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A percepção destes sujeitos, ora como
seres parasitários
, ora como elementos de
condescendência limitavam outras formas de conceber esta população e, mais ainda, atribuía
unicamente ao indivíduo sua condição incapacitante, reforçando estigmas
5
e fazendo
prevalecer a lógica de isolamento. Para Foucault (1992, p. 121), a prática de internamento da
loucura, no século
XIX
, coincide com o momento em que esta é percebida menos com relação
ao erro do que com relação à conduta regular e normal
6
. Este momento representa a loucura
não mais como julgamento perturbado, mas sim como uma desordem na maneira de agir, de
se expressar, de sentir paixões, enfim, de ser livre. Para o autor, “em vez de se inscrever no
eixo verdade-erro-consciência, [a loucura] se inscreve no eixo paixão-vontade-liberdade”.
Para Pessotti (1984) as políticas de atendimento vislumbradas no século
XIX
eram
direcionadas na perspectiva do abandono, do confinamento com objetivo educacional ou do
retorno ao hospício, dependendo do tipo de
anormalidade observável
, geralmente restrita às
pessoas deficientes mentais consideradas dentro das classificações severa, profunda e, talvez,
moderada, associadas às incapacidades acentuadas, aos estigmas físicos bem demarcados e,
por fim, adicionadas à inadequação social, dentro da concepção de ordem vigente na época.
Diante disto, constatamos que os padrões de
normalidade
e
anormalidade
estão
diretamente associados ao modelo econômico vigente, indiferente do período histórico
estudado, haja vista que qualquer alternância nos moldes deste exigiria a adaptabilidade das
demais estruturas sociais. Neste sentido, observamos que a população que apresenta alguma
necessidade especial esteve historicamente abandonada à sua própria sorte, na mesma medida
5
Esta categoria é trabalhada por Goffman (1988), que faz um resgate histórico da representação social do
estigma, sendo que, para os gregos, o termo significava sinais corporais, que permitiam identificar alguma
atitude criminosa realizada pelo seu “portador” ou, ainda, referia-se a pessoas discriminadas. Os sinais eram
feitos com cortes ou queimaduras, objetivando distinguir escravos, traidores, e criminosos dos demais membros
da sociedade. Na era cristã, duas interpretações dos sinais corporais eram evidenciadas: uma correspondia à
graça divina e a outra, contrariando a explicação religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Enfim,
várias foram as significações pontuadas ao longo da história, culminando numa identidade virtual que criamos,
identidade esta que ignora a identidade social real da pessoa estigmatizada, que muitas vezes caracterizamos
como sendo uma pessoa
estragada
e/ou
má.
6
Embora no texto intitulado “Sintomas mentais e ordem pública” Goffman (1978) não esteja fazendo uma
análise direcionada aos modelos comportamentais existentes no século
XVIII
, o autor pontua algumas críticas e
reflexões relevantes acerca dos padrões sociais de “normalidade”, especialmente retratando que estes ditames
nem sempre são tão claros e que, por trás destas condutas, há uma série de interesses que vão além de um
diagnóstico científico; ao contrário, aparece sob esta mácula a representação dos interesses político, econômico e
social. O autor reflete sobre estes aspectos, considerando a hipótese de não possuirmos recursos científicos para
distinguir o que caracterizamos realmente como “anormal” na sociedade, bem como a definição de uma doença
mental, haja vista que “ao passar tão rapidamente do delito social ao sintoma mental, o psiquiatra [Goffman
exemplifica a atuação deste profissional] tende a apresentar a mesma dificuldade que o leigo para avaliar a
impropriedade de um dado ato - o que é defensável no caso de atos extremamente desviantes, mas não quando se
trata de muitas outras impropriedades mais suaves. Isto é inevitável, pois simplesmente não possuímos um
mapeamento técnico dos vários padrões de comportamento aprovados em nossa sociedade” (Ibid., p. 10).