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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
DOUTORADO EM TEORIA DA LITERATURA
A ENCRUZILHADA DA VIDA E DA MORTE:
O SAMSARA CORTAZARIANO
VALDENIDES CABRAL DE ARAÚJO DIAS
Recife, 11 de julho de 2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
DOUTORADO EM TEORIA DA LITERATURA
A ENCRUZILHADA DA VIDA E DA MORTE:
O SAMSARA CORTAZARIANO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras e Lingüística como
requisito parcial à obtenção do grau de
Doutora em Teoria da Literatura.
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
Orientador: Prof. Dr. Alfredo Adolfo Cordiviola
Co-orientadora: Profª Drª Marcela Croce –
UBA - Argentina
Doutoranda: Valdenides Cabral de Araújo
Dias
Recife, 11 de julho de 2007
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Dias, Valdenides Cabral de Araújo
A encruzilhada da vida e da morte: o samsara
cortazariano / Valdenides Cabral de Araújo Dias. –
Recife : O Autor, 2007.
197 folhas.
Tese (doutorado) – Universidade Federal de
Pernambuco. CAC. Teoria da Literatura, 2007.
Inclui bibliografia.
1. Literatura argentina - Contos. 2. Literatura
fantástica argentina. I. Cortazar, Julio – Crítica e
interpretação. II.Título.
860(82) CDU (2.ed.)
UFPE
A860 CDD (22.ed.) CAC2008-87
3
4
AGRADECIMENTOS
À UFRN, em especial ao CERES – DCSH – Campus de Currais Novos, pela
liberação para conclusão deste curso.
Ao professor orientador, Dr. Alfredo Adolfo Cordiviola, quem competentemente
soube me mostrar os caminhos de uma casa tomada por mistérios e
personagens reais.
Ao Instituto de Literatura Argentina “Ricardo Rojas”, por ter-me acolhido como
aluna-pesquisadora nos meses de outubro e novembro de 2004.
À professora Drª Marcela Croce, que me fez caminhar e sentir a tensão da obra
de Cortázar nos cafés, metrô, cines, livrarias e teatros de Buenos Aires.
À professora Drª Zuleide Duarte, que me mostrou o prazer da descoberta de
uma outra Literatura, mais humana e mais poética.
Ao professor Lourival, que me põe roda nos pés quando fala.
Ao professor Roland Walter, pela solidariedade demonstrada e por ter-me feito
canibalizar uma série de leituras importantes na hora mais propícia.
Ao PQI, Programa de Qualificação Institucional da CAPES, por ter me
possibilitado a conclusão deste curso.
A Maria das Graças Soares Rodrigues, pelo dedicação e desempenho como
coordenadora do nosso projeto PQI, vitorioso.
A Amarino Queiroz, meu colega, meu companheiro de idéias partilhadas, meu
irmão: venho visitar-te; e me recebes / na sala trajestada / com simplicidade /
onde pensamentos idos e vividos / perdem o amarelo de novo interrogando o
céu e a noite. / Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. ( A um
Bruxo, com Amor - C.D.A)
A Deus, eterno em sua bondade, justo com os justos, que me colocou no
caminho destas pessoas sábias e me reconfortou em cada dor física e
psicológica.
5
DEDICATÓRIA
Aos meus pais e irmãos, minha grande fonte de equilíbrio, minha força, a
essência primordial:
Devia ter um outro nome o meu estado de sítio,
essas paisagens, passagens de cerca de aveloz,
a casa em ruínas, o mato morto,
a água morta,
morta a infância.
Devia rever o meu umbigo
ainda intacto, enterrado na porteira do curral,
as vozes dos meus irmãos,
o meu pai e seus versos,
suas brincadeiras de pegar cobra verde,
as minhas irmãs trancadas,
brincando de bonecas,
a minha mãe ( e sua máquina ) a costurar
oito vidas,
ponto por ponto
pespontos,
arremates,
cerzidos,
moldados em sonhos
que nunca ousou revelar.
Devia doer menos em mim,
esse meu estado de sítio.
A Célio, que me preenche os sonhos e grande incentivador de meus estudos,
que me fez mãe de Olívia e Célio Júnior: escrevemos a nossa história na
cegueira absurda da paixão. Hoje a lemos claramente rasgada, coração
exposto, racionalmente ao amor que se fortaleceu nesta obscura claridade.
À Professora, Maria Francinete de Oliveira, a que me fez escutar o silêncio da
poesia mais pura e o rumor da prosa mais contundente; a que me mostrou o
caminho de São Saruê.
6
À memória literária de Julio Cortázar, escritor que prestou grande contribuição
para o reconhecimento da Literatura Latino-americana entre as grandes
Literaturas.
7
RESUMO
Dias, Valdenides Cabral de Araújo. A Encruzilhada da Vida e da Morte: o
samsara cortazariano. Recife, 2007. 200 p. Tese de Doutorado – Pós-
graduação em Letras e Lingüística, Universidade Federal de Pernambuco.
Estar diante da escrita de Julio Cortázar é sobretudo arriscar-se a se perder
nos labirintos armados por ele para prender o leitor. Esta leitura de sua obra
produzida nas décadas de comprometimento com as causas sociopolítico-
ideológicas da América Latina vem ressaltar o surgimento do homem novo
como ser utópico, fragmentado, a princípio, pela escrita, em seguida pela
constatação de fatos trágicos e, por fim, perdido por entre os labirintos
existenciais, lugar de onde o autor reconhece o homem na sua plenitude de
busca como elemento fundamental para modificar o panorama de uma
realidade pré-sentida à distância. O que podemos vislumbrar desta produção
‘comprometida’ é que, nela, paradoxalmente o ser humano está fadado, seja
ele autor, narrador, personagem ou leitor, ao jogo da amarelinha: sai atirando a
pedra sempre no lugar certo, mas nunca chega ao céu. Entretanto, podemos
assegurar que esse homem novo, produto da Revolução Cubana e das
ditaduras, cumpriu bem o seu papel como personagem de sua própria
literatura. Desta forma, circulando como autor-narrador-personagem, conseguiu
empreender uma osmose, uma articulação convincente entre o fantástico e a
realidade, entre o poético e o político.
Palavras-chave: Julio Cortazar, contos, compromisso, humanista.
8
RESUMEN
Dias, Valdenides Cabral de Araújo. La encrucijada de la vida y la muerte: el
samsara cortazariano. Recife, 2007. 200 p. Tese de Doutorado – Pós-
graduação em Letras e Lingüística, Universidade Federal de Pernambuco.
Estar delante de la escrita de Julio Cortázar es sobre todo correr el riesgo de
perderse en los laberintos por él armados para sujetar al lector. Esta lectura de
su obra producida en las décadas de compromiso con las causas sociopoliticas
e ideológicas de Latinoamérica resalta el surgimiento del hombre nuevo como
ser utópico, fragmentado, al principio por la escrita, y en seguida por la
constatación de acontecimientos trágicos, y por fin perdido por entre los
laberintos existenciales, lugar a partir del cual el autor reconoce al hombre en
su plenitud de búsqueda como elemento fundamental para cambiar el
panorama de una realidad pre-sentida a lo lejos. Lo que podemos vislumbrar
desde esa producción “comprometida” es que en ella, paradójicamente, el ser
humano, sea él autor, narrador, personaje o lector está destinado al juego de
rayuela: sale tirando la piedra debidamente, pero nunca llega hasta el cielo. Sin
embargo, podemos asegurar que ese hombre nuevo, producto de la
Revolución Cubana y de las dictaduras ejecutó bien el papel de personaje de
su propia literatura. De esta manera, circulando como autor-narrador-personaje
logró emprender una ósmosis, una articulación convincente entre lo fantástico y
la realidad, entre lo poético y lo político.
palabras clave: Julio Cortázar, relatos, compromiso, humanista.
9
ABSTRACT
Dias, Valdenides Cabral de Araújo. The crossroad of life and death: the
samsara cortazariano. Recife, 2007. 200 p. Doctorate Thesis — Postgraduate
in Language and Linguistics, Federal University of Pernambuco.
To be facing Julio Cortázar’s writing is above all to risk oneself to be lost in the
labyrinths crafted by him to imprison the reader. This appraisal of his work
produced in the decades of commitment to the socio-political-idealistic causes
of South America comes to emphasize the rising of the new man as a utopian
being, fragmented, in principle, through writing, then by the corroboration of
tragic facts linked to the Latin-American Dictatorships and, finally, lost among
the existential labyrinths, place where the author recognizes man in his power
of seeking, as the fundamental element, to modify the panorama of a reality
foreseen at a distance. What we can discern from this ‘committed’ production is
that, in it, paradoxically, the human being is predestined, be him/her the author,
narrator, character or reader, to play hopscotch: starts always throwing the
stone on the right place, but never get to the sky. Nevertheless, we can state
that this new man, produce of the Cuban Revolution and dictatorships, carried
out well his role as personage of his own literature. Thus, circulating as author-
narrator-character succeeded in undertaking an osmoses, a convincing
articulation between the fantastic and the reality, between the poetic and the
political.
Key words: Julio Cortázar’s, short story, compromise, humanist.
11
LISTA DE ABREVIATURAS
AAA – Alguien que anda por ahí
Oc – Octaedro
QTG – Queremos tanto a Glenda
UTL – Un tal Lucas
D – Deshoras
LM – Libro de Manuel
TFF – Todos los fuego el fuego
CC1- Cuentos Completos, v. 1
12
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS 06
LA DIRECCIÓN DE LA MIRADA 12
PRELÚDIO EM QUATRO ATOS 17
Ato: Cortázar em 40 dias 18
Ato: O Retorno 28
Ato: A Festa 35
Ato: Último Tango 38
1ª REVOLUÇÃO 42
1. A Texturologia 43
1.1 O Inferno ou as peças do jogo de montar 43
1.2 Casa 1 A espiral barrada 51
1.3 Casa 2 A linguagem 55
1.4 Casa 3 Re-tecendo os temas cortazarianos 56
3.1 Historiando o fantástico 56
3.2 O fantástico na obra de Cortázar 62
3.3 Os livros re-contados 67
3.4 De gatos, ratos, cavalos e aranhas: o bestiário permanece 70
1.5 Casa 4 A personagem no conto cortazariano 75
1.6 Casa 5 O leitor cortazariano 77
1.7 Casa 6 “hablo de mí, cualquiera se da cuenta 80
1.8 O Céu: a ordem na desordem 85
2ª REVOLUÇÃO 90
2. A preparação para ser o outro 91
2.1 Do Exílio 92
2.2 A crítica como ponto de partida 97
2.3 Casa de las Américas – do comprometimento explícito 107
2.4 Libro de Manuel: panorâmica da ditadura militar na América Latina
– o Brasil o meio 116
2.4.1 Histórias à margem de Manuel 125
2.5 (A)ssimetria temática: a política e o jogo nos contos comprometidos 130
2.5.1 Conto por conto 131
2.5.2 A realidade nos contos 153
REVOLUÇÃO 158
3.Os labirintos existenciais 159
3.1 O amor e a morte dos corpos 161
3.2 A morte utópica 167
3.3 Os paradoxos obsessivos 171
3.4 Histórias “à margem de minha vontade” 177
3.5 O tempo, o espaço e suas armadilhas 179
3.6 O anel de Moebius: a estreita encruzilhada 181
PÓS-REVOLUÇÃO 185
BIBLIOGRAFIA 193
13
LA DIRECCIÓN DE LA MIRADA
Olhar na direção do olhar de Julio Cortázar, atingir a raiz de sua escrita,
nada é mais desafiador, nada é mais instigante. Atingir, sobretudo, o veio
dessa escrita que se diz comprometida, iniciada explicita e intensamente a
partir de Libro de Manuel (1973) e seguir percorrendo a contística da década
de setenta e início de oitenta num movimento cíclico que torna imprescindível a
presença de outras obras, sejam literárias ou críticas. Já temos configurado um
perfil estético-literário bastante consistente para a sua produção anterior que,
se não valeu como fio condutor para o entendimento de sua obra agora
analisada, abriu possibilidades de análises que ampliaram os conceitos até
então formados para uma narrativa dita e aceita como fantástica, dita e aceita
como metanarrativa.
Partindo de alguns pressupostos teórico-críticos básicos, e de um certo
didatismo no tocante ao estudo dos contos, tratamos aqui de empreender uma
análise, se não ousada, da obra cortazariana produzida a partir de 1974, mas
com apontes para uma complementação do perfil crítico e estético-literário já
existente e aceito. Esta análise toma um total de 84 narrativas curtas
pertencentes aos últimos cinco livros de contos por ele escritos – Octaedro
(1974), Alguien que Anda por Ahí (1977), Un tal Lucas (1979), Queremos tanto
a Glenda (1980) e Deshoras (1982) – tomando como suporte básico Libro de
Manuel, romance que aqui consideramos como o princípio de seu
comprometimento explícito.
A necessidade de estudá-los partiu do princípio de que era importante
somar o poético e a linguagem política ao quadro analítico já existente para um
melhor entendimento de sua obra como um todo. De modo que aqui
perseguimos as histórias cortazarianas atualizando-as na e pela leitura, se não
crítica, mas aberta à reflexividade. Ler Cortázar hoje, após duas décadas de
sua morte, é tentar preencher os vazios deixados pela sua obra. O
comportamento adotado aqui é o do leitor pretendido por Ingarden e Iser. E,
12
como leitor, aceitar o desafio de “configurar por si mesmo a obra que o autor
parece ter um prazer imenso de desconfigurar”
1
.
Cortázar insere-se entre os grandes escritores da América de Língua
espanhola e sua obra tem uma relevância que transcende às fronteiras-pátria.
É reconhecidamente um escritor original, tanto na forma quanto na temática
diversificada que aborda. Sua obra abarca temas cotidianos perpassados por
elementos insólitos, isto é, estamos nos colocando sempre frente a situações
inverossímeis narradas nos ambientes mais comuns possíveis. O domínio da
narrativa e sua imaginação fértil faz com que seja comparado em grandeza, por
muitos críticos, a Borges e outros escritores de sua época. A aproximação que
a crítica estabelece entre ele e Borges é pela temática urbana que ambos
exploram. Selma Calazans (1988) recorda os dois como representantes
máximos desta vertente do fantástico. Para ela, os dois inovaram o fantástico
pela desconstrução que empreenderam e, mesmo as obras dos dois tendo
como intertexto o fantástico europeu, ambos desconstroem o fantástico
tradicional, “exibindo um fantástico paródico, liberado dos constrangimentos da
verossimilhança”. Entretanto, há um outro escritor argentino que também se
aproxima de Cortázar. Esse escritor é Bioy Casares, que além de sua
produção literária, também escreveu em parceria com Borges e Silvina
Ocampo. Seus escritos misturam realidade e fantasia e estão impregnados de
surrealismo. Sua obra, La Invención de Morel (1940), é considerada hoje um
dos clássicos da literatura argentina, convertendo-o num dos escritores de
língua hispânica mais importantes do século XX.
No Brasil, especificamente, há ainda poucos estudos sobre a obra de
Julio Cortázar. Além de algumas teses de doutorado e dissertações de
mestrado, cremos que a análise mais completa é ainda a do crítico Davi
Arrigucci Jr., publicada em 1973, O Escorpião Encalacrado: poética da
destruição em Julio Cortázar. Esta crítica aborda a obra cortazariana desde o
início até Prosa del Observatório, de 1972, merecendo a leitura do próprio
Cortázar que veio a considerar a obra como um livro sério, uma crítica rigorosa
1
Cf. Paul Ricouer, 1994, p. 118.
13
que fugia ao elogioso, onde o crítico brasileiro conseguiu seguir as direções, as
linhas de força de toda a sua obra.
Julio Cortázar, com suas narrativas curtas, juntou-se a vários outros
escritores de seu tempo para produzir uma literatura que rompeu com a
estrutura tradicional do gênero narrativo. A ruptura desse gênero permitiu-lhe
perceber a existência de uma outra ordem para além da realidade plausível.
Vários foram os escritores latino-americanos que se inscreveram dentro dessa
outra ordem do real. Dentro dessa outra ordem Cortázar desenvolveu seus
planos e fez o real transparecer em seus textos de uma forma tal que
desbancou os conceitos de realidade literária até então em voga. Sua obra é
vasta, sabemos. No entanto, coube aqui nos determos no recorte feito para
análise e nele percorrermos essa outra ordem do real que se nos oferece em
profusão poético-literária de cores, paisagens, idéias, personas. Entre outras
coisas, estamos diante de uma literatura profundamente comprometida com o
ser humano. Tal comprometimento resulta num humanismo ecumênico,
bastante despolitizado por momentos, desembocando reiteradamente em uma
literatura pura, cuja manifestação maior é o fantástico.
Para o devido entendimento do corpus escolhido, sem dúvida que a obra
produzida anteriormente foi retomada em alguns pontos julgados necessários,
com a finalidade de proceder comparações inevitáveis. Também os seus textos
críticos serviram para encaminhar entendimentos acerca do próprio ato criador
que dominava: especulações sobre o processo de sua criação, de sua des-
escrituração e da necessidade da busca do novo pela incorporação do
elemento político como ato humanizador.
Ler Cortázar hoje é um desafio pela grande bibliografía crítica existente
e predominantemente elogiosa. Entretanto, o foco central desta análise, sem
tentar desconstruir as existentes, reside em um ponto ainda pouco tocado em
sua obra, que é a parte de sua obra mais comprometida explicitamente com os
problemas sociopolíticos da América Latina. O mérito desta análise recai em
sua tentativa de combinar elementos da realidade da época que foram escritos
com elementos ficcionais já cristalizados nas obras anteriores tais como o jogo,
o fantástico, o descontínuo do verbal que se mistura ao visual, enfim, toda uma
14
gama de processos sinestésicos que envolvem o discurso cortazariano e
atravessa um percurso de mundos e modos de apresentação desses mundos,
quer objetiva ou subjetivamente. A leitura e análise dos textos partiram
fundamentalmente de seus textos teóricos, em especial dos que se reportam à
escrituração do conto. De forma que serviram muitas vezes, ora como
pensamentos ratificadores, ora como questionadores de posições do autor, ora
como estimuladores de uma nova escrita ficcional. Assim sendo, o resultado
dessa análise ficou estruturado em um prelúdio e três capítulos:
O Prelúdio reflete o caminho percorrido do leitor copulativo à obra, da
obra aos críticos, ao universo contextual da obra, para retornar ao leitor que o
expõe de forma transgenérica e pessoal, sem a preocupação de estar
mostrando ou chegando a verdades absolutas ou relativas, tentando apenas
atingir a verdade ficcional. Sobretudo, seguindo a paixão de explicar o que
considera de mais instigante na obra de Cortázar, que é esse despertar para a
escrita a partir de sua obra. Um caminho interpretativo possibilitado pela obra
aberta. Não estaríamos analisando o texto literário, constituído de linguagem
desde o ser que o operou, se estivéssemos em busca de verdades absolutas.
Mataríamos o texto, o autor, a própria obra, na primeira e última análise
empreendida; Ao contrário, há uma imbricação dos textos do autor com o texto
do leitor para que se cumpra o que será denominado no decorrer da primeira
revolução como cópula.
A Primeira Revolução, o ponto de origem, versando sobre o seu modo
de escrever, as suas influências, os seus avanços e recuos dentro de sua
trajetória literária, especificando-se a contística produzida na década de setenta
e começo da década de oitenta. Tomamos nesta parte um termo de Un tal
Lucas para desenvolver as idéias centrais sobre o seu modo de escrever: A
Texturologia;
A Segunda Revolução, a da palavra empenhada, humanamente
comprometida social e politicamente com os povos da América Latina, num
momento em que estes dois aspectos adotavam uma postura involucionista
em termos de direitos humanos e de liberdade de expressão: A Preparação
para ser o Outro;
15
A Terceira Revolução, a existencial, envolvendo temas paradoxais como
vida/morte, amor/ódio, prisão/liberdade, humanidade/desumanidade,
sentimentos que caminham juntos numa conformação que permite o ser
humano ora se deteriorar, ora se reformar, ora se conformar diante das
situações criadas pela ficção cortazariana que, diferentemente de muitas, não
toma a realidade como modelo. Ao contrário, toma a ficção como modelo para
atingir uma outra realidade, muito mais impactante que a que se apresenta aos
nossos olhos.
Da resolução desses três capítulos resultou uma pós-revolução da qual
participou um leitor que tudo fez para corresponder às expectativas do leitor
cortazariano. Resta saber se houve uma sintonia entre esta mirada e a
velocidade que o texto curto exige. Mais importante ainda é saber se o jogo de
análise e impressões aqui jogado contribuiu para dar um sentido novo a mais à
narrativa cortazariana já bastante explorada. E, se Eco (1994:137) nos garante,
como também o próprio Cortázar, que “a ficção tem a mesma função dos
jogos” e, se “é por meio da ficção que nós, adultos, exercitamos nossa
capacidade de estruturar nossa experiência passada e presente”, tomamos
Cortázar como um grande jogador do passado, o que facilita ao leitor, no
presente, jogar com os sentidos possíveis de sua obra para o futuro e até
aventurar-se a escrever cortazarianamente, isto é, anexando ao exercício
investigativo o exercício poético daí resultante. Mais do que criticá-lo ou elogiá-
lo, este trabalho resultou num diálogo amplo, não linear, para além das
expectativas da pesquisa. Em todo caso, ao leitor desta, a tarefa de
compreendê-la, e o jogo estará ganho, ou criticá-la. E então teremos pisado
nas entrelinhas do jogo. Recomeçaremos do inferno.
16
PRELÚDIO EM QUATRO ATOS
A leitura, de fato, parece ser a síntese da percepção e da criação; ela coloca ao
mesmo tempo a essencialidade do sujeito e do objeto. O objeto é essencial
porque é rigorosamente transcendente, porque impõe as suas estruturas
próprias e porque se deve esperá-lo e observá-lo; mas o sujeito também é
essencial porque é necessário, não só para desvendar o objeto (isto é, para
fazer com que haja um objeto), mas também para que esse objeto seja em
termos absolutos (isto é, para produzi-lo). Em suma, o leitor tem a consciência
de desvendar e ao mesmo tempo de criar; de desvendar criando, de criar pelo
desvendamento.
( Jean-Paul Sartre – O que é Literatura ( 2004:37)
17
PRIMEIRO ATO
CORTÁZAR EM 40 DIAS
04-10-2004
Vim em busca de ti, de teus segredos, de teus secretos labirintos. Tenho
encontro contigo, marcado, datado, estipulado em um café da esquina, num
subte qualquer. Quero tomar posse dessa casa cercada de fogos e túneis. Vim
aspirar tua essência de gato, travar contigo um último round, decretar o final do
jogo.
05-10-2004
Tenho minhas armas secretas. Manuel me dá as chaves que procuro. Chego
tímida ao teu mundo octaédrico onde cada face se impregna de presente e de
passado. Esqueceste de fechar tuas entradas e percebo que muitos a seguem.
Sigo em frente, enfrentando-os, enfrentando-te afrontando-me por esses
espaços onde encontro ainda a marca dos teus pés, sinais de tuas mãos.
Nunca do teu rosto. Mas Manuel é uma criança em busca do desconhecido.
Sim, Manuel está em mim, na minha forma de aventurar-me tentando
desvendar a Joda cortazariana.
06-10-2004
Córdoba, Corrientes, Suipacha, Viamonte, Florida, Esmeralda, 25 de mayo,
Reconquista. As ruas dançam, serpenteiam à minha frente em desordem. Eu,
em desordem. O subte a me chamar. Quem sabe, estás a ler Trilce em alguma
estação, disfarçado de gato, observando alguma verdade ou alguma maldade
que ainda não se concretizou? Eu, sim, estou acidentalmente em um país
determinado, numa cidade determinada, numa rua determinada. Determinada a
te encarar de frente como se encaram os grandes sonhos ou os mais temíveis
pesadelos. No momento, és meu pesadelo mais temível.
18
07-10-2004
Hoje tenho convidados. Formam comigo uma Joda octaédrica, Saul, Jaime,
Omar, Graciela, Gilman, Montanaro, Maquera. Todos falaram contigo,
estiveram contigo em algum dado tempo. E me mostram teus mundos e
modos, tuas palavras fascinantes. Tentam aproximar-me de ti que, de tão longe
que estás, retrocedeste à forma primitiva de cronópio. Entabulo com eles uma
conversa sobre tangos, jazz e tuas preferências. A propósito, tenho que ir à
estação Carlos Gardel.
08-10-2004
Hoje não quis saber de conversa com ninguém. Saí a caminhar. Atravessei a
Avenida Las Heras, sem rumo. Entrei no Museu Nacional de Arte Decorativa.
Vi uma exposição belíssima sobre o mate criollo. Mostrava todos os tipos
regionais, inclusive os da região sul do Brasil onde se consome o mate. Uma
sala reproduzia uma típica residência gaúcha, com o cavalo selado, amarrado
em uma árvore e pessoas tomando mate. Peças de ouro, prata e porcelana, as
mais belas. O Museu, se estivesse vazio, já seria uma obra de arte. Saí de lá
como se sai de um sonho bom. Então é esse o mundo que Cortázar não viu e
que não viu Cortázar.
09-10-2004
O MNBA estava expondo obras de pintores espanhóis do século XX. Mas o
que me chama a atenção não é a pintura, senão uma escultura singular. Paro
diante do Beijo, de Rodin e fico sem palavras. A pedra fala, o corpo fala, a
razão, emudecida e distante. O mundo gira à minha volta. Caminho por entre
pinturas e esculturas de deuses e ninfas, feitas por deuses que nos convidam a
atravessar o inimaginado mundo das imagens e do im-palpável. E eu, que
buscava só o mundo das palavras.
10-10-2004
Saio do Beijo direto para o mundo de Cortázar, onde o abraço estrangula e o
beijo é sinônimo de morte. La fora é verão e todos desfrutam desse calor
19
natural que aquece o corpo, mas não aquece a alma. Sol lá fora, multidão
deitada na grama ou caminhando a passos largos. Namorados se beijando por
entre as árvores. Plantas nas janelas, flores de ipê roxo atapetando o chão. Só,
diante de mim mesma, descubro o horror de um povo que ora livre, busca
recuperar o que lhe foi tirado algum tempo, arrancado de suas entranhas: a
família e a palavra.
11-10-2004
Sonhei com um gato. Era ele. E não veio roubar os meus sonhos. Veio para
mostrar e esteve a ponto de ser esse tal que tanto busco por entrelinhas
quebradiças e pensamentos in-completos. Querer capturá-lo pela escrita,
escalavrá-lo, escrevê-lo. Sobretudo inscrevê-lo no sólito da minha vida insólita
e descontinuada pela distância e pelo frio.
12-10-2004
Adorno vigia o que pensam de seu dono. Ao longe, Manuel me acena como se
quisesse me mostrar outras vias de acesso, mas some no esfumado dos meus
sonhos, embotando minhas saídas. Caminho desolada... Viamonte-Maipu-
Florida-Corrientes-Lavalle-San Martin-Reconquista-25 de mayo-UBA-Instituto
de Literatura Argentina... Quem foi Ricardo Rojas? Contemporâneo de
Cortázar? Não. Descobri que ele morreu em 57. conheceram-se? Será que
Cortázar leu algumas de suas obras?
13-10-2004
Era Adorno ou Osíris, o que estava em meus sonhos? Se me pergunto isso é
porque imagino que os gatos todos são misteriosos, independentes de nome,
raça ou cor. Todos se enroscam nas minhas pernas e me olham como se
soubessem que fazem aquilo por saberem mais de mim que eu mesma, por
terem acesso ao meu sétimo sentido. Já observaram como os gatos dilatam a
pupila quando nos encaram? Já viram os olhos de um gato no escuro: eles
fazem raio-X de nossa alma.
14-10-2004
20
Retorno aos textos de Cortázar sempre com a impressão de que estou sendo
policiada. Não sei se o que digo, digo além ou aquém do que me permite(m) o
olhar crítico ou apaixonado. Gostaria de fazer com seus contos o que ele fez
com os filmes de Glenda Jackson: reverter-lhe os finais, apagar-lhe as
impurezas, para conservar-lhe o ar de cronópio imortal.
15-10-2004
Lucas me dirige um olhar de compreensão. Transgredir. É essa a palavra exata
que se desenha no seu olhar de hidra. Entro nos textos como quem procura
uma prova não sei de quê. Jogo-me numa zona desconhecida com uma
expectativa de sair dela como se sai de um sonho consumado. Tento encontrar
a cabeça original, mas me custa acreditar que elas se multiplicam e me
devolvem sempre ao ponto de partida. O que preciso mesmo é texturologizar.
16-10-2004
Lucas continua a me acompanhar pelas ruas de Buenos Aires. Ruas largas e
sem fim. Andar pelas ruas dessa cidade cortazariana é mais fácil que andar
pelos labirintos traçados pelos seus textos. Entre a cidade e a cidade, entre a
ciência e a poesia, impossível não lhe sentir os passos no rastro. Entre a
cidade e o subte, impossível não pressentir que alguém anda por aí
controlando o movimento das pessoas. Tem sempre alguém anotando algo
numa caderneta. Enfim, tem sempre alguém escrevendo algo.
17-10-2004
Cortázar me oferece a sua própria lógica de ver o mundo. Não sei divisar qual
o mais perigoso: se o que está visível ou o subterrâneo. Ambos fazem parte de
uma grande árvore mondrianesca com o predomínio do negro. Os seus
espaços com seus personagens dentro, quase todos presos em quartos,
metrôs... Tudo à sua volta passa do sufocar à morte. Tudo à sua volta passa.
Ele, permanece.
18-10-2004
21
Alcançar a sua palavra. É isso que devo fazer. Alcançá-la pelos olhos de Alana
ou de Osíris. Ultrapassar a zona do compreensível e aportar no museu onde
Diana se encontra, fazer-lhe companhia para desvendar os segredos da morte
através do quadro. Instigá-la a abrir a terceira porta. Escrever não é morrer um
pouco? Será que Cortázar vivia através da morte dos seus personagens?
19-10-2004
Passo e repasso centenas de fotos dele. Faço com ele o que ele fez com as
fotos de Solentiname. Algo mais há nestas fotos que não sei como explicar. Um
olhar de galã encobre o do intelectual. A única foto com o olhar de intelectual é
com um gato no colo. Mas que poder os gatos tinham sobre ele? Osíris, o
julgador dos mortos? Adorno? Qual deles?
20-10-2004
Não quero somente escrever palavras bonitas sobre ele. Trata-se de elaborar
uma tese e não um elogio. Apesar da fascinação que as palavras possam
exercer sobre quem escreve, escrevo para testar-me, para pôr-me à prova. E,
se escrevo sobre alguém quase intocado no momento, é para provocar-me e
me dar a chance da descoberta, pre-ci-pi-tar-me texto a dentro, numa corrida
em busca da essência da palavra ficcional cortazariana. Quero escrever o
irrepetível.
21-10-2004
Não estou em busca do unicórnio. Estou em busca do homem que vomitava
coelhos e caçava ratas, do que se deixava seduzir por um par de luvas pretas
ou por um miado de gatas no cio. Decifrar o indecifrável. Quero arrancar o
segredo esfíngico que finge ser irracional para (re)acionar a palavra.
22-10-2004
Manuel, Lucas, Cortázar e eu. Todos reais. Mas eu tenho a obrigação de fazer
essa distinção. Eu tenho a obrigação de saber quem me acompanha. Três
homens em um, fragmentado, a escrever histórias que se conta a si próprio de
forma desconexa para driblar os sentidos aparentes. Prefiro-o, para prosseguir
com meu trabalho de Ísis.
22
23-10-2004
Encontrar a via certa, atingir a veia, o veio fantástico de uma escritura múltipla
e de alto e baixos. Empreender uma perseguição. Uma ditadura contra outra: a
da palavra ser contra a palavra poder. Ditar a minha visão utópica de analista
atenta (acho que crítica não sou) num tópico completamente dominado pela
fúria e pelo horror. Ser uma revolucionária que participa da revolução escrita de
Cortázar, fazendo a minha própria revolução.
24-10-2004
O Jacarandá. Primeiro se cobre de flores; depois, de folhas. Aprendi isso com
um taxista. Então é isso. Tenho que modificar o caminho de minha procura,
partir do fim para o começo, traçar uma ordem inversa. Percorrer à revelia de
datas e dados. Andar com meus próprios pés. Deixar para trás os que se
sentam à mesa comigo? Fazer meu próprio caminho? Assim talvez o encontre.
Assim, talvez o entenda.
25-10-2004
Parei no burburinho da Florida para gastar a manga do sobretudo. Sobretudo
sentir a alma argentina, a confusão de vozes e de rostos, os turistas brasileiros
como eu. Eu, uma anônima no meio daquele povo que em vez de bom dia,
pergunta: “que tal?” E, dependendo da nossa resposta, dizem “bueno”, ou
então “eso me encanta!” Imagino-o nos dias atuais, velhinho e anônimo nessa
mesma rua... Quantos personagens interessantes teria para construir sem
pensar num final trágico, sem aprisioná-los necessariamente em quartos ou
metrôs! E quantos personagens tenho e não sei como aprisioná-los em
narrativas que me conto oralmente, mas que nunca sei como colocá-las no
papel.
26-10-2004
Encanta-me ver que os dias se passam e me confundo mais e mais no meio da
multidão. Uso disfarces de cronópio, ora ponho roda nos pés. Aqui o povo não
anda, corre. E você tem que correr junto. O dia começa às dez, a noite se
encerra ( se é que se encerra) às quatro da manhã.
23
27-10-2004
Minha vida com os cortazarianos é instigante. Exilo-me para buscar no exilado
que ele foi os sentidos do que para mim é saudade, para ele, recuerdos. Sinto
que saudade é mais forte. Mas somos latinos. Acho que as dores são iguais.
Quando sabemos que a dor vem de algo que lhe privam, e não de uma
privação espontânea, a dor muda de figura. A dor muda.
28-10-2004
Procurar o homem novo que foi Cortázar no seu tempo. Entender suas várias
faces. Melhor ver a sua face sem barba para entender a sua face barbuda.
Entender a revolução dos homens barbudos? Isso me faz lembrar de uma lista
de barbudos do meu país atualmente, sem sonhos coletivos. Melhor, somente
com sonhos particulares. Mas Cortázar deixou que as suas palavras
revolucionárias escorressem pela barba.
29-10-2004
O caminho cortazariano é outro: o dos cafés amplos e de meia iluminação, de
bares e restaurantes cheios de gente, de bebida, cigarros e tangos. Mais famas
e esperanças que cronópios. Na UBA, difícil separá-los dentro daquelas
imensas salas, todos envoltos em fumaça de cigarro. Daria para organizar
muitas jodas. E acho até que já estão formadas: umas, sem objetivos definidos;
outras, sem objetivos nenhum.
31-10-2004
Vou ao aeroporto Ezeiza buscar um amigo (brasileiro) cronópio. A paisagem
verde sob um sol que não queima me faz parar antes de entrar no aeroporto,
seduzida pelo cheiro dos eucaliptos e pelas famílias em clima de piquenique,
deitadas pelo chão, rindo e conversando entre uma cesta de pão e um malbec.
Era uma tarde amena que se transformou numa fria noite de verão, de flores
multicoloridas pelo chão e uma boa conversa brasileira.
24
01-11-2004
Esta semana, com Paulo, refiz caminhos que não planejava mais passar: casa
rosada, obelisco, igrejas, museus, biblioteca nacional, livrarias, restaurantes,
shoppings, cafés, praças, milhares delas, a Plazoleta Cortázar, a do cronópio
maior, e até o cemitério Recoleta. Durante todo esse tempo, conversando com
pessoas, não senti um Cortázar querido pelo seu povo. Ele é ainda o que
nasceu em Bruxelas e o que morreu cidadão francês. Por aqui, não é o que
escreveu argentinamente, embora sua biografia traga o ‘nasceu acidentalmente
em Bruxelas’. Será por acidente que nascemos em algum lugar? Falando
nisso, fui à casa de Carlos Gardel.
02-11-2004
Quero dar a volta a Cortázar em quarenta dias. No entanto, essa volta está
prevista para quatro anos. A volta que dou em quarenta dias é para me situar
em seu mundo distinto e distante do meu. Em seu mundo re-sentido de fora
para dentro. Como um voyeur, ele se ocupou dos problemas sociopolíticos de
seu povo, e de seu tempo. Como voyeur, cá estou, espreitando, situando-me
na calada da noite argentina cheia de ecos do passado, misturados a um
presente que se quer tornar futuro. Busco exílio em suas palavras e encontro a
anti-utopia da utopia que foi criar um homem novo. Recriar-se como um
homem novo a partir da Revolução cubana, e me pergunto se esse homem
novo já não tinha começado a nascer mesmo na Argentina, antes de sair daqui,
com a Casa Tomada.
03-11-2004
Paulo me fala de Noll e de seus projetos foucaultianos, dos problemas da
literatura homoerótica, enquanto isso, seguimos os passos no rastro de
Cortázar. Ele, os de Noll; eu, os de Cortázar, a observar a Plazoleta Cortázar e
todos os mistérios que a cercam.
04-11-2004
E assim percorremos essa semana: as ruas e as bordas desses homens
duplos, dessas escrituras duplas. Melhor, dessas desescriturações. Paro para
escrever as impressões do dia e dos lugares. Das leituras, principalmente das
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que faço perdida no meio da multidão, ouvindo um cantor de rua, vendo um
casal dançar tango ou um modelo vivo vestido de anjo. De cupido mesmo, a
atirar flechas no vazio que circunda a vida de tantos rostos perdidos e
encontrados no meio da multidão.
05-11-2004
El Hombre de la corbata roja me faz sonhar com um amor possível, com o meu
amor. Mas é trágico. Tragicamente belo e fantástico. Julio Bocca, Alfredo,
Jorge Fraga, Lucho, Mariano, Paco, Marcelo, Tito, Maurício, Ernesto, Adriano,
Carlos, Roberto, Javier, Jiménez, Estévan, Gérman, Oscar, Robert, Lozano,
Toto, Aníbal, Severo, Lauro, Lucas e ele, el hombre de la palabra roja.
06-11-2004
Paulo vai embora amanhã. Passamos o dia caminhando pelos mesmos
lugares, os mesmos cafés, as mesmas feiras de artesanatos. Compramos
incensos e sabonetes florais. São as únicas mercadorias que estudantes
conseguem comprar em feira de artesanato. Tudo o mais são Sebos.
07-11-2004
Paulo foi e eu fiquei com meus livros, minha solidão de escriturar a dor
cortazariana, a dor do latino-americano. Por Cortázar estou me sentindo latino-
americana. Achando que somos.
08-11-2004
Começo a minha última semana com uma nostalgia gostosa que não sei de
quê, nem de onde vem. Subo as escadarias da UBA com a estranha sensação
de que vou voltar muitas outras vezes. Marcela me ajuda a ver coisas sutis que
me passam despercebidas. Acho que nos tornamos grandes amigas.
09-11-2004
O Instituto de Literatura Argentina com as estantes carregadas de sonhos
argentinos passados, presentes e futuros. Todos querendo ser simplesmente
de verdade. Mas muitos conseguem ser somente um livro na prateleira.
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10-11-2004
Romper as amarras, escrever para descobrir coisas. Descobrir o outro é uma
aventura. Escrever Cortázar, não como um sentimental, mas como alguém que
foi capaz de entender o quê da fascinação de suas palavras e de sua alma de
gato. Eu não queria, mas essa dor CODIficada depois de tanto tempo me vem
por Manuel, em sua inocência de menino que está na Joda, sem entendê-la,
mas que crescerá em uma liberdade condicionada por um passado de chumbo
e sangue, dado a conhecer pelo manual.
11-11-2004
À tua procura, Cortázar, tenho andado por essas ruas de frio e sonhos. Ruas
que conformaram teus pesadelos de homem e povoaram teus sonhos de
escritor. Por essas ruas caminhei bem desperta para poder descobrir-te até no
café da esquina mais próxima. Os cafés e toda uma atmosfera de passado e
requinte. Os cafés propícios para se escrever, ler e conversar. Outro dia um
moço de olhar perdido enchia as páginas brancas com letras negras, azuis,
vermelhas. De todas as cores. Escrevia. Sonhava.
12-11-2004
Cramer com Jorge Newbery. María (uma amiga de Marcela) me dá uma cópia
de um documentário sobre Cortázar. Estou ansiosa para ver, mas só vou vê-lo
em casa, amanhã. Amanhã, sim, tenho encontro marcado com um homem que
permanece, para mim, novo e sem barba.
13-11-2004
00:00. Pasage Boulline. La Dama de Boulline. Café com creme. Entro nessa
que poderia ter sido a atmosfera perfeita para um conto cortazariano: cigarros,
bebidas, mulheres e homens sedutores, conversas ao pé do ouvido. Exposição
de pinturas homoeróticas. Muitos são os homens a verem o reflexo do sorriso
de Magrit, de Ana, na vidraça das janelas, que no final é Marie-Claude. A
cartomante olha a todos com olhos de flauta encantatória de serpente. O futuro
nas cartas. Não quero ver o meu futuro nas cartas. Quero o imprevisível do
imprevisível que foram esses quarenta dias dando voltas, circundando e
circunscrevendo o que poderia ter sido o pensamento primeiro e último que
27
acompanhava Cortázar na sua função de médium da escrita. 03:00. táxi,
aeroporto Ezeiza, mais um café. Mais tarde São Paulo, depois Recife. Minha
casa. Minha vida retomada. E Cortázar junto por mais dois anos.
SEGUNDO ATO
O RETORNO
Todos os dias estou em Cortázar, debruçada nele, como um amante
voraz faz com o corpo do seu amado. Nem todos os dias ele está em mim. Não
desespero. Meu diário agora não segue datas, nem horas marcadas. Em algum
momento sei que ele vai aparecer numa dessas folhas que rabisco, correndo o
risco de não dizer nada. Esse nada que me apavora, mas que me impulsiona a
querer saber mais, a sentir mais onde buscá-lo.
Começo dizendo a mim mesma que preciso seriamente desse diálogo
mudo e solitário para poder pôr ordem no caos promovido por tantas leituras
dele e dos outros sobre ele. Umas, úteis; outras, cansativas, dizem-me mais o
que não devo fazer do que seguir adiante. Tenho outros rumos, outras
bifurcações que me levam ao centro mesmo do que quero. Mas o que quero
mesmo? Outro dia me falavam pela internet sobre a possibilidade de Cortázar
ter sido um ativista político, um militante. Não há que se considerar assim. O
fato de escrever sobre os temas que envolviam o momento sócio-histórico e
político da América Latina, de se revoltar de forma literária contra a injustiça
praticada contra um povo que considerava seu, não era o bastante para
considerá-lo um ativista. Seu partido era o da humanidade. Sua busca, a da
justiça. Sua arma, a palavra crítico-ficcional. O esperado por ele, que muitos
leitores pudessem entender sua mensagem de esperança num novo mundo
povoado por um homem novo.
Sofro com a solidão. Preciso de vozes que me soprem nos ouvidos a
essência da palavra significar. Quero dividir, quero somar, multiplicar
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conhecimento. Nunca subtrair. Sozinha, sinto-me subtrativa e perco o prumo,
saio da fronteira que limita o meu raciocínio lógico e a imaginação. Sou um
pouco obsessionada por uma presença que só se me apresenta em forma de
textos.
Nunca mais sonhei com Osíris, nem Adorno se enroscou nos meus pés.
Estou como que necessitada da orientação dos gatos, de suas astúcias e
manhas para poder voltar a Cortázar que cada vez mais se distancia e me
deixa absurdamente absorta, presa a um horizonte de palavras ambíguas, de
histórias duplas e dúbias, cujo lance final eu tenho que dar, por negar-se à
compreensibilidade.
Entretanto, volto, deslumbrada ou racional. O certo é que volto a ele
cada dia como que por necessidade vital de entender o caráter humanizante de
sua literatura por trás do ideologicamente colocado. Textos, sobretextos,
intertextos, pretextos contextos para mostrar que o homem precisa ser
humano, ou humanizar-se enquanto há tempo. Enfrentar a vida, apesar da
morte inevitável. Inútil querer divorciar uma da outra. Estão ali, no páreo do
instante presente, prestes à vitória ou à derrota.
Escrevo para que as idéias não morram. Acho que ele também. Num ato
voluntarioso que me enleva e eleva ao mundo das coisas que poucos vêem,
que poucos sabem dizer. Diferentemente dele, não escrevo como um médium.
Escrevo por impulso natural, por necessidade e, sobre ele, por obrigação.
Escrever, de qualquer forma, deixa-me em êxtase e, às vezes, ajo como Lucas,
escrevendo difícil para dissimular o difícil que é escrever fácil.
Uma manhã justa de agosta, onde o sol preguiça seus raios por entre as
nuvens e caprichosamente faz frio em Recife, reinvento-me para que uma nova
vida brote de mim muito mais saudável e eu possa continuar a contar histórias
de príncipes e princesas, de início, e depois possa introduzir as de gente real,
como a de Cortázar, como a minha, mais interessantes, mais cheias de
mistérios que as outras.
29
Graciela, Sílvia, Nora, Liliane, Magda, Lolita, Mercedes, Malumbá, Adela,
Wanda, Lorenza, Teresita, Ernestina, Liliana, Zulema, Carmen, Ofélia, Raquel,
Susana, Margrit, Ana, Paula, Marie-Claude, Zulma, Lina, Manuelita, Dina,
Luciana, Bruna, Vera, Anna, María Elena, Denise, Lílian, Juanita, Claudine,
Dora, Valentina, Mireille, Eileen, Alana, Glenda, Noemí, Matilde, Flora, Paola,
Karen, Lily, Niágara, Dília, Janet, Diana, Laura, Yarará, Maggi, Sara, Felisa,
Mecha, Luisa, Anabel, Dolly... são mulheres-personagens dos contos que estou
tentando analisar. Elas me chegam, consigo traçar o perfil de cada uma, mas
muitas se repetem nas suas angústias de mulher, nas suas lutas, nas suas
faces perdidas nos seus labirintos interiores, frente a uma pintura, a uma
fotografia, aos olhos de um gato. Nunca frente a um homem.
Amanheci com a impressão de que tinha descoberto algo importante
pelas minhas leituras anteriores. Melhor, tinha confirmado algo importante.
Cortázar se refere a Paracelso em uma passagem do Libro de Manuel. Na
verdade, é uma alusão ao médico naturalista suíço. Mas essa alusão chega via
Arthur Schnitzler, em sua peça de ato único que tem o nome Paracelso(1898).
A peça tem trechos que se parecem muito com o proceder de criação literária
cortazariana, com o comportamento de muitos de seus personagens em
relação ao jogo como fazendo parte obrigatória da vida como busca de algo
não definido. Ele deve ter lido Schinitzler porque sua obra encontra-se
contaminada do sentimento paradoxal de vida e morte.
Mas esse pensamento paradoxal de vida e morte em Cortázar vem de
muitas outras fontes. Vem da Índia, por exemplo. Cortázar viajou à Índia. As
fotografias de Prosa del Observatorio comprovam isso. E é fato que muitos de
seus textos estão carregados de ensinamentos budistas, da busca do centro
mandálico, do nirvana, mas só encontramo-lo preso à roda samsárica. Cortázar
queria o centro, o alto. Mas tudo isso é desenvolvido num processo circular que
nos leva cada vez mais para o centro da sua própria vida, para a vida dos
outros e para o centro do Universo.
Eram buscas apenas. Nunca encontros. Nunca a mais alta felicidade. Os
personagens cortazarianos sempre presos no samsara, na existência cíclica.
Nem ele, como autor, atingiu o nirvana, o grau máximo da iluminação, fadado
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que estava aos renascimentos pela escritura, e hoje, pelas leituras que dela
fazemos.
Queria escrever algo sobre o escrever cortazariano, mas hoje estou
escrevendo pelo avesso do que penso, do que sinto. Até já tentei algumas
linhas poéticas à parte. Nem isso. Ficou em mim o sabor das coisas inauditas e
o saber do que me é incapaz de definir. Hoje, definitivamente, tenho a certeza
de que não sou um médium. Talvez seja, mas não sei por onde começar.
Malfadada à busca e a insistente vontade de descobrir coisas que só o coração
sabe inventar, fica tolhida a razão. E tudo em mim implode e vem à tona em
forma de desconexões e imprecisões que ouço internamente, mas não
conseguem se externalizar. Acho até que vou me dar um tempo...
Talvez fosse melhor me transmutar em aranha. Ser tarântula... não
como figura erótica, mas como símbolo espiritual, ou como o mito grego de
Aracne. Tentar trançar meu tapete de lendas, rivalizar com esse Deus literário,
aprisionar os seus sentido, os sem sentidos, os cem sentidos do seu dizer e
nunca chegar ao fim. Melhor, vou invocá-lo à mesa da minha vã sabedoria
mínima e deixar que os deuses, ou o diabo, des-ordene minhas idéias... ou as
ordene de uma forma tal que eu possa chegar a atingir o céu dos abismos de
mim mesma.
Na face mais secreta das palavras encontro o ouro e a aura da história
mais banal e desconexa: jogos de idas e vindas e voltas em becos sem saídas
e a necessidade de voar bem para dentro da mais obscura face da palavra
criar. Saber pelos olhos dele a palavra exata e exígua, o momento único de
onde se desprendem os fantasmas todos que ora se perdem, ora se encontram
com... fundidos nas espirais de fumaça que engole, depois solta, disformes,
pelos corredores da minha casa tomada. Entrar no jogo dele, jogo de cartas
marcadas, fingir-me criança e pular amarelinha de susto as entrelinhas desse
mundo de espelhos e fantasias. Captar os labirintos percorridos pelos famas e
esperanças e dançar cronopianamente o frágil ritmo de uma supervida.
Um cronópio e eu a correr o mundo, a pensar na vida. A vida me basta,
com todos os seus mistérios. A vida me basta e ao cronópio que corre a vida
31
pensando num mundo possível, num tempo possível. Um cronópio e eu, em
tempo de esperança e fama.
Quero que meu coração te receba
E a minha mente se amplie
Ao primeiro clarão de tuas idéias.
Quero que sejas
Mi cambio de luces.
Entre a vida dele e a minha, separada pelo espaço e o tempo, muita
coisa em comum: o inocente jogo da amarelinha, o amor pelos gatos e seus
olhos de mistério, a vida circundada de famas e esperanças... e o jeito cronópio
de achar que as palavras precisam ser enceradas para que digam, exato, o
canto, o verso im-puro, e a andorinha atinja seu mais alto vôo sem se deixar
morrer nos pés de Valentina.
Foi o ontem de tantos anos e ninguém mais soube se durou um sopro de
vento ou o último quinteto de Mozart. Era simplesmente o fundo do tempo, sem
tempo de recomeço, sem interesse pela vida e seus alegres jogos. As duas
mãos do cronópio e o meu olhar de esperança andam querendo um encontro:
duas mãos em grandes luvas negras e os meus olhos nus, tentando ver coisas
que não consigo explicar. Os meus olhos nus querendo saber o que esconde
tuas mãos.
A tua mão pesada e fria caiu sobre mim e as tuas palavras e(s)coaram
em verdade por todo o meu ser. Sei que agora já não sigo sozinha em minhas
meditações improváveis e desconcertantes. É como se a um passo de mim, a
um segundo de meu tempo e toda a ternura transbordasse. Mas é o cricrilar de
um grilo, o que ouvi, cortando a noite, as minhas palavras e gestos, o meu
medo de entender esse tal...
Quero que toda a minha mente lúcida
(se é que há lucidez)
te alcance fora do tempo,
eu, caçadora; tu, jogador,
em busca da palavra inicial
ou apocalíptica.
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É possível tocar tuas palavras mágicas e, qual abelha, extrair-lhes o quê
dos cem sentidos e trajetos desse favo aberto na pele e encantado na alma. É-
me permitido picar o mais temível pensamento, sorver-lhe o pólen doce e
ganhar os céus.
Queres que te faça algo que ainda estou por descobrir nestes abismos
dimensionais. Escalo montanhas, desço às regiões abissais que não me dizem
nada, mas apontam para as pegadas de um cavalo alado, trotando e soltando
faíscas incandescentes, que me cegam e me deixam na mais absoluta certeza
de que me segues e não posso tocá-lo.
Outro dia desci ao porão do mundo e vi ratos e toda a imundície
existente. Eu era um rato de baixo escalão, massacrado, sem poder dizer que
a vida rata é a que mais se vê, a que mais se sente. Séculos e mais séculos
sobre as nossas costas. Eis que o mundo se derrama sobre mim e sobre todos
os outros que ousam confessar os seus fantasmas ou coisa parecida. O mundo
pesa. O mundo e seus concretos, suas faces de pedras, seus homens-pedras,
seus subterrâneos e todos os seus subterfúgios. Tenho pena de mim que não
consigo senti-lo sem sentir o leve toque do caos e das coisas que, por serem
tantas, são de todos. Mas teimo em achar que são minhas. Só minhas.
Debruçada nos teus livros, meu pensamento te alcança na distância dos
anos, entre um café, um conhaque e um tango. Agora estou presa a ti como a
um amante platônico que só se deixa ver pela foto-grafia de outros tantos
imprevisíveis rostos, de tantos outros imprevisíveis sonhos. É impossível prever
o destino de meu amor fora de hora. Meus passos seguem firmes na direção
do nada que envolve esse momento de escritura. Meu olhar caleidoscópico
capta o que ninguém mais quer ver. Esse cheiro de coisa fétida em cada
esquina, como a me barrar, só me aponta o caminho certo: aonde quer que eu
vá, haverá sempre um olheiro e um farejador, querendo ver e sentir o que sinto
e não consegue.
Quero que o teu ser de luz me preencha
a mais sublime forma de pensar a vida,
de sonhar o mundo e suas tentativas de humanizar-
se.
33
Quero o gérmen, a palavra secreta,
segregada e sanguinária.
Quero a tua arte.
Ser arteira e artéria,
matéria da criação mais sagrada.
Uma rosa solitária, solidária, um florete e seu armador a maquinar a
presa certa. O sangue, a vida longe, longa-breve, o pensar além, pensando
agora. A irônica ponte triangular criada entre a flor, a arma e o homem: tanto
fere como prende; tanto enfeita a vida como a morte; tanto é, na sua frágil
existência que se perpetua no olhar da presa. Apenas a arma e eu, na mira da
presa, sem pressa, olho no olho e a ânsia por descobrir o melhor golpe, o fatal
golpé, onde a arma é o olho e o que está por trás. Eu, nessa jogada de
imaginar o já imaginado, o que está ali e não vejo, matéria desfibrada, volátil.
Agora nós dois no centro do mundo nos tocando em segredo de confissão: não
mataremos; não morreremos. Seremos nós. Apenas nós.
Se é vero tudo quando dizes e tudo quanto ouso entender, assevero que
tenho as minhas fases, o meu atrasar de relógios, o meu sono, as minhas
traças, sobretudo. De vez em quando faço o pó dourado espalhar-se no ar para
montar a minha própria imagem de insensível e cortar o último e o pior azar da
vida: ser essa tal que no calor da hora tenta caçar os sentidos do humano em
ti.
Embriagada de tangos e tragos, trago o meu passado nos ombros, que o
presente nada me diz e o futuro é alado. Habita em mim o velho hábito das
coisas eternas e ternas, como a sonhar o outro lado do outro, sem deixar que o
outro jamais seja o tempo em fuga. Entre o meu pensamento e o teu, os meus
dias esbarram. E já não posso seguir sem um copo, um trago e um papel. Já
não posso sonhar sem a presença dos gatos, sem a companhia de um bom
tango, sem Jazz... sem Lucas.
Entre o meu pensamento e o teu, um mundo com suas alegres danças e
seus papéis anódinos. Cavar até o sem fim do túnel, retro-prosseguir sem me
achar, perdida por entre aranhas e ratos nesta labiríntica sub’alma. Calar-me
diante do inevitável encontro, saber-me tudo, sem sabê-lo, viver esse enigma
que me convoca e me deixa de fora. Conciliar-me com os teu túneis...
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É meu esse rosto perplexo: os olhos que tudo vê... a boca de quem tudo
diz... os vincos na testa do peso dos tempos... o nariz e os ouvidos por onde
tudo entra e se filtra e se infiltra nesse cérebro arrazoado.
A ti, esta autópsia autorizada e este medo das minhas tantas faces, dos
meus tantos eus que cada vez mais se fragmentam e se reconciliam diante de
ti. Tudo o que fiz ou faço é espiar a vida pelos seus ângulos mais obtusos.
Tudo o que a vida faz é expiar-me, por não temer a palavra nua, essa que bate
na cara e gruda e marca, feito breu. Tudo o que faço com a vida é dizê-la. Um
mundo inteiro e seus mistérios escondidos no que foi contado e adivinhado.
Quero que todo o teu ser, iluminado,
persiga os meus passos e me mostre
os confins das estradas percorridas,
os pousos mais sutis, os encontros mais furtivos.
Quero que faças festa em mim.
TERCEIRO ATO
A FESTA
Leio e escrevo Cortázar como bem disse Bachelard na introdução à
Poética do Espaço, “nessa admiração que ultrapassa a passividade das
atitudes contemplativas, parece que a alegria de ler é o reflexo da alegria de
escrever, como se o leitor fosse o fantasma do escritor”. E é nesse movimento
de fantasmagoria que me detenho e me instalo por esses subterrâneos,
galerias e quartos fechados, com a sensação de que estou vivendo uma
grande festa. A festa dos que não saem dela sem ter bebido a grande taça de
uma bebida finamente amarga e doce, bendita e maldita ao mesmo tempo.
Depois de ter dançado as muitas danças e ter suado palavras desencontradas
por todos os poros, procedo aqui sartreanamente: a minha tarefa não foi a de
adoração do humano em Cortázar, mas a constatação da humanização, ou
seja, a confirmação do resgate do humano pela sua literatura comprometida.
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Saio dessa festa que é ler e escrever Cortázar, e me imagino enorme e
de mãos grandes como se tivesse sido possível alcançá-lo na eternidade que é
sua texturologia, jogando uma rayuela diferente, resoluta, onde o inferno se
transforma em céu como num passe de mágica e mágicos fossem todos os
labirintos que percorri sem nunca aprisionar o minotauro, esquecida que sou de
ter deixado a lã presa, ao fechar a última porta de minha casa tomada de
indagações e desejos de respostas que nunca me chegaram, ou me chegaram,
todavia, incompletas.
E revejo, no meu itinerário de volta para casa, que as portas apontadas
por ele sempre me levaram para respostas ambíguas e enigmáticas, como se
precisasse, a todo custo, quebrar a esfinge, para arrancar os sentido de que
precisei e precisei por toda essa longa busca de estratégias traçadas, como se
fosse a uma guerra (e fui) e todas elas modificadas no meio do caminho, por
culpa da pedra drummondiana, nunca das minhas oscilações infundadas.
Nesse metrô que agora me traz de volta, envolta numa atmosfera onde a
imaginação me visita com frequência, entrando em choque com a realidade,
reconheço: jamais serei Marie-Claude, porque todos me olham sem necessitar
de espelhos. Daria tudo para estar sentindo a sensação de estrangulamento e
levo as mãos ao pescoço em sinal de proteção. Em cada estação, portas se
abrem e se fecham num entra e sai de pessoas sem fim e eu, ainda sem rumo
certo, permaneço entreaberta, a esperar. Manuel caminha comigo, lado a lado,
eu sinto. Muito mais novo que eu, assistiu na década de oitenta, entre outros
fatos ocorridos na América Latina, certamente considerados fantásticos, por
Cortázar, a Guerra das Malvinas, a queda de Pinochet e continua no passo-a-
passo, vendo a trajetória de Fidel Castro nesses quase 50 anos de poder e
resistência. Com certeza, muitas das mansões do ditador cubano serviriam de
cenário para muitos contos anti-utópicos. Creio que alfabetizado, mas
desencantado com a figura que fez Cortázar pensar num mundo mais humano.
Morta a utopia revolucionária que fez do seu manual de alfabetização o grande
sonho futuro. Manuel jamais vestirá uma camisa com o rosto de Guevara
estampado. A imagem de um Fidel heróico não foi por ele visualizada. E, a
36
pensar pelo significado que tem seu nome em espanhol, onipresente,
onisciente, prestes a fazer a sua própria revolução.
Se é que é possível chegar à casa sem sentir essas aranhas todas que
me roem por dentro, sem encontrar cavalos no meio do caminho, nem precisar
caçar ratos para sobreviver, terei atingido o fim de uma etapa nessas histórias
que me conto e re-conto numa forma híbridra de melindre e racionalidade. E,
quando me pegar de portas fechadas a distribuir o tempo que gastei, querendo
penetrar nas tuas histórias sem migalhas, que, estas, viraram minhas, terei
atingido , mise-en-abîme, a verdadeira cabeça dessa hidra cortazariana. E,
sem medo de fantasmas, depositarei este caçador de crepúsculos no mais alto
dessas prateleiras cerebrais que construí desconcertadamente. E pensarei,
finalmente, como ele que, “un buen crítico no necesita de fechas precisas para
establecer una cronologia literaria, el tiempo está inscrito en lo escrito, en las
adherencias del momento, las modas estéticas, lo in y lo camp”. Por isso deixei
as datas para trás, esperando que o pensamento dele se cumpra em mim
nessa longa marcha que me propus seguir.
E, por fim, quando terminar de me contar essas histórias todas, terei, a
exemplo de Manuel, um manual de como se entender o mundo através do
outro, de como reivindicar pela palavra sem ser panfletário, de falar de política
sem ser político, de combater sem ser militante. Depois disso, de dentro de
mim nascerá uma mulher nova que, diferentemente do homem novo que
quiseste ser, e foste, a teu modo, a julgar pelo momento em que viveste, sem o
perigo de um confronto e de uma aceitação, terá vencido o desafio da língua
estrangeira e da linguagem labiríntica. Se chegarei aos limites máximos do
didatismo e da subjetivação será para melhor penetração da obra e para sentir
Cortázar como um escritor engajado no sentido de que sua palavra literária
tornou-se ação, através dos seus leitores. A quem me ler, caberá a tarefa de
fazer fluir e fruir essas revoluções de quem, inssurecta, teima em considerar-te
humanamente fantástico no que escreveste e fantasticamente humano para se
preocupar com o outro como ser.
E te encerro numa profusão de diálogos
onde tento decifrar tua voz
37
na voz de tantos que são o teu espelho
e tua face mais humana.
E te penso como esse homem
Permanentemente novo e atual
Que, ora mudo, diz tanto
Do tanto que quis dizer de ti.
QUARTO ATO
ÚLTIMO TANGO
Teria direito a dançar um último tango contigo, porque, por noites a fio te
tirei pra dançar e só agora me permites. Se acompanhei teus passos?
Dançamos parados, frente-a-frente, olho-no-olho, sem ouvir um toque. Um
passo sequer, pra não quebrar a troca. Perdi-me em sonhos. Entrei em teu
mundo e vivi o momento que agora componho. Como distinguir corpo e dança?
Ainda estamos agarrados à breve esperança, ao prazer puro e simples da
contra-dança.
¿ Cómo te llamás, en la oscuridad quiénes somos vos y yo?
Somos dançarinos da vida a querer driblar a morte. Todos os dias e
noites, a vida inteira, o mundo gira, dançarino. Quantas voltas a gente dá.
Muitas vezes, sem destino, caminhamos em várias trilhas, subimos em vários
morros, descemos imensos abismos. Não encontramos saída. É a vida. E a
vida gira. Gira tudo. Os giros que hoje damos, inconseqüentes ou não, têm um
pouco de emoção.
Alheios à verdade do amanhã, nada importa. Nem o mundo lá fora.
Depressa, não percamos a hora! Que pena, os giros... são tão incertos! E nem
sempre que tudo gira, dançarino, estás por perto. Se é possível, acaso possas,
repitamos, sem demora, os mesmos morros, trilhas abismos, os mesmos
38
passos, sem procurarmos a saída. Se juntos estamos e juntos giramos a vida,
não precisamos sair... Vivamos à nossa medida.
Tanta coisa que eu queria falar nesta contra-dança. Não consigo. Nem
mesmo sei se a nossa medida é calculável. Se o nosso tempo – passageiro –
dará chance de vivermos sem limites esse fogo que nos queima... Se nos será
permitido dançar a música da vida... Porque a vida, essa vida que imagino, é
tão perfeita quanto ilógica. Mas é apaixonante. Por isso, deixemos correr o
tempo. Não pensemos no futuro. O futuro me dá medo. Então me agarro ao
presente como a um brinquedo quebrável – frágil – mas presente. Poderemos
ter tantos presentes!
E imaginei um presente maravilhoso, tão particularmente meu, que nem
me dei conta de que já és meu passado. Para continuar feliz, tenho que
esquecer o passado e viver a minha medida presente. Mas a minha medida é
insuportável sem ti. Por isso vens sem explicação. Chamo-te em pensamento,
não preciso nem falar. Porque não há um segredo teu que eu não tenha
desvelado. Algo há que ata as nossas medidas. Cantas à morte? Eu à vida em
seus mistérios. Preferes o amor trágico? Eu, o amor venturoso.
¿ Pa’ que encender la luz, si al fin, total, lo mismo de estar vivo que
morir?
E pensar que a nossa dança está prestes a terminar... Ainda estou
planejando como dar os primeiros passos. Imagino o que eu possa aprender!
Sou principiante. Mostre-me a fonte da vida. Quero ir lá beber prazer. A
qualquer hora, sem pressa, vou sem medo. Conhecer o desconhecido é minha
maior vontade. Depois de ti não consigo pressentir qualquer perigo. Não me
deixes desistir. Até aonde me levar, quero ir. Ensina-me como se dança essa
misteriosa música. Se eu demorar a aprender, insiste, tente. Sou como a folha
em branco. Ensina-me quantos passos for preciso, com paixão imoderada.
Ensina-me tudo. Não importa tempestade ou calmaria, quero que vejamos
juntos o nascer de um novo dia.
No habrá más medianoche, aquí, volverá el claro tiempo de vivir.
39
Todo o tempo do mundo fosse meu, dançarino, gastaria deslizando
por sobre teu corpo, aprisionando pensamentos. Mas o tempo corre veloz. E
me tocas, ora sutil, ora violento. Esses toques, por vezes, abrem feridas e
deixam cicatrizes profundas de crescimento, de crença. Não no nosso futuro;
na nossa dança. Essa que nós conhecemos. E nada, nem ninguém poderá
superá-la. Nem o tempo – infinito em sua fisiologia e finito enquanto vida
corpórea. Agora tenho em minhas mãos a tua alma, o teu destino. Tenho algo
teu agora permanente em mim.
Nos quedaremos solos y será ya de noche.
Não importa. Perdoa-se me ainda tento dançar contigo outra vez... É
que há algo em ti que preciso com loucura. E, em vão, tento descobrir o motivo
da procura. Se não há dança, minha alma fica presa, encarcerada, vagando,
cercada em grades de ferro, envolta em pensamentos... E és tu, meu
carcereiro, que me deixas sem saída... Mas hoje estamos aqui, frente a frente,
sem palavras. E os braços que me abraçavam paralisados no ar. Os pés, que
outrora traçavam os mesmos passos que os meus, estão que petrificados.
Ainda devemos dançar? Nossos passos são passados? Os ritmos, longe se
vão? Mas nos teus olhos vazios eu busco alguns resquícios de sonhos, de
ilusão. São tantos ainda que não cabem na palma de minha mão.
Yo diré: ya es muy tarde.
O que restou dessa dança ficou só no pensamento. Não é tarde pra
nós. E, enquanto o tempo passa vou descobrindo maneiras de ir saindo de ti.
Preciso descobrir minha trilhas, ultrapassar meus abismos. Agora sim,
dançarino, está lejo nossa dança. Danço sozinha uma música sem ritmo, seca,
sem nada... Não há viagem. Saudades da tua dança... Uma dança que não se
explica: é sentida, ritmada, acompanhando as batidas o toque do coração. O
que me falta? Um passo a mais, a melodia da alma pura, o som das notas, os
passos cadenciados.
Guardada numa caixa de concreto – suspensa no ar – ouço Trottoirs de
Buenos Aires. Não há nada em lugar nenhum... convergência de cores.
40
Ficaram presas todas as palavras, todas as palavras. Desejos de te sentir por
perto, dançar contigo outras vezes depois de um tempo infinito, nem sei que
música. Mas isso não é mais a nossa dança... é a minha vida, dançarino, que
está em jogo. Continuemos dançando, preciso sobreviver.
41
PRIMEIRA REVOLUÇÃO
A TEXTUROLOGIA
Todo libro surrealista es en alguna medida vicario. El hombre que lo escribe
está en actitud de restitución, y admite ser llamado como Parsifal der Reine,
der Tor; su obra evade lustralmente las normas que lê tiende el lenguaje.
(Julio Cortázar – Teoria do Túnel. In. Obra Crítica, vol. I, 2004:111)
42
1. A TEXTUROLOGIA
De que é, como é feito o tecido narrativo cortazariano? Para se
compreender melhor o funcionamento de sua obra ficcional e sua tecitura
enquanto obra multigenérica, necessário se faz proceder a uma articulação
com o seu texto crítico. Sabendo-se que Cortázar foi um crítico eclético – sua
crítica foi além da literatura – podemos pensá-lo como o escritor rebelde que
descreve em sua Teoria do Túnel (2004:67): diferentemente daquele que
escreve por conveniência, e com isso esburacando e afundando a bandeira
das letras, o escritor rebelde, como ele, tem conhecimento – e conhece a
fundo, pelas críticas que fez – do que chama de “ordem literária vigente” ou de
“estruturas consideradas escolarmente como normativas”. E é lendo essa
ordem literária vigente e tomando por base a obra literária criada por Balzac
que ele chega à conclusão de que a literatura falseava o homem por não
mostrá-lo em sua totalidade. Desta forma, o escritor rebelde se coloca como
um destruidor por dois motivos: por necessidade moral e pela reconquista
instrumental, isto é, fazendo uso da liberdade como conquista existencial, para,
através da agressão às formas literárias tradicionais, encontrar a sua própria
formulação literária. Explicando como se daria essa destruição, Cortázar
(2004:67) afirma:
Esta agresión contra el lenguaje literario, esta
destricción de formas tradicionales, tiene la
característica propia del túnel; destruye para
construir. Sabido es que basta desplazar de su
orden habitual una actividad para producir alguna
forma de escándalo y sorpresa.
Pegando emprestado um termo de Un tal Lucas (1979), ‘texturologia’,
partimos para um ponto da obra de Cortázar que supomos ter sido o
desencadeador e (a)firmador de sua primeira revolução: a linguagem e sua
disposição espiralada dentro do texto ficcional a puxar o leitor para um centro
43
imaginário onde o real é peça chave. Em seguida, recolhemos o novelo de lã
deixado por Irene dentro da casa tomada para entendermos os procedimentos
dessa escrita-textura, onde o autor tece, trama, dispõe as partes de um todo
sem se prender às fórmulas já cristalizadas pela língua e pelos padrões
exigidos pela literatura vigente, sem se preocupar com a linearidade formal,
temporal ou espacial. Racionalmente ele penetra o sentido das palavras para
criar uma nova contextura, ou seja, trava uma luta não linear com o texto para
mostrar uma forma de expressar a desordem do real e, dentro deste real, a
desordem do ser humano. Cortázar afirma em Un tal Lucas ( p. 308):
No se conocen limites a la imaginación
como no sean los del verbo;
Lenguaje y invención son enemigos fraternales
y de esa lucha nace la literatura,
el dialéctico encuentro de musa con escriba, lo
indecible buscando su palabra,
la palabra negándose a decirlo
hasta que le torcemos el pescuezo
y el escriba y la musa se concilian
en ese raro instante que más tarde
llamaremos Vallejo o Maiakovski.
Semelhante à ópera wagneriana, Cortázar entrama no seu texto os
mais diversos gêneros e temas. O verbo para ele só conhece os limites da
imaginação. A tessitura textual que se vai conformando ao longo da narrativa
cortazariana dá-se mais no plano semântico e é por esse plano que
seguiremos. Daí a imprescindibilidade do re-conhecimento contextual para
melhor inteirar-se do seu sentido. Os limites da imaginação desse autor que
escreveu de modo ‘trans’ ultrapassam as noções que temos sobre a
construção do texto ficcional tomado no seu sentido tradicional. Assim ele cita
Vallejo e Maiakovski como exemplos máximos de casamento dialético entre a
palavra e a criação literária. Sobre o ato criador do primeiro, Mariátegui afirma
que
Vallejo además no es sino en parte simbolista. Se
encuentra en su poesía - sobre todo de la primera
manera - elementos de simbolismo, tal como se
encuentra elementos de expresionismo, de
dadaísmo y de suprarrealismo. El valor sustantivo
de Vallejo es el de creador. Su técnica está en
44
continua elaboración. El procedimiento, en su arte,
corresponde a un estado de ánimo.
2
Do segundo, sabemos que Maiakovski foi um dos principais integrantes
do movimento futurista russo, distinguindo-se como o mais ousado renovador
da poesia russa no século XX. Dele, Haroldo de Campos nos diz que,
é o maior poeta russo moderno, aquele que mais
completamente expressou, nas décadas em torno
da Revolução de Outubro, os novos e
contraditórios conteúdos do tempo e as novas
formas que estes demandavam. Maiakovski deixa
descortinar em sua poesia um roteiro coerente,
dos primeiros poemas, nitidamente de pesquisa,
aos últimos, de largo hausto, mas sempre
marcados pela invenção. "Sem forma
revolucionária não há arte revolucionária", era o
seu lema, e nesse sentido Maiakovski é um dos
raros poetas que conseguiram realizar poesia
participante sem abdicar do espírito criativo
3
.
Dos dois poetas, o gosto de Cortázar pela renovação do fazer literário,
pela revolução que empreendiam ambos desde a temática à própria forma. Dos
dois homens, o espírito revolucionário. De Maiakovski herdou a síntese da
poesia para o conto. Assim ele se expressa em um poema
4
:
Eu/à poesia/só permito uma forma:/concisão,
precisão das fórmulas/matemáticas./Às parlengas
poéticas estou acostumado,/eu ainda falo versos e
não fatos./Porém/se eu falo/"A"/Este "a"/é uma
trombeta-alarma para a Humanidade./Se eu
falo/"B"/é uma nova bomba na batalha do homem.
De Vallejo a herança da piedade humana e a responsabilidade pela dor
do homem:
I, desgraciadamente,/el dolor crece en el mundo a
cada rato,/crece a treinta/minutos por segundo,
paso a paso,/y la naturaleza del dolor, es el dolor
dos veces/y la condición del martirio, carnívora
voraz,/es el dolor dos veces/y la función de la
2
Cf. Mariátegui, 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana. Lima: Empresa Editora
Amauta S.A., 1996.
3
Cf. comentário de Haroldo de Campos publicado no livro Maiakovski – Poemas, Editora
Perspectiva, 1982.
4
De "V Internacional" - 1922) Tradução de Augusto de Campos.
45
yerba purísima, el dolor/dos veces/y el bien de ser,
dolernos doblemente
.
5
O fazer literário cortazariano tem um aspecto duplo: um, lúdico; outro,
poético, um trágico; outro, cômico. Ambos produzem nele uma zona de
incertezas, de incompletudes e tensões, mas também de profunda reflexão que
culminam com a construção de sentido do escritor moderno, sempre em busca
de inovações e rupturas. A fragmentação, a superposição de falas e textos,
essa incompletude de estratégia narrativa comporta o que poderíamos chamar
de fluxo de consciência em muitos casos e, noutros, de uma escrituração
cinematográfica, onde as idéias surgem em flashback. O que ocorre é uma
multiplicação de práticas narrativas que se oferecem ao leitor como opções de
jogo a serem compartilhadas com o autor.
A escrita cortazariana da década de setenta e início da década de
oitenta privilegiou um tema, o do comprometimento político-ideológico que se
sobrepõe aos demais, comuns à sua produção anterior, fazendo com que esta
ganhe uma nova dimensão dentro do quadro geral de sua obra. Mesmo sendo
uma escritura fragmentada, Cortázar mantém uma autocrítica que corre
paralela nas entrelinhas do texto literário, revelando uma necessidade não
explícita de construir um pensamento crítico sem intenções doutrinárias, porém
exigindo a participação direta do leitor na decifração das regras de um jogo
lançado, sabido, mas nunca resolvido.
Cortázar desfaz e refaz a sua narrativa, produz com ela novas
possibilidades de apresentação da palavra como signo, que extrapola o
puramente verbal para encarnar os dizeres sociopolíticos atados aos literários
numa valorização equivalente. Verbo e imagem conjugados numa sintaxe
inusitada, onde não importa a disposição dos termos, mas sim a significação
que deles podemos extrair. E, nesse jogo de desfaz-refaz, um elemento
fundamental permanece em todas as instâncias de sua obra: a cultura e o
idioma argentino. Lendo Cortázar, encontramos em sua escrita o que Octavio
5
Cf. trecho do poema Los Nueve Monstruos, in. http://www.los-poetas.com/b/valle.htm
46
Paz (1991:116) pensa a respeito de cultura: em toda a sua obra Cortázar não
fez mais que cultivar o seu povo, lavrando-o para que desse frutos.
A pretensão de proceder a uma análise da diversificada forma de
escrever de Julio Cortázar nos coloca frente à atitude do leitor proustiano: para
que a crítica atinja sua significação profunda e, na medida do possível, chegue
mais próximo do pensamento do autor. Pela análise, tentaremos re-criar algo
próximo do que ele sentiu, fazendo que seu gesto criador se torne visível. Mas,
a sua escrita fragmentada, e desse modo a história, na maior parte das vezes
não nos deixa visualizar a estrutura como um todo. Melhor mesmo é tomarmos
o pensamento de Wolfgang Iser (1996) e seguirmos tentando complementar,
com os olhos de leitor comprometido seriamente com o texto e seus sentidos,
os vácuos deixados pelo autor que se desdobra a cada narrativa nos pseudo-
personagens que criou.
Cortázar conseguiu estender as fronteiras geopolíticas pela palavra
literária e pelo discurso crítico. Soube dizer exatamente o que queria dizer da
América Latina, como ficcionista e como crítico. Fez com que cada palavra
tivesse a devida competência. Investiu-a com o pensamento que considerava
necessário ser repassado dentro de sua vasta visão externa de mundo latino-
americano. Promoveu pela palavra o encontro entre homem e mundo. Mas
dizer o que se pensa, muitas vezes proporciona um certo mal estar nos outros.
Como artesão da palavra, não acreditamos que os procedimentos de
construção que utilizou em sua obra sejam frutos de um experimentalismo puro
e simples, mas resultado de um conhecimento consciente dos instrumentos
utilizados. Não se trata de um simples texto novidadeiro, mas do resultado de
uma vivência e suas subjetividades expostas a um público carente de uma
identidade literária. Não é uma tentativa de escrever um texto literário pelo
simples prazer de escrevê-lo e demonstrar que escreve diferente, mas a
certeza de estar colocando-o ao leitor como opção criativa e instigante.
O fantástico de sua construção começa pela configuração de um
homem triplo: um literato, um intelectual e um pragmático, cada um transitando
livremente dentro de cada história, ora de modo lúdico, quando funcionava o
primeiro, ora de modo reflexivo, interrogador, quando funcionava o segundo e,
47
por fim, envolto na sabedoria do homem comum, carregado com todos os seus
problemas, quando entrava em ação o último. E é desse homem triplo, que
propõe um texto literário diferente e que se arrisca a inserir um tema
intensamente real para que sua verdade literária se torne mais explícita, que
surge o homem humanamente novo.
A texturologia cortazariana se configura como escrita resultante de um
embate entre o texto literário estabelecido e o pretendido pelo autor. A vontade
era a de mostrar uma literatura que fugisse das fórmulas já apresentadas
e que
esta atingisse, pela linguagem, não vencida, mas acometida de
uma nova
perspectiva, várias outras realidades que as costumeiramente apresentadas.
Cortázar tramava suas narrativas dispondo-as num tabuleiro onde o inferno
era a linguagem estabelecida e o céu a sua renovação. Pulava a linguagem
amarelinha de clichês, de frases feitas, da literatura vigente. Boxeava a
linguagem numa peleja cujo vencedor seria o leitor ávido por uma literatura
criativa. Do gíglico de Rayuela aos últimos contos deparamo-nos com uma
linguagem espontânea que brinca dentro da forma narrativa co(r)rompida e
desordenada de apresentar uma realidade fantasticamente humana e até
diríamos, humanizadora, na medida em que, trazendo o leitor à cena literária,
faz que se transforme em ator social de seu texto.
À linguagem literária que considerava falsa, impõe-se-lhe uma
impactante, onde a ordem é a desordem, instruções que, fugindo do
estabelecido, produzem um efeito de jogo. E quando falamos da linguagem de
sua literatura dita comprometida consideramo-la comprometida com o ser
humano, com a sociedade em geral, cuidada no sentido de não reproduzir
clichês e fugir da ideologia oficial. Pega a contramão da história para mostrar o
seu lado negativo via linguagem metaforizada, seja pela invenção de palavras
ou da utilização de imagens de seu bestiário anterior, quando a preocupação
era somente com o elemento literário.
48
1.1 O INFERNO
OU AS PEÇAS DO JOGO DE MONTAR
Comecemos por Lucas, sus comunicaciones ( UTL, p. 235). Ele não
só escreve como gosta de ler, mas lê o que os outros escrevem. No entanto,
ele se vê tomado de surpresa diante de algo que lê, mas não consegue
entender, por se formar entre ele e o lido uma barreira, “como un vidrio sucio”
e, por mais que se esforce nas releituras, acaba levantando um vôo cego,
como o do morcego perdido na claridade: só consegue ir à parede mais
próxima, bate e cai, sem saída. E então ele se pergunta “qué demonios ha
podido ocurrir en el aparentemente obvio pasage del comunicante al
comunicado” que lhe impede a compreensão do lido. No caso de seus textos,
ele toma o devido cuidado para que isso não ocorra, e,
Por más enrarecido que esté el aire de su
escritura, por más que algunas cosas sólo puedan
venir y pasar al término de difíciles transcursos,
Lucas no deja nunca de verificar si la venida es
válida y si el paso se opera sin obstáculos
mayores.
Diferentemente dos textos literários que lê, Lucas-Cortázar preocupa-se
com o que escreve, com o que vai repassar ao leitor como literatura. Para
Cortázar, um escritor é tratado conforme trata a linguagem e a escrita. Deste
modo,
para atingir o estado da escrita que mereça ser
chamada de literária não basta ter enchido resmas
brancas ou azuis sem outro cuidado que a
correção sintática ou, no máximo, um vago
sentimento das exigências eurrítmicas da língua.
6
Os mecanismos discursivos com os quais nos deparamos no conto
Diário para un cuento (D, p. 488), coloca-nos frente a um monólogo em forma
de diário, seguindo mais uma vez os padrões genérico-discursivos pretendidos
por ele, isto é, nenhum padrão. O que aí se encontra é um relato-diário onde o
6
Não há pior surdo do que aquele que. In. Valise de Cronópio, p. 195.
49
autor-narrador, pretendendo escrever sobre Anabel, escreve circularmente
sobre literatura, sobre o escrever literatura, e o faz aludindo a escritores como
Bioy Casares, Poe, Onetti, Capote, Proust, Arlt, entre outros. Expedientes
também utilizados em outros contos como em Manuscrito hallado en un
bolsillo
7
(Oc, p. 65), quando se refere ao ato de escrever: “ahora que lo
escribo”, ou em Ahí pero dónde, como ( Oc, p.81), quando cita Lorca e Rilke.
São escritores que certamente despertaram nele algum sentido de ruptura com
o estabelecido
8
. O fato de querer ser Bioy, por razões muito pessoais, e de
certa forma até irônica, pelo fato de ser um escritor que, como Borges, nunca
assumiu-se como ser político, preferindo seguir escrevendo dentro dos padrões
aceitos pela ditadura, são analisadas por Trinidad Barrera (1986:157)
especialmente no tocante à sua temática, bastante apreciada por ele:
Bioy es aquí algo más que una referencia a su
estilo, ya que el tema de las prostitutas, de las
oportunidades perdidas, de los viajantes de
comercio, de las tertulia pueblerinas, del miedo de
los hombres a cruzar el << foso>> de su razonado
discurrir frente a las intuitivas mujeres, son temas
todos ellos muy queridos a Bioy.
Cortázar joga nesses contos e em outros com as rupturas que fez de
sua obra uma obra singular nesse aspecto. Assim, concluímos com ele que o
jogo (sério) que envolve a sua escrituração desde o princípio, estende-se por
toda a sua narrativa numa provocação ao leitor para o entendimento do lido. E
podemos, com ele, seguir o percurso desse jogo rayuelesco que envolve, numa
espiral profunda a sua narrativa, compartimentada em cada peça do jogo de
montá-la.
7
O título do conto assemelha-se ao do conto de Poe, “Manuscrito hallado en una Botella”. Poe
é um dos autores preferidos de Cortázar, de quem traduziu todos os seus contos e a quem se
referia sempre em suas seleções de leitura.
8
Acreditamos que quando se refere, em vários contos, a pintores, cineastas, músicos,
compositores, escultores, entre outros, é por estes terem despertado nele esse mesmo
interesse.
50
1.2 CASA 1: A ESPIRAL BARRADA
Quando o fim é o começo no seu modo de escrever? Seguindo o jogo
da amarelinha, Cortázar começa pelo inferno que é ler e entender a literatura
existente, a sua feitura, a linguagem nela cristalizada. Uma literatura que ele
considera ultrapassada, reiterativa dos modelos existentes, necessitada de
odificações tanto formais quanto conteudísticas. Reclama da ausência de
escritores criativos e leitores sensíveis o bastante para se completarem numa
troca de escritura-leitura fluida e fruída, se quisermos pensar
barthesianamente. Se ele considera que o mal dessa literatura estabelecida
encontra-se no empobrecimento deliberado da expressão, então, passa à
segunda casa, a da linguagem, onde na sua obra se concentra o cerne
revolucionário por excelência.
A linguagem cortazariana segue a linha da surreal Patafísica de Alfred
Jarry
9
, isto é, trata-se de uma linguagem espiralada e excessivamente
fecunda, agregando em sua temática o fantástico, o surrealismo e o
existencialismo. E essa fecundidade em sua linguagem barra a espiral inicial
para se curvar às diversas entradas de um labirinto sinuoso enigmático e
obscuro. Possivelmente, por isso, a predileção pelo número oito que rege a
quantidade de contos em alguns de seus livros e até mesmo o próprio nome de
um dos livros, Octaedro. A Patafísica tinha como um de seus símbolos o
Ouroboros, que será discutido mais detalhadamente na terceira revolução.
Junto à Patafísica, há notadamente uma preferência de Cortázar pelo
surrealismo como movimento existencial que envolve o homem e a poesia,
como está expresso na sua crítica (2004:112): “poesía como conocimiento
vivencial de las instancias del hombre en la realidad, la realidade n el hombre,
la realidad hombre”. E também como verdadeira revolução na linguagem e na
9
Alfred Jarry (1873-1907), poeta, dramaturgo e romancista francês. Sua obra coloca em cena
de maneira insólita os mais grotescos traços humanos. É um dos inspiradores do surrealismo e
do teatro do absurdo. A Patafísica criada por ele é a ciência das soluções imaginárias e tinha
por objetivo explorar os campos negligenciados pela física e pela metafísica, estudando as leis
que regem as exceções. Valoriza o espírito criativo e lúdico tão presente na obra de Cortázar.
51
arte, como se mostra explicita e magistralmente no conto El otro Cielo (TFF,
1966). Este conto abre-se com uma epígrafe de Cantos de Maldoror, de Isidore
Ducasse
10
. O autor-narrador tece sua narrativa em dois tempos e dois espaços:
na Paris de 1868, época em que Lautréamont publica os Cantos e em Buenos
Aires, num período compreendido entre 1928 e 1946. Neste último ano, o
narrador pensa nas eleições e fica em dúvida se votará em Perón, em
Tamborini ou em branco.
Se a obra cortazariana pode ser considerada surrealista seguindo o
pensamento de André Breton é mais no sentido de que percebemos que o real
encontra-se perpassado pelo imaginário e pelo irracional. Libro de Manuel
(1973), por exemplo, trata de apresentar ao leitor como se cria um homem
novo, resultante de uma mudança social que se faz necessária: homem novo
e, conseqüentemente, sociedade nova. E ele faz isso recorrendo ao humor
negro, quando se refere à crueldade porque passa o povo da América Latina
com a ditadura militar. Distancia-se um pouco do surreal quando suas
preocupações se estendem ao humano em suas manifestações de
humanidade. A crítica social se faz presente durante toda a preparação do
manual que fará de Manuel um homem novo. Nesse livro, como em Rayuela e
no próprio Un tal Lucas, o autor se vale de outros expedientes dignos do
surrealismo bretoniano: automatismo, associações livres, hipnoses, colagem,
elementos que fazem do texto de Cortázar um remoinho voraz e veloz que faz
com que nunca cheguemos ao seu centro sem antes não sermos sorvidos
pelas suas forças centrífugas. Enfim, o que Cortázar consegue demonstrar que
o caracteriza como surreal é uma realidade fuida, plástica. Uma realidade
mítica e poética que se move como o rio indiano de uma antiga lenda ao qual
se refere Lezama Lima (1988:429), o rio Puraná,
cuya afluencia no se puede precisar. Al final de su
caudal se vuelve circular y comienza a hervir. Una
desmesurada confusión se observa en su acarreo,
desemejanzas, chaturas, concurren com
diamantinas simetrias y con coincidentes ternuras.
Es el Puraná, todo lo arrastra, siempre parece
estar confundido, carece de análogo y de
10
Obra inspiradora do movimento surrealista francês.
52
aproximaciones. Sin embargo, es el rio que va
hasta las puertas del Paraíso. En los reflejos de
sus ondas desfilan el vestíbulo del farero, el árbol
de coral, la cadena del ojo del tigre, el Ganges
celeste, la terraza de malaquita, el infierno de las
lanzas e el reposo del perfecto.
Os caminhos aqui percorridos durante a análise do corpus escolhido
mostram as interferências do surrealismo e do fantástico, num primeiro
momento de sua obra, para fechar com um humanismo existencialista mais
intenso na fase escolhida. Será imprescindível para a compreensão de tais
interferências na obra cortazariana, a Teoria do Túnel, subtitulada Notas para
uma Localização do Surrealismo e do Existencialismo (1947). Para Saúl
Yurkievich, organizador da edição da Obra Crítica 1(1998), que contém o texto
acima citado, a Teoria do Túnel coloca Cortázar em posição privilegiada em
relação à obra que produz, posto que “enuncia o próprio programa romanesco,
postula a poética que desde o princípio [...] irá reger a ficção cortazariana”. Ele
situa um Cortázar muito mais voltado para o existencialismo sartreano que para
o surrealismo, embora concorde que as intenções de Julio Cortázar sejam
conjugar ambos. O próprio Cortázar afirma que “o surrealismo [...] coincide com
o existencialismo numa maiêutica intuitiva que o aproxima das fontes do
homem”, isto é, ambos se preocupam com o ser do homem (p. 100).
Do Surrealismo, podemos encontrar, na obra de Cortázar, como um
todo, uma marcação temática intensa: desde as alucinações, os sonhos, os
desejos, as fantasias, até a ruptura com as formas já estabelecidas de
escritura, buscando novas possibilidades de expressão, promovendo uma
“hibridação genérica”, no dizer de Saúl Yurkievich, para qualificar a sua
narrativa. Narrativa esta que permite ao crítico afirmar ser procedente de “uma
mesma matriz [...] um texto preliminar que o explica e o justifica” (p. 21).
Estas considerações acerca dessa ‘matriz’ permite um questionamento
que se pretende resolver no decorrer da análise: se a Teoria do Túnel
funciona como matriz para a produção romanesca de Cortázar, a qual só
alcança êxito, como Saúl afirma, quinze anos depois de seu início, com
Rayuela, as teorizações sobre o conto e em especial, Alguns Aspectos do
Conto, texto escrito em 1963, serviram como uma nova matriz para a contística
53
produzida a partir de então, atingindo êxito com Octaedro, onze anos mais
tarde.
O fantástico, é fato que se comprova posteriormente, perpassa a obra de
Cortázar e esse aspecto ele mesmo se encarrega de afirmar, quando diz:
o sentimento do fantástico não é tão inato em
mim como em outras pessoas, que
conseqüentemente, não escrevem contos
fantásticos. Quando criança, eu era mais sensível
ao maravilhoso que ao fantástico.
11
Assinalaremos com o decorrer da análise que o fantástico vai perdendo
a intensidade dentro das obras escolhidas, para dar lugar aos temas ligados ao
sociopolítico. E futuramente, quando, com mais entusiasmo, começa a tomar
partido das causas da América Latina, sua sensibilidade vai de encontro ao
sociopolítico-ideológico, o fantástico passa a ser um elemento importante para
a exposição de fatos reais. O fantástico vivifica-se por estar diretamente
exposto em cenas cotidianas ligadas à Ditadura Militar.
Jaime Alazraki (1999), em prólogo ao segundo volume da obra crítica do
autor, mostra como se deu a relação dele com o surrealismo, o existencialismo
e o fantástico: Rimbaud, Sartre e Poe formam o que poderia ser considerado
como fundamentais para a sua formação como intelectual e,
conseqüentemente, para o desenvolvimento de sua obra. Por sua vez, Saúl
Sosnowski (2001:15), considera que Cortázar soube conjugar “o legado
surrealista com a aposta dos existencialistas”, sem contudo desprezar alguns
aspectos que lhes são caros: o fantástico, a política, a história. Todos esses
aspectos contribuindo para fazer de seu texto, o que Saúl define como “textos
de batalha”, nos anos 60 e 70, bem como a crítica que empreendeu de autores
latino-americanos, como forma de expressar “a heterogeneidade cultural latino-
americana” lá fora
.
11
Do sentimento do fantástico. In. Valise de cronópio, p 176.
54
1.3 CASA 2: A LINGUAGEM
Se para Foucault (1995:109) “o limiar da linguagem está onde surge o
verbo”, para Cortázar está onde este se subverte, onde as regras são
quebradas para darem lugar a uma nova fórmula de linguagem literária que ele
considerava válida. Negar para conseguir reconfigurar toda uma literatura que
lhe parecia decadente, porém estabelecida. Uma linguagem para efeito de
provocação e inovação, cujo sentido Graciela Maturo (2004:112) captou em
seus estudos sobre Rayuela, mas que se aplica às demais obras que a esta se
seguiram:
El proceso de revitalización del idioma que
propone Cortázar no consiste en la pura distorsión
gramatical o la irrupción violenta de lo alegórico.
No se trata de experimentalismo lingüístico sino
de la búsqueda de una lenguaje totalmente veraz,
capaz de contener verdaderamente toda la
realidad psicológica del hombre, sin excluir la
lucidez, sin negarse a la comunicación.
A aventura gíglica empreendida em Rayuela implode a velha linguagem
literária, dando lugar a uma nova e revolucionária: a que se desdobra e se
matiza com a coloquialidade Argentina e se ressignifica nas falas das pseudo-
personagens, de um autor implícito ou de um alter ego, como melhor aprazer à
crítica. De forma que ele conseguiu em suas narrativas, mais especificamente,
a partir de Rayuela, que as palavras, foucaultianamente pensando, pudessem
“se abrir e liberar o vôo de todos os nomes que nelas se depositaram”
12
.
Lucas, em su arte nuevo de pronunciar conferencias (UTL, p. 246),
assinala: “la palabra es como una golondrina cayendo en una sopera de
tapioca [...]. Que nadie finja ignorar esta presencia que tiñe de irrealidad toda
comunicación, toda semántica”. E assim, em muitas outras passagens, ele vai
desprezando verbalmente os limites que se impõem entre a linguagem e a
invenção num jogo onde vence o autor que, pela boca de Lucas, ou de tantos
outros personagens, chega ao leitor para dizer o que pensa como escritor
sobre o texto que rechaça e tem a liberdade de rechaçá-lo porque
12
Ver Foucault, 1995, p. 118.
55
Ni siquiera soy yo quien lo dice sino que alguien
me manipula y me regula e me coagula, yo diría
que me toma el pelo como de yapa, bien claro
está escrito: yo diría que me toma el pelo como de
yapa. (UTL, p. 286)
1.4 CASA 3: RE-TECENDO
OS TEMAS CORTAZARIANOS
Por que re-tecer os temas das obras de Cortazar? A princípio, para
situar o elemento sociopolítico que surge com intensidade a partir de Libro de
Manuel. Em seguida, para constatar que o elemento fantástico, predominante
na sua obra inicial, ainda se encontra presente, revestido pelas cenas
cotidianas da violência instaurada a partir da Revolução Cubana e das
Ditaduras Latino-americanas. Sobretudo para localizar o elemento humano
como grande tema na obra de Cortázar como um todo. O homem como ser em
constante mutação, precipitado sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre o
outro, numa tentativa desesperada de entender o sólito através do insólito,
numa tentativa de entender-se a si mesmo pelos problemas circundantes e,
quando consegue, acaba por meter-se em situações irresolvíveis. O fantástico
vem colocar o homem cortazariano em contado com uma realidade possível,
mas é a realidade factual a que mais o abisma, e, pela crueza com que é
tratada, torna-se também fantástica.
3.1 HISTORIANDO O FANTÁSTICO
Ao longo dos tempos, incontáveis lendas e incríveis histórias, versando
sobre acontecimentos sobrenaturais, povoaram o imaginário dos mais
56
diferentes povos. Dentro da religiosidade ocidental, a própria Bíblia, por
exemplo, apresenta-se permeada por várias passagens que envolvem ações
de espíritos malignos, do diabo, de aparições misteriosas, as quais remetem
para o que se poderia hoje ser considerado como fantástico. Robert Couffignal
(1998:3) trata a lenda bíblica do patriarca Abraão, na passagem que se refere
ao sacrifício de Isaac como fonte mitológica geradora de paráfrases e
atualizações literárias. Mais adiante, é o próprio Robert Couffignal (p. 294)
quem assegura que o drama vivido no Éden por Adão e Eva, é o mais mítico:
é, de fato, um mito de base, e, para um ocidental,
sua antropogênese: de onde vem a humanidade,
de onde vem o casal, de onde vem o fardo do
trabalho, o sofrimento e a morte... É uma narrativa
com função religiosa, pois ensina que nossas
desventuras provêm de nossa desobediência à
ordem divina. Ela pretende ser tomada como
verdadeira.
Na literatura temos, mesmo antes da Idade Média, o caso da descida de
Ulisses aos Infernos, relato feito por Homero, na Odisséia. Nas tragédias
gregas são muitas as aparições de seres sobrenaturais. No século XVII, entre
1601 e 1602, Shakespeare escreve Hamlet, que se encontra com o espectro
do pai o qual andava aparecendo no castelo e lhe revela ter sido morto por seu
irmão. Tal fato desencadeia toda trama trágica da história. Como se pode
observar, os fenômenos inexplicáveis, os mistérios sobrenaturais sempre
amedrontaram e amedrontam até hoje, mas, ao mesmo tempo, fascinaram os
homens e continuam a exercer esse poder de atração através dos tempos.
A literatura fantástica, com essa denominação, surgiu na segunda
metade do século XVIII, atingindo sua máxima expansão no século XIX,
afirmando-se contra o racionalismo então reinante. Instaurou-se como uma
literatura de autores que pertenciam à aristocracia, inspirada no terror causado
pela Revolução e pelo desejo de promover um sistema de valores que fossem
de encontro aos estabelecidos, causando-lhes, desta forma, um certo
constrangimento.
57
Duas são as obras consideradas como inaugurais do fantástico
setecentista: um é O Castelo de Otranto, do inglês Horace Walpole
13
, publicado
em 1764; o outro, O Diabo Enamorado, de Cazotte, publicado na França, em
1772, ambos são considerados criadores do fantástico. No entanto, Todorov
(1981), em seus estudos, considera que O Manuscrito encontrado em
Saragossa, em 1804, de Jean Potoki, é o primeiro romance a dar início à
tradição da narrativa fantástica. Deve-se considerar, sobretudo, que as grandes
obras da ficção fantástica surgiram entre 1820 e 1850, chegando até o final do
século XIX ao seu apogeu.
Já no século XX, a literatura fantástica é atingida por uma série de
fatores externos e sua temática passa por grandes transformações, renovando-
se, conforme modificações de ordem religiosa, científica, política, social e
cultural fossem ocorrendo na sociedade. Essas modificações afetaram
fortemente a visão de mundo do homem novecentista, o qual passou a
experienciar uma realidade bem diversa da que predominou pelos séculos
anteriores, resultando, logicamente, numa literatura onde as preferências
temáticas se ampliaram. Vários escritores na América Latina fizeram com que
esse tipo de literatura se fizesse notável fora de seus países de origem.
Para se chegar a um entendimento do fantástico tem-se que,
primeiramente, buscar apoio teórico quanto à sua natureza genérica. Mas isso
leva o estudioso aos descaminhos causados pela maioria dos teóricos da
literatura que não apresenta opinião consensual. A maioria parece acatar o
pensamento todoroviano, segundo o qual a literatura fantástica seria uma
variedade da literatura e, conseqüentemente, seria um gênero. Entretanto,
esse mesmo Todorov, em algum ponto do seu livro Introdução à Literatura
Fantástica, não se mostra seguro o bastante quanto a sua definição do
fantástico como gênero literário, afirma que o fantástico parece mais estar
13
Considera-se o inglês Horace Walpole (1717-1797) como criador do gênero gótico, com O
Castelo de Otranto
, publicado em 1764. Nessa obra o cenário é por excelência do gótico. O
castelo com passagens secretas, quadros que se movem, corredores longos e labirínticos,
ruídos inexplicáveis. Walpole construiu para si mesmo um castelo em estilo medieval.
58
localizado nos limites do maravilhoso e do estranho que chegar a ser
assumidamente um gênero autônomo. Em seguida ele confirma a sua
insegurança se perguntando “até que ponto uma definição de gênero que
permitisse a obra mudar de gênero [...] se sustenta”? E, automaticamente,
conclui não haver nada que impeça de considerar o fantástico como “gênero
sempre evanescente”.
Sobre essa questão da evanescência do gênero Belevan (1976)
discorda por considerar que a própria noção de gênero atenta contra qualquer
evanescência. Para ele, se o fantástico fosse um gênero suas leis deveriam
ser universais, uma condição prévia a toda noção de gênero. Seria então, o
fantástico, para Belevan, não um gênero específico da literatura, mas um sub-
gênero capaz de provir de qualquer gênero. Também Bessière (1974),
estudiosa do fantástico, não concorda com Todorov no que tange à narrativa
fantástica. Para ela, o fantástico não se classifica como gênero literário, por
comportar uma lógica arbitrária e refletir um jogo que envolve o imaginário
comum, refletindo as metamorfoses culturais da razão.
Em se acatando os posicionamentos de Irène Bessière e Harry Belevan
que não vêem o fantástico como um gênero, a tendência é ver no pensamento
de Todorov um grande equívoco. Portanto, o fantástico não passaria de uma
maneira de expressar o imaginário, de conceber fatos ficcionais como uma
natureza transgressiva em relação ao real cotidiano.
Como, então, poderia ser conceituado o fantástico? Sabe-se, ainda há
divergências notórias entre os teóricos da literatura quanto ao conceito de
fantástico e, conseqüentemente, sobre o que seria a literatura fantástica.
Recorrer ao dicionário não esclarecerá a questão, posto que a quantidade de
significados atribuídos ao termo é vasta. Indo pela etimologia da palavra vê-se
que o termo origina-se do grego phantastikós, no qual radica o termo latino
phantasticus, gerando em português o adjetivo fantástico que se liga aos
fenômenos derivados da fantasia advinda da imaginação.
Louis Vax (1974), em suas leituras sobre esse tema, fala dos inúmeros e
diferentes sentidos atribuídos ao termo fantástico, enumerando-os. Desse
59
modo, ele afirma que o fantástico é um termo que não designa nada preciso e
que pode ir do arrepio à experiência inquietante, do espanto ao extraordinário.
Partindo dessa diversidade conceitual, o mesmo Louis Vax elabora a
sua conceituação particular, chamando a atenção para o fato de se pensar o
fantástico em sentido restrito, como algo que necessita da intromissão do
elemento sobrenatural agindo dentro de um mundo dominado pelo racional.
Valcárcel (1982:57), por sua vez, chama o fantástico de metagênero,
quando mostra uma panorâmica de como o mesmo foi resgatado a partir dos
estudos introdutórios de Todorov, na década de 70. Embora os estudos de
Roger Caillois
14
e Louis Vax
15
sejam anteriores, Valcárcel considera que se
produziu realmente um avanço nos estudos sobre o fantástico como gênero
literário a partir de Todorov, reconhecendo-o como precursor autêntico, posto
que os anteriores colocavam o fantástico visto como uma técnica e não como
um gênero literário. A autora desconhece, ou pelo menos, não se reporta ao
escritor francês Guy de Maupassant. Um século antes de Todorov, o escritor
francês Guy de Maupassant já havia percebido o fantástico, embora não tenha
clarificado as diferenças entre o fantástico e o insólito, entretanto conseguiu
evidenciar a diferença entre o maravilhoso e o fantástico. Para Maupassant, o
autor deve ser sutil o suficiente
para incitar a inquietude e a dúvida, próprias
do
gênero fantástico. Valcárcel diz ser a teoria todoroviana limitada para se
aplicar ao estudo do fantástico atual perpassado por um novo universo. Para
ela, a visão sartreana que coloca o fantástico como linguagem encontra-se
mais apropriada, posto que o universo do fantástico atual encontra-se repleto
de um novo humanismo, o que corresponde ao pensamento de Sartre no artigo
onde desenvolve um estudo comparativo entre Blanchot e Kafka. A esse
respeito ela nos afirma:
El nuevo humanismo de lo fantástico es la
rebelión de los medios contra los fines ya sea
porque el objeto mismo se afirme como un medio,
sea porque el medio remite a otros medios sin que
podamos in ningún caso alcanzar el fin. Como
consecuencia, sobreviene una transformación en
14
Au coeur du fantastique (1965) e Anthologie du fantastique (1966).
15
Arte y literatura fantásticas (1965).
60
el espacio circundante, visible tanto en Kafka
como en Blanchot, por la que espacios cerrados,
agobiantes, auténticos laberintos sustituyen a la
naturaleza. También el hombre se convierte en
mero instrumento del nuevo universo fantástico
(p.62).
É ainda Valcárcel que conclui dizendo ser a teoria todoroviana
imprecisa, quando se trata de analisar os contos de Cortázar, pelo fato de a
mesma se reportar ao conto fantástico tradicional, cujo sentido dubitável ele
extrai dos personagens. Nos contos de Cortázar, ao contrário, as personagens
em geral aceitam ou encaram o fato insólito com naturalidade. Há, portanto,
um distanciamento do fantástico tradicional em Cortázar que coloca ao leitor e
não às personagens, a tarefa de reconhecer os efeitos sintomáticos do
fantástico.
Muitos outros estudiosos do fantástico procuraram defini-lo, cada um ao
seu modo
16
. No entanto, surgem as mais variadas definições. Por isso,
pretendemos encontrar um meio termo para defini-lo, conforme as exigências
da moderna obra cortazariana, isto é, tomando-o como elemento que penetra
de forma violenta e se instaura no interior de uma cotidianidade possível,
quebrando de vez com o modelar, pelo surgimento do inadmissível no seio
inalterável da legalidade quotidiana (grifo nosso). E assim seguem outros
estudiosos, inclusive Todorov, pautando suas pesquisas sobre o significado do
fantástico e da literatura fantástica nas oscilações entre o real e o imaginário.
Para o presente estudo, considera-se que a proposta defendida por
Todorov, no livro Introdução à Literatura Fantástica (1975), apenas possa servir
como uma teoria inicial do fantástico, por abordar mais definidamente as três
modalidades da literatura do sobrenatural: o fantástico, o estranho e o
maravilhoso e por ser a obra de Cortázar considerada como fantástica. Trata-
se de um estudo fundamental para a caracterização e compreensão das obras
fantásticas tradicionais, sendo, portanto, redutora, quando se trata da análise
da obra cortazariana. Ele aborda nesta obra o estranho, o fantástico e o
16
Principalmente os que estudam diretamente a literatura fantástica hispanoamericana: Ana
María Barrenechea, Emilio Carilla, Alejo Carpentier, Nicolas Cocara, Enrique Luis Revol, entre
outros.
61
maravilhoso como gêneros vizinhos que exploram o sobrenatural como
acontecimento inexplicável, extraordinário que extrapola as manifestações
extraterrenas ou fantasmagóricas. O que os diferencia, portanto, é que
O maravilhoso corresponde a um fenômeno
desconhecido, jamais visto, por vir; logo a um futuro; no
estranho, em compensação, o inexplicável é reduzido a
fatos conhecidos, a uma experiência prévia, e daí ao
passado. Quanto ao fantástico mesmo, a hesitação que
o caracteriza não pode, evidentemente, situar-se senão
no presente. (p. 49)
Um outro ponto interessante na teoria de Todorov é o modo como ele
caracteriza a temática da narrativa fantástica, o que facilita, sobremaneira, o
seu reconhecimento dentro das obras, quando submetidas à análise. Para ele,
os temas mais característicos da narrativa fantástica e maravilhosa ligam-se
todos ao sobrenatural – fantasmas, espíritos, feiticeiros, vampiros, diabo,
lobisomem, coisas visíveis e invisíveis, corpos humanos esfacelados – enfim, a
todos os elementos que provoquem perturbações da personalidade. Na sua
teoria, Todorov agrupa os motivos fantásticos em duas vertentes: a primeira,
englobando os temas que abordam as relações entre o homem e o mundo,
classificando-a como ‘temas do eu’; a segunda vertente tratando de temas
ligados às relações do homem com o seu desejo e, conseqüentemente, com
seu inconsciente, denominando-a de ‘temas do tu’.
3.2 O FANTÁSTICO NA OBRA DE CORTÁZAR
Se seguirmos essa divisão temática todoroviana, poderemos pensar a
obra de Cortázar dentro da primeira vertente, uma vez que, no que toca aos
contos comprometidos, a sua preocupação com o homem e suas relações com
o mundo são referendadas em todos através dos personagens e dos fatos que
o mundo como lugar do jogo existencial se lhes impõe. Entretanto, a teoria
desenvolvida por Todorov, excessivamente europeizada e limitada, não abarca
a profundidade do fantástico que tem a obra de Cortázar, que mesmo sendo
considerada fantástica, acreditamos encontrar sua vertente nascedoura no
62
gótico
17
, justo pelas influências de Poe, de quem era leitor. Assim a
consideramos por comportar uma série de características que lhe são inerentes
como o mistério, a morte, o sonho, a degradação do ser humano e o terror.
Lugares sombrios, personagens sempre inteligentes, enigmáticos e
misteriosos, geralmente por trás da fumaça de um cigarro ou de uma música
erudita povoam os contos de Cortázar, fazendo que o perigo esteja à espreita
em cada porta que se possa abrir. Nada mais gótico do que a passagem do
conto La Barca o Nueva Visita a Venecia (AAA, p.187), quando Dino e outros
gondoleiros ajudam a transportar um morto:
Pero era un catafalco, y los remeros estaban de
negro, sin los alegres sombreros de paja. La barca
había llegado hasta el muelle junto al cual corría
un edificio pesado y mortecino. Habia un
embarcadero frente a algo que parecía una
capilla. << El hospital >>, pensó. << La capilla del
hospital >>. Salía gente, un hombre llevando
coronas de flores que arrojó distraídamente a la
barca de la muerte. Otros ya aparecían con el
ataúd, y empezó la maniobra del embarque.
A literatura fantástica é um gênero literário de narrativas
predominantemente curtas. Ambienta-se em mundos que são ao mesmo tempo
familiares e estranhos para nós. Está povoada de seres mágicos e míticos e é
importante fonte de inspiração para os jogos de imaginação. A literatura de
Julio Cortázar encontra-se assim cheia de jogos de imaginação, onde ele,
como jogador, interpreta dentro dela um personagem fictício, reconhecível por
uma série de características que lhes são comuns. No texto dubitativo
cortazariano algo de racional mistura-se ao extraordinário sem podermos
descartar nenhuma possibilidade de desfecho. Cortázar, produtivo no aspecto
crítico do gênero que o consagrou, percebia uma ligação entre os dois
aspectos, embora assegurasse que são duas coisas distintas e delimitadas.
Dessa ligação do racional com o extraordinário surgia então uma
abertura pela qual o fato insólito ou fantástico se deixava infiltrar gerando o
inexplicável. Essa abertura por onde o fantástico penetra na obra de Cortázar é
17
Trata-se de um tipo de narrativa surgida nos finais do séc. XVIII e consolidada no século
XIX, entre alguns escritores românticos, cuja ação se desenrola geralmente em ambientes
lúgubres e remotos e se compõe de incidentes macabros, misteriosos e violentos. Edgar Allan
Poe é considerado um escritor gótico.
63
a cotidianidade que se junta ao fantasioso para conferir ao relato o caráter
verossímil, uma verdade possível dentro de uma outra realidade, a criada por
ele. A essência do conto cortazariano é, portanto, a possibilidade, isto é, a
dupla alternativa que se oferece ao leitor dentro do crível e do possível para
que ele encontre a resolução. Vários fatos inusitados ocorrem com os
personagens criados por ele. Daí considerarmos a sua literatura como
fantástica pelo motivo de estarem eles, os personagens, envolvidos ora com
algo misterioso, como é o caso dos passageiros do metrô de Buenos Aires que
somem misteriosamente em Texto en una libreta (QTG, p.349), ora sofrem
verdadeiras metamorfoses, como em La fases de Severo (Oc, p.98), ora
passam da realidade ao sonho, como em Ahí, pero dónde, como (Oc, p. 81),
ora são-lhes roubado o mundo ou sua personalidade, como em Los Pasos en
las huellas (Oc, p. 50), ora entram em outro mundo, como em Anillo de
Moebius (QTG, p.409), ou ainda pensam que a realidade é o sonhado, como
em Historias que me cuento (QTG, p. 401).
Assim, podemos pensar que Cortázar faz parte de uma literatura
fantástica renovada que encontra seu eixo de propulsão no seu próprio
cotidiano, nessa realidade que se desdobra aos olhos dos leitores que vêem
seus personagens enredados numa teia de sonhos e obsessões. Sonhos e
obsessões se desenvolvendo dentro de uma realidade que se des-dobra e se
re-duplica para comportar a carga humanista de personagens, advindas dele
que, aparentemente, são superficiais, mas que suportam as dores de um
mundo de violências e repressões. Esse des-dobramento se faz notar, quando
o elemento fantástico irrompe no real seja através de animais – nos contos em
questão, aranhas, cavalos, ratos, gatos – ou dos próprios personagens vivendo
situações cotidianas envoltas em atmosferas que vão das mais absurdas
fantasias às mais violentas cenas de desaparecimento e morte no período
ditatorial.
Em estudo direcionado exclusivamente aos contos de Cortázar,
Valcárcel (1982) empreendeu uma abordagem que, embora seguindo o
estruturalismo da época na qual escreveu, é de suma importância para o
entendimento do conto como gênero modificado por ele, sobretudo do
64
fantástico e suas formas de representação dentro desse mundo emaranhado
que ele criou. A proposta da autora é fazer uma análise que abarque desde as
definições do conto folclórico, oral, até o conto literário, fazendo as devidas
distinções entre fantástico e realismo mágico através de seus escritores e
obras e, por fim, situando a obra de Cortázar neste universo fantástico, tendo
por base uma revisão da condição genérica do conto numa perspectiva atual,
ilustrando e enriquecendo sua dimensão teórica com a análise empírica dos
relatos de um autor. Este autor escolhido é Cortázar, já como escritor maduro,
que conta com uma linha criadora já consolidada, rastreando a natureza
fantástica de uma grande parte dos seus contos iniciais. O estudo encontra-se
dividido em duas grandes partes: a 1ª parte, de natureza puramente teórica,
trata do conto literário, partindo da noção de relato como base comum a
diferentes formas narrativas. Segue fazendo um levantamento histórico do
estudo do conto no século XIX, desde Poe, o qual serviu como ponto de partida
para todos os estudos subseqüentes. Reporta-se a autores espanhóis e
hispanoamericanos mais importantes, além da crítica estruturalista de Propp,
Shkolvski e Eichembaum e suas possibilidades de aplicação ao gênero dito
fantástico; a 2ª, voltada para a literatura fantástica propriamente dita,
constituída por três capítulos: ritos, jogos e passagens, é onde a estudiosa se
detém na análise direta dos contos de Cortázar. Adota para análise os critérios
de Charles Morris
18
para quem o estudo de todo sistema sígnico baseia-se em
três níveis: sintático, semântico e pragmático. Reporta-se como base de
análise ao estruturalismo e à semiologia, deixando claro que não se trata de
uma interpretação única e definitiva, uma vez que o significado da obra é
múltiplo, e múltiplas são também as possibilidades de leitura. Apenas se
caracteriza por estar sob dois condicionantes arquitextuais interiores à obra, os
quais situam os contos de Cortázar em relação com outros relatos breves e
com a literatura fantástica.
Predominantemente curtas, as narrativas cortazarianas ambientam-se
em mundos que são ao mesmo tempo familiares e estranhos para nós. Estão
povoadas de seres fantásticos e míticos e é importante fonte de inspiração
18
Semioticista americano (1901-1979), autor de Fundamentos de uma teoria dos signos
(1938).
65
para as rayuelas imaginativas do leitor que, convidado pelo autor, tenta decifrar
o lugar onde jogar a pedra certa. A literatura de Julio Cortázar encontra-se
assim cheia de jogos de imaginação, onde ele, como jogador, interpreta dentro
dela um personagem fictício, reconhecível por uma série de características que
lhes são comuns. No texto dubitativo cortazariano algo de racional mistura-se
ao extraordinário sem podermos descartar nenhuma possibilidade de desfecho.
Cortázar, produtivo no aspecto crítico do gênero que o consagrou,
percebia uma ligação entre os dois aspectos, embora assegurasse que são
duas coisas distintas e delimitadas. Dessa ligação surgia uma abertura pela
qual o fato insólito ou fantástico se deixava infiltrar gerando o inexplicável.
Essa abertura por onde o fantástico penetra na obra de Cortázar é a
cotidianidade que se junta ao fantasioso para conferir ao relato o caráter
verossímil. A essência do conto cortazariano é, portanto, a possibilidade, isto é,
a dupla alternativa que se oferece ao leitor dentro do crível e do possível para
que ele encontre a resolução.
Esta rápida síntese do fantástico e dele na obra de Cortázar é tão
somente para ratificar a sua obra, tida pela crítica e por ele mesmo, como
fantástica, mesmo que seja por falta de melhor nome. Concordamos com
Arrigucci (1973): a narrativa cortazariana é escorpiônica no sentido de que está
constantemente se autodestruindo e se retroalimentando num movimento sem
fim nem começo. Concordamos também com Ángel Rama (2001:66), quando a
denomina de fantasmagórica: uma narrativa carregada de cenas mutantes,
sucessivas e complexas vivenciadas, imaginadas, ou mediatizadas, conforme
disse ele próprio. Uma ilusão dos sentidos, uma utopia encenada por
personagens reais, em lugares reais, tornados fantásticos dentro do construto
narrativo. Enfim, denominações diferentes que convergem para um mesmo
significante: fantástico.
Mas temos o pensamento mais contemporâneo de Chiampi (1980:55-56)
citando o próprio Cortázar que via na essência do gênero fantástico algo
desestabilizador da segurança do leitor com a entrada do sobrenatural. Desse
modo,
66
a leitura torna-se um exercício conflitual, não
porque seja o insólito inquietante em si mesmo,
mas porque conduz a neutralização da função
referencial: os contrários convergem, mas não ao
modo de harmônica convivência, posto que o seu
equilíbrio aparente significa a angustiante fuga do
sentido. Dito de outra forma, desestabiliza-se o
sistema estável do leitor, questiona-se a hierarquia
culturalizada entre o real e o irreal, sem que no
seu lugar se reponha qualquer certeza metafísica,
qualquer imanência de um estado extranatural.
E é isso que o texto cortazariano faz entender ao leitor: a hierarquia
culturalizada do real entra em choque pelo fato dos acontecimentos insólitos
ocorrerem num espaço reconhecidamente “familiar, estruturado” e pelo difícil
reconhecimento da função referencial. Desta forma, o leitor de seus textos fica
oscilando diante de seus reais possíveis. Daí a sua chamada ao leitor no conto
Ahí pero donde, como (Oc, p. 81) para contar um sonho que se repete
sempre e que ele imagina real e possível de acontecer com outras pessoas:
A vos que me leés, ¿no te habrá pasado eso que
empieza en un sueño y vulve en muchos sueños
pero no es eso, no es solamente un sueño? Algo
que está ahí pero dónde, como; algo que pasa
soñando, claro, puro sueño pero después también
ahí, de otra manera...
3.3 OS LIVROS RE-CONTADOS
São cinco os livros que, escritos num período de uma década, onde sua
mente se abriu para o sentido do outro como ser humano, através da
Revolução cubana, a princípio, revelam um aglomerado temático que os funde
numa nova dimensão literária baseada na realidade dos possíveis e nos
possíveis da realidade. Assim, como veremos em seguida, detalhado, livro
após livro encerra em seu conteúdo uma gama de temas que envolve a
existência do ser e toda a sua complexidade paradoxal: angústia e vontade de
viver, busca e perda, a vida mergulhada no caos instaurado pela política
67
ditatorial em um jogo que está sempre preste a recomeçar. Vejamos o que nos
revelam os livros:
Octaedro, obra publicada em 1974, compõe-se de oito contos curtos,
retratando, em cada um, uma realidade diferente. Segundo a crítica
19
, esta é,
das obras de Julio Cortázar, a que mais expressa a sua maturidade como
escritor, cuja criatividade, na década de setenta, parece ter se aguçado rumo a
uma inovação permanente que acompanha a sua obra contística. Em
Octaedro, estamos diante de um tempo e de um espaço que se bifurcam para
no final atingirem a realidade e a imaginação, envoltas numa atmosfera
propícia para que a cotidianidade entre em suspensão ante as situações
criadas pelo autor. Dentro das oito histórias, Cortázar cria uma nova dimensão
do real, aquela que, sentimos, não sobreviveria sem o elemento fantástico. O
autor utiliza-se do menor número de elementos formais para compor situações
inusitadas, criando uma dimensão colateral, é, sobretudo, a junção das várias
realidades, de diferentes formas de enxergar o mundo e senti-lo. São oito
histórias que extrapolam oito realidades, que transgridem as estruturas e as
formas do narrar, povoando as suas próprias formas de dizer com incertezas e
ambigüidades. São oito histórias que formam um octograma ou estrela de oito
pontas. Formam a Hod cabalística a representar o trabalho da mente individual,
a lógica, a razão que só se concretiza colocando em confronto as realidades
possíveis e imaginárias criadas pelo autor. O amor, o sonho, a enfermidade, a
morte, a infância, a fronteira entre o cotidiano e o fantástico, tudo con-
formando-se numa geometria perfeita: a de intercalar matizes finitos e infinitos
do mundo que o cerca e passam para os mundos que cria, chegando até nós,
leitores. E representa também o Ouroboros, imagem constante na escrita
cortazariana, a ligar-se tanto ao sentido de sabedoria como ao sentido
alquímico de transformação da própria literatura.
Alguien que anda por ahí surge em 1977. Estamos diante da reunião de
onze contos nos quais Cortázar transita pela melancolia, pela violência, por
situações que jamais se repetirão, seguindo a linha narrativa traçada nos
outros livros: pensamento fragmentário, repercutindo direto no enredo dos
19
Graciela Maturo (2004:72) e Jaime Alazraki (1994:151).
68
contos que não obedecem a uma esquematização regular de começo, meio e
fim. Embora apresentem um tema comum – o fantástico – as conexões que
deles se desprendem são variadas e intensas. Tal como um labirinto, os sub-
temas vão se incorporando num crescente valorativo de experiências humanas,
de desejos e frustrações, de ânsia por viver, de desilusões amorosas e música
a embalar todos os dramas e, em especial, os dramas decorrentes da
perseguição imposta pela Ditadura.
Un Tal Lucas, publicado em 1979, não se enquadra nos moldes
narrativos do conto, da novela. Também não se trata de um compósito dos
dois. É um livro de registros cotidianos do autor, um livro almanaque ao estilo
de Último Round, de Historias de Cronopios y famas . Um jogo de leitura
assistemático e hilário, cujas chaves o leitor pode usar em qualquer porta. Um
jogo textual sem princípio, meio e fim. Não oferece cartas marcadas, a não ser
o livre trânsito entre autor-narrador que se funde e se confunde em cada
aspecto, fato espirituoso ou espiritualizado, exposto por ele. Neste livro,
Cortázar retorna ao mundo livre das histórias de cronópios e famas e segue a
cotidianidade de pianistas, de artistas excêntricos, os costumes de certas
famílias argentinas, o amor, o jogo com a palavra e com o sentido de patriota e
os amigos. Transgride a narrativa, escreve sonetos, profere conferências.
Inúmeras são as dúvidas que se abatem sobre esse Tal Lucas, como também
são inúmeras as suas explicações. De uma certa forma, somos todos Lucas a
nos interrogarmos e nos tentarmos explicar o mundo todo e suas coisas, sem
necessariamente encontrarmos o nexo exato do que buscamos. Um livro-
hidra, com muitas cabeças onde o Tal Lucas é a principal.
Nos dez relatos que compõem o livro Queremos tanto a Glenda, de
1980, o autor se vale de protocolos ora públicos, ora privados, de cruzamentos
de realidade e imaginação, de humor e violência. De melancolia. Apresenta
temas recorrentes da narrativa cortazariana, sobretudo, conserva a forma
característica de suas construções que vão da aparente imprecisão à surpresa,
ao assombro, nunca ao engano. Captura o trivial, o sentimental, e o transforma
em mistério. Faz da realidade uma extensão da fantasia e do imaginário,
atualizando, pela linguagem, a fragmentação das idéias, do enredo que
69
compõe cada conto. Ele converte em literatura os sonhos, os gatos, os
quadros, o tempo, a música, as infinitas armadilhas da linguagem e dá esse
sabor persistente e indefinível que, como em toda grande obra, está mais além
de toda fórmula.
Oito contos constituem o livro Deshoras, de 1982. Trata-se de uma obra
que se abre com uma narração de um fato trivial, simples, casual, mas que
demonstra quão profundamente estão interseccionadas realidade e imaginação
e se encerra com um conto, aparentemente literatura sobre literatura, que nos
faz transitar entre reflexão crítica sobre o gênero e tema, em seu jogo
inteligente e suas piscadas ao leitor esperto. E no meio, outros seis contos
prodigiosos, que vão da escuta lírica à complexidade onírica da prodigiosa
metáfora que faz da ditadura militar, cartografiando um território misto de
cotidianidade e assombro. Este livro oferece, de forma renovada, o leque
completo do mundo cortazariano. Nele, a violência política emerge de um
pesadelo ao jogo de palavras. Uma realidade apaixonante, um modelo para
armar uma realidade humanamente fantástica.
3.4 DE CAVALO, GATO, RATOS
E ARANHAS: o bestiário permanece
Nos contos analisados o bestiário que freqüentou a sua obra inicial
reaparece e ganha neste estudo uma re-significação. Trata-se de ver a sua
utilização nos contos como figuras que vão repercutir na significação de sua
obra como um todo e mais especificamente nas que se encontram registradas
neste estudo. A maioria dos bestiários foi escrita durante a baixa Idade Média.
Suas informações, obtidas através de relatos de terceiros, sofriam influência
de lendas locais, além de má-interpretação da aparência dos animais. Dessa
forma os bestiários descrevem seres míticos como se fossem reais. O bestiário
cortazariano tem uma simbologia mais alquímica que mítica nestes contos,
posto que tal bestiário provoca uma transmutação, revela uma mudança
70
interior. Pouco depois, Borges publica Libro de los Seres Imaginários (1967),
um apanhado dos bestiários medievais. É notório que entre o grupo de
escritores que se dedicou ao fantástico este tema se converteu num modismo
de época, sobretudo quando o peronismo, no poder, obrigou a formas oblíquas
de referência. Desde o liberalismo, as “massas peronistas” são associadas a
animais ou seres inferiores, incapazes de discernimento. Em La Casa
Tomada, por exemplo, há uma frase – “se puede vivir sin pensar” – que pode
ser lida politicamente em função desse contexto. Também a última cena de
Satarsa (D,p. 453), Lozano cai com a boca e os olhos abertos nos espinhos
para ser impedido de reconhecer o rosto da Satarsa, isto é, da polícia.
Em Verano (Oc, p. 74), um casal, que fica cuidando de uma menina,
descobre que ela possui um vínculo especial com um cavalo fantasioso. A
presença da menina vem desajustar a vida pacata do casal. Mariano chega a
comentar com Zulma a respeito do mundo inatingível que é o da criança, que
todos passamos por ele, ao que Zulma acrescenta que eles ainda permanecem
nele. Os acontecimentos estranhos começam a ser notados quando todos se
recolhem para dormir e começam a ouvir os primeiros barulhos na escada de
pedras do jardim. Ao ouvirem relinchos, supõem que seja um cavalo
galopando, embora saibam não haver cavalos naquele lugar. Por fim, Zulma
resolve ir até a escada do jardim e percebe que a porta da casa está aberta, a
menina levantou e a abriu para que o cavalo entrasse, segundo ela. Mas o
cavalo não
entrou. O que ocorreu com o casal e a menina segue uma via de
mão dupla: a primeira via mostra uma Zulma ainda vivendo no mundo
inatingível das crianças, e por essa razão tomou posse das fantasias da
menina, ou deixou aflorar as suas próprias; a segunda, liga-se à atividades
sexual entre marido e mulher. Vendo pelo prisma do fantástico, o cavalo se
encontra, dentro do bestiário alquímico
20
, no quarto degrau, o da sublimação.
Essa sublimação é utilizada tanto no sentido alquímico como no psicanalítico.
Trata-se de uma duplicidade característica que se reitera na obra cortazariana.
No conto, também pode representar um salto na transformação da menina de
seu estado de pureza para o da revelação (tendo a porta como um elemento
20
Bestiário Alquímico, publicado por Paulo Urban, na Revista Planeta nº 363 / Dezembro de
2002 e on-line no site: www.amigodaalma.com.br/conteudo/artigos/bestiario
71
que se fecha e se abre à iniciação) por ter presenciado o ato sexual do casal
Zulma e Mariano.
Em Cuello de gatito negro (Oc, p. 106), a figura do gato liga-se ao
instinto de desejo e morte quando o protagonista, Lucho, conhece uma mulher
negra, “uma luvinha preta”, no metrô de Paris. Após percorrerem oito
estações, vai até o apartamento dela, protagonizando uma história com final
trágico. O comportamento de Dina assemelha-se ao de uma gata selvagem
que na sua loucura de psicopata sexual depois de fazer amor puxa o sexo do
parceiro para impedi-lo de levantar-se e acender a luz. Após uma série de
embates, sem conseguir se livrar dela, ele aperta o pescoço de Dina “como se
apertasse o pescoço de um gatinho preto” e a joga para trás. Dina assemelha-
se à deusa-gata egípcia Bastêt
21
, resgatada para a literatura por La Fontaine e
depois retomada por Baudelaire, segundo o Dicionário de Mitos Literários
(1998, p. 127). A tragicidade que envolve a relação Dina-Lucho se inicia no
momento em que ele resolve não obedecê-la e ela se coloca como fêmea
possessiva.
No conto Orientación de los gatos (QTG, p. 329), temos a narrativa
de uma história de amor que se quer tornar absoluta pelo conhecimento
completo do outro. Há um “eu”, narrador, e sua mulher Alana. Para ele, esse
amor só se absolutiza diante da possibilidade de conhecer as várias Alanas
que habitam a sua, já conhecida e amada, aquela que se entrega sem
reservas, numa “reciprocidade ininterrupta”. Mas isso se torna complicado no
momento em que se interpõe entre os dois a figura de Osíris
22
, um gato
preto
23
, em cujo mundo ele se recusa a entrar, por apresentar planos que lhe
escapam do conhecimento. Tal qual lhe escapam as outras Alanas: a que ele
foi descobrindo pela música de Bartok, Duke Ellington e Gal Costa, e as outras
que se desdobraram e se deixaram conhecer diante da pintura de Rembrandt,
mas que depois se recolheram, perdidas na contemplação de um outro quadro
21
Na Mitologia egípcia Bastet, Bast, Ubasti, Ba-en-Aset ou Ailuros é a palavra grega para gato.
22
O nome do gato também pode estar associado ao deus egípcio Osíris, posto que provoca na
personagem renascimentos interiores impossíveis de serem entendidos pelo marido.
23
Segundo o Dicionário de Símbolos (1995:462), o gato preto tanto possui qualidades mágicas
como simboliza a obscuridade e a morte.
72
com um gato
24
na janela. Gato semelhante a Osíris, capaz de quebrar-lhe o
encantamento de ter conhecido as muitas faces de sua mulher e agora ter
voltado ao ponto inicial em que ele não consegue atingir os planos de
entendimento da mulher e do gato, quando ambos se reconstituem e se
completam pelo olhar, sabendo que os dois se entendem e enxergam o que ele
é incapaz de ver. No conto, gato e mulher sofrem uma osmose, isto é um
processo pelo qual o olho do gato atravessa o olhar de Alana num momento de
alta concentração e que só termina quando ambos atingem o equilíbrio, ou
seja, quando os dois olhares atingem o mesmo grau de conhecimento.
Conhecimento este desconhecido do marido.
Em Manuscrito allado en un bolsillo (Oc, p. 65), temos um encontro
com aranhas numa possível ligação tensa com a(s) mulher(es) que viaja(m) no
metrô de París. Ana, Margrit, Paula ( Ofélia ), Marie-Claude, são mulheres
distintas ou as muitas faces de uma única mulher? O fato é que ela aproxima-
se de Isthar, a deusa atadora e desatadora do fio do mal, do fio do destino.
Com o comportamento semelhante ao de Dina, de Cuello de gatito negro,
onde a mão levada ao sexo funciona como um fio potente e mágico e ao
mesmo tempo semelhante ao fio nefasto da aranha. Ambas são mulheres
fatais que envolvem suas presas pelo olhar. O metrô parisiense, que ele
transforma numa gigante árvore mondrianesca ou numa grande teia de aranha
para comportar o jogo da sedução feminina e do seu próprio ato de escrever,
suas rupturas, seus malabarismos com a linguagem, tentando adivinhar o
melhor ângulo da mesma. A velha de verde, o homem magro, um negro, todos
fazendo parte deste mundo subterrâneo e de subterfúgios metonímicos para
melhor expressar as regras de um jogo (o narrativo) que para ele, narrador, é
para serem quebradas, distendidas e até adivinhadas, enquanto não chega ao
final da estação, ao final do conto. As aranhas e sua função de capturar, de
aprisionar pela espreita a sua presa. Assemelham-se, em muitos pontos, à
24
De Da Vinci ( A Virgem do Gato) a Edouard Manet muitos foram os que tiveram o gato como
tema de suas pinturas: Albrecht Dürer, por exemplo, pintou um gato lambendo os pés de Eva,
Antoine Watteau o imortalizou em seu quadro O Gato Doente. Veronese, Rubens, Bosh,
Brueghel, Rembrandt, Tintoretto, Delacroix, Renoir, Courbet, Gauguin e Picasso, antigos e
modernos o pintaram com paixão fascinados com o seu misterioso olhar.
73
imensa aranha de bronze da artista plástica Louise Bourgeois
25
, com suas oito
patas dobradas, representando a fêmea fatal pronta a devorar o macho.
Em Historias con migalas (QTG, p. 338) temos a associação da
imagem do gato com as aranhas. Nas suas divagações começam a pensar que
elas os veriam “como duas aranhas no escuro”. Relembram a granja do amigo,
o jogo de cartas, ouvem gritos de mulher ao longe, escutam os gatos em “amor
lancinante”. No dia seguinte vêem-nas indo embora, pela manhã, e, quando
voltam da praia, resolvem verificar a outra ala, observam tudo e percebem que
as duas dormiam na mesma cama grande “de lençóis com flores amarelas”.
Sentem que agora, finalmente, chegou a tão sonhada solidão, embora à noite,
anseiem por ouvir os animais, principalmente “o amor das gatas que dilacera o
espaço”.
Gatos e aranhas, longe de apresentarem uma acepção puramente
erotizada, aproximam-se da visão noturna das personagens, onde os primeiros
enxergam mais que os humanos e, os últimos, pelas patas, além de ouvirem e
cheirarem. Ambos simbolizam dialeticamente o bem e o mal, a vida e a morte.
E se aproximam particularmente do autor que tece as realidades num
entramado de fatos que remete à teia, enredando o leitor nas suas narrativas,
chamando-o para dentro do texto, capturando-o, transportando-o dentro de
uma área fronteiriça pelo fio de um discurso que nunca atinge o seu fim.
Já o rato que aparece no conto Satarsa (D, p. 443) metaforizando tanto
a polícia na Ditadura Militar argentina como os próprios fugitivos, carrega em si
a simbologia descrita pelo Dicionário de Símbolos (1995:770), como metáfora
de criaturas infernais e temíveis. Como figura palindrômica, persegue e é
perseguido na sua sede de vingar e ser vingado. No momento em que caça e
caçador se deparam, o palíndromo é decifrado. Seu significado final é a morte,
dado pelo confronto entre os fugitivos e a polícia. Desse confronto, resulta um
combate infernal onde o utópico Lozano é abatido como um rato.
25
Escultora francesa, nascida em 1911, sua obra possui vasta influência surrealista. Esculpiu
uma aranha de bronze, com cerca de 200 quilos e mais de 3 metros de altura.
74
Se Cortázar, em sua obra anterior fez uso mais constante do bestiário foi
pelo fato de tratar-se de uma narrativa mais explicitamente fantástica. Nos
contos comprometidos os animais, além de carregarem a tensão angustiante
advindas do fantástico, surgem como elementos modificadores do ser humano
em suas relações com o outro. Assim, gatos, cavalos, aranhas e ratos
contribuem neles para expor as angústias das personagens em relação ao
outro e a si mesmo num jogo onde as perdas, provocadas pelo lado negativo
que cada animal comporta, são visíveis nas personagens por eles envolvidas.
Os ganhos o autor deixa a cargo do leitor, para que os descubra nas suas
inúmeras possibilidades de leituras.
1.5 CASA 4: A PERSONAGEM
NO CONTO CORTAZARIANO
Cortázar explicita a diferença entre a novela e o conto, comparando-os,
respectivamente, ao filme e à foto, isto é, a novela, por ser maior e transcorrer
nela uma seqüência de fatos, seria como um filme, enquanto o conto, por
limitar-se a um fato, seria como uma foto. Uma foto muito bem tirada, girando
em torno de um conflito formado geralmente por oposição entre duas forças
que obrigam ao protagonista a escolher caminhos quase sempre sem saída.
Entretanto, nos contos escritos por ele, isso não acontece pelo fato de se
interpor no caminho da escolha a dúvida, a incerteza que se abre para o leitor
resolvê-la, seguindo por três caminhos divergentes, embora sempre fatais: o
primeiro deles, quando a fatalidade abarca algo que não se pode controlar, o
segundo, quando há uma luta clara entre protagonista e antagonista e, por fim,
quando a luta é contra si mesmo como personagem.
Difícil precisar, dentro dessas peças do jogo de montar, um perfil para os
personagens criados por Cortázar, uma vez que o mesmo também é
personagem. Difícil mesmo é ter que dilatar o conceito de personagem para
atingir o universo cortazariano povoado de objetos e lugares com função de
personagem. Temos que usar o recurso da antropomorfização e também
75
dilatá-lo para melhor aplicar-se a essa análise. Para Lukács (1976:636-7), a
antropomorfização é um procedimento em que os homens procuram dar forma
humana àqueles fenômenos da causalidade natural (ou mesmo da causalidade
sócio-histórica) que não conseguem explicar. Assim procedeu em um de seus
primeiros contos, A Casa Tomada, do livro Bestiário (1951), onde a casa
adquire qualidades possivelmente humanas e a porta que conseguem trancar
resguarda o casal de irmãos em seus papéis invertidos ( ele lê, ela tece ) dos
invasores que tomam os fundos. E mais uma vez a porta é fechada para
poupar os ladrões de entrarem na casa tomada por esses invasores
inominados e invisíveis. Em Final del Juego (1956), o conto Axolotl traz a
personagem se transformando no peixe, após observá-lo muito e encontrar
características humanas nele: “Ahora soy definitivamente un axolotl, y si pienso
como un hombre es sólo porque todo axolotl piensa como un hombre dentro de
su imagen de piedra rosa”. Nada mais interessante que as formas de vida dos
cronópios, famas e esperanças em Historias de Cronopios y de Famas (1962).
Em Un tal Lucas (1979) nos deparamos com uma hidra que é o próprio Lucas
com a chance de ser policefálico, de poder desempenhar a sua escritura
múltipla, de poder escolher que “cabeça” cortar, quando achar que ela já não
satisfaz seus anseios como ser humano.
O metrô vem desde El Perseguidor, como personagem que aponta
para a passagem do tempo, passa por Manuscrito hallado en un bolsillo (Oc,
p. 65) como figura central para o desenvolvimento de um jogo amoroso fatal;
em Cuello de gatito negro (Oc, p.106), como desencadeador de um outro
jogo amoroso sado-masoquista; em Texto en una libreta (QTG, p. 349),
servindo como esconderijo para descoberta de que o estão tomando e de uma
grande lista de desaparecidos. As fotos de Apocalipsis de Solentiname (AAA,
p. 155), as esculturas de Recorte de Prensa (QG, p. 360), os ratos de
Satarsa (D, p. 443), todos, dentro dos referidos contos, representam o que
Lukács denominou de causalidades sócio-históricas, isto é, são personagens
que, por baixo de suas in-significações apontam para a violência, a tortura, o
sentimento de fuga, o lado sombrio da ditadura militar; a galeria de Fin de
Etapa (D, p. 426) com sua terceira porta a participar do jogo de esconder-
buscar-mostrar a morte como fim do próprio jogo da vida.
76
Mas a grande personagem de Cortázar, nos contos comprometidos, é
um rosto que se despersonaliza para se infiltrar no seio de uma população
amedrontada pelo horror do desaparecimento súbito e das mortes cruéis. Esse
rosto aparece revestido de máscaras indefinidas e inominadas que só se
mostram nos subterrâneos cavados pelos textos, puras metáforas do Regime
Militar na América Latina. E então o visualizamos no lugar sem identificação
institucional, para o qual Maria Elena, de Segunda Vez (p. 135), nas pinturas
dos campesinos de Apocalipsis de Solentiname (p. 156), por trás do disfarce
de míope da turista inglesa em Reunión con un Circulo Rojo (p. 191), nas
mãos do pianista estrangeiro e inominado de Alguien que Anda por Ahí (p.
210), na execução de Estévez em La Noche de Mantequilla (p. 220),
escondido no número de passageiros que decresce no metrô em Texto en una
Libreta (p. 249), no desenho, na parede, indicador de tortura, em Graffiti (p.
400), nos espinhos que enchem a boca e os olhos de Lozano, em Satarsa (p.
453), nas esculturas de Recorte de Prensa (p. 360). Enfim, um rosto que se
aproxima de Deus: onipresente, onipotente, onisciente. Um Deus vingador,
agindo sorrateiramente em função de um sistema que suprime as liberdades
individuais.
1.6 CASA 5: O LEITOR CORTAZARIANO
Quem é o leitor de Cortázar, o que busca nele ainda hoje? Longe de ser
o “lector-hembra” com quem ele tanto desejava não ter que dividir a leitura de
seus livros, o seu leitor hoje extrapola todas as suas expectativas iniciais de
leitor cúmplice de seus textos. As exigências dele em relação ao leitor
assemelham-se às de Sartre (2004:41) quando diz:
Se recorro ao meu leitor para que ele leve a bom
termo a tarefa que iniciei, é evidente que o
considero como liberdade pura, puro poder
criador, atividade incondicionada; em caso algum
poderia dirigir-me à sua passividade.
77
Daí a sua referência ao “lector hembra”, aquele que se encontra em
posição de passividade ante o texto. Cortázar foi infeliz na sua denominação de
leitor passivo, considerando que o papel da mulher, à época dos seus escritos,
já havia se modificado bastante. Basta pensarmos que na própria Argentina do
período havia vários nomes de mulheres envolvidos com a literatura e até com
a política. O próprio Cortázar vivia cercado de mulheres atuantes.
Denominações à parte, os textos de Cortázar pedem um leitor culto e ao
mesmo tempo disposto a enfrentar uma bibliografia crítica vasta de sua obra
anterior a Octaedro. Colocamo-lo dividido, seguindo o pensamento de
Compagnon (2001:156), entre o posicionamento moderado de Iser e a ousadia
de Eco, numa relação entreaberta/aberta de leituras. Assim, vamos, como
viajantes, para os textos de Cortázar e ao penetrarmos neles somos chamados
a entender um universo passado, ainda desconhecido ou esquecido,
historicamente falando, e complexo em sua tessitura, literariamente falando. O
leitor cortazariano, hoje, aproxima-se do leitor copulativo, uma designação aqui
encontrada para completar o pensamento de Alberto Cousté (2001:92) sobre a
leitura, a qual define como sendo um ato copulativo, isto é,
como una relación sexual entre dos seres
humanos – por naturaleza y definición, mutantes e
incompletos – el libro es el lugar del coito, el
espacio y el tiempo en que la cópula lector/autor
se cumple y se manifiesta y, como ocurre con la
sexualidad, cada encuentro reinventa e inaugura
la experiencia: cada cuerpo (cada libro) es el
primer lugar, cada fusión de dos cuerpos (de dos
miradas) es la primera vez.
O leitor cortazariano, se quer penetrar no mais profundo de sua escrita
labiríntica, tem que se arriscar, não somente como o viajante proposto por Iser,
uma vez que estamos diante do Ashaverus parodiado: um escritor errante que,
por ter ultrajado e revolucionado a forma de escrever de seu tempo, está
condenado a permanecer questionável pela eternidade literária.
De alguma maneira o leitor de Cortázar decide o(s) sentido(s) de seu
texto. Ouve sua voz nas vozes de tantos personagens. À sua maneira segue
pelo texto e o encara aceitando o jogo proposto pelo autor, ou fazendo de seu
78
próprio jogo uma espécie de atalho que melhor revele o quê de quem escreveu
circularmente. Está, portanto, mais próximo do leitor modelo proposto por Eco.
Eco (1979:55) explicita o leitor-modelo como aquele que colabora com o texto
com o objetivo de atualizar ou preencher os vácuos que o mesmo carrega.
Para ele, o texto é uma engrenagem preguiçosa que exige do leitor um
trabalho colaborativo para preencher espaços do não-dito ou do já dito que
ficaram, por assim dizer, em branco, isto é,
o texto está, portanto, entretecido de espaços em
branco, de interstícios a encher, e quem o emitiu
previa que eles fossem preenchidos e deixou-os
em branco por duas razões. Antes de mais,
porque um texto é um mecanismo preguiçoso (ou
económico), que vive da mais-valia de sentido que
o destinatário lhe introduz [...]. Em segundo lugar
porque, à medida que se passa, a pouco e pouco,
da função didascálica à função estética, um texto
pretende deixar ao leitor a iniciativa interpretativa,
ainda que habitualmente deseje ser interpretado
com uma margem suficiente de univocidade. Um
texto quer que alguém o ajude a funcionar.
E é desse modo que deve proceder o leitor cortazariano para fazer o
seu texto funcionar. Texto esse que, pelas circunstâncias disformes de sua
escrita, torna-se hermético. Mas é o próprio Eco (p. 61) que afirma: “nada é
mais aberto do que um texto fechado”. Dessa forma, é provável que do
encontro com o texto cortazariano, a princípio, fechado, o leitor, na sua vontade
de fazê-lo funcionar, depare-se com personagens semelhantes, enredos des-
tecidos, embora muito parecidos, lugares comuns, como se o autor estivesse
se re-compondo a si mesmo a cada novo texto. Mas o leitor de hoje sabe que
ele voltou ao seu próprio discurso para se renovar e ao mesmo tempo
conservar a sua liberdade de expressão e a expressão de sua liberdade como
autor implícito e muitas vezes explícito: “ahora que lo escribo” (Oc, p. 65), “a
vos que me leés [...] lo escribo igual para vos que me leés porque es una
manera de quebrar el cerco” (Oc, p. 81 e 87), “lo que sigue es una tentativa de
mostrarme a mi mismo” (AAA, p. 161), “las historias que me cuento son
qualquier cosa pero casi siempre conmigo en el papel central” (QTG, p.401),
puesto que cuando invento personajes tampoco consigo distanciarme de ellos”
(D, p. 489). O leitor de Cortázar hoje se debruça sobre ele num ato copulativo,
79
onde o texto permite ao leitor, ainda que por segundos, atingir rasgos contínuos
de renascimentos a cada saída do labirinto.
1.7 Casa 6: “HABLO DE MÍ,
CUALQUIERA SE DA CUENTA”
“Hablo de mí, cualquiera se da cuenta”. Este é um verso do poema,
Ándele, de Salvo el crepúsculo (2004:57). Trata-se apenas de um verso
ratificador dos trechos acima colocados. Cortázar encontra-se como autor
dentro de seus textos, sem fazer questão nenhuma de se esconder.
Entendemos que há uma necessidade urgente da parte dele, como transmissor
da história e personagem-narrador, de exercer sobre o leitor uma influência,
dirigindo seus interesses e, à medida que explica ou comenta o ocorrido, vai
questionando-o. Assim, o autor expõe o leitor a riscos muito maiores: chama-o
para arriscar-se com ele.
A opinião de Dal Farra (1978:19), apesar de referir-se ao romance,
aplica-se à forma como Cortázar conduziu seus escritos em primeira pessoa.
Para ela, o autor que escreve em primeira pessoa elege um ser criado por ele,
o qual apresente as suas posturas para ser o narrador. Dentro da narrativa,
como narrador, torna-se um ser ficcional, cuja capacidade de agir e emitir
opinião é clara. Aplicando-se à narrativa cortazariana, o narrador seria o autor
metamorfoseado em Ahí pero donde, cómo (Oc, p. 85), onde podemos
reconhecê-lo pela marca impressa nos dois tipos de letras utilizadas: uma, para
marcar o momento que escreve sobre Paco, o amigo morto; a outra, para
mostrar os momentos em que pensa no amigo e quer escolher a melhor forma
de escrever o que pensa:
Cómo decirlo, cómo seguir, hacer trizas la razón
repitiendo que no es solamente un sueño, que si
lo veo en sueños como a cualquiera de mis
muertos, él es otra cosa, está ahí, dentro e fuera,
vivo aunque
Lo que veo de él, lo que oigo de él: la enfermedad
lo ciñe, lo fija en esa última apariencia que es mi
80
recuerdo de él hace treita y un años; así está
ahora, así es
Também ocorre essa exposição do autor em Apocalipsis de
Solentiname (AAA, p. 156), ao narrar o encontro que teve com Ernesto
Cardenal e os campesinos locais; em Lucas, sus sonetos (UtL, p. 314),
quando encontra o escritor brasileiro, Haroldo de Campos, que desembarca,
procedente de São Paulo com um de seus sonetos traduzidos para o
português, cuja tradução faz parte do livro com uma ressalva do próprio
tradutor: “no es una versión: más bien una “contraversión” muy llena de
licencias”. Ou ainda em Diario para un cuento (D, p.488), quando interroga-se
acerca da utilidade de escrever um conto, se na realidade poderia muito bem
abrir um livro de outro contista ou até ouvir música, além do relato das vezes
que encontrou o escritor Bioy Casares.
Em todos estes contos encontramos o “narrador ensimesmado” de Dal
Farra, debruçado sobre si mesmo, buscando inscrever-se naquilo que escreve.
Desse modo, seguiremos a interpretação que a própria faz de Pouillon (1974),
quando trata das diversas possibilidades do romance, adaptando-o para a
análise dos contos de Cortázar assim: em grande parte dos contos analisados
no decorrer dos capítulos encontramos enxertos autobiográficos que, ditos pela
boca de um narrador em primeira pessoa, vão se juntando para formar a
biografia do homem novo que quis ser após a Revolução Cubana. Ele se expõe
dentro dos contos colocando seu passado de informações artístico-literários, de
conhecimentos e idéias que se foram re-formando a respeito da América Latina
e sua problemática política ditatorial, para que o leitor possa senti-lo em suas
intervenções diretas. No caso específico do Cortázar pós-revolução, sentimos
apagar-se a fronteira existente entre autor e narrador; este último perde as
características virtuais em função da palavra empenhada do primeiro.
Encontramos, desse modo, diante de um tipo de autobiografia que, segundo
Pouillon(1974:45):
em lugar de contar o passado de uma maneira ou
de outra,uma vez que esteja realmente passado,
pode-se tentar registrá-lo enquanto ele ainda é
presente, ao tempo em que vai se desenrolando.
81
Vai se desenrolando no presente, ele, partícipe desse presente, não
contando-o de uma maneira ou de outra. Contando-o, ficcionalmente, para
melhor atingir o seu objetivo junto ao leitor que era o de demonstrar-se como
escritor “partícipe del destino histórico inmediato del hombre”, porque naquele
momento era obrigação e responsabilidade do escritor, como expressa na carta
que fala sobre a situação do intelectual latino-americano contemporâneo
(2004:65).
Reforçando esse pensar de Pouillon temos, mais modernamente, o
pensamento de Maingueneau (1995:46), o qual faz referência não a
autobiografia, mas à bio/grafia, uma forma onde a escrita e a vida do escritor se
entrelaçam numa relação considerada difícil. Vemos, então, o fluxo da “vida
rumo à grafia ou da grafia rumo à vida” configurar-se num envolvimento
paradoxal só resolvido com o ato criador. Em Cortázar percebemos que sua
vida foi re-organizada a partir da Revolução Cubana, seguindo-se as ditaduras,
de tal forma que as obras foram surgindo e se intensificando em presença de
um eu autoral vivenciando o drama de sua própria paratopia, que no dizer de
Maingueneau (p. 61),
Para que a paratopia seja completa, para não se
encerrar em nenhum estatuto, é preciso ser o
excluído dos escritores, aquele que contesta a
própria paratopia institucional da literatura.
Situando-o nessa paratopia completa, em vez de continuar exercendo
apenas sua função de escritor já reconhecido e participante do boom, Cortázar
fez crítica, participou do Tribunal Russel II, visitou Cuba, Nicarágua, mostrou-se
ideologica e utopicamente empenhado na defesa do ser humano oprimido
pelas ditaduras e na denúncia dessas mesmas opressões através de sua
literatura. Esse fato nos remete ao pensamento de Ángel Rama (2001:55) para
quem a inserção em uma elite cultural é um problema que se apresenta ao
romancista latino-americano como o “primeiro conglomerado social” no qual se
integra. Mas atrela a esse seu pensamento o dizer de Bastide que vê a
possibilidade de ir contra o seu meio social, sendo um “revolucionário, um não
conformista”, embora nunca despreze alguns valores adquiridos os quais
passam a fazer parte de si. Isso vemos refletido nos personagens
82
cortazarianos: grande parte deles intelectuais, conhecedores de artes diversas,
sabedores de um universo elitista no sentido de instrução, semelhante ao do
próprio autor.
Em O Foco Narrativo (1991:18), Ligia Chiappini faz uma síntese dos
conceitos que alguns teóricos desenvolveram a respeito da questão do autor.
Para tanto, utiliza-se do conceito de Booth, em A Retórica da Ficção e de Maria
Lucia Dal Farra, em O Narrador Ensimesmado, os quais acatam a existência
de um autor implícito nas obras. Assim ela se explica sobre o pensamento de
Booth:
(...) o autor não desaparece mas se mascara
constantemente, atrás de uma personagem ou de
uma voz narrativa que representa. A ele devemos
à categoria de autor implícito, extremamente útil
para dar conta do eterno recuo do narrador e do
jogo de máscaras que se trava entre os vários
níveis da narração.
O autor implícito de Booth assemelha-se ao autor onisciente intruso de
Friedman, também analisado por Chiappini (p. 26). Trata-se de um autor com
capacidade para opinar, intro-metendo-se e tecendo dentro das narrativas
traços de sua vida. Com Cortázar (2004:508) ocorre isso de uma forma muito
consciente. Ele tem a capacidade de, criticamente, demonstrar isso, quando
escreve sobre o conto como gênero, e o diz poeticamente:
Se afirma que el deseo más ardiente de un
fantasma es recobrar por lo menos un asomo de
corporeidad, algo tangible que lo devuelva por un
momento a su vida de carne y hueso. Para lograr
un poco de tangibilidad ante ustedes, voy a decir
en pocas palabras cuál es la dirección y el sentido
de mis cuentos.
Ora, Cortázar (p.507) tem consciência de que fala a um público que não
o leu e por isso se sente como um fantasma e com uma necessidade urgente
de explicitar a sua forma de escrever para poder atingir com mais facilidade o
seu público alvo. Na verdade ele gostaria de estar falando ao leitor que
pretendia para sua obra, o leitor cúmplice-implícito-modelo-copulativo. Poupar-
lhe-ia tempo para detalhar certos pontos que estão claros nos contos, como o
83
conceito generalizador de contista, embora se refira a si mesmo, onde ele
resume, de certa forma, o conteúdo de seus contos no texto crítico Alguns
aspectos do conto (1999:353), escrito na década de 60:
Un cuentista es un hombre que de pronto,
rodeado de la inmensa algarabía del mundo,
comprometido en mayor o menor grado con la
realidad histórica que lo contiene, escoge un
determinado tema y hace com él un cuento.
Nas palavras de Eco (1994:91), que se aplicam muito bem ao pensar
cortazariano, o leitor necessita do conhecimento do mundo real para senti-lo
dentro do mundo ficcional. A estratégia narrativa empreendida por Cortázar
assim o requer: como autor implícito-intruso-modelo-copulativo necessita estar
em sintonia com os seus destinatários, tendo o texto crítico como eixo principal
para que essa relação de troca aconteça satisfatoriamente. Concluímos,
portanto, que não se trata apenas de uma narrativa em primeira pessoa, mas
de uma narrativa auto/bio/gráfica, cuja função o leitor é convocado a
reconhecer através do reconhecimento contextual.
Qualquer um se dá conta de que em muitos contos ele fala dele mesmo,
ou se faz presença para dar credibilidade aos fatos narrados. Isso se pode
perceber explicitamente em vários contos que serão analisados seguidamente.
Dentro dessa gama de contos temos em Diario para un cuento o exemplo
máximo de sua presença. Conto este que, na visão de Trinidad Barrera
(1986:158) converteu-se em “testamento literario cortazariano, pues en él,
como veremos, se resumen perfectamente las claves de su narrativa”, isto é,
uma narrativa voltada para uma reflexividade em relação a si próprio como
escritor, em relação ao mundo, ao ser humano, voltada à reflexividade de sua
própria construção.
84
1.8 O CÉU: a ordem na desordem
O que podemos fazer com uma obra literária que caminha
paulatinamente com crítica ensaística, entrevistas e correspondências quase
sempre esclarecedoras desta mesma obra? O que Cortázar queria evitar com
tantas explicações acerca da própria obra? Seguindo uma linha de crítica onde
o poético é um aspecto presente, o autor vai traçando um perfil de obra
desejado e guiando o leitor ao seu entendimento. Tomamos aqui, para efeito
ilustrativo e até ratificador de que o autor tinha necessidade de fornecer ao
leitor um guia prático de sua própria obra, duas entrevistas onde as perguntas
giram em torno de seu posicionamento político e de como esse posicionamento
influencia ou entra nos contos: a primeira, feita por Pierre Lartigue, encontra-se
no livro de Saúl Yukievich, Julio Cortázar: mundos y modos (2004:73),
intitulada Contar y cantar Julio Cortázar; a segunda, intitulada Juego y
compromiso político, feita por Omar Prego, encontra-se no livro do próprio
Omar Prego, La fascinación de las palabras (2004:207).
Dialogando sobre prosa e poesia com Saúl Yurkievich e Cortázar, Pierre
Lartigue (2004:75) lança um questionamento acerca da relação de Cortázar
com a poesia, para o que este esclarece que, sem abandonar a poesia, posto
que seus dois primeiros livros eram de poesia, sente-se mais comodamente
escrevendo prosa porque tem
una conciencia vergonzosa con respecto a la
poesía, proviene de que ninguno de mis amigos
gustara de mis poemas y que se entusiasmaran
inmediatamente con mi prosa. Ellos, al igual que
los críticos argentinos, me clasificaron como
prosista.
Um prosista com rasgos poéticos é o que poderíamos dizer de Cortázar
após lermos a afirmação dele de que sua prosa possui um ritmo poético que se
acentua como uma espécie de pulsação capaz de cessar, quando ocorre uma
85
falha na narrativa, ou seja, quando ele fracassa como narrador, quando
percebe que sua prosa está ficando prosaica, o ritmo deixa de ser perceptível.
Voltada exclusivamente para as explanações acerca de seu
compromisso político, a entrevista com Omar Prego vai desde como e de que
maneira se deu esse assumir um comprometimento político e este introjetar-se
em sua literatura sem o prejuízo da parte literária. Cortázar assegura que tinha
essa preocupação e nos mostra já no prólogo do Libro de Manuel, quando
expressa o desejo de estar fazendo uma literatura de convergência que,
segundo ele (p. 214) era
particularmente difícil porque en la mayoría de los
libros llamados comprometidos o bien la política
(la parte política, la parte del mensaje político)
anula y empobrece la parte literaria y se convierte
en una especie de ensayo disfrazado, o bien la
literatura es más fuerte y apaga, deja en situación
de inferioridad el mensaje, la comunicación que el
autor desea pasar a su lector.
Unir temas divergentes, torná-los convergentes de modo a nenhuma das
partes sair prejudicada é uma tarefa difícil. Tão difícil quanto escrever os livros-
colagem
26
é colar dentro de uma história outra, como a de Manuel, recortes
significativos de uma época onde as notícias giravam em torno de violências e
desaparecimentos. Tudo o que ocorreu, à margem de Manuel, servir-lhe-á no
futuro como manual que o instrumentalizará no entendimento político do
presente, sobretudo no entendimento do que o ser humano foi capaz de fazer
aos outros, seus semelhantes. De Libro de Manuel aos contos comprometidos,
Cortázar conseguiu essa convergência temática: nem a sua literatura apagou o
o aspecto político, nem este conseguiu torná-la inferior. Ao contrário, contribuíu
para ativar o elemento fantástico que já existe na realidade sob as mais
diversas formas possíveis.
26
La vuelta al dia en ochenta mundos (1967), Último round (1969), Viaje alrededor de una
mesa (1970), Prosa del observatorio (1972), Fantomas contra los vampiros multinacionales
(1975) são alguns dos livros de Cortazar organizados em forma de colagem, onde o autor
mescla ensaios, contos, poemas, crônicas, fotografias, pinturas, etc. É, sem dúvida, o livro
Fantomas contra los vampiros multinacionales o que mais demonstra seu comprometimento
sociopolítico, numa história em quadrinhos que reúne o real e o ficcional, alguns dos
personagens que dialogam com o próprio Cortazar são Octavio Paz e Susan Sontag.
86
Diante da heterogeneidade genérica da obra cortazariana, a carta
também vem juntar-se aos escritos críticos, traçando coordenadas analíticas de
seu próprio fazer literário, do fazer literário de quem admira e de outros
aspectos ligados à arte em geral. Suas cartas, como seus textos críticos,
mantêm um certo didatismo traduzido no desejo de se fazer entender por quem
o lia e posteriormente por quem o lesse. Cortázar serve-se do modelo epistolar
para trocar com o seu destinatário impressões as mais diversas. A carta
cortazariana, quase sempre, é um ato de comunicação escrita direcionada e
interpelativa, a exigir que o seu destinatário lhe dê respostas para que se
complete o seu ciclo de sentido e para que se cumpra a função do leitor por ele
pretendido. Pelas cartas, uma grande parte enviada à Revista cubana, Casa
de las Américas, endereçadas a Haidée Santamaría ou a Roberto Fernandéz
Retamar, podemos afirmar que são de teor expressamente de apoio à
Revolução Cubana, nas pessoas de Fidel e Guevara, como se encontra na
carta datada de 24 de Dezembro de 1965 (2004:26), onde faz referência à
leitura de algo escrito por Guevara, sobre o desembarque de Fidel,
acrescentando: “cuanto al Che, comprendo de sobra que su destino se sigue
cumpliendo como debe ser, como él quiere que sea”.
Uma outra correspondência bastante esclarecedora é a que trata do
papel do intelectual latino-americano (2004:59). Nela, Cortázar explica que,
apesar da distância, considera-se um intelectual latino-americano pelo fato de
sua obra contextualizar-se nesse espaço, pelos laços firmados com Cuba a
partir da Revolução. Cortázar se interroga pelo fato de só ter descoberto a sua
condição de latino-americano após mais de uma década em Paris, cidade que
diz ter escolhido para morar e escrever sua obra sem motivos pré-
estabelecidos. Também levanta um questionamento acerca de sua
permanência na Argentina, se esta poderia ter sido proveitosa para a sua
literatura. Em toda a correspondência é latente o pensamento utópico em
relação à Revolução Cubana. Em algumas passagens, o deslumbramento
explícito com a situação experienciada:
Sin razonarlo, sin análisis prévio, vivi de pronto el
sentimiento maravilloso de que mi camino
87
ideológico coincidiera côn mi retorno
latinoamericano; de que esa Revolución, la
primera revolución socialista que me era dado
seguir de cerca, fuera una revolución
latinoamericana. Guardo la esperanza de que en
mi segunda visita a Cuba, três años más tarde, te
haya mostrado que ese deslumbramiento y esa
alegria no se quedaron en mero goce personal.
Na passagem desses três anos previstos, dois acontecimentos
marcaram e minaram o pensamento utópico cortazariano em relação à
Revolução Cubana: a morte de Guevara, em outubro de 1967 e a prisão de
Padilha, em começos de 1971. Embora na carta que anexe ao texto Policrítica
en la hora de los chacales (2004:126), falando sobre o caso Padilha,
expresse ainda a sua confiança na Revolução, explica que este texto “no es
una carta, ni un ensayo, ni un documento político bien razonado; es lo que
nace de mí en una hora muy amarga”. E essa hora amarga ele trata de torná-la
clara, como um desabafo e uma cobrança ao mesmo tempo, mas também um
reacender da chama utópica revolucionária, neste trecho do texto:
por-que-Cu-ba-no-es-eso-que-e-xi-gen-sus-es-
que-mas-de-bu-fe-te, no me creo excepción, soy
como ellos, que habré hecho por Cuba más allá
del amor,
qué habré dado por Cuba más allá de un deseo,
una esperanza.
Pero me aparto ahora de su mundo ideal, de sus
esquemas [...]
es ahora que ejerzo mi derecho a elegir, a estar
una vez más y más que nunca con tu Revolución,
mi Cuba, a mi manera. Y me manera torpe, a
manotazos, es ésta, es repetir lo que me gusta o
no me gusta.
Cortázar conseguiu por ordem na desordem genérica que desenvolveu
crítica e criativamente. A sua texturologia está marcada pela diversidade e pela
profundidade temática acerca da sua produção literária, da produção literária
de escritores que admirou, da utopia revolucionária na qual mergulhou e sobre
a qual escreveu alguns dos contos mais fantásticos, pelo fato de, neles,
vislumbrar a possibilidade da concretização do homem novo, sem nunca tê-lo
conseguido. A sua texturologia, enfim, para entendê-la, necessário se faz
mergulhar nesse túnel de informações crítico-ensaísticas, nas cartas e
88
entrevistas para delas montar as peças do jogo que é entender a sua obra.
Estão todas lá, desde o leitor por ele desejado à crítica de sua obra, ou pelo
menos, os eixos principais por onde deve se mover o leitor que se aventura a
entendê-lo. Para ratificar a importância que tem esta parte de sua obra para o
entendimento da literária, tomamos o pensamento de Davi Arrigucci Júnior
(1993:14) em prefácio ao Valise de Cronópio:
o ensaio cortazariano continua e multiplica a obra
de invenção, como se o desejo de fundir-se na
totalidade movesse cada partícula da obra inteira
e lhe desse esse poder de agregar a si mundos
diversos, combinando e recombinando os cacos
da realidade que sobram na linguagem num
mosaico espectral e furta-cor, para delícia dos
cronópios.
Assim vemos configurado, o que chamamos inicialmente de texturologia,
a narrativa temático-discursivo-transgenérica. E o que vimos, então, não é mais
que o produto da expressão existencial de um ser múltiplo que ao utilizar suas
experiências de vida dentro de seu texto literário não fez mais que apresentar
ao mundo uma outra faceta de uma arte preocupada em mostrar o que é a
realidade fantástica, dentro do humanamente possível. Ao nos debruçarmos
sobre o estudo da obra cortazariana, mais que criticá-la, interpretamo-la a partir
de seu exterior para prosseguirmos mergulhando nesse jogo de realidades e
fantasias com o qual nos deparamos a cada página. Assim, numa
texturologização particular, atingimos as experiências-chaves de sua obra ora
em estudo: a Revolução Cubana, as ditaduras latino-americanas, as torturas, a
preocupação com o ser humano, tudo isso envolto numa trama textual que o
acompanha desde as primeiras obras e se intensifica nas obras presentes.
89
2ª REVOLUÇÃO
A PREPARAÇÃO PARA SER O OUTRO
Cuando me fui de la Argentina em 1951, lo hice por mi propia voluntad y sin
razones políticas o ideológicas apremiantes. Por eso, durante más de veinte
años pude viajar com frecuencia a mi país, y solo a partir de 1974 me vi
obligado a considerarme como um exilado. Pero hay más y peor: al exílio que
podríamos llamar físico habría de sumarse a partir del año pasado um exílio
cultural, infinitamente más penoso para um escritor que trabaja em íntima
relación com su contexto nacional y lingüístico.
(Julio Cortázar América Latina: exilio y literatura. In. Obra Crítica vol 3,
2004:216)
90
2. A PREPARAÇÃO PARA SER O OUTRO
Cortázar reconhece a sua mudança de posicionamento a partir da
Revolução Cubana. O seu envolvimento com os intelectuais da América Latina,
a sua participação intensa na Revista Casa de las Américas, no Tribunal
Russel II, todos esses fatos, juntando-se aos mais trágicos protagonizados pela
Ditadura Militar, foram provocando-lhe uma visão nova em relação ao mundo
exterior circundante. Começa a perceber que o ser humano necessita de uma
participação mais humanizada dentro de seu universo literário para poder
repassar aos leitores essa nova postura de homem das letras preocupado com
o destino do homem latino-americano. Como saída inicial, a introdução de
pessoas reais como personagens de suas histórias e a sua própria
participação. Com isso ele queria mostrar a força de suas idéias
revolucionárias, de seu posicionamento firme em relação aos acontecimentos
que envolviam a América Latina. Cortázar quis que a sua voz, a partir de então,
fosse a voz do outro, que a mão do outro, a do “hermano”, fosse a que
escrevesse para que o leitor de sua obra se pusesse sabedor e crítico em cada
situação por ele abordada de forma literária. Uma forma literária que ele agora
vislumbrava como “fator histórico” e como literatura “operante”, isto é, uma
literatura capaz de despertar “o interesse e a fascinação suficientes para levar
você a estudá-la, interrogá-la e deliciar-se com ela”, de uma forma consciente.
Para Cortázar, essa nova forma de fazer literatura na América Latina atingiu
vários escritores e teve uma boa receptividade:
Si en outro tiempo la literatura representaba
de algún modo unas vacaciones que el lector se
concedia en su cotidianidad real, hoy en dia en
América Latina es una manera directa de explorar lo
que nos ocurre, y muchas veces encontrar caminos
que nos ayuden a seguir adelante cuando nos
91
sentimos frenados por circusntancias o factores
negativos.
Juntar-se ao outro, representar o outro, sentir-se o outro para poder
escrever as suas dores. A sua intenção de mostrar uma literatura onde o outro
tivesse um papel fundamental, posto que era com o outro e não com ele
próprio que os fatos ocorriam, tornou Cortázar um humanista, cuja
preocupação maior era com a vida, do homem, com suas lutas – sacrifícios,
vitórias e derrotas – sua razão, seu senso de moral e de justiça, numa terra e
num tempo onde quem não tinha poder sucumbia ou se sujeitava. Suas lições
de preparo para ser o outro ele as aprendeu no exílio, em contato com outros
intelectuais, em contato com a palavra consciência e com a ação que dela
possa advir:
Porque si lo esencial es luchar por la causa de
nuestros pueblos y de la humanidad entera,
también nos toca luchar contra nosotros mismos,
ser a la vez Jacob y el angel, oponernos a la
tristeza sin caer em la ingenuidad, y ahondar em
nuestra conciencia sin perder la capacidad de
acción.
27
2.1 DO EXÍLIO
El exílio es la cesación del contacto de um
follaje y de una raigambre com ela ire y la
tierra connaturales, es como el brusco final
de un amor, es como una muerte
inconcebiblemente horrible porque es una
muerte que se sigue viviendo
conscientemente, algo como lo que Edgar
Allan Poe describió en esse relato que se
llama << El entierro prematuro >>.
( Cortázar, 2004:219)
No conto, O enterro prematuro, Poe declara que
ser enterrado vivo é,
fora de qualquer dúvida, o mais terrífico daqueles extremos que já couberam
por sorte aos simples mortais”. A analogia feita por Cortázar representa exato
o que se sente ao ser ou se sentir exilado.
Para ele, o exílio lhe despoja de
27
Comunicación al Foro de Torún, Polonia. In. Obra Crítica, vol. 3, p. 248.
92
tudo o que é seu das mais diversas formas possíveis, inclusive enterrando ou
desterrando pessoas que passam a sentir-se como mortas. O exílio, sabemos,
é o estado de estar longe da própria casa, de seu povo, de sua nação e pode
ser definido como a expatriação, o desterro voluntário ou forçado de um
indivíduo. Também podemos utilizar as palavras, banimento ou degredo.
Alguns autores utilizam o termo exilado no sentido de refugiado, o qual não se
aplica à situação de Cortázar, como veremos a seguir, uma vez que ele declara
não ter se ausentado da Argentina, a princípio, por nenhuma motivação
político-ideológica.
Muitos foram os escritores no mundo que passaram pela fase do exílio
e do auto-exílio
28
. Muitos foram os que deixaram esse acontecimento refletir-se
em suas obras. Sobre esse aspecto, Cortázar escreveu um texto crítico,
América Latina: exílio y literatura (2004:213-228), onde aborda a
problemática relação entre os dois, especificando o caso da América Latina,
para quem àquela época, “o exílio domina o cenário da literatura”.
Como protagonista da diáspora, a princípio, não se considerava um
exilado, posto que a sua saída inicial não se deveu a motivos político-
ideológicos, segundo ele próprio. O exílio veio em 1974, quando da proibição
de seu livro Alguien que Anda por Ahí. Cortázar considera que há três formas
de exílio: há o exílio físico, aquele que lhe obriga a distanciar-se de sua terra,
há o exílio cultural, onde lhe privam de quaisquer tipos de informação sobre
sua terra e o exílio interior, o que ele considera como sendo o pior tipo, aquele
que faz você permanecer em silêncio, mesmo estando em sua terra. Para ele,
este tipo de exílio esmaga
in situ a muchos jóvenes talentosos cuyas
primeras obras tanto prometían. Entre 1955 y
1970 yo recebía cantidad de libros y manuscritos
de autores argentinos noveles que me llenaban de
esperanza; hoy no sé nada de ellos, sobre todo de
los que siguen en la Argentina. Y no se trata de un
proceso inevitable de selección y decantación
28
Vários intelectuais em várias partes do mundo passaram por essa situação, todos eles
fugindo de situações de repressão e autoritarismo, todos eles por pleitearem uma sociedade
democraticamente mais justa e mais liberal. Entre eles, podemos destacar desde Dante
Alighiere, Victor Hugo, Brecht, Thomas Mann, Freud, Marx, até os mais recentes,
contemporâneos de Cortázar.
93
generacional, sino de una renuncia total o parcial
que abarca un número mucho mayor de escritores
que el previsible dentro de condiciones normales.
(p. 219)
Diferentemente dos que partiram quase “proustianamente do exílio para
uma nostálgica busca da pátria perdida”, Cortázar se enquadra no grupo dos
que estão empenhados na reconquista de uma pátria onde a liberdade do
homem fosse preservada e o faz pela literatura, enxertando-lhe, numa
linguagem coloquial, os problemas causados pela ditadura militar então vigente
na América Latina e, contrariando o pensamento de Said (2003:46) de que “a
literatura e a história contêm episódios heróicos, românticos, gloriosos e até
triunfais da vida de um exilado”, a sua, elaborada sempre em torno de um
personagem ou de um grupo, retrata o inverso: não há episódios heróicos,
românticos, gloriosos ou triunfais porque os seus exilados nunca vencem,
estão expostos a episódios que em geral culminam com a morte e com o
desaparecimento.
A sua consciência é a de que, agindo desta forma, transmuta a
negatividade do exílio em uma “nova tomada de realidade”, a qual irá se tornar
incômoda, justo para quem os colocou na posição de exilados. Para tanto,
enumera dois fatores básicos que podem leva-lo a atingir o objetivo pretendido:
o apoio a todas as formas inteligentes de combate e a inversão da noção
estereotipada do exílio, isto é, de que este é tão somente causa de sofrimento
e dor. A partir desses dois pontos faz uma convocação ao exilados para se
fazerem eficazes e não se tornarem os escribas que as ditaduras latino-
americanas querem que sejam. A tentativa é fazer com que percebam que
los verdaderos exilados son los regímenes fascistas de
nuestro continente, exilados de la auténtica realidad
nacional, exilados de la justicia social, exilados de la
alegría, exilados de la paz. Nosotros somos más libres y
estamos más en nuestra tierra que ellos. (p. 224)
Cabe ao escritor exilado, portanto, segundo Cortázar, empreender uma
revisão de si mesmo diante da situação de exilado e tentar superá-la em seu
desvalor para que possam, lá de onde estão, sintetizar simbolicamente, seja
94
através do romance, do conto ou do poema, os episódios promovidos pela
ditadura.
Pensemos que em Cortázar instituiu-se uma relação não dogmática
entre exílio e literatura. Para encarnar a renovação da literatura latino-
americana tornou-se um rebelde no sentido último da palavra. Praticou uma
implosão dos gêneros e da linguagem literária e arriscou-se a extrair da
realidade e do discurso cotidiano do latino-americano a essência para, criando,
criar o homem novo e re-criar-se como homem, voltando seus interesses para
a espécie humana atormentada pelas ditaduras e pela diáspora advinda delas.
Desta forma, introjetou no seu mundo fantástico uma realidade mascarada
pela metáfora do indizível e do irresoluto, para que, atingindo esse homem
novo, ele entenda a sua mensagem e passe a se rebelar contra o poder.
Desde A casa Tomada (CC1- B, p. 141) estamos diante de alguém que nunca
se identifica, mas vai tomando os cômodos da casa, expulsando os seus
moradores, silenciosamente, detectados apenas por um som que “venía
impreciso y sordo, como un volcarse de silla sobre la alfombra o un ahogado
susurro de conversación”, até se revelar nas palavras de ordem de La Escuela
de Noche (D. p. 465): “del orden emana la fuerza, y de la fuerza emana la
orden”, ditas por alunos recrutados no silêncio da noite, num lugar insuspeito,
a escola.
Em texto de Salvo el Crepúsculo (2004:250), Cortázar descreve seus
primeiros anos em Paris como tendo sido um tempo que operou nele
movimentos de recuos e avanços – “carga y descarga y recarga y contracarga
y anticarga y sobrecarga” – na sua maneira de ver a sua terra, sobretudo de
saber como representá-la dentro de sua escritura, a partir de outro país.
Desses movimentos, surgiu a certeza de que jamais conseguiria atingir o que
ele denomina de ‘verdade inventada’, “si me convencia de que país nuevo era
vida nueva y que el amor se cambia como una camisa”. Convencido do
contrário, seguiu escrevendo sua obra, argentinamente. Para ele, sua ida a
Paris em nada afetou a sua relação com seu país, menos ainda a sua escrita.
Y volvi a escribir como antes, desdoblado y obediente
ante esas rémoras de la nostalgia que eran mi
95
antepeluca, a la vez que ávidamente entraba en la
verdad inventada, inventada por mí cada día
simplemente porque había decidido hundirme en ella y
hacerla mía, sin pena ni olvido como me lo cantaba una
voz tan querida a cada rato, en cada café del recuerdo.
Un antes, un después? Sí, en los calendarios, pero no
en esa misma lapicera que seguía escribiendo desde la
misma mano.
O pensamento de Cortázar sobre o exílio e a representação desse exílio
através dos personagens que criou é concordante com o de Pierre Rivas
(2001:99-114), quando ele retrata a Paris daquele momento como capital
literária, como “praça por onde tudo circula, o ponto de encontro entre norte e
sul, leste e oeste” e discordante quando ele fala em Paris como o lugar do
escritor latino-americano que busca a redescoberta de sua pátria e a vontade
de assumi-la e ilustrá-la. Com Cortázar sentimos que a sua viagem a Paris não
foi iniciática, não foi uma peregrinação às fontes, menos ainda uma tentativa de
redescobrir sua pátria, pois esta nunca saiu de sua escritura e a ela retornou,
avidamente, como um “polígrafo”, que ele definiu como sendo, não apena um
escritor que trata sobre diversos temas, mas aquele que domina a poligrafía,
isto é, “ el arte de escribir de modo que sólo pueda descifrar lo escrito quien
previamente conozca la clave”. Daí entendermos a sua necessidade, como
polígrafo, de deixar uma explicação clara de seus escritos, de mostrar as
chaves, de situar o leitor dentro do contexto de sua obra. Para entender
Cortázar e a sua obra, temos que começar pelo Cortázar crítico de sua própria
obra.
Para entender o que significou a Argentina e a América Latina, enquanto
ditaduras, o exílio e Paris para ele, a relação desses elementos dentro de sua
obra, principalmente dentro do que aqui chamamos de contos comprometidos,
não podemos deixar de analisar suas palavras como crítico para entendermos
o seu envolvimento como ser tardiamente politizado, e militante pela palavra,
como ser voltado para a compreensão do humano na luta que empreendeu
para tornar o exílio num fato eficaz através de uma literatura voltada
conscientemente para os problemas de seu povo:
Cuando a mí me nace la idea de un cuento que tiene una
referencia a las desapariciones en Argentina, escribo ese
cuento con el mismo criterio literario y la misma absorción
96
literaria con que puedo escribir cualquier cuento
puramente fantástico [...]. para mí se trata de obras
literarias, solo que en el caso de los desaparecidos se
trata de un tema que significa mucho para mí, es ese
tema espantoso de lo que ha sucedido en Agentina estos
últimos años, y se presenta como una posibilidad de
desarrollo literario [...] y que además del efecto literario va
a tener un efecto de tipo político. (LFP, p. 214)
Assim pensamos que o Cortázar exilado ou em estado de exílio aliou a
esse fato a idéia de reverter-lhe o sentido com o intuito primeiro de chamar a
atenção dos leitores sobre os problemas causados ao povo latino-americano
pelas ditaduras. Quem lê esse Cortázar, hoje, sente necessidade de uma
visitação obrigatória aos quadros das ditaduras que perpassaram a América
Latina daquele período. Sente-lhe a sede de poupar o humano, de colocá-lo
pelo menos na encruzilhada do entendimento, do como o poder pode
manipular pessoas e, quando já não pode, exilá-las, fazê-las sumir e até matá-
las indiscriminadamente.
2.2 A CRÍTICA COMO PONTO DE PARTIDA
Yo tuve un Hermano
Que iba por los montes
Mientras yo dormía.
29
J. Cortázar
Quando se fala aqui de mundo ficcional, pensa-se como Compagnon
(2001:136), nos mundos possíveis que possam ser compatíveis com o mundo
real. A literatura dispõe dessa condição de criadora de mundos possíveis nos
quais põe a realidade sob suspeita para poder criticá-la. Cortázar pôs o real de
seu tempo sob suspeita atrelando-o à sua escrita. Esse mundo ficcional
cortazariano será percorrido através de uma investigação de pontos ainda por
29
Trecho do poema Che, dedicado a Guevara, quando de sua morte, em carta enviada a
Roberto Fernández Retamar (29/10/1967), onde declara ao amigo o sentimento de vazio e a
impossibilidade de escrever: “me siento incapaz de decir nada de él”. Carta transcrita na edição
da Casa de las Américas dedicada a Julio Cortázar, em 2004, p. 76.
97
serem aclarados de sua produção contística da década de setenta e início de
oitenta, especificando-se, nesse capítulo, os contos ditos ‘comprometidos’.
Para tanto, fez-se necessário revisitar alguns momentos da crítica em relação à
sua produção, para entendermos como esta percebia a representação das
realidades nele, e atarmos alguns fios condutores que proporcionem novos
achados para a presente análise.
E então começamos pelo próprio Julio Cortázar, crítico desse gênero
curto e, especificamente, do conto fantástico, cuja denominação deram a seus
contos, “por falta de melhor nome” conforme ele. Escrever num “état second”,
equilibrando o elemento que ele considera pertencente ao terreno neurótico ao
elemento do meio exterior, é assim que ele diz proceder. Em Alguns Aspectos
do Conto, Cortázar (2004:508) se propõe a falar sobre este gênero de
narrativa curta e sua estrutura em geral, a partir da sua própria experiência de
contista. Neste ensaio crítico, ele traça para o leitor o que define como sendo
a direção e o sentido de seus contos:
Casi todos los cuentos que he escrito pertenecen al
gênero llamado fantástico por falta de mejor nombre, y se opone
a eso falso realismo que consiste en creer que todas lãs cosas
pueden describirse y explicarse como lo daba por sentado el
optimismo filisófico y científico del siglo XVIII.
Mais uma vez falando sobre o conto
30
, desta vez dando destaque ao
“decálogo do perfeito contista”, de Horácio Quiroga, mais precisamente, o
último preceito, o qual sinaliza para a noção de conto como forma fechada, ou
o que ele, Cortázar, denomina de esfericidade do conto: a necessidade que
tem o narrador de mover-se de forma implícita dentro desse ambiente fechado
e com a máxima economia de meios. A teoria de Quiroga retoma em alguns
aspectos a de Poe, de quem Cortázar foi tradutor
31
e crítico. A teoria do conto
de Poe encontra-se analisada no texto Poe: o Poeta, o Narrador, o Crítico
32
,
mostrando-o como profundo conhecedor dos princípios que regem o gênero.
Segundo Cortázar,
30
CORTÁZAR, J. Do conto breve e seus arredores. In: Valise de cronópio. São Paulo:
Perspectiva, 1993.
31
A melhor edição dos Contos Completos de Poe em espanhol é a traduzida por Cortázar,
publicada em 2 volumes pela Alianza Editorial.
32
In., Valise de Cronópio, p. 103-146.
98
Poe percebeu antes de todos, o rigor que exige o
conto como gênero, e que as diferenças deste
com relação ao romance não eram só uma
questão de tamanho. Afirmou que o período entre
1829 e 1832 vê nascer o conto como gênero
autônomo. Na França surgem Mérimée e Balzac,
e nos Estados Unidos, Hawthorne e Poe. Mas só
este escreveria uma série tão extraordinária de
narrativas a ponto de dar ao novo gênero o
empurrão definitivo em seu país e no mundo, e de
inventar ou aperfeiçoar formas que teriam vasta
importância no futuro
.
Cortázar suspeitava da existência de uma outra ordem do real e nela foi
buscar os elementos necessários para compor o seu mundo fantástico. Mundo
este perpassado pelos lugares por onde passou e viveu. Neste mundo à
margem (mundo de outra ordem), aportou seus personagens e, dentro deles,
as suas reflexões sobre o homem: seus poderes, seus medos e angústias, sua
falta de liberdade, a sua própria racionalidade.
Como contista, Cortázar apresenta ao leitor uma idéia fundamental
expressa dentro de noções de limites que estabelece. Inventa, então, uma
pequena história vivida por poucos personagens, cujo desfecho leva o leitor a
deduzir a parcela de sentido de mundo que pretende com a narrativa, uma vez
que exige um leitor implícito e sensível para suas narrativas. E, nesse contar,
ele empreende um trabalho de fotógrafo, o de recortar certo fragmento da
realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de maneira tal que esse
recorte opere como uma explosão que abre de par em par uma realidade mais
ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo
abarcado pela câmara
33
.
De câmara em punho, Cortázar trouxe o leitor para dentro de seus
contos para mostrar a explosão dessa realidade que se abre como janelas, de
par em par, tendo o elemento fantástico como intermediador mor dessa visão
que se estatiza pela escrita e se dinamiza pela leitura. Basta lembrarmos os
grafites borrados pelos policiais em conto de mesmo nome, do livro Queremos
tanto a Glenda (p. 397), ou ainda a paisagem que se repete aos olhos de
33
Alguns aspectos do conto. In. Obra crítica, v. 2, p. 351.
99
Diana, no conto Fin de Etapa (p. 426), em Deshoras, quando a mesma
percebe que “todas las habitaciones correspondían a una misma casa, como
la hipertrofia de un autorretrato”, ou ainda em Orientación de los gatos (QTG,
329), com Alana, que se desdobra, ao formar um triângulo fulminante, cujo
vértice é o quadro de um gato que a faz penetrar numa zona inatingível e
incompreensível ao marido, fazendo-a passar por uma suposta transformação
estática que a separa dos demais. Em vários contos, como nos exemplos
citados, uma visão que se vai abrindo em profundidade, como um túnel: quanto
mais o leitor penetra nas suas narrativas mais narrativas tem a descobrir. Para
ele, avançar em túnel significa instaurar na linguagem o poético (fundo) como
caminho para sair da superficialidade que a estética enquanto forma
proporcionava.
Cortázar (1970) pensava que a realidade apresentada em sua literatura
e na literatura da América Latina ia além do contexto sócio-histórico e político,
não pertencendo apenas ao Terceiro Mundo: representava todos os homens a
partir de todos os ângulos. Daí a realidade em suas obras adquirir conotações
que vão do mítico ao cotidiano, em graus os mais variados possíveis. Daí essa
dinamicidade temática exposta de uma forma multigenérica. Nos seus contos,
a realidade apresenta-se, ora de forma surreal, presa aos mecanismos do
subconsciente e do onírico, liberta do controle da razão e da lógica, ora de
forma absurda, onde conta o que está fora da lógica racional, do senso comum,
o que se encaixa no contraditório e no paradoxal.
Os enredos se configuram de tal modo envoltos nessa atmosfera de
sonhos e fantasias, e escritos numa linguagem densamente poética que faz o
leitor pensar que esta é a forma de recriação mais viável, um passaporte para
se atingir uma compreensão do que venha a ser a realidade dentro do mundo
ficcional cortazariano. Essa realidade geográfica e contextualmente localizada
que nos é apresentada pelo viés do fantástico.
Haroldo de Campos (1979) considera que a obra de Cortázar ganhou
proporções acentuadas a partir de Rayuela. Para ele, o autor evoluiu de um
romance ainda costumbrista, Los Premios (1960), com rompantes de realismo
mágico, para o admirável Rayuela (1963), num momento em que o boom
100
atingia o seu momento de ascendência. Ascendência esta que dura até a
década de setenta, onde é produzida a
maioria de seus contos. Sobre esse
período, Vargas Llosa fala em “novelas totales”, dentre as quais se situa
Rayuela, aquelas cuja essencialidade objetivava “abarcar la realidad en todos
sus niveles: la realidad exterior y la realidad interior o mental. La novela total es
"fantástica, histórica, militar, social, erótica, psicológica"
34
Sobre Rayuela, o
próprio Cortázar assim se referiu:
Mi libro ha tenido una gran repercusión, sobre
todo entre los jóvenes, porque se han dado cuenta
de que en él se los invita a acabar con las
tradiciones literarias sudamericanas que, incluso
en sus formas más vanguardistas, han respondido
siempre a nuestros complejos de inferioridad, a
eso de "ser nosotros tan pobres", como dices a
propósito del elogio de Rubén a Martí
35
.
Antonio Candido (1979:356) em seu estudo sobre Literatura e
subdesenvolvimento na América Latina, abre um espaço para se entender
que, apesar de periférica, a literatura latino-americana nutre-se,
ambivalentemente, dos temas locais e das influências estrangeiras e, através
de alguns escritores, consegue-se superar os problemas relativos ao
regionalismo pela incorporação de certos “ingredientes que lhe vêm por
empréstimo cultural dos países produtores de formas literárias originais”. Aqui,
segundo ele, não se trata de fazer uma literatura imitativa, ou de simplesmente
reproduzir de forma mecânica tais formas, mas tão somente de compor uma
fórmula peculiar que, partindo dos valores locais, atinja-se o universal. Sobre
esse ponto, Candido diz ser Julio Cortázar um dos escritores mais originais,
integrados e conscientes neste sentido, posto que “escreve coisas
interessantes” e que tais coisas se universalizam pelo fato de apresentarem,
tanto fidelidade local quanto mobilidade mundial.
Por sua vez, Mario Benedetti (1979:370), tratando acerca dos temas e
problemas na literatura da América Latina percebe que a partir de um certo
34
Vargas Llosa, «Carta de batalla por Tirant lo Blanc», 1969.
35
Trecho de carta extraída do livro Fervor de la Argentina, de Roberto Fernández Retamar .
Buenos Aires: Ediciones del Sol, 1993.
101
momento começa a ocorrer uma mudança tanto de temas quanto da posição
do leitor e até da inserção do social na obra. Para ele, os temas se modificaram
com “o propósito de lançar raízes em território latino-americano [...] propósito
de fabricar uma geografia em escala pessoal”, cuja interpretação poderia ser
tomada como “um gesto secreto, quase clandestino, destinado a latino-
americanizar um dado geográfico local, restrito”. Tal propósito transportaria a
literatura da América Latina para um eixo mais amplo (e aqui a opinião de
Benedetti entra em consonância com a de Antonio Candido), a ponto de os
escritores, mesmo aqueles que residem na Europa, tomarem os temas locais.
Entre eles, Benedetti cita Cortázar que escreveu a primeira parte de Rayuela
em Paris, mas, conforme ele, “trata-se de Paris vista, escutada e sentida por
um argentino, tão essencialmente portenho que seu ouvido vai colorindo de
argentinidade tudo aquilo que ouve, todas as palavras que o roçam”
36
.
Gregorich (1968:119-131) analisando as possibilidades da literatura na
obra de Cortázar produzida até então, traça um perfil do escritor que ataca a
arte de escrever, que lança por terra os modelos tradicionais vigentes.
Cortázar, para ele, é um renovador e remodelador da literatura por utilizar
elementos de diversas vertentes. Sua análise prossegue com o propósito de
mostrar que a obra deste autor, de tendência fantástica, é enriquecida por
“procedimientos inobjetablemente realistas (la observación psicológica y social
rigurosamente historizada, la utilización del lenguage popular, etc)” (p. 119).
Prossegue dividindo a obra em três níveis, a saber: o de tendência
propriamente fantástica, o de nível experimental, onde o autor mescla
intenções realistas e simbólicas e, o terceiro, o que cumpre fundamentalmente
uma vocação antiliterária. Neste nível, Cortázar teria abandonado “la
arqueología del género y se tiende hacia el futuro”. Para ele, mesmo havendo
essa divisão dentro da obra cortazariana, não há ali, senão crítica da literatura
e não da sociedade: “su literatura está hecha de la crítica de la literatura, no de
la crítica de la sociedad” (p.129). E, ao considerar Rayuela a obra mais literária,
36
Este tema se refere especialmente à linguagem de Rayuela, pelo uso do lunfardo ou língua
portenha que não corresponde à que se fala nesse momento em Buenos Aires, e não visava
apelar ao leitor parisiense, mas apresentar uma linguagem própria que se distanciasse da
usada pela literatura espanhola vigente.
102
por se tratar de literatura de literatura, significado de significado, sinaliza para
uma posterior explicação de
cómo una obra de estas características,
desprovista de toda significación política explícita
e incluso opuesta por principio a las categorías de
lo “político” y de lo “social”, puede ser rescatada
por una conciencia política y estética de izquierda,
ligada con el marxismo.”
Esta análise antecede em quase duas décadas o final de toda a
produção cortazariana, no entanto nos serve como ancoradouro para
posteriores indagações. Gregorich não contava com o rumo de seu
desenvolvimento posterior e com a entrada mais intensa e explícita do
componente político. Também desconhece o fato de que o próprio Cortázar
não tinha, à época de Rayuela, conhecimento do marxismo. Descartaríamos
também a opinião de Vargas Llosa em considerar Rayuela como uma novela
total, uma vez que a considera desprovida de significação política. Parece-nos
que Cortázar passa a se valer não somente dos elementos ficcionais comuns à
sua obra anterior como os complementa com elementos da realidade
sociopolítica da época, embora não estejam tão explícitos para serem
percebidos por ambos os críticos. Mas há vidas envolvidas ali dentro, há
planos, sonhos, insanidades, conflitos entre contextos que se completam e se
afastam pelas necessidades humanas de buscas e envolvimentos sociais.
E Cortázar segue em sua obra amalgamando o discurso sociopolítico
com o discurso poético-ficcional. Seu meio é a linguagem já utilizada nas obras
anteriores e aperfeiçoada a cada obra: uma linguagem revolucionária e mista,
que acaba por co(r)romper o gênero literário até então em voga. Há, portanto,
uma profusão genérico-discursiva, onde o discurso jornalístico e epistolar, as
notas soltas, as indicações geográficas, juntam-se ao literário para ficcionalizar
uma realidade que sabemos, revolta o autor, como podemos notar pelos seus
textos críticos, mas deixa nos textos literários essa revolta a cargo do leitor.
Vendo por esse ângulo, concordamos que o posicionamento político de
Cortázar não serviu para transformar a sua literatura numa literatura
panfletária. Ao contrário, ele conseguiu aliar esses dois planos tidos até então
103
como díspares – o estético-literário e o sociopolítico – sem prejuízos à sua
forma autônoma e autêntica de escrever. No entanto, percebemos que a
inserção do componente sociopolítico em seus contos se veio, por um
lado, a
realçar a ambigüidade já existente nos anteriores onde o fantástico predomina,
servindo para ampliar os vários níveis de interpretação de sua vasta obra
contística, por outro, há uma perda do primeiro plano em função do segundo.
Essa perda será explicitada posteriormente.
Alazraki (1994:301), por sua vez, fala de uma conciliação possível, uma
“simbiosis” que ocorre dentro da escritura cortazariana entre literatura e
história, citando Rayuela como sendo um texto que permite, por ser o centro
gravitacional de sua obra, “desenbocaduras y nacimientos”. Rayuela seria
então um texto de passagem que culminaria com o aparecimento de Libro de
Manuel (1973), o que lhe deu o cabedal necessário para a inserção da história
em sua literatura, para a simbiosis perfeita, para o aclaramento de seu
‘comprometimento’ político. Para este autor, a importância deste livro pode ser
traduzida nas palavras do próprio Cortázar, em entrevista a Bermejo:
sin la experiencia que traduce Rayuela, nunca
hubiera dado ese paso que me llevó bruscamente
a descubrir, pelo ojo coagulante que fue la
Revolución cubana, una América latina que, como
tal, me había importado un bledo hasta entonces
(ídem, p. 303).
Também Valcárcel (1982:96), mesmo fazendo um estudo estruturalista
dos contos fantásticos, admite haver em alguns a fonte histórica, embora este
não seja o seu ponto de interesse como estruturalista. Para ela, que está
tratando de um escritor fantástico, acredita que as fontes cortazarianas são
apenas literárias ou dados de experiência pessoal. No entanto, em dado
momento, percebe que
en ciertos relatos de tipo más realista el autor
recurre a la historia, así, por ejemplo, en <<
Reunión>> cuento elaborado sobre la base del
libro Pasajes de la guerra revolucionaria de
Ernesto Che Guevara, verdadero documento.
También << Torito>> o << El Perseguidor >> se
basan en personajes reales, en un famoso
104
boxeador argentino, el primero, y en Charlie
Parker, conocido saxofonista, el segundo.
Sobre o conto Reunión, Tamborenea (1986), quando analisa Todos los
Fuegos, el Fuego (1966:57), já percebe sua atipicidade dentro do contexto da
produção cortazariana. Faz-se presente neste conto um novo elemento que vai
se juntar ao fantástico, dando-lhe um acabamento não só estético-literário, mas
estético-político. O plano do real surge em igualdade de condições com o plano
do fantástico, de forma que o conto, para ela, “introduce en la producción
cortazariana a una gran ausente: la política”. Estruturalmente, Reunión
compara-se a Todos los Fuegos el Fuego, posto que em ambos os casos há
situações duplas em diferentes lugares e momentos. Entretanto, percebemos
que, no segundo conto, a resolução é puramente fantástica, ao passo que no
primeiro, o político já se encontra incorporado à trama.
O comprometimento político explícito de Cortázar inicia-se fora da
Argentina, em Cuba (1963). Entretanto, a Argentina encontra-se presente em
suas preocupações de escritor desperto, podendo se comprovar em várias
passagens como esta de Salvo el Crepúsculo (2004:84), que ele resume como
sendo um livro de “meopas”, “pameos” e “prosemas”, a referência direta a
Argentina, a tudo o que estava acontecendo por lá, como se ele já soubesse
que já vinha acontecendo antes:
Nunca viniendo solos, y en estos últimos años tan
pegados a nuestro exilio, que no es el del Lejano
Buenos Aires de una clásica bohemia porteña sino
el destierro en masa, tifón del odio y el miedo.
Escuchar hoy aquí los viejos tangos ya no es una
ceremonia de la nostalgia; este tiempo, esta
historia los han cargado de horror y de llanto, los
han vuelto máquinas mnemónicas, emblemas de
todo lo que se venía preparando desde tan atrás y
tan adentro en la Argentina. Y entonces, claro.
Alazraki considera a Revolução cubana fundamental para Cortázar,
posto que o obrigou a “salir de su ensimismamiento y a juntar sus << pasos de
lobo >> a los pasos de hombre” (op. cit. p, 305). A maturidade literária associa-
se agora à maturidade política, passando a catalisar e a canalizar, através de
sua obra, os problemas vividos pela América Latina, porém sentidos por ele,
105
mesmo distante. Os problemas vividos por Cuba e Nicarágua, em particular,
foram os que mais tocaram a sua alma de escritor que já não mais escreve
para satisfazer-se, mas para satisfazer-se juntamente com toda uma
coletividade de leitores que encontra em seus textos ecos de uma época de
incertezas e silêncios.
Assim, podemos perceber que, a partir de Libro de Manuel, ocorre em
sua obra uma ruptura de predominância temática de fato. Não se trata mais
apenas da Revolução Cubana. O que antes aparecia esporádica e
implicitamente em sua obra tratou de impor-se como um elemento outro com
poderes para provocar no autor uma nova visão de mundo e, dentro desse
mundo, fazer-se conhecer como um homem novo e não apenas como um
escritor fantástico. Sua obra deixa, por fim, de ser fundamentalmente fantástica
para ser fantasticamente humanizadora, para se tornar transmissora de uma
preocupação com o ser humano em seu lado de buscas barradas pelo poder.
Se o fantástico, de início, serviu para revitalizar a sua obra dentro do
panorama da Literatura Fantástica tradicional e sobretudo dentro da Literatura
Argentina, agora é a vez dos elementos sociopolíticos, históricos e ideológicos
empreenderem tal feito. Para tanto, ele lança mão de várias ocorrências
ditatórias na América Latina e sua repercussão no mundo para dizê-las de
forma poética. O que Cortázar quis com este livro, conforme expressa Estela
Cédola (1994:31), foi propor uma vitalidade dentro da velha literatura dita
realista, abrir um espaço para a discussão dos problemas sociais e políticos da
América Latina. Para Cédola,
Libro de Manuel es interesante porque pone al
descubierto –desde lo específico literario y no sólo
en el aspecto referencial – las contradicciones de
la cultura política que sedimentó en mayo del 68 y
que están en la base de las derivaciones políticas
y culturales que le
siguieron tanto en Europa
como en América Latina, y cuyas consecuencias
aun no han dejado de sentirse en este continente.
106
2.3 CASA DE LAS AMÉRICAS:
do comprometimento explícito
Quando se funda em Havana a Revista Casa de las Américas (1959),
por Haydée Santamaría
37
já tinha por objetivo atingir a unidade cultural e
política espelhada pela Revolução cubana. A Revista passou então a ter uma
importância bastante grande por agregar um sem-número de intelectuais latino-
americanos que acreditavam nesses valores revolucionários. Por essa época,
Cortázar ainda não se encontrava envolvido com os problemas políticos que
estavam ocorrendo na América Latina. A partir de 1963, quando foi convidado
a participar como jurado do “Premio Casa de las Américas”, passou a ser
solidário com as causas da Revolução cubana. A edição da Revista, dedicada
a Cortázar
38
traz textos que refletem o seu pensamento acerca da referida
Revolução que, com o passar dos anos, estendeu-se à América Latina como
um todo. Diz o editorial:
A lo largo de esta más de dos décadas, Julio sirvió
con la humildad de los auténticamente grandes a
la Casa, su casa, y también discutió con nosotros,
lleno de apasionada limpieza. No siempre
estuvimos de acuerdo, pero, en cambio, siempre
respetamos, al mismo tiempo que su inmenso
talento, su raigal honradez; y él, por su parte,
jamás desmintió su lealtad hacia la Revolución
Cubana. (p. 3)
Este número comemorativo da referida Revista reúne textos de diversos
escritores com os quais Julio Cortázar teve algum envolvimento intelectual e de
amizade, além de várias cartas endereçadas a Roberto Fernández Retamar e a
37
Haydée Santamaría (1922-1980) foi uma das mulheres que participou ativamente em 26 de
julho de 1953 do assalto ao quartel de Moncada, encabeçado por Fidel Castro. Com o triunfo
da Revolução Cubana, funda em 1959 a revista Casa de las Américas, instituição cultural que
agregou intelectuais mais importantes do mundo que visitaram Cuba e se interessaram pela
revolução, principalmente os latino-americanos que eram perseguidos pela repressão ditatorial
em seus países de origem. Entre eles, Julio Cortazar foi um dos intelectuais que mais
colaborou com a revista, apoiando não só a causa cubana, mas as causas da América Latina e
tornando-se seu amigo pessoal. Em 26 de julho de 1980 comete suicídio sem motivos
aparentes.
38
Casa de las Américas: edición dedicada a Julio Cortázar. 1ª ed. Buenos Aires: Nuestra
América, 2004.
107
Haydée Santamaría, entre outros. Agrega, sobretudo, três textos de
fundamental importância para o entendimento de sua obra e de suas escolhas
temáticas. O primeiro deles, o de Mario Benedetti (2004:27-9), trata da
passagem do escritor, iniciado num espaço literário conservador enquanto
ideais político-ideológicos (a Revista Sur
39
), para um lado assumidamente
esquerdista. Também alude, entre outros temas interessantes, a algumas de
suas obras e à sua cidadania francesa, aos problemas da realidade, os quais
se atrelaram ao fantástico (ou vice-versa) para dar o tom “memorable” de sua
escrita. Para Benedetti,
Si se tiene la paciencia de efectuar una suerte de
lectura colacionada de todos sus cuentos, se verá
que muchos de los elementos o recursos
fantásticos usados en los mismos son meras
prolongaciones de lo real, o sea, que lo increíble
no parte de una raíz inverosímil, sino que proviene
de un dato absolutamente creíble y verificable en
la realidad. [....] La afinidad esencial que une y
orienta los cuentos de Cortázar pone el acento
precisamente en esa característica ( la excepción),
para la cual lo fantástico es solo un medio, un
recurso subordinado. (p. 28)
Um segundo texto, o de Luis Suardiz (2004:119), reforça, sobretudo, a
tensão que preside a obra cortazariana como elemento fundamental que se
sobrepõe à “collage”, à forma de montagem genérica. A tensão utilizada pelo
autor para tecer as suas histórias nasce do entrelaçamento entre a realidade
factual e a realidade fictícia, acabando por ser quase impossível o seu
entendimento fora de seu contexto geográfico específico. Suardíaz transporta
para Lucas, um de seus últimos personagens a tensão máxima do sentir-se
longe da pátria, mas tê-la tão viva na memória, a tensão máxima de inscrevê-la
dentro do seu universo literário. Para ele, os leitores desavisados de Cortázar
que estão dispostos a segui-lo ao fundo da terra, mas não ao fundo da história,
acabam por não entendê-lo quando se trata de achegarem-se aos textos mais
39
A Revista Sur foi criada em 1931 por Victoria Ocampo (1891-1979). Convertida em uma das
mais importantes revistas literárias do mundo, teve colaboração de escritores argentinos e
estrangeiros e serviu principalmente para difundir a obra de Jorge Luis Borges para o mundo.
Cortazar publicou nela, através de Borges, o conto “Casa Tomada”, que depois foi publicado no
seu primeiro livro de contos Bestiário.
108
“comprometidos”. Sua escritura pode ter se enchido do mundo doloroso que
inscreveu no meio do seu mundo fantástico, entretanto, a contaminação
temática não incorreu em prejuízos que diminuíssem a sua obra. Ao contrário,
multiplicando as artes combinatórias geradoras de
tensão, esta parte de sua
obra é hoje a mais atual, posto que coloca os leitores a par de um mundo
que,
sem o contexto histórico-geográfico, permanecerá intensamente fantástico,
embora percebamos que o fantástico não se afasta desse contexto, uma vez
que nele encontramos também fatos inexplicáveis.
Um terceiro texto, o de Manuel López Oliva (2004:187), interpreta o jogo
das imagens plásticas na obra de Cortázar como sendo metáforas paradoxais
enriquecedoras da exposição do assunto. Essas imagens introjetadas na obra
vêm realçar o jogo que ele faz entre a vida real e a fantasia através de
“palabras-sígnicas y palabras-símbolos”, isto é, essas palavras captam, nas
duas direções – a real e a imaginária – o sentido profundo de sua escritura que
era o de escrever e ver “una América Latina libre y nueva”.
Esta mesma edição traz importantes pensamentos de Cortázar em
forma de cartas escritas aos companheiros da Casa de las Américas. Cartas
estas que retratam bem o seu posicionamento em relação a temas como
críticas a suas obras, o papel do intelectual latino-americano, sua relação com
vários intelectuais da época, principalmente os latino-americanos, e sua
estreita ligação não só com Cuba, mas com os problemas da América Latina
em geral. Em 17 de agosto de 1964, Cortázar escreve a Roberto Fernández
Retamar tratando da repercussão que teve Rayuela e da importância que tem
para ele ser lido por compatriotas, além de advertir o destinatário sobre como
gosta que sejam feitas as críticas à sua obra: é necessário tomar certa
distância para não dizer coisas que não estejam conforme a obra e se reportem
apenas ao autor. Críticas como essas apagam o valor da obra. Para ele,
Por supuesto, si escribes algo tendrás que pensar
en el lector y tomar tus distancias; pero te has
acercado tanto que cualquier cosa que digas de
mi libro será siempre una vivencia, como hubiera
querido el pobre Oliveira, y no una valoración de
magíster, de las que me llegan docenas y que yo
olvido minuciosamente. (p. 18)
109
Em 10 de maio de 1967, numa outra carta longa, endereçada
novamente a Fernández Retamar, Cortázar fala de forma clara sobre seu papel
como intelectual latino-americano e de como a França serviu para melhor situá-
lo dentro desse quadro e para melhorá-lo como como ser humano. Esquivava-
se de ser considerado um intelectual, mas aceita o título porque considera que
sua postura moral corresponde à de um homem que age de boa fé em relação
aos problemas da América Latina. O escritor se questiona sobre o futuro de
sua obra e seu posicionamento diante da realidade daquele momento, se
tivesse permanecido na Argentina, se tivesse permanecido alheio aos
acontecimentos. Observar os problemas da América Latina de fora, os de
Cuba, primeiramente, com uma visão que ele considerava des-nacionalizada,
ajudou-o a se descobrir como ser que podia participar, de forma consciente,
através de sua literatura, quer ficcional quer ensaística, e de sua participação
no Tribunal Russel II
40
. A sua compreensão do socialismo como corrente
aceitável deu-se a partir da Revolução cubana: a primeira revolução socialista
que ele seguiu de perto e, além do mais, latino-americana. O que Cortázar
percebeu a partir da década de 60 foi que a arte pela arte já não bastava. Era
preciso pensá-la de uma forma que atingisse o público não somente pela
estética, mas pela sua importância como veiculadora do social. Cabrera
Infante, escritor cubano, já seguia, desde o seu exílio, em 1966, essa mesma
visão de Cortázar. Mesmo exilado, Cuba sempre esteve presente em sua
literatura. A sua produção literária está marcada pelas imagens de Havana.
Revelando um espírito extremamente combativo e de feroz consciência crítica,
Cabrera Infante jamais desistiu de denunciar as realidades cubanas que
pretendia combater. A maioria das suas produções demonstra uma contínua
preocupação e um interesse fervoroso por recriar, espelhar a linguagem de
Havana, assim como Cortázar tomava a linguagem argentina como ponto de
partida para a sua produção. Por este seu posicionamento aberto, viu,
40
Em 1966, foi criado o Tribunal Bertrand Russell, com intelectuais de diversos países, para
julgar os crimes dos EUA na guerra do Vietnã. Posteriormente, com o nome de Tribunal
Bertrand Russell II, foi transferido para Roma, ocasião em que foi presidido pelo jurista Lelio
Basso, eleito senador pelo Partido Comunista Italiano (PCI). Os países latino-americanos
processados pelo TBR foram: Brasil, Paraguai, Guatemala, Haiti, Porto Rico, Chile, Uruguai e
Bolívia. Os governos militares que governaram esses países eram denominados de “fascistas”
pelo TBR e acusados de estarem a serviço do “imperialismo americano”. No início da década
de 70 Cortázar participou como jurado, juntamente com García Márquez.
110
continuamente, as suas obras serem proibidas em terras cubanas, embora
disponíveis em toda a Europa e até mesmo nos Estados Unidos da América.
Cuba está marcadamente presente em toda a sua prosa - seja ela em novela,
em conto ou em simples ensaios.
É a partir dessa tomada de consciência que Cortázar começa a se
interessar pelos problemas da América Latina. Além de descobrir a realidade
na qual vive o latino-americano, começa a formar uma consciência política.
Por esse tempo a sua literatura toma outro caminho, revelando-se aberta aos
problemas sociais e ele assumindo uma postura de escritor comprometido com
tais causas. Entretanto, numa carta, Cortázar adverte que seu trabalho como
escritor não será modificado em demasia por esta sua atitude agora de
consciência política, e assim se expressa:
Mi trabajo de escritor continuaría el rumbo que le
marca mi manera de ser, y aunque en algún
momento pudiera reflejar ese compromiso (como
algún cuento que conoces y que ocurre en tu
tierra) lo haría por las mismas razones de libertad
estética que ahora me están llevando a escribir
una novela que ocurre prácticamente fuera del
tiempo y del espacio histórico
41
. [...]. En lo más
gratuito que pueda yo escribir asomará siempre
una voluntad de contacto con el presente histórico
del hombre, una participación en su larga marcha
hacia lo mejor de sí mismo como colectividad y
humanidad. (p. 59-66)
Graciela Maturo (2004:155) afirma que a década de setenta foi bastante
produtiva para Cortázar em termos de escritos políticos, seja em forma de
textos críticos apresentados em congressos, em forma epistolar ou em forma
literária (romances e contos). Foi uma década dedicada às preocupações com
a América Latina e também coroada pela proibição de seu livro de contos
Alguien que Anda por Ahí, pela Junta Militar que governava a Argentina. Daí
por diante, ele teve que fazer uma revisão em seu conceito de exílio. Um exílio
que, a princípio, fora voluntário, passou a ser obrigatório e necessário à sua
sobrevivência. Ao lado dessa revisão, Cortázar descobre o sentido que move
grande parte dos escritores que se acham como ele, exilados: a busca de uma
41
O autor está se referindo provavelmente a 62 /Modelo para Armar, livro que saiu em 1968,
cujo título alude ao capítulo 62, de Rayuela.
111
identidade latino-americana. De nenhum modo podemos pensar que a sua
literatura sofreu um empobrecimento por ter a ela incorporado esses fatos.
Acreditamos que, pela fusão do político com o estético houve um ganho no
tocante à postura dos personagens: tornaram-se mais humanos e passaram a
discutir uma realidade vivida pela população latino-americana e abafada pelo
sistema ditatorial. Daí vir também a não resolução satisfatória dos contos nos
quais os personagens expõem tudo o que sabem, mas não se posicionam nem
mostram soluções.
Também incrustada nesta década está a polêmica relação de Cortázar e
outros escritores, não só latino-americanos, por duas vezes, com um caso
envolvendo o então governo de Fidel Castro, cujo apoio de Cortázar era
incondicional, e o escritor cubano Heberto Padilla
42
. Em 20 de março de 1971,
Padilla é preso e acusado de estar envolvido em atividades
contrarrevolucionárias. Depois de mais de um mês de prisão admite em público
seus erros e deixa de mãos atadas todos os que tinham clamado por sua
liberdade: a primeira carta com assinatura de Cortázar e uma série de
escritores de reconhecimento mundial, como expressa a assinatura de Simone
de Beauvoir, Sartre, Marguerite Duras, Hans Magnus Enszenberger, Jean-
Pierre Faye, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, entre outros. Cable de
Prensa Latina divulga trechos da carta com as assinaturas e afirma que
La carta no obtuvo respuesta directa, aunque
debe entenderse, en parte como tal el discurso de
Fidel Castro ante el Primer Congreso Nacional de
Educación y Cultura en la madrugada del 1° de
mayo. Allí anuncia
un cambio drástico en las
directivas culturales de la revolución. (El Siglo,
cable de Prensa Latina, 5 de mayo)
43
.
42
Heberto Padilla nasceu em Piñar del Rio, Cuba, em 1932. Durante o processo
revolucionário ocupou vários cargos de importância na área de relações diplomáticas e
manteve contato com vários intelectuais do mundo. Em 1971 foi preso juntamente com sua
esposa, a poeta Belkis Cuza Male, acusados ambos, pelo Departamento de Segurança do
Estado, por atividades subversivas. Sua prisão repercutiu nos meios intelectuais da época, que
pressionaram através de cartas endereçadas ao governo cubano, pedindo pela sua libertação.
Intelectuais como Sartre, Simone de Beauvoir, Alberto Moravia, Mario Vargas Llosa, Cortázar,
entre outros se revelaram em seu favor.
43
http://www.letras.s5.com/padilla3.htm
112
Sem resposta, escrevem uma segunda carta. Desta vez, Cortázar não a
assina e os motivos da recusa em assiná-la são expostos em carta a Haydée
Santamaría, após um período de silêncio por parte dela e dos companheiros da
Casa de las Américas, explicando que a falta de notícia sobre o caso estava
manchando a imagem de Cuba no exterior, imagem esta que veio à tona pela
autocrítica de Padilla. Ao firmar a primeira carta e desvincular-se da segunda,
Cortázar envia Policrítica a la Hora de los Chacales
44
, onde reafirma sua
posição diante do quadro político que se lhe apresenta a partir de então:
No me excuso de nada, y sobre todo
No excuso este lenguaje,
Es la hora del Chacal, de los chacales y de sus
obedientes:
Los mando a todos a la reputa madre que los
parió,
Y digo lo que vivo y lo que siento y lo que sufro y
lo que espero.
Mas, ao mesmo tempo, declara seu amor por Cuba, pela Revolução, seu
respeito a Fidel Castro, ao povo cubano. Estaria Cortázar a querer preservar
seu público leitor e a amizade de Fidel? O certo é que a partir daí os laços
intelectuais com Cuba ficaram estremecidos. Segundo Claudia Gilman
(2003)
denomina
metaforicamente a harmonia das tranças de Rapunzel, esta ocorreu
até o dia em que Padilla pronunciou sua autocrítica. Autocrítica que tomava
como modelo “las autoacusaciones de los escritores acusados en la Unión
Soviética en los llamados Procesos de Moscú”. Nesta autocrítica lida em
público diante de seus colegas da UNEAC
45
,
Padilla admitía sus incontables culpas en un
registro hiperbólico y ridículo, llegando a declarar
que los días pasados en la Seguridad del Estado
le habían abierto los ojos y lo habían hecho tan
feliz que hasta se le había ocurrido escribir un
poema dedicado a la primavera. Era un mensaje
en una botella que no quedó boyando en las
deliciosas aguas del Caribe y que terminó
convirtiéndose en un botellazo que partió en dos
44
Casa de las américas: edición dedicada a Julio Cortázar. 1ª ed. Buenos Aires: Nuestra
América, 2004, p. 126-132.
45
A UNEAC, Unión de Escritores y Artistas de Cuba, é uma organização não governamental
que agrupa escritores e artistas da ilha. Fundada em 1961 pelo poeta Nicolás Guillén.
113
la amigable coalición de escritores de izquierda en
América latina. De allí data la ruptura de Vargas
Llosa y Carlos Fuentes con Cuba y los malos ratos
que pasó Cortázar tratando de amigarse con la
Revolución.
Conforme nota de rodapé do texto de Cortázar, “Padilla recupero la
libertad después de una declaración autocrítica en que confesó haber
proporcionado informes secretos a Cortázar... etc”
46
. No caso Padilla, Claudia
Gilman (2003: 259) afirma que Cortázar foi de todos os intelectuais da época o
que mais golpes teve que dar e o que mais criou polêmica. Para ela, neste
texto,
Cortázar proporciona una inestimable posibilidad
de describir el campo de lo decible y la pragmática
de discurso que le estaba asociada. Por una
parte, Cortázar abandonó las estrategias grupales
y desarrolló formas personales de comunicación
sobre los asuntos de complejo trámite que
afectaron a la familia intelectual. En segundo
lugar, su estrategia incluyó la “literaturización” de
su discurso. No por azar, su texto-manifiesto sobre
el caso Padilla fue un poema. Al mismo tiempo, lo
acompañó de una carta (privada) a Haydée
Santamaría
.
Claudia Gilman não chega a tirar conclusões dessa estratégia utilizada
por Cortázar, mas tudo se encaminha para ratificar o que antes foi posto em
questionamento: o medo de perder o seu público leitor e, sobretudo, perder a
amizade de Fidel, que o considerava ainda como mantenedor dos ideais
primeiros da Revolução que comandou. O fato é que os laços que uniam a
família intelectual latino-americana, especialmente a que formava o boom,
foram-se tornando frágeis e cada um seguiu o seu caminho. Uns distantes de
Cuba; outros, como Cortázar, tentando a todo custo manter as relações
existentes. Provavelmente esse abalo com Cuba serviu para que ele
percebesse que a América Latina era maior que a ilha de Fidel. A utopia da
Revolução perfeita se desfez, mas fez com que Cortázar expandisse seus
interesses revolucionários pela América Latina. Pelo Chile de Salvador
Allende,
pela Nicarágua de Daniel Ortega e dos sandinistas. Principalmente pela
Nicarágua de Ernesto Cardenal. Padre, poeta, ministro do governo de Daniel
46
Cable de UPI, Paris, 12/5/71, publicado en El Andino, periódico de Argentina.
114
Ortega, adepto do marxismo, do sandinismo e da religião, teve seus direitos de
celebrar cassados pelo Papa Paulo VI.
Cardenal tinha um compromisso com seu país e sua gente e expressou
bem na sua obra como um todo. Uma obra sua chama a atenção: Evangelio de
Solentiname (1974), em dois tomos, onde o poeta-padre faz uma interpretação
do evangelho a partir da simplicidade dos moradores da comunidade fundada
por ele no arquipélago Solentiname, que foi posteriormente bombardeada,
destruída pela ditadura que ali se implantou encabeçada por Anastasio
Somoza. Esta Nicarágua que Cortázar conheceu
clandestinamente gerou dois
textos importantes: um, publicado em 1983, Nicarágua tan violentamente
Dulce
e o conto Apocalipsis de Solentiname, publicado anteriormente no livro
Alguien que anda por Ahí (1977), conto a que voltaremos a referir
posteriormente. Sobre o seu envolvimento com a Nicarágua, Fernando
Butazzoni (2004, p 169) afirma que “fue outra manera de descubrir un paisage
humano signado por la lucha revolucionaria. Y fue también un acto de amor”.
Apesar da utopia cubana ter terminado, Cortázar jamais cortou relações
com os intelectuais cubanos. Prova disto é a constância na troca de
correspondências entre ele e Haydée Santamaría e também com Roberto
Fernández Retamar, além de ter publicado textos na revista Casa de las
Américas até 1983, conforme se encontra firmado na edição especial que lhe é
dedicada. Pelos olhos da Revolução Cubana Cortazar vislumbrou uma utopia
realista para a América Latina. E quando dizemos realista é pelo fato de ela só
se tornar possível quando for vontade do homem e envolver os seus valores. A
partir da Revolução Cubana seu pensamento, que via a literatura como objeto
estético, foi substituído por uma tomada de consciência importante.
Consciência esta transcrita por Pablo Montanaro (2001:43)
La gesta revolucionaria le mostró “el vacío
histórico en que había vivido hasta ese momento,
totalmente sometido a una visión individualista del
mundo y de la literatura. De golpe descubrí el
plural, y bueno, por qué no decirlo, descubrí el
pueblo, que para mi había sido una entidad un
poço abstracta. Es decir, eran las personas que
115
vivian en torno a mi, pero sin que su destino yo lo
sentiera partícipe del mio y viceversa”.
Fernández Retamar (1993:251-55) envia uma última carta a Cortázar.
Por ocasião de sua morte, ele faz um necrológio em forma de carta-poema,
onde revisa todo o passado de comprometimento político-ideológico de Julio
Cortázar com as causas da América Latina que, segundo ele, não foi tardio,
tudo ocorreu no tempo certo para que houvesse permanência e compreensão:
Maduro para atravesar la puerta como quien se
desposa
con el cielo o la mar,
o mejor con la pobre bella golpeada abrumada
tierra
plena de mujeres y hombres hechos para ser
felices
y hermosos,
llegaste a donde tanto se te había esperado.
No me refiero sólo a Cuba, desde luego, ni
siquiera a nuestra América,
Sino a esa zona de la sorprendente realidad
Que estuvo casi media centuria todavía más
pobre
Porque no estabas tú, quien habías ido
acarreando y
creando tesoros sin saber que después ibas a
repartirlos
(como un mendigo grandullón que se los iba
sacando distraídamente del bolsillo inexhausto.
2.4 LIBRO DE MANUEL: Panorâmica da Ditadura Militar na América Latina –
O Brasil no Meio
O aparecimento do Libro de Manuel coincide com a presumida data do
fim do boom latino-americano, segundo Idelber Avelar (2003:48) e,
conseqüentemente, com o fim de uma literatura que teve uma “entrada épica
no primeiro mundo”, para, segundo ele, ser substituída por uma literatura “no
máximo em versões altamente ideológicas, em casas de espíritos e águas para
chocolate”. Ao nos reportarmos ao Libro de Manuel e mais adiante aos
posteriores livros de Cortázar, quando confrontamo-los com o pensamento de
Avelar, no que se refere particularmente à substituição da estética pela política,
116
discordamos do mesmo. Nos textos de Cortázar não sentimos uma substituição
da estética pela política. Há, isso sim, um amalgamento de modos de escrever
como atesta Saul Yurkievich (2004:245)
Cortázar se empeña en conciliar el principio de
realidad con el principio de placer; no tolera la
hegemonía del uno sobre el otro. Su figuración del
mundo, incluso la de la guerra revolucionaria, se
inspira en un pensamiento utópico, en una
imaginación supraempírica que, no recluida en la
realpolitik, en el rigor pragmático, se proyecta más
allá de la experiencia práctica; para superar la
precariedad de lo real, fabula la realidad futura.
[...]; responde a exigencias documentales
externas sin renunciar a las específicamente
estéticas.
Cortázar afirma, em entrevista a Omar Prego (2004:221), que escreveu
este livro após conhecer pessoalmente alguns guerrilheiros em Paris. Desse
encontro resultou num sentimento aterrador “por su sentido dramático, trágico,
de su acción, en donde no había el menor resquício para que entrara ni
siquiera una sorisa, y mucho menos un rayo de sol”. Escrever Libro de Manuel
funcionou para ele como uma espécie de catarse ante a impotência de
resolução dos fatos pela guerrilha.
Em uma narrativa entrecortada por recortes de jornais e suas
respectivas traduções, o narrador vai pondo a Joda a par do regime militar dos
países da América Latina e suas reais conseqüências. Tudo na Joda
47
gira em
torno dessas notícias, da preparação para o seqüestro de um embaixador e da
figura de Manuel, filho pequeno de um casal participante do grupo. Tais
recortes farão parte de um manual para a alfabetização futura de Manuel. Ele
será, portanto, herdeiro de um passado político
latino-americano trágico que
em mais de duas décadas dizimou vidas, destruiu sonhos. O grupo que
compõe a Joda é formado por exilados de diversas partes da América Latina.
Todos se sentem vigiados pelas "formigas". Encontram-se em Paris
organizando esse seqüestro em troca de presos políticos. Entre os integrantes
da Joda há um brasileiro, Heredia. Este se exalta ao ouvir a tradução de uma
47
A “Joda” era a denominação dada ao grupo de guerrilheiros que se reuniam para discutir o seqüestro
do “Vip”, bem como preparar o manual de alfabetização de Manuel.
117
nota sobre a violência no Brasil. Um informe que chega ao grupo, baseado em
documentos e testemunhos clandestinos afirma que doze mil prisioneiros
políticos sofrem tortura. Heredia considera, em sua revolta, que são vinte e não
doze mil o total. Seu conteúdo expressa que
la tortura, convertida en “arma política”, es
aplicada sistemáticamente para hacer hablar a los
prisioneros, pero también como “medio de
disuasión”. La madre de un líder estudiantil
informa que los responsables del campo de
internación de la “Isla de las Flores” tienen por
costumbre poner en el locutorio a un muchacho
mutilado “cuyos movimientos incoherentes y las
marcas de los suplicios sufridos deben incitar a los
padres que visitan a sus hijos o hijas a
aconsejarles que colaboren activamente con los
investigadores”. (p.272)
E segue enumerando os vários tipos de tortura infligidas aos
prisioneiros: “suplicio del agua”, “suplicio de la electricidad”, “torturas de orden
moral”. Numa referência clara ao DOPS, especificamente em São Paulo. O
informe assinala que o método de tortura mais recorrente no Brasil é o de
“arrancar las uñas o aplastar los órganos genitales”.
A Ditadura Militar no Brasil estende-se por mais de 20 anos (de 1964 a
1985), alternando-se entre períodos de extrema tensão social e graves crises
políticas. O período recortado no Libro de Manuel, os anos 70, é
possivelmente o mais sangrento em termos de prisões, torturas e
desaparecimento de presos. O governo do general Emílio Garrastazu Médici é
considerado o mais cruel e repressivo de todo o período, ficando conhecido
como “anos de chumbo”. Conforme pesquisa realizada, neste período,
a repressão à luta armada cresce e uma severa
política de censura é colocada em execução.
Jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes,
músicas e outras formas de expressão artística
são censuradas. Muitos professores, políticos,
músicos, artistas e escritores são investigados,
presos, torturados ou exilados do país. O DOI-
Codi (Destacamento de Operações e Informações
e ao
Centro de Operações de Defesa Interna)
118
atua como centro de investigação e repressão do
governo militar.
48
Um outro recorte desse período refere-se ao assassinato de Carlos
Lamarca, datado de 17 de setembro de 1971. um recorte do jornal Le
Monde,
de Paris, dá conta de que Lamarca, “Le dernier grand dirigeant de la guérilla
est tué par la police dans l’état de Bahia”. Segundo a tradução empreendida
pelo grupo, Lamarca
Dormía bajo un árbol junto con su teniente, José
Campos Barretas y su compañera Iara Iavelberg,
cuando fue cercado por una veintena de agentes
del centro de operaciones de la defensa interna
[...]
Según la versión oficial, José Campos abrió el
fuego pero fue abatido por una ráfaga de
ametralladora. Carlos Lamarca cayó en segundo
término. Con arreglo a la versión, y al verse
imposibilitada de huir, Iara Iavelberg se suicidó.
(p. 336)
Carlos Lamarca era comandante do VPR - Vanguarda Popular
Revolucionária que combatia a Ditadura Militar no Brasil. Nele comandou o
seqüestro do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, empreitada
semelhante à proposta pela Joda, por ambas não terem conseguido atingir
seus objetivos. Por ter se negado a matá-lo, após tentativa frustrada de trocá-lo
por 70 presos políticos e sustentado a idéia de que era revolucionário e não
assassino, Lamarca se desvincula do VPR e passa a integrar o MR-8. O MR-8
era assim denominado numa homenagem explícita à morte de "Che" Guevara,
ocorrida na Bolívia no dia 8 de outubro de 1967. É como membro do MR-8 que
o capitão Lamarca é morto, no sertão da Bahia, no dia 17 de setembro de
1971.
Por esses dois recortes e suas análises, Cortázar inclui o Brasil dentro
desse mundo complexo de cultura múltipla que ele chama e nós chamamos de
América Latina pelo viés dos problemas sócio-políticos comuns causados pela
48
http://www.suapesquisa.com/ditadura/
119
ditadura militar no chamado Cone Sul
49
. Manuel adulto e ‘alfabetizado’
entenderá que os problemas comuns ainda persistem nos dias atuais, numa
outra forma de ditadura, sem os militares, numa ditadura de exclusão onde os
militarizados fazem parte de uma grande maioria que seqüestra, mata, rouba
porque vivem no fosso das desigualdades socioculturais, históricas,
geográficas e políticas.
Manuel vai ser alfabetizado futuramente com todas essas informações
sobre os horrores das ditaduras na América Latina. Ele é, em princípio, o
elemento lúdico que se introduz no mundo da Joda para
compor com a sua
inquietude infantil e inocente, a pureza dos anseios mais sérios do grupo. É
ponte de passagem e repositório das esperanças em uma América Latina e um
mundo melhor. Também é aquele que, paradoxalmente, une e dispersa o
grupo. Qual seria supostamente a intenção do grupo em reunir informações tão
violentas e revoltantes para a formação do manual de alfabetização de Manuel,
se ele freqüentaria uma escola normal como toda criança? Funcionaria este
como possibilidade de uma segunda instrução? Pelo manual, ele teria condição
de ter a sua primeira visão sócio-histórica e política da América Latina da
época de seus pais. Um mundo percebido e representado por quem se
rebelou, não contra ele, mas contra a forma com que estava sendo conduzido
politicamente, isto é, o manual funcionaria como suporte para a sua educação
política e, mais especificamente,
revolucionária.
Manuel começará a existir como indivíduo consciente a partir dessa
leitura política de mundo da qual os de sua geração só serão capazes de
conhecer por essa via. Esse mundo será integrado à sua vivência através dos
recortes reunidos e deixados estrategicamente para, no futuro, assimilá-los e
reativá-los de forma positiva, no tocante à participação dos pais e demais
integrantes da Joda. Manual de instrução e não doutrinário, sem a intenção de
politizá-lo partidariamente. Um Manual fragmentário para um Manuel que se irá
49
Ressalta-se ai o papel da Operação Condor que foi executada entre as décadas de 60 e 80,
por meio de conexão entre as polícias políticas repressoras do Chile, Argentina, Bolívia, Brasil,
Paraguai e Uruguai. Tal operação tinha por objetivo o seqüestro ilegal de pessoas, seu
desaparecimento ou morte, sem se importar com limites territoriais ou com a nacionalidade das
vítimas.
120
construindo gradativamente e construindo seus valores em torno do que
poderíamos chamar de passado tenebroso e irrepetível para o homem novo
que se formou a partir do seu conhecimento.
A visão da América Latina que o grupo tem é-lhe externa, mas se
internaliza pelos laços de naturalidade. Visão que Andrés tem certeza “Manuel
comprenderá algún día”. (p. 430).
Para Manuel, essa realidade lhe chegará pelas palavras. Para o grupo,
chegou por duas vias: pelas palavras e pelos fatos. Os fatos falam por si só. As
palavras ditas por um grupo de exilados envolvidos com os problemas
ocorridos na América Latina e carregadas das diversas conotações que teve a
ditadura em cada país mostram o quanto são impactantes no tocante à
formação dos futuros intelectuais (como Manuel). O narrador Andrés (alter ego
de Cortázar) atesta no início do livro a força que tem a palavra a partir deste:
um livro paradoxal cuja presença dos fatos reais fará com que muitos não o
compreendam:
Este libro no solamente no parece lo que quiere
sino que con frecuencia parece lo que no quiere, y
así los propugnadores de la realidad en la
literatura lo van a encontrar más bien fantástico
mientras que los encaramados en la literatura de
ficción deplorarán su deliberado contubernio con
la historia de nuestros días. No cabe duda de que
las cosas que pasan aquí no pueden pasar de
manera tan inverosímil, a la vez que los puros
elementos de la imaginación se ven derogado por
frecuentes remisiones a lo cotidiano y concreto. (p.
7)
A entrada desses fatos reais mexeu com uma obra que seguia uma
certa homogeneidade temática. Andrés aproveita para explicar que a
heterogeneidade proposta no Libro de Manuel é fruto de uma convergência
ideológica nova que, ao invés de dividir a sua obra, serviu e servirá como ponto
conciliador de difícil assimilação para muitos:
Si durante años he escrito textos vinculados con
problemas latinoamericanos, a la vez que novelas
y relatos en que esos problemas estaban
ausentes o sólo asomaban tangencialmente, hoy y
121
aquí las aguas se han juntado, pero su
conciliación no ha tenido nada de fácil como
acaso lo muestre el confuso y atormentado
itinerario de algún personaje. (p. 7)
Saúl Yurkievich (2004:235-248) nos fala deste livro como de um
“vademécum revolucionario”, um livro onde se concentra uma heterogeneidade
que contribui para afastar a palavra autoritária, utilizando-se do mesmo
expediente de collage, de Rayuela, num misto de leitura mítica e histórica, de
caráter documental e ficcional. Ao seu pensamento, soma o do próprio
Cortázar, para quem o Libro de Manuel
Intenta resolver en mi propio terreno literario – y
por extensión e inclusión en el lector
latinoamericano – el problema más difícil que
pueda darse en estos tiempos a un escritor
responsable: me refiero a la presencia, como
contenido parcial o total, de nuestra desgarrada
historia en una textura literaria. Dicho de otra
manera, la posible convergencia de una invención
de ficciones con una militancia ideológica...(op. cit,
p. 236).
Libro de Manuel não é uma exaltação utópica a um grupo constituído
por revolucionários, embora siga as indicações do “foquismo”, como tática
guerrilheira latino-americana, principalmente na Bolívia, Peru Uruguai e norte
da Argentina, e como modelo de luta castrista, teorizado por Debrey e posto
em prática por Guevara
50
. O foquismo tinha por objetivo a reunião e a ação de
um grupo de guerrilheiros que, juntos, davam a própria vida em favor da
revolução, e é o caso dos personagens cortazarianos do Libro de Manuel que,
mesmo sabendo que seriam seguidos e descobertos, seguem com o
seqüestro. Por essa época, Casa de Las Américas premia o livro de ensaio de
Maria Éster Gilio, o qual tratava da Guerrilha Tupamara. No entanto, aqui em
Libro de Manuel as águas se juntam para
uma exposição de fatos sob os quais
os revolucionários têm o direito de se revoltarem e agem na ficção conforme
agiram os revolucionários, historicamente, dentro mesmo da América Latina.
Segundo Cortázar,
50
http://www.culturabrasil.org/revolucaocubana.htm.
122
Ese libro fue escrito cuando los grupos guerrilleros
estaban en plena acción. [.... El Libro de Manuel
es un desafío, pero no un desafío insolente ni
negativo. Es un desafío muy cordial (p. 221-2)
Esse desafio cordial faz que apareçam histórias paralelas dentro do livro.
Os revolucionários não só falam de revolução. Todos discutem problemas dos
mais banais aos mais sérios, da alfabetização de Manuel aos triângulos
amorosos que se formam no decorrer da narrativa. Bella Jozef (1986:119) diz
se tratar de um livro superador das dicotomías políticas e literárias,
caracterizando-o pela estrutura narrativa polivalente capaz de comportar cinco
histórias: a do fiasco que foi o seqüestro do Vip, a confecção do manual de
alfabetização para Manuel, a crônica do mundo contemporâneo, as histórias
paralelas e a história da construção do próprio romance. Todas entrelaçadas
formando o que se poderia chamar de amalgamento narrativo, onde o
elemento político se perderia, não houvesse esse entrecruzar de identidades
diversas, de línguas diversas e suas traduções.
A partir de Libro de Manuel o texto literário cortazariano passou a
alimentar-se de idéias revolucionárias no sentido de que o elemento político se
fez presente com maior intensidade. Podemos considerar que tal intensidade
tenha transformado, não simplesmente o texto, mas o próprio Cortázar num
escritor engajado no sentido explicado por Benoît Denis (2002:31). Segundo
ele
,
o escritor engajado é aquele que assumiu,
explicitamente, uma série de compromissos com
relação à coletividade, que ligou-se de alguma
forma a ela por uma promessa e que joga nessa
partida a sua credibilidade e sua reputação.
E a promessa foi lançada pelo texto literário, quando este uniu o político
e o social ao literário. Com a presença do político não podemos pensar em
caminhos que se bifurcam, mas que se completam no profundo entendimento
do humano pelas lutas libertárias, pela não aceitação do estabelecido, pelo
confronto direto do humano com a desumanidade. Não se percebe um
desgarramento poético, ao contrário, há um entrelaçamento, uma simbiose do
político-ideológico com o literário, de forma que podemos perceber a luta da
123
palavra revolução como expressão máxima de um sentimento que se refez
pela escrita, sem o perigo de “destruir por destruir” (p.30) seguindo a prática
ditatorial, mas, partindo da destruição provocada pelo homem velho, impossível
de coexistir com o homem novo, cuja função é criar pontes, para a
reconstrução. E se a solução é criar pontes,
tender de todas maneras el puente y dejarlo ahí;
de esa niña que mama en brazos de su madre
echara a andar algún día una mujer que cruzará
sola el puente, llevando a lo mejor en brazos a
una niña que mama de su pecho. Y ya no hará
falta un piano, lo mismo habrá puente, habrá
gente cruzándolo. Pero andá a decirle eso a tanto
satisfecho ingeniero de puentes y caminos y
planes quinquenales. (p.30)
51
A revolução cortazariana começa desde o início pela linguagem que
prescinde do leitor comum para ser entendida, tendo em vista as exigências de
uma construção em túnel que passa por ramificações que vão desde o uso da
linguagem cotidiana à gíglica. A sua revolução sociopolítica dá-se em dois
âmbitos: no puramente crítico e no literário. Nos seus textos críticos, com mais
explicitude e, por isso mesmo, distanciam-se dos literários. No momento em
que este aspecto revolucionário atinge o corpo do texto literário, a linguagem
se reveste de um campo metafórico que transporta o leitor crítico a um
segundo mundo que não mais o da ficção. Entretanto, se o leitor não tem
conhecimento de determinados dados contextuais que guiam a obra, esse
campo metafórico atinge o significado dado por Harries (1992:78), quando
considera que “aquilo que é nomeado pela metáfora pode transcender a
compreensão humana até o ponto de nossa linguagem ser incapaz de capturá-
lo”. Assim sendo, poderíamos nos perguntar como leitores comuns,
representado em princípio, por um Andrés não envolvido com a Joda, que não
entendia esse “fervor compilatorio”: o que faz Manuel, uma criança, no meio
desse jogo perigoso e o que fazem todos, procurando recortes de um mundo
51
Crítica aos populismos latino-americanos, especialmente ao peronismo que copia os “planos
quinqüenais” da Rússia Soviética, àquela época, os quais promoveram a ascensão do governo
stalinista, assinalando o início de uma nova política econômica.
124
em seu momento mais cruel para deixar-lhe como manual de alfabetização?
Lonstein explica que tudo aquilo é por Manuel e é algo sério:
Parecería que estamos perdiendo el tiempo con
tanto papelito, pero algo me dice que hay que
guardárselos a Manuel. Vos te mufás viéndome
hacer algo que te duele por omisión, porque no
seguiste la cosa de cerca y conste que no te culpo
porque estoy en el mismo caso o poco menos, y
después porque tenés la jodida sensación de que
algo real y vivido se te deshace entre los dedos
como un buñuelo apolillado. (p. 414)
Esse algo sério toma conta do Andrés, agora como autor-narrador, no
início do livro, consciente do seu papel em relação à causa pela qual luta a
Joda. Os recortes de jornais franceses e latino-americanos que conformarão o
manual de alfabetização de Manuel, os quais se incorporam ao texto através
das traduções e discussões das personagens refletem a crença num futuro
melhor a partir das conclusões que os Manuéis futuros possam daí retirar:
Cuidando preciosamente, celosamente, la
capacidad de vivir tal como la queremos para ese
futuro, con todo lo que supone de amor, de juego
y de alegría. [.... Lo que cuenta, lo que yo he
tratado de contar, es el signo afirmativo frente a la
escalada del desprecio y del espanto, y esa
afirmación tiene que ser lo más solar, lo más vital
del hombre: su sed erótica y lúdica, su liberación
de los tabúes, su reclamo de una dignidad
compartida en una tierra ya libre de este horizonte
diario de colmillos y de dólares. (p.8-9)
2.4.1 HISTÓRIAS À MARGEM DE MANUEL
Apesar de se sentir farto por discutir tanto sobre problemas eróticos em
Cuba e sobre homossexualidade na Nicarágua
52
, Cortázar não deixa de fora o
primeiro assunto neste livro. São duas histórias que se desenvolvem paralelas
ao entramado de recortes políticos e traduções que Graciela Maturo (2004:137)
cuida como sendo “um tratado de sexologia”. A primeira trata-se da formação
de um triângulo amoroso encabeçado por um dos narradores, Andrés que se
52
Cf. La fascinación de las palabras, 2004, p. 223)
125
divide entre o amor de Francine e Ludmila. Seria um ‘quadrângulo’ amoroso se
Cortázar não tivesse perdido uma historieta envolvendo Andrés e Lala, uma
garota de programa, segundo ele, uma das mulheres mais livres que havia
encontrado na vida. Esta historieta faz parte de Salvo el Crepúsculo (2004:204-
10), com uma ressalva inicial do autor:
Nunca sabre cómo vino a parar aquí un breve
capítulo desechado del Libro de Manuel, ni por
qué lo deseché en su día. Olvidado entre
cuadernos y hojas sueltas entre pameos y dibujos,
lo releí por pura amistad con su autor, un tal
Andrés, y no había terminado de leerlo cuando
supe que su lugar estaba aquí y que no sólo por
error lo había guardado entre estos papeles.
Duas pessoas de procedimentos extremos: Francine representa para ele
a França, o lado intelectual, é dona de uma livraria; Ludmila é latina, representa
a periferia e está envolvida com as ações políticas da Joda. Este triângulo
apresenta uma fissura no caráter de Andrés, dividindo seus sentimentos e
posicionamentos enquanto ser humano. Essa fissura é uma constante na obra
de Cortázar e resulta numa dualidade que nunca se resolve. Seus
personagens estão sempre envolvidos pela literatura e a política, pela vida
intelectual e social, pelo individual e o coletivo. Então percebemos um centro
desenvolvido, encarnado por Francine, que ele, como alter ego de Cortázar
quer sorver, impregnar-se dele, mas há também a periferia, a América Latina
encarnada em Ludmila, que ele não conseguia abandonar. E Ludmila sabia e
aceitava essa hesitação enfrentada por Andrés e aceitava-o dessa forma.
Sabia que ele
Jugaba con ella y se dejaba jugar, se iba con
Francine y volvía con las obras completas de
Roberto Arlt, y además el tiempo hacía lo suyo, la
costumbre se instalaba, el departamento tan
bonito, ya no quedaba nada por aprender ni por
enseñar. (p. 104)
O fato de fazer amor com Francine (o seu outro lado Ludmila)
aproximava-o da intelectualidade, do centro, as diferenças se dissipavam. Ela
era seu ponto de fuga e
126
era siempre la primera en llevar la mano hacía ese
conmutador que apagaba un tiempo de figuras
afrontadas, de palabras enemigas, a abrirnos a
otra luz donde un vocabulario hecho de pocas,
intensísimas cosas creaba su lenguaje sábana, su
murmullo almohada, allí donde un tubo de crema
o un mechón de pelo eran claves o signos. (p.
159)
Um personagem novo junta-se para formar um outro triângulo: Andrés,
Ludmila e Marcos. Este último entra com vantagem em relação ao primeiro,
posto que está envolvido diretamente com a Joda e Andrés é um mero
espectador. Ao se dar conta desse fato, ao perceber que a está perdendo para
campos que não conhece direito, resolve ir em busca quando o grupo já está
no cativeiro com o “Vip” e conseguindo a liberdade de muitos presos políticos.
Andrés é seguido pela polícia sem perceber e nesse tempo, entre o metro e o
esconderijo, além de fazer conjecturas sobre Ludmila, lembra-se do que
tempos atrás lhe disse um cubano: “despertate”. Mas o despertar político de
Andrés ocorre dentro dessa relação amorosa dividida. E ocorre com Francine,
depois de perceber que está perdendo Ludmila para Marcos. Entre o amor e a
conversa, Francine percebe o rumo que Andrés está dando aos fatos e o
interroga:
— Es una despedida, verdad — dijo Francine — A
tu manera, con tus ritos, con tu luz en el suelo, con
tu vaso en la mano.
— No sé, chiquita, como puedo saberlo todavía, la
mancha negra está ahí, cada vez llego hasta el
umbral de esa pieza y dejo de ver y de saber,
entro en la mancha negra y vuelvo
a salir
cambiado pero sin saber porqué ni para qué. (p.
328)
Uma outra história menor, a de Lonstein, que preferia a masturbação ao
contato com as mulheres e que cultivava uma variedade de cogumelo
venenoso. O tema da masturbação entra como arte, posto que Lonstein o
pratica desde muito tempo, sem correr os risco de ficar com
cara ojerosa, piel amarillenta, palabra
tartamudeante, manos húmedas, mirada débil y
evasiva, etcétera. [.... Lonstein se reía porque no
solamente él no respondió jamás a ese cuadro
entre los once y quince años. (p.191)
127
Lonstein é um ‘revolucionário’ dos tabus sexuais, psicológicos e eróticos
da época na visão de Andrés. E isso, juntamente com as reuniões da Joda,
funciona para ele como uma espécie de estímulo de mudança dos
comportamentos, coisa que ele sentia, estava-lhe afetando de alguma forma.
Mas, a grande história paralela à de Manuel é a de Andrés, esse duplo
autoral, duplo do duplo, el que te dije
53
. Um duplo que escreve letras de tango,
que mesmo pertencente à periferia quer se manter no centro como bem mostra
o seu envolvimento amoroso com Ludmila e por isso traça, como que para
mostrar um elevado grau de cultura, conjecturas que vão de escritores como
Meister Eckhart, místico medieval alemão, passando por Michel Butor,
MacLuhan, Henry James, o russo Gogol, Eric Ambler, René Char, entre outros,
e sai permeando os seus encontros com a Joda e com Francine e Ludmila com
um seleto grupo de atrizes (Brigitte Bardot, Elsa Lanchester), cineastas (Fritz
Lang, Andy Warhol), pintores (Max Ernst, Bune-Jones), músicos (Stockhausen,
Xenakis, Edgar Varèse, Joni Mitchell, Toscanini, Puccini), sem esquecer de
ressaltar as figuras de Jung e Freud, quando se atém em assuntos como sexo,
masturbação, homossexualismo.
Cortázar também não deixa de relacionar figuras do meio político, dos
que estimava e dos que eram tidos como ditadores (Fidel, Onganía, General
Levingston, Somoza). Até mesmo a figura do cardeal Aramburu surgiu como
representação perfeita da ambivalência bem-mal
54
. Cortázar uniu o bem e o
mal, o opressor e o oprimido nas figuras antagônicas dos deuses persas, que
faziam parte do zend-avesta, escrito por Zoroastro, o qual pregava a luta
incessante do bem contra o mal, só vencida no dia do juízo final, pelas
53
Conforme Graciela Maturo (2004, p. 137), essa expressão era utilizada pelo grupo que
trabalhou pelo regresso de Perón na década de 70. Aqui, está sendo utilizada para referir-se a
Cortázar.
54
Entrevistado por um jornalista de “Il Messaggero”, na Itália, o Cardeal Aramburu negou
rotundamente a existência de desaparecidos, contradizendo o que as valas comuns,
recentemente descobertas, revelavam. Este trecho faz parte de um estudo de Rafael
Carmolinga Alcaraz: uma leitura de Juego doble - la argentina católica y militar, sobre o livro de
Horacio Verbitsky. O referido estudo encontra-se no site:
www.apufsc.ufsc.br/_menu/2_boletins/2006/554/boletim554.pdf.
128
deidades da luz e das trevas encarnadas nas figuras de Ormuz e Arimán
55
(p.
172).
O manual de Manuel compõe-se de aproximadamente uns quarenta
recortes colhidos no idioma de publicação, sem a data, um manual
desordenado que os personagens se encarregam de interpretá-los para
Manuel. É um texto-hidra, organizado por muitas cabeças com a intenção de
mostrarem a
Manuel, a cabeça verdadeira, em seu processo de alfabetização,
a repressão decorrente das ditaduras militares. E assim temos no Libro de
Manuel um mosaico literário onde política, arte e conhecimento da realidade se
entrecruzam com a ficção para daí emergir uma panorâmica do que foi e do
que representou o tempo da ditadura militar na América Latina: un tiempo
muerto entre los sesenta y ochenta, parafraseando o pensamento de Andrés,
este que reconhece lhe faltar o vocabulário marxista presente na Joda (p. 252),
mas que se encontra disposto a despertar para o mundo de uma realidade
absurda, digna da sua literatura mais fantástica.
Se Cortázar quis passar ao leitor, encarnado na figura de Manuel, uma
verdade histórica, não se percebe nenhuma intenção de doutrinamento político.
Está mais para a ética da compreensão explicada por Edgar Morin (2004:99)
que ressalta a compreensão desinteressada: “a ética da compreensão pede
que se compreenda a incompreensão. [...] que se argumente, que se refute em
vez de excomungar e anatematizar”. A verdade histórica se converte em
verdade literária através da montagem dos recortes entramados no corpo do
texto. Para ele que vê pelos olhos de Andrés a escritura como espelho de outra
coisa e só deste plano a verdadeira revolução se faz, não como a “madame
l’Histoire” prescreve, mas como ela se inscreve em sua literatura, o mundo se
torna capaz de engendrar um homem novo, um homem cuja realidade lhe
chega pelas palavras. Neste livro ele não faz mais que repetir o modelo
rayuelesco de construção criativa, modelo este que se repetirá em outros
55
Ormuz é o criador de tudo que é bom na terra. Indiferente da origem, exatamente da mesma
forma que o satã cristão, Arimã representa o lado negro da alma de todos os homens, o ego
que os guia a prazeres fúteis e os afasta de tudo o que é bom.
129
textos. Esta construção em mosaico, com várias histórias, línguas e culturas
embutidas numa só, traz a certeza de que cada personagem latino tinha seu
papel definido dentro da Joda, desde o início:
los poetas como Lonstein hablarán de reino
milenario, Patricio se le reirá en la cara, Susana
pensará vagamente en una felicidad que no haya
que comprar con injusticia y lágrimas, Ludmila
recordará no sabe por qué un perrito blanco que le
hubiera gustado tener a los diez años y que nunca
le regalaron.
En cuanto a Marcos sacará un cigarrillo (está
prohibido) y fumará despacio, y yo juntaré tanta
cosa para imaginar una posible salida del hombre
a través de los ladrillos, y naturalmente no
alcanzaré a imaginarla porque las extrapolaciones
de la ciencia-ficción me aburren minuciosamente.
(p. 19)
2.5 (AS)SIMETRIA TEMÁTICA: a política como jogo nos contos
Quando nos referimos aqui à (as)simetria temática, estamos
considerando o fato de que com a entrada do tema política na obra de Cortázar
sua obra literária ganhou um valor a mais. Tentaremos comprovar aqui que
Cortázar, em sua percepção do mundo que lhe foi contemporâneo, entendia a
urgente necessidade que tinha de colocar a sociedade mundial a par do que
acontecia de fato em seu país e arredores. Como escritor
bastante lido, fez
valer o seu comprometimento com as causas latino-americanas do momento
unindo mundo real e mundo ficcional. Dessa fusão surgiram contos primorosos
em termos de imagens fantásticas, surgidas do real e vice-versa. Imagens
plenas de realidade e esperança; no fundo, uma forma de escrita que buscava
mostrar a verdade através de uma forma disforme de poética. Dizemos
disforme porque, segundo ele, em Para uma Poética (1993, p. 86),
a poesia surge num terreno comum e até vulgar,
como o cisne no conto de Andersen; e o que pode
despertar curiosidade é que, entre tanto patinho,
cresça de quando em quando um com destino
diferente.
130
A noção de anormalidade permeia os contos, após a entrada do
elemento político explícito. Entretanto, essa anormalidade que advém,
supostamente deste tema, quebrando, como supõem os críticos, os valores
literários da obra de Cortázar, só é percebida por quem tem um certo
conhecimento do contexto sócio-histórico, político e geográfico que entra como
pano de fundo nos contos e, muitas vezes, como elemento central. Daí
reiterarmos a necessidade do conhecimento do contexto para uma
compreensão mais exata da obra cortazariana. E assim, localizarmos nela o
ponto (in)fusional entre realidade factual e mundo ficcional, sem acarretar
prejuízos à sua obra que consegue, dentro do que nos propomos analisar aqui,
ser ao mesmo tempo crítica, tratar de política, sem perder a essência do
aspecto literário. Há, portanto, com a entrada do político, um equilíbrio. Em vez
de anormalidade, instaura-se uma simetria promovida pelo encontro do real
com o fantástico, tornando a obra mais fantástica e mais humana, como
podemos verificar nos contos.
2.5.1 CONTO POR CONTO
Os personagens cortazarianos, antes apenas enredados pelos
acontecimentos fantásticos incrustados na cotidianidade, agora passam a
experienciar a vida de uma forma mais profunda e consciente, mais
questionadora. Passam, como o próprio Cortázar, a participar criticamente de
uma ordem social, histórica, política, cultural e ideológica que até então não lhe
tinha despertado real interesse. Vimos, a princípio, que esta nova faceta vinha
se
esboçando em alguns contos esparsos e mais claramente no Libro de
Manuel. Entretanto,
nos contos publicados na década de setenta e início de
oitenta torna-se visível, e em grau mais elevado, esse compromisso de
denúncia de uma realidade que, por seu caráter sangrento e desumano, beira o
fantástico.
Saúl Yurkievich (2004:24) faz uma ressalva à ‘quase ausência’ nos
contos cortazarianos de elementos como subjetividade, a incidência pessoal, o
ocasional, sobretudo o político, pela configuração peculiar que o próprio
131
Cortázar deu à sua teoria do conto. Porém, em nota de rodapé, Yurkievich
atesta que
lo político, ingrediente que escasea en la mayor
parte de los libros de cuentos de Cortázar,
adquiere mayor proporción en Alguien que anda
por ahí. De los once relatos que éste contiene,
cuatro pueden considerarse de implicación
política.
Saúl Yurkievich não define quais são os quatro contos deste livro,
publicado em 1977, censurado e proibido, e deixa em aberto a possibilidade
para o leitor acrescentar, à sua lista, um conto a mais. Lista esta, supostamente
encabeçada por Apocalipsis de Solentiname, Reunión con un Círculo Rojo,
Alguien que Anda por Ahí, La Noche de Mantequilla e, acrescentamos à
nossa análise, o conto Segunda Vez, por motivos que iremos verificando
seguidamente. Entretanto, percebemos que essa ‘quase ausência’ do político
nos contos de Cortázar, sentida em termos de quantidade, é superada em
termos de qualidade. Tanto que prossegue nos outros dois últimos
livros de
contos: Queremos tanto a Glenda (1980) com Texto en una Libreta, Recortes
de Prensa e Grafitti, e Deshoras (1983) traz Satarsa, La escuela de Noche e
Pesadillas. Ademais, estes contos possuem fundamental importância dentro
do universo contístico elaborado por Cortázar, não só por
serem frutos de seu
posicionamento político-ideológico particular, sobretudo por abrirem os espaços
ficcionais à reflexividade fornecida pelos fatos pertencentes à realidade
palpável, os quais se lhe apresentavam, à época, bem mais atemorizantes que
os fantasmas fictícios que viessem a povoá-los. A suspensão do sentido
primeiro do fantástico nestes contos torna-os ainda mais fantásticos,
considerando a visão do leitor cúmplice que ele exigia para sua obra: muitos
podem vê-los como Claudine viu as fotos de Solentiname, naturalmente belos,
sem
esboçar nenhum sinal de que tinha visto algo além dos aspectos estéticos
fornecidos pelas fotos:
— Qué bonitas te salieron, esa del pescado que
se ríe y la madre con los dos niños y las vaquitas
en el campo; espera, y esa otra de bautismo en la
iglesia, decime quién los pintó, no se ven las
firmas. (AAA, p. 159)
132
Porém, muitos serão os que irão lê-los com a visão do narrador: ampla e
consciente dos problemas humanos que estão por trás de todos os fatos, cuja
representação se concretiza através, não só das fotos, mas de Ernesto e dos
campesinos, quando comentam a passagem do Evangelho na missa de
domingo e quando expõem a pintura que fazem. Segundo o narrador, estes
dois fatos e, em especial, o Evangelho, são comentados como
un tema que la gente de Solentiname trataba
como si hablaran de ellos mismos, de la amenaza
de que les cayeran en la noche o en pleno día,
esa vida en permanente incertidumbre de las islas
y de la tierra firme y de toda Nicaragua sino de
casi toda América Latina, vida de la Argentina y de
Bolivia, vida de Chile y de Santo Domingo, vida
del Paraguay, vida de Brasil y de Colombia. (AAA,
p. 157)
Este conto, como todo o livro, rendeu a Cortázar, além de ter sido
proibido pela censura, uma crítica do uruguaio Danúbio Torres Fierro,
desqualificando-o como obra de arte pelo envolvimento político-ideológico nele
contido. Segundo a crítica, Cortázar teria feito um mau negócio ao tentar unir o
fantástico à “intenção denunciatória”. Esta crítica merece uma resposta de
Cortázar com o título Para Solentiname (2001:137-144), onde ressalta a
necessidade que o momento apresenta de trazer a realidade para dentro da
escrita e diz que a leitura empreendida pela junta militar foi bem melhor que a
do crítico, posto que a proibiu e, ao contrário do que ele pensa, acrescenta:
tenho a certeza de haver escrito um dos meus
textos mais “fantásticos” em um contexto
revolucionário, e o que fiz deliberadamente para
mostrar a alguns companheiros cubanos que uma
coisa não anula a outra, que se a realidade não é
tangencial à literatura, a
literatura está aí para
mostrá-la em suas formas mais vertiginosas e
insuspeitas.
Apocalipsis de Solentiname (p. 155-160) narra os acontecimentos de
uma viagem que o narrador empreende a Solentiname na companhia de
Ernesto Cardenal. Cardenal, padre, poeta e revolucionário, amigo pessoal de
Cortázar, fundou a comunidade de Solentiname, em uma ilha do arquipélago.
133
Uma comunidade voltada para o trabalho cooperativista. As pinturas
fotografadas por Cortázar fazem parte da escola de pintura primitiva existente
na comunidade. Lá, os campesinos desenvolviam diversas atividades. Além de
fazer funcionar, também, um movimento poético entre os campesinos, o
trabalho mais importante desenvolvido na comunidade, por Cardenal, foi a
conscientização da população através do evangelho e da sua interpretação
revolucionária. Esta comunidade foi destruída pela ditadura somosista, que o
condenou, em ausência, a vários anos de prisão. Cardenal só retornou à
Nicarágua em 1979, quando da constituição do novo governo
56
.
Nessa viagem, a pauta de conversa gira em torno de nomes de vários
escritores como Urteche, Roque Dalton, Gertrude Stein, Carlos Martinez Rivas.
Em Solentiname ele se surpreende com dois fatos. O primeiro, umas pinturas
feitas por campesinos, cuja venda, conforme lhe explica Cardenal, “ayudaba a
tirar adelante” (p.156). O segundo, trata-se da missa de domingo, na qual há a
participação de Ernesto, onde este e os campesinos comentam, juntos, a
passagem do evangelho que se refere a Jesus no Horto e falam como se
estivessem falando deles mesmos. Sente na pele a violência que assola toda a
América Latina e se compadece. Na volta a Paris, o narrador pede a Claudine,
sua mulher, que mande revelar as fotos tiradas em Solentiname. Ao vê-las,
surpreende-se com o que vê e pensa em Buenos Aires, na situação
em que se
encontra a Argentina. Como num filme, um turbilhão de imagens da violência
vai se sucedendo, até que Claudine lhe pede para ver as fotos. Ele vai para o
banheiro e não tem noção do que se passa lá, se chorou ou vomitou. Um fato
insólito acontece quando retorna à sala, com a bebida de Claudine preparada e
percebe que ela achou tudo normal, não viu ou não entendeu absolutamente
nada do que ele acabara de ver.
Jonathan Tittler (1986) faz uma análise deste conto, onde aborda três
caminhos possíveis de serem seguidos: um apocalíptico (fictício e mítico), um
histórico e um polivalente. O primeiro, conforme o crítico, seguiria o percurso já
descrito acima, abarcaria o seu sentido literário; o segundo, apontaria para o
56
Em 1979, o país passou a ser governado pela Junta de Reconstrução Nacional que
substituiu a Guarda Nacional pelo Exercito Popular Sandinista. Os sandinistas expropriaram as
terras de grandes latifundiários, distribuindo-as entre os camponeses.
134
contexto da revolução nicaragüense, sua presença lá, as pessoas e os lugares
reais e indissociáveis do mesmo processo histórico e, o mais importante, a
figura do poeta Ernesto Cardenal a simbolizar a imagem seladora do
compromisso político de Cortázar com a causa. Para ele, “el abrazo entre él y
Cardenal es pues, un gesto paradigmático, una declaración pública de su
adhesión a la causa nicaragüense” (p.113). O terceiro caminho, o da leitura
global, polivalente, resulta mais instigante posto que reúne os dois anteriores,
acentuando-lhe a dimensão política através da consciência ativa do narrador; o
terceiro caminho, o da leitura global, polivalente, vem intensificar as duas
primeiras.
Optamos aqui por essa visão polivalente e globalizadora que nos mostra
a dimensão política acentuada pela consciência desperta do autor-narrador,
não diante da surpresa que provocaram os quadros vistos em Solentiname,
mas diante do elemento fantástico (re)velado nas fotografias por uma realidade
que só se torna perceptível para alguém que demonstrou “siempre una
voluntad de contacto con el presente histórico del hombre, una participación en
su larga marcha hacía lo mejor de si mismo como coletividad y humanidad”
57
.
No conto Segunda Vez (p. 134-139) Cortázar nos confronta com um
caso típico de desaparecidos durante a ditadura militar acontecido em qualquer
lugar da América Latina. Omar Prego (2004:215), fala deste conto associando-
o à Grafitti, do livro Queremos tanto a Glenda, pela semelhança da temática
ressaltadora dos desaparecidos e presos políticos à época da ditadura. Para
ele, Cortázar encontrou um novo caminho para demonstrar poeticamente a
face do horror que se abateu em muitos países da América Latina, um horror
anônimo que pode assumir vários corpos sem rostos, porque não se sabe a
sua denominação: se exército, se organização paramilitar, se comando da
morte. A esse questionamento
Cortázar acrescenta, concordando que o horror
se acentua justo por esse fato: por não se poder vislumbrar um rosto nem as
responsabilidades diretas. Ele sente que está frente a uma espécie de
‘superestrutura’ provocadora de reflexão:
57
Trecho de carta extraído do livro Fervor de la Argentina, de Roberto Fernández Retamar.
Buenos Aires: Ediciones Del Sol, 1993.
135
Muchas veces yo he pensado, leyendo casos
típicos de desaparecidos y torturados en
Argentina, que
ellos han vivido exactamente El
Proceso de Kafka porque han sido
detenido
muchas veces por ser solo parientes de gente que
tenía una actuación política ( ellos no la tenían o la
tenían de manera muy parcial) y han sido
torturados, han sido detenidos y finalmente
muchas veces ejecutados. (p. 216)
Temos um estranho relato em Segunda Vez: de uma suposta reunião
de trabalho para a qual Maria Elena é convocada. Ao chegar no local descrito
na convocatória, feita em papel amarelo, com selo verde, mas com assinatura
ilegível. Ela estranha por não encontrar nenhuma indicação, já que se tratava
de uma instituição. Nenhuma bandeira, nenhum sinal visível que lhe pudesse
assegurar do local. Dentro, também nao havia indicação: “la chapa en la puerta
parecía apenas la de un médico o un dentista, sucia y con un papel pegado en
la parte de abajo para tapar alguna de las inscripciones” (p.135). Na reunião,
Maria Elena, tímida, conhece Carlos que também está lá para a entrevista, mas
ele explica que é a sua segunda vez. Conversam, simpatizam-se na reunião.
Quando são convocados a mudarem de sala, Carlos não aparece e ela não o
encontra em nenhum lugar. A única porta que ele poderia ter saído foi a que
ela entrou e por lá ele não passou. É-lhe dada uma ficha para preenchimento
de dados pessoais e, naquele momento, sente-se como que molestada diante
da situação. É convocada novamente, mas, desta vez, sem papel, para se
apresentar em três dias, sem esquecer.
Em Reunión con un Círculo Rojo (p. 189-194) um episódio bizarro é
narrado. Trata-se do encontro de Jacobo com uma inglesa míope, no
restaurante Zagreb praticamente vazio de Wiesbaden. A inglesa sai do
restaurante e ele sai em seguida, preocupado, caso ela não conseguisse
encontrar o caminho de volta. O que ocorre a partir daí é uma incógnita, pois a
inglesa não só encontra o caminho de volta como o atrai para o local em que
se encontra. Convida-o para entrar e ele só consegue entender o que está
prestes a acontecer quando percebe que caiu numa cilada.
Alguien que Anda por Ahí (p. 206-210), numa cascata de personagens
masculinos, traz Jiménez que encontra York, que depois encontra Alfonso em
136
Santiago. chegam ao motel e tomam banho. Enquanto isso, na cama, uma
maleta aberta, e, na cômoda, por entre camisas e diários, encontra-se um
envoltório verde. Fumam, ele e Alfonso e falam sobre Camagüey, província
cubana, e também da última luta de Stevenson. A música de Chopin que vem
do piano, tocada por um estrangeiro, fá-lo recordar Irene Dunne. Nesse lugar,
aparentemente tranqüilo, Jiménez sente um misto de ameaça e paz, após
Afonso ter ido embora. Vai para o quarto, fecha bem a porta, mas percebe que
há alguém com ele lá dentro: o estrangeiro que tocava no piano. Ao interrogá-lo
sobre quem é, ele apenas responde: “alguien que anda por ahí”. Tenta ganhar
tempo para descobrir o que está acontecendo, ou o que irá acontecer, falando
de música, do piano, porém as mãos do homem naquele momento não estão
interessadas em tocar nenhum piano, mas o pescoço de Jiménez. Trata-se de
um conto escrito em Cuba, em 1976, e, seguindo os estudos de Carmen
Vázquez (1986:125),
Relata la historia de um contrarrevolucionario
cubano, radicado em los Estados Unidos, que
regresa al país natal, a perpetrar um acto de
sabotaje y es ejecutado por um extranjero poco
antes del momento previsto para la colocación de
la bomba.
Três elementos atam os fios do discurso cortazariano neste conto:
Jiménez, a música clássica e o estrangeiro. A aparente suavidade da música
de Chopin, além de provocar-lhe recordações, não lhe dava a devida
segurança. O estrangeiro toca vários gêneros musicais, porém Chopin é o
prelúdio, a chave que o conduz ao desconhecido, à morte. A importância do
prelúdio chopiniano é elevada no conto ao status de jogo demarcatório de um
destino que se resolve pelas mãos: o ato de tocar como jogo que conduz à vida
e às relembranças e como jogo que conduz à morte.
Em La Noche de Mantequilla (p. 211- 220), Cortázar desenvolve o
tema da violência em um lugar insuspeito, tumultuado e incapaz de o grupo ser
reconhecido posteriormente. Um lugar de luta (embora desportiva) serve de
pano de fundo para uma luta mais violenta, onde não dá o direito do perdedor
jogar a toalha ou tentar um último “round”. Temos um grupo de conhecidos,
137
supostamente amigos, os quais vão assistir a uma luta de boxe entre Monzón e
Nápoles: Monzón, personagem real, um boxeador argentino de primeira linha
que, das mais de cem lutas que chegou a disputar, só foi derrotado em três
delas; Nápoles é o cubano José Angel Nápoles, o qual se naturalizou mexicano
por causa das dificuldades pelas quais Cuba passava. Foi batizado no boxe
como Mantequilla. No sétimo “round”, Mantequilla joga a toalha e Monzón é
considerado vencedor. Um outro conhecido do grupo aparece na saída da luta,
surpreendendo Estévez, que tinha ido à luta com a finalidade de entregar uma
‘encomenda’ a Walter. Ele acaba entregando-a à pessoa errada e o grupo
decide fazer a reparação devida. Entram no carro e tomam uma rota que
Estévez desconhece. Pelo rumo da conversa ele percebe que um dos
companheiros desapareceu pois Chaves diz que “mañana lo pasado lo
encontraran en algun terreno baldio” (p.219). Vê que está saindo de Paris e
comenta que precisa ir para casa. Chaves freia o carro e Peralta saca a arma,
dizendo que “ahora mismo” ele vai.
Tanto em Segunda Vez quanto em Reunión con un Círculo Rojo,
Alguien que Anda por Ahí e La Noche de Mantequilla encontramo-nos
diante do inevitável fim daqueles que tentaram transpor-se aos limites impostos
pela ditadura. Duas mortes por encomenda, dois círculos de sangue a mais a
fazerem parte do esquema sem rosto da ditadura militar e dois
desaparecimento sem pistas. A inglesa míope, o pianista estrangeiro, Peralta,
todos com a função de apagar registros incômodos, em qualquer lugar. No
primeiro, a angustiante espera de alguém que não aparecerá; nos outros três,
personagens com nomes sendo ‘apagados’ pelo inominado, pelo indescritível
furor de um regime de visão oblíqua e mãos sujas, que mata o contra-
revolucionário, mata o cidadão comum, mata, indiscriminadamente, a quem
não se adaptar ao regime.
No livro Queremos tanto a Glenda (1980), temos três contos que
apresentam temática política: Texto en una libreta, Recortes de prensa e
Grafitti. No conto Texto en una libreta (p. 349-359), o narrador começa por
anotar o movimento de passageiros no metrô de Buenos Aires, o Anglo, que
tinha como inspetor-chefe, Montesano. O controle de passageiros era feito por
138
Jorge García Bouza. Suas anotações se reportam aos anos quarenta, quando
a linha do Anglo ainda não se encontrava ligada às novas redes subterrâneas
e período de um peronismo incipiente, mas já vivendo sob o regime militar
intervencionista, conforme observa Ricardo Sidicaro (2000:26), analisando as
fases do peronismo. Seis anos após, em quarenta e seis, ele, o narrador,
começa a perceber certas anomalias existentes nas estações. Começa então a
fazer uma investigação sigilosa, para que ninguém percebesse e foi anotando
seus informes: eles, os que estavam tomando o metrô. O primeiro era
responsável por tomar os trens, conduzi-los e ensinar aos outros ‘três’. O
revezamento nos trens, a troca de roupa, todos os atos deles mecanicamente
ocorrendo na estação determinada, no dia e hora determinados.
Na sua operação detetivesca, o narrador chega a comprar Trilce
58
, obra
do escritor César Vallejo, a quem nos referimos na primeira revolução, para ler,
enquanto os observa fazendo compras. ele, gravatas; elas, lencinhos. Após
três meses, ele acha que a verdade se aproxima. Já estão de posse de três
trens, além de um posto nas cabines de coordenação da Primeira Junta. O
ponto desencadeante da verdade foi ter presenciado o suicídio de uma jovem
pertencente ao grupo, numa cabine telefônica. Sentindo medo de ser
descoberto, prefere afastar-se um pouco, deixar de andar nos trens sem, no
entanto, abandonar a sua missão. Nesse tempo, descobre que já tomaram oito
trens, a administração de muitas estações e parte das oficinas. Percebe que foi
descoberto pela vendedora de Milkbar e sai correndo. Sente vontade de gritar o
que sabe, mas permanece escrevendo até tranqüilizar-se. Conclui enfim, seu
informe, contando dessa sociedade secreta que quer se apossar do metrô, e
manda cópia para o prefeito, para o chefe de polícia, para Montesano.
Recorte de Prensa (p. 360-369) é um conto que mescla narrativa
literária e jornalística, a violência icônica representada pelas esculturas e a
violência humana ao próprio ser humano. Seguindo a temática político-
ideológica, o conto narra um encontro entre um escultor argentino e uma
escritora de mesma nacionalidade, ambos exilados. Encontram-se num país
determinado (França), numa cidade determinada (Paris), numa rua
58
"Trilce" é o primeiro livro peruano que emprega formas livres na métrica e na rima,
características da poesia nova. E seu autor, um peruano desejoso de liberdade e justiça social.
139
determinada (Calle de Riquet). Essa rua localiza-se num subúrbio onde a vida
não parece ser muito fácil para quem mora lá. A intenção do escultor é que
Naomi olhe suas esculturas e, partindo delas, escreva um texto que se adeqüe
ao tema da violência por ele representado. Ao ver as esculturas, achou-as, de
início, sutis, desprovidas de um impacto maior por se tratar de violência e,
como tal, necessitam de certos elementos que as tornem contundentes. Após
um breve silêncio, Naomi dá ao escultor um recorte de jornal: trata-se do
testemunho de uma mulher argentina, Laura Beatriz Bonaparte Bruschtein,
relatando a morte e o desaparecimento de pessoas de sua família, além de um
pedido de providência às autoridades. Este fato provoca em ambos
sentimentos de raiva e impotência diante da imagem de horror descrita pela
mulher. Ao sair de casa do escultor, Naomi passa por uma outra situação de
violência que ela pensa não ser real: vê uma menina chorando, a qual lhe toma
pela mão, levando-a a presenciar a mãe sendo violentada pelo pai. Com a
ajuda da menina, a situação se inverte e consegue que a mãe, ao se libertar,
passe a torturar o marido com a mesma intensidade com que foi torturada.
Enquanto isso a menina foge e Naomi não consegue mais achá-la. Desse fato
presenciado faz o texto do escultor, incompleto, e lhe manda. Texto que o
escultor compara com o que havia saído no jornal, contando exatamente o
acontecido, tendo, porém, o homem como vítima, e contando o
desaparecimento da filha. Naomi sai à procura da menina e a encontra em
poder de uma assistente social. Ao voltar para casa, termina o texto e vai
deixá-lo ao escultor, pois “era justo que conociera el final, que el texto quedara
completo para acompañar sus esculturas” (p. 369).
Em Grafitti (p. 397-400), Cortázar permanece trabalhando o par
antitético vigente durante a ditadura, não só na Argentina, mas na América
Latina em geral: Estado/Sociedade Civil. Tem como pano de fundo um amor
que se vê frustrado pela violenta intervenção governamental. Também pode
ser tomado como a síntese de uma rebeldia que se faz anônima, através dos
desenhos realizados no muro, sem que se saiba a identidade dos grafiteiros.
Um jogo onde se encontram implicados o rechaço, o protesto, o enfrentamento
possível para uma época onde o silêncio poderia ser mais valioso que qualquer
palavra. Era uma palavra silenciosamente revolucionária, o grafite. Nos
140
desenhos que faz às escondidas, com medo de ser apanhado pela polícia, o
grafiteiro descobre os de uma mulher e por ela se apaixona, a ponto de sempre
desenhar com a intenção de ver a sua resposta. Presencia a sua prisão, mas
não consegue ver seu rosto. Depois, faz outro desenho que passa
despercebido pela polícia e, junto dele, aparece o dela, denunciando o horror
que passou na prisão, que é o lugar para onde vai quem for flagrado fazendo
grafite.
Nestes contos podemos visualizar mais claramente a força ditatorial
agindo sobre as pessoas. A verdade é que estes contos foram escritos num
período em que a Argentina vivia, dentro do Regime Militar, seu período mais
repressor. Conforme estudo de Ângelo Priori
59
, acerca do Golpe Militar na
Argentina, quando a Junta Militar compostas pelo general Jorge Rafael Videla,
o almirante Emílio Eduardo Massera e o brigadeiro Orlando Ramón Agosti
assumiu o poder, dissolvendo o Congresso, iniciou-se um período ditatorial
extremamente violento e responsável por grande transformação na história da
Argentina. Essa transformação seria vista em números, segundo ele,
Entre 1976 e 1979, foram dadas como
desaparecidas cerca de 9 mil pessoas
identificadas pela Comisión Nacional sobre la
Desaparición de Personas. Outras fontes apontam
até 30 mil desaparecidos. Outras 1.898 pessoas
foram assassinadas, sendo seus cadáveres
encontrados e identificados posteriormente. Nesse
período ainda, foram criados mais de 350 campos
de concentração.
Sendo assim, é natural que Cortázar, de posse de informações
verdadeiras, insertasse-as nos contos, de forma mais velada e silenciosa em
Texto en una libreta, seguindo o modelo com que agia a ditadura; mesclando
recortes de jornal com depoimento de pessoa real em Recorte de Prensa
60
e,
por fim, em Grafitti, as inscrições na parede e conseqüentemente a prisão dos
59
O artigo do Professor Ângelo Priori encontra-se na Revista Espaço Acadêmico, nº 59/abril de
2006, podendo ser visualizado no site: http://www.espacoacademico.com.br/059/59priori.htm.
60
Laura Beatriz Bonaparte Bruschtein é a personagem real que no conto aponta pessoas
desaparecidas, descrevendo os motivos dos desaparecimentos, incluindo na lista pessoas da
própria família. Trata-se de um recorte do jornal “El País”, de outubro de 1978.
141
grafiteiros representam a repressão à imprensa escrita, e provável que a toda
forma de comunicação que possa servir de porta-voz contra o regime.
Dos oito contos que constituem seu último livro Deshoras (1982),
recortam-se três, onde podemos perceber a intensidade do envolvimento de
Cortázar com a situação política de seu país. Temos que assinalar um fato
importante: para falar de política nos seus contos o autor não utiliza metáforas
do gênero. Para que se entenda que ele trata realmente de política, faz-se
necessário que se tenha, se não o conhecimento, mas algum conhecimento do
contexto no qual estava inserido e do qual saiu, primeiramente, por vontade
própria. Contexto que o ‘convidou’ a não retornar, posteriormente.
Se seu comprometimento político inicial deu-se fora da Argentina,
diríamos que sua inspiração política advém dela e de tudo o que passou.
Volodia Teitelboim (2004:47-58) cita um desejo de Cortázar em relação à
Argentina: ele desejava reunir em um livro todos os artigos seus, publicados
contra a ditadura militar argentina, no período correspondente a 1976-1983,
com a finalidade de que “los argentinos pudieran leer “la opinión de alguien que
desde afuera hizo todo lo posible por ayudarlos”. Em 1976, Cortázar teve que
aceitar seu papel de exilado.
Muitos de seus contos trazem à tona o que ocorreu durante a ditadura
militar argentina. No entanto, o envoltório estético-literário cortazariano não
deixa que se transformem em um ‘caso-verdade-extremo’, mesmo que seja um
caso de verdade extrema. Sentimos em Cortázar essa preocupação com o
conflito que poderia se formar dentro de seus textos, e na cabeça dos leitores,
a partir dessa junção do político com o estético. Em seus textos críticos, assim
como as cartas, percebemos que o mesmo estava o tempo todo preocupado
com essa tarefa delicada, a de expor literariamente, sem prejuízos, a tragédia
do próprio país, sem que isso viesse a se tornar panfletário. A resolução do
problema surgiria, portanto, da capacidade que teve de sincronizar a ordem
estética com a ordem ético-política.
O conto Satarsa (p. 443-453), por exemplo, apresenta um relato em que
homens e animais vivem o mesmo jogo de miséria e perseguição. Neste, que
142
supõe a crítica, ter sido o último dos contos escritos por Julio Cortázar, o jogo
verbal lhe confere uma nova dimensão – a social – dentro da habilidade que o
autor demonstrou anteriormente ao escrever tendo animais por personagens,
quando a sua preocupação era somente literária. A nossa análise deste conto
se estenderá mais por entendermos que ele é, por excelência, dos contos
comprometidos, o que mais trabalhou a fusão da temática do fantástico com a
temática política.
Satarsa pode ser resumido da seguinte forma: os personagens —
Lozano, Laura e Laurita, — distantes de suas origens, vivem refugiados em
Calagasta. Juntamente com os outros, formam um grupo de fugitivos que vive
escondido, tentando livrar-se das perseguições das forças militares peronistas.
Neste lugar, compartilham a miséria de seu povo, passando a trabalhar como
caçadores de ratas para uma companhia dinamarquesa. O personagem
Lozano é um maníaco que pretende encontrar alguma solução que os tire
daquele lugar, através do jogo com as palavras, fazendo combinações de um
palíndromo que associa o animal caçado à polícia: as ratas = Satarsa.
O grupo resolve executar uma grande caçada com a finalidade de
conseguir dinheiro para chegar à costa e salvar-se. No entanto, durante a
mesma, quando os caçadores encontram-se a ponto de atingir o objetivo, que é
a fuga, muda repentinamente a situação e são cercados por policiais que os
perseguem e os matam. O medo de Laura de tornarem-se, eles mesmos, ratas,
concretiza-se: “ahora sí son las ratas” (p. 453).
Podemos destacar dentro do conto algumas seqüências que refletem os
seus sentidos, palavra por palavra. Cortázar ordena suas histórias de uma
forma tão precisamente dúbia, que não há possibilidade de saber se o que
conta aconteceu de fato, ou simplesmente é uma alucinação de um
personagem, um fato ficcional, apenas baseado na imaginação criadora. E o
Cortázar (2001:207) crítico nos adverte para o fato de a literatura ser “sempre
expressão da realidade, por mais imaginária que ela seja”. Para ele, atestar ou
não essa realidade depende muito da forma como o receptor lê a obra, e
muitos a lêem, não para descobrir nela o que estava acontecendo ou
aconteceu quando o autor a escrevia, senão pelo seu conteúdo ficcional.
143
A transgressão da realidade e do fantástico chega a atingir a plenitude
neste conto. Ao tratar das relações do fantástico com a realidade, Cortázar
(2001:89) foge da maneira tradicional que coloca ambos em lados opostos,
unindo-os numa relação que “consiste sobretudo na experiência de que as
coisas ou os seres trocam por um instante de sinal, de etiquetas, de situação
no reino da realidade racional” e, por questões de sobrevivência, buscam
outras formas de representações. Embora considere o fantástico como o
aspecto predominante da totalidade de sua obra e de situá-lo como o mais
ficcional dos gêneros literários, a realidade encontra-se ali, lado a lado, dando-
lhe o devido suporte, ficcionalizando-se através do elemento fantasioso.
Para Cortázar, em Satarsa, o personagem trata de ver o que está
sucedendo e o que lhe pode suceder através de jogos de palavras. Isso não
parece muito sério, diz o autor, embora se saiba que a magia das palavras é
uma das formas que se cultivam desde a mais alta antiguidade.
Satarsa, como outros contos aqui analisados, insere-se no gênero
Bestiário, isto é, um gênero em prosa ou verso, de caráter moralizante, que
combina recursos da fábula e descrição de animais reais ou lendários, sendo
bastante utilizado por Cortázar em sua prosa em geral, sendo, inclusive, título
do seu primeiro livro de contos. Este gênero não foi desprezado por ele,
quando seus contos adquiriram feição política.
Para usar os termos que a própria crítica cunhou em relação à obra de
Cortázar, temos, primeiramente, as regras de um jogo verbal incorporado pelas
palavras-espelho, isto é, pelos palíndromos que já iniciam o conto em forma de
epígrafe. Sabemos, como é dito no conto, que Lozano é um maníaco que
pretende encontrar uma solução que os tire de Calagasta a salvo, através do
jogo com a palavra. Na sua loucura, cria um palíndromo, uma espécie de
palavra espelho — satarsa / as ratas — que passa a funcionar como um
personagem-fantasma e, ao mesmo tempo, protagonista, criado para
denominar o motivo e os motivadores de sua fuga. Ao mesmo tempo em que
reflete a situação vivida por ele, refrata-a, numa tentativa desesperada de
salvar a si e a todos que o cercam.
144
Para Gustavo Lespada (2002), Satarsa se configura, dentro do contexto
no qual foi escrito, como representação da ditadura militar na Argentina, a qual
deixou um saldo de 30.000 desaparecidos, entre 1976 e 1982. o próprio
Cortázar (2001:148), que viveu o peronismo e sua evolução, afirma, que na
“Argentina as pessoas desaparecem sem que, oficialmente, se tenha noticiado
o que lhes ocorreu”. E, ainda segundo Lespada, o conto representa a fugitivos.
A formação do palíndromo é tão esperada por ele quanto os caçadores
esperam as ratas. Em seguida, desempenhando uma segunda função, desta
vez referencial, o palíndromo revela-se imagem do real. Satarsa passa a definir
o medo e, ao mesmo tempo, o encontro fatal com a polícia que anda à procura
deles. A primeira revela a mentira; a segunda, a verdade. O movimento verbal
põe-se oscilante entre o fantasioso e o puramente real. Vai do transe inicial ao
terreno da realidade final. Uma realidade que oprime, reprime e mata. A
contextualização utilizada por Cortázar neste conto justifica a sua participação
tanto no consciente quanto no inconsciente de sua época e, sobretudo, é pela
estranheza que impregna a sua narrativa que mais nos damos conta desse
aspecto em sua obra.
O jogo verbal empreendido por Cortázar , neste conto ( e também nos
demais aqui analisados), revela a necessidade que ele tinha, como escritor
consciente de sua função de intelectual, de mostrar o seu comprometimento
com a sociedade e com os problemas de sua época. O autor utiliza a
linguagem em Satarsa com a intenção de aclarar, pelas palavras-espelho, as
imagens de um mundo que, de tão real, torna o fantástico imprescindível para
Contundencia del horror inenarrable que identifica
ratas con milicos asomando metafóricamente sus
hocicos detrás del palindroma que miente y dice la
verdad como todo espejo, con un relato que utiliza
mecanismos de ficción para el asedio de una
encrucijada histórica. (p.54)
Se observarmos as relações entre o jogo e a realidade – entendendo
por jogo, no conto, um mecanismo de proteção utilizado por Lozano, para se
proteger e proteger a família e o grupo de fugitivos, e por realidade aquilo que
145
os ameaça e os põe em perigo, no caso, as forças peronistas – e colocarmos
em confronto a seqüência de embates que o texto apresenta, poderemos
atentar para o possível entendimento de que Satarsa isola e ao mesmo
tempo define a outra face da realidade que se encontra imersa na face opaca
do espelho palindrômico. É um jogo de linguagem de dupla face. Um duplo
jogo com a linguagem cujo objetivo é lançar uma ponte para levar Lozano ao
enfrentamento desta.
No conto, a escrita palindrômica cumpre, portanto, uma dupla função.
Primeiramente, cumpre a função de linguagem simbólica utilizada por Lozano
para preencher seus sonhos e devaneios e designar a possibilidade de fuga,
bem como o cuidado com o dizer, para que ninguém os descubra como
fugitivos. A formação do palíndromo é tão esperada por ele quanto os
caçadores esperam as ratas.
Em Satarsa, Julio Cortázar reúne elementos fantásticos e reais para
montar a sua narrativa ficcional. A verdade do conto, ou a sua verossimilhança,
constitui-se, acentuando-se o viés da diferença, compactuando com o
estranhamento que os fatos ali narrados provocam. Se por um lado, o jogo
verbal proporciona o reconhecimento da verdadeira face da Argentina
peronista: a fuga “de las masacres, hambre”, a vida miserável de Calagasta e,
por fim, o extermínio, igualando de vez os homens às ratas, por outro, essa
verdade se desestabiliza quando a caçada torna-se algo normal, aceitável por
todos, quando encontram, hiperbolicamente “un rio de ratas” em uma “noche
sin estrellas”, quando descreve o episódio monstruoso das ratas comendo a
mão esquerda de Laurita, à noite, posto que são animais de hábitos noturnos:
El doctor Fuentes ( que no es doctor pero da igual
en Calagasta) ha hecho un trabajo perfecto y no
hay casi huella de cicatriz, como si Laurita no
hubiera tenido nunca una mano ahí, la mano que
le comieron las ratas cuando la gente de
Calagasta empezó a czarlas a cambio de la plata
que pagaban los daneses y las ratas se
replegaron hasta que un día fue el contraataque,
la rabiosa invasión nocturna seguida de fugas
vertiginosas... (p. 444)
146
Fechar Satarsa em um sentido que englobe o puramente ficcional
implicaria em um esvaziamento da narrativa. No entanto, perceber ou mesmo
reconhecer o referencial, no conto, é tarefa de um receptor que tenha um certo
conhecimento da realidade contextual e até do posicionamento do próprio
autor. Assim sendo, podemos inferir que o autor de Satarsa ficcionalizou o
referencial para dar suporte à sua história, embora este não se apresente de
forma explícita.
O suporte referencial em Satarsa encontra-se permeado por uma
ideologia política. Desse aspecto político da literatura cortazariana, Saúl
Sonowski (2001:14) fala. E fala sobretudo de uma dupla dimensão que
percorre a obra de Julio Cortázar. Para ele, o escritor justapõe as duas
responsabilidades sem abrir mão do compromisso com a literatura, e para
ratificar o seu pensamento, utiliza-se das palavras de Cortázar:
Quando faço política, faço política, e quando faço
literatura, faço literatura, mesmo quando faço
literatura com conteúdo político [...] estou fazendo
literatura. Tento, simplesmente, pôr o veículo
literário, não direi a serviço, mas numa direção
que, considero, possa ser útil politicamente.
Assim, o referencial em Satarsa é velado pelas imagens noturnas
provocadoras de horror de caça às ratas, cada vez mais complicadas pelos
artifícios que estas utilizam para se esconderem, como observamos neste
trecho da narrativa: “Ilia, Yarará
61
y los otros han sentido que las ratas
desplegaban nuevas estrategias, se volvían aún más peligrosas por invisibles y
agazapadas en refugios que antes no empleaban” (p. 444). E, pelo movimento
contrário, como no palíndromo, essas mesmas imagens denotam o controle
que o regime de ditadura militar demonstra ter sobre a cidade e seus
habitantes e, principalmente, sobre os fugitivos. As ratas funcionam como uma
alegoria da situação política argentina entre 1976 e 1983, anos críticos da
ditadura militar, onde imperava a violação dos direitos humanos. Cortázar alude
a esse período na seguinte passagem:
61
Supõe-se que o nome desses personagens são pseudônimos, nomes de proteção e
dissimulação utilizados fundamentalmente pela militância política trotskistas, os quais
registraram uma maior quantidade de pseudônimos.
147
— Cuestión de no seguirle el tren cuando la
empieza con Satarsa y la sal y esas cosas, total
no cambia nada, él es siempre el mejor cazador.
Ochenta y dos — dice Ilia —. le batió el récord
a Juan Lopes, que andaba en las setenta y
ocho. ( p. 448 )
Ainda nessa mesma página, uma referência direta ao resultado aterrador
que a ditadura militar impunha: falta de liberdade, morte e mutilação: “Que la
gente de Calagasta no se anima a ir demasiado lejos porque se acuerdan de
los cuentos, del esqueleto del viejo Millán o de la mano de Laurita”(p. 448).
Além de termos um final totalmente frustrante e violento, onde se pode
observar a morte de todos os fugitivos, inclusive a de Lozano que resistiu até o
fim, mas não ao “blando estampido de la escopeta ahogado por la crepitación
de la ráfaga, las malezas aplastándose bajo el peso de Lozano que cae de
boca entre las espinas que se le hunden en la cara, en los ojos abiertos” (p.
453).
Satarsa é assim constituído como uma via de mão dupla, onde a visão
especular de um palíndromo, tautológico e aparentemente vazio de
significação, ganha força em presença de um outro de cunho religioso: atale,
demoníaco Cain, o me delata. Este palíndromo reforça a duplicidade bíblica,
por um lado, em ressaltar a virtude e castigar os pecadores, na qual Caim
representa o mal e Abel o bem, levando o leitor a pensar que os fugitivos estão
para Abel assim como as forças militares estão para Caim.
Desta forma, os palíndromos vão criando no texto a impressão do falso e
verdadeiro, da mentira e da verdade como um espelho. Gustavo Lespada
explica o sentido especular de Satarsa a partir de uma epígrafe de Pierre
Macherey, para quem o espelho torna-se expressivo pelo que reflete e também
pelo que não reflete. E o que não se reflete no conto é o suporte referencial
utilizado pelo autor, o qual encontra-se disfarçado dentro da metáfora das ratas
gigantes. É ainda Lespada, em obra anteriormente citada, a afirmar que “Lo no
dicho de cada etapa histórica, los agujeros ideológicos encuentran su
correspondencia em los reflejos distorsionados como de espejos de feria,
refratários”.
148
Há, portanto, neste conto, um jogo de espelho proporcionado pelo jogo
verbal que mais esconde do que mostra a referência, mais difere que se
assemelha. Estamos distantes, pois, do espelho que tudo reproduz, isto é, da
mímesis de representação pelo fato de o jogo especular palindrômico destruir a
similitude causada pela aparente simetria existente entre perseguidos e
perseguidores.
Pode-se, então, perceber e concluir que o conto Satarsa se oferece ao
leitor como esse espelho que mente e diz a verdade. Pelo jogo de linguagem
visualizamos imagens que, embora veladas, são passíveis de re-conhecimento.
A verossimilhança é conservada no conto? Sim, na medida em que o leitor a
detecta através do suporte referencial. Há mímesis de produção? Também. No
momento em que observamos esse suporte referencial transformado pela
linguagem e atualizado pelo leitor. Satarsa é justo esse espelho que o narrador
mostra-esconde e, por mais que nós, leitores, o atualizemos, ainda assim,
guardará a sombra de um recorte da vida argentina que só quem a viveu é
possível dissipar totalmente, ou não.
Em La Escuela de Noche (p. 454-69), estamos diante de dois
estudantes. Nito e o narrador, Toto, os quais tomam a iniciativa de entrar na
escola num sábado à noite, sem serem vistos, como se estivessem praticando
apenas uma aventura estudantil, após terem passado seis anos estudando
nela. Para surpresa dos dois, deparam-se com vários alunos e professores,
incluindo-se também o diretor, todos partícipes de uma festa supostamente
orgiática. Descobrem-nos e obrigam-nos, em seguida, a participarem dos
rituais os mais violentos e estranhos para estarem acontecendo justo dentro da
escola. Todos se encontram travestidos e somente os dois destoam do grupo.
Toto, o narrador, percebe, após ser obrigado a participar de cenas brutais e de
atentado ao pudor, que se trata de um grupo, cuja ordem fascista a obedecer é
transformada em ato de recitação: “del orden emana la fuerza, y da fuerza
emana el ordem. Obedece para mandar, y manda para obedecer”(p. 467). Por
fim, consegue fugir, mas se perde de Nito, o qual, percebe depois, alia-se ao
grupo, impedindo-o de denunciar o diretor e seus discípulos, pois, caso isto
149
viesse a acontecer, ele estaria arrependido por toda a vida, “si es que estás
vivo”(p. 468).
Assim tomado, o conto estaria a relatar apenas fatos comuns de
rebeldia estudantil em uma escola. Entretanto, o leitor começa a tomar
consciência de que algo a mais há por trás dessa suposta rebeldia ao conhecer
as palavras de ordem recitadas pelo grupo. Conforme estudo de Alazraki
(1994:159), a partir desse ponto, o conto se transforma em um espelho
côncavo da ordem ditatorial que governava o país. Para este autor, Cortázar
conseguiu desenhar, neste conto, o contexto mais negro da história argentina,
acrescentando que a sua lucidez em relação aos problemas políticos que
afligiam a América Latina faz com que os contos adquiram não somente o
tônus político, mas sobretudo humano. Tanto em Escuela de Noche quanto
em Satarsa, por exemplo, ele ratifica esta sua conclusão, mostrando que, em
ambos,
lo social está entendido no en términos políticos o
a través de un prisma ideológico en el que ciertas
ideas han sido refractadas para producir el relato.
Muy por el contrario, lo social está percibido desde
un humanismo tan poderoso que consigue hacerle
rezumar a la vida ( el trabajo y el juego, la rutina
colegial y la aventura) esa dimensión desde la que
es posible reconocer otra vez la vida y, sobre todo,
sus falsificaciones y aberraciones, sus
manipulaciones y oprobios, sus estafas y
violencias ( op. cit., p. 160).
Por sua vez, Nancy M. Kanson (1993:191), interpretando este conto,
também concorda com a opinião de Alazraki, e, embora considerando que
Cortázar tenha atingido a fusão desejada entre o estético-literário e o político-
ideológico, conclui sua análise deixando várias interrogações sem respostas
para que o leitor escolha o caminho crítico que desejar:
¿Vamos a elegir la evocación nostálgica de la
adolescencia? ¿Vamos a satisfacernos con la
lección aprendida de un pasado histórico cada vez
más remoto? ¿Vamos a despertarnos a la crisis
política de la actualidad? Y lo más inquietante,
¿Qué les estamos enseñando en “La escuela de
noche” a las futuras generaciones?
150
E continuamos a interrogação, desta vez, dirigida à autora: se o conto
não tem caráter panfletário como sustenta, por que a preocupação em saber o
que estamos ensinando às futuras gerações? Se todos os críticos, em relação
a esse aspecto da obra de Cortázar ressaltam a sua perspectiva não
panfletária, por que as interrogações? Concluímos aqui que a crítica em geral
considera que Cortázar não tinha nenhuma intenção que sua obra e, em
particular, as obras que tratam do político-ideológico tivessem uma dimensão
pedagógica e formativa: não fabula, não prepara nenhuma moral final. No
entanto, expõe poeticamente os fatos de um momento político que se lhe
acerca, mesmo estando fisicamente distante. E os expõe de uma forma que
supera as expectativas de incitação a respostas, posto que acontecem e todos
sabem e sentem, embora muitos se encontrem como Mecha, personagem do
conto a seguir, imersos em um estado de coma inexplicável e profundamente
carregado de pesadelos e medos, mas com perspectivas de despertar.
Pesadillas (481-487) narra um período, previsivelmente datado (1978)
pela referência ao jogo de futebol
62
a que o pai de Mecha assiste em silêncio. A
protagonista Mecha encontra-se acometida por uma doença que os médicos
não conseguem explicar. Ela entra em coma inexplicável por várias semanas
seguidas. Em casa, o pai, Botto, está sempre ligado à programação esportiva
da televisão como que para suportar o sofrimento diante do quadro da filha.
Lauro, o irmão, a achar que ela piora sempre que ele está por perto. A mãe,
Luisa, em desespero diante da situação de incerteza dada pelos médicos.
Mecha, supõe-se, tem pesadelos, apesar da letargia na qual se afundou. O
médico a afirmar que seu despertar pode ocorrer a qualquer momento e todos
aguardam ansiosos e angustiados. Lauro sai e os pais imaginam que esteja
estudando, porém ele não retorna, para preocupação dos pais. Ouvem-se tiros
e disparos de metralhadoras no exato momento em que Mecha está
despertando do estado comatoso. Lauro desapareceu no dia em que Mecha
62
A Copa do Mundo de 1978 foi a 11ª Copa do Mundo. Disputada na Argentina, adquiriu um
tom de máscara feliz para encobrir o momento ditatorial que ainda era fortemente atuante.
Conforme artigo de Ana Broitman (et al), que se encontra na Revista Todo es Historia, de
março de 2001, p. 50-63, ela escreve: “durante el campeonato, tanto desde la televisión como
desde la radio se promovió el festejo callejero – para mostrar al mundo un clima de alegría
popular – y se emitieron mensajes en los que se desacreditaba la supuesta campaña
antiargentina en el exterior “(p. 57).
151
volta de um pesadelo inconsciente para entrar num outro pior, que é o
pesadelo de saber seu irmão desaparecido, de fazer parte de uma realidade
violenta e violada. Alazraki (1994:164) constata, analisando os contos de
Deshoras que
Si <<Escuela de noche>> es una metáfora de esa
Argentina traficada e aterrorizada por el
autoritarismo militar y <<Satarsa>> una
confrontación casi alegórica con el rostro de ese
poder, <<Pesadillas>> nos mete en su boca de
lobo.
Concordamos com o autor quando diz que Mecha dorme como dorme a
Argentina e a América Latina. Cortázar mostra, neste conto, o de dentro pra
fora, o comportamento dócil e aceitante da realidade que, fora, incutia-lhe
medo, horror. O cárcere familiar é menos doloroso que o público, a tortura é
mais suportável. Quem se arrisca a sair fora, como Lauro, corre o risco de
jamais retornar. E o sair fora aqui, entendemos, é não aceitar as condições
impostas pelo poder, é ir contra o poder ditatorial instalado. Lauro era um
estudante que os pais consideravam estar seguro na universidade. Os dois
irmãos encontram-se em pólos diferentes: Mecha, adormecida; Lauro, desperto
para a realidade circundante, sentindo a necessidade de despertar a própria
irmã, como vemos neste trecho em que ele interpela a irmã a tomar uma
atitude:
Mecha, idiota, hermanita, hermanita, hasta cuándo
nos vas a estar tomando el pelo, loca de mierda,
pajarraca, mandá esa comedia al diablo y vení
que tengo tanto que contarte, hermanita, no sabés
nada de lo que pasa pero lo mismo te lo voy a
contar, Mecha, porque no entendés nada te lo voy
a contar ( p. 485)
Dentro do mundo das possibilidades criado por Cortázar, o que nunca foi
pode ser e o que consideramos como irrealidade em sua ficção não é
propriamente o fantástico, não é o inverossímil. O que nunca foi e pode ser é a
realidade. Se é verdade que lemos no termo ficção a construção de mundo, ele
toma um mundo já criado para recriá-lo na sua dureza cotidiana. Toda a
realidade que circunda o ser humano está impregnando a ficção cortazariana.
Pensando hegelianamente, se o homem ficcional pouco ou nada difere do
152
homem real, Cortázar conseguiu, com a entrada do elemento político-
ideológico em sua narrativa, atingir esse equilíbrio: não ser o que é e ser o que
não é. É o caso de Mecha, enganando a família com seu estado letárgico para
se resguardar de uma realidade que não lhe agradava; é também o caso de
Toto que, para permanecer vivo, é obrigado a se calar.
2.5.2 A REALIDADE NOS CONTOS
Aqui temos reunida a produção cortazariana da década de setenta e
início de oitenta, cuja envergadura estético-literária agrega – ou congrega – o
sócio-histórico-político-ideológico. Dentro destes contos, partimos da noção de
representação da realidade com a intenção de constatarmos um ponto central
que reúne o Libro de Manuel e todos os demais contos acima analisados:
estamos diante de textos onde, em se tratando da obra de Cortázar como um
todo, o real invade o fantástico, tornando-o mais fantástico ainda. Os elementos
do mundo real incorporam-se aos elementos fantasiosos para que o estético
seja preservado e para preservar sobretudo a sua condição ficcional, como
deseja o autor. Seguindo o pensamento de Ortega (1986:185), os elementos
do fantástico penetram nos relatos cortazarianos para aprofundar, questionar, e
não se opor, à realidade empírica. Para Ortega, “lo real y irreal se conjugan,
creando una nueva realidad supra-empírica que está regida por una causalidad
que se aplica a fenómenos de caráter irracional”. Os elementos do fantástico
contribuem para que o fato real seja mascarado pela verdade da ficção.
Este ponto central nos remete a Booth (1980:72), quando se refere à
discriminação dos diversos realismos. Ele afirma, na esteira de Humphrey, que
“os padrões distintivos das obras individuais são estratagemas para dar forma
ao que, na realidade, é informe”. Para ele, a visão do real na literatura do
século XX adquiriu uma nova postura e o tema ganhou uma feição bastante
controversa, pois já não se concebe um realismo, mas vários; uma realidade,
mas graus variados e possíveis de realidades, isto é, à realidade ficcional não
se obriga mais a representar ou espelhar o mundo tal qual este se apresente,
153
semelhantemente a ele. É ainda Booth a afirmar que a realidade ficcional opera
sempre dentro de um artifício mais lato, sendo a verossimilhança conseguida
tanto através dos elementos naturais quanto dos artificiais, pela “diferenciação
e variação” e não apenas pela semelhança.
Voltando à questão dos elementos naturais e artificiais de Booth,
podemos depreender que, no texto literário, especificamente nos contos aqui
analisados, os elementos naturais fazem parte do suporte referencial que,
unindo-se aos elementos artificiais ou imaginados (elementos fantásticos, no
caso), dão-lhe a seguridade ficcional, responsável pela verdade do texto,
fazendo que a verdade literária predomine em detrimento da verdade histórica.
De
certa forma, ocorre uma negatividade ou velação do referencial, e o
verossímil só é percebido se o leitor puder identificar nele, além do
estranhamento, o suporte referencial. Assim, nos textos analisados estamos
diante da representação de uma realidade um tanto quanto maniqueísta, onde
o autor pratica a política dos contrários – sociedade/estado, bem/mal – sem
fornecer ao leitor a possibilidade de imaginar uma saída positiva para os
problemas neles configurados, seja favorável ao lado do bem, ou do lado do
mal. Acreditamos que as próprias deficiências de Cortázar, em sua formação
política tardia, obrigam-no a expor qualquer problema no maniqueísmo, sem
nunca encontrar uma síntese superadora dos contrários.
O que há nos contos podemos configurar dentro do pensamento de
Costa Lima como mímesis de produção. Lima (2000:151) diz que, ao nomear
mímesis de produção e mímesis de representação não está, de forma alguma,
fazendo uma oposição, mas antes uma distinção. Para ele, “a não-oposição
das duas espécies indica o imbricamento de ambas na realidade”. Um tipo de
mímesis que ao relacionar-se paradoxalmente com a realidade, posto que dela
“se aproxima e se alimenta”, confere-lhe um novo status, abrindo para nós,
leitores, uma situação de mundo que a transcende. Segundo Costa Lima,
pela mímesis participamos não só do inconsciente
de nossa própria época, mas também no
aproximamos do inconsciente de épocas
passadas. [...]. É pela estranheza, o que não se
deixa domar pelo encontro de semelhanças, que
mais nos mostramos criaturas de um certo
154
momento, ao mesmo tempo em que é por ela que
menos nos confundimos com nosso momento. (p.
307)
A relação mimética com a realidade é paradoxal. No entanto, a mímesis
de produção requer um receptor que esteja apto a perceber e a recuperar, no
texto, o que Costa Lima chama de “situação de mundo” criador, que apresenta
um vínculo com a realidade, mas que não necessariamente assemelha-se a
ele. Para melhor aclarar seu pensamento, cita Felman (p.400), cuja impressão
dos grandes textos literários é que estes devem prolongar a ilusão especular e
ao mesmo tempo incitar o leitor a rompê-la. Não significa dizer que, rompendo
com a ilusão especular, terminemos por comprometer as relações de
verossimilhança e mímesis do texto. Ao contrário, reforçam-se, através dos
efeitos causados pelo jogo que
a linguagem promove entre os elementos
naturais e artificiais. São esses efeitos os responsáveis pela formação da
“verdade do texto”, à medida que propõe uma forma supra de re-apresentação
da realidade. Saúl Yurkievich (2004: p. 23) considera que o
real mediado pelo
fantástico na obra cortazariana produz uma mímesis que oculta ou camufla o
fato relatado, declarando que Cortázar
Se apoya en la mimesis realista, para provocar
sutiles fallas o fisuras que dejan entrever el
reverso de lo real razonable, perturbaciones
inexplicables que descolocan mentalmente,
irreductibles desarreglos que permiten vislumbrar
fuerzas ocultas, insospechadas dimensiones.
Criar verossimilhança é uma “vocação da obra”, como explica Costa
Lima. Ele nos propõe, dentro de um concepção de mímesis de produção, uma
visão da realidade amplificada e passível de ser modificada. Em suma, permite
uma transgressão do “horizonte de expectativas” do receptor, posto que se dá
por imagens as quais tornam disformes as referências. Se pela mímesis
somos partícipes de uma época, diríamos que Cortázar demonstrou isso nos
contos analisados: tomou os fatos e os fez ressurgir, dentro dos padrões que
ele próprio traçou para o gênero conto, manteve a forma, mas,
conteudisticamente, desentranhando-os da cotidianidade, dando-lhes uma
nova configuração, onde vislumbramos essa supra-realidade formada agora,
155
não só pelos elementos fantásticos, mas, com a mesma intensidade, pelos
elementos políticos.
Essa supra-realidade cortazariana nos visita nestes contos via ideologia,
no sentido dado por Umberto Eco (1979:83), como “tomada de posição
filosófica, política, estética, etc. em face da realidade”. Cortázar nos repassa
por esta via um conceito de nação bastante amplo – América Latina – fazendo
circular através do texto literário, mais do gênero conto, toda a densa carga
política do momento e o quanto de sofrimento estava passando a sua gente. E
a maneira que ele encontra para fazer chegar ao mundo tamanha crueldade é
colocando sua escritura-em-ação. E, embora se mantenha em um plano
literário e não deixe claro que os seus textos possam modificar o mundo nem
criar uma visão mais consciente nos leitores, Cortázar (2001:207) crê na
realidade como parte integrante desse mundo de ficção, isto é, acredita que a
“literatura é sempre expressão da realidade, por mais imaginária que seja”. E,
mesmo não apresentando a visão pedagógica de boa parte da esquerda de
sua época, podemos ler afirmações como a de Tomás Borge (2004:13), como
leitor do Libro de Manuel, que foi para ele um estímulo tanto literário quanto
político, afirmando em seguida que
La literatura de Cortázar, tanto fuera como dentro
de la cárcel, es un llamado a la imaginación; pero
nunca, en ningun caso fue para mi fuga, evasión
de mi deber y de mi conciencia. Nada más
excitante para la imaginación que un próximo
proyecto revolucionario. La imaginación, la ficción,
apenas vislumbran, apenas esbozan la realidad
que concreta una revolución.
Assim sendo, e diante de algumas indicações do Cortázar crítico e
sensível aos problemas humanos, dá sim, para sentirmos o caráter intencional
e não “inocentemente literário” de sua escritura da década de setenta, o seu
direcionamento temático envolvendo um contexto delimitado. Vejamos pelo
menos três afirmações dele que nos leva a essa conclusão: a primeira, trata-se
da inserção deliberada de um contexto revolucionário dentro de um eixo de
156
escritura já afirmado como fantástico
63
; a segunda, a certeza de que sua obra
comportava “interrogações e uma série de possíveis aberturas que tocavam no
mais fundo da problemática existencial latino-americana”
64
, e a terceira, a
vontade de prosseguir o trabalho intelectual apesar dos obstáculos impostos
pelo terror e pelo fascismo operante
65
. Por acreditar que assim se faz ouvir, ele
subverte a função estético-literária de sua obra, colocando-se em risco pelo
acréscimo da função político-ideológica. Utiliza-se de seus mundos possíveis
para apresentar um mundo impossível e ab-surdo, entretanto real.
A realidade nos textos de Cortázar cruza com a ficção formando uma
tessitura discursiva que permite uma leitura de mão dupla, se o leitor tem
conhecimento do contexto no qual se insere a obra. Ao mesmo tempo em que
luta com a hidra, como Lucas, desenvolvendo um trabalho hercúleo para matar
o panfletário e pedagógico que possa haver em sua obra, apresenta-se como
um patriota poeticamente nostálgico: “del país me queda un olor de acequias
mendoncinas”, (p. 232) que desenvolve um patriotismo hiperbólico, o qual
chama de patrioterismo: “y argentino hasta la muerte” (p. 233) , o qual
desemboca num pathos, numa dor de quem, estando ausente, quase nada
pode fazer, no patiotismo: “Lucas comprende que no hay nada que hacer, que
ya está de nuevo en el pátio, que la tarjeta postal sigue clavada para siempre al
borde del espejo del tiempo, pintada a mano con su franja de palomitas, con su
leve borde negro”.
63
Cf. Para Solentiname, 2001, p. 144.
64
Cf. Carta a S. Sosnowski (a propósito de uma entrevista a David Viñas, 2001, p. 55.
65
Cf. Comunicação ao Fórum de Torun, Polônia, 2001, p. 167.
157
3ª REVOLUÇÃO
OS LABIRINTOS EXISTENCIAIS
Y cada día que pasa me parece más lógico y más necesario que vayamos a la
literatura – seamos autores o lectores – como se va a los encuentros más
esenciales de la existencia, como se va al amor y a veces a la muerte,
sabiendo que forman parte indisoluble de un todo, y que un libro empieza y
termina mucho antes y mucho después de su primera y última palabra,
(Julio Cortázar – Realidad y Literatura en América Latina.
In. Obra Crítica, vol. 3, p. 305-21)
158
3. OS LABIRINTOS EXISTENCIAIS
Michel Maffesoli (2001) nos coloca frente a uma problemática que
percebemos ser bastante presente nos contos de Cortázar. Trata-se do
sentimento trágico-lúdico que povoa a cotidianidade da vida moderna. Para
Maffesoli, a sensibilidade trágica torna o tempo quase imóvel, lentifica-o e faz
com que pensemos paradoxalmente e estejamos sempre em contato com o já
acontecido. Em Julio Cortázar permanece em suas obras analisadas essa
concepção de repetitividade, seja de temas, de personagens, de espaço,
enquadrando-se no que Maffesoli denomina de “condição cíclica do mundo”,
isto é, estamos sempre com a impressão de já termos vivido determinados
acontecimentos: a vida, com todas as suas coisas cotidianas, o mundo se
repete por nos repetirmos sem cessar.
Essa concepção trágico-lúdica que se encontra nos contos de Cortázar
nos coloca frente a um pensamento de vida carregado de morte, num jogo
paradoxal e tenso que fica em aberto no final da maioria dos contos, senão em
todos. É o caso do livro Octaedro, onde sete dos oito contos que o compõem
apresentam um jogo de vida e morte que se complementa sem nunca se
excluír, que acontece, mas nunca se resolve. Neles nos confrontamos com
tempo e espaço que se separam em ramificações divergentes em um dado
momento para, no final, atingirem o mais alto grau da paradoxalidade onde vida
e morte envolvidos por uma ambientação oportuna favorece para que a
cotidianidade entre em suspensão diante das situações estranhas criadas pelo
autor.
Os labirintos existenciais cortazarianos estendem-se em múltiplas
direções, oferece múltiplas saídas, mas não permite atingi-las. São jogos-
labirínticos que se distribuem em pares antagônicos, cujas intenções dentro da
construção narrativa complexa que os dispõe não são de desorientar o leitor.
Ao contrário, é encaminhá-lo para um ponto de confluência dos sentidos, com
159
saída para a vida ou para a morte, sendo que qualquer das saídas oferece uma
sobrecarga de profunda humanidade das personagens em questão, as quais
entram no jogo para solucionar seus problemas, sem no entanto conseguir.
André Peyronie
66
nos fala de dois tipos de labirintos: um de caminho único e o
de múltiplas direções, que se nos mostra em suas possibilidades de escolha,
em encruzilhadas. Para ele,
num texto literário, ele pode aparecer como um
tema explícito, mas pode também formar uma
estrutura latente (pertinente em maior ou menor
grau ). [...]. Ele possui na linguagem corrente, um
valor negativo, mas, na linguagem formal, lembra-
se de sua origem sagrada e assume facilmente
uma acepção positiva.
O problema do labirinto cortazariano é que ele quebra o seu arquétipo
inicialmente divino de oferecer como saída apenas um caminho. Continua com
a idéia de transformação que lhe é inerente, mas, quando o leitor imagina-se
indo ao centro, ou saindo dele, o percurso tem que ser refeito, uma vez que
novos atalhos são descobertos, sejam eles puramente lingüísticos, genéricos
ou temáticos
. A literatura cortazariana como um todo e, em particular, as obras
em estudo, coloca-se ao leitor como labiríntica e, pelos seus jogos, como
possibilidade de escolha, numa encruzilhada onde o não-dito pode ser a
grande chave. Há nela o problema que Peyronie descreve
do “um e do
múltiplo”, da vida e da morte, do bem e do mal. Há nela diversos caminhos a
percorrer, oferece-se como pontos de resoluções ao leitor e cabe a ele mesmo
encontrar a saída ou dentro dela permanecer. A intenção aqui é sair desse
labirinto narrativo como a Ariadne, a que dá o fio para uma nova e possível
interpretação que torne outras possíveis.
66
Cf. Dicionário de Mitos Literários, 1998, p. 556.
160
3.1 O AMOR E A MORTE DOS CORPOS
O corpo existe como parte de um mundo que nele penetra re-ativando
todo o seu interior que se deixa expor em forma de emoções as mais diversas,
nas mais variadas épocas. Edgar Morin (1988:11) nos explica que a crise
cultural que se instaurou na década de 60 fez ressurgir “os grandes
Recalcados”, dos quais o último foi a morte. E, pela forma como foi tratada, fez
aparecer uma nova espécie de “tanatófagos”, na qual incluímos aqui Cortázar,
pelo modo como ressignificou o tema em seus contos, entrelaçando-o à vida e
a tudo que lhe é inerente. O amor, a angústia, a certeza e o medo da morte faz
com que corramos para a vida como um caminho de salvação. Planells
(1979:79-80), estudioso de Cortázar, nos diz que em seus contos não
conseguimos encontrar um sentimento amoroso verdadeiramente intenso. Para
ele,
en ninguno de esos variados textos es posible
encontrar un sentimiento amoroso intenso. El
amor que presenta Cortázar está siempre en
función de la carne o del arte; la crítica ya ha
señalado que en su obra ‘no se encuentra el
motivo del amor, que suele ser una tabla de
salvación para los personajes de muchos autores.’
Aparecen, sí, el deseo sexual desprovisto de
ternura, o bien el sentimiento
intelectualizado
carente de profundidad afectiva, como resultado
de la soledad y la incomunicación. Los personajes
de Cortázar son incapaces de amar, sólo pueden
desear.
E aqui acrescento ao pensamento de Planells: se o amor em Cortázar
está sempre em função da carne e da arte, nos contos comprometidos está em
função do político-ideológico. De modo que o corpo na narrativa cortazariana
nunca se encontra em repouso, está sempre conflitivo, insatisfeito, incompleto,
correndo riscos, tentando eternizar o instante presente pelo jogo da vida, da
sedução e, no caso de muitos dos contos analisados, pelo desejo de uma
realidade melhor ou pela fuga da realidade e, por fim, dá-se a completa
insatisfação. Enfim, geralmente acaba por bater de frente com a morte.
161
Em Un tal Lucas (p. 282), o narrador afirma que, após os cinqüenta
anos, começamos a morrer pouco a pouco, em outras mortes, como na
lembraça dos antepassados, na própria morte dos contemporâneos e em cada
vez que adoece. Seus contemporâneos vão, cada um, morrendo
sucessivamente, e ele, por seis vezes vai burlando a morte, apesar de cada
vez sair dessa burla menos vivo. Morin (1988:199), citando Agostinho e a idéia
de que o homem morre desde o seu nascimento, declara que o homem “morre
em cada instante, não só porque se aproxima da morte, mas também porque
em cada instante traz consigo a corrupção e a podridão”. Significa dizer que, na
impossibilidade do narrador suprimir a morte, vai adiando-a já por seis vezes,
ainda que o corpo esteja corruptível e putrefato pela doença, ainda que a
corrupção e a podridão humana também o faça morrer um pouco. Um caso
desses é o conto Liliana Llorando (p. 43-49), de Octaedro. O corpo do
narrador deveria estar em repouso, posto que se encontra doente, em um leito
de hospital. No entanto, burla o momento presente para eternizá-lo num futuro
ainda por vir, sem perspectiva de nele estar. Neste conto, a morte é
considerada dentro da vida, não é algo que lhe é externo, uma vez que a vida,
convertida em seu contrário de forma consciente, transporta o narrador para
um futuro vislumbrado. Ele, vendo-se morto, vê surgir para a mulher a chance
de uma nova vida nos braços de seu melhor amigo. O que o protagonista
imagina parece servir-lhe como catarse: recupera a saúde. E isso se dá pelas
conversas com o médico e pela escrita salvadora:
Che, y decile a la enfermera que no me joda
cuando escribo, es lo único que me hace olvidar el
dolor aparte de tu eminente farmacopea, claro.
[...]; me veo desde las palabras como se fuera
otro, puedo pensar cualquier cosa siempre que
enseguida lo escriba, deformación profesional o
algo que se empieza a ablandar en las meninges.
(p. 43)
Como num filme, o narrador vai detalhando toda a vivência de cada
membro da família, especialmente a de sua mulher Liliana, até perceber que se
curou e o que havia escrito tinha acontecido de fato, tendo que se convencer
162
disso. Aqui a morte se concretiza no plano da escrita e, no plano da realidade,
com o fim de seu casamento.
No mesmo livro, o conto Los pasos en las huellas (p. 50-64) traz uma
história, a de Jorge Fraga, dentro de outra história, a de Cláudio Romero. O
primeiro biografa a vida do segundo já morto. Com a tal biografia de Cláudio
Romero, escritor muito lido na Argentina, com prestígio maior até que Carriego
e Alfonsina Storni, Fraga torna-se conhecido e prestigiado, atingindo grande
êxito editorial, que era o desejado. Entretanto, nesse tempo de contato com a
história de Cláudio Romero, ele passa por uma despersonalização que o deixa
angustiado: acredita e refuta ao mesmo tempo a idéia de estar se deixando
conduzir por algo superior que o leva para o caminho não verdadeiro da
história. Para que ele se livre dessa suposta possessão, torna-se necessário
abrir mão de sua ascensão como escritor. Esse passo ele deixa em aberto
para que o leitor imagine a decisão tomada por ele. Temos, portanto, uma
morte a despersonificar uma vida, a tomar posse de uma vida, cuja decisão
futura imprecisa-se no instantâneo do presente.
Em Manuscrito hallado en un bolsillo (p. 65-73) nos deparamos com
um ritual amoroso que se passa em um metrô, onde o protagonista estabelece
regras para um jogo de busca da felicidade e escolhe uma moça que aceita
segui-las. Antes de se aproximar da moça imagina vários nomes para ela que
sempre via pelo reflexo do vidro da janela e nunca diretamente. O metrô
funciona neste conto como o espaço do imprevisível, do obscurantismo, pois
nada nele é garantia do cumprimento de tais regras. Temos, em vez do
encontro com a felicidade, o encontro com a fatalidade. Ana, Paula, Magrit,
Ofélia, Marie-Claude, são faces de uma única mulher que ele multiplica e
visualiza pelo reflexo num jogo de adivinhação e suspense. O metrô parisiense
que ele transforma numa gigante árvore mondrianesca, num labirinto que
comporta jogo de sedução amorosa e jogo do seu próprio ato de escrever,
suas rupturas e malabarismos com a linguagem, a sua tentativa de tomar o
melhor ângulo, a escolha da palavra certa para o jogo certo. A velha de verde,
o homem magro, um negro, todos personificando a morte, todos fazendo parte
desse mundo subterrâneo e de subterfúgios metonímicos para melhor
163
expressar as regras de um jogo narrativo que, para o autor-narrador, precisam
ser quebradas, distendidas e até adivinhadas, enquanto não chega ao final da
estação, ao final do conto, à morte.
No conto Ahí, pero dónde, cómo (p.81-88), o narrador faz uma
evocação, reproduzindo oniricamente a morte de seu amigo Paco. O autor-
narrador convoca o leitor a responder a suas indagações sobre um sonho que
volta insistentemente. Estamos diante de um conto dentro de outro: um, que é
o sonho, outro, realidade. No primeiro temos o sonho com Alfredo e Paco,
ambos já mortos, mas que permanecem vivos em suas lembranças,
principalmente Paco, que para ele continua vivo. A realidade vem com a
necessidade de escrever esse sonho que se repete e de saber se com outras
pessoas acontece o mesmo.
Faz parte também da realidade o seu cotidiano presente, os encontros
com tradutores e redatores, o tempo passado, “trinta e um anos”, a difícil tarefa
de transpor o sonho para as palavras, de vencer o abismo quase intransponível
que separa a fantasia da realidade. E mesmo sabendo escrever sobre o
inexplicável, sabe que é impossível esquecer seu amigo Paco, que é
impossível qualquer um esquecer seus mortos, ainda mais aqueles mais
queridos. Nesse caso, a dor sentida pela perda do amigo encontra eco no
pensamento de Morin (idem, p. 31), para quem
a dor provocada por uma morte só existe se a
individualidade do morto tiver sido presente e
reconhecida: quanto mais o morto for chegado,
íntimo, familiar, amado ou respeitado, isto é <<
único >>, mais a dor é violenta.
A escrita funciona para o autor-narrador como uma espécie de
aplacamento da dor causada por essa ausência-presença, um sonho acordado,
uma zona superposta que, na sua cotidianidade, não o abandona, mas sublima
a dor da perda pelo sonho. Na verdade temos planos superpostos ou
sobrepostos. Há um convite ao leitor para que perceba o ato involuntário a que
está submetido que é, pelo sonho, sentir a presença viva do amigo morto após
trinta e um anos. A zona do sonho é o espaço da possibilidade da transposição
164
para o real, zona esta que será compreendida mais adiante, onde, vivo e
morto, o narrador e Paco se encontram para celebrar e questionar uma vida
que não mais se revitaliza:
¿Por qué vivís si te hás enfermado otra vez. Si vas
a morirte otra vez? Y cuando te mueras, Paco, ¿
qué va a pasar entre nosotros dos? ¿Voy a saber
que te has muerto, voy a soñar, puesto que el
sueño es la única zona donde puedo verte, que te
enterramos de nuevo? (p. 85)
Em Lugar llamado Kindberg (p. 89-97) delineia-se um surpreendente
relacionamento entre uma jovem chilena, Lina, que está percorrendo a Europa
e pega carona com o protagonista, Marcelo, que é corretor de materiais pré-
fabricados, numa de suas viagens de trabalho. Para ele, Lina ainda é uma
menina, despertando-lhe instintos paternais. Após o jantar e hospedados no
mesmo hotel, dividindo o mesmo quarto, o instinto paternal de Marcelo se
transforma em instinto sexual e tem com Lina uma noite de amor. No dia
seguinte, ela quer seguir viagem com ele, embora seu itinerário seja diferente.
Idéia logo descartada por Marcelo que a deixa em um grande cruzamento,
seguindo, cada um o seu destino: ela, o inicial; ele, o fatal. Adolescência e
maturidade confrontam-se. O mundo de liberdade que Lina pretende, Marcelo
nunca conseguiu desfrutar. A frustração não o deixa ser atingido pelo amor de
Lina que funcionaria como válvula de escape para a recuperação do tempo
perdido. Entretanto, ele prefere seguir covardemente com o estilo de vida que
escolheu e encontra uma saída: a morte.
Em Las fases de Severo (p.98-105) é narrada a visita de quatro
amigos (Bebe Pessoa, Carlos, Inácio e o narrador)
a um quinto para
testemunharem as curiosas transformações pelas quais este passa, antes da
hora de dormir. Este quinto amigo é Severo, trabalhador de um escritório, antes
de dormir, passa por seis fases estranhas: a fase do suor, dos saltos, das
traças, dos números, dos relógios e, finalmente, a do sono. Cada fase é
presenciada pelos companheiros de trabalho, pelos parentes e por uma mulher
de cara vermelha, provavelmente, também parenta, ou personificando a morte.
As fases vão se desenvolvendo e, em cada uma delas, todos os que as
165
presenciam são afetados por elas, direta ou indiretamente. Em toda a história o
narrador não se refere à família de Severo pelo nome. Num tratamento
impessoal, ele se reporta ao filho mais velho de Severo, à mulher de Severo, à
irmã de Severo, aos irmãos de Severo, ao filho mais moço de Severo.
Todas as fases de passagem de Severo faz retomar o pensamento de
Herbert Marcuse (1998:202), para quem
O instinto de morte opera segundo o princípio do
nirvana: tende para aquele estado de gratificação
constante em que não se sente tensão alguma –
um estado sem carência. Essa tendência do
instinto implica que as suas manifestações
destrutivas seriam reduzidas ao mínimo, à medida
que se aproximasse de tal estado.
Completando o pensamento de Marcuse, Morin (1988:210) nos
oferece a possibilidade de pensar que Severo está passando por uma das vias
do êxtase, que são muitas. Trata-se aqui da via da “rarefacção da vida”, onde o
ser em questão atinge a ascese através de uma mortificação hipnótica, muda.
Severo passa por diversas provas, calado, até aceitar e entrar para o reino
dos mortos. Tais provas são insólitas e realizadas em presença de
expectadores de um ritual fúnebre, onde vêem o moribundo definhando a cada
fase concluída, da mais difícil para a mais fácil. Cada fase é esperada
passivamente por todos que, de certa forma, ajudam-no, com seus silêncios, a
suportar a proximidade delirante da hora inevitável.
Em Cuello de gatito negro (p. 106-16 ), o protagonista, Lucho,
conhece uma mulher negra, “uma luvinha preta”, no metrô de Paris. Após
percorrerem oito estações, vai até o apartamento dela, protagonizando uma
história com final trágico. O narrador conta todos os incidentes pelos quais
passam o casal no apartamento dela, Dina: ela e Lucho descem na estação
Corentin Celton e se dirigem a um café, mas ela sugere, mostrando a janela do
apartamento, que tomem um café em casa, onde conta toda a sua história de
psicopata sexual que depois de fazer amor com Lucho puxa-lhe o sexo para
impedi-lo de levantar-se e acender a luz. Após uma série de embates sado-
masoquistas, sem conseguir se livrar dela, ele aperta o pescoço de Dina “como
166
se apertasse o pescoço de um gatinho preto” e a joga para trás. Sai nu para
rua, cheio de sangue, quando o prédio começa a acordar. Ele tenta em vão que
Dina abra a porta, mas não consegue e se desespera porque vão se separar e
ela vai procurar outra luva, vai arranhar outro cara.
Nesses contos, o amor e a morte caminham de forma que o último
sempre vence. E mesmo o ato de morrer se configurando em cada conto de
maneira diferente – término da existência, suicídio, homicídio, destruição, ruína
ou acidentalmente – ele está lá, presente, ainda que do jeito cortazariano,
sorrateiramente irônico e contraditório. O amor, nem o que se dispõe a
princípio a capturar o objeto amoroso, a subjugá-lo, esse está longe de ser uma
das realizações dos personagens criados por Cortázar. O que predomina é um
sentimento excessivamente violento, um desejo frustrado, um sofrimento ao
qual os personagens se submetem ou são submetidos sem nenhuma
resistência aparente. Amor e morte se entrelaçam à vida nesses contos através
do desejo de uma vida plena para a esposa junto a outro, após sua morte, em
Liliana Llorando, do resgate da individualidade em Los Pasos em las
Huellas, do jogo de sedução em Manuscrito hallado en un Bolsillo. Em
síntese, o amor nos contos de Octaedro representa as relações familiares
complexas e a morte a única saída delas.
3.2 A MORTE UTÓPICA
Em Alguien que Anda por Ahí e Deshoras existe uma predominância
temática, segundo a visão de Frederic Jameson (1985:113), da morte como
tempo transfigurado da utopia revolucionária, isto é, estamos em presença de
um tipo de morte não só do ponto de vista pessoal, mas também político e
histórico, uma morte onde os corpos podem ou não aparecerem. Mais
claramente, desde Libro de Manuel, passando pelos contos analisados no
segundo capítulo, percebemos uma narrativa recheada de desaparecidos, de
167
mortes por torturas, de persistência revolucionária apesar do fatídico fim, de
gestos individuais e grupais de esperança de um mundo melhor pela
revolução. O destemor revolucionário faz que sigam de encontro a um futuro
impossível, barrado pelas forças contra-revolucionárias. Personagens reais –
Guevara, Fidel, Cardenal e o próprio Cortázar – juntam-se a personagens
supostamente fictíciais – Lozano, os camponeses de Solentiname, Jacobo,
Jiménez, Estévez, Toto, Lauro, Mecha e tantos outros inominados – para
formarem o agrupamento dos “cidadãos da Utopia” que, conforme Jameson
(Op. cit., p. 114),
Ainda enquanto mortais, conhecerão vida eterna,
e esta imortal promessa, estas insinuações
intensas, apenas indistintamente perceptíveis, do
triunfo sobre a morte estão entre os símbolos
máximos da esperança, distorcidos em sua forma
religiosa de além-túmulo, e agora recuperados,
para nós, com toda a força da exaltação da
revolução secular.
Com Alguien que Anda por Ahí fazemos uma analogia direta à Triple
A
67
Argentina – Alianza Anticomunista Argentina – um grupo paramilitar que
iniciou uma violenta repressão a partir da morte de Perón. Por ocasião de seu
aparecimento, o livro foi prontamente proibido na Argentina, por tratar de
problemas ligados ao momento político do país, expondo, ainda que de forma
literária, questões como desaparecimento de pessoas, torturas e destruições. E
a não disposição de Cortázar em retirar os contos que exigiam fossem cortados
para a publicação, vem ratificar o que aceitamos por verdade: Cortázar tinha
plena consciência de que escrevia para tocar nas feridas abertas pelo regime
ditatorial de seu país e da América Latina e, por mais que sua literatura
buscasse seguir o veio estético-literário, o seu posicionamento político-
ideológico ali estava, à flor do texto, como algo que precisava ser dito sem
interditos.
Entretanto, reconhecemos o seu caráter não doutrinário, pela forma
como são conduzidas as narrativas, deixando no leitor a sensação de um final
67
A Triple A teve início em 21 de novembro de 1973, responsável por mais ou menos 700
assassinatos
entre 1973-76, período em que governaram Perón e sua mulher, Isabel Perón,
servindo como base para a instauração do terrorismo ditatorial que se seguiu.
168
suspensivo e aberto à construção de um pensamento antropológico, para
continuarmos usando o raciocínio jamesoniano. Partindo da idéia de que
Cortázar deixa em aberto o final de suas narrativas, sem direcionar as
conclusões do leitor, embora exigindo sua participação ativa, podemos ainda
pensando com Jameson que, por mais que o pensamento utópico tenha no
momento a sua eficácia, torna-se perigoso pela impossibilidade de sua
realização plena.
Como crítico, acreditamos que seu papel de revolucionário utópico se
cumpriu com mais veemência. Basta nos reportarmos ao texto que ele escreve
em resposta à crítica que Danúbio Torres Fierro faz ao livro Alguien que Anda
pr Ahí, quando considera a leitura feita pela junta militar que o proibiu muito
melhor que a do crítico. E reporta-se ao conto Apocalipsis de Solentiname,
lançando ao leitor duas interrogações que convocam quem está de fora a
participar dos acontecimentos trágicos que envolvem a América Latina:
Que diferença há entre o horror da Argentina, do
Chile, do Uruguai e de tantos outros países?
(2001:142)
De que serve a “vida para a literatura, se quem
vive não quer olhar em torno, não quer ir a
Solentiname? (2001:142)
Estes dois questionamentos estão expressos no conto de uma forma
literária, ficcional, representados pelas figuras de um narrador, consciente dos
problemas e de Claudine, que não foi a Solentiname e, portanto, encontra-se
incapaz de entendê-la em sua profundidade, como a maioria dos latino-
americanos e como todos aqueles que fazem parte do poder ditatorial. Assim,
podemos sentir nestes contos que a morte é utilizada pelo autor como forma de
resistência do homem ao sistema, isto é, morrer aqui significa impor-se como
ser pensante e dono de seus próprios valores, o que funciona como uma
afronta para o opressor que se vê rejeitado em suas idéias. E esse
pensamento de Cortázar em relação à Solentiname de Cardenal, ainda que em
forma de conto, apresenta os mesmos sinais utópicos. Isso faz lembrar uma
conclusão de Gabriel Lomba Santiago (1998:40), para quem a imaginação
169
utópica é algo que faz parte da vida do homem e, no caso dos dois, a utopia
política. Segundo ele,
A manifestação mais popular da imaginação
utópica tem sido a utopia política, isto é, uma vida
baseada num novo arranjo político da sociedade,
firmada em novas estruturas sociais. A
imaginação utópica quer ainda que todos sejam
tratados igualmente, homens, mulheres e
crianças.
Para isso foi criada Solentiname. Por isso, a sua destruição. Podemos
afirmar, nesse caso específico, assim como no conto Satarsa, que a morte
utópica cortazariana representa a anti-utopia de uma realidade crivada por
pesadelos e privações dos direitos humanos. Cortázar mostra a realidade de
uma forma irônica e terrificante, sem oferecer sequer a chance de a pensarmos
positivamente. Na verdade, o que tem de desejo verdadeiramente utópico nas
obras de Cortázar em questão encontra-se em profundidade na visão
globalizada que delas formamos. Trata-se de um desejo utópico que se reflete
nas imagens que cria da América Latina e de seu povo como um todo, sem
individuações. Mais precisamente, ocorre algo semelhante ao que Martin Buber
(1987:17) pensa desse tipo de desejo: nada tem a ver com o instintivo nem
com a auto-satisfação:
Va unido a algo sobrepersonal que se comunica
com el alma, pero que no está condicionado por
ella. Lo que en el impera es el afán por lo justo,
que se experimenta en visión religiosa o filosófica,
a modo de revelación o idea, y que por su esencia
no puede realizarse en el individuo, sino sólo en la
comunidad humana.
Cortázar pensava utopicamente a morte dentro de uma realidade sofrida
como a da América Latina, não como um ativista político, um militante, mas
como alguém que, criticamente, toma uma atitude perante o mundo, perante os
homens que fazem parte desse mundo. O fato de escrever sobre os temas que
envolviam o momento histórico-político, de se revoltar contra a injustiça
praticada contra o povo da América Latina, não fazia dele um ativista. Cortázar,
ao que se sabe, não pertencia a nenhum partido político, nem os seus escritos
– os críticos e os literários – pretendiam repassar nenhum posicionamento em
170
favor de A ou B. Ele expunha posicionamentos dos personagens, que eram
seus também. Fazia-se duplo autoral, duplicava-se em seus textos,
contrapunha-se, para depois deixar ao leitor a tarefa de penetrar no seu
pensamento e retirar suas próprias conclusões e as exigia que fossem críticas.
3.3 OS PARADOXOS OBSESSIVOS
Nos contos analisados vimos que o amor, em todas as suas formas, está
associado à morte. O Dicionário dos Símbolos (1995:47) nos diz que o amor,
“quando pervertido, ao invés de ser o centro
unificador buscado, torna-se princípio de divisão e
morte. Sua perversão consiste em destruir o valor
do outro, numa tentativa egoísta de escravizá-lo
em lugar de enriquecer o outro e a si mesmo por
meio de uma doação recíproca e generosa que
faz com que ambos cresçam, tornando-se, ao
mesmo tempo, cada vez mais eles eles-próprios.
E assim Cortázar traça para seus personagens um perfil paradoxal que
os envolve num clima de tensão existencial complexo que se resolve quase
sempre pela morte. Para seus personagens, a vida é como a pensada por
Bertrand Russel (2003:27), não concebida como um “melodrama em que o
herói e a heroína sofrem incríveis desgraças, compensadas depois com um
final feliz”. Em geral, quer os contos tratem de uma relação amorosa, familiar
ou política, o destino final dos seus personagens sempre desemboca na
tragicidade. E, por mais que o jogo esteja ali para direcionar os caminhos, a
morte sempre acaba roubando a vida, pelo fato mesmo de os personagens não
terem objetivos definidos e, quando os têm, não conseguir levá-los adiante.
Diante dos problemas cotidianos o ser humano personagem de Cortázar se
fragiliza. Desse modo, deparamo-nos sempre com a morte, que o Dicionário
171
dos Símbolos (1995:621) nos coloca pelo seu lado destruidor da existência,
embora impossível de separar-se da vida:
Os místicos, de acordo com os médicos e os
psicólogos, notaram que em todo ser humano, em
todos os seus níveis de existência, coexistem a
morte e a vida, isto é, uma tensão entre duas
forças contrárias.
Em Alguien que Anda por Ahí, temos o conto Vientos Alísios ( p. 127-
33) que narra a história de um casal que completa vinte anos de casados, Vera
e Maurício e sempre fazem amor nessa data, embora isso já se tenha
transformado em um ato mecânico. O casal planeja uma comemoração,
separados para que cada um encontre um amante, mas acabam viajando para
o mesmo local. Nessa viagem ficam inventando jogos de sedução que nunca
dão certo, pelo fato de se encontrarem presos à cotidianidade. A tentativa de
revitalizarem-se no amor dos outros para salvarem o deles não logra resultado
positivo e, ao retornarem, cometem suicídio, tomando uma poção mágica.
En Nombre de Boby (p.148-54) ocorre uma relação de familia
triangular, um triângulo amoroso maternal diferente, de mãe, filho e tia. O
menino Boby, de oito anos, parece ser uma criança normal, mas tem grandes e
violentos pesadelos com a mãe o maltratando. A princípio, conta-lhe os
sonhos, porém a tia pede que não lhe conte, para poupá-la. Transforma-se na
principal confidente de Boby. Os pesadelos se sucedem, atormentando-o cada
vez mais, até que não consegue contar à tia o último que teve. Mas a tia supõe
que tenha a ver com o fim fatídico da mãe: um dia no jardim, transplantando
“almácigo”, pede a Boby que busque na cozinha uma faca grande. Entretanto
Boby volta com uma faca pequena e em crise de choro, pois a faca grande não
estava lá. Supostamente a mãe a tinha usado para se matar.
O conto La Barca o Nueva Visita a Venecia (p. 161-88) traz uma
alusão à obra de Thomas Mann, A Morte em Veneza, obra de 1912. Iniciado
com um texto explicativo, dando conta de que o conto apresenta dois
narradores e a sua temporalidade difere cerca de vinte anos, temporalidade
esta marcada no texto pela tipificação da letra, o narrador e Dora contam, cada
172
um a seu modo, o triângulo amoroso que envolve Dora, Adriano e Dino.
Adriano, possessivo, diz que ama Valentina e quer que ela o siga. Entretanto,
Valentina muda seus planos e foge para Veneza onde conhece um gondoleiro,
tornando-se sua amante. Adriano vai à sua procura, deixando-a dividida. No
rio, numa outra gôndola que traslada um corpo percebe que um dos remadores
é Dino e que este a viu com Adriano. Nesse confronto, sente-se como se fosse
o próprio corpo transportado naquela gôndola negra. Os dois amantes
conseguem matá-la espiritualmente, a ponto de sentir-se morta como a
andorinha que morreu a seus pés. Dino, o gondoleiro ou barqueiro sujo,
apossa-se do corpo de Valentina numa forma brutal de sexo; Adriano apossa-
se de seu corpo pelo excesso de paixão. Valentina, envolta nesse turbilhão de
paixão e medo de ser aprisionada, torna-se o que mais repugna, sente-se suja.
Valentina perde-se diante das situações que tem de enfrentar. O que Valentina
potencializa com suas incertezas diante do amor é a busca do ilusório, do
trágico.
Em Queremos tanto a Glenda essa obsessão continua em Tango de
Volta (p. 370-80), estamos diante de um narrador que gosta de ouvir histórias
para as escrever, depois, em “cadernos e mais cadernos, versos e até um
romance”, já escritos, relata a história trágica de Matilde e Emílio, a qual ouviu
de Flora, babá de Carlinhos, filho de Matilde: Gérman, esposo de Matilde,
tendo viajado para Catamarca, deixa-a sozinha. É quando ela revê Emílio pela
janela do quarto. Cinco anos atrás ela julgara havê-lo matado de uma crise
cardíaca, fugindo em seguida do México para Buenos Aires, onde conheceu
Gérman, com quem se casa e constitui família, nascendo Carlinhos. A aflição
de todos os dias ter que ver Milo rondando a sua casa, a ausência do marido, a
não aceitação como nora pela sogra, tudo isso a punha nervosa a ponto de sua
amiga Perla perceber, mas não conseguir dela nenhuma confissão do que a
afligia. Viu, enfim, que ele tinha se aproximado de Flora, que a estava
namorando e que ele podia mesmo nem desconfiar que aquela era sua casa.
Inventou outro nome. Para Flora e Carlinhos, era Simon, atencioso, agradável,
bondoso. Gérman só voltaria em dez dias. Todos sentiam o seu nervosismo,
mas nada podia revelar. Então bebe, para esquecer que naquela noite Milo vai
173
entrar no quarto de Flora, desvirginá-la; depois segue para o seu quarto, de
onde, mais tarde, Flora ouve gritos e presencia a cena fatal: Matilde mata Milo
com um punhal no peito e morre em seguida pela ingestão de comprimidos. O
homicídio cometido por Matilde é uma tentativa de sobrevivência, de não ser
descoberta pelo marido, de seu passado não vir à tona, daí advém o desejo de
matá-lo. e usa o punhal. A Literatura em geral usa o punhal como arma
passional desde os seus primórdios como metáfora da dor e da traição, mas
também como libertador, que é o caso da personagem do conto. Morin
(1988:64) afirma que esse é o lado negativo que circunda o homicídio. Mas,
com isso, ela também mostrou a face positiva que, segundo o mesmo Morin,
representa o instinto de preservação de sua família:
a volúpia, o desprezo, o sadismo, o
encarniçamento, o ódio, que traduzem uma
libertação anárquica, mas verdadeira, das
<<pulsações>> da individualidade em detrimento
dos interesses da espécie.
em Anel de Moebius (p. 409-18), trata-se da história de um estupro:
Janet é abordada por Robert, um sujeito de barba, com unhas pretas. Após
toda a cena do estupro, Janet morre e Robert é condenado à morte, vindo a
enforcar-se na prisão. Entre a morte de Janet e a de Robert ocorre a
desintegração dela. Enquanto se desintegra, percebe que deseja Robert e
parte em busca dele, presenciando o seu enforcamento e sua desintegração
inicial, torcendo para que, após a desintegração total de ambos, permaneçam
juntos. No ato da desintegração Janet percorre o terrível labirinto existencial
que a leva ao outro, numa espécie de eterno retorno, de uma realidade à outra,
como se este fosse o caminho possível para a realização de um amor surgido
da violência e consolidado com e após a morte.
Em Deshoras, o conto Fim de Etapa (p. 426-33) vem consolidar essa
obsessão pela morte como uma saída possível desse labirinto existencial. A
personagem Diana sai sem nenhum compromisso com o tempo e com o
espaço. Vai parar em um lugar onde não há, aparentemente, nenhuma atração.
Segue pelas ruas somente observando em volta, fumando, vai ao encontro de
174
coisas que só o desejo e a imaginação veriam. O Museu de Belas Artes
anuncia uma exposição de um pintor desconhecido. Diana compra um bilhete e
entra. O que vê a impressiona a ponto de querer ver toda a exposição. A
princípio, acha que todos os quadros são fotografias, mas depois observa que
são pinturas que conservam o mesmo tema: uma mesa nua, com poucos
objetos, quadros que refletem uma solidão semelhante à de Diana. Ao passar
para a segunda sala, surpreende-se com uma figura humana em uma das
pinturas, a qual olhava em direção de uma “puerta-ventana” distante. Ao
retornar à primeira sala vai descobrindo novos detalhes, chegando à conclusão
de que todas as pinturas são correspondentes a uma mesma casa. Quando vai
novamente à segunda sala, quer abrir a terceira porta, mas é interrompida pelo
vigia que anuncia a hora de fechar o museu. É meio-dia, hora do almoço. Sai e
se pergunta por que está tão interessada nas pinturas, naquilo que ela chama
de “hiper-realismo”. Lembra-se de Orlando e no quanto para ele a hora do
almoço era sacralizada como passagem da manhã para a tarde. Ele que dizia a
ela a hora de almoçar. Aquele momento, para ela, representava o “matador de
sombras”, o “paralizador del tiempo”. Na rua percebe que as representações
das pinturas estão ali. Volta ao museu e abre a terceira porta. Depara-se com
uma pintura de uma mulher diferente: morta. Em transe, vê-se na rua e no
carro, desenvolvendo uma alta velocidade. Vê os cassetes de música que
Orlando amou e começa a ficar atormentada pela ausência dele ao seu lado, a
vida simétrica dela quebrada pela fuga, pelo museu com suas pinturas, pela
ausência dele, a terceira porta do museu que ousou abrir e surpreender-se, a
sua terceira porta, da qual podia transpor a etapa de simetrias, dando-lhe a
possibilidade de escolha.
Nestes sentidos, o ideal de amor nos contos de Cortázar não carrega a
luminescência da troca e da doação. Ao contrário, prima pela sua
irracionalidade, por seguir a morte e não a vida, por se abismar em precipícios
unilaterais de dor, de solidão e desacertos.
O amor nos contos encontra-se
sob o signo da errância e do desengano, quase sempre levando os envolvidos
à morte. Assim, o que está representando não é o lado nobre e bom na
condição humana, mas o funesto e perverso, representado por assassinatos,
suicídios, estupros, violências corporais, fatos que povoam a cotidianidade dos
175
tempos cortazarianos e permanecem, posto que o ser humano é esse misto de
racionalidade e instinto.
Diante de tanta atração pelo tema da morte é que surge uma indagação:
Cortázar foi leitor de Schnitzler? O primeiro bebeu no segundo o pensamento
paradoxal de vida e morte? É uma interrogação que aqui fica no eixo do
possível, por uma série de fatores: na sua obra Schnitzler procura expressar a
vida como um jogo de forças irracionais, num desvelamento da hipocrisia moral
da sociedade de sua época e coloca seu lado de ficcionista frente às feridas
internas do homem, exteriorizando-as pela escrita. Como escritor do eu
dilacerado, seus personagens afirmam a morte da individualidade e a
impotência do homem moderno diante do mundo. Na obra de Cortázar, algo
muito próximo acontece. O
Paracelso a que se refere Cortázar em duas
passagens de Libro de Manuel (p. 137 e 140), por exemplo, é provável que
não seja simplesmente alusão à figura do médico suíço, pai da medicina
integral. Acreditamos mais que seja uma referência ao ato único Paracelso
(1899), de Arthur Schnitzler, que se
baseia na figura histórica do famoso
médico,
filósofo e naturalista suíço. A peça tem trechos que se parecem muito
com
proceder de criação literária cortazariana, como é o caso do trecho
68
da
fala de Paracelso que diz:
" Fue un juego! ¿Qué otra cosa debía ser? No es
más que un juego nuestro quehacer terreno,
¡aunque les pareciera grandioso y profundo! Con
escuadras de feroces mercenarios juega el uno, el
otro con supersticiones falsas. Alguno juega con
los soles, con las estrellas. Yo juego con las
almas. Un sentido lo encontrará solamente quien
lo busca. El uno dentro del otro recorren sueño y
vigilia, realidad y ficción. En ningún lugar hay
certeza. Nada sabemos de los demás, nada de
nosotros; jugamos siempre, quien lo entiende es
sabio. "
Mas esse pensamento paradoxal de vida e morte em Cortázar vem
também de outras fontes. Vem da índia. Cortázar viajou à índia. As fotografias
de Prosa del Observatório comprovam isso. E é fato que muitos dos seus
textos estão carregados dos ensinamentos budistas, da busca do centro
68
Trecho retirado da internet: http://www.epdlp.com/escritor.php?id=3098.
176
mandálico, do nirvana. Cortázar queria o centro, o alto. Mas tudo isso
desenvolvido num processo circular, que nos leva cada vez mais para o centro
da sua própria vida, para a vida dos outros, para o centro do Universo e para
o centro mesmo de sua utopia: a de construir um homem novo a partir dele
próprio infiltrado dentro de sua literatura para melhor se fazer entender. Se
pensarmos como Paul Ricoeur (1991:501) que a utopia “possui o poder
ficcional de redescrever a vida”, Cortázar o realizou duplamente: pela literatura,
que já é uma ficção, redescreveu a sua vida, os seus desejos como homem
novo, como rebelde e revolucionários de uma literatura que se exigia a si
mesma por atender às exigências autorais.
Mas nos deparamos com uma utopia de buscas. Eram buscas apenas.
Nunca encontros. Nunca a mais alta
felicidade. Os personagens cortazarianos
sempre presos no samsara, na existência cíclica. Nem ele, como autor, atingiu
o nirvana, o grau máximo da iluminação. Fadado que estava aos
renascimentos pelas escrituras.
3.4 HISTÓRIAS “À MARGEM DE MINHA VONTADE”
Quando Cortázar define o que é um contista em Alguns Aspectos do
Conto (1999, p. 353) deixa claro, na qualidade de médium, de intermediário de
uma realidade ora fantástica, ora histórica que se lhe internaliza e se manifesta
de forma literária, que há temas que se chegam voluntariamente e outros que
parecem escolher o contista. Dos dois modos, acreditamos, apesar de
assegurar ter escrito a maioria de seus contos “à margem de minha vontade”,
tenham sido, os contos ‘comprometidos’, escritos voluntariamente e em
conformidade com a sua “consciência raciocinante”. Vejamos o que nos faz
acreditar neste fato: quando ele chama a atenção do leitor para que pense nos
contos inesquecíveis, convoca-o a perceber, em essência, o que o próprio quis
177
mostrar com os contos ‘comprometidos’: “são aglutinantes de uma realidade
infinitamente mais vasta que a do mero episódio que contam”. Assim sendo, ao
escolher expor literariamente o momento político da América Latina, Cortázar
conseguiu atingir “a fabulosa passagem do pequeno ao grande, do individual e
circunscrito à própria essência da condição humana”.
A opressão e a miséria do povo latino refletiu-se na sua consciência, de
forma que, a disposição da Ditadura Militar em destruir a humanidade através
das imposições ideológicas repressoras, transformou o seu modo de pensar
como indivíduo. Este passou a pensar o coletivo, onde a dor de todos era a sua
dor. Além de tomar conhecimento das tragédias, foi afetado por elas e as
escreveu intensamente, explorando-as nos seus valores humanos, dentro de
um espaço que bem dominava, o literário. O que observava acontecer com os
escritores de Cuba àquele momento era fruto de sua vivência como escritor e
de suas preocupações com o destino do homem violentado em seus direitos. E
essa “força irresistível” que se lhe impôs de agregar o político ao fantástico faz
com que sua obra hoje seja lida como desejou que um dia fosse lido o acervo
de Cuba: “transmutada no plano estético, eternizada na dimensão atemporal da
arte, sua gesta revolucionária”.
Para Ricardo Piglia (2000:102),
todos los grandes textos son políticos. Hay una
política en el crimen y una política en el lenguaje y
una política en el dinero y en el robo y una política
en las pasiones y de eso hablan siempre los
grandes relatos. Son modelos de mundo,
miniaturas alucinantes de la verdad.
Ao tratar de Cortázar
69
, acreditamos que este inclui a sua obra, desde
Rayuela dentro desses grandes textos políticos, posto que, trabalha com a
ideologia da negatividade, isto é, com uma reação contrária aos fatos dados
como certos, e isso é uma constante em sua obra.
69
Cf. Sobre Cortázar, p. 53.
178
Essas miniaturas alucinantes da verdade de que fala Piglia e que
Cortázar nos apresenta em seus contos parecem não estar muito à margem de
sua vontade. Em vários pontos de sua literatura ‘comprometida’ percebemos
uma intencionalidade a apontar para um leitor que, a partir da experiência da
leitura, dela extrai conscientemente o que ele diz ser a semente do homem do
futuro. E o homem do futuro necessariamente deve ter a visão dele como
escritor, quando tomou conhecimento da Revolução e sentir isso dentro das
obras que lê:
en este momento no se puede escribir sin esa
participación que es responsabilidad y obligación y
sólo las obras que la trasunten, aunque sean de
pura imaginación, aunque inventen la infinita
gama lúdica de que es capaz el poeta y el
novelista, aunque jamás apunten directamente a
esa participación, sólo ellas contendrán de alguna
indecible manera ese temblor, esa presencia, esa
atmósfera que las hace reconocibles y
entrañables, que despierta en el lector un
sentimiento de contacto y cercanía. ( Cf. Casa de
las Américas, 204, p. 65)
3.5 O TEMPO, O ESPAÇO E SUAS ARMADILHAS
Cortázar combina tempo e espaço para nos colocar frente a um ritmo
narrativo bastante visual e palpável. Tempo e espaço emaranham-se e se
perdem em labirintos onde ocorrem fatos passados que se presentificam pela
plasticidade, pela visibilidade e, pela refracção, fragmentando-se. Aqui quando
se fala em refracção, entenda-se a sobreposição espaço-temporal que ocorre
na maioria dos contos, indo de encontro ao pensamento heideggeriano de uma
temporalidade finita, isto é, do conceito de ser-para-a-morte, ou seja, como
acontecimento inevitável que ocorre no mundo. O homem cortazariano está
aberto para a morte mais que para a vida, numa possibilidade tão real e
próxima, como é o caso do personagem dos seguintes contos de Octaedro :
179
Liliana llorando, que é capaz de imaginá-la em vida, de ser visivelmente
aguardada, como em Las fases de Severo, de ser re-vivida em sonho em Aí,
mas onde, como, ir ao encontro dela em Lugar llamado Kindberg e em
Manuscrito ; buscá-la numa atitude suicida em Vientos alísios e En nombre
de Boby, encontrá-la por encomenda em Reunión con un círculo rojo e
Alguien que anda por ahí, todos de Alguien que anda por ahí; ou ainda em
Queremos tanto a Glenda, onde a morte chega em três contos de modo
semelhante: Anillo de moebius, na forma de violência sexual, Tango de
vuelta com suicídio e homicídio passionais e Recorte de prensa por tortura
passional e, em Deshoras, dois contos revelam a morte por tortura política,
Satarsa e Pesadilla e Fin de etapa traz a morte refletida no espaço de uma
galeria, numa pintura de mulher aprisionada num labirinto angustiante, onde
cada porta que se abre leva a personagem a reconhecer o seu final.
O que podemos perceber nos contos destacados é que o autor construiu
as suas narrativas em espaços e tempos que se repetem, se abrem e se
fecham sobre si mesmos ligando-se ao que Gilbert Durand (1997:316) chamou
de “simbolismo da transformação temporal” representado pela figura do
ouroboros, aproximando-se mais do pensamento de Bachelard, citado pelo
mesmo para quem o ouroboros representa a dialética material da vida e da
morte:
a morte que sai da vida e a vida que sai da morte,
não como os contrários da lógica platônica mas
como uma inversão sem fim da matéria de morte
ou da matéria de vida.
O espaço preferido de Cortázar para desenvolver as suas narrativas
parece ser o quarto e os ambientes fechados e escuros. Do quarto ao metrô
seus personagens vagueiam suas angústias, medos e falta de perspectivas no
futuro, seus desamores e a morte iminente. Só há um obstáculo a transpor: a
porta que se fecha ou se abre conforme a situação peça. Assim, a porta passa
a ter um sentido muito mais profundo que o próprio espaço, posto que reflete o
homem cortazariano ali inscrito: barrado, mas com possibilidades de aberturas.
E esse homem assemelha-se ao “homem entreaberto” de Bachelard (1993, p.
225), expressando o ser de ambigüidade com a fórmula sugerida por
ele: “o
180
homem é o ser entreaberto”. Temos no conto Verão, de Octaedro, uma Zulma
aterrorizada diante da possibilidade de uma porta aberta por uma menina dar
passagem a um cavalo. A porta encontra-se aberta, mas o cavalo não entra;
em Cuello de gatito negro há uma porta que se fecha impedindo
que Dina
mate Lucho ou vice-versa. Segunda Vez, Reunión con un círculo rojo e
Alguien que anda por ahí, do livro de mesmo nome, apresentam portas que
se abrem para receber as vítimas da ditadura e depois se fecham
silenciosamente sem deixar vestígios; em Deshoras, temos Satarsa com as
jaulas abertas à espreita das ratas que teimam em escapar logo que se fecham
e La escuela de noche, onde a eleição de uma porta errada faz o personagem
Toto sofrer grandes torturas até conseguir se salvar à custa de silêncio e
resignação pela situação vivida. Em Fin de etapa, também do mesmo livro, há
uma terceira porta que Diana quer abrir, mas o vigia do museu a impede de
fazê-lo no momento; ação que ela executa no final para descobrir por fim a
pintura de uma mulher morta, a morte futura.
3.6 O ANEL DE MOEBIUS: a estreita encruzilhada
Desde o início vimos nos deparando com termos como teia, labirinto,
ouroboros, escorpiônica, fantasmagórica, todos eles voltados para uma
possível síntese do que significaria a narrativa cortazariana como um todo. No
presente estudo vamos completar essa rede, ou essa teia significante, com um
elemento novo, surgido dentro do universo contístico ora estudado, mas que,
indiscutivelmente, remete aos anteriores, puxando-os para o centro: o anel de
Moebius. Nele, vamos encontrar os personagens de Cortázar rumo à estreita
encruzilhada da vida e da morte, rumo à chance de se tornar um novo homem
e permanecer o mesmo, de participar da Revolução sem ir à frente de batalha,
de ser todos, sendo um.
O anel de Moebius representa nesta parte da obra de Cortázar algo
semelhante ao que ele chamou de ponto vélico (1993:179), relembrando uma
passagem de Victor Hugo, o lugar do encontro fortuito, da convergência, da
181
surpresa, da intersecção. O próprio conto, cujo título é Anillo de Moebius
(QTG, p. 409) retrata bem esse ponto vélico, a estreita encruzilhada por onde
se dá o encontro fortuito entre Janet e Robert, em vida, e o encontro eterno
onde permanecem após a morte. O lugar do acidental, mas também do
transcendental.
Cortázar acena para esse lugar no texto Do sentimento de não estar
de todo (1993:165). Neste ensaio, ele define a sua paratopia, isto é, escreve
“por não estar ou por estar a meias. Escrevo por falência, por deslocamento; e
como escrevo de um interstício”, ou seja, ele escreve à “beira da sacada”,
sempre ameaçado “por essas lateralidades” que lhe permitem aprisionar seus
personagens, aprisionar-se junto com eles, ir cada vez mais ao fundo de si
mesmo e não encontrar a unidade, retornando a eles e com eles
constantemente em suas narrativas. Em síntese, esses procedimentos de
retorno dão-se desde o início de sua obra e a crítica vê bem isso, quando
escolhe determinados símbolos definidores de sua forma de escrever, como
podemos aqui representá-los:
Ouroboros
Labirinto
A
nel de Moebius
Teia da aranha
182
Todos esses símbolos acenam para a definição indu dada por Heinrich
Zimmer (1989:131) da roda do renascimento, do samsara como fluxo infinito de
experiências que se prendem ao processos de destruição e reconstrução, sem
nunca deles sair, pelo fato de atingirem pessoas reais e estarem associadas a
duas experiências fixas e eternas que são a vida e a morte, experiências estas
permeadas pelo desejo de poder, pela ignorância do saber e pela vingança,
fatos redimidos somente pela “sabedoria do Buddha”. Os personagens
cortazarianos vivenciam o sofrimento, mas não conseguem transcendê-los. O
samsara cortazariano pode assim ser descrito como um fluxo contínuo de
mortes dolorosas e trágicas e renascimentos através de seus mundos
ficcionais, estejam eles inseridos em romances ou contos. E se seguirmos uma
trilha dentro de sua obra, pegando as mortes mais intensas quanto ao
envolvimento emocional das personagens, desde o capítulo 28 de Rayuela,
com a morte inocente e silenciosa de Rocamadour, onde Horácio se recusa a
dizer à Maga e esta, ao percebê-la, grita e sacode o menino como a tentar
reavivá-lo, indo para o conto Recorte de Prensa, com as descrições dos
assassinatos de argentinos pela Ditadura, com o grito de horror impresso nos
recortes de jornais e nas esculturas da personagem, chegando ao Satarsa de
seu último livro, onde nos defrontamos com um Lozano, metralhado, que se
abisma mortalmente por entre os espinhos, mas ainda tem coragem de abrir os
olhos e ter a revelação de quem é verdadeiramente Satarsa, teremos, por fim,
fechado o círculo da tanatofagia cortazariana e ido para o centro do anel de
moebius, lugar de onde é impossível sair, mesmo atingindo o renascimento
porque passam Janet e Robert, quando se libertam de todo sofrimento
corporal. À roda que se formou, pegando os principais símbolos atribuídos ao
seu fazer literário – labirinto, ouroboros, teia de aranha – atrelamos, após a
leitura dos livros aqui re-contados, o anel de moebius pelo seu poder de
fechamento, de profundidade, de caminho sem saída, mas com possíveis
retornos. O anel de moebius é, por fim, um novo símbolo para designar a
construção narrativa de Julio Cortázar que tem como tema principal a morte em
sua dimensão paradoxal. Nem ele, como autor, escapou de entrar nesta roda.
Como descreve em nota de outubro de 1967, quando da morte de Guevara
70
.
70
Mensaje al hermano. In. Fervor de la Argentina, de Roberto Fernández Retamar, p. 157.
183
Temos um Cortázar encolerizado e choroso, passando por todo um sofrimento
diante do que ele considera absurdo. Mas tem forças para ligar a imagem do
“Che” à da Fênix. Para ele, o renascimento de Guevara vai se dar através dos
poemas e dos discursos que se encarregarão de eternizá-lo. Desse modo, ele
consegue se reconstruir dentro do universo utópico, pelo outro e para o outro,
pela escrita.
184
PÓS-REVOLUÇÃO
Lamento ciertas secuencias que hubieran podido ser más bellas, pero se
trata precisamente de que el lector las encuentre si tiene ganas de jugar. El
primer golpe de dados ha sido el mío y soy el lector inicial de una secuencia
dentro de tantas otras posibles.
(Julio Cortázar – Permutaciones. In.: Salvo el Crepúsculo, p. 141 )
185
PÓS-REVOLUÇÃO
La literatura no nació pa dar respuestas,
tarea que contituye la finalidad específica
de la ciencia y la filosofia, sino más bien
para hacer preguntas, para inquietar, para
abrir la inteligencia y la sensibilidad a
nuevas perspectivas de lo real.
(Julio Cortazar – Realidad y literatura en América Latina.
In. Obra crítica, vol. 3, p 309)
Vejo agora pelo olho mágico que Cortázar me apontou. Estou muito
mais meditativa e maravilhada com cada coisa que descubro por trás de uma
frase, de uma palavra, de um personagem. Então escrevo, escrevo-me e me
inscrevo nesse mundo de crítico que Barthes (1999:26) chama de “escritor
em liberdade condicional”, com uma ressalva: estou correndo o risco de não
permanecer condenada “ao erro – à verdade”. Fugindo à prática do indireto,
sem saber, reconto-me, entretida e entretecida nessas histórias muitas vezes
desenredadas, outras tantas de enredos múltiplos a me multiplicarem numa
explicação sem fim que nunca sei por onde começar nem terminar. Num ritmo
intermitente, penetro naquele espaço que chamo de linguagem desprovida do
peso dos anos, camaleônica, e porque não ratificar Arrigucci, escorpiônica, e
chego justo numa encruzilhada onde sinto que o autor nem esqueceu o
momento histórico nem desprezou a estética, menos ainda, o fantástico.
É impraticável pensar cortazarianamente sem retomar
os temas
paradoxais ligados ao homem, com especial realce para o seu complemento
negativo. Não se pode, por exemplo, estudar a sua narrativa sem que a morte
seja discutida nas suas mais diversificadas formas de acontecer e diria, de uma
forma obsessiva de acontecer: da morte da escrita literária estabelecida à
morte por motivações políticas; da morte passional à preparação para esta.
Perdida nesse labirinto interpretativo, vejo-me diante de alguém que a uma
certa altura da vida optou por ver no Cortazar da década de 70 o ser em sua
186
totalidade contraditória, aberto e fechado ao perigo, racional e irracional, central
e periférico, cosmopolita, sobretudo dotado de humanidade.
Seguindo as metas de análise inicial, fomos encontrar na escrita de
Cortázar das décadas, cujo comprometimento com a Revolução Cubana e
seguidamente com toda a problemática que envolvia a que envolvia a Ditadura
Militar na América Latina tornou-a politizada, uma preocupação maior com o
ser humano, com o seu posicionamento ante a questões vividas, sabidas ou
assistidas. Constatamos, a princípio, que esse ser humano construído por ele,
fragmentado e perdido em meio a buscas infindas e inconclusas, encontra sua
representação na linguagem através dos multigêneros por ele utilizados. À
medida que vamos tomando contato com cada ser humano construído por por
ele, vamos percebendo as suas intenções de criar esse homem novo, ou de
fazer-se visível nele e tentando entendê-lo, ou pelo menos traçar-lhe um perfil
flutuante, uma vez que encontra-se em constante mutação.
Fazendo um percurso dentro do universo literário multigenérico
cortazariano – escrita literária, escrita ensaística, correspondências e poesias
chegamos ao pensamento que esse ser humano, esse homem novo que surge
é um ser que, à medida que se vai deixando des-cons-truir, constrói-se a si
mesmo. E, nesse construir-se incessante, vai-se tunelizando, vivendo mise em
abyme, até chegar ao que poderíamos chamar de ponto vélico, ao lugar do
encontro fortuito, ao centro do labirinto e fica preso à teia narrativa, enredado
nas sinuosidades do labirinto. E, por fim, atinge a estreita encruzilhada
fornecida pelo anel de moebius, esse espaço não orientável, de onde pode
retornar ao local de origem sem, contudo, poder dele sair. Circulando nesse
lugar fronteiriço: entre a superfície e a profundidade, entre o sólito e o insólito,
entre a utopia e a realidade, esse homem novo reflete o Cortázar
comprometido, para quem o homem passou a ter uma nova significação. Não
se trata mais de um simples leitor de sua obra. Trata-se de um leitor que ao se
deparar com o homem novo incrustado no texto, vivendo uma realidade nova,
transforme-se.
187
Esse desejo de mostrar no seu texto literário uma nova visão de mundo
através do que chamou de homem novo encontra eco nas palavras de Graciela
Maturo (2004:187) para quem o posicionamento ideológico de Cortázar em
nada diminuiu a qualidade de sua produção literária. A contrário:
El revisionismo ideológico, la asimilación de un
nuevo enfoque de lo real, no há llevado a
Cortazar, como a otros escritores, a la pretensión
de una literatura “objetiva”, deshumanizada. Por el
contrario, el punto central de esse horizonte del
conocimiento permanentemente ampliado es para
él el ser existente en el mundo. Todo problema
converge hacia el problema fundamental del
hombre: encontrar un sentido a la realidad e
ingresarse em ella. Tal integración se logra por la
intuición emotivo-intelectiva.
Diante dessas descobertas, ajo aqui qual efeito borboleta, tentando
modificar por ampliação um sistema literário dinâmico, complexo e adaptativo
como o de Cortázar, já bastante analisado com base nos eixos de sua própria
interpretação. Nele só podemos trabalhar fractalmente no sentido de que, em
seu desenvolvimento, nos deparamos com pequenos textos que se pluralizam
à medida que os exploramos; com seres humanos que se des-pedaçam
interiormente até atingirem o final da curva da vida, sem, contudo, ter atingido o
seu fim. Entretanto, Lucas ou seu criador, Cortázar, (UTL,228), de todo modo,
a hidra, quer que encontremos a sua cabeça imortal, aquela que “ordena, acata
e jerarquiza el tiempo”.
Preparando-se para ser o outro, Cortázar aproxima-se do que Lévinas
(1947) qualifica como distanciamento do “il y a”, isto é, da existência anônima
para um existir para e com o outro, de forma desinteressada. Saindo de sua
condição de escritor preocupado em fazer uma literatura para si, ele avança,
como ser humano, para o outro e para sua participação junto ao outro através
de sua literatura. Para ser o outro, no sentido antropológico mesmo, ele
precisou de tempo, o tempo da Revolução Cubana e, seguidamente, o tempo
das ditaduras que assolaram a América Latina em sua época presente. O
mesmo Lévinas assim se refere ao tempo: “O tempo não é uma simples
experiência da duração, mas um dinamismo que nos leva para outro lado
188
diferente das coisas que possuímos”. Assim sendo, o tempo se encarregou de
mostrar ao escritor que ele podia ter o outro (e sempre teve, de forma
distanciada, personificada em seus personagens) como matéria de sua
literatura agora comprometida. E então se fez o caos, quebrando assim a sua
temática anteriormente estabelecida. Re-vo-lu-ci-o-na-ri-a-mente, ele
estabeleceu que o seu caos interior, provocado por essa mudança de atitude
frente aos fatos decorrentes, fossem estendidos ao texto literário que escrevia
para que se fizesse entender por todos. Desse modo, no itinerário percorrido foi
feito os seguintes achados, os quais são considerados de fundamental
importância para o arremate deste manual:
No Prelúdio, fiz uma leitura que considerei ourobórica: condenada que
estava a voltar a Cortázar durante os quatro anos de estudo, visitei o contexto
de muitos de seus contos na tentativa de entender essa necessidade explícita
de escrever argentinamente, de ter a Argentina presente como pano de fundo
de sua literatura feita à distância. Revi críticas, reli obras, o que provocou uma
definição mais categórica do que pretendia estudar em Cortázar, dentro dos
livros propostos inicialmente: a valoração do humano tendo em vista a
construção do homem novo a partir da revolução interior iniciada com a
Revolução Cubana e repassada acentuadamente a partir de Libro de Manuel.
Na Primeira Revolução, em busca desse homem novo, partimos do que
considerei como elemento chave da minha procura: a sua texturologia, ou seja,
todas as peças por onde tinha que transitar esse homem novo: da des-
organização escritural, passando pela revisitação temática, aos três elementos
considerados fundamentais para as minhas inquietações. Trata-se do triângulo
formado por autor, personagem e leitor. Cortázar foi ao mesmo tempo autor,
personagem e leitor crítico de sua própria obra. A certeza de que o leitor
contemporâneo buscava na literatura mais que uma distração ou esquecimento
fazia-o certo de que poderia encaminhar a sua para o terreno da experiência
concreta. Fazer literatura para fazer o homem pensar sobre sua própria
condição humana fragmentada em face das circunstâncias.
189
Na Segunda Revolução, a constatação da projeção de um homem novo.
O peso fascinante da Revolução Cubana sobre seus ombros e a necessidade
de compartilhar essa nova fase com seus leitores, cuja leitura ativa contava
infinitamente mais para ele que a dos outros escritores. Depois, a Nicarágua e
sua Solentiname, as ditaduras latino-americanas. A utopia de se sentir capaz
de poder mudar o homem com a sua literatura dita comprometida, não a
sentimos através de seus personagens, mas da voz autoral que os comanda.
O que Cortázar tem de realmente utópico em sua literatura é percebido
pelo contexto espaço-temporal por onde move seus personagens que estão
em constantes deslocamentos, indo em busca de um lugar fixo, da realização
de algum desejo que esbarra na sua não realização, ou seja, na sua anti-
utopia. Seus projetos esboçados na forma de jogos e ritos, justo numa busca
intermitente desse lugar, dessa mulher, dessa vida ideal, para que seja
possível o surgimento do homem ideal, ou como pensava, do homem novo.
Essa intermitência, gerada sempre pela intrusão da realidade no centro do jogo
ficcional impede a resolução da vida de seus personagens, o cumprimento de
metas, enfim, as cartas em jogo sem nunca chegar ao final da partida. Das
personagens cortazarianas aqui estudadas, retiramos duas, como símbolos de
um pensamento utópico expresso em linguagem cifrada: Lozano, do conto
Satarsa, através dos palíndromos, e os campesinos de Apocalipsis de
Solentiname, pela pintura.
Na Terceira Revolução o enfrentamento paradoxal do ser humano e sua
cotidianidade. Como Cortázar conduziu seus personagens e a si mesmo dentro
desse universo conflitivo, propenso ao jogo, às armadilhas desse jogo cuja
cartada final é imprevisível e aberta à adivinhação do leitor. O confronto
travado entre a vida e a morte, entre um amor nunca realizado e a angústia
gerada por isto faz com que os personagens dele estejam numa busca que os
leva à ruína, à destruição, enfim, a busca pela concretização do homem novo é
permanentemente precipitada em função desses paradoxos irresolvíveis, posto
que humanos. Paradoxalmente o ser humano está fadado, na literatura
cortazariana, seja ele autor, narrador, personagem ou leitor, ao jogo da
amarelinha: sai atirando a pedra sempre no lugar certo, mas nunca chega ao
190
céu. Entretanto, podemos assegurar que esse homem novo, produto da
Revolução Cubana e das ditaduras cumpriu bem o seu papel como
personagem de sua literatura. Houve uma osmose, uma articulação
convincente entre o fantástico e a realidade, entre o poético e o político. E tal
como “os eleatas, como Santo Agostinho, Novalis”, também Cortázar
(1993:223)
pressentiu que o mundo de dentro é a rota
inevitável para chegar de verdade ao mundo
exterior e descobrir que os dois serão um só
quando a alquimia dessa viagem der um homem
novo, o grande reconciliado.
Após instaurar o meu caos, gerado pelo científico e posto em movimento
pelo poético, vejo-me como o poema da purificação
71
, de Drummond,
transfigurado: depois de tantas leituras, o bom poeta matou o mau crítico e
jogou sua crítica à análise. Os críticos ficaram tensos de uma tensão que só
aceita o erro barthesiano – a verdade – e o poético ficou por um fio. Mas uma
luz que eu sabia exatamente de onde vinha apareceu para aceitar essa
hibridização técnico-genérico-poética e os demais pensaram no trabalho
espinhoso que foi desconstruir em outra língua mundos ficcionais por sua vez
já desconstruídos, desordenados, para tentar ordená-los amarelinha de surto.
Neste estudo, fui barthesianamente, leitora e crítica: amei a obra, amei a
sua própria linguagem. Fraturei e tentei reconstruir o recorte de mundo
cortazariano a que me propus estudar, dividindo-me entre o pensar do autor, o
pensar teórico-crítico e o pensar poético. Acredito ter vencido os três em
algum dado momento, ou eles me venceram. Deformei, melhor, desformei um
texto já desformado pelo autor para empreender uma escritura cronópia,
embora não siga nenhum manual de instruções. Nessas oscilações de desejos,
procurei mostrar analítica e poeticamente uma das últimas facetas do mundo
ficcional cortazariano que julguei importante resgatar e colocar à mostra,
71
Depois de tantos combates / o anjo bom matou o anjo mau / e jogou seu corpo no rio. / As
água ficaram tintas / de um sangue que não descorava / e os peixes todos morreram. / Mas
uma luz que ninguém soube / dizer de onde tinha vindo / apareceu para clarear o mundo, / e
outro anjo pensou a ferida / do anjo batalhador.
http://www.mardepoesias.com.br/especial_drummondpoesias, acessado em 18/04/2007.
191
pensando no leitor que, não conhecendo a obra dele, receberá um chamado a
partir de agora, como Andrés o recebeu em Libro de Manuel: Despertate!
192
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