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Ora, argumentam eles, se a sociedade não é construída ou organizada intencionalmente pelos
seres humanos, como podemos lhe atribuir as noções de “justa” ou de “injusta”, de “moral”
ou de “imoral”?
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. Aliás, como podemos falar em responsabilidade social dos indivíduos (se
sua ação não influi na “evolução espontânea” da sociedade)?
15
. E, pior, como podemos, legi-
timamente, querer mudar ou planejar a organização da sociedade? Só podemos fazer isso se
desrespeitarmos os seres humanos e se violarmos as leis
16
. Conclusões: (1) não podemos in-
terferir na organização da sociedade (porque ela não é construída intencionalmente pelos seres
humanos)
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; (2) não existe algo que poderíamos chamar de “justiça social” (esta é apenas uma
noção instintiva, inerente a grupos tribais de caça, imprópria à sociedade moderna)
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; e (3) a
sociedade, assim como se nos apresenta, é fruto de longos séculos de evolução humana e,
portanto, se é fruto da evolução humana, está bem organizada assim como a temos.
Se aceitássemos essas idéias, certamente ficaríamos impossibilitados de realizar uma
ação transformadora e seríamos coniventes com a violência política e econômica, bem como
com sua contrapartida, com sua conseqüência direta, a saber, a violência e a injustiça social.
Não é o que faremos. Como diz Rawls, “o mundo não é, em si mesmo, inóspito à justiça polí-
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Novamente, cito Butler: a sociedade “é um sistema completo e não-planejado de valores e de ações, um pa-
drão de objetivos ajustados e não-partilhados. Muitos dos benefícios que obtemos são, de fato, resultantes das
operações desta estrutura, e não o resultado da intenção de quem quer que seja de conceder-nos benefícios”
(BUTLER, 1987, p. 94; grifo meu).
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Por exemplo, “afirmar que o sistema impessoal da ordem do mercado pode ser justo ou injusto equivale a
dizer que uma pedra pode ser moral ou imoral. O uso da expressão ‘justiça social’ baseia-se, pois, em um total
equívoco a respeito do que é a verdadeira justiça” (BUTLER, 1987, p. 98; grifo meu). Hayek entende, por “ver-
dadeira justiça”, somente a justiça comutativa, e não a justiça distributiva. Para Rawls, ao contrário, o conceito
de justiça comporta tanto a justiça comutativa quando a justiça distributiva.
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Diz Butler: “embora o apelo à ‘justiça social’ costume ser orientado para a ‘responsabilidade social’ dos indi-
víduos, é claro que ele extingue a verdadeira responsabilidade. O governo – e não o indivíduo – torna-se respon-
sável pela posição de uma pessoa na sociedade; mas o indivíduo também é solicitado a ser ‘socialmente respon-
sável’, expressão sem nenhum significado. A noção de responsabilidade social fica, assim, às avessas, confusa”
(BUTLER, 1987, p. 100).
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Em The Political Order of a Free People, Hayek diz: “quando a política se transforma em um cabo-de-guerra
para fazer a partilha do bolo da renda, um governo decente é impossível” (HAYEK, 1991, p. 50). Butler, comen-
tando Hayek, diz: “a principal objeção a essas idéias igualitárias está no fato de que elas exigem uma crescente e
arbitrária interferência governamental, na tentativa de amenizar os desequilíbrios existentes. Isso, por sua vez,
faz com que os governos tratem as pessoas de forma desigual, o que redunda em um meio seguro de levar ao
desrespeito das regras gerais e conhecidas de moralidade e de comportamento pessoal sobre as quais repousa a
civilização” (BUTLER, 1987, p. 27).
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Assim, para Hayek, “toda tentativa de construção ou de reformulação da sociedade é ilegítima” (BUTLER,
1987, p. 53).
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Diz Butler, comentando Hayek: “a reivindicação por ‘justiça social’ apóia-se, sem dúvida, na força das emo-
ções instintivas; mas essas emoções são adequadas aos grupos tribais de caça, e não à sociedade moderna, que se
baseia em princípios totalmente diferentes, ou seja, no tratamento igual perante a lei (dado a todos) e na livre
cooperação” (BUTLER, 1987, p. 108). Além de uma emoção instintiva, esta falsa noção de justiça social é, para
Hayek, classista: “’justiça social’ não é, de forma alguma, a expressão inocente da boa-vontade para com os
menos afortunados que normalmente aparenta ser, mas sim a demanda, por parte de grupos específicos, de uma
visão privilegiada. Talvez, pior do que isso, ela é o oposto da verdadeira justiça, que é orientada por regras gerais
aceitas por todos e imparcial quando diante dos diversos indivíduos e grupos” (BUTLER, 1987, p. 109).