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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE
MESTRADO ACADEMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE - MAPPS
Renan Cajazeiras Monteiro
DEFENSORIA PÚBLICA: ESPAÇO DE “JUSTIÇA
POPULAR” – OS DISPOSITIVOS DE RESOLUÇÕES
ALTERNATIVAS DE LITÍGIOS – RAL’S
Fortaleza
2006
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE - MAPPS
Renan Cajazeiras Monteiro
DEFENSORIA PÚBLICA: ESPAÇO DE “JUSTIÇA
POPULAR” – OS DISPOSITIVOS DE RESOLUÇÕES
ALTERNATIVAS DE LITÍGIOS – RAL’S
Dissertação apresentada à Coordenação do
Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas
Públicas e Sociedade, da Universidade
Estadual do Ceará, como exigência parcial
para obtenção do título de mestre.
Orientadora: Prof.a Dr.a Maria Glaucíria
Mota Brasil
Fortaleza
2006
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE -
MAPPS
Título do Trabalho: Defensoria Pública: Espaço de “Justiça Popular”
– Os dispositivos de Resoluções Alternativas de Litígios- RAL’s
AUTOR: Renan Cajazeiras Monteiro
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
Prof.a Dr.a Maria Glaucíria Mota Brasil
Orientadora
_________________________________________________
Prof. Dr. César Barreira
1
º
Examinador
___________________________________________________
Prof. Dr. José Júlio da Ponte Neto
2
º
Examinador
Agradecimentos
Quero manifestar meu profundo agradecimento as seguintes pessoas que de
forma direta ou indireta colaboraram com essa pesquisa:
- Ao Senhor Deus centro da minha vida, sem ele não há inspiração;
- Aos meus Pais Jalmir e Francineuda pessoas essenciais na minha vida,
obrigado pelo amor incondicional a mim sempre dedicado;
- À Ana Ruth, companheira escolhida para dividir a caminhada da vida.
Obrigado pelo amor, pela paciência, pela ajuda e pelo incentivo sempre na
medida e no momento certo;
- Aos meus filhos Vitor, Saulo e Artur manifestações do amor de Deus na
minha vida;
- A Renner e Jalmir Filho pessoas que Deus me brindou como irmãos e
amigos;
- Aos meus sogros Raimundo e Socorro exemplos de trabalho e perseverança;
- Às minhas cunhadas: Conceição, tia, Dalma, Yvila, Ana Cristina e Lorena
aos cunhados: Luiz Carlos, Charles, Flávio, Beto, Paulo e Júnior, os sobrinhos:
Ana Maria, Lívia, Aline, Davi, Rebeca, Mateus, Raul, Letícia, Lucas, Lívia
Catarina e Yasmim, pessoas que tive a satisfação de me unir pelos laços da
família.
- À minha orientadora Glaucíria pela paciência e pelas observações sempre
pertinentes à minha pesquisa;
- Aos membros da banca examinadora professores César Barreira e Júlio
Ponte pelos comentários e sugestões a dissertação.
- Aos meus colegas defensores públicos que comigo lutam e sonham por uma
Defensoria Pública melhor;
- Aos colegas do Escritório de Prática Jurídica da Unifor especialmente ao
Professores Otávio e João Neto, pela disponibilização do material e dos dados
para essa dissertação.
Resumo
A presente dissertação tem por objetivo averiguar a inclusão nas atividades da
Defensoria blica das Resoluções Alternativas de Litígios (RAL’s), como um
modo rápido e democrático de fazer Justiça e investigar se a criação desse
espaço público antes do ajuizamento das ações judiciais representa um lugar
que denominamos de “Justiça popular”, que se legitima pela participação ativa
dos envolvidos na solução do litígio por meio do diálogo, da pacificação social,
da solidariedade humana e da inclusão social. Para tanto, analisamos o atual
sistema de Justiça, o perfil da Defensoria Pública na nova ordem constitucional
e também a abrangência das resoluções alternativas de litígios como
instrumento de efetivação do acesso à Justiça, da igualdade e da democracia.
Palavras-chave: Defensoria Pública; Resoluções Alternativas de Litígios
(RAL’s); “Justiça popular”; Acesso à Justiça; Conflito.
Área: Políticas Públicas, Direito, Sociologia.
7
Abstract
The present dissertação has for objective to inquire the inclusion in the activities
of the Public Defensoria of the Alternative Resolutions of Litigations (RAL's), as
a democratic way fast e to make Justice and to investigate if the creation of this
public space before the the filling of a suit of the legal actions represents a
place that we call of "popular Justice", that it is legitimized for the active
participation of the involved ones in the solution of the litigation by means of the
dialogue, of the social pacification, solidarity human being and the social
inclusion. For in such a way, we analyze the current system of Justice, the
profile of the Public Defensoria in the new constitutional order and also the
reach of the alternative resolutions of litigations as instrument of the access to
Justice, the equality and the democracy.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 8
2 O SISTEMA DE JUSTIÇA 15
2.1 O Estado moderno e o Poder Judiciário 15
2.2 O Poder Judiciário no Brasil 20
2.3 Justiça Popular: instrumento legítimo de resolução de conflitos? 25
2.4 Cidadania, acesso à Justiça, igualdade e democracia. 32
3 DISPOSITIVOS DE RESOLUÇÃO ALTERNATIVOS DE
LITÍGIOS (RAL’s) - FORMAS E CONCEITOS. 37
3.1 Conceitos de conflito 37
3.2 Conceitos e limites das resoluções alternativas de litígios 40
3.3 As diversas formas de resoluções alternativas de litígios –
negociação, conciliação, mediação e arbitragem. 47
3.4 A mediação como instrumento de pacificação social 54
3.5 As resoluções alternativas de litígios e a efetivação
dos princípios constitucionais. 56
4 DEFENSORIA PÚBLICA NO UNIVERSO JURÍDICO E SOCIAL 59
4.1 A estrutura da Defensoria Pública no Brasil 59
4.2 O lugar da Defensoria Pública no sistema de Justiça 66
4.3 O alcance social da Defensoria Pública 68
4.4 A Defensoria Pública e a (re)invenção do espaço público 72
5 A DEFENSORIA PÚBLICA COMO ESPAÇO DE JUSTIÇA POPULAR 76
5.1 A experiência do núcleo da Defensoria Pública/UNIFOR 76
5.2 Análise dos dados referentes ao atendimento em geral 78
5.3 Análise dos dados referentes ao Serviço de Solução
Extrajudicial de Disputas (Sesed) 79
5.4 A Efetividade dos métodos alternativos de solução dos litígios (RAL) 94
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 105
1 INTRODUÇÃO
O Brasil atravessou várias transformações, nas últimas décadas,
resultando na confirmação de um modelo democrático de governo. Persistem
ainda várias mazelas que dificultam o relacionamento entre democracia política
e democracia social. Dentre vários componentes que formam esta situação, a
dificuldade de acesso à Justiça é fator significativo nesse contexto, pois o
Poder Judiciário ainda permanece muito distante da maior parte da população,
exacerbando-se o descrédito e persistindo o aumento considerável nos modos
violentos de resolução dos conflitos, notadamente os de natureza interpessoal.
É do conhecimento de todos o fato de que o Poder Judiciário
brasileiro não possui condições estruturais para responder a contento toda a
demanda dos pedidos protocolizados dia após dia, estando hoje à beira de um
colapso. Tal situação transmite um descrédito à população, seja pela
dificuldade de se acessar o serviço, seja pela demora para responder os pleitos
ajuizados. Para FARIAS (2001), o Poder Judiciário foi
estruturado para operar
sob a égide dos códigos processuais civil, penal e trabalhista, cujos prazos e
ritmos e horizontes temporais hoje presentes na economia globalizada. O
tempo do processo judicial é o tempo diferido. O tempo da economia
globalizada é o real, isto é, o tempo da simultaneidade. Além disso, em linhas
gerais, o Poder Judiciário também não costuma dispor de meios materiais nem
de condições técnicas para tornar possível a compreensão, em termos de
racionalidade substantiva, dos litígios inerentes a contextos socioeconômicos
cada vez mais complexos e transnacionalizados
.
Assim, dentre as dificuldades de acesso à Justiça, podemos
enumerar como principais as seguintes: custas judiciais elevadas, longo tempo
para resolução da demanda e quantidade exacerbada de recursos judiciais.
Portanto, ante um estado conflituoso de direitos, o cidadão possui
três caminhos: a) buscar o Estado, apesar de todas as dificuldades; b)
conformar-se em perdê-los; ou c) defendê-los por meios próprios, aumentando
significativamente os índices de violência.
9
Para aplacar esta realidade, vivida por milhares de brasileiros,
muitas opções são apontadas, dentre elas,
(...) várias áreas que requerem reforma institucional podem ser
lembradas. Essas incluem redução de custos de litígio e das causas
de atraso; o estabelecimento de procedimentos convenientes e
informais para pequenas causas; a promoção de maiores incentivos
para alcançar um acordo prévio e meios alternativos de resolução de
litígios; leis liberais de representação; e a adoção do ideal de
“advocacia de interesse público” como um componente essencial de
educação legal, treinamento profissional e prática do direito (GARRO,
2000: 317).
Além destas, não se pode esquecer da formação técnica e ética
dos operadores do Direito, pois não adianta reformar todo o sistema sem
modificar a cultura de quem o gerencia. COMPARATO (1997) enfatiza que o
ponto crucial dessa reforma (do Poder Judiciário) não é tanto a necessidade de
se emendar a Constituição é mais o imperativo de uma preparação funcional
de nossos juízes para o cumprimento de seus deveres constitucionais. Nesse,
como em todos os demais segmentos do Estado, a sociedade brasileira
continua exibindo o mais solene desprezo pela educação de seus dirigentes.
No caso dos magistrados e dos membros do Ministério Público, a
deficiência educacional o ocorre apenas no campo técnico - pela ignorância,
muitas vezes, dos rudimentos da ciência do Direito -, mas aparece também e,
sobretudo no terreno ético, pela completa incultura cívica de grande parte dos
homens e mulheres a quem foi confiada a missão de zelar pelo respeito aos
valores básicos da cidadania.
Diante destes problemas, muitos buscam vias alternativas para
compor os litígios de forma célere e eficaz, como as resoluções alternativas de
litígios (RAL’s) (negociação, conciliação, mediação e arbitragem), como
possibilidades viáveis.
Com efeito, o presente trabalho teve como objetivos: investigar a
possibilidade da consecução de um novo espaço público de Justiça popular,
para a resolução de conflitos sociais, a partir da concepção que buscamos da
Defensoria Pública na ordem jurídica constitucional; examinar a abrangência
10
das resoluções alternativas de litígios (RAL’s) na efetivação dos direitos de
acesso à Justiça, e igualdade; evidenciar as bases dos métodos de Resolução
Alternativa de Litígios: diálogo, pacificação social, solidariedade humana e
inclusão social; averiguar o papel social da Defensoria blica com base em
um novo perfil constitucional para ela elaborado.
Como caminho metodológico para realizar esta investigação, foi
empregado o método descritivo-analítico, com o uso da pesquisa bibliográfica e
documental de leitura e consulta correntes, constituído de livros, artigos
científicos, documentos e pesquisas oficiais, reportagens em jornais e revistas,
pesquisa na internet, entre outros.
Coletamos e analisamos, ainda, dados junto ao Serviço de
Solução Extrajudicial de Disputas (SESED) do Escritório de Prática Jurídica da
Universidade de Fortaleza, conveniado com a Defensoria Pública-Geral do
Estado (EPJ/DP-CE), que trabalha as diversas formas RAL’s - conciliação,
mediação, negociação, facilitação de diálogo e aconselhamento patrimonial
com área de abragência em toda a Capital cearense, no intuito de saber a
eficiência e a eficácia destes métodos junto aos assistidos. Considerando,
sobretudo, a observação participante do pesquisador como membro integrante
do EPJ/DP-CE.
A dissertação está divida em seis capítulos, sendo o primeiro a
introdução e o sexto as considerações finais.
No capítulo 2 – seqüente a esta Introdução – examinamos o
Judiciário como dispositivo do sistema estatal, sempre tendo por base as
estruturas do Estado moderno e o sistema capitalista, onde o lucro e o poder
econômico se sobrepõem aos valores sociais e políticos. Buscamos,
efetivamente, investigar o comportamento do Judiciário brasileiro perante as
grandes conquistas sociais prescritas na Constituição de 1988 e em legislação
complementar. O estudo foi importante para permitir o conhecimento do perfil
do Judiciário brasileiro, suas tendências e contradições, com a finalidade de
propiciar melhor compreensão do sistema de Justiça do Estado nacional.
11
Na seqüência, realizamos uma análise da crise que atravessa o
atual sistema de Justiça brasileiro, o seu descompasso em relação às novas
formas de organização econômica e configurações de poder. Analisamos por
que os ritos e procedimentos judiciais ainda são incompreensíveis para a
maioria da população, e por que o Judiciário é um poder estatal tão distante do
povo.
Com origem nessa realidade, discutimos o conceito de Justiça
popular, apoiado em um diálogo travado entre Michel FOUCAULT (2004) e
militantes maoístas franceses, em junho de 1971, quando procuravam
sistematizar um projeto de tribunal popular para julgar a polícia, a fim
compreendermos o conceito de Justiça popular e reavermos o sentido de
legitimidade, os atos de decisão e, ainda, conferirmos a maneira como
acontece a participação do povo nesse processo de fazer Justiça.
Foi nossa intenção, ainda, compreender e descrever de que modo
funciona o esforço para facilitar o acesso do cidadão à Justiça, com a criação
de mecanismos mais populares, considerando que o sistema judicial brasileiro
ainda se encontra bastante desfocado de seu principal objetivo, que é a
solução eficaz dos conflitos mediante a aplicação das leis. Essa dificuldade tem
como justificativa a falta de estrutura do Poder Judiciário e da Defensoria
Pública, da formação dos operadores do sistema judicial (juízes,
advogados, promotores de justiça e defensores públicos), que ainda são
forjados em um sistema extremamente ritualista, legalista e burocrático, com
apego excessivo a formas e fórmulas escritas, e também pela ignorância da
maioria da população no tocante aos seus direitos mais básicos.
No terceiro capítulo, procuramos, antes de estudarmos as RAL’s
como formas possíveis de resolução de conflitos, entender o que chamamos de
conflito. Para isso, buscamos apoio em alguns autores que compreendem o
litígio como forma de sociação. A partir de então, buscamos em nossa análise
explicativa definir e conceituar as RAL’s (negociação, conciliação, mediação e
arbitragem) como modos diferentes de praticar justiça. Trata-se de meios
12
extrajudiciais e consensuais de composição de conflitos, não os negando nem
utilizando subterfúgios para deles fugir, mas explicitando-os por meio do
diálogo entre as partes, com o objetivo de prevenir situações extremas, como
rixas, intrigas, desavenças e agressões físicas mútuas; e abordando o conflito
numa perspectiva positiva
1
, mediante a participação ativa dos envolvidos,
responsabilizando-os pela solução do impasse e possibilitando uma boa
administração das circunstâncias vivenciadas.
Segundo George SIMMEL (1993), existem várias maneiras de
manifestação do conflito, sendo a violência somente uma de suas facetas.
Assim, o conflito é somente uma das formas de sociação destinada a resolver
vontades opostas.
Trabalhamos o conceito de negociação, conciliação, mediação e
arbitragem sob a óptica de alguns autores (Luís Alberto WARAT, 2001; Maria
Inês Correa de Cerqueira César TARGA, 2004; Jean-François SIX, 2001 e
Adolfo BRAGA NETO, 1999) delimitando os objetivos e os princípios destes
conceitos e procurando mostrar que estes métodos não significam uma
panacéia, mas, quando bem empregados, são instrumentos valiosos e eficazes
na resolução de alguns conflitos, pois constituem opção célere, segura e viável.
Discutimos o tema na perspectiva da legislação vigente e examinamos quais
conflitos podem ser solucionados, aplicando-se a negociação, conciliação,
negociação e arbitragem, lobrigando suas vantagens e desvantagens.
Foi nosso propósito, ainda, estabelecer a diferença conceitual
entre negociação, conciliação, mediação e arbitragem, tomando na devida
conta a relação teórico-empírica da pesquisa, ou seja, partindo de uma
experiência empírica destes métodos. Perfilhamos o entendimento de que as
RAL’s são dispositivos alternativos de pacificação das relações sociais,
destacando a contribuição que estes podem dar aos princípios constitucionais
da democracia, da igualdade e do acesso à Justiça.
1
A visão positiva do conflito é aquela que ressalta a possibilidade de crescimento das partes
envolvidas, pela superação de obstáculos e pela possibilidade de formular uma situação
melhor de relacionamentos.
13
No quarto capítulo, analisamos a Defensoria Pública como
instituição de bases constitucionais, expressando sua missão institucional e
compromissos sociais e indicamos qual sua posição no sistema geral de
Justiça.
Com apoio no esquema há pouco delineado, buscamos ainda
descrever a Defensoria Pública, seus atributos organizacionais e sua
identidade no universo jurídico.
Com isso, descrevemos as modificações realizadas na
Defensoria Pública brasileira nos últimos tempos, após a Constituição de 1988.
A ampliação de seu espaço social a partir do trato de questões coletivas que
favorecem a promoção, a defesa dos direitos humanos e a organização
comunitária. Portanto, neste contexto de realidade, averiguamos a maneira
como a Defensoria Pública pode vir a se constituir efetivamente em um espaço
público de Justiça popular, onde as partes possam decidir o seu conflito de
maneira diferente da convencional, mediante o diálogo, o respeito à pessoa do
outro e a solidariedade, buscando restaurar as relações sociais abaladas pelo
litígio.
No quinto capítulo, buscamos analisar a experiência desenvolvida
pelo SESED (Serviço de Solução Extrajudicial de Disputas) do EPJ-DP-CE,
órgão da Universidade de Fortaleza, conveniado com a Defensoria Pública do
Ceará, na adoção dos mecanismos de solução extrajudicial de conflitos. Como
se administram no atendimento formal os mecanismos de resolução de
conflitos interpessoais, além disso, examinamos como a Defensoria Pública
pode vir a se constituir num espaço de Justiça popular por meio de sua
inserção na comunidade e como pode garantir a efetivação da negociação,
conciliação, mediação e arbitragem comunitária, colaborando com a
capacitação das lideranças, incentivando sua aplicação antes do ingresso do
processo formal, favorecendo e promovendo, desta forma, a pacificação social
e a cidadania.
14
Nas considerações finais – capítulo 6 - analisamos todo o material
pesquisado e tecemos algumas considerações com base nos dados que
subsidiaram o trabalho em tela, seguindo-se, no seu remate, a lista das
referencias, empregadas para embasar empírica e teoricamente a
investigação, à guisa de justificação dos seus achados.
2 O SISTEMA DE JUSTIÇA
2.1 O Estado moderno e o Poder Judiciário
Quando nos propomos a realizar uma análise do aparelho de
Justiça estatal, não o podemos fazer sem considerar as estruturas gerais do
Estado como pressuposto de compreensão.
Com efeito, sabemos que o Judiciário e todos os órgãos do
sistema de Justiça - Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia Judiciária e
outros - são dispositivos do Estado. Logo, é indispensável realizar o exame do
Estado como uma totalidade, para averiguar a função que nele desempenham
estes dispositivos.
O Estado moderno, historicamente, apresenta algumas variações
de forma. Estas são modelos ideais, claro, apenas nos seus conceitos, pois em
seu desenvolvimento real registram contradições e desajustes. De qualquer
modo, este estudo é importante para sabermos, diante da reestruturação do
capitalismo e reordenação das riquezas, globalização e transnacionalização
dos mercados, o que podemos almejar do sistema de Justiça estatal, nas
formas e modos como foi constituído pelo Estado moderno.
Originariamente, o sistema de Justiça, no período histórico do
capitalismo, foi arquitetado para preservar os direitos de propriedade, garantir a
eficácia dos direitos individuais, proteger o exercício dos direitos fundamentais
e liberdades públicas e, por fim, assegurar o fiel cumprimento da lei,
resguardando os cidadãos dos abusos do Estado.
Posteriormente, o sistema de Justiça, também com intuito de
estabelecer políticas públicas de cunho compensatório, passou a implementar
os chamados direitos sociais.
Atualmente, o capitalismo assume um papel de regulação social,
por intermédio da transnacionalização. Os limites de tempo e espaço foram
16
modificados, reduzindo as fronteiras jurídicas e burocráticas entre países. Os
capitais financeiros ficam imunes às fiscalizações estatais e a atividade
produtiva, dia a dia, se fragmenta em diversos países e transforma a sociedade
em grupos e mercados unidos em rede. Tal situação causa embaraço nos
instrumentos de controle dos agentes nacionais, notadamente nas regiões
denominadas de periféricas e semiperiféricas, ou seja, nos países de Terceiro
Mundo, mais especificamente na África e América Latina.
As decisões governamentais são vulneráveis a opções feitas em
outros lugares, onde o poder de influência e pressão da população destes
países é quase nenhum.
Esta situação acentuou as desigualdades socioeconômicas e
aumentou os conflitos entre poderes locais, regionais e nacionais. Desta forma,
foram comprometidas a centralidade e a exclusividade das estruturas jurídicas
dos Estados-nações, baseadas nos princípios da soberania e da
territorialidade, no equilíbrio dos poderes, na distinção entre o público e o
privado e, sobretudo, na idéia do Direito positivo como sistema lógico-formal de
normas abstratas, genéricas, claras e precisas.
Disso resulta a articulação contraditória dos ordenamentos
jurídicos, que não se apresentam nem “completos” nem “coerentes”, como
propaga, apologeticamente, a dogmática jurídica.
Para FARIA (2001), o Poder Judiciário, organizacionalmente, foi
estruturado para atuar sob a égide dos códigos processuais civil, penal e
trabalhista, cujos prazos e ritos não se coadunam com a multiplicidade de
lógicas, procedimentos decisórios, ritmos e horizontes presentes na economia
globalizada. O tempo do processo judicial é o tempo diferido. O tempo da
economia globalizada é o real, simultâneo. Fora isso, o Poder Judiciário não
consegue acompanhar os avanços tecnológicos que permitem tornar possível a
compreensão, em termos de racionalidade substantiva, dos litígios inerentes a
contextos socioeconômicos cada vez mais complexos e transnacionalizados.
17
Esse quadro de profundo antagonismo, nos campos social,
jurídico, econômico e ideológico, repercute intensamente na sociedade,
causando situações difíceis de contornar, com medidas superficiais e
paliativas.
É flagrante a generalização do conflito no seio da sociedade,
passando a ser um traço típico das formações sociais capitalistas. Quando se
trata do chamado capitalismo periférico, a conflituosidade assume números
alarmantes e acentua a violência urbana, dado que a contradição entre a
riqueza da minoria e a pobreza e miséria da quase totalidade é muito mais
perversa do que nos países de capitalismo mais avançado.
O Poder Judiciário, dentro desta perspectiva, deveria assumir o
papel de equilibrar as forças e tentar conseguir contrabalançar os avanços do
capital com as conquistas sociais, mas, ao contrário do que se esperava, passa
a funcionar como anteparo destas conquistas sociais, conseguidas a duras
penas pelos setores populares organizados nas casas legislativas, anulando-as
ou reduzindo-as. Desse modo, os espaços abertos pelas lutas do povo na
esfera do Poder Legislativo são objeto de invalidação na hora da concreção
pelo Judiciário, fenômeno, segundo ROCHA (1995), comum nos judiciários de
outros países subdesenvolvidos, dada sua identidade estrutural e funcional
com o poder.
Portanto, para ROCHA (1995), nos países periféricos, o Poder
Judiciário parece desempenhar um papel de aniquilamento das conquistas
sociais alcançadas pelo povo no campo do Poder Legislativo, por sua não-
aplicação ou por sua interpretação restritiva. Para tanto, ele relata alguns
exemplos que parecem bem significativos, como a função social da
propriedade (artigos , XXIII e 170, III da Consti tuição Federal), deixada sem
eficácia pelo Judiciário, que continua enxergando a propriedade como direito
absoluto, concedendo sistematicamente liminares em ações possessórias para
despejar inúmeras famílias de sem-terras e sem-tetos, por meio de medidas
liminares de cunho “satisfativo”, gritantemente inconstitucionais, por agredirem
os princípios do contraditório e do devido processo legal, garantias
18
constitucionais que visam a proteger a dignidade da pessoa humana. Outros
exemplos podem ser citados, como a Lei da Reforma Agrária, o Estatuto da
Terra e o Estatuto do Trabalhador Rural; a Lei de Desapropriação do Solo
Urbano por Interesse Social (Lei 4.132/62). As diversas leis sobre economia
popular, inclusive o Código do Consumidor; as leis sobre os chamados “crimes
do colarinho branco” (crimes de responsabilidade; sonegação fiscal; mercado
financeiro; corrupção eleitoral; mercado de capitais; abuso de autoridade; meio
ambiente etc.).
Por outro lado, os juizados especiais
2
, criados para desenvolver
uma justiça para as classes populares com maior rapidez e eficácia, continuam
sendo um retrato da Justiça tradicional, congestionados, morosos e ineficazes.
Nota-se muito claramente a grande resistência, por parte dos
operadores do Direito, em relação à nova Justiça consensual. Controvérsias
são fecundadas e críticas são direcionadas ao instituto, com freqüência.
Os juizados especiais ainda são alvo de muitas criticas, dentre as
quais posições negativas, como as que afirmam que a Lei 9.099/95 é uma
aberração jurídica, dado que seu cumprimento fere a honorabilidade do
cidadão, ofende a sua cidadania e o Estado nega a sua prestação jurisdicional
ao cidadão com o esdrúxulo pretexto de "desafogar" as prateleiras dos
tribunais comuns.
Muitos operadores do Direito, descrentes e receosos, consideram
os juizados como Justiça de segunda categoria, tendo como duplo fundamento
o temor de perda da clientela e a preocupação com a qualidade da jurisdição,
em virtude da ausência de defesa técnica e adequada às partes.
Ao contrário da expectativa inicial, não ocorreu o alívio das varas
da Justiça tradicional. De fato, foi observado o inchaço dos juizados especiais
2
Criados pela lei 9.099/95, que tem por função julgar os crimes de menor potencial ofensivo,
aqueles punidos com pena máxima até dois anos, e as questões cíveis de menor
complexidade, que envolvam valores de até quarenta salários mínimos.
19
imediatamente após sua criação, atingidos por imensa gama de ações que
anteriormente não iriam parar na barra dos tribunais.
A ânsia por uma justiça acessível e a promessa de agilidade e
simplicidade atraíram grande número de litigantes de "pequenas causas";
serviram de propulsão para uma até então dissimulada demanda reprimida
pelos aborrecimentos do rigor judiciário. Muitas pessoas estão deixando de
recorrer à Justiça comum, abrindo mão de parte de seus direitos, para
enquadrá-los na competência dos juizados especiais, com o intuito de ver
atendidas suas reivindicações num tempo menor. Resultado: os juizados
operam em seu limite máximo, pois encontram-se tão saturados quanto a
própria Justiça comum, provocando morosidade forçada em sua atuação.
Hoje, o prazo entre o ajuizamento da ação e a primeira audiência
não é menor do que trinta dias e o lapso do início ao término da demanda
alcança, às vezes, mais de dois anos, o que desvirtua a orientação de
celeridade prevista na legislação específica dos juizados especiais.
Este cenário de crise nos indica que o Poder Judiciário no Estado
moderno deve ser alvo de modificações e tende a perder seu monopólio
jurisdicional em algumas áreas, setores e matérias. Talvez somente com
medidas de políticas estruturais possamos vislumbrar algo novo para o futuro.
Entre estas medidas, alguns apontam a popularização dos métodos
alternativos de resolução de conflitos, por meio de cartilhas, cursos populares e
outros, a ampliação do acesso à Justiça por intermédio da Defensoria Pública,
modificação da formação intelectual dos operadores do Direito, maior
participação da sociedade no controle do Judiciário e outras.
É necessário cuidado, todavia, para que estes instrumentos não
se tornem um fosso maior entre pobres e ricos e estes, criando suas “justiças
particulares”, fujam da ineficiência da Justiça pública.
20
2.2 O Poder Judiciário no Brasil
O sistema judiciário brasileiro demonstra historicamente grandes
dificuldades em desempenhar seu papel social, configurado na solução de
demandas e conflitos, notadamente os de natureza interpessoal. Essas
dificuldades têm por causa suas estruturas pesadas e defasadas, de modo
que, ipso facto, ele não consegue em muitos casos dar a resposta adequada
ao conflito, em virtude de seus procedimentos extremamente lentos e
burocratizados e, algumas vezes, pela forma como é conduzido, é ainda muito
oneroso para a maior parte da população.
O Poder Judiciário brasileiro parece não acompanhar o ritmo das
mudanças com a velocidade necessária, isso em decorrência de uma forma de
estrutura hierarquizada e operativamente fechada, orientada por uma lógica
legal-racional e obrigada a uma rígida e linear submissão aos ritos legais.
Possui estrutura operacional ainda muito formal, na qual a égide dos digos
prevalece, bem assim os prazos judiciais não se coadunam com a necessidade
das partes, com o tempo da economia globalizada e de comunicação e
informação em tempo real.
Pesquisa realizada pelo IBOPE, a pedido da Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB), e divulgada pelo jornal O POVO (19/09/2004),
revela que, para a população, o animal que melhor representa o Judiciário
brasileiro é a tartaruga, por conta da lentidão.
No imaginário da população brasileira, a tartaruga é o animal mais
associado ao Poder Judiciário. É o que revela uma pesquisa feita
pelo Ibope a pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB). O trabalho foi realizado em março, com grupos de discussões
em quatro capitais, mas o relatório final do levantamento foi
divulgado no início do mês pela própria direção da AMB. A referencia
ao réptil vem da imagem, compartilhada por todos os entrevistados na
pesquisa, de uma justiça lenta” e que demora muito para chegar a
uma decisão (Ö POVO, 19/09/2004, p.21).
Outra pesquisa, intitulada A Justiça em Números, realizado pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), mostra que o Poder Judiciário custa aos
cofres públicos R$ 19, 24 bilhões por ano e deixou de julgar, no primeiro ano
21
referente à pesquisa, 59,27% dos processos que deram entrada no sistema,
recebendo nota 4,2 atinente ao seu desempenho.
A pesquisa mostra que apenas 40,73% dos processos passam
por algum julgamento logo no primeiro ano. O restante fica pendente para os
anos seguintes, congestionando a Justiça. A capacidade de satisfação do
sistema é de 41%.
O “custo-Justiça” medido pelo STF mostra que cada cidadão
gastou em média R$ 108,82 com o Judiciário em 2003. No período da
pesquisa, entraram no sistema 17.494.906 processos - um para cada dez
pessoas, considerando a estimativa de 183 milhões de brasileiros feita pelo
IBGE (Fundação Instituto de Brasileiro de Geografia e Estatística).
O ex-presidente do STF, ministro Nelson Jobim, comentando
estes dados, o considera que a causa da ineficiência do Judiciário seja a
falta de juízes, pois acha adequado o número existente no País (13.747, uma
média de 7,62 juízes por 100 mil habitantes). De acordo com Jobim, a
individualidade das decisões é o fator preponderante para a lentidão da
máquina do Judiciário (O POVO, 07/05/2005, p.21).
Talvez o excesso de demandas do Judiciário brasileiro seja uma
das causas da sua morosidade. Embora tenhamos um número razoável de
juízes por habitantes, nossa Justiça é considerada uma das mais lentas do
mundo. Como veremos a seguir, análise mais interessante é o numero de
processos por juiz, onde o Brasil se apresenta muito acima da média aceitável.
Não basta, entretanto, a análise destes dados para se
compreender a crise da Justiça brasileira, se não levarmos em conta a
contextualização de outros fatores tratados neste trabalho. A Justiça poderá ser
lenta, ainda que tenhamos juízes e funcionários excedentes, permanecendo
inalterada a estrutura sobre a qual se edificam os institutos operacionais.
22
A título de informação, encontra-se um quadro comparativo
abaixo entre diversos países sobre a relação de habitantes por juiz de carreira:
PAÍSES
HABITANTES/JUIZ (JUDICIAL)
PORTUGAL 6.600
EUA 8.178
HOLANDA 10.666
ITÁLIA 11.600
BRASIL 12.967
ESPANHA 13.333
INGLATERRA 27.777
JAPÃO 45.561
Fonte: www.artnet.com.br/~lgm/comparajust.doc, acesso em 19/05/2004.
Como podemos notar, engana-se quem encontra a solução da
lentidão do Judiciário, tomando por base apenas o número de juízes. Portugal,
embora figure com a melhor média de habitantes por juiz, é apontado como um
dos países de justiça mais lenta, entre os europeus. E é a principal inspiração
de nossos legisladores.
3
Por outro lado, se tomarmos o número de ações por juiz, a situação
brasileira é caótica. Os dados divulgados pelos Indicadores Estatísticos do
3
A justiça portuguesa passa por problemas semelhantes, como se no seguinte
comentário: "Mais de um milhão de processos pendentes, pessoas e bens à mercê de um
sistema podre: é o retrato negro de uma Justiça em que os portugueses deixaram de
acreditar e a que os advogados declaram guerra (...). A situação é tão preocupante que o
bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel, marcou para as próximas semanas uma
campanha de denúncia daquilo a que chama "a galeria de horrores" da Justiça portuguesa.
De 18 de Maio a 20 de Junho, em conferências de Imprensa e acções públicas, Júdice e a
sua equipa revelarão, num implacável ataque em regime de gota a gota, "exemplos
clamorosos do estado intolerável em que se encontra a Justiça". trechos de um artigo
publicado na Revista Focus, por José Carlos Marques a 12 de maio de 2004, também
divulgada no sítio da OAB de Portugal.
23
Judiciário Brasileiro no Supremo Tribunal Federal e divulgado pelo então
presidente da Corte, Nelson Jobim, revelam que a média brasileira no grau
4
é 3,4 mil ações por julgador na Justiça Estadual e, 6,5 mil na Justiça Federal. A
Justiça do Trabalho foi a que apresentou o melhor indicador, com 1.898,30
ações por juiz. Vejamos o quadro abaixo, onde é demonstrada a quantidade de
feitos por juiz no Brasil, excetuando-se os juizados especiais.
NÚMERO DE AÇÕES POR JUIZ
ÂMBITO
1º GRAU 2º GRAU
JUSTIÇA ESTADUAL 3.400,79 1.306,87
JUSTIÇA FEDERAL 6.505,00 10.070,00
JUSTIÇA DO TRABALHO 1.898,30 1.299,83
Fonte: www.stf.gov.br
5
Com base nos indicadores ora revelados, está claro que o
Judiciário brasileiro padece hoje de grave necessidade de modernização e
adaptação aos novos problemas da sociedade, e a previsão é de que, mesmo
melhorando a administração dos tribunais, o Judiciário não será capaz de arcar
com a quantidade de novos litígios advindos das novas relações estabelecidas
pelo mercado livre, pela competitividade social e, sobretudo, pelo aumento da
belicosidade das relações sociais. Segundo SUTIL (2000), a maioria dos
especialistas e agentes judiciários na América Latina está convencida de que a
quantidade crescente de litígios não pode ser enfrentada com um Judiciário
vulnerável e que a solução não é simplesmente multiplicar o número de
4
Justiça de 1۫ Grau corresponde aos juízes singulares que funcionam nas unidades judiciárias
(varas), enquanto a Justiça de 2۫ Grau corresponde aos tribunais de Justiça que são órgãos
colegiados.
5
Os dados foram oficialmente publicados pelo STF, no mês de maio de 2005.
24
tribunais em um sistema que não é apenas mal financiado, mas também sofre
de estrutura e cultura profissional inadequadas.
Assim, o atual sistema de Justiça brasileiro precisa ser
repensado na perspectiva de um novo momento político mundial, quando o
capitalismo abre caminhos para novas formas de organização econômica e
outras configurações de poder. A globalização, mundialização ou, ainda, como
preferem alguns, a transnacionalização, é um fenômeno inexorável que agrava
as desigualdades socioeconômicas preexistentes e acirra os conflitos em todos
os níveis.
No Brasil, boa parte do contingente populacional não conhece
nem dispõe dos mais básicos direitos, proliferando o baixo nível de
conhecimento jurídico e político, acirrando a convivência em comunidade e
transformando os grandes aglomerados urbanos em potenciais fontes de
iminentes conflitos de grandes proporções. É necessário que se estabeleça
uma política pública de acesso à Justiça, no âmbito da qual o conflito seja
tratado de maneira preventiva, eficaz e rápida, evitando que termine no crime.
A solução apontada por muitos para esta realidade são os
chamados métodos alternativos de resolução de conflitos, como a negociação,
a conciliação, a mediação e a arbitragem. Para executá-los, porém, os
operadores do Direito devem se adequar a um novo perfil, mais dinâmico e
menos ritualista, capaz de buscar soluções inovadoras e menos dogmáticas,
procurando maior inserção no contexto social e político. Podemos assinalar
que os métodos alternativos de resolução de conflitos, hoje, manifestam-se
como expressão dos direitos fundamentais, e devem ser entendidos de
maneira ampla, podendo ser exercidos por todos os meios legítimos,
institucionais ou não, propensos à consolidação da cidadania, que, por sua vez,
requer a ativa participação popular no processo decisório.
25
2.3 Justiça popular - instrumento legítimo de resolução de conflitos?
Michel FOUCAULT (2004), utilizando-se de análises históricas
circunscritas no âmbito de dada localização, faz reflexões que nos permitem
entender como se estabelece a complexa engenharia do poder, fazendo ver
nosso presente histórico e nos ajudando a uma melhor compreensão da
sociedade, permitindo, desta forma, estabelecer comparação com as condições
de possibilidades à mão para o enfrentamento da problemática em tela.
As idéias aqui analisadas são frutos de uma discussão entre
Foucault e militantes maoístas franceses, travada em junho de 1971, na
oportunidade em que procuravam sistematizar um projeto de um tribunal
popular para julgar a polícia.
Esse debate sobre Justiça popular está contextualizado, em um
momento específico da militância política de Foucault, logo após sua admissão
ao Collège de France, em 1970. Nessa época, o Filósofo francês participava de
uma série de manifestações, reivindicações e protestos típicos da esquerda
parisiense daquele período. Foucault não se engajou em nenhum movimento
político, mas sua atuação o aproximou da esquerda maoísta. Desta forma,
deve ser entendido o uso, nesse debate, de um vocabulário que raramente é
encontrado em seus textos. Expressões como “aparelho de Estado” e
“ideologia”, típicas de Louis Althusser.
Foucault inicialmente questiona a forma do tribunal, e pergunta
como e em que condições pode existir um tribunal popular, a partir da Justiça
popular ou dos atos de Justiça popular, em que lugar estes podem ocupar um
tribunal. “É preciso se perguntar se esses atos de justiça popular podem ou não
se coadunar com a forma de um tribunal” (FOUCAULT, 2004: 39).
Portanto, para FOUCAULT (2004), o tribunal não é uma
expressão natural de Justiça popular, pelo contrário, a história demonstra a
contradição entre os dois, sendo que o primeiro sempre quis reduzir, dominar e
sufocar o segundo. Ele rechaça a idéia de que a terceira instância pode situar-
26
se entre o povo e os seus inimigos, com o fim de estabelecer a verdade ou
obter a confissão com a deliberação de saber o que é justo, o que é certo e o
que é errado, porquanto, esta instância se impõe a todos pela via autoritária. E
questiona: “homens da comuna de Paris, ou próximo dela, intervieram e
organizaram a cena do tribunal: juizes atrás de uma mesa, representando uma
terceira instância entre o povo que grita ”vingança” e os acusados que são
“culpados” ou “inocentes”; interrogatórios para estabelecer a “verdade” ou obter
a “confissão”; deliberação para saber o que é “justo”; instância imposta a todos
por via autoritária. Será que não vemos reaparecer aqui o embrião, ainda que
frágil, de um aparelho de Estado? A possibilidade de uma opressão de classe?
Será que o estabelecimento de uma instância neutra entre o povo e os seus
inimigos, susceptível de estabelecer fronteiras entre o verdadeiro e o falso, o
culpado e o inocente, o justo e o injusto, não é uma maneira de se opor a
justiça popular? Uma maneira de desarmá-la em sua luta real em proveito de
uma arbitragem ideal? É por isso que eu me pergunto se o tribunal, em vez de
ser uma forma de justiça popular, não é sua primeira deformação” (2004: 40).
O que ele questiona é a legitimação da instância.
FOUCAULT (2004) aproveita para fazer um histórico do aparelho
de Estado judiciário. Inicia sua análise relembrando os tribunais arbitrais da
Idade Média, para onde se recorria, por consentimento tuo, para pôr fim a
um litígio ou a uma guerra privada. Estes tribunais arbitrais eram eventuais,
pois o constituíam esfera permanente de poder, além de serem flexíveis e
pouco centralizados. Este sistema conciliatório foi substituído por um conjunto
de instituições estáveis, específicas e com força advinda do poder político para
intervir autoritariamente sobre os litígios. Essa transformação teve por base
dois mecanismos. O primeiro foi a fiscalização, tornando a Justiça fonte de
riqueza para o poder feudal, com aplicação de multas, confiscos, seqüestros de
bens, servindo também de meio coercitivo contra o cidadão. O segundo foi
estreitar o elo entre Justiça e forças armadas, fazendo assim a substituição das
guerras privadas por uma justiça obrigatória e lucrativa, substituindo as
transações e acordos dos árbitros por sentenças impositivas, pelas quais o juiz
exerce a função de parte e fisco, garantindo, desta forma, a apropriação de boa
parte do produto de trabalho. Assim nasce o aparelho judiciário.
27
Esse sistema auxiliou o feudalismo a enfrentar as grandes
revoltas camponesas e urbanas, fazendo aparecer o Parlamento, os
procuradores do rei, as diligências, as legislações contra os mendigos. O
aparelho judiciário apresentou-se como expressão do poder público, sendo
árbitro, ao mesmo tempo, “neutro” e autoritário, com o encargo de decidir
“justamente” os litígios e ao mesmo tempo impor autoritariamente a sua ordem.
Foi a partir desta realidade histórica que Foucault atribuiu a
impopularidade do Poder Judiciário, ou, exprimindo melhor, a falta de
legitimidade que este poder tem em toda Europa Ocidental, “Compreendo por
que na França e, creio, na Europa Ocidental, o ato de justiça popular é
profundamente antijudiciário e oposto à própria forma do tribunal. Nas grandes
sedições, desde o culo XIV, atacam-se regularmente os agentes da justiça,
tal como os agentes do fisco e, de uma maneira geral, os agentes do poder:
abrem-se as prisões, expulsam-se os juízes e fecha-se o tribunal. A justiça
popular reconhece na instância judiciária um aparelho de Estado representante
do poder público e instrumento do poder de classe” ( 2004: 43).
Efetivamente, o aparelho judiciário não inspirava a confiança do
povo, pois suas decisões eram divorciadas da Justiça e o povo não conseguia
ver a expressão desta Justiça nos atos judiciários. É daí que Foucault insiste
em distinguir atos de Justiça popular da Justiça feita pelos tribunais, quando
relata situações que classifica de ritos da Justiça “pré-judiciária” e entende que
estes se coadunam com os atos de Justiça popular pelo caráter imediato da
resposta e pela legitimidade que estes possuem: “Parece-me que a história da
justiça como aparelho de Estado permite compreender porque, pelo menos na
França, os atos de justiça realmente populares tendem a escapar ao tribunal e
por que, ao contrário, cada vez que a burguesia quis impor à sedição do povo a
coação de um aparelho de Estado, se instaurou um tribunal: uma mesa, um
presidente, assessores e dois adversários em frente. Assim reaparece o
judiciário” (2004: 44).
Para ele, até a organização espacial do tribunal - a disposição das
pessoas dentro da sala de julgamento - reflete uma ideologia: uma mesa; atrás
28
dessa mesa, que os distância ao mesmo tempo das duas partes, estão os
juízes; tudo isso para demonstrar uma suposta neutralidade do julgador e para
demonstrar que seu julgamento é imparcial. E assim se desenvolve o processo
com a ouvida das duas partes e a apuração das provas, tudo em função de
uma norma de verdade previamente estabelecida que expressa o justo e o
injusto, e a decisão que dali provier terá caráter impositivo pela força do
Estado. “Ora, creio que essa idéia de que pode haver pessoas neutras em
relação às duas partes, que podem julgá-las em função de idéias de justiça
com valor absoluto e que as suas decisões devem ser executadas vai
demasiado longe e parece muito distante da própria idéia de uma justiça
popular” (2004: 45).
Na concepção foucaultiana, na Justiça popular não três
elementos, mas somente dois: as massas e os seus inimigos. Quando estas
reconhecem em alguém um inimigo e decidem castigá-lo ou reeducá-lo, não
partem de uma idéia de Justiça absoluta e universal, mas têm por parâmetro a
própria experiência, a partir de suas dores, da sua intensidade e como foram
oprimidas. Por isso, a decisão das massas não é de autoridade, pois não tem o
Estado para chancelar suas decisões e impor autoridade. Elas as executam
pura e simplesmente. Por tudo isso é que Foucault rechaça a organização
ocidental do tribunal e reafirma o divórcio deste com a Justiça popular.
Estão destacados, portanto, três elementos que caracterizam o
tribunal e demonstram de forma figurativa sua distância do povo, ou, como
prefere Foucault, das massas, São eles: primeiro, o “terceiro”, que é
representado pelo juiz imparcial, neutro, distante das partes; o segundo é
caracterizado pela norma justa, representativa da verdade universal de Justiça;
e o terceiro e último é a força executória que advém do Estado para impor a
decisão final.
Toda critica de Foucault em relação aos tribunais está na sua
maneira de ser, pois ideologicamente desempenham papel de dominação, uma
vez que são formados por pessoas não do povo e se estabelecem como um
anteparo, uma barreira entre o povo e seu inimigo, quando na verdade a
29
Justiça deveria constituir um aparelho advindo das massas e controlado pelas
massas, e que desempenharia um papel positivo, não de decidir no lugar dela,
mas de assegurar a educação, a formação política, o alargamento dos
horizontes e das experiências políticas das massas. Desta forma, não seria
necessário impor uma sentença, mas os atos de uma Justiça popular deveriam
partir do povo, para que ele próprio pudesse sentenciar, absolvendo ou
condenando.
A Justiça como aparelho de Estado, ao contrário, sempre
executou misteres de controle na história, não permitindo a emancipação das
massas. O sistema de punição teve como meta destacar algumas contradições
no meio do povo e, sobretudo, situar em lados opostos os plebeus
proletarizados e os plebeus não proletarizados. Em dado momento, o sistema
penal, que exercia trabalho de fiscalização na Idade Média, passa a interessar-
se pela luta anti-sediciosa, pois o encargo de repressão das revoltas populares
era tarefa militar, e passou a ser atividade do sistema de justiça-polícia-prisão.
Esse sistema justiça-polícia-prisão de acordo com FOUCAULT
(2004), teve como missão desempenhar triplo papel, e, de acordo com a
época, a luta ou a conjuntura, era mais acentuado um desses papéis. Este
triplo papel compreende: primeiro, a função de coagir o povo a aceitar sua
condição de proletário, sem se revoltar ou ameaçar o sistema vigente. Do final
da Idade Média até o século XVIII, floresceu uma legislação voltada contra os
mendigos, os ociosos e vagabundos, como forma de expulsá-los e coagi-los a
aceitar no próprio lugar onde viviam as condições subumanas a eles impostas.
Se as recusavam, tinham que partir, se mendigavam ou “não faziam nada”,
eram presos e condenados a trabalhos forçados. Segundo, esse sistema era
dirigido especialmente aos indivíduos mais agitados, mais “violentos” da plebe,
aos que tinham probabilidade maior de se revoltarem, de causarem problemas
para o poder vigente, dentre os quais se destacavam os proprietários
endividados, coagidos a abandonar sua terra; o camponês que fugia do fisco; o
operário banido por furto ou roubo; o vagabundo ou mendigo que se recusava
a limpar os fossos da cidade; os que viviam de pequenos furtos nos campos;
os pequenos ladrões e os salteadores de estrada; os que em grupos armados
30
atacavam o fisco ou os agentes do Estado; enfim, todas as pessoas que
oferecessem algum perigo era preciso isolar, nas prisões, nos hospitais, nas
galés, nas colônias, para que não fossem o estopim dos movimentos de revolta
popular. O terceiro papel do sistema repressivo penal era estabelecer a
separação entre o proletariado e a plebe não proletarizada, fazendo com que
estes últimos assumissem uma missão marginal, perigosa, imoral, que pudesse
ameaçar a sociedade inteira, transformando-os na escória do povo, o
rebotalho; e isso foi feito por meio da legislação penal, da prisão e também
pelos jornais, pela literatura, fazendo nascer grandes barreiras ideológicas
entre as classes.
Estas são as funções, segundo FOUCAULT (2004),
desempenhadas pelo sistema penal, com a finalidade de evitar as revoltas
populares. São, portanto, formas de contenção popular desempenhadas pelo
aparelho de Justiça, pois o que a burguesia mais temia e devia a todo custo
evitar era o povo armado, eram os operários na rua e a rua investindo contra o
poder. Para Foucault, outras instituições também contribuíram com esse papel
de contenção das massas, dentre as quais ele destaca o exército, com seu
sistema de recrutamento junto aos camponeses, pois conseguia, ao mesmo
tempo, retirar o excesso populacional do campo e utilizá-lo para conter os
operários na cidade. A colonização, no auge das políticas imperialistas,
também foi utilizada como estratégia, pois as pessoas eram mandadas para as
colônias, não recebiam um estatuto de proletário e serviam de quadros,
agentes administrativos, vigilantes e controle dos colonizados. A terceira via
era a prisão, e os que para iam ou saíam eram estigmatizados
ideologicamente, considerados degenerados, criminosos; era criada uma
barreira ideológica tão firme quanto a do racismo.
Essas estratégias foram paulatinamente modificadas com o
passar dos anos, pois a colonização não é possível na sua forma direta. O
exército não pode desempenhar o mesmo papel de antes. Com isso, o que
houve foi um reforço da polícia e uma sobrecarga do sistema penitenciário, que
teve de concentrar sozinho todas as funções. “O esquadrinhamento policial
quotidiano, os comissariados de polícia, os tribunais (e singularmente os de
31
flagrante delito), as prisões, a vigilância pós-penal, toda a série de controles
que constituem a educação vigiada, assistência social, os ‘abrigos’, devem
desempenhar, no próprio local, um dos papéis que outrora o exército e a
colonização desempenhavam, transferindo e expatriando indivíduos” (2004:
52).
Assim, no raciocínio foucaultiano, o sistema de justiça não é
apenas uma vaga superestrutura, mas funcionou de modo a introduzir
contradições no meio do povo. A Justiça não foi criação do povo (proletário,
camponês), mas invenção da burguesia, como instrumento tático importante no
esquema de dominação por ela estabelecido. Por isso, ele posiciona-se
cauteloso diante de uma possibilidade teórica de criar um tribunal popular, pois
entende que seria a tentativa de se re-utilizar uma fórmula que se demonstrou
fracassada em relação a atender os anseios do povo quanto à produção de
Justiça. Afinal de contas, a Revolução Francesa foi uma revolta antijudiciária e
a primeira coisa que ela explodiu foi o aparelho judiciário.
Para Foucault, a saída seria a criação de uma instância de
elucidação política, onde as ações de Justiça popular pudessem se encaixar no
contexto da linha política do proletariado, mas, segundo ele, era “difícil chamar
tal instância de ‘tribunal’”. (2004:62). Logo, não seria necessário adotar o
mesmo esquema do dispositivo de um tribunal para se produzir justiça, onde há
os que julgam e estes precisam se colocar fora da questão, o que dá a
impressão de que uma Justiça é justa se for exercida por alguém de fora,
exterior à questão, geralmente um especialista, intelectual. “Se, ainda por cima,
este tribunal popular é presidido ou organizado por intelectuais que vêm
escutar o que dizem os operários de um lado e o patronato do outro e afirmar
‘um é inocente, o outro é culpado’, há um infiltração de idealismo nisto! Ao
fazer dele um modelo geral para mostrar o que é a justiça popular, temo que se
escolha o pior modelo” (2004:63).
Assim, diante das idéias apresentadas, é possível perceber uma
atitude geral de desconfiança por parte de Foucault relativamente à criação de
um tribunal popular. No que se refere à forma, ou algumas formas, o tribunal
32
corresponde a uma superestrutura do Estado burguês, que busca, por
intermédio dela, intensificar a ideologia da dominação, não permitindo que o
povo intervenha diretamente nas decisões. O tribunal é a burocracia da Justiça.
“Se você burocratiza a Justiça popular, você lhe a forma do tribunal”. (2004:
61).
Sendo assim, destacaremos, neste debate sobre Justiça popular,
o aspecto da sua relação com a soberania popular, a legitimidade e a eficácia
das decisões fazendo-se cumpridas e respeitadas pelo povo. A grande questão
é não se deixar cooptar pelo Estado como dispositivo legítimo das lutas. E nos
instigue o desafio foucaultiano: “tentem nos colonizar”.
2.4 Cidadania, acesso à Justiça, igualdade e democracia
A idéia de cidadania baseada em princípios positivistas, que tem
origem ainda na Revolução Francesa, prega uma igualdade com base na lei.
Ainda nesse período, se concretiza a concepção de Estado Democrático de
Direito, conceito básico no mundo moderno. A raiz do Estado Democrático está
fincada na idéia de isonomia
6
jurídica.
A norma jurídica possui um significado e um alcance
proporcionais à estrutura social, sendo modificada ou suprimida conforme os
diversos interesses em conflito expressos de modo múltiplo no ordenamento
jurídico. Para BOBBIO (1992), os direitos dos homens, por mais fundamentais
que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes
e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por
todas.
A consolidação da cidadania tem inicio nas lutas sociais
sucedidas ainda no correr dos séculos XVIII, XIX e XX. Nos séculos XVIII e
6
Isonomia no sentido de que todo cidadão é igual perante a lei.
33
XIX, os direitos dos cidadãos são alargados em suas dimensões civis e
políticas, chegando ao século XX emoldurados de contornos mais sociais.
É claro que a conquista e a efetivação dos direitos sociais são
marcadas por batalhas sociais que ora avançam, ora retrocedem. A tão
almejada igualdade, presente nos conceitos primários de cidadania vai demorar
a ser concretizada, pois ainda persiste uma defasagem entre o que a lei dita e
o que efetivamente acontece. A cidadania será realidade quando
acontecerem as mudanças estruturais necessárias em nossa sociedade.
Portanto, a conquista não pode arrefecer, e a grande luta travada
nos dias atuais é a busca pela efetivação dos direitos, que ainda dormitam nos
códigos e nas prateleiras.
Os desafios para o acesso à Justiça são ainda gigantescos, pois a
maioria da população, mesmo possuindo, em tese, vários direitos e garantias,
não conta com os mecanismos para acessá-los.
(...) a presença de tais direitos nas Constituições, seu
reconhecimento legal, não garante automaticamente a efetiva
materialização dos mesmos. (COUTINHO, 2000:63).
O direito de acesso à Justiça é requisito fundamental ao exercício
da cidadania, pois é parte integrante do seu conceito. Somente com a
possibilidade de assegurar seus direitos por meio da Justiça e de suas
instituições é que se efetiva a cidadania.
Os fins primordiais que compõem o acesso à Justiça são dois: o
primeiro é que o sujeito pode viabilizar seus direitos e alcançar a solução de
seus problemas através dos mecanismos judiciais do Estado, mediante seu
patrocínio e proteção; e o segundo é a finalidade precípua do sistema judicial
no Estado Democrático de Direito, que é igualar todos, munindo-os com os
mesmos instrumentos e dispositivos de solução, garantia e defesa dos direitos.
34
Muitos cientistas sociais se debruçam sobre o tema do acesso à
Justiça em razão da relevância que ele traz em sua essência. Boaventura de
Sousa Santos relata que
(...) o tema do acesso à justiça é aquele que mais diretamente
equaciona as relações entre o processo civil e a justiça social entre
igualdade jurídico-formal e desigualdade sócio-economica (SANTOS
E GOMES, 2001:44).
Segundo GRINOVER (1992:147), o problema do acesso à Justiça
está relacionado intimamente com a democracia participativa, indicando duas
vertentes dessa participação:
A primeira é a participação na própria administração da Justiça que
se desdobra em um instrumento de garantia, de controle e
transformação em si mesma, respondendo a exigências de
legitimação democrática do exercício da jurisdição e de instâncias
prementes de educação cívica. A segunda é a participação mediante
o processo, que se faz exatamente pela própria utilização do
processo como veículo de participação democrática. Ela se
concretiza, essa participação pelo processo, exatamente pela efetiva
prestação da assistência judiciária e pelos esquemas mais abertos
da legitimação para agir.
O acesso à Justiça deve ser entendido de maneira ampla, não
podendo ser restringido somente ao acesso ao Judiciário. Kazuo Wantanabe
refere-se ao conceito de acesso à Justiça como algo mais abrangente, não
como um direito necessário à concretização dos demais direitos, mas,
sobretudo, como garantia do exercício destes direitos de forma justa:
O direito de acesso à justiça é, fundamental, direito de acesso à
ordem jurídica justa; são dados elementares desse direito: o direito à
informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à
organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e
orientada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica
e a realidade sócio-economica do país; direito de acesso à justiça
adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na
realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da
ordem jurídica justa; direito à pré-ordenação dos instrumentos
processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; direito
à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso
efetivo à Justiça com tais características. (1998:135).
35
Inúmeros autores reconhecem que, na esfera legal, o acesso à
Justiça é reconhecido e até assegurado, porém a realidade não espelha o
plano legal, pois muitos entraves persistem e insistem na sua efetivação.
Boaventura de Sousa SANTOS (1989), Mauro CAPPELLETTI e
Bryan GARTH (1988) indicam as principais causas que impedem a
implementação: custas judiciais, possibilidades das partes, interesses difusos e
questões culturais e sociais que impedem o acesso do cidadão ao Poder de
que tratamos.
Estas causas são claramente perceptíveis no dia-a-dia, haja vista
o número diminuto de profissionais para atender a demanda, a ausência de
conhecimento do próprio direito pelo cidadão, a frieza dos operadores do
Direito em relação ao conflito vivido pela parte, bem como a discriminação feita
a este por utilizar-se de um serviço público,
(...) os ‘clientes’, pelo único fato de endereçarem um pedido a
serviços criados para eles e pagos para atendê-los, são
inferiorizados, que esses pedidos nunca são considerados como
baseados num direito e sim como a expressão de uma carência.
(VERDÈS-LEROUX, 2000:69).
Some-se a isso, ainda, o despreparo dos operadores do Direito,
que possuem formação extremamente legalista e ritualista. Buscando soluções
convencionais, sem sair do plano legal, a vontade é sempre resolver o
processo de acordo com a lei, sem se importar se esta resolução efetivamente
solucionará o conflito ou irá algumas vezes acirrá-lo ainda mais.
É necessário perceber-se que a Justiça não é monopólio dos
operadores do Direito, e que, para se dar cabo desta realidade, é preciso uma
união de forças, trabalho interdisciplinar, pois o problema deve ser visto de
vários ângulos, razão pela qual, para que o acesso à Justiça se efetive de
forma digna, deve-se destacar a colaboração de disciplinas como o Serviço
Social, a Psicologia, a Sociologia e a Ciência Política, dentre outras disciplinas
auxiliares.
36
Ressaltemos, pois, a assertiva segunda a qual o que o cidadão
busca não é qualquer solução para seu conflito, mas a melhor solução. E qual
é o melhor deslinde? Aquele que não agrava o problema, mas busca resolvê-lo
de maneira adequada, ou, se não for possível, que o amenize.
Não se pode, portanto, analisar o problema do acesso à Justiça
sem situá-lo na seara das políticas públicas, pois é necessário que o Estado
deixe de agir de maneira assistencialista e elabore um conjunto de medidas
coordenadas e sistematizadas que tenham por fim efetivar o que a lei já
proclama, tudo isso de maneira célere, eficaz e também responsável.
3 DISPOSITIVOS DE RESOLUÇÃO ALTERNATIVOS DE LITÍGIOS (RAL’s)
FORMAS E CONCEITOS
3.1 Conceitos de conflito
Ao se compreender as RAL’s como formas possíveis de resolução
de conflitos, faz-se necessário entender o que estamos chamando de conflito.
Para SIMMEL (1993), o conflito é somente uma das formas de
sociação destinada a resolver vontades opostas e que a violência é apenas
uma das suas manifestações, logo outras opções existem para resolvê-lo de
maneira mais harmônica e menos traumática. Portanto, não é preciso enxergar
o conflito somente pelo aspecto negativo da violência, pois podemos vê-lo,
também, pela óptica positiva como algo muitas vezes útil e necessário para
impulsionar mudanças.
De acordo com Serpa, o conflito se origina tanto de mudanças
pessoais como coletivas,
“...Na esfera pessoal, o conflito estimula o processo de
autoconhecimento. O homem conflitua consigo mesmo na medida
em que não aceita sua natureza dialética e luta contra seus próprios
sentimentos, sua agressividade, frustração, insegurança, altruísmo e
egoísmo. Conflitua em razão de seu status de pobreza ou riqueza;
em razão de seus conhecimentos, ignorância ou cultura; sua
percepção; entendimentos e estereótipos; em razão de
incongruência, etc... Socialmente o conflito é entendido como fator
de diferenciação e cooperação entre grupos, como resultado de não
segmentadas pressões, superpopulação, ou falta de ameaças
externas” (1999:33).
Consoante VEZZULLA (1998:24), “o conflito consiste em querer
assumir posições que entram em oposição aos desejos do outro, que envolve
luta pelo poder, e que sua expressão pode ser explícita ou oculta atrás de uma
posição ou discurso encobridor”, portanto, a dissimulação pode fazer parte do
jogo social do conflito, tornando-o invisível muitas vezes, mas seus efeitos
podem ser sentidos nas ações e reações das pessoas envolvidas.
Assim, podemos acentuar que conflito é uma disputa entre partes
envolvidas em uma lide, que possuem consciência da intransigência mútua,
38
mas tencionam ocupar o espaço social da outra. Deste modo, o conflito está
presente sempre que uma pessoa, querendo alcançar seus objetivos ou
satisfazer seus desejos, confronta-se com seu semelhante explícita ou
implicitamente; este, em contrapartida, reage, provocando uma (re)ação da
primeira, estabelecendo-se o que Simmel chamou de sociação, ou o ajuste
social devido.
É, sobretudo, na convivência social, que as diferenças se acirram,
em razão da cor, sexo, pensamento, classe social, valores e interesses,
brotando destas diferenças as mais variadas formas de conflito: no campo
interior (conflito intrapessoal), entre indivíduos (conflito interpessoal) ou entre
grupos (conflito intergrupal ou internacional).
Atualmente as transformações são intensas no terreno social,
político, cultural, econômico e tecnológico, provocando, em diversos casos, o
surgimento de mais controvérsias em vários setores da vida.
O conflito em grande parte das vezes é visto somente como algo
negativo, como uma ameaça, um perigo ou uma situação de intranqüilidade.
Conseqüentemente, diante das adversidades, o homem tende a se retrair e
procura proteger suas conquistas, seu bem-estar, sua integridade física, seus
bens. Posta-se numa situação defensiva para proteger-se daquilo que lhe é
desconhecido ou novo, desprezando todo e qualquer sentimento de
solidariedade, respeito, paciência, diálogo, colaboração e participação, valores
imprescindíveis ao convívio humano.
Essa relação do conflito, como algo sempre negativo, faz com
que as pessoas tenham medo de enfrentá-lo, diretamente, preferindo delegar a
um terceiro (juiz), estranho ao problema, a responsabilidade de decidir seu
próprio destino por meio de uma sentença em que o parâmetro principal é
somente a lei.
O conflito, entretanto, é inerente à vida do homem, faz parte do
seu cotidiano e é um dos elementos de sua realidade. Deste modo, deve ser
39
encarado como algo natural, necessário e transitório. É nas adversidades que o
homem estabelece as prioridades, pode conhecer melhor ele mesmo. Esse é o
viés positivo do conflito; são situações que permitem o crescimento interior e
social.
“O conflito é parte integral do comportamento humano, não existe
movimento ou mudança sem ele. A interferência de padrões de
energia causada pelas diferenças causa motivação e oportunidade
para mudanças. Todas as tomadas de decisão contem um elemento
de conflito; troca de idéias envolvem conflitos; o processo
democrático é construído com base na normalidade do conflito de
idéias e interesses” (SERPA, 1999:34).
Por conseguinte, o conflito acompanha o homem desde os
tempos mais remotos, pois as diferenças quase sempre causaram
divergências, e essa natureza própria de cada indivíduo fomenta a discordância
e os embates. O que o homem precisa entender, porém, é que o conflito nem
sempre precisa ser resolvido com beligerância, mas, por ser um fenômeno
intrínseco ao convívio social, pode ser superado com racionalidade,
tranqüilidade e solidariedade, de modo que nem sempre existam vencedores e
vencidos.
Na medida em que as partes envolvidas passam a adotar uma
atitude diferente diante das disputas que se lhe apresentam, inicia-se um
método, cujo processo implica principalmente em não considerar as partes
como litigantes, mas como senhores da própria história e, portanto, principais
responsáveis em encontrar a melhor solução para a demanda. Os envolvidos
deixam de encarar sua cizânia como algo ameaçador, nocivo e perigoso, e
passam a enxergá-la de maneira positiva, prática, como uma fase de mudança,
progresso pessoal e aprimoramento. O conflito deixa de ser enfrentado como
algo prejudicial, para ser tratado como um momento de renovação e de
adequação das relações pessoais no espaço social.
É com base nessa perspectiva favorável do conflito que se podem
trabalhar uma nova atitude e outro modo de pensar o litígio. As pessoas podem
tornar-se mais calmas, pacientes e “colaborativas”, fazendo fluir o diálogo com
maior facilidade. Modificando a imagem do conflito, as pessoas passam a
40
compreender seu caráter positivo, transitório e necessário, facilitando, assim, a
sua aceitação e compreensão, resultando tudo isso numa resolução satisfatória
para os envolvidos.
3.2 Conceito e limites das resoluções alternativas de litígios (RAL’s)
As resoluções alternativas de litígios são mecanismos de solução
de conflitos que se desenvolvem por meio de atividades que se destinam a
fazer com que as partes envolvidas em uma contenda encontrem,
pacificamente, uma solução para a disputa de interesses entre elas existente.
Utilizam a escuta ativa e o diálogo transformador como ferramentas para seu
intento. As partes o auxiliadas por um mediador ou conciliador que em regra
não interfere nas decisões, mas busca ajudar ambos mediante técnicas
próprias das RAL’s.
Para SERPA (1999), as RAL’s apresentam-se muito mais como
um procedimento do que como uma estrutura. O Direito é uma estrutura, a lei é
uma estrutura. O objetivo das RAL’s é conduzir a disputa à criação de um
dispositivo próprio mediante a constituição de normas relevantes para as
partes, e não apenas adequar a disputa em uma estrutura legal
preestabelecida. Por conseguinte, o dispositivo é criado a partir do conflito que
se pretende resolver, o existem regras preestabelecidas como no Direito, as
regras o feitas pelos participantes e adequadas ao conflito que vivenciam; é
daí que surge a legitimidade destes métodos, pois são as partes que
encontram a solução e não o Estado-Juiz, portanto, o terceiro, chamado de
mediador ou conciliador, não decide a questão, mas estimula a solução
consensual entre os envolvidos para resguardar o bom convívio social. Como
podemos ver o dispositivo (ao contrário da estrutura da lei, e do direito) de
acordo com Michel FOUCAULT (2004: 244) é “um conjunto decididamente
heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
elementos”.
41
Logo, as RAL’s são dispositivos de resolução de conflitos que não
requer necessariamente a presença do Juiz. o as partes as responsáveis
pela solução da demanda, elas direcionam o resultado da mediação ou
conciliação, conforme os seus interesses em jogo. Neste sentido, BRAGA
NETO (1999) entende que as RAL’s são técnicas não adversariais de
resolução de conflitos, por intermédio das quais duas ou mais pessoas (física,
jurídicas, públicas etc.) recorrem a um especialista, capacitado, que realiza
reuniões conjuntas e/ou separadas, com o intuito de estimulá-las a obter uma
solução consensual e satisfatória, salvaguardando o bom relacionamento entre
elas.
Trata-se de um mecanismo de solução de conflitos que considera:
a criação de confiança entre as partes e entre elas e o mediador, a
localização dos pontos de conflito e daqueles de interesse comum, a
criação de opções ou alternativas, a negociação e tomada de
decisão; a confecção de um plano e o processamento do acordo,
com possibilidade de revisão futura, primordialmente se as relações
existentes entre as partes forem continuativas, a ensejar, portanto,
necessárias mudanças de postura para adaptações às eventuais
modificações efetivadas no dia-a-dia” (TARGA 2004:131).
Por conseguinte, as RAL’s podem resultar em uma solução
flexível. Não possuindo o rigor e a imutabilidade das decisões judiciais, as
partes resolvem o tempo de duração e a forma de aplicação do acordo.
Tomando a mediação como exemplo, podemos dizer que ela é
um procedimento complexo que transcende o conflito a ser resolvido,
assemelhando-se de acordo com o contexto as normas de direito existentes,
mas também fomenta a criação de regras próprias para ele, devendo o
mediador ter habilidade suficiente para transformar a conotação negativa do
conflito em positiva, favorecendo, desta forma, a composição das partes.
(SALES, 2004).
Podemos dizer, então, segundo FOLGER (1999), que o conflito
em si é potencialmente transformador: ou seja, a argúcia oferece aos
indivíduos a oportunidade de desenvolver e integrar suas capacidades de
habilidade individual e empatia pelos outros. Os processos de intervenção,
42
como a mediação, podem ser elaborados de modo a captar o potencial
transformador do conflito.
Por isso, para WARAT (2001), a mediação pode ser entendida
como um procedimento indisciplinado de auto-eco-composição assistida (ou
terceirizada) dos vínculos conflitivos com o outro em suas diversas
modalidades. Indisciplinado por sua heterodoxia que do mediador se requer
a sabedoria necessária para poder se mover, sem a obrigação de defender
teorias consagradas, um feudo intelectual ou a ortodoxia de uma capela de
classes ou do saber.
Assim poderíamos asseverar que as RAL’s têm os seguintes
objetivos: solucionar os litígios, por meio do diálogo e da participação ativa das
partes, prevenir conflitos e promover a inclusão social, mediante a
conscientização de direitos, acesso à justiça e paz social.
É importante ainda ressaltar, não obstante o caráter informal das
RAL’s, que existem, segundo SALES (2004), princípios definidores, que o os
seguintes:
- liberdade das partes - os envolvidos devem aderir livremente e estar
cientes do procedimento. O mediador deve esclarecer previamente aos
envolvidos como se desenvolve a mediação, quais suas responsabilidades na
solução da demanda, e deixa-los livres em suas decisões;
- não-competitividade - no procedimento da mediação, as pessoas
estão envolvidas em solucionar de maneira pacífica, amigável e cooperativa o
impasse, portanto não existem autor e réu, nem ganhador ou perdedor, pois
todos os envolvidos buscam a melhor solução para a contenda;
- poder de decisão das partes - na mediação, a decisão deve estar nas
mãos das partes. Elas devem formular a melhor solução em conjunto, tendo
sempre em mente a idéia de que está em jogo o destino de cada uma. Desta
forma, não pode haver interferência do mediador no sentido de indicar ou
sugerir uma solução, pois as partes é que, pelo diálogo e cooperação, deverão
encontrar a melhor saída para a demanda;
43
- participação de terceiro imparcial - a importância de um terceiro
imparcial para conduzir o procedimento e garantir a fala das partes, de maneira
harmônica e justa, é fundamental. A imparcialidade é fator indispensável, pois o
terceiro deve usar de isonomia para evitar abusos e arbitrariedades;
- competência do mediador - o mediador deve ser uma pessoa
preparada para o ofício, deve ter ciência dos princípios informadores da
mediação, deve possuir conhecimento teórico e prático, além de ser paciente,
criativo, confiável e cuidadoso. O mediador deve ter ciência de que o seu papel
é possibilitar o diálogo construtivo e auxiliar as partes a encontrar a melhor
solução para o impasse;
- informalidade no processo - a mediação tem como traço principal a
informalidade, pois não existem regras nem formalidades rígidas a serem
seguidas, o que não impede que se estabeleçam alguns procedimentos para
facilitar o sucesso da composição, porém estas não podem tolher a liberdade
dos envolvidos, que a informalidade deve favorecer a descontração e a
tranqüilidade da mediação; e
- confidencialidade - a mediação é sigilosa, as partes e o mediador
devem guardar sigilo sobre tudo o que foi conversado em sala de mediação, o
que favorece o clima de confiança entre os envolvidos, imprescindível ao
sucesso da mediação.
Some-se a tudo isso a boa vontade de todos em encontrar a
melhor solução para a pendência, com espírito cooperativo e desarmado, tendo
o mediador ou conciliador sempre o cuidado de evitar a preponderância de
uma das partes sobre a outra, pois, ao contrário, o acordo será frágil e com
poucas possibilidades de sucesso.
Cumpre-nos ainda discutir os limites das RAL’s e saber se todos
os conflitos são passíveis de acordo, ou se existiriam espécies determinadas.
Primeiro, é necessário lembrar que há acordo quando as
partes aderem livremente aos procedimentos de Resolução Alternativa de
Litígios, pois, havendo recusa de um dos envolvidos, é impossível a
composição, logo, a aceitação de todos é pressuposto fundamental.
44
Ao partir desta premissa e do que vimos por meio dos conceitos e
dos objetivos, as RAL’s podem ser utilizadas para quase todos os conflitos,
porém, como estamos submetidos a um ordenamento jurídico preexistente,
devem ser observadas algumas imposições deste, que a lei exige, para que
alguns acordos sejam reconhecidos como válidos, a homologação do Poder
Judiciário.
Segundo dados divulgados pela CEMAPE (Câmara de Mediação
e Arbitragem do Estado de Pernambuco)
7
, várias querelas podem ser objeto de
mediação, dentre elas cita os seguintes exemplos:
- família - negociações relativas a separação ou divórcio, revisão de
pensão e guarda dos filhos, adoção, conflitos entre pais e adolescentes;
- empresas e instituições - prevenção e/ou resolução de conflitos intra
e inter-empresariais ou institucionais, assim como entre empresas/instituições e
seus clientes;
- cível - situações patrimoniais, como acidente de automóvel
(indenização), locação ou retomada de imóveis e revisão de aluguéis,
dissolução de sociedade, sucessão, inventários e partilhas, perdas e danos; e
- comercial - títulos de crédito, frete, seguro e entrega de mercadorias,
comércio interno e internacional Mercosul.
É importante salientar ainda, porém, que a mediação é utilizada
para outras questões, obtendo êxito em seus objetivos. Dentre estas
acrescentamos:
- conflitos ambientais - poluição ambiental e sonora, envolvendo
entes públicos e privados;
- conflitos associativos - envolvendo associações comunitárias, em
questões de eleições e área de abrangência;
- conflitos escolares - relação professor e aluno, escola e família;
7
Dados disponíveis no endereço eletrônico: www.cemape.org.br/home.html. Acesso em
27.12.2006.
45
- conflitos trabalhistas - relação de trabalho, reconhecimento de
vínculo, hora extra, jornada de trabalho e outros; e
- conflitos de moradia - situações envolvendo vizinhos e
convivência.
Quanto aos conflitos penais, convém ressaltar que a mediação
também é possível, mas somente naqueles referentes a ações penais
privadas
8
ou condicionadas
9
à representação do ofendido, pois nestas o
interesse particular prepondera sobre o interesse público.
Na compreensão de Warat, as RAL’s podem ser utilizadas em
todos os conflitos:
...comunitário, ecológico, empresarial, escolar, familiar, penal,
relacionados ao consumidor, trabalhista, políticos, de realização dos
direitos humanos e da cidadania, e de menores situações de risco
etc.
(2001:87)
É importante notar que as RAL’s podem ser empregadas até em
conflitos muito peculiares que escapam do alcance da lei. Atualmente a
organização não gorvenamental Viva-Rio, em conjunto com Ministério da
Justiça, desenvolve um projeto intitulado Balcão de Direitos, experiência
iniciada nas favelas do Rio de Janeiro e que hoje está sendo repetida em
outros estados da Federação, onde o trabalho de mediação traz ganhos sociais
enormes. Segundo SOUZA NETO (2001:83);
Nas comunidades carentes do Rio de Janeiro áreas de atuação
prioritária do Balcão de Direitos – o direito produzido pelo estado não
tem se mostrado capaz de satisfazer grande parte das pretensões
normativas que emergem espontaneamente do processo de
interação social. Nessas regiões, surgem expectativas de direito que
não estão garantidas pelo ordenamento jurídico estatal. Exemplo
notório é o direito a laje, inventariado por Boaventura de Souza
Santos em sua conhecida pesquisa sobre o direito de Pasárgada.
(...) Para que o operador jurídico atuante nesses locais possa
contribuir satisfatoriamente no processo de resolução de conflitos,
ele tem de operar com essas normas e valores plurais que emergem
de forma bastante complexa no espaço comunitário. A metodologia
8
Ações penais privadas são aquelas em que a iniciativa da ação cabe ao particular e não ao
Ministério Público.
9
Ações penais condicionadas são aquelas para as quais a lei exige uma manifestação de
vontade por parte do ofendido, autorizando o Ministério Público a intentar a ação penal.
46
jurídica tradicional tem se mostrado insuficiente para operar com
essa situação de pluralidade de fontes de produção normativa e com
essa complexa rede axiológica. (...) Nestas hipóteses, a mediação se
mostrará uma forma muito mais adequada de resolução de conflitos.
Ao invés de uma aplicação verticalizada de um direito pré-
constituído, ter-se-á a construção da decisão do caso concreto
através da interação das partes, mediada pelo Balcão. A mediação
valorizará o compromisso e o convencimento, como formas de
garantir o cumprimento do acordo.
A flexibilidade que as RAL’s podem alcançar para solucionar
problemas que a verticalização do direito não alcançaria, também encontra
alguns limites que são ressaltados por SALES (2004), quando lembra que a
mediação é um meio de resolução de contendas estabelecido dentro do
sistema jurídico vigente, e, portanto, deve guardar observância e coerência
com este. Desta forma, não há dúvida de que a mediação pode ser aplicada de
forma ampla, porém, em determinados casos, não poderá com exclusividade
solucionar a questão em razão de limites impostos pela lei.
Atualmente não existe uma legislação específica que regulamente
o alcance da mediação. A lei brasileira prevê a possibilidade da mediação nos
conflitos que envolvam os chamados direitos disponíveis (Direito de família,
imobiliário, consumidor, comunitário). O art. 841 do Código Civil de 2002 prevê
a possibilidade de transação dos direitos patrimoniais de caráter privado e
admite ainda a conciliação nos juizados especiais cíveis, quando se tratar de
conflito de menor complexidade.
Ressalte-se, por fim, que tramita no Congresso Nacional projeto
de lei que regulamenta a mediação no procedimento judicial. A iniciativa foi
apresentada pela então deputada Zulaiê Cobra. A lei não elimina, todavia, a
informalidade da mediação, mas tão-somente estabelece diretrizes para sua
aplicação e seu alcance, e somente no âmbito da mediação efetivada no
processo judicial instaurado, portanto, não inibe a sua realização em outros
espaços sociais e muito menos restringe aos profissionais do Direito sua
administração, mesmo porque a mediação é um procedimento multidisciplinar,
podendo ser conduzida por profissionais de áreas diversas como Serviço
Social, Ciências Sociais, Psicologia, Pedagogia, Direito e outras.
47
3.3 As diversas formas de resoluções alternativas de litígios - negociação,
conciliação, mediação e arbitragem
A dinâmica imposta pelas freqüentes mudanças na ordem social,
econômica, tecnológica e política faz com que constantemente surjam conflitos
novos e com diversos matrizes. O Poder Judiciário não consegue acompanhar
esse ritmo, pois ainda não logrou sucesso, apesar de todos os esforços
envidados, na luta contra a lentidão e a burocracia, que o enclausuram nos
ritos e nas formalidades, como analisamos no primeiro capítulo deste estudo.
Esses conflitos contidos e não resolvidos acabam, em muitos dos
casos, transformando-se em violência: rixas, intrigas, desavenças, agressões
físicas mútuas e até homicídios, todos estes desaguando nas precárias
delegacias de polícia do Brasil afora.
Esta situação fez com que os meios consensuais de resolução de
conflitos ganhassem destaque (negociação, conciliação, mediação e
arbitragem) pela facilidade de acesso, pela rapidez na resolução da demanda
e, sobretudo, pelo êxito nos resultados.
As experiências desenvolvidas na França, Espanha, Argentina e
Estados Unidos
10
demonstram a relevância desses meios como facilitadores do
acesso à Justiça, pela rapidez na solução do conflito e desobstrução dos
tribunais, ganhos destacados por estes países que adotam amplamente esses
métodos.
10
A evolução da Argentina no que se refere à mediação encontra-se no trabalho de CUNHA,
J.S. Fagundes. Da mediação e da arbitragem endoprocessual. Disponível em
http:www.buscalegis.ccj.ufsc.br
Os dados referentes à França são encontrados em SIX, Jean-François. Dinâmica da mediação,
p. 11.
A recomendação n.1/1998 R(98), do Conselho da Europa, foi a base para a mediação na
Espanha.
Quanto aos Estados Unidos da América, o Uniform Mediation Ac. descreve o histórico da
mediação neste país.
.
48
É bom deixar claro, no entanto, que os meios consensuais de
resolução das disputas não estão surgindo para substituir o Poder Judiciário,
nem para com este concorrer; não é esse o propósito. Mesmo porque a
Constituição Federal promulgada em 1988 garante como direito fundamental o
acesso ao Poder Judiciário por todos aqueles que tenham sofrido ameaça ou
lesão a direito
11
.
O espaço social e também legal em que se inserem os meios
consensuais de resolução da disputa estão, sobretudo, no âmbito dos direitos
disponíveis, aqueles que o Estado considera de livre negociação, pois sua
supressão não atenta contra a dignidade da pessoa humana, portanto, podem
ser transacionados por meios consensuais, se assim for a vontade das partes.
O novo paradigma inaugurado pela composição consensual dos
conflitos, segundo SCHNITMAN (1999), é o clima amistoso como trata a
disputa, mediante o estímulo ao diálogo, suscitando sempre um sentimento de
responsabilidade mútua entre os participantes, o que enseja um clima favorável
para o cumprimento do acordo.
As metodologias para a resolução alternativa de conflitos facilitam a
definição e administração responsável por indivíduos,
organizações e comunidades dos próprios conflitos, e o caminho
para as soluções. A mediação e outras metodologias podem facilitar
o diálogo e prover destrezas para a resolução de situações
conflitivas. No curso do processo resultante, os sujeitos
comprometidos têm a possibilidade de adquirir as habilidades
necessárias para resolver por si mesmos as diferenças que podem,
eventualmente, ser suscitadas no futuro com seus pares, familiares e
colaboradores, ou em sua comunidade.
(ibidem:
17).
Os meios consensuais de resolução das disputas estão inseridos
num caminho evolutivo da sociedade e situam-se num conceito mais amplo de
justiça.
A negociação, a conciliação, a mediação e a arbitragem são
espécies de um mesmo gênero. Portanto, apesar das semelhanças guardam
11
Constituição Federal de 1988, art. 5°, XXXV.
49
características e métodos próprios na sua aplicação, assim fazendo-se
necessária a distinção de cada uma no contexto deste estudo.
NEGOCIAÇÃO
A negociação é um fato natural. Antes de ser jurídico, é uma
forma comum de resolução de contendas, bastante utilizada na vida social,
mas hoje estudada com maior intensidade, pois, por seu intermédio, pode-se
obter bons resultados nas soluções de conflitos difíceis.
Caracteriza-se por ser uma atividade não-“adversarial” de solução
de conflitos, desenvolvida por um procedimento iniciado pelas partes
interessadas, sem a presença de terceiros. O objetivo maior é a formulação de
um acordo total, parcial ou temporário, é, a partir da concessão mútua, os
envolvidos negociam diretamente um com o outro.
Assim, a negociação é o meio pelo qual as partes interessadas,
por meio de uma conversa aberta e clara, chegam a um denominador comum.
Para a consecução da negociação, é necessário o
estabelecimento de uma agenda comum com a data do encontro, o tempo de
duração e a pauta a ser discutida. A partir daí, as partes elaboram
naturalmente as regras que serão por elas seguidas.
O destaque que se faz à negociação é que ela se presta a
resolver tanto um pequeno problema cotidiano como até o mais complexo no
campo internacional. Por exemplo, o marido e a mulher combinam como será
utilizado o único carro da família durante a semana. Ao chegarem a um acordo,
terão celebrado uma negociação. O patrão e o empregado ajustam os dias de
trabalho e de folga durante o período natalino; estão negociando. Países
acertam a fabricação e utilização de armamento nuclear; estão negociando.
Para COLAIÁCOVO (1999), na medida em que aumentam as
comunidades, as pessoas tanto mais necessitam do consentimento das outras
50
para alcançar seus objetivos, recrudescendo o número de conflitos decorrentes
da intensa interação social. Segundo ele, 90% dessas interações são
realizadas no seio familiar, no ambiente do trabalho e no meio comunitário.
O principal entrave da negociação é o início do processo, a
superação da intransigência de ambas as partes, para estabelecer o começo
da conversa. Segundo TARGA (2004), para a superação desta dificuldade, é
necessário a divulgação desse método, que é o mais natural, econômico,
célere e desregulamentado de todos.
Ressalve-se que, na negociação, é importante que as partes
envolvidas mantenham certo equilíbrio de poder, pois, ao contrário, se houver
uma preponderância de força física, econômica ou outra de qualquer natureza,
existirá uma imposição de vontade de uma para com a outra. Assim, para
MIRANDA (2000), o tripé da negociação é conhecimento, tempo e poder,
sendo o poder o mais importante de todos, pois sem ele não se inicia a
negociação.
Deste modo, infere-se que, por meio da negociação, pode-se
obter um acordo mediante colaboração, consenso, cooperação e tolerância,
sem necessidade de um terceiro para mediar.
CONCILIAÇÃO
A conciliação assemelha-se bastante à mediação, tanto que
existem autores que o as diferenciam, entendendo tratar-se de coisas
equivalentes, porém não é bem assim que vemos, quando aprofundamos um
pouco mais o estudo destas modalidades, percebendo-se claramente os traços
próprios de cada uma.
O objetivo primordial da conciliação é buscar o acordo entre as
partes, evitando, desta forma, o processo judicial.
51
Esta forma de resolução de conflitos está regulada na lei
9.099/95
12
, ao prever que, antes de dar início ao processo, o juiz deve propor a
conciliação, que poderá ser conduzida pelo juiz togado ou leigo ou por
conciliador sob sua orientação. Aberta a sessão, quem a estiver conduzindo
deverá, segundo a lei, esclarecer as partes sobre as vantagens da conciliação,
mostrando-lhes riscos e conseqüências do litígio. Obtida a conciliação, esta
será reduzida a escrito e homologada pelo juiz togado, mediante sentença com
eficácia de título executivo.
A conciliação prioriza o acordo entre as partes, para evitar o
processo judicial. Segundo SALES (2004), o traço caracterizador fundamental
reside no conteúdo do instituto. As partes, mesmo adversárias, devem buscar o
acordo, resolvendo o conflito exposto, não cabendo ao conciliador aprofundá-
lo, e, ainda, o conciliador intervém diretamente, sugerindo, opinando e
indicando o melhor acordo.
[A] conciliação o trabalha o conflito, ignora-o, e, portanto, não o
transforma. O conciliador exerce a função de negociador do litígio,
reduzindo a relação conflituosa a uma mercadoria. O termo de
conciliação é um termo de cedência de um litigante a outro,
encerrando-o. Mas o conflito no relacionamento, na melhor das
hipóteses permanece inalterado. (WARAT 2001:80)
É importante notar que, em razão das suas características, a
conciliação torna-se mais adequada nos conflitos de natureza temporárias e
circunstancial, que não envolvam relações duradouras, nem de cunho afetivo,
isto é, em contratos comerciais, aluguel, reparação de danos eventuais e
outros do gênero.
Na compreensão de Vezzulla,
[a] conciliação como técnica é de grande utilidade nos problemas
que não envolvem relacionamento entre as partes, o que permite
trabalhar sobre a apresentação superficial (verdade formal ou
posição) para alcançar uma solução de compromisso sem
repercussão especial no futuro de suas vidas.
(2001:43).
12
Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os juizados especiais cíveis e
criminais e dá outras providências.
52
Deste modo, percebe-se que, embora a conciliação guarde
algumas semelhanças com a mediação, tem características peculiares e se
destina a conflitos com traços próprios, isto é, aqueles sem profundidade de
relações pessoais, sendo suficiente a solução tópica do problema.
MEDIAÇÃO
A mediação, como já tivemos oportunidade de analisar, é um
meio de resolução de conflitos que prioriza o diálogo e o reatamento dos
vínculos. O mediador não interfere na decisão, apenas facilita a conversa,
garantindo a isonomia das partes e o respeito mútuo.
Ao contrário da conciliação, a mediação não possui ainda lei
regulamentando sua aplicação, portanto, seu acordo não tem força executiva,
embora nada impeça que este seja homologado pelo Poder Judiciário. O
reatamento dos laços e o tratamento do conflito é o principal objetivo da
mediação e o acordo é conseqüência.
Mediar é, como atividade, harmonizar as partes em conflito e
buscar a serenidade do relacionamento, e, a partir daí, ambos descobrirem um
caminho para suas diferenças.
O acordo, embora não seja o foco principal da mediação, quando
celebrado, deve ser justo e equilibrado. Portanto, não é qualquer acordo, mas
aquele que contenha os ânimos e pacifique os espíritos, por isso, a mediação
necessariamente não deve se resumir a uma sessão, podendo ocorrer em
uma, mais de uma, ou até várias, desde que sejam necessárias para a
consecução de seus objetivos.
O fundamental numa mediação é que o conflito seja solucionado por
meio de sua transformação. Se isto ocorre, a observância do acordo
independe de qualquer força executiva, visto que, tendo sido o
conflito tratado pelas partes e por elas solucionado, o seu
cumprimento é conseqüência natural. SALES (2004:41).
53
Por ser a mediação um meio transformador, adequa-se a todos
os tipos de conflito, porém, apresenta melhor resposta naqueles que envolvem
uma relação duradoura, onde existe afeto, companheirismo, tais como entre pai
e filho, marido e mulher, vizinhos, amigos e outros do gênero.
ARBITRAGEM
A arbitragem assemelha-se mais ao modelo judicial legal, em que
no lugar de um juiz, existe um árbitro que decide independentemente da
vontade das partes. Esse terceiro é eleito pelos envolvidos para deliberar sobre
o litígio.
Geralmente os conflitos que necessitam de arbitragem o bem
específicos, localizados em algumas áreas do conhecimento, portanto, na
maioria das vezes, o árbitro é um especialista na matéria.
As características marcantes da arbitragem são a liberdade de
contratação, a utilização do método nos conflitos que envolvam direitos
patrimoniais disponíveis, a livre escolha do árbitro, podendo este ser um
técnico que entenda profundamente da demanda, e assim possa dirimir melhor
o caso.
As decisões tomadas pelo árbitro possuem força de sentença
judicial e equiparam-se às dos juizes de Direito, porém sua força decisória vai
mais adiante, pois este procedimento não admite recurso, ao contrário da
sentença prolatada no Judiciário, que pode sofrer o duplo grau de jurisdição.
Outra diferença marcante deste modo de resolução de conflitos com o Poder
Judiciário é que, neste, as partes se submetem ao juiz natural, escolhido não
por elas mas pelas normas de organização judiciária, e ainda devem submeter-
se aos procedimentos legais. Enquanto isso, na arbitragem, podem deliberar
sobre estes livremente e inclusive eleger a forma de decisão da lide, pelo
direito ou pela eqüidade.
54
No Brasil, a arbitragem existe um bom tempo, porém nunca
foi muito difundida. Como não havia lei regulamentando e o laudo arbitral
dependia sempre da homologação do Poder Judiciário, este procedimento não
despertava tanto interesse. Com o advento da lei n. 9.307/96, todavia,
conhecida como lei Marco Maciel, o instituto ganhou força e diversos tribunais
arbitrais se instalaram no Brasil.
A arbitragem, diferentemente das outras formas de solução de
conflitos, constitui-se na mais formal de todas, pois a lei impõe o respeito as
suas regras, sob pena da não-validação do processo.
As maiores vantagens atribuídas à arbitragem são a rapidez na
solução da demanda, sigilo do procedimento, inexistência de recursos e a
liberdade de escolha do arbitro.
Os conflitos mais adequados são aqueles que demandam um
conhecimento técnico específico, geralmente nas áreas de comercio exterior,
exportação e importação, contratos entre empresas e fornecedores, relações
comerciais nas áreas tecnológicas e outras.
3.4 A mediação como instrumento de pacificação social
Ao analisarmos as formas de resolução alternativa de litígios
(negociação, conciliação, mediação e arbitragem), percebemos que, mesmo
todas pertencendo ao mesmo gênero, guardam semelhanças e diferenças. A
mediação destaca-se das demais, pois é a única que se preocupa em tratar o
conflito na sua origem, por meio do diálogo e da escuta, transformando-o em
algo positivo para os envolvidos.
Warat enfatiza a diferença da mediação dos demais modos
alternativos de solução das disputas, ao dizer que
...o caráter transformador dos sentimentos que, por graça da
mediação, pode ocorrer nas relações sentimentalmente conflituosas,
55
o que é ignorado no procedimento judicial e nos outros
procedimentos alternativos de resolução de conflitos
(2001: 79).
A mediação, como resultado, visa à harmonização das partes, a
pacificação dos espíritos. Tem, como vimos, conceito distinto da conciliação,
sendo esta somente uma forma tópica de solução do conflito. Logo, pode haver
mediação sem acordo, da mesma forma que pode haver acordo sem
mediação; embora o ideal fosse quando houvesse acordo existisse também a
pacificação dos espíritos e a harmonia entre as partes.
Na compreensão de POJEMAN (2001), a cada dia torna-se mais
difícil decidir, e mais necessário que as partes elaborem por si mesmas a
solução da controvérsia, o que se encontra na essência da mediação, que
consiste em descartar a idéia de vencer o outro para fazer prevalecer o
conceito de que é possível procurar uma solução que permita a justaposição de
desejos, com prevalência da autonomia da vontade.
Por meio da mediação, as partes podem construir, pacificamente,
uma solução para o conflito entre elas existente. Para tanto, deve-se lançar
mão de todas as técnicas possíveis, inclusive da Psicológica, tudo com o
objetivo de fazer com que os envolvidos discutam as suas divergências,
reflitam suas posições, revejam conceitos e obtenham um consenso, para que,
na medida do possível, surja um acordo para sepultar a cizânia, mas,
especialmente, a consecução do objetivo maior, apaziguar os espíritos e se
possível estabelecer um novo relacionamento.
A mediação tem como objetivos a preparação de um plano para o
futuro, que as partes possam aceitar e cumprir; a preparação das
partes em conflito, para que aceitem um acordo que possam cumprir
e suas conseqüências; a redução da ansiedade e outros efeitos
negativos frutos da contenda. Pretende-se, com ela, auxiliar as
partes em conflito para que obtenham uma resolução consensual,
que lhe propicie reduzir os obstáculos de comunicação e fazer com
que possam explorar uma série de alternativas, atendendo às
necessidades de todos os que dela participam e propiciando um
modelo para a futura solução do conflito
(TARGA 2004: 132).
É importante advertir para o fato de que a mediação não deve ser
vista somente como uma forma de desafogar o Poder Judiciário, com a
56
redução no número de processos, mas, sobretudo, como um meio de criar uma
cultura de paz na sociedade, por meio do consenso, da harmonia nas relações,
diminuindo a conflituosidade e restaurando o respeito entre as pessoas.
A tônica deste mecanismo de solução de conflito consiste na
criação de um ambiente de confiança e harmonia, onde prevaleçam a calma e
a serenidade. Por isso, o mediador deve de logo buscar identificar os pontos de
conflitos e os de convergência, incentivando as partes na criação de opções,
que não seja o confronto direto.
Os outros meios de solução de conflitos, incluindo a via legal do
Judiciário, o aprofundam as causas, apenas os resolvem superficialmente,
permanecendo acesa a chama da discórdia. É por isso que muitas vezes,
mesmo existindo o acordo, este não é capaz de conter a explosão da mágoa,
da raiva, do ódio e do confronto pessoal.
A mediação é o instrumento disponível para facilitar o diálogo e
promover a comunhão de propósitos, mas são as partes as grandes
responsáveis pelo acordo, pois somente elas detêm o poder de decidir.
Por fim, é certo que a conflituosidade têm custos elevados, de
modo que, promover políticas públicas, baseadas em mecanismos que a façam
diminuir, pode incrementar os investimentos sociais em áreas prioritárias, como
saúde, educação, lazer e outros.
3.5 As Resoluções Alternativas de Litígios e a efetivação dos princípios
constitucionais
A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade
de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades
virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei,
em conformidade com os princípios da lei.
57
Dessa forma, vedam-se as diferenciações arbitrárias, as
discriminações absurdas. Conforme COMPARATO (1996), as chamadas
liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a
ser alcançada, não por meio de leis, mas também pela aplicação de
políticas ou programas de ação estatal.
As Resoluções Alternativas de Litígios apresentam-se como
importantes colaboradoras do Estado e da sociedade. Para o Estado, pois o
auxilia na difícil missão de solucionar os conflitos e garantir o acesso à Justiça,
desafogando o Poder Judiciário. Para a sociedade, porquanto representa um
meio democrático, fácil e acessível, proporcionando a igualdade e a ampla
defesa para todos, oferecendo decisões mais rápidas e de muita qualidade,
além de promover a cultura da paz por meio do diálogo e da solidariedade.
O Estado, num regime democrático, deve visar à promoção da
igualdade, da cidadania, que é representada pela garantia intransigente dos
direitos fundamentais.
O acesso à Justiça, assegurado pela Constituição Federal, não se
restringe somente ao acesso ao Judiciário, mas a todos os mecanismos
capazes de promover a igualdade e garantir o direito de defesa. Neste
contexto, as RAL’s sem dúvida constituem valioso instrumento de promoção da
Justiça.
Segundo SALES (2004), por ser a mediação de conflitos um meio
de efetivação dos direitos fundamentais, e, portanto, colaborador do Estado
Democrático de Direito, deve ser difundida pela sociedade e institucionalizada
como meio de solução de conflitos.
As RAL’s têm o potencial social não de solucionar conflitos,
mas também de realizar uma transformação cultural, pois suas bases
conceituais priorizam o diálogo, a confiança, a solidariedade e a cooperação.
Entende-se, pois, que elas podem, por intermédio de políticas públicas
58
consistentes, ser um instrumento capaz de promover o acesso à Justiça, à
igualdade e à ampla defesa.
No capítulo seguinte, analisaremos a Defensoria Pública no
contexto do sistema de Justiça brasileiro, suas bases constitucionais,
estruturais e conjunturais, e se ela pode vir a constituir um espaço público de
aplicação das RAL’s.
4 A DEFENSORIA PÚBLICA NO UNIVERSO JURÍDICO E SOCIAL
4.1 A estrutura da Defensoria Pública no Brasil
Cumpre-nos, antes de analisar se efetivamente a Defensoria
Pública pode vir a constituir um espaço blico de aplicação das RAL’s,
discorrer sobre seu surgimento no Brasil, suas bases constitucionais,
estruturais e conjunturais dentro do universo jurídico e social do Estado
brasileiro.
O modelo de Estado de Direito adotado pelo Brasil tem por
características a observância do cumprimento do princípio da legalidade e da
supremacia da lei, como garantia de segurança jurídica para os cidadãos. Num
regime político como o brasileiro, que se intitula de democrático, a criação das
leis deve respeitar a vontade de todos e, nesse produto final, deve-se
reconhecer a vontade do povo.
O reconhecimento formal de direitos, contudo, não implica
diretamente sua efetivação. Daí a tão apontada distância entre a lei e a
realidade. A parcela da população que pode contar com a proteção da lei ainda
é bastante diminuta, mesmo nas grandes cidades. Para CARVALHO (2003),
existem no Brasil três tipos de cidadãos: os de primeira classe, os “doutores”,
que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus direitos pelo
poder do dinheiro e do prestígio social. São geralmente brancos, ricos, bem-
vestidos, com formação universitária. São empresários, banqueiros, grandes
proprietários rurais e urbanos, políticos, profissionais liberais, altos
funcionários. Quase sempre mantêm vínculos importantes nos negócios, no
governo e no próprio Judiciário. Esses vínculos permitem que a lei funcione
em seu beneficio. Esses cidadãos são encontrados nos 8% da população que
recebe mais de 20 salários mínimos. Para eles a lei não existe ou pode ser
dobrada.
Existe ainda a classe dos “cidadãos simples”, de segunda classe,
que estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei. Esse grupo é composto pela
classe média modesta, os trabalhadores assalariados com carteira de trabalho
60
assinada, os pequenos funcionários, os pequenos proprietários urbanos e
rurais. o brancos, pardos e negros, com educação sica concluída. Esses
cidadãos nem sempre possuem consciência dos seus direitos, e, quando têm,
carecem de meios para defendê-los. Quase sempre dependem da polícia e de
outros agentes da lei que definem na prática que direitos serão ou não
respeitados. Estes cidadãos estão localizados entre os 63% das famílias que
recebem entre dois a 20 salários mínimos. Para eles, existem o digo Civil e
o Penal, mas aplicados de maneira parcial e incerta.
Por último, existe o “vagabundo”, o “elemento”, na linguagem
policial. São os cidadãos de terceira classe. É a parcela marginal da população,
que na maioria das vezes não tem voz nem vez. São trabalhadores urbanos e
rurais sem carteira assinada, posseiros, empregadas domésticas, biscateiros,
catadores de lixo, camelôs, menores abandonados, mendigos. São em sua
maioria negros ou pardos, analfabetos ou com educação fundamental
incompleta. Essas pessoas fazem parte apenas das estatísticas. Na realidade,
não conhecem seus direitos civis ou os têm desrespeitados sistematicamente
por outros cidadãos, pelo governo, pela polícia. Não são protegidos pela
sociedade nem pelas leis. Temem as autoridades, pois, em contato com elas,
sempre têm prejuízos. Esta parcela da população está entre aqueles 23% da
população que recebe menos de dois salários mínimos. Para eles a única lei
que vale é o Código Penal.
O fato, porém, de as relações concretas não espelharem a
igualdade prevista em lei não diminui o valor da legalidade. Muito pelo
contrário, implica a existência de um desafio assumido pelas forças que
compõem a sociedade de torná-la tangível.
Em conseqüência, ainda que não respeitados os direitos de
todos, estes possuem uma importância grande, pois passam a ser o próprio
substrato da luta para efetivá-los. A não-coincidência entre o mundo real e o
legal aponta para a necessidade de se efetivar mecanismos que garantam a
sua concretização.
61
É crescente a onda de medidas que buscam cada vez mais esta
efetivação. Importantes reformas estão sendo realizadas nos últimos tempos: a
criação dos juizados especiais, a simplificação de normas processuais, justiças
itinerantes e outras medidas para democratizar a Justiça, mas, infelizmente,
ainda não se mostram suficientes nem adequadas para garantir a efetividade
da lei aos mais pobres.
Os processos de reforma e modernização do sistema de Justiça
padecem de grave erro; um aspecto primordial está sendo negligenciado, que é
o aprimoramento e aparelhamento da instituição encarregada de prestar
assistência jurídica e judiciária aos mais pobres que, como vimos, o maioria
no País. Como falar de Igualdade e Justiça para os cidadãos de terceira classe,
negros, crianças abandonadas, presidiários, desempregados, mulheres, sem-
teto, sem-terra, povos indígenas e outros sem Defensoria Pública.
A Defensoria Pública é uma garantia fundamental para a
viabilização da cidadania. Para ALVES (2006), é um mecanismo de
rompimento das barreiras impostas pelas desigualdades econômica e social.
Talvez o contexto histórico nos faça compreender por que o tema
é ainda tratado com tanto desdém pela maioria dos governantes. Durante muito
tempo, o problema do acesso dos pobres à Justiça foi tratado como uma ação
caritativa, como um dever moral, um favor feito pelos homens bons. Foi
somente no século XIX, na Europa, que surgiram as primeiras leis tratando do
assunto, porém todas com caráter de “dever honorífico”, impondo aos
advogados o patrocínio das causas dos pobres. No Brasil, esse sistema foi
implantado a partir de 1930, com o surgimento da OAB (Ordem dos Advogados
do Brasil), cujo o regulamento previa como dever de cada advogado “aceitar e
exercer, com desvelo, os encargos cometidos pela Ordem, pela Assistência
Judiciária ou pelos juízes competentes”.
13
13
Antigo regulamento da OAB – art. 26, inciso IV, substituído pelo art. 87, inciso IX, da Lei n.
4.215/63, em vigor até julho de 1994.
62
Foi somente com a Constituição de 1934, entretanto, que o
Estado brasileiro passou a reconhecer o direito público subjetivo do cidadão
necessitado à assistência judiciária. A Constituição de 1937, outorgada por
Getúlio Vargas, silenciou completamente sobre o assunto, vindo este à baila
apenas na Carta de 1946, onde foi igualmente previsto, e repetido na 1967 e
na atual Constituição, promulgada em 1988.
Apesar do grande avanço conferido pela Constituição Cidadã,
pois, além de erigir a assistência jurídica ao patamar constitucional, ainda
impôs ao Estado a obrigação de prestá-la de forma integral e gratuita aos que
comprovarem a insuficiência de recursos
14
. Somente depois de seis anos de
sua promulgação, foi editada a lei complementar n۫. 80, de 12 de janeiro de
1994, que finalmente organizou a Defensoria Pública no Brasil com o objetivo
de garantir efetivamente o cumprimento do art. 5, LXXIV da CF.
A Defensoria Pública é uma instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, correspondendo a uma manifestação e instrumento do
regime democrático, cabendo-lhe a orientação jurídica integral e gratuita, a
postulação e a defesa judicial (em todos os graus de jurisdição) e extrajudicial,
de direitos, individuais e coletivos, titularizados por pessoas economicamente
carentes.
As funções institucionais da Defensoria Pública são divididas em
duas - típicas e atípicas. As funções típicas são aquelas exercidas na defesa
de interesses e direitos titularizados por hipossuficientes econômicos, enquanto
as atípicas o aquelas desempenhadas independentemente da verificação do
destinatário ou destinatários da sua atuação (ação civil pública, visando a
tutelar direito coletivo ou difuso, como meio ambiente e consumidor).
A despeito das relevantes funções atribuídas à Defensoria
Pública no Brasil, ela até hoje não foi dotada de estrutura suficiente para
desempenhar todas essas incumbências, possuindo um deficit estrutural
14
Constituição Federal de 1988. Art. 5, LXXIV
63
significativo em termos de defensores blicos e aparelhamento para atender
toda a demanda.
Segundo dados do Ministério Justiça obtidos por meio do II
Diagnóstico da Defensoria blica no Brasil (2006), a democratização do
acesso à Justiça ainda está longe de acontecer. Enquanto há, em média, 7,62
juízes e 4,22 membros do Ministério Público para cada cem mil habitantes,
temos 1,48 defensor público para o mesmo contingente populacional.
Estabelecendo uma comparação direta entre o número de
membros do Ministério Público dos estados e de defensores públicos,
percebemos que três vezes mais integrante da primeira carreira em relação
à segunda.
Fonte: CNPG/CONAMP/SRJ, 2006.
A Defensoria Pública funciona em apenas 39,7% das
comarcas e sessões judiciárias do País. Nos estados com menor IDH (Índice
64
de Desenvolvimento Humano)
15
, exatamente nestes, a defesa gratuita é mais
incipiente.
Fonte: Ministério da Justiça/ Secretaria de Reforma do Judiciário; PNUD.
Pesquisa Defensorias Públicas, 2006.
O estudo mostra ainda que os estados gastam R$ 85,80 por
habitante com instituições do sistema de Justiça, sendo: 71,3% para o Poder
Judiciário, 25,4% para o Ministério Público e apenas 3,3% para a Defensoria
Pública. Ainda de acordo com o II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil
(2006) o público-alvo da instituição é 70,86% da população brasileira.
15
O Índice de Desenvolvimento Humano IDH foi criado para o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento PNUD. O IDH resulta na combinação de três dimensões: 1)
longevidade, educação e renda.
65
Fonte: CNPG; CONAM; Ministério da Justiça/ Secretaria de Reforma do
Judiciário. Pesquisa Defensorias, 2006
O mais grave é que nos Estados de Santa Catarina, Paraná e
Goiás, os governos estaduais ainda não criaram defensorias públicas. E em
estados como Maranhão, São Paulo e Piauí, não chega a 10% o volume de
comarcas atendidas pelos defensores.
A Constituição Federal garante como direito fundamental a
inafastabilidade da jurisdição (art. 5, XXXV), porém como ocorre a efetivação,
na pratica, de tal garantia diante do quadro ora descrito? MÉNDEZ (2000:248)
sintetiza:
... uma justiça acessível aos não-privilegiados é provavelmente a
chave para a necessidade mais urgente nas nossas democracias do
final do século: o desafio da inclusão. A não ser que consigamos
resolver os problemas da marginalização e exclusão, os regimes que
criamos e consolidamos não merecerão o adjetivo de democrático’.
(...) A não ser que alcancemos acesso geral e universal, o direito à
justiça continuará a ser um privilégio e não um direito.
66
O desafio da inclusão passa necessariamente por políticas
públicas que disponibilizem mecanismos que tornem a lei e a Justiça mais
acessíveis para todos. Dentre estes mecanismos, a Defensoria Pública, sem
dúvida, constitui um dos mais relevantes.
4.2 O lugar da Defensoria Pública no sistema de Justiça
A Defensoria Pública deve ser entendida como instituição
constituída, conforme o art. 2۫ da Lei Orgânica Nacional da Defensoria
Pública
16
, pela Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos estados.
A Defensoria Pública da União, segundo as normas de
organização judiciária, atua junto à Justiça Federal comum e às de
competência reservada (Justiça do Trabalho, Eleitoral e Militar Federal). As
Defensorias Públicas do Distrito Federal e territórios (que vierem a ser criados)
não são componentes da Defensoria da União e atuam com independência na
suas respectivas áreas, enquanto as estaduais o organizadas pelas próprias
unidades da Federação, mediante normas jurídicas próprias, segundo critérios
gerais estabelecidos pela Lei Complementar n۫ 80/94, atuando junto à Justiça
Estadual, sem prejuízo de suas atividades extrajudiciais
17
.
A Defensoria Pública é dotada de três princípios institucionais:
unidade, indivisibilidade e independência funcional. Por unidade, deve-se
entender que a Defensoria corresponde a um todo orgânico, sob uma mesma
direção, mesmos fundamentos e mesmas finalidades. Como conseqüência de
tal princípio, possibilidade de um defensor público, no decorrer do processo,
substituir outro, sem prejuízo para a atuação da Instituição ou para a validade
do processo, sem que seja estabelecida, no entanto, vinculação de opiniões,
que o defensor público que vier atuar posteriormente poderá possuir opinião
divergente, e, conseqüentemente, realizar procedimentos distintos daqueles
efetuados pelo defensor público que atuou inicialmente.
16
Lei complementar n۫ 80/94.
17
As atividades extrajudiciais constituem nas orientações jurídicas e na promoção das RAL’s.
67
Por indivisibilidade, compreende-se a Defensoria Pública, como
um todo orgânico, não estando sujeita a rupturas e fracionamentos.
Por independência funcional, deve-se entender que a Instituição é
dotada de autonomia perante os demais órgãos estatais, podendo inclusive
propor ação contra as pessoas jurídicas de Direito blico e as demais
pessoas jurídicas por aquelas criadas, estando imune de qualquer interferência
política que afete a sua atuação, o que é assegurado pela nomeação do
defensor público-geral dentre os componentes de carreira, a existência de um
regime jurídico próprio para os defensores públicos, garantias e prerrogativas,
e de autonomia administrativa e financeira. É importante ressaltar que em face
do princípio institucional da independência funcional, os defensores públicos,
de acordo com MEIRELLES (1990), são agentes políticos do Estado, ou seja,
agentes públicos que executam atribuições determinadas na Constituição
Federal, dependendo, para tal, de independência funcional e outras
prerrogativas.
As garantias dos defensores públicos são estabelecidas no art.
127 da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública.
A primeira garantia é a independência funcional, sobre a qual nos
reportamos pouco, e deve ser entendida como garantia de um agir livre de
quaisquer limitações ou censuras do chefe do Poder Executivo, ou de qualquer
autoridade, inclusive do defensor público-geral, devendo o defensor público
atuar de acordo com sua consciência e em respeito exclusivo à Constituição
Federal.
A segunda garantia é a inamovibilidade (que consiste em uma
garantia, da mesma forma, da Magistratura e Ministério Público), a impedir que
o defensor público seja removido do órgão do qual é titular para outro de
atuação da Defensoria Pública, ainda que no mesmo fórum ou comarca.
68
A terceira garantia é a irredutibilidade de vencimentos, o que,
segundo a Constituição atual, deve ser entendida como garantia de todos os
funcionários públicos.
Ao contrário do que muitos pensam, o defensor público não é um
advogado público, que a Emenda Constitucional n۫19/98 deu à Defensoria
Pública um status próprio, passando a figurar em seção
18
independente dos
órgãos que compõem a Advocacia Pública (Advocacia da União e as
Procuradorias dos Estados e Distrito Federal). Neste sentido, a Constituição
Federal confere à Defensoria Pública um caráter diferente da advocacia,
aproximando-a mais do modelo do Ministério Público e, como enfatiza
DEVISATE (2000:392),
... acaba sendo lógico e natural que se tenha em mente que a
Defensoria Pública pós-Emenda Constitucional n۫ 19/98 acaba se
assemelhando mais, agora, mais do que nunca, sob certo prisma, ao
Ministério Público (e, como corolário, se distanciando cada vez mais
do gênero “advocacia”, mais particularmente da chamada “advocacia
pública”), reclamando e, na verdade, devendo ocupar um seu lugar
próprio e peculiar no universo dos seguimentos provocadores da
jurisdição.
Essa medida fortaleceu a Instituição retirando-a da esfera de
influências políticas do governante de plantão, dando à Defensoria Pública uma
identidade maior com o órgão do Ministério Público, pois ambos convergem
para o mesmo fim, que é a constituição de uma sociedade livre, justa e
solidária, distinguindo-se somente no seu modo de atuar, pois o primeiro
incumbe-se da defesa da sociedade, como coletividade, e o segundo na defesa
da sociedade, como indivíduos.
4.3 O alcance social da Defensoria Pública
A Constituição da República atribui à Defensoria Pública a função
de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. A instituição
18
Constituição Federal de 1988
Seção I – Do Ministério Público (artigos 127- 130)
Seção II – Da Advocacia Pública (artigos 131 e 132)
Seção III – Da Advocacia e da Defensoria Pública (artigos 133- 134)
69
deve atuar em todas as áreas do Direito, inclusive extrajudicialmente. Em
termos potenciais, a Defensoria possui grande acervo de atividades que podem
ser desempenhadas em favor da cidadania e da sociedade.
Conforme, ainda, o II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil
(2006), das 2.510 comarcas existentes no Brasil, somente 996 são atendidas
pela Defensoria Pública, o que corresponde a 39,7% do total. Todas as
defensorias públicas têm atuação nas áreas cíveis (em geral), criminal,
incluindo tribunal do júri e infância e juventude. Também se verifica a sua
atuação nas varas de execução penal e nos juizados especiais de quase todas
as unidades da Federação.
De acordo ainda com os mesmos dados, no ano de 2005, a
Defensoria Pública brasileira prestou 6.565.616 atendimentos, número bastante
expressivo, levando em conta a precariedade estrutural da Instituição.
Fonte: Ministério da Justiça/Secretaria de Reforma do Judiciário; PNUD.
Pesquisa Defensorias, 2006.
Outra estatística importante é a relação de atendimentos e
ajuizamento de ações judiciais. Para cada 100 atendimentos, 17 resultaram em
70
processos judiciais. Os atendimentos podem ser para a preparação de uma
ação judicial, para acompanhamento de processo ou na utilização de meios
extrajudiciais de solução de conflitos. O baixo número de ações ajuizadas, em
comparação com o número de atendimentos, pode ainda revelar que os
defensores públicos estão utilizando mais as resoluções alternativas de litígio.
Quanto a atendimentos especializados, os números revelam que
apenas seis defensorias públicas estaduais não prestam atendimento a
entidades sem fins lucrativos (Acre, Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Piauí e
Rio Grande do Norte). Também em 14 unidades federativas, a Defensoria
Pública possui núcleos de Defesa do Consumidor. Além do atendimento
especializado, alguns destes propuseram ações civis coletivas, com base na
legitimação prevista no Código de Defesa do Consumidor.
Outro dado interessante é a existência de núcleos para
atendimento a idosos e mulheres, fato que parece relacionado à existência de
leis específicas disciplinando essas matérias, como Estatuto do Idoso e mais
recentemente, a Lei Maria da Penha, sobre violência doméstica e familiar
contra a mulher.
Fonte: Ministério da Justiça/ Secretaria de Reforma do Judiciário; PNUD. Pesquisa Defensoria
Pública, 2006.
71
Em relação à procura por atendimento, a pesquisa revelou que a
maior demanda da Defensoria Pública se encontra nos estados com menor
IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Estas pessoas estão situadas na
população de idade superior a 10 anos e que recebem até 3 salários mínimos.
A maioria das defensorias públicas não presta atendimento em
plantões regulares em delegacias de polícia. Atualmente, prestam esse
atendimento somente as defensorias públicas dos Estados do Amazonas,
Amapá, Ceará, Mato Grosso do Sul, Pará, Piauí e Rio Grande do Sul.
No Brasil, existem 6.575 cargos de defensores públicos, mas isto
não quer dizer que todos estejam preenchidos, pois aqui no Estado do Ceará,
por exemplo, existem 415 cargos, porém destes, apenas pouco mais de
duzentos estão preenchidos, segundo dados da própria Defensoria Pública-
Geral do Estado do Ceará
19
.
Os números apresentados pela pesquisa são reveladores. Caso
tivéssemos Defensores Públicos suficientes e condições de estrutura
adequadas, teríamos um ganho social muito maior, que a Instituição possui
uma mobilidade de ação muito grande, pois, além de agir judicialmente, pode
também atuar extrajudicialmente, o que potencializa sua ação por meio da
promoção e prevenção do conflito feito pelo aconselhamento e a utilização dos
meios extrajudiciais de resolução de conflitos.
Os defensores públicos atuam dentro dos limites da atribuição
institucional que lhes é conferida pela lei, podendo patrocinar ações coletivas
de direitos fundamentais, difusos
20
e individuais homogêneos
21
, desde que
essa atividade decorra de um interesse social.
19
O Povo-Ce 01/10/2006.
20
Direitos difusos são aqueles que pertencem a toda a sociedade e não se pode delimitar
todos os seus beneficiários.
21
Direitos individuais homogêneos o aqueles que pertencem a um grupo de pessoas
delimitadas.
72
Como instituição encarregada constitucionalmente de garantir o
acesso das pessoas pobres à Justiça, a Defensoria Pública ainda não recebe a
atenção devida, não sendo sequer conhecida por grande parte da população.
Muitos governantes não se dão conta de sua existência e de sua importância
para a consolidação do Estado Democrático de Direito, como adverte Alves
(2006). Falta-lhe visibilidade na seara política e jurídica, tudo porque a parcela
populacional a que é destinada, apesar de ser maioria, possui sérias limitações
de ordem cultural e educacional.
É inegável a associação entre a Defensoria Pública e a defesa
dos direitos humanos. Para Moraes (1995), sua importância extrapola os limites
constitucionais para alcançar a própria garantia e efetividade do Estado
Democrático de Direito, instrumento da legalidade a serviço da democracia, da
humanização das relações, enfim, da difusão igualitária da cidadania e dos
direitos humanos.
4.4 A Defensoria Pública e a reinvenção do espaço público
Atualmente as instituições que integram o sistema de Justiça
passam por diversas transformações, o que suscita muitos debates. Talvez
nunca se tenha discutido tanto o sistema de Justiça como hoje.
No campo específico do acesso à Justiça, várias leis foram
elaboradas, reformas foram implementadas, fazendo com que o ordenamento
jurídico brasileiro disponha de um arsenal de instrumentos de vanguarda,
prontos para serem executados, e com capacidade para garantir excelentes
resultados no campo da cidadania.
Estas transformações do sistema de Justiça, como espaço
público, visam a solucionar os conflitos e distribuir Justiça às camadas mais
pobres e desorganizadas da população. Deve-se, também, à crise do modelo
do Estado de Bem-Estar Social e ao fortalecimento da economia de mercado.
73
Uma economia de mercado aberto descentraliza os fóruns de
resolução de disputa. Enquanto o governo era o grande investidor
nas sociedades latino-americanas, que controlava os preços, os
sindicatos e a maioria dos empregos, os partidos políticos e as
instituições do Executivo e Legislativo eram os fóruns mais
importantes onde se colocavam as expectativas e as soluções dos
conflitos entre grupos sociais. Os conflitos mais importantes que
surgem hoje em dia na América Latina normalmente não acabam
mais em exigências para o governo mudar o modo como os
benefícios sociais são distribuídos. A contrário, os agentes privados
se confrontam no mercado ou nos tribunais. [...] Durante o século XX
na América Latina, os governos, os partidos políticos e várias
instituições públicas usaram a linguagem da justiça social e da
dignidade humana. Os não-privilegiados aprenderam por mais de 50
anos como se integrar à sociedade e conseguir os benefícios sociais
por meio desses canais políticos. Mas hoje esses canais políticos
perderam muito seu peso. O Judiciário, que com certeza não tem
sido na tradição latino-americana um fórum importante para os não-
privilegiados apresentarem suas reivindicações, pode tornar-se,
finalmente, sob as novas condições, um lugar importante para
integrar a justiça social (SUTIL, 2000:287 e 295).
Com o advento da Constituição de 1988, o Ministério blico e a
Defensoria Pública tornaram-se no contexto brasileiro agentes importantes
(sobretudo o Ministério Público no plano nacional), ao assumirem para si, além
da defesa dos direitos humanos, os chamados “novos” direitos, como os de
proteção ambiental, da posse da terra, do interesse dos consumidores etc.
Ganharam significativo espaço ma mídia para divulgação do seu trabalho.
Essas modificações no perfil das instituições do Direito
despertaram interesse acadêmico por elas e por seus agentes. Atualmente
várias pesquisas investigam a Magistratura, o Ministério Público e a Defensoria
Pública, como agentes da democracia brasileira recente.
O interesse acadêmico pela Defensoria Pública tem como ponto
de partida a dissertação de mestrado de Brenno Mascarenhas, defendida no
Mestrado em Direito da PUC-Rio, intitulada A dinâmica do individualismo na
Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em 1992. Esse estudo foi realizado
pouco tempo depois da Constituição de 1988, que situou a Defensoria Pública
como instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Seu trabalho é
referência constante nos trabalhos acadêmicos que tratam de Defensoria
Pública e acesso à Justiça no Brasil.
74
A grande contribuição de sua pesquisa foi perceber a modificação
que se processou na Defensoria Pública do Rio de Janeiro no final dos anos
1980, quando, a despeito de ser uma instituição jurídica caracterizada pelo
tratamento de questões e conflitos de cunho individual, uma herança do
liberalismo clássico no campo do Direito, começou a tratar de conflitos
coletivos, o que indicou uma mudança no perfil dessa instituição.
De acordo com MASCARENHAS (1992), ao lado das defensorias
denominadas de ‘tradicionais’, que atuavam somente no pólo individual, como
os núcleos de atendimento inicial que tratam de questões de família (alimentos,
divórcio, guarda judicial, interdições e outras) e da área penal (defesas penais,
Habeas corpus, liberdades e outras), surgiram as defensorias especializadas,
classificadas por ele de ‘não tradicionais’, que tratam dos novos direitos dos
quais falamos pouco, proteção ambiental, da posse da terra, do interesse
dos consumidores, etc. e, além de tratarem das causas coletivas,
aproximaram-se mais dos movimentos sociais, como das associações de
moradores dos bairros.
As defensorias consideradas ‘tradicionais’ incorporam o
individualismo do Estado liberal, enquanto as ‘não tradicionais’
[...] se assimilam ao Estado contemporâneo, na medida em que são
reconhecidos os direitos imputados a grupos que, em caso de serem
desrespeitados, impõem uma ão conjunta por parte de todos os
seus integrantes, bem como das organizações legitimadas sobre a
representação coletiva desses grupos (MASCARENHAS, 1995:74).
Desta maneira, o autor conclui que...
[...] as Defensorias Públicas ‘não tradicionais’ ocupam, assim, um
espaço institucional novo, essencialmente diferente daquele coberto
pelas Defensorias Públicas ‘tradicionais’, caracterizadas pela mesma
representação individualista dos fenômenos sociais que marca o
liberalismo. As Defensorias Públicas ‘não tradicionais’ não se limitam
a proporcionar serviços jurídicos de melhor qualidade, em
decorrência de sua sintonia com a realidade com a qual trabalha.
Suas intervenções têm também uma importante eficácia política,
além daquela mais óbvia, que, aliás, o é privilégio dos órgãos de
atuação ‘não tradicionais’, a saber, a de constituir obstáculo à
instalação do clientelismo no terreno da assistência jurídica. [...] [As
Defensorias Públicas ‘não tradicionais’] produzem uma maior
75
visibilidade dos fatos econômicas e socialmente relevantes e
impedem a vulgarização e revelam a dimensão política desses
conflitos. Tornam-se mais facilmente perceptíveis, de um lado, a
comunhão de interesses de componentes de certos grupos e, de
outro, contradições da sociedade de classes. Dessa forma, a
Defensoria Pública participa do movimento de ampliação do acesso
à justiça, atua como vetor da expansão do sentimento de cidadania e
se engaja no esforço de construção de uma sociedade mais
democrática (Ibidem:80-81).
Assim, a atuação da Defensoria Pública na defesa dos direitos
coletivos inaugurou outro espaço político social e sinaliza com a ampliação
deste espaço, a partir do momento em que passa a adotar os todos
alternativos de solução das disputas como forma procedimental de prevenção
dos conflitos nos seus atendimentos, criando para isto núcleos especializados
para tal.
Esses núcleos representam uma novidade na trajetória da
Defensoria Pública cearense. Começaram a ser constituídos em 2004, em
parceria com o curso de Direito da Universidade de Fortaleza, a partir do seu
Escritório de Prática Jurídica, conseguindo expandir os serviços da Defensoria
Pública a uma quantidade maior de pessoas e ainda introduzir no alunado uma
visão mais social do Direito.
No capítulo seguinte, pretendemos analisar o trabalho
desenvolvido por esse Núcleo, que trabalha com os métodos alternativos de
solução de conflitos em convênio com Universidade de Fortaleza.
A nossa escolha pelo Serviço Solução Extrajudicial de Disputas
(SESED), do Escritório de Pratica Jurídica da Universidade de Fortaleza
conveniado com a Defensoria blica do Estado do Ceará, decorre do seu
caráter inovador na história da instituição no Estado. Esse núcleo representou
uma inovação na trajetória da Defensoria Pública do Ceará, pois, a partir dele,
passou-se a adotar os todos alternativos de solução de conflitos antes do
ajuizamento das ações e começaram a ser constituídos outros com igual
função junto a outros cursos de Direito existentes no Estado.
5 A DEFENSORIA PÚBLICA COMO ESPAÇO DE JUSTIÇA POPULAR
5.1 Descrição das atividades realizadas pelo núcleo da Defensoria
Pública/UNIFOR
O objetivo deste capítulo é descrever e analisar as atividades de
assistência jurídica prestadas pela Defensoria blica do Ceará (DP-CE), em
conjunto com o Escritório de Prática Jurídica (EPJ) da Universidade de
Fortaleza, e como esta constitui um espaço de “Justiça popular”. Para tal, nos
utilizaremos dos relatórios institucionais no Núcleo EPJ/DP-CE e das
observações registradas em diário de campo, quando da nossa permanência
no núcleo como observador-participante no período de 01 de agosto de 2005 a
30 de dezembro de 2005 e 01 de fevereiro de 2006 a 31 de julho de 2006, em
que registramos a origem do assistido (região da cidade), o tipo de atendimento
(a área do Direito), e como são elaboradas e administradas as práticas
alternativas de solução de conflitos antes do ajuizamento da ação judicial
(número, tipos) e o grau de efetividade destas.
A atividade em questão representa a primeira experiência da DP-
CE, que funciona desde 2004, com a finalidade de adotar em seu procedimento
de atendimento os métodos de Resolução Alternativos de Litígios (RAL’s).
O cleo é uma parceria da Defensoria Pública-Geral do Estado
do Ceará com o Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e
funciona em suas dependências, de segunda a sexta- feira, nos três turnos do
dia, e aos sábados no turno da manhã, prestando atendimento ao público
residente em Fortaleza. Possui atualmente dois defensores públicos,
designados com tempo parcial, pois continuam atendendo, também, nas varas
de suas titularidades, além dos estagiários, em sua maioria, alunos
concludentes ou pré-concludentes do curso de Direito, divididos em grupos
variando de 9 a 12 alunos e acompanhados diretamente por um professor-
orientador.
77
Conta em sua estrutura com o Serviço de Solução Extrajudicial de
Disputas (SESED), que funciona como serviço anexo ao atendimento,
realizando as conciliações, mediações e negociações antes de serem
ajuizadas as ações judiciais. Atualmente possui cinco salas para esse fim.
Além disto, existe o Serviço Social, que faz o atendimento social e
auxilia nas mediações, conciliações e outros. A equipe é formada por uma
assistente social e duas estagiárias de Serviço Social. E também o Serviço de
Psicologia, para aconselhamento, acompanhamento de casos e
encaminhamentos, tendo um grupo terapêutico temático sobre violência contra
a mulher. A equipe é formada por uma psicóloga e sete estagiárias de
Psicologia.
O núcleo, quando na sua concepção, pretendia atender
prioritariamente as comunidades próximas à Universidade de Fortaleza (Favela
do Dendê, Luciano Cavalcante, Messejana e outros), porém, como a sua
capacidade foi ampliada, resolveu-se expandir sua área de atendimento. Hoje
atende as pessoas que vêm encaminhadas pela Defensoria blica.
Geralmente, pessoas de todas as regiões de Fortaleza que não conseguiram
atendimento no núcleo central
22
o direcionadas ao núcleo da UNIFOR;
funcionários da própria Universidade e do grupo Edson Queiroz, que se
enquadram no perfil de atendimento, além de pessoas oriundas de parceiras
efetivadas entre o EPJ/DP-CE e organizações não Governamentais (Projeto
Sentinela, EDISCA, CURUMINS, APAE, IPRED e outros).
O EPJ/DP-CE atua no primeiro atendimento de todas as questões
jurídicas, seja civil, família, penal, administrativo, sucessório ou consumidor,
excetua as questões de competência federal (Justiça do Trabalho, Eleitoral e
outras do gênero). Sua função é fazer a petição inicial (que poderá vir a se
tornar um processo, caso seja deferido pelo juiz), que é encaminhada para uma
das varas especializadas (cível, penal, fazendária, infância e adolescência).
22
O núcleo central de atendimento da Defensoria Pública funciona na Rua Cai Cid, 150 –
Papicu, Fortaleza/CE.
78
Assim, os profissionais do núcleo somente têm contato com o assistido nessa
fase inicial, pois é o defensor público da vara que acompanha o processo.
O cidadão, antes de ser atendido por um estagiário ou defensor,
precisa passar por uma triagem, realizada pelos funcionários do EPJ/DP-CE,
logo na entrada principal do escritório. Na triagem, ele informa o seu problema,
preenche uma ficha cadastral eletrônica com seus dados, e em seguida é
convidado a assistir a uma palestra de 10 a 15 minutos onde um estagiário
designado explica como se processa o atendimento do núcleo e como se dará
o encaminhamento do seu problema. Depois aguarda atendimento em uma das
cabines. Lá relata a situação que o aflige e, dependendo da natureza do
problema, é orientado para o Sesed.
A sessão é marcada para a data mais próxima dentro de um
agendamento prévio; é enviada por via postal notificação para comparecimento
da outra parte demandada, convidando-a para no dia e na hora aprazados
comparecer ao Sesed.
Realizada a mediação, negociação ou conciliação, e havendo
acordo entre as partes, este é reduzido a termo, e poderá ser homologado pelo
defensor público ou enviado para a Justiça, dependendo da matéria. Caso
resulte infrutífera a tentativa de composição amigável, a parte é orientada para
ingressar com a devida ação judicial.
5.2 Análise dos dados referentes ao atendimento geral
Os dados colhidos junto ao EPJ/DP-CE provêm da informatização
das rotinas administrativas do escritório, e revelam a quantidade de
atendimentos por mês, a origem do assistido região da Cidade, a espécie de
atendimento (ramo do Direito), a quantidade que foi submetida ao Sesed e o
tipo de RAL’s recomendado (mediação, conciliação, negociação e facilitação ao
diálogo) e quantas obtiveram êxito.
79
No período pesquisado, foram realizados 17.997 atendimentos,
sendo 9.813 em 2005.2 e 8.184 em 2006.1, divididos e classificados da
seguinte forma nos gráficos abaixo:
Gráfico 1
Fonte: EPJ/DPCE, 2005.2.
Gráfico 2
Fonte: EPJ/DPCE, 2006.
Quadro Geral de Atendimentos de 2005.2
3523
5199
1091
1º Atendimentos
Retornos
SESEDS
Quadro Geral de Atendimentos de
2006.1
2854
4518
812
1º Atendim entos
Retornos
SESEDS
80
Os números demonstram uma média elevada de atendimento -
cerca de 1.799 ao mês - levando a crer que este convênio incrementou muito o
atendimento da Defensoria Pública na Capital, pois, de acordo com os gráficos
a seguir, grande parte deste fluxo é oriundo do público excedente do núcleo
central, e que provavelmente seriam atendidos com muita dificuldade,
enquanto outros poderiam até desistir de buscar uma solução para o conflito
vivenciado, o que geraria uma demanda reprimida com grande potencial de
violência (rixas, agressões físicas, intrigas e outras). Além disso,
concretamente, mais pessoas conseguiram ter acesso à Justiça com o
convênio realizado entre Defensoria Pública, Universidade de Fortaleza e
organizações não governamentais.
Gráfico 3
Origem do Atendimento em 2005.2
81,8%
2,4%
15,8%
Defensoria Pública
Grupo Edson Queiroz
Entidades Parceiras
Fonte: EPJ/DPCE, 2005.2.
81
Gráfico 4
Origem do Atendimento em 2006.1
84,0%
10,3%
5,8%
Defensoria Pública
Grupo Edson Queiroz
Entidades Parceiras
Fonte: EPJ/DPCE, 2006.1.
Percebe-se, pelos gráficos acima, que o maior gerador de
demanda do EPJ/DP-CE é o núcleo central da DP-CE, que contribuiu em
2005.2 com 81,8% do atendimento e em 2006.1 com 84%. Estes números
refletem a falta de estrutura do núcleo central da Defensoria Pública, que
funciona apenas com 11 defensores blicos no expediente da manhã e 1 no
expediente da tarde, para atender toda a população carente da Capital
cearense.
Como podemos observar nos gráficos seguintes, a demanda
contabilizada mês a mês indica ainda uma concentração de atendimentos nos
meses de setembro/outubro de 2005.2, reunindo 32,70% e 26,94%,
respectivamente, dos atendimentos, e em 2006.1, nos meses de março/abril,
com 34,66% e 25,67%, respectivamente. Este dado é importante, pois ajuda no
planejamento institucional da Defensoria Pública, permitindo organizar o
calendário de férias dos defensores públicos para os meses com menores
demandas, evitando que o cidadão que veio buscar atendimento volte
frustrado.
82
Gráfico 5
Agosto
Setembro
Outubro
Novembro
Dezembro
2495
3209
2644
1436
29
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
3500
ATENDIMENTOS POR MÊS EM 2005.2
Fonte: EPJ/DPCE, 2005.2.
Gráfico 6
Fevereiro
Março
Abril
Maio
Junho
1165
2837
2101
2024
57
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
ATENDIMENTOS POR MÊS EM 2006.1
Fonte: EPJ/DP-CE 2006.1
83
Os mapas que se seguem identificam a origem dos atendimentos
conforme as regiões da cidade de Fortaleza, permitindo visualizar quais os
bairros que mais concentram demandas. A região I concentra 8,76%, a região
II 8,57%, a região III compreende 9,68%, a região IV ajunta 7,79%, a região V
concentra 13,96% e a região VI 21,49% dos atendimentos.
Atendimento conforme as Regiões da Cidade
REGIÃO I
Percentual de Atendimentos 9,6%
REGIÃO II
Percentual de Atendimento 8,5%
84
REGIÃO III
1
Percentual de Atendimento 9,2%
REGIÃO IV
Percentual de Atendimento 8,6%
REGIÃO V
Percentual de Atendimento 13,96%
REGIÃO VI
85
Percentual de Atendimentos 21,49%
Estes dados permitem melhor planejamento institucional para
distribuir o atendimento, e podem subsidiar uma política de descentralização,
com a instalação de núcleos onde a demanda é maior, evitando deste modo o
deslocamento das pessoas de seus bairros para o bairro Edson Queiroz, sede
do EPJ/DP-CE, impulsionando o comparecimento inclusive às sessões de
conciliação e mediação, haja vista que a dificuldade de deslocamento é um
problema real para os mais pobres.
De acordo com os dados levantados, existe um predomínio de
atendimentos proveniente dos bairros localizados, principalmente, nas
Regionais V e VI, formados por um grande contingente populacional de baixa
renda. A Regional V, conforme informações retiradas da pesquisa sobre a
incidência de crimes relacionados à exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes entre a cidade de Fortaleza e Região Metropolitana
23
, é composta
por 17 bairros e grandes conjuntos habitacionais (Bom Jardim, Canindezinho,
Conjunto Ceará I, Conjunto Ceará II, Conjunto Esperança, Genibaú, Granja
Lisboa, Granja Portugal, Jardim Cearense, Maraponga, Mondubim, Parque
Presidente Vargas, Parque Santa Rosa, Parque São José, Prefeito José
23
BRASIL, M. G.M.B. Relatório da pesquisa aplicada estudo e análise comparativa das
dinâmicas, padrões estatísticos espaciais e fatores explicativos da incidência de crimes
relacionados à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes entre a cidade de
Fortaleza e região metropolitana. Fortaleza: www.mj.gov.br/senasp/pesquisa, 2006.
86
Walter, Siqueira, Vila Manoel tiro). Abriga, segundo dados do IBGE (2000),
uma população de 452.875 habitantes distribuída numa área geográfica de
6.346,70 hectares e apresenta uma densidade demográfica de 71,4 hab/hec.
Os chefes de família possuem a menor renda mensal da capital.
Apenas 2,78 salários mínimos, quando a média de Fortaleza é de 5,61. O
bairro do Siqueira é o mais crítico, com renda mensal em média de 1,95 S/M.
Em sua área geográfica a situação sanitária é alarmante, cerca
de 74,5% dos bairros são desprovidos de esgotamento sanitário. Das 112
áreas de risco de Fortaleza, 18 estão situadas na SER V, soma-se a esta
realidade mais 40 favelas. No total são 3.700 famílias residindo nesta área. A
Regional apresenta ainda, o pior índice de Desenvolvimento Urbano por Bairro
(IDHM-B). Apenas 0,444, contra 0,508 de Fortaleza. Dos cinco bairros com pior
índice, três pertencem à Regional.
Quanto às unidades de saúde, possui o menor número de postos.
Apenas 25 para atender à demanda populacional dos 17 bairros. Com relação
ao abastecimento de água 91,32% dos domicílios particulares são atendidos
pela rede geral de água. Com relação à Educação, dados do IBGE (2000)
informam que 82,17% da população da Regional é alfabetizada. A População
analfabeta compreende 17,03%.
Quanto à região VI é composta por 28 bairros (Aerolândia,
Alagadiço Novo, Alto da Balança, Ancuri, Barroso, Cajazeiras, Cambeba,
Castelão, Cidade dos Funcionários, Coaçu, Curió, Dendê, Dias Macedo, Edson
Queiroz, Guajeru, Jangurussu, Jardim das Oliveiras, Lagoa Redonda, Mata
Galinha, Messejana, Passaré, Paupina, Pedras, Parque Dois Irmãos, Parque
Iracema, Parque Manibura, Sabiaguaba e Sapiranga Coité), que abrigam uma
população de 436.204 habitantes.
O espaço urbano desta grande região que ocupa 40,26% do
território de Fortaleza possui área e o maior crescimento econômico da cidade,
apresenta, contudo, um quadro de disparidades e desigualdades sociais.
87
três décadas atrás, uma boa parte dessa área de Fortaleza era considerada
“semi-rural”, hoje é vista como um dos filões do setor imobiliário, processo de
transformação que pode ser facilmente percebido com o aumento do número
de residências de classe dia e alta em alguns bairros da região. Se por um
lado, a instalação de grandes equipamentos, como a Universidade, Centro de
Convenções, Tribunal de Justiça, Estádio, colégios, bares, centros comerciais,
shopping, etc. contribuíram para a expansão e valorização dessa parte da
cidade, tornando-a em parte, reduto da classe média e alta, contraditoriamente,
a região também apresenta áreas com pela extrema pobreza.
A região abrange os bairros mais pobres da capital e a maior
quantidade de áreas de risco de Fortaleza, 26% do total, onde habitam 17.078
famílias. Possui ainda o segundo mais baixo Índice de Desenvolvimento
Humano por Bairro (IDHM-B), 0,462. Está situado o maior número de bairros
com baixo IDHM-B, num total de 15, dentre eles o Curió, detentor do mais
baixo índice (0,338) entre todos os bairros de Fortaleza. Além disso, bairros
como Curió, Alagadiço Novo, Ancuri e Dias Macedo estão entre aqueles com
menor número de domicílios ligados a rede de esgoto, bem como os que mais
destinam os dejetos a outros escoadouros, como fossas rudimentares.
Como podemos observar os bairros que mais buscam os serviços
do EPJ/DP-CE são os que possuem os menores IDHM-B, seguindo a mesma
tendência do II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil 2006, onde os
estados brasileiros que possuem os menores IDH’s são os que têm as
Defensorias Públicas mais frágeis.
Sobre a espécie de atendimento (área do Direito), de acordo com
os dados colhidos com os gráficos 7 e 8, chamam atenção os relacionados ao
Direito de Família (divórcios, separações, alimentos, guarda de menores e
outros), correspondendo a 70,45% em 2005.2, e 68% em 2006.1 dos
atendimentos, seguidos do Direito Civil (contratos, aluguel, indenizações,
reintegração de posse e outros), 14,77% em 2005.2 e 18% em 2006.1. Esses
números podem apontar os setores da vida social que atualmente mais
88
produzem conflitos, merecendo uma atenção do Poder Público no
planejamento e execução de suas políticas.
Gráfico 7
Fonte: EPJ/DP-CE 2006.1
Gráfico 8
Fonte: EPJ/DP-CE 2005.2.
É também importante notar que os referidos conflitos são mais
apropriados para serem resolvidos por mediação e conciliação, para Sales
(2004), a mediação é mais indicada para os conflitos familiares, que versam
sobre relação continuada, pois necessitam de um tratamento mais profundo,
para que, ao final, não restem arestas e a conciliação pode ser aplicada aos
2482
520
197
114
103
0
500
1000
1500
2000
2500
TIPO DE ATENDIMENTO EM 2005.2
Direito de Família
Direito Civil
Direito Contratual e
do Consumidor
Direito
Administrativo
Direito sucessório
1930
512
171
62
89
0
500
1000
1500
2000
TIPO DE ATENDIMENTO EM 2006.1
Direito de Família
Direito Civil
Direito Contratual e
do Consumidor
Direito
Administrativo
Direito sucessório
89
conflitos de direitos civis, pois o conflitos de natureza não-afetiva,
circunstanciais, não duradouras.
5.3 Análise dos dados referentes ao Serviço de Solução Extrajudicial de
Disputas (SESED)
O Serviço de Solução Extrajudicial de Disputas tem a função de
administrar os mecanismos Resolução Alternativos de Litígios (RAL’s) antes do
ajuizamento das ações judiciais no EPJ/DP-CE. Este serviço constitui um
espaço de entendimento e diálogo, buscando estimular as partes a uma
composição amigável, seja por negociação, conciliação, mediação ou
facilitação ao diálogo, dependendo do problema. Atualmente funciona no
mesmo prédio do EPJ/DP-CE e conta com cinco salas, todas preparadas
especialmente para favorecer o clima amistoso que deve cercar um
entendimento - mesas redondas, tonalidades agradáveis para favorecer a
tranqüilidade, revestimento acústico para garantir o sigilo dos diálogos e salas
climatizadas.
A iniciativa é pioneira no âmbito da Defensoria Pública do Ceará
que, por intermédio desse serviço, adotou em seu atendimento a prática de
resolução alternativa de litígios, apressando para o assistido a resolução do
problema com menos tempo e conferindo-lhe a chance de interferir na decisão,
que é consensual, além de reduzir o número de ações judiciais.
Os gráficos a seguir mostram que, no período pesquisado, foram
marcados 1.107 RAL’s, mas foram efetivamente realizados 597, sendo 386
em 2005.2 e 211 em 2006.1.
90
Gráfico 9
Fonte: EPJ/DP-CE 2005.2
Gráfico 10
Fonte: EPJ/DP-CE 2006.1
NÚMERO DE RAL'S REALIZADOS EM 2005.2
581
386
0
100
200
300
400
500
600
Marcados
Realizados
NÚMERO DE RAL'S REALIZADOS EM 2006.1
526
211
0
200
400
600
Marcados
Realizados
91
O número alto de RAL’s marcados e não realizados chama a
atenção, podendo se atribuir tais números a diversos fatores, dentre eles, a
distância do núcleo do local da residência dos assistidos, a falta de dinheiro
para pagar a passagem do transporte coletivo, o correio que não encontrou o
endereço da outra parte, a falta de interesse em dialogar
24
, e outros.
No que concerne às modalidades de métodos resolução
alternativos de litígios, vimos no capítulo 3 que cada um possui características
que os distinguem uns dos outros e são apropriados para cada tipo de
controvérsia. Todos são de extrema importância para solução dos litígios
sociais, mas guardam peculiaridades próprias. Os gráficos a seguir mostram o
predomínio do número de mediações (204 em 2005.2, e 112 em 2006.1),
seguidos do número de conciliações (87 em 2005.2, e 84 em 2006.1). Os
números são proporcionais às demandas de Família e Civil anteriormente
analisados, justamente por ser a mediação mais indicada para os litígios de
natureza familiar e a conciliação para controvérsias envolvendo direitos civis.
Gráfico 11
Fonte: EPJ/DP-CE 2005.2
24
Existem casos relatados pelos próprios assistidos, que contam que a outra parte chega a
rasgar a notificação de comparecimento ao SESED.
204
87
55
39
1
0
50
100
150
200
250
DAS MODALIDADES DE RESOLUÇÃO
ALTERNATIVAS DE LITÍGIOS EM 2005.2
MEDIAÇÃO
CONCILIAÇÃO
NEGOCIAÇÃO
FACILITAÇÃO DE
DIÁLOGO
ACONSELHAMENTO
PATRIMONIAL
92
Gráfico 12
Fonte: EPJ/DP-CE 2006.1
Outro dado interessante a ser destacado é o papel do Serviço
Social e da Psicologia, que funcionam interdisciplinarmente no EPJ/DP-CE,
fortalecendo o trabalho da mediação, conciliação ou negociação por meio do
aconselhamento, acompanhamento de casos, encaminhamentos, participação
nas sessões do SESED e também por iniciativas no campo social e
psicológico, fomentado o atendimento em instituições especializadas, quando
necessário, como Delegacia da Mulher, Casa do Caminho e/ou a criação de
grupos terapêuticos, como o existente sobre violência contra a mulher, haja
vista a predominância dos conflitos familiares.
Durante o período pesquisado, o Serviço Social realizou 538
atendimentos em 2005.2 e 417 em 2006.1, e a Psicologia 1.237 em 2005.2 e
1.043 em 2006.1, como pode ser constatado nos gráficos seguintes.
112
84
3
12
1
0
20
40
60
80
100
120
DAS MODALIDADES DE RESOLUÇÃO
ALTERNATIVAS DE LITÍGIOS EM 2006.1
MEDIAÇÃO
CONCILIAÇÃO
NEGOCIAÇÃO
FACILITAÇÃO DE
DIÁLOGO
ACONSELHAMENTO
PATRIMONIAL
93
Atendimentos Serviço Social em 2005.2
14%
15%
29%
26%
16%
Agosto
Setembro
Outubro
Novembro
Dezembro
Fonte: EPJ/DP-CE 2005.2
Atendimentos Psicologia em 2005.2
17%
30%
27%
26%
Agosto
Setembro
Outubro
Novembro
Fonte: EPJ/DP-CE 2005.2
Atendimentos Serviço Social em 2006.1
32%
26%
34%
8%
Março
Abril
Maio
Junho
Fonte: EPJ/DP-CE 2006.1
Atendimentos Psicologia em 2006.1
9%
29%
33%
27%
2%
Fevereiro
Março
Abril
Maio
Junho
Fonte: EPJ/DP-CE 2006.1
94
O trabalho desenvolvido pelos profissionais da equipe
multidisciplinar ocorre num processo de complementaridade, múltipla influência
e intercâmbio, facilitando a integração de serviços, num conjunto de ações
planejadas e inter-relacionadas, buscando sempre um trabalho que atenda as
demandas da população, bem como com as de natureza jurídico-social, dando
assim maior efetividade e eficácia aos acordos.
Esta integração entre os profissionais da área psicosocial
contribui para a melhoria na qualidade do atendimento prestado pelo EPJ/DP-
CE, possibilitando à população um melhor acesso à Justiça e o fortalecimento
na garantia de seus direitos.
5.4 A Efetividade dos métodos alternativos de solução de litígios
Esclareça-se, inicialmente, que a efetividade aqui tratada é
aquela auferida pelo número de acordos efetuados pelas partes em conflito
durante o período pesquisado no Serviço Extrajudicial de Solução de Disputas
do EPJ/DP-CE. Pela limitação da pesquisa, não foi possível saber se esses
acordos foram verdadeiramente cumpridos no ambiente comunitário, ou seja,
se as partes realizaram o que se comprometeram. O fato é que o SESED
EPJ/DP-CE não faz o acompanhamento posterior para saber se o que foi
acertado entre as partes foi efetivamente cumprido, solucionando o conflito.
Por outro lado, os números são expressivos, pois mostram que
das 386 sessões de RAL’s realizadas em 2005.2, 308 obtiveram êxito,
significando dizer que quase 80% conseguiram elaborar um acordo, embora
não se tenha um acompanhamento sistemático da efetivação desses acordos,
como expresso.
95
Fonte: EPJ/DP-CE 2005.2
Os números de 2006.1 não são menos expressivos, pois foram
211 sessões e 163 acordos efetivados, dando um percentual de êxito de
77,25%.
Fonte: EPJ/DP-CE 2006.1
de se ressaltar o fato de que, além do alto índice de acordos
firmados para pôr fim aos litígios, o SESED buscou proporcionar o
desenvolvimento da cultura do entendimento e da não-violência, favorecendo
ÍNDICES DE ACORDOS DAS RAL'S EM 2005.2
386
308
0
100
200
300
400
RALS
realizados
RALS
realizados c/
êxito
ÍNDICES DE ACORDOS DAS RAL'S EM 2006.2
211
163
0
50
100
150
200
250
RALS
Realizados
RALS
Realizados c/
êxito
96
os cidadãos em litígio, e os estagiários, futuros profissionais do Direito, uma
percepção diferente de Justiça, fugindo do conceito tradicional, criticado
duramente por FOUCAULT (2004), no qual o Tribunal não consegue atender
os anseios do povo na hora de distribuir Justiça, pois é uma instância imposta
por via autoritária.
A “Justiça popular”, assim nessa compreensão, nasce da
legitimidade dos acordos realizados entre as partes, pois são capazes de
enxergar o conflito e formular a solução, com efeito, todos cedem no final.
Ganham, enfim, porque os envolvidos encontraram a solução adequada para
seu litígio, possibilitando o cumprimento voluntário; ganham, ainda, porque têm
a oportunidade de perceber que são responsáveis pela condução de suas
vidas e porque diminuem o estresse do conflito: intriga, ânimos exaltados,
violência e agressões.
Na concepção foucaultiana, na Justiça popular não existem três
elementos (as duas partes e o juiz), mas somente dois (as massas e seus
inimigos). Na experiência das RAL’s, existe o terceiro elemento (o mediador ou
conciliador), mas este desempenha um papel não de julgador mas de auxiliar
das partes, cuja função não é decidir, mas facilitar o diálogo, mostrar opções,
incentivar o entendimento; a decisão é responsabilidade dos envolvidos no
conflito.
As RAL’s são mecanismos de justiça restaurativa, pois buscam
antes de tudo recompor os laços quebrados pelo conflito, ajustando uma nova
realidade pacífica entre os litigantes. De acordo com ROLIM (2006: 242) para a
justiça restaurativa, a principal preocupação após a notícia do fato é a de
restabelecer as relações sociais, vale dizer, reconstruir o equilíbrio rompido.
Os acordos realizados nas RAL’s, não têm por base uma idéia de
Justiça absoluta e universal, mas têm como parâmetro a própria experiência de
vida dos envolvidos, suas dores, frustrações e necessidades.
97
A organização espacial das salas de RAL’s não corresponde à
descrição de FOUCAULT (2004), de um tribunal: uma mesa; atrás desta mesa,
que separa as duas partes, o juiz. Nas salas destinadas às sessões de RAL’s,
a mesa é redonda e não existe um lugar específico para o mediador ou
conciliador sentar-se, pois ele pode se colocar de maneira livre.
Os acordos realizados têm por base a eqüidade e a
voluntariedade, haja vista que as pessoas são livres e iguais, convidadas e não
intimadas a mediar ou conciliar, e postam-se de maneira espontânea em busca
de uma solução. Portanto, o alicerce é o entendimento. Assim,
...certas formas institucionais são melhores para efetivar os valores
da liberdade e da igualdade quando cidadãos são considerados
como pessoas livres e iguais isto é, como dotadas de uma
personalidade moral que lhes permite participar de uma sociedade
encarada como um sistema de cooperação eqüitativa com vistas à
vantagens mútua. (RAWLS, 2002: 207).
O homem vem cada vez mais buscando a autonomia como modo
de vida de sorte que, a adoção de mecanismos capazes de favorecer a
autocomposição é sem dúvida algo muito moderno. A designação de um
terceiro (juiz) com poderes para resolver seus problemas, decidir sua vida, é
algo controverso, pois quase sempre esse terceiro não conhece as partes,
suas aspirações, as peculiaridades do conflito e julga única e exclusivamente
com base na lei, o que pode em muitos dos casos não resolver o litígio, mas
até agravá-lo e, muitas vezes, não satisfazendo nenhuma dos envolvidos.
É importante ainda esclarecer que os meios empregados por
intermédio do Sesed buscam efetivar uma Justiça legítima e equilibrada, que
as soluções dos problemas são encontradas pelas próprias partes, de modo
que o serviço tão-somente favorece o diálogo, o entendimento, disponibilizado
condições apropriadas para tal.
Pelos números que a pesquisa apresenta, o SESED atinge
formalmente seus objetivos, pois consegue um índice elevado de acordos,
semestre a semestre, ajudando pessoas envolvidas em relações conflituosas a
98
encontrarem um entendimento amigável, tudo isso por meio do estimulo ao
diálogo, da solidariedade e da pacificação das relações. Ao mesmo tempo
favorece aos estagiários o contato direto com outras práticas de Justiça, que
não a formal, incrementando o acesso à Justiça, além de reduzir
significativamente o número de ações no Poder Judiciário.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os mecanismos de Resolução Alternativa de Litígios (RAL’s) e a
Defensoria Pública o alvos de grande interesse por parte da comunidade
acadêmica que trabalha o tema de acesso à Justiça. Muitas investigações e
artigos são publicados no Brasil e na América Latina. Esta pesquisa procurou
mostrar a incorporação nas atividades da Defensoria Pública das RAL’s como
forma ágil e democrática de fazer Justiça e poderia se enquadrar, no primeiro
momento, nesta categoria de estudo. O que esta dissertação também buscou,
demonstrar, no entanto, foi que a criação de um espaço público pela
Defensoria Pública antes do ajuizamento das ações judiciais para a
administração das RAL’s vai além do acesso à Justiça, pois viabilizar um
espaço ante-Justiça
25
é o que denominamos de “Justiça popular” legítima,
estabelecendo ainda um fórum de debates sobre a conscientização dos direitos
e deveres, da responsabilidade civil e do fortalecimento da cidadania.
Estamos vivendo um acirramento dos conflitos, no qual a pobreza,
o medo, a insegurança, a violência e o desemprego surgem como faces
visíveis de anos e anos de ausência de políticas públicas conseqüentes e de
precarização das condições de vida da maior parte do povo brasileiro. Tudo
isso contribui para o aumento da litigiosidade social. Assistimos aos dilemas da
sociedade contemporânea entre produção de riquezas e distribuição de
direitos.
Presenciamos no País uma inversão dos valores sociais básicos,
a obsessão pelo ter, a busca desenfreada pelo consumismo, o isolamento das
pessoas em seus guetos, todos atônitos perante uma multiplicidade de
informações. Os conflitos explodem diante de um mundo atomizado e
enclausurado em corporações, produzindo golpes profundos na sociabilidade e
solidariedade das pessoas, legitimando a descrença nos aparatos públicos de
Justiça. É necessário que se busquem opções capazes de restaurar a
confiança nas instituições brasileiras, de restaurar as relações sociais,
25
Ante-Justiça é antes do ajuizamento da ação judicial no Poder Judiciário.
100
estabelecer uma comunicação clara, e, desta forma, recuperar o tecido social
já distendido ao máximo.
Vimos no capítulo 2 que, nas últimas décadas, a vida jurídica
brasileira atravessou muitos contrastes e paradoxos. À medida que surgem
novos tipos de conflito, a maioria das leis vai envelhecendo, e, mesmo com o
empenho do Legislativo para responder ao desafio de modernização das
instituições de Direito, com a criação de novas leis, a cultura técnico
profissional dos operadores do Direito ainda é bastante defasada, possuindo
muita dificuldade de repensar à luz da aplicação de leis mais modernas. Assim,
parcelas crescentes da sociedade vão reivindicando novas formas de Justiça e
de práticas jurídicas, pois os ritos e procedimentos continuam
incompreensíveis, misteriosos, para a maioria da população.
As RAL’s trazem uma concepção simples, haja vista estar, sua
base no diálogo, na cordialidade, no entendimento. Quando se promovem tais
valores, está se procurando reaver sentimentos perdidos no corre-corre do dia-
a-dia, na competitividade desenfreada do mercado, no egocentrismo da vida
moderna. O Estado como gerente da sociedade tem a obrigação de criar vias
opcionais de solução de conflitos, além do Poder Judiciário, que pacifiquem a
sociedade, que amenizem a beligerância das relações e restabeleçam a
solidariedade entre as pessoas.
Quando defendemos a criação de vias alternativas de solução de
litígio, em nenhum momento cogitamos na extinção do Poder Judiciário, muito
pelo contrário, a existência do Poder Judiciário é imprescindível para a
manutenção das sociedades democráticas, contudo, este não deve ser a única
via de resolução de litígios. Os todos alternativos de solução de conflitos
buscam oferecer formas de resolução pacífica e célere dos problemas que
rodeiam a população. Esses meios trazem consigo, além de novas opções, a
possibilidade de mudança de mentalidade que proporciona o desenvolvimento,
no seio da sociedade, de uma cultura do diálogo, a qual possibilita, em um
conflito, que as próprias partes envolvidas ajam como protagonistas co-
responsáveis pela solução de suas controvérsias.
101
As RAL’s, como vimos no capítulo 3, possibilitam o entendimento
de que a Justiça é algo possível de ser realizado para todos os cidadãos, pois
aproxima-os do exercício democrático, na medida em que viabilizam
efetivamente a resolução de seus conflitos, incluindo aqueles antes
marginalizados. Representa, ainda, um exercício de cidadania quando, pelo
processo de formulação dos acordos, as pessoas tomam ciência de seus
direitos e deveres, sendo incentivados a dialogar e resolver seus conflitos,
tomando para si a responsabilidade de cumprir o que foi estabelecido.
Portanto, podemos dizer que as RAL’s são instrumentos de
inclusão social, pois possibilitam ao homem identificar-se como sujeito
responsável pelas mudanças. Ele tem a possibilidade de ser o protagonista das
relações sociais, dirigir, não de ser dirigido.
Como foi delimitado na Introdução, o objetivo principal desta
pesquisa é demonstrar que a Defensoria Pública pode vir a constituir novo
espaço de “Justiça popular”, a partir da adoção em seu procedimento de
atendimento das RAL’s, antes do ajuizamento da ação judicial, com base no
novo perfil constitucional elaborado para ela na Constituição de 1988.
Com a Carta Constitucional, as representações jurídicas
ocuparam as pautas de discussões, tendo sido destaque no cenário da
democracia brasileira contemporânea. No capítulo 4 vimos que a Defensoria
Pública foi objeto de transformação constitucional, deixando de lado o aspecto
caritativo e passando a assumir um novo papel de defesa dos direitos humanos
e sociais, dos novos direitos e de garantia de acesso à Justiça aos pobres.
Desde então, assumiu um papel de agente político, possuindo a missão
constitucional de garantir, em todos os níveis, a assistência jurídica gratuita,
transcendendo, desse modo, os limites do formalismo jurídico. Sua evidencia
neste processo representou, também, a busca para assegurar a cidadania aos
pobres do Brasil.
Todo este incremento dado à cidadania por meio da Defensoria
Pública e do destaque dos direitos fundamentais e sociais, garantidos pela
102
nova ordem constitucional, com a criação de instrumentos jurídicos, como o
mandado de injunção
26
, Habeas data
27
, além dos conhecidos mandado de
segurança, Habeas corpus e outros, colocaram o Poder Judiciário em xeque,
pois sua estrutura pesada e com mecanismos processuais defasados não
consegue dar as respostas de que a sociedade carece.
O surgimento das RAL’s como fenômeno político social desperta
inúmeras polemicas a seu respeito, ora de tonalidade positiva, ora de tom
negativo. A ampliação das RAL’s na vida social, porém, notadamente sob o
ângulo dos direitos e garantias fundamentais, representa um instrumento
valioso de adaptação à dinâmica democrática da sociedade moderna; sua
estruturação torna-se importante auxiliar na consolidação do acesso à Justiça,
além de estimular molecularmente o processo democrático, pois fortalece as
bases de sustentação social.
Nesse aspecto, os argumentos apresentados nesta dissertação
contradizem àqueles que entendem que as RAL’s seriam uma Justiça de
segunda categoria, erigida simplesmente para desafogar o Judiciário.
Buscamos ressaltar, no decorrer da pesquisa, a idéia de que quando bem
aplicados os mecanismos de resolução de litígio podem a superar as
decisões proferidas no Judiciário, pelo maior grau de legitimidade que
possuem. Assim, longe de ser um instrumento oportunista, as RAL’s podem
transformar-se, como frisamos, em um potencial sistema de inversão de
lógicas excludentes, em especial, pela constituição de um espaço público de
garantia, defesa e proteção dos direitos fundamentais.
Vimos no capítulo 5, na experiência do SESED do EPJ/DP-CE,
que o desenvolvimento do trabalho por meio de uma equipe multidisciplinar
nessa área pode ocorrer num processo de complementaridade, múltipla
influência e intercâmbio, pressupondo a integração de serviços, num conjunto
26
Trata-se de instrumento constitucional previsto no art. , inciso LXXI da Constituição Federal
e tem por objetivo tornar viáveis direitos e liberdades inerentes à nacionalidade, à soberania e
à cidadania, não regulamentados.
27
Instrumento constitucional previsto no art. , inc iso LXXII, que garante a todas as pessoas o
direito a informação de seus registros e dados cadastrais públicos ou privados, para que dele
se tome conhecimento e, se necessário for, sejam retificados.
103
de ações planejadas e inter-relacionadas, buscando sempre um trabalho que
atenda as demandas da população, bem como com as de natureza jurídico-
social, dando, assim, maior efetividade e eficácia aos acordos.
A visão integradora entre os profissionais, e o intercâmbio
continuo contribuem para uma melhoria na qualidade dos serviços prestados
nas ações do mundo jurídico, possibilitando à população melhor acesso à
Justiça e o fortalecimento na garantia de seus direitos.
De acordo, ainda, com os dados apurados do capítulo 5, os altos
indicies de acordos obtidos por meio do SESED podem indicar uma disposição
dos atendidos em buscar um entendimento pacífico e consensual para seus
litígios. Talvez o que esteja faltando seja o incentivo a tais práticas pelos
profissionais competentes. Portanto, pensar em políticas blicas que
favoreçam a autocomposição dos litigantes, a partir da implantação de núcleos
da Defensoria Pública nas periferias para a administração das RAL’s, fosse um
grande impulso à cultura do entendimento, do diálogo e da pacificação social,
nesses espaços onde a ausência do poder público é uma realidade que precisa
ser urgentemente alterada.
Além disso, poder-se-ia ainda, por meio, destes núcleos, com
trabalho da equipe multidisciplinar (assistentes sociais, psicólogos, sociólogos
e outros), promover o exercício de conscientização dos direitos e deveres,
mediante a própria resolução dos conflitos, reafirmando o exercício da
cidadania, que representa a concretização dos princípios constitucionais da
igualdade e dignidade da pessoa humana e dos postulados da democracia.
A Defensoria Pública é, segundo nosso entendimento, a
instituição mais propicia para encabeçar este papel, porque seu espaço de
atuação na sociedade sucede por intermédio dos núcleos de primeiro
atendimento, aqueles que se relacionam diretamente com a comunidade e com
as suas lideranças. Esse canal é a porta de entrada das demandas sociais, dos
mais distintos segmentos da sociedade, absorvendo os mais diversos conflitos
(sociais, individuais, coletivos e difusos) constituindo, pois, um veículo de
104
afirmação de defesa dos direitos humanos. Portanto, como vimos no capítulo 4,
a Defensoria Pública apresenta-se constitucionalmente como defensora dos
cidadãos que não dispõem de meios para defesa dos seus direitos, e
estrategicamente está postada na entrada do sistema de Justiça.
O presente trabalho investigativo não esgota todas as questões
pertencentes ao tema, pois se limitou a auferir a efetividade das RAL’s apenas
pelo número de acordos obtidos no SESED, não sabendo se estes foram
efetivamente cumpridos, e qual a sua repercussão social nos locais de vivência
dos envolvidos, restando, desta forma, alguns questionamentos, que podem
ser objeto de outra pesquisa que se proponha a investigar o percurso do
acordo extrajudicial, ou seja; investigar se os acordos realizados entre as
partes foram cumpridos.
Por fim, este estudo sobre Defensoria Pública e os mecanismos
de Resolução Alternativa de Litígios no Brasil, nos revela que muito deve ser
feito, pois permanecem ainda sem solução as relações das classes menos
favorecidas com a efetividade de seus direitos, mesmo com todos os avanços
conseguidos na lei. A busca de estratégias viáveis para superar a atual crise do
Judiciário brasileiro deve ocorrer com eqüidade e praticidade. De fato, as RAL’s
não se apresentam como uma concepção salvadora, mas um caminho que
pode ser trilhado e que oferece perspectivas viáveis, pois m por base um
acordo informado e voluntário entre cidadãos livres e iguais. Quando este
acordo tem por alicerce atitudes sociais sólidas e políticas públicas
conseqüentes, ele se estabelece e pode garantir o bem de todos os indivíduos
e de todos os grupos que fazem parte do regime democrático justo.
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