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A seguir, vamos reconstituir o momento originário dessas figuras sociais;
neste momento, arrisco-me a avançar numa definição: elas, as figuras sociais,
se definem pelo desejo e pelo poder da escuta. O desejo, todos nós sabemos,
está relacionado ao que nos falta: não desejamos o que temos, desejamos o
que nos falta.
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Essas figuras sociais, como veremos, escoram os primeiros
pilares de suas ações em um lugar vazio, partem de uma falta, portanto, de um
desejo
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. Walter Benjamin, em Sobre alguns temas em Baudelaire
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,
demonstra que o desejo pertence à categoria da experiência:
“Quando se projeta um desejo distante no tempo, tanto
mais se pode esperar de sua realização. Contudo, o que
nos leva longe no tempo é a experiência que o preenche
e o estrutura. Por isso o desejo realizado é o coroamento
da experiência. (...) É o contrário daquele tempo infernal,
em que transcorre a existência daqueles a quem nunca é
permitido concluir o que foi começado.”
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É nesse sentido que ouso comparar a trajetória dessas figuras sociais a
“experiência” benjaminiana. Essas figuras sociais parecem estar cientes, nas
suas trajetórias, de que alguma coisa está faltando e estrutura seu agir na
tentativa de suprir essa falta, de preencher esse vazio. Em outras palavras:
quando o que nos move é o desejo, a experiência, um lugar vazio, uma
pergunta, mobilizamos forças psíquicas e mentais não previsíveis; mobilizamos
o mundo externo a nosso favor, fazemos aprendizagens que se acumulam e
somos capazes de grandes travessias. Segundo Maroni,
“É curioso pensar que uma vez feita a pergunta, a pergunta nos tem. Ou
seja, não podemos mais nos livrar dela; sofremos, a partir daí, uma
espécie de seqüestro pela pergunta-sem-resposta, pelo lugar vazio da
alma.”
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Para Platão, em O Banquete, “o que deseja, deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja, se não for
carente. [...] Pois, por ventura desejaria quem já é grande ser grande, ou quem já é forte ser forte? [...] como qualquer
outro que deseja, deseja o que não tem, o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é próprio e o
que é carente; tais são mais ou menos as coisas de que há desejo e amor, não é?” (Platão, O Banquete. 200b e 200e)
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Antonio da Costa Ciampa ao trabalhar com a idéia de que o desenvolvimento da identidade depende da articulação
entre a subjetividade e a objetividade, aponta que o desejo está ligado à subjetividade – nega o homem, como dado –,
enquanto que o trabalho está ligado à objetividade – o objetiva. Nesse sentido, o homem é desejo e é trabalho: “o
desejo o nega, enquanto dado; o trabalho é o dar-se do homem, que assim transforma suas condições de existência,
ao mesmo tempo que seu desejo é transformado.” (Ciampa, 1987/2005, p.201).
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BENJAMIM, Walter, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo; tradução de José Martins Barbosa,
Hemerson Alves Baptista. 1. ed. , Obras Escolhidas v. 3, São Paulo: Brasiliense, 1989.
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BENJAMIM, Walter. op. cit. p. 129.
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MARONI, Amnéris, Re-inventando os caminhos de pesquisa: psicanálise e ciências sociais. 2006. p. 5.