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De Laços e de Nós:
constituição e dinâmica de comunidades escravas em
grandes plantéis do sudeste brasileiro do Oitocentos.
Carlos Engemann
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em História Social,
Departamento de História, Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
História Social.
Orientador
Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2006
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1
De Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em
grandes plantéis do sudeste brasileiro do Oitocentos.
Carlos Engemann
Orientador:
Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino
Tese de Doutoramento submetida ao Programa de Pós-graduação em
História Social, Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutorem História Social.
Aprovada por:
___________________________________
Presidente, Prof. Dr. Manolo Florentino
__________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos Jucá de Sampaio
__________________________________
Prof. Dr. José Roberto Góes
__________________________________
Prof. Dr. Marco Morel
__________________________________
Profa. Dra. Mônica Grin
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2006
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2
ENGEMANN, Carlos
De Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades
escravas em grandes plantéis do sudeste brasileiro do Oitocentos /
Carlos Engemann – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2006.
Xiii, 241f.: il.31 cm.
Orientador: Manolo Garcia Florentino
Tese (doutorado) UFRJ / Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais / Programa de Pós-graduação em
História Social, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 238-245.
1. Escravidão. 2. Comunidade. 3. Parentesco. 4. Vale do
3
Resumo:
Este trabalho procura investigar os elementos que os escravos
utilizavam para construir suas comunidades no sudeste brasileiro do século
XIX. Para tanto, utilizamos listas nominais constantes em inventários post-
morten e atos administrativos, além de registros de batismo, matrimônio e óbito
de escravos da região. A partir daí foram estudados elementos como: formação
demográfica, consecução de parentesco, padrões de batismo, matrimônio,
moradia, trabalho e a construção de sentidos. Buscou-se, também, estudar
meios de interação entre as comunidades escravas e o mundo livre.
Abstract:
This work intends investigate the elements that the slaves used to
construct them communities in the Brazilian Southeast in the 19
th
century. To
achieve this, we use nominal lists presented in post-morten inventories,
administrative acts, and baptism, marriage and death registers of slaves in that
region. Based on that, elements have been studied such as: demographic
formation, achievement of kinship, standards of baptism, marriage, housing,
work and the construction of senses. There was also an attempt to study ways
of interaction between the enslaved communities and the free world.
4
STRANGE FRUIT
Lewis Allen / Billy Holiday
Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.
As árvores do sul carregam a fruta estranha,/ o sangue nas folhas e o sangue
na raiz,/ corpos negros que balançam na brisa do sul,/ fruta estranha
pendurada nas árvores de álamo./ Cena pastoral do sul glorioso,/ os olhos
esbugalhados e a boca torcida,/ cheiro das magnólias, doce e fresco,/ então o
cheiro repentino de carne queimando./ Está aqui a fruta para que os corvos
biquem,/ para a chuva carregar, para que o vento sugue,/ para que o sol
queime, para que as árvores deixem cair,/ é aqui uma colheita estranha e
amarga. (tradução do autor)
5
À
Clara Engemann e
Andréa Engemann
6
Agradecimentos
Poucas tarefas são mais ingratas do que escrever os agradecimentos de
um trabalho. Quem o fez sabe como é difícil se lembrar de todos os que
ajudaram e participaram, de alguma forma, do processo de confecção da tese.
uma certa tensão para não esquecer ninguém e parecer ingrato com
pessoas extremamente importantes. Para me redimir previamente com
possíveis omissões, deixo, de inicio, minha mais profunda gratidão a todos os
que concorreram para que este trabalho chegasse a termo.
Isso posto: vamos às menções explícitas de gratidão.
Em primeiro lugar, há o orientador, Manolo Garcia Florentino, a quem
sou mais grato do que posso expressar, pela sua paciência e apoio durante
estes oito ou nove anos de trabalho conjunto. Embora não o responsabilize por
minhas conclusões, é impossível deixar de atestar que sem ele, não apenas eu
mas toda uma geração de jovens historiadores seria consideravelmente mais
pobres intelectualmente. Aos demais professores do LIPHIS: João Fragoso,
Juliana e Jucá. À professora Ana Lugão, por suas críticas cuidadosas e
inspiração. Ao professor José Roberto Góes, por suas críticas nos momentos
cruciais. Ainda ao professor Téo Lobarinhas por suas críticas e valiosas
opiniões.
Aos companheiros de luta: Martha Daison, Tiago Gil, Janaína, Vanessa
(um dos meus dezessete leitores), Alexandre e Daniel. Todos foram
extremamente importantes com suas intervenções e dicas, incentivos e até
mesmo a presença, ombro-a-ombro no campo de batalha, que não nos deixa
pensar que lutamos sozinhos.
Sou grato às professoras Philomena Gebran e Ana Maria Moura, pelo
apoio e incentivo para que este trabalho chegasse a termo.
Agradeço também à CAPES, que viabilizou a confecção da Tese por
meio de um financiamento expresso pela bolsa da qual fui beneficiário. Espero
devolver à sociedade brasileira o investimento feito em minha formação.
7
Aos amigos do Camorim, em especial o professor Rogério Ribeiro de
Oliveira, por ter se lembrado de mim para o Projeto Camorim, que além das
premiações e publicações, me proporcionou uma experiência única de
comunidade. Aqui minha gratidão se estende à professora Denise Fonseca,
coordenadora do NIMA, da PUC-Rio, e que coordenou o Projeto Camorim.
À minha irmã e sobrinhos: Rita, Paula e Daniel. Sou grato pela torcida e
apoio durante esses quatro anos de ausência. E à minha e, que os anjos
levaram pelas mãos, sou grato por ter acreditado no improvável: eu.
Ao Dr. José Antônio, que às vésperas da defesa da minha dissertação
passou pacientemente oito horas aspirando um tumor do meu cérebro. Isso
não tem preço. Graças a ele pude provar, para o bem ou para o mal, que as
idéias eram minhas e não do tumor.
Aos amigos Renata, Jaciara, Janaína, Lucas, Dona Leda, Cida, Zezinho
e toda a turma da Sangue de Cristo, sou grato pelas orações e apoio. Ao meu
irmão Cláudio, que acompanhou de perto o “parto de ouriço” que foi a produção
desta Tese, por sua reza forte e sua presença perene nos momentos mais
difíceis. A estes jamais poderei mostrar toda a minha gratidão.
À minha sogra, Léa, que ocupou com amor e dedicação o espaço vazio
deixado pela ausência de Dona Clara.
À Adréa Reis, esposa e companheira, que fez por mim muito mais do
que jamais poderei fazer por ela. Por todo seu amor e carinho, lenitivo e
bálsamo para as dores do viver, sou extremamente grato.
Àquele que É. Ao Senhor da História sou muito grato por ter me deixado
brincar nos jardins do tempo.
8
Índice
APRESENTAÇÃO ____________________________________________________________ 9
INTRODUÇÃO – ALÉM DA FAMÍLIA ESCRAVA __________________________________ 17
1. O QUE NÃO VIU RICHARD GRAHAM ____________________________________________ 17
2. ENCONTRANDO A FAMÍLIA ESCRAVA A PARTIR DA DÉCADA PERDIDA ____________________ 21
3. ALÉM DA FAMÍLIA, A COMUNIDADE ESCRAVA _____________________________________ 26
4. TÁTICAS E PRÁTICAS_______________________________________________________ 31
I. DA CONSTITUIÇÃO DA ESCRAVIDÃO COLONIAL ______________________________ 36
1. DA NATURAL DESIGUALDADE DA LEI À LEI DA IGUALDADE NATURAL ____________________ 36
2. IDENTIDADE E ESCRAVIDÃO __________________________________________________ 51
3. ESCRAVIDÃO E HIERARQUIA _________________________________________________ 58
II. SANTA CRUZ: UMA COMUNIDADE ESCRAVA_________________________________ 71
1. HISTÓRICO DA FAZENDA ____________________________________________________ 73
2. A ESCRAVIDÃO NA REAL FAZENDA DE SANTA CRUZ________________________________ 81
III. DAS POSSIBILIDADES DA COMUNIDADE ESCRAVA __________________________ 95
1. VESTÍGIOS DO TFICO_____________________________________________________ 95
2. VESTÍGIOS DA FAMÍLIA ____________________________________________________ 109
3. VESTÍGIOS DA COMUNIDADE ________________________________________________ 129
4. DAS POSSÍVEIS COMUNIDADES. ______________________________________________ 187
IV. ENTRE COMUNIDADES E BANDOS ________________________________________ 192
1. ENTRE SENHORES E ESCRAVOS ______________________________________________ 192
2. VIDA DO SENHOR E VIDA DE ESCRAVOS ________________________________________ 203
3. UM OUTRO COMPADRIO: ENTRE O MUNDO LIVRE E O CATIVEIRO_______________________ 211
CONCLUSÃO: O QUE VIU NABUCO __________________________________________ 233
ANEXOS _________________________________________________________________ 238
ANEXO 1: LISTA DAS FONTES PRIMARIAS QUANTITATIVAS_____________________________ 238
ANEXO 2: LISTAS DE DISTRIBUIÇÃO DA MÃO-DE-OBRA ESCRAVA________________________ 240
FONTES __________________________________________________________________ 242
BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________________ 245
9
Apresentação
O estudo da História trás em si um “quê” de ingratidão. Ao cabo de muito
trabalho o que se produz é uma idéia possível do passado e, em geral, uma
idéia provisória, o provisória quanto os nossos métodos e a nossa visão das
sociedades pretéritas. Mas ainda assim somos atraídos a fuçar a papelada
velha dos arquivos e bibliotecas por uma curiosidade quase infantil,
consumindo horas de trabalho em troca de fulgores em nossos espíritos.
Caminhando por entre os séculos que se foram, poderemos parecer
literatos, uma vez que o objeto de nosso discurso o mais existe e as
estruturas de linguagem não nos são exclusivas. Salva-nos exatamente o que
nos sobrou: os indícios, as pistas, as evidências. Marcas do passado que ainda
sobrevivem em algum substrato. De fato, abandonamos muito a ilusão do
passado sepulto, que ressurgirá das fontes corretamente ordenadas, em troca
resta-nos a sina da transitoriedade. Mas com isso, renunciamos também à uma
história com estatuto de verdade. podemos, então, contribuir, aqui e acolá,
com a reconstrução do nosso objeto e de seu tempo.
Conosco deu-se tal e qual. Limitados pelas contingências de nossas
fontes e por nossa abissal ignorância do passado, pudemos, se muito, assentar
mais um tijolo no enorme edifício historiográfico em permanente reconstrução.
Inquieta-nos mais que isso, a validade do trajeto percorrido. O ponto a que
chegamos beira à irrelevância, posto que foi erguido para ser superado, mas a
10
trajetória de nossas idéias deixam um rastro atrás de nós, pelo qual seremos
conhecidos.
O trabalho que ora apresentamos à avaliação de nossos mestres e,
quiçá, futuros pares têm marcas profundas de uma singular trajetória e da
ambição do conhecimento que a nortearam. Às dificuldades de se fazer ciência
num país que luta a canetadas para sair do subdesenvolvimento, soma-se as
de se dedicar a um ramo do conhecimento cuja utilidade sempre nos foi
questionada, desde as vésperas da graduação. Mas “navegar” sempre nos foi
preciso, muito mais que viver.
Eis, então, que após muito trabalho, das oficinas do historiador algo
emerge. Esperamos que seja digno de apreciação e que os eventuais leitores
possam se divertir, concordando ou discordando, tanto quanto nós ao fazê-lo.
Antes de apresentar o resultado de tanto esforço, é preciso que se diga
que um toque forte de sociologia nas reflexões aqui expostas. O foco do
pensamento foi se deslocando à medida que a busca por explicações ia se
impondo à escrita. Consciente de que as conclusões obtidas estão presas a um
momento específico da história e a um lócus próprio, as grandes fazendas do
sudeste brasileiro, aquilo que foi possível aventar como explicação para os
fenômenos sacados das fontes conduziu-nos a reflexões de forte fundo
sociológico e etnográfico. É possível que o toque interdisciplinar descontente
aos que buscavam uma tese historiográfica, no sentido mais estrito do termo:
um risco que nos foi necessário.
Isto posto, eis o que espera o leitor: a tese é composta de quatro
capítulos, além de introdução e conclusão. A introdução da tese tem como
11
função precípua a apresentação da trajetória dos principais trabalhos sobre
escravidão, parentesco no cativeiro e, posteriormente, sobre comunidade
escrava. Durante este processo procuramos discutir também o problema que
motivou nossas pesquisas. Além disso, alguns pressupostos teóricos foram
colocados aí, para, de antemão, avisar o leitor de onde partimos e o que
acreditamos que faça os homens se levantar pela manhã e se mover durante o
dia.
O primeiro capítulo trás uma discussão bastante teórica sobre a
constituição do cativeiro na América. A sua utilidade é fundamentar as bases
para a discussão dos detalhes da relação senhor-escravo que serão
desenvolvidos posteriormente. A primeira das três partes que compõem o
capítulo versa sobre a natureza da escravidão como algo hegemônico frente a
novidade da liberdade, trazida no século XVIII e que procura ganhar consenso
no Brasil ao longo do século XIX. Seu objetivo é formar junto ao leitor a idéia de
um sistema que, num primeiro momento não carece de se justificar, visto que é
a normalidade. Quem precisa de justificativa é a excrescência, isto é, a idéia
burguesa de liberdade. O ponto de apoio para tanto foi um texto assaz
interessante. Trata-se das Obras Econômicas, de Azeredo Coutinho. A
relevância deste trabalho reside no fato de que o autor se ergue como um
defensor do costume solidamente assentado da escravidão contra a novidade
perniciosa e iluminista do direito à liberdade.
A segunda etapa deste capítulo se dedica a examinar a relação entre
identidade e escravidão. Seu objetivo e tentar mapear outra das bases
implícitas das relações escravistas. Desta feita, mediante a um praticamente
12
absoluto silencio das leis e das autoridades, salvo vagas menções nas Sete
Partidas de Afonso o Sábio, nas constituições Manuelinas, e no Código de
Direito Civil do Império. Tentamos buscar, para além da alegação liberal da
propriedade privada, elementos que garantissem a manutenção de uma tão
duradoura instituição. Dito de outra forma, se não foi por força da Lei, em que
poderia estar assentada a definição de quem é e quem não é escravo ou
passível de se tornar um? Para responder a esta questão, admitimos, um
pessimismo hobbesiano nos norteou. Talvez em função disso, a questão da
identidade surgiu como elemento a evitar uma escravização de todos contra
todos. Sendo o Estado, na maior parte do tempo omisso, uma outra marca
deveria fazer as vezes de fronteira entre o “nós” escravizador e o “eles”
escravizado.
Ocorre, no entanto, que isso não seria suficiente para estabelecer as
base de poder e desigualdade que marcam a sociedade escravista, inclusive
intra-cativeiro. Daí a necessidade de inserir na análise das sociedades que
manipulam com sucesso a escravidão um outro elemento: a hierarquia. Uma
perspectiva tomada de B. Moore ajudou a estabelecer um modelo capaz de dar
conta da dinâmica hierárquica que se reproduzia na escravidão, alcançando
todos os seus recantos.
De posse destas reflexões fundamentais, da escravidão como consenso,
como um problema de fronteira de identidade e, ainda, eivada de elementos
hierárquicos, pudemos nos lançar em análises mais específicas às
comunidades escravas.
13
Tomamos como parâmetro de comunidade cativa a Real Fazenda de
Santa Cruz. Isso se deu, em primeiro lugar, por ser ela de fato um paroxismo
em termos de organização comunitária, mas também por possuirmos uma
grande quantidade de informações a seu respeito. A bem da verdade, foi o
estudo desenvolvido no mestrado sobre esta fazenda que despertou uma rie
de questões que tentamos, em alguma medida, contemplar neste trabalho. Por
tudo isso, achamos necessário apresentar um resumo da história da fazenda e
algumas das conclusões obtidas no mestrado e que não figuram em outros
momentos da tese. Para isso foi criado o segundo capítulo.
no terceiro capítulo expandimos a análise para o conjunto de
fazendas que forma a nossa amostra. A idéia inicial é utilizar um suporte
metodológico desenvolvido por Manolo Florentino, que orienta essa tese, e
Cacilda Machado, com os quais tivemos a grata oportunidade de colaborar,
para averiguar a inserção destes plantéis no tráfico atlântico de almas. A partir
daí verificar, via arsenal demográfico, o que mais é possível saber,
comparando os resultados e agregando à análise outras fazendas cujas fontes
permitem, mantendo um cunho comparativo. Investiga-se, por tanto, a conexão
com o tráfico, a presença de parentesco, a possibilidade de formação de
comunidades e suas condições facilitadoras ou inibidoras. Em linhas gerais,
análise caminhou num crescente: da ausência do tráfico para a família, da
família para a comunidade escrava. Embora, como veremos, não seja tão
simples assim.
Não nenhuma novidade nisto, porém. A aferição de condições
facilitadoras para a agregação social foi realizada por outros estudiosos de
14
maior gabarito e experiência. Mas a análise que se segue não poderia ser feita
sem a realização destes estudos propedêuticos. A busca de elementos
constitutivos, em maior ou menor medida, das comunidades escravas se faz
calcada nas conclusões de trabalhos anteriores. Alguns destes elementos
também foram investigados por outros autores, sendo, pois, retomados aqui
com o objetivo fundamental de examinar qual o seu papel na construção de
uma comunidade escrava. Assim, batismos, matrimônios e outros aspectos da
vida no cativeiro, embora não sejam exatamente uma novidade historiográfica,
aqui constituem peças de um grande mosaico da vida social e cultural dos
escravos das grandes fazendas do sudeste brasileiro do século XIX.
Dentre os vários elementos estudados, merecem destaque, por
guardarem alguma novidade, a saúde e os cuidados mútuos, as habitações e a
hierarquia social que estas podem produzir, e a questão dos signos e dos
significados. Por meio destas peças revestidas de uma tonalidade diferente da
que lhes foi emprestadas em estudos anteriores, esperamos contribuir de
alguma forma para os estudos das comunidades escravas que venham a se
seguir.
O quarto e último dos capítulos é decorrente de um esforço em enxergar
a comunidade escrava para além das fronteiras expressas pela própria
escravidão. Se, como postulamos, houve comunidades geradas e mantidas no
seio da escravidão; se isso se deu de modo mais profícuo em grandes
escravarias, então, o senhor destas escravarias deve ter se constituído como
elemento central do ponto de vista material e social, visto que era o pivô de
estratégias e o alvo de resistências. A ele se dirigiam bajulações e
15
imprecações, rangidas e ruminadas entre intenções diversas. Daí a
necessidade de se buscar algum tipo de interação possível entre senhor e
escravos na constituição de comunidades. O primeiro passo, tentativa mais
óbvia, foi buscar no ciclo de vida do senhor uma forma de enxergar a interação
entre ambos os lados desta relação.
A segunda tentativa, mais sóbria, foi buscar como a comunidade escrava
pode ter servido, com mais que seus braços, à comunidade branca. Não é fácil
apresentar os resultados desta pesquisa, pois uma leitura mais rasteira poderá
sugerir que a intenção foi mostrar uma carência total de autonomia na
formação de relações por parte dos escravos. Quando na verdade o que se
postula aqui é exatamente o oposto.
Entre as crianças dos subúrbios do Rio, aquele que não tem condições
de entrar no jogo é chamado de “café-com-leite”. O que se buscou mostrar aqui
é que a comunidade escrava não era “café-com-leite” no jogo dos grupos
sociais do sudeste no século XIX. Ao contrário, era apta a entrar na roda dos
agentes sociais e sabia fazê-lo, ora escolhendo elementos externos para
formar laços sociais que vinculavam a comunidade - ou apenas um punhado de
seus integrantes - ao conjunto das relações mais amplas, ora escolhendo
elementos internos, ampliando a coesão. Na verdade, escolhendo ou se
deixando escolher. Ao fim de tudo esperamos que seja possível ensejar uma
discussão mais profunda sobre os meandros da construção das relações
escravistas, assim como das relações escravas, no sudeste brasileiro do
século XIX. O contexto de declínio progressivo da legitimidade da escravidão
pode ter funcionado como catalisador destas relações, visto que sobre elas
16
pesavam elementos não apenas de ordem cultural, mas também política e
econômica. Vejamos o que nos foi possível fazer.
17
Introdução – Além da Família Escrava
1. O que não viu Richard Graham
Richard Graham escreveu a respeito dos escravos da fazenda Santa
Cruz, nos idos dos anos 60. Segundo o autor, a se presumir pelo que se
conhecia da vida escrava naquele momento, a imensa lista de casais, viúvos, e
outros tipos de aparentados que tinha a sua frente só poderia representar
uniões temporárias.
1
Acima de qualquer informação sobre a fazenda, que
estudaremos posteriormente a partir de outros pressupostos, Graham nos
deixou um precioso testemunho de seu tempo e das crenças que grassavam
sobre a vida dos escravos nos frenéticos e turbulentos anos 60.
Na verdade, a geração que pensava o passado escravista do Brasil
naquele momento havia começado a se formar um pouco antes. nos anos
50 os estudos da escravidão ganharam um sentido mais hodierno, na medida
em que se aprofundavam as tensões sociais com o surgimento e crescimento
dos movimentos de direitos civis - em especial o dos negros nos Estados
Unidos. No Brasil, as patentes desigualdades sociais em associação com o
discurso desenvolvimentista e reformista, marcavam a vida acadêmica de
então. Desse modo, estudar a escravidão era, além do mais, investigar as
1 GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Editora Perspectiva.
1979. p. 43.
18
razões do atraso econômico e das dificuldades em superá-lo. Por outro lado, a
questão que polarizava propriedade privada e reforma agrária se tornava a
cada dia mais candente. Talvez pudesse ser esta uma reforma que espelharia
aquela, gradual, que culminou no 13 de maio.
Um dos primeiros estudiosos deste período a se voltar para o problema
da inserção do negro na sociedade brasileira foi Florestan Fernandes. Suas
reflexões acerca da questão primam por tentar estabelecer uma nova idéia do
pós-abolição, matizando-o para além da herança escravista, mas peca por
negar a este um lugar atuante na história que descreve.
Alinhou-se, posteriormente, a ele a chamada escola paulista: Otávio
Ianni, Emília Viotti da Costa e Fernando Henrique Cardoso, entre outros. A
escravidão nas obras destes autores, embora estivesse profundamente
identificada com a moção do sistema mercantil colonial, também era
evidenciada pela a condição jurídica e identidade de “peça” - no dizer de
Fernando Henrique “sua auto-representação como o-homem” -
2
que
constituiria a base das relações sociais em torno do cativeiro.
Emília Viotti da Costa chega a considerar esta marca como interdito a
um relacionamento cultural efetivo, e segundo a autora:
... as duas camadas raciais permaneciam, a despeito de toda
sorte de contatos, intercomunicações e intimidades, dois
mundos cultural e socialmente separados, antagônicos e
irredutíveis um ao outro.
3
2 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1962. p. 155.
3 COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966. p.
280.
19
O antagonismo, motor da história para os enfoques que se aproximam
da matriz marxista, se estabelecia, assim, de forma inequívoca. Grosso modo,
o conceito que subjaz à reflexão destes autores é o de uma vida anômica no
cativeiro. A ausência de regras ou de normas sociais e culturais se transporia
entre o escravo e toda uma séria de atitudes que dele se poderia esperar.
Assim, as fugas, a formação de famílias ou as práticas de resistência, não
seriam expressões de uma formação social. Como destaca Fernando Henrique
Cardoso:
Sua luta, quando houve, nada teve em comum sequer com os
“rebeldes primitivos” da Europa. (...) As lutas dos quilombos
(...) e a revolta pessoal do escravo que matava algum senhor
e fugia o eram embriões de uma luta social maior, capaz de
pôr em causa a ordem senhorial.
4
A contraposição ao cativeiro paradisíaco imputado à obra de Gilberto
Freyre era a desumanização em um cativeiro absoluto e perfeito, onde o
senhor tinha poderes de tornar seus escravos algo diferente do que eles
realmente eram, algo diferente de seres humanos.
No final da cada de 70 e início dos anos 80, aparecem outras
possibilidades de observação da vida escrava. Kátia Mattoso é uma das
primeiras autoras a tentar relativizar o cativeiro. Ao escravo passa a ser
atribuída uma vontade, um desejo de liberdade, ainda que a alforria não seja
plenamente sinônimo dela. Ser escravo no Brasil
5
é uma obra que tenta dar
conta da vida do escravo em suas diversas dimensões, desde a captura até a
eventual alforria.
4 CARDOSO, F. H. apud. SLENES, Robert W. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1999. p. 32.
5 MATTOSO, Kátia Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1982.
20
Na obra de Mattoso um espaço para que o escravo possa entrar no
jogo colonial. Embora o seja ele que dite as regras, a autora entrevê “toda
uma gama sutil de reações, invenções, adaptações originais ou repulsas
disfarçadas” por meio das quais os cativos buscam seu espaço no jogo. Um
espaço certamente não muito amplo, mas existente. A se crer na autora, no
entanto, a família escrava não parece ter sido parte destas invenções.
Neste ponto de sua análise, Mattoso parece concordar com os que a
precederam ao crer que a vontade do senhor era elemento por demais
proibitivo para que se constituíssem famílias entre os cativos. Além disso,
argumenta a autora, a diferença entre os contingentes masculino e feminino
também teria sido um obstáculo intransponível para a constituição familiar
escrava. De tal forma esta condição seria impeditiva, que os cativos insistiriam,
a todo custo, em evitar a procriação, ceifando os laços de maternidade e de
paternidade da vida escrava. As poucas crianças nascidas também não
conheceriam, segundo Mattoso, estes mesmos laços.
Esta barreira que impediu pesquisadores do quilate de Richard Graham
e Kátia Matoso enxergar laços familiares entre os escravos que estudaram,
foi desmoronando nas décadas seguintes. As influências da historiografia
norte-americana, nominalmente poderíamos citar Herbert G. Gutman e Eugene
D. Genovese, associadas às pesquisas locais foram esgarçando a
compreensão da escravidão até que esta comportasse, e como elemento
estrutural, a família escrava.
21
2. Encontrando a família escrava a partir da década perdida
No entanto, chegamos ao início da década perdida ainda com alguns
problemas para dar por certa e freqüente a existência da família escrava. No
fundo, a questão não é apenas a formação ou não de núcleos familiares entre
os cativos. Parece que o problema vai mais adiante: se a família houve no
cativeiro, como houve o cativeiro, a bem da família? Dito de outro modo: se os
cativos não eram totalmente destituídos de humanidade e de capacidade de
associação, como suportaram o cativeiro que se lhes foi imposto? Teria-se que
admitir algo de aceitável na escravidão para explicar-lhe a duração.
Este dilema começou a ter solução na década de 1970, quando a
historiografia norte-americana propôs duas formas alternativas de explicação
da existência da família escrava. Uma, encabeçada por Genovese, lidava com
a formação de laços horizontais, destacando a família escrava da família
senhorial, de modo que estas pudessem tecer entre si uma relação de classe.
A segunda, defendida por Gutman, vinculava a família escrava a uma relação
de dominação paternalista estabelecida pela família senhorial. Mesmo
divergentes quanto ao modo de instauração, ambas abordagens conciliavam
família escrava e escravidão.
No Brasil, a família escrava veio a aportar alguns anos mais tarde,
quando começaram a surgir trabalhos que admitiam a existência de um
quantum de negociação no mundo escravo. Textos como Negociação e
22
Conflito,
6
mostraram que esta negociação não fazia da escravidão uma
instituição menos perversa. Algo deveras importante, principalmente com a
chegada da comemoração dos cem anos da Lei Áurea.
A partir dos anos de 1990, então, vários estudos passaram a demonstrar
não apenas a existência de famílias nas escravarias, mas uma enorme
complexidade na constituição dos laços parentais destes grupos familiares. A
paz das senzalas
7
, de Manolo Florentino e José Roberto Góes, é um dos
estudos que investiga a questão da formação de relações sociais cativas - de
forma particular a formação de parentesco. Os autores apresentam um modelo
teórico que comporta escravidão, parentesco e o interesse senhorial. Em
primeiro lugar considera-se a população cativa como estando sujeita a
permanentes entradas de novos elementos em seu meio. Por outras vias, algo
que necessariamente deveria influir na vida e na sociabilidade dos cativos seria
o tráfico atlântico de almas e suas flutuações. Neste caso, o estrangeiro seria
tão comum a ponto de produzir uma tensão social, gestando permanentemente
um conflito, um estado de confronto potencial. Assim, urgia a criação de
mecanismos que possibilitassem a pacificação, ou seja, que viabilizassem a
convivência que se lhes outorgava.
A formação de laços de parentesco seria, então, uma maneira de tornar
o estranho mais próximo e, portanto, passível de convivência. Obviamente,
estes laços obedeceriam a regras próprias como, por exemplo, a preferência
6 REIS, João José e SILVA, Eduardo, Negociação e conflito. Rio de Janeiro, Cia das Letras.
s/d.
7 FLORENTINO, Manolo e GÓES, J. Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 1997.
23
pela endogamia que seria relativamente abandonada em períodos de pico no
tráfico, quando, segundo os autores, haveria uma urgência em se aparentar.
Ao mesmo tempo, a formação de tais laços favoreceria ao senhor com a
pacificação de seu plantel. Pacificação esta que o permitiria recorrer ao tráfico
novamente, re-introduzindo novos estrangeiros que se integrariam ao plantel
por meio de novos laços parentais. Este mecanismo estaria, na realidade
transformando alguém que a princípio seria um prisioneiro, em escravo. O que,
por fim, permitiria a própria existência do cativeiro.
A conclusão que se chega é que a construção da identidade de escravo
estaria totalmente vinculada à possibilidade destes se relacionarem entre si na
condição de cativos. A julgar pelos resultados das pesquisas de Florentino e
Góes, da mesma forma que a diferenciação social gerada entre os senhores
era a essência do cativeiro na face branca, o parentesco o era na face negra.
Aos senhores, uma hierarquização dada pela apropriação da renda gerada
pelo trabalho cativo. Aos escravos, a possibilidade de viver enquanto tais pelo
estabelecimento de relações autônomas no ventre do cativeiro.
Também abordando o cativeiro pelo que este apresenta de político,
Robert Slenes, apresenta sua versão da família escrava em Na senzala, uma
flor.
8
Trata-se de um trabalho igualmente permeado de influências da
antropologia. Para Slenes, as dissensões entre os escravos, mesmo os de
etnias diferentes, o seriam tão relevante quanto para Florentino e Góes.
Desse modo, a família escrava seria mais uma forma estabelecida pelos
8 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1999.
24
escravos de manter uma certa “resistência cultural”, ou seja, de frustrar as
tentativas do senhor de submetê-los por completo.
Segundo Slenes, o caráter pacificador seria secundário, como seria
diminuta a importância da renda política obtida pelos senhores na consecução
de matrimônios e outros laços familiares entre seus cativos. As forças
essenciais que acabariam se sobrepondo às demais seriam as trazidas da
África sob a forma de lembranças e heranças. Estas seriam a flor que teimou
em sobreviver no meio inóspito do cativeiro e talvez tivesse sobrevivido
exatamente por esta adversa condição.
Outros estudos vêm ampliando os laços familiares, inserindo o
compadrio na esfera de possibilidades de estabelecer o parentesco entre os
escravos. Ana Lugão apresenta o compadrio como uma forma privilegiada de
estabelecer uniões o cosangüineas entre os cativos. A autora interpreta o
compadrio por uma ótica política, semelhante à de Manolo Florentino e J.
Roberto Góes, dando uma dimensão autônoma para este tipo específico de
parentesco. É preciso que se diga que este mecanismo de aparentar
certamente não foi de menor importância, que podia transformar em
parentesco relações para além do âmbito marital e cosangüíneo, utilizando-se
do rito batismal para lhes conferir plasticidade e status.
O percurso que foi feito até aqui demonstrou apenas algumas das
propostas que ampliaram a compreensão da sociedade escravista e,
principalmente, das redes que se instauraram relacionando os seus membros.
Claro está que, nos estudos abordados, o parentesco está no centro das
discussões sobre a relevância das relações sociais. Seu papel na constituição
25
de uma identidade escrava vem se revelando cada vez mais fundamental,
ainda que não se tenha uma posição definida da sua utilidade (ou, se pelo
contrário, era nociva) para os interesses dos seus senhores.
26
3. Além da família, a comunidade escrava
No entanto, o problema da família escrava desembocou em outro,
provavelmente impensado por Graham e seus contemporâneos. A
historiografia da escravidão vem utilizando com uma freqüência cada vez maior
o conceito de comunidade para descrever o convívio dos negros cativos e suas
experiências. Hebe Mattos dedica um capítulo à análise da diversidade na
“comunidade escrava”, descrevendo fatores de identidade geradores de
coesão e quesitos de hierarquização, promotores de discórdia.
9
José Roberto
Góes nos fala de uma comunidade que transcende as fronteiras do plantel e
promove uma conexão entre várias escravarias, como observado em Inhaúma,
uma Freguesia do Rio de Janeiro.
10
Ainda José Roberto Góes e Manolo Florentino analisando os escravos
do Comendador Vallim, na Fazenda do Bananal, identificam a existência de
uma comunidade de cativos, à qual atribuem uma lógica organizadora pautada
no parentesco. Esta proliferação, da qual citamos apenas alguns exemplos, é,
a bem da verdade, uma conseqüência lógica da superação do dilema da
família escrava.
9 MATTOS, Hebe M. Das cores do Silêncio os significados da liberdade no Sudeste
Escravista – Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
10 GÓES, J. Roberto. “Cordeiros de Deus: tráfico, demografia e política no destino dos
escravos” in :PAMPLONA, Marcos A. (org.). Escravidão, Exclusão e Cidadania. Rio de
Janeiro:Access. 2001.
27
João Fragoso e Ana Lugão vão ainda mais longe, o apenas falando
de uma comunidade escrava, mas deduzindo a existência de um processo que
levaria a escravaria de turba à comunidade.
11
Isto significa que uma nova tarefa se impõe. Sabido agora que a
promiscuidade não foi marca determinante da índole dos escravos, mais do
que da maioria dos outros grupos humanos, a existência da família escrava
deixou de ser a pedra de toque dos debates. Uma vez que esta já é largamente
aceita, chegou a hora de buscar o lugar da família negra no contexto da
sociedade em que se encontrava. Não nos basta saber de sua existência, ou
da existência do compadrio, ou de qualquer outro mecanismo sócio-cultural dos
cativos, é necessário tentar arrumar as peças no seu devido lugar.
Esta busca, a de estabelecer relações entre os elementos
descobertos e, nas conexões, tentar identificar outros é a que nos move no
presente trabalho. Com ele, esperamos também encontrar parâmetros que
auxiliem a identificação e avaliação do processo de formação de comunidades
cativas em dados plantéis. Esperamos, igualmente, que outros estudos
venham a se beneficiar dos esforços desprendidos no sentido de interpretar a
escravidão como um amplo conjunto de relações de reciprocidade que se
estabelecia num intrincado jogo de interesses e estratégias envolvendo
diversos agentes.
As comunidades escravas tornaram-se, para nós, um lócus privilegiado
de reflexões por serem as mais abrangentes disposições sociais até então
imaginadas para os cativos. Assim, sabemos que nosso trabalho estará
11 FRAGOSO, J. L. e LUGÂO, A. M. “Um empresário brasileiro do oitocentos”. In CASTRO, H.
M. e SCHNOOR, E. Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks. 1995.
pp 197-224.
28
ingressando num conjunto mais amplo que vêm, tentando determinar a
existência da comunidade escrava e dos seus fatores formadores. Neste
sentido, um primeiro movimento é o de passar a tratar de comunidades
escravas, no plural. Dada a pluralidade de ambientes onde o cativeiro poderia
se instalar, a formação de comunidades obedecia esta ambiência. É possível
que houvesse uma comunidade de cativos no meio urbano do Rio de Janeiro,
que este espaço abrigava escravos de vários senhores diferentes, mas que
circulavam e interagiam entre si.
De igual modo, é factível imaginar que se formasse uma única
comunidade em uma freguesia rural onde a circulação e os contatos pudessem
se multiplicar, assim como o percebeu J. R. Góes em Inhaúma. Mas é
igualmente possível postular que os grandes plantéis, em plantations, também
se constituíssem, em si mesmos, comunidades, dada a densidade demográfica
e o tempo de convívio que podem ter concorrido para tal.
É possível que a construção da comunidade fosse uma espécie de
gradiente, a favor do qual caminharia toda escravaria dentro de suas
limitações. Se assim for, a comunidade teria um vértice relacional interno e
outro externo, que demandarão investigação. Não se está a identificar um
como vértice horizontal (intracativeiro) e o outro como vertical (senhor-escravo),
uma vez que dentro da própria condição cativa a diferença e a hierarquia
também se instalavam. Por isso mesmo, que se dissecar as relações de
modo mais preciso, já que era oscilando entre as relações internas e as
externas que os cativos construíam suas estratégias de ascensão social.
29
Entendemos, aqui, comunidade como um conjunto de indivíduos que
partilham símbolos, ritos, mitos e parentesco dentro do mesmo espaço
socialmente ordenado.
12
A partir daí, é possível deduzir que os plantéis,
principalmente aqueles com relativo equilíbrio etário e sexual, tenham se
constituído em unidades comunitárias, uma vez que a comunidade escrava é,
em princípio, produto da família que se instaura no cativeiro. Desse modo, os
laços tenderiam a se ampliar propendendo ao enfeixamento do conjunto de
seus membros. Assim se deu, por exemplo com Santa Cruz, tomada aqui como
termômetro e termo de comparação para o estudo dos demais casos.
Assim, o problema que ora se impõe à historiografia dedicada ao tema
da escravidão é desvendar a multiplicidade de possíveis combinações dos
instrumentos relacionais desenvolvidos por senhores e cativos e seu
significado e amplitude de ação. Como dito anteriormente, não nos basta saber
os elementos que compunham a existência na sociedade escravista, mas é
necessário descobrir o que cada um destes elementos significava no seu
contexto social.
A violência do senhor, com seu sentido pedagógico e repressor, convivia
com outros mecanismos compensatórios para aliviar a tensão e a pressão que
ela própria exercia sobre o cativeiro.
13
Nesse sentido, a circulação de bens
financeiros ou simbólicos poderia se constituir um dos meios para tornar a vida
cativa minimamente suportável. Tal circulação provavelmente gerava alguma
12 Fundação Getúlio Vargas. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. FGV. 1987.
passim.
13 REIS , João J. e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito a resistência negra no Brasil
escravista, São Paulo: Cia. das Letras, 1989. Embora achemos que Eduardo Silva
desconsidera a própria ameaça como uma ação do escravo, a brecha camponesa por ele
analisada é um exemplo do que queremos dizer.
30
acumulação, em especial do bem mais precioso em uma situação de penúria: a
esperança. Para o senhor, a esperança era de que não haveria fugas ou
rebeliões, para os escravos a esperança era de poder viver da melhor maneira
possível e, quiçá um dia, acumular meios suficientes para chegar a sair de sua
condição jurídica, ascendendo socialmente para além da escravidão.
Se a reunião de um grande grupo de escravos multiplicava os fatores de
tensão, de igual modo deveria multiplicar os mecanismos de negociação. É
possível que os grandes plantéis funcionem como lente de aumento para
observação da vida escravista. Em certo sentido, estamos alterando a escala
de observação por meio da seleção das amostras a serem observadas, para
obter uma percepção mais apurada de alguns dos meandros do mundo
escravista.
Se um contexto que pode ser situado entre a biografia, uma amostra
insuficiente e a generalização das grandes massas de dados, acreditamos que
este seja o dos grandes plantéis. E mais, não estamos apenas avaliando os
grandes plantéis pelo seu volume demográfico, mas pela configuração social
que o tempo de convívio pode ensejar neles. A proliferação de vínculos de
solidariedade é o que pode gerar novos usos e significados aos meios de
socialização, não muito abundantes, disponíveis aos escravos. Ao fim e ao
cabo, o que estamos buscando é a configuração de comunidades escravas,
plantéis minimamente atados pelos vínculos que brotam da partilha de rituais,
de símbolos e do parentesco.
31
4. Da Teoria e do Método
. Das táticas às práticas
Antes de nos lançarmos a tarefa que nos propomos, convém
esclarecermos os pressupostos que estarão subjacentes à sua execução. Pelo
que foi dito até aqui, fica claro que alguns conceitos estarão sendo manobrados
direta ou indiretamente. Evidentemente, filiamo-nos às correntes de
pensadores que vêm algum tempo trabalhando e lapidando tais
conceitos. Na micro-história dos italianos Carlo Ginzburg, Eduardo Grendi e
Giovanni Levi, são utilizados os conceitos de estratégia e excepcional normal,
ambos cabíveis às questões aqui levantadas. Assim também, encontra-se em
E. Thompson a idéia do “fazer-se”, por ele aplicado à classe operária inglesa.
De Thompson também tomamos os conceitos de costumes e de economia
moral. Por fim, dada a natureza do estudo e das fontes disponíveis, será
necessário que se busque na demografia e nos métodos quantitativos os
aportes técnicos para a interpretação do quadro populacional, entre outros
dados, de cada unidade.
A abordagem micro-histórica é, segundo um dos seus principais autores,
construída a partir de referências teóricas variadas e se estabeleceu
inicialmente como uma prática em:
32
...busca de uma descrição mais realista do comportamento
humano, empregando um modelo de ação e conflito do
comportamento do homem que reconhece sua - relativa -
liberdade além, mas não fora, das limitações dos sistemas
normativos prescritivos e opressivos.
14
Com isso fica mais ou menos claro que a micro-história se constitui no
fio da navalha entre a autonomia individual e a total determinação das
estruturas sociais, que constrangeriam os indivíduos. Do confronto desta dupla
possibilidade a micro-história estabeleceu-se, principalmente com Giovanni
Levi, a noção de estratégia. Embora isso não fosse exatamente inaugural,
neste autor o significado de estratégia é mais plástico e flexível do que com os
ditames teóricos mais rígidos estipulados por Michel de Certeau.
15
Para Levi o termo estratégia significa as possíveis formas de agir dentro
de um determinado quadro sócio-cultural, jurídico ou institucional. Em outras
palavras, seriam possíveis usos por parte de grupos sociais que se
aproximam por laços de solidariedade de origens diversas - das brechas das
normas estatais ou de outro sistema qualquer para maximizar a sua existência.
A estratégia, nesse caso, é coletiva e visa à manutenção das posses ou do
bem-estar de seus membros. De modo semelhante ao que apresenta Certeau,
essas estratégias implicariam num uso diferenciado dos elementos
econômicos, sociais, políticos e culturais presentes na realidade na qual se
inserem. Nesta mesma senda, postula-se aqui que tanto cativos quanto
senhores - membros de grupos opostos pelo vértice da propriedade destes
sobre aqueles - eram lançados em busca da concretização de seus interesses
14 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história”, in BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo:
Editora da UNESP. 1997. p. 175.
15 CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes. 1994. passim.
33
e limitados pelas contingências da existência social. E mais, a elaboração e
aplicação das estratégias de cada grupo não está, de modo algum, dissociado
das do seu interlocutor. Em certo sentido, é como o “fazer-se” que Thompson
percebeu na constituição da classe operária inglesa, onde a “classe” se
constrói na medida que se relaciona.
16
Sem querer definir uma via exclusiva
para o confronto ou convívio social, trata-se de compreender como estes
termos de coexistência podem se alterar em conformidade com as perspectivas
dos grupos que lhe implementam.
As necessidades e ambições de cada uma das partes da relação
impelem os seus agentes em um determinado sentido, aque, reconhecidos
os limites, se estabilize o termo do vínculo que os une, seja este de
superioridade ou de solidariedade. O que se supõe é que não sujeitos
passivos, e que as ações de cada parte geram e são, simultaneamente,
geradas pelo contexto social vivido. Ademais, estas estratégias não são
estáticas, são mutantes, alteradas pela sua própria historicidade.
No caso particular da escravidão, boa parte desse vivido é
cognoscível por fontes alheias aos próprios escravos. No mais das vezes, a
utilização de fontes seriadas, como as listas nominais dos cativos de cada
propriedade, permite uma análise demográfica como forma de reconstruir um
passado possível dessa gente cativa. Conceitos como as taxas de natalidade,
mortalidade, africanidade ou masculinidade apresentam indícios acerca das
experiências concretas e, ao mesmo tempo, das respostas - ou propostas
tomadas pelos cativos frente a seu tempo.
16 TOMPSON, E Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
1997. passim.
34
Em diversos momentos percebe-se nestas fontes alguns padrões, que
são traduzidos como experiências freqüentes ou tendências gerais. De modo
algum estaremos outorgando a tais números uma correspondência total dos
casos ou que tais padrões constituem leis inescapáveis. Muito mais estaremos
tratando de práxis, costumes, que eram abundantes neste ou naquele grupo, e
por tanto revelam um traço da ordem da cultura, engendrada por tais indivíduos
em sua ação conjunta.
Por último, ainda uma questão teórica relevante: valerá dedicar uma tese
de doutorado ao estudo de um grupo de casos tão específicos como a
escravidão dentro de propriedades de grande magnitude? Esta é mais ou
menos a mesma pergunta que Ginzburg faz no prefácio à edição italiana do
livro O queijo e os vermes.
17
A resposta para o dilema da representatividade de
um conjunto exíguo de casos singulares em meio à multidão dos casos gerais
surge pelo conceito de “excepcional normal”, elaborado por Eduardo Grendi e
publicado por ambos.
18
Antes do mais, limites na excepcionalidade. Mesmo
sendo um caso particular, trata-se de uma ocorrência possível dentro do seu
contexto histórico. A linguagem, os valores, o ambiente cultural enfim, se
constituem numa “...jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a
liberdade condicionada...”.
19
As propriedades em questão, embora não se trate um indivíduo, que
foram escolhidas algumas das maiores do “sertão carioca” e do Vale do
Paraíba, talvez apresentem algumas características diferenciadas da
17 GUINZBURG, C. O queijo e os vermes.São Paulo: Cia. Das Letras. 1987. p. 26s.
18 GINZBURG. C e GRENDI, E. O nome e o como”. In _______. Micro-história e outros
ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.1991.passim.
19 GUINZBURG, C. O queijo e os vermes.São Paulo: Cia. Das Letras. 1987. p. 27s.
35
sociedade que as cerca. Isso faz delas um conjunto de casos típicos e
expressivos, porque sua singularidade está limitada ao contexto da escravidão
colonial, ou seja, essas diferenças não fazem da experiência dos negros em
tais propriedades algo diferente da escravidão. Por outro lado, as
características diferenciais tornam esses planteis um terreno fecundo para
paroxismos de fatores inerentes às relações escravas, que em outros plantéis
permaneceriam latentes e invisíveis nas fontes disponíveis.
Assim, a utilização deste enfoque conceitual provavelmente permitirá
algum avanço na interpretação da vida social dentro das propriedades com
grande escravaria, permitindo a ampliação do conhecimento não apenas deste
objeto específico, mas também de níveis mais amplos da escravidão como um
todo. Além disso, pluralização das possibilidades de entender a figura
senhorial, percebida por meio do quadro teórico escolhido, poderá matizar
ainda mais os estudos acerca do cativeiro.
36
Da Constituição da Escravidão Colonial
1. Da natural desigualdade da Lei à Lei da igualdade natural
A revolução na França e a carnagem da
ilha de S. Domingos não bastam ainda
para desmascarar estes hipócritas da
humanidade?
J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho.
iam longe os tempos em que se ouviu falar pela primeira vez em
“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, quando o bispo titular de Elva e
Inquisidor Geral José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho resolveu brandir
sua pena para “desmascarar os insidiosos princípios da seita filosófica”
iluminista. Em um texto intitulado Obras Econômicas,
20
o Bispo se mune de
uma linguagem laica e de um discurso lógico, em substituição a tradicional
retórica legada pelos jesuítas, com o intuito de vergar o coração dos sábios e
não de arrastar a multidão. Este texto se constitui em uma ferrenha oposição a
uma nova forma de pensar, a um novo sistema de valores que,
progressivamente, vinha ganhando terreno em legitimidade e consenso.
A tarefa que Azeredo Coutinho se impôs foi extremamente árdua e
solitária. Estava ele, se colocando na contra-marcha da modernidade burguesa
20 COUTINHO, J. J. da Cunha de Azeredo. Obras econômicas.o Paulo: Cia Editora
Nacional, S/d.
37
que vinha sendo francamente inoculada nos meios letrados brasileiros desde
fins do século XVIII. Cabia, então, ao bispo e inquisidor mostrar as
disparidades entre as novas idéias e tudo o que se tinha por certo e sólido a
então. Conservadora por excelência, a sua missão pode nos indicar mais do
que uma resistência ao novo, talvez revele em alguns de seus argumentos todo
um sistema de costumes e de idéias legítimas até então e que doravante
ameaçavam ruir ante aos olhos estupefatos do Inquisidor.
Um bom começo para tentar garimpar esse modus operandi que pode
estar implícito no texto de Azeredo Coutinho é buscando a sua propedêutica na
legitimação do tráfico de escravos, ponto de conflito privilegiado entre essas
duas realidades em choque. O início é muito claro, o pacto social conjeturado
pelos novos filósofos era tido como totalmente falaz. A sociedade, segundo
Coutinho era dada pela natureza social do ser humano. Muito mais que
qualquer pacto, a tendência inculcada pela natureza ao fazê-lo o dependente
de cuidados ao nascer, era o que impelia o homem ao comportamento
gregário. O oposto é que demandaria esforço, apartar o homem de seus pares
seria uma tarefa contra o gradiente da natureza.
Mas o bispo ainda tem outras derivações a nos mostrar. Para desmontar
parte do trabalho de Rousseau, Coutinho segue afirmando que “A necessidade
da existência do homem que no estado da sociedade estabeleceu a justiça do
direito da propriedade, foi também a mesma que no estado da sociedade
estabeleceu a justiça do direito da escravidão”.
21
E mais. “O comércio da venda
21 Idem. P. 239.
38
de escravos é uma lei ditada pelas circunstâncias às nações bárbaras para o
seu maior bem, ou para o seu menor mal”.
22
Para um Inquisidor, até que o ex-senhor de escravos manipula conceitos
laicos com destreza. Numa primeira olhada, por antagônico que pareça,
podemos ser tentados a lhe cobrar as virtudes da pregação evangélica, sob
pena de lançá-lo no balaio dos falsos profetas, enganadores, velhacos e
similares. Amar ao próximo e todas as derivações práticas desse preceito
fundamental parecem passar longe dessa argumentação. No entanto, um
exame de consciência nos é necessário. Poucas, muito poucas vezes mesmo,
ao longo da história a igualdade entre os homens ascendeu como um valor e,
menos ainda, se manteve como tal. Aventuramos dizer, com risco de errar, que
nunca se estabeleceu como uma prática social de larga escala ou seja, para
além de grupos numericamente limitados.
23
Nos séculos XVII e XVIII, a idéia de igualdade emerge das páginas de
autores como J. Locke, para as discussões intelectuais, daí para os discursos
públicos e até às revoluções, mas como uma prática cotidiana ela pouco se
deu. Mas ainda assim. Temos um momento em que liberdade e igualdade se
avizinham da fraternidade, até então, nos discursos eclesiásticos, um tanto
sinônimo de caridade. Esta, a caridade, pressupõe a desigualdade que
compele aos mais afortunados se apiedarem dos despossuídos e amenizarem-
lhe a penúria da sua miséria.
24
22 Idem.
23 Quiçá nem nestes.
24 Não nos interessa entrar aqui nos meandros das práticas caritativas, suas implicações como
dons e contra-dons ou outras implicações mais elaboradas. Trata-se da perspectiva católica e,
portanto de uma expressão discursiva da realidade.
39
Ao que chegamos por fim é que das letras de Azeredo Coutinho emerge
de fato toda uma longínqua tradição de desigualdade aceita e postulada como
natural da vida em comum dos homens. Não é necessário falarmos na
escravidão para escancarar que a desigualdade e a falta de liberdade não
eram estranhas às relações sociais do Antigo Regime e anteriores. Nunca
fomos livres, nem iguais. Salvo os parias destas sociedades arcaicas, estes
poderiam ir para onde quisessem e fazer o que bem entendessem embora
num sentido muito restrito. Mesmo a revolução industrial, principalmente a
inglesa, é capaz de mostrar que dentro das primeiras fábricas o regime de
trabalho era semi-servil, na falta de outra expressão mais precisa. A distância
hierárquica, em qualquer sentido que se imagine, entre os donos e seus
encarregados, e destes para os proletários era abissal.
No caso das sociedades chamadas de Antigo Regime, os laços de
solidariedade e de submissão desempenham um papel decisivo no
posicionamento dos indivíduos na sociedade. Trata-se, nesse caso, muito mais
de grupos relacionados do que de indivíduos propriamente ditos. Levando isso
às últimas conseqüências, podemos começar a entender por que a rebelião e o
aquilombamento não foram as únicas posturas tomadas pelos escravos. Mais
ainda, se torna factível, afastado o juízo de valor, os inúmeros casos de cativos
que, saindo da sua desafortunada condição jurídica, tornaram-se também
senhores de escravos ou mesmo se ligaram ao tráfico.
Segundo Robin Blackburn,
25
essa tradição escravista remonta à
cristandade medieval e tem suas origens no século XIII, com as Sete Partidas
25 BLACKBURN, Robin. A construção do Escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro:
Record. 2003. pp 69s.
40
de Afonso X, que seus postulados são considerados um tanto mais amenos
que as duras determinações de Santo Isidoro de Sevilha. Para Afonso a
escravidão era uma instituição imprópria, sendo um estado não natural ao qual
se submetiam os homens em função de condições diversas. A base deste
atentado à condição humana era o costume criado pelos antigos, que dava
direito ao senhor sobre seus cativos.
26
O poder do senhor sobre o seu cativo, no entanto estaria limitado. O
sofrimento físico e a morte do escravo se justificavam por erros graves,
especialmente contra a mulher ou filha de seu senhor. Caso contrário, as
Partidas facultavam ao cativo uma queixa formal ao juiz local, que averiguando
a procedência das reclamações deveria tomar o cativo e vendê-lo, restituindo o
valor da venda ao seu antigo dono. Além disso, esse mesmo juiz deveria cuidar
para que tal cativo nunca mais caísse nas mãos de seu antigo senhor.
27
Além das Sete Partidas, é possível detectar outras fontes de
jurisprudência, inclusive dentro da própria Península Ibérica. As chamadas
Constituições da Catalunha, por exemplo, sendo um conjunto de práticas
jurídicas que fixavam o rigor da pena de modo desigual, consagrava a
desigualdade como pressuposto jurídico. Nela, a avaliação da pena não se
fiava apenas na gravidade do delito, mas também em acordo com quem o
praticava (mais baixa camada social, maior a pena) e em acordo com contra
quem se praticava o dito delito (maior camada social, maior pena). Desse
modo, pois, evidenciam a desigualdade estrutural inerente ao pensar herdado
pela modernidade. É essa desigualdade que o Inquisidor estava a defender tão
26 Partida IV, lei I, título XXI.
27 Partida IV, Lei VI.
41
fervorosamente ainda no século XIX. A desigualdade o se constituía em
relação ao criminoso, que em função de sua origem social poderia ser mais ou
menos propenso às penalidades mais rígidas, mas se enraíza, ao considerar
vítimas mais ou menos importantes. Atentar contra a vida de um dos grandes
senhores poderia render-lhe uma pena grave, visto que a pessoa vitimada era
considerada relevante, ao passo que se o mesmo atentado fosse desferido
contra um camponês, as coisas seriam diferentes, dada a irrelevância inerente
a sua existência.
A Igreja Católica, como estofo intelectual medieval, também contribui na
construção ideológica da escravidão moderna. A posse eclesiástica de cativos
é definida para os ibéricos pelo menos desde o Concílio XVI de Toledo de 693.
No Canon V, estava determinado que as igrejas tivessem pelo menos dez
escravos, as que não possuíssem este número deveriam ser subordinadas
àquelas que o possuíssem. Certamente esse Canon acabava determinando a
importância e a autonomia das comunidades eclesiásticas pela posse de
escravos, o que faria deles mais que uma sociedade possuidora de escravos,
mas uma Igreja escravista.
Por outro lado, mais profundamente que isso, desde Constantino ao
advento da República, a Igreja e o Estado estabeleceram uma relação mais ou
menos confortável de sustentação mútua. Ainda que de forma nem sempre
pacífica, o modelo constantiniano de simbiose entre as duas instituições pilares
do Ocidente funcionou até bem recentemente. A proteção do Estado por vezes
custou caro à Igreja, que se via na obrigação de fornecer sustentação
ideológica a seu protetor. Do mesmo modo, o Estado teve de se ver sempre as
42
voltas com uma autoridade paralela à sua, mas que, freqüentemente, lhe
legitimava.
No caso do Estado português, o padroado foi mecanismo essencial para
um absolutismo concreto. Destarte, a tradição luso-brasileira de relacionamento
entre Estado e Igreja transformou, de modo mais efetivo ainda, o clero numa
espécie de chancelaria intelectual do governo, atuando freqüentemente na
defesa ideológica dos interesses do governo monárquico ou dos seus grupos
de sustentação. Com a escravidão, assunto visceral para a sustentação da elite
colonial, não foi diferente.
Em verdade, essa foi uma das heranças do Estado português ao
pseudo-liberal Estado monárquico brasileiro. Aqui também, a omissão por parte
do Estado foi regra no que respeita à escravidão. O exemplo mais eloqüente
deste silêncio é a própria constituição: nenhuma palavra sobre a escravatura.
Diante de tal ausência, que remonta aos tempos coloniais, a Igreja fez as vezes
de cabeça pensante, em nome da cabeça coroada. Neste caso, os escritos dos
padres jesuítas se transformaram na principal fonte de reflexões sobre a
manutenção e o trato com os cativos. Em terras de abolicionismo tardio, os
principais agentes da reflexão e da tentativa de normatização, ainda que por
vias morais, eram os padres da Companhia de Jesus. Essa autoridade vai ser
reconhecida pelos seus resultados muitos anos depois de sua expulsão.
28
A fonte básica de autoridade neste caso é a religião, espelhada na
doutrina católica. Em última instância, a fonte apresentada é a mais inconteste
possível, a Bíblia - a palavra de Deus - e a Patrística - o legado dos Padres da
28 Cf. TAUNAY, C. A. Manual do Agricultor Barsileiro. MARQUESE, R. B. São Paulo: Cia. Das
Letras. 2001. p. 28.
43
Igreja. Daí deriva uma íntima relação entre o cativeiro e o pecado original,
obtida de Santo Agostinho. Um erro pretérito como causa da condição dos
negros também é encontrado na maldição de Can.
29
Dentre os filhos de Noé,
Can, que teria dado origem aos etíopes, foi o que zombou de seu pai, fazendo
jus à punição que viriam receber seus descendentes. Daí a condição de
penúria e nudez dos negros no Brasil.
De certo modo, esta perspectiva de escravidão-castigo permitiu a
Antônio Vieira deslocar o sentido do Salmo 87
30
até transformá-lo na base
argumentativa para uma escravidão-redenção. Se a escravidão era produto do
pecado, seus padeceres poderiam se converter em fonte de redenção para os
cativos que não apenas deveriam aceitar o jugo, mas serem gratos por ele.
Neste jugo, segundo Vieira, os etíopes se assemelhariam a Cristo nos seus
sofrimentos e poderiam ser recebidos na Cidade Celestial.
Aqui se apresenta um escravo humano passível de uma herança
espiritual recebida de Can, mas igualmente passível de uma Redenção Eterna
na sua imitação a Cristo em suas dores. O cativo poderia nutrir-se de uma
esperança excelsa, na certeza de que sua docilidade lhe conduziria ao Eterno.
A idéia de um cativeiro redentor também é observada na obra de um
outro sacerdote. Secular, mas educado por jesuítas, Manuel Ribeiro da Rocha
escreveu o Etíope resgatado, empenhado, sustentado, instruído, corrigido e
libertado,
31
que expressa, no seu título, a idéia de que a escravidão era
29 BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo.
1977. p. 65.
30 VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão. Petrópolis: Ed. Vozes. 1986. p. 96.
31 ROCHA, Manoel Ribeiro da - Etíope Resgatado (1758), São Paulo, Vozes, 1992.
44
veículo de crescimento para os cativos. A marca diferencial de Manuel da
Rocha é a indicação teleológica da manumissão, redenção terrena, ainda que
remota, do cativeiro. Aqui também está de modo mais explícito o sentido
incorporador da católica em relação ao escravo e por tanto um sentido
provisório da escravidão.
Ao cabo de tudo, a versão cristã da escravidão transforma o cativo em
alguém a ser considerado, alguém cujo interesse último, a conversão e
salvação, devem ser cuidados, mesmo que tal interesse seja apenas putativo.
No entanto, a religiosidade colonial o pode ser imaginada como fiel
seguidora dos preceitos e pregações clericais. A colonial era, como quase
tudo o mais, uma fé doméstica, constituída fundamentalmente de maneira
formal, com pouca ou nenhuma interiorização.
32
As bases de sua reprodução
estavam assentadas nas mulheres, que formavam as consciências nas tenras
idades segundo as tradições em voga. Poderiam estar os senhores revestidos
de algo deste discurso? Sim e não. Se este discurso fosse totalmente
inaceitável e inconcebível para seus ouvintes não teria sido tantas vezes
repetido colônia à fora. Mas se foi tantas vezes repetido, certamente tinha
alcance limitado, demandando persistência por parte dos oradores sacros.
É provável que boa parte da sociedade colonial aceitasse tal perspectiva
por dois motivos: primeiro, por ser a única sistematizada e com agentes a
defendê-la; segundo por ser uma forma de organizar o mundo colocando cada
um no seu lugar, a bem dos certos limites que apresentava à ação dos
senhores sobre seus escravos. No entanto, certamente havia os desviantes,
32 LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. “Presença da Igreja no Brasil”. In A Religião do Povo. Rio
de Janeiro: Ed. Paulinas. S/D. passim.
45
aqueles que não toleravam tais limites, apesar disso poder lhe valer má fama
ou por causa dela, como parte de sua intencional construção. Houve senhores
que certamente optaram pela ostensiva violência como forma de lhe
acrescentar poder.
Essa ambigüidade pode ser ilustrada com os casos de escravos que,
fugindo de seus senhores, buscavam asilo nas fazendas de outros. Parece
estranho que um cativo ao fugir de um buscar outro, mas essa opção pode
indicar que se houve desviantes ao projeto cristão, houve de igual modo
aqueles que o seguiam.
33
No entanto, a perspectiva católica foi em geral pautada na manutenção
da escravidão. Por isso mesmo, quando as idéias iluministas começam a se
manifestar nos centros urbanos do Brasil, revelando uma nova tendência
modernizadora, surge um novo texto clerical de grande importância. Aquele
que apresentamos no início do trabalho. Azeredo Coutinho em defesa das
diferenças “naturais” entre os homens.
Neste caso, a natureza serviu de parâmetro para a manutenção do
cativo nos seus “grilhões-libertadores”, isto é, volta à cena o argumento da
escravidão redentora, dessa vez como civilizadora. Se a natureza não trabalha
por saltos, o processo de erguer e civilizar o africano não poderia se dar de um
golpe. O destino redentor não é contestado, é uma questão de método para
alcançá-lo.
Este texto é um marco de distinção entre o que se aceita e o que se
rejeita no Brasil dos intelectuais católicos como argumento para a consideração
33 Joaquim Nabuco, como veremos mais adiante, narra um episódio desses no seu livro Minha
Formação.
46
do escravo e, por conseguinte, da escravidão. De certo modo, marca o
encerramento de uma fase religiosa nas considerações acerca da escravidão e
abre, com o avançar do século XIX, espaço para outras considerações sobre o
tema.
Nesta nova etapa destaca-se, ainda no início do culo, a figura de Jo
Bonifácio com a sua representação à Constituinte. Em seus argumentos
percebe-se a crítica da escravidão-redentora utilizada pelos padres e religiosos
que outrora dominavam o debate sobre a condição do escravo no Brasil.
Homens perversos e insensatos! Todas essas razões
apontadas valeriam alguma cousa, se vós fôsseis buscar
negros à África para lhes dar a liberdade no Brasil [...] mas
perdurar a escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes
do que seriam, se alguns fossem mortos pela espada da
injustiça [...] é de certo um atentado manifesto contra as Leis
eternas da Justiça e da Religião. E por que continuaram e
continuam a ser escravos os filhos desses africanos [...] Fala
contra vós a Justiça e a Religião.
34
Andrada não cita o catolicismo, manancial de defensores do escravismo,
como fonte autoridade. A sua base é a “sã religião” e seus argumentos muito
mais próximos daqueles que o cristianismo quaker saxão utilizou para
condenar a escravidão.
35
Mas além destas, uma outra forma de aferir algumas perspectivas
coevas sobre a escravidão. Trata-se dos manuais agrícolas, publicações que,
em última instância, almejavam a doutrinação e a normatização da conduta dos
proprietários rurais e, por conseguinte, de escravos. Dos diversos manuais dois
34 SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. organizado por Miriam
Dolhnikoff. São Paulo: Cia. das Letras; Publifolha . 2000. p. 26.
35 Para maiores detalhes desta discussão ver CARVALHO, J. Murilo. Escravidão e Razão de
Estado”. In Pontos e Bordados. Escritos de História e Política. Belo Horizonte: Ed. da UFMG,
1998.
47
se destacam pela fama e pelo conteúdo: o Manual do agricultor brasileiro, de
Carlos Augusto Taunay e Fundação e Costeio de uma fazenda na Província do
Rio de Janeiro, do Barão de Paty do Alferes.
No primeiro, o autor dedica dois capítulos para falar dos cuidados com
os cativos. Em verdade, o primeiro deles se dedica em grande medida a
justificar a escravidão e a necessidade que então se tinha dela. A abertura do
capítulo dois, o primeiro a tratar dos cativos é por demais significativa para que
deixemos de citá-la na íntegra:
A escravidão, contrato entre a violência e a o-resistência,
que tira ao trabalho sua recompensa, e às ações o arbítrio
moral, ataca igualmente as leis da humanidade e da religião, e
os povos que o tem admitido na sua organização têm pago bem
caro esta violação do direito moral.
36
Para um proprietário de terras e de cativos esta abertura, convenhamos,
é de tirar o fôlego. O desavisado leitor poderia imaginar que encontraria, a
partir daí, uma eloqüente defesa abolicionista. No entanto, o que ocorre é uma
mudança radical na direção do texto, que também convém ser citada para
melhor informação do leitor.
Porém a geração que acha o mal estabelecido não fica
solidária da culpabilidade daquilo que, pela razão que existe,
possui uma força muitas vezes irresistível, e certos abusos
radicais têm uma conexão tão estreita com o princípio vital de
uma nação, que seria mais fácil acabar com a existência
nacional, do que com estes mesmos abusos [...]
37
36 TAUNAY, C. Augusto. Manual do Agricultor Brasileiro. Organização de Rafael de Bivar
Marquese. São Paulo: CIA. Das Letras. 2001. p. 50.
37 Idem.
48
A geração que recebe o mal feito, isto é, a escravidão estabelecida, não
tem culpa nela. Ademais, esta se tornou visceralmente parte da nação
condicionando a sua existência. Diríamos nós, introjetando-lhe a desigualdade
que a caracterizou por muitos anos e ainda segue a fazê-lo. Tendo libertado-se
dos pudores da posse sobre outro homem, o autor segue seu manual tentando
colocar uma certa ordem nas ações senhoriais. Curiosamente, a primeira
norma sobre a ação dos proprietários é a “máxima admirável do Evangelho, e
que só de per se vale um código moral, de não fazer aos outros aquilo que não
quereríamos que se nos fizesse a nós”.
38
Volta o argumento de autoridade atribuído à religião. Ainda que daqui
por diante prevaleçam argumentos econômicos e científicos, a abertura, um
tanto esdrúxula, em se tratando de escravistas e escravos, se refere à como
fonte de “código moral” e padrão de conduta.
As idéias se multiplicam, e no campo intelectual laicizado do século XIX,
não faltam exemplos de manifestações de que a escravidão não é uma
condição permanente, mas uma necessidade transitória. O que a princípio
pode soar abolicionista, se revela profundamente escravista: que se acabar
com a escravidão, mas quando o país não mais dela precisar. Exemplos desse
truque discursivo aparecem nas Cartas de Erasmo, de José de Alencar ao
Imperador, assim como o próprio Imperador se esconde por detrás deste
discurso ao afirmar, em Fala do Trono, que o fim da escravidão era “uma
questão de oportunidade”.
38 Ibidem. p. 51.
49
De igual modo, o Barão do Paty do Alferes considerava a escravidão
como um cancro, mas um cancro necessário, se é que se pode imaginar
algum. Segundo o barão, o que tornava a escravidão imprescindível era a
fronteira agrícola aberta. A oferta de terras aos imigrantes fazia como que estes
se evadissem antes mesmo de saldar sua dívidas de viagem. Além disso,
lamentava o barão, a escravidão era praticamente um fardo a ser carregado
pelos proprietários. Estes, presas de comerciantes inescrupulosos, que lhes
vendiam cativos de tal modo deteriorados, que estavam com seus dias
contados, acarretando grande ruína a seus incautos compradores. Modo
estranho de se cumprir o dito escravista "quem não te conhece que te compre".
Para além de um certo cinismo que poderíamos atribuir ao velho barão,
a idéia de que os que mais queriam que a escravidão acabasse eram os
proprietários cria uma aura de credibilidade quando dizem que, no momento,
isto não é possível. Neste preciso momento, em que os acalorados debates
lançam infames acusações contra a posse e o comércio de carne humana, as
lamúrias do barão conferem um tom quase ingênuo aos que viviam da
expropriação do produto do trabalho escravo.
As estratégias discursivas que dão conta do fenômeno social da
escravidão são múltiplas e variam conforme o tempo. No Brasil colonial a
poderia servir como orientação para a manutenção do cativeiro-redentor,
embora trouxesse no seu bojo alguns traços limitadores na conduta dos
senhores para com seus cativos. No século XIX, a perspectiva do fim da
escravidão vai se tornando cada vez mais concreta. As vozes que pleiteiam
isso o as mesmas vozes que estão a denunciar as crueldades e desmandos
50
de senhores com menos compaixão cristã ou com menos senso de
humanidade.
De qualquer modo, o breve exame da construção discursiva da
escravidão e das suas possíveis apropriações nos permite vislumbrar a
diversidade de possibilidades que constituíam as posturas perante a
escravidão concreta, aquela construída e vivenciada nas relações cotidianas.
Como dissemos anteriormente, em nossa reflexão consideramos a
escravidão uma relação, ou melhor, um conjunto de relações estabelecidas e
com algum grau de legitimação. O prova o fato de que, freqüentemente,
mesmo as mais violentas reações da parte subordinada eram no sentido de
romper a sua escravidão e não de contestar a instituição propriamente dita.
Uma vez que esta grassava em África, não é de estranhar que a contestação
seja apenas de um modelo mais contundente de escravidão do que dela
mesma.
Estas relações, embora razoavelmente legitimadas por práticas sociais
de ambas as partes, trazem em si uma forte dose de conflito, onde as
necessidades e ambições de cada uma das partes impelem os seus agentes
em um determinado sentido, até que, reconhecidos os limites, se estabilize o
termo do vínculo que os une ou a relação arrebenta em um arrostar mais
violento.
51
2. Identidade e Escravidão
All is personal
Vito Corleone
De modo geral, o que postulamos até aqui é que a escravidão não era
uma deformidade na sociedade, pelo menos até o século XIX. O fato de ser
aceita como legítima pela maior parte da sociedade é evidenciado na própria
existência de um movimento abolicionista, empenhado em mudar a percepção
consensual da moralidade da escravidão que teimava em avançar pelo século
XIX à dentro. muito tardiamente, mais especificamente na segunda metade
do Oitocentos, é que o abolicionismo conquistou um espaço mais expressivo
no cenário sócio-político brasileiro. Até o fim da guerra do Paraguai, este se
manteve como um tabu nas rodas mais influentes do pensamento nacional.
então, é que se rompeu o consenso de que a escravidão deveria perdurar
ainda por muitos anos no Brasil.
Este consenso havia sido formado ao longo dos séculos por um conjunto
de relações que davam a imagem da sociedade sobre si mesma. A
propriedade de escravos era tão poderosamente constitutiva da sociedade
brasileira que nem mesmo os cativos resistiam ao seu poder de sedução.
existem na historiografia relatos de forros e mesmo de cativos que se tornaram
52
também possuidores de escravos.
39
É, pois, necessário considerar que os
indivíduos alcançados pelo infortúnio do cativeiro - e seguidamente do tráfico
transatlântico - atravessaram todo um escopo de situações relacionais até
chegarem ao Brasil e então se tornarem, em seus descendentes, crioulos.
É neste percurso, que as relações escravistas começam a se plasmar e
ganhar forma. Não podemos, pois, nos furtar a um exame, ainda que breve,
desta trajetória que introduziu o cativo-escravo na sociedade colonial que, por
sua vez, foi o que constituiu o seu senhor homem de poder e mando nesta
mesma sociedade.
David Eltis
40
sugere que a escravidão africana poderia ser vista como
resultado do confronto de uma identidade européia razoavelmente consolidada
com um “pan-africanismo” praticamente inexistente. Isto é, quando da eclosão
do escravismo moderno, a partir do século XV, a perspectiva européia não
comportava a escravização de em larga escala de cristãos por outros cristãos
brancos, não obstante isso tivesse sido factível em tempos pretéritos. Em
contrapartida, a idéia de um “pan-africanismo” se configurou para o mais
comum dos africanos não antes do século XIX, ou quiçá nem no XX. Até então,
sua tribo vizinha lhe era o estranha que participava do hall dos escravizáveis,
sem muitos problemas. Foi sobre esse quadro que incidiu a demanda euro-
americana, estimulando ao extremo a captura e a escravização, praticadas
na África.
39 ENGEMANN, Carlos. Os servos de Santo Inácio a serviço do Imperador. Dissertação de
Mestrado, Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. MATTOSO, Kátia Queiroz. Ser escravo no Brasil. São
Paulo: Ed. Brasiliense. 1982. CAVALCANTI, Nireu º Crônicas históricas do Rio colonial. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 2004.
40 ELTIS, David. “Migração e Estratégia na História Global”, in FLORENTINO, Manolo e
MACHADO, Cacilda (orgs). Ensaios Sobre a Escravidão (I). Belo Horizonte, Editora da UFMG,
2003. pp. 13-36.
53
As pesquisas de Paul Lovejoy
41
apontam para o mesmo sentido,
principalmente a partir de 1600, quando está plenamente montada a rede de
tráfico para a América. Valendo-se da instabilidade política e da violência social
abundantes no contexto africano, pôde ser montado um fornecimento regular
de braços cativos. A fragmentação política, isto é, a incapacidade de lideranças
estabelecerem impérios ou governos centralizados que garantissem a unidade
de grandes contingentes populacionais em dadas unidades territoriais, permitiu
que manifestações de violência de vários tipos - guerras civis, invasões mútuas
e a jihad na Etiópia cristã - demolissem as aparentes unidades na África
subsaarina, multiplicando as oportunidades de produção de escravos.
Ao mesmo tempo, segundo Hebe Maria Mattos,
42
a expansão do Império
português com seus quadros sociais corporativos levou à incorporação dos
novos grupos sociais estrangeiros em posição de inferioridade e
estigmatizados. De modo mais geral, esta absorção se deu preferencialmente
pela escravidão. Isso nos leva à conclusão de que as relações estabelecidas
entre europeus e africanos na era moderna não poderiam ser estabelecidas
apenas entre europeus, fundamentalmente pela poderosa identidade da
cristandade civilizada. Não que os europeus o pudessem impor fadigas e
condições de trabalho da pior espécie uns aos outros, mas não poderiam mais
ser donos uns dos outros. De fato, fenômeno semelhante, de apropriação de
homens sobre outros homens, volta a acontecer quando o conceito de raça
41 LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.2002. passim.
42 MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo
Regime em perspectiva atlântica”. In FRAGOSO, João L., BICALHO, Maria F. e GOUVÊA.
Maria de F. (org.). O Antigo Regime nos trópicos a dinâmica imperial portuguesa (séculos
XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001.
54
oferece uma nova matriz identitária alternativa, que na Alemanha nazista
produziu uma coesão e assumiu um caráter hegemônico muito maior que a
idéia de cristandade.
A escravidão, neste sentido, se configuraria como um problema de
identidade, ou melhor, de confronto de identidades. Daí, talvez haja a
necessidade social de estipular um critério fundamental que difira os passíveis
e os não passíveis de um cativeiro que redunde na escravidão. Considerando
que nem todo cativeiro acaba na escravidão, este aprisionamento específico
que admite a perda da posse sobre si mesmo é, então, algo reservado aos
estranhos, àqueles desprovidos, não de laços de afinidade e solidariedade,
mas também, naquele momento, da possibilidade de alguma identidade com os
que o escravizam. O escravo é, por conseguinte e necessariamente, um
estrangeiro por definição.
Mesmo na escravidão imposta como pena por crime grave, o indivíduo
compatriota é tornado estrangeiro por sua conduta. É o elemento com o qual o
grupo rompe forçosamente os laços. Isso faz com que a condenação à
escravidão possa ser vista, de certo modo, como um ostracismo, uma
estrangeirização compulsória. Na escravidão por dívidas, onde também poderia
se questionar a presença ou não da estrangeirização, o que ocorre de fato é
que o próprio indivíduo que, por não dispor de meios outros para pagar sua
dívida seja ela de que natureza for: penhora, tributária,... usa a si mesmo
como meio de quitar o seu débito. Em última instância, é o próprio escravo
quem se escravizou. Acresce-se a isso o caráter freqüentemente transitório
55
deste tipo de escravidão, que em geral dura até o ressarcimento do valor
devido.
Para que compreendamos o sentido mais profundo da escravidão em
uma sociedade intimamente comprometida com ela, é necessário observar que
a renda apropriada pelo senhor aos seus escravos tem como papel
fundamental na distinção social e econômica que é capaz de produzir em
relação a seus pares.
43
Essa distinção é feita entre um grupo detentor de uma
idéia de “nós” pela expropriação e posse do produto do trabalho de outro, o
“eles”.
Com isso chegamos a um ponto, a partir do qual poderíamos pensar que
os vários mecanismos - seqüestros, razias, endividamentos, oráculos, tributos,
mas principalmente a guerra - que se possam achar para impor a migração
compulsória de algo em torno de 9 a 10 milhões de africanos podem ser
ancorados na premissa de que os captores não identificavam suas vítimas
como iguais. E mais. Em tese, postular-se-ia: “podemos escraviza-los até o
último, pois saberemos identificar o último deles e não confundi-lo com o
primeiro de ‘nós’”. Ou seja, pode haver uma cooperação para a escravização
do “eles”, desde que todo o “nós” esteja a salvo.
Caso contrário seria muito temerário a manutenção de uma instituição
que, em última instância, poderia devorar os membros da própria sociedade
que a abriga e sustenta. Só pode ser seguro o uso perene e volumoso de mão-
de-obra escrava em uma sociedade onde se estabelece um claro limite entre
os escravizáveis e os o escravizáveis. As sociedades que manipularam o
43 FINLEY, Moses I. Escravidão antiga ideologia moderna. S/l: Graal. Passim.
56
escravismo com sucesso são exatamente as que foram capazes de manter
uma clara fronteira - ora mais, ora menos permeável - entre senhores e
escravos.
Por outro lado, a introdução de uma forte demanda pela escravidão num
contexto de fragmentação política e identitária, pode ter conseqüências
desastrosas. No caso da escravidão africana, os mecanismos que produziam
escravos para o mercado atlântico, em princípio, não foram criados
socialmente com este fim. O escravo surgia deles como um fator quase
colateral. Mas a demanda atlântica acarretou uma mudança em tais práticas,
seu objetivo social original foi reduzido em detrimento da produção de cativos
para a exportação. Com isso, gerou-se a desagregação de muitas populações,
dentre outros fatores, pela perda da fronteira entre o escravizável e do não-
escravizável.
A transformação das sociedades africanas possuidoras de escravos em
suas produtoras desarticulou as práticas tradicionais que permitiam uma
manipulação razoavelmente segura da escravidão. Curiosamente, tanto para o
Islã, que se expandiu na África como padrão dominante em várias áreas
escravistas, quanto para o cristianismo, que justificava a compra destes
contingentes, a escravidão era reservada aos infiéis. A descrença era a marca
do escravo. Mesmo que posteriormente à sua captura houvesse a conversão,
isso contribuía para afirmar um eventual padrão cativeiro/expansão da
fé/redenção, que encorajaria ainda mais a escravização dos infiéis. Ainda que
para o Islã a guerra contra os cafres não fosse para produzir escravos, os
57
prisioneiros poupados deviam a vida a seus captores, passíveis por tanto de se
tornarem escravos.
Essas populações, com seus limites mais claros, tornaram-se eficazes
consumidoras de escravos. o obstante o caos político que se abateu sobre
alguns estados muçulmanos na África subsaarina e que acarretou uma certa
freqüência na violação da norma de não escravizar muçulmanos natos, esta
prática manteve-se sempre marginal e nunca foi sancionada. O que nos leva a
crer que as sociedades que tiveram maior sucesso no manejo da escravidão
foram as que não perderam a fronteira entre cativáveis e não-cativáveis para a
escravidão.
Mas isso não nos explica como se desenvolve a manutenção dos cativos
dentro das sociedades escravistas. É necessário pensar como é possível a
manutenção da fronteira de identidade, uma vez dada a absorção física e
cultural do estrangeiro. Dito de outro modo: há que se saber como a escravidão
se reproduz dentro da sociedade escravista, para além da importação de novos
escravos.
58
3. Escravidão e Hierarquia
Livre é quem paga as contas no final do mês
Millôr Fernandes
Talvez a reflexão que estamos desenvolvendo sobre a natureza do
escravismo colonial possa se beneficiar do estudo de Norbert Elias e John L.
Scotson
44
sobre a introdução de um grupo de outsiders em uma sociedade
estabelecida. Segundo Elias, os estabelecidos, detentores de mecanismos de
marginalização, manteriam os recém-chegados em uma posição inferior,
vedando-lhes o acesso a instrumentos que poderiam promover a sua ascensão
social. E mais. Os habitantes mais antigos da dita sociedade tenderiam a se
ver como seres humanos superiores, relegando os outsiders a uma posição
inferior, tidos como anômicos e sujos, enfim o oposto da auto-imagem que os
estabelecidos têm de si.
Ainda segundo Elias, o estigma dos estabelecidos sobre os novatos
“pega”. Isto é, os próprios estigmatizados passam a se reconhecer nos
estigmas que lhes são imputados, talvez por ser esta a identidade coletiva mais
candente naquele momento. Assim, se cria uma estrutura de poder
44 ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor.2000. passim.
59
razoavelmente sólida, privando os outsiders até de uma auto-imagem positiva,
que lhes permita refutar as humilhações dirigidas pelos estabelecidos.
No entanto, pensamos s, os cativos que chegam do outro lado da
kalunga do Atlântico acabam sendo outsiders para dois grupos diferentes: para
os brancos seus senhores e para os crioulos seus “companheiros”. Deriva daí
que entra em marcha nesse momento um duplo processo de absorção sócio-
cultural. Por um lado, o boçal tem de se haver com o idioma, com as tarefas e
com todo o universo luso-brasileiro, que lhe outorga o trabalho e a condição
servil. Por outro, temos visto em inúmeros trabalhos,
45
enfrenta um sem fim de
querelas com os crioulos, estabelecidos no mundo cativo antes deles.
Ocorre, no entanto, que esta situação de “estranho” ou estrangeiro não
pode se sustentar ad eternum, algum destino o novo grupo de ter:
extermínio, expulsão ou absorção (ainda que numa posição inferior). O tempo
de convívio e os processos acultaradores que se estabelecem nesse tempo
podem ser a chave da expectativa de infiltração e ascensão do boçal que se
ladinisa, no caso da escravidão. Por outro lado, como dissemos, além da faixa
de propriedade, aguardava o escravo aquela outra hierarquia, pela qual ele era
inserido em posição deveras desprivilegiada, só se livrando do estigma de
outsider com muita dificuldade.
Para discutir estas hierarquias às quais os cativos estavam sujeitos, é
necessário formarmos uma idéia de como a sociedade se articula em seus
45 Alguns trabalhos que mostram disputas entre crioulos e africanos: ASSIS, Marcelo F.,
ENGEMANN, Carlos e FLORENTINO, Manolo G. "Sociabilidade e Mortalidade Escrava no Rio
de Janeiro, 1720-1742", in: FLORENTINO, Manolo e MACHADO, Cacilda (orgs). Ensaios
Sobre a Escravidão (I). Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003, pp. 189-200; SCHWARTZ,
Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: EDUSC, 2001; MATTOSO, Kátia Queiroz.
Ser escravo no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1982. pp.263-292.
60
vários segmentos e como as desigualdades se produzem e reproduzem. Muito
mais que as diferenças fisiológicas, como idade e sexo, as diferenciações entre
os membros de uma dada sociedade podem vir do tipo de atividade, ou seja,
do papel operacional que cada um exerce.
46
Adotando este princípio, não
teríamos uma única escala social vertical e exclusiva, onde os indivíduos
estariam alinhados em patamares sucessivos. A análise que propomos, a partir
do trabalho de Barrington Moore, pressupõe a existência de escalas paralelas
definidas pelo tipo de atividade que o indivíduo exerce na sociedade.
Assim, segundo Moore, teríamos cinco atividades chaves estabelecendo
cinco escalas, nas quais se entende que mobilidade vertical e horizontal.
Igualmente se entende que as escalas não possuem o mesmo alcance, isto é,
de acordo com o papel que o indivíduo desempenha ele pode ascender mais
ou menos, sendo que para ampliar a sua perspectiva de ascensão o indivíduo
conta ainda de acordo com as regras da sociedade em questão com a
possibilidade de trocar de escala.
Para Moore a sociedade poderia ser divida da seguinte forma: uma
primeira escala seria a de governo, a dos que exercem poder de mando. Ainda
em acordo Moore, esta seria a escala de maior alcance, isto é, o indivíduo de
mais elevada posição social numa determinada sociedade teve de ascender
nesta escala. A segunda e a terceira escalas seriam a dos que controlam o
inesperado: os militares e o clero. Estas escalas teriam, ambas, o mesmo
alcance, sendo este, no entanto, menor do que o da primeira. A quarta escala é
a da reprodução ideológica da ordem social e, por tanto da desigualdade. Esta
46 Cf. MOORE Jr., B. “Princípios da desigualdade social”, in ______ Aspectos morais do
crescimento econômico. Rio de Janeiro: Editora Record. 1999. pp. 165-197.
61
seria a função dos sistemas educacionais que ensinam o indivíduo a se portar
na sociedade e a viver de acordo com os valores por ela estabelecidos. Por
último, teríamos a escala da produção de bens e serviços, não
necessariamente a mais baixa de todas.
Mesmo que apresentado de modo sumário e não adotando com rigor
esta divisão das escalas, a perspectiva múltipla de Moore nos permite uma
percepção mais ampla da sociedade. Não apenas de modo linear, mas com
camadas paralelas que permitem uma análise mais refinada. Pois bem, é deste
refinamento que pode vir uma outra possibilidade para entender a escravidão.
Sendo as sociedades compostas escalas sociais paralelas a condição
dos escravos poderia ser interpretada com uma das escalas que compõem um
tipo específico de sociedade e dotada com alcance extremamente limitado.
Isso nos permitiria três avanços na análise das relações entre escravos e livres:
primeiro definir de modo mais preciso a exclusão social da qual o escravo e
alvo, além disso, também é possível romper a barreira do fenótipo como
definição do escravo, que os mesmos indivíduos podem ser classificados
com cores diferentes ao longo de seu processo de ascensão social fulano
pode ser negro quando escravo, mulato depois de liberto e talvez seus filhos ou
seus netos sejam brancos e por último, nos permite análise mais profunda
das hierarquias que os escravos se impunham em seu próprio convívio. Como
habitantes de uma sociedade extremamente hierarquizada eram eles também
hierarquizados. Os exemplos disso se multiplicam: entre crioulos e africanos,
entre confrades e não-confrades das diversas irmandades escravas, entre
etnias africanas,...
62
A mera afirmação da exclusão social, per si, não nos permite qualificá-la
e, por tanto, entendê-la em suas dimensões mais amplas. Antes do mais, óbvio
está que os escravos o são indivíduos excluídos da sociedade, encontram-
se nela, dela fazem parte, mas igualmente óbvio é que há diferenças entre eles
e seu senhor. Pertencem a escalas sociais diferentes. Portanto o escravo tem
um acesso muito mais limitado a meios de ascensão social que seu senhor.
Sendo assim, a distância entre o escravo de um plantel com cinqüenta
escravos e seu senhor não é a mesma de um escravo único que vive ao ganho
com um senhor relativamente pobre. Embora em escalas sociais diferentes, as
posições horizontais entre o escravo e o senhor pobre são muito mais próximas
que no caso de escravo e senhor de uma plantation, por exemplo.
Sendo assim, a sociedade colonial, profundamente marcada pela
desigualdade e extremamente excludente, teria criado mecanismos que
garantissem a existência de um setor caracterizado pelo estigma da
escravidão. Com isso garantiam a segurança na manipulação profusa da
escravidão. Enquanto grupo social, tanto quanto força de trabalho, a
escravidão ajudou a compor o cenário da sociedade hierárquica e senhorial. A
oferta africana se coadunou com uma sociedade ávida tanto por trabalhadores
como por domínios e enfiteuses. Sobre terras e sobre homens. A cor atribuída
ao indivíduo passa a ser símbolo da sua condição social e não o oposto.
Resta, como em todas as outras épocas da História, não a escrita por
nós mas aquela experimentada pelos homens, a busca por meios de
integração e ascensão social. Este movimento, que alça indivíduos
estigmatizados para mais próximo dos seus contemporâneos de outras escalas
63
sociais, é constituído por estratégias planejadas e levadas a cabo com esmero,
tomando, por vezes gerações. A escravidão, inicialmente justificada pela
necessidade de converter o infiel, atingia, injustificadamente, seus
descendentes nascidos na cristandade.
47
Se a escravização cumpriu o que
prometia, salvar a alma dos negros africanos por meio da conversão e do
batismo, isso não facultou aos seus descendentes a liberdade. A fragilidade do
argumento revela a questão da identidade e do estigma, ambos hereditários
por via materna. Curiosamente, no entanto, freqüentemente os filhos de
senhores obtinham a alforria de seus pais, por vezes em testamento.
Reiterando a lógica da sociedade hierarquizada, o estigma tende a vir pelo
ventre materno, ao passo que uma das vias de ascensão social, a que
constituiu os bacharéis, vinha por vias paternas.
A alforria, instrumento de ascensão social por excelência para os
escravos pode ser percebida não como totalmente unilateral. Na medida em
que representa a possibilidade de mudar de escala social, a alforria abre as
portas estreitas, por sinal para alguma mobilidade. Inicialmente esta se
mostra como um ato unilateral, sendo o senhor o protagonista da benevolência
de alforriar o dito cativo, usando este poder como mais um instrumento de
dominação. Mas, sem dúvida, esta decisão foi gerada por força de uma relação
que não foi construída apenas por ele, mas sim em conjunto com o futuro
alforriado. Não garantias para o escravo que sua estratégia terá o resultado
esperado, o risco pode ser bastante elevado. Mas, como qualquer estratégia de
ascensão social é também uma opção.
47 Cf. MATTOS, Hebe M. Op. Cit.
64
Isso pode aparentar uma quase ausência de distinção entre escravo e
não-escravo, algo difícil de dizer. No entanto, como vimos com A. Coutinho, o
conceito de liberdade também é um conceito recente, o que torna igualmente
difícil imaginar alguém livre a partir do que hoje entendemos por liberdade -
numa sociedade de Antigo Regime. Por exemplo, na avaliação de Arthur
Young, em 1772, apenas 5% da população mundial era livre. Todos na África,
todos na Ásia e a maioria na América eram não-livres.
48
Somente na Europa, a
partir do século XVIII, o trabalho começa a passar pela transformação que vai
progressivamente conectando-o, não sem dificuldades, ao conceito de
mercado.
49
Mas na América escravista, o conceito de trabalho ainda era
amplamente medieval, implicando numa série de relações que prendem o
indivíduo a firmes nós na teia social. Não apenas o trabalho, mas o pleno
pertencimento nas sociedades de Antigo Regime está ligado a formação do
maior número de laços sociais possíveis. Liberdade significa pertencer e não
separar.
Os elementos que disporiam de algo semelhante ao que hodiernamente
chamamos de liberdade eram os párias que perambulavam de lugar em lugar,
desarraigados e, por tanto, desprovidos de laços de proteção e de outros
vínculos importantes. Os grandes senhores de escravos estavam ligados a
uma horda de dependentes que formavam sua “clientela”, mas que era
exatamente o que lhe constituía um “pater familias”.
Desse modo, é possível que, uma vez inseridos na sociedade colonial,
os cativos buscassem se manter vivos da melhor maneira dentro dela,
48 Apud. ELTIS, David. The rise of African slavery in the Americas. S/L:Cambridge University
Press. 2001. p. 3.
49 POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Editora Campus. 1980. passim.
65
buscando bons laços sociais para facilitar a tarefa. Optando entre as diversas
possibilidades de ação social que se desenhavam a sua frente.
Embora não se possa aferir, podemos imaginar o anseio de um cativo a
esperar num mercado como o do Valongo, por exemplo. A situação de total
anomalia em que se encontra, exposto ao escrutínio público, a infindáveis
avaliações e depreciações, em meio a regateios, tendo que saltitar, virar e
mexer-se para e para cá, dando mostras de uma condição física que, na
maior parte das vezes, não existia.
Tendo se transformado em alvo de exames e barganhas, o seu futuro é
algo por demais incerto para que, se quer, possa pensar em como desenvolver
esta ou aquela conduta com este ou aquele objetivo. Ali se instaura a anomia,
não por parte do escravo, mas pela capitalista condição de mercadoria que lhe
é imputada de modo concreto e não apenas conceitual. Ao se tornar alvo de
negociações, os cativos perdiam toda a sua capacidade de negociar, esta
eclipsada pelos outros regateios de agentes sociais de escalas mais elevadas.
É possível que neste momento, onde nada é certo, nem sua saúde, nem
seu destino, nem mesmo sua vida, o cativo estivesse, no seu íntimo ou entre
os seus, clamando aos deuses e orixás por um pouco de regularidade,
normalidade e estabilidade. Naquele momento, isso poderia ser traduzido
por uma boa compra. Nem a fuga lhe traria isso. Somente ser comprado lhe
colocaria numa esfera relacional estabilizada, a partir da qual ele poderia
começar a tramar as suas estratégias de vida. Este seria o ponto de partida
para o aprendizado, para a ladinização ou para a aculturação deste estrangeiro
arrancado de sua terra e lançado em uma sociedade totalmente estranha.
66
Seria também o ponto de partida pela busca de uma ascensão social
que vai da ímpia condição de mercadoria, pragmaticamente perdida ao sair do
mercado, passando pela de boçal, ladino, seus descendentes crioulos até a de
pardo livre, em um neto ou bisneto. Dito de outro modo, a longa trajetória em
busca da minimização dos estigmas de escravo, de cor e de estrangeiro,
começa com aquele ancestral que aqui aportou após transpor o Atlântico. Seria
por isso que para os crioulos verem-se como iguais a africanos implicaria num
retrocesso? Quiçá.
Contudo, a violência, sem vida, também foi elemento fundamental de
vários aspectos da relação senhor/escravo. Violência em geral presente nas
sociedades de Antigo Regime, mas também a violência que inspira à
obediência, a violência constitutiva da coerção, com sua função pedagógica
para a escravidão. Mas, sabemos há muito que, como não é possível pensar a
escravidão sem a violência, também não é suficiente pensar a escravidão
apenas por ela.
As pesquisas mais recentes têm deixado claro que os laços de
parentesco imediato estavam no centro das estratégias da vida cativa. Mas é
possível que outros laços também fizessem parte deste novelo pela
sobrevivência. Os de parentesco extenso muito provavelmente. Mas seria
possível que até entre senhores e cativos houvesse laços sociais que visassem
uma convivência razoável entre eles?
Excluindo qualquer possibilidade de imaginar relações entre iguais, mas
ainda encarando a escravidão como um conjunto de relações, como
postulamos inicialmente, talvez seja possível concluir que, no mais das vezes,
a vida escrava existia segundo regras mais ou menos acordadas entre os
67
senhores e seus cativos. Regras que iam se formando na medida que uns
achavam os limites dos outros nos avanços de seus interesses.
É possível concluir que, por caminhos diversos nas brenhas da
sociedade corporativa, os homens-propriedade buscavam desvencilhar-se de
uma miríade de pechas que sobre eles pesavam. Talvez a estratégia primeira
para a ascensão dentro de uma sociedade fundada numa natural desigualdade
fosse a de sobreviver. A partir desta primordial premissa, que entende a
profundidade que lhe remete para além da obviedade àqueles que tiveram a
sua existência física, moral ou cultural ameaçada de modo candente, a
partir desta cláusula pétrea da existência seria possível estabelecer
mecanismos que conduzissem a níveis mais sofisticados desta mesma
existência ou a outros níveis sociais.
Tanto a sobrevivência quanto a busca de outros patamares sociais não
se reduziam a um projeto individual, ainda que fossem executadas a partir de
uma ação individual. O alcance de qualquer trama é sempre dirigido aos
outros, no mais das vezes à descendência. São mães que obtém a alforria para
filhos, ou obtendo a sua passam a trabalhar pela dos filhos. Maridos e esposas,
famílias inteiras, várias combinações de esforço pertinaz do qual nem sempre
se usufrui como individuo, mas por certo se desfruta como grupo.
Houve até aqueles que, na impossibilidade de levar os seus em sua
escalada social, os eliminaram, talvez por ser insuportável ver-se ascender
enquanto os amados ficam. José Roberto Góes e Manolo Florentino acharam
um caso desses.
50
Marcelino matou seus filhos quando seu ex-senhor se
recusou a lhe vende-los. Isso equivale dizer que Marcelino não suportou o fato
50 FLORENTINO, Manolo e GÓES, J. Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 1997. pp. 23s.
68
de não poder levá-los em seu processo de mudança de escala social. É difícil
dizer o que se passa na cabeça de um pai que leva seus rebentos à morte por
não poder vê-los na escravidão. Quem sabe estejamos diante do limite a que
chega um homem tentando salvar anos de esforço em direção ao outro lado da
fronteira da escravidão. O outro lado da existência garantiria, por caminhos
toscos de mais para que compreendamos, o sucesso de seu empenho. Estaria
ele próprio desobrigado em relação aos seus filhos
O caso de Marcelino, pasto na mesa do destino, mostra a crueldade da
naturalização da desigualdade e o mal que isso, aqui por nós manipulado
apenas como um conceito, pode causar a quem vive ali, no varejo dos dias.
Mas o fracasso de Marcelino não desqualifica a busca como um todo. Ao
contrário. É mais uma mostra de que resultados incertos não dão espaço à
incúria, sob penas implacáveis.
No outro prato da balança, laureada pelo êxito, encontra-se a trajetória
da família de Marinha Mata, da Real Fazenda de Santa Cruz. Este grupo logrou
desenvolver pacientemente, ao longo de décadas, até que culminou com a
compra da alforria do seu primeiro membro. Este primeiro fora do cativeiro,
âncora para os demais, foi Maria Izabel, neta de Marinha Mata e filha de
Caetana do Carmo, que pagou 153$600 para se ver desvencilhada da pecha
de escrava. Ainda que Maria preservasse um outro estigma, o de forra, esse foi
certamente um passo importante na escalada iniciada, provavelmente, muito
tempo antes.
É significativo que, além de possuir recursos suficientes para bancar sua
alforria, o grupo familiar ao qual Maria Izabel pertencia possuísse dois
69
escravos. Pode ser que ao amealhar alguma fortuna, o estratagema aplicado
fosse: antes de comprar a alforria tornarem-se proprietários de escravos. O
inusitado da questão é que Izabel chega ao mundo dos forros como
proprietária de outros. Isso pode ter implicado na espera de talvez até uma
geração para o acesso a alforria, mas garantiu uma saída sustentável do
mundo do cativeiro. Se, como presumimos, nessa administração de recursos
concorreram os esforços de todos os membros do grupo, então a função de
ponta-de-lança adquirida por Maria Izabel tende a beneficiar a todos. Se, por
outro lado, tudo isso foi resultado do esforço hercúleo e individual dela, ao
menos seus filhos devem ter saído beneficiados, com uma mãe forra e
pertencentes a uma família possuidora de escravos.
As formações familiares e comunitárias certamente foram formas de atar
o maior número de laços possíveis, com vistas a garantir maiores chances em
seus objetivos. O problema é que na constituição de laços, também se
formaram s, alguns difíceis de desatar. Entre laços e nós, os escravos iam
tocando sua existência, buscando a consecução de seus interesses e a
maximização de benefícios.
Quadro 1: Genealogia da Família da escrava Maria Izabel
Fonte: Inventários da Real Fazenda de Santa Cruz. 1791 e 1817. Arquivo Nacional/RJ.
Marinha Mata
?
Caetana do
Carmo
Solteira
Ignacia de
Jezus
Solteira
Saturnino
Honorato
Solteiro
Maria Izabel
Solteira
Francisco
Damaso
Solteiro
Anna Vieira
Solteira
Roza Maria
Solteira
Domicílio
234 em
1791
Domicílio
208 em
Mais os escravos João Cabinda e Anna Izabel, escrava da Costa
Santa Cruz: uma comunidade escrava
Quando Graham afirmou que as relações na Real Fazenda de Santa
Cruz eram provisórias e temporárias, ele certamente o fez pautado na
concepção vigente acerca da escravidão. No entanto, esta concepção se impôs
a uma série de evidências presentes no inventário à frente do autor. Algumas
destas evidências sugeriam a existência de relações duradouras entre homens
e mulheres, avessas a anomia imputada aos cativos. Não apenas o fato de que
mais de 65% dos cativos viviam em um núcleo familiar formado por pai, mãe e
ao menos um filho, mas a existência de 96 cleos encabeçados por viúvos,
também não foi capaz de mudar a opinião de Graham sobre a família escrava
de Santa Cruz.
Havia lá, também, treze famílias formadas por mais de duas gerações,
muitas delas eram compostas por netos aos cuidados de seus avós. Irmãos
que viviam juntos também compunham outros treze núcleos domésticos. Santa
Cruz foi capaz de produzir uma infindável seqüência de vestígios de
parentesco amplo e de uma constituição orgânica que foram eclipsados pela
sólida certeza de que as relações cativas eram voláteis, fugidias.
Mas Santa Cruz tinha mais do que parentesco: tinha uma comunidade.
Tinha regras de conduta, tinha bairros de senzalas, tinha três irmandades que
competiam entre si pela festa mais portentosa, tinha quem fosse até Guaratiba
para comprar peixe e voltasse para vendê-lo na vila dos escravos, tinha
disputas por terras, tinha tudo o que constitui uma comunidade.
72
Os elementos desta organização foram se moldando ao longo da
pitoresca história da fazenda. A estabilidade do plantel certamente em muito
contribuiu para que os laços se multiplicassem. Embora conheçamos os
laços maritais e consangüíneos, podemos imaginar a profusão de vínculos de
solidariedade e reciprocidade que o compadrio deve ter proporcionado a estes
cativos
Quando concluímos nossas pesquisas sobre Santa Cruz, tínhamos
tantos elementos a nos mostrar que a sua escravaria havia se organizado em
uma comunidade de elevado grau de complexidade que acreditamos ser
possível, a partir desta fazenda, analisar outras fazendas em busca de outras
comunidades, ainda que não com a mesma complexidade desta.
73
1. Histórico da Fazenda
A Fazenda Santa Cruz teve, ao longo de sua história, vários títulos a lhe
qualificar. Durante sua longa existência, foi real, imperial e, com o advento
da república, nacional. Os tantos títulos que teve falam das várias os pelas
quais, em seus prolíferos anos, passou, cada uma delas imprimindo traços que
lhe eram próprias. Traços esses que, na verdade, começaram a moldar a
fazenda bem antes de seus títulos.
As primeiras mãos a enodoar essas terras foram as de Cristóvão
Monteiro. Casado com a Marquesa de Ferreira, aparece como requerente no
pedido da sesmaria que ia de “Sapiaguera, aldeia que foi dos índios, até
Goratiba, que são quatro léguas boas, ao longo da costa do mar, e estarão oito
léguas boas, da bôca do Rio de Janeiro, para cá, contra Angra dos Reis”.
51
Cristóvão, que teve com a Marquesa um casal de filhos, Eliseu e
Catarina, usufruiu não se sabe por quanto tempo exatamente das terras
recebidas. O fato é que menos de vinte anos depois da concessão, sua
esposa aparece viúva e sem seu filho Eliseu. Quando e como morreram os
homens da família Monteiro, dificilmente saberemos. Mas, ao que parece, seu
desejo, quando vivo, foi de que suas terras fossem herdadas pelos padres da
Companhia de Jesus. Uma certeza repousava no coração de Cristóvão: a de
que esse seu gesto de desprendimento seria a garantia de compaixão na
Eternidade.
51 A base das informações que se seguem é: VIANA, Sonia Baião Rodrigues. Fazenda Santa
Cruz e as transformações da política real e imperial em relação ao desenvolvimento brasileiro.
1790-1850. Dissertação de Mestrado, UFF, 1974
74
Era 8 de dezembro de 1589, tempo do Advento, às vésperas do Natal, a
Marquesa, muito enferma, assina uma escritura de doação de metade de
suas terras à Companhia. Cumpria a vontade de seu marido e poderia então,
de alma límpida, partir ao seu encontro. E, provavelmente, foi o que se deu.
Das terras, a outra metade, caberia a sua filha Catarina Monteiro, que a esta
altura, já havia se casado.
Em 10 de fevereiro de 1590, após a morte da Marquesa, os clérigos de
Santo Inácio tomam posse, por meio do Colégio Rio de Janeiro, de metade das
terras dos Monteiro. Quanto à parte de Catarina, dois dias depois, ela e o
marido são dissuadidos pelos curas de manterem-se por ali. Em troca do seu
quinhão, aceitaram terras jesuíticas em outras paragens.
A partir daí, a Companhia de Jesus passa a ser a legítima proprietária da
enorme porção de quatro léguas por oito léguas ao longo da costa do mar, em
Guaratiba. Uma outra sesmaria na cabeceira do rio Guandú foi, alguns anos
depois, herdada por dois irmãos, dos quais não sabemos sequer o nome.
Esses acabam aceitando vender as seis léguas de terra, desta vez mais ao
interior, que lhes cabia como legado do pai. E de tal sorte as coisas
transcorreram que, um em 1654 e outro em 1656, ambos passaram seus
domínios aos inacianos. Formavam-se, então, os quase 3.500 quilômetros
quadrados da Fazenda Santa Cruz, a principal propriedade da Ordem ao sul da
Colônia.
No Tombo de 1731, seus limites foram dados pelos seguintes marcos: a
Freguesia de Sacra Família do Tinguá, em Vassouras; a linha do Curral Falso,
contígua à Freguesia de Mangaratiba até o mar; os terrenos de Marabicu, a
75
leste; e as terras de Mangaratiba, a oeste. Hoje, essas mesmas terras
compreendem o bairro de Santa Cruz, no município do Rio de Janeiro, e partes
dos municípios de Barra do Piraí, Itaguaí, Mendes, Nova Iguaçu, Paracambi,
Paulo de Frontin, Piraí, Rio Claro, Vassouras e Volta Redonda.
Nestas terras, os jesuítas implementavam a policultura que caracterizava
as grandes fazendas da Ordem. Lá, em Santa Cruz, havia, pelo menos, arroz,
feijão, mandioca, algodão e, certamente, cana. Porém, não era essa a
principal fonte de renda da fazenda. Com sua enorme extensão, tornava-se
propícia para a pecuária extensiva, inclusive com aluguel ou arrendamento de
pastos. Grande parte dos que usavam estas pastagens vinha de outras
províncias, e precisavam recompor o rebanho dos desgastes da viagem, antes
de chegar ao mercado do Rio de Janeiro.
76
Limites aproximados da Fazenda de Santa Cruz quanto da expulsão dos
jesuítas.
2
1
Rio de Janeiro
77
O gado privado, isto é, o que era criado pela Ordem, estava distribuído
em 22 currais espalhados pela da propriedade. Esse rebanho chegou a
computar 11.000 cabeças entre vacum, eqüino, caprino e ovino. Junto dos
currais estavam pequenas senzalas que abrigavam os pastores ou campeiros e
seus ajudantes. A julgar pelo inventário elaborado por funcionários da Coroa
em 1791, cada pequena senzala junto a um curral abrigava um destes homens
e sua família.
Na porção que foi recebida da família Monteiro, a melhor e mais
acessível, os padres instalaram a sua igreja, um grande sobrado, que lhes
servia de moradia, uma hospedaria, provavelmente para os tropeiros que
traziam o gado de fora, uma escola de rudimentos e catequese para meninos,
açougue, hospital, cadeia e diversas oficinas.
Este pequeno povoado, formado em torno da sede, era, provavelmente,
composto em sua maior parte por escravos. Isso nos permite imaginar que
algumas destas construções eram destinadas também a esses cativos. Nos
confirma esta hipótese, o fato de que entre os escravos haviam muitos
especializados nos afazeres das oficinas. Além disso, no inventário de 1791,
aparecem alguns cativos no hospital. Muito pouco nos impediria de afirmar que
também a cadeia e a escola de rudimentos e catequese para meninos fossem
destinados a esses escravos e seus filhos.
As várias oficinas estabelecidas na fazenda parecem ter dado uma larga
autonomia a esta comunidade. Ali se fazia de quase tudo. Havia desde
tecelagem, carpintaria, ferraria, olaria, bricas de cal e farinha, engenhocas de
78
aguardente e açúcar, até um pequeno estaleiro e, segundo alguns, uma oficina
de prata lavrada.
Para o melhor aproveitamento das terras de Santa Cruz, os jesuítas
foram obrigados a empreender obras ousadas de engenharia hidráulica.
Ocorre que uma boa parte da fazenda ficava freqüentemente alagada com as
chuvas do verão, e algumas destas, ficavam submersas o ano inteiro,
formando grandes brejos. Para viabilizar a agricultura e a pecuária nessas
áreas, foram construídos diques, represas, comportas, pontes, canais, enfim
todo o tipo de obra necessária para tornar o latifúndio o mais rentável possível.
Pouco se sabe, ao certo, sobre como e quando começou a ser composto
o plantel de escravos da Fazenda. Alguns autores mencionam a união entre
negras africanas e índios da aldeia de Goaratiba, planejada e levada a cabo
pelos jesuítas, provavelmente imaginando que os cativos se assemelhassem
aos bovinos, caprinos e suínos da fazenda. É possível, no entanto, que junto
com a terra tenham vindo alguns escravos, ou ainda, que durante a
administração jesuíta, cativos tenham sido agregados por doação ou como
ressarcimento de dívidas. O fato é que um grande número de cativos foi
reunido na fazenda e, até onde se sabe, sem nenhum tipo de critério quanto à
sua origem. Provavelmente a Coroa assumiu uma propriedade dotada de um
plantel absolutamente heterogêneo.
Com a Era de Pombal, e a conseqüente partida dos incianos, as terras
de Santa Cruz, e tudo o que nelas havia, são incorporadas ao patrimônio da
Coroa. Era, então, o ano de 1779. A partir daí a Real Fazenda entra num
período de estagnação. A administração pública não consegue manter a
79
mesma produtividade dos padres, ficando as terras praticamente em estado de
abandono.
Contra ela conspiravam inúmeros interesses paralelos, alguns dos mais
ricos e poderosos homens da Colônia, nesse momento, voltavam seus olhares
para Santa Cruz. Menos dano ao seu patrimônio teriam causado, se fossem
apenas os seus olhares, mas a fazenda se tornou alvo das mais diversas
intrigas, sempre com o objetivo de desvalorizar as suas terras e até mesmo
mostrá-la inviável aos olhos reais.
Somente no final do século XVIII, com a tentativa de retomar a
exploração colonial de forma mais efetiva, é que a Coroa volta sua atenção
novamente para Santa Cruz. O processo que origem ao inventário de 1791
parece fazer parte da série de medidas de revitalização da fazenda, que
começam com a troca de sua administração.
Aproximadamente por esta época, assume a administração da fazenda
um certo coronel Manoel Maritns do Couto Reys. Suas idéias a cerca de Santa
Cruz ,publicadas pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
52
,
tomam por inspiração a administração dos padres Inacianos. Estes são
descritos, quase com nostalgia, como exímios administradores e competentes
gestores. Sua relação com os cativos parece também ter sido inspirada pelas
imagens que descreve de um tratamento benigno, porém ordeiro, dispensado
pelos curas. Suas cartas
53
, endereçadas principalmente ao Marquês do
Rezende, mostram uma certa racionalidade ao empreender uma política de
52 REYS, Manoel Martins do Couto. “Memória de Santa Cruz”. Revista do IHGB. Tomo V,
1843.
53 Arquivo Nacional, Rio de janeiro, caixa 507.
80
bons tratos aos escravos. Algumas idéias animam tal comportamento. Dentre
elas, merecem destaque duas: 1) a idéia iluminista de humanidade e
civilização; 2) a certeza de uma rentabilidade maior, mais prolongada e menos
custosa de um cativo bem tratado.
Em 1808 as ”Instruções Provisionais para a Administração da Fazenda
Santa Cruz”
54
criam uma hierarquia mais complexa para gerir esse patrimônio.
Encabeçada por um Superintendente (ao que tudo indica, o próprio Manuel
Martins do Couto Reys), a administração passa a contar com e
administradores; almoxarife dos Poços, diretor das manadas e e
escriturários. Porém, apesar dos esforços, a debilidade financeira do governo
português determina o fracasso do plano de revigoramento da produção de
Santa Cruz.
A presença Del Rey D. João no Rio de Janeiro alterou profundamente a
Fazenda. Além de sua estrutura administrativa, o status, a partir de então de
Paço, e sua estrutura produtiva também foram modificados. Ao longo do século
XIX, quando era Fazenda Imperial de Santa Cruz, a sua produção pecuária
torna-se a principal abastecedora de carnes verdes do Rio de Janeiro.
54 VIANA, Sonia Baião Rodrigues. Fazenda Santa Cruz e as transformações da política real e
imperial em relação ao desenvolvimento brasileiro. 1790-1850. Dissertação de Mestrado, UFF,
1974.
81
2. A escravidão na Real Fazenda de Santa Cruz
Segundo Serafim Leite,
55
quando os jesuítas foram expulsos do Império
português, a Fazenda de Santa Cruz contava com pelo menos setecentos
escravos. Décadas mais tarde, quando foi feito o inventário de 1791, a, então,
Real Fazenda de Santa Cruz contava com mais de mil e trezentos cativos. Isso
equivale dizer que o crescimento populacional se aproxima de cem por cento
em cerca de três décadas, ou seja, pouco mais de uma geração. Alguns anos
mais tarde, em 1817, o número de escravos decaiu para pouco mais de mil, no
entanto, ao longo do século XIX a sua população chegou a ultrapassar a casa
dos dois mil cativos.
De fato, o que se tem na história da comunidade escrava da fazenda é,
em primeiro lugar, cerca de um século e meio de cuidados dos curas de Santo
Inácio. Em praticamente todas as obras consultadas acerca da administração
jesuíta, vê-se a descrição de uma conduta benevolente, porém disciplinada.
56
O sistema de regalias concedidas aos escravos funcionava como um poderoso
meio de controle social sobre a massa cativa, de modo que o indisciplinado
poderia ser vendido. Algo que deveria equivaler a um degredo. Mas,
paralelamente às benesses, havia a pregação, iniciada na escola de
rudimentos e catequese e mantida ao longo de toda a vida dos escravos. Tão
55 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jasus no Brasil. Tomo VI. Rio d Janeiro: Instituto
Nacional do Livra, 1945. pp. 44-66.
56 Cf. TAUNAY, A. C. Manual do agricultor brasileiro. São Paulo: Cia. Das Letras. 2001. p. 28.
82
candente e repetitiva quanto a batida do tambor que marcava as horas da vila,
deveria ser a voz dos padres na escola, nos ofícios religiosos, no trabalho,...
Tal procedimento parece ter surtido algum efeito. Algo entre 20 ou 30 anos
depois, cerca de uma geração além, os padrões de conduta ainda parecem
razoavelmente fortes. Basta dizer que em 1791 apenas nove mulheres
menos de uma em cada 10 - poderiam receber a pecha de mães solteiras,
enquanto que em 1817 esse qualitativo caberia a 23%, ou seja, praticamente
uma em cada quatro.
Isso pode ter sido fruto do afrouxamento nas regras católicas ou, ao
menos, na vigilância sobre o seu cumprimento. Quando a administração real
assumiu a Fazenda, um de seus maiores desafios certamente foi manter sob
controle social uma escravaria tão numerosa. Para tanto, o modelo jesuítico de
trato pareceu o melhor a ser adotado. De fato, não havia muito que pensar, e
sim, uma multidão socialmente habituada a um conjunto de práticas que
constituíam uma dominação aceitável. Mudar isso seria muito temerário. Como
diria o deputado Rafael de Carvalho posteriormente: “Ora com tais hábitos toda
a reforma exige prudência”.
O controle moral e religioso exercido pelos inacianos, uma vez extinto,
abriu espaço para que os escravos pudessem explicitar interesses e relações
até então latentes. Não que esses cativos tenham abandonado o catolicismo,
posto que eram conhecidos por mui piedosos, mas puderam flexibilizar as
regras de conduta com mais espaço. Espaço esse, outrora preenchido pelos
cuidados de Santo Inácio.
83
Se a incúria dos administradores foi, em algum momento, traduzida em
ruína dos negócios da fazenda, parece também ter redundado numa maior
natalidade entre os escravos. Se tomarmos por pressuposto que tal natalidade
é caudatária da conjunção do afrouxamento das regras morais com o
incremento da acumulação de fortuna, teremos que a ruína da fazenda foi
transformada em prosperidade para os seus cativos.
O que nos importa ressaltar é que o conjunto da escravaria da fazenda
agia e reagia organicamente frente a sua historicidade. A determinação de
comportamentos que, se não eram preceitos inescapáveis, eram ao menos
tendências coletivas que se configuravam em práticas sociais, mostra uma
faceta da formação da comunidade de escravos em Santa Cruz. Mais que um
aglomerado de escravos e indo além de seu parentesco direto, os cativos de
Santa Cruz produziam e reproduziam coletivamente comportamentos que os
ajudavam a lidar com a historicidade inerente aos seres humanos. Isto, ao que
nos parece, era um fator fundamental na sua construção comunitária.
Essa comunidade de cativos entre 700 e 2000, dependendo da época
e do registro divida compulsoriamente algum espaço da fazenda entre si. A
coexistência forçada entre esses indivíduos proporcionou a ocasião para o
intercurso sexual. Porém não apenas isso. Dado que falamos de seres
humanos, não obstante as classificações (peça, semovente, gado humano,...)
as relações sexuais obedeciam determinados preceitos sociais e produziam
novos laços de solidariedade. Seja pela geração de descendentes comuns ou
pela troca de indivíduos entre os grupos, o fato é que além de famílias
84
nucleares - lares ou fogos é possível encontrar padrões de socialização
extracelulares.
As regras sociais, provavelmente tácitas, eram produto da confluência
de um sem número de fatores como as heranças culturais dos negros, a
pregação jesuítica e as conjunturas históricas. A existência de tais padrões ou
estratégias indica uma organicidade comunal. Certamente esses aspectos
tornaram as relações extracelulares perceptíveis, indicando que o parentesco
era uma força social poderosa neste meio.
Uma das pistas que nos conduziram a esta idéia foram as observações
do Deputado Rafael de Carvalho. No seu texto, o deputado se refere a uma
rede de parentesco que envolvia todos os membros da comunidade. Diz o
deputado a respeito do “povo jesuítico”: “Estes escravos reproduzindo-se em si
mesmos desde os Jesuítas, formão hoje huma associação de parentesco mixto
e complicado, apresentando huma raça de gente muito feia.”
57
O mais sintomático dos indícios deste parentesco é que não é possível
montar muitas genealogias completas. A princípio a tarefa parece simples,
que temos registros distando aproximadamente uma geração um do outro. Em
tese seria uma tarefa banal construir genealogias de três, quatro, ou até
mesmo cinco gerações. depois de um bom tempo investido nesta inglória
lida é que se percebe que uma genealogia completa envolveria praticamente
todo o plantel. Nos estudos de famílias escravas, normalmente o limite da
família é dado pela escassez de fontes. Aqui o. sempre uma nova união
57 Resolução nº 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho membro da
Comissão das Contas do Tutor de S. M. e AA. Imperiais (I-PAN-14.8.837-Car.rs - Arquivo do
Museu Imperial de Petrópolis - R. J.). p. 3.
85
matrimonial que abre todo um novo leque de aparentados, e assim se sucede
ad nauseum.
Ainda que tenhamos em mente que a descrição dos inventários possa
estar minada pelos mais diversos fatores, a forma como as famílias dos
escravos o descritas se constitui numa base para reflexões. Mesmo que não
reflitam a concepção que os cativos tinham de si e de suas relações,
certamente mais extensas e prolíferas, os vínculos assinalados na lista do
inventário pode servir como ponto de partida para algumas de nossas
reflexões.
No inventário de 1791, os cativos se arranjavam preferencialmente em
famílias nucleares. Famílias essas, constituídas, no mais das vezes, por um
casal - ou eventualmente um viúvo com seus filhos e, em raras vezes, com
seus netos. As anotações do escrevente nos trazem, freqüentemente, um
homem casado ou viúvo à testa do grupo, alguns casos apresentam, ainda,
grupos encabeçados por viúvas. Estes dois casos - homens e viúvas no topo
do grupo - somam 311 dos 372 grupos domésticos estudados. Cerca de 60
casos fogem a esse padrão familiar, onde o indivíduo que está no topo da
unidade familiar passou pela experiência do matrimônio. As formas de
organização familiar descritas no inventário, ainda que não correspondendo à
totalidade da realidade sócio-parental experimentada pelos escravos da
fazenda, nos indica um conjunto com relações bastante sedimentadas entre si.
Uma das informações preciosas sobre a vida em Santa Cruz que
Deputado Rafael de Carvalho nos fornece é a existência de legados em
herança. O fato é que os cativos da fazenda obtinham uma certa acumulação
86
de posses no transcurso de suas vidas, seja pela sua produção agrícola, obtida
pela posse de pedaços de terra e pela possibilidade de cultivá-los nos sábados,
domingos e dias santificados - segundo o mesmo deputado, uma boa porção
dos dias do ano -; seja pelo exercício de alguma outra atividade lucrativa
implementada nesses mesmos dias.
Se era possível a acumulação de bens, deveria ser igualmente possível
a diferenciação social entre os membros da dita comunidade. Desde os tempos
jesuíticos havia indícios de que a comunidade de Santa Cruz não era
homogênea do ponto de vista da distribuição de bens. Segundo as pesquisas
de Serafim Leite
58
as senzalas poderiam ser divididas em dois tipos: as
construções de parede e telha e as de sapê. É provável que esta distinção
indique uma diferença entre os seus moradores, estabelecendo algum tipo de
hierarquia econômica entre eles.
Se havia acúmulo de posses e hierarquia econômica, é lógico supor que
houvesse critérios, explícitos ou tácitos, para a circulação destes bens do qual
fazia parte algum padrão no legado de heranças, ao qual se refere o Deputado.
Se assim for, talvez possamos capturar algo a esse respeito na transmissão da
única posse dos cativos cujos registros nos chegaram às mãos: as unidades
domiciliares.
Estas, por ilação, ou eram herdadas ou construídas quando da formação
de uma nova unidade familiar. Isso nos remete ao fato de que algumas famílias
ao se constituírem acabavam buscando domicílio longe de seu grupo de
origem, quiçá na orla do espaço de habitação. Mas talvez esta não fosse a
58 LEITE, Serafim S. I. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VI. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro. 1945.p. 59.
87
única alternativa. Havia outros núcleos familiares que obtinham um espaço
próximo ao centro geográfico da comunidade para construir a sua moradia.
Vejamos o que foi possível fazer com o da diferença entre o número do
domicílio em que os cativos estavam em 1791 (origem) e o número da unidade
na qual foram assentados em 1817 (destino) e desse modo mostrar quão
complexa era a organização em Santa Cruz.
Dos 1342 escravos lavrados no inventário de 1791, 395 cativos, isto é,
cerca de 30%, ainda estavam presentes no inventário de 1817. É provável que
esse percentual seja na realidade bem mais elevado, que em alguns casos
não foi possível fazer uma identificação positiva com confiabilidade. As
identificações feitas levavam em conta três critérios fundamentais: o nome, a
idade e o círculo de familiares mais próximos - esse último muito pouco eficaz
dadas as mudanças na estrutura do domicílio ao longo dos 25 anos que
separam os registros.
A partir daí foi possível imaginar três pontos chaves para aferição dos
legados privilegiados: a faixa etária, a posição em relação aos irmãos
conhecidos e o estado civil. Na verdade, o primeiro e o último ponto tratam
muito mais da aferição dos fatores de permanência dos elementos em seus
grupos domiciliares do que da transmissão deles aos descendentes.
É preciso que se diga que em nenhum caso, o número do domicílio no
primeiro inventário coincide com o do segundo, que entre eles foram
inseridos outros, até a saturação do espaço. Portanto descontada uma
alteração padrão, os números que analisaremos adiante podem nos oferecer
88
algumas tendências possíveis no que diz respeito à permanência e à
transmissão da posse das unidades familiares.
Tabela 1: Distância média entre os domicílios de origem e destino por faixa
etária de 1791 a 1817 (idade em 1791).
Faixa Etária Homens Mulheres
0-9 122 132
10-20 136 91
20-30 57 47
30-40 65 26
40-50 29 23
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1817. Arquivo
Nacional - R.J.
Tabela 2: Distância média entre os domicílios de origem e destino pelo estado
civil entre 1791 e 1817.
Estado Civil Homens Mulheres
Casado/Viúvo 43 36
Solteiros 121 97
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1817. Arquivo
Nacional - R.J.
A tabela 1 nos mostra que, tendencialmente, a idade era um fator de
permanência no mesmo domicílio. Os cativos com mais de 20 anos em 1791
tendiam a se deslocar menos, ou mesmo a não se deslocar das suas unidades
domiciliares, ainda que se passasse um quarto de século. E mais, as mulheres
tendem a ter uma média de deslocamento menor do que os homens na mesma
faixa etária.
De modo semelhante, conforme mostra a tabela 2, os escravos
assinalados como casados em 1791 tendem a apresentar uma média de
diferença do número de domicílio sensivelmente menor do que os solteiros.
Certamente as duas tendências apresentam o mesmo fenômeno: os cativos
89
alteravam o seu domicílio fundamentalmente quando do seu casamento, fora
isso, a tendência era a estabilidade.
Tabela 3: Distância média entre os domicílios de origem (1791) e destino
(1817) pela posição conhecida do filho – subtraído o padrão médio de 84
domicílios.
Posição do filho dentro da prole Homens Mulheres
Primeiro filho 35 -1
Segundo filho 30 4
Terceiro filho 32 15
Média 32,3 6
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1817. Arquivo
Nacional - R.J.
Como é possível observar na tabela 3, um padrão inverso entre os
homens e mulheres. Os homens primogênitos tendem a se deslocar mais do
que seus irmãos mais novos. Com as mulheres o que se é exatamente o
oposto. As mais velhas se deslocam menos do que as suas irmãs. Podemos
constatar que as mulheres mais velhas tendiam a ficar com o domicílio dos
pais.
É possível que ao receber um novo homem em seu grupo familiar, as
mulheres oferecessem as suas casas ou uma unidade construída contígua,
quando possível. É bom lembrar que o escopo matrimonial para os homens era
bem mais dilatado do que para as mulheres, dada a desproporção entre os
sexos. Deriva daí que uma forma de tornar uma mulher mais interessante para
os seus possíveis pretendentes seria acompanhá-la de uma habitação, ainda
que não fosse no exato momento da consecução do matrimônio. Disso trata o
deputado Rafael: “a filha á quem coube por doação uma potra, conta estar
90
casada; pois o dote convida, e logo seduz algum rapaz”. De qualquer modo, o
que aparece com certa eloqüência nas tabelas acima é a indicação de que, em
última instância, o domicílio era um bem eminentemente feminino.
Não sabemos, no entanto, se os mesmos incentivos ao matrimônio
estiveram em vigor no intervalo entre a expulsão dos jesuítas e a administração
do Coronel Manoel do Couto Reys. Não obstante a isso, se as práticas de
matrimônio estivessem sedimentadas no corpo social da escravaria, poderia
fazer pouca diferença a existência ou não de estímulos materiais, que a
forma de engendrar laços entre os homens e mulheres se por padrões
sócio-culturais tão pungentes quanto o acesso a terras e bestas.
Além disso, a percepção do inventariante, muito provavelmente,
procurou remeter ao seu próprio padrão familiar, a estrutura de parentesco dos
escravos. Afinal, ele mesmo, autor da lista, estava sujeito à mesma e a
mesma vida que impregnava todo o ar da colônia. Sua concepção de família e,
principalmente do papel masculino de chefe da casa, certamente agiram na
confecção desta divisão dos grupos domésticos.
Assim, é possível que se disponha de forma ordenada, o conjunto da
fonte de 1791, de tal modo a atender aos critérios de ocupação e de produção
do inventário simultaneamente. O centro da propagação das gerações de
famílias presentes no inventário é, possivelmente, o núcleo de famílias entre os
grupos 247 e 276, onde estão todos os quatros escravos assinalados com mais
de 100 anos.
91
Se dividirmos os grupos, e por suposição o espaço com o mesmo
tamanho do subgrupo sugerido pela ocupação destes cativos centenários,
59
será possível intuir o fluxo de difusão das gerações de que dispomos. Para
tanto é preciso combinar a disseminação de pessoas idosas - nesta etapa do
trabalho, consideradas todas as que têm acima de 60 anos - com a ordenação
dada pelo inventário.
Assim podemos chegar ao diagrama do diagrama 2, que estabelece dois
fluxos distintos, um de gerações outro de inventário. Neste diagrama, o nível
representa o ponto na escala de gerações entre 60 e 112 anos e, por suposto,
a ordem na difusão das gerações. A área, determinada por uma letra (A-M),
expressa um núcleo de famílias agrupadas segundo o tamanho do grupo de
indivíduos mais velhos, isto é, 36 famílias. O que corrobora essa divisão é a
incrível regularidade com que os idosos aparecem em cada um destes núcleos
numericamente iguais entre si. É como se pudéssemos fatiar o espaço social
de Santa Cruz e observar que em cada uma das fatias um núcleo com
alguém com mais de 60 anos de idade, impedindo a aceitação da idéia de
confinamento dos velhos nessa propriedade. E finalmente, o fluxo de inventário
expresso pelas setas largas e dado pela ordem em que as famílias são
transcritas no inventário.
Obviamente não se trata de uma distribuição absoluta, mas relativa, ou
seja, a julgar pela combinação desses dois critérios, as posições relacionais da
59 Mesmo que as idades assinaladas não correspondam à idade verdadeira, não torna inválido
o raciocínio. Ao contrário, se estamos admitindo a idade como fator de ancestralidade, a
credibilidade desta informação se mantém, que só seria verossímil uma idade tão avançada
se correspondesse à idade aproximada ou a idade “social”. Em outras palavras, ou eram
mesmo centenários, ou a comunidade os considerava como em condição semelhante.
92
ocupação dos grupos de famílias era aproximadamente como a descrevemos
no gráfico 9, segundo os níveis:
Nível 1: A geração mais velha tem 100 anos ou mais
Nível 2: A geração mais velha tem entre 90 e 99 anos
Nível 3: A geração mais velha tem entre 80 e 89 anos
Nível 4: A geração mais velha tem entre 70 e 79 anos
Nível 5: A geração mais velha tem entre 60 e 69 anos
Parece ficar pouco convincente o caminho de ida e volta feito pelo
inventariante no seu percurso. Por que o teria ele seguido numa espécie de
varredura toda a região, preferindo ir ao fundo e retornar? Tal questão parece
ter solução quando analisamos a planta da distribuição espacial das senzalas
de Santa Cruz. O diagrama que segue
60
nos mostra que o espaço das
senzalas era dividido em dois bairros, à esquerda do terreiro central estava o
bairro da Limeira, e à direita, o da Pacotiba.
Se nossas suposições estiverem corretas, é provável que as famílias
dos grupos de A até F estivessem em um dos hemisférios, enquanto as
famílias dos grupos de G a M, no outro. Embora não nos seja possível, com as
informações de que dispomos afirmar quem estaria onde, é patente que o
espaço público de Santa Cruz era ordenado. Longe, portanto, da anomia.
60 Baseado na planta encontrada em: TELLES, Maria L. M. S. “A conquista da terra e a
‘conquista’ das almas”. in A forma e a imagem - arte e arquitetura jesuítica no Rio de Janeiro
colonial. Rio de Janeiro: s.n., s.d.
93
área C /
nível 3
67
-
96
Quadro 2: Quadro das Posições Relativas das Unidades Familiares dentro da
Real Fazenda de Santa Cruz.
Igreja
Bairro 1 Bairro 2
Iníco do Fim do
inventário Inventário
Fluxo das anotações dos Inventários
Provável fluxo de disseminação das gerações
área I /nível
1
área B /
nível 2
área A / nível
3
área E/
nível 5
área F / nível
4
157
-
186
área H /
nível 2
217
-
246
área D /
nível 2
área M/ nível
2
área J / nível
4
277
-
306
Área L /
nível 3
área G /
nível 3
187
-
216
94
Ao fim de tudo, fica-nos patente que a escravaria de Santa Cruz tinha a
capacidade de agir e reagir organicamente, como comunidade, frente às
intempéries e às oportunidades que o devir histórico lhe apresentava. Suas
características singulares fazem dela um caso praticamente único. Não
obstante a isso, seus traços gerais a transformam em mais uma comunidade
escrava. Por nos parecer estarmos diante de um caso que possui a
peculiaridade de ter levado elementos comuns às outras comunidades ao
extremo, utilizaremos a Fazenda de Santa Cruz como base de comparação
para os demais casos que analisaremos.
95
Das Possibilidades da Comunidade Escrava
(...)Mas, também sem considerar aqui o
dever, todos os homens têm, já por si
mesmos, uma poderosíssima e íntima
inclinação para a felicidade, que é
precisamente nessa idéia que se reúnem,
em soma, todas as inclinações. (...) ainda
aqui, como em todos os demais casos,
continua a existir uma lei, qual seja, a de
que o cabe a cada um procurar a sua
própria felicidade, não por inclinação
mas por dever (...).
Immanuel Kant
(Fundamentos da Metafísica
dos Costumes)
Qual o homem que não ama sua vida
Procurando ser feliz todos os dias?
(Sl 34, 13)
1. Vestígios do Tráfico
Para sustentar a existência de comunidades escravas e de seu papel
fundamental na estratégia primeira, qual seja a de sobreviver, tomamos
algumas fazendas com considerável número de cativos nas quais pode ter
havido, em diversos graus de complexidade, uma comunidade. Em primeiro
lugar, temos duas fazendas de um mesmo dono, o Comendador Manuel de
Aguiar Vallim, um grande produtor de café da região do oeste paulista.
96
Tomamos conhecimento de sua escravaria por meio das listas nominativas da
matricula de 1872, tanto para fazenda Resgate quanto para fazenda Bocaina.
Além destas, também nos foi possível conhecer o plantel da fazenda do
Engenho Novo da Pavuna, na freguesia de Jacarepaguá, de propriedade do
Comendador Pascoal Cosme dos Reis. Quando da morte do Comendador,
suas terras eram compostas de três datas perfazendo um valor aproximado de
dez contos e quinhentos mil réis. Sua produção era composta de café,
mandioca, mas principalmente cana-de-açúcar. Sua produção de açúcar
deveria ser próxima da dos seus vizinhos do engenho do Camorim, visto que
ambos possuíam quatrocentas formas para a produção.
A fazenda do Engenho do Camorim foi herdada da família Correia de
pelos beneditinos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Os registros
relevantes da colonização do que hoje se chama de Barra da Tijuca e
Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, começam com a família Correia
de Sá. Sabe-se, no entanto, que estes não foram seus primeiros donos, mas os
anteriores nada fizeram com a sesmaria que receberam. É nesse momento que
a paisagem passa para o papel se transformando em carta que a posse e
em posse que dá o direito. Assim dividiram a região os filhos de Salvador
Correia de Sá, primeiro governador do Rio de Janeiro. Gonçalo foi quem ficou
com o lado onde está a Barra da Tijuca e lá instalou um dos seus engenhos.
Estas terras passaram rapidamente de mãos. Quando a filha de
Gonçalo, D. Vitória se casou com D. Luís Céspedes Xeria, que veio de Madri
para assumir o governo em Assunção, as terras que vão do Camorim a
Vargem Grande e até a praia lhe foram dadas como dote. Não muito depois,
97
morreram Gonçalo e Luís, ficando a cargo das mulheres a administração das
grandes propriedades amealhadas pela família. Antes de morrer, D. Vitória
deixa em testamento as terras do seu dote aos monges beneditinos do
Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro.
Não é difícil imaginar que as terras estivessem coalhadas de canaviais e
pastos, não pelo engenho erguido por Gonçalo, mas também por que antes
de tomarem posse da propriedade, os padres possuíam currais lá. Mais que
uma introdução precoce da pecuária na região, isso indica uma relação
bastante estreita entre Correias de Sá e beneditinos.
Uma vez nas laboriosas mãos dos beneditinos, a terra foi dividida para
facilitar a administração. Uma parte conservou o nome de Camorim, outra
passou a se chamar Vargem Pequena e uma terceira ganhou o nome de
Vargem Grande. Assim, o engenho do Camorim, também chamado Pirapitinga,
pôs-se a produzir o açúcar dos frades e alguma aguardente. Além destes
canaviais, estas terras foram rasgadas com milhares e milhares de pés de
mandiocas, da qual se produzia a famosa farinha de guerra, base da
alimentação nas fazendas e no Mosteiro. Segundo consta nos arquivos do
Mosteiro, em algum ponto entre 1772 e 1777,
61
sob a gestão do Abade Frei
Vicente José de Santa Catarina, uma pequena multidão de índios foi
contratada para auxiliar na derrubada de vários alqueires de mata, que dariam
lugar ao plantio de mandioca. Ainda acresce-se a estas, o milho, o feijão e
algum arroz. O resto da área aproveitável da região era basicamente pasto
para as cerca de cem cabeças de gado.
61 Estados da Ordem 1772-1777. Arquivo do Masteiro de São Bento – Rio de Janeiro
98
Assim se seguiu do final do século XVII até o final do XVIII, quando, para
incrementar os lucros da fazenda, foi instalada uma roda de engenho de
mandioca movida a água. Buscava-se “evitar deste modo o multiplicado e
incansável trabalho dos escravos na fatura[sic] de farinha”.
62
Tentou-se, ainda
em fins do século XVIII, montar ali uma produção regular de anil. Foram
construídos quatro tanques e uma outra roda d’água, mas a concorrência com
a produção inglesa na Ásia não lhes deu uma vida muito longa.
63
Basicamente, a fazenda Camorim, como Vargem Pequena e Vargem
Grande, serviam de sustentáculo para as atividades do Mosteiro. Porém, estas
fazendas possuíam em si mesmas uma vida. Essa vida própria era dada pela
comunidade de escravos que habitavam cada uma destas terras.
Aspecto da sede da fazenda do Camorim, transformada em escola pública
capturada por Magalhães Corrêa no início do século XX.
64
62 Arquivo do Mosteiro de São Bento/RJ Códice 1161, p. 106, docs. 1342-4, 1290-4. Cf.
Estados da Ordem Nº 2, p. 75.
63 Idem.
64 CORRÊA, Magalhães. O Sertão Carioca. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro. 1933. passim.
99
Mapa preparado por ocasião da venda das terras beneditinas à Companhia
Geral de Jacarepaguá. Os limites são dados pelo oceano Atlântico ao alto, a
serra do Nogueira abaixo, Curicica à esquerda e Guaratiba no alto à direita.
Atualmente, as terras aqui representadas compreendem os bairros do
Camorim, Vargem Pequena, Vargem Grande, Barra da Tijuca e Recreio dos
Bandeirantes. Arquivo do Mosteiro de São Bento, foto e montagem do autor.
Por fim, temos a Real Fazenda de Santa Cruz, não muito distante das
duas anteriores. Como dissemos anteriormente, Santa Cruz servirá de termo
de medida para o estudo das demais. A história de Santa Cruz já nos é
razoavelmente conhecida, por tanto passemos adiante.
100
Tabela 4: Número total de escravos e sua distribuição sexual em números
absolutos e percentuais das fazendas Bocaina (1872), Resgate (1872),
Engenho Novo da Pavuna (1852), Camorim (1864) e Santa Cruz (1791).
Homens Mulheres Fazenda População
Total
# % # %
Bocaina (1872) 226 132
58,4
94
41,6
Resgate (1872) 436 257
58,9
179
41,1
Engenho Novo da Pavuna
(1852)
379 200
52,8
179
47,2
Fazenda do Camorim (1864) 172 78
45,3
94
54,7
Fazenda de Santa Cruz
(1791)
1342 609
45,4
733
54,6
Fontes: Matricula de Escravos de 1872 (constante do inventário post-mortem
de Manuel de Aguiar Vallim, de 1878); Inventário post-mortem Pascoal Cosme
dos Reis, 1850-1852, Arquivo Nacional (RJ); Lista nominativa dos Escravos do
Engenho do Camorim (Códice 49) Arquivo do Mosteiro de São Bento (RJ);
Inventário dos Escravos da Real Fazenda de Santa Cruz, 1791, Arquivo
Nacional (RJ).
A tabela acima nos permite agrupar as fazendas em função da
proporção de homens e de mulheres. Na verdade, trata-se de agrupar em
função dos efeitos do tráfico, quer Atlântico, quer interprovincial, sobre a
estrutura demográfica do plantel. Essa opção, longe de ser aleatória, se por
ser a compra o meio de formação original da escravaria. É certo que se pode
herdar um plantel, mas nesse caso não estaríamos falando exatamente da sua
formação, mas de sua transferência de mãos.
Assim, poderíamos analisar as fazendas do Comendador Vallim pela
maior proporção de homens, que estes superam em quase 20% o número
de mulheres. Em seguida, poderíamos nos voltar para o Engenho Novo da
Pavuna, que apresenta praticamente um equilíbrio entre as suas proporções de
101
homens e mulheres. E por fim, teríamos o Engenho do Camorim e a Real
Fazenda de Santa Cruz, onde as mulheres superam numericamente os seus
companheiros. O que se busca de fato é uma categorização segundo
eloqüência das marcas do tráfico de almas. Entabulemos a análise.
As fazendas do senhor Vallim mostram um perfil sexo-etário bastante
marcado pelos efeitos do tráfico, quer interno, quer atlântico. È marcante o
inchaço da face masculina de sua pirâmide demográfica. No entanto, não se
pode dizer que a sua maior aquisição tenha sido uma compra recente.
65
Se levarmos em conta que, do ponto de vista da proporção entre os
sexos, a dilatação corresponde às escolhas nas compras, isto é, uma
preferência pelos homens, é quase certo que, no que tange às idades, tenha se
dado o mesmo: homens em torno de 24 anos de idade.
66
Desse modo, é muito
provável que o Comendador tenha feito um grande investimento no tráfico
interprovincial, que desde 1850 o tráfico atlântico tinha se tornado
extremamente rarefeito. Não devemos, contudo, tomar esta última grande
compra como efetivamente última ou como uma exceção no decorrer da vida e
da formação do plantel do Comendador.
As mesmas pirâmides apontam para um recurso relativamente freqüente
à compra de cativos, num passado não muito remoto. Principalmente a baixa
taxa de reprodução natural. Em ambos os casos, a coorte da primeira infância
(de 0 a 4 anos) chega no máximo perto dos oito por cento do conjunto. Ainda
são índices muito modestos, mas principalmente na fazenda Resgate, onde a
65 FLORENTINO, Manolo, MACHADO, Cacilda e ENGEMANN, Carlos. “Entre o Geral e o
Singular”. in FLORENTINO, Manolo, MACHADO, Cacilda. Ensaios sobre a escravidão (I). Belo
Horizonte: Editora UFMG. 2003.
66 Idem
102
população é quase duas vezes o de Bocaina, o futuro poderia reservar um
crescimento vegetativo capaz de incrementar a população sem o recurso ao
ingresso de estrangeiros.
Gráfico 1: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria fazenda Bocaina (1872).
-25 -15 -5 5 15 25
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fontes: Matricula de Escravos de 1872 (constante do inventário post-mortem
de Manuel de Aguiar Vallim, de 1878).
Gráfico 2: Pirâmide sexo-etária da escravaria (%) da fazenda Resgate (1872).
-20 -15 -10 -5 0 5 10 15 20
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
103
Fontes: Matricula de Escravos de 1872 (constante do inventário post-mortem
de Manuel de Aguiar Vallim, de 1878).
A próxima escravaria em nossa lista é a do Engenho Novo da Pavuna.
Aparentemente este plantel se encontra em equilíbrio proporcional entre os
sexos.
Gráfico 3: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria do Engenho Novo da
Pavuna (1852).
-15 -10 -5 0 5 10 15
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fontes: Inventário post-mortem Pascoal Cosme dos Reis, 1850-1852, Arquivo
Nacional (RJ).
A distribuição etário-sexual expressa na pirâmide acima nos permite
vislumbrar uma escravaria possivelmente iniciando um processo de
crescimento vegetativo. As marcas das compras passadas são pouco
perceptíveis, deduzidas apenas aqui e acolá em pequenas excrescências no
lado masculino. É o que ocorre com as coortes de 30 a 34 anos, 45 a 49 anos
e 50 a 54 anos. Se realmente representam compras passadas, o peso foi
abissalmente menor do que as do Comendador Vallim em meados do culo
104
XIX. Além disso, é visível uma pequena tendência a dilatação da base,
indicador poderoso de reprodução endógena.
Gráfico 4: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria do Engenho do Camorim
(1864).
-25 -20 -15 -10 -5 0 5 10 15 20 25
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fontes: Lista nominativa dos Escravos (Códice 49) Arquivo do Mosteiro de São
Bento (RJ).
Ainda mais aguda é a indicação de crescimento vegetativo positivo da
pirâmide do Engenho do Camorim. No entanto, uma grande distorção na
formação feminina. Isso se deve ao fato desta fazenda conter apenas uma
parte da comunidade escrava, que esta era uma num complexo de três
fazendas: Camorim, Vargem Pequena e Vargem Grande. Além disso, um
expediente freqüentemente utilizado por instituições proprietárias de escravos.
A estratégia consiste em deslocar os escravos por períodos variáveis para os
locais onde houvesse maior necessidade e retornando-os depois que o
trabalho fosse realizado ou a demanda por mão-de-obra fosse aliviada por
105
algum outro meio. De qualquer forma, o que vemos aqui é uma parte da
realidade expressa no conjunto das fazendas.
Gráfico 5: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria das fazendas do Camorim,
Vargem Pequena e Vargem Grande (1864).
-15 -10 -5 0 5 10 15
0 a4
5 a 9
10 a 14
15-19
20-24
25-29
30-34
35-39
40-44
45-49
50-54
55-59
60 ou +
% Homens
% Mulheres
Fontes: Lista nominativa dos Escravos (Códice 49) Arquivo do Mosteiro de São
Bento (RJ).
Como é patente na pirâmide acima, a verdadeira composição desta
escravaria estava diluída ao longo das três fazendas contíguas na baixada de
Jacarepaguá. As informações disponíveis no momento nos permitem uma
análise mais verticalizada da fazenda do Camorim, mas é evidente que se trata
de uma fração do universo cativos dos beneditinos daquelas paragens.
A que se notar um débito, por assim dizer, na face masculina da
pirâmide. Este comportamento é semelhante ao encontrado na Real Fazenda
de Santa Cruz, que analisaremos a seguir , em especial após a chegada de D.
106
João e sua corte ao Rio de Janeiro. Uma das explicações para isso é que
ambas teriam se tornado fornecedoras de mão-de-obra.
Vejamos então Santa Cruz. Esta fazenda, formada pelos jesuítas e
posteriormente confiscada pelo Estado, como vimos, passou por um longo
período de abandono administrativo, tempo no qual seus cativos tiveram
relativa liberdade para desenvolver sua comunidade. As marcas do tráfico
ficaram tão longínquas que não se as percebe mais. No entanto, a estratégia a
que nos referimos acima, do uso de mão-de-obra da fazenda em outros locais,
se faz marcantemente presente. Amplamente documentado, o remanejamento
de escravos para outras obras de El Rey deixou marcas na estrutura
populacional. Esta se expressa no gráfico 6 por meio do achatamento do lado
masculino nas idades produtivas.
Gráfico 6: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria da Real Fazenda de Santa
Cruz (1791).
- 1 5 -1 0 -5 0 5 1 0 1 5
d e 0 a 4
d e 5 a 9
d e 1 0 a 1 4
d e 1 5 a 1 9
d e 2 0 a 2 4
d e 2 5 a 2 9
d e 3 0 a 3 4
d e 3 5 a 3 9
d e 4 0 a 4 4
d e 4 5 a 4 9
d e 5 0 a 5 4
d e 5 5 a 5 9
d e 6 0 a 6 4
d e 6 5 a 7 0
a c im a d e 7 0
H o m e n s M u lh e r e s
Fontes: Inventário dos Escravos da Real Fazenda de Santa Cruz, 1791,
Arquivo Nacional (RJ).
107
Gáfico 7: Pirâmide Etário-Sexual dos Escravos da Real Fazenda de Santa
Cruz, 1817.
-1 5 - 1 0 -5 0 5 1 0 1 5
d e 0 a 4
d e 5 a 9
d e 1 0 a 1 4
d e 1 5 a 1 9
d e 2 0 a 2 4
d e 2 5 a 2 9
d e 3 0 a 3 4
d e 3 5 a 3 9
d e 4 0 a 4 4
d e 4 5 a 4 9
d e 5 0 a 5 4
d e 5 5 a 5 9
d e 6 0 a 6 4
d e 6 5 a 6 9
A c im a d e 6 9
H o m e n s M u lh e r e s
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz, 1817 Arquivo
Nacional. R.J.
A pirâmide correspondente ao ano de 1817 apresenta de modo ainda
mais acentuado o estrangulamento nas faixas produtivas. Acreditamos que o
fenômeno que produziu esta mesma configuração tenha sido responsável
pelas depressões nas pirâmides desta mesma fazenda em 1791 e, em parte,
na do complexo do Camorim e suas Vargens, em 1864. Em todos estes casos,
pode ter havido um deslocamento de mão-de-obra para outros pontos onde ela
se fizesse necessária.
108
Assim percorremos a história e a conformação populacional de cinco
grandes plantéis do sudeste dos últimos cem anos da escravidão e pudemos
observar que o número de escravos não é o único fator a ser considerado para
a sua conformação demográfica. O “pequeno” Engenho do Camorim, ao se
imbricar com suas fazendas-irmãs, indicava uma reprodução endógena muito
mais ampla que a formação dos mais de quatrocentos escravos da fazenda
Resgate poderia insinuar. Mas a estrutura populacional pode estar associada
ao nível de arraigo da escravaria? Talvez sim.
Levando em consideração que os cativos, ao implementarem uma
reprodução endógena do plantel, o faziam sob regras sociais e culturais e não
em anomia. Possivelmente a conformação populacional diz algo da
sedimentação social dos cativos. Façamos a relação.
109
2. Vestígios da Família
De um ponto de vista estritamente teórico, poderíamos tentar definir
parentesco como uma identificação profunda entre os indivíduos. Aparentar-se
seria, antes do mais, a obtenção de aliados, de tal feita que o parente estaria
diametralmente oposto ao estrangeiro. Deriva d uma necessidade - branda
ou urgente - conforme a situação vivida, de articular o maior número possível
de parentes. Os meios para isso são basicamente a consangüinidade e a
consecução de cônjuges.
O parentesco consangüíneo estabelece a primeira e mais fundamental
das relações sociais, a que se firma entre mãe e filho,
67
e desta derivam as
relações de proteção advindas de uma eventual figura paterna. As relações
conjugais que, a princípio, seriam preferencialmente obtidas no interior desta
célula deslocam-se para seu exterior pela - praticamente universal - existência
do tabu do incesto.
Como formas de explicar tal prática temos, em primeiro lugar, as
características demográficas dos primeiros grupos sociais humanos que
impediam, ou ao menos dificultavam, as relações matrimoniais intracelulares. A
pequena expectativa de vida, associada a um intervalo intergenésico
razoavelmente elevado, acarretaria uma situação familiar em que a maturidade
sexual dos filhos não se daria dentro do período de vida dos pais. Mas para
67 Cf. FOX, Robin. Parentesco e casamento - uma perspectiva antropológica. Lisboa: Vega.
s/d.
110
além dos condicionantes demográficos, podemos pensar que a circulação de
parentes promove a multiplicação das alianças sociais e políticas entre grupos
familiares, constituindo-se então, como prática mais eficiente que endogamia
familiar. Essa troca de úteros e braços, acompanhados de dotes e outros bens,
simbólicos ou concretos, consiste num poderoso veículo de formação de
estruturas sócio-políticas.
Temos então que a proliferação das alianças parentais conduz, de modo
geral, à formação de uma identidade mais abrangente: a comunidade. O
transcorrer das gerações em convívio produz um efeito gregário que
potencializa os laços diretos. Basicamente o que fornece o amálgama é a
existência de antepassados comuns e de símbolos e crenças - freqüentemente
aprendidos desses antepassados - que também são partilhados pela maioria
dos membros da comunidade. O espaço físico entra nesta equação, não
apenas como seu continente, mas como espaço simbolicamente dividido e
carregado de representações.
Com os cativos de grandes escravarias pode ter se dado o mesmo.
Estavam compulsoriamente sujeitos ao convívio no mesmo espaço. Isso
significa dizer que estavam juntos, em alguns casos, por gerações tendendo a
formação de ancestrais comuns. As crenças católicas, sincréticas ou
africanas circulavam pelas vozes sussurradas nas senzalas ou bradadas dos
púlpitos, passando seus saberes de boca-em-boca e produzindo um conjunto
de práticas ritualísticas compartilhadas e cridas como sagradas por grande
parte dos indivíduos.
111
Como dissemos anteriormente, é possível que houvesse um caminho,
uma peregrinação pela qual os cativos passam na transição de aglomerado
para um conjunto orgânico de indivíduos comunitariamente agregados. Seu
primeiro passo, imaginamos, era a proliferação das alianças interpessoais e daí
a formação de micro-grupos dentro do espaço social de convívio. A existência
dessas micro-células familiares permite que haja uma interação entre
identidades de pertença diferenciadas como africanos e crioulo, nativos e
outsiders,... Por outros meios, chegamos novamente a conclusão de que a
base da comunidade estava, então, assentada na formação de parentesco,
condição primeira, mas não única nesta jornada. Vejamos o que podemos
descobrir sobre a formação de laços parentais entre as fazendas que
observamos até aqui.
Na tabela 5, temos o número de aparentados e de desarraigados em
cada uma das fazendas até aqui estudadas.
Tabela 5: Percentual de homens, mulheres, aparentados e desarraigados.
Fazendas
%
Homens
%
Mulheres
%
Aparentados
%
Desarraigados
Bocaina (1872) 58,4
41,6
80,5
19,5
Resgate (1872) 58,9
41,1
85
15
Engenho Novo da Pavuna
(1852)
52,8
47,2
95,8
4,2
Fazenda do Camorim (1864) 45,3
54,7
72,5
28,5
Real Fazenda de Santa Cruz
(1791)
45,4
54,6
98,9
1,1
Fontes: Matricula de Escravos de 1872 (constante do inventário post-mortem de
Manuel de Aguiar Vallim, de 1878); Inventário post-mortem Pascoal Cosme dos Reis,
1850-1852, Arquivo Nacional (RJ); Lista nominativa dos Escravos do Engenho do
Camorim (Códice 49) Arquivo do Mosteiro de São Bento (RJ); Inventário dos Escravos
da Real Fazenda de Santa Cruz, 1791, Arquivo Nacional (RJ).
112
É preciso que se diga que o que buscamos não é puramente uma
relação direta entre a proporção de mulheres e a proporção de arraigados. A
vida o funciona tão matematicamente assim. Mas o que buscamos aqui com
a proporção de mulheres é, como dissemos antes, a marca do tráfico, ou
melhor, a marca do grau de abandono do tráfico de cativos. Esse possível
abandono é o que provavelmente gera alguma estabilidade, que permite aos
desarraigados se integrarem. Esse movimento é o responsável pela queda de
tensão entre os outsiders e os estabelecidos,
68
fazendo com que o nível de
aparentados suba de quatro em cada cinco, por si bastante significativo,
para a quase totalidade dos presentes no plantel. Isso aponta para uma
tendência inclusiva na consecução de laços parentais.
O caso do Engenho do Camorim parece nos indicar que, se o tempo é
fator fundamental para que as alianças possam se multiplicar, um nível
populacional estável também o é. Muito embora, o que podemos estar
considerando como indivíduos isolados podem ser, na verdade, parentela de
uma das outras seis ou sete grandes fazendas dos beneditinos aqui no Rio de
Janeiro.
69
A possibilidade de que isso aconteça não é desprezível, já que
contíguas ao Camorim estavam as outras duas fazendas beneditinas de que
falamos - Vargem Grande e Vargem Pequena - e não muito longe dali, o
Mosteiro de São Bento, soberano em suas necessidades. De qualquer modo,
não fere a gica pensar que além de um tempo necessário para que um
68 ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor.2000. passim.
69 As principais são Vargem Grande, Vargem Pequena, Maricá, Campo Grande, Ilha do
Governador, Campos e Iguaçu.
113
conjunto de escravos possa se tornar um conjunto de famílias e daí, finalmente,
uma comunidade, haja necessidade de um quantum mínimo de população
estável através deste tempo.
Os estudos que tecemos acerca da Real Fazenda de Santa Cruz
indicam que, dadas condições, uma identidade comunitária pode ter vindo a
surgir, legitimando práticas e criando costumes. Costumes esses que foram
levados para além de Santa Cruz.
70
Talvez, tenha sido assim que os que foram
levados de para a feitoria do linho nhamo no sul da colônia, ao final do
século XVIII, passaram a ser conhecidos por priorizarem seus negócios, em
detrimento do linho de Sua Majestade.
71
De de Santa Cruz, temos fortes evidências de que os próprios cativos
se entendiam em um contexto próprio, não pelas suas condições
específicas, fazenda do Rei, mas pela formação social que puderam
desenvolver ao longo dos séculos de convivência. Divisão de heranças, partilha
do espaço social de habitação, circulação de sobrenomes, enfim toda uma
gama de indicadores de que os laços sociais haviam enfeixado quase todos os
habitantes de lá.
72
Se nosso percurso estiver correto, outras fazendas deverão confirmá-lo.
Para tanto, temos em mãos quatro fazendas de um mesmo dono,
provavelmente com uma mesma estratégia em sua administração. Trata-se,
então, da mesma dose de incentivo ou inibição de práticas como o casamento
70 ENGEMANN, Carlos. Os servos de Santo Inácio a serviço do Imperador. Dissertação de
Mestrado, Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p.138.
71 MORAES,Carlos de Souza. Feitoria do Linho Cânhamo: documentação inédita. Porto
Alegre: Parlenda. 1994. passim.
72 ENGEMANN, Carlos. Os servos de Santo Inácio a serviço do Imperador. Dissertação de
Mestrado, Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p.100.
114
e o compadrio. Destarte, podemos considerar a ação senhorial como
semelhante para os quatro plantéis do Barão de Santa Justa, um plantador de
café da província do Rio de Janeiro. Jacinto Alves Barbosa foi um dos maiores
plantadores de café da província, descendendo de Francisco Rodrigues Alves
Barbosa, patriarca de uma das primeiras famílias a ocupar a região. Após a
morte do Barão, em 1872, sua mulher podia ser vista com “trajes masculinos”
cavalgando “qual amazona bárbara” pelas suas fazendas.
73
As tabelas 6 e 7 reproduzem os números das populações cativas das
quatro fazendas em questão.
Tabela 6: Dados dos plantéis do Barão de Santa Justa (1872-1873)
Homens Mulheres Fazenda
Parentes
(%)
(#) (%) (#) (%)
Africanos
(%)
Locais
(%)
Trafico
interno (%)
Serra 32 93 87 14 13 36 42 22
São Fidélis 44 73 49 76 51 22 69 9
Santana 58 73 57 55 43 28 72 0
Santa Justa
69 90 55 73 44 14 80 6
Fonte: Inventário do Barão de Santa Justa (Jacinto Alves Barbosa), 1872-73.
Arquivo Nacional. RJ.
73 Informações obtidas em: http://www.jbcultura.com.br/cafe/bazao_heraldico13.htm
115
Tabela 7: Número de escravos totais e aparentados segundo a procedência
nas fazendas do Barão de Santa Justa (1872-73)
Locais Africanos Outras Províncias Fazenda
Total Aparentados
Total Aparentados
Total Aparentados
Serra 44 23 38 9 23 2
São Fidélis
95 51 34 12 3 0
Santana 91 52 36 22 0 0
Santa
Justa
129 96 23 13 6 2
Fonte: Inventário do Barão de Santa Justa (Jacinto Alves Barbosa), 1872-73.
Arquivo Nacional. RJ.
O que os dados estão a nos indicar é que além do tráfico atlântico, o
tráfico interno, intensificado após 1850, também produz outsiders. Dito de outro
modo, o apenas a diferenciação entre africanos e crioulos era sentida em
escravarias como essas, mas os recém-chegados de um modo geral, quer
sejam crioulos ou africanos, levavam um tempo até começarem a estabelecer
ligações interpessoais na ordem do parentesco. É possível que antigas
escaramuças observadas entre crioulos e africanos tenham sido, na verdade,
uma situação gerada entre estabelecidos e outsiders, mais condizente com
uma sociedade multi-cultural como a que vinha se formando. Dito de outro
modo, os africanos não sofriam uma resistência ou discriminação maior ou
menor por parte de seus companheiros de cativeiro pela específica razão de
serem africanos, visto que a ancestralidade de todos apontava para o outro
lado do Atlântico. O que pode ter sido observado em vários estudos
116
realizados é uma demanda por tempo de adaptação. Tempo esse, que pode
variar, provavelmente em acordo com a proporção de outsiders.
Voltando aos plantéis do Barão, talvez as pirâmides demográficas nos
ajudem a entender melhor as diferenças observadas nos quatro plantéis. Como
era de se esperar, a fazenda da Serra apresenta um perfil etário-sexual
condizente com a absorção de população. A massa de homens que viviam
dispunham de um número diminuto de mulheres para a obtenção de laços
maritais, e as que existiam eram, em sua maioria, mulheres no ocaso de sua
vida reprodutiva. Daí explica-se facilmente a pequenez da base da pirâmide.
A dilatação do lado masculino é tão acentuada que não se poderia
definir com precisão a sua última aquisição de braços cativos. Pelos dados das
tabelas 6 e 7 sabemos que 58% dos escravos desta fazenda são oriundos de
outras paragens. O que se pode estar observando é a mais recente aquisição
do Barão de Santa Justa, para as bandas de Monte Alegre. Na verdade, no
inventário do finado Barão esta é a única fazenda que tem sua localização
discriminada, talvez por ser a única com localização diversa.
Se assim for, a demanda por mão de obra neste momento poderia
explicar a desproporção tão radical entre homens e mulheres. Talvez o solo
inculto estaria consumindo o trabalho árduo da escravaria.
Ainda sem apresentar características de uma população em
rejuvenescimento, o plantel da fazenda São Fidélis insinua uma tendência ao
equilíbrio na distribuição etária, a não ser pela menor proporção de homens
entre 20 e 30 anos. Estariam eles trabalhando na fazenda da Serra?
Impossível dizer.
117
O perfil etário sexual dos cativos da fazenda Santana se revela um
mistério. Um índice de relações parentais comparativamente alto e uma
pirâmide etário-sexual tão esquálida. Salta aos olhos, porém, que quase vinte
por cento da população é composta de rapazotes entre quinze e vinte anos. O
fenômeno, até onde entendemos poderia ser explicado por um padrão de
compras estabelecido pelo Barão, e que, a exceção da fazenda da Serra,
parece ter funcionado para todas as demais.
Gráfico 8 : Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria da fazenda da Serra
(Barão de Santa Justa/1873)
-15 -10 -5 0 5
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fonte: Inventário do Barão de Santa Justa (Jacinto Alves Barbosa), 1872-73.
Arquivo Nacional. RJ.
118
Gráfico 9 : Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria da fazenda São Fidélis
(Barão de Santa Justa/1873)
-15 -10 -5 0 5 10 15
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens
Mulheres
Fonte: Inventário do Barão de Santa Justa (Jacinto Alves Barbosa), 1872-73.
Arquivo Nacional. RJ.
Gráfico 10 : Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria da fazenda de Santana
(Barão de Santa Justa/1873)
-20 -15 -10 -5 0 5 10
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fonte: Inventário do Barão de Santa Justa (Jacinto Alves Barbosa), 1872-73.
Arquivo Nacional. RJ.
119
Gráfico 11: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria da fazenda de Santa Justa
(Barão de Santa Justa/1873)
-10 -8 -6 -4 -2 0 2 4 6 8 10
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fonte: Inventário do Barão de Santa Justa (Jacinto Alves Barbosa), 1872-73.
Arquivo Nacional. RJ.
A fazenda de Santa Justa, que deu o nome ao título de seu proprietário,
também parece ter sido sua “menina dos olhos”. A conformação demográfica é
bastante peculiar, denunciando um crescimento endógeno posto em marcha
algumas gerações. Não obstante algumas variações aqui ou ali o quadro geral
da pirâmide é de um rejuvenescimento populacional. A pirâmide seria quase
perfeita não fosse o estrangulamento na faixa dos 30 aos 45 anos, fenômeno
observável em todas as pirâmides, é bom que se diga. Postulamos, por
hipótese, que a fazenda da Serra é mais recente,
74
São Fidélis e Santana são
intermediárias e Santa Justa foi a que deu origem a vida de grande cafeicultor
a Jacinto Alves Barbosa, 1º Barão de Santa Justa.
74 É possível que, como João Fragoso e Ana Lugão descobriram na região do Bananal, esta
aquisição tenha sido produto de pagamento de financiamentos fornecidos pelo Barão.
120
Se assim for, o evento que gerou a queda brusca da população de
homens e, em menor escala, de mulheres entre 30 e 45 anos de idade não
estaria num passado muito remoto. Das explicações possíveis poderíamos
ressaltar a alforria muito dificilmente atingiria níveis tão altos -, uma fuga em
massa desta faixa de população – também difícil de crer -, mortalidade elevada
muito seletiva para ser real -, ou algum problema financeiro que afligiu o
Barão, que para fazer caixa rapidamente vendeu seus escravos. Se esta última
afirmativa for a verdadeira, isto é, se realmente houve um momento de
descapitalização sanado com a venda de escravos que estavam entrando no
ocaso de sua produtividade, uma vez sanado o dito problema poderiam ter sido
adquiridos cativos na aurora de sua vida produtiva (em torno de quinze anos),
como vimos anteriormente. Aurora que lhes precedia um sol inclemente de
árduas tarefas.
Ainda que estas hipóteses não estejam plenamente corretas, mostram a
pujança da história particular de cada plantel para a construção e formação das
características de suas famílias, ou da ausência delas. Grosso modo, o que
podemos apreender da escravaria do senhor Barão é que o equilíbrio etário-
sexual não é o único fator na formação parental. Como mostra a tabela 4,
um razoável número de africanos aparentados em cada um dos plantéis. As
cifras variam de um terço de seu montante, na fazenda da Serra e na São
Fidélis, até pouco mais da metade dos cativos oriundos da África nas fazendas
Santa Justa e dois terços na Santana. Ao passo que os cativos vindos de
outras áreas da colônia não conseguiram obter parentes em mais de um terço
de suas ocorrências. Ao cabo de tudo, isso reforça a necessidade de haver um
121
tempo de convívio para que o parentesco possa incorporar os novos
elementos.
Com o fim do tráfico via Atlântico em 1850, é muito provável, deixando
de lado a hipótese do barão ter se metido num contrabando de cativos, que os
escravos africanos tenham chegado à fazenda bem antes dos de outras
províncias e, portanto, tenham mais de vinte anos de convívio com seus
companheiros locais. O tráfico interprovincial incrementado na segunda metade
do século dezenove trouxe, provavelmente mais tarde, os cativos de outras
províncias. Isso explica a diferença proporcional entre os aparentados em
acordo com a origem.
Para efeito de comparação, podemos tomar outras fazendas de fora do
sudeste, e até anteriores ao século XIX, que também nos mostram que esse
pode ser o caminho para o desenvolvimento de uma eventual comunidade
escrava, não apenas em um contexto isento de tráfico atlântico. Uma dessas é
a fazenda estatal venezuelana do Chuao. Na sua pirâmide etário-sexual quase
não é possível se distinguir os efeitos do tráfico. A reprodução é endógena
algum tempo e a população tem uma boa parcela de crianças e jovens. O seu
percentual de desarraigados é inferior a um por cento. De modo semelhante à
Santa Cruz, talvez por sua história igualmente semelhante, os ramos
relacionais da escravaria do Chuao tendeu a envolver os 300 habitantes que
foram contados em 1808.
75
75 FLORENTINO, Manolo, MACHADO, Cacilda e ENGEMANN, Carlos. “Entre o Geral e o
Singular”. in FLORENTINO, Manolo, MACHADO, Cacilda. Ensaios sobre a escravidão (I). Belo
Horizonte: Editora UFMG. 2003.
122
Em conformidade com tudo o que dissemos até aqui, o Chuao de 1671,
isto é, mais de 130 anos antes, apresentava uma configuração bastante
diferente. Sua população cativa somava um total de 111 habitantes, dos quais
54 eram homens e 57 mulheres. Seu relativo equilíbrio sexual está expresso no
gráfico 12, no qual ainda pode ser identificada uma possível conexão com o
tráfico na sua última coorte. Dessa população, 78% eram aparentados, índice
ainda inferior ao dos plantéis do Comendador Vallim.
Poderia se objetar que o Chuao de 1671, de 1768 e de 1808 eram
escravarias distintas e que suas pirâmides se referem a três realidades o
apenas separadas pelo tempo, mas desconexas entre si. No entanto, os mais
jovens de um inventário o identificados entre os mais idosos do inventário
seguinte, indicando uma tendência de permanência de uma base de cativos no
plantél, a bem de um ou outro percalço em sua história. Isto sugere que, de
fato, pouco mais de um século parece ter sido o tempo necessário para que a
população do Chuao pudesse desenvolver laços de parentesco tão amplos que
açambarcassem praticamente todos os seus cativos.
De modo semelhante, corrobora a nossa hipótese a estrutura etário-
sexual da estância argentina de San Miguel de Tucumán, tal como disposta no
gráfico 13. Trata-se de uma população em franco crescimento endógeno nos
idos de 1768. Sua proporção de arraigados é muito condizente com o equilíbrio
que se observa no pirâmide. Temos apenas um indivíduo sem parentela, um
único desarraigado. Pode-se até pensar em sub-informação, que esse único
caso configura menos de 0,8%.
123
É bem possível que estejamos diante de um processo que, dada a sua
recorrência, não seja caudatário apenas das concessões senhoriais, nem
somente das insídias escravas, mas da ordem da cultura. A comunidade
escrava pode apresentar o paroxismo de resultantes das diversas tensões com
as quais se aprende a viver e a partir das quais cria-se as referências de
humanidade.
Gráfico 12: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria da fazenda do Chuao
(1808).
-15 -10 -5 0 5 10 15
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fonte: Figueroa, Federico Brito. El Problema Tierra y Esclavos en la Historia
de Venezuela. Caracas, Universidad Central de Venezuela, 1996, pp. 101-
102, 106-109 e 119-128.
124
Gráfico 13: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria da fazenda do Chuao
(1671).
-15 -10 -5 0 5 10 15
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fonte: Figueroa, Federico Brito. El Problema Tierra y Esclavos en la Historia
de Venezuela. Caracas, Universidad Central de Venezuela, 1996, pp. 101-
102, 106-109 e 119-128.
Gráfico 14: Pirâmide etário-sexual (%) da escravaria de San Miguel de
Tucumán (1768).
-15 -10 -5 0 5 10 15
0 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 14 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 ou + anos
Homens Mulheres
Fonte: ANDRÉS-GALLEGO, José. “Esclavos de temporalidades (el
Tucumán, 1768): posibilidades de una fuente documental”. In: Revista de
História Eclesiástica – Hispania Sacra. N. 48. 1996.
125
Até aqui, estabelecemos a relação entre a configuração demográfica,
tempo de convívio e o surgimento de parentesco entre os escravos dos
grandes plantéis do sudeste oitocentista. Mas, com isso só arranhamos a
formação das famílias. Sabemos que o parentesco estava associado a padrões
comportamentais capazes de alterar significativamente a configuração
demográfica de uma comunidade escrava. Resta-nos tentar desvendar que
diferença faria ter ou não os laços familiares de que tratamos.
Para nos ajudar a desvendar algo dos meandros da família escrava,
tomamos dez dos grandes plantéis de produtores de café no Vale do Paraíba.
Antes do mais, trata-se de uma região de ocupação relativamente recente, o
que equivale dizer que as escravarias aqui analisadas também são de
formação recente. Talvez apenas uma ou duas gerações de senhores os viram
agregados como escravos da mesma fazenda. Isso, pois, nos leva a imaginar
que estamos diante dos primeiros estágios na formação destas comunidades e
destes senhores, enquanto senhores de grandes plantéis de cativos.
126
Tabela 8: Valores percentuais de escravos abrigados em famílias segundo a
tipologia básica – Sudeste brasileiro (1832-1873)
Proprietário
Solitários Nucleares Matrifocais Extensas Outras
Br. Sta. Justa - Faz. S. Justa (1872-73)
32.5 18 21.5 21.5 6.5
Br. Sta. Justa - Faz. Santana (1872-73)
43.4 12.4 19.4 24.8 0
Baronesa da Paraíba (1864)
49.5 13 11.8 23.2 2.5
Br. Sta. Justa - Faz. S. Fidélis (1872-73)
55.7 10.8 29.5 4.0 0
Barão de São Roque (1872)
56.8 4.5 34.5 4.2 0
Porcina de Paula Dias (1873)
60.3 0 27.8 9.5 2.4
Damazo José de Carvalho (1834)
64.6 33.4 2.0 0 0
Br. Sta. Justa - Faz. Serra (1872-73)
68.2 16.8 8.5 0 6.5
Manoel Joaquim de Oliveira (1832)
72.8 13.9 13.3 0 0
José Joaquim A. C. Branco (1839)
75 7.2 17.8 0 0
Fonte: Inventários post morten, Arquivo Navional, RJ.
Gráfico 15: Valores percentuais de escravos abrigados em famílias segundo a
tipologia básica – Sudeste brasileiro (1832-1873)
Fonte: Tabela 8
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
Br. Sta.
Justa (Faz.
S. Justa)
Br. Sta.
Justa (Faz.
Santana)
Baronesa da
Paraíba
Br. Sta.
Justa (Faz.
S. Fidélis)
Barão de
São Roque
Porcina de
Paula Dias
Damazo
Jode
Carvalho
Br. Sta.
Justa (Faz.
Serra)
M anoel
Joaquim de
Oliveira
Jo
Joaquim A.
C. Branco
Solitários Nucleares Matrifocais Extensas
Outras Linear (Solitários) Linear (Nucleares) Linear (Extensas)
127
Observando os dados apresentados pelo gráfico, é possível perceber
que quanto maior o percentual de escravos solitários, menor o percentual dos
abrigados em famílias extensas. Isso nos levaria a concluir que a agregação de
membros da comunidade se fazia via família extensa. Isto implicaria imaginar
que uma vez formada a base das famílias, as gerações fariam aprofundá-
las, agregando-lhes gerações. Seria fácil assim, se a tendência do percentual
de abrigados em famílias nucleares não fosse quase constante. Diante disso,
somos levados a pensar que enquanto algumas famílias nucleares iam se
complexificando e transformando-se em extensas, outras novas nucleares iam
se formando. Algumas destas novas nucleares, é factível supor, eram produtos
das extensas que se conectavam ou que forneciam novos membros para
formação de casais com os solitários.
É provável que algumas das famílias classificadas como matrifocais nos
inventários, onde estava assinalado apenas o vínculo entre a mãe e sua "cria",
sejam, de fato, famílias nucleares que não eram reconhecidas pelo
inventariante. Isso pode ter se dado para que a partilha não fosse dificultada,
visto que a segunda metade do século XIX contava com leis de proteção à
família escrava. A omissão dos pais e maridos poderia evitar transtornos na
hora de dividir o plantel.
De qualquer forma, o que a tipologia básica das famílias nos permite
observar é a dinâmica interna da propagação do parentesco que conduz a
formação da comunidade. A formação das unidades nucleares, corre
paralelamente ao praticamente universal fenômeno das famílias matrifocais,
gerando a base do parentesco. A proliferação deste, permite a formação das
128
famílias extensas, que representam um passo na complexificação das
estruturas parentais. A complexidade por certo não vem da mera existência,
mas da articulação e do reconhecimento desta articulação pelo entrono livre.
Esta última, certamente, é bem posterior à sua existência concreta.
129
3. Vestígios da Comunidade
A convenção e o manuseio de certos elementos, dentre os quais
mostramos que a família era fundamental, constitui a trajetória que conduz a
escravaria de bando
76
à comunidade. A mera junção dos cativos não os
transforma certamente numa comunidade, a vida comunal se constrói, isto é,
produz e reproduz, na medida em que certos saberes e fazeres são
compartilhados, aceitos e respeitados pelo conjunto de seus coabitantes. Isso
demanda o transcurso do tempo, que vai sedimentando vínculos, consolidando
práticas e estipulando rivalidades e dissensões. Neste devir histórico que é
próprio de cada organismo comunitário, tanto as solidariedades quanto as
desigualdades fazem parte do “fazer-se” inerente a ele. Sem as diferenças e,
portanto, sem as hierarquias não se constrói nem um clã. A igualdade plena
caracteriza, quiçá, a turbamulta, uniforme e inorgânica, por definição.
Nesta transformação de turba a grupo dotado de complexidade orgânica
existe muito mais do que a junção em esquadras, tão característica da
organização do trabalho nas plantations. Há, antes do mais, o parentesco,
76 Para usar a nomenclatura estipulada por FRAGOSO, J. Luis e RIOS, ANA M. Lugão. In
CASTRO, H. M. e SCHNOOR, E. Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro:
Topbooks. 1995. pp. 197-224.
130
organizador primeiro da vida social cativa.
77
o trabalho, não o
dispensado ao senhor e sob seu controle, mas também o que se consome em
seus próprios cuidados, este que dá origem às diferenças materiais e imateriais
entre os que partilham o amargo pão do cativeiro.
78
Há a manutenção da vida e
da qualidade da existência, assim como também há a relação com a morte, sua
freqüência e seu significado. os rituais compartilhados e as crenças
abraçadas, tanto quanto os saberes, que também criam diferenças. Enfim, uma
infinidade de elementos, ora partilhados, ora divididos, que permeiam as
vicissitudes da existência em comum.
Mas ainda mais. Cada comunidade cativa se relaciona com um
mundo externo ao seu. Esta simbiose com a sociedade que lhe abriga é feita
por vários canais: o seu próprio senhor ou administrador, a religião Católica, as
biroscas, o comércio de seus produtos. Ou seja, existem vários conectores que
ligam o aparentemente isolado mundo da plantation ao outro mais amplo.
Assim, com prontidão podemos abandonar a perspectiva de uma bolha
formada pela comunidade escrava, alheia e imune a tudo o mais que se passa
a sua volta. Menos ainda se sustenta a concepção de uma pureza cultural,
quer endógena, quer de África. Esses elementos preambulares, os quais
certamente houve, no transcurso da constituição da comunidade tiveram que
dialogar e mesmo disputar espaço nos corações e mentes dos homens de
77 Ver FLORENTINO, Manolo e GÓES, J. Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 1997.
78 Ver FRAGOSO, J. Luis e RIOS, ANA M. Lugão. “Um empresário brasileiro do oitocentos”.
In CASTRO, H. M. e SCHNOOR, E. Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro:
Topbooks. 1995. pp. 197-224.
131
peles negras com outras tradições que por aqui aportaram, com igual ou maior
pujança e eloqüência.
Talvez seja possível esquadrinhar alguns dos aspectos envolvidos nesta
jornada de recomposição social a que foram levadas as escravarias estudadas,
por tudo aquilo que é inerente à humanidade, a qual em nada lhes era alheio.
Se, como dissemos anteriormente, o tempo é um fator marcante na
criação e manejo de elementos que complexificam a comunidade escrava, é
possível que haja passos que pontuem a peregrinação da condição de
turbamulta à organicidade de uma vida comunal. Em verdade, o estado de
turba ou bando, é imaginário, inexistente no mundo real. Isso por que na
mesma medida em que o plantel é formado, a comunidade vai se constituindo,
concomitantemente. Os africanos portando suas heranças e tradições diversas,
como diversas eram suas origens, os crioulos adquiridos pelo tráfico
interprovincial, heranças ou hipotecas também eram portadores de práticas e
valores pré-definidos em seus antigos lugares. O que se dá, então, na
formação da comunidade é uma espécie de seasoning no qual os que chegam
vão se conformando ao que está moldado, ou melhor, está se moldando e
sendo permanentemente construído.
Para mapear um pouco do que pode ter constituído essa formação, no
caso específico do século XIX no Sudeste brasileiro, buscamos relatar alguns
instrumentos e as ambições neles envolvidas, ora fornecendo informações
conhecidas, ora acrescentando novas perspectivas e informações aos estudos
até aqui desenvolvidos.
132
Acrescentaremos aos plantéis trabalhados algumas das maiores
escravarias do Vale do Paraíba que foram reconstruídos via inventários. Assim,
estaremos trabalhando também com os plantéis dos seguintes grandes
proprietários: Barão de Piabanha, Barão de São Roque, Baronesa de Paraíba,
Com. João Corrêa Tavares, Damazo José de Carvalho, Inácio Pereira Nunes,
José Joaquim de Abreu Castelo Branco, Luíza Maria Assunção, Manoel
Joaquim de Oliveira, Maria Jacinto de Macedo e Porcina de Paula Dias.
79
Por meio das informações constantes nestes inventários, tentaremos
buscar alguns dos elementos constitutivos das comunidades cativas que,
supomos, se estabeleceram lá. Obviamente, muitos destes elementos foram
localizados em outros estudos, estaremos então analisando o seu papel nestes
inventários específicos e a sua participação na formação dos vínculos
interpessoais que transformaram escravarias em comunidades.
79 Agradecemos profundamente a generosidade do Prof. Dr. Manolo Florentino e da Profa.
Dra. Ana Lugão pela concessão de dados para os nossos estudos.
133
. Batismo:
A pia batismal é um dos espaços mais loquazes que se possa citar na
formação de laços de solidariedade. Trata-se, de fato, de um outro meio de se
conquistar aparentados, instituindo um rito que sanciona formalmente uma
aliança forjada anteriormente. O compadrio na sociedade luso-brasileira
funcionou como um desses mecanismos de aparentar, constituindo alianças
desejadas por ambas as partes, pais e padrinhos, e estendida a uma terceira
parte, o batizado.
O caso é que dispomos de alguns dados sobre os batismos dos
escravos em algumas das fazendas que analisamos, ainda que não
necessariamente para o período da respectiva lista nominal. É o que ocorre
com registros de batismo da Matriz de Nossa Senhora do Loreto à qual o
Engenho do Camorim estava adscrito. Por seus registros, podemos ver que
vários padrinhos dos filhos escravos do Camorim são de outras escravarias.
Sendo o compadrio uma forma de firmar alianças de solidariedade, ou seja, de
constituir uma parentela que não é de sangue, o que vemos surgir das pilhas
de papel velho e mal conservado do arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de
Janeiro, é uma rede ampla de relações solidárias e de parentesco forjadas
entre as bênçãos que emanaram da pia batismal.
134
É o caso de Daloninda, filha legítima de Angélica Parda, nascida em
1796 e batizada na Matriz de Nossa Senhora do Loreto. Seu padrinho era o
escravo José Pedro, de propriedade de Ângela dos Anjos, moradora dos
arredores. O mesmo se deu com Antônio, filho de Domingas, a quem se
concedeu a graça do batismo no mesmo ano. Ocorre que no caso de Antônio
temos algumas outras particularidades. Primeiro, sua madrinha era uma
escrava detentora de um sobrenome, o que a destacava dos demais. Joana
Rodrigues, escrava dos beneditinos, sabe-se por que caminhos nas veredas
da escravidão, logrou ostentar o digno sobrenome Rodrigues, algo não muito
comum entre seus pares. Além disso, o padrinho de Antônio era Albano Pardo,
escravo de ninguém menos que o Visconde de Asseca, proprietário de um
engenho a alguns quilômetros do Camorim. No momento, podemos
imaginar um espaço de congraçamento entre escravos que moravam tão
distantes uns dos outros: a igreja. Quer na Capela de São Gonçalo do
Amarante, no próprio Engenho do Camorim, quer na Matriz do Loreto, esses
cativos teciam uma vida social, muito provavelmente, a partir do espaço de
convívio da cristandade colonial.
80
Talvez o mesmo tenha acontecido com Joana, filha ilegítima de Ana,
escrava de um certo Manoel Pereira, senhor de muitos dos escravos
registrados no Loreto como moradores do tio do Camorim, onde talvez fosse
foreiro. Ana foi apadrinhada por Antônio, escravo de Pascoal Cosme dos Reis.
De fato, nos registros que dispomos, dos inventários post-mortem e dos óbitos,
80 A mobilidade de obter padrinhos em plantéis diferentes também foi detectada por J. R. Góes
em seu trabalho sobre a freguesia de Inhaúma. GÓES, J. Roberto. “Cordeiros de Deus: tráfico,
demografia e política no destino dos escravos” in :PAMPLONA, Marcos A. (org.). Escravidão,
Exclusão e Cidadania. Rio de Janeiro:Access. 2001.
135
casamentos e batismos dos escravos do Engenho Novo da Pavuna,
descobrimos sete antônios, dos quais cinco deles teriam idade para serem
padrinhos de Joana em 1817. Dentre eles, um Antônio, de cerca de 50 anos na
época do batismo, era casado com uma certa Joana. Apesar de não termos
condições de afirmar com certeza, tenta-nos dizer que este é o dito Antônio
padrinho e que a Joana do Camorim recebeu o nome em honra da falecida
esposa de Antônio. É terreno instável demais.
81
De igual modo, outros cativos de Pascoal Cosme dos Reis parecem ter
gozado da mesma possibilidade de circulação. Dos 62 registros de batismo de
que dispomos, pelo menos treze, isto é, mais de um terço, tem padrinhos de
outras propriedades, inclusive dos vizinhos do Engenho de Camorim. Foi o que
se viu no batizado de Eustáquia, em 1820. A filha legítima de Caridade e
Candido foi apadrinhada por João e Thereza, ambos cativos do Camorim, que
desafortunadamente não constam na lista de 1864.
Mas os registros disponíveis podem nos revelar ainda mais sobre a
dinâmica social neste tipo específico de propriedade. Apesar de intempéries
que podiam gerar uma forte oscilação quanto à natalidade, os registros de
batismos dos escravos dos maiores proprietários de escravos do Vale do
Paraíba - a rigor, aqueles com mais de cem cativos - nos revelam um
movimento de crescimento da natalidade. Excetuando-se o caso de sub-
81 Sobre a política do compadrio escravo ver: GOLDSCHMIDT, Eliana Maria R. “Compadrio de
escravos em São Paulo colonial”, in: Anais da 8a Reunião Anual da SBPH. São Paulo, SBPH,
p. 81-3, 1989. NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Ampliando a familia escrava:
compadrio de escravos em São Paulo do século XIX”, in: MARCILIO, Maria Luiza et alii (org.).
História e população: estudos sobre a América Latina. São Paulo, Fundação SEADE/ ABEP/
IUSSP/ CELADE, 1990, p. 237-243. LUGÃO, A. M. The politic of kinship - compadrio Among
Slaves in Nineteenth-Century Brazil. In THE HISTORY OF THE FAMILY. Volume 5, Number 3,
pages 287–298.
136
numeração, o que se apresenta nos conjuntos mais completos e amplos de
batismos que possuímos é um aumento na freqüência média de batismos, aqui
tomada como freqüência de nascimentos.
Tabela 9: Número de Batismos e Média Anual de Batismos dos Escravos dos
Maiores Proprietários por Período no Vale do Paraíba (1871-1886).
Período
Número de Batismos Média Anual
1871-1875 29 5,8
1876-1880 35 7
1880-1886 60 10
Total 124 7,8
Fonte Livro de Batismos da Matriz de São Pedro e São Paulo
Gráfico 16: Média Anual de Batismos dos Escravos dos Maiores Proprietários
por Período no Vale do Paraíba (1871-1886).
0
2
4
6
8
10
12
1871-1875 1876-1880 1880-1886
F
onte: Tabela 9
Contas feitas, percebemos que em 124 registros uma clara tendência
ao crescimento do número de cativos que conduzem seus rebentos à Pia. Se
tomarmos esse volume como um espelho da natalidade, teremos, nos plantéis
em estudo, uma alta geral da natalidade. Movimento que condiz plenamente
137
com a idéia que vínhamos traçando até aqui: a comunidade tende a se
reproduzir, progressivamente, mais por vias internas do que pelo ingresso de
estrangeiros. Ganha o senhor, que recorre menos vezes à compra de cativos;
ganha o conjunto social, com menor quantidade de estrangeiros e, por
conseguinte, menor tensão social.
82
Possuímos ainda, um outro conjunto de batismos, também referentes a
região do Vale do Paraíba. Trata-se dos batismos especificamente da
escravaria do Comendador Vallim, aos quais nos referimos antes. No que
tange ao progresso do incremento de rebentos batizados, os dados confirmam
a mesma tendência. Na tabela que segue, podemos observar esta evolução
em décadas.
Tabela 10: Número de Batismos e Média Anual de Batismos por Período dos
Escravos do Comendador Vallim (1831-1870).
Período Número de Batismos Média Anual
1831-1840 81 8,1
1841-1850 71 7,1
1851-1860 163 16,3
1861-1870 218 21,8
Total 533 13,3
Fonte Livro de Batismos de Escravos do Bananal.
82 FLORENTINO, Manolo e GÓES, J. Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 1997. passim.
138
Gráfico 16: Média Anual de Batismos por Período dos Escravos do
Comendador Vallim (1831-1870).
0
5
10
15
20
25
1831-1840 1841-1850 1851-1860 1861-1870
Fonte: Tabela 10
Mesmo com insuspeitas pirâmides demográficas, a tendência de
natalidade nos plantéis do senhor Vallim vem crescendo desde os anos de
1830 até a época das listas de matrícula em 1872. Entre 1841 e 1850, um
declínio de um ponto na média, mas de um modo geral progressivamente o
Comendador poderia cada vez mais cogitar o abandono do tráfico de escravos.
Tanto na pirâmide etário-sexual da fazenda Resgate, como na da Fazenda
Bocaina, o que se é um indicativo de ingresso de população masculina
cerca de 18 ou 20 anos atrás, talvez um pouco mais, em 1850, quando da Lei
Euzébio de Queiróz. Considerando o gráfico dos batismos, percebe-se que
desta última compra em diante, o número de batizados vem subindo
progressivamente, tendo mais que dobrado em relação a 1841-1850 e
chegando a mais do triplo em relação a esse mesmo período. O que este tipo
de quadro nos enseja a pensar é que o incremento populacional interno
139
poderia preceder a formação de um contexto onde os outros índices de
organização e enraizamento social viriam a se reproduzir.
140
. Matrimônios e Moradia:
Paralelamente, como era de se esperar em se tratando de uma
comunidade em expansão, o número de matrimônios registrados também
obedece a uma tendência geral de crescimento. Isso tende a nos indicar que,
pelo menos nos plantéis do Comendador, a maternidade era razoavelmente
acompanhada do matrimônio. Para além de regras de moral, o que se observa
aqui é a multiplicação dos mecanismos de aliança intra-cativeiro.
Tabela 11: Freqüências e Medias Anuais de matrimônios na Escravaria do
Comendador Vallim (1850-1864)
Períodos Freqüência Média Anual
1850-1854 29 5,8
1855-1859 32 6,4
1860-1864 14 2,8
1865-1867 27 9
Fonte: Livro de Matrimônio de Escravos do Bananal.
141
Gráfico 18: Freqüências e Medias Anuais de matrimônios na Escravaria do
Comendador Vallim (1850-1864)
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
1850-1854 1855-1859 1860-1864 1865-1867
Média Anual Linear (Média Anual)
Fonte: Tabela 11
Embora o período de 1860 a 1864 tenha sido particularmente avarento
em matrimônios sancionados pela Igreja, a tendência geral é de um
progressivo aumento. Poderíamos explicar tal aumento apenas como fruto das
mudanças na população? Parece que não. Principalmente se observarmos o
perfil demográfico das fazendas do Comendador, muito semelhantes entre si. É
necessário imaginar que mais do que demograficamente, politicamente e
culturalmente a população está sofrendo alterações. Talvez como parte da
trajetória de grande escravaria à comunidade.
Isso expressa que a circulação e a eventual sanção normativa da Igreja
eram uma extensão do que estava se construindo dentro do espaço
delimitado da escravidão. Do ponto de vista domiciliar, é certo que este poderia
estar dividido de diversas formas. No caso das grandes escravarias, onde o
número de cativos excede ao que se poderia imaginar confinado num galpão
142
comum, indícios diretos em pelo menos três listas da existência de
domicílios ou senzalas familiares.
As unidades domiciliares de que falamos são, a bem da verdade,
pequenos edifícios ou subdivisões de edifícios maiores. Robert Slenes
apresenta um bem fundamentado estudo sobre as formas das senzalas em Na
Senzala Uma Flor.
83
Neste trabalho, Slenes mostra duas modalidades básicas
de senzalas: uma em forma de galpão (figuras 1 e 2), dividida em cubículos, e
outra como cabanas individuais (figuras 3 e 4). Em linhas gerais, o que se
constata é que o mais comum era os solteiros ocupando em conjunto os
cubículos de uma senzala-galpão e os casados compartilhando um cubículo ou
desfrutando de sua própria cabana. Por si esta constatação nos indica
uma diferenciação no seio das escravarias visitadas pelos viajantes
consultados por Slanes. Os casados seriam donos de um quinhão de
privacidade, em geral negado aos solteiros. Ainda que exíguo, este tipo de
posse, certamente fazia diferença.
A forma dos domicílios parece ter se estabelecido na junção das culturas
vindas da África com os padrões luso brasileiros. Alguns autores, como R.
Slenes identificaram, em figuras como a Habitação de Negro de Rugendas,
padrões africanos de construção, tais como a ausência de janelas e o fogo
dentro da casa. No entanto, limites no uso de padrões africanos de
construção. Alberto da Costa e Silva, nos chama a atenção pela ausência de
senzalas circulares, formato comum para moradia nas áreas fornecedoras de
83 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1999.
passim.
143
escravos.
84
Uma das possíveis explicações para essa ausência seria a
reduzida exportação de artesãos para o Brasil. Sendo indivíduos valorizados,
uma vez capturados, seriam retidos pelos seus captores, não sendo destinados
para o tráfico.
Quanto às construções de senzalas nas propriedades que estudamos,
temos para o caso da Real Fazenda de Santa Cruz um registro iconográfico
deixado por Jean-Baptiste Debret. Embora este não seja muito claro, a
impressão que se tem é de que as cabanas eram a habitação mais
freqüente. Os escritos sobre a fazenda, que freqüentemente se referem a "vila
dos escravos" ou “às cabanas dos escravos”, também apontam nesta mesma
direção, assim como o relato de Serafim Leite. Segundo este autor, quando da
expulsão dos jesuítas, havia em Santa Cruz cerca de trezentas e sessenta
moradias de dois tipos diferentes: taipa e alvenaria.
85
Quanto ao Camorim, alguns documentos no Mosteiro de São Bento
indicam que as senzalas eram familiares, sem no entanto nos permitir saber o
modelo. O mesmo ocorre com a fazenda do Chuao, que indica o número da
senzala na lista nominativa.
Em outras propriedades dava-se um fenômeno deveras semelhante. A
avaliação feita das senzalas quando da constituição dos inventários nos
84 SILVA, A. da Costa. Um rio chamado Atlântico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2004. pp.
215-224.
85 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jasus no Brasil. Tomo VI. Rio d Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1945. pp. 59
144
permitem saber, para alguns casos, o número de lances de senzalas e o valor
de cada lance.
86
Vejamos o que nos sugerem estas informações.
Tabela 12: Percentual de Escravos Aparentados, Número de Valores
Atribuídos aos Lances Senzalas e Media de Escravos por Lance de Senzala
(1862-1873).
Proprietário
%
Aparentados
Número
de
valores
para os
lances
de
senzalas
Número
de lances
de
senzalas
Média de
escravos
por
senzalas
Barão de Piabanha (1869)
16,8 1 14 10,2
Com. João Corrêa Tavares (1873)
17 1 27 16,5
Manoel Joaquim de Oliveira (1862)
27,2 2 18 8,8
Barão de S. Justa - Faz. da Serra (1872-73)
31,8 1 17 6,3
Porcina de Paula Dias (1873)
45 2 10 12,6
Baronesa de Paraíba (1873)
50,5 3 44 8,8
Barão de S. Justa - Faz. S. Fidélis (1872-73)
58 2 59 2,5
Barão de S. Justa - Faz. Santana (1872-73)
58 3 19 6,7
Barão de S. Justa - Faz. S. Justa (1872-73)
68,3 4 61 2,6
Fonte: Inventários post morten, Arquivo Navional, RJ.
86 O lance de senzalas é um conjunto de moradias construídas a partir da subdivisão de um
mesmo prédio. Cf. Figura 1.
145
Gráfico 19: Percentual de Escravos Aparentados e Media de Escravos por
Lance de Senzala (1862-1873).
0
10
20
30
40
50
60
70
80
Barão de
Piabanha
Com. João
Corrêa
Tavares
Manoel
Joaquim de
Oliveira
Barão de S.
Justa (Faz. da
Serra)
Porcina de
Paula Dias
Baronesa de
Paraíba
Barão de S.
Justa (Faz. S.
Fidélis)
Barão de S.
Justa (Faz.
Santana)
Barão de S.
Justa (Faz. S.
Justa)
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
%Aparentados
Média de escravos por senzalas
Linear (%Aparentados)
Linear (Média de escravos por senzalas)
Fonte: Tabela 12
O que os dados expostos anteriormente podem estar indicando não diz
respeito a um “conforto” relativo para os cativos. Não conhecemos o tamanho
de cada lance de senzala para compará-los entre si e avaliar o espaço por
escravo como um índice de qualidade de vida. O que se busca aqui é uma
noção do uso de certa privacidade entre os cativos. Na medida em que o
número deles por lance de senzala era menor, apresentava-se uma indicação
de qualidade de vida, não pelo espaço possuído, mas pelo espaço dividido.
Dito de outro modo, nesse caso a qualidade de vida cresce não pela
quantidade de espaço disponível algo impossível de se avaliar até o
momento mas pelo ganho no convívio seletivo. Nos casos mais extremos, a
146
média de co-habitantes não chega a três por lance, o que daria uma mãe e
seus dois filhos ou um casal com um filho. Mesmo os que não possuíam este
tipo de vínculo, dividiam o espaço de sua convivência com um número menor
de companheiros, lhes facultando um grau um pouco maior de “privacidade”.
De qualquer modo, sendo este espaço, ainda que diminuto, um âmbito
privado, em certo sentido se constituía como uma fronteira para o cativeiro que
se mantinha confinado do lado de fora. Se realmente, os cativos destas
comunidades gozavam de certo espaço, a casa, "domus" do cativo, seria um
bem, tanto do ponto de vista concreto quanto do simbólico, da maior
importância. O que estes dados permitem é vislumbrar um espaço físico ainda
que diminuto sob posse dos escravos. Se, por hipótese, os senhores se
dispuserem a consentir na construção e na manutenção dessas unidades para
conter a tensão, reduzir a possibilidade de conspiração, refrear a putativa
promiscuidade, ou qualquer motivo semelhante, numa escravaria de maior
porte o tal motivo será ainda mais pungente.
Mas não é apenas isso. Se por um lado a posse de um domicílio, ainda
que com todas as suas limitações poderia ensejar um desejo em se constituir
família, talvez pudesse também promover diferenças entre elas. Se
observarmos o número de valores diferentes atribuídos aos diferentes lances
de senzalas poderemos perceber que nem sempre havia uniformidade.
O gráfico 20 nos permite entrever um curioso quadro. Quanto maior o
percentual de aparentados, maior tendia a ser o número de “tipos” de senzalas.
Explicamo-nos: um dos itens do inventário era o valor de cada lance de
senzalas, ou melhor, de cada grupo de lances de senzalas. Por esta
147
informação é possível perceber que eles podiam ser agrupados segundo sua
avaliação de valor. Se imaginarmos que isso se traduzia num conjunto de
atributos tais como estado de conservação, complexidade da construção,
materiais utilizados, enfim, estado material, estaremos diante de mais um
diferencial intracativeiro. Se levarmos às últimas conseqüências, estaremos
falando de escravos mais ricos e, portanto, de outros mais pobres. Pode
parecer absurdo, mas convém lembrar que em Santa Cruz uma família de
escravos possuía dois escravos.
Sabendo que o volume da amostragem é de pequena monta, arriscamos
apenas a supor que essa diferenciação poderia se instaurar, dentre outros
fatores, pela qualidade, ou estado material, da moradia que se habitava. O que
estamos postulando como emergente das informações que sacamos desse
conjunto de inventários é que a qualidade da moradia refletia o status do cativo
entre seus pares. Como, ademais, se dá em qualquer outro lugar.
Desta sorte, a complexificação progressiva das comunidades cativas
proporcionavam espaço individual e hierarquização pela posse e administração
deste espaço. O estranho é que a comunidade favorecia o acesso a um espaço
diferenciado do espaço comunitário, provendo alguns cativos mais afortunados
de um bem, em geral, inerente aos que o padecem do infortúnio da
escravidão: a privacidade.
148
Gráfico 20: Percentual de Escravos Aparentados, Número de Valores
Atribuídos aos Lances Senzalas (1862-1873).
0
10
20
30
40
50
60
70
80
Barão de
Piabanha
Com. João
Corrêa Tavares
Manoel
Joaquim de
Oliveira
Barão de S.
Justa (Faz. da
Serra)
Porcina de
Paula Dias
Baronesa de
Paraíba
Barão de S.
Justa (Faz. S.
Fidélis)
Barão de S.
Justa (Faz.
Santana)
Barão de S.
Justa (Faz. S.
Justa)
0
1
2
3
4
5
Número de valores para os lances de senzalas
%Aparentados
Potência (%Aparentados)
Potência (Número de valores para os lances de senzalas)
Fonte: Tabela 9
149
Figura 1
“Antes da partida para a roça”, litografia de V. Frond. In: Charles Ribeyrolles.
Brasil Pitoresco. Rio de Janeiro: Typografia Nacional. 1859.
Figura 2
Foto de antiga senzala em uma fazenda – Marambaia/RJ
150
Figura 3
“Habitação dos Negros”, in RUGENDAS, Johann Moritz. Malerische Reise in
Brasilien. Paris: Engelmann & Cie. 1835 4ª divisão, prancha 5, s/p.
Figura 4
Jean-Baptiste Debret. “Fazenda dse Santa Cruz” (1823? 1818?). In Voyage
pitoresque et historique au Brésil. v. 3. Paris, 1834.
151
Como exemplos dessa diversidade das habitações, podemos citar
alguns relatos iconográficos que revelam os tipos de habitações aos quais nos
referimos anteriormente. Na figura 1, o que se observa é o que R. Slenes
chamou de senzala-pavilhão, uma construção dividida em cubículos que, se
calcularmos o indivíduo de a sua porta com algo em torno de 1,6m a 1,7m
de altura, teriam mais ou menos 3m de largura. Segundo os relatos
apresentados pelo autor, poderiam coabitar um cubículo deste uma família ou
um grupo de 3 a 6 indivíduos solteiros, homens e mulheres separados.
87
A
figura 2 mostra uma outra construção deste tipo, em seu estado atual.
Nas figuras 3 e 4 o que se é bastante diferente. Na primeira, uma
reunião de cativos em frente a um casebre de taipa coberto de ramos. Uma
construção rústica e simples, se comparada a profusão de domicílios retratados
por Debret na fazenda Santa Cruz. Esta é diversidade que foi registrada por
Serafim Leite, quando descreveu o momento do seqüestro.
87 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1999.
passim.
152
. Acesso a Terra e Trabalho:
O volume populacional que é força de trabalho para o senhor, poderia
ser força de negociação para os cativos. fortes indícios também sobre a
concessão de pequenos lotes de terra para a manutenção dos cativos dessas
grandes fazendas. Mais que benevolência e generosidade, um corte robusto
nos custos da fazenda e um tratado de paz entre senhores e escravos. Para
além das nossas fontes, diretamente Santa Cruz e Camorim, outros contextos
falam deste artifício. Para o Sudeste do século XIX, temos informações
bastante sugestivas deixadas pelo barão de Pati do Alferes.
88
Em seu livreto, o
barão deixa clara a existência, e mais, a necessidade da concessão de terras,
sob pena de exaltar os ânimos dos cativos. Esta nesga de economia
autônoma - quer pela negociação, quer pelo temor de um conflito - era sem
dúvida comum e usual. De tal modo, que o cativo passava a dispor de um lote
de terra, de uma vida econômica com alguma independência e de domínio
sobre uma parte, ainda que exígua, de seu tempo.
Por outro lado, o preço que os cativos pagavam pelas estratégias de
seus donos mostra que mesmo os senhores tidos como mais benevolentes
podiam onerar pesadamente a sua escravaria. Vejamos o caso das fazendas
religiosas e estatais. Ocorre que nestes plantéis aparece um tipo de família que
88 Apud. REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Cia. das Letras. 1989. pp. 22-30.
153
não é encontrado na administração de senhores privados laicos: a família
partida.
Santa Cruz, graças a grande quantidade de informações disponíveis,
pode ser pormenorizadamente analisada. Mesmo sendo produto das mãos
jesuítas, que certamente a marcaram com seu estilo próprio de trato, é preciso
que se diga que a principal atividade da Fazenda de Santa Cruz era a pecuária.
Quando os padres foram expulsos contava com mais de dez mil cabeças, não
obstante houvesse cana, feijão, arroz,... Ao contrário do que apurou Eugene
Genovese
89
para o sul dos Estados Unidos, onde a negligência e os maus-
tratos dos negros foram apontados como um dos responsáveis pela ruína da
pecuária sulista; em Santa Cruz os escravos campeiros eram relativamente
eficientes. Na fazenda, o gado havia se multiplicado sob o cuidado dos
campeiros negros e sua ruína foi atribuída ao desleixo dos administradores,
alguns interessados em desmembrar a fazenda.
Certamente a primazia desta atividade se refletiu na constituição original
do plantel de escravos, definindo um trabalho muito menos árduo do que a
colheita de cana ou algodão, por exemplo. No entanto, dado o porte da
propriedade e o fato de ser pública, acreditamos que o predomínio da pecuária
tenha decrescido razoavelmente durante a administração real.
Em que, então, uma escravatura tão extensa se ocuparia? Sabemos que
não estavam apenas a serviço de Sua Majestade e seus administradores, mas
também tinham seus próprios interesses para cuidar. O relatório do Deputado
89 GENOVESE, Eugene. A economia política da escravidão. Rio de Janeiro: Pallas. 1976. pp.
95-107.
154
Rafael de Carvalho
90
afirma que os cativos detinham lotes de terra bem
consideráveis e que deles tiravam bons rendimentos, que os cultivavam nos
sábados, domingos e dias santificados, ou seja, uma boa parte do ano. o
trocaram essa regalia por outra, como o fornecimento das vestimentas. Alguns
investiam ainda mais. Nos mapas da ocupação da escravatura da Imperial
Fazenda de Santa Cruz, do Arquivo do Museu Imperial, constam, entre 1855 e
1858, de 5 a 20 escravos alugados a si.
91
Ou seja, pagavam para trabalhar nas
suas próprias ocupações, obviamente mais rentáveis que os jornais pagos à
fazenda.
Temos na Biblioteca Nacional um relatório datado de 1815, que ilustra
de modo geral em que se ocupavam os escravos da Fazenda. Neste relatório
figuram apenas os cativos que se encontram na Fazenda sem contar os de sua
propriedade deslocados para outras labutas. Seu conteúdo está expresso no
Anexo 2.1.
Esta lista impressiona não apenas pelas minúcias, mas principalmente
pela idéia de auto-suficiência que ela é capaz de gerar. Santa Cruz
aparentemente produzia praticamente tudo o que necessitava e era
plenamente capaz de cuidar dos seus. A existência de cirurgiões, enfermeiros,
amas, parteiras,... revela que os cativos eram como que amparados pela
administração, provavelmente para que tivessem plenas condições de
trabalhar, mas é possível que isso também fizesse parte da face humanitária
90 Resolução nº 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho membro da
Comissão das Contas do Tutor de S. M. e AA. Imperiais (I-PAN-14.8.837-Car.rs - Arquivo do
Museu Imperial de Petrópolis - R. J.).
91 Mapas da ocupação da escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz, para os anos de
1855, 1856 e 1858. Arquivo do Museu Imperial. Petrópolis.
155
do trato estatal com os cativos. Estado civilizado, escravos bem tratados. Ao
mesmo tempo, é de se notar que apenas 34 escravos estão destacados para
aquela que tradicionalmente era tida como atividade principal da Fazenda: a
pecuária. Os 26 homens, auxiliados por 8 rapazes, aparentemente podiam
cuidar dos milhares de cabeças de gado criadas ali.
Se fizermos um cálculo duro de produtividade, teremos cerca de 5,5%
de investimento de trabalho na atividade-fim contra um absurdo índice de
94,5% de investimento de força potencialmente produtiva em atividades outras.
Não que os pastos tenham chegado ao seu limite de produtividade, muito pelo
contrário, continham menos de 2/3 das cabeças de gado deixadas pelos
jesuítas.
Ora, poderia a fazenda ter deslocado o seu centro de atividades da
criação ao cultivo? Toda a sua existência está ligada à pecuária e ao abate
como principal meio para gerar rendimentos e até recentemente era conhecida
como Abatedouro Nacional. Além disso, discriminados em atividades agrícolas,
encontram-se apenas 18 escravos, menos de 3% do potencial de mão-de-obra.
Se acrescentarmos a esses as 11 mulheres da colheita de mamona, teremos
29 cativos, menos de 5%.
Associando as duas atividades presumíveis de uma fazenda, agricultura
e pecuária, não ocuparíamos 10% da escravaria. Índice muito inferior aos
expressos por Herber S. Klein, quer para o Brasil, quer para o Caribe, tanto no
cultivo da cana quanto do café.
92
Isso poderia ser explicável pelo período do
ano em que a lista foi montada. Caso não se tratasse do período de plantio
92 KLEIN, Herbert S. Escravidão na América Latina e Caribe. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1987.
passim.
156
nem do de colheita, os escravos da lavoura poderiam estar ociosos. Essa
hipótese é plausível considerando-se os 243 escravos ditos “a dispor
diariamente”, que representam algo em torno de 40% da capacidade de
trabalho da escravaria, mesmo não sendo certo que seus labores estivessem
ligados à agricultura ou à pecuária. Mas ainda assim, somando tudo teríamos
no máximo 50% dos escravos com potencial de trabalho sendo possivelmente
destinados às atividades econômicas primárias.
Com isso fica mais ou menos claro que a Fazenda durante a sua
administração pública, foi progressivamente descaracterizada como unidade
produtiva nos moldes tradicionais, para se acrescentar aos seus produtos
outras fontes de lucros indiretos. É o que constata Manoel Martins do Couto
Reys
93
conforme descrito em suas memórias, e a presença de um elevado
número de escravos especializados o confirma. Entre os homens, o índice de
especialização é de 40%, contando os carpinteiros, pedreiros, ferreiros,
sapateiros, curtidores, manteigueiros, tecelões, oleiros, e os aprendizes que
com eles trabalhavam.
94
Estariam todos eles envolvidos apenas na
manutenção da enorme estrutura da fazenda?
Seria difícil imaginá-lo. Na relação dos 17 escravos pertencentes à
Imperial Fazenda de Santa Cruz e destacados para a feitoria de Santarém em
troca dos escravos pertencentes ao inventário da mesma feitoria que se acham
93 REYS, Manoel Martins do Couto. “Memórias de Santa Cruz”. In Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Tomo V. 1843. p. 152.
94 Klein afirma que os índices de especialização podem chegar a 30%, em média. No entanto,
chama-nos a atenção para a formação duvidosa desta mão-de-obra. KLEIN, Herbert S.
Escravidão na América Latina e Caribe. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1987.
157
destacados para a Quinta da Boa Vista, encontram-se nada menos do que 7
especializados. São dois carpinteiros, três pedreiros, um oleiro e um curtidor.
Então temos que em Santa Cruz, um elevado percentual de sua
escravaria detinha algum conhecimento profissional e esses cativos, tanto
quanto os o qualificados eram destacados para suprir as demandas por
mão-de-obra. É possível que o plano de Couto Reys tenha sido posto em
prática. Dizia ele:
Com estas considerações, tantas vezes conferidas e analysadas na
minha memória, me pareceu que, entre tantos artigos de que
recordava, dois mereciam uma particular attenção para serem
adoptados, e seriam bem aceitos na justiça dos gênios cordados
imperiais. O primeiro, a educação de um certo número de rapazes
escravos, mais geitosos, e de provada habilidade, applicando-os a
ofícios mecanicos, debaixo da doutrina, e insinuação de bons
mestres, formando com este expediente um congregado de hábeis
carpinteiros da ribeira e obra branca, de calafates e tanoeiros, de
ferreiros e serralheiros, de pedreiros, caboqueiros, &c., para se
occuparem indefectivelmente nas obras reaes, como nos arsenaes,
trem, e casa de armas: cujos jornaes avultadissimos, em que a
fazenda real faz annualmente consideráveis despezas, ficando nos
cofres do Erário, eram consequente e indubitável rendimento da
fazenda de Santa Cruz, que entraria na conta de seus lucros.
95
Também corrobora a efetivação desse expediente, o relatório de
distribuição da escravaria da fazenda em 1849,
96
que apresenta um índice de
31% da população masculina produtiva em atividade ou em preparação para o
exercício de um ofício. Ainda que esse índice seja menor do que o de 1815, é
95 REYS, Manoel Martins do Couto. “Memórias de Santa Cruz”. In Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Tomo V. 1843. pp. 157-158.
96 Mapa da totalidade da Escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz. Datado de
30/06/1849 e assinado pelo escrivão Pedro Nolasco da Silva. Arquivo do Museu Imperial.
Petrópolis.
158
três vezes maior do que o percentual encontrado por Florentino e Góes para o
agro-fluminense como um todo.
97
É provável que o incentivo a formação profissional transparecesse para
a Coroa e para a administração como parte integrante e importante da
lucratividade gerada pela fazenda, tanto quanto suas colheitas de grãos da
terra - arroz, feijão, milho,... - e tanto quanto a carne verde saída de seus
abatedouros para saciar o Rio de Janeiro. Porém, por certo não era essa a
perspectiva que os escravos tinham de seu próprio trabalho.
O corolário mais direto deste expediente lucrativo para a Coroa era a
formação de famílias partidas, situação observada, em geral, entre os cativos
de outros plantéis institucionais. As mães solteiras poderiam ser abundantes
em diversas situações, mas não como saber se estavam ou não ligadas a
um relacionamento consensual com algum dos seus. No caso das famílias
partidas, um membro é deslocado de seu núcleo, deixando um espaço social e
afetivo definido, porém vazio.
O reverso desta moeda é que, se o exercício de um determinado ofício
poderia lhe valer uma ausência da fazenda, o que se traduzia em abandonar
sua família, também significava uma distinção entre os demais. Stuart Schwartz
nos mostra como determinados tipos de ocupação costumavam render ao
escravo tempo extra para cuidar de sua própria produção, além de uma
diferenciação social advinda da sua capacidade de gerir os seus próprios
investimentos.
98
Um maior controle do seu tempo, ou melhor, um maior tempo
97 FLORENTINO, Manolo e GÓES, J. Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 1997. p. 109.
98 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: EDUSC, 2001. pp. 89-122.
159
sob seu controle parece ter sido uma das vantagens de exercer um ofício para
os cativos.
Em Santa Cruz para cada ausência que se prolongasse a ponto de
arruinar suas terras, correspondia um período de folga para que o dito cativo
colocasse suas coisas em ordem. Tal período era de um ano.
99
Mesmo sendo
uma determinação aplicada indistintamente, ser um artesão poderia lhe
proporcionar alguns anos de folga na vida, que para arruinar uma roça
bastam poucos meses de descuido.
Seja por isso, seja por se tratar de um trabalho melhor que o ordinário, o
fato é que em torno de 1817, havia 174 cativos com ocupação que lhe exigia
uma habilidade a ser aprendida, e desses, 70 escravos, ou seja, mais ou
menos 40%, cuidavam para que outro membro de sua família seguisse a
mesma trilha.
Mesmo não correspondendo à totalidade dos casos, é importante
mencionar algumas histórias de sucessão dos conhecimentos profissionais.
Um exemplo disso é Francisco de Almeida, tecelão no inventário de 1817.
Francisco tem por aprendiz ninguém menos que seu filho Luís José, de apenas
oito anos. Chama ainda mais atenção o caso de Domingos Ramos, um
caboqueiro de 51 anos casado com Maria da Penna. Seus três filhos,
Francisco de Souza de 16 anos, JoIsidoro de 14 anos e João de Souza de
11 anos, são todos eles aprendizes de carpintaria.
99 Resolução nº 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho membro da
Comissão das Contas do Tutor de S. M. e AA. Imperiais (I-PAN-14.8.837-Car.rs - Arquivo do
Museu Imperial de Petrópolis - R. J.). p. 3.
160
Outros casos chegam a ser excêntricos como o de Francisco do
Desterro, um oleiro que possivelmente providenciou para que seu filho se
tornasse sico. Feliciano Teixeira conseguiu se manter no “ofício” da sica,
apesar de sua notória inaptidão para a coisa, tão notória que valeu a
observação: “não tem jeito para a Quinta”. Diferente foi o acontecido com Anna
do Rosário Pimenta, uma jovem de 25 anos, casada, embora o marido não
esteja assinalado. Seus filhos, Vicência Ferreira de oito anos e Targine José de
pouco mais de um ano, estão destinados à música na Quinta. É bem provável
que o pai o referido possa ter obtido, ainda que precocemente, o direito de
seus filhos serem classificados como músicos.
Certamente estes casos mostram que, de alguma maneira, o ofício era
algo desejado pelos cativos, e, portanto, algo que lhes conferia vantagens e
algum status frente aos demais. Os músicos citados indicam que a sica, e
quiçá os ofícios em geral, não tinham necessariamente uma ligação com a
aptidão, com os mais geitosos, e de provada habilidade dos quais falava
Couto Reys. Antes, tratava-se de algum tipo de arranjo da política cotidiana
que facultava, mesmo aos inaptos, a possibilidade de se furtar ao trabalho
braçal.
Mais uma vez o reverso: nos relatórios de distribuição das tarefas
aparecem também os escravos “a dispor diariamente” (1815) e “nas esquadras
ambulantes” (1817), o que equivale dizer, os que cuidam dos serviços mais
pesados e não-especializados dentro da Fazenda. Em ambos os casos eles
representam 40% da o-de-obra classificada como braços para todo serviço.
Mais uma vez em ambos os relatórios, aproximadamente 80% são mulheres;
161
para ser mais exato, em 1815 as mulheres representam 76,5% e em 1849 são
80%. No Camorim, de onde também dispomos de informações bastante
precisas, não é muito diferente. Entre 1864 e 1867, os homens “da enxada”
oscilaram entre 14 e 15, respectivamente, enquanto suas companheiras de
labuta não foram menos que 39, sendo que em 1864 chegaram a 51 mulheres.
Em ambos os casos, o que se revela aqui é um padrão de distribuição sexual
no trabalho semelhante ao que Klein encontrou para as grandes plantações do
Caribe e Brasil. Segundo as pesquisas do autor, a distribuição etário-sexual da
força de trabalho tinha diferenças muito sutis entre as diferentes regiões e
cultivos.
100
Manuel Martins do Couto Reys havia percebido o potencial de
trabalho das escravas. Quando se remete à elas diz que o perfeitamente
capazes de manter, com suas pás e enxadas, os canais de drenagem da
fazenda em bom estado. Ora, tais canais recortavam a fazenda em vários
sentidos e além de manterem os campos e pastos secos, alguns eram
navegáveis. Uma tal faina não deveria ser das menores.
Mas não apenas em plantéis estatais e religiosos poderia se encontrar
uma tal configuração. O Barão de São Roque, outro grande cafeicultor do Vale
do Paraíba, parece, em algum momento de sua vida, ter dado preferência à
aquisição de mulheres. Em sua propriedade temos uma distribuição bastante
equilibrada quanto à origem: 126 locais, 105 africanos e 100 do tráfico
interprovincial. No entanto, o número de mulheres ultrapassa o de homens em
cerca de 1/5: são 150 homens para 181 mulheres.
100 KLEIN, Herbert S. Escravidão na América Latina e Caribe. São Paulo: Ed. Brasiliense.
1987.
162
Na divisão por sexo, os locais revelam uma superioridade feminina de 73
contra 53. Os africanos, como indica a lógica do tráfico, apresentam um
número maior de homens: são 59 africanos e 46 africanas. Mas na escravaria
oriunda do tráfico interprovincial é que encontramos a maior desproporção:
apenas 38 homens para 62 mulheres. Ainda que possivelmente condicionada
por uma oferta reduzida, pois se iam mais de vinte anos de ausência do
tráfico atlântico, o Barão de São Roque não achou desperdício de dinheiro
investir em braços femininos, que passaram a compor a maioria da sua força
de trabalho efetiva. Eram 106 homens da “roça” e 124 mulheres que padeciam
no mesmo trabalho.
Na casa a diferença é ainda maior 28 mulheres andavam as voltas com
a manutenção da morada do Barão em companhia de apenas 7 homens. Mais
uma vez, os ofícios são privilégio dos homens, que quase todos os 39
cativos assinalados com alguma profissão que não “roça” ou “doméstico” são
homens. Coube às mulheres uma cota um pouco maior no eito nas terras do
Barão de São Roque. No entanto, este último plantel pode indicar uma divisão
territorial diferenciada para a ascensão de homens e mulheres. Se aos homens
cabia o status de um ofício, às mulheres poderia se descortinar a possibilidade
de trabalhar na lida doméstica, por certo também mais amena que a roça.
Mas, de um modo geral, é possível imaginar as mulheres escravas
destes plantéis, se pondo a trabalhar pesado, certamente mais pesado do que
gostariam, dada a escassez de homens gerada pelo deslocamento da mão-de-
obra especializada ou por compras diferenciadas, ou ainda pelo grau de
especialização de seus companheiros. A elas era negado o acesso à
163
praticamente todos os ofícios, exceto a musica e o parto. Poderiam ter
trabalhos específicos como ser ama, trabalhar na olaria, ou no fabrico de
manteiga, trabalhar na casa ou nos teares. Mas, não eram consideradas
detentoras do ofício de seu trabalho.
164
. Saúde
Outro indicador sensível da diferenciada vida em comunidade poderia
ser o estado de saúde dos cativos. Se as estratégias coletivas compreendiam
um cuidado mútuo para que fosse aliviada a canseira inerente à existência
humana, algo deveria se refletir na configuração do estado físico desses
cativos. As variáveis que podem ter contribuído na alteração do padrão de seu
estado de saúde são diversas, indo desde a qualidade, variedade e quantidade
de seus alimentos, até um esforço mais equacionado no trabalho e cuidados
mútuos.
Antes de nos precipitarmos sobre as informações disponíveis acerca da
saúde dos cativos, é necessário firmar como termo de comparação apenas os
grandes plantéis. Plantéis menores, com circulação e disponibilidade epidêmica
mais restrita não se aplicam como medidas para as escravarias maiores. Isso
se por que, de certo modo, no que respeita às doenças infecto-contagiosas,
os grupos que vimos até aqui possuem um padrão semi-urbano de contagio.
Tomemos novamente um exemplo oriundo da história da escravaria de Santa
Cruz.
Nesta fazenda, apesar de todas as benesses das quais se favoreciam
seus cativos quer por negligência, quer por política administrativa –,
165
grassavam “febres” que poderiam atingir níveis de mortalidade epidêmicos. Foi
o que se viu, por exemplo, no fatídico ano de 1820.
Tabela 13: Morte e Mortalidade na Escravaria da Real Fazenda de Santa Cruz,
1817-1821.
1817 1818 1819 1820 1821
Taxa Bruta de Mortalidade 1,4 2,8 4,9 7,2 2,0
Percentual de mortes
ocorridas até 1 ano de vida
12% 21,3% 27,1% 37% 33,3%
Taxa Específica de
Mortalidade de 0-4 anos
0,9 3,3 3,9 14 2,9
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1817. Arquivo Nacional, RJ.
Gráfico 21: Taxa Específica de Mortalidade de 0-4 anos na Escravaria da Real
Fazenda de Santa Cruz, 1817-1821.
0
2
4
6
8
10
12
14
16
1817 1818 1819 1820 1821
Fonte: Tabela 13
A tabela e o gráfico acima mostram como poderia ser devastadora uma
epidemia em uma comunidade de amplas proporções como Santa Cruz. Vale
lembrar que a circulação e o tamanho incomuns deste plantel, neste sentido
específico, agiam contra os seus membros. A circulação fazia com que os
166
contatos com outros grupos fossem mais freqüentes e duradouros,
aumentando as chances de contágio. Em função disso tudo, a morte pôde
ceifar com sua aguda lâmina, como cana madura, ¾ de todas as crianças com
até quatro anos que viviam por lá.
Este era o preço pago por grandes plantéis com capacidade de
circulação e certo nível de crianças. Neles havia um certo risco de que, vez por
outra, se ouvisse a mães lamentando seus rebentos, ou irmãos chorando a dor
da morte de seus irmãos, pais lastimando pelos seus filhos. Quanto maiores os
laços, maiores as dores ao se rompê-los, em especial quando é a mão da
morte quem o faz.
Mas estamos falando de epidemias, doenças que atingem e matam de
imediato ou abandonam o abatido em poucas semanas. Estas são registradas
em menor número nos inventários pelo seu caráter transitório e, quando não
mata, tende a ser menos debilitante em suas seqüelas. Nos inventários, para a
avaliação do preço, tende a ressaltar-se doenças de longo percurso. São, em
verdade, deformidades ou deficiências permanentes que são acusadas, ou
pelo menos aquelas doenças que se arrastam por longos períodos deixando
seqüelas graves. Eram estas as que debilitavam permanentemente o cativo e
por isso interferiam no seu valor de mercado, grosseiramente poderíamos dizer
que assinalava-se o cativo que era doente e não o que estava doente.
De certo modo, esta divisão também parece ter se encaixado na
comunidade cativa. Como acabamos de mostrar, é possível que as grandes
escravarias fossem mais suscetíveis aos surtos, assim como os escravos
urbanos. No entanto, podemos perceber que, no que respeita as debilidades
167
físicas de longa convalescença, deficiências permanentes e seqüelas de
traumas, quanto maior o percentual de escravos aparentados menor tendia a
ser o índice de escravos doentes.
Grosso modo, o que o gráfico 22 ilustra é a possibilidade de um quadro
geral de cuidados familiares, e possivelmente inter-nucleares, refletidos na
baixa proporção de portadores de moléstias mais duradouras. Os plantéis com
mais de quarenta por cento de escravos enlaçados por algum tipo de
solidariedade parental tem, em geral, menos de cinco por cento de escravos
registrados como padecentes de alguma moléstia. Por outro lado, nenhum dos
quatro plantéis com menos de quarenta por cento de aparentados teve registro
de cativos doentes inferior a dez por cento.
A bem da verdade, o que podemos entrever nestas informações não é
exatamente a comunidade escrava, mas um sintoma de sua existência. De
fato, se a comunidade existiu, existiu para benefício de seus membros. Ao que
parece, uma das vantagens de se viver em comunidade era uma chance menor
de um certo tipo de problema físico. Menos coxos, menos tísicos, menos
cegos, menos quebrados das costas ou da virilha, enfim, quanto mais
complexa era a formação comunal, menos acometidos por doenças
diretamente mencionadas nos inventários.
168
Tabela 14: Percentual de escravos doentes e de aparentados (séculos XVII a
XIX).
Proprietários
Aparentados Doentes
José Joaquim de Abreu Castelo Branco (1839) 25 12,5
Inácio Pereira Nunes (1857) 26,5 11,4
Damazo José de Carvalho (1834) 35,4 25,3
Porcina de Paula Dias (1873) 35,7 14,3
Barão de São Roque (1872) 43,2 0,3
Maria Jacinto de Macedo (1835) 48,2 32,4
Luíza Maria Assunção (1870-72) 71,3 3,9
Chuao (século XVII) 78,4 1,8
São Cristóvão (1760) 93,2 4,3
Pascoal Cosme dos Reis (1850-52) 95,8 18,5
Chuao (século XVIII) 97,9 4,9
Chuao (século XIX) 99,9 2,0
Fazenda de Santa Cruz (1791) 99,9 1,7
Fonte: Inventários post morten, Arquivo Navional, RJ.
No entanto, não podemos afirmar que isso significasse que a
homeostase fosse mais freqüente, visto que um outro tipo de enfermidade
poderia grassar nas comunidades: epidemias. Santa Cruz foi um exemplo,
onde o cruzamento de informações pode revelar a sinistra ação das doenças
infecto-contagiosas, as febres, como eram chamadas, mas outras propriedades
também poderiam estar sujeitas à padrões semelhantes.
Temos que levar em conta, ainda que os cuidados oferecidos pelos
senhores e as doenças simuladas podem estar interferindo nos resultados da
amostra. Em primeiro lugar, algumas fazendas possuíam enfermarias, senzalas
destinadas à convalescença de cativos. Tais cuidados eram patrocinados pelo
169
proprietário, ainda mais em tempos de alta dos preços no mercado de braços.
Em segundo, se, como postulamos, o trabalho nas comunidades era mais ou
menos acordado entre senhores e cativos, a incidência de enfermidades
simuladas poderia ser um tanto menor nestas.
Gráfico 22: Percentual de Doentes e Aparentados (séculos XVII a XIX).
0
20
40
60
80
100
120
José Joaquim de Abreu Castelo Branco
Inácio Pereira Nunes
Damazo José de Carvalho
Porcina de Paula Dias
Barão de São Roque
Maria Jacinto de Macedo
Luíza Maria Assunção
Chuao (século XVII)
São Cristóvão
Pascoal Cosme dos Reis
Chuao (século XVIII)
Chuao (século XIX)
Fazenda de Santa Cruz (1791)
Doentes Aparentados Potência (Aparentados) Potência (Doentes)
Fonte: Tabela 12
170
. Os Sobrenomes
Algumas vezes os cativos adotavam sobrenomes após sua alforria. É o
caso de Francisco Nunes de Moraes, um africano liberto, originário da Costa da
Mina, que lavrou seu testamento na Bahia, em 6 de setembro de 1790. Nele
declara que havia comprado sua liberdade dos seus senhores, os herdeiros do
Capitão-Mor Antônio Nunes de Moraes, pela quantia de duzentos e cinqüenta
mil réis. Por esse trecho do testamento é possível perceber uma prática
muito significativa, a adoção do sobre-nome dos senhores pelos escravos.
Francisco pôde, e mais, quis adotar o sobrenome do Capitão-Mor Antônio.
Antes que se pense apenas na adesão ou devoção desses aos seus
senhores, é possível postular que essa foi uma “herança” tomada ao antigo
senhor. Um nome, uma identidade no mundo luso-colonial. Algo que permitisse
a construção de relações livres. Algo difícil ao Francisco Mina; é certamente
mais factível ao Francisco Nunes de Moraes. Enfim uma estratégia, sem dolo,
mas com ganho.
No caso que temos nas mãos a situação é bem diversa. Trata-se de um
grupo substantivo de cativos e não de libertos. Isto é, inventariados como
escravos e portadores de sobrenome dentro do cativeiro. Também as relações
que seriam viabilizadas pelo uso de sobrenomes estariam se estabelecendo
171
fundamentalmente num mundo escravo - e, no caso, relativamente circunscrito
- e muito pouco diante da sociedade livre.
Ao estudar a dinâmica nominativa, Carla Casper Hackenberg,
101
analisou o grupo de escravos pertencentes à fazenda do Cabussú. Carla
postula que a nomeação é, também entre os cativos, uma forma de
homenagem a antepassados ou parentes próximos. Embora uma elevada
percentagem de sua amostra, 35% dos casos, estejam relacionados aos
proprietários, 62% se referem a parentes e padrinhos. Mas e quanto aos
sobrenomes?
Em princípio há que se definir um critério que permita discernir quais
termos nominativos serão tomados como sobrenomes. De fato, nem sempre é
possível afirmar que o segundo termo do nome se trate de um sobrenome com
todo o rigor e nem que seja o último nome do cativo. O primeiro passo
necessário seria estabelecer alguns critérios que nos permitissem definir com
um mínimo de confiabilidade, quais seriam sobrenomes e, por conseguinte, os
termos que apontassem para existência de algum tipo de agrupamento entre
os cativos. Talvez o mais apropriado seja defini-los pela via negativa, isto é,
quais seriam os nomes compostos e as alcunhas. Para tanto, ao menos dois
critérios já se impõem: o primeiro, seria dado pelo fato de que um nome
composto permite flexão de gênero, ou seja, se um Antônio Francisco, e
pode haver uma Maria Francisca, Francisco(a) não pode ser, por tanto um
sobrenome.
101 HACKENBERG, Carla Casper. Famílias em cativeiro. Dissertação inédita. Curitiba:
Universidade Federal do Paraná. 1997. passim.
172
O segundo deriva do primeiro e decorre de que se o segundo termo do
nome pode ser usado como primeiro, este é, por isso mesmo, definidor de
gênero. Há ainda os casos específicos do uso dos nomes ‘Jesus’ e ‘da Cruz’ no
segundo termo e dos títulos dados ao nome Maria, que por motivos óbvios, não
nos permitem tratá-los como sobrenome. É importante ressaltar que os casos
duvidosos não foram utilizados neste estudo.
Partindo desses critérios, podemos perceber um padrão significativo tal
como expresso na Tabela 13. Das dezesseis fazendas observadas, apenas 3,
menos de um quinto, não possuem escravos com sobrenome. Estas, sem
exceção, estão na região do Vale do Paraíba. Sintomático também, é que as
que apresentam maior número de aparentados sejam principalmente as
institucionais: Camorim, Chuao e Santa Cruz, que o entrou no estudo por
possuir a bagatela de 797 cativos com sobrenome.
Seria possível que as propriedades institucionais permitissem com mais
freqüência o uso de sobrenomes por seus cativos? Isso poria todo o peso da
responsabilidade fora dos detentores do dito nome. É mais coerente com todo
o nosso estudo pensar que o uso da prerrogativa de uma denominação mais
complexa que o nome simples ou as alcunhas (como campeiro, baiano, burra,
bunda ou bunda nova).
173
Tabela 15: Lista dos Proprietários, Número de Escravos Aparentados e
Sobrenomes (séculos XVII a XIX).
Proprietários
Aparentados Sobrenomes
Com. João Corrêa Tavares (1873) 17 4
José Joaquim de Abreu Castelo Branco (1839) 25 0
Inácio Pereira Nunes (1857) 26,5 1
Barão de Santa Justa - Fazenda Serra (1872-73) 31,8 1
Damazo José de Carvalho (1834) 35,4 0
Barão de São Roque (1872) 43,2 3
José Cardoso dos Santos (1815) 44 3
Maria Jacinto de Macedo (1835) 48,2 1
Luíza Maria Assunção (1872) 71,3 0
Fazenda do Camorim (1872) 72,5 10
Chuao (século XVII) 78,4 1
Com. Aguiar Vallim – Bocaina (1872) 80 6
Com. Aguiar Vallim – Resgate (1872) 85 3
Fazenda de São Cristóvão (1760) 93,2 8
Chuao (século XVIII) 97,9 3
Chuao (século XIX) 99,9 6
Fonte: Inventários diversos
Gráfico 23: Proprietários, Número de Escravos Aparentados e Sobrenomes
(séculos XVII a XIX).
0
20
40
60
80
100
120
Com. João Corrêa
Tavares
José Joaquim de Abreu
Castelo Branco
Inácio Pereira Nunes
Barão de Santa Justa
(Fazenda Serra)
Damazo José de
Carvalho
Barão de São Roque
José Cardoso dos Santos
(1815)
Maria Jacinto de Macedo
Luíza Maria Assunção
Fazenda do Camorim
Chuao (século XVII)
Com. Aguiar Vallim
(Bocaina)
Com. Aguiar Vallim
(Resgate)
Fazenda de São
Cristóvão
Chuao (século XVIII)
Chuao (século XIX)
0
2
4
6
8
10
12
Aparentados Sobrenomes
Linear (Sobrenomes) Linear (Aparentados)
Fonte: Tabela 15
174
Neste caso, os sobrenomes seriam muito mais um indicativo de
sedimentação social que de outra coisa qualquer. Transcorridos os anos, e
possivelmente as gerações, de convívio social, o organismo comunal passaria
a produzir indivíduos portadores de sobrenomes. A julgar pelo que foi
observado em Santa Cruz, os sobrenomes podem também ter sido usados
para plasmar relações entre indivíduos ou grupos dentro do plantel.
102
Possivelmente um dos últimos estágios no caminho da formação comunitária.
Claro está, que este pode ter sido um dos caminhos, adotado pelos moradores
de Santa Cruz, mas não necessariamente o único caminho a seguir na
constituição de um todo mais socialmente orgânico. Seja como for, a tendência
geral aponta para um uso mais freqüente nos planteis onde o parentesco se
tornou mais abundante. Isso, por si só, está a indicar que o uso de sobrenome
e sedimentação social estão de alguma forma envolvidos.
Mas quem são os tais escravos dos quais falamos? Talvez seja
interessante tecer uma análise mais refinada sobre os agraciados com tal
quinhão, especialmente valioso numa sociedade onde os nomes dizem muito.
102 Cf. ENGEMANN, Carlos. Os servos de Santo Inácio a serviço do Imperador. Dissertação
de Mestrado, Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. pp. 102ss.
175
Tabela 16: Origem, Faixa Etária, Condição de Especialização Profissional e
Situação de Parentesco dos Escravos Portadores de Sobrenomes (séculos
XVII a XIX).
Totai
s
40/+ 20-39
-/20 Esp.
N/Es
p.
Apar.
Desa
r.
Crioulos 30 10 15 5 7 23 18 12
Africanos 13 10 0 0 1 12 7 6
40 anos/+ 20 5 15 14 6
20-39 anos 16 2 14 6 10
-/20 anos 5 1 4 4 1
Especializado 10 7 4
N/Especializado
43 22 19
Aparentados 29
Desarraigados 24
Total 52
Fonte: Inventários diversos
Gráfico 24: Origem, Faixa Etária, Condição de Especialização Profissional e
Situação de Parentesco dos Escravos Portadores de Sobrenomes (séculos
XVII a XIX).
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
Cr
iou
los
Af
r
ic
ano
s
4
0 anos/+
2
0-
3
9 a
n
os
-/20
ano
s
E
spec
ial
iz
ado
N/E
spec
iali
z
ado
Ap
a
rentados
Desarraigado
s
Fonte: Tabela 16
176
Bem, a princípio alguns dados condizem com proporcionalidade
encontrada nas escravarias com um todo. Um número maior de crioulos, de
não especializados profissionalmente e de aparentados pode ser explicado, ao
menos em parte, pelas próprias proporções dentro da amostragem. O número
de profissionais entre os cativos considerados é abissalmente menor que os
ditos da roça, enxada, para todo serviço ou simplesmente sem nenhuma
descrição de atividade profissional. Daí fica fácil entender por que o número de
portadores de sobrenome desqualificados profissionalmente excede tanto os
seus companheiros aquinhoados com um ofício especializado.
Nesta mesma senda, observamos que os crioulos compõem cerca de
62% da amostra considerada. Por tanto não muito que se estranhar no fato
de que os crioulos superem os africanos na posse do bem simbólico tratado. O
que de se questionar é que, numa proporção de 60/40, o número dos
crioulos em questão é mais que o dobro dos africanos na mesma condição,
configurando cerca de 70/30. Parece ter sido mais factível aos crioulos, filhos
dos africanos, como segunda ou terceira geração, obter um sobrenome.
No entanto, a coisa não é mais tão evidente quando se trata das
variáveis parentesco e idade. Quanto ao parentesco, é visivelmente mais
freqüente aos parentes alçar uma tal condição, ainda que não seja gritante, a
diferença é sensível. Ocorre que no universo considerado, apenas 46% são
aparentados. Isso potencializa a pequena diferença observada anteriormente,
indicando que o parentesco poderia fazer uma diferença loquaz na
configuração de sobrenomes. O que isso pode estar indicando é que, de algum
177
modo, as redes de parentesco poderiam conferir a sedimentação social
necessária para essa praxe na nomenclatura escrava.
No que tange as idades, dividimos em 3 faixas essenciais, a saber: os
mais idosos, com 40 anos ou mais; uma faixa intermediária, de 20 a 39 anos; e
os mais jovens, com menos de 20 anos. Ocorre que a faixa dos idosos
comporta cerca da metade dos cativos com sobrenome, quando a sua
representatividade na amostra global não passa de um terço. Este talvez seja o
traço mais marcante na consecução de sobrenomes: a idade como fator
distintivo. Se analisarmos mais amiúde, isolando as duas primeiras linhas da
tabela 16, perceberemos ainda novos nuances.
Tabela 17: Cruzamento da Origem do Escravo com Faixa Etária,
Especialização e Parentesco (séculos XVII a XIX).
Totais
40
anos
ou +
De
20 a
39
anos
Até
19
anos
Especi
a-
lizado
Não
Especi-
alizado
Parente
s
Não
Pa-
rentes
Crioulos 30 10 15 5 7 23 18 12
Africanos 13 10 0 0 1 12 7 6
Fonte: Tabela 16
Gráfico 25: Cruzamento da Origem do Escravo com Faixa Etária,
Especialização e Parentesco (séculos XVII a XIX).
0
5
10
15
20
25
30
Totais 40 anos ou + De 20 a 39 anos Até 19 anos Especializado Não Especializado Parentes Não Parentes
Crioulos Africanos
Fonte: Tabela 17
178
A grande novidade que os dados acima trazem é que,
fundamentalmente, a idade era o grande veículo para os africanos obterem a
sua inserção no hall dos portadores de um nome diferenciado. Mesmo com a
desproporção entre crioulos e africanos no universo total, o percentual de
idosos com um sobrenome é o mesmo entre essas categorias. Isso reafirma a
idéia do gap de aculturação que permitia a ladinização (quase uma
crioulização) de certos africanos.
O que aponta para a necessidade da aquiescência dos demais escravos
e dos que teceram os registros para se portar um sobrenome. Dito de outro
modo, estabelecer um sobrenome não era um ato pessoal, individual, mas
coletivo. No transcorrer da vida o indivíduo vai granjeando respeitabilidade
entre seus pares e, possivelmente, a partir de certo momento passe a ostentar
o sobrenome. Não era no batismo que o escravo ganhava a sua alcunha, mas
ao longo da sua existência ia forjando-a.
Além disso, isso pode indicar que, em dados casos, a base da
comunidade em formação era africana e não crioula. Daí seria possível inferir
uma possível presença de algum tipo de núcleo congregando anciãos
africanos, portadores de um saber, permanentemente reelaborado, ladinizado
como seus portadores, mas que possivelmente era reverenciado como verdade
pelos seus descendentes. Se tal raciocínio estiver correto, a tese de que as
escaramuças entre crioulos e africanos eram na verdade uma clivagem entre
estabelecidos e outsiders ganha ainda mais um argumento.
De todo modo, o que foi exposto até aqui nos permite agregar o uso de
sobrenomes aos indicadores significativos da formação de um organismo social
179
comunitário. Revelando sinais específicos de sedimentação social, o uso de um
bem simbólico de grande importância na sociedade colonial enseja uma
reflexão sobre a interação entre estes grupos e o entorno que os abrigava.
180
. Dos sentidos e significados na vida comunal
Uma das diversas abordagens possíveis para a vida comunitária e sua
função no cativeiro é de que, por meio da construção de um etos comunal,
constroem-se igualmente os significados fundamentais da articulação e da
apreensão do mundo, intra e extra-plantation. Vale dizer que, como
instrumentos que transcendem as dimensões pessoais, os signos e a sua
imediata associação a significados são, por si só, uma atividade coletiva,
comunal. No caso específico da vida cativa, a comunhão de símbolos (verbais
ou não) e de sentidos seriam uma parte fundamental no suporte à vida,
permitindo apreender as experiências vividas, quer no âmbito imediato da
escravidão, quer além dela. A apreensão do vivido seria o primeiro passo para
expandir o alcance da sua capacidade de administração do mesmo.
Com isso, postulamos que não os escravos eram capazes de
compreender o mundo colonial que os cercava e articular-se com ele, tirando o
máximo de proveito de suas esquálidas possibilidades, mas o faziam melhor
quando vivendo em um grupo articulado como uma comunidade. Desse modo,
a possibilidade de estabelecer uma comunicação singular e criar significados
próprios era uma das vantagens da vida comunal cativa. Não apenas a
geração de significados de usos cotidianos, mas, e principalmente, o poder de
gerar sentidos para a sua própria existência.
181
A vida e aquilo que ela abrigava de importante para um escravo de um
pequeno plantel corriam um grande risco de serem esquecidos, perdidos por
tanto, passados alguns anos de seu sepultamento. A duração de sua memória,
e com ela um significado de mais longo alcance para ele próprio, teria uma
grande probabilidade de não superar uma geração e, mesmo nela, estar
circunscrita a um número extremamente limitado de seus pares. O sentido de
sua existência não seria partilhado por mais do que um círculo muito imediato
de companheiros de infortúnio, sendo que quanto mais tênue a relação com o
ego do qual falamos mais vago seria este sentido.
Os eventos marcantes para esse sujeito, o seriam também apenas para
este conjunto mais próximo de convivas. Assim, nascer, casar e morrer, por
exemplo, seriam acontecimentos notáveis para uma exígua parcela de seus
semelhantes, não se constituindo em marcos para muito além dos envolvidos
diretamente. Dar um significado mais amplo e profundo não a nomes ou
signos lingüísticos mas à própria vida cumpriria uma função social das mais
expressivas. Viver e morrer para um cativo que vivesse em comunidade seria
deveras diferente daquelas vidas e mortes experimentadas, ainda que em
circunstâncias semelhantes, por cativos de pequenos plantéis. Para a vida em
comunidade, cada um desses atos, a princípio pessoais, adquiriria um sentido
coletivo e tornar-se-iam eventos da própria comunidade, interpretados e
entendidos dentro dos sentidos coletivos que dão forma e coesão ao conjunto
de egos que a forma.
Neste contexto, nascer não diria respeito apenas à mãe e ao filho ou ao
pai, se conhecido fosse. Mas a cada nascimento a coletividade enquanto tal se
182
reproduz e afasta-se da aniquilação, cada novo membro é alguém que deverá
ser absorvido, educado e socializado também pelo organismo coletivo no qual
o destino o lançou. Isso significa que deverá aprender os códigos de conduta,
postura e comunicação. Deverá partilhar, no máximo possível, as crenças e
costumes, as tradições e memórias. De tal forma isso deve acontecer, que ao
final ele contribuirá para dar sentido ao todo e a cada um, assim como cada um
dos que o cerca, e dele recebe sentido para si, também dará sentido a ele e
aos seus atos.
O parentesco torna-se ainda mais prenhe de significado nas
comunidades do que nos pequenos grupos de cativos. Aparentar-se, em
comunidade - seja qual for o meio de formação de parentesco - é sem dúvida
um ato que alcança um número muito maior de egos, previamente
articulados em um determinado arranjo, e os envolve numa nova aliança.
Aliança esta, que, assim como foi produzida por um determinado contexto
sócio-cultural, também é produtora de um novo contexto. O casamento de dois
escravos que pertencem a grupos familiares organizados tem uma dimensão
de aliança entre grupos e não apenas a junção de indivíduos para partilharem o
peso dos infortúnios do cativeiro.
Do mesmo modo se com o batismo e o parentesco forjado com o
compadrio. Apadrinhar em um plantel pequeno é sem dúvida a consecução de
um laço de solidariedade de grande valia na senzala. Mas, tratando-se de um
número maior de envolvidos pelas redes de solidariedade, a consecução de
padrinhos pode adquirir proporções bem maiores. Derivam daí, a nomeação
183
dos escravos e os significados ou memórias advindos deste ou daquele padrão
ao fazê-lo.
Por fim a morte. Morrer é, por si, um ato pessoal. Mas o
necessariamente tem de ser solitário. A vida comunal provia os seus não
apenas de maiores cuidados interpessoais em termos de saúde, mas também
o significado da morte era outro. Muitas vezes esta encontrava o cativo de uma
comunidade em meio aos seus, com sentimentos que dificilmente poderiam
confortar a alma de um cativo de um pequeno plantel, mesmo que este tivesse
esposa e filhos. Com muito mais raridade um cativo destas pequenas
propriedades poderia ver seus filhos ajeitados dentro de um conjunto maior de
relações parentais, ou ainda, poderia ele ter a esperança de que sua existência
estivesse de algum modo gravado na memória coletiva, através de seus feitos.
Nos referimos aqui por “feitos” não a atos heróicos ou homéricas façanhas
embora vez por outra estas apareçam mas atos corriqueiros que preenchem
de significado o transcurso da existência. “Morreu fulano, filho deste e daquela,
pai deste e daquele, que era casado com esta, que cultivava tal lote e vendia
este produto naquele lugar”. Estes atributos, possíveis entre os cativos de
outros plantéis, tinham ali, na comunidade, um significado próprio a um número
maior de seus pares.
Norbert Elias afirma que:
O modo como uma pessoa morre depende em boa medida
de que ela tenha sido capaz de formular objetivos e alcançá-
los, de imaginar tarefas e realizá-las. Depende do quanto a
pessoa sente que sua vida foi realizada e significativa ou
frustrada e sem sentido.
103
103 ELIAS, Norbert. A Solidão dos Moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2001. P. 72
184
Não se trata aqui, tão pouco, de um conforto advindo da crença num
sentido metafísico para a existência. O catolicismo, sincrético ou não, e as
tradições animistas que grassavam entre os negros cativos poderiam cumprir
este papel de forma mais ou menos equânime. Falamos de um sentido quase
material de realização pessoal. Este, por certo era parco a todos os que foram
alcançados pela morte no cativeiro, mas, provavelmente, aqueles que se
encontravam em grandes propriedades detentoras de grandes escravarias,
onde as estratégias coletivas permitiram uma práxis de maior mobilidade, quer
espacial, quer social, talvez pudessem com suas pequenas nesgas de terra,
suas senzalas “privadas” e seu status social nutrir um sentimento diferenciado.
A estrutura social comunal forneceria algo que, de fato, outras
escravarias não poderiam prover aos seus cativos: uma ampla desigualdade
interna ao cativeiro. Ao menos, não poderiam abrigar uma gama tão grande de
estratos sociais intra-escravidão. A desigualdade, em verdade, é o que pode
prover um acréscimo de auto-estima àqueles que lograram ascender na exígua
escala social do cativeiro. Desse modo, ao instaurar mecanismos de
diferenciação mais poderosos que as dicotomias identificadas na escravidão
como um todo (crioulos e africanos ou homens e mulheres, por exemplo,
encontradas em todos os tipos de plantéis), a organização comunal instalou na
alma de alguns de seus filhos o sentimento de vitória sobre seus semelhantes.
O que, vale dizer, instalou um segundo sentido de fracasso nos demais.
A velhice que eventualmente precederia a morte teria também um
sentido mais extenso, na medida em que o princípio da ancestralidade poderia
185
torná-lo um ser respeitável ou até venerável em sua sabedoria. Sabedoria esta,
que no mais das vezes era pertinente apenas àquela esfera comunal, fora da
qual ele corria o risco de tornar-se um inútil, uma vez que fossem partidos os
vínculos sócio-afetivos, dada a sua reduzida capacidade de trabalho. O sentido
de veneração advindo de seu saber é inerente à comunidade onde este sentido
foi plantado e desenvolvido. Fora dela, nem o saber, nem o sentido, têm
existência garantidas.
Envelhecer e morrer em uma comunidade escrava poderia valer ao
cativo um estatuto diferenciado, o de portador de tradições ancestrais, detentor
de saberes normativos e de regras práticas a serem observadas. Talvez, o seu
relacionamento com o proprietário fosse mais próximo, cumprindo com alguma
freqüência o papel de porta voz, ora da comunidade junto ao senhor, ora do
senhor junto à comunidade. Manuel Martins do Couto Reys refere-se a um
grupo de escravos deste tipo em Santa Cruz. Quando dois cativos evadidos do
Rio de Janeiro com o produto do furto, em ouro, do ourives proprietário de um
deles chegam a Santa Cruz, e se instalam nas suas redondezas, é um grupo
de confiáveis escravos, que se não são velhos, ao menos possuem algum
status, que é convocado a confabular com o administrador. O resultado desta
conferência é um compromisso com a entrega do ouro e dos cativos estranhos.
Fielmente cumprido, diga-se de passagem.
104
Possivelmente, essas e outras
cicatrizes do viver em uma comunidade com uma história própria pairariam à
cabeceira dos moribundos em seus momentos finais.
104 Esta correspondência encontra-se depositada na Caixa 507 Arquivo Nacional, RJ.
186
A produção de sentidos, que auxilia na compreensão e na partilha das
experiências vividas, é talvez o bem mais precioso da vida comunal. A
capacidade de tornar o lugar da escravidão, estranho e hostil pela sua própria
natureza, em um lugar com alguma familiaridade é uma das maiores vantagens
na construção de uma coletividade. E é possível que seja um dos seus maiores
motores também.
187
4. Das possíveis comunidades.
O extremo aperreamento desseca-lhes
o coração, endurece-os e inclina-os
para o mal. O senhor deve ser severo,
justiceiro e humano.
Barão do Paty do Alferes
Como vimos a aqui, as escravarias que reuniam um certo quantum
populacional tendiam a formação e multiplicação de laços familiares, formando
núcleos domésticos. Núcleos que poderiam se agregar formando clãs que,
posteriormente, poderiam se reunir por meios diversos na consecução de
alianças inter-grupais. Este estágio intermediário, que podemos supor pelo
uso de uma dose de imaginação, poderia ser suprimido se o nível populacional
não fosse tão alto assim, ou se a escravaria fosse formada pela agregação
paulatina e progressiva de novos elementos externos, isto é, se sua população
não fosse constituída em um curto espaço de tempo, com grandes compras.
De fato, postulamos ser a formação comunitária uma espécie de
gradiente, uma tendência social da convivência, mesmo que esta fosse
compulsória, por ser ela o mecanismo que poderia organizar a coexistência. É
na formação dessa estrutura - que cresce e açambarca cada vez mais
elementos ou que vai crescendo na medida em que os indivíduos são
agregados e obrigados a conviver - que se confere um sentido a existência
coletiva, inevitável e necessário para o sentido da vida individual.
188
Se Azeredo Coutinho estiver certo, a tendência sociável dos humanos os
empurraria ao convívio e à formação de normas e estratégias, de forças e
fraquezas coletivas, que são montadas e se montam na mais corriqueira das
tramas. Se não, é nessa corriqueira trama de laços e nós que o “pacto social”
dos cativos começa a se forjar, na medida em que a sua existência coletiva os
facultava viver em sociedade e, além disso, viver na sociedade que os abrigava
e os constituíra escravos.
Deve-se perceber, contudo, que a comunidade escrava estava longe de
ser igualitária, afinal as diferenças ajudam a organizar a vida tanto quanto, ou
até mais que as solidariedades. Por isso mesmo, percebemos que as
solidariedades e estratégias por eles desenvolvidas poderiam se dirigir tanto
para dentro quanto para fora da escravidão. Ora poderia se estar maquinando
como ascender socialmente no interior da comunidade, ou como não perder
seu posto de prestígio; ora poderia se estar, em solidariedade com os seus
companheiros de infortúnio, buscando benesses ou tramando contra o senhor.
O que o estudo desenvolvido até aqui nos permitiu foi pensar que uma
massa de 100, 200 ou mais pessoas, enfeixadas pela desventura de pertencer
a um mesmo senhor, venham a desenvolver em seu interior um conjunto de
solidariedades e hierarquias, lidando com vantagens e reveses ao longo de sua
história particular, tentando manipular com a maior destreza possível o
conjunto de códigos de conduta que os forma e que é formado por eles.
É possível que percebamos algumas aproximações e diferenças entre
os plantéis que representam formas e momentos diversos na organização
social do seu grupo, do seu espaço e das suas experiências vividas. Santa
189
Cruz, com sua história singularíssima poderia ser o ápice nesse percurso, mas
muito semelhantes a ela eram Chuao, Camorim e São Cristóvão. Sendo
fazendas do clero católico e do Estado apresentam alguns dos mais elevados
índices de complexidade social. Como exemplo disso, podemos citar os
maiores percentuais de parentesco que, a exceção do Camorim, pertencem a
estas fazendas. Estamos falando de mais de 90% de aparentados! Condizente
com isso, elas são as fazendas que possuem maior número de portadores de
sobrenomes, que acreditamos representar sedimentação social. Além disso
apresentam baixos índices de moléstias deformantes ou de longa
convalescença, o que não significa que estivessem imunes à patologias
infecciosas. Antes o contrário.
No Sertão Carioca também se encontrava a fazenda do Engenho Novo
da Pavuna, cuja pirâmide demográfica de sua escravaria em 1852 insinuava
uma tendência à reprodução endógena. Seu índice de parentesco era bastante
elevado, chegando a quase 96% dos cativos e sua população era
razoavelmente equilibrada do ponto de vista sexual. O que se estranha é que
os demais indicativos são por demais avaros. Não um único cativo detentor
de sobrenomes e o índice de acometidos por doenças é o terceiro mais
elevado. Talvez isso nos mostre que cada comunidade decide os meios de
plasmar suas relações e enfrenta intempéries várias que lhe impõe o cativeiro.
No Vale do Paraíba percebemos que, certamente por ser uma área de
ocupação mais recentes com plantéis reunidos, em média, a um tempo menor,
a presença dos indicadores de agregação é bem mais modesta. O parentesco
chega ao seu auge no Bananal, nas fazendas do Comendador Manuel Aguiar
190
Vallim, cujas pirâmides demográficas nem eram tão promissoras. No entanto,
em seu seio pelo menos 9 cativos lograram obter sobrenomes, embora a
ausência de indicações de moléstias não nos permita avaliar o estado geral
dos plantéis.
O Barão de Santa Justa, proprietário de quatro fazendas nos permitiu
vislumbrar a formação de comunidades em níveis de complexidade diferentes
em suas propriedades. A Fazenda da Serra, com apenas um tipo de senzala,
32% de seus escravos aparentados, 87% da sua população formada apenas
por homens e com mais de 50% de estrangeiros em seu interior seria a mais
distante de uma estabilidade orgânica. Pouco mais próximas daquilo que
imaginamos ser uma estrutura comunal, estariam as fazendas de São Fidelis e
Santana, provavelmente constituídas antes da Serra. Estas, como foi possível
ver, apresentam indicativos mais pródigos do que a antecessora: um quase
equilíbrio populacional no que tange ao sexo, cerca de 70% de cativos locais,
dois ou três tipos de senzalas. Por último, a fazenda Santa Justa,
possivelmente a mais complexa e a mais antiga das quatro, com quatro tipos
de senzalas diferentes, pouco menos de 70% de seus escravos aparentados,
55% de homens e 80% de cativos locais. Não obstante a tudo isso, o único
escravo com sobrenome foi encontrado na fazenda da Serra, talvez até
transferido de alguma das outras.
O nível demográfico, considerado por nós um fator de primeira grandeza
no início de nossas pesquisas, foi, aos poucos mostrando ser um fator apenas
diferencial, isto é, necessário, porém não determinante. Prova disso é que o
grande plantel do Comendador Inácio Pereira Nunes, com mais de 500
191
escravos, dispunha de não mais que 26,5% de aparentados e um alto nível de
cativos padecentes de alguma moléstia digna de nota. No seu plantel, no
entanto, havia um escravo com sobrenome. Quiçá, já comprado assim.
De qualquer modo, o que nos fica claro é que no estudo de uma
comunidade específica deve-se tentar reunir o maior número possível de
indicadores antes de aventurar um palpite sobre a complexidade de sua
formação social. Mas tantos destes fatores transcendem o seu domínio
exclusivo de ação que, provavelmente, quando transcendermos o plantel
compreenderemos melhor a dinâmica de formação e de reprodução da dita
comunidade no tempo.
192
Entre Comunidades e Bandos
1. Entre senhores e escravos
A formação da comunidade escrava, como visto anteriormente, está
vinculada a um espaço físico e social. Não obstante a isso, há um elemento por
demais importante neste mesmo espaço que até agora apenas tangenciamos.
Para além do próprio meio cativo e suas influências ancestrais, está sua
adaptação ao universo socio-cultural híbrido da vida brasileira. De fato,
referimo-nos aqui às interferências do mundo livre, mais precisamente do
senhor específico de cada comunidade, que se projetam sobre ela com um
forte grau de pressão em função de suas estratégias e interesses.
Sem querer reduzir o problema à luta de classes, não podemos deixar
de apreciar, no entanto, que as tramas senhoriais para com a comunidade que
lhe pertence impõem à ela uma postura, por vezes, diversa à que seria
tendente, ao menos na organização do tempo e na mobilidade de seu
deslocamento. Isso é o que nos mostram as mudanças profundas sofridas pelo
plantel de Santa Cruz quando transitou das mãos dos padres de Santo Inácio
para as os da administração pública e, mais tarde, com as transformações
ocorridas com a vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro.
De certo modo, o que vimos nos leva a concluir que tanto a comunidade
modela o senhor, quanto o senhor define a comunidade, ainda que o façam em
193
grau e intensidade diferentes. Em última instância, o proprietário é um dos mais
fortes conectores entre a vida cativa e o mundo exterior à fazenda. Acresce a
isso o fato de que é com este proprietário que a comunidade joga pelos seus
benefícios, buscando no máximo possível atingir seus objetivos, isto é,
assentar um costume aceitável no convívio diário. O que equivale dizer que
vem dos ditames do proprietário uma parte das regras que regem a vida cativa,
parte sobre a qual os escravos não têm domínio direto, nem poder de
convencionar, como com as suas regras sociais internas.
Com relação ao senhor o jogo é outro. Talvez não menos feroz do que o
jogo interno da hierarquia escrava.
105
A montagem de uma hierarquização
envolve sempre um alto grau de disputa e negociação, portanto o deve ter
sido diferente entre os escravos. A disputa por melhores esposas ou maridos,
por melhores moradias, melhores lotes de terra, por dívidas, ou qualquer outro
item do infindável rosário de belicosidades advindas do contato cotidiano, que
leva uns a forçarem os outros para baixo, certamente tornava, em momentos
críticos, a convivência entre os cativos eivada de violência. Mas na relação com
senhor a situação era diferente. Diferente na sua essência. Não se trata de
uma relação entre elementos da mesma escala social disputando uma posição
de superioridade na dita escala, para usar o modelo de Moore.
Face ao senhor, o poder entra como uma referência intensa e o
acréscimo nas proporções da violência torna-se uma possibilidade sombria.
Poder do senhor sobre sua propriedade humana e violência que poderia
105 Para consultar um estudo sobre a violência entre escravos, vide GUIMARÃES, E. S.
Violência entre parceiros de cativeiro: Juiz de Fora, Segunda Metade do século XIX. Tese de
doutoramento. Niterói: UFF, 2001.
194
explodir nos limites desta relação. E aqui, por violência, não nos referimos
apenas ao castigo infligido pelo senhor ao cativo, mas à possibilidade deste
último, perdendo as estribeiras, esquecendo de todo tipo de conseqüência que
sobre ele pudesse recair, desferir um ataque a seu proprietário.
É fato que, nessas relações senhor/escravos, várias estratégias
pessoais eram dissonantes das estratégias comunitárias e, portanto, coletivas.
Dito de outro modo, alguns projetos individuais mesmo dentro de uma
comunidade cativa poderiam destoar de sua configuração geral. Esse
comportamento esteve presente inclusive em Santa Cruz, onde houve um
número de fugas digno de nota, o que significa dizer que mesmo em meio às
específicas condições de vida de lá, muitos acreditavam que o mundo exterior,
provavelmente o urbano, poderia oferecer uma qualidade de vida melhor que a
fazenda. Mesmo não sendo este o projeto da maioria de seus habitantes, visto
que estes não se mobilizavam organicamente para tal propósito, alguns
indivíduos o tomaram como seu projeto pessoal em relação à escravidão.
Outro projeto pessoal que floresceu nesta mesma fazenda foi o de
escrever ao Imperador pedindo a alforria. Temos conhecimento de um conjunto
de cartas publicados por Thalita de Oliveira Casadei no informativo do Núcleo
de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (n. 27/1986) que dão conta
desta estratégia. Algumas escravas alugadas ou cedidas como criadas e amas
de leite granjeavam tamanha estima de seus senhores provisórios que estes,
como no caso do Dr. Cruz Jobim, escreviam pedindo a alforria da dita escrava.
O Dr. Cruz Jobim, medico da Imperial mara e Diretor da Faculdade de
195
Medicina, não hesitou em recolher aos cofres da fazenda a importância
equivalente à Ana de Santana, de 40 anos e à sua filha.
Isso mostra que a ação da comunidade não é necessariamente, e no
mais das vezes realmente não o é, a ação de todos e cada um os seus
membros. Assim sendo, é bem possível que estabeleçamos duas formas
básicas de relacionamento entre o senhor e seus escravos: uma pessoal e
outra coletiva, que temos tratado como comunitária.
A pessoal se expressa nas posturas diretas, tanto de um, quanto de
outro. É pessoal a escolha entre fugir e ficar, como o é o castigo recebido numa
eventual recaptura. É pessoal a escolha de quem irá trabalhar na casa e quem
irá trabalhar no eito, tanto quanto o é assumir esta ou aquela postura que lhe
facultem estar mais próximo de uma tal escolha. Enfim, no trato diário emerge
uma infinidade de possibilidades de se posicionar frente a escravidão e cada
uma destas posturas traz consigo as suas derivações inerentes.
Em contra partida, as posturas coletivas o produto das circunstâncias
criadas pelo posicionamento pessoal da maioria dos habitantes deste
microcosmo rural que os circunscreve, ao menos fisicamente. Crendo nisso é
que se buscou a cada passo deste trabalho identificar e compreender padrões
comportamentais que talvez até nem sempre fossem plenamente claros para
os que estavam presos entre os dentes das engrenagens dos dias que se
seguem consumindo os homens. Porém, a ânsia de realizar as ambições
pessoais comuns também gera comportamentos cooperativos. Estes
comportamentos, por sua vez, tornam-se costumes na medida que se
196
estabelecem como práticas regularmente aceitas e como moralmente corretas
e justas.
A evocação, articulação ou potencialização destes costumes,
especialmente em momentos críticos, expressa uma normatização moral
específica à escravidão e quiçá característica desta ou daquela propriedade.
Pode ter sido este tipo de coisa que Eric Foner
106
identificou no Sul dos
Estados Unidos, com o fim da escravidão. O tão almejado fim do cativeiro
impediu aos ex-cativos o acesso às dispensas de seus antigos proprietários.
Os pequenos furtos antes vistos como certa complacência, afinal eram todos
cria da casa, sob os cuidados do "pater", agora não eram mais consentidos.
Este é um interessante exemplo do tipo de cabo-de-guerra, de negociação, às
vezes tácita, às vezes explícita, que envolvia a manutenção da escravidão
enquanto um costume aceito, na maior parte das vezes, como moralmente
correto.
Os limites entre a escravidão aceita e a insuportável eram,
provavelmente testados, senão todos os dias, ao menos com alguma
recorrência. Faz sentido imaginar que o que era mais tolerável a um não o era
ao outro lado da relação. Em suma, o que estamos tentando dizer é que a
escravidão era algo que se construía quotidianamente, em quedas de braço,
concessões e recusas, entre estratégias e artimanhas de cada uma das partes.
O que tornava uma escravaria uma comunidade, talvez fosse mais do que
apenas o parentesco, a capacidade de se articular em planos comuns de
benefícios coletivos frente a um poder que lhes constrangia em comum. Não
106 FONER, Eric. Nada Além da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra. 1988. passim.
197
que o mero infortúnio do cativeiro fosse o formador da comunidade, afirmá-lo
seria um retrocesso. Mas de modo diverso, a capacidade de se organizar e
posicionar coletivamente frente a esta sinistra condição talvez fosse
efetivamente o definidor da comunidade. A família, identificada por Florentino e
Góes como o elemento organizador da comunidade, seria, então um dos
elementos, provavelmente o mais importante e evidente dessas estratégias.
Assim sendo, a propensão do senhor à negociação ou a sua
intransigência podem determinar os rumos da comunidade que, em última
instância, lhe pertence. Embora, consciente ou não disso, não a domine por
completo, tem sobre ela uma incidência política considerável. Levando às
ultimas conseqüências: a quantidade de pressão que a comunidade escrava
recebe é proveniente da concepção que seu proprietário tem da escravidão e
do quanto acredita ter direito de determinar a existência de seus cativos.
Ocorre que a postura política do senhor não é fruto exclusivamente de
seu temperamento. Pesa sobre seu juízo o momento histórico em que ele se
encontra, pois a perspectiva senhorial do que era a escravidão não foi uniforme
ao longo dos séculos de sua existência. Cada época teve seu suporte
ideológico privilegiado, com o qual os senhores tinham que se haver.
A primeira teoria normativa a surgir foi a cristã, assim tratada não
apenas por seus argumentos, mas também em função de seus criadores, na
maioria religiosos. Tal teoria estruturou-se a partir de duas matrizes distintas.
Composta pelos escritos oriundos da “corrente renascentista da literatura
agrária”, surgida no século XVII. Esta, fundada no resgate dos textos
agronômicos romanos e na conceitualização grega sobre a oikonomia,
198
recuperou a figura do pater, que foi, então, combinada com a perspectiva
bíblica das obrigações recíprocas. Esta segunda, a bíblica propriamente dita,
pressupunha que o senhor cuidasse de seus escravos como um rei de seus
súditos e, em troca destes cuidados, poderia exigir o trabalho que por direito
lhe era devido.
Uma das conseqüências da difusão deste modelo na montagem da
praxis escravista, e que encontrou ampla difusão em todas as Américas, foi a
autonomia de cada senhor no que tange ao tratamento e forma de dispor de
seus cativos. E mais: os proprietários tornaram-se profundamente refratários a
qualquer medida que ameaçasse o seu poder privado. A plantation assumiria
contornos de um reino no qual o senhor se comportaria como um verdadeiro
soberano que, agindo como tal, espelhava a própria autoridade monárquica. E
mesmo quando a monarquia ruía, a inviolabilidade da autoridade senhorial
se fazia sentir nos textos e idéias acerca do cativeiro. De fato, no mais das
vezes, as tentativas de legislar sobre o assunto acabaram transfiguradas em
recomendações, não raro veementes e contundentes. Contudo, dispositivos
legais estratégicos permitiam que a palavra final continuasse a ser prerrogativa
do pater.
Exemplo disso é o Code Noir, de 1685, que, em alguma medida sugeria
a quebra das bases que mantinham a autoridade senhorial praticamente
intacta. Após várias prescrições sobre o governo dos escravos, impondo aos
senhores uma série de obrigações, aparecem artigos que impedem os cativos
de denunciar ou de serem árbitros. Em verdade, estes não poderiam nem
199
mesmo testemunhar. Solapava-se, assim, as vias mais concretas de fazer
valer, de fato, as demais disposições.
De modo geral, os textos religiosos dos séculos XVII e XVIII eram
uníssonos quanto a seus argumentos e justificativas. A base moral e religiosa,
calcada sobretudo na idéia de um cativeiro redentor, observada especialmente
em Antônio Vieira, serve de estofo comum aos escritos de vários eclesiásticos.
Destoava um pouco Nouveau Voyage aux isle de l’Amerique, escrito pelo
missionário Jean Batiste Labat, publicado na primeira metade do século XVIII.
Segundo Rafael de Bivar Marquese, o conceito de “interesse” trazido por Labat
iria permear vários outros trabalhos dali em diante.
107
Na segunda metade do culo XIX, ainda em acordo com o que observa
Marquese, alguns senhores passaram a expressar de forma mais direta as
suas perspectivas sobre a escravidão. No Caribe francês e inglês, aonde o
antiescravismo que vinha se articulando nas metrópoles – mais na Inglaterra do
que na França ecoava com algum peso, os novos discursos tornaram-se
mais eloqüentes. Por paradoxal que pareça, os mesmos argumentos fundantes
da nova teoria racional antiescravista eram utilizados pelos seus opositores.
Alicerçados, ambos, nas idéias de "interesse" e "Humanidade", cada grupo
torcia a abstração de acordo à sua perspectiva. A mesma escravidão que, para
os seus defensores, humanizava o cativo, removendo-o da animalidade das
selvas africanas, desumanizava-o e roubava-lhe o direito natural à liberdade e
à dignidade. Essa ambigüidade ilustrada permitiu a manutenção ideológica da
107 MARQUESE, R. B. Feitores do corpo, missionários da mente:senhores, letrados e o
controle de escravos nas Américas, 1680-1880. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. pp.
68ss.
200
instituição também para os primeiros anos da república do Estados Unidos. Em
especial nos estados sulistas, a liberdade configurava-se como a liberdade de
possuir escravos. O que permitiu a criação de leis de controle "social e legal"
da população negra, proibindo a alforria privada e prescrevendo acirrada
vigilância sobre os negros livres.
No caso do Caribe inglês e francês, em particular, o patriarcalismo,
sempiterno na versão escravista cristã, é silenciado. Não apenas pelas
diferenças demográficas entre negros e brancos mas, principalmente em
função da difundida prática do absenteísmo entre os senhores. O foco da vida
senhorial, neste caso, concentrava-se em Londres ou Paris, impedindo que o
paternalismo ganhasse vulto. nos Estados Unidos, como demonstram as
fontes selecionadas por Marquese, ocorreu a substituição do patriacalismo pelo
paternalismo, o que conjugava argumentos para a manutenção do cativeiro.
108
Na medida em que os textos falavam de um tratamento cada vez melhor para
os escravos, a marca da ignomínia abandonava a instituição: logo, não havia
necessidade de postular o seu fim. Tal paternalismo pode ser percebido em
alguns textos citados por Marquese, com atenção para o de Henry Laurens,
que descreveu as formidáveis condições de vida de seus cativos, mencionando
o amor que deles esperava em troca.
Uma tendência geral de prescrições para a melhoria das condições de
vida dos cativos surge nos textos produzidos na América portuguesa e em
Cuba neste momento. A experiência dos jesuítas, recém expulsos do Império
português, é recuperada como modelo de administração racional e eficiente
108 Idem. pp. 266ss.
201
das grandes escravarias como algumas vistas aqui. A bem da verdade,
atribuiu-se aos inacianos a descoberta da correta combinação entre concessão
e disciplina. Tal perspectiva, quase mitológica, do "modelo jesuíta" vicejaria no
imaginário intelectual luso-brasileiro até a segunda metade do século XIX.
Taunay se refere a ela diretamente em seu Manual do Agricultor Brasileiro.
A busca da justa medida entre benevolência e severidade, humanidade
e cativeiro, modernidade e escravidão, norteou as reflexões a partir do advento
dos estados nacionais. No caso do Brasil, os proprietários ergueram-se, ainda
que tardiamente, de seu mutismo seguro e viram-se forçados a enfrentar a
questão, cada vez mais urgente.
Tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos, o bom governo dos
escravos pressupôs que, pelo caminho do paternalismo, havia de se controlar e
civilizar o microcosmos da plantation, agora não mais espelho da ordem
monárquica metropolitana, mas sim pedra de toque da construção da ordem
nacional. Cuba passou ao largo destas questões em boa parte do século XIX.
O nculo colonial fez com que sua elite prescindisse de dedicar-se a
semelhante construção. Daí, sem a necessidade de civilizar o trato dos
escravos, os textos relativos a escravidão cubana ressaltarem mais a disciplina
do que as concessões.
Temos então, que o século dezenove brasileiro produziu senhores um
tanto ciosos do trato com suas escravarias, não por benevolência, mas porque
a sobrevivência desta como instituição dependia disto. Paralelamente a isso, a
segunda metade do século trouxe a queda do tráfico legal de africanos, criando
uma elevação de preços e alterando os termos da relação senhor/escravo.
202
Desse modo, a constituição de algumas das comunidades das quais dispomos
documentação, deu-se em condições muito específicas. Elevação de preços,
tráfico interprovincial e acalorados debates antiescravistas perpassaram a
gênese de boa parte das escravarias que estamos analisando até agora. Em
certos aspectos, o mundo livre incide na constituição do cativeiro,
determinando-lhe a formação, relacionamento com a autoridade e as condições
materiais de vida, para citar apenas alguns aspectos.
203
2. Vida do senhor e vida de escravos
Como dissemos anteriormente, o senhor é, num sentido muito particular,
um dos membros mais proeminentes da comunidade de seus cativos. Sua
política cotidiana poderia facilitar a existência deles ou torná-la insuportável. O
que equivale dizer que a postura senhorial poderia ser crucial na decisão
coletiva de rebelar-se ou negociar a vida. Vejamos, então, se é possível
perceber nos inventários algumas pistas de como isso se dava no varejo da
vida.
Tabela 18: Cálculos sobre as escravarias do Vale do Paraíba (1834-1873)
Proprietários Percentua
l de
Homens
Percentu
al de
Estrange
iros
Peso do
Valor
dos
Escravos
no
Montant
e
Percentua
l Parentes
J. C. Tavares (1873) 51 21 45 17
I. P. Nunes (1857) 75 63 78 27
L. M. Assunção (1870-72) 60 64 26 45
M. J. Macedo (1835) 69 48 25 48
P. P. Dias (1873) 59 60 33 45
D. J. Carvalho (1834) 67 67 49 35
J.J.A.C. Branco (1839) 63 70 44 25
P. C. dos Reis (1850-52) 52 24 9 95
Fontes: Inventários post-mortem de João Correa Tavares, Luíza Maria Assunção, Damázio
José de Carvalho, Porcina de Paula Dias, José Joaquim de Abreu Castelo Branco e
Comendador Ignácio Pereira Nunes. Arquivo Nacional – RJ.
204
Da tabela acima, gostaríamos de destacar duas informações que podem
nos ajudar a compreender o peso da história da vida do próprio senhor na
formação da comunidade escrava. Para uma melhor visualização do que
queremos assinalar, tomemos o gráfico que segue.
Gráfico 25: Comparação entre percentual de estrangeiros, peso dos escravos
no inventário do senhor e percentual de parentes.
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
J. C. Tavares L. M.
Assunção
D. J.
Carvalho
M. J.
Macedo
P. P. Dias J.J.A.C.
Branco
I. P. Nunes P. C. dos
Reis
Percentual Homens Percentual de Estrangeiros
Peso do Valor dos Escravos no Monte Percentual Parentes
Linear (Percentual Homens) Linear (Percentual de Estrangeiros)
Linear (Peso do Valor dos Escravos no Monte) Linear (Percentual Parentes)
Fonte: Tabela 17
O que o gráfico está a nos mostrar é que o índice que acompanha mais
precisamente o nível de parentesco, não é a presença de estrangeiros, como
se poderia supor. Na verdade, algumas das propriedades com maior percentual
de estrangeiros apresentam alguns dos mais reduzidos graus de parentesco
em seu seio. A urgência de se aparentar para garantir a pacificação não se
205
verificou em toda a sua plenitude nestas propriedades. O percentual de
homens também apresentou irregularidades. Os plantéis de L. M. Assunção, D.
J. Carvalho, M. J. Macedo e P. P. Dias apresentam cifras próximas aos 60 ou
70 por cento de homens e taxas de parentesco bem maiores que a escravaria
de J. C. Tavares, constituída de aproximadamente 50% de homens. Em
contrapartida, os cativos de Pascoal Cosme dos Reis, o único do Sertão
Carioca, apresenta um equilíbrio no percentual dos sexos, com 52% de
homens e quase 100% de aparentados.
De forma bastante regular a linha de 40% funcionou como um divisor de
águas na relação entre parentesco e o peso monetário da escravaria em
relação ao montante do inventário. Neste caso, o que observa-se é uma
relação inversa entre estas duas grandezas. Uma possível explicação para isso
pode estar na história de vida do senhor. O peso dos escravos tenderia a se
reduzir conforme o senhor fosse enriquecendo e optando por outras formas de
amealhar riquezas, além dos seus negócios agrícolas. Imóveis, empréstimos,
apólices da dívida pública, dentre outras foram formas de agregar valores aos
já robustos capitais de tais proprietários.
109
É possível postular que o vulto das fortunas e, portanto o peso dos
escravos nelas, variaram em função da idade do proprietário e de seu estágio
de riqueza e prosperidade. A hipótese mais freqüentemente aceita sobre o
número de escravos em relação à vida do senhor é a de que uma
109 Pascoal Cosme dos Reis, por exemplo, possuía quase o mesmo montante em casas da
cidade que em escravos. Respectivamente 59 contos e 73 contos, aproximadamente. Seus
bens em terras e engenhos não passavam de 30 contos no momento de seu inventário.
206
correlação direta entre as grandezas idade do senhor e média de escravos
possuídos, conforme expresso na figura 6.
Iraci Del Nero da Costa postula que, segundo a região e atividade, dois
comportamentos são observáveis.
110
O primeiro, e que serviu de base
hipotética ao seu estudo, postula que a média de escravos possuídos por um
senhor tende a crescer com os seus anos até um limite máximo situado
próximo aos setenta anos. A partir deste ponto, em tese, o número de escravos
tenderia a ser decrescente, em função de dois fatores básicos: partilhas ainda
em vida e falta de reposição do contingente cativo. Esta observação, a
princípio, confirma a hipótese geral
Figura 6: Relação hipotética entre idade do proprietário e número de escravos
possuídos
Fonte: COSTA, I. N. Nota Sobre ...idcosta.tripod.com/tex/ar28.pdf
110 COSTA, I. N. Nota Sobre Ciclo de vida e posse de escravos.
iddcosta.tripod.com/tex/ar28.pdf
207
Figura 7: Número médio de escravos, segundo faixa de idade dos proprietários
senhores de engenho de sete localidades paulistas, 1804
Fonte: COSTA, I. N. Nota Sobre ...idcosta.tripod.com/tex/ar28.pdf
Uma segunda possibilidade foi observada por Del Nero entre os
senhores de engenho de sete localidades de São Paulo no ano de 1804. Desta
feita, a tendência da média de escravos de sua posse, ainda que oscilante nas
idades mais jovens dos proprietários, seguia em crescimento até o fim de sua
vida. Isto significa que, antes de mais nada, os ditos proprietários não
promoveram partilhas precoces. Além disso, ou eles permaneceram
abastecendo seus plantéis de estrangeiros, ou o crescimento endógeno passou
a suprir os referidos plantéis. De fato, ambas hipóteses não são excludentes.
208
De qualquer modo, embora o autor não saliente, a diferença de
comportamento pode estar ligada à diferença de tamanho dos plantéis.
Explicamo-nos: nos plantéis em que Del Nero verificou a hipótese geral, a
média de escravos mais elevada foi de seis cativos, aos setenta anos. Por
outro lado, entre os senhores de engenho, que mantiveram uma tendência
ascendente de posse de cativos até o fim da sua existência, foram observadas
médias de trinta e cinco cativos. Em função do que observamos aqui, no
princípio deste estudo, é possível que além do tráfico, a formação de núcleos
de parentesco geradas ao longo dos anos de vida do senhor que para os
cativos significaram anos de convívio e por tanto de consolidação social
também tenham concorrido neste acréscimo de escravos observado na
passagem da faixa de setenta a setenta e nove anos para a de oitenta ou mais.
Uma última forma de explicar este movimento de vertiginoso acréscimo
seria seguir a sugestão de João Fragoso e Ana Lugão
111
e supor que, no
declínio de suas vidas, estes senhores de engenho passassem a exercer
atividades usurárias, financiando os pequenos proprietários que tinham que
recorrer, talvez até com maior freqüência que eles, ao mercado de braços.
Desse modo, uma terceira via de abastecimento destes plantéis maiores seria
o pagamento de dívidas com escravos.
Nós, aqui, podemos supor que, de algum modo, o ponto de
maturidade do proprietário implicou no nível demográfico e, portanto, incidiu na
composição da comunidade escrava que estava sob sua posse. Como os
111 FRAGOSO, J. L. e LUGÂO, A. M. Um empresário brasileiro do oitocentos”. In CASTRO,
H. M. e SCHNOOR, E. Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks. 1995.
pp.197-224.
209
dados não nos permitem uma análise como a feita por Del Nero, nos limitamos
a entender que a relação entre o percentual do valor dos cativos frente ao
montante do inventário e o nível de parentesco se em função do ponto de
amadurecimento econômico no momento da morte do proprietário. Este
instantâneo na escalada sócio-econômica do produtor no momento em que a
vida lhe fugiu das mãos é capturado no inventário. A ascensão traz consigo o
sucesso financeiro e a diversificação dos seus negócios, da qual deriva a
redução do peso monetário dos escravos na riqueza total de seu senhor.
112
É possível que em função desta co-relação os proprietários que
possuíam mais de 40% do montante de sua fortuna investidos em escravos,
eram senhores de escravarias com menos de 40% de aparentados. De modo
oposto, o grupo de senhores que havia atingido um patamar que lhe permitia
transcender os negócios agrários, diversificando suas posses o suficiente para
que a escravaria representasse menos de 40%, possuía plantéis com mais de
40% de aparentados. Um menor peso nos negócios agrícolas pode representar
um maior, e quiçá menos exaustivamente explorado, tempo de convívio entre
os cativos.
O que postulamos aqui é que a proporção de cativos no montante das
fortunas reflete o estágio de desenvolvimento econômico em que o finado
proprietário se encontrava. Pressuposto a isso, é que havia uma estratégia
comum a essa elite rural para atingir patamares cada vez mais elevados de
fortuna. Desse modo, ao reduzir o peso de seus negócios agrícolas no
montante de sua riqueza o peso da exploração de seus escravos pode ser um
112 Idem.
210
pouco menor. Por outros meios, se outras fontes de onde amealhar fundos,
a propriedade agrária não necessita ser exaurida ou as relações de trabalho
não precisam ser levadas à beira do conflito, podendo ser mais regateadas,
sem prejuízo à fortuna final.
O que de fato se observa, então, é a vida do senhor interagindo com as
possibilidades escravas de modo a alterar-lhes os rumos. Não postulamos um
número cabalístico em 40%, para as nossas amostras este foi o eixo
encontrado. Mas é bem provável que em outros universos de casos, se
encontrem um eixo um pouco maior ou menor. Os plantéis mais antigos, em
áreas de ocupação mais pretérita acabam apresentando um peso menor no
inventário e uma proporção de aparentados maior. Veja-se como exemplo
disso, o caso de Pascoal Cosme dos Reis, do Sertão Carioca, cuja ocupação
remonta ao século XVI, quando foram constituídas as primeiras fazendas da
“nobreza da terra”.
A praxis estabelecida durante os culos de escravismo destes grupos
com seus cativos pode ter se consolidado de tal forma que passava de senhor
a senhor, com os legados de terras, títulos e outros. Ainda que cada novo
senhor tenha que estabelecer seu próprio convívio com seus cativos, o fez
sobre uma base de costumes assentada por seu predecessor. Dependendo do
volume do plantel em questão podemos retomar as recomendações do
deputado Raphael de Carvalho para Santa Cruz: “Ora com taes hábitos toda a
reforma exige prudencia”.
211
3. Um outro compadrio: entre o mundo livre e o cativeiro
Uma outra possibilidade de interação entre as comunidades cativa e livre
é pelo compadrio. Como vimos anteriormente, o compadrio foi um elemento
central na formação e na consubstanciação de relações de solidariedade na
sociedade rural brasileira. Até recentemente, tem sido relatada pela
historiografia duas esferas de consecução de padrinhos em espaços
diferenciados e autônomos. No entanto, partindo dos registros de batismos da
Freguesia de São Pedro e São Paulo em Paraíba do Sul, foi possível, no
período de 1871 a 1888, por ilação, inferir uma outra forma de plasmar laços de
reciprocidade.
O que pudemos observar, partindo dos pouco mais de dois mil e
seiscentos registros de batismo de escravos, foi uma considerável incidência
de padrinhos livres ou portadores de sobrenomes indicativos de famílias livres.
Isto é, separando os maiores proprietários, grosso modo, os que levaram mais
de 20 escravos à Pia durante o período, o que equivale a uma média pouco
superior a um batismo por ano, pode-se perceber que mais de trezentos e
sessenta das mil trezentos e sessenta e nove ocorrências de grandes
proprietários era com padrinhos livres ou com sobrenomes que o sugeriam.
Temos então, que algo em torno de um terço dos filhos dos cativos levados ao
212
batismo entre 1871 e 1888 era acompanhado de um potencial senhor de
escravos.
E mais: indícios, na verdade, da existência de uma comunidade de
senhores, possível de deduzir pelos sobrenomes, que freqüentava a Pia para
conceder o sacramento da iniciação cristã a rebentos de seus cativos. Ocorre,
ainda, que em poucos casos o padrinho era o proprietário da mãe do batizado.
Stephen Gudeman e Stuart Schwartz encontraram um padrão semelhante em
seu levantamento dos batismos do Recôncavo baiano. A explicação postulada
pelos autores para a ausência de senhores apadrinhando escravos tem haver
com as implicações morais e a perda de seu poder sobre os cativos, advindos
desta postura.113
Um dos poucos casos aos quais tivemos acesso e que o proprietário
apadrinhou seus cativos foi o do Barão de São Carlos, Carlos Pereira Nunes.
Em verdade, dos sessenta e seis cativos assentados no livro de batismo como
propriedade do Barão, sete foram por ele mesmo apadrinhados. Embora a cifra
de dez por cento possa parecer muito modesta, foi a mais elevada em todo o
conjunto.
Uma Segunda, e mais freqüente, possibilidade da presença de livres
como padrinhos de escravos é apadrinhando escravos de outros senhores.
Esta Segunda modalidade de simbiose entre comunidades livre e escrava
poderia, segundo supomos, se dar de duas formas, a saber. Uma primeira
incidental, quando o padrinho comparece batizando apenas um escravo. Isso
113 GUDEMAN, S. e SCHWARTZ, S. Purgando o pecado original : compadrio e batismo de
escravos na Bahia no século XVIII”, in REIS, J. J. (org.). Escravidão e invenção da liberdade.
Estudos sobre o negro no Brasil.São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 43.
213
aconteceu em aproximadamente 40% dos registros. Nestes casos, é difícil
postular qual a real intenção por trás do ato, ou mesmo inferir se a iniciativa
visava a montagem de uma rede de solidariedade que alçaria o padrinho à
esfera do proprietário do batizado ou se, por outro lado, seria uma ventura
cativa buscando granjear alguma solidariedade no mundo livre.
Uma outra forma destas duas comunidades, ou destas duas faces de
uma mesma comunidade, tangenciarem mutuamente é por meio dos padrinhos
'preferenciais'. Estes seriam aqueles que batizam pelo menos dois afilhados de
um dos grandes senhores. A princípio, pode-se imaginar que dois afilhados
perante a um universo de mais de mil e trezentos casos, não seria exatamente
preferencial, mas estamos tomando um universo de padrinhos potenciais
abissalmente maior, por isso lograr batizar pelo menos dois escravos dos
grandes senhores, já nos parece digno de nota.
Entre os padrinhos 'preferenciais', podemos classificar duas estratégias
que cremos pensadas e não casuais. A primeira estratégia pode ser
classificada como especializada. Explicamo-nos: trata-se de padrinhos
'preferenciais' que parecem ter investido seu potencial em um único senhor,
isto é, mesmo tendo batizado um número considerável de cativos, por opção
ou condição, o fizeram de um mesmo senhor. A tabela 2, onde observa-se
alguns padrinhos especializados, mostra que, embora a maioria seja de
padrinhos de dois cativos, alguns indivíduos apadrinharam seis, sete e até oito
cativos de um único grande senhor.
214
Tabela 19: Padrinhos preferenciais especializados, proprietários dos seus
afilhados e número de escravos apadrinhados (século XIX)
Padrinho Proprietário
Afilhados
Albino José Machado Domingos José Machado 2
Alfredo Augusto de Faria Firmo Alvez Pereira 6
Antônio Gonçalves Viana Manoel José Correa Tavarez 5
Antônio José Ribeiro Guimarães Firmo Alvez Pereira 2
Antônio Martins Viana Fideliz José de Souza 2
Antônio Pinto Correa da Silva João Correa Tavarez 3
Aureliano Augusto Figueira Firmo Alvez Pereira 3
Bento Pereira Nunes Mariana Pereira Nunes 2
Clemente José Nunes Ana Pereira Nunes 8
Ernesto José de Carvalho Br/Bsa Santa Justa 2
Eugênio Pinto Vieira João Jacinto do Couto 2
Felício Francisco da Silva Januário Jorge Machado 2
Geraldo Emílio da Silva Christóvão Rodrigues de Andrade
2
Jacinto Severiano Antônio Manuel Ayrosa 6
Jerônimo Campbell Januário Jorge Machado 3
João Joaquim Souza Machado Firmo Alvez Pereira 7
João José dos Reis Manoel José Correa Tavarez 3
Jorge Marques de Paiva Fideliz José de Souza 2
José Dionísio Ribeiro do Valle Januário Jorge Machado 2
José Gomes Pereira Antônio Manuel Ayrosa 3
José Rodrigues de Andrade Barão Piabanha 2
José Soares de Oliveira Maria Pereira Nunes 2
Júlio de Oliveira Condessa do Rio Novo 2
Luiz Castilho Baronesa de São Roque 3
Manoel José Correa Tavares Fideliz José de Souza 3
Odorico Alvares de Oliviera Visconde de Entre Rios 3
Pe. Antônio da Cunha Monteiro Br/Bsa Santa Justa 2
Pedro Ferreira Roza Victório Pereira Nunes 2
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo,
Paraíba do Sul, RJ.
215
Este é o caso, por exemplo, de Clemente José Nunes, que foi
responsável perante à Igreja Católica pela alma de oito escravos pertencentes
à Ana Pereira Nunes. Embora se possa imaginar que provavelmente Clemente
e Ana eram membros do mesmo clã, por compartilhar o sobrenome Nunes,
isso não explica porque Clemente aparece apenas como padrinho de cativos
de Ana, que outros Pereira Nunes apadrinham escravos de vários
proprietários simultaneamente.
Uma possibilidade para entender a repetição se deveria ao fato de que
Clemente teria batizado os oito cativos em uma única cerimônia. Estava
Clemente lá, à mão, e como bom cristão, não quis deixar perecerem no
paganismo as pobres almas dos pequenos filhos das escravas que, então, os
apresentava à Santa Madre Igreja. No caso de Clemente, isso é parcialmente
válido, uma vez que o seis batismos realizados no dia 26 de julho de 1878 e
outros dois em 9 de janeiro de 1878.
O mesmo se verifica com João Joaquim de Souza Machado, que
apadrinhou sete escravos de Firmo Alves Pereira, todos no dia 05 de dezembro
de 1878. Mas não corresponde, por exemplo, ao caso Antônio Gonçalves
Viana, que apadrinhou escravos de Manoel Correa Tavarez em 1878, 1879,
1882, 1883 e 1887. Assim também se deu com Jacinto Severiano que
apadrinhou escravos de Antônio Manuel Ayrosa em 1880, 1881, 1883, 1885 e
1887. Temos então, duas possibilidades para o mesmo fenômeno. Ou bem os
padrinhos ‘preferenciais’ poderiam ser ocasionais, isto é, batizando em uma
única cerimônia um grupo de cativos do mesmo senhor, ou bem eram
216
chamados a comparecer à Pia várias vezes, conferindo-lhes um caráter
sempiterno.
Seja como for, numa única cerimônia ou em momentos diferentes, é
possível que estes padrinhos, que raras vezes são eles mesmos grandes
proprietários de escravos, possam estar se conectando à uma esfera mais
seleta de senhores. Estes padrinhos, supomos, são elementos secundários na
escala de grandeza de Paraíba do Sul. É possível até, que sejam foreiros,
pequenos proprietários ou funcionários públicos, gente que vivia a orbitar os
senhores de seus compadres. Não descartamos, no entanto, que muitos
tenham sido escolhidos pelos próprios escravos, principalmente os casos de
menor freqüência. A conveniência pode ter sido responsável por alguns casos,
mas em boa medida este pode ter se constituído num dos fazeres possíveis a
conectar elementos da comunidade de senhores com a esfera cativa.
Houve, no entanto, muitos outros casos de livres ou prováveis livres que
chegaram à Pia para cumprir o papel de apadrinhar filhos de escravos de
senhores de grandes plantéis. Estes outros padrinhos preferenciais poderiam
ser chamados de 'conectores' uma vez que batizam filhos de escravos de
vários senhores, formando, via comunidade escrava, uma rede de associação
de entre proprietários e padrinhos. Sendo estes últimos, não mais
especialistas, mas freqüentadores de esferas diferenciadas do mundo livre. Um
dos principais casos de que dispomos é o de Joaquim Correa de Souza,
padrinho de nada menos que 23 pueris almas. Estas se dividiam entre os
principais plantéis de nossa amostra da seguinte forma:
217
. Do plantel de Ana Pereira Nunes: 5 afilhados
. Do plantel de Antônio Pinto de Oliveira: 7 afilhados
. Do plantel de Firmo Alves Pereira: 7 afilhados
. Do plantel de Hilário Joaquim de Andrade(Br. Piabanha): 1 afilhado
. Do plantel de Maria Pereira Nunes: 3 afilhados
Desse modo, parece-nos que ao alinhavar uma tecitura entre tão seletos
proprietários, o próprio Joaquim Correa de Souza o apenas tirava um bônus
desta relação para si, mas também promovia uma espécie de circulação de
bens simbólicos entre a mais alta sociedade, tornando-os ainda mais próximos
uns dos outros, em suma agindo em bando.
114
Outro caso a nos chamar a atenção é o de José Dutra da Silveira. Este,
padrinho de dezessete crianças, também distribuídas entre os grandes plantéis
da região. Os proprietários das mães de seus afilhados foram:
. Do plantel de Antônio Pinto de Oliveira: 4 afilhados
. Do plantel de Firmo Alves Pereira: 9 afilhados
. Do plantel de Maria Pereira Nunes: 4 afilhados
Ambos estavam conectados às mesmas grandes figuras do café de
Paraíba do Sul. Tanto José Dutra de Oliveira quanto Joaquim Correa de Souza
114 FRAGOSO, João. “A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite
senhorial do Rio de Janeiro (século XVI e XVII)”. in TOPOI, n.1. 2000. pp.45-122.
218
partilhavam relações com Antônio Pinto de Oliveira, Firmo Alvez Pereira e
Maria Pereira Nunes. Do mesmo modo ocorreu com João Martins de Oliveira.
Os mesmos senhores eram donos de seus compadres. Trata-se, no fim de
tudo, de uma rede de relações entre senhores e padrinhos da prole de
escravos que, também conectava os senhores entre si. No caso João Martins
de Oliveira a distribuição era a seguinte:
. Do plantel de Ana Pereira Nunes: 1 afilhado
. Do plantel de Antônio Pinto de Oliveira: 9 afilhados
. Do plantel de Maria Pereira Nunes: 3 afilhados
Ainda não nos é possível compreender os mecanismos internos destas
escolhas. O que nos parece claro é que não eram fortuitas e nem casuais.
Embora as cerimônias coletivas também se confirmem para estes casos, a
própria natureza diversa das operações faz com que sua incidência seja de
pequena monta. Isso nos leva a pensar que os senhores poderiam promover
uma festividade para batizar, quiçá na sua própria fazenda, carecendo de
posterior assento no livro da freguesia. As festividades e recreações para
amainar as agruras do cativeiro estavam em voga nos principais manuais
agrícolas da época. Nesta ocasião, interesses de cativos e de livres poderiam
se envolver em conluios muito próprios.
É de se estranhar que estes padrinhos conectores não possuam
inventários, ao menos neste período, nem tenham assumido posturas de
destaque. Até onde pudemos apurar, trata-se de um conjunto de ilustres
219
desconhecidos. Isto reforça a idéia de estratégia de ascensão social, ainda que
de pequena escala, ao que tudo indica uma escala local, mais ainda assim uma
estratégia.
Como recomendavam os autores mais publicados da época, citamos
nominalmente Carlos Augusto Taunay,
115
os senhores poderiam estar
mitigando as mazelas de seus cativos promovendo festins, neste caso,
supomos, por ocasião do batizado de seus filhos. Este mesmo evento
certamente era interpretado de formas diferentes por grupos sociais distintos.
Para os senhores, um rasgo de generosidade que manteria em paz a
comunidade que lhe pertencia. Paz esta, não apenas promovida pela
oportunidade de algum festejo, mas também pela consolidação do catolicismo
conservador entre a sua escravaria. Esses autores de que falamos
anteriormente também recomendavam a catolicização do plantel como outra
forma de pacificar os espíritos, desencorajando as fugas e revoltas e
ordenando a vida no cativeiro.
Para estes, os cativos, o momento não era apenas de festa, mas de
política. Como visto anteriormente, a consecução de padrinhos era uma
forma de aliança intra-cativeiro, o que também foi descrito por autores como
Ana Lugão.
116
O interessante é que neste mesmo instante, os cativos poderiam
lograr um padrinho extra-cativeiro para seus rebentos, raramente um grande
proprietário, mas com uma freqüência digna de nota, algum livre periférico à
estes.
115 TAUNAY, C. A. Manual do Agricultor Barsileiro. MARQUESE, R. B. São Paulo: Cia. Das
Letras. 2001. passim.
116 LUGÃO, A. M. The politic of kinship - compadrio Among Slaves in Nineteenth-Century
Brazil. In THE HISTORY OF THE FAMILY. Volume 5, Number 3, pages 287–298.
220
Fora o caso do Barão de São Carlos, já mencionado acima, que é
praticamente o único em que um grande senhor apadrinha um número
considerável de cativos, os demais Pereira Nunes apadrinham cativos de
outros senhores, ainda que do mesmo “clã”. Sendo os membros deste "clã"
relativamente fáceis de serem localizados, podemos traçar, dentre pequenos,
médios e grandes proprietários, um roteiro de apadrinhamentos preferenciais
entre eles. Senão vejamos.
Os dados mostram apenas os casos em que ambos, padrinho e
madrinha, eram Pereira Nunes ou Rabelo, ramos familiares interligados. Se
somássemos a estes, os casos em que apenas figuram o padrinho ou a
madrinha, teríamos uma tabela de mais de cento e setenta ocorrências,
impossível de ser manejada. Em função disso, tomamos como emblemáticos
os dados descritos na tabela 20. A partir daí, é possível notar que não apenas
o círculo de padrinhos é forte mas, no caso específico dos Pereira Nunes, o de
madrinhas também o é. Isso o chega a ser exatamente uma surpresa, visto
que na esfera dos grandes proprietários aparecem pelo menos três mulheres
no grupo. Tal presença está a nos indicar que as mulheres Pereira Nunes
poderiam assumir, em dados momentos, até onde sabemos, um papel de
importância na esfera de relações políticas da família. Observa-se ainda, que o
sobrenome Rabelo também pertencia ao mesmo grupo.
221
Tabela 20: Casos em que o proprietário e os padrinhos pertenciam à família
Pereira Nunes
Proprietário da Mãe Madrinha Padrinho
Barão de São Carlos Humbelina Pereira Nunes José Carlos Pereira Nuens
Barão de São Carlos Olímpia Pereira Nunes Adolpho Pereira Rabello
Barão de São Carlos Hermínia Pereira Nunes Carlos Pereira Nunes
Barão de São Carlos Olímpia Nunes Rabello Carlos Nunes Rabello
Barão de São Carlos Hermínia Pereira Nunes José Carlos Pereira Nuens
Barão de São Carlos Hermínia Pereira Nunes Carlos Pereira Nune
Barão de São Carlos Hermínia Pereira Nunes José Carlos Pereira Nuens
Barão de São Carlos Maria Charlier Pereira Nunes Christóvão Pereira Nunes
Inocência Xavier Rabello Perpétua Pereira Nunes Felipe Pereira Nunes
Inocência Xavier Rabello Georgina Pereira Nunes Adolpho Pereira Nunes
Jacintho Pereira Nunes Presciliana Pereira Nunes Jacintho Pereira Nunes
João Carlos Pereira Nunes
Hermínia Pereira Nunes Carlos Pereira Nune
José Pereira Nunes Mariana Soares Pereira Nunes
Ognácio Pereira Nunes
Maria Pereira Nunes Maphalda Pereira Nunes Antônio Carlos Pereira Nunes
Victório Pereira Nunes Inocência Pereira Nunes João Carlos Pereira Nunes
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo,
Paraíba do Sul, RJ.
Voltando ao Barão de o Carlos, temos pelo menos oito casos em que
o padrinho e a madrinha eram Pereira Nunes também. As preferências
parecem ter recaído sobre Hermínia Pereira Nunes e sobre o próprio Carlos
Pereira Nunes. Este, por piedade o por ambições políticas, parece ter tido uma
certa predileção pelo apadrinhamento de cativos. Talvez, seja este tipo de
222
comportamento descrito por Henry Laurens que falava do amor do qual se
julgava merecedor face ao bom tratamento que concedia a seus escravos.
117
Se esta era realmente uma forma de construir redes de reciprocidade, o
que de modo algum significa igualdade,
118
ela foi projetada a seis mãos
senhores, padrinhos e escravos cada par torcendo-a segundo seus
interesses e ambições. Nos diagramas que seguem tentamos mostrar partes
destas redes que abrangiam praticamente todos os grandes senhores, embora
com número de laços diferentes.
O primeiro diagrama apresenta a rede montada a partir de Ana Perira
Nunes, esta mesma rede segue em diagramas posteriores alterando as
posições de ego. Como vimos anteriormente, indivíduos como Joaquim Correa
de Souza e João Martins de Oliveira Costa aparecem vinculados e vinculando
os principais produtores da região. Um dos dois, ou em alguns casos ambos,
conectam Ana Pereira Nunes a Hilário Joaquim de Andrade (Barão de
Piabanha), a Firmo Alves de Pereira, a Maria Pereira Nunes e a Antônio Pinto
de Oliveira. as conexões de Domingos José de Santana, aqui detectadas,
se estabelecem exclusivamente por meio de Cândido Martins de Lima.
O diagrama 1 tem seqüência nos diagramas 3, 4, 5, e 7. Se juntarmos
todos os supostos vínculos, veremos que a rede se enlaça, no mais das vezes,
por mais de um padrinho em cada conexão. Os diagramas 1, 3 e 7, mais
complexos mostram o quanto a família Pereira Nunes estava enraizada nessa
117 MARQUESE, R. B. Feitores do corpo, missionários da mente:senhores, letrados e o
controle de escravos nas Américas, 1680-1880. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. p.
246.
118 RIBEIRO, João Luiz Fragoso. “A nobreza da República: notas sobre a formação da
primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (século XVI e XVII)”. in TOPOI, n.1. 2000. pp.45-122.
223
região. É difícil dizer, quem ocupava o espaço central neste esquema, ou quem
auferia maiores benefícios. Nos parece que, sendo uma das opções de
plastificação das reciprocidades ou mesmo como um momento de dons e
contra-dons imateriais, pais, padrinhos e senhores, tinham em mente muito
mais do que o sacramento católico.
Diagrama número dois apresenta um quadro diverso do anterior. Trata-
se de um dos proprietários com maior freqüência de escravos batizados,
perfazendo um total de 124 num período de dezessete anos. Isto equivale dizer
que sua escravaria obteve, no mínimo, uma média de 7,3 rebentos a cada ano.
O que daria um mínimo de 15 a 20 mulheres férteis, considerando um intervalo
intergenésico entre dois e três anos. Tomando por base a composição
demográfica da Fazenda São Fidélis, pertencente ao Barão de Santa Justa e
que apresenta uma configuração nem tão equilibrada quanto a de Santa Cruz,
nem tão concentrada quanto uma fazenda plenamente inserida no tráfico de
almas, é possível estimar uma ordem de grandeza de 80 escravos (+/- 20) no
plantel de Antônio Manuel Ayrosa.
Sendo proprietário de uma escravaria deste porte, é de estranhar que o
número de vínculos capturados seja tão diminuto. No entanto, o que
postulamos aqui é que este é apenas um dos mecanismos de inserção nas
redes de reciprocidade, não o único. Ademais, segundo os estudos de João
Fragoso para a formação da nobreza da terra, nos séculos XVI e XVII, a
nobreza se organiza em bandos,
119
que além das alianças também produziam
rivalidades. O fato é que Ayrosa poderia estar sofrendo algum tipo de
119 Idem.
224
resistência. O que pode indicar que trata-se de um proprietário recém chegado,
ou ao lugar ou ao lócus de grande.
De modo semelhante, observa-se o diagrama de Firmo José Pereira.
Este proprietário apresentou 53 crianças, prole de suas escravas, ao batismo
nos dezessete anos em questão. Embora não seja tão grande quanto os
plantéis que estudamos anteriormente, trata-se de outro dos proprietários que
mais levou almas à Pia da Freguesia de São Pedro e São Paulo. Assim como
Ayrosa, a freqüência de padrinhos ‘preferenciais’ na iniciação cristã de seus
inocentes não foi tão grande quanto a de outros cafeicultores. É possível que o
mesmo que ocorreu com Manuel Ayrosa tenha se dado com Firmo.
Se estivermos minimamente corretos em nossa disquisição, talvez
tenhamos uma forma alternativa de explicar a ausência de senhores batizando
seus próprios escravos observada por Gudeman e Schwartz na Bahia do
século XVIII. Além do envolvimento moral e da possível perda de autoridade do
senhor-padrinho, moralmente comprometido com seu escravo-afilhado,
poderíamos aventar uma explicação de ordem antropológica. Cada rebento de
seu plantel batizado por si mesmo seria uma possibilidade de dar substância às
relações de reciprocidades tecidas no seio de sua comunidade, que se
perderia. Não queremos dizer que estas se formassem no batismo dos cativos,
mas ganhavam corpo sócio-cultural neste momento.
De todo modo, fica mais ou menos claro, que estas esferas a dos
grandes cafeicultores, a dos livres que circulavam socialmente e a dos
escravos – se mesclavam para compor um cenário único, com cada ator
desempenhando um papel definido. Mas, no fundo, a trama da história
225
entrelaça os personagens, nas trocas materiais e imateriais que requerem
contra-dons e, assim, fazem girar uma economia política fundamentada em um
hierarquia social de tipo estamental e excludente.
226
Diagrama 1: Distribuição dos vínculos entre senhores a partir dos padrinhos de seus escravos na Freguesia de São Pedro e São
Paulo tomando como Ego Ana Pereira Nunes, Vale do Paraíba, século XIX.
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo, Paraíba do Sul, RJ.
Ana Pereira Nunes
Firmo Alvez Pereira
Hilário Joaquim de
Andrade
Domingos José de
Santana
Maria Pereira Nunes
Antônio Pinto de
Oliveira
Joaquim Correa de
Souza
Joaquim Correa
de Souza
Joaquim Correa
de Souza
Joaquim Correa de Souza
João Martins de O. Costa
Alfredo Dutra da Silveira
Joaquim Correa de Souza
João Martins de O. Costa
Cândido Martins de Lima
Joaquim Correa de Souza
João Martins de O. Costa
Cândido Martins de Lima
Cândido Martins de Lima
Joaquim Correa
de Souza
Joaquim Correa de
Souza
Manoel José Pitanga
Joaquim Correa de
Souza
227
Diagrama 2: Distribuição dos vínculos entre senhores a partir dos padrinhos de seus escravos na Freguesia de São Pedro e São
Paulo tomando como Ego Antônio Manuel Ayrosa, Vale do Paraíba, século XIX.
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo, Paraíba do Sul, RJ.
Antônio Manuel Ayrosa
Maria Pereira Nunes
Antônio Correia
Tavares
Baroneza Entre
Rios
Ignácio Felício Alvarenga
Salles (vigário)
Ignácio Felício Alvarenga
Salles (vigário)
Ignácio Felício Alvarenga
Salles (vigário)
Manoel Fernandes
Correa
228
Diagrama 3: Distribuição dos vínculos entre senhores a partir dos padrinhos de seus escravos na Freguesia de São Pedro e São
Paulo tomando como Ego Antônio Pinto de Oliveira, Vale do Paraíba, século XIX.
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo, Paraíba do Sul, RJ.
Carlos Lovisi Romano
Antônio Pinto de
Oliveira
Maria Pereira Nunes
Domingos José
Santana
Ana Pereira
Nunes
Candido Martins de Lima
Joaquim Correa de Souza
Alfredo Dutra da Silveira
João Martins de Oliveira
Costa
Candido Martins de Lima
João Martins de Oliveira
Costa
Joaquim Correa de Souza
Candido Martins de Lima
Mariana Pereira
Nunes
Joaquim Correa de Souza
João Martins de Oliveira Costa
Firmo Alvez
Pereira
Hilário Joaquim
de Andrade
Joaquim Correa de
Souza
Joaquim Correa de Souza
Joaquim Correa de Souza
Joaquim Correa de
Souza
229
Diagrama 4: Distribuição dos vínculos entre senhores a partir dos padrinhos de seus escravos na Freguesia de São Pedro e São
Paulo tomando como Ego Firmo Alvez Pereira, Vale do Paraíba, século XIX.
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo, Paraíba do Sul, RJ.
Firmo Alvez Pereira
Maria Pereira Nunes
Antônio Pinto de
Oliveira
José Dutra da Silveira
Joaquim Correa de
Souza
José Dutra da Silveira
Joaquim Correa de
Souza
Luiz de Oliveira Pinto
José Dutra da Silveira
Joaquim Correa de
Souza
Ana Pereira
Nunes
Manoel José Pitanga
230
Diagrama 5: Distribuição dos vínculos entre senhores a partir dos padrinhos de seus escravos na Freguesia de São Pedro e São
Paulo tomando como Ego Hilário Joaquim de Andrade (Barão de Piabanha), Vale do Paraíba, século XIX.
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo, Paraíba do Sul, RJ.
Hilário Joaquim de
Andrade
(Barão de Piabanha)
Maria Pereira Nunes
Dr. Christóvão Rodrigues
de Andrade
Ana Pereira
Nunes
Hilário Rodrigues da Silva
Joaquim Correa de Souza
Joaquim Correa de Souza
Joaquim Correa de Souza
João Martins de Oliveira Costa
Firmo Alvez
Pereira
Antônio Pinto de
Oliveira
Joaquim Correa de
Souza
Joaquim Correa de Souza
Joaquim Correa de Souza
Joaquim Correa de
Souza
231
Diagrama 6: Distribuição dos vínculos entre senhores a partir dos padrinhos de seus escravos na Freguesia de São Pedro e São
Paulo tomando como Ego Barão e Baroneza de Entre Rios, Vale do Paraíba, século XIX.
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo, Paraíba do Sul, RJ.
Barão e Baroneza de
Entre Rios
Maria Pereira Nunes
Antônio Manuel Ayrosa
Br e Brza do Rio
Novo
Manuel Fernandes
Correia
Antônio Dias da Costa
Amancio Geraldo Barroso
Manuel Periera Mendes
Virgínio Emerenciano
Pereira
José Pedro
Guimarães
Antônio Barroso
Pereira Jr.
Antônio Gonçalves
de Moura
Antônio Dias da Costa
Antônio Dias da Costa
232
Diagrama 7: Distribuição dos vínculos entre senhores a partir dos padrinhos de seus escravos na Freguesia de São Pedro e São
Paulo tomando como Ego Barão e Baroneza de Entre Rios, Vale do Paraíba, século XIX.
Fonte: Livro de Batismos de escravos da Freguesia de São Pedro e São Paulo, Paraíba do Sul, RJ.
Antônio Dias da Costa
Maria Pereira Nunes
Firmo Alvez Pereira
Hilário Joaquim de
Andrade
Br. Piabanha
Ana Pereira Nunes
Antônio Pinto de
Oliveira
Joaquim Correa de
Souza
Joaquim Correa
de Souza
Joaquim Correa
de Souza
Joaquim Correa de Souza
João Martins de O. Costa
Alfredo Dutra da Silveira
Joaquim Correa de Souza
João Martins de O. Costa
Cândido Martins de Lima
Joaquim Correa de
Souza
Cândido Martins de Lima
Antônio Carlos Pereira Nunes
Joaquim Correa
de Souza
Joaquim Correa de
Souza
Carlos Pereira
Nunes
Mariana Pereira
Nunes
Antônio Carlos
Pereira Nunes
José Pedro Guimarães
Br. E Brza de Entre
Rios
Antônio Dias da Costa
João Correa
Tavares
Antônio Manuel
Ayrosa
Ignácio Felício Alvarenga Sales
Ignácio Felício Alvarenga Sales
233
Conclusão: o que viu Nabuco
Joaquim Nabuco teve o privilégio, e quiçá a coragem, de, do alto de sua
vida, revisitar os anos de seu passado. Minha Formação
120
é o legado de uma
profunda reflexão na qual a maturidade examina a mocidade do mesmo
homem. De certo não é uma tarefa das mais fáceis, a nostalgia é um
sentimento traiçoeiro e ardiloso. Tendo em mente que boa parte da vida pública
do deputado foi talhada no movimento abolicionista, deixemos que ele mesmo
nos conduza ao lugar onde a sua percepção da escravidão se formou.
Massangana foi sua residência de infância e onde foi criado por sua
madrinha, Dona Ana Rosa Falcão de Carvalho, até os oito anos. Nesta
fazenda, certa feita, um negro fugido se atirou aos pés do pequeno Joaquim
Nabuco, como ele nos relata, quando estava sentado nos degraus da escada
externa da casa. Ao implorar que sua madrinha o comprasse para livrá-lo do
seu antigo senhor, o jovem negro, no vigor de seus dezoito anos, almejava,
mais do que a liberdade, ansiava por trabalho e por um lugar no “pombal
negro” de Massangana.
Paradoxo? Pode ser. Embora essa imagem, segundo Nabuco, tenha lhe
semeado na alma o vigor abolicionista que afloraria anos mais tarde, ela
também propõem um dilema ao abolicionista. O cativo da fazenda vizinha
buscava um “bom cativeiro” e não a liberdade. Mas o deputado, que se admitia
vitimado pela saudade do escravo, a qual não conseguia compreender,
120 NABUCO, Joaquim. Minha formação. Clássicos Jackson. Vol. XX. São Paulo: W. M.
Jackson Inc. Editores. 1952.
234
mostrou, ao menos entender que o sistema escravista se sustentava também
sobre uma base de conciliação. Como dissemos antes, não se duvide que a
violência existia, o prova o jovem fujão, mas de igual modo não se fie que era o
único mecanismo de interação entre cativos e algozes.
Segundo a preciosa percepção do Abolicionista:
(...) Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em
minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do
senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma coisa
parecida com a dedicação animal que nunca se altera, porque
o fermento da desigualdade não pode penetrar nela. Também
eu receio que essa espécie particular de escravidão tenha
existido somente em propriedades muito antigas,
administradas durante gerações seguidas com o mesmo
espírito de humanidade, e onde uma longa hereditariedade de
relações fixas entre o senhor e os escravos tivessem feito de
um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo.
(...)
121
Não podemos perder de vista que temos nas mãos o texto de um
abolicionista, por tanto, o exagero que temos de descontar em nossas
interpretações não é tão grande assim. Ainda que o jugo suave e o espírito de
humanidade exalem um odor quase libertário ao grupo de senhores a que se
refere, algo que se investigar nesse contexto. É possível que o que Nabuco
tenha identificado, assim como Freyre muito depois dele, não seja exatamente
uma camaradagem, mas um sistema de reprodução da instituição. Não
necessariamente estamos falando de uma reprodução demográfica, embora
ela não esteja descartada, mas nos referimos mais diretamente à reprodução
cultural do sistema, o que o torna viável e que foi mais visível aos olhos do
Abolicionista em um determinado tipo de escravaria. Segundo ele, a
121 Idem. p. 232-233.
235
ancestralidade das relações era o fator determinante, mas é possível que o
tempo de afastamento do tráfico atlântico fosse igualmente importante e ainda
que o volume demográfico também atuasse nesse sentido.
De qualquer modo, ainda que esses plantéis apresentassem um
paroxismo, é certo que na escravidão de um modo geral os elementos
fundamentais na construção das relações entre senhores e escravos
estivessem presentes, em maior ou menor medida. Eram eles os constituintes
da própria sociedade escravista, a amalgama que ligava senhores e escravos,
e que de tal modo mantinha a quase totalidade dos cativos ligados aos seus
senhores, permitindo que o volume de cativos pudesse se constituir numa das
principais diferenças entre os senhores. Sendo essa a diferença cultivada como
medida da posição do indivíduo na escala social.
Ao optarmos por estudar os grandes plantéis não esperamos encontrar
uma escravidão menos dolorosa do que em outras escravarias. O que
postulamos existir é um conjunto de meios próprios para lidar com a dor do
cativeiro. De fato, buscamos demonstrar que uma grande escravaria é o
primeiro paço para a formação de uma comunidade, mas que esse processo
de formação pode estar em diversos estágios em um percurso que lhe é
próprio. O determinam o volume da escravaria, o tempo de abandono do
tráfico, traduzido em estabilidade demográfica e os espaços que se pôde
engendrar pelos seus habitantes considerando-se que a progressiva
integração dos indivíduos pela multiplicação dos laços parentais tende a
ampliar os espaços da comunidade. Esses espaços financeiros, temporais e
236
sociais tendem a se agregar ao habitus da comunidade que se solidifica na
medida em que o tempo de uso transcorre.
Os significados e os motivos que conduzem ao estabelecimento de tais
práticas podem diferir, e de fato diferem, de propriedade para propriedade. E
mais. Diferem em acordo com o observador. Como exemplo disso, temos os
lotes de terra aos quais se referia o barão de Pati do Alferes. Para ele era
basicamente um lenitivo para os ânimos de seus cativos, um escape para a
tensão do cativeiro. Certamente os cativos que recebiam a terra não a viam
assim. Sua esperança era avançar mais um passo na ascensão social
intracativeiro, que, um dia, poderia lhe proporcionar os meios não apenas para
o salto social para além de suas fronteiras, mas um meio de sobreviver lá.
Mais que liberdade o que poderia estar em jogo era ir além da linha de
exclusão social - entendida como exclusão aos meios de ascensão social -,
além da condição jurídica de escravo.
Nós, em nossos estudos e em nossa reflexão sobre a constituição e
dinâmica de comunidades escravas no sudeste oitocentista, tememos em dado
momento pasteurizar as comunidades, negando-lhes historicidade própria. O
temor nos veio pelo fato de termos estudado durante alguns anos, na
graduação e no mestrado, uma comunidade com um alto grau de
complexidade: Santa Cruz. Tememos, em certo momento, crer que o destino
de todas as comunidades escravas fosse se tornar uma Santa Cruz.
Visto que postulamos ser a comunidade um gradiente, não podemos por
pressupostos teóricos e por nossas pesquisas nos impedirem, postular um
sentido na história das comunidades escravas. Os elementos constitutivos
237
eram semelhantes, visto que todas eram cativas no sudeste, na maior parte
das vezes na segunda metade do século XIX. Ocorre, porém, que os usos e
escolhas destes elementos que apenas pudemos inventariar, se em função
das escolhas e conveniências de cada grupo em particular. Negar isso seria
um retrocesso ao século XIX.
Talvez tenhamos entrevisto em cada uma das escravarias que
analisamos aquilo que Nabuco viu em Massangana e em si próprio, com a
saudade do escravo. A sustentação, na ordem da cultura, de uma instituição
que marcou profundamente a vida brasileira, tão profundamente que seus ecos
nos são audíveis ainda hoje.
238
Anexos
Anexo 1: Lista das fontes primarias quantitativas
1. Listas nominativas de inventários patrimoniais e post-morten
# Ano Lista Escravos
Listas Nominativas de Inventários e Similares
1 1872 Camorim (Beneditinos) 172
2 1807 José Cardoso dos Santos 137
3 1809 José Cardoso dos Santos 46
4 1815 José Cardoso dos Santos 243
5 1815 José Cardoso dos Santos 51
6 1822 José Cardoso dos Santos 180
7 1850 Pascoal Cosme dos Reis 339
8 1852 Pascoal Cosme dos Reis 380
9 1791 Santa Cruz (Estatal) 1342
10 1817 Santa Cruz e feitorias (Estatal) 1642
11 1837 Com. Vallim 294
12 1864 Com. Vallim 474
13 1872 Com. Vallim 437
14 1872 Com. Vallim 227
15 1878 Com. Vallim 657
16 1760 São Cristóvão 353
17 1671 Chuao (Estatal) 111
18 1768 Chuao (Estatal) 143
19 1808 Chuao (Estatal) 300
20 1768 La Rioja (Jesuitas) 274
21 1768 San Miguel de Tucuman (Jesuitas) 130
22 1768 San Tiago de Estero (Jesuitas) 95
23 1873 Com. Joao Correa Tavares 319
24 1873 Com. Joao Correa Tavares 445
25 1870 Luiza Maria de Assunpção 89
26 1872 Luiza Maria de Assunpção 101
27 1882 Condessa do Rio Novo 245
28 1834 Alf. Damazo José de Carvalho 99
29 1835 Maria Jacinta de Macedo 139
30 1839 José Joaquim de Abreu Castelo Branco 112
31 1852 Antonio Luiz dos Santos Werneck 270
32 1855 Calixto Cândido Gonçalves 108
33 1856 Ana Theodora da Silva Reis 106
34 1857 Com. Ignácio Pereira Nunes 535
35 1857 Rosa Luíza Azevedo (viúva do Com. Manoel Joaquim de Azevedo) 187
36 1862 Manoel Joaquim de Oliveira 158
37 1864 Baronesa da Paraíba (Carolina Rosa de Azevedo, viúva do Barão da Paraíba) 363
38 1860 Ana Cândida Barbosa 129
39 1869 Barão e Baronesa de Piabinha 143
40 1873 Porcina de Paula Dias 126
41 1872 Barão de São Roque 331
42 1872 Luiza Maria de Assunção 101
43 1872 Magdalena Maria Pereira 126
44 1873 Barão e Baronesa de Santa Justa 149
45 1873 Barão e Baronesa de Santa Justa 107
46 1872 Barão e Baronesa de Santa Justa 164
47 1872 Barão e Baronesa de Santa Justa 128
48 1864 Vargem Pequena (Beneditinos) 87
49 1864 Vargem Grande (Beneditinos) 76
Total 12.970
239
2. Lista livros de batismo, casamento e óbito
Batismos, Casamentos e Óbitos
1 Batizados do Camorim (1795-1810) 64
2 Casamentos do Camorim (1791-1837) 32
3 Batizados de José Cardoso dos Santo (1794-1809) 120
4 Batizados de Pascoal Cosme dos Reis (1822-1832) 63
5 Casamentos de Pascoal Cosme dos Reis (1838-1852) 15
6 Óbitos de Pascoal Cosme dos Reis (1842-1852) 129
7 Nascimentos do Com. Vallim (1858-1871) 247
8 Batizados do Com. Vallim (1820-1871) 575
9 Casamentos do Com. Vallim (1836-1871) 127
10 Livro de Batismos de Escravos da Freguesia de S. Pedro
e S. Paulo
2.672
Total 4.044
Total de Registros 17.01
4
240
Anexo 2: Listas de distribuição da mão-de-obra escrava
1. Distribuição dos escravos de serviço da Real Fazenda de Santa Cruz (1815)
Funções Home
ns
Rapaz
es
Funções Mulhe
res
Rapari
gas
Carpinteiro: No fabrico de manteiga 1
Oficiais 6 Nas oficinas de teares 15 20
Aprendizes 14 19 Na olaria 5
Pedreiro: No armazém 8
Oficiais 6 Com os empregados 4
Aprendizes 5 No Paço 1
Serventes 5 7 Enfermeiras 4
Ferreiros: Parteiras 2
Oficiais 5 Amas de cegos 10
Tocadores de fole 2 Amas de crianças 11
Sapateiros: Na horta 7
Oficiais Colhendo mamonas 11
Aprendizes 1 3 Paridas 26
Outros serviços Dispensadas por
estarem próximas de
parir
9
Oficiais curtidores 8 Nos caminhos 40 8
Oficiais manteigueiros 1 A dispor diariamente 164 22
Oficiais tecelões 4 Soma 318 50 (368)
Oficiais oleiros 8
No hospital
Cirurgiões 1
Barbeiros 2
Enfermeiros 2
Cozinheiros 2
Carreiros 13
Candeeiros 12
Carroceiros 3
Campeiros 26 8
Centeiros enteireiros 4
Hortelões 2
Sacristãos 2 1
Com os empregados 2 6
Guardas de roças 9
Feitores 1
Nos caminhos 2
Com licenças 3
Na cavalariça 1
No armazém 1
A dispor diariamente 57
Soma 193 61
(254)
Fonte: Observações sobre a administração da Real Fazenda de Santa Cruz,
pelo tenente coronel Francisco Cordeiro da Silva Torres. Acompanha uma
relação dos escravos a serviço naquela fazenda, 1815 Biblioteca Nacional (II
- 34, 33, 8)
241
2. Mapa da distribuição da Escravaria da Fazenda do Camorim (1864-1867)
1864 1865 1866 1867
Total de Escravos 169 141 133 128
Homens (adultos+idosos) 46 46 41 38
Feitor 1 1 1 1
Carpinteiros 2 7 5 4
Aprendizes de Carpinteiro - - 1 1
Pedreiros 3 4 4 3
Ferreiros 2 1 1 -
Aprendizes de Ferreiro 1 - - -
Curraleiros 1 2 - -
Serventes 3 3 2 2
Vigia dos partidos 1 1 1 1
Serventes de estrebaria 1 1 1 1
Campeiros - 1 1 1
Oleiro 1 1
122
1
123
1
124
Maquinistas 1 1 1 1
Carreiro - 1 1 1
Hortelãos 1 1 1 1
Alambiqueiros 2 - 2 2
Mestre de Açúcar 1 1
125
1
126
1
127
Tanoeiro 1 1 1 1
De enxada 14 16 13 12
Pagem - - 1 1
Dispensados 1 1 1 1
No Mosteiro - 1 - -
Inválidos 1 1 1 1
Meninos 30 19 20 17
Curraleiros 2 - - -
Campeiros 2 1 2 2
Serventes da Casa 1 1 - -
Total de Escravos 76 65 61 55
Mulheres (adultas+idosas) 59 48 45 45
Ama de crianças 1 1 1 1
Parteiras 1 1 1 -
Lavadeiras - - - 1
Cozinheiras - - 1 1
De enxada 51 42 39 41
Dispensadas 3 2 1 1
Inválidas 3 2 1 1
Meninas 34 28 27 28
Amas 1 1 - -
Serventes de Cozinha 1 1 1 1
Total de escravas 93 76 73 73
Libertos morando na fazenda 8 5 12 23
Total da população escrava e liberta 177 146 145 151
Fonte: Códices 49-52, Arquivo do Mosteiro de São Bento – RJ.
122 Também é campeiro
123 Também é da enxada
124 idem
125 Também é carreiro
126 idem
127 idem
242
Fontes
Fontes Manuscritas
Inventário post-mortem Pascoal Cosme dos Reis, 1850-1852, Arquivo Nacional
(RJ).
Matricula de Escravos de 1872 (constante do inventário post-mortem de
Manuel de Aguiar Vallim, de 1878); Lista Privada de Nascimentos de Escravos
de 1856 a 1871, Arquivo Nacional (RJ).
Livros de Batismos e Matrimônios de Escravos -- todo este material se
encontra no Arquivo do Ofício Judicial da Comarca de Bananal; no Arquivo
Histórico de Bananal e no Arquivo da Cúria Diocesana de Lorena (SP).
Livro de Batismos de Escravos da Freguesia de São Pedro e o Paulo
Paraíba do Sul – RJ.
Lista nominativa dos Escravos do Engenho do Camorim (Códice 49) Arquivo do
Mosteiro de São Bento (RJ).
Inventário de Jacinto Alves Barbosa /Barão de Santa Justa (1872-73), Arquivo
Nacional (RJ).
Inventário do Dr. Antônio Moreira de Castilho/Barão de São Roque (1873),
Arquivo Nacional (RJ).
Inventário dos Escravos da Real Fazenda de Santa Cruz, 1791, Arquivo
Nacional (RJ).
Observações sobre a administração da Real Fazenda de Santa Cruz, pelo
tenente coronel Francisco Cordeiro da Silva Torres. Acompanha uma relação
243
dos escravos a serviço naquela fazenda, 1815 – Biblioteca Nacional (II - 34, 33,
8)
Mapa da totalidade da Escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz. Datado
de 30/06/1849 e assinado pelo escrivão Pedro Nolasco da Silva. Arquivo do
Museu Imperial. Petrópolis.
Mapas da ocupação da escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz, para
os anos de 1855, 1856 e 1858. Arquivo do Museu Imperial. Petrópolis.
Estados da Ordem e outros documentos. Arquivo do Mosteiro de São Bento do
Rio de Janeiro, RJ.
244
Fontes Impressas
Figueroa, Federico Brito. El Problema Tierra y Esclavos en la Historia de
Venezuela. Caracas, Universidad Central de Venezuela, 1996, pp. 101-102,
106-109 e 119-128.
Inventario de Esclavos (prorpiedades: La Rioja, San Tiago de Estero e San
Miguel de Tucumán). Publicado em: ANDRÉS-GALLEGO, José. “Esclavos de
temporalidades (el Tucumán, 1768): posibilidades de una fuente documental”.
In: Revista de História Eclesiástica – Hispania Sacra. N. 48. 1996.
Resolução 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho
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