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Universidade Presbiteriana Mackenzie
Centro de Ciências Sociais Aplicadas
Programa de Pós-Graduação em Administração de Empresas
DE CATADORES DE RUA A RECICLADORES
COOPERADOS: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A
FORMAÇÃO E A GESTÃO DE UMA COOPERATIVA DE
RECICLAGEM
Diego Bonaldo Coelho
São Paulo
2007
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Diego Bonaldo Coelho
DE CATADORES DE RUA A RECICLADORES COOPERADOS: UM
ESTUDO DE CASO SOBRE A FORMAÇÃO E A GESTÃO DE UMA
COOPERATIVA DE RECICLAGEM
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Administração de
Empresas da Universidade Presbiteriana
Mackenzie para a obtenção do título de
Mestre em Administração de Empresas
Orientadora: Profa. Dra. Arilda Schmidt Godoy
São Paulo
2007
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Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Professor Dr. Manassés Claudino Fonteles
Decano de Pesquisa e Pós-Graduação
Professora Dra. Sandra Maria Dotto Stump
Diretor do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas
Professor Dr. Reynaldo Cavalheiro Marcondes
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Administração de
Empresas
Professora Dra. Eliane Pereira Zamith Brito
De repente, fez-se o silêncio.
Inesperado, mas inevitável devir da vida.
Eterna e dolorida ausência.
Em minha memória e coração,
com muito amor e carinho,
sempre estarás, sentado, em sua cativa cadeira.
Sua inteligência, seu humor e sua rabugice,
imortalizados.
Dedico essa dissertação a um grande indivíduo,
que me ensinou sobre a vida, sobre ser cidadão,
sobre ser homem:
Ao amado vô Oscar Coelho, in memoriam.
AGRADECIMENTOS
Cursar o Mestrado em Administração foi desbravar um excitante caminho de
aprendizado e crescimento. Durante todas as difíceis etapas e ritos do Curso, nos intensos
anos 2005-2007, do primeiro dia de aula à finalização dessa dissertação, nunca trilhei sozinho.
Tive a honra, a satisfação e o privilégio de ter sempre ao meu lado grandes indivíduos, que
contribuíram sobremaneira nos meus tímidos primeiros passos enquanto neófito da pesquisa
acadêmica, bem como em meu amadurecimento. Deixo aqui meus mais sinceros
agradecimentos, especialmente:
À Profa. Dra. Arilda Godoy, orientadora que muito bem me acolheu, assumindo o
risco de orientar um aluno que tinha se tornado “órfão de orientação em meio ao desenrolar
da dissertação. Profa. Arilda, sempre serena, atenciosa e competente, ensinou-me muito sobre
a arte de pesquisar;
Ao Prof. Dr. Mário Aquino, grande mestre do saber e da arte jedi, um caro amigo que,
am de ter me incentivado em todos os momentos, ponderou, provocou e contribuiu deveras
em minha formação e Qualificação, além de me honrar com sua presença na Banca de Defesa;
À Profa. Dra. Cláudia Antonello, que acrescentou pontos relevantes em minha
Qualificação, com ótimas indicações de leitura e provocações reflexivas;
À CAPES, pela bolsa concedida durante o curso, mostrando-se uma entidade séria e
engajada no desenvolvimento do país;
Aos companheiros de Mackenzie, Armond e Ricardo, os quais, entre um debate e
outro, contribuíram fraternalmente para o desenvolvimento dessa dissertação;
A todos os cooperados da Cooperlírios, ao vereador Kim e à equipe da Secretaria de
Habitação e Desenvolvimento Urbano de Americana, Maria De Nadai e Wilza, pela atenção,
carinho, seriedade e, destacadamente, lições de vida;
À minha querida e amada família, Pai Angelo, e Sueli e Mana Aline, por tudo.
Muito caros, especiais e fundamentais a mim, sempre estão ao meu lado em todos os
momentos de minha vida, incentivando-me, com muita atenção e carinho, em tudo aquilo em
que me coloco a fazer;
À Gerência Geral da ABIMAQ, pela concessão de me liberar para cursar o Mestrado,
mostrando ser uma Entidade focada no desenvolvimento de seus colaboradores;
À querida Equipe DENI da ABIMAQ, Curt, Paty, Oli, Léo e Leonardo (DEEE),
grandes amigos e companheiros de trabalho, por toda prontidão para ajudar, incentivo, força
e, principalmente, paciência para me agüentar nesse período;
Aos grandes irmãos de vida da República Hari Hou, Magrão, Rafaelzão e Andrezinho,
e da República Soogu, Maçã, Carnaval e o agregado Ur, que, como fraternos amigos de
tempos imemoriais, sempre me incentivaram em todos os momentos e madrugadas adentro;
À querida namorada, Carol, guardada em lugar cativo em meu coração, pelo
companheirismo e carinho marcantes, incentivando-me e ajudando-me nos momentos mais
desgastantes do desenvolvimento desse trabalho;
Ao querido Veríssimo, pelos comentários relevantes e ponderados em meu
referencial teórico;
A todos os demais familiares e amigos de Americana e São Paulo, registrados em
meus pensamentos e coração, que indiretamente colaboraram;
A Cronos, por ter ajudado no apertado e cheio de imprevisto tempo; e, por fim,
A Baco, por revelar, de vez, que a mesa de um boteco ainda é campo por excelência
dos debates e reflexões teóricas.
Com todo esse carinho, incentivo e apoio, ressalto que os erros e fraquezas da presente
dissertação cabem exclusivamente a mim, sendo estes frutos de minhas limitações, quando
não teimosia.
RESUMO
O presente estudo analisa como os indivíduos constroem e vivenciam a gestão de um
empreendimento solidário. Buscou-se interpretar o processo organizativo de um tipo de
empreendimento que se insere no contexto prático e teórico do cooperativismo e da Economia
Solidária, levando em consideração as características particulares dessas organizações, que
rompem com a questão econômica, adquirindo importante dimensão social e política. A
organização escolhida foi uma cooperativa de reciclagem e a abordagem adotada para estudo
do fenômeno foi qualitativa, desenvolvida por meio de um estudo de caso de natureza
interpretativista que usou três estratégias de coleta de dados: observação não-participante;
entrevistas e análise de documentos. Os trabalhos de campo permitiram uma interpretação que
leva em consideração três momentos específicos do caso: sua formação, construção e vivência
da dimica organizacional. Concluiu-se que o caso apresenta insights e portas de entrada
interessantes para se refletir sobre empreendimentos solidários, não apenas como uma ão
viável para o desenvolvimento local, mas, principalmente, como um arranjo organizacional
que influencia aspectos sociais e políticos da vida de seus trabalhadores.
Palavras-chave: Economia Solidária; cooperativismo; empreendimentos solidários; processo
organizativo
ABSTRACT
The present research analyses the way each person builds up and takes part into the solidary
management process. It was tried to interpret the organize process of a kind of Solidary
Economy which is insert into the pratical and theorical of the cooperativism and the Solidary
Economy, taking into consideration the specific characteristics of these organizations, which
break up with the economical matter, getting important political and social dimensions. It was
chosen a recycling organization and the considered approach for the study of such fenomena
was the qualitative one, developed trough the case study of interpretivist nature which used
three collect data strategies: non-participative observation, interviews and document analysis.
The field research permitted a kind of interpretation which takes into consideration three
distinct moments of the case: its formation, construction and organizational dynamic
experience. It was possible to conclude that the case presents insights and open doors to
reflect about solidary enterprise not only for a possible action for the local development, but
also as an organizational arrangement that influences social and political aspects of its
workers.
Key-words: Solidary Economy; cooperativism; solidary management; organize process
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................15
REFERENCIAL TEÓRICO................................................................................................25
1. Por uma arqueologia genealógica da Economia Solidária.................................................26
1.1 Fenômeno arraigado como questão social...................................................................26
1.2 A Economia Solidária: problemática e conceitos........................................................36
1.3 Economia Solidária no Brasil.....................................................................................41
2. Cooperativismo: filosofia e práxis....................................................................................46
2.1 Owen e os Pioneiros de Rochdale: as origens do cooperativismo................................47
2.2 O cooperativismo: princípios doutrinários e estruturantes...........................................52
2.3 A organização cooperativa.........................................................................................57
2.4 Cooperativismo no Brasil...........................................................................................66
2.5 Cooperativismo e o Cooperativismo Popular: releituras para um novo cooperativismo76
METODOLOGIA................................................................................................................81
3. O rigor do olhar: uma questão de bricolage......................................................................82
3.1 Reflexões sobre a escolha do método.........................................................................82
3.2 O tipo de pesquisa e as técnicas de coleta e análise de dados......................................90
3.2.1 Tipo de pesquisa: estudo de caso.........................................................................90
3.2.2 Estratégia de coleta de dados...........................................................................92
3.2.2.1 Observação...........................................................................................93
3.2.2.2 Análise de documentos.........................................................................94
3.2.2.3 Entrevistas............................................................................................95
3.2.3 Análise dos dados............................................................................................99
3.2.4 Apresentação dos resultados e da análise.......................................................102
APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS.........................................................................104
4. Apresentação dos Resultados: um olhar descritivo.........................................................105
4.1 Da concepção à constituição da Cooperlírios ...........................................................105
4.1.1 A questão da salubridade: a organização do galpão............................................108
4.1.2 Necessidades organizacionais: a cooperativa.....................................................111
4.2 A Cooperlírios em sua letra formal..........................................................................113
4.2.1 Desenho organizacional: organograma..............................................................115
4.2.2 Os cooperados...................................................................................................117
4.2.3 Local de trabalho: o espaço...............................................................................118
4.2.4 A gestão da Cooperlírios: divisão e processo do trabalho..................................121
4.2.5 Trabalho e renda: remuneração..........................................................................128
ANÁLISE DOS RESULTADOS.......................................................................................129
5. Análise dos resultados: um olhar interpretativo..............................................................130
5.1 Entre a revolução e o pragmatismo: a formação e o status popular da Cooperlírios..131
5.2 Cooperlírios: um empreendimento solidário?...........................................................136
5.3 Dinâmica organizacional e suas influências..............................................................144
5.3.1 Ágora reciclada.................................................................................................145
5.3.2 O mito da Fênix e os laços de solidariedade.......................................................152
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................158
6. Cooperlírios: questões “boas para se pensar.................................................................159
6.1 Limitações do estudo e sugestões de continuidade....................................................168
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................170
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1 Evolução do perfil do cooperativismo brasileiro.................................................74
Tabela 2 - Números do cooperativismo por ramo de atividade - 2004..................................75
ÍNDICE DE GRÁFICOS
Gráfico 1 Evolução do perfil do cooperativismo brasileiro................................................74
ÍNDICE DE FOTOS
FOTO 1- Chegada de caminhão da Prefeitura com material...............................................123
FOTO 2 - Início imediato de triagem e seleção após chegada de material...........................123
FOTO 3 Trabalho de triagem..........................................................................................124
FOTO 4 - Trabalho de seleção...........................................................................................125
FOTO 5 - Material selecionado em grupo para colocação em bags ....................................125
FOTO 6 - Material selecionado em bags armazenado........................................................126
FOTO 7 Prensagem........................................................................................................127
FOTO 8 - Material pronto para despacho de venda............................................................127
FOTO 9 - Cooperadas se divertindo durante o expediente..................................................148
ÍNDICE DE FIGURAS
FIGURA 1 Mapa Cooperlírios........................................................................................119
FIGURA 2 FLUXOGRAMA..........................................................................................122
ÍNDICE DE QUADROS
QUADRO 1 - Comparação entre organização cooperativa e organização mercantil.............63
QUADRO 2 Grupos de materiais selecionados...............................................................121
INTRODUÇÃO
O capitalismo contemporâneo relegou às sociedades uma crise estrutural que atinge
praticamente todos os países: o desemprego. De acordo com Souza (2003), o desemprego é
um dos temas mais debatidos atualmente, sendo apontado como a principal causa da exclusão
social.
Entendido como resultado da crise da sociedade salarial (SOUZA, 2003; SINGER,
1998), o desemprego acentuou-se a partir das transformações ocorridas na década de 70,
quando da migração de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial
(CASTELLS, 1999). A sociedade pós-industrial, pautada pela globalização e Revolução
Tecnológica, reestruturou as relações de produção, organizando uma nova economia,
caracterizada, principalmente, pelo aumento da produtividade na mesma proporção em que se
dispensa a mão-de-obra (SOUZA, 2003).
Como resultado desse processo, além de desemprego estrutural, que exclui parte da
sociedade de prover seu próprio sustento, deteriorização das relações de trabalho vigentes,
levando grande contingente populacional empregado a se submeter a condições aviltantes:
longas jornadas, baixa remuneração, desproteção legal e instabilidade (SOUZA, 2003).
Diante dessa crise, alternativas e ações para provimento de trabalho, renda e emprego
formal começam a ser discutidas em escala global. Dentre essas, encontra-se o ressurgimento
do debate em torno da organização coletiva do trabalho, que, conforme Singer (1999),
constitui-se como resposta ao desemprego e à exclusão social.
A organização coletiva de trabalho é caracterizada por diversas práticas constituídas
por meio de formas econômicas com objetivo de associar as pessoas para produzir e
reproduzir meios de vida com base em relações de reciprocidade e igualdade (CUNHA,
2003). A forma típica desse tipo de organização é a cooperativa, que tem seus meios de
produção nas mãos de seus trabalhadores, sendo sua gestão democraticamente conduzida por
eles.
17
Conforme definiu Souza (2003, p.35), “a organização coletiva do trabalho, na forma
de cooperativa autogestionária de produção, vem apontando novo rumo de mobilização
política no Brasil” como alternativa prática ao desemprego. Constatação desse fato é a
constituição do movimento da Economia Solidária como femeno que incorpora a
organização coletiva do trabalho e sua institucionalização como política de Estado do Brasil,
no ano de 2003, durante o Governo Lula.
No Brasil, a Economia Solidária é composta por vários empreendimentos, dos quais se
destacam as associações comunitárias e cooperativas populares. Como aponta nior (2004),
todos esses empreendimentos passaram a contemplar o triplo plano de atuação (social,
econômico e político) que permite sejam entendidos como empreendimentos solidários.
Os empreendimentos solidários são definidos, essencialmente, quanto ao modo como
são geridos. De acordo com Júnior (2004), que encontra respaldo em Gaiger (1996; 2003),
para que um empreendimento seja caracterizado como solidário, é necessário que este: a)
tenha sua organização e gestão na mão dos seus próprios membros; b) constitua espos em
sua estrutura e dinâmica para o exercício dos princípios democráticos; c) haja a efetiva
participação dos membros nos processos decisórios; d) haja cooperação nos processos
produtivos; e) haja mobilização social; f) exista auto-sustentação financeira; g) tenha o
desenvolvimento humano como prioridade de ação; e h) assuma responsabilidade social.
Nesse sentido, a Economia Solidária e seus empreendimentos m despertado séries de
estudos e reflexões nas ciências sociais aplicadas. A maioria desses estudos concentra-se na
alise de seus impactos no mercado de trabalho e, conseqüentemente, no desenvolvimento
econômico e social do Brasil (SINGER, 1998, 2002; NASCIMENTO, 2004; CULTI, 2002).
Com relação às pesquisas na área da administração, quando se tomam como referência
os trabalhos produzidos no Enanpad Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-
18
graduação em Administração - no período de 1997 a 2005, mais de vinte e cinco estudos estão
associados ao tema.
A principal abordagem desenvolvida está vinculada à análise gerencial e funcionalista
dos modelos de gestão das cooperativas. Tomam-se as cooperativas como organizações
relevantes no mercado, abordando-as pela perspectiva cnica sobre seu modo de gestão.
Vários trabalhos avaliam o sucesso ou fracasso da adoção de determinadas cnicas de gestão,
em vários pontos da cadeia produtiva, com objetivo de verificar os resultados. A principal
preocupação está voltada às questões estratégicas e competitivas do cooperativismo. Com
isso, esses trabalhos excluem as questões relativas aos preceitos doutrinários de seu
movimento, concentrando, apenas, na sua dimensão econômica, no que concerne à
administração (gestão).
Outra abordagem, mais holística, alinhada com os preceitos doutrinários do
movimento e os impactos desses empreendimentos no mercado e na sociedade, vem
crescendo consideravelmente nos últimos anos. Trabalhos como Salazar e Soares (1997), Dias
(2000), Piccinini e Oliveira (2002), Machado e Leite (2002), Dalfior (2003), Piccinini,
Guimarães, Oliveira e Korosue (2003) caminham nesse sentido, buscando analisar as
influências e impactos da cooperativa no emprego, levando em consideração aspectos de seus
membros.
Não obstante, duas novas frentes de pesquisas, destacadamente nos estudos
organizacionais, começam a ganhar importância. A primeira trata de alguns estudos que
começam a se voltar para o debate teórico-conceitual desses empreendimentos (GAIGER,
1996, 2003; FRANÇA FILHO, 2002), buscando entendê-lo em sua manifestação e formação
organizacional na sociedade. A segunda, mais voltada para a organização e influência que
esses empreendimentos podem gerar em seus membros.
19
Os estudos de Gaiger (1996; 2003) e França Filho (2002), nesse sentido, promovem
grande debate acerca do nascimento desse fenômeno e, principalmente, sobre os processos de
constituição desses tipos de empreendimentos na realidade social. Os estudos de Gaiger
(1996; 2000; 2001; 2003), além de caracterizar idealmente um empreendimento solidário,
destacam-se pela análise de um conjunto de empreendimentos solidários, com objetivo de
detectar e analisar suas origens e condições efetivas de desenvolvimento.
Os resultados desses estudos apontam que os sucessos desses empreendimentos
aportam-se, em maior grau, para a capacidade de concilião das premissas ideológicas e
organizacionais com sua sustentação econômica no médio e longo prazo. Como destacado por
Gaiger (2001), o êxito de um empreendimento solidário repousa na sua capacidade de
conciliar as relações de trabalho com imperativos de eficiência, convertendo, com isso, a
cooperação em nova racionalidade, em que o próprio sentido de eficiência seja re-significado.
Já França Filho (2002) observa a manifestação de arranjos organizacionais dos
empreendimentos solidários que, ao incorporar lógicas econômicas e substantivas em seu agir
organizacional, tornam-se experiências factíveis para recomposição das relações entre
economia e sociedade, o que pode transformá-los na possibilidade de nova modalidade de
gestão pública. Com isso, França Filho (2002) abre caminho para se refletir como o poder
público, em parceria com a sociedade, pode promover ações integradas que visem à
organização de empreendimentos solidários, tendo em vista a capacidade desses
empreendimentos em prover desenvolvimento local por meio de suas características típicas.
A segunda frente se realiza em outra perspectiva de abordagem dos empreendimentos
solidários. Focada na organização e influência que esses empreendimentos podem gerar em
seus membros. Nessa abordagem, pesquisas têm se desenvolvido pelo diálogo entre as
cncias sociais aplicadas e humanas, tais como a administração, a sociologia, a antropologia
e a psicologia. Desenvolvem-se em uma região de fronteira multidisciplinar que promove para
20
a área da administração grande maturidade analítica, possibilitando estudos com vistas a se
analisar e interpretar fenômenos organizacionais numa perspectiva que extrapola a mera
racionalidade instrumental e gerencialista, pautada pelas clássicas descrições de modelos de
gestão, adentrando pelo terreno intersubjetivo das organizações, principalmente no que
concerne às relações estrutura-indivíduos.
A perspectiva de abordagem dessas pesquisas é dada pelas características ideais
determinadas para os empreendimentos solidários (GAIGER, 1996; 2003), as quais revelam
estes empreendimentos como organizações que propugnam formas de gestão mais humanas,
não se determinando por modelo burocrático cuja racionalidade está voltada somente ao
modelo instrumental. Ao contrário, são organizações que aliam os interesses econômicos com
ações voluntárias e substantivas (FRANÇA FILHO, 2002), sendo tratadas como arranjos que,
pela sua dinâmica, podem possibilitar uma emancipação do indivíduo, rompendo com a mera
dimensão econômica, adentrando pela dimensão social e política.
Oliveira (2005a) e Liboni (2002) desenvolvem dois estudos nessa perspectiva,
destacando os empreendimentos e seus sujeitos. Oliveira (2005a), ao considerar os
empreendimentos solidários como modelo de gestão mais humanizador e voltado para a
emancipação humana, faz um estudo da história de vida de um indivíduo, com objetivo de
identificar as inflncias de sua inserção nesses empreendimentos nas transformações de sua
identidade. Liboni (2002), de uma perspectiva psicossocial, estudou uma empresa de
autogestão com objetivo de analisar como seus trabalhadores constituíram esse
empreendimento e, principalmente, como eles vivenciam seus princípios e quais impactos que
sua dinâmica promove em suas relações sociais.
Os resultados, nos dois estudos, apresentaram reflexões interessantes. Oliveira (2005a)
concluiu que a inserção em empreendimentos solidários favoreceu condições objetivas e
subjetivas que direcionaram o indivíduo estudado para mudanças no sentido da humanização
21
e emancipação. Já Liboni (2002) observou em seu caso a constituição de um empreendimento
ainda híbrido, com características entre empreendimento solidário e empresa mercantil. De
acordo com a autora, os fatores impeditivos para o desenvolvimento pleno das características
autogestionárias do empreendimento são dados pelo baixo vel de educação formal,
profissional e social, bem como baixo espaço reservado aos debates. Contudo, apesar de suas
limitações na vivência dos preceitos solidários, a dinâmica organizacional deste
empreendimento já permite algumas mudanças no trabalho de seus membros, principalmente,
quanto ao ambiente e seu relacionamento com os companheiros. Há mais alegria em se
trabalhar.
Analisam-se, dessas suas vertentes e desses estudos e pesquisas, dois pontos
fundamentais: os empreendimentos solidários, suas formações e sustentabilidade (GAIGER,
1996, 2003; FRANÇA FILHO, 2002); e os empreendimentos solidários como promotores de
dinâmicas organizacionais que geram comportamentos organizacionais de grande impacto na
dimensão política e social dos indivíduos (OLIVEIRA, 2005a; LIBONI, 2002).
Nesses termos, alinhado à linha de pesquisa Gestão Humana e Social das
Organizações do Programa de Pós-graduação em Administração de Empresas da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, esta dissertação aventura-se por adentrar nessa região
de fronteira dos estudos organizacionais e de seus desdobramentos temáticos. Busca
desenvolver um estudo que tem como objetivo “olhar”, de forma interpretativa, um
empreendimento solidário, com ênfase para as questões políticas, sociais e humanas, a fim de
contribuir para indagações que despertem o debate sobre a formação e a gestão desses
empreendimentos.
Pretende-se, com isso, contribuir para os trabalhos que se voltam para os
empreendimentos solidários e seus sujeitos, para preencher uma lacuna nos estudos da
22
administração, visto que estes estão concentrados, em sua maioria, na pesquisa dos modelos
gerenciais dos empreendimentos, suas técnicas e competitividade.
Nesse sentido, o interesse da presente dissertação é o de descrever e interpretar o
processo organizativo (SPINK, 1991; 1996) de uma empresa com objetivo de analisar a
dinâmica do processo social vivido, desde sua formação até o momento atual. Sem direcionar
a análise a um ponto específico, mas com olhar holístico para observar a história de um
empreendimento, desde as motivações de sua iniciativa até a sua estrutura atual e a(s)
influência(s) em seus membros.
A opção por se estudar o processo organizativo tem sua razão apresentada por Sato
(1999, p.220), quando a autora, ao pensar em organizações como processo social (SPINK,
1991; 1996), orienta que se observe
como pessoas interagem para definir objetivos e para construir os meios para atingi-
los, como constroem regras, rotinas e procedimentos num contexto conformado por
duas ordens de realidade: de um lado pelo fato de as pessoas terem suas histórias de
vida, suas expectativas e visões de mundo e também suas necessidades materiais
particulares de sobrevivência; de outro, esse contexto também é conformado pelos
recursos de que se dispõe, pela tecnologia que se domina, pela realidade de mercado e
pela racionalidade econômica que vigoram como parâmetros para as relações nessa
sociedade.
Defende-se, com isso, a interpretação de um processo organizativo como oportuno
para se levar à reflexão e observação de várias indagações e temas que produzam insigths e
descoberta de portas de entrada interessantes para questões acerca dos empreendimentos
solidários, sua formão, gestão, seus indivíduos e suas relações com a sociedade. A principal
contribuição que se pretende nessa linha de abordagem é a de suscitar questões que venham
subsidiar a análise da relevância desses empreendimentos em suas várias dimensões,
relacionando-se com as demais produções de mesma temática.
Sendo assim, formulou-se a seguinte problemática de pesquisa: Como os indivíduos
constroem e vivenciam a gestão de um empreendimento solidário?
O objetivo geral que direciona a probletica é
23
Ø Analisar e interpretar o processo organizativo de um empreendimento
solidário
Para consecução de seu objetivo geral, estipularam-se os seguintes objetivos
específicos:
Ø Descrever a história do empreendimento.
Ø Analisar o empreendimento (seu marco institucional e seu modelo de
gestão).
Ø Interpretar a dinâmica organizacional do empreendimento e suas
influências na vida de seus indivíduos.
O caso selecionado para ser estudado foi a Cooperlírios, situada na RMC Região
Metropolitana de Campinas, na cidade de Americana, interior de São Paulo. A Cooperlírios é
uma cooperativa de reciclagem formada por antigos catadores de materiais recicláveis e/ou
reutilizáveis.
A presente dissertação tem seu desenvolvimento verticalizado por meio de uma
estrutura que se divide em cinco grandes blocos: Referencial Teórico, Metodologia,
Apresentação dos Resultados, Análise dos Resultados e Considerões Finais.
O Referencial Teórico inicia-se pela Economia Solidária. De título Por uma
arqueologia genealógica da Economia Solidária, seu desenvolvimento esboça,
conceitualmente, as raízes e origens desse fenômeno. Aventura-se em adentrar na observão
de suas manifestações, desenvolvimento e, principalmente, no debate da problemática que a
caracteriza na contemporaneidade, chegando até suas singularidades no Brasil. Em um
segundo momento, intitulado Cooperativismo: filosofia e práxis, apresenta-se o Referencial
Teórico de cooperativismo, o qual desenvolve a temática, tendo em vista que as cooperativas
são o principal expoente organizacional da Economia Solidária, e, respeitadas as condições
ideais, tornam-se empreendimento solidário por excelência.
24
No segundo bloco, Metodologia, o item O rigor do olhar: uma questão de bricolage,
desenvolve a metodologia utilizada na realização dessa investigação. Seu objetivo é construir
a reflexão empreendida acerca do desenho metodológico adotado, justificando seus porquês.
O terceiro bloco, a Apresentação dos Resultados, reconstrói a história da Cooperlírios,
de sua origem a como ela está organizacionalmente estruturada atualmente. Pautado pelas
narrativas levantadas nas entrevistas, na observação em campo e na análise de documentos,
este item aborda o processo de concepção da idéia de se fundar uma cooperativa, passando
por sua concretização e finalizando em como a organização está atualmente estruturada.
O quarto bloco, Análise dos Resultados, constrói uma interpretão por meio do
desenvolvimento de três momentos observados no processo organizativo da Cooperlírios: sua
formão, sua construção e a vivência de sua dinâmica.
Finalmente, em Considerações finais, apresentam-se e desenvolvem-se as questões e
indagações suscitadas durante o campo e a interpretação do caso, debatendo seus
desdobramentos para os estudos organizacionais, bem como a possibilidade de novos estudos.
25
REFERENCIAL TEÓRICO
26
1. Por uma arqueologia genealógica da Economia Solidária
O referencial teórico de Economia Solidária, com título Por uma arqueologia
genealógica da Economia Solidária, assume a tarefa de esboçar, conceitualmente, as raízes e
origens desse fenômeno. Aventura-se ainda em adentrar na observação de suas manifestações,
desenvolvimento e, principalmente, no debate da problemática que a caracteriza na
contemporaneidade, chegando até suas singularidades no Brasil.
Para consecução desse objetivo, Por uma arqueologia genealógica da Economia
Solidária divide-se em três itens: Fenômeno arraigado como questão social; A Economia
Solidária: problemática e conceitos e Economia Solidária no Brasil. No primeiro item,
buscam-se levantar as raízes que deram origem e respaldo ao discurso e prática atual do
fenômeno de organização do trabalho arraigado na reão da classe trabalhadora à exploração
capitalista, a partir de três importantes movimentos como marco: o luddismo, o cartismo e a
organização coletiva do trabalho. O segundo item, A Economia Solidária: problemática e
conceitos, trata de problematizar a construção do conceito com vistas a analisar seu principal
discurso atual e, principalmente, apresentar seu meio de manifestação prático: a organização
coletiva do trabalho na forma de empreendimentos solidários. Já em Economia Solidária no
Brasil, procura-se analisar como essa economia se manifesta e é entendida no Brasil,
mostrando seu cater e, principalmente, fins.
1.1 Fenômeno arraigado como questão social
Adentrar pelos meandros da análise social pressupõe, dentre inúmeros desafios, o da
aceitação apriorística da dificuldade de se datar historicamente as origens e raízes de um
fenômeno social, de observar sua genealogia. Lechat (2002) destaca essa dificuldade ao
comparar a tarefa do cientista social aos trabalhos de exploração da nascente do Rio Nilo,
27
levada a cabo por geógrafos no século XIX. Por ser um rio com inúmeras nascentes, com
algumas delas dadas em lagos, sua marcação precisa é praticamente impossível, sendo objeto
de grande polêmica e debate.
Nos fenômenos sociais a tarefa não deixa de ser tão diferente em essência. Ao se
considerar a história como processual e dialética, torna-se difícil registrar um fenômeno social
com início datado e registrado. Esses processos são demorados e, em geral, são
reinterpretações de fenômenos antigos, modificados por novos contextos sociais, políticos e
econômicos, tornando-se, em determinados momentos, significativos a um mero
considerado de agentes sociais, adquirindo sua relevância problemática enquanto fenômeno
(LECHAT, 2002).
O desafio dessa exploração em busca das raízes da Economia Solidária pode-se iniciar
pela análise do início do processo de consolidação do capitalismo como modo de produção
dominante. Pautado pela dinâmica industrial em sua origem, o capitalismo resultou de tomada
da racionalidade produtiva aliada ao avanço tecnológico dos meios de produção, provocando
a reestruturação das relações sociais. Considerando a semântica do termo revolução, pode-se
dizer que o nascimento do capitalismo impactou profundamente diversas dimensões da vida
humana: a individual, a social, a política e a econômica, modificando toda estrutura e
dinâmica até então vivenciadas.
Uma das principais revoluções desencadeadas pelo capitalismo foi sobre a ontologia
do trabalho. O início do processo de gestação do capital determinou que a produção de um
bem deixasse de ter um caráter de utilidade de uso para seu produtor e passe, necessariamente,
à utilidade de troca (MARX, 1985). Não é mais relevante o valor de uso que uma mercadoria
possui, mas, seu valor de troca, o qual subsidiará a reprodução do próprio capitalismo. Essa
transposição da característica da utilidade da mercadoria produzida, que Marx (1985) coloca
como valor de uso versus valor de troca, é a síntese da modificação ontológica do trabalho
28
que a própria mercadoria carrega em si. Um processo de transformação teleológica que marca
profundas modificações no sujeito, no processo e na natureza do trabalho.
Para Muniz (1988), o capitalismo alterou a natureza do fim (enquanto finalidade) do
trabalho e, por conseqüência, alterou a constituição do próprio sujeito. Se o trabalho era um
processo de mediação entre o homem e a natureza para produção de bens úteis a quem
desprende sua energia para tal, no capitalismo, caracterizado pela produção para troca,
instaurou-se separação abrupta e determinante na cadeia meio-fim do ato de trabalho (em seu
próprio pôr teleológico). Há uma separação entre o sujeito “que exerce a atividade imediata
sobre a matéria (natureza), com objetivo de transformá-la, e aquele que determina a que ela se
destina, qual seu fim de troca” (MUNIZ, 1988, p. 28). O que estava indissoluvelmente ligado,
homem-seu trabalho, como o trabalho dos artesãos, organizados em guilda, deu origem a
partição alienante no sujeito do processo de trabalho, permitindo o surgimento da exploração
fundamental na qual o capitalismo se sustenta: a extração de valor excedente, do lucro.
Tem-se, aqui, no bojo do capitalismo, a constituição do trabalho como algo alienante
(MARX, 1985). O sujeito efetua o trabalho, porém não detém seu fruto. Ele deixa de ser
proprietário dos resultados de seus esforços, alienando-se do processo. Como destacou Motta
(1984, p.68), “quando o homem é separado de sua vida genérica, isto é, quando o sujeito
perde a propriedade e controle de seu trabalho, esta perda significa também a perda de si
mesmo". Essa partição alienante do trabalho motivada pela produção para troca também
teve impactos estruturais na dimensão social.
As relações de produção inexoravelmente começaram a se alterar, estruturando duas
classes sociais antagônicas e bem definidas: os proprietários dos meios de produção de um
lado (que determinavam o fim para troca) e os não-proprietários de outro (que produziam).
Por meio dessa nova arquitetura social e das relações de produção que se conformavam, o
próprio trabalho acabou por se institucionalizar como mercadoria. O trabalho deixou de ser
29
um ato ativo do homem em metabolismo com a natureza (MARX, 1985) para ser, de fato, um
bem que determina não apenas a posição no estrato social, mas, também e principalmente, o
maior meio de troca para subsistência dos não-proprietários dos meios de produção. Por sua
força de trabalho, o homem coisifica-se em mercadoria. Nessa nova relação de produção
capitalista, o trabalho não produz apenas mercadoria, produz também o trabalhador como
mercadoria dotada de preço no mercado de trabalho (MOTTA, 1984, p.68). Constitui-se aos
destituídos dos meios de produção a figura do trabalhador, como aquele que se coloca à venda
por meio de sua força de trabalho.
O detentor do meio de produção também assume o papel de fundamental personagem,
um ator desencadeador do processo produtivo, responsável por marcar passo na reprodução
desse sistema (MUNIZ, 1998). Sob a insígnia de empresário e frente à grande velocidade do
crescimento do mercado nascente, essa nova personagem tinha a responsabilidade de
desenvolver eficientemente seu meio de produção. Com isso, a estrutura e dinâmica do
trabalho passaram a se tornar algo a ser gerido, demandante de uma gestão cnica e
profissional. Como primeira concepção desse processo, os empresários começaram a
desenvolver sistemas gerenciais pautados por regimes de subcontratação e assalariamento que
aos poucos foram dando formas às primeiras estruturas organizacionais de produção,
caracterizadas por novas relações de trabalho fundamentadas em uma divisão técnica de
funções. A imagem que se começa a conceber é a do chão de fábrica das manufaturas.
O marco simbólico de todo esse processo de gênese do capitalismo industrial, de seus
impactos nas diversas dimensões (individual, social, econômica e política) e da concepção da
indústria (enquanto organização) foi a Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra na segunda
metade do século XVIII. Nesse período, a racionalização e a técnica científica a serviço do
desenvolvimento das linhas produtivas das manufaturas incrementaram-se, trazendo grandes
modificações no como” e no quanto produzir. No campo tecnogico, as maiores
30
conquistas advieram das engenharias, que dotaram as linhas de produção com máquinas-
ferramenta, e da administração, com os novos modelos de gestão (tayloristas).
As máquinas-ferramenta foram paradigmáticas nesse contexto. Foram a força-motriz
dos empresários para um novo patamar produtivo, impactando a produção e a própria gestão
do trabalho. Os trabalhadores já não eram os únicos receptáculos de força de trabalho, não
eram mais os exclusivos ofertantes. O maquinário produtivo era capaz de não apenas
aumentar exponencialmente a produção e sua qualidade, mas, principalmente, reduzir custos,
controlar e extrair o sobretrabalho (mais-valia) mais eficazmente (MARX, 1985). No
raciocínio marxiano, tem-se nesse ponto o corolário de que a Revolução Industrial, ao dotar as
manufaturas de máquinas-ferramenta, aumentou a produtividade, e, com isso, o trabalho
excedente. Como resultado, diminuiu o mero de empregados e aumentou a exploração:
O aumento de produtividade resultante da introdução de máquina aumenta o trabalho
excedente à custa do trabalho necessário, mas obtém esse resultado diminuindo o
número de trabalhadores empregados por um determinado volume de capital.
Contudo, o aumento na taxa de mais-valia através de maior produtividade parece
incapaz de compensar a queda da mais-valia decorrente da diminuição do número
relativo de trabalhadores explorados: a contradição resultante é resolvida por um
aumento da mais-valia absoluta, isto é, através do prolongamento da jornada de
trabalho. (MARX apud MUNIZ, 1988, p. 29)
Como relata Singer (1999), os trabalhadores manufatureiros da época de consolidação
do capitalismo eram de certa maneira qualificados e participavam de associações de ofício
que tinham como objetivo regular e controlar o exercício profissional. Contudo, o incremento
tecnológico das manufaturas começou a promover competição” entre os trabalhadores e as
máquinas, as quais precisavam de uma extensão humana (seja homem, criança ou mulher)
para funcionarem. As linhas de produção não apenas começaram a demitir e a explorar os
trabalhadores, mas também, pelos ganhos de escala da produção, seus produtos ficavam bem
mais baratos que os artesanais, sucateando de vez a concorrência com aqueles que ainda
sobreviviam do trabalho artesanal.
31
Percebe-se desse processo que o trabalho re-significado como atividade alienante, a
nova configuração material (manufaturas e tecnologia) e relações de produção levaram a outra
realidade: a constatação de uma estrutura de dominação que inaugura a personagem homo
faber (MARX, 1985), que, como proletariado, estava fadado a ser mera peça descartável de
algo maior. Desse modo, pelo lado dos burgueses, cabia ao papel de empresários a
possibilidade irrestrita por essa estrutura e contextos explorar ainda mais a massa de
trabalhadores (maior jornada de trabalho com menos trabalhadores). O que reforçou aos
trabalhadores a clara situação de recipientes únicos e descartáveis de força de trabalho – única
e mera fonte disponível para se vender em troca de sobrevivência. Como concluiu Motta
(1968, p.68), sob o capitalismo, qualquer que seja a modalidade, o homem passa a produzir
apenas para sobreviver, voltando, nesse aspecto, a confundir-se com os demais animais”.
Da velocidade nas transformões na natureza do ato de trabalho, estruturas sociais,
econômicas e produtivas, desencadeadas pelo processo de consolidação do capitalismo
industrial e acentuadas pela Revolução Industrial, obteve-se a formação de um mercado de
trabalho precário, que carregou consigo grande massa de explorados, desempregados e
aumento deflagrado da pobreza (ENGELS, 2002). Relegou-se à grande massa de
trabalhadores a exploração no trabalho e a situação de extrema miséria, penúria e
insalubridade. Engels (2002), em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, mostrou
de forma surpreendente essa situação à qual foram jogados os trabalhadores. Nesse texto, o
autor faz praticamente uma etnografia ao descrever detalhadamente a situação precária e
subumana dos trabalhadores que viveram esse período de surgimento e consolidação das
manufaturas e do mercado de trabalho, bem como o advento das máquinas-ferramenta como
motores propulsores do capitalismo ávido por lucro.
Nesse contexto, em que o capital (MARX, 1985) dominava e marcava passo na
produção a custos trabalhistas mínimos, observou-se o desenvolvimento de outro tipo de custo
32
que não era de natureza financeira, mas que, dado fora da contabilidade das empresas,
começou a ser relevante: o custo social. Com a situação da classe nascente de trabalhadores
no auge da exploração desenfreada pelos proprietários dos meios de produção,
inevitavelmente configurou-se tenso contexto social que acabou por deflagrar grandes
reações. Começaram a surgir na Inglaterra, França e Alemanha movimentos de defesa e
libertação dos trabalhadores desse perverso processo, conjeturando o que os historiadores
denominaram questão social”. Tal expressão do custo social trazido à tona na consolidão
do capitalismo manifestou-se, mais precisamente, a partir de três movimentos específicos: o
luddismo, o cartismo e a organização coletiva do trabalho.
O luddismo (Inglaterra, 1811-1816) foi um movimento de “tomada de ão”.
Revoltados com a situão, os trabalhadores liderados por Ned Ludd, ainda que meio
desorganizados, manifestaram-se em atos violentos de destruição das máquinas das
manufaturas. Interessante observar o caráter ativo desse movimento, de tomada de ação com
hostilidade, pois demonstra nada ter de revolucionário com relação ao discurso, ou seja, não
uma tomada de consciência propriamente dita, mas um ato estratégico para forçar uma
melhora no acesso ao trabalho e ao emprego. De acordo com Hobsbawn (1981), os ataques às
máquinas eram feitos quando os salários ou as condições de vida dos trabalhadores mudavam
subitamente ou como uma forma de provocar uma greve mais prolongada, dado que a
máquina quebrada era uma garantia de que as linhas produtivas não funcionariam
temporariamente.
Esses trabalhadores, cegos à alienação que sofriam em seu próprio trabalho,
revoltaram-se contra aquelas que eram, aparentemente, a causa mais perceptível de sua
miséria: as máquinas. Por meio do bradoQuebrai as máquinas!, transferia-se às máquinas o
peso da miséria e da penúria. Como endossa Hobsbawn (1981), o trabalhador não estava
preocupado com o progresso técnico em si, mas com um problema prático do desemprego e
33
sua condição de vida. Assim, o principal objetivo luddista era o de regular o mercado de
trabalho (pela quebra das máquinas que minimizavam o uso da mão-de-obra) e evitar os furos
de greves.
É possível analisar do luddismo que seus asseclas, alienados de sua própria condição,
já haviam internalizado de certa forma o próprio sistema capitalista e acabaram por
antropomorfizar as quinas, tratando-as como concorrentes no mercado de trabalho: elas
eram competidoras responsáveis pelo desemprego e baixos salários. Dessa maneira, em
concorrência pela vida, restava apenas a destruição física daquelas que aos poucos pareciam
tomar seus postos de trabalho, conseqüentemente, do meio de provimento e sustento da
sobrevivência.
Em carta eloqüente e ameaçadora, o próprio Ludd deixa esse sentimento transparecer
quando, em 1812, escreveu para um burguês:
Possuímos informações de que vo é um dos proprietários que têm um desses
detestáveis teares mecânicos e meus homens me encarregaram de escrever-lhe,
fazendo uma advertência para que você se desfaça deles... Atente para que se eles não
forem despachados até o final da próxima semana enviarei um dos meus lugar-tenente
com uns 300 homens para destruí-los, e, além disso, tome nota de que se você nos
causar problemas, aumentaremos o seu infortúnio queimando o seu edifício,
reduzindo-o a cinzas; se vo tiver o atrevimento de disparar contra os meus homens,
eles têm ordem de assassi-lo e de queimar a sua casa. Assim você terá a bondade de
informar aos seus vizinhos de que esperem o mesmo destino se os seus tricotadores
não sejam rapidamente desativados.
O luddismo, por seus atos violentos, o foi tão eficaz. Acabou por criar uma imagem
negativa dos trabalhadores. Construiu-se para a classe trabalhadora um sinônimo de classe
perigosa no imaginário social burguês, confundindo-se, quando não se misturando a ela,
bandidos, prostitutas etc.
Diferentemente do luddismo quanto à forma, o cartismo inglês foi um movimento
mais organizado e político, que nasceu por volta de 1836. Era um movimento reformista que
apresentou seu programa por meio da “Carta do Povo”, escrita e defendida por Lovett. O
objetivo era o de abrir um espaço ao debate político que inserisse a classe trabalhadora no
34
sistema como legítima detentora de direitos. As reivindicações do cartismo eram claras e
buscavam retomar aos trabalhadores o status de atores sociais, e não, como ficou no
imaginário após o luddismo, de uma classe perigosa. Para isso, reivindicaram, principalmente,
a inserção positiva dessa classe no cenário político-institucional. Seus seguidores defendiam:
o sufrágio universal; os diretos eleitorais homogêneos; o voto secreto; a eleição parlamentar
anual; a elegibilidade dos não-proprietários e os subsídios para os deputados.
Logo, o desenvolvimento do capitalismo, num processo de alienação que chegou
rapidamente ao seu ápice da subjugação do trabalho ao capital, deixou a maioria dos
trabalhadores reclusos à miséria. Os trabalhadores, peças desse sistema maior, antes de
perceber e de se revoltar contra a secção abrupta na natureza de próprio ato produtivo,
reagiram, primeiramente, contra a expropriação severa da possibilidade de subsistir às
próprias regras do sistema, vendendo sua força de trabalho, e, no segundo momento, por
inserção política mais positiva na sociedade.
É por meio das reivindicações (direitos poticos, dignidade ao trabalhador, acesso ao
emprego, melhores condições de vida, entre outros) que as primeiras reações à situação em
que se encontravam os trabalhadores na consolidação do capitalismo (luddismo e cartismo)
propuseram o que seriam as raízes do discurso da Economia Solidária. Pode-se dizer que tal
origem confunde-se com as reações da classe trabalhadora à exploração do capitalismo,
sendo, nesse sentido, fruto do custo humano da Revolução Industrial.
Entretanto, enquanto forma de manifestação prática mais articulada e sustentável, as
raízes da Economia Solidária encontram-se, destacadamente, em outro importante movimento
que começou a se estruturar concomitantemente ao luddismo e cartismo: a organização
coletiva do trabalho - ações na esfera da produção e da representação que foram dadas por
meio da fundão de cooperativas e de sindicatos.
35
A organização coletiva do trabalho nasce da reflexão sobre essa perversa “questão
social que se configurava. Pensadores começaram a indagar sobre o funcionamento
estrutural do capitalismo e de seus impactos no contexto social, o que, aos poucos, acabou por
formar correntes de pensamento que buscavam refletir e prescrever saídas para essa situão
insustentável relegada aos trabalhadores.
Buber (1945), por exemplo, destaca seis principais pensadores que contribuíram em
gerações distintas para a construção de um pensamento reflexivo e pró-ativo na luta contra a
dinâmica capitalista e que visava uma “reestruturação da sociedade: Saint-Simon (1760-
1825); Fourier (1772-1837); Owen (1771-1858); Proudhon (1809-1865); Kropotkin (1842-
1921); e Landauer (1870-1919).
É na análise dos pensamentos desses autores que se encontram reflexões acerca de
nova forma de organização do trabalho oposta ao chão de fábrica capitalista, nas quais é
possível constatar com mais clareza as raízes da Economia Solidária. São reflexões voltadas
para uma forma de organização do trabalho que, por ser coletiva, apresenta, sob uma
perspectiva socialista, características organizacionais que extrapolam a mera dimensão
econômica, carregando consigo uma dimensão de transformação estrutural política e social.
Pelos escritos desses pensadores, inicia-se a construção de um arcabouço que subsidiou a
criação de processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo. Características
que colocam as primeiras iniciativas de organização coletiva do trabalho como uma
mobilização política de dimensão e relevância social. Processo que, pela primeira vez, por
volta de 1840, cunhou a expressão movimento social como categoria de movimento para
designar o surgimento do movimento operário europeu (SCHERER-WARREN, 1987).
Conclui-se que as raízes do que se conceitua atualmente como Economia Solidária
encontram-se na construção prática e reivindicatória (luddismo e cartismo) e reflexão
discursiva e organizacional (organização coletiva do trabalho) reativa à exploração do
36
capitalismo. Trata-se, portanto, de um movimento ideológico precursor e oriundo de
movimento social operário que extrapola a luta da mera necessidade material, adquirindo peso
político dentro de uma tradição socialista de pensamento.
1.2 A Economia Solidária: problemática e conceitos
As raízes discursivas, práticas e organizacionais da Economia Solidária estão na
construção de um movimento político da classe trabalhadora contra os resultados perversos do
processo de consolidação do capitalismo industrial. Na perspectiva histórica e ctica de
alguns autores, como Singer, a consolidão desse tipo de Economia é, no limite, pilar de
potencial contra-revolução à revolução capitalista. Como analisa Singer (1999), do mesmo
modo que houve uma revolução social capitalista que, por meio de avanços tecnológicos,
consolidou novas relações de produção, fundando uma nova sociedade com resultados
perversos à classe trabalhadora, também uma potencial revolução social socialista em
curso. Uma revolução social enquanto processo de mudanças sociais estruturais lentas, que se
iniciou na Inglaterra, há dois séculos, por meio da formação de sindicatos, aprovação de
legislação trabalhista, sistema de seguridade social e, destacadamente, das cooperativas
(SINGER, 1999).
Desenvolvida por Singer (1999, 2000a; 2003), essa reflexão está atrelada aos
socialistas utópicos, os quais propunham mudança lenta e pacífica em direção a sociedade
socialista marxiana: uma sociedade de produtores livres associados. Sociedade que,
teoricamente, possui estreitos laços com as correntes de pensamento anárquicos de Proudhon,
Bakunin e Luxemburg, defensores de uma organização autogestionária do trabalho. A
Economia Solidária, portanto, é, nessa visão, um movimento político e social de fundamentos
37
e princípios opostos ao capitalismo, adquirindo dimensão socialista (SINGER, 1999; 2000a;
2003).
Entretanto, a despeito de suas raízes estarem na reação operária e intelectual aos
resultados do capitalismo, no desenvolvimento de iniciativas empreitadas em defesa do
trabalhador e, principalmente, na organização coletiva do trabalho, como analisado no item
Fenômeno arraigado como questão social, seu conceito é dado a posteriori, extemporâneo a
suas raízes. Trata-se, pois, da formatão conceitual plural de discurso e prática que absorve
de maneira crítica todas essas experiências, tendo nas iniciativas de organização coletiva do
trabalho a consolidação de seu núcleo central, seu principal pilar. Desse modo, o conceito
Economia Solidária é uma noção atual, mais ampla e acabada que já carrega em si a síntese de
um debate que incorpora várias experiências de reação ao capitalismo a partir de ações que
possuem como seu ponto central e fundamental a organização coletiva de trabalho.
A organização coletiva de trabalho no âmbito da Economia Solidária refere-se às
experiências de Economia Social arraigadas nos pensamentos socialistas, as quais são
caracterizadas pela associação de pessoas em gestões democráticas para produzir e reproduzir
meios de vida, segundo relações de solidariedade, reciprocidade e igualdade. As três formas
principais dessa Economia são as cooperativas, as mutualidades e as associações.
De acordo com Wautier (2004, p.65), a Economia Social trata de
um conjunto de organizações e empresas cujas atividades produtivas respondem a
princípios prioritários: adesão livre, democracia interna (uma pessoa, uma voz),
lucratividade limitada (reinvestimento dos excedentes na ão social e não-
lucratividade individual dos associados), respeito da dimensão humana da atividade e
solidariedade.
É no culo XX, ao se incorporarem todos os clássicos socialistas e as experiências
vividas até então na Europa de Economia Social, que se forja o conceito mais preciso de
Economia Solidária. Os autores que se incumbiram de tal tarefa foram Laville (1994) e Eme
38
(1994) (LECHAT, 2002; FRANÇA FILHO, 2002). Laville (1994) constrói o conceito de
Economia Solidária como:
Um conjunto de atividades econômicas cuja lógica é distinta tanto da lógica do
mercado capitalista quanto da lógica do Estado. Ao contrário da lógica capitalista,
centrada sobre o capital a ser acumulado e que funciona a partir de relações
competitivas cujo objetivo é o alcance de interesses individuais, a economia solidária
organiza-se a partir de fatores humanos, favorecendo as relações onde o laço social é
valorizado através da reciprocidade e adota formas comunitárias de propriedade. Elas
se distinguem também da economia estatal que supõe autoridade central e formas de
propriedade institucional. (LAVILLE, 1994 apud LECHAT, 2002, p.5).
Próximo dessa linha, Singer (2000a, p.13) define a Economia Solidária como a base
de um novo modo de distribuição que é alternativo ao capitalismo. Um modo de produção que
casa o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de produção e distribuição (da
produção simples de mercadorias) com o princípio da socialização desses meios (do
capitalismo)” e que é criado e recriado, principalmente, por aqueles que se encontram
marginalizados do mercado de trabalho.
França Filho (2002) aponta que Laville (1994) e Eme e Laville (1994; 1996) em seus
trabalhos utilizaram o termo Economia Solidária principalmente para tentar dar conta da forte
emergência e proliferação de iniciativas e práticas socioeconômicas diversas na Europa, as
quais estavam assumindo a forma associativa e tinham como objetivo responder a certas
problemáticas locais específicas.
A Economia Solidária, pois, não remete apenas a iniciativas econômicas associativas
da Economia Social, mas incorpora o objetivo claro de responder a certas problemáticas
locais específicas, trazendo elementos relevantes para entendê-la como conjunto de iniciativas
econômicas caracterizadas por serem meios pelos quais se busca realização de fins sociais
(FRANÇA FILHO, 2002). Com isso, alarga-se em movimento complexo de dimensões
políticas e sociais, que extrapola a mera organização coletiva do trabalho. Esse alargamento
pode ser apreendido pela diferenciação tipológica dos conceitos de Economia Social e
Economia Solidária de Wautier (2004). Como demonstra a autora, os conceitos de Economia
39
Social e Economia Solidária são muitos próximos. Contudo, existe pequeno ponto que
permite diferenciação, dando maior peso político e social contemporâneo à Economia
Solidária.
Para Wautier (2003, p.110), a Economia Solidária incorpora a Economia Social
completamente, entretanto, “acentua a noção de projeto, de desenvolvimento local e de
pluralidade das formas de atividade econômica, visando à utilidade pública, sob a forma de
serviços diversos, destinados, principalmente, mas não exclusivamente, à população carente
ou excluída”.
Nesse sentido, como apontaram Leville e Eme (1994), a Economia Solidária ao tratar
de iniciativas de organizações coletivas e solidárias para superar dificuldades estruturais
locais, carrega em si dois termos que são noções historicamente dissociadas (iniciativa
econômica e solidariedade) que acabam se incorporando, colocando a solidariedade na
elaboração de atividades econômicas coletivas locais (FRANÇA FILHO, 2002).
As iniciativas de Economia Solidária, com isso, acabam, por corolário, invertendo os
princípios da economia tradicional de concentração de riquezas, tornando-se formas de luta
política da sociedade para a instituição de nova relação com a economia. Constitui-se em
movimento complexo que, por suas características, é destacadamente composto pelas
dimensões econômica, política e social.
Logo, pode-se entender a Economia Solidária como um fenômeno de forma singular
de organização e atuação que, pela organização coletiva do trabalho, constitui espaço que não
é econômico, mas de recuperação e de re-significação de valores e práticas sociais
sucateadas e esquecidas pelo capitalismo. Ao propiciar inclusão e reconstrução pessoal dos
indivíduos excluídos (GAIGER, 1996; 2003), proporciona novas iniciativas locais portadoras
de outro modo de funcionamento e finalidades, reunindo personagens preocupados em
40
articular inserção econômica positiva com fins de estabelecimento de liame social (FRAA
FILHO, 2002).
Essas iniciativas de organização coletiva de trabalho, portadoras do discurso e prática
da Economia Solidária, podem ser entendidas como empreendimentos solidários (GAIGER,
1996; 2003). Conforme Gaiger (1996; 2003), esse tipo de empreendimento apresenta as
características ideais de: autogestão; democracia; participão; igualitarismo; cooperação;
auto-sustentação; desenvolvimento humano e responsabilidade social.
Observa-se que a complexidade do fenômeno Economia Solidária e seu desafio
encontram-se nas características que suas iniciativas de organização coletiva de trabalho
(empreendimentos solidários) possuem em equilibrarem distintas e diversas lógicas que a
atravessam. Por se tratarem de iniciativas coletivas e solidárias de organização de trabalho
para problemas locais, essas iniciativas não podem ser observadas estrita e exclusivamente
pela ótica da racionalidade econômica. Os empreendimentos solidários encontram-se na
problemática que determina dois traços característicos (hibridação de economias e construção
conjunta da oferta e da demanda) que se apresentam em uma forte tensão entre três economias
(mercantil, não-mercantil e não-monetária) e duas gicas (instrumental e substantiva)
(FRANÇA FILHO, 2002). Para observar essas distintas gicas que atravessam o
funcionamento das organizações coletivas e solidárias de trabalho, França Filho (2002)
propõe a visão polanyiana, com base na economia plural.
De acordo com França Filho (2002), a relevância de se interpretarem as experiências
dos empreendimentos solidários da Economia Solidária pela economia plural ocorre pelo fato
de não se reduzir ao mercado e a uma única racionalidade econômica de visão neoclássica
esse tipo de empreendimento, que detém dimensões além da econômica. A economia plural é
um conceito desenvolvido por Polanyi, que extrapola a existência de apenas um
comportamento econômico, incorporando pluralidade de princípios. Para Polanyi, conforme
41
desenvolve França Filho (2002), existem quatro grandes princípios do comportamento
econômico: o mercado auto-regulado, a redistribuição, a administração doméstica e a
reciprocidade.
Esses princípios resumem-se a três formas de economias: mercantil, não-mercantil e
não-monetária. A economia mercantil caracteriza-se pelo princípio do mercado auto-regulado.
Nesse caso, as trocas são marcadas pela impessoalidade e pela equivalência monetárias. As
trocas, assim, são dadas por características utilitaristas que visam o estabelecimento de
valores de trocas, pelo preço, entre os bens. Já a economia não-mercantil, funda-se no
princípio da redistribuição. Ela é marcada pela verticalização das trocas e tem cater
obrigatório. Existe, nesse caso, a figura de uma instituição superior, como o Estado, que se
apropria de recursos com objetivo de distribuição. E, finalmente, a economia não-monetária, a
qual se fundamenta pelo princípio da reciprocidade. Nessa economia, as trocas são pela lógica
da dádiva maussiana, constituída pelo: dar, receber e retribuir. Assim, a circulação dos bens
tem por objetivo constituir e manter laços sociais de reciprocidade.
Desse modo, observar a noção de economia plural é ultrapassar a idéia da economia de
mercado como única fonte de riqueza, identificando-a entre três los de complementaridade.
Pensar em forma de produção e distribuição de riqueza “não necessariamente contra o
mercado, mas a seu favor, entretanto sob a condição de que o mercado seja submetido a
outros princípios, ou melhor, que esteja engastado ou enraizado junto a outros registros de
práticas”. (FRANÇA FILHO, 2002, p.6).
1.3 Economia Solidária no Brasil
Lechat (2002) destaca que os empreendimentos de Economia Social (cooperativas,
mutualidade e associações) surgem geralmente em cachos, tomados pelo impulso de
42
dinâmicas socioeconômicas fruto de grande crise econômica. Considerando que as crises não
são idênticas e os atores e promotores também não o o, pode-se observar que há diversas
ondas de Economia Social com personalidades diversas (LECHAT, 2002).
Na Europa, berço do movimento que deu origem à Economia Social (WAUTIER,
2004), Lechat (2002) identifica três momentos de explosão reativa de iniciativas de
organização coletiva do trabalho a crises: a primeira, nos anos 1830 e 1840 do século XIX,
quando o trabalho corporativo passou a ser concorrencial, promovendo o nascimento de
sociedades de socorro mútuo, cooperativas de produção e balcões alimentícios; a segunda, nos
anos 1873-1895, que, pela modernização e investimentos na agricultura e recursos naturais,
relegaram aos pequenos produtores as cooperativas agrícolas e de cdito como meios de
sobrevivência; e, a terceira, nos anos 1929-1932, a qual provocou uma crise da regulão
concorrencial e capitalista, levando à necessidade de intervenção estatal nas políticas
econômicas e sociais.
No Brasil, pode-se dizer que os empreendimentos de Economia Social, principalmente
do sistema cooperativista, obtiveram sua primeira onda na terceira onda européia, nos anos
1929-1932. Entretanto, as duas maiores ondas brasileiras podem ser determinadas nos anos
1970-1980 e, destacadamente, nos anos 1990-2000. Na segunda onda, anos 1970-1980, nova
crise do capitalismo, decorrente pelas duas crises do petróleo, realinhamento de fluxos de
capitais, acentuação da globalização, entre outros, trouxe grandes conseqüências à economia
brasileira e mundial. Dentre elas, apresentam-se fechamento de empresas, conseqüente
desemprego maciço, e reestruturação empresarial cuja adoção de padrões mais flexíveis de
produção, como o toyotismo, levou à perda da hegemonia taylorista-fordista, provocando
reconfiguração nos padrões de acumulação. Na terceira onda, anos 1990-2000, observou-se
expansão dos processos de reestruturação produtiva dos anos 1970-1980, reforçado pelo
esgotamento da política industrial brasileira, a abertura comercial, a hegemonia do capital
43
financeiro, entre outros. Fatores que produziram perversos reflexos no mercado de trabalho
brasileiro: aumento expressivo do desemprego, somado a precarização nas relações de
trabalho, ampliando, consideravelmente, o número de informais e excluídos. Dessa maneira,
as transformações no mundo do trabalho e organização econômica brasileira nesse período
desencadearam notável processo de empreendimentos da Economia Social.
Tais iniciativas de empreendimentos da Economia Social disseminados pelo Brasil,
por meio de cooperativas de vários ramos, bancos comunitários, associações, sejam no campo
ou na cidade, em reação às crises desses dois períodos, começaram a confirmar e a constituir
em seu conjunto a Economia Solidária no Brasil. Conseqüentemente, deu-se o início desse
tipo de empreendimentos solidários (GAIGER, 1996; 2003) como alternativa. De acordo com
Singer (2000a, p. 25),
a economia solidária ressurgiu, de forma esparsa, na década de 1980 e tomou impulso
na segunda metade dos anos 1990, resultando em movimentos sociais de reação à
crise de desemprego em massa, em 1981, e se agravando com a abertura do mercado
interno às importações, a partir de 1990.
Desse modo, destacadamente na década de 90, a Economia Solidária no Brasil nasce
como movimento pela inclusão no mercado de trabalho, diretamente ligada ao contexto de
crise econômica e exclusão social e suas conseqüências, como o desemprego, a
marginalidade, a precarização, a informalidade etc. Sua tomada de corpo como movimento
político, social e de reflexão acadêmica inicia-se, mais concretamente, conforme relata Singer
(2000b), por meio de programas das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares
(ITCP), que teve sua origem na Coordenação dos Programas de Pós-graduação e Engenharia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ). De acordo com Singer (2000b), o
objetivo das Incubadoras era utilizar recursos humanos e conhecimento das universidades
para formação, qualificação e assessoria de trabalhadores para a constituição de organizações
coletivas e autogestionárias de trabalho, promovendo a inserção de excluídos e
marginalizados no mercado de trabalho.
44
Desde 1999, as Incubadoras (ITCP) das universidades brasileiras constituíram uma
rede, com vistas a trocar experiências e melhorar a metodologia de incubação, colaborando,
segundo Singer (2000b), para a nacionalização do movimento para Economia Solidária.
Todavia, deve-se destacar que a Economia Solidária não se formou apenas no âmbito
universitário, mas conquistou a luta e incentivo de outros agentes de destacados e importantes
pais, tais como: a Igreja Católica, ONGs, sindicatos, prefeituras e governos. A Igreja
Calica, por exemplo, por meio do Cáritas, promoveu intenso incentivo e ação nas iniciativas
de Economia Solidária.
É em 2003, no Governo do Presidente Lula, que a Economia Solidária assume seu
caráter mais estrito. Torna-se política blica e, principalmente, ganha sua institucionalização
federal. Foi no ano de 2003, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego MTE, que se
criou a Secretaria Nacional de Economia Solidária SENAES. O principal objetivo da
SENAES é “promover o fortalecimento e a divulgação da Economia Solidária, mediante
políticas integradas, visando à geração de trabalho e renda, inclusão social e promoção do
desenvolvimento justo e solidário (MTE, 2006). Para alcançar esse objetivo, a SENAES
elaborou seus objetivos específicos que são os seguintes:
Ø Elaborar e propor medidas para a articulação de Políticas de Finanças
Solidárias, em suas múltiplas modalidades, ampliando a escala de suas
operações, os servos financeiros prestados e legitimando novas
institucionalidades econômicas.
Ø Intervir na reformulação do arcabouço legal que regula as cooperativas e
propor a adoção de um Estatuto do Empreendimento Autogestionário, que
permita consolidar sua identidade, programar um sistema de proteção a seus
trabalhadores e orientar as ações de fiscalização.
Ø Difundir e fortalecer os empreendimentos autogestionários, com a promoção
do desenvolvimento de tecnologia adequada; apoiar materialmente as agências
de fomento da Economia Solidária; articular cadeias produtivas, ampliando a
produção, distribuição e consumo dos produtos da Economia Solidária,
apoiando o consumo ético e o comércio justo.
Ø Estimular e promover a produção de conhecimento voltado para a Economia
Solidária, articulando para tanto poticas de educão e de pesquisa; definir
um sistema de acompanhamento e de avaliação de seu desenvolvimento;
45
disseminar experiências bem sucedidas e disponibilizar um sistema de
informações.
Ø Fortalecer os espaços de organização e de participão da sociedade civil e dos
demais entes governamentais, na formulação de políticas públicas para a
economia solidária e implantar o Conselho Nacional de Economia Solidária
(MTE, 2006).
Pelo mesmo ato legal que institucionalizou a SENAES, em 2003, foram criados,
ainda, o Conselho Nacional de Economia Solidária CNES e o Fórum Brasileiro de
Economia Solidária com objetivo de consolidar uma estrutura lida para o fomento da
Economia Solidária. O Conselho Nacional de Economia Solidária - CNES foi concebido
como um órgão consultivo e deliberativo de interlocução permanente entre a SENAES e os
setores da sociedade civil e do Governo Federal que atuam em prol da Economia Solidária.
Suas duas principais atribuições são: a proposição de diretrizes para as políticas de Economia
Solidária dos Ministérios e Secretarias que o integram e o acompanhamento da execução
dessas poticas. O Conselho é formado por 56 entidades divididas entre três setores: Governo,
Empreendimentos de Economia Solidária e Entidades Não-governamentais de fomento e
assessoria à Economia Solidária (MTE, 2006).
Com essa estrutura - SENAES, CNES e Fórum - foi consolidada, em 2005, a
plataforma da Política Federal de Economia Solidária, chamada de Programa Economia
Solidária em Desenvolvimento.
Conclui-se que a Economia Solidária começa a se constituir no Brasil como
movimento que busca e propõe iniciativas para superar as crises social e econômica que
geraram grande exclusão social. Para isso, alimenta-se de nova expressão do movimento
cooperativista (NASCIMENTO, 2004). Trata-se de um cooperativismo, que extrapola a
Economia Social (WAUTIER, 2004), sustentando-se nos empreendimentos solidários
(GAIGER, 1996; 2003). O discurso da Economia Solidária brasileira pauta-se, então, pelo
valor atribuído à democracia, igualdade e autogestão dentro dos empreendimentos, portando
para si uma espécie de ressurreão de valores que fazem parte da cultura do movimento
46
operário: solidariedade, autogestão, autonomia, mutualismo, economia moral e outros
(NASCIMENTO, 2004).
2. Cooperativismo: filosofia e práxis
Intitulado Cooperativismo: filosofia e práxis, o Referencial Teórico de
Cooperativismo desenvolve essa temática, tendo em vista que as cooperativas são o principal
expoente organizacional da Economia Solidária, e, respeitadas as condições ideais, tornam-se
empreendimento solidário por excencia.
Para resgatar o cooperativismo e entendê-lo como movimento de uma organização
típica, Cooperativismo: filosofia e práxis possui dois objetivos principais: o primeiro, analisar
a origem do pensamento cooperativista, bem como traçar a consolidação de sua doutrina e
movimento a partir de sua principal experiência Rochdale, chegando até o movimento
brasileiro; o segundo, desenvolver de uma perspectiva organizacional o que se entende por
organização cooperativa, como ela se estrutura, seu modelo e peculiaridades que idealmente
podem vir a torná-la empreendimento solidário.
Para isto, Cooperativismo: filosofia e práxis está estruturado em cinco itens: Owen e
os Pioneiros de Rochdale: as origens do cooperativismo; O cooperativismo: princípios
doutrinários e estruturantes; A organização cooperativa; Cooperativismo no Brasil; e
Cooperativismo e o Cooperativismo Popular: releituras para novo cooperativismo
Em Owen e os Pioneiros de Rochdale: as origens do cooperativismo, resgatam-se os
pensamentos de Owen, grande precursor da organização coletiva do trabalho nos moldes
cooperativistas, e, por meio da implementação da Plataforma de Rochdale, analisa-se o marco
simbólico da fundação do cooperativismo e os porquês de sua importância para consolidão
de uma doutrina propriamente dita. No segundo item, O cooperativismo: princípios
doutrinários e estruturantes, desenvolve-se, a partir da experiência de Rochdale, a
47
consolidação de princípios do cooperativismo como base da formação de uma doutrina que
estrutura a cooperativa como organização de características próprias. O terceiro item, A
organização cooperativa, estuda a cooperativa enquanto organização, suas características,
estrutura e modo de gestão - autogestão. Em Cooperativismo no Brasil, situa-se o
desenvolvimento do movimento em terras brasileiras, seu perfil e características. E,
finalmente, em Cooperativismo e Cooperativismo Popular: releituras para novo
cooperativismo, analisa-se o novo cooperativismo brasileiro, que transforma e caracteriza a
cooperativa como empreendimento idealmente solidário.
2.1 Owen e os Pioneiros de Rochdale: as origens do cooperativismo
O cooperativismo nasceu em meio às reflexões e ações desencadeadas pela
efervescência política da reação dos trabalhadores às reestruturações dadas no devir de
consolidação do capitalismo industrial. A principal bandeira de seu movimento foi a
disseminação da organização coletiva do trabalho como saída à exclusão e exploração, por
meio de sindicatos e cooperativas.
Em sua raiz, o cooperativismo obteve a influência de pensadores socialistas utópicos,
como Proudhon, Fourier, Owen, King, Buchez, Blanc e outros. Dos pensadores e líderes que
refletiram sobre formas alternativas de organização coletiva do trabalho para superação da
exploração capitalista, pode-se destacar para a origem do cooperativismo, sem hipótese de
excluir as demais influências, os pensamentos e, principalmente, os empreendimentos de
Owen.
Robert Owen (1771-1858) é uma personagem interessante e fundamental para análise
do surgimento do cooperativismo por três motivos: as iias que propagava; as ações que
encetou; e seu próprio papel como ator social. Diferente de muitos pensadores da época,
48
Owen foi um industrial. Status que o coloca em papel ímpar na sociedade, pois, apesar de
estar ao lado da gerência do capital, como burguês detentor de meio de produção,
desenvolveu todos pouco convencionais e ortodoxos de gestão para sua época e cargo. Ao
contrário dos pressupostos tayloristas predominante à época, o método de gerência de Owen
em suas indústrias têxteis era pautado pela redução da jornada de trabalho e uma série de
outras ações que beneficiavam e visavam dar maior conforto e moral aos seus trabalhadores
(salários; seguridade social; educação; moradia etc.).
Os porquês dessa gerência particular e participativa, por alguns considerada mais
humana e na contramão da tendência hegemônica, podem ser entendidos pela análise de seus
pensamentos, apresentados em seus livros A formação do caráter humano, de 1814, e Uma
nova visão de sociedade, de 1823. Nesses textos, Owen deixa transparecer forte influência
rosseuaniana. Considera o homem bom por natureza”, sendo sua corrupção fruto do contexto
no qual está inserido. certo viés determinista darwinista da moral, que leva ao raciocínio
de que o sistema capitalista corrompe o homem. E dada a situação alienante, deturpada,
explorada e precária na qual o homem estava se inserindo na consolidação do capitalismo,
para se chegar a uma nova sociedade, era necessário intervir em todo o sistema social. Havia
a necessidade de se tomar ações com vistas a reformar essa estrutura social, o que tornaria o
homem, por corolário, mais uma vez “bondoso”, retornando-o a sua natureza.
O caminho para essa reforma, entendida como “aperfeiçoamento do meio social,
ocorreu pela modificação das relações de produção, com a reorganização da produção. Foi por
esse caminho que Owen, apesar de industrial, tornou-se grande precursor do socialismo
utópico, denominado na corrente de pensamento como um socialismo associacionista. A sua
linha de raciocínio considerava a indústria em si algo benéfico, pois permitia barateamento
dos produtos via escala de produção, facilitando o acesso a bens. Contudo, as relações de
produção formadas em seu seio eram totalmente injustas e maléficas, sendo necessária grande
49
reforma. Propugnava, então, que a indústria deveria ser colocada sob controle dos
trabalhadores e seus resultados distribuídos igualmente, fruto de trabalho comum. Como
alternativa, propôs que fossem formadas ao redor de cada manufatura/fábrica aldeias
cooperativas nas quais os meios de produção fossem geridos coletivamente pelos
trabalhadores (SINGER, 1999).
Owen sustentava a idéia de que, ao se criar uma estrutura organizacional
cooperativista e autogerida de produção, criar-se-ia ambiente econômico e social positivo para
os indivíduos. Afinal, estimular-se-ia a colaboração e o respeito entre os trabalhadores, o que
produziria um ambiente positivo de convivência e produção, no qual os indivíduos tenderiam
a minimizar suas características egoístas, tornando-se puramente associativistas (aqui se
encontra, indubitavelmente, o caráter utópico do owenismo).
Esse pensamento etiológico não se restringiu apenas à teoria ou à gerência de suas
empresas. Owen também empreitou ões políticas que tinham por objetivo empreender e
implantar suas idéias. Não apenas motivou, mas foi pa-chave na relão empresários-
governo para concretização de inúmeras iniciativas patronais e trabalhistas.
Aos poucos, o owenismo, como popularmente se designa seu pensamento, foi se
proliferando e adquirindo o discurso de alguns redutos de trabalhadores da Inglaterra da
metade do culo XIX. Seu pensamento deslanchou a formação de centenas de cooperativas,
tendo sido fundamental sua liderança pessoal para algumas lutas operárias e orientão
políticas de sindicatos na formação de cooperativas. Mas, como relembra Singer (1999), toda
ação política gera reação, e tais atos geraram repreensão violenta por parte da classe
capitalista burguesa. Como resultado, alguns sindicatos fecharam e outros se tornaram
clandestinos, fadando muitas cooperativas ao fracasso.
Ao se resgatarem as organizações cooperativas na história, observa-se que suas
primeiras tentativas de implantação datam do século XVIII. Observa-se, na literatura,
50
divergência quanto ao país de origem da experiência cooperativista. Alguns defendem que o
cooperativismo surgiu na França e outros, que seu surgimento ocorreu na Inglaterra.
A corrente que defende seu nascimento na França, em 1808, pauta-se pelas ões de
Fourier, defensor da formão de colônias familiares como solução para os problemas sociais.
Essas colônias seriam constitdas em comunidade societária, responsável por promover a
igualdade e o fim do assalariamento. Entretanto, é a segunda corrente que domina a maior
parte da literatura sobre cooperativismo, apontando o surgimento de sua história e movimento
na Inglaterra, mais de 150 anos, quando da fundação da Rochdale Society of Equitable
Pioneers, em 1844, na região de Rochdale, Manchester.
A história da Rochdale Society of Equitable Pioneers, também conhecida como
Plataforma de Rochdale, ocorreu em uma das regiões inglesas mais atingidas pelo devir
excludente do capital. Os trabalhadores dessa região sofriam cotidianamente com crises de
fome, desemprego, precariedades sanitárias e habitacionais. em situação de risco, esses
trabalhadores iniciaram greves reivindicatórias para melhoria de suas condições de vida,
quase todas sem sucesso. Até que em 1844, após outra fracassada greve, 28 tecelões,
militantes owenistas e/ou cartistas, resolveram como alternativa e ação própria constituir
oficialmente um empreendimento cooperativo de consumo para aquisição de alimentos a
preços mais justos.
As idéias desses tecelões, que ficaram conhecidos como Pioneiros de Rochdale,
estavam muito além da mera criação de um instrumento para solução de problemas
circunstanciais ora vivenciados. Eles buscavam, principalmente, o resgate dos ideais de
colônias cooperativas autônomas, democráticas e auto-suficientes, onde prevalecesse a ajuda
mútua, a igualdade social e fraternidade (ARGOLO, 2002). Esse espírito democrático e
solidário almejado para o empreendimento pode ser explicitamente observado na redação de
seu plano de fundação.
51
A sociedade tem por fim realizar um benefício pecuniário e melhorar as condições
domésticas e sociais de seus membros, mediante a economia de um capital formado
por ações de uma libra esterlina, para colocar em prática os seguintes projetos:
1. Abrir um armazém para a venda de gêneros alimentícios, vestuário, etc.
2. Comprar ou construir casa para os membros que queriam ajudar-se mutuamente, a
fim de melhorar as condições de sua vida doméstica e social.
3. Fabricar artigos que os associados julguem convenientes, com objetivo de
proporcionar trabalho aos membros desempregados ou subempregados (ou com
salários insuficientes”).
4. Assim que possível, a Sociedade organizará a produção, a distribuição e a educação
no seu próprio meio e com seus próprios recursos ou, em outros termos, organizará
uma colônia autônoma em que todos os interesses serão comuns. A sociedade
auxiliará as demais sociedades cooperativas que desejarem fundar colônias
semelhantes.
5. ´Com o fim de propagar a abstinência, a Sociedade abrirá, em um dos seus locais,
um estabelecimento de temperança´ (PINHO, 1982, p.32).
Consolidada, a experiência da Plataforma de Rochdale rapidamente logrou sucesso.
Como destaca Misi (2000), em 1850, a cooperativa havia incorporado sua primeira empresa
e, em 1854, já chegava à marca de 900 associados. A Plataforma tornou-se modelo a ser
seguido e seus ideais estatutários disseminados pelo mundo afora. Singer (1999) relata, por
exemplo, casos de formação de cooperativas na Inglaterra, França e Alemanha ligadas à luta
operária, as quais, apesar de diferentes na forma e modelo (créditos rurais; urbanas; trabalho;
consumo etc.), estavam todas sob as diretrizes e bases organizacionais de características
cooperativistas rochdaleanas.
Analisa-se, com isso, que as razões históricas e simbólicas de se considerar a
Plataforma de Rochdale como origem do movimento cooperativista pela maior parte da
literatura encontram-se no fato de que, a despeito de outras experiências terem existido antes,
como os moinhos de Woolwich e Chatham (1760, Inglaterra), os tecelões de Fenwich (1769,
Escócia), os moinhos e padarias na França de 1793 e a Oldhan Co-operative Supply Company
(1795, Inglaterra), foi somente e primeiramente com a experiência de Rochdale que se
institucionalizou o padrão organizacional e normativo de cooperativa que acabou por servir de
base para seu movimento. Foram seus Pioneiros que primeiro sistematizaram em Estatuto o
que consideravam ser os princípios, os valores, a estrutura e a dinâmica do que viria a ser o
empreendimento solidário.
52
2.2 O cooperativismo: princípios doutrinários e estruturantes
O primado do ideário cooperativista está arraigado nos pensadores de tradição
socialista, que tinham por objetivo propor a reformulação da sociedade por meio da
organização coletiva do trabalho. Na prática, ele se constituiu por inúmeras iniciativas de
organização coletiva do trabalho, das quais algumas vingaram, outras não. Aos poucos,
principalmente a partir da experiência de Rochdale, esse ideário revelou-se um movimento
que foi ganhando embasamento e experiência, adquirindo um caráter doutrinário.
É interessante observar no cooperativismo que, apesar de nascer enquanto modelo na
Inglaterra (Rochdale), o desenvolvimento mais claro de sua doutrina é possível de ser
constatado na França. Por iniciativa de Boyve, Fabre e Gide, professores franceses de
economia política, foi fundada na França, em 1886, a Escola de Nimes, com objetivo de
discutir problemas sociais ocasionados pelo desenfreamento do capitalismo, tornando-se
rapidamente uma entidade doutrinária de disseminação institucional do cooperativismo, uma
espécie de programa oficial do movimento cooperativista francês (PINHO, 1977).
O discurso doutrinário por detrás da defesa da organização coletiva de trabalho
cooperativista é o de que esse modelo centra no indivíduo suas condutas e ações econômicas,
promovendo liberdade econômica, social e democrática. É uma proposta de reforma do meio
socioeconômico, concretizada de maneira gradual e pacífica por meio da implantação de
cooperativas (PINHO, 2004).
O entendimento da doutrina cooperativista e seu modelo organizacional, como algo
reformador tanto do homem como da sociedade, como seu próprio precursor Owen
propugnava, podem ser dados pela análise dos valores e princípios que os regem. Foram pelas
mãos, suor e dedicação dos pioneiros tecelões de Rochdale, quando da criação de um modelo
de organização e de gestão cooperativista que alcançassem com sucesso os objetivos
53
solidários de sua fundação, que foram formulados sete princípios fundamentais: adesão livre;
controle democrático; devolução ou retorno sobre as compras; juros limitados para o capital;
neutralidade política e religiosa; vendas em dinheiro e à vista; e fomento ao ensino (IRION,
1997), os quais são, ainda hoje, as expressões e os sentidos dos valores, ideais, espírito e
práticas organizacionais cooperativistas: ajuda mútua, responsabilidade, democracia,
igualdade, eqüidade e solidariedade (OCB, 2006).
Esses sete princípios fundamentais rochdaleanos foram formulados por meio das
experiências anteriores vividas pelos seus membros (owenistas e cartistas) e que, pela prática
de sucesso do empreendimento, permanecem até os dias atuais. Para se adaptar aos contextos
contemporâneos, esses princípios foram ajustados pela ACI Aliança Cooperativa
Internacional às mudanças e diversidade cultural do mundo (TESCH, 2000). Os princípios já
passaram por três revies: 1937, em Paris; 1966, em Viena; e 1995, em Manchester. As
revisões foram dadas em grandes consultas e discussões da ACI - Aliança Cooperativa
Internacional, em que participaram teóricos e acadêmicos do cooperativismo, dirigentes de
cooperativas e representantes de seu movimento (SCHNEIDER, 1999).
Os sete princípios ficaram, conforme descreve Tesch (2000), assim estabelecidos pela
ACI Aliança Cooperativa Internacional, em 1995:
A. Adeo livre e volunria
As cooperativas são organizações abertas a todas as pessoas aptas a usar seus
serviços e dispostas a aceitar as responsabilidades como sócios, sem
discriminão social, racial, política ou religiosa e de gênero.
O princípio da adesão livre e voluntária trata diretamente do estabelecimento de
critérios básicos para a adesão e a saída de indivíduos dos empreendimentos cooperativos.
Seu conteúdo determina que a cooperativa seja aberta, isto é, ninguém é obrigado a ingressar
em seu quadro, porém, quando consciente de sua vontade, seu acesso será livre e destituído de
54
discriminão. Contudo, na prática, deve-se levar em conta que algumas cooperativas, por
questões técnicas, podem limitar ou restringir o número e/ou tipo de sócios. De uma
perspectiva econômico-administrativa, pode-se dizer que o primeiro princípio estabelece que,
dada a cooperativa ser um empreendimento econômico, fica a critério do cálculo do indivíduo
(custo versus benefício) sua opção de adesão ou não. Destaca-se que esse raciocínio
econômico-racional não é regra, podendo se ter a adesão de indivíduos por causas altruísticas,
entretanto, considera-se uma disposição residual.
B. Controle democrático pelos sócios
As cooperativas são organizações democráticas, controladas por seus sócios, os
quais participam ativamente no estabelecimento de suas políticas e na tomada de
decisões. Nas cooperativas singulares, os sócios têm igualdade na votação (um
sócio, um voto), independentemente do volume de quotas-partes.
O princípio do controle democrático pelos sócios está relacionado à gestão da
empresa. Trata-se, portanto, de estabelecer que todas as esferas de decisão da organização, de
seus objetivos aos seus meios de realização e gestão de suas operações, seo tomadas de
modo democrático, no qual cada indivíduo tem direito a um voto. Sendo todas as informações
disponibilizadas para os cooperados. Nesse sentido, a determinação de poder e ponderação de
voto não estão pautadas pela participação no capital aportado pelos indivíduos na
organização, mas na existência de um trabalhador-sócio. Com isso, a gestão democrática
desvincula a decisão do capital e a centraliza no trabalho. Tal princípio remete, também, ao
sistema de autogestão, foco do cooperativismo.
C. Participação econômica dos sócios
Os sócios contribuem de forma eqüitativa e controlam democraticamente o
capital de suas cooperativas. Parte deste capital é de propriedade comum das
cooperativas. Usualmente os cios recebem juros limitados (se houver algum)
sobre o capital, como condição de sociedade. Os sócios destinam as sobras aos
55
seguintes propósitos: desenvolvimento de cooperativas (possibilitando a
formão de reservas, parte dessas pode ser indivisível); retorno aos sócios na
proporção de suas transações com as cooperativas e apoio a outras atividades
que forem aprovadas pelos sócios.
O princípio da participação econômica dos sócios apresenta um controle democrático
do capital, o qual está diretamente subordinado ao trabalho. Há remuneração do capital,
todavia, os resultados são destinados ao trabalho e sua produção, depois de pagos todos os
fatores da organização.
D. Autonomia e Independência
As cooperativas são organizações autônomas para ajuda mútua, controladas
por seus membros. Entretanto, em acordo operacional com outras entidades,
inclusive governamentais, ou recebendo capital de origem externa, elas devem
fazê-lo em termos que preservem o seu controle democrático pelos sócios e
mantenham sua autonomia.
O princípio da autonomia e independência estabelece o caráter autônomo da
cooperativa. Seus rumos e decisões gerenciais são dados em assembléias de cooperados, não
havendo interferência de externos. É a normativa que também baliza a possibilidade da
autogestão. Pode-se dizer ainda que esse princípio, atualizado ao contexto atual, é reflexo da
tomada do cooperativismo como política pública pelo Estado. Assim, os governos podem
fomentar a implementação de cooperativas, porém, devem preservar suas características
ontológicas e, principalmente, de independência.
E. Educação, treinamento e informação
As cooperativas proporcionam educação e treinamento para sócios, dirigentes
eleitos, administradores e funcionários, de modo a contribuir efetivamente para
seu desenvolvimento. Eles deverão informar ao blico em geral,
particularmente os jovens e os líderes formadores de opinião, sobre a natureza
e os benefícios da cooperação.
56
O princípio de educação, treinamento e informação retoma a questão da importância
do cooperativismo como organização que promove reforma na vida e nas condições
socioeconômicas dos cooperados. Nesse sentido, esse princípio foca a necessidade de
disseminação do movimento para que os sócios o entendam e, desse modo, estejam
preparados para assumir a cooperação na prática. Esse princípio também carrega a função de
disseminação do cooperativismo pela sociedade.
F. Cooperação entre cooperativas
As cooperativas atendem seus sócios mais efetivamente e fortalecem o
movimento cooperativo, trabalhando juntas em estruturas locais, regionais,
nacionais e internacionais (já existem diversos exemplos na prática de
parcerias entre cooperativas: de consumo com agropecuárias, agropecuárias,
agropecuárias com trabalho, de consumo com artesanato, das habitacionais
com as cooperativas de trabalho na construção civil etc.).
Esse princípio retoma fortemente as primeiras iniciativas de Rochdale, que propunha a
colaboração entre colônias ou associões cooperativas, com idéia de fortalecer não apenas o
movimento, mas criar sinergias e complementaridades nas organizações em si enquanto
movimento.
G. Preocupação com a comunidade
As cooperativas trabalham pelo desenvolvimento sustentável de suas
comunidades, através de políticas aprovadas por seus membros.
A cooperativa, como iniciativa solidária, é capaz de se organizar e potencializar
desenvolvimento local. O princípio da preocupação com a comunidade estabelece que para a
cooperativa crescer e respeitar sua razão filosófica deve estimular a promoção da elevão
geral da qualidade de vida de seus sócios e da comunidade a sua volta.
57
Analisa-se que a institucionalização desses princípios, bem como sua revisão, têm
como objetivo constituir as bases teóricas comuns da doutrina do movimento cooperativista.
Por corolário, os princípios adquirem, dessa forma, cater estruturante fundamental de seu
modelo organizacional. São diretrizes de conduta e atuação das cooperativas, os quais,
alinhados com os pressupostos filosóficos e operacionais da organização coletiva do trabalho,
institucionalizam e modelam a cooperativa enquanto organização específica; tornam-se,
inclusive, referência internacional de prática e refleo, contribuindo para a formação de
identidade organizacional cooperativista.
Desses princípios pode derivar a definição geral, doutrinária e identitária de
cooperativas, conceituando-as como empreendimentos solidários, abertos, geridos de forma
democrática, autônoma e independente, para centralizar a remuneração no trabalho, neutra de
interesses políticos, religiosos e/ou de raça, cujo objetivo é promover o desenvolvimento de
seus sócios e comunidade local.
2.3 A organização cooperativa
Schermerhorn, Hunt e Osborn (1995) definem organização como conjunto de pessoas
que atuam juntas em criteriosa divisão do trabalho para alcançar propósito comum. Por sua
vez, Parsons (1960) observava as organizações como unidades sociais (ou agrupamentos
humanos) intencionalmente construídas e reconstruídas a fim de atingir objetivos específicos.
No mesmo caminho, Robbins (1999) entende organizações como unidade social
conscientemente coordenada, composta de duas ou mais pessoas, que funciona de maneira
relativamente contínua, com intuito de atingir objetivo comum.
O conceito de organização formulado ao longo do tempo, apesar de conter
perspectivas multifacetadas, contém em seu fulcro temas e variáveis comuns, a saber:
58
indivíduos, estrutura e instrumentalismo (uma considerável relação racional de adequão
entre meios e fins). Nesse sentido, a organização pode ser entendida como resultado da
construção racional de estrutura dinâmica coordenada, criada por indivíduos para execução de
fim comum (de trabalho, produção, serviços, reflexão etc.).
Por se tratar de estrutura física e social construídas, as organizações tornam-se locus
primordial de interações e relações sociais, que se conformam em múltiplas dimensões:
indivíduo(s)-indivíduo(s); indivíduo(s)-grupo(s); grupo(s)-grupo(s); organizão-indivíduo(s);
organização-grupo(s); bem como com o meio externo. Spink (1996) apreende essa relação
entre estrutura organizacional e dinâmica social, adotando uma visão psicossocial das
organizações. Nessa perspectiva, a organização é analisada como um processo social por
excelência, de relevante dimensão simlica, sendo sua existência o resultado da dinâmica de
certo agrupamento humano dotado de uma ação coletiva específica e orientada para realização
de determinado conjunto de interesses (SPINK, 1991; 1996). Sato (1999, p.220) resgata esse
conceito e desenvolve a importância do entendimento da organização como processo social,
destacando que ele direciona os esforços de alise:
Para pensar como pessoas interagem para definir objetivos e para construir os meios
para atingi-los, como constroem regras, rotinas e procedimentos num contexto
conformado por duas ordens de realidade: de um lado pelo fato de as pessoas terem
suas histórias de vida, suas expectativas e visões de mundo e também suas
necessidades materiais particulares de sobrevivência; de outro, esse contexto também
é conformado pelos recursos de que se dispõe, pela tecnologia que se domina, pela
realidade de mercado e pela racionalidade econômica que vigoram como parâmetros
para as relações nessa sociedade.
Nesses termos, no processo de conformação das organizações, entendido como
processo organizativo, a ão coletiva o gera apenas os interesses coletivos do
agrupamento, mas também cria e re-significa toda a história e materialidade da organização e
de seus protagonistas (SPINK, 1996; SATO, 1999). Tal perspectiva permite entender as
organizações como frutos de processos organizativos de caráter, simultaneamente, político,
social, individual, cultural e econômico, dados por uma intensa e constante ação humana.
59
Observa-se, com isso, que para análise do processo organizativo são demandadas duas
visões abrangentes fundamentais: a primeira, sobre o modelo ideal de organização a que se
pretende alcançar a priori, sua estrutura técnica racional ideal, bem como as bases legais que
a sustentam e a regem; a segunda, mais relevante, trata da interpretação dos processos de
natureza psicossocial e política que ocorrem na interação intra-agrupamento e dessa com o
meio externo, no devir de construção da organização, ou seja, a análise de como o grupo dota
de significado seu modelo de organização ideal e legal.
A segunda e mais relevante visão, que trata da interpretão dos processos de natureza
psicossociais, deve ser apreendida pelo estudo, análise e interpretação de como o
agrupamento se constituiu, como promoveu e promove suas interações sociais, simbólicas e
políticas na construção das estruturas organizacionais, bem como a vivência de sua dinâmica.
Sendo possível, nessa visão, interpretar mais do que a história da organização, mas suas
peculiaridades, como ela se conformou a um modelo, dadas às características intrínsecas de
seus indivíduos.
Já a visão que trata do modelo ideal de organização pretendido pressupõe uma alise
geral de como a organização está ideal e racionalmente estruturada, tendo em vista uma forma
organizacional já constituída a priori. Implica a análise dos pressupostos de determinada
estrutura organizacional, anterior à análise dos processos sociais de sua construção por
determinado grupo. Por essa visão, torna-se possível refletir acerca de como as organizações
idealmente são modeladas e como estas pretendem agregar os indivíduos para consecução de
uma tarefa específica, o trabalho.
Primeiramente, então, para o caso específico dessa pesquisa, faz-se necessário
entender idealmente o que é uma cooperativa enquanto organização. Como ela se organiza
ideal e estruturalmente a partir de seus princípios doutrinários.
60
As cooperativas foram se estruturando enquanto organização com o crescimento e a
disseminação doutrinária dos ideais do cooperativismo mundo afora. Enquanto forma e tipo
específico de organização, reconhecido e de bases estruturais comuns, sua definição foi
dada em 1948, por ocasião do Primeiro Congresso da Aliança Cooperativista Internacional
ACI. Nesse congresso, realizado em Praga, conforme descreve Polônio (1999, p.19), ficou
assim definida uma cooperativa:
Será considerada como cooperativa, seja qual for a constituão legal, toda a
associação de pessoas que tenha por fim a melhoria econômica e social de seus
membros pela exploração de uma empresa baseada na ajuda mínima e que observe os
princípios de Rochdale.
No Brasil, uma definição mais técnica, inclusive, foi institucionalizada no Seminário
Brasileiro de Cooperativas de Trabalho, em 1983:
As Cooperativas de Trabalho são organizações de pessoas físicas, reunidas para o
exercício profissional comum, em regime de autogestão democrática e de livre-
adesão, tendo como base primordial o retorno ao cooperado do resultado de sua
atividade laborativa, deduzidos exclusivamente os custos administrativos, a reserva
técnica e os fundos sociais. (PINHO, 1984, p.251).
Posteriormente, em 1995, no Congresso Centenário da Aliança Cooperativa
Internacional ACI, redefiniu-se o conceito de identidade cooperativa, sendo incorporada à
definição de cooperativa um tom mais abrangente, menos técnico, e mais valorativo:
Cooperativa é uma associação autônoma de pessoas que se unem, voluntariamente,
para satisfazer aspirações e necessidade econômicas, sociais e culturais comuns, por
meio de uma empresa de propriedade coletiva e democraticamente gerida (OCB,
Relatório de Atividades, 1999).
em definição geral, doutrinária e identitária construída a partir de seus sete
princípios, conforme desenvolvido no item 2.2, O Cooperativismo: princípios doutririos e
estruturantes, as cooperativas podem ser conceituadas como empreendimentos solidários
abertos, geridos de forma democrática, autônoma e independente, com função de centralizar a
remuneração no trabalho e, neutra de interesses políticos, religiosos e/ou de raça, possuem
como objetivo promover o desenvolvimento de seus sócios e da comunidade local.
61
Percebe-se, da evolução histórica de sua própria definição e à luz de seus princípios,
seja essa definição mais cnica ou valorativa, que, no fulcro da questão, se entende por
cooperativa um tipo de organização de forma mista entre associação e empresa. Ou seja, sua
forma organizacional e pressupostos resgatam de maneira clara seus ideários de fundação,
bem como suas experiências de organização coletiva de trabalho como alternativo às relações
de produção capitalistas de assalariamento. Pinho (1982), inclusive, ressalta esse ponto,
destacando para o fato de que uma estrutura organizacional cooperativa é uma simbiose entre
uma associação e uma empresa, o que a confere um status relevante, pois a faz ultrapassar a
dimensão e o aspecto meramente econômico de produção e adentrar, significativamente, na
dimensão social. Como Pinho (2000) descreve, as cooperativas são organizações formadas
pelo auxílio mútuo entre os indivíduos, que somam seus esforços, quotas-parte de capital, e
assumem o risco de empreendimento para prestar serviço a elas próprias. Não havendo visão
estrita de lucro e de multiplicação do capital social da organização, objetivos típicos dos
empreendimentos capitalistas.
Contudo, apesar de ser uma organização voltada para prática associativista, pautada na
ajuda mútua, ainda é focada no indivíduo, porém de maneira diferente de individualismo
egoísta. Como regem seus princípios, a cooperativa é uma estrutura organizacional típica que
visa a livre reunião de indivíduos para o alcance de objetivos que são comuns a todos, sem
restrição. Eis o diferencial, que a afasta do caráter mercantilista. Nessa livre iniciativa, a
organização de economia coletiva, sob os auspícios de estrutura administrativa democrática
específica, tem seu capital concebido como meio para realização dos fins institucionais, e não
fim em si mesmo. Como analisou Tesch (1995, p.12), a cooperativa “é administrada e
desenvolvida em função unicamente dos seus associados e trabalhadores, técnicos e
administradores, todos com os mesmos direitos e obrigações”. A cooperativa busca gerar de
maneira autônoma um instrumento de produção ou prestação de serviços para melhor inserção
62
no mercado de trabalho (TESCH, 1995, p.12), que, conseqüentemente, gere a melhora do
próprio indivíduo.
Destaca-se, dessa forma, a essência e forma com que uma organização cooperativa se
difere da organização mercantil (tipicamente capitalista). A reflexão comparativa entre a
organização cooperativa e a mercantil é interessante, pois apresenta pontos de inflexões
valiosos para se analisar os diálogos estruturais e os seus princípios organizativos, entre os
quais as formas pelas quais o trabalho, os indivíduos e o lucro são internalizados e entendidos
em suas respectivas estruturas.
Conforme esquematizaram Pinho (1984) e Tesch (1995), as organizações (para os
autores, sociedades) cooperativas e mercantis podem ser diferenciadas, no geral, pelo tipo de
organização e estrutura, mas, principalmente, com relação ao seu fim existencial. A
organização cooperativa é um sistema organizacional e social para atuar no mercado por meio
do trabalho desenvolvido por seus associados, em livre adesão. Seu fim é prover, por meio do
trabalho cooperado e da autogestão, a inserção social e melhoria de vida de seus associados.
as organizações mercantis atuam no mercado por meio da contratação da mão-de-obra,
com função única de produzir e vender bens e serviços para sustento e lucro dos detentores de
capital.
Na essência, percebe-se que, enquanto na organização cooperativista o fim é o
indivíduo e seu trabalho, na mercantil o fator principal é a remuneração do capital dos
detentores dos meios (sejam acionistas, empresários etc.).
Os termos de comparação técnica entre cooperativas e sociedades mercantis montado
por Pinho (1984) e Tesch (1995) passam, necessariamente, pelas seguintes questões:
participação dos indivíduos versus participação do capital; objetivos e prioridades da
organização; controle e processo decisório e relações e dinâmicas entre os indivíduos dentro
da estrutura organizacional.
63
No quadro apresentado por Tesch (2000), esquematiza-se, idealmente:
QUADRO 1 - Comparação entre organização cooperativa e organização
mercantil
Organização Cooperativa
O fator principal é o indivíduo.
Controle democrático; cada indivíduo um voto.
Organização de indivíduos, sem a figura do
“patrão”.
Controle de “baixo para cima.
Propriedade pertencente aos trabalhadores
associados.
Retorno/renda em função do trabalho realizado.
Indivíduo é considerado como um sujeito ativo,
livre, igualitário e solidário.
Organização Mercantil
O fator principal é capital.
Controle proporcional ao capital; cada cota
acionária é igual a um voto.
Sociedade de capital, com a figura do “patrão”.
Controle decima para baixo”.
Propriedade é privada, pertencente aos
investidores.
Retorno/renda em fuão do capital.
Indivíduo é considerado como objeto,
empregado subordinado.
Fonte: Elaborado pelo autor do estudo a partir de Tesch (2000).
O ponto crucial da estrutura organizacional cooperativa, que a instrumentaliza como
capaz de atingir seu fim normativo, filosófico e existencial de gestão livre e democrática, é a
autogestão. A autogestão possibilita a essência e o princípio democráticos da organização
cooperativa, dotando-a de dimensão além da econômica, mas também política. Nesse sentido,
a autogestão torna-se, no limite, a síntese de todos os princípios, valores e características da
doutrina cooperativista, desde seus principais pensadores, precursores e pioneiros.
Enquanto modalidade de gestão, a autogestão está arraigada ao pensamento anárquico,
particularmente em Proudhon, nas concepções de sindicalismo revolucionário europeu e
norte-americano e na idéia de autogoverno industrial dos socialistas ghildistas (BOBBIO,
MATTEUCCI e PASQUINO, 1998).
Os primeiros esboços de uma participação democrática nas relações de trabalho foram
dados em linhas gerais pelo casal Webb, quando, em 1897, introduziram a expressão
64
democracia industrial, com a conotação de democracia econômica. Entretanto, a paternidade
da autogestão está em Proudhon (MOTTA, 1981). Como apresenta Motta (1981, p. 133), a
autogestão enquanto concepção normativa ideal para organização da sociedade foi dada por
Proudhon, que
empregou o seu conteúdo, não restringindo o sentido de uma sociedade autônoma à
simples administração de uma empresa pelo seu pessoal. Ele deu, pela primeira vez, à
sua concepção, o significado de um conjunto social de grupos autônomos, associados
tanto nas suas funções econômicas de produção quanto nas funções políticas. A
sociedade autogestionária, em Proudhon, é a sociedade organicamente autônoma,
constituída de um feixe de autonomias de grupos se auto-administrando, cuja vida
exige a coordenação, mas não a hierarquização.
Ao defender a “negão da burocracia e de sua heterogestão, que separa
artificialmente uma categoria de dirigentes de uma categoria de dirigidos” (MOTTA, 1981, p.
166), Proudhon lançou as bases ideológicas para a propriedade coletiva como organização
coletiva do trabalho, organicamente autônoma e autogerida, de distribuição igualitária da
riqueza gerada. Para Proudhon, essa concepção ia diretamente contra o Estado, o qual, da
forma como estava estruturado, servia para manter e apoiar a heterogestão, sustentando
controle de dominação do homem pelo homem. Dessa forma, a organização coletiva do
trabalho, como imaginava Proudhon, anarquista e baseada na livre associação de produtores,
promoveria a organização de comitês de operários para direção de unidades produtivas, que,
por sua vez, reunir-se-iam em instâncias superiores, levando, com isso, esse sistema às suas
últimas conseqüências e fim: a anulação da necessidade do Estado (MOTTA, 1981).
Uma curiosidade destacada por Motta (1981) é a de que Proudhon nunca se utilizou do
termo autogestão. Esse termo, para designar um empreendimento autônomo, democrático e
coletivo, veio mais tarde, nos anos 60 do século passado, como tradução do servo-croata
samoupravlje, para designar a experiência iugoslava de Tito. Foi na Iugoslávia dos anos 1950,
por meio de sistema de organização econômica e estatal nos moldes proudhonianos, que o
termo autogestão entrou para linguagem política e assim foi disseminado.
65
A experiência na Iugoslávia é paradigtica à autogestão, pois foi uma experiência
relativamente completa e duradoura. Como analisou Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998,
p.78),
o modelo de autogestão, inventado na realidade pelos dirigentes iugoslavos,
justificou-se como meio de conseguir um mais rápido desenvolvimento do sistema
econômico e, ao mesmo tempo, uma imediata emancipão da condição salarial:
como meio, em subsncia, de superar, segundo a tese oficial marxista-leninista, os
próprios termos da contradão (atribuída à experiência soviética) entre pressupostos
materiais do socialismo (“desenvolvimento das forças produtivas”) e modificação,
nesse sentido, das relações de produção. Desde meados dos anos 50, a realização
deste modelo (a chamada via iugoslava para o socialismo”) levou, através de uma
rie de reformas institucionais, à desagregação do anterior sistema monolítico de
molde soviético e à estruturação de três subsistemas convencionalmente: economia,
autonomias locais e partido cujas intricadas interações definem o caráter particular
de democracia participativa que assumiu este ordenamento, submetido, de resto, a
freqüentes reformas institucionais: quatro constituições federais de 1946 a 1974, além
de muitas outras leis fundamentais.
As principais diretrizes, reformas e ações da autogestão iugoslava que deram
sustentação à experiência, como apontam Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998), ocorreram
pela determinação de que a propriedade dos meios de produção seria pública, estatal, sendo
assim, a gestão, a participação direta e seus benefícios transferidos aos trabalhadores, sem
intervenção do Estado. Implementou-se o sistema no qual abolição da distinção entre os
trabalhadores e os diretores, bem como se transferiram todos os riscos e vantagens do
empreendimento aos próprios trabalhadores (contudo, havia rendimento mínimo estabelecido
por lei). Ademais, criaram-se conselhos operários que, eleitos, representavam a organização
em órgãos estatais.
A partir dos escritos de Proudhon e da experiência concreta na Iugoslávia, é possível
esboçar, de uma maneira abrangente, um conceito de autogestão. Um modelo que pode ser
assim entendido:
Um sistema de organização das atividades sociais, desenvolvidas mediante a
cooperação de várias pessoas (atividades produtivas, serviços, atividades
administrativas), em que as decisões relativas à gerência o diretamente tomadas por
quantos participam, com base na atribuição do poder decisório às coletividades
definidas por cada uma das estruturas específicas de atividade (empresa, escola,
bairro etc.) (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1998, p.74)
66
A autogestão, de nascimento normativo no campo social, nas esferas política e social,
incorporou-se como base de organização coletiva do trabalho, em particular, nas organizações
cooperativas, pressupondo, assim, um modo de organização trabalhista cujos meios de
produção são coletivos, sem haver, necessariamente, separão entre concepção e execução
do trabalho.
2.4 Cooperativismo no Brasil
Historicamente, pode-se dizer que o cooperativismo chegou ao Brasil na metade do
culo XIX, em 1847, quando o médico francês Faivre, seguidor dos pensamentos de Fourier,
fundou, no interior do Paraná, a colônia Tereza Cristina, organizada em bases cooperativistas
(SESCOOP, 2005). Entretanto, se observou maior formação de cooperativas em solo
brasileiro, mesmo que de forma dispersa, a partir do final do culo XIX (CULTI, 2002). De
acordo com o levantamento de Culti (2002), as primeiras cooperativas brasileiras nesse
período foram primeiramente as de consumo nas cidades e, num segundo momento, as
agrícolas no campo. As pioneiras, destacadamente de consumo, foram: a Cooperativa de
Consumo dos Empregados da Companhia Paulista, em Campinas (SP), e a Sociedade
Econômica Cooperativa dos Funcionários Públicos de Minas Gerais, ambas em 1887; a
Cooperativa Militar de Consumo, no Rio de Janeiro (RJ), em 1894, e a de Camaragibe (PE),
em 1895; e a Associação Cooperativa dos Empregados da Companhia Telefônica, em Limeira
(SP), no ano de 1899. Como destaca Singer, todavia, nenhuma dessas primeiras formas
cooperativas no Brasil eram genuinamente autogestionárias, pois todas elas eram geridas por
indivíduos assalariados.
Ao contrário do que se observou na Europa, sendo a origem da formação de
cooperativas pautada por movimento operário, o surgimento do cooperativismo no Brasil foi
67
promovido por uma açãotop-down”. Em terras tupiniquins, como analisou Misi (2000), a
implantação do cooperativismo agcola foi feita pelas elites agrárias, levada a cabo como
política de controle social e marcada em seu devir pelo forte controle estatal. Mesmo assim, a
segunda e a terceira gerações de cooperativas brasileiras, ainda que de forma deturpada,
mantiveram certos aspectos dogticos da doutrina cooperativista formada a partir da
experiência de Rochdale.
A origem do cooperativismo brasileiro foi marcada por grande lacuna institucional e
legislativa, principalmente quanto à natureza jurídica desse tipo de organização. Um dos
primeiros marcos legais foi o Decreto n° 979, de 1903. Esse decreto regulava, ao mesmo
tempo, sindicatos e cooperativas de consumo e de produção. Sendo essa distinção jurídica que
de fato separou o sindicalismo do cooperativismo mais tarde, em 1907, pelo Decreto n° 1.673.
Nesse imbróglio jurídico-institucional acerca do cooperativismo, ocorreu que, a
despeito do número inicial até representativo de cooperativas constituídas nesse período, o
movimento caminhou lentamente no Brasil até metade do século XX. Foi com a crise
econômica mundial desencadeada pela Depressão de 1929 que o cooperativismo ganhou novo
estímulo e incentivo no Brasil, pois começou a ser utilizado discretamente como potica
pública. Pode-se dizer que a tomada do cooperativismo, enquanto movimento e prática no
Brasil, ocorreu a partir de 1932. Os motivos para a datação de 1932, ano-chave para o
cooperativismo brasileiro, são dados por dois fatores. O primeiro é que as cooperativas se
tornaram uma política de interesse do Estado, principalmente para política agrícola. À época,
o Estado Varguista começava a observar no cooperativismo um meio para a reestruturação
das atividades agcolas. O segundo foi a promulgação, por Vargas, do Decreto n° 22.239/32,
que regulamentava a organização e funcionamento das cooperativas, definindo melhor as suas
peculiaridades, bem como consagrando as postulações doutrinárias de seu movimento
(CULTI, 2002).
68
Foi no ano de 1959 que se definiu e se institucionalizou, pela primeira vez,
cooperativismo como política de Estado. Pelo Decreto n° 59/59 definiu-se a Política Nacional
do Cooperativismo que, regulamentado em 1967 pelo Decreto-lei n° 60.597, culminou na
criação do Conselho Nacional de Cooperativismo, bem como se definiu o ato cooperativo”.
Por esse ato específico, determinou-se que as operações de ordem econômica entre
cooperados e cooperativas o seriam caracterizadas por operações comuns de compra e
venda (OLIVEIRA, 2005b).
Após esse período de apoio e expansão, mais uma vez, o cooperativismo no Brasil
começou a sofrer dificuldades institucionais, como, por exemplo, a perda de incentivos fiscais
na reforma tributária de 1966 e 1967. Foi mais tarde, durante o governo Médici, que o
cooperativismo voltou a ser focado como uma política de Estado e passou a ser encarado
como um movimento relevante dentro da sociedade brasileira (CULTI, 2002). Nesse período
foi promulgado o Decreto-lei n° 5.764/71, que não apenas regulamentou o funcionamento das
cooperativas, como também criou a Organização das Cooperativas Brasileiras OCB, órgão
nacional de representação da categoria.
O Decreto-lei n° 5.764/71 expressa, em seu artigo 4°, incisos de I a XI, que:
Cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de
natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos
associados, distinguindo-se das demais pelas seguintes características:
I. Adesão voluntária com número limitado de associados, salvo impossibilidade técnica
de prestação de serviços.
II. Variabilidade do capital social representado por cotas-parte.
III. Limitação do número de cotas-parte do capital para cada associado, facultado, porém,
o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para
o cumprimento das obrigões sociais.
IV. Inacessibilidade das cotas-parte do capital a terceiros, estanhos à sociedade.
V. singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações
de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo
critério da proporcionalidade.
VI. Quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número
de associados e não do capital.
VII. Retorno das sobras líquidas do exercício.
VIII. Indivisibilidade dos Fundos de Reserva e de Assistência cnica Educacional e
Social.
IX. Neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social.
X. Prestação de assistência aos associados e, quando previsto nos estatutos, aos
empregados da cooperativa.
69
XI. Área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle,
operações e prestação de servos.
Percebe-se que o Decreto-lei n° 5.764/71, apesar de pesadas concessões em sua letra,
tratou-se de um avanço ao movimento cooperativista brasileiro, pois segue de certo modo os
preceitos de Rochdale, bem como já incorpora regras administrativas para a organização.
Em resgate ao que já tinha sido determinado pelo Decreto-lei n° 60.597/67, o Decreto-
lei n° 5.764/71, em seu artigo 79, definiu ato cooperativo como os atos “praticados entre as
cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si, quando
associadas, para consecução dos objetivos sociais”. Em parágrafo único, determina o artigo 79
que “o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de
produto ou mercadoria”. A definição do ato cooperativo é de grande relevância, pois é a
natureza jurídica deste ato que determina que os negócios-fruto gerados por estes não sejam
tributados, uma vez que tratam de operações destinadas a proveito comum de todos os
membros da sociedade.
Em suas regras administrativas, no Capítulo IX – Dos Órgãos Sociais, o Decreto-lei n°
5.764/71 determina como a estrutura organizacional de uma cooperativa deve ser desenhada.
Conforme texto do Decreto-lei, as cooperativas devem estruturar-se por: Assembléias Gerais
(Ordinárias e Extraordinárias); Conselho de Administração ou Diretoria; e Conselho Fiscal.
As Assembléias Gerais são o órgão supremo da organização cooperativa. É o espaço
simbólico da autogestão, podendo deliberar sobre todas as suas atividades e seus negócios.
Trata-se da reunião dos cooperados com objetivo de deliberarem, por meio de procedimento
democrático, sobre qualquer questão acerca da organização. Todas as deliberações tomadas
nessa instância são vinculadas a todos os cooperados por termos de responsabilidade e diretos,
mesmo aos ausentes e/ou discordantes. De acordo com respectivo Decreto-lei, as Assembléias
Gerais Ordinárias devem ocorrer, obrigatoriamente, nos primeiros três meses após o término
do exercício social (normalmente, até dia 31 de março) e sua principal pauta é a apresentão
70
pelo Conselho de Administração do balanço e do demonstrativo de sobras ou perdas apuradas.
as Assembléias Extraordinárias podem acontecer a qualquer tempo e tem por função
deliberar sobre quaisquer interesses dos cooperados. A principal competência das
Assembléias é deliberar sobre reformas no estatuto, fusão, incorporação ou desmembramento,
mudança no objeto da sociedade, dissolução voluntária da sociedade e sobre a nomeação e as
contas do liquidante.
O Conselho de Administração, ou Diretoria, é responsável pela execução de
atividades-meio, como, por exemplo, a administração financeira, aplicação do fundo de
reserva, negociação de contratos, divulgação da cooperativa, negociações de compra etc. O
seu quadro deve ser preenchido por meio de eleições entre os cooperados, para mandatos
nunca superiores a quatro anos e com renovação obrigatória de, no mínimo, um terço por
eleição. Apesar da responsabilidade estatutária e legal das funções da Diretoria, ela pode e
deve requisitar a participação de cooperados em suas atividades.
Finalmente, o Conselho Fiscal é responsável pela fiscalização da administração da
cooperativa em suas ações e contratos. Seu quadro também é lotado por eleições, com
possibilidade de releição de apenas um terço de seus componentes.
O Decreto-lei n° 5.764/71 também determina que para uma cooperativa ser constituída
são necessárias a participação de, no mínimo, 20 pessoas. Esse ponto polêmico foi revisto
pelo Código Civil Brasileiro de 2002, que determinou a constituição de uma cooperativa por,
no mínimo, sete pessoas, sendo esse o mero legal de vagas em seus conselhos.
Quanto à estrutura financeira, o Decreto-lei n° 5.764/71 determina a existência de dois
fundos obrigatórios indivisíveis, ou seja, fundos destinados à cooperativa e não aos
cooperados. São eles: o Fundo de Reserva, que recebe 10% das sobras líquidas do exercício
social, e o Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social, o FATES, que recebe 5% das
mesmas sobras líquidas. Com relação à formação do fundo divisível de propriedade dos
71
cooperados, tem-se o capital social da cooperativa, formado pelo conjunto de quotas-parte de
cada cooperado sobre a cooperativa. O capital social, nesse sentido, assume o papel de
responsabilidade empresarial da cooperativa no mercado, ao mesmo tempo em que é um
passivo da organização com seus cooperados.
O Decreto-lei n° 5.764/71 também possibilita a formão de estrutura organizacional
facultativa. Essa estrutura, criada e adaptada à necessidade e vontade de seus cooperados,
normalmente possui uma reunião de decisão como uma forma mais informal de deliberação,
utilizada para debates e decisões sobre ações cotidianas.
Em análise de toda letra do Decreto-lei 5.764/71, percebe-se que, por um lado, o
governo Médici volta seu foco para cooperativismo, tratando-o como relevante e estruturando
suas regras administrativas e organizacionais; por outro, coloca as cooperativas sob a tutela do
Estado, deixando a possibilidade de sua criação reclusa à chancela e autorização de órgãos
públicos. Com isso, juridicamente, fere-se não apenas o princípio da autonomia e
independência, mas também inviabiliza-se, tecnicamente, a adesão livre e voluntária e a
autogestão dado que o Decreto-lei n° 5.764/71 exige a delimitão de seu objeto de atuão
e a entrada de cios está vinculada a este objeto.
A tutela do Estado sobre o cooperativismo permaneceu até a Constituinte de 1988.
Com a promulgão da nova Constituição Brasileira, as organizações cooperativistas do
Brasil deixaram de ser estritamente tuteladas pelo Estado, conquistando maior liberdade e,
conseqüentemente, a possibilidade de uma autogestão stricto sensu (BIALOSKORSKI,
2000).
As cooperativas podem ser de vários ramos. Por meio de seu artigo 10, o Decreto-lei
n° 5.764/71 determina que “as cooperativas se classificam, também, de acordo com o objeto
ou pela natureza das atividades desenvolvidas por elas ou por seus associados”. O
cooperativismo, com base dos modelos da Aliança Cooperativa Internacional ACI e das
72
Organizações das Cooperativas das Américas OCAS, ficou dividido em 13 ramos no Brasil,
a saber:
Agropecuário
Cooperativas de produtores rurais ou agropastoris, cujos meios de produção
pertençam aos cooperados.
Consumo
Cooperativas dedicadas à compra em comum de artigos de consumo para seus
cooperados.
Crédito
Cooperativas destinadas a promover a poupança e financiar necessidades u
empreendimentos de seus cooperados .
Educacional
Cooperativas de professores, cooperativas de alunos de escola agrícola,
cooperativas de pais e alunos e cooperativas de atividades afins.
Especial
Cooperativas constituídas por pessoas que precisam ser tuteladas.
Habitacional
Cooperativas destinadas à construção, manutenção e administração de
conjuntos habitacionais para o seu quadro social.
Infra-estrutura
Cooperativas que prestam serviços de eletrificação, saneamento e
telecomunicações.
Mineral
Cooperativas dedicadas à pesquisa, extração, lavra, industrialização e
comercialização de produtos minerais.
73
Produção
Cooperativas dedicadas à produção de um ou mais tipos de bens e mercadorias,
sendo os meios de produção propriedade coletiva, por meio de pessoa jurídica
e não propriedade individual do cooperado.
Saúde
Cooperativas que se dedicam à preservão e recuperação da saúde humana
(ramos médicos, odontológicos, psicológicos etc.).
Trabalho
Cooperativas de trabalhadores de todas as categorias profissionais, para prestar
serviços a terceiros.
Transporte
Cooperativas que atuam no transporte de passageiros, cargas, escolares, moto-
boys etc.
Turismo e Lazer
Cooperativas que atuam no setor de turismo e lazer.
Outros
Cooperativas que não se enquadrem nos demais tipos/ramos anteriores.
De acordo com Pinho (2004), a determinação das cooperativas por ramo de atividade
foi feita com objetivo de classificar e facilitar a verticalização das cooperativas em
organizações, tais como: federações, confederões e centrais, sejam elas no âmbito estadual
ou nacional. Outro fator que torna a classificação relevante é a possibilidade de agrupamentos
para acompanhamento e análise econômica.
A Tabela 1 e o Gráfico 1 a seguir, organizados a partir dos ramos de atividades das
cooperativas, mostram a evolução no perfil do movimento cooperativista brasileiro no tempo,
dos anos 40 aos anos 90.
74
Tabela 1 Evolução do perfil do cooperativismo brasileiro
Anos 40 Anos 50 Anos 60 Anos 70 Anos 80 Anos 90
Ramo % % % % % %
Agropecrio 79 75 55 28 20 20
Consumo 9 12 8 2 4 5
Crédito 10 8 18 21 38 20
Educacional 0 0 0 2 1 5
Saúde 0 0 0 21 18 20
Trabalho 2 3 8 8 16 25
Demais 0 2 11 18 3 5
Total 100 100 100 100 100 100
Fonte: OCB, 2004
Gráfico 1 Evolução do perfil do cooperativismo brasileiro
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Anos 40Anos 50Anos 60Anos 70Anos 80Anos 90
Agropecuário Consumo Crédito Educacional Saúde Trabalho Demais
Fonte: Elaborado pelo autor. OCB, 2004
A análise do quadro e do gráfico leva à percepção de que a estrutura de atividade
cooperativa no país acompanhou as estruturas dinâmicas e características socioeconômicas de
cada década do Brasil. Como se observa, o ramo agcola constitui-se, até os anos 60, como a
principal atividade cooperativa do país. Entretanto, com a industrialização brasileira,
75
conseqüentemente, a urbanização e o êxodo rural, uma inversão e, a partir dos anos 70, os
ramos de crédito, saúde e trabalho adquirem maior relevância.
Segundo a Organização das Cooperativas Brasileiras OCB, em dados atualizados e
oficiais de 2004, o Brasil possuía, em 2004, 7.136 cooperativas, com 6.159.658 cooperados e
195.100 empregados, gerando faturamento de R$ 60 bilhões, equivalente a 6% do PIB
nacional. Praticamente, nesse ano de 2004, o cooperativismo brasileiro teve um faturamento
per capita (por cooperado) de R$ 9.740,80.
O número de cooperativas constituídas é crescente no Brasil, e, no período 1990-2004,
teve um incremento de 101,07%, saltando de 3.549, em 1990, para 7.136 cooperativas, em
2004 (fonte: OCB). Em 2004, das cooperativas brasileiras, 73,47% concentram-se no ramo:
trabalho (26,54%), agropecuário (19,59%), crédito (14,97%) e saúde (12,37%).
Tabela 2 - Números do cooperativismo por ramo de atividade - 2004
Ramo de Atividade Cooperativas Associados Empregados
Agropecrio 1.398,00 865.173,00 116.919
Consumo 144,00 1.820.531,00 7.463
Crédito 1.068,00 1.890.713,00 26.068
Educacional 311,00 66.569,00 2.827
Especial 9,00 326,00
Habitacional 356,00 128.940,00 1.126
Infra-estrutura 171,00 585.897,00 5.299
Mineral 37,00 48.846,00 27
Produção 136,00 25.490,00 373
Saúde 883,00 326.579,00 28.249
Trabalho 1.894,00 346.100,00 4.154
Transporte 715,00 52.793,00 2.590
Turismo e Lazer 14,00 1.741,00 5
Totais 7.136,00 6.159.698,00 195.100
Fonte: OCB, 2005
76
Conforme analisa Pinho (2000), o aumento do número de cooperativas de trabalho,
bem como sua maior participação no total por ramo, tem a ocorrência no fato de que, com a
precariedade das relações trabalhistas e o desemprego em alta, as pessoas buscam alternativas
para obtenção de renda, encontrando resposta no trabalho cooperado. Ou seja, encontra-se, no
cooperativismo de trabalho dos anos 90 novo cooperativismo, o meio pelo qual se manifestam
as ações da Economia Solidária como forma de resgatar os indivíduos da marginalidade e da
excluo do mercado de trabalho e de consumo.
2.5 Cooperativismo e o Cooperativismo Popular: releituras para um novo
cooperativismo
Passadas as Revoluções Industriais e Tecnológicas, o debate sobre a organização
coletiva do trabalho no mundo hodierno ganha novos rumos no final do século XX e início do
culo XXI. Como já analisado nos itens Femeno arraigado como Questão Social e Owen e
os Pioneiros de Rochdale: as origens do cooperativismo, o primado da organização coletiva
do trabalho está na alternativa de reão dos trabalhadores a sua exploração desenfreada no
processo abrupto de consolidação do capitalismo industrial, sendo o cooperativismo o seu
principal expoente. Pela perspectiva teórica e prática na época do surgimento da organização
coletiva do trabalho, pode-se dizer que o debate se travava entre revolucionários e reformistas.
Pelo lado revolucionário, alguns precursores e algumas experiências defendiam a organização
coletiva do trabalho como meio real para revolução socialista. O que colocaria,
definitivamente, um fim na organização do capital (MARX, 1985). os reformistas
observavam na organização coletiva do trabalho nova forma de inserção no capitalismo, que
adere ao capital, porém o faz de maneira e lógica reformadas, excluindo-se a segregão
proprietário versus trabalhadores, colocando o trabalho e o indivíduo como foco.
77
Do novo rumo que o debate contemporâneo da organização coletiva do trabalho
trilhou, observam-se dois importantes desdobramentos do primado do debate entre
revolucionários e reformistas para reflexão contemporânea. O primeiro: não importa qual a
vertente (revolucionária ou reformista), a organização coletiva do trabalho, por meio das
cooperativas, tornou-se um movimento de relativo peso, sendo incorporado pela Economia
Social, num primeiro momento, e, posteriormente, pela Economia Solidária, como se
constatou na história e análise do item Economia Solidária no Brasil. O segundo se encontra
no fato de que, fracassado o modelo soviético e dado o fim de algumas experiências de peso,
como a iugoslava, a vertente predominantemente adotada para fundamentar o pressuposto do
movimento contemporâneo é a reformista.
Como se observa no discurso da Economia Social, a ação para organização coletiva do
trabalho por meio de cooperativas, antes de uma tomada de consciência para a revolução
socialista, trata-se, fundamentalmente, de uma alternativa prática para crise da sociedade
salarial. O movimento, atualmente, adquire ação política de inclusão no mundo do trabalho,
em nova fase de desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, as cooperativas são resposta
prática e eficaz para equilibrar o cenário de desemprego, perda de diretos sociais e
enfraquecimento do movimento sindical.
Entretanto, a Economia Social nem sempre atinge com eficiência e eficácia seus fins
de promoção da inserção no mercado de trabalho por meio de cooperativas democráticas.
Apesar de ser uma proposta relativamente sólida de base teórica e legal, o que se analisa é que
o devir histórico do capitalismo se mostrou com grande força motriz de re-significão da
prática cooperativista. Observa-se na atualidade, e não de modo residual, grande deturpação
do modelo cooperativista. Mais do que nunca, como destacou Lima (2004), constata-se,
empiricamente, atese da degenerescência das cooperativas de Webb e Webb (1914). Nessa
tese, os Webb argumentaram que o sucesso econômico das cooperativas dar-se-ia pela
78
eliminação da democracia autogestionária e sua transformão em empresas capitalistas
comuns, ou seja, as cooperativas terminariam por sucumbir às necessidades empresariais,
transformando-se em associações capitalistas para incorporação de lucro e contratação de
mão-de-obra assalariada. Como corroboram vários autores (FRANÇA FILHO, 2002; LIMA,
2004), com o passar do tempo, o cooperativismo começou a ser lentamente absorvido pela
economia de mercado, deixando de reformar para assumir sua respectiva lógica, destituindo-
se com isso de seus principais fins. Tornam-se apenas empresas comuns, ou ainda, como
argumenta Lima (2004, p.46), dadas “a reestruturação produtiva e a formação das redes
empresariais, as cooperativas, embora não necessariamente se transformem em empresas
comuns, podem terminar integrando redes como parceiras terceirizadas numa relão
assimétrica, oferecendo força de trabalho a baixo custo e apenas quando necessário”.
Nesse cenário, a máxima popular marxiana de que “tudo que é sólido se desmancha no
ar” corre o risco de ser empregada com propriedade ao cooperativismo. Deve-se, portanto,
separar do movimento as cooperativas que se tornaram linha auxiliar do capital, conhecidas
como cooperfraudes ou coopergatos, daquelas que assumem seus princípios de cater
democrático, autogestionário e solidário.
Lima (2004) apresenta duas definições interessantes para mapear esse contexto na
realidade brasileira. A primeira são as cooperativas pragmáticas. Nessa categoria, estão
incluídas as cooperfraudes/coopergatos, ou seja, as cooperativas terceirizadas de empresas e
que, em geral, foram organizadas por empresas, somando-se a elas também as cooperativas
que integram programas estatais de geração de renda, porém, desvinculadas dos princípios do
movimento cooperativista. A segunda são as cooperativas defensivas que incluem as
cooperativas formadas por trabalhadores para assumir massa falida de empresas em situão
falimentar ou as formadas por programas governamentais de geração de renda para
populões pobres. Lima (2004) destaca que ambas as categorias, pragmática e defensiva, são
79
dependentes de certa maneira. Para sua respectiva sobrevivência, apóiam-se em redes
empresariais e órgãos públicos (pragmáticas) e em órgãos públicos de fomento e instituições
da sociedade civil (defensivas).
As categorias pragmática e defensiva apresentadas por Lima (2004) também podem
ser idealmente encontradas em outros autores do cooperativismo. Singer (2003), por exemplo,
analisa o mesmo contexto, destacando dois tipos de cooperativas: as capitalistas e as
autênticas. De acordo com o autor, as capitalistas são as cooperativas de visão essencialmente
empresarial, na qual só a dimensão econômica está presente. Sendo as autênticas as
cooperativas que seguem os princípios doutrinários do movimento: da igualdade,
solidariedade e democracia.
Fica claro que a Economia Social passa, na contemporaneidade brasileira e mundial,
por profunda re-significação, senão crise, de seus pressupostos. A dicotomia
pragtica/defensiva ou capitalista/autêntica é a evidência de um processo no qual o
movimento fora, em certa medida, absorvido pelo sistema capitalista, como bem apontara
os Webb (1914). Entretanto, a essência do movimento ainda existe e está concentrada na
categoria defensiva (LIMA, 2004) e autêntica (SINGER, 2003). Essa preservação do
pressuposto e ideal da Economia Social, expressa por meio do cooperativismo, pode ser
encontrada na releitura dessa categoria na realidade socioeconômica brasileira, que ocorre por
meio da construção do discurso da Economia Solidária.
A Economia Solidária, como analisado nos respectivos itens do Por uma arqueologia
genealógica da Economia Solidária, funda novo cooperativismo. Suas ações são pautadas nos
empreendimentos solidários, os quais, como apontou Gaiger (1996; 2003), possuem como
principais características: autogestão; democracia; participação; igualitarismo; cooperação;
auto-sustentação; desenvolvimento humano e responsabilidade social. Nesse sentido, o
empreendimento solidário, em essência, manifesta-se por meio de cooperativas enquanto
80
forma, respeitando seus pressupostos, porém enquanto prática adquire um novo papel. No
novo cooperativismo” expressado pela Economia Solidária, as iniciativas, agora, são locais,
de utilidade pública e voltadas, principalmente, para o estabelecimento de liame social, com
vistas à inclusão promotora do desenvolvimento socioeconômico (FRANÇA FILHO, 2002;
NASCIMENTO, 2004). Essa nova direção do cooperativismo, conceitualmente, adquiriu o
status de popular. O cooperativismo popular, como expressão da Economia Solidária, busca
resgate dos pressupostos do movimento cooperativista clássico com objetivo de promover
desenvolvimento local para a inclusão de camada de baixa renda.
O termo popular, ao ser vinculado ao cooperativismo, denota, imediatamente, a
utilização do cooperativismo como forma utilizada para melhoria de uma “classe excluída”,
menos favorecida”, em suma, mais “pobre”. Tratam-se, portanto, de empreendimentos que,
como analisou Singer (2003), nascem de iniciativas governamentais ou da sociedade civil
(igrejas, universidades etc.) e possuem fortemente destacadas as dimensões econômicas,
sociais e políticas.
81
METODOLOGIA
82
3. O rigor do olhar: uma questão de bricolage
Com título O rigor do olhar: uma questão de bricolage, o item apresenta a
metodologia utilizada na realização dessa investigão. Seu objetivo é construir a reflexão
empreendida acerca do desenho metodológico adotado, justificando seus porquês.
O rigor do olhar: uma questão de bricolage inicia-se pelo debate sobre o método nas
cncias sociais aplicadas atuais, contrapondo duas correntes abrangentes e dominantes: os
quantitativistas e os qualitativistas. Em seguida, por meio do estudo da problemática de
pesquisa, apresenta o porquê da escolha pela abordagem qualitativa. Finalmente, desenvolve o
tipo de pesquisa adotado no âmbito dessa abordagem - o estudo de caso, construindo e
justificando passo a passo suas três estratégias de coleta de dados (a observão; a análise de
documentos; e as entrevistas), sua análise, pautada por uma postura
fenomenológica/interpretativista caracterizada pela metáfora do bricoleur, e a apresentação de
seu relatório de resultados, inspirado na descrição densa.
3.1 Reflexões sobre a escolha do método
Fruto do desencantamento das práticas gicas e místicas (WEBER, 1993) e do
espanto e curiosidade humana sobre o desconhecido, a ciência acabou por ser
institucionalizada na modernidade como o lócus racional de reflexão sobre o mundo, a vida
humana e suas relações. Tornou-se um todo legitimado de abordagem do mundo suscetível
de ser experimentado pelo homem (GOODE; HATT, 1968), num processo marcado pela forte
centralidade da razão, que transferiu a ela o status de força motriz antropocêntrica e objetiva
parceira do progresso, responsável por marcar o passo no desenvolvimento da humanidade.
Esse status concebido à ciência, na modernidade, é destacadamente reforçado pelo
grande debate travado pelos positivistas gicos dos anos 1920 e 1930 acerca de o que seria
83
cncia e qual seu fim (objetivo). Conforme apresenta Chalmers (1990), os positivistas lógicos
faziam grande defesa da ciência com intuito primordial de distingui-la do discurso metafísico
e religioso de outrora, considerando estes discursos “bobagens não-científicas”. O principal
pressuposto dado pelos positivistas para essa distinção ocorreu pelo desenvolvimento de um
conceito, uma definição clara e geral de ciência, em que se incluíram, necessária e
fundamentalmente, os todos apropriados para sua construção e os critérios a que recorrer
para fazer sua avaliação (CHALMERS, 1990, p.14). Com isso, a ciência adquiriu cater
epistemológico, pelo qual a ciência não essencialmente passaria apenas por uma reflexão,
uma investigação, mas imprescindivelmente seria pautada por um método, um caminho
universal e a-histórico a ser trilhado (CHALMERS, 1990). Universal no sentido de que se
tencionava que fosse igualmente aplicada a todas as teses científicas” e a-histórico no sentido
de que deveria aplicar-se tanto às teorias passadas como às contemporâneas e às futuras”
(CHALMERS, 1990, p.15).
É a partir da conceitualização, desenvolvimento e aprimoramento do método que se
pauta a construção da ciência moderna. Nesses termos, a ciência o é se for orientada por
um todo. Desde então, muita tinta vem sendo gasta em se discutir qual o melhor método
objetivo e universal que caracteriza a reflexão e a investigação como legitimamente
científicas. Lakatos e Popper contribuem para esse debate sobre o todo como a
determinante do que é científico ou não, aportando-se ambos na universalidade e na a-
historicidade. Conforme aponta Chalmers (1990, p.15), Lakatos acreditava que “o problema
central na filosofia da ciência era a questão de determinar as condições universais sob as quais
uma teoria é científica”, logo, ele sugeria que a solução do problema “‘deveria oferecer(-nos)'
uma orientação a respeito de quando aceitação de uma teoria científica é racional e quando é
irracional". Popper, por outro lado, possuía uma defesa em padrões objetivos, pela qual se
84
buscava demarcar o limite entre a ciência e a não-cncia em termos de um método que (...)
considerava característico de todas as ciências, inclusive sociais” (CHALMERS, 1990, p.16).
De uma perspectiva instrumental, nesse sentido, a ciência moderna manifesta-se
primeiramente pelo seu meio e o, necessariamente, pelo seu fim. Sua epistemologia e
ontologia estão marcadamente em seu devir e não em seu resultado. Por essa análise, o fim
científico, o resultado de uma investigão, apresenta-se de antemão como claramente
vislumbrado: um progresso, uma descoberta. Não fim em si mesmo, a não ser a produção
de um conhecimento, de proposições sob a forma de ‘se-, então-’” (GOODE; HATT, 1968),
sejam elas quais forem. A principal determinante que caracteriza o fazer cncia encontra-se
no meio para consecução desse fim preestabelecido.
No âmbito das humanidades, esse debate do método como determinante tornou-se
explícito quando da construção das ciências sociais. Comte e Durkheim, fundadores da
Sociologia, entendiam, com forte viés conservador e positivista, que o estudo dos fenômenos
sociais passava imprescindivelmente pelo rigor do método. Para esses autores, o método era o
ponto-chave do qual se poderia dizer que se estava “fazendo ciência social de fato. Para
Comte (1972), nada mais apropriado e defendido para sua sociologia do que um método a ser
conduzido por sociólogos profissionais, que, pela sua expressão empírica, conduziria a
sociedade ao progresso de seu estágio mais acabado - ideal. Já para Durkheim (1966), como
apresentado em seu clássico As Regras do Método Sociológico, o estudo de qualquer fato
social para ter seu valor científico deve passar pela ritualística de uma regra, uma gida
esquematização metodológica.
Com isso, Durkheim, Comte entre outros autores criaram uma concepção filosófico-
ortodoxa do chamado método científico (CHALMERS, 1990) que concebeu a ciência social
como conhecimento objetivo que, pautado por método, produz eficácia simbólica quanto ao
que se pretende investigar: a) ao se usar o todo, há uma legitimidade que garante a
85
investigação como científica; b) o cientista/sujeito reconhece o resultado gerado como
racional e válido; c) a sociedade reconhece como válido o trabalho do cientista/sujeito.
Ao se focar todo mérito científico no todo, poder-se-ia dizer, em análise weberiana,
que a técnica da cncia moderna, seu método, tornou-se, no limite, um valor. É pelo método
que a ciência se faz e se desenvolve. Como coloca Chalmers (1990, p.16), não é incomum
encontrarem-se os próprios cientistas em atividade expressando a idéia de que uma explicão
universal do método científico poderia ou deveria ser usada para defender ou ajudar a
aperfeiçoar a ciência.”.
Entretanto, se a existência do método enquanto forma e caminho a ser trilhado define e
desenvolve o fazer ciência, ela o encerra a questão sobre sua universalização e a-
historicidade. Nesse ponto, abre-se nova e extensa indagação sobre a própria natureza do
método nas ciências sociais. Inicia-se processo saudável e renovador que começa a
desqualificar a situação em que somente os defensores de estratégia positivista seriam os reais
detentores da ciência e da racionalidade e os defensores de outras estratégias inimigas dessas.
As ciências administrativas participam desse debate e contexto. Num processo
multidisciplinar, com a abertura e desenvolvimento dos estudos na área da administração com
grande intercâmbio de pesquisadores de outras áreas, a questão do método é evocada com
mais rigor. O principal ponto de insurreição desse debate é dado pela indagação de qual
método utilizar nas pesquisas empíricas. Volta-se para a forma de atuar e agir no campo,
como produzir ciência que possua laços estreitos e deseveis com o empírico, polemizando o
paradigma da universalidade e da a-historicidade.
O todo, nesse sentido, apresenta formas normativas, múltiplas e contextuais.
Consiste na possibilidade de modelos e visões diferentes de trilhar cientificamente por alguma
investigação, em um debate que pode ser encarado, de maneira mais explícita, entre os
quantitativistas e os qualitativistas; mas que, no limite, de forma mais particularizada, reside
86
num tenso embate entre os positivistas e pós-positivistas de um lado e as vertentes
interpretativista e teórica crítica e pós-moderna de outro (DENZIN; LINCOLN, 2000).
Os positivistas e pós-positivistas, asseclas dos guardiões do método” arraigados num
modelo universal e a-histórico, encontram-se concentrados na metodologia quantitativa de
alise dos fenômenos. Para eles, é necessária “atenção especial para o desenvolvimento de
métodos quantitativos e padronizados (FLICK, 2002, p.18), utilizando-se para isso de
questionários, inventários e demografia, com intuito de produzir dados compatíveis com a
alise estatística. Conforme sintetiza Richardson (1999, p.70):
O todo quantitativo, como o próprio nome indica, caracteriza-se pelo emprego da
quantificação tanto nas modalidades de coleta de informações, quanto no tratamento
delas por meio de técnicas estatísticas, desde as mais simples como percentual, média,
desvio-padrão, às mais complexas, como coeficiente de correlação, análise de
regressão etc. [...]
No todo quantitativo, o caminho para se entender os fenômenos é dado por meio de
esquematizações. O cientista, considerado parte objetiva egena à problemática de estudo,
procura retratar a realidade por meio de sistemas numéricos e gerais, dos quais se pode inferir
uma caracterização modelar que seja passível de generalização sobre determinado fenômeno.
A herança desse método está, marcadamente, dada nas ciências exatas.
A outra vertente, de caráter interpretativista, encontra-se representada pelas
metodologias qualitativas. No método qualitativo, ao contrário do quantitativo, os
instrumentos estatísticos não o considerados como única e restritiva fonte e o
cientista/sujeito não é dissociado da problemática. O todo qualitativo considera o cientista
parte integrante e incontrolada do processo da investigação, ou seja, é visto como o agente da
observação que, a partir dos dados e informações coletados e observados no campo, analisa e
interpreta a realidade social na qual se inserirá. Em paráfrase a Geertz (1989), tem-se a
máxima de que o cientista não estuda o campo, ele estuda no campo.
87
Como descrevem Denzin e Lincoln (2000), pode-se dizer que o método qualitativo é
interessado em estudar as coisas em seu ambiente natural, procurando dar sentido aos
fenômenos ou interpretá-los de acordo com o significado que as pessoas atribuem a eles. Não
há preocupão em instrumentalizar a realidade a um modelo estatístico e generalizá-la, mas,
sim, interpretá-la à luz do que o cientista/agente vivencia.
Com isso, acaba por se gerar um debate (quantitativistas/qualitativistas) de
fundamental relevância do ponto de vista ontológico e epistemológico acerca do todo
científico nas ciências sociais. Um debate que, antes de produzir vencedores ou detentores da
verdadeira ciência, produz a reflexão crítica sobre o desenvolvimento dos estudos sociais
aplicados.
A escolha do caminho a ser trilhado pelo cientista/pesquisador sobre qual todo é
mais adequado para o estudo, deve ocorrer, então, não restritivamente pela preferência por
uma linha específica, mas, principalmente, pela análise da problemática sobre a qual se
pretende refletir. A questão do todo trata, portanto, não apenas de uma escolha valorativa
do pesquisador, mas de análise de adequação instrumental (meio-fim), que leva em
consideração as premissas teóricas que fundamentam e estruturam a problemática suscitada.
Conforme Fachin (2001), o método científico acaba por se tornar a escolha de um
procedimento sistemático que tem por objetivo descrever e explicar determinada situação sob
estudo, sendo a escolha de um em detrimento de outro baseada em dois critérios básicos: a
natureza do objetivo ao qual se aplica e o objetivo que se tem em vista no estudo.
Cabe ao pesquisador que pretende “fazer ciência” adentrar por esse debate e reflexão e
analisar, criticamente, qual o melhor método a ser seguido em seu estudo, bem como seus
porquês, legitimando-o à premissa científica. Logo, pretende-se, O Rigor do olhar: uma
questão de bricolage, discutir qual método e quais técnicas desse método são os mais
adequados ao exame da probletica formulada nesta pesquisa.
88
A problemática suscitada na presente dissertão é: como os indivíduos constroem e
vivenciam a gestão de um empreendimento solidário? Observa-se nessa problemática uma
indagação estritamente aberta, subjetiva e exploratória. Sua característica aberta é dada pela
ausência de pressuposto normativo sólido colocado aprioristicamente. Não se busca nessa
indagação testar nenhuma hipótese construída e fechada a ser constatada ou refutada em
campo. O que se tem é um questionamento que evoca a observação e interpretação de como
uma complexidade se constrói e é vivenciada em determinado contexto. Ademais, por ser
também uma indagação que leva em consideração um fenômeno o apenas dado por
indivíduos em questão, mas também seu lócus social de trabalho (empreendimento solidário),
tem-se uma dimensão subjetiva, cuja refleo envolve a construção intersubjetiva e social de
um contexto. Por fim, tendo em vista que a problemática provoca a ida do pesquisador a
campo para observar possível interpretação à interrogação, nada está definido antes da
observação. Apresenta-se, desse modo, uma característica e uma necessidade exploratório-
descritiva, das quais eclodirão portas de entrada interessantes para estudar o empreendimento
solidário na vida desses indivíduos.
Essas características do problema de pesquisa levam à opção pela aplicação e uso de
um método qualitativo. Conforme aponta Richardson (1999, p. 79), “a abordagem qualitativa
de um problema, além de ser uma opção do investigador, justifica-se, sobretudo, por ser uma
forma adequada para entender a natureza de um fenômeno social”. Analisa o autor:
Em princípio, podemos afirmar que, em geral, as investigações que se voltam para
uma análise qualitativa têm como objeto situões complexas ou estritamente
particulares. Os estudos que empregam uma metodologia qualitativa podem descrever
a complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas variáveis,
compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais, contribuir
no processo de mudança de determinado grupo e possibilitar, em maior nível de
profundidade, o entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos
(RICHARDSON, 1999, p. 80).
Esta escolha também se justifica por se tratar de questão ainda não conhecida, não
respondida. Como destaca Godoy (1995, p. 63), “quando estamos lidando com problemas
89
pouco conhecidos e a pesquisa é de cunho exploratório, este tipo de investigão [qualitativa]
parece ser o mais adequado”.
Godoy (1995, p. 63), por meio da argumentão do trabalho do pesquisador
qualitativo, apresenta pistas interessantes que se tornam úteis para refletir a presente
problemática por meio de uma abordagem qualitativa. De acordo com a autora,
os pesquisadores qualitativos estão preocupados com o processo e não simplesmente
com os resultados ou produto. O interesse desses investigadores está em verificar
como determinado fenômeno se manifesta nas atividades, procedimentos e interações
diárias. Não é possível compreender o comportamento humano sem a compreensão
do quadro referencial (estrutura) dentro do qual os indivíduos interpretam seus
pensamentos, sentimentos e ações. O significado que as pessoas dão às coisas e à sua
vida o a preocupação essencial do investigador.
Nesse sentido, Godoy (2005, p. 81), à luz de Merriam (2002), assinala que os estudos
de abordagem qualitativa, interessados em examinar quais os significados que os indivíduos
atribuem ao fenômeno e/ou situação estudada, possuem, de modo genérico, quatro
características-chave:
busca-se compreender os significados que as pessoas constroem sobre seu mundo e as
experiências nele vividas, tendo o pesquisador como principal instrumento de coleta e
análise de dados. Para coletar os dados são feitas entrevistas, realizadas observações
ou analisados documentos. O processo de condução da pesquisa é essencialmente
indutivo, isto é, o pesquisador coleta e organiza os dados com o objetivo de construir
conceitos, pressuposições ou teorias, ao invés de, dedutivamente, derivar hipóteses a
serem testadas. A análise indutiva dos dados leva a identificação de padrões
recorrentes, temas comuns e categorias. O resultado da pesquisa é expresso por meio
de um relato descritivo detalhado e rico a respeito do que o pesquisador aprendeu
sobre o fenômeno. Tais resultados são apresentados e discutidos usando-se as
referências da literatura especializada a partir da qual estudo se estruturou.
Dessa maneira, com as justificativas expostas, optou-se pela abordagem qualitativa
do fenômeno a ser estudado, considerando-a a mais adequada como a trilha a ser seguida para
essa investigação que se pretende científica.
90
3.2 O tipo de pesquisa e as técnicas de coleta e análise de dados
3.2.1 Tipo de pesquisa: estudo de caso
Escolhida a abordagem metodológica, faz-se necessário definir qual o tipo de pesquisa
a ser adotado. Dada a problemática de pesquisa e de seus objetivos, optou-se pelo
desenvolvimento de um estudo de caso. De acordo com Goode e Hatt (1968), o estudo de
caso é uma abordagem específica de olhar a realidade social que, por meio de técnicas de
investigação (como entrevistas, observação participante, documentos etc.), permite organizar
os dados sociais, preservando o caráter unitário do objeto social estudado. Esse tipo de
pesquisa possibilita desenvolvera compreensão de um particular caso, sua idiossincrasia, em
sua complexidade” (STAKE, 1988, p.256).
Da perspectiva dos estudos organizacionais, Hartley (1995, p. 208-209) define estudo
de caso como
uma investigão detalhada, freqüentemente com dados coletados durante um período
de tempo, de uma ou mais organizações, ou grupos dentro das organizações, visando
prover uma análise do contexto e dos processos envolvidos no fenômeno estudado.
Stake (2000, p. 208) concorda com essa definição, ampliando-a e considerando estudo
de caso como
uma investigação detalhada, subsidiada pela coleta de dados em um determinado
período de tempo, em uma ou mais organizações, ou grupo de organizações, com o
intuito de prover uma análise do contexto e dos processos envolvidos no fenômeno a
ser estudado. Trata-se da observação de um determinado fenômeno que, por meio de
narrativas e descrições das personagens envolvidas, da observão do campo e do
estudo de materiais, tem por objetivo analisar o contexto e as relações que dele
emergem.
Como estratégia qualitativa de pesquisa, o estudo de caso está cada vez mais difundido
nas ciências sociais aplicadas, particularmente nos estudos organizacionais, conforme atesta o
trabalho de Godoi e Balsini (2006). Entretanto, diversas possibilidades para sua
91
organização, algumas de cunho mais positivista (YIN, 2001; EISENHARDT, 1989) e outras
mais abertas, interpretativistas e fenomenológicas (STAKE, 2000; HARTLEY, 1995;
MERRIAM, 1988).
Como destaca Godoy (2006, p. 123), “uma investigão desenvolvida sob o tulo de
estudo de caso pode ser elaborada a partir de diferentes perspectivas, devendo o
pesquisador estar atento para suas escolhas que precisam estar alinhadas ao problema de
pesquisa a que se pretende responder”. Para a consecução dos objetivos propostos nessa
dissertação, utilizou-se um estudo de caso de natureza mais interpretativista, à luz de Stake
(2000), Hartley (1995) e Merriam (1988), tendo em vista o espaço de reflexão, interpretação e
insigths que este estudo de caso permite, além da possibilidade dada por essa estratégia em
compreender uma situação em sua profundidade e considerar com ênfase os significados
dados pelas várias personagens envolvidas.
De acordo com Merriam (1998), existem três tipos clássicos e ideais de estudo de
caso: descritivo, interpretativo e avaliativo. Os estudos descritivos buscam descrição
detalhada de um femeno social, apresentando, de modo rico, sua estrutura, configuração,
contexto, atividades e relações. Não existe uma hipótese prévia que guie o olhar do
pesquisador. O que torna os estudos descritivos como praticamente ateóricos e preocupados
em observar e descrever aquilo que se apresenta no campo. Já os estudos interpretativos
buscam não apenas descrever o fenômeno estudado, mas, principalmente, observar a
recorrência de fatores, o que leva a constatão de padrões que possam produzir ou testar
categorias conceituais e teorias substantivas. E, por último, o estudo avaliativo é caracterizado
por levantar meticulosamente os dados do campo, com objetivo de se avaliar, julgar, os
resultados e efetividade de um projeto ou programa social.
Percebe-se que a tipologia encetada por Merriam (1998) possui o mérito de construir e
abarcar três distintos caminhos possíveis quando da utilização do estudo de caso. Três tipos
92
que, por serem ideais, se tornam muito pertinentes enquanto campo teórico de entendimento,
mas em sua prática não se comprovam perfeitamente. Pelas definições de Hartley (1995) e
Stake (2000), o próprio desenvolvimento de estudo de caso acaba por transparecer que sua
utilização incorre na possibilidade de combinação de descrição, interpretão e avaliação.
Nesses termos, assume-se, nessa dissertão, a utilização de um estudo de caso de natureza
qualitativa/interpretativa (HARTLEY, 1995; STAKE, 2000) que se apresenta focado e
desenvolvido concomitantemente em dois tipos ideais: descritivo e interpretativo
(MERRIAM, 1998). Pretendeu-se, assim, utilizar-se da descrição do fenômeno estudado
(empreendimento solidário na forma de uma cooperativa de reciclagem) para analisar se a
cooperativa ora apresentada caracteriza-se como, de fato, um empreendimento solidário e da
interpretação para relacionar e constituir contrapontos teóricos.
Como conduta para o desenvolvimento satisfatório desse estudo de caso, utilizou-se
das orientações propostas por Stake (2000) e Godoy (2006), seguindo-se as etapas de:
definição do problema; escolha do caso; escolha da teoria inicial; negocião do acesso;
coleta de dados; entrada no campo; análise dos dados; conclusões.
3.2.2 Estratégia de coleta de dados
Como analisado, os estudos de caso (HARTLEY, 1995; STAKE, 2000) possuem
características que os tornam particulares. Dentre essas, encontram-se as descrições
complexas de uma realidade a partir de um grande agregado de dados que, pautada pela
observação pessoal, é feita por meio de uma análise mais informal, narrativa e de
comparações implícitas (STAKE, 2000). Nesses termos, o estudo caso desenhado para essa
pesquisa apoiou-se em três estratégias fundamentais: observação; análise de documentos; e
entrevistas.
93
3.2.2.1 Observação
Em um estudo de caso, a observão é de extrema importância. É por meio dela que o
pesquisador se faz presente e possibilita a abertura de um diálogo intersubjetivo, com objetivo
de construir uma interpretação da realidade que ora se apresenta. A vantagem desse processo
é a possibilidade de se constatar e vivenciar fatos, eventos e discursos que, na maioria das
vezes, apresentam-se nas chamadas “entrelinhas”. Permite também que o pesquisador sinta o
caso e o conheça física e socialmente.
Nesta dissertação, a observação foi conduzida por uma participação sistemática no
campo, de característica não-participante (GODOY, 2006). Ao contrário da observão
participante inspirada nos trabalhos do antropólogo Malinowski, na qual o pesquisador deixa
de ser espectador e passa a assumir funções no campo, misturando-se a ele, na observão
não-participante o pesquisador integra o campo, entretanto o faz de maneira mais distante,
como um atento espectador. Como coloca Godoy (2006, p. 133), na observão não-
participante,
baseado nos objetivos da pesquisa e num roteiro de observação, o pesquisador
procura ver e registrar o máximo de ocorrências que interessam ao seu trabalho.
Incluem-se as observações realizadas durante visitas de reconhecimento do local,
observações de reuniões, observações feitas por ocasião da realização de entrevistas e
outras situações para as quais o pesquisador tenha sido convidado.
A observação não-participante executada nessa dissertação ocorreu por meio de visitas
regulares, que tiveram por objetivo acompanhar um pouco do ato de trabalhar na seleção de
materiais recicláveis e/ou reutiliveis, observar o local de trabalho, participar de algumas
reuniões e assembléias, bem como executar as entrevistas com os cooperados. Os principais
instrumentos utilizados nessa observação foram o diário de campo e a documentação
midiática (pequenas filmagens e fotos).
94
De nome Diário de Campo Cooperlírios (APÊNDICE A), o diário de campo foi
elaborado como texto aberto para registro das impressões e atividades durante cada dia de
observação. Constitui-se em importante ferramental, pois, como um espaço aberto sem rigor
do método para o pesquisador anotar e inscrever suas impressões, idéias e observações, o
diário acabou por se tornar um grande memorial crítico. O Diário narra todos os fatos
considerados relevantes para o pesquisador, com a revelação de detalhes e curiosidades que
acabaram por expor as interessantes tensões que se formaram em torno de sua inserção
enquanto sujeito e objeto da realidade que pretensiosamente se pretendeu estudar. Ademais,
constitui-se em valioso bloco de notas, com registro de pontos importantes para a pesquisa, os
quais foram vastamente explorados em entrevistas e principalmente na análise.
A documentação midiática foi feita por meio de fotos (máquinas e celular) e pequenas
filmagens (celular) com a respectiva autorização dos cooperados. O principal objetivo foi o de
registrar o espo da cooperativa, os cooperados e um pouco do trabalho. Com essa ação,
pretendeu-se ilustrar com impacto visual aquilo que se descreveu e se analisou. Possibilita a
provocação de reflexão àqueles que não estiveram do campo, com intuito de aproximá-los da
realidade estudada.
3.2.2.2 Análise de documentos
A relevância da análise de documentos em um estudo de caso é dada pela tomada lato
sensu da documentação de qualquer organização como sua cultura material. Os documentos,
nesse sentido, são expressões materiais não apenas da origem e razão de ser da organização
(Estatuto), mas de toda a sua dinâmica registrada (Regimento Interno, Atas, estatísticas etc.).
Por meio da análise desses documentos é possível se levantar uma parte da história e do
desenvolvimento da organização, bem como observar sua dinâmica institucional.
95
Nesta dissertão, os seguintes documentos organizacionais foram analisados:
Estatuto; Regimento Interno; Atas; e Convênio Prefeitura-Cooperativa. A análise dos
respectivos documentos, anterior ao “trabalho de campo, permitiu, inclusive, verificar não
apenas as origens da organização e de sua estrutura organizacional, mas, também, as
dinâmicas de suas assembléias. Observou-se, por exemplo, a presença e freqüência dos
cooperados, os assuntos colocados em votação, as decisões entre outros.
3.2.2.3 Entrevistas
Na abordagem qualitativa, a entrevista é o meio mais reconhecido e legitimado de
investigação social. É por meio da entrevista que o pesquisador coleta os dados e as
informações de seu interesse, levanta as histórias, os fatos e eventos e, principalmente,
permite a manifestão do entrevistado sobre a problemática em estudo.
Para esta dissertação foi escolhida a aplicação de uma entrevista semi-estruturada
realizada a partir de um roteiro. De acordo com Godoy (2006, p. 134), “as entrevistas semi-
estruturadas são adequadas quando o pesquisador deseja apreender a compreensão do mundo
do entrevistado e as elaborações que ele usa para fundamentar suas opiniões e crenças”,
tornando-se relevante quando o assunto a ser pesquisado é complexo, pouco explorado ou
confidencial e 'delicado'”.
A entrevista semi-estruturada, em sua prática, pode ser entendida como uma conversa
guiada pelo pesquisador, na qual se procura obter e levantar os aspectos mais relevantes do
problema em investigação. Taylor e Bogdan (1987, p.101), por exemplo, conceituam a
entrevista como encontros face a face entre o investigador e os informantes, encontros estes
dirigidos para a compreensão das perspectivas que têm os informantes sobre suas vidas,
experiências ou situações, tal como as expressam com suas próprias palavras”.
96
O roteiro da entrevista, entendido como o guia de questionamento do pesquisador,
deve ser elaborado tendo em vista aquilo que se pretende suscitar, que seja considerado
relevante para análise do fenômeno. Por se tratar de uma conversa, este roteiro não deve ser
fechado ou muito menos gido, devendo possuir flexibilidade para se adaptar aos contextos
das entrevistas.
Nesse sentido, o roteiro de entrevistas construído para esta dissertão (APÊNDICE
B) possuiu o objetivo de estruturar uma conversa flda que estimulasse o indivíduo a
reconstruir um pouco de sua história pessoal, sua trajetória e vivência no trabalho e no
empreendimento solidário, bem como os possíveis reflexos dessa experiência em sua vida. No
limite, era explorar a vivência do cooperado na construção do empreendimento solidário em
questão, uma cooperativa de reciclagem.
O roteiro foi dividido em quatro blocos: A) Indivíduo, B) Cooperlírios; C) Gestão
(Princípios Cooperativistas e Autogestão); e D) Reflexos do empreendimento solidário na
vida. Esses blocos foram determinados e organizados com objetivo de gerar uma ordem de
perguntas que, do geral ao particular, apresentasse uma seqüência lógica, sem que o
entrevistado seja obrigado a fazer trocas bruscas de assunto (PHILLIPS, 1974).
No primeiro bloco, A) Indivíduo, o objetivo foi o de aproximar o entrevistado do
entrevistador. Buscou-se, por meio de uma abertura entendida como “quebra-gelos”, iniciar
um estímulo ao entrevistado para que este resgatasse sua história (narrativa), provocando um
ambiente que lhe permitisse se sentir confortável para conversar aberta e tranqüilamente. As
questões escolhidas como guia para esse bloco foram gerais: nome; idade; naturalidade;
escolaridade; família; local de moradia e como vai para o trabalho. Com isso, à medida que os
gelos eram quebrados”, foi se constituindo um perfil socioeconômico e demográfico do
cooperado importante para traçar qual o perfil dos cooperados da organização.
97
O segundo bloco, B) Cooperlírios, teve o objetivo de cruzar a história do cooperado
com a história da cooperativa; buscou-se levantar a história do cooperado no
empreendimento. Para isso, focou-se, primeiramente, na experiência anterior do indivíduo: os
locais em que já trabalhou e suas principais atividades já desenvolvidas no mercado ou fora
dele, com maior relevância para a última experiência de trabalho declarada. Procurou-se, com
isso, observar qual o tipo de trabalho e de organização que o indivíduo já experimentou. Na
seqüência, foi promovido pelo entrevistador o cruzamento das histórias
(cooperado/cooperativa) pela narrativa de como o indivíduo descobriu a cooperativa. A partir
desse momento, a cooperativa já se torna o contexto primordial de entrevista. Sendo este
bloco finalizado com o questionamento sobre o trabalho específico do cooperado, com
objetivo de entender qual a sua função nos trabalhos do empreendimento.
O terceiro bloco, C) Gestão (Princípios Cooperativistas e Autogestão), teve como
objetivo central analisar a dinâmica do trabalho na cooperativa, com intuito de se avaliar uma
proximidade da respectiva organização com o conceito de empreendimento solidário de
natureza cooperativista. Pretendeu-se, por meio das narrativas dos cooperados, estudar e
observar como as principais características e preceitos do cooperativismo (princípios e
autogestão) são vividos na prática. Para atingir satisfatoriamente esse objetivo, já que em
conversas preliminares de campo foi detectado que os cooperados o conheciam os sete
princípios fundadores e existenciais do cooperativismo, criaram-se, então, questões indiretas,
princípio por princípio, que, por meio das histórias e respostas dos cooperados, permitissem
inferir sobre a prática ou não do respectivo princípio e, principalmente, como ele ocorre na
dinâmica cotidiana da organização.
O último bloco, D) Reflexos do empreendimento solidário na vida, buscou levantar,
pela narrativa/diálogo da entrevista, traços que remetessem a possíveis reflexos da vivência da
gestão do empreendimento solidário, bem como observar as relações desta vivência com a
98
vida dos cooperados: o que melhorou e o que piorou em suas vidas e, até que ponto, o modelo
cooperativista influenciou e/ou determinou nisso.
Dada a natureza qualitativa da abordagem metodogica e a aplicação desse roteiro em
entrevistas, o mero de indivíduos a serem entrevistados não foi pautado por amostragem
estatística. Buscou-se entrevistar número considevel de cooperados, não levando em
consideração nenhum filtro específico. A título de homogeneidade, as entrevistas focaram os
cooperados mais ativos nos trabalhos e uma distribuição relativamente igualitária por tempo
de organização: cooperados recentes e cooperados mais antigos.
Foram feitas 12 entrevistas no total. A primeira delas foi de cunho exploratório e foi
feita com a presidente em exercício da cooperativa, antes mesmo da elaboração do roteiro. O
objetivo dessa entrevista foi o de levantar a história da cooperativa, bem como fazer algumas
indagações gerais sobre seu trabalho, o que permitiu avaliar o tipo e perfil de indivíduos que
seriam entrevistados, a adequação à linguagem e a alguns conceitos. Depois, com o roteiro
finalizado, foram entrevistados 10 cooperados, o que totalizou 50% do quadro institucional da
cooperativa (20 cooperados), mas que, dos cooperados realmente ativos, por volta de 15
indivíduos, estes 10 cooperados entrevistados consolidam 66,66% da cooperativa. A última
entrevista foi feita com um vereador do legislativo da Prefeitura Municipal de Americana-SP,
tendo em vista seu envolvimento direto no projeto do empreendimento, apresentando-se como
principal articulador entre a Prefeitura Municipal e a cooperativa.
Todas as entrevistas foram previamente agendadas e, com a permissão dos
entrevistados, gravadas. Todas as gravações foram transcritas (a título de ilustração, uma das
entrevistas transcritas é apresentada no APÊNDICE C), menos a primeira entrevista
exploratória com a presidente da cooperativa.
99
3.2.3 Análise dos dados
A análise dos dados pautou-se na metáfora do pesquisador qualitativo como bricoleur
(DENZIN e LINCOLN, 2000). O termo bricoleur, oriundo do francês (bricolage), possui seu
significado literal como aquele que pratica algum tipo de trabalho manual feito de improvisos
e aproveitando toda a espécie de materiais e objetos. Sua transposição para ciências humanas
como metáfora de análise foi dada primeiramente por Lévi-Strauss em seu clássico O
Pensamento Selvagem (1976), quando de sua argumentação acerca da gica do pensamento
mítico em distinção do pensamento científico. Para o antropólogo francês, o pensamento
mítico se apóia em signos, enquanto o pensamento científico se vale de conceitos. Desse
modo, as metáforas das lógicas nessa distinção podem ser dadas pelo bricoleur (mítico) e pelo
engenheiro (científico). Nesse raciocínio do antropólogo francês, bricoleur é aquele que se
utiliza de signos e incorpora um determinado traço de humanidade no real, no concreto,
enquanto o engenheiro opera por meio de conceitos, os quais buscam ser transparentes à
realidade. Conforme Lévi-Strauss (1976), a gica do bricoleur é constituída pela elaborão
de noções que não possui sua estruturação em estruturas de mesma natureza, mas nos
acontecimentos da realidade, os quais, sem um projeto determinado, são constituídos por
resíduos de noções anteriores uma “improvisação” sem uma unidade consolidada. a
lógica da construção de noções do engenheiro se pauta pelo trabalho ordenado e metódico, o
qual é dado pela mesma natureza de suas estruturas: os conceitos cientificamente
predeterminados - sistematizados.
O que se busca dessa metáfora, no caso da presente dissertação, não é a lógica de
constituição do pensamento mítico e científico definidos por vi-Strauss (1976), mas a
possibilidade de se considerar e aproximar a dinâmica do bricoleur (o modus operandi de seu
ato) para a análise de dados qualitativos. Pretendeu-se aproximar o processo de análise de
100
dados qualitativos desta dissertação pela dinâmica encontrada na definição do bricoleur como
aquele “que executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de
um plano preconcebido e se afastam dos processos e normas adotados pela técnica” (LÉVI-
STRAUSS, 1976, p. 32). Com isso, atribui-se ao processo de análise a possibilidade de ser
conduzido não por uma lógica científica estrita e predeterminada, mas de se caminhar
abertamente para construção de interpretação não-concebida. O que leva à construção de
interpretação não como resultado hermético e restrito, de forma técnica, mas fruto de livre
coleta de fragmentos acumulados nas experiências manifestas no campo, “causos” e histórias
compactuados em terreno intersubjetivo, que permitem tecer, à moda do pesquisador, uma
interpretação para o fenômeno em seu contexto.
Nesse sentido, apesar de não fazerem referência a vi-Strauss, Denzin e Lincoln
(2000) parecem ter incorporado essa dinâmica da metáfora do bricoleur, apresentando-a como
sugestiva. De acordo com os autores, tendo em vista que os pesquisadores qualitativos têm à
sua disposição uma variedade de estratégias e métodos de coleta e análise de dados passíveis
de serem empregados, seu trabalho pode ser visto como uma construção praticamente manual,
artesanal. Não se tem caminho predeterminado, gido e único, o que, indubitavelmente, abre
grande espo para a criatividade do pesquisador, entendido como bricoleur. A multiplicidade
de caminhos disponíveis e a serem desenvolvidos é tão grande, que Coffey e Atkinson (1996)
não vislumbram a possibilidade de haver somente um meio de abordagem dos materiais
levantados pelas pesquisas qualitativas. Tesch (1990) segue a mesma linha, constatando a
existência expressiva de, no mínimo, 26 estratégias de análise para dados qualitativos.
Todavia, a despeito dessa multiplicidade de caminhos, é possível traçar um plano
geral, um fio condutor, que perpassa transversalmente a dinâmica de uma análise qualitativa.
Tesch (1990), conforme aponta Godoy (2006, p.137), conseguiu desenvolver com êxito esse
fio condutor, apresentando “dez princípios e práticas orientadores da análise qualitativa e que
101
se acredita sejam úteis e pertinentes ao estudo de caso. Esses dez princípios formulados por
Tesch (1990), de acordo com Godoy (2006, p.137), ditam que:
1) A análise não é a última fase do processo de pesquisa; ela é concomitante com a
coleta de dados e é cíclica. A análise começa com o primeiro conjunto de dados e
torna-se, além de paralela à coleta, integrada aos pprios dados.
2) O processo de análise é sistemático e abrangente, mas não rígido. Caminha de
forma ordenada, requer disciplina, uma mente organizada e perseverança. A análise
só termina quando novos dados nada mais acrescentam. Neste ponto, diz-se que o
processo analíticoexauriu os dados.
3) A análise de dados inclui uma atividade reflexiva que resulta num conjunto de
notas que guia o processo, ajudando o pesquisador a move-se dos dados para o nível
conceitual.
4) Os dados são segmentados, isto é, divididos em unidades relevantes e com sentido
próprio mantendo, no entanto, a conexão com o todo. A análise se concentra em
conjuntos de partes dos dados, cada vez menores e mais homogêneas.
5) Os segmentos de dados são categorizados de acordo com o sistema de organização
que é predominantemente derivado dos próprios dados. O material pertencente a cada
categoria particular é agrupado, tanto conceitual como fisicamente, de forma indutiva.
6) A principal ferramenta intelectual é a comparação. O todo de comparar e
contrastar é usado praticamente em todas as tarefas intelectuais durante a análise para
formar as categorias, estabelecer suas fronteiras, atribuir segmentos de dados às
categorias, sumarizar o contdo de cada categoria e encontrar evidências negativas.
7) As categorias são tentativas e preliminares desde o início da análise e permanecem
flexíveis que, sendo derivadas dos próprios dados, devem acomodar dados
posteriores.
8) A manipulação de dados qualitativos durante a análise é uma tarefa eclética. Não
melhor meio de realizá-la, sendo a marca registrada da pesquisa qualitativa o
envolvimento criativo do pesquisador.
9) Os procedimentos não são mecanicistas. Não há regras estritas que possam ser
seguidas. Embora a pesquisa qualitativa deva ser conduzida artisticamente, ela requer
muito conhecimento metodológico e competência intelectual.
10) O resultado da análise qualitativa é algum tipo de síntese de nível mais elevado.
Apesar de muito de análise consistir emquebrar em pedaços” os dados, a tarefa final
é a emergência de um quadro mais amplo e consolidado.
Percebe-se que os dez princípios de Tesch (1990) corroboram, e muito, para a
metáfora do bricoleur. Como se desprende analiticamente desses princípios, a análise
qualitativa dos dados prospectados em um estudo de caso é praticamente tecida
artesanalmente pelo pesquisador. Não regras, ou mecanicismo predeterminados, apenas o
envolvimento criativo do pesquisador em se pautar por uma análise sistemática e abrangente
que, concomitante à prospecção, permite a ele interpretar e inferir aquilo que observa. Sendo
por meio de conexões e comparações que o pesquisador vai tecendo sua interpretação.
Para que isso fosse possível, essa bricolage, em sua dinâmica, foi tecida da seguinte
forma: os documentos e toda cultura material da cooperativa acessada foram observados em
102
seu contexto operacional e comparadas as suas letras a suas dinâmicas na práxis. Pela
observação não-participante, por meio das observações e dlogos do pesquisador em campo,
possibilitou-se construir uma interpretação das entrelinhas dadas em contextos, além da
observação de portas de entradas para insights de análise do fenômeno. Finalmente, as
entrevistas semi-estruturadas, com papel preponderante nessa construção interpretativa,
tiveram seus resultados tratados como narrativas construídas pelos cooperados. Optou-se,
então, para corroborar a atividade de bricolage à análise das entrevistas, tomar as narrativas
dos cooperados como crônicas (COFFEY e ATKINSON, 1996).
Conforme Coffey e Atkinson (1996), os seres humanos são atores sociais envolvidos
em narrar suas experiências e vidas como crônicas que carregam uma série de eventos,
influências e decisões, que articulam o passado com o presente. Organizam suas vidas e
experiências por meio de histórias que fazem sentido entre si, constituindo uma autobiografia
cronista que potencializa rica fonte de dados, tendo no modo como ela se estrutura a
perspectiva do individual em relação com o contexto social no qual o indivíduo está inserido.
Desse modo, a análise das narrativas construídas nas entrevistas executadas nessa dissertão
foi feita por meio da interpretação das histórias, vocabulário, retóricas, julgamentos de valor
sobre o passado e presente relativos ao contexto específico no qual esses indivíduos estão
inseridos: uma cooperativa de reciclagem.
3.2.4 Apresentação dos resultados e da análise
Tendo em vista a realização de um estudo de caso de características descritiva e
interpretativista e considerando as narrativas como crônicas (COFFEY e ATKINSON, 1996),
num processo de análise inspirado na metáfora do bricoleur (DENZIN e LINCOLN, 2000), o
relatório da apresentação dos resultados e da análise da presente dissertação foi estruturado
103
com fortes influências e inspiração nos trabalhos do antropólogo Geertz. Esta inspiração está
pautada na prática da descrição densa (GEERTZ, 1989).
A descrição densa, trabalhada por Geertz (1989), tem sua origem nos estudos
fenomenológicos de Dilthey, na lingüística de Ryle e resgata os estudos da semiótica e da
hermenêutica. Sua utilização é defendida pelo antropólogo norte-americano nos trabalhos de
campo etnográficos, caracterizando-o como atividade que não está em busca de grandes
generalizações e teorias universais, mas de uma interpretão possível para um fenômeno
determinado em seu contexto. Dessa maneira, a descrição densa entende o campo como um
texto, pelo qual, a partir de sua leitura, se pretende dar uma interpretação ao fenômeno
estudado, procurando suas conexões, motivações e seus significados. Descrição densa, nesse
sentido, nada mais é do que a construção dos fatos e eventos observados no campo, como se
fosse a escrita de um texto concebido pela leitura feita por um pesquisador de determinado
fenômeno em contexto. O pesquisador, como o crítico literário, descreve o fenômeno de
modo completo e literal, relatando imagens, situações e, principalmente, inscrevendo o
discurso do nativo, dos indivíduos autóctones do campo.
O relatório de apresentação dos resultados dessa dissertação apresenta-se como
narrativa em prosa para inscrever os discursos dos cooperados, democratizando o texto, e
tecer, por meio de insights, a construção de possível interpretão de como os cooperados
constroem e vivenciam a gestão de determinado empreendimento solidário de cunho
cooperativista, a Cooperlírios.
104
APRESENTÃO DOS RESULTADOS
105
4. Apresentação dos Resultados: um olhar descritivo
O objetivo do item Apresentação dos Resultados: um olhar descritivo é o de
reconstruir a história da Cooperlírios, de sua origem até como ela está organizacionalmente
estruturada atualmente. Pautado pelas narrativas levantadas nas entrevistas, na observão em
campo e na análise de documentos, este item aborda o processo de concepção da idéia de se
fundar uma cooperativa, passando pela sua concretização e finalizando em como a
organização está atualmente estruturada.
4.1 Da concepção à constituição da Cooperlírios
A concepção da idéia de se criar um empreendimento de coleta e processamento de
materiais recicláveis e/ou reutiliveis na região periférica da cidade de Americana, interior
de São Paulo, ocorreu em meio ao processo de interação entre os agentes públicos da
Prefeitura Municipal de Americana e a comunidade local. Seus primeiros esboços partiram da
Prefeitura no ano de 1996, quando do desenvolvimento do projeto de urbanização da favela da
Vila Martins. De responsabilidade da então Secretaria de Promoção Social e Habitação, esse
projeto tinha por objetivo urbanizar uma grande favela da periferia da cidade por meio de
mutirões de construção de casas populares. Como destaca o vereador Marco Antonio Alves
Jorge (PDT), popularmente conhecido como Kim, líder desse projeto,
(...) inicialmente, nós desenvolvemos ali naquela região um projeto da urbanização
de uma favela. Uma favela muito grande, que era chamada de favela da Vila Martins.
Lá chegou a ter mais de 1.000 famílias que residiam naquele local. E esse projeto de
urbanização passou por uma grande discussão com os moradores de lá, com os
proprietários da área, tudo com a intervenção e a coordenação da Prefeitura, que fez
esse papel de relacionamento entre a comunidade e os proprietários da terra, enfim,
pra poder transformar aquela favela em um bairro urbanizado do município. E aí,
quando iniciou o projeto de implantação realmente da proposta de moradia foram
vários mutirões.
106
Por se tratar de um projeto de urbanização pautado pela organização da comunidade
local em mutirões de construção, sua dinâmica de execução desenvolveu interação entre o
poder público e a comunidade. Tendo em vista que, a despeito de todo o processo negociador
com os proprietários das terras, bem como a organização dos mutirões terem sido liderados
pela Prefeitura Municipal, tudo foi conduzido emgrande discussão com os moradores de lá”,
como relatado pelo vereador Kim.
Essa liderança assumida pela Prefeitura na condução e no relacionamento com a
comunidade durante o projeto foi relevante, uma vez que permitiu aos agentes públicos
viverem a comunidade e observarem suas carências e demandas. Dentre as questões que
começaram a emergir desse processo, uma, em particular, destacou-se consideravelmente.
Como narra o vereador Kim,
(...) foram vários mutirões que nós realizamos. E o que foi identificado durante esse
processo? É que muitas famílias que ali residiam sobreviviam da reciclagem. Eram
catadores e as pessoas juntavam seu material reciclável no lado do barraco.
A identificão da existência de indivíduos que sobreviviam da coleta de materiais
recicláveis e reutiliveis no local foi dada, primeiramente, pela reclamação da comunidade
com relação à influência gerada pelo tipo e pela forma que esta atividade estava sendo
executada no bairro. Realizada precariamente, a coleta estava trazendo sérios problemas à
saúde e salubridade dos indivíduos em suas moradias e vizinhança.
A questão da salubridade evidenciou-se no cotidiano da comunidade, pois, por não
trabalharem em lugares específicos e apropriados, todos os catadores residentes saiam à
revelia pelas ruas da cidade, “catando todo o tipo de material reciclável e/ou reutilivel que
pudesse gerar algum tipo de renda pela sua venda. Ao final do dia, acabavam por utilizar suas
próprias casas época barracos frutos de construção precária por eles mesmos) como
armazém. Atividade que transformava o ambiente em local extremamente insalubre, tanto
107
para seus moradores, como para seus vizinhos. Como uma catadora relata sobre esse período,
chegou ao ponto em que
... num tinha mais assim como vo guardar em casa. Tava juntando barata, rato,
sabe? ia pra dentro de casa, comia com você na panela. Ria com vo o rato. É,
porque tudo isso eles faziam com o cê. Aí não botava veneno com medo de alguma
criança ir lá e co aquele resto de comida, matá também os cachorro...
A precariedade do trabalho de coleta, que em sua dinâmica trazia pequeno ganho para
o catador, bem como gerava externalidade negativa na salubridade do bairro, sensibilizou os
agentes públicos envolvidos no projeto de urbanização, colocando duas questões centrais que
deveriam ser equacionadas e pensadas de modo integrado: a primeira, relativa à urbanização
em curso, acerca da necessidade de se preservar a salubridade do bairro; e a segunda, a de
possibilitar aos catadores a continuão de sua atividade, dado que na grande maioria dos
casos essa era a única fonte de renda. Conforme o vereador Kim,
(...) começou vir a preocupação, “olha nós vamos mudar agora pra nossas casas...
nós vamos ficar juntando esse material reciclável no fundo do quintal? Houve essa
discussão com as famílias. Como é que nós vamos fazer? Agora nós vamos mudar
pras casas e vai amontoar esse monte de material recicvel dentro de casa? E vai
juntar rato, barata, escorpião... Enfim, começou a ter esse tipo de discussão entre os
participantes do projeto de moradia. E por outro lado tinha aqueles que se
preocupavam com a questão da salubridade do bairro, né? Que não poderia deixar
as residências serem transformadas em depósitos de material, mas também por outro
lado tinha a questão da sobrevivência daquelas pessoas que usam do material. É
reciclado, como uma forma de seu sustento, então, nós precisávamos equacionar essa
questão.
Como primeira ão, convocou-se, por iniciativa da Prefeitura, todos os catadores do
bairro para uma série de reuniões, com vistas a se discutir a possibilidade de equacionar essas
questões por meio da organização do trabalho de coleta. Uma assistente social da Prefeitura
percorreu todo o bairro, de porta em porta, cadastrando e convocando todos os catadores para
comparecerem a uma série de assembléias comunitárias presididas pelos agentes da
Prefeitura.
A principal idéia por detrás da realização dessas assembléias era a de colocar em pauta
a discussão da atividade de coleta de materiais recicláveis e reutilizáveis no local, com
108
objetivo de reconhecê-la e, principalmente, organizá-la em bases lidas, resolvendo com isso
a questão da insalubridade e potencializando a eficiência tanto econômica como social dessa
atividade.
As assembléias comunitárias sobre a temática da coleta de materiais recicláveis e
reutilizáveis desenvolveram-se durante aproximadamente dois anos, do final de 1996 ao final
de 1999. O histórico levantado dessas assembléias nas entrevistas realizadas nesta pesquisa
permite analisar todo esse processo de concepção da idéia de organização da atividade de
coleta de material em duas fases claramente definidas, sendo cada uma delas um devir de
maturidade: a) A questão da salubridade: a organização do galpão; e b) Necessidades
organizacionais: a cooperativa.
4.1.1 A questão da salubridade: a organização do galpão
Pela primeira vez, Prefeitura e catadores encontraram-se para debates acerca das
atividades dos últimos no bairro. A percepção manifestada era a de que tanto a Prefeitura
quanto os catadores não tinham ao certo o que pretendiam de início. Havia, apenas, a intenção
clara de “equacionamento da questão” pela Prefeitura e certo receio dos catadores com a real
política a ser implementada para eles a partir dali.
Nessas primeiras assembléias, a média de participantes foi de cerca de 50 indivíduos, a
maioria de catadores. O número, até que expressivo para atividades políticas e comunitárias
dessa natureza, deveu-se, em grande parte, ao trabalho da Prefeitura de convocação porta a
porta dos catadores. Um trabalho que permitiu ao poder público não apenas cadastrá-los, mas
também incentivar sua participação.
As primeiras assembléias foram caracterizadas pelo estreitamento do diálogo entre as
partes. A intenção principal da Prefeitura era a de trocar experiências e conhecer quem eram
109
esses catadores e qual a dinâmica de suas atividades, ou seja, informar-se para propor uma
saída vvel para sua organização.
Dadas as poucas iniciativas e experiências desse tipo de dlogo do setor público
brasileiro com sua comunidade mais próxima, somado, ainda, à inércia da baixa participação
política dos brasileiros nesse tipo de processo, as primeiras reuniões realizadas não obtiveram
a atenção e a consideração política inicial pelos catadores. Conforme relato de uma catadora,
essas primeiras reuniões foram boas para eles, pois tinha lanche e eles davam almoço”. A
fala sincera, em referência direta à relevância das assembléias ocorrer, primeiramente, ao
lanche e não ao objetivo político, apresenta dois pontos importantes de análise. O primeiro, da
corroboração de que a população que sobrevive da coleta de materiais recicláveis e
reutilizáveis está em situação social de risco, abaixo da linha da pobreza na maioria das vezes
(BNDES, 2006). A existência de um lanche gratuito fornecido pelo Estado, seja em qual
âmbito for (federal, estadual ou municipal), acabou por tornar-se atrativo para aqueles que não
possuíam condições de ter todas suas refeições no dia. o segundo ponto trata da questão do
estranhamento no início do diálogo entre a Prefeitura e os catadores. Tendo em vista que a
convocação dos catadores partiu da Prefeitura, os primeiros diálogos foram caracterizados
como distantes, pouco entrosados. Como em todo assembleísmo”, há um tempo para maturar
a interação e as discussões serem mais participativas e, principalmente, propositivas.
Após as primeiras assembléias, o estreitamento de laços entre a Prefeitura e os
catadores começou a se desenvolver. Foi posvel, por exemplo, discutir com maior
propriedade a dinâmica dos catadores no cotidiano da atividade de coleta de materiais
reciclável e reutilizável nos lixos das casas da cidade. O primeiro resultado prático desse
alinhamento ocorreu pela instrução elaborada pela Prefeitura para aperfeiçoamento dos
trabalhos dos catadores na rua. Instrutores da GAMA Guarda Armada Municipal de
Americana proferiram palestras, apresentando os cuidados que os catadores deveriam tomar
110
quando do exercício de seus trabalhos pela cidade questões de trânsito e segurança,
diplomando ao final do curso todos os participantes.
A primeira maturação desse processo de discussão comunitária do trabalho de coleta
de materiais recicláveis e reutilizados ocorreu quando se começou a discutir, pela primeira
vez, intervenção e projeto mais concreto. A Prefeitura começou a desenvolver e a esboçar
uma ão integrada para equacionar a problemática, a qual, por questões de renda, visava
manter as atividades dos catadores, ao mesmo tempo em que fosse possível retirar a
armazenagem dos materiais coletados de suas casas, tendo em vista a questão da salubridade
do bairro. Durante as discussões de concepção desse projeto, surgiram as seguintes
indagações e idéias, conforme relata o vereador Kim:
(...) na época nós estávamos lá, construindo um barracão que seria para abrigar uma
fábrica de tijolos que a gente já fez em outros bairros, que é uma fabriquinha
comunitária, pra que o pessoal pudesse fabricar o tijolo para ampliar sua moradia.
Enfim... Só que essa questão da reciclagem passou a despontar como uma prioridade
naquele momento, porque a sobrevivência, o trabalho e a renda são fundamentais.
Não dá pra você pensar em moradia se a pessoa não tiver condições de ter
rendimentos pra pagar sequer a prestão da sua casa ou a conta de água ou de luz,
enfim, o trabalho e renda são fundamentais pra questão social, né? Aliás, essas
pessoas só estão em condições precárias de moradia porque elas não tiveram a
oportunidade de ter um rendimento suficiente pra ter algo melhor, e então nós
começamos a aprofundar essa discussão e chegamos a uma saída, que seria uma
central de triagem, né? Agora, como ter essa central de triagem que todo mundo que
trabalhasse com aquilo poderia utilizar do espaço pra fazer o seu ganha pão, né?!
Sem ter a necessidade de ter que fazer isso dentro da sua casa, né?
De acordo com o relato do vereador, a primeira idéia que norteou uma ação concreta
foi a de utilização do espaço da olaria comunitária construída para fornecer tijolos aos
mutirões das casas populares como um galpão de reciclagem que abrigasse esses catadores.
Essa ão visava garantir a manutenção da atividade econômica no local, permitindo que ela
fosse executada de modo mais organizado. Os catadores exerceriam suas coletas normalmente
pela cidade e teriam, à disposição, um galpão para armazenagem e seleção de seus materiais.
Num primeiro momento, a utilização do espaço da olaria como galpão foi muito bem
aceita pelos catadores.
111
A gente catava na rua e guardava aqui [galo]. Cada um pesava seu material e
guardava. Então passava o caminhão e levava o seu material (Turim).
Com a instalação e a dinâmica de utilização do galpão, observou-se, inclusive, certa
migração de atividades. A existência de espaço público para exploração de atividades
privadas pelos indivíduos que exerciam a coleta de materiais recicláveis e reutilizáveis,
deslocou a grande maioria dos catadores locais para esse espaço, incentivando o surgimento
de “novos” catadores indivíduos desempregados que vislumbraram, nesse momento,
relativa oportunidade de trabalho para geração de renda. Como relatou Turim, “todo mundo
queria participar desse projeto que o Kim fez”.
Aos poucos, a dinâmica de uso do galpão gerou um ponto de conflito organizacional,
principalmente, com relação aos pagamentos.
Como ia a forma de pagamento? Porque tinha pessoas que queria o dinheiro todos
os dia. Veio aqui, catô na rua, que nem geralmente é agora, que as pessoas faiz. Cata
na rua e já pega, já vende, já recebe, já passa no mercado, já compra... (Turim).
Esse processo de conflito organizacional sobre como ocorreria a forma de pagamento da
venda dos materiais selecionados e armazenados pelos catadores no galpão implicou a
retomada de algumas assembléias. Pautados pelas experiências visitadas em outras cidades da
região, a Prefeitura optou como sugestão de superação desse problema, bem como para
organizar todas as atividades dos catadores, colocar em pauta a possibilidade de
transformação do galo em organização cooperativa.
4.1.2 Necessidades organizacionais: a cooperativa
A escolha do modelo cooperativista de organização do trabalho para ser implementado
com os catadores que operavam no galpão foi dada pela avalião positiva da Prefeitura como
sendo esse o modelo mais lido e sustentável para alcançar os objetivos institucionais e
gerenciais do trabalho de coleta e seleção de materiais recicláveis e reutilizáveis no local. A
112
cooperativa seria uma resposta organizacional adequada para dar uma forma mais eficaz e
sustentável ao projeto.
Começou, então, novo processo, pelo qual a Prefeitura, em diálogo com os catadores
que operavam no galo, buscou argumentar e construir a idéia de formação de uma
organização coletiva de trabalho nos moldes cooperativistas.
Foi discutido o cooperativismo, porque a cooperativa, ela é a figura jurídica que é
capaz de organizar de forma gica, onde tem o estatuto, onde existam regras, né?
Para uma gestão coletiva, de um trabalho em conjunto, ? A partir daí, então, é que
tivemos várias conversas, trouxemos experiências de cooperativas, pra tá
conversando com o pessoal. Trouxemos alguns órgãos técnicos que pudessem dar
uma capacitação sobre cooperativismo de maneira a esclarecendo a todo mundo
que estava envolvido nessa questão, como é que poderia funcionar uma cooperativa e
qual era o papel. E a partir daí então, houve todo esse processo (Vereador Kim).
Um dos pontos tidos como relevante para a implementação da cooperativa é que o
início de seu processo organizativo foi dado pela Prefeitura, que se apoiou nas próprias
características do modelo cooperativista, bem como na confiança gerada por todo
estreitamento de diálogo entre a comunidade e o poder público, adquirido durante o projeto de
urbanização e de organização dos catadores. Como relata o vereador Kim,
Nesse processo do cooperativismo, é muito importante ter o elo de ligação entre as
pessoas, né? E naquele momento nós sentimos essa responsabilidade, né! Por quê?
Porque as pessoas tinham, de uma certa forma, identificado na nossa pessoa
[Prefeitura], ou seja, da equipe que tava trabalhando com eles no mutirão da
moradia, alguém que na verdade tava ali preocupado em melhorar a vida de todos,
né? Não era, vamos dizer, alguém que apareceu do nada ou que não tinha alguma
relação ou algum compromisso com aquela comunidade. E a gente sentiu que quando
nós debatíamos esse assunto, as pessoas tinham aquela credibilidade, vamos dizer,
aquele olha eu vô presta atenção apesar de eu achar que isso é uma coisa
complicada... como é que vai fazer, como é que eu vou trabalhar junto com aquele
outro, que eu desconfio dele e ele desconfia de mim”? Enfim, essa relação de
confiança entre as pessoas é um ponto importantíssimo pra constituir um grupo, né?
E como, infelizmente, a nossa sociedade tem uma relação desgastada de confiança
mútua, né, então se torna difícil você constituir um grupo coeso. E a gente
[Prefeitura] procurou inverter esse papel de trabalho, dizendo que mesmo que eu não
confio em ninguém, mas se nós fizermos uma estrutura com regras claras, tudo feito
por escrito, né, vai dar uma proteção pra todos, né? O meu companheiro de trabalho
vai estar protegido contra uma eventual intenção da minha parte e vice e versa,
então todos nós deveremos respeitar as regras e dessa forma, nenhum deve ser
lesado por conta de uma atitude desviada de um outro colega ali daquela mesma
organização.
113
O discurso apresentado pela Prefeitura, na figura de seu líder, o vereador Kim, era o
da preocupão de não apenas convencer os catadores de que a cooperativa era uma saída útil
e viável, mas mostrar isso pelo devir de seu próprio processo de construção, com participão
ativa da comunidade. A principal preocupação na condução desse processo, conforme
apresentado pelo vereador, não era a de tomar para o poder público o papel de fundador e
comandante do processo organizativo e a gerência da cooperativa, mas apresentar a
cooperativa como benéfica para cidade e comunidade e, principalmente, prover os catadores
da noção de cooperados e assessorá-los em seus primeiros passos.
A gente sempre procurou estar presente, ! No sentido de sempre estar
acompanhando, orientando, né? Buscando inclusive, no poder público, um suporte
necessário pra que essa comunidade pudesse se organizar. Porque não dá pra
imaginar que de um grupo de catadores, que nós sabemos que tem uma renda muito
aquém daquela necessária, né? Que eles vão se tornar empresários do dia pra noite,
sem um suporte , né?
Desse modo, após algumas assembléias de exposição sobre o que seria uma
cooperativa e os ganhos que os catadores poderiam conquistar atuando nessa forma de
organização, chegou-se, finalmente, a votação favorável pela sua implantação. Em uma
assembléia lotada, nos idos de 1999, uma salva de palmas rompeu o silêncio da noite,
aclamando o nome escolhido para o mais novo empreendimento do bairro: Cooperlírios.
O nome Cooperlírios carrega em si dois termos: o Cooper e os Lírios. Os Lírios trata-
se de uma referência clara ao local de instalação do empreendimento, o loteamento popular
Jardim dos Lírios que deu nome ao bairro após a urbanização de sua favela (Vila Martins). Já
o prefixo Cooper é uma denominão ao tipo de empreendimento fundado, uma cooperativa.
4.2 A Cooperlírios em sua letra formal
Como resultado final das assembléias de discussão da situação dos catadores de
materiais recicláveis e reutilizáveis e de suas atividades ocorridas durante o processo de
114
urbanização da favela da Vila Martins, realizou-se, em dezembro de 1999, uma assembléia na
qual 14 homens e 10 mulheres reuniram-se enquanto sócio-fundadores para constituírem,
formalmente, daquele dia para o futuro, a Cooperrios.
Nos termos da legislação vigente, Decreto-lei n 5.674/71, a Cooperlírios foi fundada
pela razão social Cooperativa de Trabalho de Coleta, Processamento e Comercialização de
Materiais Reutilizáveis e Recicláveis como uma Sociedade Cooperativa de Trabalho, de
natureza civil, de responsabilidade limitada e sem fins lucrativos.
Com uma quota-parte de valor unitário de R$1,00, todos sócio-fundadores
subscreveram R$10,00 para o capital deste novo empreendimento, tendo por objetivo
principal congregar cooperados para a produção de serviços na área de coleta e reciclagem de
materiais reutiliveis e recicláveis.
Conforme o Estatuto aprovado no dia 5 de janeiro de 2000, a Cooperlírios
objetiva a defesa econômico-social de seus associados, por meio da ajuda mútua,
proporcionando-lhes condições para o exercício e aprimoramento de suas atividades
profissionais, além de proporcionar a seus associados os meios necessários à coleta,
triagem, armazenamento, processamento e comercialização de materiais reutilizáveis
e recicláveis, oferecendo alternativa organizada de trabalho e renda, contribuindo
sobremaneira com a preservação do meio ambiente.
Para consecução desses objetivos existenciais e sociais da organização, o parágrafo
primeiro do artigo 2° de seu Estatuto determina que, de acordo com os recursos disponíveis e
prévia programão, a cooperativa se propõe a:
a) contratar serviços para seus associados em condições convenientes;
b) propiciar apoio aos associados no que for necessário para melhor execução dos
serviços;
c) providenciar e organizar os serviços aproveitando a capacidade dos associados,
distribuindo-os sempre conforme suas aptidões e o interesse coletivo;
d) promover assistência social e educacional aos associados e respectivos familiares,
utilizando-se do FATES –Fundo de Assistência cnica, Educacional e Social;
e) realizar, em beneficio de seus associados, seguro de vida coletivo e de acidente de
trabalho;
f) proporcionar, via convênios com sindicatos, universidades, cooperativas, prefeituras e
outros órgãos, benefícios previstos em prol da entidade;
g) promover, ainda, a educação cooperativista, a expansão do cooperativismo e da
cooperativa e a modernização de suas técnicas;
h) alertar e sensibilizar as organizações governamentais e não-governamentais e a
sociedade em geral, quanto a necessidade de incentivar o trabalho, que tem como
115
princípios fundamentais, reduzir, reutilizar e reciclar com conscientização social e
ecológica;
i) organizar, contratar e manter todos os serviços administrativos, cnicos e sociais,
visando alcançar seus objetivos
4.2.1 Desenho organizacional: organograma
A estrutura organizacional concebida para Cooperlírios desenhou-se nos seguintes
órgãos sociais, conforme o Capítulo V de seu Estatuto: Assembléia Geral; Diretoria; e
Conselho Fiscal. Assembléia Geral “é o órgão supremo da sociedade e dentro dos limites
legais e estatutários tomará toda e qualquer decisão de interesse da cooperativa” (Artigo 21,
Estatuto). Sua periodicidade se tanto ordinária, para qual será denominada Assembléia
Geral Ordinária, quanto extraordinária, denominada nesse caso como Assembléia Geral
Extraordinária. A Assembléia Geral Ordinária é aquela que se reúne, obrigatoriamente, uma
vez por ano, sempre no decorrer dos três primeiros meses após o término do exercício social
(Artigo 26, Estatuto). Seus assuntos de deliberação, por Estatuto, seguem a seguinte ordem: a)
prestão de contas dos órgãos da Administração (Relatório de Gestão; Balanço Geral;
Demonstrativo de sobras apuradas ou das perdas; Plano de Atividades da Cooperativa para o
exercício seguinte; Parecer do Conselho Fiscal); b) destinação das sobras apuradas ou rateio
das perdas; e c) fixação do valor dos honorários, gratificações. a Assembléia Geral
Extraordinária poderá ser chamada a qualquer tempo, podendo deliberar sobre qualquer
assunto de interesse da sociedade. Dentre suas competências exclusivas, conforme o artigo 28
do Estatuto, encontram-se: reforma do estatuto; fusão, incorporação ou desmembramento;
mudança do objeto da sociedade; dissolução voluntária da sociedade e nomeação de
liquidante; e contas do liquidante.
A Diretoria da Cooperlírios, responsável pela administração da cooperativa, é formada
por um Diretor-Presidente, um Diretor-Administrativo e um Diretor-Secretário, os quais são
116
eleitos pela Assembléia Geral para um mandato de dois (2) anos. Dentre as funções
estatutárias designadas a ela, encontram-se as seguintes atribuições:
a) programar as operações e serviços, estabelecendo as qualidades e fixando
quantidades, valores, prazos, taxas e demais condições necessárias a sua efetivão;
b) elaborar o Regimento Interno da Cooperativa, estabelecendo, normas para o seu
funcionamento, regras de relacionamento social e sanções ou penalidades a serem
aplicadas nos casos de violações ou abusos cometidos contra disposições da Lei,
Estatuto e do próprio Regimento Interno;
c) deliberar sobre a admissão, eliminação ou exclusão de cooperados;
d) deliberar sobre a convocação da Assembléia Geral, fixar as despesas de
administrão em orçamento anual que indique a fonte de recursos para cobertura;
e) verificar mensalmente, no mínimo, o estado econômico-financeiro da cooperativa,
o desenvolvimento dos negócios e das atividades em geral, através de balancetes e
demonstrativos específicos;
f) avaliar e providenciar o montante dos recursos financeiros e dos meios necessários
ao atendimento das operações e serviços;
g) determinar a taxa destinada a cobrir despesas dos serviços da Cooperativa;
h) contratar profissionais fora do quadro social, sempre que se fizer necessário e fixar
valores de honorários e demais normas;
i) contratar, se necessário, os serviços de auditoria, conforme a Lei Cooperativista;
j) contratar, sempre que julgar conveniente, o assessoramento de cnico para auxiliá-
la no esclarecimento de assuntos a decidir, podendo determinar que seja apresentado,
previamente, projeto ou parecer sobre questões específicas;
l) indicar o banco ou bancos onde devem ser feitos os depósitos do numerário
disponível, bem como fixar o limite máximo do saldo que poderá ser mantido em
caixa;
m) adquirir, alienar ou onerar bens imóveis, com expressa autorização da Assembléia
Geral;
n) contrair obrigões, transigir, adquirir bens móveis, ceder direitos e constituir
mandatários;
o) participar de seminários, cursos, eventos, representando a sociedade, ou designar
alguém;
p) viajar para tratar de assuntos de interesse da Cooperativa ou designar alguém para
tanto (Artigo 33, Estatuto).
O Conselho Fiscal, formado por três membros efetivos e três suplentes, é eleito pela
Assembléia Geral para um mandato de um ano, com a possibilidade de reeleição de apenas
um terço de seus componentes. Sua reunião deverá ocorrer mensalmente, prevendo, inclusive,
sua chamada extraordinária a qualquer tempo (Artigo 40, Estatuto). Dentre as atribuições do
Conselho, encontram-se, de acordo com o artigo 42 do Estatuto,
a) conferir, mensalmente, o saldo do numerário existente em caixa, verificando,
também, se o mesmo está dentro do limite estabelecido pela Diretoria;
b) verificar se os extratos das contas bancárias conferem com a escrituração contábil;
c) examinar se os montantes das despesas e inversões realizadas estão de
conformidade com os planos, oamentos e decisões da Diretoria;
d) verificar se as operações realizadas e os serviços prestados correspondem em
volume, quantidade, qualidade e valor, previsões feitas e às conveniências
econômico-financeiras da cooperativa;
117
e) examinar se a Diretoria reúne-se de acordo com o determinado no Estatuto Social e
se existem cargos vagos;
f) averiguar se existem reclamações de cooperados quanto aos serviços prestados;
g) verificar se o recebimento dos créditos é feito com regularidade e se os
compromissos são atendidos com pontualidade;
h) averiguar se existem problemas com empregados e profissionais a serviço da
cooperativa;
i) apurar se existem exigências ou deveres a cumprir junto às autoridades fiscais,
trabalhistas e previdenciárias;
j) averiguar se os estoques de materiais, equipamentos e outros estão corretos, e se os
inventários periódicos ou anuais são feitos com observâncias das regras próprias;
l) estudar os balancetes e outros demonstrativos mensais, o balanço e o relatório anual
da Diretoria (ou Conselho Administrativo) emitindo parecer sobre estes à Assembléia
Geral;
m) informar a Diretoria sobre as conclusões dos seus trabalhos, denunciando as
irregularidades constatadas e convocando a Assembléia Geral se ocorrerem motivos
graves e urgentes.
4.2.2 Os cooperados
A Cooperlírios conta, atualmente, com vinte cooperados em seu quadro. Entretanto, a
Cooperativa mantém extenso e ativo cadastro, pelo qual novos indivíduos são recrutados para
grandes trabalhos de coletas, como a Festa do Peão de Americana ou outros eventos sociais.
Apesar de possuírem vinte cooperados, não são todos eles que são totalmente ativos.
Observou-se média ativa de quinze cooperados, sendo que, rotineiramente e à frente dos
trabalhos cotidianos da organização, constatou-se por volta de treze cooperados.
O perfil observado dos cooperados é de migrantes regionais e intra-regionais. A
grande maioria veio do Nordeste brasileiro, quando de sua adolescência, em busca de
oportunidades de trabalho em terras paulista ou, ainda, para se juntarem a familiares que
haviam migrado anteriormente. A outra parte é formada por indivíduos que migraram do
interior do Estado de São Paulo, de cidades próximas à região de fronteira com o Centro-
Oeste, com objetivo de acompanhar suas famílias. Apenas uma parte residual do quadro de
cooperados é natural da Região Metropolitana de Campinas, na qual se situa a cidade de
Americana.
118
Em dados demográficos, levantados no decorrer da pesquisa, pode-se constatar que a
média de idade dos cooperados é de aproximadamente 40 anos, entretanto, com considevel
desvio-padrão. Há cooperados ativos, com 50 e 55 anos, e outros cooperados de 19 anos,
ocorrendo predominância no mero de mulheres sobre homens. Com relação à escolaridade,
constatou-se que a maior escolaridade declarada é o ensino médio, sendo que a maioria,
quando declarado ter possuído freqüência escolar, completou somente o ensino fundamental.
Logo, o perfil dos cooperados da Cooperlírios constituí-se no brasileiro migrante de
baixa renda e baixa escolaridade que, em situação de risco, migrou para cidades do eixo
Ribeirão Preto São Paulo (Capital) em busca de oportunidades de trabalho, residindo na
periferia das cidades e sobrevivendo, em sua grande maioria, da informalidade e “bicos no
mercado de trabalho. Dos vinte cooperados da Cooperlírios, dez foram entrevistados para
essa pesquisa. Desses dez, oito mulheres e dois homens, todos moram no Bairro Jardim dos
Lírios, sendo que quatro participam e um já participou da administração da Cooperativa, em
cargos no Conselho Fiscal ou Diretoria.
4.2.3 Local de trabalho: o espaço
A Cooperativa está localizada no Bairro Jardim dos Lírios, um loteamento popular na
periferia da cidade de Americana. Não muito grande, o espaço da Cooperlírios pode ser
analisado por uma divisão em três áreas distintas: prédio; produção e armazenagem. A área do
prédio compreende a única construção do espaço. Nela, encontra-se uma pequena casa, a qual
se divide em dois banheiros, uma copa e duas salas diretoria e almoxarifado. A principal
função desse prédio é servir de base de apoio, tanto para a dinâmica dos trabalhos, com
banheiros e copa, como para a administração da cooperativa (arquivos, sala para reunião etc.).
O almoxarifado, além de armazenar utensílios da cooperativa, também serve para
119
armazenagem do material selecionado alumínio. De alto valor agregado, o alumínio
selecionado é reservado nessa área por questões de segurança. Pois quando deixado nas áreas
externas destinadas à armazenagem é constantemente furtado. Também fica no corredor desse
prédio o mural com os informativos da Cooperativa: remuneração; reuniões etc.
Sob um barracão de zinco, logo à frente do prédio, fica a principal área do Grupo
Horista, bem como uma área de descanso. Encontram-se, nesse espaço, a prensa e a balança,
equipamentos para os trabalhos do Grupo Horista. Como extensão do prédio, os cooperados
também alocaram uma geladeira com uma mesa destinada para o lanche dos cooperados,
formando uma área de descanso. Nessa aérea, em frente ao prédio e entre a balança e a
prensa, os cooperados reúnem-se para lanchar, descansar do sol forte, conversar e fazer suas
reuniões de deliberação, suas pequenas assembléias. É o principal ponto de encontro da
cooperativa, de reconhecida intensidade e dinâmica social entre eles.
A área de produção encontra-se bem no meio do espaço. Trata-se do coração da
Cooperlírios, ocupando a maior e mais ativa parte do espaço. É nessa área que todo o material
é descarregado para triagem e seleção.
A área de armazenagem possui dois pontos específicos, o primeiro, distribuído pelas
laterais do espo, destina-se à armazenagem dos bags produzidos pelos recicladores e outras
pequenas áreas para materiais que não se utilizam de bags, como isopor, ferro, plástico duro
etc. O segundo ponto de armazenagem, para despacho de venda, encontra-se na entrada da
Cooperativa. Nesse ponto, os fardos, já prensados, são armazenados e aguardam seu despacho
para o caminhão do comprador.
O espaço utilizado pela Cooperlírios possui a seguinte distribuição, conforme
esboçado na:
FIGURA 1 Mapa Cooperlírios
120
Fonte: Elaborado pelo autor.
Ferro
Armazenagem
Área da Produção
WC
Diretoria
WC Cozinha
Almoxarifado
Jornais
121
4.2.4 A gestão da Cooperlírios: divisão e processo do trabalho
A Cooperlírios mantém gestão de trabalho para a selão de material reciclável e
reutilizável organizada em dois grupos: Produção e Horista. O Grupo Produção é
caracterizado por incorporar todo o trabalho relativo à triagem e à seleção do material. Trata-
se, portanto, da atividade de triagem e selão manual de todo material que é coletado na
cidade e entregue à Cooperativa, os quais o selecionados conforme o Quadro 2. o Grupo
Horista é responsável por todo o trabalho executado em cima do material selecionado, ou
seja, a pesagem, a prensagem e o despacho para os compradores.
QUADRO 2 Grupos de materiais selecionados
GRUPO MATERIAIS
Água
Refrigerante
Óleo
Maionese
PET
Catchup
Cândida
Suco
PAD
Leite
Tetra
Longa Vida
Copinho
PS
Danone
Primeira (Capa)
Papelão
Segunda (Colorido)
Tampinha
Tampinha PET
Jornal
Jornal
Revista
Revista
Arquivo
Papel Branco
Mistão
Todo tipo de papel – outros
Caixa de Ovo
Caixa de Ovo
Caixa de Sabão em Pó
Caixa de Sabão em Pó
Plástico Duro
Plásticos duro em geral
Alumínio
Latinhas em geral
Vidro
Recipientes em geral
Plástico Sujo
Restos de plástico outros
Ferro
Ferraria em geral
Isopor
Isopor em geral
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de entrevistas
122
O fluxograma do trabalho na Cooperlírios desde a chegada do material coletado pelas
ruas da cidade até sua venda está dado, atualmente, da seguinte forma, conforme Figura 2:
FIGURA 2 FLUXOGRAMA
Grupo Produção
Grupo Horista
Conforme o fluxograma construído, todo o material reciclável e/ou reutilivel é pré-
selecionado e recolhido pelas ruas da cidade por caminhões da Unidade de Limpeza da
Prefeitura de Americana, que entregam, periodicamente, sua carga na Cooperlírios. Após a
chegada da carga, iniciam-se os trabalhos do Grupo Produção. A Produção se encarrega de
descarregar o caminhão da Prefeitura, e, de imediato, começa a fazer a triagem e a selecionar,
manualmente, os materiais em grupos específicos (Quadro 2, Foto 1, Foto 2).
coletado
Triagem e
Seleção
Armazenagem
selecionado em
BAGS
Pesagem Prensagem
Armazenagem Recolhimento/Venda
123
FOTO 1- Chegada de caminhão da Prefeitura com material.
Fonte: Diego Coelho, 2006.
FOTO 2 - Início imediato de triagem e seleção após chegada de material
Fonte: Diego Coelho, 2006.
Os trabalhos da Produção são totalmente artesanais e feitos no chão. Estes trabalhos
são realizados em duas etapas: a triagem e a seleção. Na triagem, o reciclador observa,
124
criteriosamente, a montanha de material e, abaixando-se, tria os materiais em grandes
categorias, colocado-as próximas aos seus pés (Foto 3).
FOTO 3 – Trabalho de triagem
Fonte: Diego Coelho, 2006.
Na segunda etapa, a seleção, é feita com os materiais pré-selecionados. O
reciclador, então, seleciona os materiais por grupos específicos (Quadro 2) dispondo-os em
caixas que, posteriormente, são colocados em bags (sacos individuais) (Foto 4, Foto 5).
125
FOTO 4 - Trabalho de seleção
Fonte: Diego Coelho, 2006.
FOTO 5 - Material selecionado em grupo para colocação em bags
Fonte: Diego Coelho, 2006.
Selecionados em bags, os materiais são armazenados pelos cantos da Cooperativa.
Cada reciclador tem seu “canto”, sua área determinada para armazenagem (Foto 6).
126
FOTO 6 - Material selecionado em bags armazenado
Fonte: Diego Coelho, 2006.
Esse material selecionado fica armazenado até algum reciclador do Grupo Horista
retirá-lo e encaminhá-lo para pesagem, quando se iniciam os trabalhos do Grupo Horista.
A primeira etapa de trabalho do Grupo Horista é a pesagem do material. Os bags são
pesados e seu peso, entendido como produção, é registrado em planilha no nome de seu
respectivo reciclador, que foi responsável pela sua seleção. Após a pesagem, o material é
encaminhado para a prensagem.
Na prensa, o material é compactado em fardos, que facilita seu manuseio e aumenta a
eficiência econômica do processo de venda (Foto 7).
127
FOTO 7 – Prensagem
Fonte: Diego Coelho, 2006.
Após a prensagem, os fardos são armazenados na entrada da Cooperativa, esperando
os caminhões dos compradores para realização de seu respectivo despacho (Foto 8).
FOTO 8 - Material pronto para despacho de venda
Fonte: Diego Coelho, 2006.
128
4.2.5 Trabalho e renda: remuneração
Em seu início, a remuneração mensal dos cooperados da Cooperlírios era constituída
por um modelo distributivo usualmente disseminado nesse tipo de modelo organizacional:
todos trabalhavam e todas as receitas líquidas das vendas do mês eram igualitariamente
divididas entre os cooperados. Esse modelo vigorou por quatro anos, desde a fundão da
cooperativa. Entretanto, ele passou por grande discussão e alteração, modificou não apenas o
sistema de cálculo da remuneração, mas inaugurou novo modelo de gestão de trabalho,
baseado em dois grupos: Horistas e Produção, conforme já apresentado no item A gestão da
Cooperlírios: divisão e processo do trabalho.
Nesse novo modelo, a remuneração passou a ter um sistema de lculo específico para
cada Grupo. Os cooperados do Grupo Horista são remunerados por horas trabalhadas no mês.
Os recursos financeiros que determinam o valor da hora/mês o dados pelas receitas líquidas
da venda dos seguintes materiais: ferro; papelão; alumínio; plástico duro; jornal; e isopor. Já
os cooperados do Grupo Produção são remunerados pela sua própria produção, em peso, da
seleção dos seguintes materiais: misto; papel arquivo; caixa de sabão em pó; PET; PAD; caixa
de ovo; PS; e Tetra. Com isso, a Cooperlírios instituiu um sistema de remunerão que se
fundamenta em uma divisão de trabalho (Horista e Produção), na qual cada cooperado terá
sua remuneração preponderantemente pautada por seu desempenho de trabalho.
129
ANÁLISE DOS RESULTADOS
130
5. Análise dos resultados: um olhar interpretativo
O desenvolvimento argumentativo da presente dissertação está pautado pela
construção de uma interpretação para a problemática de como os indivíduos constroem e
vivenciam a gestão de um empreendimento solidário. Busca-se analisar como ocorreu o
processo organizativo (SPINK, 1991; 1996) de determinado empreendimento solidário, ou
seja, interpretar como esse empreendimento se constituiu: sua história, desde sua origem até o
cotidiano atual, e, principalmente, como os cooperados constroem e vivenciam sua gestão. O
objetivo final desse estudo, ao examinar pontos e eventos relevantes de reflexão, será uma
contribuição para o campo da administração de empresas.
Vários são os caminhos possíveis para se desbravar a indagação estritamente aberta,
subjetiva e exploratória da probletica. O desenvolvimento de estratégias de coleta de dados
possibilitou relativa imersão no campo pela observação não-participante, realização de
entrevistas e análise de documentos. Alguns aspectos do fenômeno destacaram-se,
apresentando-se como insights para portas de entrada interessantes ao desenvolvimento de
debate com desdobramentos teóricos e práticos a partir do caso Cooperlírios. Desse modo,
optou-se por analisar o caso Cooperlírios a partir de três blocos determinados, a saber: Entre
a revolução e o pragmatismo: a formação e o status popular da Cooperlírios; Cooperlírios:
um empreendimento solidário? e Dimica organizacional e suas influências.
Nesse sentido, o item Alise dos Resultados: um olhar interpretativo constrói uma
interpretação por meio do desenvolvimento de três momentos observados no processo
organizativo da Cooperlírios: sua formação, sua construção e a vivência de sua dinâmica.
O item Entre a revolução e o pragmatismo: a formação e o status popular da
Cooperlírios analisa o processo de formão da Cooperlírios: a motivão de seu surgimento,
examinando quais princípios incentivaram o início de seu processo organizativo e seus
131
porquês. Em Cooperlírios: um empreendimento solidário? promove-se um debate entre teoria
e prática, pelo qual se analisa se a cooperativa desenvolvida e construída apresenta dimensões
que permitam que ela e sua gestão sejam entendidas como exemplo de cooperativa autêntica e
um empreendimento solidário. Finalmente, em Dinâmica organizacional e suas influências,
apresentam-se alguns eventos marcantes que se destacaram no decorrer da pesquisa, os quais
foram considerados relevantes para observar algumas influências que a Cooperlírios e seu
modo de gestão geraram em seus cooperados.
5.1 Entre a revolução e o pragmatismo: a formação e o status popular da
Cooperlírios
A história da concepção até o início do processo organizativo da Cooperlírios, narrada
e construída nessa pesquisa, apresenta pontos interessantes de análise, abarcando não apenas o
caso em si, mas resgatando o debate teórico da Economia Solidária e seus empreendimentos.
Um debate que re-inaugura a questão entre revolucionários versus reformistas, focando na
alise do princípio motivador da constituição desse tipo de empreendimento: seria um
princípio revolucionário, a iniciativa de contestar a exploração do sistema capitalista por meio
da organização da sociedade civil em bases socialistas de produção? Ou um princípio
pragtico, de se constituir uma alternativa reformista viável para se resolver a questão do
emprego?
Como analisado nos itens Por uma arqueologia da Economia Solidária e
Cooperativismo: filosofia e práxis, as indagações acima possuem suas justificativas no
próprio histórico do surgimento do cooperativismo, o qual foi marcado em seu início pela
existência de forte discurso revolucionário por detrás das ações de formação das primeiras
organizações cooperativas. Tanto nas primeiras empreitadas do cooperativismo na Europa do
132
culo XVIII, como atualmente ainda propugnam alguns dos órgãos e sindicatos de
trabalhadores ligados ao cooperativismo e à Economia Solidária, a principal motivação que
incentiva a iniciativa de formação de empreendimentos solidários está na contestação do
capital (MARX, 1985) e do sistema capitalista. A própria análise de Singer (1999) corrobora
tal princípio, quando o economista escreve que a formação desses empreendimentos são
pilares, quiçá possibilidade, de uma contra-revolução socialista em curso.
Entretanto, ao que tudo indica e aqui se defende, atualmente essa linha revolucionária
do princípio organizativo parece perder seu caráter motivador, tornando-se, apenas, pano de
fundo retórico com a vaga pretensão de fundamentar saudosas ões políticas localizadas à
esquerda no espectro político-partidário.
Conforme desenvolvido no item Cooperativismo e Cooperativismo Popular:
releituras para um novo cooperativismo, nos dias atuais, o debate entre os revolucionários
versus reformistas parece pender mais para a inspiração reformista quanto às motivações das
iniciativas cooperativistas e de empreendimentos solidários. Observa-se que estas iniciativas,
de modo geral, não estão pautadas na contestação do sistema, mas, principalmente, numa
alternativa prática para a crise da sociedade salarial. Com analisou Vieitez (1997), a
motivação de formação das empresas de autogestão no Brasil não tem sido doutrinária, no
sentido revolucionário, mas, predominantemente, pragmática. Não se busca, em essência, a
contestação do capital e de seu sistema, mas, exclusivamente, de se constituir oportunidades
de emprego formal.
Nesse ponto, é importante ressaltar que o reformismo alinhado ao princípio
pragtico o nega a doutrina filosófica e bases organizacionais do cooperativismo, todavia,
não observa, nesse modelo, uma ação de ruptura do capital, mas apenas sua reforma, como
alternativa vvel e eficaz para inserção positiva de indivíduos no mercado de trabalho.
133
Esses são pontos de debate que surgem na constituição da Cooperlírios. Como
apresentado no item Da concepção à constituição da Cooperlírios, a sua formão como uma
cooperativa surgiu de um processo de interação entre a Prefeitura Municipal de Americana e a
comunidade do Jardim dos Lírios por uma ão de intervenção que objetivou organizar os
indivíduos da comunidade que viviam da coleta e venda de materiais recicláveis e/ou
reutilizáveis. A motivação para essa intervenção estava dada em dois pontos principais:
primeiro, o de organizar essa atividade no local, tendo em vista que sua prática precária estava
trazendo prejuízos à salubridade do bairro; e segundo ponto, o de garantir a manutenção
econômica dessa atividade, dado que ela era, na maioria dos casos, a única fonte de renda dos
indivíduos e das famílias praticantes da coleta.
A primeira ação encetada foi o galpão de reciclagem. Nesse sentido, apresentou-se
como totalmente alinhado com o primeiro objetivo da Prefeitura: organizou as atividades de
coleta, retirando a armazenagem das casas dos indivíduos. Entretanto, o segundo objetivo, a
manutenção econômica das atividades dos catadores, não estava garantido, uma vez que o
galpão o possuía estrutura organizacional adequada. Buscou-se, então, uma alternativa que
pudesse, satisfatoriamente, atingir os objetivos de modo sustentado.
A opção para consecução desses objetivos foi a formação de uma cooperativa. A
justificativa da escolha da organização em uma cooperativa, conforme relatado no item
Necessidades organizacionais: a cooperativa pelo vereador Kim, líder do projeto, era que
esse tipo de organização não apenas garantiria, de modo formal, o principal objetivo de
manutenção dessa atividade econômica, mas também, porque seu marco institucional, pautado
pela igualdade e solidariedade, poderia levar à organização, e seus indivíduos, de forma
sustentada, à prosperidade.
Depreende-se, então, que a motivação norteadora da formação da Cooperlírios não
ocorreu pelo princípio revolucionário de contestação do sistema. Não se buscou, quando da
134
proposta da formação da cooperativa, a criação de um modelo de resistência ao capital, de
características e bandeiras socialistas. Como frisou o vereador, o objetivo final era a ão
pragtica de garantia formal de emprego, capaz de gerar renda e vida digna para as famílias
locais praticantes das atividades de coleta de materiais recicláveis e/ou reutilizáveis.
Contudo, o histórico da formação da Cooperlírios indica que o aspecto pragmático não
encerra, apenas no pragmatismo, sua principal motivação. A despeito de estar focada na
questão do emprego, a Prefeitura vislumbrou, no cooperativismo, uma alternativa sustentada
de prosperidade para os catadores. Não se focou o aspecto revolucionário de crítica ao
sistema, mas levou-se em consideração sua doutrina, seus princípios e seu arranjo
organizacional.
Ao optar pelo cooperativismo, a Prefeitura constituiu um empreendimento que não
apenas garantisse o emprego com segurança institucional, mas, principalmente, que incitasse
a formação de liame social, o qual pudesse gerar contexto organizacional e social
catalisadores da prosperidade do empreendimento e de seus indivíduos. Remonta-se, no
limite, certa inspiração owenista.
E como infelizmente a nossa sociedade tem uma relação desgastada de confiança
mútua, ? Então se torna difícil você constituir um grupo coeso. E a gente procurou
inverter esse papel, trabalhando pra dizer que mesmo que eu não confio em ninguém,
mas se nós fizermos uma estrutura com regras claras, tudo feito por escrito, né, vai
dar uma proteção pra todos, né? O meu companheiro de trabalho vai estar protegido
contra uma eventual intenção da minha parte e vice e versa, então todos nós
deveremos respeitar as regras e dessa forma nenhum deverá ser lesado por conta de
uma atitude desviada de um outro colega ali daquela mesma organização (Vereador
Kim).
(...) durante esse processo todo, trabalhar para junto aos diferentes órgãos do poder
público, de que era importante, era necessário investir na organização dessa
empresa comunitária. E mais do que isso, porque empresa comunitária? Porque
também ela tem o ganho social, né? Seria muito simples falar assim: vamos então
contratar uma empresa privada pra cuidar da reciclagem, né? Poderia ser um outro
caminho. Agora nós defendemos que essa fatia do mercado, vamos assim dizer, o
deixa de ser um direito daquele que começou fazendo isso, puxando carrinho,
revirando a lata do lixo, enfim, se dedicando a questão de selecionar esse material
reciclado por uma necessidade que ele tinha de trabalho e renda. Então essa pessoa,
se nós formos é a mesmo retirar dele esse resíduo da sociedade, então é condená-lo
à exclusão total! Eu acho que nós temos que fazer um papel de inclusão. Então houve
todo esse trabalho de procurar resgatar é daquelas pessoas aquele grupo que
pudesse continuar trabalhando, e mais do que isso, que pudesse progredir, né, no seu
negócio e ter uma boa organização e uma boa condição de vida (Vereador Kim).
135
Nesse sentido, pode-se dizer que as motivações da formão da Cooperlírios, por
parte de seu proponente, a Prefeitura Municipal de Americana, foi dada por inspiração
reformista, em relação direta e fronteiriça entre o pragmatismo e as bases doutrinárias e
organizacionais do movimento cooperativista.
Essa motivação e ão da Prefeitura acabam por ter forte eco no próprio discurso de
um novo cooperativismo (NASCIMENTO, 2004), entendido como aquele que rompe com a
deturpação das coopergatos, objetivando ações que visam constituir empreendimentos de
utilidade pública voltados, principalmente, para o estabelecimento de liame social, com vistas
à inclusão promotora do desenvolvimento socioeconômico (FRANÇA FILHO, 2002). Uma
nova direção do cooperativismo, que, como já desenvolvido conceitualmente no item
Cooperativismo e o Cooperativismo popular: releituras para um novo cooperativismo,
adquiriu o status de popular. Nesse sentido, o cooperativismo popular, como expressão da
Economia Solidária, busca resgatar os pressupostos do movimento cooperativista clássico
com objetivo de promover desenvolvimento local para a inclusão de camada de baixa renda
em situação de risco.
A Cooperlírios alinha-se a esses pressupostos. Por sua concepção não estar totalmente
encerrada num pragmatismo que exclui o caráter doutrinário do movimento, mas que leva em
consideração seus pressupostos e gicas organizacionais, ela pode ser tipificada como uma
ação e expoente alinhados com o novo cooperativismo propugnado pela Economia Solidária
brasileira (NASCIMENTO, 2004). Demonstra-se como um processo que, a priori, aparenta
adaptar, com sucesso, uma necessidade pragmática por renda e trabalho por meio da
constituição de liame social de uma comunidade local via empreendimento solidário.
136
5.2 Cooperlírios: um empreendimento solidário?
A despeito das motivações e discursos que iniciaram o processo organizativo da
Cooperlírios estarem alinhados com os ideais do cooperativismo, da Economia Solidária e
dos empreendimentos solidários como alternativa viável e sustentada para a questão dos
catadores do Jardim dos Lírios, faz-se necessário analisar os resultados dessa ação. Analisar
como o grupo constituído para essa empreitada (Prefeitura e catadores) construiu esse
empreendimento e produziu seu fim (resultado). Indaga-se se a Cooperlírios, em seu desenho
institucional e sua dinâmica de gestão, constitui-se, realmente, em um empreendimento
solidário.
Como tratado no Referencial Teórico que subsidia a reflexão desta dissertação, os
empreendimentos solidários são expressões da Economia Solidária, sendo a forma
cooperativa seu principal expoente de organização. Conforme Gaiger (1996), os
empreendimentos solidários apresentam as seguintes características ideais: autogestão;
democracia; participação; igualitarismo; cooperação; auto-sustentão; desenvolvimento
humano e responsabilidade social. Percebe-se que estas características, de natureza
abrangente, teórica e filosófica, são totalmente contempladas pela definição ideal de
cooperativas, a qual, conforme desenvolvido no item Cooperativa: filosofia e práxis, se
tratam de organizações abertas, geridas de forma democrática, autônoma e independente, para
centralizar a remuneração no trabalho, neutra de interesses políticos, religiosos e/ou de raça,
cujo objetivo é promover o desenvolvimento de seus sócios e comunidade local.
Com o objetivo de avaliar se a Cooperlírios pode ser entendida como uma cooperativa
de características que a tipifique como empreendimento solidário, avaliar-se-á a contraposição
entre teoria versus prática, na avaliação dos tipos ideais empreendidos no Referencial Teórico
versus o observado em campo. A idéia não é a de simplesmente qualificar a Cooperlírios
137
como uma cooperativa e/ou um empreendimento solidário, tal qual a um simples check list.
Busca-se analisar como uma organização que se propugna como uma cooperativa manifesta
em sua particularidade os preceitos ideais dessa organização ou não, observando se sua
dinâmica corrobora a narrativa que justifica as motivações de seu surgimento e a aproxima de
um empreendimento solidário.
A análise desenvolvida está pautada em três conjuntos de informações coletadas
durante o trabalho de campo: a análise de documentos (Estatuto e Regimento Interno); as
anotações decorrentes da observação não-participante; e, principalmente, as entrevistas
realizadas, particularmente ao que diz respeito à parte C de seu roteiro Gestão (Princípios
Cooperativistas e Autogestão).
Uma das maneiras de estudar uma organização cooperativa para analisar se ela se
enquadra ou não nos ideais de seu movimento e, principalmente, nos pressupostos
organizacionais que a caracterizam, por meio da observação e constatação de como ou “se”
os sete princípios rochdaleanoso vivenciados em sua gestão e prática organizacional.
Os sete princípios rochdaleanos institucionalizados e adaptados à modernidade pela
ACI Aliança Cooperativa Internacional, em 1995, conforme já apresentado e desenvolvido
no item O cooperativismo: princípios doutrinários e estruturantes, o o core da forma e da
essência da doutrina como do modelo organizacional de cooperativa. De acordo com esses
preceitos, não basta a uma organização se determinar como cooperativa, é necessário ter
conduta condizente com a filosofia e práxis de seu movimento, sendo uma organização que
rompa com mera dimensão econômica, atingindo a dimensão social e política (PINHO, 1982,
2000; TESCH, 1985). Por se tratar de princípios norteadores, é esperado que estes se
encontrem na síntese das atividades e dinâmicas de uma cooperativa autêntica (SINGER,
2003).
138
Como descrito no item A Cooperlírios em sua letra formal, o Estatuto da Cooperlírios
a define como uma cooperativa de trabalho, sem fins lucrativos, que
objetiva a defesa econômico-social de seus associados, por meio da ajuda mútua,
proporcionando-lhes condições para o exercício e aprimoramento de suas atividades
profissionais, além de proporcionar a seus associados os meios necessários à coleta,
triagem, armazenamento, processamento e comercialização de materiais reutilizáveis
e recicláveis, oferecendo uma alternativa organizada de trabalho e renda, contribuindo
sobremaneira com a preservação do meio ambiente (grifos do autor).
Analisa-se que os pontos grifados da definição existencial da Cooperlírios destacam
em sua letra um resgate dos princípios do cooperativismo. Trata-se de uma organização
formada para defender seus cooperados por meio de ajuda mútua, dando-lhes, com isso,
condições de exercer suas atividades profissionais, além de contribuir para seu meio social,
por meio da preservação do meio ambiente. Mais claro ainda com relação aos princípios do
movimento cooperativista tornam-se os objetivos estatutários da Cooperlírios, os quais,
conforme também apresentados em A Cooperlírios em sua letra formal, listam verbos de
ação da alínea a à i, pelos quais se observa a essência dos preceitos de Rochdale. Em sua
síntese, os objetivos da Cooperlírios determinam: 1) colocar a organização à disposição para
auxiliar os cooperados em seu trabalho; 2) focar-se nos cooperados, sendo guiada por
interesses coletivos; 3) promover e disseminar a educação cooperativista; e 4) buscar diálogo
com o meio social seja comunidade, governo ou universidade.
Por esses pontos, enquanto forma lavrada nos autos, a Cooperlírios apresenta-se, de
fato, como cooperativa legítima. Todavia, tendo em vista que, tanto o Estatuto como
Regimento Interno de qualquer organização são letras formais, não necessariamente
praticadas, tornando-se letra morta, e, com maior relevância, mesmo como letra estatutária
praticada ela o é na maneira particular do grupo. A análise da Cooperlírios como cooperativa
não se encerra em seu Estatuto, focando-se com maior preponderância nas entrevistas.
O roteiro de entrevista aplicado a dez cooperados, principalmente em sua parte C,
Gestão (Princípios Cooperativistas e Autogestão), apresentou resultados interessantes quanto
139
à adequação da Cooperlírios como uma cooperativa de preceito e fato, ou seja, uma
cooperativa autêntica (SINGER, 2003). O primeiro ponto de destaque com relão a esse item
é o de que praticamente todas as narrativas foram coerentes entre si, ou seja, a visão dos
cooperados sobre determinados processos e eventos da organização são congruentes, o que
corrobora um universo comum e compartilhado de práticas administrativas. O segundo ponto
é com relação ao conteúdo dessa visão que, em sua prática, vai ao encontro, na maioria dos
casos, dos princípios rochdaleanos.
Os sete princípios rochdaleanos institucionalizados pela ACI Aliança Cooperativa
Internacional (1995) são: Adesão Livre e Voluntária; Controle Democrático pelos Sócios;
Participão Econômica dos Sócios; Autonomia e Independência; Educação, Treinamento e
Informão; Cooperação entre Cooperativas; e Preocupão com a Comunidade. A pesquisa
realizada evidenciou que a Cooperlírios, em sua dinâmica de trabalho e de atuação, bem
como nas narrativas de seus cooperados, apresenta-se como uma organização alinhada com os
princípios da doutrina e do movimento cooperativistas. Princípio a princípio, o cotidiano da
Cooperativa parece manifestar na prática a síntese e a essência dos preceitos cooperativistas.
Com relação ao primeiro princípio, da Adesão Livre e Voluntária, a Cooperlírios
possui relativa adesão livre e voluntária ao seu quadro. A adjetivação “relativa” adquire
significado e importância, pois toda a adesão será livre e voluntária à Cooperativa, desde que
haja espaço para isso, ou seja, respeitam-se as condições de mercado e trabalho e o
interessado deve apresentar comprometimento às atividades a serem exercidas. Excluso essas
condições, não existe nenhum entrave adicional à entrada de novos cooperados.
Os cooperados foram unânimes ao descrever seus processos de ingresso no quadro da
Cooperativa. O processo foi considerado simples e consiste em levantamento de informações
para formação do cadastro do cooperado, com registro geral de endereço, CPF, RG, mero
de conta bancária, entre outros. Para dar sentido democrático a esse ingresso, os novos
140
cooperados, que não participaram de todo o processo de constituição da cooperativa, passam
por teste de trabalho de alguns dias (para avaliarem se gostam ou querem realmente trabalhar
nessa atividade) e por avaliação em assembléia, debatendo sobre o ingresso do novo
cooperado.
O segundo princípio, Controle Democrático pelos Sócios, remete ao forte caráter
democrático da gestão de organização cooperativa, em referência clara ao modelo
autogestionário. Ele pressupõe que a cooperativa seja conduzida ativamente pelos seus
cooperados. Acerca de seu sistema de gestão e administração, a Cooperlírios mostrou-se uma
cooperativa pautada pelo princípio democrático. Todas as decisões da Cooperativa são
tomadas por meio de consulta a todos os cooperados. Essas consultas são feitas em
assembléias, nas quais todos os cooperados têm direito a voz e voto. Apesar de não possuírem
assembléias formais com grande periodicidade, além daquela determinada em Estatuto, os
cooperados da Cooperlírios fazem muitas reuniões e assembléias informais, durante ou após o
expediente, nas quais sempre procuram dialogar sobre a condução da cooperativa.
[Assembléia] Funciona! Porque muita coisa que é discutida aqui às vezes a pessoa
fala: ah, eu não acredito e não vou fazer (...) E nessas reuniões é obrigatório fazer,
? Não tô aqui pra mandá, entendeu? Mas pra fazer (...) (Turim).
Eu acho que assembléias (...) eu acho que é uma coisa comum porque toda uma
entidade, uma empresa sempre tem uma assembléia pra ser discutida, eu acho que
precisa acontecer.
Eu acho que funciona [Assembléia].
Quando eu comecei aqui, eu tinha dúvida de trabalhar sem patrão, né? Porque eu
não achava que não era aquilo. Aqui a gente tem um auxiliar encarregado, mais ele é
assim, é auxiliar. Faz um trabalho assim (...) Às vezes as coisa passa na mão dele,
? Mais naquele tempo que eu comecei, eu achei que ele era o patrão. Mais depois
me disseram que ele não era patrão. Me explicaram que era uma cooperativa, não
tem patrão. A gente organiza juntos, às vezes discute a maioria das coisas junto e
tinha aquelas pessoa, a diretoria, que toma frente, resolve umas coisa. Mais o tem
patrão.
Acho bom, porque faz a gente fa parte de decisão de muitas coisas. (...) Eu gosto de
tomar decisão (Du).
A Participação Econômica dos Sócios é respeitada na Cooperlírios. Pelo observado,
todos os cooperados, de maneira geral, conhecem o destino de suas contribuições. Tanto a
141
formão de um fundo de reserva, como do fundo social são de conhecimento geral, não
tendo maiores dúvidas quanto a sua destinação de aplicação e investimento.
Nóis tem assim o desconti, né? Vai descontando 10%, 5% é do fundo social, isso ai
sempre tem que ter (Fátima).
(...) descontam 15% do nosso salário. Aí, é 5 pra um fundo social e 10 pro fundo
daqui da cooperativa, pra quando assim quebra uma peça da prensa ou qualquer
coisa que acontece aqui aí, da dispesa. Só que agora é assim, diz que se não tive
dispesa nenhuma, quando chega o fim do ano que fizê o balanço a gente torna a
receber de volta, se não tivé dispesa, tivé tudo em ordem. Agora o 5 a gente não
recebe mais, só os 10% (Fátima Alves).
Sobre a Autonomia e Independência, a Cooperlírios mostrou-se uma cooperativa
com certa autonomia e independência em suas tomada de decies. Todavia, é de grande
importância ressaltar que existe grande participação da Prefeitura Municipal de Americana em
sua gestão, desde sua formação. A Prefeitura participa da Cooperlírios como uma parceira.
De acordo com o Regimento Interno da Cooperativa, ela tem sua participação instituída por
meio da chamada Comissão de Ética e Organização. De acordo com o artigo do Regimento
Interno da Cooperlírios,
A Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de Americana
nomeará membros de uma Comissão de Ética e Organização, à qual competirá:
I Assessorar os trabalhos a serem desenvolvidos na cooperativa;
II Indicar um coordenador para gerenciar os trabalhos dos cooperados,
assegurando o bom andamento dos serviços.
A principal função da Prefeitura no âmbito político, como observado em campo, é o
de voz a Prefeitura argumenta, porém não tem direito a voto, ficando as decisões finais nas
mãos dos cooperados. No âmbito técnico, a Prefeitura participa como colaboradora,
assessorando na prestação de contas, formatação de planilhas, entre outros. Nesse ponto,
conforme inciso II do artigo 6° do Regimento Interno, a Prefeitura tem um papel institucional
de gerência técnica dos trabalhos. Ademais, como forte parceira da Cooperlírios, a Prefeitura
também disponibiliza suporte financeiro para viagens e cursos de interesse da Cooperativa e
do cooperativismo.
142
Em Educação, Treinamento e Informação, a Cooperlírios possui considevel
atuação. Em rodízio, todos os cooperados participam de cursos sobre cooperativismo e gestão.
Nesses cursos, aprendem sobre o movimento cooperativista e a gerência de empreendimentos.
Os cooperados que participam dos cursos, quando retornam, são encarregados de disseminar
aos demais as informações.
Eu gostei do curso, porque quando eu entrei aqui eu não sabia nada, nada, nada de
cooperativa. Não sabia nem o que era. Só sabia que (...) só do nome que chama
cooperativa. Outra coisa eu não sabia (Fátima Alves).
Bom, naquele curso é difícil eu falá pra você a experiência porque a gente não
conhecia muita coisa, né? A gente só foi respondê as pergunta. O modo de separar
é uma coisa que valeu, eles explicaram muitas coisa sobre o aterro. Então no tempo a
gente acho que valeu demais. Porque a gente aprendeu algumas coisinhas e algumas
coisas a gente não é capaz de lembrar, né? (Du).
É, porque não fui eu [em cursos], né? Eu dei minha opinião, o outro deu a outra
opinião, então daqui praticamente foram (...) A primeira participação [em curso] fui
eu. A outra (...) cada semana ia duas pessoas. Então fui eu, foi a Turim nas outras,
depois outras. O que eu ouvi lá eu passei pro pessoal, então o que o outro ouviu já
passou também (Baiano).
Esses cursos normalmente são dados no âmbito da Cooperação entre Cooperativas.
Com a idéia de se criar uma Central de Cooperativas de Catadores na RMC Região
Metropolitana de Campinas, a Cooperlírios participa de seus encontros, debates e
assembléias. Nesses encontros, os cooperados da Cooperlírios entram em contato com a
realidade de outras cooperativas, traçando ajudas mútuas e trocando experiências de trabalho
que passam a ser incorporadas no cotidiano de cada cooperativa.
Hoje, né, as menina chegaram de lá agora [Central]. Que ia ter uma reunião pra
discutí sobre isso. Pra não acumulá caso a mercadoria fique aqui. Que o salário vive
em atraso porque a mercadoria não tem como tirá. Então a conversa foi eles
consegui se eles liberá e passá a quantidade de peso de cada tipo de mercadoria,
do seu pra Central. Eles já depositam o dinheiro e quando tivé um tempinho, eles vêm
buscá a mercadoria pra não atrasa o pagamento (Baiano).
O mês passado mesmo eu fui em 3 [cooperativas], porque pra fa o galpão aqui eles
querem mudá um pouco, né, pra não ser do jeito que era. Então eu fui em 3
cooperativa, e é bem um poco diferente da daqui. O jeito de trabalhá... o jeito de
organizá... .é bem diferente!(Baiano).
143
Com relação ao sétimo princípio, da Preocupação com a Comunidade, a
Cooperlírios o faz de maneira indireta. Seu trabalho de reciclagem é disseminado como uma
atividade essencial para a sustentabilidade da vida urbana. Isso, inclusive, chega a ser
observado pelos próprios cooperados, que observam, em seu trabalho, um sentido e
responsabilidade social.
Oia, porque geralmente a gente limpa um pouco a cidade, né? Porque a cidade
também anda muito acabada com esse lixo, principalmente os rios, essa coisa, tá
sendo muito judiado...
Oia, de fato, assim... pra nóis limpá, nóis já tiramo um bom tanto, né? Nóis já
organizemo bastante porque têm várias cooperativas, eno onde é uma coisa que se
for, se pudesse cada veiz mais a gente fazê, mais ainda podia bem mais melhor,
né? Essa coisa aí, que nem PP, garrafa, essas coisa, que vai para no rio... acho
uma judiação pros animais, né? Porque geralmente polui muito a cidade (Rita)
Pelas narrativas dos cooperados e a inserção no campo, observa-se que a busca da
Cooperlírios é de sempre se aperfeiçoar dentro do modelo cooperativista e seus princípios. A
cada dia trabalhado e a cada curso freqüentado, os cooperados parecem querer se aproximar
mais do modelo, tomando ações nesse sentido. Um evento levantado, em particular, constata
tais interesses e empenho.
Conforme levantado em campo, a Cooperlírios, em sua constituição, carecia de uma
administração. A falta de conhecimento dos cooperados na gestão dos recursos financeiros e
dos ativos do empreendimento fez com que a Prefeitura sugerisse a contratação de um
profissional tercerizado para assumir essa função. Contratado, esse funcionário começou a
atuar nas contas, análise da produção, remuneração entre outros. Entretanto, após um curso
realizado sobre o cooperativismo, os cooperados observaram que essa prática não era
condizente com os princípios do movimento. Pois se tratava de funcionário remunerado com
salário fixo mensal, descaracterizando todo o princípio da Participação Econômica dos
Sócios, bem como com possíveis complicações legais no futuro. Com isso, os cooperados
decidiram, de imediato, demitir o funcionário, assumindo eles próprios a administração com o
suporte técnico da Prefeitura.
144
Como se verificou, todos os sete princípios rochdaleanos são observados em sua
prática particular na dinâmica da Cooperlírios, o que revela, de modo geral, sua vivência
doutrinária. Sendo esses princípios alinhados com as dimensões de um empreendimento
solidário. É possível concluir, então, que a Cooperlírios apresenta características que lhe
possibilitam ser entendida como uma cooperativa autêntica (SINGER, 2003), bem como com
dimensões que a colocam como um empreendimento solidário (GAIGER, 1996; 2003).
5.3 Dinâmica organizacional e suas influências
A dinâmica organizacional pode ser entendida, de maneira geral, como a forma
processual cotidiana pela qual os trabalhos são executados em uma determinada organização.
Trata-se, no limite, das relações e interações que são construídas e significadas entre os
indivíduos e a estrutura organizacional, que dão sentido aos primeiros acerca de “onde e
como trabalham. Dessa forma, a dinâmica organizacional não apenas dita o modus operandi
da organização, mas também influencia a vida dos indivíduos.
O estudo da dinâmica organizacional da Cooperlírios suscitou alguns eventos
particulares que, em paráfrase a Lévi-Strauss (1976), podem ser considerados “bons para se
pensar. Esses eventos, densos de significados, tornam-se portas de entrada interessantes para
se constatar e desenvolver a análise das influências que a vivência e o trabalho na
Cooperlírios acabaram gerando nos cooperados. Nesse sentido, dois eventos destacaram-se
por sua complexidade e desdobramentos teóricos e serão desenvolvidos e interpretados nos
seguintes itens: Ágora reciclada; e O mito da Fênix e os laços solidários.
145
5.3.1 Ágora reciclada
Como discutido no item A organização cooperativa, a cooperativa é caracterizada por
ser uma organização focada no indivíduo, de princípios democráticos, cuja propriedade nas
mãos dos cooperados considera cada indivíduo um sujeito ativo, livre, solidário e igualitário.
Ao ser cooperado não se é exclusivamente responsável pelo próprio trabalho, mas pelo todo
organizacional. O cooperado, enquanto sujeito ativo, não responde apenas por suas atividades
designadas, ou, ainda, estabelece interação apenas com um chefe/companheiros de
departamento, ele assume um papel holístico, interagindo com todas as dimensões da
organização.
Esse pressuposto normativo do princípio democrático da cooperativa é manifestado
em sua dinâmica organizacional por meio de assembléias. Nesse sentido, o arranjo
organizacional da cooperativa pressupõe intensa interação social, na qual toda a gestão é
discutida em arena aberta de debates. As assembléias acabam por ditar a dinâmica que não
apenas aproxima os cooperados uns dos outros, mas, acima de tudo, abre espaço para o
diálogo, argumentação e participação. Tornam-se espaços incentivadores ao
autoconhecimento e conhecimento da organização.
Ao refletir sobre seu trabalho e ter a oportunidade de opinar sobre sua gestão, o
cooperado coma a exercitar sua capacidade argumentativa e participativa. Essa dinâmica
pôde ser observada na Cooperlírios por meio dos relatos que os cooperados fazem da
experiência de serem seus próprios patrões, participando de assembléias e reuniões informais
sobre a gestão da Cooperativa. O ato de trabalhar sem patrão, com responsabilidade não
apenas de sua atividade individual, mas do todo organizacional, fez com que as assembléias
se tornassem influentes para muitos cooperados, tornando-se espaços de re-significação de
personalidades e comportamentos individuais.
146
A primeira influência gerada por esse contexto diagico e argumentativo de
autogestão é com relação ao ambiente de trabalho e relacionamento com os demais
cooperados. Influência também observada nas análises de Guillerm e Bourdet (1976). Ao
estudar reorganização do trabalho de uma fábrica de camisas em uma empresa autogestionária
assumida pelas costureiras, Guillerm e Bourdet (1976) observaram que a primeira
modificação física solicitada no layout da empresa foi a alteração da disposição das máquinas
de costuras: antes, sob a forma de organização burocrática e hierarquizada, as máquinas
ficavam alinhadas uma oposta a outra, impossibilitando que as costureiras conversassem
durante o expediente; agora, com a autogestão, requerida pelas costureiras, as máquinas foram
colocadas uma de frente para a outra. Com a dinâmica das assembléias e a oportunidade de
escolher trabalhar uma de frente para a outra e conversas durante o expediente, os autores
observaram que houve estreitamento de laços entre as costureiras, transformando o ambiente
mais produtivo e divertido.
Na Cooperlírios essa influência também é constatada. Alguns cooperados que se
achavam tímidos e/ou avessos à interação social, depois de experimentarem a gestão e a
dinâmica organizacional Cooperativa, admitiram que mudaram estão socialmente mais
soltos e menos tímidos.
Um trecho de entrevista revela bem esse processo para uma cooperada:
Pesquisador: Tendo em vista toda sua experiência de trabalho antes da Cooperlírios,
você era assim? Sempre falava, discutia , ou você começou a desenvolver isso aqui?
Fátima: Não! Eu era um pouco, bem quieta.
Pesquisador: Você era quieta?
Fátima: Eu era muito quieta.
Pesquisador: Você acha que essa forma de trabalho da Cooperlírios ajudou vo em
alguma coisa?
Fátima: Foi assim, a convivência no começo foi difícil, né, porque tinham aquelas
pessoas que brincavam muito, eu não gostava das idéias, né, eu ficava muito nervosa,
mas depois acostumei, hoje eu brinco até demais.
(...)
Pesquisador: E se eu colocá o seguinte: antes ou depois da Cooperlírios, o que
mudou na sua vida? Ela melhorou, ela piorou?
Fátima: Ah... melhorou!
Pesquisador: Melhorou o quê? Só em dinheiro ou...?
147
Fátima: Não, não em dinheiro, ,melhorou em convivência, passei a conhecer
muitas pessoa, aprendê algumas coisa... assim, que eu era muita fechada, assim
...melhorô, mudô muita coisa!!
Pesquisador: Quando você diz em convivência que que acontece?
Fátima: Aprendi também se eu tenho pobrema em casa, eu não misturo pobrema da
minha casa com pobrema daqui, eu sei separar as coisa. Às vezes eu deixo, né, que eu
tenho um filho, 2 filhas que tava me dando trabalho, então eu fico muito nervosa em
casa, mas chega aqui eu já brinco ou então fico quieta. Não misturo, que cada
pobrema é um pobrema! Entendeu? Do portão... tem um pobrema de casa, do portão
pra fora. Porque do portão pra dentro é outra coisa.
Pesquisador: Então você disse que a Cooperlírios melhorou e não foi só em dinheiro,
também algumas outras coisas...
Fátima: É... Porque cooperativa é assim, altos e baixos... Agora nóis ganhando
mais ou menos... Ninguém sabe, daqui até o mês que vem. Porque pode cair o preço,
pode levantar... então cooperativa é isso... altos e baixos.
Pesquisador: Então, se eu chegá e perguntá: Fátima, o que a Cooperlírios significa
pra você? Qual a importância Cooperlírios na sua vida? O que você me falaria?
Fátima: Ah... é a coisa boa na minha vida... é uma coisa muito boa trabaiá aqui,
apesar das luta, né, é bom!
(...)
Pesquisador: Você colocou aqui que você era mais fechada, mais quieta e que aqui
[Cooperlírios] você começou a falar mais, a participá, essa convivência. Essa nova
Fátima, ela é aqui dentro ou ela é lá fora também? Mudou seu relacionamento
com as pessoas?
Fátima: Dependendo do lugar, até que eu brinco, mas dependendo do lugar que eu
tô, se eu numa responsabilidade assim, que nem eu tô lá naquela responsabilidade,
igual se vem fa da Festa do Peão, né? Eu vô trabalhá com a turma, cuidá duma
turma, dois anos fui eu e esse Baiano que vo entrevistô... Então, mesmo que as
outras pessoas brinca, e fica zuando, a gente tem que ter uma responsabilidade. Cê
não pode ficar naquele meio zuando, porque nóis com uma responsabilidade,
nóis não tá lá pra brincá! Nóis tá lá pra tomá conta das pessoa, faze café, marca as
coisa que sai, que não sai. Eno tem isso também!
Pesquisador: Agora diz o seguinte, antes, por exemplo, você foi empregada
doméstica, tinha patroa. Depois você trabalhou na Cooperlírios. Vo sente que
mudou o seu modo de pensá ou ver as pessoas à sua volta? Ou não? Vocomeçou a
olhar o mundo de uma maneira diferente? Alguma coisa assim?
Fátima: Pra mim é diferente.
Pesquisador: É? O que mudou da Fátima antes da Fátima depois?
Fátima: É tem mais amizade com as pessoa, porque eu era uma pessoa que qualquer
coisa pegava ódio das pessoa. Mesmo eu briguei com a pessoa, é mais aquele
momento, eu não tenho ódio. Aqui dentro mesmo eu cheguei a ter ódio de uma mulé,
entende? Justo essa mulé não mais aqui. Umas treis veiz ela veio me batê, eu
cheguei uma veiz pra fazer uma coleta, eu cheguei batê nela, né, pra não apanhar eu
tive que bater nela. Então hoje... não tenho mais assim de batê... essas coisa assim..
Pesquisador: Você ficô mais calma?
Fátima: Fiquei mais calma.
Pesquisador: E você atribui isso à Cooperlírios?
Fátima: À Cooperlírios e à convivência, e aprendê com as pessoa.
Como corrobora o trecho acima da entrevista de Fátima, o diálogo constante, com a
liberdade de argumentação e debate sobre a organização e trabalho, os cooperados
estabeleceram fortes laços de reciprocidade e amizade que ajudam a transformar o expediente
em atividade prazerosa.
148
Muito tranqüilo, a gente conversa, todo mundo brinca, até que as mulher nessa
parte, elas são animadas... eu acho que elas ajuda muito também... porque... eu... até
hoje sou uma pessoa tímida. mais já sô muito acostumado com o jeito da coisa, sabe?
Eu acho que elas aqui também! E aqui eu tive que acostumá com o jeito delas,
porque elas são muito animada (risos). É gostoso! De veiz tem coisa que eu o
começo, mas se alguém começa, eu faço parte pra ajudá! E com isso passo dia e a
gente não sente (Du).
(Risos) Assim, na vida do trabalho, nas coisas da cooperativa mu bastante porque
se a gente tá nervosa dentro de casa, a gente chega e conversa com uma colega,
conversa com a outra, então resolve tudo. Aquilo lá você esquece deixa atrás.
Então é muito bom a gente trabalhar onde tem bastante gente, onde a gente possa tá
conversando, né? (Rita)
(...) aqui, aqui eu me destraio, entendeu!? Distraio minha mente, eu venho pra eu
fico mais leve, entendeu? Eu esqueço meus problemas lá fora e aqui eu me divirto
porque aqui uma fala uma coisa a gente ri, a outra fala outra coisa a gente ri, e aí a
gente na hora que a gente trabalhando, a gente fica concentrada, entendeu, em
separar as coisas... Aqui é gostoso! Eu gosto daqui! (Sandra)
FOTO 9 - Cooperadas se divertindo durante o expediente
Fonte: Diego Coelho, 2006.
Tal proximidade gerada por esse processo assembleístico incorpora toda a dificuldade
inerente de um diálogo que se influencia por jogo de interesses, mas que em síntese parece
sempre chegar a uma situação satisfatória à vontade de seus cooperados.
Pesquisador: Você acha que o jeito de votá funciona pra coisa andá?
Fátima Alves: É... eu acho que sim.
Pesquisador: É? E como que é trabalhar sem patrão, Fátima? É gostoso? É ruim?
149
Fátima Alves: Eu acho bom... é.. no caso assim... muitas vezes a gente fica chateado
porque a cooperativa é assim... todo mundo é dono, então todo mundo acha que tem
seu direito, né? As veiz a gente tem alguma coisa de um jeito, aí chega outro, “não
vai ser assim”! fica complicado porque é cooperativa. Se fosse uma firma não.
Porque tem o patrão, né? O patrão tem que ser assim! Mas como nós somo
cooperativa, fica aquela... uns qué fazê de um jeito, outro quer fazer de outro. Mas
termina chegando num ... num acordo...
Pesquisador: Então nas reuniões vocês debatem, chegam a brigar e tudo?! E no
final?
Fátima Alves: É... é... fica uma discussão, um diz que não aceitô, o outro diz que eu
não vou votá”... aquelas... mas depois termina dando certo. E com quase 5 anos já tô
eu aqui, graças a Deu,s eu não tenho problema com ninguém, eu gosto de todo
mundo, não tem problema.
Como segunda influência desse processo democrático, tem-se a experiência cívica e
solidária vivenciada pela argumentação e refleo que as críticas diretas possibilitam. Assim,
cada cooperado possui o direito e a liberdade de expor suas idéias diretamente ao outro,
vivendo o exercício constante de análise dos limites de seus direitos e o dos outros. O caso
entre dois cooperados, Turim e Bruno, sintetiza perfeitamente esse processo.
Como relatou Turim em sua entrevista, Bruno, durante seus trabalhos na Cooperlírios,
machucou suas costas, tendo que se afastar do trabalho. Foi colocado para votação em
assembléia se o afastamento desse cooperado deveria ser remunerado ou não. Turim foi uma
das pessoas que argumentou que o deveria haver a remuneração. Tempos depois, foi Turim
quem se machucou, e a recíproca foi verdadeira para ela ficou, também, sem a remuneração.
Esse evento é interessante, pois fez Turim pensar bastante, refletindo sobre os limites
de um individualismo egoísta. Conforme trecho da entrevista:
Pesquisador: Turim, depois que você entrou na Cooperlírios você começou a se
preocupar mais com os outros ou o?
Turim: (...)
Pesquisador: Vo fica assim, preocupada mais com o que acontece com a pessoa
que está do seu lado?
Turim: É!
Pesquisador: Por quê?
Turim: Porque às veiz a pessoa precisa da gente, né? o é todo dia. Por exemplo,
hoje tem que preocupá porque hoje aconteceu com ela, talvez aman possa comigo,
possa ser comigo, né!?
Pesquisador: Isso você aprendeu aqui? Na Cooperlírios?
Turim: Ah... aprendi (risos)! Cortei a perna e fiquei 15 dias em casa. E quando foi o
rapaz que eu contei a história pá ocê... do rapaz do asfalto... eu falei... votei não pra
ele. E na outra vez eu cortei a perna e fiquei 15 dias em casa... e o ganhei nada! Se
eu tivesse votado pra ele ganhá, hoje esses dias eu teria ganhado meus 15 dias fiquei
150
em casa com a perna cortada... então... Mas eu votei não. Hoje nóis não pode pensar
só na gente... tem que pensá nos outros também!!
Desenvolve-se, com isso, um processo em que os indivíduos começam a se posicionar
constantemente, sentindo-se responsável pela condução dos processos e parte determinante da
gestão da organização. Há o sentimento coletivo de que a responsabilidade é de todos e cabe a
cada um participar. Como sintetiza o relato de duas cooperadas da diretoria,
Boa [relação com os cooperados]! Porque vem reclamá pra mim direto. “Aí, Turim,
acontecendo isso...” “Aí, Turim, tá acontecendo aquilo”. falo: Ai, gente, eu não
posso decidi sozinha, sabe? Vocês também! Não é eu, né? Que a pessoa vai falá o
quê? Que eu quero mandar nessa Cooperlírios? Eu não posso falá. Cada um tem que
falá um pouco, né? Recla! Não só eu. Vamos então se reuni aqui e vamo cada um
falá um pouco. Porque não é só eu que decido! Vocês também decidem. Vocês
também têm o direito de falá! Que nem outro dia... tem um homem que não tava
trabalhando. Ele tava sentado e fazia 2 horas e ele ganha por hora. Aí começo: Ah,
Turim, ele não trabaiá! eu disse pra ele: As muierada aqui tá falano que o
vai prestá no tabalho de caba de prensá isso... E ele perguntou: Qual que foi a muié?
Falei: Todas...! (risos). Todas elas tava falano... E ele: Me aponte qual delas... Falei:
Não! Não tem nenhuma nem outra... é todas inclusive eu (risos)! (...) Ele falou: Ah...
quero que se dane! Ele falou: Fale pra mim! (...) Mas aí depois acho que ele passô a
raiva, que ele prenso de pressa! Isso é um fato (risos)! Aí falaro: Ah, Turim, se vo
não tivesse falado... tava aí... depois que falô, nossa... prenso... foi rapidinho! no
outro dia falei: [Nome do cooperado], contece... sentei com ele... o é eu que
recramo! Todas muié recrama. Mas vai fazê o que, meu fio? Se tem que fazê...
nisso ele falô... no outro dia ele tava olhando um saco... “Sicrano, isso aqui é
seu? Tinha umas ropa. a mu falô assim: veno? Ele pode assim do jeito
que ele for, mai ele não guarda mágoa de ninguém! Chamá a atenção dele, né? É,
mas eu chamei a atenção do [nome do cooperado], né? Não tá certo... porque ele faz
parte do conselho fiscal... ele tem que tê... ah... tem que... é o espelho, né? Pra outra
turma que chega no conselho fiscal e ele não for espelho da turma... quem será? Se
ele não trabalhá de acordo... agora ele pega e senta... o outro já vai pegá e deitá
aqui! (Turim).
Falo! Eu falo assim, o que eu acho que certo! Eu falo se as pessoa... tem muita
gente que fica assim... porque acha que eu quero.. sei muitas coisa assim... eu quero
levar as coisa muito a sério. Eu falo mesmo! Que eu gosto das coisas sérias. Não sou
de che aqui e ficá enrolando, o trabalhar. Se eu ver um que ali enrolando
também sem querer trabalhar eu já fico logo agitada, ! Porque eu não gosto. Se a
gente vem pra trabalhar tem que trabalhar mesmo! As veiz tem um que fica
escorando ali sem quere trabalhar... a gente já fica... um fica e fala pro de traz:
Ah, porque fulano não sei que, não sei que. Eu não, eu já falo logo na cara: “Fulano,
assim não vira... assim não ! É por isso que... não é todo mundo... mas tem muita
gente aqui, tem uns aqui que... não é muito assim comigo por causa que eu sou...
muito... eu gosto de fala as coisa assim na cara! Porque o adianta eu fala por de
traz, eu acho que magoa mais a pessoa. Que nem eu já falei pra muita gente aqui. As
veiz fica aquela discussão porque todo cantinho onde tem muita gente tem discussão
mesmo, né? Mas quando nós tamo assim numa boa, aí eu falo pra, pra todo mundo
assim: Oh gente, eu falei isso, e assim mas eu não tenho mágoa de ninguém não.. não
tem mágoa de ninguém, porque tem hora que a gente fica... fica agitada com alguma
coisa. Mas não é problema de levar a sério não... de jeito nenhum. (Fátima Alves).
151
Essa dinâmica de crítica cotidiana dos trabalhos também gera uma terceira influência.
Como relataram os cooperados mais antigos da Cooperlírios, que mais participaram de
assembléias, atualmente eles sentem-se melhor para dialogar e debater sobre a organização
em que trabalham. Não apenas manifestam grande conhecimento sobre o funcionamento da
organização e sua gestão, mas todos têm de prontidão uma sugestão para melhoria dos
trabalhos.
Agora conversei com a Turim. Falei: “Turim... todo... todo... todo saco de material
do pessoal vai ter que vim com nome! Vai vir com nome que a gente descobre quem é
essa pessoa...” Porque desse jeito eu tô perdendo meu tempo fazendo separação,
segunda separação. E não sei quem é a pessoa que tá fazendo errado (Baiano).
Os cooperados passam a desenvolver noções de administração, pelo qual começam a
exercitar um pensamento gerencial. Um evento particular enfatiza esse processo. Como
desenvolvido no item A gestão da Cooperlírios: divisão e processo de trabalho, a
Cooperlírios possui sua gestão dos trabalhos em dois grupos: Horistas e Produção. Essa
estrutura organizacional foi desenvolvida em assembléia pelos próprios cooperados, após a
alise de que o sistema que vigorava anteriormente não estava surtindo efeitos justos na
remuneração. Conforme relatado pelos cooperados, a Cooperlírios seguia o seguinte sistema
de trabalho: todos trabalhavam e todas as receitas líquidas das vendas do mês eram
igualitariamente divididas entre os cooperados. Dessa forma, os cooperados que não se
empenhavam no trabalho acabavam ganhando o mesmo montante daquele que dava seu suor
para aumentar a produção. Foi então que uma cooperada teve a idéia de colocar em debate e
rever, em assembléia, todo o sistema de gestão do trabalho, com objetivo de torná-lo não
apenas mais justo, mas mais motivador à produção.
Após discussões, os próprios cooperados estruturam os grupos Horistas e de Produção
e colocaram esse sistema em período de teste e avalião durante um mês. O novo sistema
agradou bastante e foi aprovado, sendo implementado e vigente até hoje. Analisa-se desse
caso que, mesmo sem escolaridade técnica superior em administração, a reflexão e
152
participação dos processos decisórios na gestão da organização acabaram influenciando a
aprendizagem gerencial nos cooperados. Os cooperados começaram a refletir o cotidiano de
trabalho, desenvolvendo pensamento crítico para melhoria do funcionamento da organização.
É possível se dizer, eno, que a Cooperlírios, por meio de autogestão, parece
apresentar uma releitura da democracia direta ateniense, produzindo espaço para que todos
argumentem sobre a gestão de sua organização. Nesse sentido, conclui-se que esta gestão por
princípio democtico, em dinâmica de assembléias, produziu o espaço de diálogo, uma
Ágora, que influenciou, em três pontos observados, seus cooperados: a) o desenvolvimento de
uma competência argumentativa que incentiva à interação social; b) pela abertura ao dlogo e
participação a experiência da reflexão cívica e solidária, de preocupação com o próximo; e c)
o desenvolvimento de competências gerenciais, por meio da aprendizagem, na práxis, de
noções de administração.
5.3.2 O mito da Fênix e os laços de solidariedade
Em pleno Dia das Mães de 2006, um incêndio de proporções devastadoras atingiu a
Cooperlírios. Todo o material armazenado para despacho, material selecionado em bags e
material a selecionar foram perdidos. Naquele mês, toda produção da Cooperlírios e a
remuneração de seus cooperados foram “zeradas”, perdidas. Esse triste evento, que marcou
com cinzas a história da organização, foi suscitado durante os trabalhos de campo e as
entrevistas. Pelas narrativas do episódio, esse evento destacou-se como denso de significado,
sendo porta de entrada interessante para se analisar um fator de extrema importância: a
solidariedade entre os cooperados.
Como desenvolvido ao longo dessa dissertação, a solidariedade é um dos temas
centrais do cooperativismo, da Economia Solidária e dos empreendimentos solidários. Esse
153
termo não trata apenas da essência desses movimentos, mas o fim que se busca para produção
de liame social capaz de gerar a prosperidade sustentada de suas ações. Entretanto, o fato de
haver sua defesa não necessariamente garante sua manifestação na vida dos cooperados. Por
meio da análise das percepções dos cooperados e da Prefeitura sobre o incêndio ocorrido na
Cooperlírio foi possível constatar que a Cooperativa conseguiu consolidar forte sentimento de
solidariedade e apoio em seus cooperados, outrora inexistentes quando eram catadores de rua.
O processo organizativo da Cooperlírios, desde sua formação até a vivência de seu cotidiano,
gerou solidariedade dentro do grupo que, as o incêndio, veio à tona com toda a força.
O primeiro insight sobre a solidariedade formada entre os cooperados da Cooperlírios
foi dado por Du, quando citou o incêndio como um evento que mudou o astral de trabalho:
Pesquisador: O que te levou a essa produção que é seleção de material? Por que
você decidiu sair do horista e ir pra produção?
Du: Porque naquele tempo, achava que tava faturando poco, sabe? Trabalhava
muito e tava faturando poco. E com a produção a gente muda o jogo, podia incentivá
mais as mulher... porque naquele tempo a gente tava assim, naquele chamado aquele
baixo astral... desanimado... não rendia... nem a produção e mesmo se trabalhasse no
serviço por hora, também não rendia porque dependia de um poco da produção.
Então aí eu falei se a gente fizê isso, eu acho que vai melhorá... e d pra cá... eu
achei que foi aquilo que tinha que fazer.
Pesquisador: Pra melhoria de toda a Cooperlírios?
Du: Pá toda a Cooperlírios, eu como sempre sou uma pessoa cheia de coisera. Eu
sou a pessoa mais engraçada que tem aqui... pode ruim que eu falo que tá bom,
sabe? Falo: Não, vai melhorá... vamô fa um jeito de melhorá. o é que eu sei fazê
a coisa, que eu sô engraçado e mesmo... e elas vai na conversa.
Pesquisador: Então deixa eu te fazer uma pergunta, Du. Vo colocou que havia um
baixo astral nessa época, né?
Du: Foi.
Pesquisador: Por que, que que era esse baixo astral? Por que todo mundo tava de
baixo astral? Que que aconteceu?
Du: Eu acho que uma pessoa sendo um baixo astral... e às vezes por eu tá assim
outra pessoa vai junto... e vai mais e mais junto e acaba prejudicando o
rendimento que naquele tempo não era assim que nem hoje... que chega o material e
de repente o material ele consome tudo separado... tava... teve uma queda grande
naquele tempo... e não tinha uma saída pra mode a gente sê. Aí, depois do fogo a
gente voltou com a cabeça assim... mais arejada... ai eu achei que eu devia mudá...
fala assim o que que eu sentia...e ai convida a todos...
Conforme relato de Du, único cooperado presente na Cooperlírios no dia do incêndio,
O fogo aconteceu assim... foi porque... do outro lado tinha muito mato, mato alto
mesmo. Naquela lateral onde joga entulho até hoje e jogam muito. E mais do lado de
bem perto da cerca do quintal aqui que é muito mato, o capim cresceu. A gente
tava com medo e pediu as pessoa pra corta, né? O pessoal da Regional, né? Eles
acendeu o fogo, mais ficou acamado, muito seco. que criou a chama. não
demoro, crio a chama, eles rastelou... mais mesmo assim não tirou tudo... porque não
154
tinha jeito de tirá. tinha um entulho muito alto lá. pois fogo. Num dia de
domingão, que foi o dia que eu tava aqui trabalhando, prensando, que eu ia ficá de
guarda, mas eu gostava de fica trabalhando... prensava material e o tempo
passava mais rápido. Pois fogo lá... Depois o fogo foi alterando, foi de tardinha, foi
alterando, quando foi chegando depois das 18h o fogo pulou pra cá... O fogo pulo!
Tinha um pouco de isopor perto da cerca... e quando pulô... pegou na cerca... aí o
fogo veio que veio com tudo..Nem se o corpo de bombero tivesse aqui não dava conta
de socorrê (Du).
Com a Cooperativa em chamas, rapidamente a notícia correu o Jardim dos Lírios e os
cooperados foram, um a um, sendo avisados. Todos narraram com muita emoção esse dia,
principalmente quando chegaram ao local e viram, senão em chamas, somente as cinzas de
seu local de trabalho.
Eu pensei que na hora fui tudo uma brincadeira, né? Do minino que chegô lá em
casa falando, né? Mas quando no oto dia cedo que eu cheguei aqui... foi muito triste..
queimô tudo, não sobrô nada... (Rita).
Eu tinha ido na casa das minha filha que era dia das mãe, ? E quando eu cheguei
em casa e comecei a fazê janta, aí a vizinha começou a grita: “Oia! a Cooperlírios tá
pegando fogo, pegando fogo!”. E o fumação tomô conta do bairro inteiro, né?
Que... fibra, um monte de coisa, né? eu vim fiquei a noite inteira aqui, eu e as
menina e o bombeiro pedindo reforço que não conseguia apagar o fogo, foi horrível.
(...)
Ah... eu fiquei muito... comecei a chorar, sabe? Porque nóis... nóis tava assim bem,
né, começando a levantar aqui, recicrava assim... entre altos e baixos. Tanto faz a
gente ganhá um poco rasuavi, como já caí de uma vez, por causa do preço, às vezes
num tem material suficiente. Tudo isso aí! (Fátima).
Ah... eu chorei... fiquei nervosa... fiquei muito nervosa. Porque naquela semana eu
tinha pesado muito material. Eu tinha uns 300 reais pra receber ou mais, né? E fiquei
sem nenhum centavo. Não fiquei com dinheiro nem pra pagá minhas prestação. Aí
ficou tudo descontrolado por causa do pagamento, né? Foi embora tudo, queimou
tudo... naquela hora que a gente viu aquele fogo ali, um fogo que não tinha nem
nada que apagasse, tomô conta disso aqui. Foi bombeiro o conseguia. Uma coisa
que não tinha nada que conseguisse apagá esse fogo. nóis fiquemo desesperado,
nóis tava todo... porque todo mundo mora pertinho, logo chegou todo mundo aá...
eles até conseguiram apagá. Mas foi difícil... fiquei nervosa... fiquei chorando...
(Fátima Alves).
Fiquei triste... porque achei que a gente não ia consegui trabaia mais. Achei que ia
fechá... até construí outro barracão (Rosana).
Esse evento assume relevância não apenas pelas perdas materiais, financeiras e
comoção do grupo de cooperados, mas, principalmente, pela capacidade de organização
coletiva e identitária manifestada imediatamente após o controle das chamas.
(...) mais a gente juntô as muié tudo... lavô tudo aqui... nóis começô pôr os lixo no
chão e até hoje tá no chão e nóis recicramo (Rosana).
155
(...) no mesmo dia, na segunda-feira, porque esse fogo foi no domingão à noite, e na
segunda-feira, porque não tinha outro jeito. Se fosse esperar mais tempo o
compensava (Du).
Inclusive que a ota menina, nos falemo: Vamô levanta as manga e vamô limpa isso,
vamô ponha material! Graças a deus aí, porque... porque nóis fosse desisti muita
gente ia da risada... (Rita).
No outro dia nóis viemo. já demo uma limpada aí... veio a máquina, tirô tudo
aquelas coisa que ficô queimada. Parece que quando foi, na segunda? É, na tea-
feira já chegô um caminhão e nóis comecemo a trabalhá (Fátima Alves).
Sabe que eu não sei nem da onde que veio! sei que veio uma menina de lá de
baixo, pra ajudá, ela não tem nada a ver com as daqui, ela veio ajudá, foi uma
solidariedade muito boa (Rita).
O clima que era tenso e triste na data do incêndio, aos poucos, foi tomando aspecto
motivador e desafiador. Rapidamente, como uma Fênix, a Cooperlírios foi reconstruída de
suas próprias cinzas. Sem estrutura, dado que as bancadas nas quais era feita a seleção dos
materiais foram queimadas, os cooperados da Produção começaram a selecionar os materiais
no co. Incrivelmente, apesar de uma situação mais precária, o clima entre eles melhorou,
bem como a própria produção geral aumentou.
O fogo trouxe uma mudança, pra que a gente acordasse um pouco, deixasse de lado
aquele baixo astral e mudasse de cena.
(...)
(...) eu acho que daí pra [fogo]... nóis temo mais plano... mais projeto... mesmo
que for um projeto que for tanto saque de acontecendo a gente tem mais um pouco
de tentativa de projeto (Du).
Ah... porque eu acho que um pobrema, né, as pessoa acordô mais, né? Se interessô
mais pelo serviço, não todos, ? Mais alguns se interessô mais, ! [após o fogo]
(Fátima).
O próprio líder do projeto, vereador Kim, narrou sua impressão sobre essa força
demonstrada de organização coletiva e solidária da Cooperlírios.
É... eu tive lá no dia do incêndio. Na hora do incêndio, inclusive, fui compartilhar e
senti, realmente de perto, o que aquelas pessoas tavam... é.. sentindo. É evidente que
no primeiro momento, aquela tristeza, né, um baque que todo mundo, é... todo ser
humano vai sentir. Mas imediatamente a resposta, naquele dia enquanto se
queimava, né. As pessoas, “não amanhã nós va recomeçando, vamos reerguer
das cinzas, né...” e de fato aconteceu , ? O pessoal não esmoreceu, pegou firme,
sofrendo, né? O resultado de ter perdido a sua cobertura, a sua estrutura, enfim, de
ter passado por uma série de dificuldades, mas eles estão... é... demonstraram aquele
sentimento de que a união faz a foa, e eles permaneceram unidos e estão
superando, e mais do que isso, né! (Vereador Kim).
156
Analisa-se, por meio da reação dos cooperados frente ao incêndio, que uns dos
principais objetivos da implementação de um empreendimento solidário, como a
Cooperlírios, parece ter surtido resultados. Os catadores que, anteriormente ao projeto,
atuavam de modo esparso pelo bairro, quando organizados em cooperativa, não apenas
começaram a organizar essa atividade de modo mais eficiente e produtivo, mas também
desenvolveram um liame social, certa identidade que os une em torno do empreendimento e
de seu trabalho.
O próprio líder do projeto, vereador Kim, quando questionado acerca dos impactos da
formão da Cooperlírios para seus cooperados e o bairro, afirmou quenão tem vidas que
mudou”. A avaliação do vereador é clara ao destacar que o empreendimento solidário, como
se constata, caminha para consolidação dos preceitos que o justificam econômica, política e
socialmente. De acordo com o vereador,
(...) para a gente perceber a mudança não dá pra gente olhar de um dia para o outro!
Nós temos que olhar, por exemplo, como que isso era oito anos atrás e como é
hoje! vo claramente a diferença, né? Talvez olhando pras pessoas, como que
aquela pessoa é, vivia, né? Naquele período lá atrás e como ela vive hoje. E o
apenas aquele grupo que tá trabalhando hoje. Outras pessoas que passaram por
lá, né? Porque ali de uma certa maneira as pessoas que passam e trabalham ali por
um tempo elas acabam tendo uma formação! Uma formação de que é importante ter
o respeito mútuo, que é importante ter uma organização, e que dessa forma você
consegue. Ao invés de competir, de cooperar, né! Que a palavra cooperação, ela
muitas vezes traz mais resultados que a palavra competão, ? Quando existe uma
linha muito individualista, que é natural que isso ocorra, né, as pessoas elas têm um
determinado limite, agora quando elas se unem para a busca de objetivo comum,
esses limites são superados, né?
(...)
Então o que que cada um tem aquilo que ele sabe fazer melhor e é importante que
aquilo que ele sabe fazer de melhor, e é importante que aquilo que ele tem de bom ele
possa socializar com as outras pessoas do grupo. Então com isso, todo mundo ganha,
porque aquilo que o meu colega tem de bom ele vai dividir isso comigo, aquilo que eu
tenho de bom eu vou dividir isso com ele. E aquilo que eu tenho de ruim eu vou
guardar comigo e o outro colega com ele. Então esse espírito cooperativista, quando
as pessoas trabalham, realizam dessa forma, não existe aula teórica que faça as
pessoas compreenderem isso, mas uma ão prática, não é nem traduzida em forma
de texto, mas as pessoas sentem e compreendem e com isso readquire uma auto-
estima, que realmente o trabalho dele, aquilo que ele sabia fazer de bom foi bom
pra tanta gente, né? E somando com os outros ele conseguiram superar uma
dificuldade que era de todo mundo. E dessa forma o pessoal que tem participado da
Cooperlírios não é diferente, porque tem visto muitas relações de respeito, tratativas
com empresas de grande porte, eles são fornecedores de grandes empresas, o
consumidores também. E são tratados de uma forma respeitosa quando antigamente,
né, eram vistos como andarilhos, pedintes, pessoas que não eram reconhecidas com
seu verdadeiro valor de um trabalhador digno. (Vereador Kim).
157
Com isso, o incêndio na Cooperlírios, apesar de um evento tgico, expôs aos próprios
cooperados laços de solidariedade que até então não estava imediatamente perceptível aos
seus próprios olhos. A Cooperlírios, enquanto uma organização alinhada com os preceitos do
cooperativismo e da Economia Solidária, parece ter alcançado, com relativo sucesso, não
apenas sua dimensão ecomica, mas também social.
158
CONSIDERAÇÕES FINAIS
159
6. Cooperlírios: questões “boas para se pensar
Aventurar-se pela probletica de como os indivíduos constroem e vivenciam a
gestão de um empreendimento solidário suscitou algumas questões e eventos bons para se
pensar (LÉVI-STRAUSS, 1976) no campo dos estudos organizacionais.
Ao se analisar o processo organizativo (SPINK, 1991; 1996) da Cooperlírios, foi
possível observar como foi formado um grupo específico (Prefeitura e catadores) que, com
objetivos e interesses comuns, constituiu um empreendimento de características solidárias.
Analisou-se a dinâmica do grupo desde sua origem até seu cotidiano hodierno, e,
principalmente, como este grupo construiu o empreendimento e vivencia a sua dinâmica
organizacional.
Por meio de uma experiência rica no campo (com observão não-participante;
entrevistas e análise de documentos), identificaram-se três momentos relevantes no processo
organizativo da Cooperlírios: sua formação, construção e dinâmica organizacional. Por meio
desses três momentos foi possível destacar questões que agregam para o debate dos estudos
organizacionais, especificamente, na gestão humana e social das organizações, a saber:
Ø uma ão viável para o desenvolvimento local;
Ø a construção de leitura particular dos preceitos doutrinários e organizacionais
do cooperativismo; e, principalmente,
Ø a influência de seu arranjo e dinâmica organizacionais nos aspectos sociais e
políticos da vida de seus trabalhadores.
No item Entre a revolução e o pragmatismo: a formação e o status popular da
Cooperlírios, descreveu-se que a formação do grupo que constitui a Cooperlírios partiu de
uma iniciativa da Prefeitura Municipal de Americana em organizar os catadores de materiais
recicláveis e/ou reutiliveis do Jardim dos Lírios. A principal motivação que incentivou a
Prefeitura nessa ação estava apoiada em dois pontos específicos: o primeiro, organizar essa
160
atividade de coleta de materiais, uma vez que o modo precário como ela estava sendo
executada trazia sérios problemas à salubridade do bairro; e, o segundo, de garantir, formal e
sustentável, essa atividade econômica, tendo em vista se tratar, em muitos casos, da única
fonte de renda das famílias.
Essa motivação, da qual o poder público local se imbuiu no processo de interação com
a comunidade local, suscitou a retomada de interessante debate sobre o movimento
cooperativista, particularmente nos empreendimentos de Economia Solidária. A principal
questão nesse âmbito é quanto ao princípio motivador do processo organizativo desse tipo de
empreendimento: seria ele um princípio revolucionário, alinhado às premissas de contestação
do capitalismo, ou um princípio reformista, arraigado à ação pragmática de garantia de
emprego à população de baixa renda e excluída do mercado formal de trabalho?
A interpretação desse processo ensejou esse debate, revelando que a Cooperlírios,
quanto à motivação de sua formação, nasceu de um princípio pragtico, porém, não
abandonou as premissas e doutrinas do movimento cooperativista. Abre-se, com isso, a
discussão que, a despeito de estarem alinhadas por um princípio revolucionário em sua
origem, é possível que o cooperativismo e os empreendimentos de Economia Solidária sejam
tomados, com eficácia, em sua forma reformista, não tendo que abrir mão, com isso, de seus
pressupostos. Ser uma resposta pragmática no mercado não significa, necessariamente, a
adesão completa a uma muleta organizacional e institucional”, como no caso das
coopergatos.
É possível, então, como analisado, um alinhamento reformista-pragmático com as
bases programáticas do cooperativismo e da Economia Solidária. O caso Cooperlírios não
apenas se mostra alinhado a realidade com esse raciocínio, mas apresenta, teoricamente, sua
factibilidade. Como analisado no item Entre a revolução e o pragmatismo: a formação e o
status popular da Cooperlírios, o objetivo da Prefeitura, num primeiro momento, era o de
161
organizar os trabalhos de coleta de materiais recicláveis e/ou reutilizáveis para manutenção
formal dessa atividade, garantindo emprego e renda. Percebe-se que a finalidade que orienta
essa motivação é de natureza econômico-instrumental a construção de um meio, uma
organização formal, para consecução de um fim dado: emprego e renda. Entretanto, a escolha
deliberada do meio para consecução dessa cadeia instrumental foi dada em torno da aposta em
vínculo solidário que um modelo específico, o cooperativismo, propugna como capaz de
gerar. Nesse sentido, a opção do modelo cooperativista obteve sua finalidade na criação de
vínculos específicos a partir de uma ótica substantiva, os quais pudessem constituir para o
liame social capaz de gerar prosperidade e sustentabilidade ao empreendimento.
Essa articulão entre uma gica instrumental e substantiva é passível de ser bem
articulada nos empreendimentos solidários e retoma os estudos de França Filho (2002). Como
desenvolvido em Economia Solidária: problemática e conceitos, os empreendimentos, por
sua natureza, possuem “capacidade de articular gica de ação bastante diferenciadas na sua
dinâmica (FRANÇA FILHO, 2002, p.2). A compatibilidade entre eficiência econômica e
lógica solidária está respaldada no conceito de economia plural, desenvolvido por França
Filho (2002) a partir dos estudos de Polanyi, apresentado no item Economia Solidária:
problemática e conceitos.
Nessa argumentação, França Filho (2002) defende para os empreendimentos solidários
a construção teórica da coexistência de lógicas econômicas que normalmente são tidas como
opostas ou mutuamente excludentes. Para o autor, a economia plural admite a pluralidade de
princípios de comportamento econômicos, não posicionando os empreendimentos solidários
como iniciativas contra o mercado”, mas como ões que podem ser “com o mercado”.
Nesse sentido, a análise da formação da Cooperlírios torna-se boa experiência para corroborar
essa articulação e defendê-la.
162
Sobre a construção do empreendimento, desenvolvido no item Cooperlírios: um
empreendimento solidário?, indagou-se se as motivações de se constituir um empreendimento
com eficiência econômica por meio de laços solidários realmente levariam, na dinâmica de
seu processo organizativo, à realização desses objetivos. Subjacente a essa indagação,
encontra-se a análise de como um grupo determinado, formado por interesses comuns,
constroem, em sua prática particular, seus meios.
Os estudos do arranjo organizacional e da dinâmica de gestão da Cooperlírios levaram
à interpretação de que a Cooperativa, em sua particularidade, enquadra-se alinhada com os
preceitos do movimento cooperativista e da Economia Solidária, adquirindo dimensões que
lhe possibilitem ser entendida como empreendimento solidário (GAIGER, 1996; 2003).
Do primeiro ao sétimo princípio rochdaleanos, a Cooperlírios vive, a sua maneira,
todos os seus pressupostos. Os cooperados, identificados com o trabalho de selão e
reciclagem, mostram-se engajados em desenvolver o empreendimento, inclusive, utilizando-
se para isso das diversas parcerias técnicas, principalmente, com a Prefeitura Municipal.
Nesses termos, a Cooperlírios pode ser entendida como típica cooperativa defensiva (LIMA,
2004) e autêntica (SINGER, 2003). Defensiva, pois, como desenvolveu Lima (2004), trata-se
de empreendimento formado por iniciativa governamental de geração de renda para
populões pobres, a qual está totalmente alinhada com os princípios doutrinários do
movimento cooperativista e da Economia Solidária.
Essa interpretão da Cooperlírios como cooperativa defensiva (LIMA, 2004) e
autêntica (SINGER, 2003) desdobra-se para a retomada de uma indagação proposta por
França Filho (2002): seria a Economia Solidária um caminho para um novo modo de gestão
pública?
O caso Cooperlírios abre espaço para essa problemática, demonstrando ser, apesar de
alguns pontos abertos, uma experiência positiva nesse sentido. Trata-se de um
163
empreendimento constituído pelas relações entre a sociedade civil e o governo municipal que
apresentou resultados satisfatórios e eficazes, como analisado em Análise dos Resultados: um
olhar interpretativo: uma cooperativa em pleno funcionamento, que integra a cadeia do
tratamento do lixo urbano da cidade, inserindo indivíduos na formalidade do trabalho,
gerando não apenas renda, mas condições dignas de vida e influências sociais positivas.
Observa-se, então, um caso que corrobora a perspectiva de França Filho (2002, p.11), quando
este coloca que:
Na prática a hibridação de princípios econômicos que se realiza através dessas
experiências [Economia Solidária] aponta caminhos fecundos do ponto de vista de
uma ão organizacional cujo horizonte possa ultrapassar objetivos puramente
econômicos. Múltiplas possibilidades de parceria entre agentes da sociedade e
poderes públicos nos aparecem possíveis através desse fenômeno, sempre atento a
perspectiva de preservão da autonomia dos projetos e estimulando um modo
inventivo de realização da gestão pública.
Pela interpretação do modelo de gestão construído e sua dinâmica na Cooperlírios,
observaram-se alguns pontos fundamentais para a reflexão dos empreendimentos de
Economia Solidária e as influências destes em seus indivíduos. Conforme o próprio discurso
do movimento propugna, os incentivos de formação de empreendimentos solidários estão
dados atualmente na busca por uma solução digna, por meio de emprego e renda, para as
populões de baixa renda e baixa escolaridade em situação de risco. Nesse sentido, como
desenvolve Singer (2000a), tendo em vista o perfil dos indivíduos trabalhadores dos
empreendimentos solidários, existe descrença generalizada na capacidade administrativa
destes. Muitos consideram essa questão, inclusive, problema maior ao sucesso do
empreendimento do que a própria reação do capitalismo e da dinâmica do mercado a esse tipo
de iniciativa.
Entretanto, como Singer (2000a) argumenta, o conhecimento é um processo que
acontece no devir do tempo, tanto quanto a maturidade da autogestão, como a administrão
164
de todo o negócio. O caso Cooperlírios parece corroborar o argumento de Singer (2000) e
refutar, em termos, os resultados encontrados por Liboni (2002).
Conforme analisado no item Dinâmica organizacional e suas influências, o arranjo
organizacional cooperativista, somado à experiência de autogestão, influenciou a vida de seus
cooperados, por meio do desenvolvimento de alguns componentes educacionais e de
aprendizagem, tanto técnica como social. A despeito de não possuírem formação técnica, a
experiência de participar de assembléias, discutir criticamente a gestão e o trabalho em seu
cotidiano, desenvolveu, na maioria dos cooperados, consideráveis noções de administrão, as
quais se apresentaram como suficientes para uma boa condução gestora do empreendimento.
Os cooperados, inclusive, estruturam todo o modo de gestão, desenhando a divisão do
trabalho que os remunera de maneira mais justa, produtiva e motivadora.
Mas não são somente noções de administração que os cooperados desenvolveram na
vivencia da gestão do empreendimento. Outros pontos, relacionados com dinâmica social,
cívica e solidária, também se destacaram. Os cooperados manifestaram que, ao trabalhar na
Cooperlírios, parecem estar mais aptos a argumentar e participar, bem como apresentam
preocupação com o próximo e relativa capacidade de organização coletiva. Observações estas
suscitam debate interessante sobre o princípio democtico nas organizações, recuperando os
estudos de Pateman (1992). Esta autora apresenta um seminal estudo sobre a participação no
trabalho, abrindo o debate em torno dos reais princípios democráticos da autogestão versus as
iniciativas gerencialistas de incentivo à participação dos anos 1960, como o toyotismo, co-
gestão, entre outros. A questão que se coloca é: afinal, de qual participação estamos falando?
Em Participação e teoria democrática, Pateman (1992) revisita o papel da
participação nas teorias da democracia e faz contundente crítica às imprecisões com que este
conceito é utilizado nas análises de situões reais de trabalho pelos autores da
Administração. De acordo com a autora,
165
Não causa surpresa o fato de os autores de textos sobre administração não
discriminarem, com mais cuidado, as diferentes situações participativas’, quando se
considera o motivo pelo qual eles estão interessados em participação no local de
trabalho. Para eles trata-se apenas de uma cnica a mais entre outras, que pode
auxiliar no alcance do objetivo geral da empresa - a eficiência da organização... a
participão pode contribuir para o aumento da eficiência, mas o que importa é que
estes autores utilizam o termo ‘participação não apenas para se referir a um método
de tomada de decisão, mas também para abranger técnicas utilizadas para persuadir os
empregados a aceitarem decisões tomadas pela administrão (PATEMAN, 1992,
p. 95).
Nesses termos, Pateman (1992) analisa os tipos de exercício participativo dos
trabalhadores nas organizações, definindo três tipos-ideais: pseudoparticipação; participão
parcial; e participão plena. A pseudoparticipação se refere às estratégias gerencialistas que
se utilizam do exercício da participação de maneira superficial, com objetivo final de
persuadir os trabalhadores a aceitarem as decisões anteriormente já tomadas pela chefia. Os
trabalhadores sentem-se fazendo parte do todo, como sujeitos ativos nas decisões, mas, na
realidade isso não ocorre, trata-se apenas de um teatro”. A pseudoparticipação foi muito
utilizada pelos sistemas propugnados nos anos 1960, por se tratar de uma dramatização do
sentimento participativo, que, como analisado pela autora, acaba por promover, de modo
manipulador, a confiança e satisfação no trabalho, aumentando a eficiência da organização.
A participação parcial é definida por Pateman (1992) como um processo pelo qual o
trabalhador influencia a tomada de decisões, mas a decisão final não está em suas mãos. Há
um voto de minervapara a diretoria/chefia, que evidencia assimetria no direito à voz. E, por
fim, a participação plena apresenta-se como aquela que está um passo à frente da participação
parcial. A participação plena faz referência aos trabalhadores auto-regulados, tendo,
Neste tipo de situão... [a o existência de] dois ‘lados’ com poderes desiguais de
decisão, mas um grupo de indivíduos iguais que m de tomar suas próprias decisões
a respeito da atribuição das tarefas e execução do trabalho... tal forma de participação
consiste ‘num processo no qual cada membro isolado de um corpo deliberativo tem
igual poder de determinar o resultado final das decisões (PATEMAN, 1992, p.98).
Dessas categorias do exercício participacionista nas organizações (PATEMAN, 1992),
infere-se que a participação plena pode ocorrer, na prática, em organizações
166
autogestionárias, marcadas pelos princípios democrático e da igualdade (cooperativismo),
uma vez que a participação plena dos trabalhadores deve horizontalizar-se e trazer impactos a
toda organização. Nesse sentido, seu exercício depende de relações de trabalho entre iguais, o
que não se constata nas organizações mercantis, caracterizadas por contrato de trabalho entre
empregado e empregador.
Para Pateman (1992), o corolário que se tem do exercício da participação plena seria a
vivência democrática e igualitária ativa nas organizações, trazendo consigo um componente
pedagógico, tendo como resultado o incentivo à participão cívica. Promoveria, ainda, a
formão de um indivíduo engajado social e politicamente. Se por um lado, como
desenvolvido a partir do estudo de Pateman (1992), a participação plena é possível de ser
exercida e experimentada em modelos autogestionários, deve-se destacar que, empiricamente,
esses modelos o se concretizam na realidade atual.
Em análise mais crítica, poder-se-ia, no limite, concluir que a autogestão, enquanto um
sistema mais amplo, conforme desenvolvido por Proudhon e apresentado no item A
organização cooperativa, não ocorre na prática cotidiana de grande maioria de
empreendimentos cooperativistas, bem como na Cooperlírios. As razões para essa negativa
estão no fato de que a autogestão, enquanto exercício essencial e intensamente democtico,
para sua dinâmica plena, manifestar-se-ia em condições ideais de ruptura com capital, num
primeiro momento, e, posteriormente, pelo desenvolvimento educacional e libertador,
disseminado por toda a sociedade.
Como pontos para sustentação desse raciocínio de entraves à autogestão, argumenta-se
que, como analisado, um empreendimento solidário, apesar de retórica revolucionária em suas
bases doutrinárias, na prática, possui dinâmica reformista. Não se constata, dessa maneira,
ruptura com o capital e modo de produção capitalista, mas se inaugura reforma nas relações
de produção, que permite mais liberdade a seus trabalhadores. Segundo, a igualdade
167
pressuposta em seu modelo pode ser encarada, no limite, como utópica. Pois, mesmo que
rompido o capital, colocando todos trabalhadores em novo modo de produção, todo grupo
formado, inexoravelmente, teria seus líderes e liderados formados por questões carismáticas,
ideológicas etc. Há uma lei férrea da oligarquia, conforme desenvolvida por Michels (1910).
E, finalmente, tem-se a questão da maturão. Atualmente, os empreendimentos solidários,
como a Cooperlírios, possuem relativo turn over em seu quadro, impossibilitando a
experiência democrática e autogestionária sustentada no tempo pelo indivíduo.
Esses três pontos, apesar de desqualificarem a existência de autogestão no sentido
amplo, não descartam a existência de sua inspiração e impactos positivos, bem como as
conquistas benéficas aos trabalhadores e sociedade. O desenvolvimento do item Dinâmica
organizacional e suas influências apresenta eventos e influências na Cooperlírios que
corroboram, em parte, esse raciocínio.
A Cooperlírios consolida a existência de um princípio democrático, dado por
argumentão em assembléia e votação, que pode, sim, ser palco de experiência muito
próxima da participação plena (PATEMAN, 1992). Na Cooperlírios, mesmo sendo
experimentada somente a dinâmica de votação, assumindo a possibilidade de influência nas
decisões por determinados grupos (cooperados mais antigos; membros da Diretoria; e
Prefeitura), interpretou-se que, por meio dessa dinâmica assembleística, discussão e voto, há,
nessa Cooperativa, um processo democrático pedagógico positivo para sociabilidade, civismo
e participação de seus cooperados. Os cooperados sentem-se mais sociáveis, preocupados com
os demais, identificados com seu trabalho, aptos à ação solidária, entre outros. Fatores que
puderam ser constatados de modo geral no cotidiano dos trabalhos e nas narrativas dos
cooperados, mas, destacada e simbolicamente, quando da organização coletiva para
ressurgimento, das cinzas, de toda a organização.
168
Essas conclusões parecem corroborar os resultados encontrados por Oliveira (2005a),
no que concerne ao fator influente do modelo solidário de gestão. Pois, conforme seu estudo,
seu caso estudado teve sua identidade re-significada na trajetória de sua vida, sendo
influenciada pela sua inserção em organizações solidárias. Desse modo, a dinâmica de
organizações solidárias produziu condições objetivas e subjetivas que favoreceram
transformações direcionadas para humanização e emancipação.
6.1 Limitações do estudo e sugestões de continuidade
A reflexão acadêmica, antes de tudo, deve se apresentar como permeável a cticas.
Nesses termos, toda a produção deve assumir seu cater contributivo, alimentando o debate
e, principalmente, motivando a continuidade de novos estudos. É pela curiosidade e crítica
que a ciência se desenvolve. Ao se aventurar a interpretão de como se desenvolveu o
processo organizativo de um empreendimento solidário, De catadores de rua a recicladores
cooperados teve como objetivo, mais do que gerar conclusões definitivas, levantar indagações
e provocões que estimulem a produção de novos estudos.
Como se analisa em todo desenvolvimento da interpretação da Cooperlírios, algumas
questões centrais foram suscitadas por meio de eventos específicos e marcantes em seu
processo organizativo, desde sua formão e construção, até sua dinâmica organizacional
atual. Nesse sentido, é na fronteira das limitações dessa pesquisa, marcada pelas interrogativas
das questões aqui levantadas, que se encontram as motivações para futuros estudos.
Dentre as principais, encontra-se a relação poder público versus comunidade local na
formão de empreendimentos solidários, questionada por França Filho (2002). Por essa
relação, comoapresentado, surge o debate sobre novos modelos de gestão pública, capazes
de ser indutores de empreendimentos que promovam o desenvolvimento local com inserção
169
positiva dos indivíduos no mercado de trabalho. É necessário se explorar isso, considerando
outras experiências Brasil afora.
Outra questão é com relação à construção da particularidade da organização, a partir
de arranjo organizacional consolidado por uma doutrina, no caso, a cooperativista. Nesse
estudo, foi possível observar como os indivíduos, entendidos como cooperados, adaptaram à
sua realidade os preceitos doutrinários e organizacionais do cooperativismo. Esse processo
apresentou-se muito rico e aberto a diversos temas para aprofundamento no âmbito dos
estudos organizacionais em geral e, principalmente, na gestão humana e social. Cultura
organizacional, modelos de gestão, entre outros são temas válidos.
A dinâmica organizacional da Cooperlírios permitiu a interpretação de eventos densos
de significados que se apresentaram como portas de entrada interessantes para se refletir a
influência de um modelo de gestão na vida e no comportamento dos cooperados. Pelo caso
estudado, as influências observadas na vida dos cooperados parecem alinhadas com a
literatura do cooperativismo, Economia Solidária e participacionismo. Entretanto, fazem-se
necessários estudos focados especificamente nessa problemática, com vistas a observar
desdobramentos interessantes de determinados comportamentos organizacionais em
organizações democráticas para o indivíduo e, consequentemente, sociedade.
Desse modo, De catadores de rua a recicladores cooperados é um trabalho
exploratório que, em seu devir e resultado, espera ter contribuído com indagações e
provocações úteis e inspiradoras ao desenvolvimento da ciência, particularmente, dos estudos
organizacionais.
170
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