e que iria tentar obtê-la em outro lugar, pois sentiu-se muito aviltada com o tratamento
recebido. Relatou-nos que, por fim, o profissional forneceu a receita de forma bastante
indelicada e ríspida, tendo a mãe saído do consultório extremamente abalada e chorando
muito. Esta situação foi tão marcante que a mãe nos contou que teve, inclusive, dificuldades
para sair do prédio da Policlínica, uma vez que não conseguia nem encontrar a porta da saída,
de tão emocionalmente alterada e ofendida que ficou com o atendimento.
Incrementando esta situação, a mãe relatou que, em outra oportunidade, foi à
Policlínica para ser atendida pelo mesmo profissional. Disse-nos que chegaram no início da
manhã, por volta das 8 horas e que foram atendidos perto do meio-dia. Ponderou esta
situação, trazendo elementos que demonstram as situações pelas quais as famílias estão
comumente passando. Disse-nos que, neste dia,
Gustavo
permaneceu a manhã toda na cadeira
de rodas, já que era verão e estava muito quente e que, quando o profissional chegou, por
volta das 11 horas, nem justificou o seu atraso, nem tampouco compensou esta situação de
aborrecimento imposta às famílias com um atendimento mais digno. Ao contrário, atendeu os
pacientes com a porta do consultório aberta ignorando as pessoas que estavam no corredor
para serem atendidas, expondo desta forma tanto o paciente como a família. Segundo a mãe, a
impaciência do profissional foi percebida também por
Gustavo
que, com a sua dificuldade na
fala, disse-lhe:
“Ô mãe, o que ele tem que chegou tão doido?”
Os relatos destas experiências não fazem parte de fragmentos de alguma estória,
mas do cotidiano destas famílias que, em alguns momentos, vêem suas necessidades serem
desonrosamente atendidas e suas vidas desnudadas. São relações estabelecidas entre
desiguais, nas quais a dor, e o sofrimento, são ignorados. Do ponto de vista da equipe
86
profissional, é preciso o compromisso e o empenho em atenuar estas dores, o horror destes
sofrimentos, e não a banalização destes males como sendo expressões de males menores, que
devem ser suportados, pois “uma estatística não faz chorar, e as grandes cifras da indigência
são menos comovedoras que a visão de um homem ou de uma mulher destroçados pela
carência e pela doença” (B
RUCKNER
, 1996, p. 257). Estamos nos referindo às famílias e não
levantando números, estamos falando de expressões claras de pessoas com necessidades
especiais em processo de envelhecimento e não simplesmente dirigindo-nos a “uma mão
tendida, uma ferida que limpamos, um organismo que reparamos” (loc. cit.). São famílias,
mas também podem ser menos que isso, quando as reduzimos apenas às suas necessidades
biológicas e, diante disto, “nunca é um igual com o qual poderíamos iniciar uma relação de
reciprocidade” (loc. cit.).
Ainda retratando a experiência da família de
Gustavo
, sua mãe relatou-nos que,
desde o nascimento de seu filho, tinha desconfiança de que havia algum problema, pois na sua
gestação contraiu varíola e, logo que descobriu a doença, teve que tomar diariamente 2
injeções de penicilina, por volta do 6 mês de gravidez. Diante desta importante interferência, a
mãe buscou vários atendimentos, sendo que nenhum deles diagnosticou alguma alteração no
bebê até os seus 8 meses de vida. Em algumas destas idas a especialistas, a mãe era taxada de
irresponsável e insana, pois diziam
“que eu tava arrumando doença pro meu filho. Agora
uma mãe vai arrumar doença pro filho?”
Segundo os relatos da mãe,
Gustavo
era uma criança que aparentava ser saudável,
mas havia algo no seu desenvolvimento que inspirava mais cuidados, e foi buscando
encontrar respostas para as suas inquietações que a família foi aconselhada a procurar outro
especialista. Na oportunidade, após a realização de vários exames, foi diagnosticada a
paralisia cerebral, sendo que o profissional declarou:
“Mãe, reza pra ele não ficar vegetando,
pra ele não ir regredindo e não vegetar”
. A partir daquele momento, vários tratamentos
foram necessários, inclusive a administração de diferentes medicamentos:
“foi ali que eu
comecei a entender o que era deficiência”.
Também foi a partir deste momento que os
hábitos de vida da família, especialmente da mãe, foram transformados, inclusive levando-se
em consideração as recomendações dos profissionais, que diziam:
“A senhora tem que tratar
ele como os outros filhos [...] mas quando for dormir, qualquer mexida nele, tu acorda, tu
fica alerta que pode até dar uma crise e ele pode morrer dormindo.”
Escutar as narrativas desta mãe, dar-lhe espaço, é uma tentativa de deixá-la
expressar seus pontos de vista, suas necessidades, sua forma de ver o mundo e, especialmente,
87
compreender a forma como a família foi se organizando em torno deste fenômeno, como
demonstra esta genitora, que ainda hoje descansa seu corpo, depois de um dia exaustivo de
trabalho, num sofá situado na sala, a menos de 2 metros da cama de seu filho. Teme que,
dormindo em seu quarto, não possa escutar algum sussurro diferenciado de
Gustavo
, a
demonstrar a necessidade de um cuidado especial. Estamos falando de uma vigília
permanente, em que cada dia e cada noite demandam diferentes esforços para garantir
condições de vida a este filho.
A experiência vivenciada pela família de
Gustavo
nos faz pensar que todos
estamos sujeitos à dor, à doença, ao sofrimento. Porém isto, que deveria nos aproximar, nos
afasta, posto que apenas quem vivencia tal fenômeno conhece os seus meandros, a energia
necessária para suportar as vicissitudes de lidar com situações tão trágicas. Tornar públicas
estas situações, longe de pretender escandalizar, serve de alerta para que percebamos
minimamente a importância de nos mobilizar política e profissionalmente, sobretudo ao
desempenharmos a função de formuladores das políticas sociais. Mas serve também para que
possamos pensar a respeito, a fim de humanizar nossas ações e redirecionar nossos olhares,
como bem aponta Arendt (1990, p. 25):
Por mais interessantes que as coisas do mundo pareçam, por mais
profundamente que possam nos emocionar e estimular, elas não se tornam
humanas para nós, até o momento em que possamos discuti-las com nossos
semelhantes. Tudo o que não pode ser objeto de diálogo pode muito bem ser
sublime, horrível ou misterioso, mas não é verdadeiramente humano.
Humanizamos o que se passa no mundo e em nós, quando falamos, e com
esse falar aprendemos a ser humanos.
A vivência de negação da mãe e as informações advindas de seu contexto
reportam-nos à sua experiência de ter sua fala desrespeitada, da palavra não compartilhada e
não ouvida, resultando sobremaneira na “eliminação do direito de fazer de nossa própria dor
algo inteligível, algo em relação ao qual possamos ter uma opinião e um julgamento”
(C
APONI
, 2000, p. 40). A inobservância desta vivência familiar resulta em posturas tirânicas
de intervenção, utilizando a máscara de que
sempre atuam em nome e pelo bem daqueles a quem dizem auxiliar,
conhecem esse bem de um modo claro e distinto, mesmo antes de ser
solicitado [...] prescindem de argumentos, excluem as palavras e emudecem
qualquer diálogo (Ibid., p. 69).
Somente quem vivencia situações tão díspares pode conhecer o âmago do que é
ser pai, mãe, irmã(o), enfim, familiar de uma pessoa com necessidades especiais agora
88
também em processo de envelhecimento. Tais famílias enfrentam, cotidianamente, situações
absolutamente adversas, tais como a sina da ausência de expectativa de vida. Em alguns casos
pesquisados, as famílias receberam, logo após a comunicação da deficiência, a sentença de
morte de suas crianças, instalando pânico e sofrimento permanentes.
Observamos isto na família de
Gustavo
, cuja expectativa de vida revelada pelos
profissionais era de até 21 anos. Com o avanço da tecnologia farmacêutica, bem como da
medicina, houve uma alteração neste quadro, mas as informações dadas pelos profissionais à
família continuam desanimadoras
“21 anos foi a expectativa de vida que eu dei, agora esses
16 anos a mais é tudo lucro”
. O profissional ainda acrescentou:
“oh mãe, se não fosse o teu
cuidado, a tua afeição, apesar do medicamento, o seu filho não viveria mais”.
A mãe sente
que, por um lado, cada hora é uma vitória, uma alegria, uma superação da vida, mas, por outro
lado, desabafa que
“a maior tristeza é ter um filho assim [...] eu não curei, mas tentei, fiz o
que pude”.
Outro exemplo de que a comunicação da expectativa de vida pode ser a verdadeira
gênese de toda a transformação da vida familiar, pode ser recuperado através da narrativa que
expõe o conhecimento do diagnóstico da deficiência de
Clóvis
. Especialmente pelo fato de
sua mãe já ter tido uma filha com o mesmo quadro clínico e que morrera com 7 anos de vida,
diante da semelhança das situações, de 7 em 7 anos a família vivia momentos de angústia e
apreensão, já que a segunda sentença significa uma dramaticidade ainda maior: a expectativa
de nova perda ao mesmo tempo em que se revive a dor passada.
Tais situações sempre levaram a família a estabelecer sua moradia em espaços
próximos a hospitais, tendo em vista a gravidade do quadro de
Clóvis
e a necessidade de
atendimento emergencial. Segundo a irmã, em uma das situações de crise da paralisia
cerebral, a família deixou
Clóvis
internado no hospital por alguns dias, numa espécie de
“redoma”, para protegê-lo e tratá-lo. Porém os profissionais não observaram muita evolução e
melhora no quadro, questionando a mãe se a mesma não preferia levá-lo para casa, pois
“ele
não tem volta [...] a senhora prefere que ele morra aqui no hospital, ou leva pra casa perto
da família? [...] Com o convívio da família ele não vai ficar sozinho”.
A mãe optou por levá-
lo para casa, certa de que cada hora seria uma conquista, conquista esta que perdura há mais
de 32 anos.
Outra seqüela anunciada pelos profissionais de saúde à família estabelecia que, à
medida que os ossos fossem se atrofiando, haveria uma pressão no coração, podendo ocorrer
sérios problemas cardíacos. Estes problemas ainda não se evidenciavam no quadro clínico de
89
Clóvis
mas, ao serem prematuramente “diagnosticados”, inequivocamente produziram
sofrimentos adicionais e totalmente desnecessários.
Estas foram apenas algumas das situações extraídas das narrativas familiares,
quanto à comunicação da deficiência, informação que deveria ser anunciada com
responsabilidade e respeito, posto que “a pessoa sujeita a uma necessidade não reclama ser
protegida. Não quer nem o olhar piedoso, nem o isolamento: ela exige poder inserir-se em
uma rede de vínculos em que seja reconhecida como um igual em orgulho e dignidade”
(C
APONI
, 2000, p. 95). Afinal de contas, os profissionais envolvidos com este público
precisam entender que o outro é alguém capaz de reclamar, exigir, aceitar ou até negar a
assistência que julgamos ser a ideal e que muitas vezes “se acredita conhecer, sem sombra de
dúvida, aquilo que representa um bem para quem será assistido” (loc. cit.). É em nome desta
certeza, que, muitas vezes, os profissionais assumem uma conduta de prepotência absoluta,
que pressupõe uma obediência ilimitada dos pais, que faz sucumbir o espaço de diálogo, os
argumentos ou as razões das famílias envolvidas e prioritariamente interessadas, gerando a
total anulação do seu futuro e das suas expectativas de felicidade.
Criar este espaço de diálogo entre profissionais e famílias, especialmente no ato
da comunicação da deficiência aos familiares, exige posturas éticas da equipe de especialistas
envolvidos, pois certamente muita coisa depende do que será dito (e de como será verbalizada
a informação), na medida em que a postura da equipe refletirá nas atitudes e no atendimento
destinado a estas pessoas. Sendo assim, minimizar traumas e decodificar as informações
técnicas de forma que a família possa compreender o que significa efetivamente ter no seu
contexto uma pessoa com necessidades especiais, já economizará padecimentos
desnecessários.
É a partir dos retratos, explicitados neste capítulo por meio da fala das famílias
que pretendemos elencar algumas categorias evidenciadas ao longo da pesquisa, e que irão
contextualizar e complementar o entendimento deste fenômeno e de seus desdobramentos no
cotidiano destes grupos familiares, com características tão particulares e distintas. É nesta
direção que construiremos o próximo capítulo.
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O interesse no conhecimento das famílias que possuem na sua constituição uma
pessoa com necessidades especiais em processo de envelhecimento, deve ser percebido muito
mais como o início de um diálogo: um fazer-se conhecer exercido pelas próprias famílias,
cujas narrativas constituem na verdade a base empírica sobre a qual desenvolveu-se a
apreensão teórica desta dissertação. A decisão de apresentá-las inicialmente não foi
involuntária, até porque é uma exigência do processo de investigação conhecer os sujeitos de
nossa pesquisa. No entanto, a mera exibição, por si só, não traz nada de inovador, além de
expor o contexto de dificuldades que muitas famílias brasileiras vivenciam cotidianamente. O
desafio posto, e que nos propusemos encarar, refere-se ao intuito de qualificar as relações
familiares destes grupos, aos quais particularidade de possuírem um membro com
necessidades especiais já garante um diferencial cujas infinitas manifestações devem vir a
público, a fim de serem problematizadas como temáticas das famílias dirigidas às políticas
públicas.
Para tanto, foi necessário entrar na casa destas famílias, conhecer suas vidas, e
sobretudo prestar atenção nesta população que, na relação de troca, demonstraram singular
receptividade. Sarti (2003) diria que o fato de terem sido escolhidos para fazer parte da
pesquisa é visto como deferência e, em resposta a isto, essas pessoas abrem as portas de suas
casas, e quando não os segredos de suas almas.
Este elo de confiança, demonstrado no momento das entrevistas, denota sobretudo
uma experiência diferenciada na vida destas pessoas, pois instala a oportunidade da fala, da
verbalização de angústias e necessidades e, principalmente, de serem escutadas. As
entrevistas são a expressão ímpar do reconhecimento de sua existência por alguém que,
embora estranho ao seu mundo, partilha de preocupações que, mesmo distintas, possuem
pontos de identidade. Nesta perspectiva, “o caminho escolhido foi dar-lhes a palavra, ouvir
sua versão” (Y
AZBEK
, 1995, p. 84).
Nesta direção, construiremos este capítulo descrevendo inicialmente o cotidiano
de lutas destas famílias, que perpassa diferentes esferas sociais, haja visto que o marco central
91
dos discursos são as constantes formas de resistência e as batalhas travadas e vividas
diariamente, como se fosse necessário “matar um leão por dia, ou por minuto”.
Junto a estas reflexões, iremos pontuar, ainda neste tópico, a relevância da
compaixão neste processo. Muito além de ser caracterizada como um sentimento, a
compaixão é a sublimação e a materialização de uma virtude que, para Comte-Sponville
(1995, p. 118) é a simpatia na dor ou na tristeza, é participar do sentimento do outro. Nesta
direção, “compartilhar o sofrimento do outro não é aprová-lo nem compartilhar suas razões,
boas ou más, para sofrer; é recusar-se a considerar um sofrimento, qualquer que seja, como
um fato indiferente, e um ser vivo, qualquer que seja, como coisa.”
As famílias das pessoas com necessidades especiais travam duelos cotidianos,
pela ausência de políticas de proteção social que atendam devidamente esta população,
percebem-se como únicas responsáveis pelo cuidado dedicado a este membro, cuidado
evidenciado basicamente como de responsabilidade da figura feminina. Competem a ela o
cuidado, e a atenção dada a este membro mais fragilizado. Nesta lógica, pretenderemos
construir o tópico seguinte.
Ainda objetivando a compreensão deste fenômeno, iremos enfocar a ausência de
políticas sociais, que resulta no sentimento de desproteção como risco e em temores que estão
enredados e presentes neste universo familiar.
Trata-se de famílias cuja experiência de ter em seu convívio uma pessoa com
necessidades especiais em processo de envelhecimento já denota algo de inovador, e que
simultaneamente reflete a coragem de desafiar o novo, o diferente, o difícil. Parafraseando
Comte-Sponville (Ibid., p. 63),
a coragem não se refere apenas ao futuro, ao medo, à ameaça; refere-se
também ao presente, e sempre está ligada à vontade, muito mais do que à
esperança. [...] Só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que
depende de nós. É por isso que a esperança só é uma virtude para os crentes,
ao passo que a coragem o é para qualquer homem. Ora, o que é necessário
para ser corajoso? Basta querê-lo, em outras palavras, sê-lo de fato. Mas não
basta esperá-lo, apenas os covardes se contentam com isso.
É tentando espelhar a coragem destas famílias que potencializamos este capítulo,
sobretudo levando em consideração a motivação da compaixão nas relações estabelecidas.
92
3.1 A expressão de um cotidiano de lutas
Reportarmo-nos a estas famílias significa compreendê-las na sua expressão
visceral de lutas, em que se faz necessário o hasteamento diário de uma bandeira de
sobrevivência, de resistências aos óbices impostos. Estas resistências que advém da vida
cotidiana (F
ALCÃO
, 1987), que é heterogênea e hierárquica e que se altera em função dos
valores de uma época histórica, como também dos interesses e necessidades dos indivíduos.
Pensar desta forma é perceber que, no espectro da vida cotidiana, o indivíduo se
reproduz diretamente enquanto indivíduo e reproduz de forma indireta o complexo social. “É
na vida cotidiana que o homem aprende as relações sociais e as reproduz enquanto
instrumento de sobrevivência” (Ibid., p. 25), embora o homem não seja apenas sobrevivência,
singularidade, mas também um ser genérico. E é na “vida cotidiana, [que] este ser genérico,
co-participante do coletivo, da humanidade, se encontra em potência, nem sempre realizável”
(loc. cit.).
Nem sempre realizável
, pois há fatores consideráveis que devem ser identificados
nos limbos programáveis do sistema em que vivemos e do qual fazemos parte, no qual a vida
parece reduzida ao cotidiano e este parece simbolizar um eterno retorno das desigualdades
que hodiernamente presenciamos. Isto que, em tese, nos aterroriza por configurar-se
indelével, para Netto (1987, p. 89) reporta-nos à necessidade de considerarmos que a
tomada da realidade de que a cotidianidade contemporânea é um nível
constitutivo supõe a reconstrução reflexiva da sua ontologia, da totalidade
concreta própria da sociedade burguesa madura. E a caça mais pertinaz das
mediações é um imperativo para que a dissolução da opacidade imediata dos
“fatos” cotidianos não redunde numa indiferenciação que substitui as
passagens e conversões efetivas e reais que mantém tenso o tecido social.
Trata-se de reconhecer e apostar na essência humana, não como aquilo que
sempre esteve presente na humanidade, mas sim na “realização gradual e contínua das
possibilidades
imanentes à humanidade, ao gênero humano” (H
ELLER
, 1985, p. 4). Tais
possibilidades se materializam por meio dos valores que não são aniquilados, ou perdidos de
modo absoluto, por valores éticos sempre ressurgidos, num processo definido pela autora
como a “
invencibilidade da substância humana
, a qual só pode sucumbir com a própria
humanidade, com a história” (H
ELLER
, 1985, p. 10). Nesta direção,
93
A invencibilidade da substância e o desenvolvimento dos valores - dada
como possibilidade inclusive em uma situação de desvalorização -
constituem a essência da história, porque a história é contínua apesar de seu
caráter discreto e porque essa continuidade é precisamente a substância da
sociedade (Ibid., 1985, p.14).
Diante disto, é preciso ressaltar que não estamos aprisionados em uma regra rígida
e imutável, imposta mecanicamente pelas determinações culturais do sistema econômico. Ao
contrário, são interesses e necessidades que navegam com o decurso histórico dos processos
sociais também no cotidiano das famílias que possuem uma pessoa com necessidades
especiais em processo de envelhecimento. Afinal, o enfrentamento deste fenômeno requer da
família a superação de outras dificuldades, além das impostas pela hegemonia da cultura
mercantil, exigindo a disponibilização de uma energia adicional para gerenciar esta nova
demanda, por meio da administração da dor, do sofrimento, e da desesperança.
Não pretendemos, neste espaço, construir uma visão apocalíptica, mas sim
referendar os discursos das famílias e as situações de luta que vivenciam cotidianamente.
Situações estas, que são, muitas vezes, limítrofes e que beiram a desqualificação social
(P
AUGAM
, 1999) ou uma certa forma de exclusão relativa, em que até se permite analisar a
forma constitutiva e o processo no qual este segmento está inserido marginalmente, além de,
por vezes, colocá-lo como foco central e parte integrante da sociedade.
Enfatizamos estes sentimentos
a priori
apocalípticos, transformados em
resignação e renúncia a qualquer perspectiva de felicidade, subtraindo-os do próprio relato das
famílias, quando questionamos: quais são os seus sonhos, seus desejos, com relação àquela
pessoa? E, de uma forma quase que generalizada, obtivemos como resposta referências, ora
simbólicas, ora concretas como a da família de
Pedro Henrique
:
“a gente não pode esperar
muita coisa. A gente sonha que ele continue bem, permaneça com saúde, já é um bom
desejo”
. Ou ainda, como no relato da família de
Eduardo
, que não espera
“mais nada, só
espero saúde pra mim e pra ele”.
E também o relato da família de Rebeca, que compartilha
que
“muito sonho a gente não tem, só pede a Deus saúde [...] o resto tá bom”.
Estes anseios culminam na simbolização de tarefa cumprida, e agora trata-se de
uma espera, uma vigília, pois
“tudo que era pra ser feito, já foi feito [...] não tenho desejo
nenhum”
(Família de
Fernando
).
Outra situação evidenciada refere-se à abnegação dos pais, por exemplo, em favor
da necessidade do filho, como é o caso da família de
Cleide
. Os genitores têm parte de seus
referenciais de vida e de valores deslocados de seu território, bem como familiares que ainda
94
residem em outro município e, por isso, desejariam retornar ao local onde nasceram e onde
estão suas raízes. No entanto, reconhecem que, caso façam esta opção, sua filha ficará
desprovida de um atendimento social e educacional, pois terá rompido os vínculos
estabelecidos na Fundação Catarinense de Educação Especial,
“então agora tá na hora dela
viver um pouco do jeito dela”.
Desta forma, contextualizar o sentido de tais escolhas ou da renúncia a elas exige
recategorizar a noção de família, tomada aqui como expressão máxima da vida privada, pois
trata-se do
lugar da intimidade, construção de sentidos e expressão de sentimentos, onde
se exterioriza o sofrimento psíquico que a vida de todos nós põe e repõe. É
percebida como nicho afetivo e de relações necessárias à socialização dos
indivíduos, que assim desenvolvem o sentido de pertença a um campo
relacional iniciador de relações includentes na própria vida em sociedade. É
um campo de mediação imprescindível (C
ARVALHO
, 2003, p. 271).
É no espaço da família que as dificuldades se materializam, e não é em vão que a
grande maioria dos anseios deste grupo diz respeito à saúde das pessoas com necessidades
especiais, posto que parte delas apresenta uma fragilidade e vulnerabilidade maior e
diferenciada em relação às outras pessoas, no tocante à sua condição física. Esta
particularidade está associada à própria deficiência mental que, por vezes, traz um quadro
clínico de degeneração de alguns membros, ou propicia constantes crises convulsivas que
demandam cuidados especiais. Estes cuidados têm a propriedade, inclusive, de organizar a
vida da família: em que local devem residir? Quem deve trabalhar na família? Quem terá que
cuidar desta pessoa? Todas as respostas dependem das necessidades e possibilidades da
pessoa com necessidades especiais.
Exemplo disto foi a mudança de endereço da família de
Clóvis
que, antes do seu
nascimento residia em uma casa própria, numa localidade considerada tranqüila pela irmã, e
que, após a constatação da deficiência, vendeu o imóvel e foi morar de aluguel numa
residência próxima ao hospital da cidade. A necessidade da mudança foi decorrente das
constantes crises convulsivas e dos episódios de pneumonia que
Clóvis
apresentava.
Enfim, preocupações que demandam decisões importantes, que pedem uma
atenção não momentânea da família mas, na maioria dos casos, um cuidado que perdura sem
cessar e tende a aumentar ao longo dos anos, posto que não há uma perspectiva de
independência deste sujeito; ao contrário, muitos tornam-se mais dependentes de cuidados
especiais.
95
Observamos esta dependência no relato da família de
Pedro Henrique
, cujo
quadro de crises convulsivas iniciou-se em tenra idade (apenas 1 ano de vida):
“ele dava
convulsões fortíssimas, eu ia pro pronto socorro, ficava o dia todo lá [...] Aí começou a luta,
não parou mais”.
A partilha da dor pelos membros da família também é verificada, pois
“teve
uma noite que a gente ficou com ele no hospital, a noite toda. Andamos muito de hospital a
hospital, o Pedro Henrique tinha muitas convulsões, sofria muito, e nós também”.
Deste modo, a ação destas famílias responde a uma reflexão ético-política que
eqüivale à análise e à prática direcionadas às emoções e aos anseios, ou seja, é forçoso
considerar que a humilhação, o medo, o sofrimento, e o ódio, como também a felicidade, são
a entretela da organização deste grupo e da moralidade (S
AWAIA
, 2003). Neste sentido, para
Heller (1985, p. 5-6), a moral
é o sistema das exigências e costumes que permitem ao homem converter
mais ou menos intensamente em necessidade interior - em necessidade moral
- a elevação acima das necessidades
imediatas
(necessidades de sua
particularidade individual), as quais podem se expressar como desejo, cólera,
paixão, egoísmo ou até mesmo fria lógica egocêntrica, de modo que a
particularidade se identifique com as exigências, aspirações e ações sociais
que existem para além das casualidades da própria pessoa,
“elevando-se”
realmente até essa altura.
A moralidade motiva e fundamenta muitas ações e respostas destas famílias, seja
no interior dos seus lares, seja no embate direto da luta cotidiana por serviços dignos. É o caso
da situação relatada pelos familiares de
Clóvis
que, numa das circunstâncias de crise
convulsiva, e febre alta, em razão da pneumonia, foram tratados numa instituição hospitalar
com descaso e desrespeito, especialmente pelo fato de não proporcionarem as condições
adequadas para serem atendidos. Deparam-se com precariedades múltiplas, inclusive de
locomoção e de permanência na fila de espera para ser atendido. A equipe da instituição
ordenava que
Clóvis
deveria ser colocado numa cadeira, o que era impossível, tendo em vista
a deficiência do mesmo, que possui um ângulo de abertura nas pernas que inviabiliza o sentar,
em qualquer lugar, sendo imprescindível a utilização de uma maca.
Ao relatar esta situação, a irmã de
Clóvis
disse-nos que, quando necessita destes
serviços, está
à mercê
do acaso, que define se a pessoa responsável pelo atendimento
“é
simpática, se tá de bem com a vida”
, como se o direito de ser atendido dignamente fosse
subordinado ao
estado de humor ou espírito
de quem está à frente destes atendimentos.
Estamos retratando contra-valores, já que Heller (1985, p. 5) demonstra que valor é uma
categoria ontológico-social e, como tal, algo objetivamente social. “É independente das
96
avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante de
relações e situações sociais”, situações estas adensadas pelas dificuldades criadas pela
ausência de serviços públicos especializados, como observamos no relato da família de
Cleide
. Eles moravam num sítio, onde não havia nenhum tipo de recurso para tratar de sua
filha, nem tampouco havia transporte para locomoção desta família em busca de atendimento
adequado.
“Eles mandavam a gente pra cidade, mas quem tinha condições de fazer isto?
Ficar sem trabalhar? Nós éramos pobres, e naquela época era tudo mais difícil”.
Episódios semelhantes foram vivenciados pela família de
Gustavo
. Não foram
raras as situações em que a genitora teve que travar embates para conseguir ser atendida de
forma minimamente condizente com a necessidade do filho.
Em função das crises convulsivas, a genitora, instruída pelo médico, procurava
constantemente o hospital, pois o médico pretendia pesquisar os efeitos destas constantes
crises. Ao chegar na instituição hospitalar, mesmo obedecendo as recomendações do médico,
a genitora era impedida de entrar no consultório, e tinha que travar constantes discussões, para
ver os direitos de seu filho atendidos,
“o que eu lutei [...] para defender o meu filho, eu viro
numa fera”.
A genitora, contando estas histórias, lembra, com pesar, que foram lutas travadas
diariamente e nas mais diversas esferas: no hospital, e também no transporte coletivo, em que
tanto o motorista como o cobrador, por exemplo, não tinham a sensibilidade ou a capacidade
de compreender que, carregar no colo uma criança de 11 anos, cujo corpo não tem os mesmos
movimentos e a agilidade de outra criança, despende um cuidado diferenciado e uma atenção
redobrada.
“É um teste de paciência, de fé e de amor”
, como desabafa a genitora.
Estes testes são repostos em todas as situações, a exemplo da família de
Gustavo
,
cuja narrativa, retratada aqui, contribui para demonstrar que o cotidiano destas famílias não é
singular nem inédito mas, ainda assim, é sobretudo especial, seja pela coragem e dedicação,
seja pelos imensos e inauditos desafios. São exemplos de dedicação, como a necessidade de
realizar trocas de fraldas, visto que
Gustavo
não possui o controle dos esfíncteres,
“porque
eles não pedem [...] eles fazem na fralda, e tu tens que limpar [...] Eu já não sinto mais
cheiro, já não sinto mais nojo, mais nada, já limpo [...] boto a fralda no tanque, vou lavar as
minhas mãos, passo álcool, e vou pra frente, a gente acostuma”.
Esse ritual diário da genitora
foi naturalizado como uma tentativa de levar a vida pois, se esta atividade não fosse
responsabilidade dela de quem seria?
97
A preocupação de alimentar
Gustavo
que, em momentos de crise convulsiva,
vomitava ou não se alimentava adequadamente, sendo necessária a complementação com
vitaminas para sua sobrevivência, é outro tema aparentemente banal, mas que exige grande
mobilização da mãe. Requer recursos subjetivos e objetivos que demandam um esforço sobre-
humano e que dependem exclusivamente desta família, da maneira como esta tem de superar
seus óbices, suas limitações.
Os óbices preenchem os dias e as noites. Noites em que se vela o sono do filho,
seja para mudar de posição na cama, em função da escoliose e para não apresentar escaras,
seja em atenção à possibilidade de uma crise convulsiva. A genitora relata que pernoita no
sofá da sala, ao lado do quarto do filho, para que em
“qualquer movimentinho, possa socorrê-
lo. Eu fico com o olho fechado, mas não durmo”
. Isso acontece todos os dias, há mais de 37
anos.
O estado de privação estabelecido com a impossibilidade de dormir estende-se ao
fato de não poder ficar doente, nem experenciar momentos de prazer, e diversão, como as
festas, selecionadas e, na maioria das vezes, dispensadas pela mãe. Com relação ao primeiro
fato - a ausência do direito de ficar doente - houve uma situação em que a genitora sofreu um
acidente e quebrou o braço e, quando compareceu a uma consulta com
Gustavo
, o profissional
disse-lhe que ela deveria prestar muita atenção ao caminhar nas ruas, pois
“tu não pode ficar
doente, quem irá cuidar do teu filho?”
A dinâmica da família, como o trabalho remunerado e temporário desenvolvido
por esta mãe, funciona dentro das necessidades de
Gustavo
, do horário em que o mesmo está
na
FCEE
, ou ainda de forma a permitir que haja um contato freqüente, seja para realizar a troca
de fraldas, seja para dar o café da tarde.
A ausência do homem/provedor (S
ARTI
, 2003, p. 103) faz com que o trabalho
desta mulher, desta mãe, assemelhe-se ao masculino, que configura a potencialidade de
realização e afirmação individual, pois adquire “um sentido particular de honra, portanto, de
afirmação de si enquanto indivíduo, porque, através do trabalho, ela tem a oportunidade de
reparar o ato condenado ou readquirir seu orgulho e amor próprio”, ao provar que pode cuidar
de seu filho, e fazê-lo dignamente.
Observamos que a ausência de condições materiais torna-se um obstáculo a mais a
ser enfrentado por estas famílias, ao passo que, nas realidades em que havia condições
financeiras de buscarem outras alternativas de atendimento, este processo não foi tão árduo,
ao menos no aspecto da existência de recursos, como foi o caso de
Armando
. Sua família
98
recorreu a um atendimento especializado em São Paulo durante 20 anos, tendo em vista que
semanalmente os genitores viajavam para este estado em busca da pseudo-cura. Somente com
a criação da Associação de Pais dos Excepcionais -
APAE
, em Florianópolis, a família optou
por dar continuidade ao atendimento neste município.
Não pretendemos fazer um paralelo entre os que têm recursos financeiros e os que
não têm, como instrumento para avaliar e dimensionar o processo de vivência desse fenômeno
no contexto das famílias, pois compreendemos que isto não se configura como um
delimitador de águas. Mas acreditamos que a condição de vulnerabilidade econômica pede o
investimento de uma energia adicional na superação destas mazelas.
Um outro aspecto observado foi o da família de
Rebeca
, no tocante à
agressividade da mesma, posto que os familiares buscaram outras formas de atendimento
quando viram a sua mãe ser agredida fisicamente.
“Enquanto ela não agredia a mãe, a gente
foi deixando; no momento que ela começou a agredir a mãe, a gente começou a ficar
preocupado”
. Em uma das situações,
Rebeca
“tirou tudo de dentro do quarto dela e quebrou,
jogando as suas coisas na rua [...] ninguém conseguia segurar ela, achei que ela iria matar a
mãe”.
A busca da família por um atendimento especializado se deu em razão de se
sentirem ameaçados fisicamente e de desconhecerem qual seria a forma adequada de resolver
a situação. Ressaltamos este caso para demonstrar que nem toda pessoa com deficiência
apresenta a necessidade de uma intervenção psiquiátrica, e que o caso da
Rebeca
, no universo
pesquisado, é o único. Contribui, assim, para desmistificar a crença de que os deficientes
mentais são incapazes de convívio social. Muitos deles ficam restritos ao atendimento
neurológico no que tange à demanda de sua condição especial. Diante disto,
cai por terra
a
idéia de equiparar deficiência mental e doença mental.
Para isto, precisamos reconhecer não apenas a relevância do atendimento
direcionado ao grupo familiar, mas também a importância de oferecer uma atenção singular
que aponte em duas direções:
por um lado as especificidades de cada família considerando a história, a
estrutura, a dinâmica, bem como a inserção das famílias no contexto social.
Por outro lado deve-se avaliar a realidade e as possibilidades das famílias
para usufruírem de atenção que lhes são propostas (M
IOTO
, 1997, p. 26).
Desnudar a realidade das famílias das pessoas com necessidades especiais em
processo de envelhecimento, nos reporta à necessidade premente de compreender também as
99
motivações das relações sociais estabelecidas, inicialmente, no espaço privado da família, em
que o cuidado com este membro, não raro é fomentado pela moral
29
, pela missão de zelar por
este ser.
A análise das narrativas impôs, nesse sentido, um outro tema adicional, que é o fio
condutor da relação familiar com os indivíduos com necessidades especiais, ou seja, a
compaixão. Em torno dela é que se unificam as condutas, as expectativas, enfim, que se
confere sentido a esta contingência.
Ter um filho deficiente mental e/ou com severas limitações físicas decorrentes
dos quadros das síndromes e da paralisia cerebral, obrigatoriamente suscita profundas
motivações expressadas nos relatos dos familiares, que evidenciam, ao mesmo tempo, a
piedade, a compaixão, e a tristeza, e desenham todo o processo de destituição e abandono
falas que inicialmente apontam o ressentimento e a tristeza pelo nascimento desta criança e
que, posteriormente, demonstram a aceitação de que isto
lhes estava reservado
. Observamos
por exemplo esta informação na família de
Rebeca
:
“a gente ficou triste, mas o que a gente
podia fazer?”
Processo semelhante foi observado na família de
Armando
, mas com uma nuance:
a contingência transformou-se em necessidade. Sua genitora concebe o nascimento do filho
como uma
missão de Deus
, como se ela necessitasse disto, pois do contrário sua vida seria
muito fácil, em virtude da família ter excelente situação financeira.
“É porque, assim, eu
tinha que ganhar ele, Deus viu que eu tinha que ter uma coisa, né? Que eu não ia ter essa
vida tranqüila, eu precisava ter algum tipo de trabalho”.
Nas palavras da genitora,
evidenciamos que há uma justificativa para o nascimento de seu filho, pautada numa forma de
pagamento ao sagrado pelos demais bens que possui. Era necessário este infortúnio, a fim de
ficar em paz consigo mesma e na relação com o divino.
A genitora acrescenta ainda a este relato a concepção de sua outra filha, que certa
vez disse:
“Mamãe, se a senhora não tivesse o Armandinho, a senhora tava num mar de
rosas”.
Esta compreensão da irmã de
Armando
representou, na vida de sua mãe,
29
Há que distinguir a esfera da moralidade da ética, de forma que sejam identificados os elementos pertencentes
a um campo e outro, seja porque são efetivamente distintos, seja porque expressam muitas noções fronteiriças,
razão de ambigüidades e contraditoriedade. Valendo-se da distinção feita por Hegel, Paiva (1996, p. 105-6)
afirma que “A ética constitui o momento objetivo da vivência e da experiência dos valores; consiste, assim, no
conjunto de valores que são criados por determinada comunidade. Nesse sentido, a moral expressaria o momento
subjetivo de um comportamento ético; em outras palavras, moral seria a capacidade do indivíduo de formular
suas próprias opiniões e pautas de comportamento (com base nos valores éticos estabelecidos) e optar por aquele
que considerar mais correto e justo”.
100
ressentimento e decepção diante dos demais familiares, sentimentos materializados na
seguinte frase:
“Tu imagina, foi a minha própria filha que disse isso, imagina os outros”.
Com tênues diferenças, este processo de inércia a respeito do que fazer também
foi registrado na família de
Gustavo
. A sua avó materna disse para a mãe:
“se o médico disse
que ele não iria ficar bom mesmo, porque tu ainda vai te matar, fazendo fisioterapia, dando
remédio?”
A genitora, em contrapartida, justificou suas ações através do valor da vida de seu
filho, visto que
“pelo meu filho, a gente dá até a vida, a gente vai fazer tudo o que é possível,
a gente quer ver ele junto da gente, mas não quer ver ele no cemitério”.
São embates e justificativas travadas no interior das famílias, que ora clamam pelo
bem-estar desta pessoa, ora sentem-se desmotivadas em continuar neste contexto de lutas, por
se sentirem desamparadas.
Reiteramos que não objetivamos, na construção destas reflexões, avaliar os
procedimentos adotados pelas famílias com relação a estes sujeitos, nem tampouco apontar
uma escala de valores entre erros e acertos. Pretendemos, isso sim, traduzir as expressões
contidas no cotidiano dessas famílias e que por vezes nos causam constrangimentos e nos
motivam a atitudes contraditórias: ora somos movidos pelo sentimento da piedade, ora
mobilizados pela virtude da compaixão
30
.
A reação emocional das famílias e indivíduos com necessidades especiais aos
desafios cotidianos é apenas fruto da motivação subjetiva do sentimento de piedade, e não
chega a sugerir mudanças relevantes que possam impactar e reorientar as condutas
profissionais e/ou não o estabelecimento de um padrão de qualidade para os serviços públicos
de apoio, tratamento e proteção para as pessoas com necessidades especiais e suas famílias,
no âmbito das políticas públicas. Como bem distingue Comte-Sponville (1995, p. 118):
A piedade é uma tristeza que sentimos diante da tristeza do outro, o que não
salva esta, que continua, nem justifica aquela, que se acrescenta a esta. A
piedade apenas aumenta a quantidade de sofrimento no mundo, e é isso que
a condena. Para que acumular tristeza sobre tristeza, infelicidade sobre
infelicidade?
30
O tema da compaixão é de grande complexidade no debate filosófico, portanto sua discussão extrapola em
muito os objetivos dessa dissertação. Entretanto, vale sinalizar que as relações aqui apresentadas não se filiam à
tradição liberal, que é demarcada por Comte-Sponville (1995, p. 118) nos seguintes termos: “Dos estóicos a
Hannah Arendt (passando por Spinoza e por Nietzsche), seria infindável evocar os críticos da compaixão ou,
para utilizarmos a palavra geralmente empregada por seus detratores, da piedade”. Caponi (2000) é partidária da
crítica à compaixão e, embora suas reflexões tenham contribuído em diversos momentos para análise do estudo
em tela, neste tema as conclusões não foram partilhadas.
101
No território da ambivalência entre sentimento e virtude, onde a compaixão
“encontra uma parte de sua fraqueza e o essencial de sua força”, Comte-Sponville (Ibid., p.
120) indaga: “Não poderá existir também uma espécie de compaixão, senão alegre, pelo
menos positiva, que seria menos sofrimento suportado do que disponibilidade atenta, menos
tristeza do que solicitude, menos paixão do que paciência e escuta?
Vale lembrar, como bem alerta o autor, que embora a compaixão seja ao mesmo
tempo sentimento e virtude, há que distingui-la da piedade sem esquecer seus fundamentos
morais, “para não a rejeitarmos tão depressa assim” (Ibid., p. 115). Sua recomendação aponta
que podemos ler nos dicionários que o contrário de compaixão é “dureza, crueldade, frieza,
indiferença, secura de coração, insensibilidade” (loc. cit.) e que, portanto, “A vida é difícil
demais e os homens são infortunados demais para que esse sentimento não seja necessário e
justificado”.
Argumentando contra os que pretendem nos levar a repugnar a compaixão e a
piedade, reconhece:
Como se não fosse o nosso desejo mais vivo, mais natural, mais espontâneo
nos livrarmos dela! Quem não se fartaria do seu próprio sofrimento? Quem
não preferiria esquecer o dos outros ou ser insensível a ele? [...] Viveríamos
melhor sem a piedade, pelo menos os que vivem bem viveriam melhor? Mas
esse conforto é a finalidade? [...] A compaixão se opõe diretamente à
crueldade, que é o mal maior, ao egoísmo, que é o princípio de todos
(C
OMTE
-S
PONVILLE
, 1995, p. 122).
Reconhecida em seu atributo de virtude ética (e portanto não apenas como
manifestação equivalente à piedade), a compaixão se nutre da razão, fundamentalmente.
Desta forma, “só tem sentido entre iguais, ou antes, e melhor, ela
realiza
essa igualdade entre
aquele que sofre e aquele (ao lado dele e, portanto, no mesmo plano) que compartilha do seu
sofrimento” (Ibid., p. 127 - grifo do autor).
Pressupondo a igualdade como parâmetro, a compaixão não existe sem respeito,
sem o reconhecimento da equivalência de direitos e da justeza dos seus princípios, ainda que,
como afirma Kant, não seja um dever senti-la. Ainda assim é dever de todos “desenvolver em
si a capacidade de senti-la” (apud C
OMTE
-S
PONVILLE
, 1995, p. 128). Esta recomendação é
oportuna sobretudo para os profissionais que lidam com a problemática da pessoa com
necessidades especiais, uma vez que, ao recusarem a piedade, considerada depreciativa ou
insultante, acabam por perder a capacidade de compaixão. Esta recusa a piedade e, em
conseqüência, pode levar a atitudes de indiferença, desrespeito, alheamento, prepotência e
desprezo. Nesta perspectiva, Jurandir Freire (2000, p. 79 - grifo do autor) nos explica que:
102
o alheamento consiste numa atitude de distanciamento [...] de
desqualificação do sujeito como ser moral
. Desqualificar moralmente o
outro significa não vê-lo como agente autônomo e criador potencial de
normas éticas ou como um parceiro na obediência a leis partilhadas e
consentidas ou, por fim, como alguém que deve ser respeitado em sua
identidade físico-moral [...] diria que a conduta indiferente corresponde a um
estado psíquico em que a impiedade não é reconhecida como tal [...] No
estado de alheamento, o agente da violência não tem consciência da
qualidade violenta de seus atos.
Tal conduta pode ser identificada no depoimento da família de
Pedro Henrique
acerca da primeira intervenção profissional, que desmotivou qualquer sentimento de
esperança com relação ao desenvolvimento da criança, posto que, após passar por uma junta
de profissionais da área da saúde, receberam a informação de que
Pedro Henrique
não iria
caminhar, nem tampouco sentaria. Contrariando as expectativas, após um ano de trabalho
intensivo em várias sessões de fisioterapia,
Pedro Henrique
começou a andar e conseguia
sentar-se.
Romper com a cultura da impiedade e da indiferença requer a combinação de uma
ação de Estado de novo tipo, que reconheça o direito e que ofereça a proteção especial de fato,
aliada à transformação radical na atitude dos profissionais, no que se refere à impregnação do
sentido da solidariedade. Comte-Sponville (1995, p. 128) é incisivo quando afirma que:
A compaixão, como a generosidade, pode assim justificar, por exemplo, que
se lute pelo aumento dos impostos, e por sua melhor utilização, o que seria
sem dúvida mais eficaz (e para muitos de nós mais oneroso, logo mais
generoso!) Isso não nos dispensa, por outro lado, de termos para com os
pobres ou excluídos uma atitude de proximidade fraterna, de respeito, de
disponibilidade à ajuda, de simpatia, em suma de compaixão - a qual, aliás,
pode se manifestar também, pois a política não basta a tudo, por uma ação
concreta de benevolência, no sentido de Spinoza, ou de solidariedade. Cada
um faz o que pode nesse sentido, ou antes, o que quer, em função de seus
meios e do pouco de generosidade de que é capaz. O ego comanda e decide.
Mas não sozinho, e é isso que significa a compaixão.
Como compromisso ético que fundamenta o conhecimento, a intervenção
profissional deve conter e expressar o apreço pelo público e por suas necessidades, seja qual
for o demandante ou a natureza da problemática em questão. Neste sentido, precisamos
potencializar o cotidiano destas famílias, a fim de que não sejam meras reprodutoras do que já
está posto e erroneamente caracterizado como definido e irremediável, visto que suas
estruturas, que foram consideradas essenciais, podem ser submersas nas profundidades, “para
aí continuarem uma vida inessencial do ponto de vista social global [enquanto] outras se
103
elevam, passando da inessencialidade à significatividade” (H
ELLER
, 1985, p. 3).
Compreendemos, no entanto, que a superação das situações de dificuldade, não está
diretamente associada ao simples desejo da família, mas também a uma necessidade elencada
e privilegiada social, econômica e culturalmente, sendo elas “os grandes túmulos da história,
mas igualmente seus berços” (loc. cit.). Diante disto,
Não podemos conhecer a meta da história, nem sua necessidade (se
interpretada sem as alternativas), caso em que sua representação seria
teleológica. Mas podemos estabelecer a possibilidade de um subseqüente
desenvolvimento dos valores, apoiar tal possibilidade e, desse modo,
emprestar um sentido à nossa história (H
ELLER
, 1985, p. 15).
É nesta direção que o cotidiano destas famílias deve ser resignificado, para que
ressurjam outras alternativas como, por exemplo, a questão da designação de um cuidado que
não esteja apenas sob a responsabilidade da figura feminina da família, posto que isto poderia
ser compartilhado por outros familiares, bem como com a presença efetiva do Estado como
legitimador da garantia dos direitos destinados à população.
Trata-se, nesta direção, de permitir histórias diferenciadas como as presenciadas
na família de
Clóvis
, em que o maior receio da mãe era falecer e repassar este cuidado a
quem? Quem poderia substituí-la nesta missão?
O processo entre a doença e o falecimento desta mãe foi vivenciado de forma
traumática pela família de
Clóvis
: de um lado estava a genitora, que intercalava momentos de
lucidez e senilidade, na preocupação de quem seria responsável pelos cuidados com o seu
filho. E, de outro lado, a família, que precisava reordenar a organização dos membros, em
virtude da necessidade deste indivíduo.
Foram momentos de dor relatados pela família, posto que a mãe era informada
constantemente de que este indivíduo não seria desamparado, visto que
“a missão é da
senhora, mas se um dia acontecer algo com a mãe, nós vamos ter que assumir esta missão
[...] Tudo que a gente podia ter feito por ela foi feito, e ela foi tranqüila com a missão dela
pronta, deixando pra família esta herança”.
Herança
que sobrecarrega a família, em razão da ausência efetiva do Estado na
viabilização e concretização de políticas públicas direcionados a esta população.
Herança
que
recai de forma mais freqüente sobre a figura feminina, tendo em vista que esta
problematização, a da designação da figura feminina como sendo
a pessoa naturalmente
escolhida
para realização dos cuidados, será o tópico que construiremos em seguida.
104
3.2 O cuidado como responsabilidade feminina
A pretensão de realizarmos uma pesquisa cujo sujeito central é a família, em tese,
já aponta um grande desafio para o pesquisador, no tocante à observação dos papéis
identificados neste espaço privado. Papéis que não são cristalizados, mas tomam diferentes
dimensões, conforme a demanda suscitada e imposta à família. No entanto, compreendemos
que, mesmo tendo como motivador para a alternância de papéis a realidade social, há fatores
culturais e históricos que desenham simultaneamente a elaboração das novas atribuições.
O objetivo de identificar estes papéis junto às famílias que possuem uma pessoa
com necessidades especiais em processo de envelhecimento visa cotejar a designação do
cuidado que, no contexto pesquisado, parece restrito à responsabilidade feminina. Relatos
evidenciaram que o fator gênero, por si só, bastou para determinar quem iria cuidar deste
membro familiar.
Neste sentido, precisamos compreender que a materialização do cuidado deu-se de
forma processual, já que a mulher, desde cedo, vem tendo sua personalidade construída com
base nas noções de relacionamento, ligação e cuidado, o que significaria uma
responsabilidade maior da mulher quanto à manutenção das relações sociais e ao papel de
prestadora de serviços destinados aos outros (L
YRA
, 2003).
Num primeiro momento da história, segundo Muraro (1994), estas situações não
eram identificadas, posto que não havia a cisão entre público e privado, e os seres humanos
organizavam-se dentro de uma lógica da partilha e da solidariedade, na qual o cuidado das
crianças, por exemplo, era compartilhado pelo grupo. Neste período da história, os papéis de
homens e mulheres não eram hierarquizados, e a mulher era especialmente valorizada, tendo
em vista que era por meio dela que se oportunizava a geração da vida.
No transcurso da história, a necessidade do homem sair em busca do alimento por
meio da caça fez com que as divisões de trabalho ficassem mais delimitadas e,
simultaneamente, a força física passou a determinar a supremacia masculina, em razão da
subsistência (R
AMIRES
, 1997). Ou seja, competia ao homem o espaço público da rua e à
mulher a permanência no espaço privado, que necessitava de cuidados e de um ordenamento
moral. Nesta direção,
Coube ao homem a não-participação em qualquer situação de cuidado; ao
contrário das mulheres, o âmbito de atuação masculina deu-se no público,
105
exigindo destes uma postura de enfrentamento de riscos e obstáculos. Seu
papel seria o de produzir e administrar riquezas, garantindo o sustento
familiar, além de garantir segurança e valores morais para a família.
[...] Essa polarização entre homens e mulheres e seus respectivos espaços de
atuação configuraram uma relação de dominação/subordinação que
ocasionou um “enquadramento” e a conseqüente limitação do poder de
participação feminina nas decisões sócio-políticas, assim como a supressão
da figura masculina como fonte de cuidado (L
YRA
, 2003, p. 82).
Esta contextualização do cuidado não se refere apenas a um tempo passado; ao
contrário, evidenciamos isto nos relatos familiares que, não raras vezes, faziam menção à
importância da irmã mais velha como substituta dos cuidados da genitora, no momento em
que esta vir a
faltar.
No relato da família de
Armando
, observamos que a rotina diária é definida em
razão das suas necessidades; o horário da mãe dormir, acordar, enfim, tudo é orquestrado
conforme a demanda do filho. Estamos, neste caso, nos referindo a uma mãe cuja idade é
superior a 82 anos e que, no seu discurso, expressa a angústia da incerteza de quem irá
assumir o seu papel posteriormente, assumi-lo de fato, integralmente, com todos os cuidados e
altruísmo que sempre lhe foram peculiares. Ou ainda, o pesar de não poder contar com uma
outra figura feminina, para repassar a responsabilidade da genitora com relação aos cuidados
dispensados a pessoa com necessidades especiais.
Percebemos isto especialmente na família de
Gustavo
, em que a genitora
verbaliza, entre lágrimas, sua maior frustração:
“porque, se eu tivesse uma filha... Irmã
sempre já é outra coisa, iria com certeza cuidar de Gustavo. Esta é a minha maior tristeza, a
de não ter tido uma filha mulher. O meu filho é muito querido, mas tu sabes, ele é homem”.
Diante disto, não podemos restringir a discussão acerca do cuidado como sendo
algo pontual e isolado, mas compreendê-la no seu paralelo com o mundo feminino, motivado
maciçamente pela mídia que, por meio das propagandas de novas bonecas, e casinhas,
incentiva as meninas desde cedo a terem habilidades no tocante ao cuidado com as crianças,
além do espaço físico da casa. Em contrapartida, aos meninos fica designado o espaço da rua,
sendo eles incentivados com brincadeiras que, na maioria das vezes, exigem habilidades
físicas, além de gerar um certo tipo de competição em que o enfrentamento de riscos aparece
como algo natural e desafiador. Com esta naturalização de papéis, percebemos que há uma
indissociada relação entre gênero feminino e cuidado. Por meio do exercício da maternidade,
o cuidado foi “naturalizado como ‘instinto feminino’, como instinto materno" (Ibid., p. 85).
106
Desta maneira, compreender a noção de cuidado é associá-la à dimensão do
universo feminino, da construção de uma ética feminina em que o homem, na maioria das
vezes, continua sendo poupado das ações de cuidado, como também se exclui desta demanda.
Nesta perspectiva, a mulher/mãe assumiu a figura de proa (S
OUZA
; T
AKASHIMA
,
1997), seja no estabelecimento e manutenção de redes de sociabilidade e solidariedade, seja
no universo cotidiano da reprodução. Compete a ela a maximização dos parcos recursos
disponíveis, transformando-os em bens e serviços, em prol do atendimento das necessidades
dos membros da família. Ou ainda, quando a mulher tem um vínculo empregatício, seu
tempo
livre
fica organizado conforme a demanda do lar, seja na manutenção de um espaço ordeiro,
seja na educação e cuidado dos filhos e do companheiro, visto que raramente esta figura
participa dessas atividades.
Um outro fator que Sarti (2003) aponta, refere-se à vulnerabilidade da mulher em
relação ao mundo externo que, na maioria das vezes, é mediado pelo homem. Para a autora,
assumir o papel masculino de provedor não se configura necessariamente como um problema,
posto que a mulher está acostumada a trabalhar; porém, o grande desafio é manter a dimensão
do respeito, legitimada apenas pela presença masculina. Isto significa dizer que, "mesmo nos
casos em que a mulher assume o papel de provedora, a identificação do homem com a
autoridade moral, a que confere respeitabilidade à família, não necessariamente se altera”. É
como se a aprovação da inserção feminina no mundo público, fosse sacramentada pela
presença do homem.
Observamos este paralelo na família de
Gustavo
, em que a genitora, viúva, tem
um dos filhos como sustentáculo, como o intermediador entre o seu mundinho privado, e a
sua inserção no espaço público. A mãe trabalha, luta para garantir para
Gustavo
melhores
condições de vida; no entanto, embora o esforço seja unicamente seu, ele tem uma outra
constatação, um outro valor, quando pode contar com a figura masculina de seu filho.
Atrelado a esta complexidade do papel da mulher/mãe, ainda está a figura da
pessoa com necessidades especiais em processo de envelhecimento, no caso específico desta
pesquisa, posto que a dimensão de sua condição especial já exige outras estratégias de
sobrevivência e de cuidados que, na maioria das vezes, fica sob a responsabilidade da genitora
ou de uma substituta. Exemplo disto encontramos na família de
Fernando
, na qual após o
falecimento dos pais, a irmã mais velha ficou responsável pela manutenção da vida deste
familiar, mesmo possuindo outros irmãos:
“homem já é mais difícil cuidar. Eles até vêm fazer
visita e tudo, mas fui eu que fiquei com ele, não dava pra contar com os meus irmãos”.
107
Reportamo-nos a Hannah Arendt (1983) para justificar o relato da irmã, tendo em
vista que a família se constitui como um universo de relações diferenciadas e as alterações,
motivadas interna ou externamente, atingem de modo distinto cada uma dessas relações, e
cada um de modo particular. Ou seja, a existência de uma pessoa com necessidades especiais
no âmbito da família impôs aos demais familiares a necessidade de responder a este
fenômeno, e isto ocorreu de forma diferenciada para cada membro.
Qualificando estas argumentações, Sarti (2003, p. 20) problematiza que um fator
preponderante e determinador destas posturas diz respeito à questão moral, já que há algumas
renúncias em favor do outro. Neste sentido, “a dificuldade aparece como uma incongruência
em seu universo moral, onde os elos de obrigações em relação a seus familiares prevalecem
sobre os projetos individuais”.
A concepção moral da família, corre paralelamente a esse processo: de um lado,
está o homem, que representa a autoridade, embora não cumpra muitas vezes o seu papel e, de
outro, a mulher, que acaba tendo intensificado o seu papel ativo nas decisões familiares. Isto
que, em parte, significa um avanço no espaço da mulher, demonstra ademais a não
modificação dos papéis masculinos, o que sobrecarrega de tal modo o cotidiano destas
mulheres que, nesta pesquisa, estão representadas pela mãe, pela irmã e pela sobrinha destes
sujeitos. É diante dele, do homem, "que socialmente tem sobre ela uma autoridade que não se
justifica a seus olhos, [que] ela exibe sua
disposição
de se virar, de
não precisar mais dele
,
como uma vingança, reiterando o
fracasso
dele e a frustração de ambos” (Ibid., p. 72).
Segundo Lisboa (2003, p. 124), não obstante as conquistas garantidas pelas
mulheres, bem como as mudanças ocorridas nos papéis de gênero, de uma forma geral, “a
estrutura das unidades domésticas ainda discrimina a mulher e a mantém numa condição de
subalternização, quer dentro de casa, quer no domínio público”.
Em muitas situações, são as mulheres que assumem sozinhas todas as
responsabilidades da casa, inclusive as despesas, o que é caracterizado como a “feminização
da pobreza”. São mulheres cujo fardo é demasiadamente árduo, conforme categoriza
Friedmann (apud L
ISBOA
, 2003, p. 125), em três dimensões:
fisicamente
, em termos de puro gasto de energia necessária para cumprir o
trabalho diário;
psicologicamente
, pela constante ansiedade para resolver os
problemas da subsistência diária, do isolamento social e da luta quase
constante que as mulheres empreendem com os homens; e,
materialmente
,
em termos de produzir o que a unidade doméstica necessita para sobreviver.
108
Podemos observar a materialização disto no discurso da genitora de
Gustavo
que,
relatando um episódio em que teve que acompanhar o seu filho em uma internação hospitalar,
desabafou:
“quando ele tinha 12 anos, precisou ficar internado, e eu fiquei doze dias e noites
ao seu lado, sentada numa cadeira. Fiquei toda inchada. Só uma mãe para fazer isto mesmo,
sem ninguém para te substituir”.
Compreender isto é analisar o contexto das famílias, que atualmente estão
configuradas de uma forma diferenciada, já que as redes de parcerias entre Estado e sociedade
têm apresentado uma proposição nostálgica. Ou seja, há uma supervalorização da família e da
sociedade, no tocante à necessidade de assumirem sozinhas os cuidados diretos junto a
crianças, idosos debilitados, enfermos e, nesta pesquisa especificamente, as pessoas com
necessidades especiais em processo de envelhecimento, posto que, para isto, o Estado devolve
a estas esferas o protagonismo que havia retirado delas há 50 anos.
Tal proposição esquece que a família mudou e que os valores e as
circunstâncias que mantinham a mulher presa ao lar, para assumir estes
encargos, alteraram-se sensivelmente. Hoje em dia, a realidade revela que a
maioria das famílias é chefiada por mulheres as quais, por isso (embora não
só), necessitam trabalhar fora de casa, o que requer a proteção social devida
do Estado (P
EREIRA
, 1996, p. 83).
Neste sentido, não podemos ignorar as novas configurações da família, que é
sobrecarregada com um peso árduo e repleto de expectativas, como se ela fosse a única
responsável pela produção e reprodução da vida dos indivíduos. Para Estivill (2000, p. 170),
é importante salientar o peso que a família, inicialmente dilatada, depois
nuclear, e agora dispersa, teve como núcleo pertencente ao bairro ou à terra;
na camaradagem, na amizade, nos intercâmbios recíprocos e em especial a
mulher, na cobertura das principais necessidades.
A edificação destes argumentos não vem favorecer um mero pleonasmo, mas sim
qualificar a relevância desta discussão, acerca daquilo que oprime e aprisiona a mulher, que é
a única protagonista e responsável pelo cuidado. A inoperância do Estado atribui não somente
à família, mas em especial à mulher, este
tomar conta
e
dar conta
das necessidades da sua
prole e dos sujeitos mais fragilizados, ou que demandam maiores cuidados no seu grupo.
É dentro deste contexto de incertezas públicas que balizaremos o tópico seguinte,
tendo como referência o universo destas famílias, lembrando que o fantasma da desproteção
com relação a esta população, assombra hodiernamente o cotidiano destes grupos específicos.
109
3.3 A desproteção social perpassando o universo familiar
O reconhecimento das necessidades especiais dessas famílias e indivíduos, como
matéria e conteúdo do direito social e da sua tradução em política pública e serviços
especializados, certamente não se sustenta apenas com base no apelo ou na motivação
emocional ou meramente moral. O campo dos direitos e das políticas sociais encerra-se na
esfera pública, sendo o Estado o principal agente e afiançador das garantias governamentais
decorrentes da afirmação jurídica dos direitos e, conseqüentemente, agente promotor do
financiamento e do desenvolvimento dos programas e ações sociais. Portanto, sendo matéria
da coisa pública, requer como elemento motivador a razão, o compromisso, a ética. É nesse
sentido que deve se processar o trânsito do campo do sentimentalismo e da piedade para o
universo das virtudes éticas, aqui encarnadas na compaixão, intensificada pelos valores da
igualdade, solidariedade e justiça social, que devem ser a base do sistema de proteção social
numa sociedade democrática de fato.
Dentre os filósofos humanistas, Rosseau é o mais invocado como o primeiro e
mais importante formulador do valor da compaixão (e da sua dimensão recíproca, a piedade)
como a
virtude-mãe
, da qual todas as demais derivam. “Difícil não evocá-lo, tanto soube ele
dizer, e foi um dos primeiros, o essencial”, reconhece Comte-Sponville (1995, p. 124 - grifo
do autor), que assim nos ensina:
É bom reler a passagem do
Segundo discurso
, em que Rosseau mostra que a
piedade é a primeira de todas as virtudes e a única natural. É que ela é um
sentimento antes de ser uma virtude, “sentimento natural”, diz Rosseau,
ainda mais forte por derivar sem dúvida do amor a si (por identificação com
os outros) e temperar, assim, em todo homem, “o ardor que tem por seu
bem-estar com uma repugnância inata a ver seu semelhante sofrer”.
Compaixão sem margem, ou sem outra margem que não a dor, pois tudo o
que sofre é, por isso mesmo, meu semelhante em alguma coisa. Compadecer
é comungar no sofrimento; e essa comunidade, que é inumerável, nos impõe
sua lei, ou antes, a propõe, e é uma lei de doçura:
“Faz teu bem com o menor
mal possível a outrem”.
Se é a piedade que nos separa da barbárie (M
ANDEVILLE
apud C
OMTE
-S
PONVILLE
)
é a compaixão que “permite passar de um ao outro, da ordem afetiva à ordem ética, do que
sentimos ao que queremos, do que somos ao que devemos ser” (C
OMTE
-S
PONVILLE
, 1995,
p.128-9).
110
Neste sentido, politizar a esfera subjetiva das famílias traz à tona a necessidade
premente de publicizar suas particularidades, como demanda primordial do Estado enquanto
promotor e legitimador dos direitos sociais. A simplificação e a prerrogativa atual de
transferência de suas competências à sociedade civil, família e mercado, denotam o grande
desafio posto, tendo em vista que o protagonismo dos direitos sociais não deve ser objeto de
renúncia por parte do Estado, seja frente a diversidade das demandas apresentadas
cotidianamente, seja porque é tido, no discurso neoliberal, como ineficiente e dispendioso.
Problematizar o espaço (em tese, privado) das famílias requer que recuperemos a
noção de risco social que, na cultura liberal e neoliberal, está atrelada a uma questão
meramente pessoal e individual, já que a superação das dificuldades depende unicamente do
sujeito ou, no máximo, da sua família, que deve assumir todos os ônus dessas mesmas
limitações. Nesta lógica, as “incertezas da vida, de acordo com o pensamento liberal, devem
ser enfrentadas e respondidas por cada um, de acordo com as suas possibilidades”. Esta
afirmação vai de encontro à de Marx (a cada um de acordo com suas necessidades). É
fundamental o compromisso da coletividade, aqui compreendida também como a participação
efetiva e não apenas abstrata do Estado, na superação dos prováveis riscos sociais
31
da
população.
Tendo em vista as particularidades do segmento social composto pelas famílias
das pessoas com necessidades especiais, especialmente aquelas em processo de
envelhecimento, cabe reconhecer a condição permanente de risco social vivenciado por elas
de forma veemente. As complexidades são ampliadas, quando, na expressão do seu cotidiano
de lutas, estes grupos vulnerabilizados percebem a ausência de um sistema de proteção social,
no qual poderiam e deveriam ser incluídos, de forma que fossem atendidas suas necessidades.
A quimera, e porque não afirmar, a realidade das preocupações que circundam e
ilustram o universo destas famílias, diz respeito à ausência de um sistema de proteção social
para atendimento de suas especificidades, mesmo não sendo desta forma que estes grupos
traduzem estes receios. São expressões traduzidas pela incerteza do cuidado com esta pessoa
31
A extensão da noção de risco para o domínio dos problemas sociais vem sendo utilizada tanto no debate
teórico das ciências sociais, quanto na formulação técnica das políticas públicas, especialmente na saúde e
assistência social. As contribuições essenciais de Ulrieh Beek a respeito dos riscos ambientais são reprocessadas
por Giddens (1999), nas suas análises referentes às profundas mudanças ocorridas nas instituições sociais, como
por exemplo o fato de que “os novos modelos de família ou de estilos de vida, tornam os resultados das decisões
individuais em certos domínios da vida quotidiana menos previsíveis e aumentam o grau de risco [...] Casar,
empregar-se, montar um negócio são acompanhados hoje de um grau de incerteza muito elevado quanto aos seus
resultados porque os contornos das instituições que suportam tais atividades não são mais os mesmos”
(H
ESPANHA
, 2002, p. 14).
111
com necessidades especiais, quando um de seus cuidadores, especialmente os genitores
maternos, falecem, como observamos nos relatos de quase todas as famílias.
As histórias destas famílias são marcadas, desde o nascimento desta pessoa com
necessidades especiais, visto que o processo de sua existência traz, desde sua infância, uma
necessidade premente de atender à sua condição especial, seja por meio da viabilização de
atendimentos educacionais adequados, seja na busca incessante de intervenções médicas
dignas. Enfim, várias são as expressões apontadas por estas famílias, que são complexificadas
com o envelhecimento desta pessoa com necessidades especiais, cuja especificidade de
condição demanda, ao lado dos cuidados anteriores, outros, que correspondem ao próprio
processo de envelhecimento.
São dificuldades que culminam na materialização de sentimentos como medo e
insegurança, conforme observamos na família de
Pedro Henrique
, em que esta situação ficou
explicitada na seguinte representação: o
“maior medo, a maior preocupação mesmo que eu
tenho, é a gente ir, e com quem ele vai ficar?”
Situação semelhante é a da família de
Cleide
.
No entanto, neste caso específico, a irmã mais velha já se responsabilizou pelos cuidados com
Cleide
, caso os seus pais faleçam, tendo em vista que a grande preocupação destes era a de
que
“quando a gente ir [referem-se ao falecimento], quem ficará com ela? É porque a gente
não é pra vida toda, não é pra sempre. Então quando a gente for embora, com quem ela vai
ficar?”
Em resposta a estas incertezas dos pais, a filha mais velha comprometeu-se com os
cuidados necessários para a vida da irmã, afirmando que:
“não precisariam se preocupar;
quando vocês partirem desse mundo para outro, ela vai ficar bem. Vai ficar comigo”.
No caso da família de
Rebeca
, a preocupação com relação ao falecimento da
genitora se materializou na organização legal dos cuidados dirigidos a esta pessoa, já que uma
das irmãs ficará com a sua curatela, e este processo já foi viabilizado.
Compreender os processos de insegurança e incerteza dos quais as famílias destas
pessoas são reféns reporta-nos não a uma atitude de condescendência frente a estas realidades,
mas de inquirição e compromisso técnico e político, que exige, de partida, sua qualificação
enquanto uma temática das políticas públicas que necessita de intervenções adequadas. Dizem
respeito, portanto, a situações de vulnerabilidade que se inserem no cotidiano destes grupos,
cuja conceituação de riscos foi redimensionada por Sposati (2001, p. 69) e, na sua nova
formulação,
não implica somente a iminência imediata de um perigo, mas quer dizer
também a possibilidade de, num futuro próximo, ocorrer uma perda de
112
qualidade de vida pela ausência de uma ação preventiva. A ação preventiva é
irmã siamesa do risco, pois não se trata tão-só de minorar o risco de forma
imediata, mas de criar prevenções para que este se reduza significativamente
ou deixe de existir.
Dentro desta lógica, não se trata de romper com a
sociedade de risco
, até porque é
inerente ao capitalismo, mas sim de reconhecê-los e de enfrentá-los em duas dimensões
complementares: a primeira se concretiza através de medidas e políticas públicas de caráter
preventivo, que eliminem as contingências sociais ameaçadoras e que contribuam na
minimização dos fatores sociais que fragilizam a capacidade de resistência dos indivíduos e
das famílias diante das situações de vulnerabilidade, que as colocam em ameaça ou risco; a
segunda atua por meio de ações reparadoras das seqüelas decorrentes da exposição contínua
às situações de risco, ameaça ou insegurança que afetam os segmentos populacionais, em
graus distintos, mas igualmente vulnerabilizadores.
No caso do universo entrevistado, há que ressaltar que a família e, neste caso
específico, a família das pessoas com necessidades especiais, tem sido a única responsável
pelo enfrentamento ou pela superação isolada do próprio risco.
A indiferença com relação a estas famílias embrutece o processo civilizatório da
humanidade e transforma o Estado em mero aparelho burocrático, ignorando as suas funções
sociais, em favor dos interesses mercadológicos que atualmente vêm assumindo a agenda
política e deteriorando os espaços garantidos e conquistados dos direitos sociais. Esta “visão
reducionista que cerca o debate sobre o Estado comprime e apequena qualquer projeto”
(N
OGUEIRA
, 2004, p. 182) contrário à noção atual, que entende os serviços públicos como
direcionados a atender a política econômica, e o Estado como óbice para a modernização, e
apregoa uma espécie de evolução em busca do pseudo-desenvolvimento econômico que se
idealiza na corrida pela obtenção do tão sonhado objetivo, que é pertencer à esfera do
Mundo
Desenvolvido
. “Em conseqüência, estabelece-se que, quanto menor for o Estado e quanto
menos investido de poderes e de atribuições estiver ele, melhor para a sociedade. O Estado
converte-se, assim, em algo vazio de densidade e sentido” (loc. cit.).
A ausência de segurança e a prevalência das incertezas nestes grupos fazem com
que situações vivenciadas por famílias como a de
Gustavo
revistam-se não de comoção, mas
especialmente de compaixão, como no caso do acidente que culminou no falecimento do
genitor de
Gustavo
. Uma das pessoas que presenciou o episódio do afogamento disse que as
últimas palavras proclamadas pelo pai foram um pedido de socorro, não objetivando apenas o
salvamento de sua vida, mas a necessidade de atender as demandas apresentadas pelo filho:
113
“Enquanto o meu marido estava morrendo, ele dizia para o meu vizinho, que estava junto
com ele: - Me salva, me ajuda, que o meu filho precisa de mim”.
O dado de realidade desta mãe, ou seja, o fato de sentir-se só, desamparada,
insegura, frente as necessidades de seu filho, denota uma preocupação a mais quanto à
possibilidade de seu falecimento. Essa possibilidade já motivou sua busca incessante, por uma
instituição que possa atendê-lo posteriormente. Isto, que de certa forma deveria tranqüilizá-la,
trouxe-lhe mais desconforto, pois percebeu-se inserida num contexto em que o suporte
primordial que deveria possuir, quanto aos cuidados dispensados ao seu filho, não está
disponível. Ou seja, não há serviços de retaguarda que atendam esta população, reforçando a
lógica de que a família ou o indivíduo devem assumir e dar respostas aos
seus infortúnios
, à
sua
cruz que, mesmo sendo pesada demais, deve ser carregada sem qualquer ajuda
.
Diante desta certeza, que se refere à incerteza dos atendimentos a esta população,
a genitora se vê numa travessia em que a ponte não dá acesso à outra margem e cujo trajeto,
mesmo sendo necessário, é duvidoso e incerto, apontando as mazelas e fragilidades deste
modelo de proteção social, ou melhor, de desproteção.
Os duelos travados pela genitora já remetem ao apelo divino, posto que não
vislumbra no mundo dos homens a resposta às suas necessidades e que, ao menos no universo
do sagrado, sente-se acalentada:
“todo dia de manhã eu penso assim: “Meu Deus, tu não vai
me levar e deixar essa criatura [refere-se a Gustavo]. Leva ele primeiro, que depois eu tô
pronta a hora que for [...] às vezes de noite, eu perco o sono, fico pensando, porque não é
fácil”.
Associada aos reflexos da desproteção social, está a nulidade da genitora
permanecer vivendo caso o seu filho faleça, posto que se percebe enquanto cumpridora de
uma missão cujos objetivos já teriam sido alcançados, ou seja, seu filho foi cuidado e agora
não lhe resta mais nada. Tanto é que os apelos ou as propostas dirigidas ao divino referem-se
a uma espécie de permuta, valendo-se do atendimento das necessidades da família, ou seja, do
receio da genitora em falecer antes do filho, cujas tentativas de acordo direcionam-se para
uma troca, em que a mãe
“reza todo o dia e [...] assim: “Meu Deus, se tu tiveres que me
levar, eu hoje, e meu filho amanhã, tu inverte, leva ele hoje, e eu amanhã”.
Neste sentido, é necessário garantirmos inicialmente um sistema de proteção
social que atenda o conjunto dos direitos de civilização “de uma sociedade e/ou o elenco das
manifestações e das decisões de solidariedade de uma sociedade para com todos os seus
membros” (S
POSATI
, 2001, p. 71). O objetivo é atrelar estas políticas ao cumprimento de
114
ações que garantam conjuntamente a preservação, a dignidade e a segurança de todos os
cidadãos, sendo esta última compreendida como
uma exigência antropológica de todo indivíduo, mas sua satisfação não pode
ser resolvida exclusivamente no âmbito individual. É também uma
necessidade da sociedade que se assegure em determinada medida a ordem
social e se garanta uma ordem segura a todos seus membros. As políticas
sociais representam um dos instrumentos especializados para cumprir essa
função (V
ILLALOBOS
apud S
POSATI
, 2001, p. 70).
As políticas sociais devem ser a materialização dos direitos, não simplesmente
desenhados nas leis, mas na relação direta de suas aplicações e legitimidade. Para Arendt
(apud C
ASTRO
, 1999), a existência de leis, direitos e outras dimensões da política, configuram
instrumentos que devem ser efetivados na prática, haja visto que a própria existência deles
requer seu exercício efetivo. Desta forma, a garantia de transpor o espaço privado em direção
ao público, muito mais que a publicização das problemáticas das famílias que possuem uma
pessoa com necessidades especiais, reporta-nos à cadeia de elementos normatizados pela ação
política.
Ampliar a esfera da
solidariedade familiar
, transportando-a para o espaço público,
torna-se fundante, posto que os elementos básicos de proteção oferecidos aos indivíduos por
meio das mediações primárias frente às agressões externas e à exclusão social, hodiernamente
em plena expansão, de antemão não respondem a todas as demandas apresentadas, e
restringem, desta forma, a intervenção apenas ao núcleo familiar. A transmutação da
intervenção restrita ao espaço privado para o público deve ser contemplada prioritariamente,
visto que
o antigo modelo de comunidade local com alto grau de solidariedade e
contatos primários tende a ser cada vez mais raro, quando não inexistente.
Esta mudança resulta da atual reorganização dos vínculos sociais, tornando
as relações entre os mais próximos menos endógenas do que no passado e
mais preocupadas com a autonomia dos indivíduos. Sendo assim, a
comunidade não pode contribuir efetivamente com a provisão social
requerida pelo pluralismo de corte liberal, a menos que ela regrida no tempo
(P
EREIRA
, 1995, p. 111).
E, como aponta a família de
Clóvis
com relação à preocupação da genitora em
falecer antes de seu filho, pois sabia que enquanto tivesse vida viveria em função das
necessidades apresentadas por ele:
“Mas eu disse pra mãe que nós iríamos nos virar, apesar
de todo mundo já ter as suas funções: meu marido trabalha, eu trabalho, meus filhos, minhas
115
cunhadas e irmãos também, então todo mundo tem a sua vida, a família é grande, mas numa
hora dessas ela se reduz”.
Neste sentido, compreender as condições atuais das famílias torna-se fundamental
e imprescindível, já que as demandas apresentadas atualmente denotam um crescimento e
uma exigência cada vez maior dirigida a estes grupos que devem suprir, além dos fatores
inerentes ao espaço restrito de seus lares, outros que se traduzem na ausência de emprego, no
aumento de condutas violentas e práticas que lucram com a criminalidade, na dependência
química, na fome, na ausência de perspectivas para a juventude, na desproteção na infância,
adolescência, velhice e deficiência, como também na crise dos “padrões coletivos de proteção
social pública e privada, decorrentes, neste último caso, da perda de capacidade socializadora
das famílias” (PAF, 2003, p. 5).
O esforço de articular estes contextos familiares não objetiva apenas tornar
público o universo das famílias pesquisadas, mas sim atentar para a problematização e o
patenteamento da classificação destas, como expressão de inauditas temáticas sociais
destinadas às políticas públicas, que está posta e que deve receber intervenções que primem
pela dignidade e eqüidade destes grupos sociais vulneráveis. É neste caminho que
construiremos as Considerações Finais deste trabalho em que propomos identificar e justificar
que
a família das pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento
deflagram uma incipiente problemática dirigida às políticas públicas.
É concluindo este
processo que pretendo estar “em paz com a minha guerra” (Camões).
116
C
C
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O que é um justo? É alguém que põe sua força a serviço do direito e
dos direitos, e que, decretando nele a igualdade de todo homem com
todo outro, apesar das desigualdades de fato ou de talentos, que são
inúmeras, instaura uma ordem que não existe, mas sem a qual
nenhuma ordem jamais poderia nos satisfazer. [...] É por isso que o
combate pela justiça não terá fim. [...] Felizes os famintos de justiça,
que nunca serão saciados! (C
OMTE
-S
PONVILLE
)
O propósito central desta dissertação foi desvendar o universo das famílias das
pessoas com necessidades especiais em processo de envelhecimento mediatizado pelas
medidas de proteção pública.
É sabido que as pessoas com necessidades especiais, que anteriormente não
alcançavam uma expectativa de vida superior à idade da adolescência, hoje chegam
satisfatoriamente à velhice. Velhice
32
que, neste contexto, não deve estar atrelada apenas à
idade, haja vista que o sentido cronológico desse termo deve ser requalificado quando referido
a pessoas com necessidades especiais, pois nestas a debilidade física e mental configura-se em
fator determinante.
São pessoas que, indiferentemente da idade cronológica, apresentam
especificidades que demandam, em razão de suas necessidades, vários tipos de estratégias
para atendê-las, constituindo-se em carências que se aproximam, em parte, do universo da
terceira idade, visto que manifestam algumas debilidades físicas, motoras, associadas, ainda,
às mentais, que acentuam em proporções maiores do que os demais indivíduos. Nesse sentido,
“não é possível estabelecer conceitos universalmente aceitáveis e uma terminologia
globalmente padronizada para o envelhecimento” (V
ERAS
, 2003, p. 10).
É possível, entretanto, traçar uma analogia entre o idoso e a população que
apresenta alguma deficiência com relação ao fato de serem pessoas com necessidades
32
No estudo de Berzins (2003) há uma historicização e problematização sobre o aumento da expectativa de vida
populacional, fenômeno que a espécie humana nunca havia experienciado. A evolução do envelhecimento
humano decorre das épocas, lugares e condições de vida em que se processa o envelhecimento, sendo que na
Pré-história, no Império Romano e na Grécia Antiga a idade média da população era em torno de 25 anos; no
século XVII este patamar subiu para 30 anos; e foi apenas na metade do século XIX que esse número aumentou
mais cinco anos. Ou seja, para se ganhar 10 anos de vida foram necessários quase dois mil anos. No entanto, em
1950 a expectativa de vida nos países industrializados perfazia os 65 anos, e atualmente esta média é de 76 anos
nos países considerados desenvolvidos.
117
especiais, o que incide diretamente na expropriação dessas pessoas, enquanto sujeitos de
direitos. No tocante à velhice, sua “apropriação imagética” (A
LMEIDA
, 2003, p. 35) adotada
pela modernidade é a de uma fase degenerativa e de decrepitude, sendo que “à condição do
‘outro’ ou da diferença deve ser negada e afastada dos olhos e do pensamento. À velhice foi
destinado um lugar muito pouco confortável, sinônimo de recusa e banimento”, espaço
similar ao que tem sido relegado às pessoas com necessidades especiais e suas famílias.
É preciso combater a idéia de uma segmentação artificial entre a população idosa
e as pessoas com necessidades especiais, quanto à exigência de uma opção política mais
apropriada para um segmento em detrimento do outro. Não devemos perder de vista que o
“envelhecimento, não é um problema, e sim, uma vitória” (B
ERZINS
, 2003, p. 19), quando
compreendido como uma conquista da humanidade, inclusive para os indivíduos com
necessidades especiais, embora a desproteção das famílias, em termos das fragilidades socio-
econômicas, se acentue com o envelhecimento dos pais e filhos com necessidades especiais.
Nesse sentido, essa desproteção social constitui-se em um fator de vulnerabilização adicional,
cuja debilidade e imprescindibilidade de atendimento às suas demandas expressam-se de
forma mais ávida na medida em que o Estado, como responsável pelas garantias sociais
decorrentes dos direitos constitucionais, tem-se mostrado omisso. A diferenciação, neste caso
específico, objetiva o reconhecimento do outro como sujeito, o que nos exigirá a superação da
lógica de restringi-lo apenas a referências negativas, partindo somente de hipóteses do que
lhes falta.
Isto significa dizer que, embora devamos reconhecê-los como sujeitos de direitos,
há uma demanda ainda não totalmente evidenciada, ou seja, existe
à priori
uma
particularidade dessa população que requer cuidados especiais durante todo o percurso de
suas vidas. Para Hespanha (2001, p. 40-1):
A existência de membros dependentes de cuidados constitui mais um dos
fatores de vulnerabilidade para as famílias e põe a claro a insuficiência da
resposta dos serviços públicos a necessidades deste tipo. Cuidar das crianças,
dos idosos, dos inválidos e dos deficientes constitui um encargo
extremamente pesado para a maioria das famílias dados os seus baixos
rendimentos e a escassez de apoios formais e informais com que podem
contar.[...]
No caso dos idosos que cuidam de familiares seus, geralmente filhos
inválidos, a incerteza quanto ao futuro dos dependentes depois da sua morte
torna-se numa preocupação constante e assume proporções dramáticas à
medida que tempo passa.
Essas problematizações trazidas por Hespanha (2001) são extremamente
oportunas para análise das experiências das famílias pesquisadas, tendo em vista que estão
118
claramente inseridas nesse contexto que denota a ausência de perspectivas, que deveriam ser
engendradas, a fim de minimizar seus dramas pessoais e suas necessidades sociais.
Percebemos, ademais, que a limitação maior em causa é a impotência para ultrapassar óbices
decorrentes de tamanha precariedade. Observamos, indistintamente em todas as famílias em
tela, que o sentimento de permanente insegurança quanto ao futuro assombra o presente. São
famílias que têm na figura da mãe, sobrinha, irmã e, em menor escala, no pai, a
obrigatoriedade de, além de garantir a sobrevivência cotidiana, com sacrifícios muitas vezes,
também desempenhar atividades múltiplas referentes ao cuidado especial. Tudo isso apenas
lhes assegura um horizonte restrito ao limiar da subsistência, sem alterações significativas do
estado de vulnerabilidade e desproteção crescentes, talvez porque essas estratégias de
sobrevivência permaneçam restritas ao mundo privado da família, das paredes de suas casas e
da pseudo-proteção de seus muros. No entanto, enquanto essas realidades ficarem veladas,
invisíveis ao público e ignoradas pelo Estado, que permanece omisso,
o fardo
a ser carregado
tornar-se-á muito mais difícil e árduo diante do envelhecimento. Segundo Karsch (2003, p.
106):
Este fato reflete bem como a sociedade brasileira percebe a problemática dos
idosos doentes, [incluímos neste segmento a população portadora de
deficiência] incapacitados e dependentes: na medida em que uma mulher de
uma família toma a si a responsabilidade pelos cuidados de um idoso
dependente, e, com muito esforço e sem tréguas, procura suprir as
necessidades por ele apresentadas dentro das paredes de casa, seu
desempenho permanece escondido, impedindo o reconhecimento do seu
papel social e mascarando a importância de uma rede de serviços que
poderia estar dando o necessário suporte [...]
Portanto esse processo perpetua a ausência ou insuficiência de apoio institucional
a essas famílias, cujos reflexos são perceptíveis em três domínios, definidos por Hespanha
(2001, p. 41) como: “uma sistemática subavaliação das necessidades reais das pessoas; uma
insuficiente capacidade de resposta; e uma incompatibilidade dos serviços oferecidos com as
necessidades e as condições da população”.
Dentro dessa perspectiva, concluímos ser relevante chamar atenção para a grave
situação social da população de indivíduos com necessidades especiais, que não tem o mesmo
acesso que os outros aos bens de consumo, posto que estes benefícios pouco corresponderiam
às necessidades daqueles sujeitos que, além de tudo, nem sempre obtiveram o
status
de
sujeitos, compreensão esta historicamente muito recente. Diante disso, não estamos falando
de competidores de um jogo cujas regras e condições são igualitárias, como se estivéssemos
em uma
arena naturalizada,
mas estamos, sim, nos referindo a uma população segregada que,
119
pela
lógica evolutiva,
constitui-se dos considerados
menos aptos
, o que redundaria no seu
próprio confinamento,
à mercê
de sua própria sina (V
ÉRAS
, 1999).
Esta
lógica darwiniana
, que não corresponde obviamente a uma perspectiva ética
de justiça social, pode ser observada nos preceitos da organização da lógica capitalista, que
conta com uma tradução exemplar na materialização do Estado Mínimo neoliberal. Nessa
lógica, prega-se a responsabilidade pela superação da própria exclusão
33
como sendo atribuída
unicamente ao indivíduo excluído, posto que o aparelho estatal exime-se de inserir na rede de
proteção social ou no sistema de garantia de direitos especiais as pessoas consideradas
diferentes
, pois permanecem reduzidas a seres dispensáveis, visto que não possuem utilidade
econômica, valor de mercado. Sintetizando esta idéia, Santos (apud V
ÉRAS
, 1999, p. 26)
reflete que “estar incluído é estar dentro, no sistema, mesmo que desigualmente”. Por outro
lado, “estar fora, ser diferente, não se submeter às normas homogeneizadoras, é estar excluído
ou ‘empurrado’ para fora” (loc. cit.).
O pertencimento ao grupo dos excluídos expõe a marca, o estigma degradante.
Goffman (1975) se utiliza dessa categoria para referendar um atributo meramente
depreciativo, alertando para a necessidade de rompermos com esta realidade, construindo uma
linguagem de relações e não de atributos. Vale ressaltar que, no caso dos sujeitos que não se
enquadram nos padrões definidos como normais e ideais à reprodução do capital, tais
atributos ficam confinados à idéia de
incompetência pessoal
perante o mercado e a sociedade.
Conforme essa ótica, não se questionam as contradições do sistema capitalista,
mas sim se reduz a sua interpretação ao embrutecimento da própria fatalidade. Nesta direção,
Martins (apud V
ÉRAS
, 1999, p. 27) pondera que:
33
Em detrimento da simplificação do conceito de exclusão, o autor Serge Paugam (1999, p. 60) propõe
complementá-lo com a conceituação de desqualificação social, pois o primeiro foi sendo generalizado a
situações e realidades adversas, em que é necessário a ponderação de elementos distintos, visto que “só exclusão
não é suficiente”. Nesse sentido, iremos diferenciar essas conceituações. Inicialmente definiremos a noção de
exclusão que, para o autor, tem três grandes orientações teóricas, a saber: a primeira é a noção de trajetória,
buscando compreender o processo, tanto do ponto de vista individual como coletivo, objetivando analisar as
transformações no modo de vida dessas pessoas e as dificuldades que enfrentam; o segundo reflete o conceito de
identidade, muitas vezes restrito à identidade negativa, pois retrata a incapacidade de o indivíduo socializar-se
dentro dos parâmetros considerados normais; e, por fim, a temática pode ser abordada considerando-se o
território, observando de que forma os processos de exclusão estão concentrados em determinados territórios.
Com relação ao conceito de desqualificação social, há quatro elementos a serem verificados: o primeiro retrata a
questão da estigmatização dos considerados assistidos; o segundo é proveniente da forma como esse indivíduo é
integrado no sistema de proteção social, visto que a assistência, por exemplo, tem uma função clara que é a de
regulação social; o terceiro elemento “é que os assistidos estão sempre mobilizando meios para continuarem a
ser assistidos. Portanto, não são passivos” (ibid. 1999, p. 77). E o último é a dimensão do processo, ou seja, a
passagem de uma fase a outra no decorrer do processo.
120
O rótulo acaba se sobrepondo ao movimento que parece empurrar as
pessoas, os pobres, os fracos, para fora da sociedade, para fora de suas
“melhores” e mais justas e “corretas” relações sociais, privando-os dos
direitos que dão sentido a essas relações. Quando, de fato, esse movimento
as está empurrando para “dentro”, para a condição subalterna de
reprodutores mecânicos do sistema econômico, reprodutores que não
reivindicam nem protestam em face de privações, injustiças e carências.
Compartilhamos a compreensão de Véras (1999), na medida em que ela revela a
dinâmica capitalista, em seu permanente processo de produção da exclusão sociocultural,
embora contraditoriamente queira propagar em seu discurso as possibilidades de inclusão e de
oportunidade para todos. O momento transitório da ilusória passagem da condição de excluído
para a de incluído tem marcado o modo de vida dessa população, que não alcança os
patamares exigidos em termos de (re)inclusão, numa demonstração clara da derrocada desse
restrito padrão de igualdade de oportunidades. Os determinantes e os resultantes desse modo
de vida incidem diretamente na capacidade de o indivíduo com necessidades especiais de ser
cidadão pleno, na sua condição humana, do ponto de vista moral e político, o que compromete
acima de tudo a sua dignidade.
Dessa maneira, chegamos ao limite, à ressignificação do próprio
apartheid
em que
as classes dominantes evidenciaram, por meio da adoção de políticas segregadoras, que não
estão mais interessadas sequer na “integração” dessa população, nem para a produção, nem
para a cidadania. Pretendem, sim, é esgarçar e demarcar ainda mais essa diferenciação, seja de
classes, seja decorrente da condição física e mental, o que tem aumentado o distanciamento e
a incomunicabilidade entre esses indivíduos e o resto da sociedade, o que se traduz na própria
desconfiança do excluído, culpabilizado pelo processo que vivencia. Os reflexos dessa lógica
descaracterizam o espaço público como possibilidade de luta e de garantia de direitos,
aumentando o confinamento dessa população, já encarcerada pela exclusão sociocultural.
Nesse percurso, as classes dominantes têm atuado decisivamente na busca da conceituação de
novos valores, sob a prerrogativa da satanização do Estado e da política, associada à idéia da
desnecessidade
do público.
Para Nogueira (2001), as particularidades que estão intrínsecas nesse processo de
satanização da política têm nos trazido reflexos consideráveis, pois passamos a assumir
voluntariamente o papel do Estado, restringindo-o à regulação do mercado. Contextualizando
o Brasil, o autor aponta que estamos vivenciando “a política sem política” ou, ainda, “pouca
política”, posto que é necessário que se acene uma outra idéia de política, de gestão e
governo, em que seja possível projetar um outro futuro.
121
Justamente porque estamos inseridos numa época de fragmentação, apatia e
confusão, que parece eternizar o presente mediante o cancelamento de toda
idéia de construção do futuro, é indispensável fazer a defesa da política.
Fazer isso é defender a “política com muita política”. É, em boa medida,
defender a idéia de que, sem política, tornam-se menores as chances de uma
transição que nos retire da quase barbárie em que vivemos e nos projete
numa cidadania autoregulada, capaz de se organizar com autonomia,
inteligência e justiça (N
OGUEIRA
. Ibid., p. 65).
Para Oliveira, (apud V
ÉRAS
, 1999, p. 34) o espetáculo das questões públicas,
experenciado por meio da
comunicação midiática
, se traveste de defesa dos interesses
populares, porém acaba por transferir ao monopólio privado o que pertence ao público. Nesse
sentido,
[...] caminhando sobre o chão pavimentado pelo preconceito dos pobres
contra os pobres [os segmentos socialmente vulneráveis], as classes
dominantes no Brasil começaram a extravasar uma subjetividade anti-
pública que segrega, elabora pela comunicação midiática uma ideologia anti-
estatal.
Pode parecer intempestivo fazer referência à discussão sobre as classes sociais, já
na conclusão deste estudo. No entanto, pretendemos com estas ponderações traçar um
paralelo entre a pobreza e os segmentos socialmente vulneráveis
34
, cuja possibilidade de
inclusão no mercado de trabalho não tem sido vislumbrada, ora pela competitividade e
qualificação excessiva do meio laboral, ora pela restrição decorrente das condições humanas
que a população portadora de deficiência apresenta, assemelhando-se ambas pelo “tipo de
privação, discriminação ou banimento” (V
ÉRAS
, 1999, p. 36).
Poderíamos, inclusive, considerar a materialização de uma
nova exclusão
, tendo
em vista seu caráter ambíguo, como aponta Luciano Oliveira (apud
V
ÉRAS
, 1999, p. 36). Para
esse autor, verifica-se, de um lado, a não inserção no mundo do trabalho, observável pelo
gigantesco contigente de pessoas que se tornaram desnecessárias e dispensáveis ao mercado e,
por outro lado, “abate-se sobre eles um
estigma
, por viverem em condições precárias e
subumanas em relação aos padrões ‘normais’ de sociabilidade, de que são perigosos
ameaçadores e, por isso mesmo, passíveis de serem eliminados”.
34
Este conceito foi subtraído do texto de Mioto (2000, p. 217) intitulado “Cuidados sociais dirigidos à família e
segmentos sociais vulneráveis”, onde o pertencimento e a significação dos segmentos sociais vulneráveis podem
ser considerados, de uma maneira geral, “as crianças e adolescentes, os idosos, os portadores de deficiências, as
mulheres. Aqueles que estão associados ao termo vulnerabilidade. Este termo, originário da área dos Direitos
Humanos, é utilizado para designar grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção,
proteção ou garantia de seus direitos de cidadania”.
122
Nessa ótica o contingente dos excluídos não teria lugar no mundo, onde são
designados como seres aquém da humanidade, ou simplesmente submetidos à condição de
subumanidade, conforme diz Arendt (1997).
Referidas à essa lógica estão as famílias das pessoas com necessidades especiais,
sujeitos da pesquisa ora analisada. No decorrer das entrevistas realizadas, observamos
situações de riscos sociais extremamente complexas, que não permitem isolar um fator ou
processo. Concomitantemente, são deflagradas, nas trajetórias de vida dessas famílias, uma
combinação de problemas sociais diversos, como: precariedade econômica, fomentada pela
ausência de emprego e baixos rendimentos financeiros; precariedade no acesso à saúde,
educação, transporte e demais serviços públicos; e péssimas condições de habitação, entre
outras configurações. Evidenciamos, dessa maneira, que não se trata de famílias que
apresentam apenas a questão da necessidade especial, mas antes congregam diversos fatores
adicionais de risco “que se alimentam continuamente, contribuindo para a manutenção de
situações de exclusão social. Para além da multiplicidade de problemas é assinalável também
a sua diversidade” (H
ESPANHA
, 2000, p. 307).
Esses processos evidenciam a ausência do Estado e o afrouxamento dos vínculos
sociais, observáveis nas diferentes esferas da vida coletiva, seja devido aos processos de
socialização, seja porque, paradoxalmente, a sociedade se torna, ao menos na aparência, mais
democrática.
Desta feita precisamos superar a atitude de desconhecimento, que se restringe à
percepção da realidade apenas naquilo que fica documentado em papéis. Como revelou-nos
Yazbek (1993, p. 31) “os relatos de vida, combinados ao uso da pesquisa documental,
configuram-se como via particularmente fecunda para a questão em estudo”. Por essa razão,
foi vital não só o grande respeito pela dignidade das famílias que, neste estudo, descortinaram
partes importantes de suas vidas, desnudaram sentimentos e sensibilidades perante o
dramatismo das suas necessidades, seus desejos, seu mundo simbólico e sua individualidade,
mas, sobretudo, a permanente cumplicidade entre profissional pesquisador e as próprias
famílias, no esforço de desvendamento dessas parcelas do real, aqui reelaboradas.
Contemplar essa realidade implica abrir espaço para a superação de abordagens
conservadoras de intervenção nas famílias, que dão primazia à interpretação do “indivíduo
problema”, onde qualquer espécie de direcionamento das ações recai sobre aquele indivíduo.
Essa perspectiva não vislumbra, nem como princípio, nem tampouco como possibilidade de
estratégia, um investimento real no grupo familiar, no sentido do entendimento e
enfrentamento das suas vulnerabilidades, nas suas diversas expressões. O novo enfoque dado
123
à família, no sentido de compreendê-la na sua amplitude, considerando-a, ao mesmo tempo,
como público alvo e parceira, imprime um inaudito compromisso com resultados que não
culminem somente no atendimento das situações emergenciais, mas que oportunizem um
espaço de potencialização e implementem ações emancipadoras junto a esses segmentos, com
a garantia de seus direitos.
Por fim, com este estudo, dedicado a identificar e analisar o cotidiano das famílias
que possuem na sua constituição pessoas com necessidades especiais em processo de
envelhecimento, frente ao sistema de proteção social é que divisamos o despontar de novas
possibilidades de conclusões
, cujos desafios estão colocados, certamente em um contexto
deveras adverso. Carlos Drummond de Andrade, entretanto, é portador de uma vital
mensagem de esperança e, com sua poesia, nos renova para a batalha cotidiana, quando diz:
Não serei poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei cantor de uma mulher, de uma história
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
Não distribuirei entorpecentes ou cartas suicidas,
Não fugirei para às ilhas, nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
A vida presente.
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