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A ESCRITA BASTARDA DE SALMAN RUSHDIE
Telma Borges da Silva
Capítulo 1
Pimenta – tecer a memória, destecer a história
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passado ibérico, a partir da desconstrução das fronteiras entre Espanha e Portugal
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e
da desconstrução da hierarquia do cânone. Há, ainda, uma verve quixotesca que
atravessa as ações de várias personagens masculinas que são, quase sempre,
acometidas por um mal-estar no mundo. Deslocam-se, pois, da mera condição de
ascendentes do Mouro para a condição de possuidoras de identidades móveis,
elaboradas a partir de supostas verdades e memórias ficcionais.
Num ensaio que aproxima Os lusíadas de D. Quixote de la Mancha, Ramiro
de Maeztu assinala que “sem Os Lusíadas não se pode entender o livro de Cervantes.
Como poderia desencantar-se todo esse mundo que rodeia D. Quixote de la Mancha,
sem se conhecer antes o encantamento do ideal?”.
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Ao apontar para o épico
português como o precursor do texto fundador do romance ocidental, a partir da noção
de encantamento/desencantamento, o ensaio sugere a possibilidade de dispersão
desse binarismo na narrativa contemporânea.
O casal Camões da Gama e Isabela Ximena Souza explicita essa dispersão
deliberada do encanto/desencanto, porque prefigura uma invenção literária que
desloca lugares e sentidos, culminando no complexo conceito de diáspora, que será
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Sobre essa questão, diversos autores, principalmente a partir do romantismo português, têm
se detido. Para ficar apenas com um exemplo, cita-se trecho de Boaventura de Sousa
Santos, que sintetiza a concepção de vários pensadores sobre a relação Portugal/Espanha:
“Para Unamuno, entrevistado por António Ferro, ‘o português é um castelhano sem ossos’.
O castelhano tem algo de lagosta. O português, ao contrário, é como um polvo (Ferro,
1993a: 175). Fidelino de Figueiredo salienta os contrastes entre a literatura espanhola e a
portuguesa: ‘a épica espanhola, originalmente castelhana é medieva, popular e continental:
a épica portuguesa é renascentista, culta, oceânica, impregnada de lirismo e corre sempre
no leito que lhe cavou o génio de Camões. O lirismo português é constitucional originário; o
lirismo espanhol é uma aquisição erudita, laborosa, tardia’ (1935: 62). Neste jogo de
espelhos, ora se salientam os contrastes, ora se salientam as cumplicidades. Se para
Fidelino de Figueiredo a literatura portuguesa tem um fulcro desiberizante (1935: 43), para
Natália Correia ‘Portugal é o grande intérprete da Espanha das Espanhas’ (1988:31). Tal
como antes dela Ricardo Jorge partia do ‘caos étnico da península ibérica’ para defender
que, fora o amor à independência, ‘no mais somos hispanos, hispana é a terra, hispana é a
gente’ (1922:5). Quase ao mesmo tempo, António Sardinha baseava a sua proposta do
‘supranacionalismo hispânico’ e da ‘internacional cristã’ no facto de que os hispanos, ‘não
tendo do ‘homem’ uma ideia de ‘indivíduo’ mas de ‘pessoa’ se lhes manifesta em inteira
coincidência com a humanidade’ (1924: VII). Por outro lado, as comparações, ora nos
favorecem (Jorge Dias, Fidelino de Figueiredo), ora nos desfavorecem (Eduardo Lourenço).
Para este último, a Espanha, além de ser ‘um dos grandes milagres deste fim de século’, é
‘uma das poucas culturas míticas do ocidente’, ‘não é um povo que se possa esquecer ou
se deixe esquecer’. Enquanto, ‘o nosso caso foi – é – um pouco diferente. Por natural
fragilidade nossa, em parte, por uma boa dose de incúria também’. (1988: 79, 81, 84) Cf.
SANTOS, 1995, p. 55-56.
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MAEZTU, in: MEDINA, [s.d.].