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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNIÇÃO E EXPRESSÃO
PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
JOSÉ ERNESTO DE VARGAS
DE HORÁCIO A DRUMMOND, O TEMPO DISPARA;
DE DRUMMOND A HORÁCIO, O TEMPO REPARA.
FLORIANÓPOLIS
2008
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2
JOSÉ ERNESTO DE VARGAS
DE HORÁCIO A DRUMMOND, O TEMPO DISPARA;
DE DRUMMOND A HORÁCIO, O TEMPO REPARA.
Tese de Doutoramento apresentada à
Universidade Federal de Santa Catarina, como
requisito para a obtenção do título de Doutor
em Literatura.
Orientador: Professor Dr. João Hernesto Weber
FLORIANÓPOLIS
2008
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4
AGRADECIMENTOS
A todas as pessoas, abaixo nominadas, o meu muito obrigado.
A Ernesto Pereira de Vargas e Maria Leofrida de Vargas, meus pais, mestres e
doutores na arte de viver, de amar e lutar pela vida. Obrigado por tudo. (In Memoriam).
A Elaine Terezinha de Vargas e Marcílio Martins de Vargas Neto, meus irmãos,
pelos muitos exemplos na vida, pelos exemplos de irmãos mais velhos, pela amizade, amor e
companheirismo.
À Laura Possamai, minha esposa, pelo amor e apoio incondicional, sempre; pela
paciência quando da solidão de mulher de pesquisador.
Ao João Hernesto Weber, orientador, pela sugestão do tema, pelo rigor e serenidade
na medida certa, ou, ao estilo gaúcho, pelos rumos, pelas esporas, pelos freios e rédeas.
Aos Professores Maria Lúcia de Barros Camargo, João Hernesto Weber, Cláudio
Celso Alano da Cruz, Carlos Eduardo Capela, Lauro Junkes, Simone Schmidt, Salma Ferraz
de Azevedo de Oliveira, pelas aulas e exemplos profissionais.
Aos Professores Zilma Gesser Nunes, Walter Carlos Costa, Rafael Camorlinga
Alcaraz, por suas leituras criteriosas e fundamentais para a finalização desta tese.
À Lúcia Rebello e Maria do Carmo Alves de Campos pelas contribuições e diálogo.
À Professora Tânia Oliveira Ramos e Elba Maria Ribeiro, secretária da Pós-
Graduação em Literatura, pelo apoio e ajuda constante.
Ao Professor Cláudio Celso Alano Cruz, pela leitura minuciosa da Arte Poética, de
Aristóteles em sua disciplina sobre Narrativa, bastante útil e proveitosa para o capítulo I da
tese.
À Maria Luiza Rosa Barbosa, pela revisão final.
Ao Cloves Cardozo Carreira, pela redação do Abstract.
Ao CORPO DE LETRA, pelas muitas experiências e muitos processos de fazer do
corpo letra e da letra, corpo; por possibilitar que eu, sem ser poeta, também faça poesia.
A Alai Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros pela parceria e amizade junto ao
Corpo de Letra e ao meio acadêmico.
E a todos que, de uma forma ou de outra, por conversas, apoio e troca de idéias
participaram desse processo.
5
RESUMO
O propósito desta tese é demonstrar, tal como o seu título sugere, que a poesia de Carlos
Drummond de Andrade busca na tradição lírica ocidental e dela traz elementos para o seu
fazer poético. A despeito de ser o poeta mineiro moderno e modernista, portanto,
supostamente contrário ao passadismo e classicismo. A obra de Horácio é o ponto de partida
para verificar-se a continuidade dessa tradição advinda dos gregos e o contraponto para
observarmos a manutenção da mesma na poesia de Drummond. O núcleo comum para a
análise da lírica desses dois autores, tão díspares e distantes espacial e cronologicamente, é o
tempo em sua natureza fundamental, a fugacidade. Para tanto, recupera-se primeiramente as
noções e os possíveis conceitos sobre a Lírica, expressos ou subentendidos nos estudos de
Aristóteles, Horácio e Longino, entre os antigos, e Boileau-Despréaux, Emil Staiger e outros,
entre os modernos. Depois, dentro do estudo principal, o tempo é visto como motivador do
famoso carpe diem horaciano nos livros de Odes e epodos, bem como motivador dos
seguintes subtemas decorrentes: a) a efemeridade da vida, b) a morte, c) a antinomia
juventude-velhice, d) os prazeres da vida, e) a eternização do poeta via arte. Na obra de
Drummond, Nova Reunião: 19 livros de poesia, observa-se a presença e a forma como é
mostrado o tempo, tal como os subtemas acima citados. Por fim, a conclusão é um confronto
entre as obras dos dois poetas. Verifica-se o que há de comum e/ou divergente no fazer
poético dos autores venusiano e mineiro em relação ao tema em questão.
Palavras-chave: Poesia lírica. Tradição ocidental. Tempo.
6
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to demonstrate as suggested by the title, that Carlos
Drummond de Andrade in his poetry finds in the western Lyrical Poetry tradition some
elements and brings them to his poetic works. Considering he was a modern poet and a
modernist it was expected he should oppose any past or classical influence.
Horace’s works are the starting point to notice the continuity of classical tradition derived
from the Greeks and the standpoint to discuss such tradition maintained in Drummond’s
poetry. The common focus to analyze lyrical trends of both authors is the chronological time
in its fundamental nature and its fugacity, although they are different and so distant from each
other in time and space. Therefore, it is done a review of the notions and concepts of Classical
Lyric as expressed or inferred by Aristotle, Horace and Longino, among ancient authors, and
Boileau-Despréaux, Emil Staiger and others among the modern ones. In Odes and Epodes, by
Horace, time is seen as a motivator of the famous carpe diem, as well as the motivation for
derived subthemes like: a) the ephemeris of life, b) death, c) the antonym youth-old hood, d)
pleasure of life, and e) the poet’s eternity through his art.
In Drummond’s works, above all in Nova Reunião: nineteen books of poetry clearly can be
seen the way in which the central theme is shown and also the subthemes already mentioned.
Finally, the conclusion is a confrontation between both works and poets. Commonalities and
divergences in the poetry of both the Roman and the Brazilian author are explored within the
proposed main theme.
Keywords: Lyrical poetry. Ocidental tradition. Time.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO_______________________________________________________ 11
1 A LÍRICA NAS POÉTICAS ANTIGA E MODERNA_____________________ 16
1.1 A POÉTICA DE ARISTÓTELES, HORÁCIO E LONGINO_________________ 16
1.2 A LÍRICA NA POÉTICA DE ARISTÓTELES____________________________ 18
1.3 A LÍRICA NA ARTE POÉTICA DE HORÁCIO__________________________ 20
1.4 A LÍRICA NO TRATADO DO SUBLIME DE LONGINO__________________ 22
1.5 A LÍRICA NA POÉTICA MODERNA__________________________________ 25
1.6 A LÍRICA NA POÉTICA DE BOILEAU-DESPRÉAUX____________________ 26
1.7 A LÍRICA NA OBRA DE EMIL STAIGER E EM OUTROS ESTUDIOSOS
MODERNOS__________________________________________________________ 31
2 DE HORÁCIO A DRUMMOND, O TEMPO DISPARA____________________ 43
2.1 A VISÃO DE TEMPO NA ANTIGUIDADE______________________________ 43
2.2 OS CICLOS NATURAIS_____________________________________________ 44
2.3 OS CICLOS CRIADOS PELO HOMEM_________________________________ 45
2.4 A DEGRADAÇÃO DO TEMPO_______________________________________ 48
2.5 NO TEMPO DE HORÁCIO___________________________________________ 54
2.6 A LÍRICA HORACIANA_____________________________________________ 60
2.7 O TEMPO NA LÍRICA DE HORÁCIO__________________________________ 64
2.8 O TEMPO E A TEMÁTICA DOS POEMAS______________________________ 65
3 DE DRUMMOND A HORÁCIO, O TEMPO REPARA_____________________ 76
3.1 A VISÃO DE TEMPO NA MODERNIDADE_____________________________ 76
3.2 NOVOS CICLOS___________________________________________________ 77
3.3 OS CICLOS CRIADOS PELO HOMEM_________________________________ 80
3.4 A DEGRADAÇÃO DO TEMPO_______________________________________ 82
3.5 NO TEMPO DE DRUMMOND________________________________________ 86
3.6 A LÍRICA DRUMMONDIANA________________________________________ 88
3.7 O TEMPO NA LÍRICA DE DRUMMOND_______________________________ 102
3.8 O TEMPO E A TEMÁTICA DOS POEMAS_____________________________ 114
4 DE HORÁCIO A DRUMMOND, O TEMPO DISPARA;
DE DRUMMOND A HORÁCIO, O TEMPO REPARA.___________________ 144
4.1 CLASSICISMO, HORÁCIO E DRUMMOND____________________________ 145
4.2 OS POETAS E A(S) CIDADE(S)______________________________________ 151
4.3 MODERNISMO, DRUMMOND E HORÁCIO___________________________ 154
4.4 HORÁCIO, DRUMMOND E O TEMPO________________________________ 158
4.5 O TEMPO________________________________________________________ 164
4.6 A ESTILÍSTICA DOS DOIS POETAS_________________________________ 177
REFERÊNCIAS______________________________________________________ 181
ANEXOS____________________________________________________________ 188
8
“Correm fugazes, ai Póstumo, os anos”.
(Horácio, II, 14)
“Não morrerei de todo; parte minha
à própria morte não será sujeita...”
(Horácio, III, 30)
“O rosto no travesseiro,
escuto o tempo fluindo
no mais completo silêncio.”
(Carlos Drummond de Andrade, “Desfile”)
“Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.”
(Carlos Drummond de Andrade, “Ontem”)
9
INTRODUÇÃO
O tempo é um tópico que não se costuma freqüentemente destacar na poesia do
poeta latino Horácio. Ainda assim, faz-se muito importante em sua obra, tendo em vista que é
a partir da percepção da sua passagem que o poeta latino destrava o relógio a nos despertar
para o seu famoso carpe diem. Ao observar a mudança das estações climáticas, ele impele o
leitor, com palavras, a reagir à ação devoradora de Saturno. Além do que, transformado em
cena por várias vezes, insere-se numa temática de longa tradição no Ocidente, iniciada com os
poetas gregos, subscrita por Homero, Hesíodo, Aristófanes, Safo e continuada depois em
Roma, por Catulo, Horácio, conforme Francisco Achcar
1
em Lírica e lugar comum. Antes de
tudo, é fruto de uma preocupação natural, ancestral e inerente à raça humana, pois remete
obrigatoriamente à brevidade da vida, à aproximação da morte e à conseqüente necessidade
de fazer algo antes que esta chegue.
Em contrapartida, na obra de Carlos Drummond de Andrade, o tempo é algo de
grande importância, uma das suas grandes marcas, como ele próprio registrou: “O tempo é
minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente.”(“Mãos dadas”). É
referência constante nos estudos de muitos de seus críticos. Em Drummond: a estilística da
repetição, de Gilberto Mendonça Teles
2
, por exemplo, “o tempo não é um tema de
Drummond, mas um elemento importante de sua obra”. Por sua vez, para Rita de Cássia
Barbosa
3
(Carlos Drummond de Andrade), “a preocupação com o tempo - passado, presente,
em função dos quais se delineia o futuro -, sendo um novo tema, une as diversas facetas da
poesia drummondiana. É, pois, o elemento aglutinador de todos os temas que, se cruzando ou
se alternando, percorrem a obra poética de Carlos Drummond de Andrade”. Para Antonio
Houaiss
4
, em sua introdução à Reunião: 10 livros de poesia, o autor mineiro:
[...] é homem do seu tempo, para o qual confluem os tempos pretéritos
naquilo que são conhecidos ou naquilo em que perduram, como presenças ou
resíduos, reais, imaginários ou fantásticos, o que faz do seu tempo presente,
ipso facto, uma realidade, uma imaginação, uma fantasia, lançados no futuro
1
ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português.
São Paulo: EDUSP, 1994.
2
TELES, Gilberto Mendonça. Drummond: a estilística da repetição. 2.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1976, p.22.
3
BARBOSA, Rita de Cássia. Carlos Drummond de Andrade: seleção de textos, notas, estudo
biográfico, histórico e crítico. São Paulo: Abril Educação, 1980, Literatura Comentada, p. 5.
4
HOUAISS, Antônio. Introdução à Reunião: 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio,
1976, p. xiii.
10
[...] é poeta do seu tempo no fato de que a matéria-prima do cotidiano se lhe
aflora a todo instante.
Antonio Candido
5
afirma que “a poesia social de Drummond deve ainda a sua
eficácia a uma espécie de alargamento do gosto pelo cotidiano, que foi sempre um dos fulcros
da sua obra e inclusive explica a sua qualidade de excelente cronista em prosa”. O tempo, o
“tempo presente”, manifestado pelo cotidiano, é, portanto, um dos pilares da escritura do
poeta mineiro. Assim como o passado, “através da família e da paisagem natal” é também
outra de suas inquietações. Para Candido
6
, sua poesia nutre-se de paradoxos, entre os quais:
“[...] a obsessão simultânea de passado e presente, individual e coletivo, igualitarismo e
aristocracia”.
O tempo visado neste trabalho não é, contudo, o presente, nem o passado,
tampouco o futuro, mas sim o tempo em seu caráter fundamental, o da irreversibilidade,
aquele que se esvai na passagem por entre os limites das horas, do(s) dia(s), dos anos, dos
séculos. Fugacidade esta que extrapola o plano meramente temático destes dois autores para
alojar-se no âmago de suas obras, no âmago da Lírica, porque é resultante de uma tradição
que os antecede. No caso do primeiro, advém proximamente dos gregos; no do segundo, vem
junto com o desenvolvimento da poesia lírica no ocidente.
Desta forma, além da análise do tópico acima levantado na poesia dos dois
autores, o objetivo primordial deste estudo é demonstrar que a poesia de Carlos Drummond
de Andrade repara, dirige o olhar para a história da Lírica ocidental e com ela estabelece
diálogo. Recondiciona e reelabora a tradição dessa lírica. Tradição de ser, acima de tudo,
fugidia, de não se fixar quase, nem a ideologias, nem a crenças. Tradição de ser individual,
fragmentada, pequena em relação ao mundo, ao Estado e, como conseqüência, crítica, porque
está distanciada e à margem da coletividade. O que será comprovado no primeiro capítulo,
que analisa as Artes Poéticas na Antiguidade e na Modernidade.
Amparado em parte pela reflexão de John Gledson
7
, que dentre outras coisas nos
faz ver o contraste entre a poesia drummondiana, essencialmente cética e niilista, e o
otimismo e ufanismo dos modernistas brasileiros, podemos perceber que muito de sua poética
nasce de dentro do poeta, não vem de fora para dentro, de movimentos estéticos para o artista
5
CANDIDO, Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 1979, p.108.
6
Ibid., p.112.
7
GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas Cidades,
1981.
11
Drummond com sua poética e, como todo poeta lírico, traz em si as tensões e as inquietudes
próprias do indivíduo, motivação maior da Lírica. E por isso questiona, oscila entre, permeia
questões e escolhas contrastantes (estéticas ou não), o histórico e o e eterno, o nacional e o
universal, o ‘eu’ e o mundo, a tradição e a inovação, “o tempo e o espaço”, “mudança e
permanência”, “forma e movimento”, “palavra e silêncio”, para relembrar Gledson
8
nestes
últimos pares. “No meio do caminho”, entre tais questionamentos, o poeta itabirano,
liricamente, posiciona-se constantemente para além de qualquer ideologia, indiferente aos
interesses da maioria, e justamente colocando em xeque a unanimidade, entre o histórico e o
eterno define-se muito mais pelo segundo. Entre o movimento modernista e a tradição
clássica, a opção é sempre a de fazer poesia e não política.
Assim como tantos poetas líricos, o que mais almeja é superar as condições
finitas, suplantar o tempo, eternizar-se de algum modo. Horácio, tal como Roma no plano
político e cultural, desejou eternizar-se por intermédio de sua literatura. E conseguiu;
Drummond, em escala menor, bem mais lírica, mais modesta, através da memória e história
de sua família, de sua cidade e a sua própria. Nem por isso, sua literatura foi menor, menos
ampla. Também fez literatura e da grande. Da mesma forma que Horácio, foi bem-sucedido.
Ao escrever a sua história, as suas memórias poéticas, ao relatar sua experiência com a
passagem do tempo em sua vida e obra, dialoga com a tradição literária do Ocidente, tanto a
do passado (remoto, no caso do mundo antigo, ou mais recente, no caso do Brasil) quanto a
do presente e certamente a do futuro. Mantém um diálogo com a tradição tanto na literatura
brasileira quanto na literatura ocidental, advinda, neste caso, de dentro para fora, das tensões e
inquietações internas, bem como de sua compreensão (mineira, brasileira, no século vinte), de
sua aceitação, negação e reelaboração de idéias e do status quo. Não o contrário, como
acontecera tantas vezes em nossa história literária, inclusive em 1922, em que a “tradição”
vem de fora para dentro, da Europa para o Brasil.
Por extensão, a investigação destas questões possibilita destacar a presença da
literatura e da cultura clássica greco-romana nos autores modernos, aqui representados pelo
mineiro, bem como o alcance e a influência do pensamento clássico no Ocidente, para além
dos limites espaço-temporais comumente estabelecidos. Se lembrarmos que essas duas
culturas antigas e já extintas, no campo espacial, ainda frutificam no campo temporal e
fundamentam a leitura e o pensar contemporâneo, como pode ser visto na literatura moderna e
na poesia de Drummond, reforça-se, assim, a importância e a necessidade do estudo das
8
GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas Cidades,
1981, p.175.
12
línguas e das literaturas clássicas na sociedade contemporânea. Razões estas que justificam o
esforço e o empenho desta análise.
O texto final está estruturado em quatro capítulos. O primeiro, A poesia lírica nas
poéticas antiga e moderna, recupera inicialmente as noções e os possíveis conceitos a respeito
da Lírica expressos, ou subentendidos, entre os antigos a partir dos estudos de Aristóteles,
Horácio e Longino. Depois, entre os modernos, a partir de Boileau-Despréaux, Emil Staiger e
de outros autores. Retoma, ainda, noções fundamentais, como o tamanho e a extensão da
poesia lírica, o comprometimento desta para com o coletivo e, como conseqüência, o status e
certo descomprometimento que ocupa junto à cultura político-social.
Com este capítulo, o que se quer destacar é a concepção e a visão que se costuma
ter da Lírica ao longo de sua história no Ocidente; visão que é reflexo e reflete diretamente
do/no seu modus scribendi, evidenciado depois nos capítulos seguintes, nas escrituras e
poéticas de Horácio e principalmente de Drummond, alvo maior desta análise.
O segundo capítulo, De Horácio a Drummond, o tempo dispara, centraliza o foco
na obra de Horácio, especificamente nos livros de Odes e Epodos. Consiste na exposição do
conceito e da visão de tempo e de sua degradação para o mundo antigo e para Horácio. Situa
historicamente o poeta e a sua lírica, para então analisar o tema do tempo e os subtemas
decorrentes deste: a efemeridade da vida, a morte, a antinomia juventude-velhice, os prazeres
da vida e a eternização do poeta via arte. Também analisa a posição do poeta no que tange à
individualidade, a fragmentação e subjetivação, às tensões do poeta frente ao mundo, frente
ao político, frente a Roma. (Apesar da sua voz estatal, como vate, Horácio trata, sobretudo e
preferencialmente, das coisas que lhe interessam: o amor, o vinho, a literatura.).
O terceiro capítulo, De Drummond a Horácio, o tempo repara, focaliza a obra de
Carlos Drummond de Andrade, em especial, Nova Reunião - 19 livros. Expõe o conceito e a
visão de tempo para a cultura ocidental, a partir do Cristianismo. Situa historicamente o início
da lírica moderna com a escritura de Charles Baudelaire e a influência desta na de
Drummond, bem como o momento histórico e a obra do poeta mineiro. Observa a visão de
gradação, de progresso e linearidade, iniciada com a cultura judaico-cristã, bem como a
degradação do tempo para os modernos e para Drummond. Analisa a presença do tema
central, o tempo e os mesmos subtemas de Horácio: a efemeridade da vida, a morte, a
antinomia juventude-velhice, prazeres da vida e eternização do poeta. Destaca a
individualidade, a fragmentação e subjetivação do poeta mineiro frente ao mundo. Busca
mostrar que, embora Drummond se consorcie em alguns aspectos e em alguns momentos aos
modernistas, há em sua obra um claro processo de subjetivação, individualização, de
13
fragmentação em relação a este coletivo, de afastamento desse coletivo, razão pela qual foi
muitas vezes criticado, razão de se defender aqui a sua inclusão dentro da tradição lírica no
Ocidente.
O quarto capítulo, De Horácio a Drummond, o tempo dispara; de Drummond a
Horácio o tempo repara, conclui o trabalho a partir do confronto entre as obras dos dois
autores, verificando o que há de comum e/ou divergente nas poéticas do mineiro e do
venusiano no que diz respeito ao tema central e aos subtemas deste estudo. Além do que,
recupera os dados e as análises feitas nos três capítulos anteriores a fim de defender a idéia
central deste trabalho, o diálogo e a integração do poeta com a tradição lírica ocidental.
14
1 A LÍRICA NAS POÉTICAS ANTIGA E MODERNA
“Aut insanit homo aut
uersus facit”.
(Horatius,
Satirae, 2, 7, 117)
Falar da lírica na Poética Clássica, a partir dos três principais nomes - Aristóteles,
Horácio e Longino, tal como me proponho a fazer aqui, é falar daquilo que eles não disseram.
Isto porque o que se sabe da poesia lírica na Poética da Antiguidade é depreendido muito mais
pelas lacunas destes tratados, pelo que deixaram de dizer do que pelo que seus autores
afirmaram propriamente. O fato é que nenhum dos estudiosos teve como propósito, em suas
obras, a análise da poesia lírica. Muito do que se conhece sobre a questão se deve a outros
textos e autores, e não necessariamente tratados de Poética. Nem por isso, entretanto, nos é
vedada a compreensão da percepção dos antigos sobre a lírica.
1.1 A POÉTICA DE ARISTÓTELES, HORÁCIO E LONGINO.
Aristóteles
9
, em sua Poética, como é sabido, dedica-se, sobretudo, ao estudo da
tragédia e da epopéia, gêneros que ele considerava superiores, por imitarem as ações de
homens superiores, homens de elevada índole. A versão da Poética que chegou até os nossos
dias não contempla a comédia, conforme ele adianta em seu texto que o faria. Quanto ao
gênero lírico, Aristóteles nem mesmo se propõe a descrevê-lo. Talvez por se tratar de uma
arte não totalmente imitativa das ações humanas, ou porque, quiçá, a entendesse como forma
ancilar das formas artísticas que considerava mais importantes: a trágica e a épica.
Para se ter idéia da sua despreocupação para com a lírica, observa-se que ele nem
faz menção direta ao termo. Quando Aristóteles se refere a ela, o faz pelos seus tipos
variantes: “poesia ditirâmbica”
10
, “hino”, “encômio”
11
, ou pelos instrumentos com que se
9
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores)
10
Ibid., p. 201.
11
Ibid., p. 203.
15
fazia acompanhar na época “aulética”, “citarística”, “siríngica”
12
. Por outro lado, o prestígio
dado à Tragédia e à Epopéia, em seu tratado, pode ser aferido pelo número de capítulos
dedicados a cada uma delas. Dos 38 capítulos, o autor trata da primeira em dezessete e da
segunda, em dez. A partir desses dados, percebe-se nitidamente que o autor grego, entre os
dois gêneros maiores, considera a tragédia superior à epopéia, como ele próprio afirma no
Livro XXVI: “Mas a tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopéia (chega
até a servir-se do metro épico)”
13
. A comédia, na versão que chegou às mãos da modernidade,
por sua vez, é mencionada apenas em quatro livros. A lírica nisso tudo não chega a ser nem
alvo de seu interesse, pelo que parece. Serve apenas de ponto de apoio, de contraste para a
compreensão daquilo que ele objetivava verificar.
A Arte Poética de Horácio também não privilegia a lírica como alvo principal de
sua preocupação. Nesta carta dirigida aos Pisões, o objetivo maior de Horácio é descrever e
pensar a arte dramática, o teatro. Novamente neste texto, a lírica é retratada indiretamente,
como contraponto, agora ao gênero dramático.
Longino, a quem Roberto de Oliveira Brandão
14
se refere como Anônimo em seu
Tratado, não prioriza nenhum gênero em específico, mas centraliza seu estudo no Sublime.
Mais uma vez a lírica serve de suporte para os exemplos a serem dados para a compreensão
do principal foco.
Quod erat demonstrandum. Demonstrado aquilo que os críticos antigos não
disseram da lírica em suas Poéticas, passemos agora a observar o que eles falaram diretamente
da mesma e o que podemos depreender pelas lacunas, a começar pelo crítico grego.
12
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 201. (Coleção Os Pensadores).
13
Ibid., p.228.
14
BRANDÃO, Roberto de Oliveira. “Três momentos da Poética Antiga”. In: A arte poética:
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. São Paulo: Cultrix, 1997.
16
1.2 A LÍRICA NA POÉTICA DE ARISTÓTELES
No capítulo I, parágrafo 2, Aristóteles cita a lírica pela primeira vez em seu texto,
ao referir-se a todas as artes poéticas como sendo imitativas e no que elas se distinguem. De
modo que a menção à lírica se dá por oposição aos outros gêneros a que se dedica: “Por
exemplo, só de harmonia e ritmo usam a aulética e a citarística e quaisquer outras artes
congêneres, como a siríngica; com o ritmo e sem harmonia imita a arte dos dançarinos,
porque também estes, por ritmos gesticulados, imitam caracteres, afetos e ações”
15
.
No parágrafo 4, do capítulo I, ele fala dos poetas imitadores, e aí, por oposição
aos poetas líricos: “[...] a uns de ‘poetas elegíacos’, a outros de ‘poetas épicos’, designando-os
assim, não pela imitação praticada, mas unicamente pelo metro usado”
16
.
No parágrafo 13, do capítulo IV, Aristóteles, discorrendo sobre a origem da arte
literária, diz que “o imitar é congênito no homem”, que o poeta faz a imitação de homens de
elevada ou baixa índole e que esta arte de imitar a elevada ou ignóbil índole humana está
presente em várias espécies de poesia, na trágica, na épica, na cômica e mesmo na que
modernamente denominamos lírica. “Porque tanto na dança como na aulética e na citarística
pode haver tal diferença [...]”
17
. Isto nos faz pensar que a lírica podia imitar igualmente ações
humanas nobres e menos nobres, elevadas ou ignóbeis.
Encontramos no parágrafo 16, do capítulo IV, um importante dado para a
compreensão da percepção que Aristóteles tinha da lírica:
A poesia tomou diferentes formas, segundo diversa índole particular [dos
poetas]. Os de mais alto ânimo imitam as ações nobres e das mais nobres
personagens; e os de mais baixas inclinações voltaram-se para as ações
ignóbeis, compondo estes, vitupérios e aqueles hinos e encômios.
18
Por este trecho, nota-se que o crítico grego não tinha, portanto, a lírica como arte
menor, uma vez que hinos e encômios eram composições poéticas cantadas, líricas, e que,
neste caso, imitavam ações nobres, tal como a tragédia e a epopéia.
No parágrafo 35, ao explicar o terceiro elemento da tragédia, o pensamento do
poeta, o estagirita revela alguns aspectos fundamentais para a compreensão da
15
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.201. (Coleção Os Pensadores).
16
Ibid., loc. cit.
17
Ibid., p.202-3.
18
Ibid., p.203.
17
desconsideração dos antigos críticos para com a lírica: “Nos antigos poetas, as personagens
falavam a língua do cidadão, e nos modernos falam a do orador”, e também “por isso não têm
caráter os discursos do indivíduo em que, de qualquer modo, se não revele o fim para que
tende ou qual repele”
19
.
Com base nisso, podemos pensar na importância que era dada ao espírito coletivo
em detrimento do individual. Se atentarmos para o fato de que a tragédia, a epopéia e a
comédia eram resultantes e resultados da Pólis, que refletiam e propagavam o caráter político
da Cidade grega de que eram porta-vozes, veremos que a lírica como manifestação subjetiva,
individual, advinda de um único homem não podia mesmo ter um status quo, não podia se
estabelecer como elemento de força e presença autônoma e representativa. Representativa do
quê? De quem? Do indivíduo? O que é o indivíduo para a Pólis? Se a tragédia e a epopéia,
assim como a comédia, eram resultantes da democracia grega, instrumentos educativos e
moralizantes do cidadão, voz da pólis, a lírica, tal como a conhecemos hoje, voz de um
indivíduo, não pôde ter de fato o menor espaço neste meio que era fundamentalmente
coletivo.
Fustel de Coulanges, em seu livro sobre A cidade antiga, sustenta que
A cidade havia sido fundada sobre uma religião e constituída como uma
igreja. Daí sua força; daí também a sua onipotência e império absoluto que
exercia sobre seus membros. Em sociedade organizada sobre tais bases, a
liberdade individual não podia existir. O cidadão estava, em todas as coisas,
submetido sem reserva alguma a cidade; pertencia-lhe inteiramente. A
religião que tinha gerado o Estado, e o Estado que conservava a religião,
apoiavam-se mutuamente e formavam um só corpo estes dois poderes
associados e confundidos formavam um poder quase sobre-humano, ao qual
a alma e o corpo se achavam igualmente submetidos.
Nada havia no homem de independente. O seu corpo pertencia ao Estado e
estava votado à sua defesa [...].
20
Corroborando esta idéia, o parágrafo 44 da Poética de Aristóteles aponta para uma
grandeza (em tamanho) que expressa a própria magnitude do cosmos, da Cidade e de um
poema, da seguinte forma:
Além disto, o belo - ser vivente ou o que quer que se componha de partes -
não só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não
seja qualquer. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um
organismo vivente, pequeníssimo não poderia ser belo.
21
19
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 207. (Coleção Os Pensadores).
20
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.276-7.
21
ARISTÓTELES, op. cit., p.209.
18
A lírica, assim, é um elemento menor, não na imitação das ações humanas, como
já vimos, mas na sua abrangência. O indivíduo é um ser muitíssimo limitado, pequeno e
frágil; não tem, de maneira alguma, a grandeza que tem a Cidade, que tem o coletivo. A lírica
expressa isso não apenas em sua extensão, mas também em seu estreitamento social. O
indivíduo, se não amparado, policiado pelo espírito coletivo, não só é pequeno como é
mesquinho, egoísta, pueril e repleto de cupidez.
Por estas constatações, diria que Aristóteles e seus predecessores não
consideravam a lírica como gênero, como a concebemos hoje, mas antes como uma arte a
serviço das demais poesias, as principais, as cidadãs. A lírica como arte ancilar a servir o
teatro através do coro, ou o rapsodo, na poesia épica.
O parágrafo 155 garante a idéia da dependência do indivíduo ao Estado. “Porque
o poeta deveria falar o menos possível por conta própria, pois, assim procedendo, não é
imitador”
22
, ou seja, o poeta deve ser porta-voz da Cidade, o mestre do povo, o vate a incitar
o amor dos cidadãos pela pátria, sob pena de não imitar a realidade, a vida política e a
democracia grega. Fica claro, mais uma vez, que neste cosmos coletivo, decididamente, não
há espaço para o indivíduo.
1.3 A LÍRICA NA ARTE POÉTICA DE HORÁCIO
R. M. Fernandes
23
, em seu comentário sobre a Poética de Horácio, afirma que
Norden atribui-lhe “um caráter isagógico”, isto é, considera a obra “uma introdução à poesia,
com a divisão ars + artifex”. A arte aqui é a literatura de um modo geral, privilegiando,
sobretudo, neste caso, a arte dramática. E o poeta é, portanto, o dramaturgo. Os respingos
sobre a poesia lírica recaem neste tratado em escala bem mais restrita que no de Aristóteles e
podem ser vistos nos versos de número 73 até 85, quando o poeta-crítico Horácio
24
faz
referência às variações de metros (dos “dísticos elegíacos” ou cantos lamentosos, segundo o
comentarista, do jambo da poesia de Arquíloco às variações de temas: “o cantar deuses e
filhos de deuses; o vencedor no pugilato e o cavalo que, primeiro, cortou a meta nas corridas;
22
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 240. (Coleção Os Pensadores).
23
FERNANDES, R. M. Rosado. “Tradução e comentário”. In: HORÁCIO. Arte Poética. Lisboa:
Inquérito, 1984, p.28.
24
HORÁCIO. Arte Poética. Lisboa: Inquérito, 1984, p.67-9.
19
os cuidados dos jovens e o vinho que liberta dos cuidados”
25
. Estes temas, aliás, eram
bastante caros ao poeta Horácio. Alude cá o crítico, nesta passagem, a alguns tipos de versos
que compõem a riquíssima variação da poesia lírica, bem como da temática, diferentemente
do número menor de versos e da limitação de temas dos gêneros trágico, épico e cômico. Esta
é a única manifestação direta e específica à lírica. O que ele trata além disso interessa mais
para a compreensão do fazer poético e da crítica para toda e qualquer arte literária, inclusive a
lírica. Como, por exemplo, o cuidado que o poeta/artista deve ter sempre com as palavras, e
com o amadurecimento da obra antes de ser publicada.
Tal como Aristóteles, Horácio vai ressaltar a importância da elocução, da escolha
e utilização das palavras:
No arranjo das palavras deverás também ser subtil e cauteloso e
magnificamente dirás se, por engenhosa combinação, transformares em
novidade as palavras mais correntes. Se porventura, for necessário dar a
conhecer coisas ignoradas, com vocábulos recém criados, e formar palavras
nunca ouvidas pelos Cetegos cintados, podes fazê-lo e licença mesmo te é
dada, desde que a tomes com discrição. Assim, palavras, há pouco forjadas,
em breve terão ganho largo crédito, se, com parcimônia, forem tiradas de
fonte grega.
26
Segundo Fernandes
27
, “na crítica literária, Horácio coloca-se entre os
modernizantes da escola de Catulo e Calvo e os arcaizantes admiradores de Lucílio”. Quanto
à função do poeta na sociedade:
[...] acha que este lhe pode ser útil, sem que, contudo, perca todo o seu
individualismo. Tudo o que apregoa, já Horácio pusera em prática na poesia
até então publicada e isto era a garantia de que os princípios que teorizava
levava, de facto, a uma poesia cuidada e de excelente nível, qualidade que
ele tanto prezava
28
.
Vemos, deste modo, o reforço da oposição dos pares: “lírica - individualismo”
versus “poesias épica e trágica - coletivismo”. Oposição que Vicente Cristóbal
29
, na
Introdução de Odas y Epodos, destaca como sendo parte da querela dos neotéroi, ou
modernizantes, para com os arcaizantes, por conta dos dois grandes conjuntos de obras em
25
HORÁCIO. Arte Poética. Lisboa: Inquérito, 1984, p. 59-61.
26
Ibid., loc. cit.
27
FERNANDES, R. M. Rosado. “Tradução e comentário”. In: HORÁCIO. Arte Poética. Lisboa:
Inquérito, 1984, p.19.
28
Ibid., loc.cit.
29
CRISTÓBAL, Vicente. Introdução da tradução espanhola. In: HORACIO. Odas y Epodos.
Madrid: Cátedra, 1997, p.26.
20
verso: o de Musa grauis (epopéia e tragédia) e o de Musa tenuis (epigrama, epílio, elegia e
lírica), esta com seu estilo refinado e seus temas de âmbito mais privado, aquela com a
gravidade da epopéia homérica, com suas amplas dimensões, com os personagens heróicos e
sublimes da tragédia.
1.4. A LÍRICA NO TRATADO DO SUBLIME DE LONGINO
A lírica em Longino, assim como em Horácio, é muito pouco citada.
Naturalmente, nestes dois casos, por serem obras centradas em apenas um ponto, o sublime,
no primeiro, e a arte dramática, no segundo. No tratado daquele crítico há duas menções à
poesia lírica, e novamente ela não é vista como gênero, mas como elemento auxiliar, como
instrumento de acompanhamento musical e suplementar ao corpo do poema (trágico, épico ou
cômico):
1) a lírica como elemento auxiliar às demais artes poéticas:
Não é verdade que a flauta inspira nos ouvintes certas emoções, deixa-os
como fora de si, possuídos do frenesi dos coribantes e, dando ao ritmo
determinada cadência, obriga o ouvinte, até um totalmente ignorante de
música a ritmar os passos e ajustá-los à melodia? E, por Zeus, os sons da
cítara, de per si em nenhum sentido, por modulação dos tons, pelo dedilhado
concordante e por fusão dos acordes, não deparam, como sabes, um
maravilhoso encantamento? (Se bem que aí temos imagens e imitações
espúrias da persuasão e não, como eu dizia, operações genuínas da natureza
humana). Então, ao nosso ver, o arranjo, que é certa harmonia da linguagem,
privilégio natural do homem, atingindo a alma mesma e não apenas os
ouvidos, move espécies variadas de palavras, pensamentos, ações, belezas,
musicalidades - coisas essas que conosco nascem e crescem; do mesmo
passo, por combinação e múltiplas formas de seus próprios sons, transmite à
alma dos circunstantes a emoção existente no orador, fazendo os ouvintes
comparti-las e, por gradação dos termos, edifica o sublime.
30
2) a lírica através de um subtipo seu, a ária:
“[...] assim como as pequenas árias distraem da letra os ouvintes forçando-os a
concentrar a atenção na música, assim a prosa cadenciada incute nos ouvintes, não a emoção
do discurso, mas a do ritmo [...]”
31
.
30
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A arte poética. São Paulo: Cultrix, 1997, p.108.
31
Ibid., p. 78.
21
Ademais, Longino reitera o que Aristóteles e Horácio já haviam proposto para se
pensar a arte de escrever, qual seja: os tipos de poetas e os seus pensamentos nobres ou
vulgares. “O sublime nasce de pessoas com pensamentos graves e não de mesquinhas e de
pensamentos rasteiros e ignóbeis”
32
.
A fim de refletir sobre os tipos de “pensamento” que caracterizam o tipo de poeta,
escreve o seguinte:
No estilo sublime não devemos descambar para vocabulário sórdido e
repugnante, a não ser constrangidos pela necessidade absoluta, mas conviria
usar expressões à altura dos assuntos e imitar a natureza, que, ao moldar o
homem, não dispôs em nossa face as partes vergonhosas, nem as excreções
do corpo, mas ocultou-as quanto pôde.
33
Para pensar a elocução do poeta: “o sublime é o ponto mais alto e a excelência,
por assim dizer, do discurso e que, por nenhuma outra razão senão essa, primaram e cercaram
de eternidade a sua glória os maiores poetas e escritores”
34
.
Assim como a arte é resultado não só da genialidade, do dom artístico do poeta,
mas do seu trabalho, da sua técnica, Horácio também assevera que “[...] compete ao método
estabelecer âmbito e conveniência, sem esquecer que, deixados a si mesmos, sem os preceitos
técnicos, sem apoio nem lastro, abandonados a seus ímpetos e arrojo deseducado, os gênios
correm perigo maior, pois, se muitas vezes precisam de espora, muitas outras, de freio
35
.
Da imitação de modelos já estabelecidos, Longino
36
diz: “[...] imitar não constitui
furto; é como um decalque de belos sinetes, de moldados, ou de obras manuais [...]. Belo, na
verdade, e merecedor de coroa de glória é esse combate em que mesmo em ser derrotados por
gerações anteriores não deixa de haver glória”. Percebe-se aqui a importância e o respeito ao
passado e aos antepassados para o mundo antigo, mesmo sob pena do que para nós,
modernamente, possa ser entendido como anulação.
Diante da análise de três importantes tratados sobre a poética, podemos constatar
que, embora o de Aristóteles tenha sido escrito dois séculos antes que os outros dois,
contemporâneos, o de Horácio e o de Longino, os textos são reiterativos, sobretudo na questão
de não apontar a lírica como gênero literário. Isto faz com que pensemos na simples vigência
da tradição, que vislumbrava a lírica não como arte independente e autônoma, tal qual é vista
32
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A arte poética. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 78.
33
Ibid., p.112.
34
Ibid., p.71.
35
Ibid., p. 72.
36
Ibid., p.85-6.
22
hoje, mas antes como ancilar, auxiliar dos dois grandes gêneros, o trágico e o épico. E a razão
disto pode estar em outra tradição, esta instaurada com/pela Pólis, que não via com bons
olhos, nem como manifestação legítima, a existência individualizada, o indivíduo, e por
extensão, o particular, o privado e o subjetivo, este último tipicamente lírico. Massaud
Moisés
37
, em seu Dicionário de termos literários, confirma a idéia de a lírica ser uma arte
suplementar, de estar a serviço das outras artes, incluindo aí o fato de estar umbilicalmente
ligada à música e à dança, ao dizer que “os críticos romanos, caudatários dos gregos,
enfatizaram-lhe o aspecto estético, ou seja, consideravam-na (a lírica) simplesmente uma
poesia de natureza musical, acompanhada pela lira e destinada ao canto”.
Situando no tempo, Aristóteles viveu entre os anos de 384 e 322 a.C., período em
que a pólis já havia sucumbido. Foi preceptor de Alexandre, o Grande, de modo que coabitou
o universo cosmopolita do helenismo, quando a antiga democracia encontrava-se esfacelada e
o poder nas mãos de uns poucos homens. Momento bastante propício para que a poesia lírica
e sua voz, por vezes individualizada, tomasse lugar. E é o que se vê acontecer. Surgem vários
poetas líricos a cantar sua arte independente das outras, não mais atrelada aos grandes
gêneros, agora em crise, após a derrocada da democracia de que eram resultantes. No plano
das idéias, Aristóteles representa essa mudança. Segundo Farrington
38
, “enquanto Platão
salientava a realidade do universo e permitia ao particular apenas uma existência indistinta e
derivada, Aristóteles mudou a ênfase. Foi o primeiro a ver a necessidade de considerar a
realidade como individual, e o indivíduo como real”. Para o filósofo, “a função do estado não
é esmagar o indivíduo, mas proporcionar-lhe o ambiente em que ele possa atingir o seu
potencial mais elevado”. Na esteira dessa compreensão, Epicuro vai organizar sua doutrina,
que, por sua vez, vai se expandir pelo mundo helenístico mais tarde, principalmente via
Roma, via poetas latinos, dentre eles Horácio. Essa doutrina seria, conforme Farrington
39
,
“virtualmente impossível encontrar qualquer ponto que não tivesse sido antecipado por
Aristóteles, [...] tal como o ponto fundamental da sua ética, a inferiorização da virtude pela
exaltação do papel do sentimento sobre o da razão”.
Horácio e Longino, por outro lado, embora quase três séculos depois, mesmo já
tendo sido contaminados pela arte helenística, pela poesia alexandrina, ainda se mostram
fortemente influenciados pelas concepções clássicas gregas e também não falam de um
gênero lírico. Antes reforçam a voz do passado, como é próprio do pensamento antigo, tal
37
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 14.ed. São Paulo: Cultrix, 1999, p.307.
38
FARRINGTON, Benjamin. A doutrina de Epicuro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968, p. 168.
39
Ibid., p. 109.
23
qual expusera Longino ao se referir ao constante “decalque” e à glória de perder sua própria
glória em detrimento da fama e da grandiosidade dos antepassados. Embora já se percebam
arroubos de individualismos – lembremos de Catulo e seu cancioneiro dedicado à Lésbia, de
Ovídio e a Arte de amar e o próprio Horácio e os seus autobiografismos –, a tradição ainda
grita mais alto, os purismos de Cícero e a política moralista e tradicionalista de Augusto
imperam e não possibilitam o estabelecimento de uma lírica totalmente individualista e
individualizante.
Syllas Mendes David
40
, em seu artigo “O livro na poesia de Roma do século I
a.C.”, como fetiche literário e alegoria do homem, reitera a idéia de individualismo da poesia
lírica:
A valorização do indivíduo, na cultura helenística, após a destruição da pólis
grega, com sua antiga ética, essencialmente comunitária, parece ter
franqueado o pleno acesso a essa porta de acesso ao “eu poético”, evidente
na escola de Calímaco e nos elegíacos de Roma. E os romanos tão bem
dotados de emotividade, até as raias do sentimentalismo, por vezes, como
ainda o demonstram muitos italianos atuais aceitaram a forma elegíaca,
como espaço poético para o pleno escancarar-se dessa porta para as próprias
emoções e feitos pessoais, no maneirismo alexandrino, precedente poético
do pleno individualismo do século XIX.
Com o fim da Pólis e do poder aristocrático no mundo antigo, que privilegiava o
coletivo acima de tudo, emerge a possibilidade de um individualismo. Semen iacta est. Está
lançada a semente do individualismo e do subjetivismo no solo fértil do mundo ocidental e da
poesia lírica também. Quiçá não estão aqui as raízes mais profundas do individualismo e da
solidão moderna que cada vez mais são presenciados nos dias atuais?
1.5 A LÍRICA NA POÉTICA MODERNA
Visto que da poética dos estudiosos antigos não se consegue extrair elementos
mais precisos para a compreensão da natureza da lírica, avança-se agora no tempo e busca-se
ajuda das formulações e conhecimentos obtidos mais recentemente, ao longo dos últimos
séculos entre estudiosos da era moderna.
40
DAVID, Syllas Mendes. O livro na poesia de Roma do século I a.C., como fetiche literário e
alegoria do homem. Cadernos de Letras da UFF, n.18, 1999, p. 106.
24
Se no mundo racional antigo, nas épocas de Aristóteles e nem mesmo na de
Horácio e de Longino, o solo para o pleno surgimento do individualismo, do sentimentalismo
e subjetivismo ainda não estava pronto, nota-se que algumas das sementes deixadas pelos
clássicos ainda geram seus frutos, que algumas idéias sobre a poesia lírica presentes nos três
estudiosos antigos ainda se fazem valer, servindo de raízes para a sustentação de alguns
conceitos de lírica para o mundo moderno. É o caso das idéias sobre o tamanho do poema,
inspiração e trabalho do poeta, o sublime, a escolha das palavras. Apesar de não termos
recebido deles nenhuma poética da lírica, nenhum estudo específico como os dos outros
gêneros, nenhuma menção a uma obra modelar como Aristóteles fizera a respeito da tragédia
e da epopéia, mesmo assim alguns conceitos de que nos utilizamos hoje para pensar a lírica
estavam lá, na Antiguidade, em nossos três autores, entre outros. É o que veremos a partir de
agora nas Poéticas de Boileau, de Emil Staiger e na reflexão de outros autores sobre o
assunto.
1.6 A LÍRICA NA POÉTICA DE BOILEAU-DESPRÉAUX
Do período clássico antigo, dá-se um salto de alguns séculos, até se chegar ao ano
de 1674, quando da publicação de A Arte Poética, de Nicolas Boileau-Despréaux
41
. Escritor
francês, Boileau viveu no limite de dois tempos, entre a concepção de dois mundos, o antigo e
o moderno. Nas palavras de Célia Berrettini
42
, foi “um definidor da doutrina chamada
clássica”. Tal como a Poética de Aristóteles, este trabalho de Boileau é “uma reflexão sobre
obras-primas anteriores, e não um código com leis a serem seguidas pelos renomados autores
que já então haviam composto suas imortais criações”, no que se distingue da de Horácio, por
seu caráter completamente prescritivo, embora a retome constantemente, visto que é a sua
referência maior.
Dos quatro cantos compostos por Boileau para o estudo da Poética, os dois
primeiros são os que mais interessam aqui. No canto I, ele reitera os textos clássicos no que
diz respeito as suas principais questões, mas ao mesmo tempo demonstra a proximidade com
o período e o pensamento romântico. Primeiramente e diferente dos antigos, ao modo
41
BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São Paulo: Perspectiva, 1979.
42
BERRETINI, Célia. “Introdução”. In: BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São
Paulo: Perspectiva, 1979, p.7.
25
romântico, ele trata da inspiração como dádiva, como dom atribuído pelos deuses, sem referir-
se à parcela de trabalho que cabe ao poeta, a que Horácio e Longino privilegiam. Em seguida,
ao abordar o bom senso que o poeta dever ter, indiretamente faz menção à originalidade,
objeto extremamente caro ao Romantismo:
Os autores, na sua maioria, levados por um ímpeto insensato, vão procurar
sempre o pensamento longe do bom senso. Acreditar-se-iam rebaixados, nos
seus versos estranhos, se pensassem que outro poeta pode pensar como eles.
Tudo deve tender ao bom senso
43
.
Quanto ao burlesco, Boileau assevera: “Qualquer que seja o tema sobre o qual o
senhor escreva, evite a baixeza”, atenuando imediatamente após, em favor de princípios já
modernos, “o estilo menos nobre tem, entretanto, sua nobreza”
44
. Do cuidado com o “bom
uso da língua”, ele sugere aos poetas cuidar da clareza, porque se “o sentido dos versos que o
senhor compôs tarda em fazer-se entender, logo meu espírito começa a distrair-se e, pronto a
desprender-se de palavras vazias, não mais segue um autor que deve sempre ser procurado.
[...] Antes, pois, de escrever, aprenda a pensar”, pois o “que bem se concebe, se enuncia
claramente”
45
. Que a língua seja usada com correção, pois,
Se o termo é impróprio ou a construção é viciosa, o senhor me impressiona
inutilmente com um som melodioso; meu espírito não admite um pomposo
barbarismo, nem o orgulhoso solecismo de um verso empolado. Resumindo:
sem a língua, o autor mais divino, por mais que se esforce, é sempre um mau
escritor.
46
A respeito da preocupação com o estilo, ele sugere a variação das palavras:
Quando escrever, varie sempre as palavras. Um estilo por demais igual e
sempre uniforme, brilha em vão aos nossos olhos e, obrigatoriamente, nos
adormece. Lemos pouco esses autores, nascidos para nos entediarem, e que
usando sempre o mesmo tom parece que está salmodiando.
Feliz é aquele que, em seus versos, com uma voz flexível, sabe passar do
tom grave ao doce, do divertido ao severo!
47
Como é possível verificar, as questões ainda são as mesmas abordadas pela
Poética clássica: a expressão, a escolha das palavras e do estilo, a eloqüência, o sublime.
43
BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.16. (Grifo
meu).
44
Ibid., p. 17.
45
Ibid., p. 19.
46
Ibid., p. 20.
47
Ibid., p. 19
26
E assim, após quatro textos, quatro tratados de Poética, finalmente encontram-se,
no segundo canto, menções, descrições e prescrições específicas à lírica enquanto gênero
(independente). No entanto, Boileau inicia o assunto in medias res, sem situá-lo com um
conceito de lírica. Assim, começa o texto já versando sobre a tipologia textual da Lírica. Em
verdade, novamente essa nomenclatura ainda não é empregada. O progresso está no fato de,
pela primeira vez, pelo menos para nós até aqui, surgirem as denominações dadas aos vários
tipos de poesia: o idílio, a elegia, a ode, o soneto, o epigrama, o rondó, a balada, o madrigal, a
sátira. Ficam lacunas no desenvolvimento de uma concepção desse gênero. Transparece a
idéia de algo velado, subentendido. Algo que todo mundo sabe o que é, mas ninguém ousa
dizer o nome, por pura desconsideração, ou por se tratar de um pecado, uma heresia. É
exatamente dessa forma que o autor dá início ao canto, sem que depois o introduza, talvez
imitando Horácio em sua carta aos Pisões, que já começa com um exemplo:
Tal como uma pastora que, no mais belo dia de festa, não carrega sua cabeça
com soberbos rubis, e que, sem misturar ao ouro o brilho dos diamantes,
colhe num campo vizinho seus mais lindos ornamentos, assim um elegante
idílio, com ar amável, mas com estilo simples, deve brilhar sem pompa. Sua
forma natural e espontânea nada tem de luxo e não aprecia o orgulho de um
verso presunçoso. Sua doçura deve afagar, agradar, despertar e jamais
espantar os ouvidos com palavras grandiloqüentes
48
.
Discorre sobre a natureza do idílio, sobre suas características, mas não afirma
categoricamente em que gênero da Poética se inscreve. E desse modo dá seqüência aos
demais tipos de poemas líricos.
O diferencial do estudo de Boileau em relação ao dos outros três tratadistas está
no fato de que este classifica tais tipos de poesia como pertencendo a um gênero menor,
secundário, num confronto com os dois grandes: o épico e o trágico. Além do que, subdivide
aqueles em graus mais ou menos elevados, com base nos mesmos pressupostos da divisão
maior: universalidade, coletividade, por oposição à especificidade e individualismo. E
acrescenta aos tipos antigos modelos de poemas mais recentes.
Junto ao grupo dos poemas mais elevados, ele coloca variantes antigas como o
idílio, a ode e a elegia, e variantes mais recentes, como o soneto, o madrigal. Entre os do
segundo grupo, estão a égloga, a epigrama e a sátira. Quanto ao rondó, a balada, o vaudeville
ele não os situa.
48
BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.29.
27
A respeito do “elegante” idílio, ele recomenda que “com ar amável, mas com
estilo simples, deve brilhar sem pompa”, descrevendo-o por sua “forma natural e espontânea”,
que “nada tem de luxo”, visto que é um tipo de poema que “não aprecia o orgulho de um
verso presunçoso”. De modo que sua “doçura deve afagar, agradar e jamais espantar os
ouvidos com palavras grandiloqüentes”
49
.
Da ode, diz que o seu tom elevado reafirma a temática que lhe é própria, a vitória
de atletas, os prazeres da vida, o amor, já referida por Horácio:
A ode, com mais brilho e não menos energia, elevando seu ambicioso vôo
até o céu, mantém através de seus versos, relação com os deuses. Ela abre
em Pisa, a barreira aos atletas, canta um vencedor empoeirado, no final da
corrida; leva Aquiles ensangüentado às margens do Simoide ou faz Escaut
inclinar-se sob o jugo de Luís. Há pouco, como uma abelha ardente em seu
trabalho, ela se vai para despojar as margens de flores. Pinta os festins, as
danças e os risos; celebra um beijo colhido nos lábios de Íris, que resiste
debilmente e que, por um doce capricho, algumas vezes o recusa, a fim de
que lho arrebatem. Seu estilo impetuoso, com freqüência, caminha ao acaso:
nela, uma linda desordem é um efeito de arte
50
.
Da elegia, o autor, tal qual fizera Horácio, traça a sua história, desde sua origem
funérea, “a plangente elegia, com longas vestes de luto e cabelos esparsos, sabe gemer sobre
um caixão”, até a sua condição atual, mais abrangente, em que “Pinta ela a alegria e a tristeza
dos apaixonados; afaga, ameaça, irrita, acalma uma amante”
51
.
Entre os tipos de poemas mais novos, o soneto é descrito por suas “rigorosas leis”
em que “dois quartetos de medida semelhante, a rima com dois sons ferisse oito vezes os
ouvidos, e que, em seguida, seis versos artisticamente dispostos ficassem, pelo sentido,
divididos em dois tercetos”, pelo banimento da licença poética e da repetição de palavras. Do
madrigal ele comenta apenas isso: “mais simples e mais nobre em sua construção, respira a
doçura, a ternura e o amor”
52
.
Os gêneros considerados menores da Lírica são retratados por Boileau da seguinte
forma:
A égloga, por pertencer à Lírica é menor, razão pela qual não convém ao
poeta, “desvairadamente pomposo, na sua veia indiscreta”, entoar “a
trombeta no meio de uma égloga”. Mesmo pertencendo ao conjunto da lírica,
pequeno por excelência, é considerado um dos menores entre os menores,
porque canta “os campos”, “os vergéis”, “Flora” e “Pomona”, deusas ligadas
à terra, ao chão, ao mundo rural, portanto, numa escala abaixo do monte
49
BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.29.
50
Ibid., p.30-1.
51
Ibid., p.30.
52
Ibid.,p.32.
28
Olimpo e da capital Roma, ou outras capitais, que lhe são superiores. Mas
nada que a arte de um grande escritor, aos moldes de Teócrito e Virgílio, não
possa superar e tornar “o campo e os bosques dignos de um cônsul”.
53
A epigrama pode ser compreendida como inferior aos outros tipos, dadas as
palavras do francês ao estágio contemporâneo desta em seu país:
[...] mais livre em sua forma mais limitada, é muitas vezes apenas um dito
espirituoso ornado de duas rimas. Outrora, as expressões engenhosas e sutis,
ignoradas por nossos autores, foram atraídas da Itália para nossos versos. A
vulgaridade, deslumbrada pelo falso adorno, correu para esse novo atrativo,
com avidez. O favor do público excitou sua audácia e um número impetuoso
inundou o Parnaso.
54
Quanto à sátira, Boileau não põe juízo de valor, apenas a historiciza em Roma e
salienta a sobreposição de valores sociais inferiores ante os superiores, o que nos faz pensar
que, pela maneira de ponderar tais valores na antiguidade, estaria vinculada a uma instância
menor:
O ardor de mostrar-se, e não de difamar, armou a Verdade com o verso da
sátira. Caio Lucílio foi o primeiro que ousou mostrá-la; apresentou o espelho
aos vícios dos romanos; vingou a virtude humilde contra a riqueza altiva,
pondo o homem da sociedade a pé e o escravo na liteira
55
.
Com Horácio, este modelo mostrou que “Não mais se foi fátuo ou tolo sem
impunidade” na velha Roma. Em Juvenal, suas “obras repletas de terríveis verdades, faíscam,
no entanto, com belezas sublimes”, “[...] todos os seus escritos, plenos de fogo, brilham por
toda a parte”. Na França de Boileau, apenas Régnier conservou ainda “novas graças” neste
“velho estilo”. O leitor francês, no entanto, não aceita de todo o espírito romano. “Ofende-o a
liberdade do menor sentido impuro, se o pudor das palavras não suavizar sua imagem”. O
próprio autor da Poética prefere “encontrar na sátira um espírito de franqueza” e evitar “um
descarado que prega o pudor”
56
.
Sobre os demais tipos de poesia contemporâneos ao estudioso francês, ele
arremata: “Todo poema é brilhante por suas qualidades particulares. O rondó, de origem
gaulesa, tem a simplicidade. A balada, submetida à suas velhas regras, deve muitas vezes todo
53
Ibid., p.30.
54
BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.32.
55
Ibid., p.33.
56
Ibid., p.33-4.
29
o seu brilho ao capricho das rimas”
57
. Encerrando o segundo canto, ele cita uma criação
francesa, o “vaudeville”. Que foi a variação de um traço da sátira, caracterizado como
“indiscreto agradável que, levado pelo canto, passa de boca em boca e vai crescendo no
caminho”, já que a “liberdade francesa se desdobra em seus versos: esse filho do prazer quer
nascer na alegria”
58
.
A fim de se concluir esta seção, o que se pode notar na obra de Boileau é a
manutenção das compreensões e concepções clássicas das poéticas antigas, como a
caracterização da lírica como gênero menor, porque não se configura como coletiva, não
enfoca, nem reflete valores da coletividade, valores tidos como superiores, melhores,
possibilitando-nos entender este gênero em evidência como que situado num plano de artes
menos prestigiadas, tanto quanto a comédia, alvo de indivíduos sem muita consideração, sem
categoria. A novidade pode estar na atualização de novos modelos poéticos, contemporâneos
de Boileau e no prenúncio de algumas idéias modernas, como a do poeta como um ser
inspirado e menos artífice.
1.7 A LÍRICA EM EMIL STAIGER E EM OUTROS ESTUDIOSOS MODERNOS
Embora Emil Staiger tenha escrito Conceitos fundamentais de poética pensando
principalmente a partir da/na lírica romântica, portanto moderna, é possível refletir sobre
algumas coisas já ditas pelos antigos, além de contribuir com novas idéias.
Um dos conceitos retomados em Aristóteles por Staiger, por exemplo, diz respeito
à extensão da lírica. Tal como o estagirita, no parágrafo 44, ao marcar a diferença da extensão
dos poemas: trágico, épico e “lírico”, Staiger afirma: “Toda composição lírica autêntica deve
ser de pequeno tamanho”
59
. Mais tarde, ele vai constatar que o tamanho da lírica faz parte da
própria essência e que caracteriza a fugacidade inerente a este tipo de poesia: “Mas já
sabemos como esta pequena extensão pertence à essência do lírico; toda canção é curta
porque só dura o tempo em que o existente (das Seiende) está em total harmonia com o
poeta”.
60
57
Ibid., p.33.
58
BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.34.
59
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975,
p.28.
60
Ibid., p.75.
30
O individualismo como elemento particular da lírica, já demarcado em
Aristóteles, no parágrafo 35, reaparece em Staiger, quando o estudioso alemão aprofunda a
questão e diz que, para além do individualismo, há no poeta lírico a solidão, que o poeta lírico
é um solitário:
Ao poeta lírico, propriamente, não importa se um leitor também vibra, se ele
discute a verdade de um estado lírico. O poeta lírico é solitário, não se
interessa pelo público, cria para si mesmo. Mas uma tal afirmação exige
esclarecimentos. Composições líricas também se publicam. A colheita de
anos e anos é reunida e entregue a um público.
61
E mais, reforça o que já havíamos dito sobre o espírito coletivo da antiga
sociedade grega, manifesto nas artes e na literatura: a “disposição anímica”, característica da
lírica, não permite a formação de uma comunidade. Assim, “A ‘disposição anímica’ é
inteiramente individual e só pode unir pessoas igualmente dispostas; não pode formar
nenhuma comunidade no sentido lato da palavra”
62
.
Constata que a poesia épica e dramática são históricas, políticas e coletivas ao
passo que a lírica é casual, depende da identificação de indivíduos, do sentimento comum
entre eles, da identificação entre autor/poema/leitor, depende da fagulha crispada pelo
encontro casual e positivo destes elementos. Escreve que “Uma epopéia prova a unidade da
existência, ou mais ainda a unidade de um povo. Um drama pode provar que um mundo
histórico é impossível”. “Epopéia e dramas têm, portanto, uma função histórica”
63
. Ainda
afirma: “Ninguém pode amadurecer graças à pura Lírica, porque esta é totalmente casual. Um
acaso não encerra responsabilidade”.
64
A idéia da lírica como casual é reiterada e melhor exemplificada na passagem a
seguir:
É o efeito de uma arte que nem nos retém como a épica, nem excita e causa
tensão, como a dramática. O lírico nos é incutido. Para a insinuação ser
eficaz o leitor precisa estar indefeso, receptivo. Isso acontece quando sua
alma está afinada com a do autor. Portanto a poesia lírica manifesta-se como
arte da solidão, que em estado puro é receptada apenas por pessoas que
interiorizam essa solidão.
65
61
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975,
p.48.
62
Ibid., p.73.
63
Ibid., p.75.
64
Ibid., p.73.
65
Ibid., p.49.
31
Das poéticas de Horácio e Longino, Staiger retoma a idéia de que, no processo de
criação, ao poeta não basta apenas a inspiração das musas, mas faz-se necessário
conjuntamente o trabalho, o esforço de fazer e refazer a escritura:
O elemento épico precisa ser recolhido, o dramático tem que ser arrancado à
força. O lírico, porém, é dado por inspiração. Esperar pela inspiração é a
única coisa que o artista lírico pode fazer. Quem, entretanto, toda vez espera
a graça, só pode abandonar-se também à graça e não terá direito de aguardar
nenhum efeito da força, da vontade nem da paciência.
66
Tal como Horácio, Staiger também dispõe da variedade de versos, própria da
poesia lírica: “Teríamos, então, de início, que distinguir entre a “varietas carminum” da
criação lírica e a constância do verso da épica”
67
,ou seja, se para epopéia existe
fundamentalmente o verso hexâmetro, para a lírica são inúmeras as possibilidades de versos, a
começar pela diversidade de música e poema de que o mundo clássico dispunha.
Dos conceitos que não se pôde entrever nas poéticas clássicas de que tratamos
inicialmente, mas que se costumam atribuir como sendo próprios da lírica, Staiger nos fala do
subjetivismo e da temática.
Na seção 6 de seu texto, ele trata do subjetivismo característico da poesia lírica,
marcado, sobretudo, pelo que ele chama de “distância-sujeito-objeto”:
O gênero lírico é subjetivo. Daí decorre uma subdivisão da poesia em: lírica
- poesia subjetiva; épica - poesia objetiva; drama - uma síntese de ambas em
que o método de reflexão idealista acha-se reafirmado segundo os dualismos
eu-não eu, espírito-natureza ou pela dialética hegeliana. Como sistema ou
metafísica, o idealismo não serve mais de base para as ciências humanas. Os
conceitos “poesia subjetiva” e “objetiva” permaneceram e enriqueceram seus
valores semânticos. Assim a objetividade da epopéia se explica por
apresentar esta a realidade como ela existe, independente da pessoa do poeta.
“Objetivo” significa então algo ‘imparcial e real’ (sachlich) e por isso “de
validade universal”. A Lírica deve mostrar o reflexo das coisas e dos
acontecimentos na consciência individual [...].
68
Quanto à temática da poesia lírica, Staiger, fundamentado na experiência da
poesia romântica alemã, faz referência ao tema mais recorrente na história deste gênero: o
amor. Tema que, por vezes, se confunde e é confundido com a própria espécie literária de que
tratamos:
66
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975,
p.73.
67
Ibid., p.76.
68
Ibid., p.57.
32
De todos os lados acena já agora o tema mais inesgotável da poesia lírica, o
amor. A maioria dos grandes líricos foram grandes apaixonados - como estes
de primeira categoria: Safo, Petrarca, Goethe, Keats. O poeta épico, em
geral, era um ancião mesmo quando ainda em verdes anos. Assustam-nos em
grandes autores dramáticos, como por exemplo Kleist e Hebbel, os traços de
barbárie, principalmente no traquejo com mulheres. O poeta lírico, não; ele é
“brando”. “Brando” no sentido de que os contornos do eu, da própria
existência, não são firmemente delineados.
69
E, principalmente, refere-se a um tipo de amor que, segundo Staiger, faz parte da
existência da lírica, o amor juvenil, amor intenso, inebriado e passageiro, efêmero tal como
toda a intensidade e inebriamento, presentes em muitos poetas da Antigüidade, entre eles,
Safo, Catulo e Horácio:
É verdade que é também possível outro tipo de amor, diferente desse amor
lírico, aquele do homem que se entrega e, entretanto, conserva-se ele próprio
e com isso apenas empresta duração a seu sentimento. Mas o amor da
juventude inebriada, o amor que se esquece do mundo, que se derrama e
pode derramar tudo que tem de seu, prende-se à esfera da existência lírica.
70
Por fim, Staiger apresenta outros conceitos que não foram expressos nas poéticas
antigas em questão, mas que se fazem importantes para entender a lírica e a sua tradição em
Horácio e Drummond. Refiro-me ao tempo da lírica e a sua fugacidade.
Staiger, ao falar da inexistência de distanciamento entre obra e ouvinte, entre o
poeta e aquilo de que ele poetiza, nos remete para a diferença entre o “eu” que o poeta lírico
quase sempre diz e o “eu” de quem escreve em diário. O segundo inclina-se sobre o passado
que deixou para trás, distancia-se dele e reflete sobre o mesmo. E quando não o consegue,
“seu diário soará lírico”. Com isso nos faz ver que a falta de distanciamento é algo importante
para se entender a lírica, o não-distanciamento para com o objeto de reflexão ou sentimento, o
não-distanciamento do tempo como presentificação do tempo presente. E mesmo o tempo
pretérito empregado é diferente do pretérito épico. Segundo ele, “o passado como objeto de
narração pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação”
71
,
isto é, o passado épico relembra algo distante no tempo e já encerrado, ao passo que o passado
lírico, ao recordar, presentifica o passado e reforça o sentimento presente. O passado épico é
memória e o passado lírico, recordação. Distinção que nos aponta para a etimologia das duas
palavras. ‘Memória’ enquanto monumento, enquanto algo que foi fatual, uma concretude
69
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.
65-6.
70
Ibid., p.67.
71
Ibid., p.55.
33
evanescida e ‘recordação’, a partir da sua raiz ‘cord’, revelando a lembrança mais sensível,
mais da alma, menos fatual que um monumento e mais presente e concreto por ser aqui e
agora, ou, ainda, a memória como história e a recordação como expressão da alma. Quando
ele explica sobre a “disposição anímica”, corrobora esta idéia:
O que a disposição proporciona não é “presente”[...] O conceito “presente”
deve ser tomado ao pé da letra. Deve indicar um frente a frente. Assim
podemos dizer que o narrador torna presente fatos passados. O poeta lírico
nem torna presente algo passado, nem também o que acontece agora. Ambos
estão igualmente próximos dele; mais próximos que qualquer presente. Ele
se dilui aí, quer dizer ele “recorda”. “Recordar” deve ser o termo para a falta
de distância entre sujeito e objeto, para o um-no outro lírico. Fatos presentes,
passados e até futuros podem ser recordados na criação lírica.
72
Acima de passado e presente, conforme o estudioso alemão, “muito
particularmente, o poeta [lírico] oscila entre presente e pretérito, como se isso não
importasse”. E se existe uma oscilação entre presente e pretérito para o poeta, então o tempo
da lírica não é exatamente o presente, nem tampouco o passado, mas o tempo pontual,
instantâneo, aquele que não nos permite segurá-lo e prendê-lo, um presente que é dinâmico e
rápido. Tão rápido que quando se diz, já não é mais. Um presente em que apenas a palavra
escrita e/ou memorizada é capaz de segurá-lo por um tempo maior. Nesse sentido, a lírica é,
por excelência, fugaz. Tal como ele mesmo diz: “Lírico é o que existe de mais fugaz; no
momento em que se torna perceptível o definido, o objetivo, finaliza-se a poesia mais fugaz, a
canção”
73
.
A propósito do presente, Jean Paul Sartre, no artigo “A temporalidade”, ao tratar
das três dimensões temporais, explicita a idéia de presente:
E o presente é precisamente esta negação do ser, esta evasão do ser, na
medida em que o ser está aí como sendo aquilo de que se evade. O Para-si é
presente ao ser em forma de fuga; o Presente é uma fuga perpétua frente ao
ser. Assim, determinamos o sentido primeiro do Presente: o Presente não é;
o instante presente emana de uma concepção realista e coisificante do Para-
si; é tal concepção que leva a exprimir o Para-si por meio do que é e daquilo
a que está presente – por exemplo, por meio deste ponteiro de relógio. Nesse
sentido, seria absurdo dizer que é uma hora da tarde para o Para-si; mas o
Para-si pode estar presente a um ponteiro que marque uma da tarde. O que
falsamente se denomina Presente é o ser ao qual o presente é presença.
É impossível captar o Presente em forma de instante, pois o instante seria o
momento em que o presente é. Mas o presente não é; faz-se presente em
forma de fuga.
72
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975,
p.59-60.
73
Ibid., p.68.
34
Mas o presente não é somente não-ser presente do Para-si. Enquanto Para-si,
este tem seu ser fora de si, adiante e atrás. Atrás, era seu passado; adiante
será seu futuro.
74
Por intermédio de Staiger podemos pensar, para além da pequena extensão formal
da lírica, na sua característica fugacidade e na sua limitação temporal e espacial porque “o
homem disposto liricamente é [...] bem limitado. Ele se considera uno com esta paisagem,
com este sorriso, com este som, portanto, não com o eterno, mas justamente com o mais
passageiro”.
75
Podemos pensar também na sua limitação histórica:
A poesia lírica é a-histórica, não tem causa nem conseqüências; fala apenas
àqueles que se encontram afinados em uma mesma “disposição anímica”.
Seus efeitos são casuais e passageiros como a própria disposição
(Stimmung).
A epopéia, ao contrário, tem seu lugar determinado na história. O poeta aqui
não fica sozinho. Está num círculo de ouvintes e lhes conta suas histórias.
76
Staiger, ao contrastar a lírica com a poesia épica e dramática, fala, de certa forma,
da sua limitação política:
Quem não se dirige a ninguém e se preocupa apenas com pessoas esparsas
que se encontram em idêntica disposição interior, não necessita da arte de
convencer. A idéia de lírico exclui todo efeito retórico. Quem deverá ser
percebido tão somente por pessoas analogamente dispostas, não necessita
fundamentar. A fundamentação numa poesia lírica soa tão indelicada quanto
a atitude de um apaixonado que declara seu amor à amada, expondo razões
lógicas para isso.
77
Entretanto, devemos lembrar, neste caso, que a visão de Staiger se fundamenta a
partir da poesia romântica alemã. Não corresponde ao que se concebe sobre a lírica, nem
mesmo ao seu histórico no Ocidente. Basta lembrar os serviços prestados à epopéia e à
tragédia grega, estas inteiramente ligadas e comprometidas com a democracia da pólis; da
propaganda política governamental nos versos de Horácio; da poesia engajada e até
panfletária e da própria poesia de Drummond, por vezes.
Desse modo, a lírica é, por si só, fugaz, passageira e breve porque limitada
fundamentalmente ao tempo presente, ao presente imediato, ao ‘agora’. O presente é o tempo
74
SARTRE, Jean-Paul. “A temporalidade”. In: O ser e o nada. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p.177.
75
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.
61.
76
Ibid., p.110.
77
Ibid., p.50-1.
35
mais fugaz porque só é concretamente presente o agora, tão logo a ação e a concretude do
‘aqui e agora’ se passem, se encerrem, tornam-se passado e apenas imagens e lembranças do
que foram. A lírica é fugaz no que diz respeito ao espaço presente, àquilo que está diante do
poeta e do leitor/ouvinte com quem compartilha, ao ‘aqui’ que é motivo do sentimento e
pensamento. Ao aqui e agora. É fugaz porque limitada ao universo solitário dos poucos que se
reconhecem e se encontram em “disposição anímica”. É fugaz por ser mais a-política e por ser
a-histórica, no caso de algumas poesias, e por oposição à épica e ao drama.
Para finalizar o capítulo, destacam-se ainda algumas reflexões de outros
estudiosos modernos que se dedicaram ao estudo da lírica. Massaud Moisés expõe um pouco
da evolução dos conhecimentos sobre a lírica, citando Hegel, que diz:
Ao distinguir a poesia lírica, criada e executada por uma só pessoa, e a
córica, entoada por um coro, os gregos apontavam o componente básico do
poeta lírico: a preocupação com o próprio “eu”. Na verdade, “o conteúdo da
poesia lírica é [...] a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos,
alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no
âmago deste conteúdo”; “com efeito, o que interessa antes de tudo é a
expressão da subjetividade como tal, das disposições da alma e dos
sentimentos, e não a de um objeto exterior, por muito próximo que seja.
78
José Guilherme Merquior, em A natureza da lírica, retoma a idéia de mimese, já
expressa em Aristóteles, para a poesia, estabelecendo, em parte, um contraponto ao que
muitos entendem dela sob este aspecto. “A lírica é uma forma de imitação, tem por objeto a
imitação de estados de ânimo”.
79
A. A. Mendilow fala até mesmo em sucessão de ações, mas
que, neste caso, estaria para além da simples idéia de causa e efeito de que tratava Aristóteles.
A sucessão na lírica seria composta de efeitos lingüísticos: semânticos, morfológicos,
fonológicos, sintáticos, rítmicos, emotivos e memorialísticos. Daí a riqueza e complexidade
da lírica:
Há na literatura emotiva, e especialmente na poesia, mais do que uma mera
sucessão de “ações” expressando uma sucessão de efeitos. Obtém-se um
grau de coexistência também na linguagem. Poder-se-ia traçar algo parecido
com uma progressão desde o simples uso linear ou melódico de palavras
menos evocativas, como na balada, até o uso harmônico de palavras,
imagens e símbolos com significados coexistentes em muitos planos. Poucas
palavras podem ser usadas na poesia em seu sentido puramente léxico. A
catacrese é a essência da poesia; mas há algumas palavras que, mais que
usualmente, são carregadas com valores emotivos e referenciais em virtude
78
HEGEL, apud MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 14. ed. São Paulo: Cultrix,
1999, p.293-4.
79
MERQUIOR, José Guilherme. A natureza da lírica. In:_______. A astúcia da mimese: ensaios
sobre lírica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 17.
36
do que formam os núcleos de complexos integrais de significados e
sentimentos. Simbolismo e alegoria, tropos e associações verbais e ecos,
ambigüidade, todos veiculam efeitos simultâneos em muito planos, através
do uso sucessivo de palavras. Uma função da rima reside em seu poder de,
relembrando as palavras que rimam, relembrar com isso o seu contexto.
Ritmos e metros, “padrões de pensamento” e de estancas trabalham para o
mesmo fim: envolvem outras partes da unidade e juntam-se à simultaneidade
de efeitos, assim veiculando a impressão de uma totalidade. O poema, então,
não se desdobra meramente. Implica a memória do que procedeu, e a
memória é uma sensação presente. A contribuição de qualquer parte para o
efeito total é mais do que seu próprio valor. Em cada parte encontra-se a
pressão de todas as outras partes.
80
Citando Atkins, Merquior reitera o que já foi apresentado aqui: “para os gregos, o
poema era indissociável da declamação, portanto, do elemento já cênico, viam na lírica, no
século IV, apenas um estágio anterior à evolução da tragédia, de que depois se tornara simples
forma ancilar. Era classificada como música e não como literatura”.
81
E citando Jakobson,
revela-nos sobre o tempo lírico: “a lírica é a primeira pessoa do singular no tempo presente.
Subjetividade e presente: dois aspectos de atuação da consciência reflexiva interiorizante”
82
.
Theodor Adorno, em Teoria estética, traz uma discussão importante a respeito da
questão dos gêneros literários e a dialética dos universais e dos particulares, o que nos ajuda a
entender as artes e as poéticas entre os antigos e o processo de evolução das mesmas até os
nossos dias. Talvez possamos encontrar nele a chave para compreendermos a passagem da
arte antiga fundamentalmente política e patriótica para uma arte mais individualizada e
subjetiva, própria da lírica, mas não só, visto que é o que caracteriza a própria arte moderna
de um modo geral:
Na Antigüidade, a concepção ontológica da arte, a que remonta a estética
dos gêneros, era acompanhada por um pragmatismo estético de um modo já
dificilmente realizável. Em Platão, a arte, como se sabe, é sempre avaliada
por um olhar oblíquo, segundo a sua presumida utilidade política. A estética
aristotélica permaneceu uma estética do efeito, sem dúvida da burguesia
esclarecida e humanizada, na medida em que busca o efeito da arte nas
emoções dos indivíduos, em conformidade com as tendências helenísticas da
privatização. Possivelmente, os efeitos postulados pelos dois eram já
fictícios na época. Contudo, aliança da estética dos gêneros e do
pragmatismo não é tão absurda como aparece à primeira vista. O
convencionalismo latente em toda ontologia conseguiu, já muito cedo,
acordar-se com o pragmatismo como universal determinação dos fins; o
principium individuationis não é apenas oposto aos gêneros, mas também a
80
MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Porto Alegre: Globo, 1972, p.30-1.
81
ATKINS, apud MERQUIOR, José Guilherme. A natureza da lírica. In:_______. A astúcia da
mimese: ensaios sobre lírica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 17-8.
82
JAKOBSON, apud Merquior, op. cit., p.25.
37
subsumpção numa práxis directamente dominante. A imersão na obra
particular, contrária aos gêneros, desvia-as do efeito disciplinar dirigido para
o exterior. Se a disciplina das obras, que elas exerciam ou apoiavam, se torna
a sua própria legalidade, então perdem o seu carácter autoritário e fruste
perante os homens. A atitude autoritária e a insistência em gêneros tão puros
quanto possível dão-se bem.
83
A importância desta manifestação de Adorno está no fato de nos fazer ver o
caráter autoritário, prescritivo e disciplinador das poéticas clássicas, que até há pouco tempo
ainda imperavam, em conformidade com o espírito universalista e, portanto, também
autoritário e prescritivo da idéia de gênero e de coletividade, frutos de uma sociedade antes
aristocrática e dominadora em seu meio, depois aristocrática e imperialista. A importância
desta fala de Adorno está no fato de nos atentar para um período de mudança histórica na
literatura antiga - o período helenístico, na medida em que ele marca a transformação de uma
arte e de uma cultura antes mais política, coletiva, para outra mais subjetiva, mais móvel e não
tão rígida, mas nem por isso menos autoritária e aristocrática: “Quanto mais o sujeito se
reforça e, complementarmente, as categorias da ordem social e as categorias espirituais delas
derivadas perdem a sua vinculatoriedade, tanto menos é possível encontrar um equilíbrio entre
o sujeito e as convenções. O crescente corte entre o interior e o exterior conduz ao derrube das
convenções”
84
.
Derrube de convenções que vai marcar o Modernismo enquanto cultura e
enquanto estética. No plano cultural através do rompimento com o passado, ou a
dessacralização do passado da civilização e do forte apelo ao presente e ao cotidiano. No
plano estético, além deste mesmo elemento, o gosto pelo cotidiano em oposição a tudo que é
tão somente sacralizado e sublime, e também pelo rompimento com a forma, algo bastante
caro às estéticas passadistas.
Neste caminho, a lírica teve um papel fundamental por ter sido o carro-chefe da
mudança na literatura, por ter sido o paradigma vanguardista da literatura moderna, conforme
atesta De Man,
85
citando os editores do Simpósio A Lírica como Paradigma da Modernidade:
“the lyric was chosen as paradigmatic for the evoloution toward modern literature, because
83
ADORNO, Theodor. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, [s.d.], p.228-9.
84
Ibid., p.230.
85
DE MAN, Paul. “Lyric and modernity”.In: Blindness and insght: essays in the rhetoric of
contemporary criticism. Minneapolis: University of Minessota Press, 1988, p. 169.
38
the breakdown of literary forms occurred earlier and can be better documented in this genre
than in any other”
86
.
Já em Roma, ainda no período helenístico, a Lírica e seus poetas foram os
responsáveis por mudanças no cenário. Oliva Neto
87
, ao referir-se a Catulo e aos neotéricos
ou poetas novos, diz que, “nos meados do século I a.C.”, este grupo “rompeu com o passado
literário romano”, representado por Lívio Andrônico, Névio e Ênio, e “incluíram a poesia
latina na literatura mais sofisticada do período, que era escrita em grego”.
E a grande responsável por essa inovação e pelo início do Modernismo é, sem
dúvida, a poesia francesa e, especialmente, Baudelaire. Ele é o responsável por um dos
grandes rompimentos da poesia moderna: o rompimento com o subjetivismo, ou a perda do eu
e da função representacional, tal como nos diz De Man
88
ao fazer referência ao estudo de
Marcel Raymond, denominado From Baudelaire to Surrealism:
[...] his main concern, understandably in an explicator of texts, is the
particular difficulty and obscurity of modern poetry, an obscurity not
unrelated to the light-symbolism of Yeats’s mirror and lamp. The cause of
the specifically modern kind of obscurity resides for him as for Yeats, in a
loss of representational function of poetry that goes parallel with the loss of a
sense of selfhood
89
.
Todavia, se inicialmente a poesia moderna marcou o rompimento com o
subjetivismo, posteriormente ela vai reconsiderar o papel desse “eu”, tal como De Man nos
faz ver: “modern poetry is a poetry that has become aware of the incessant conflict that
opposes a self, still engaged in the daylight world of reality, of representation, and of life, to
what Yeats calls the soul”
90
.
86
Ibid., p.169. (Tradução minha: “a lírica foi escolhida como o paradigma para a evolução da literatura
moderna, porque o fim das formas literárias ocorreram mais cedo e podem ser melhor comprovadas
neste gênero que em qualquer outro”.).
87
OLIVA NETO, João de. O livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo.
São Paulo: EDUSP, 1996.
88
DE MAN, Paul. “Lyric and modernity”.In: Blindness and insight: essays in the rhetoric of
contemporary criticism. Minneapolis: University of Minessota Press, 1988, p.171-2.
89
Ibid., p. 171 (Tradução minha: “sua principal preocupação, suficientemente compreensível para um
estudioso dos textos, é a dificuldade particular e a obscuridade da poesia moderna, uma
obscuridade não desconectada do espelho e lâmpada, simbolismo e Yeats. A causa do
especificamente moderno tipo de obscuridade reside tanto para ele, quanto para Yeats, na perda da
função representacional da poesia que anda paralela com a perda do sentido de subjetividade”.).
90
Ibid., p. 171. (Tradução minha: “a poesia moderna é uma poesia que se tornou atenta ao incessante
conflito que opõe o “eu”, ainda engajado ao mundo da realidade, da representação e da vida, ao que
Yeats chama de alma”).
39
A poesia moderna, contudo, não significou apenas rompimento, de algum modo
marcou também a reconciliação da modernidade com a história, com o passado, como salienta
Paul de Man: “the modernity of poetry occurs as a continuous historical movement. This
reconciliation of modernity with history in a common genetic process is highly satisfying,
because it allows one to be both origin and offspring at the same time”
91
.
Retomando a trajetória de Aristóteles, Horácio e Longino, mas desta vez partindo
por uma trilha diferente, balizada por Staiger, conclui-se o capítulo prefigurando o esboço de
um conceito ou de uma concepção de lírica, partindo do contraste entre esta e as artes épica e
dramática, visto que hoje a Lírica alcançou sua autonomia. É livre e independente das demais
para existir e sobreviver por conta própria enquanto literatura.
Assim, as poesias épica, trágica e cômica clássicas são marcadas por serem
poemas narrativos longos, por reproduzirem ações humanas e divinas com causa e efeito e por
serem miméticos. Imitam, conforme a índole do poeta, as ações de homens que possuem
caráter elevado ou não, como é o caso da codia. O que as distingue são os fatos de a
epopéia configurar os feitos heróicos representativos da grandeza de um povo ou de uma
pátria, enquanto a tragédia focaliza a fragilidade da condição humana e o seu destino, sempre
no sentido da fortuna para o infortúnio. A comédia, por outro lado, focaliza as fraquezas
humanas sob o viés do risível, contido no lado torpe do Homem. No que diz respeito ao
tempo narrativo destes textos, o tempo épico predominante é o passado rememorativo,
embora muitas vezes o poeta se reporte ao presente e ao futuro para marcar as conseqüências
dos feitos grandiosos dos antigos para o mundo presente. Já o tempo trágico e cômico é
predominantemente presente, porque o poeta dispõe as ações para o público em presença do
mesmo. A platéia é testemunha ocular das ações dos personagens, cujas ações o autor narra. O
passado e o futuro são os tempos de suas vidas.
A Lírica, por sua vez, é um poema curto e mimético, porém não de ações, mas
antes imitativo de um estado. Imita o estado anímico do poeta, que o momento por ele vivido
desperta. A poesia lírica imita, expressa e reflete o sentimento do “eu-lírico” para com o
objeto de seu olhar ou de seu sentir. O tempo da lírica é o presente, de forma semelhante ao
do teatro, de que se falou no parágrafo anterior, só que o presente aqui é compartilhado pelo
91
DE MAN, Paul. “Lyric and modernity”. In: Blindness and insght: essays in the rhetoric of
contemporary criticism. Minneapolis: University of Minessota Press, 1988, p.182-3. (Tradução
minha: “a modernidade da poesia ocorre como um movimento histórico contínuo. Esta reconciliação
da modernidade com a história, num processo genético comum, é altamente satisfatório porque
permite que sejamos igualmente origem e resultado / herança ao mesmo tempo”.).
40
poeta e pelo seu leitor/ouvinte. Entretanto, este presente é fugaz porque, diferentemente do
teatro, é a-histórico, não traz seqüência de causa e efeito. O presente é absoluto, breve e
passageiro, não deixa marcas concretas, monumentais, apenas sensíveis, portanto, também
passageiras. O passado existente na lírica é o da recordação, não o da memória. É o passado
das lembranças e sensações deixadas por esta e não da memória enquanto monumento. Por
isso, a lírica é fugaz. É fugaz como as sensações que expressa. Fugaz como as sensações
obtidas após uma dança, após a música, como os acordes que os seus instrumentos
proporcionavam e proporcionam. É fugaz como os temas que lhe inspiram: o amor, o vinho, a
juventude, a vida, o tempo.
Dos gregos aos modernos, de Aristóteles a Adorno, o tempo não pára, dispara.
Segue, a tudo devorando, e foge. Dos gregos aos nossos dias, passaram-se dois mil anos,
muitas coisas e idéias mudaram, muitas se mantiveram. Permaneceram alguns conceitos e
modificaram-se outros a respeito da Lírica e da Literatura. Mas, acima de tudo, e isso é o que
importa, sobrevive eternamente a fugaz Lírica de sempre.
Antes de encerrar, eu diria que um conceito não é algo absoluto, e nem poderia
ser, é antes a tentativa de melhor entender e explicar o objeto a ser definido. Staiger já nos
alertava para isso ao tratar dos conceitos fundamentais dos gêneros: “[...] cada poesia
participa, em maior ou menor escala, de todos os três gêneros literários, já que nenhum deles,
como obra artística baseada na língua, consegue furtar-se totalmente à essência da
linguagem”
92
. O mais importante é que a poesia existe, que sobreviveu a muitos conceitos,
modificou-se e mantém-se de pé e eterna, porque para o homem, conforme a epígrafe de
Horácio, só há duas possibilidades: “ou enlouquece, ou faz poemas”.
92
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.
72.
41
2 DE HORÁCIO A DRUMMOND, O TEMPO DISPARA.
“tempus edax rerum”
Ovídio
(Metamorfoses, 15, 235)
Antes que se trate do tema central deste capítulo, o tempo fugaz em Odes e
Epodos, de Horácio, é preciso determinar a concepção que os antigos tinham do tempo e a
forma como eles percebiam a sua passagem e degradação.
2.1 A VISÃO DE TEMPO NA ANTIGUIDADE
Em primeiro lugar, não é possível pensar na concepção dos antigos sobre o tempo
sem mencionar o mito de Cronos, ou Saturno para os romanos, o devorador das coisas, no
dizer de Ovídio, o devorador de tudo e de todos, devorador do poder do próprio pai Urano, ao
destroná-lo, devorador dos próprios filhos, conforme o mito. Como nos diz P. Commelin:
Em grego, Saturno é designado pelo nome de Cronos, que quer dizer o
Tempo. A alegoria é transparente nesta fábula de Saturno; este deus que
devora os filhos é, diz Cícero, o Tempo, o Tempo que se não sacia dos anos
e que consome todos aqueles que passam. A fim de o conter, Júpiter (único
filho a escapar de sua voracidade) o acorrentou, isto é, submeteu-o ao curso
dos astros que são como laços que o prendem.
[...]
Saturno era geralmente representado como um velho curvado ao peso dos
anos, erguendo na mão uma foice para mostrar que preside ao tempo. Em
muitos monumentos apresentam-no com um véu, sem dúvida porque os
tempos são obscuros e cobertos de um segredo impenetrável.
93
Do ponto de vista histórico, Jacques Le Goff, ao refletir sobre o que é história e
memória, deixou-nos algumas contribuições para pensarmos a visão que os antigos tinham a
respeito do tempo. Conforme o historiador francês, entre os antigos, os gregos concebiam o
tempo de forma cíclica, alternado por momentos de boas fases, a primeira e a segunda, as
Idades do Ouro e da Prata, e de más, as Idades do Bronze e do Ferro. Actuius teria atribuído a
93
COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], p.26.
42
Heráclito a paternidade da teoria dos ciclos, segundo a qual cada período teria uma duração de
18.000 anos. E “sob a ação do fogo, elemento fundamental, o mundo conhece, através dos
contrários em perpétuo fluxo de interação, fases alternadas de criação (génesis) e de
desintegração (ekpûrosis) que se exprimem por uma alternância de períodos de guerra e de
paz”
94
. Ficam assim também marcadas as alternâncias: das estações do ano, dos dias da
semana, do dia e da noite, das horas, da luz e da escuridão e, por extensão, da vida e da morte.
A partir daí, podemos pensar nos muitos ciclos, ou subciclos, advindos da teoria
de Heráclito e da percepção que o homem teve do tempo, entre os quais é possível dividi-los
em dois grupos fundamentais: os naturais e os criados pelo homem. Entre os ciclos naturais,
citaríamos o dia e a noite, o mês, as estações climáticas e o ano. Dos ciclos criados pelo
homem mencionemos: o das horas, da semana, do século e o mito das quatro idades.
2.2 OS CICLOS NATURAIS
Os ciclos naturais são os principais balizadores para a medição do tempo, através
deles o homem conseguiu e consegue demarcar de forma mais clara, mas nem sempre precisa,
os limites e a passagem do tempo. Desses balizadores, o dia foi certamente o primeiro a ser
observado pela humanidade. Entretanto, “a primeira divisão do tempo natural que se
apresenta aos homens, o dia, é uma unidade demasiado pequena para permitir o controle de
duração. Querendo encontrar unidades maiores, os dois pontos de referências naturais são a
Lua e o Sol”
95
. Então, o homem começa a olhar para a lunação e os seus quatro ciclos e
percebe a medida do mês. E o sol, por contraste, é também medido na relação com a
translação da Terra, com a observação das diferenças climáticas - as estações de chuva e de
sol, de calor e de frio, as estações amenas em comparação com as de temperaturas extremas.
Surge daí a idéia de ano.
Por outro lado, embora as medidas do tempo tenham como suporte os fenômenos
naturais, ainda assim a interpretação e a arbitrariedade do homem se fazem presentes. É o que
podemos ver no que diz respeito aos marcos do início de um ciclo. Se não, vejamos a partir de
Le Goff:
94
LE GOFF, Jacques. História e memória. 4.ed. Campinas: EDUNICAMP, 1996, p. 297.
95
Ibid., p. 495.
43
Na Grécia antiga, onde na época arcaica parece terem existido duas únicas
estações, a quente e a fria, o ano começava geralmente no início da estação
quente. Em Atenas, por exemplo, o Ano-Novo tinha lugar na Lua Nova
depois do solstício de Verão (fim de junho - princípio de julho), quando os
magistrados entravam em funções. Mas em Delos o ano começava depois do
solstício de Inverno e em Delfos depois do equinócio de Outono.
Em Roma, até 153 a.C., o ano começava a 1 de março e era festejado por
ocasião do primeiro plenilúnio seguinte sob a proteção da deusa Anna
Perenna. Em 153, o início do ano foi fixado em 1 de janeiro, data de entrada
em função dos cônsules.
96
Fustel de Coulanges, ao falar do calendário como sucessão de festas religiosas,
nos diz que este “não estava regulado nem pelas fases da Lua, nem pelo curso aparente do
Sol, mas tão-somente pelas leis da religião, leis misteriosas e só conhecidas dos sacerdotes”
97
.
Por vezes a religião encurtava o ano, por outras, alongava-o. Para se ter uma idéia da
arbitrariedade dos homens e dos povos para com as medidas do tempo, “o mês de maio tinha
entre os albanos vinte e dois dias e o de março trinta e seis”
98
. Cabe lembrar ainda que o ano
romano, antes da reforma Juliana, apresentava apenas dez meses, de que dezembro, o décimo
mês é testemunha. Também a inserção e auto-homenagem de Júlio César e mais tarde de
Augusto fizeram o ano do Ocidente terminar nominalmente no décimo mês, mesmo tendo
doze meses.
Os próprios termos evidenciam a idéia de ciclo. “Ano”, do latim annus apresenta
a idéia de círculo, portanto, ciclo e “mês”, do latim mensis que “originariamente significava o
‘mês lunar’, confundindo-se o nome do mês com o da lua”
99
.
2.3 OS CICLOS CRIADOS PELO HOMEM
Le Goff, ao falar sobre o calendário e o controle do tempo, diz que
[...] a conquista do tempo através da medida é claramente percebida como
um dos importantes aspectos do controle do universo pelo homem. De um
modo não tão geral, observa-se como numa sociedade a intervenção dos
detentores do poder na medida do tempo é um elemento essencial do seu
poder: o calendário é um dos grandes emblemas e instrumentos do poder;
96
LE GOFF, Jacques. História e memória. 4.ed. Campinas: EDUNICAMP, 1996,, p. 506.
97
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 172.
98
Ibid., loc. cit.
99
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 6.ed. 5.tir. Rio de Janeiro: FAE, 1992, p.50-1
e p.337.
44
por outro lado, apenas os detentores carismáticos do poder são senhores do
calendário: reis, padres, revolucionários.
100
E, citando Georges Dumézil, ele completa:
Depositário dos acontecimentos, lugar de potências e ações duráveis, lugar
das ocasiões místicas, o quadro temporal adquire um interesse particular para
quem quer que seja, deus, herói ou chefe, que queira triunfar, reinar, fundar:
ele, quem quer que seja, deve tentar assenhorar-se do tempo, tal como do
espaço.
101
Com o assenhoramento do tempo, o homem passou a definir e a determinar os
limites temporais, de que trataremos de agora em diante, a começar pelas horas, por uma
questão de critério, o mesmo utilizado anteriormente, partindo do menor para o maior limite
de tempo. Segundo Commelin, primitivamente, os gregos determinavam para as Horas não as
divisões do dia, como as conhecemos, mas as do ano. De acordo com a mitologia, as Horas
eram filhas de Zeus/Júpiter e de Temis, em número de três, Eunômia, Dicéia e Irene, ou a Boa
Ordem, a Justiça e a Paz. Correspondiam às três estações, as que conheciam então, a
Primavera, o Verão e o Inverno e tinham a atribuição de guardar as portas do Céu. Mais tarde,
acrescentaram-lhes o Outono e o solstício de inverno, criando duas novas Horas: Carpo e
Talate, a quem confiaram a guarda dos frutos e das flores. Posteriormente, quando passaram a
dividir o dia em doze partes iguais, os poetas multiplicaram o número delas até atingir o
índice de doze. Foram elas as encarregadas da educação de Juno. “Modernamente, se
representam as Horas, com asas de borboleta; ordinariamente Temis as acompanha; e elas
passam conduzindo quadrantes, relógios, ou outros símbolos das suas atribuições na fuga
rápida do tempo”
102
.
Os romanos, por sua vez, não importaram dos gregos o mito das Horas,
entretanto, Hersília, esposa de Rômulo, era tida como a divindade que presidia as Estações,
por isso chamada de Hora ou Horta. Entretanto, sua atribuição era de proteger a mocidade
romana e “inspirar aos moços, o amor da virtude e das ações gloriosas [...] Seus santuários
não fechavam nunca, símbolo da necessidade em que está o homem, dia e noite, de ser
excitado a fazer o bem”
103
. Daí o fato de também ser chamada de Estímula.
100
LE GOFF, op. cit., p. 486.
101
DUMÉZIL, apud LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: EDUNICAMP, 1996,
p. 486.
102
COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], p. 75-6.
103
Ibid., p. 309.
45
Pode-se pensar que a visão das horas, tal como as concebemos hoje, nos
primórdios do mundo antigo se fazia incompreensível dada a inexistência de instrumentos
capazes de medi-las de forma mais exata. Contudo, não é possível esquecer dos horologii
num período posterior, a clepsidra e o relógio de sol, que, embora não tão precisos como os
relógios mecânicos a partir da Idade Média, ainda assim cumpriam o seu papel de medir o
tempo.
Dos ciclos criados pelo homem, a semana, para Le Goff, foi “a grande invenção
humana no calendário”
104
. Segundo ele, parece ter sido inventada pelos Hebreus, que muito
deveram aos Caldeus, principalmente o que era ligado à astronomia. Embora 7 (sete) fosse um
número nefasto, havia um forte interesse pelos astros móveis, descobertos por eles e
chamados de planetas, a Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus, Saturno e o Sol, todos eles
ainda hoje homenageando os dias da semana em muitas línguas ocidentais. “Dos Hebreus
passou para a Grécia e para Alexandria, mas só se difundiu no Ocidente depois do século III
d.C.”
105
. A grande importância do advento da semana está na organização do ciclo humano
tanto do ponto de vista biológico quanto econômico, regularizando as necessidades do
trabalho e do descanso.
Uma das últimas criações humanas para a regularização dos ciclos temporais foi a
noção de século. Para os romanos saeculum significava em seu primeiro sentido geração, de
onde a idéia de “duração de uma geração, século, espaço de cem anos”
106
. Em sentido
figurado, longo período de duração, o tempo em que se vive, idade, época. Somente no
século XVI é que certos historiadores e eruditos dividiram o tempo, numa escala mais
abrangente, reunindo-o em períodos de cem anos, mas foi preciso mais dois séculos para que
a idéia se firmasse.
Encerrando este apanhado sobre a visão dos antigos sobre o tempo, é importante
que não se esqueça também das eras e das idades, de que trataremos no próximo ponto. Para
isso, citemos mais uma vez o nosso historiador francês:
O calendário necessita apenas de uma data de Ano-Novo, mas a história e
todos os atos e documentos que exigem uma datação põem o problema da
data no início do tempo oficial. Este ponto fixo, a partir do qual se inicia a
numeração dos anos, introduz no calendário um elemento linear. Este
conduz a uma idéia de evolução positiva ou negativa: progresso ou
decadência. O ponto fixo é a era, que é também o sistema de datação do
104
LE GOFF, Jacques. História e memória. 4.ed. Campinas: EDUNICAMP, 1996, p. 514.
105
Ibid., p. 515.
106
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 6. ed. 5. tir. Rio de Janeiro: FAE, 1992, p.
486.
46
tempo a partir de uma era dada e finalmente do próprio tempo. As eras são
em geral acontecimentos considerados como fundadores, criadores, com um
valor mais ou menos mágico. Até os revolucionários franceses consideravam
o início da nova era que queriam instaurar, um “talismã”. Tais
acontecimentos são às vezes míticos, outras vezes históricos.
107
Impõe-se, portanto, a necessidade dos homens de agregar ao tempo um
acontecimento que privilegiam como importante do ponto de vista histórico, portanto,
humano ou religioso – humano e divino; daí podemos lembrar o advento da pólis para os
gregos, a fundação de Roma, para os romanos, ou a fuga de Maomé, de Meca para Medina,
em 622, entre os muçulmanos; ou o nascimento de Jesus para os cristãos.
2.4 A DEGRADAÇÃO DO TEMPO
Visando à análise do tema central: o tempo na obra de Horácio, convém que se
pense antes na passagem ou degradação do tempo. E já de antemão ratifique-se que
degradação aqui, para pensarmos no nosso tópico, tem de fato o sentido de deterioração, de
diminuição gradual. O que advém da concepção dos antigos de um outro ciclo ainda não
mencionado, o das idades.
Segundo Le Goff,
Para dominar o tempo e a história e satisfazer as próprias aspirações de
felicidade e justiça ou os temores face ao desenrolar ilusório ou inquietante
dos acontecimentos, as sociedades humanas imaginaram a existência, no
passado e no futuro, de épocas excepcionalmente felizes ou catastróficas e,
por vezes, inseriram essas épocas originais ou derradeiras numa série de
idades, segundo uma certa ordem.
108
Os gregos e os romanos, por exemplo, imaginaram um primeiro período
maravilhoso, paradisíaco, em que a natureza provia todas as necessidades alimentares e a
felicidade humana vicejava. Conforme o poeta romano Ovídio, em Metamorfosis
109
, um
momento em que os homens não precisavam plantar, mas tão somente colher; a primavera era
constante; a paz e a justiça imperavam. Não havia a necessidade de os povos emigrarem. Os
107
LE GOFF, op. cit., p. 521.
108
LE GOFF, Jacques. História e memória. 4.ed. Campinas: EDUNICAMP, 1996, p. 283.
109
OVÍDIO. Metamorfosis. Tradução de Antonio Ramirez de Verger e Fernando Navarro Antolín.
Madrid:
Alianza, 1999, p. 60-70.
47
rios eram de leite e de néctar. A esta época denominaram Idade do Ouro. Contudo, a maldade
se fez mostrar no espírito dos homens e a natureza começou a fechar algumas de suas
torneiras. Ainda existia bondade entre eles, mas a justiça começava a declinar. Ovídio nos
descreve esta fase, reconhecida como Idade de Prata, da seguinte maneira: Júpiter divide em
quatro partes a antiga e constante primavera, transformando-a em quatro estações, as mesmas
que conhecemos e já mencionamos. Pela primeira vez os homens tiveram que se preocupar
com casas - cavernas e árvores, com as sementes e o plantio, com o jugo dos animais. A
terceira idade, a de Bronze, já foi mais cruel e predisposta às armas. A última idade, a de “pior
metal”, a de Ferro, irrompeu com todo tipo de crimes. Foi o fim do pudor, da verdade e da
lealdade. Em seus lugares, o engano, as fraudes, a inveja, a violência e o criminoso desejo de
possuir. Surgem as guerras, os assassinatos, a exploração da terra, através da mineração, a
necessidade de emigração. É o fim do paraíso e da paz.
Assim, conforme muitas vezes atesta Le Goff, podemos dizer que a passagem do
tempo para o mundo greco-romano se dá num sentido de degeneração, de decadência em
relação ao momento inicial da sociedade humana, o tempo escorre num sentido da felicidade
para a infelicidade. De onde, então, o passado é sempre o melhor momento e o presente
sempre inferior em relação àquele. Daí o culto ao passado, bastante comum entre os povos
antigos, sobretudo entre os gregos e romanos. Coulanges, ao referir-se à importância dos ritos,
à necessidade de repetir o mesmo ato que havia agradado aos deuses, reforça o espírito de
piedade
110
constante nesses povos, bem como a importância do passado para eles. Segundo
ele,
[...] no pensar destes povos, tudo o que era antigo se considerava respeitável
e sagrado. Quando algum romano queria falar de qualquer coisa da qual
muito estimava, logo dizia: Isto é antigo para mim. Os gregos utilizavam de
expressão equivalente. As urbes enraizavam-se ao seu passado, porque neste
passado se encontravam todos os motivos e todas as regras da sua religião.
111
Mas de tudo o que se disse, ainda não estaria completa a visão dos antigos gregos
e romanos sobre o tempo, se não falássemos das duas principais escolas filosóficas do período
helenístico, o epicurismo e o estoicismo. Segundo Jean Brun, em O estoicismo,
110
O termo piedade aqui não deve ser entendido da forma moderna, mas antes como o espírito comum
entre os antigos, principalmente entre os romanos. Piedade era, portanto, como sentimento de
obrigação e favor a ser prestado aos deuses, aos pais, à pátria, aos superiores, aos mais antigos.
111
LE GOFF, Jacques. História e memória. 4.ed. Campinas: EDUNICAMP, 1996, p. 183.
48
[...] epicurismo e estoicismo são dois naturalismos que nos pedem que
vivamos segundo a natureza e que cheguemos àquela ataraxia e àquela
ausência de perturbação sem as quais não haverá sabedoria. Talvez seja
possível dizer que estes dois sistemas têm, no fundo, uma intenção comum:
curar o homem do tempo; mas enquanto o estoicismo se propõe a chegar aí
pedindo ao homem que ame o tempo e que se submeta a ele porque, em
definitivo, ele exprime a vida do mundo, a simpatia dos seres e a vontade de
Deus, os Epicuristas, por seu lado, exigem ao homem que se agarre ao
instante, à evidência que ele nos dá e ao prazer que ele nos acarreta;
evidência e prazer que são critérios da verdade e do bem e que o sábio extrai
da sensação, que lhe oferece uma mensagem da natureza.
112
Estas duas escolas tiveram grande repercussão no mundo romano, e uma forte
influência na literatura latina, sobretudo na obra de Horácio. Ambas surgiram na Grécia e
foram disseminadas na mesma época, conforme O Dicionário de filosofia de Nicola
Abbagnano, compartilharam “a afirmação da questão moral sobre as teóricas e o conceito da
filosofia como vida contemplativa acima das ocupações, das preocupações e das emoções da
vida comum”
113
. Seus ideais são, portanto, a ataraxia, ou a tranqüilidade, a serenidade da
alma. O epicurismo, via prazer; o estoicismo, via apatia. A escola de Epicuro, baseada no
materialismo, está bem representada nas poesias de Horácio, através do seu carpe diem.
Possui as seguintes características: 1) sensacionalismo: “princípio segundo o qual a sensação
é o critério da verdade e do bem (este último identificado com o prazer)”; 2) atomismo:
fundamento do materialismo epicurista; é a forma como era explicada a “formação e
transformação das coisas por meio da união e separação dos átomos, e o nascimento das
sensações como ação dos estratos de átomos provenientes das coisas sobre os átomos da
alma”
114
; 3) indiferença para com os deuses: os epicuristas acreditavam na existência dos
deuses, mas não na sua intervenção no mundo humano.
Contrariamente, o estoicismo acreditava na providência divina. Deus seria uma
espécie de alma do mundo a reger os homens e a vida na Terra. Condenava totalmente as
emoções e exaltava a apatia (ausência de sensações) como ideal do sábio.
A partir das características apontadas por Abbagnano, principalmente o
sensacionalismo e o atomismo, obtemos algumas chaves para a compreensão do carpe diem,
bem como de seus subtemas na poesia de Horácio. Não havendo intervenção divina no mundo
dos homens, a vida é aquilo que a matéria e as sensações garantem. A vida é a percepção da
existência da matéria e das sensações. E, como parte do viver, há o processo de transformação
112
BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 67-8.
113
ABAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 2.ed. São Paulo:
Martins Fontes,
1998, p. 335.
114
Ibid., p.335.
49
da vida e/ou a morte, ou uma nova dissolução dos átomos. Transformação e dissolução que já
começa no nascimento do homem. Dissolução que é certa, embora não se saiba quando venha
ocorrer. Daí a necessidade e a urgência de gozar o dia. Daí o carpe diem horaciano.
Dito isso, entendo que a poesia de Horácio é fortemente epicurista. Há,
claramente, em seu texto uma busca pelo prazer proporcionado pelo encontro entre amigos.
Os convites de Horácio feitos a Mecenas, Virgílio e outros, a fim de compartilhar vinho e
perfumes o comprovam. O prazer da lírica enquanto lenitivo para as dores do mundo e da vida
também. Sua lírica demonstra um epicurismo tal qual o propagado pelo mestre grego, pautado
pelo comedimento. Horácio desaconselha as previsões do futuro, portanto nega o destino, não
exalta a riqueza, nem a embriaguez, nem os excessos em qualquer atitude; antes pelo
contrário, defende a aurea mediocritas, o equilíbrio nas emoções e nas ações. É o que procuro
mostrar na análise dos poemas mais adiante.
A essa altura, deve haver uma pergunta, mas, afinal, o que é o tempo? Resposta
que não é tão simples, tendo em vista que desde a antiguidade o homem tem refletido sobre o
tema, seja através da filosofia, seja através das artes. Desde então o homem tem tentado
respondê-la. Modernamente, outros pensares entraram na discussão, como a Física, a
Sociologia e outros, mas nenhum apresentou uma proposta que se possa dizer completa.
Tampouco cremos que isso seja possível, devemos antes colocar este questionamento junto ao
universo das dúvidas humanas insolúveis, assim como o que é a vida, o que é a morte.
Entretanto, algumas reflexões poderão nos ajudar na tarefa de analisar a poesia de Horácio e
de Drummond.
Um dos primeiros problemas a respeito do tempo é definir a sua natureza. Norbert
Elias, ao dar a sua contribuição Sobre o tempo,
115
relata que existem duas posições opostas
quanto à questão. Uma defende que “o tempo constitui um dado objetivo do mundo criado,
não se distinguindo dos demais objetos da natureza, a não ser o fato de ser imperceptível”. A
outra, que “o tempo seria uma maneira de captar os acontecimentos assentados numa
particularidade da consciência humana”, uma “forma inata de experiência, um dado não
modificável da natureza humana”. Preferimos a segunda posição. Parece-nos muito mais clara
a idéia de que o tempo faz parte da experiência humana, do que um dado objetivo do mundo
criado, mas imperceptível. Afinal, o homem só sabe da existência do tempo por intermédio de
sua ação sobre as coisas e os seres. Junto à questão “substância” e “acidente”, podemos dizer
que o tempo é um acidente, não existe enquanto ser real, essência, mas como resultado da
115
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 9.
50
percepção humana, visto que só é perceptível a sua natureza através de sua ação e movimento,
através de sua passagem, fugacidade, mudança, irreversibilidade sobre os dados objetivos.
Para Norbert Elias,
116
“o tempo é um meio de orientação”, assim como são os
mapas para a percepção do espaço geográfico. À página 60 da mesma obra, ele aponta para
um possível conceito de tempo: “o que chamamos “tempo” significa, antes de mais nada, um
quadro de referência do qual um grupo humano – mais tarde, a humanidade inteira – se serve
para erigir, em meio a uma seqüência contínua de mudanças, limites reconhecidos pelo grupo,
ou então para comparar uma certa fase, num dado fluxo de acontecimentos, com fases
pertencentes a outros fluxos, ou ainda para muitas outras coisas. É por essa razão que o
conceito de tempo é aplicável a tipos completamente diferentes de contínuos evolutivos.”
Meyerhoff, ao pensar O tempo na literatura,
117
junto com outros teóricos, como
Kant, observa que o tempo “é a mais característica forma de nossa experiência”, e esta noção
é “mais geral do que o espaço porque se aplica ao mundo interior das impressões, emoções e
idéias gerais, para o qual nenhuma ordem espacial pode ser estipulada”. Além disso, ele diz
que o conceito de tempo é inseparável do conceito do eu. O eu (pessoa ou individuo) “é
experimentado e conhecido somente contra o fundo da sucessão de momentos e mudanças
temporais que constituem sua biografia”.
No entanto, é preciso que se diga que a relação do homem com o tempo variou ao
longo dos séculos. Norbert Elias
118
ao falar dessa relação, entre a era antiga e o medievo diz:
“nas civilizações da Antigüidade, a sociedade não tinha a mesma necessidade de medir o
tempo que os Estados da era medieval”.
119
“Nessas sociedades, o tempo exerce de fora para
dentro sob a forma de relógios, calendários e outras tabelas de horários, uma coerção que se
presta eminentemente para suscitar o desenvolvimento de uma autodisciplina nos indivíduos”.
É o que se consegue perceber claramente na poesia de Horácio. Das muitas mudanças que a
percepção humana do tempo sofreu ao longo dos séculos, Meyerhoff cita, por exemplo, o
historicismo, a importância dada à História, como o substituto secular para uma dimensão do
intemporal, antes religiosa.
120
Outra situação apresentada por Meyerhoff
121
diz respeito ao tempo capitalista e o
tempo dos gregos antigos. Para o capitalismo, o tempo deve ser gasto com atividade,
116
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 33.
117
MEYERHOFF, Hans. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976, p. 1.
118
Ibid., p. 21.
119
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 22.
120
MEYERHOFF, Hans. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976, p. 85.
121
Ibid., p. 93.
51
produção e lucro incessantes, em contraste com a idéia grega de tempo através da
contemplação de verdades e valores eternos, ou então com a concepção medieval de resgatar
o tempo através da participação na Cidade de Deus e na obtenção da salvação eterna. Assim,
para os capitalistas, “poupar tempo” tornou-se “uma virtude tal como poupar dinheiro”. A
“perda de tempo” é pecaminosa, é a negação da produtividade e do valor. “O tempo se
tornava inútil tão logo fosse usado.” O passado estava morto e inutil. O passado é estúpido e
inútil. Apenas estudiosos, excêntricos e reacionários tinham interesse por ele, em preservá-lo
e cultivá-lo.
122
Drummond e o seu interesse pela memória entrariam neste grupo.
Além disso, segundo Elias
123
, há uma dificuldade em pensar o tempo,
considerando as diferentes maneiras de percebê-lo, de modo que podemos falar em tempo
físico, tempo social, tempo biológico. Meyerhoff fala de tempo na experiência e tempo na
natureza, tempo na Literatura, de que vai se ocupar acima de tudo, e tempo na Física.
Sobre o tempo na Literatura, que é o que mais nos interessa aqui, Meyerhoff
124
diz que este é o tempo humano. É caracterizado por ser “privado, pessoal, subjetivo,
psicológico”. É o tempo experimentado direta e imediatamente. É o tipo de experiência mais
comum na obra de Drummond. De modo distinto, o tempo na natureza, “não tem
experiência”, é “público, objetivo”.
Desta forma, o tempo na experiência literária pode ser: 1) físico, exterior, real,
objetivo e cronológico, a forma mais comum na lírica de Horácio. 2) interior, psicológico e
subjetivo, preponderante na obra de Drummond.
Por fim, para Meyerhoff
125
, o “tempo é carregado de “significado” para o homem
porque a vida humana é vivida à sombra do tempo; porque a pergunta o que “sou” apenas faz
sentido em termos do em que tenho me “tornado”. E nesse sentido, a idéia pode ser aplicada a
ambos os poetas, Horácio e Drummond.
2.5 NO TEMPO DE HORÁCIO
A fim de preparar o texto para a análise da poesia de Horácio sob o enfoque
proposto, creio que se faz importante situar o momento político e cultural do mundo romano
122
Ibid., p. 94.
123
ELIAS, Norbert. Op.cit., p. 78.
124
MEYERHOFF, Hans. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976, p.4.
125
Ibid., p. 25.
52
de que ele fez parte. Quinto Horácio Flaco viveu de 65 a 8 a.C., sob o período mais
exuberante da história de Roma, no que diz respeito às artes – mas não apenas; foi o século de
Augusto, para Paul Petit
126
, correspondente a uma Idade de Ouro da literatura. Inicialmente o
poeta, por ser republicano e ter lutado ao lado do desafeto de Otávio Augusto, Bruto, fora
considerado inimigo e, por conseqüência, teve seus parcos bens tomados pelo governo. Mais
tarde, porém, ele foi apresentado a Mecenas e introduzido na seleta corte de escritores e
artistas subvencionados pelo imperador. Essa corte que concedia terras e uma vida digna aos
seus partícipes e exigia-lhes em retribuição a divulgação e a propaganda da política imperial e
imperialista. Horácio foi, nesse sentido, um verdadeiro uates, de acordo com João de Oliva
Neto, ou seja, “o poeta que põe seu talento e obra diretamente a serviço dos valores morais
favoráveis ao bem estar do Estado, ciuitas
127
. Nem por isso devemos ver nos autores desse
período figuras totalmente submissas ao poder, tampouco, na literatura, uma arte panfletária.
Segundo Petit, “Virgílio e Horácio serviram a obra de Augusto sem se avassalar nem trair seu
gênio”. Este “refugia-se freqüentemente em sua propriedade de Licenza, longe das
solicitações de Mecenas, para lá cantar a fonte de Bandúsia e as delícias do ócio”
128
. Ovídio,
por sua vez, foi banido da Urbe. No dizer de Zélia de Almeida Cardoso, “um fato até hoje
obscuro o fez enveredar por novo rumo poético: Augusto o condena ao exílio na distante e
selvagem cidade de Tomos, no Ponto Euxino”
129
. E Tito Lívio “foi o cantor da grandeza
romana e sem jamais lisonjear Augusto coloca sua obra no contexto histórico que devia
valorizá-la [...]”
130
.
Da mesma forma, devemos lembrar também que, apesar deste momento histórico
ter sido o mais próspero da vida romana, o seu ápice foi o período em que a crise dos antigos
valores dessa sociedade começou a se pronunciar. Se não, por que razão Augusto teria tomado
tantas medidas a fim de resgatar a velha religião romana, restaurar o casamento e a família,
redirecionar o homem para o campo, para os valores de uma vida simples, como facilmente
entrevemos pela literatura moralista e moralizadora de Virgílio, de Horácio e, por vezes de
Tito Lívio?
Na longa história do mundo romano, a era de Augusto marca o início da terceira e
última fase dessa civilização – a primeira, a Monarquia, seguida da República e esta, do
126
PETIT, Paul. História antiga. 5. ed. São Paulo: Difel, 1983.
127
OLIVA NETO, João de. O livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo. São
Paulo: EDUSP, 1996, p. 36.
128
PETIT, Paul. História antiga. 5. ed. São Paulo: Difel, 1983, p. 266.
129
CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 86.
130
PETIT, op. cit., p. 266-7.
53
Império – bem como o pleno amadurecimento e o início do processo de decadência de Roma.
Se não, vejamos. Otaviano assume o comando da Urbe no final do século I a.C., após um
longo período de revoltas internas e guerras civis, como as disputas pelo poder de que
participaram Mário, Silas, Júlio César, Pompeu, Marco Antonio e o próprio Otávio. É o
momento de transição entre a República, já desgastada pela ação do tempo e pela inoperância
de um sistema não mais adequado ao governo da Domina gentium.
É a transição de um regime político supostamente mais democrático, porque
dividido entre vários homens (senadores, magistrados e “representantes das classes mais
baixas”, as assembléias), para outro mais centralizado e centralizador, sob o jugo de um
único, o imperador, portador do imperium e das representações máximas políticas, religiosas e
jurídicas, já prenunciadas anteriormente por César e efetivadas então por Otávio, agora
também Augusto.
Em termos econômicos, este período marca o esplendor do Império. Roma goza
os inúmeros bens adquiridos durante as conquistas: um vasto território, milhares e milhares de
escravos a produzir de tudo e em todas as esferas, da doméstica à industrial. São eles os
responsáveis pela extração dos metais, pela produção agrícola, pela administração desses
bens, pela educação dos filhos dos nobres, pela saúde dos cidadãos, pela locomoção terrestre e
marítima dos mesmos etc. Roma ostenta a riqueza com produtos advindos de diversas
províncias e importando outros das mais longínquas localidades do extenso mundo romano e
de além.
No plano da urbanização, significa o começo de uma extrema mudança. Otávio
jactava-se de ter recebido uma cidade de madeira e deixado para os romanos uma outra de
pedra. Em verdade, César já havia iniciado esse processo que vai se estender até dois séculos
depois. Para comprovar tudo isso, além das ruínas da cidade antiga, há registros de que
durante a República não eram permitidos prédios de teatros fixos, apenas em madeira e
desmontáveis. De qualquer maneira, podemos entender tais fatos como a concretização da
política e da idealização da Roma Eterna, consolidada até os nossos dias pelos diversos
monumentos públicos espalhados pela Europa, África e Ásia, muitos deles ainda em uso,
como teatros, vias, basílicas e aquedutos.
Por sua vez, quanto à retórica e à oratória, o Império caracteriza, sob certo
aspecto, um retrocesso. Se a República é testemunha de grandes embates no Senado, se as
escolas de retórica preparam os filhos dos nobres para assumirem o seu papel de comandantes
e portadores do discurso e da palavra, se antes havia tido o brilhantismo de Cícero, o mesmo
não podemos dizer do Império. Com ele, o Princeps, o primeiro dos cidadãos, traz para si
54
todos os poderes e a força verbal, a que divide tão somente com os seus vates, os
multiplicadores de sua voz.
Zélia Cardoso de Almeida nos diz que a eloqüência perde a sua razão de ser
quando o imperador assume, entre outras, a função de julgar. É quando
As escolas de retórica mudam suas diretrizes. Em vez de prepararem
oradores para o exercício do direito e da política, preparam pessoas treinadas
em exercícios verbais, destituídos de qualquer outra função que não seja a de
simplesmente exibir o manejo da língua em suas múltiplas possibilidades de
expressão. É o cultivo da palavra pela palavra que se manifesta nas suasórias
(exercícios escolares exortativos) e controvérsias (exercícios escolares
judiciários) – trabalho dos quais Sêneca, o Pai, conservou alguns exemplos.
Nesses textos podemos observar o gosto pela declamação, o rebuscamento
do estilo e o abuso de figuras e elementos ornamentais. O aspecto formal,
requintado, procura encobrir o esvaziamento do conteúdo. A preocupação se
concentra nos efeitos brilhantes e nas tiradas patéticas.
A grande eloqüência jurídica da época de Cícero vai reduzir-se a discursos
inexpressivos – perdidos, em sua grande maioria – e a peças solenes e
encomiásticas, os panegíricos.
131
Cessa a era dos grandes debates e dos questionamentos feitos diretamente ao
poder. O que vale é uma única voz, a do principal cidadão, multiplicada pelos artistas por
meio de suas artes. Às outras vozes só resta o elogio.
Assim, percebe-se que a Pax Romana instaurada por Otávio representa uma
grande transformação, uma dissolução de átomos. Representa os limites de um ciclo: a morte
do sistema republicano, parcialmente plural e pluralizado, por não atingir a todos os
segmentos sociais, e o surgimento do sistema imperial, totalizante e totalitário. Representa o
vigor e a pujança econômica e cultural, mas, ao mesmo tempo, mantém a distância social
entre ricos e pobres, agravada então pelo abismo sócio-econômico entre nobres e plebeus,
entre cidadãos romanos e os alijados da cidadania, entre escravos e homens livres. A paz
romana encerra o longo período de guerras sustentado pelo poder absoluto e pelo silêncio da
maioria e isso é um grande alento para os romanos. É o que atesta Moses Hadas:
O fato é que a República ruíra; as províncias eram mal administradas, os
exércitos indisciplinados, o Senado incompetente e corrupto. Roma
transformara-se num império e precisava de um imperador para dirigir seus
negócios. Augusto sabia disso, mas sabia também que os romanos jamais
renunciariam às tradições republicanas. Enfrentou essas exigências
contraditórias, preservando as formas das antigas instituições, mas
reservando para si mesmo os poderes reais do Estado. E assim criou um
novo edifício sob o pretexto de restaurar o antigo.
132
131
CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.158.
132
HADAS, Moses. Roma imperial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983, p. 57.
55
E, para tanto, modificou a estrutura do Estado,
Intolerante quanto à oposição pública, deixou ao povo um papel político
extremamente limitado. Controlou os exércitos, tinha no Senado papel
preponderante, dirigia com pulso de ferro os negócios do Estado e
aproveitou ao máximo seu enorme poder de patrocínio. Era a ditadura.
Augusto, porém, teve tino suficiente para envolvê-la na toga da tradição –
restaurando a República na forma, senão na prática.
133
No âmbito literário, este momento é igualmente marcado por importantes
transformações. Numa perspectiva mais ampla, o mundo mediterrâneo vive o período
helenístico, em que o cosmopolitismo grassa. Sobre isso, Ernst Curtius diz:
Na época do helenismo, a cultura grega toma nova forma. Caracteriza-a uma
educação cosmopolita. A poesia helenística é luxo de importação, produto de
povos estrangeiros. Desenraizada nacional e politicamente, procurou
defender, sob a proteção dos sucessores de Alexandre, a sua herança com
uma paciência de colecionador. Vive nas cortes, bibliotecas e escolas. De
variada maneira se associa às ciências (filologia, história natural, astronomia,
etc.). O “poeta erudito” (doctus poeta entre os romanos) é o tipo ideal. A
cultura torna-se livresca. Vive na tradição e da tradição. Por isso o livro
adquire, no helenismo, novo e subido valor, e conserva-o na época imperial e
no período bizantino. Em Roma, a pacificação do Império por Augusto
também abrira caminho a idêntico desenvolvimento. “As armas repousam” –
escreve Eduard Norden – “e calam-se as tempestades da guerra. Hermes e as
musas, protegidos por Augusto e seus grandes, podiam entrar triunfantes na
cidade. Não mais se cultivou a ciência, resignadamente, com o sentimento de
sacrificar algo de melhor: torna-se ela uma finalidade em si mesmo, o que
nunca antes acontecera nos Estados livres, gregos ou romanos. Certa vez,
Cícero foi censurado pelos próprios protetores porque, homem de grande
merecimento no Estado, desperdiçava suas energias no ensino da retórica à
mocidade. Depois não se ouviram mais quejandas censuras; ao contrário, as
ocupações literárias nobilitavam e davam direito – pelo menos no fim da
época imperial – a promoção no serviço do Estado. As condições estavam,
pois, precisamente invertidas. Mostra o fato seguinte quanto mudara o
sentimento da coletividade. No ano de 269, Dexipo, com grande coragem
pessoal e gênio estratégico, salvara Atenas, sua cidade natal, das hordas
germânicas. Sobre esse homem compuseram seus filhos uma inscrição
honorária em versos, que não foi conservada, e em que é louvado apenas
como rhetor e syngrapheus, ao passo que nenhuma palavra relembra seu
feito heróico, do qual ele próprio esperava “glória eterna”... É exatamente o
inverso do epigrama sepulcral, que Ésquilo compôs para si próprio: nele quis
perpetuar somente sua participação na batalha de Maratona e não sua poesia.
134
133
Ibid., p. 73.
134
CURTIUS, Ernest. Literatura européia e idade média latina. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional
do Livro, 1979, p. 316.
56
Desta longa citação, convém destacar as seguintes mudanças:
9 o abrandamento da idéia de nação, de um grupamento pequeno e forte, e, por
conseqüência, o surgimento da cultura cosmopolita, em que uma nação
sobrepõe-se às demais culturas;
9 a importância do livro, um único objeto (detentor da escrita e da memória) a
atingir cada vez mais pessoas individualmente, por oposição à oralidade,
circunscrita a um grupo menor, detentora da memória coletiva;
9 o indivíduo a reforçar a grandeza da nação naquele antigo sistema, e, ao
contrário, a pouca força do indivíduo, frente à grandeza de um Império;
9 a cultura das massas, dos grandes grupamentos humanos e cosmopolitas, em
detrimento das pequenas populações nas Cidades-Estado.
Em Roma, a geração anterior à de Horácio fora transformadora e inovadora. De
acordo com Oliva Neto
135
, um grupo de poetas, nos meados do século I a.C., “rompeu com o
passado literário romano, representado pela tradução da Odisséia de Lívio Andrônico (280-
204 a.C.), pela Guerra Púnica de Névio (269-201 a.C.) e sobretudo pelos Anais de Ênio (239-
169 a.C.)” e introduziu “em Roma certa poesia helenística que já se praticava desde o século
III a.C. no âmbito muito maior, hemisférico, do Mediterrâneo helenizado por Alexandre”.
Colocaram, pois, a poesia latina junto a uma literatura mais sofisticada, escrita em grego.
Assim, o tom jocoso atribuído por Cícero ao grupo “neotéricos”, “poetas novos”, pode ser
lido como verdadeiro, pois eles foram de fato novos e inovadores. O emprego de uma
linguagem não muito aceita, por não ser elevada, mas vulgar, raiando por vezes o
pornográfico a que Cícero muito criticou. Um pouco desse espírito Horácio se embebeu por
intermédio de Catulo. É o que se pode ver no tom satírico de alguns epodos, como o número
XIII, por exemplo. Sob este aspecto, Horácio se aproxima de algumas escritas
drummondianas, modernas, modernistas, que não negava a fala comum do povo, que lidava
com o chiste.
A respeito da geração poética de Augusto, Hadas diz:
Embora os louvores à Roma de Augusto estivessem sendo cantados por
poetas da estatura de Virgílio e Horácio, outros bardos escapavam aos redis
augustinos e os desafiavam. Eram os cantores das elegias de amor – Cornélio
Galo, Tibulo, Propércio e Ovídio – que pouco se importavam com os
assuntos do governo, dedicando-se à exploração de suas próprias
135
OLIVA NETO, João de. O livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo. São
Paulo: EDUSP, 1996, p.16.
57
sensibilidades e dando expansão às suas emoções, sem pensar em política.
136
Contudo, no que tange às odes de Horácio, eu entendo que boa parte dela se
enquadra no grupo dos outros bardos, como pode ser comprovado pelos próprios textos.
Também escapa aos redis augustinos e explora suas próprias sensibilidades e emoções, sem
fazer questão de pensar em política, mostrando antes os infortúnios e a dificuldade em viver a
vida pública, política, como o dizem os versos em que ele aconselha Mecenas a deixar as
chateações da Urbs e ir tomar um vinho com ele. E nisso se caracteriza como extremamente
lírico, individual.
2.6 A LÍRICA HORACIANA
A poesia de Horácio serviu-se, como é próprio do gênero lírico, de temática
variada, em que se destacam a juventude, os prazeres e as alegrias da vida, o vinho, o amor.
Em conformidade com a política de Augusto, manifestou tamm em suas composições o
civismo, o patriotismo, a reverência aos deuses e à mitologia. F. Villeneuve afirma que, em
suas odes, Horácio, “seguindo as tradições do gênero, cantou o vinho e o amor, mas uma
palavra apenas já servia para evocar a tristeza e os limites do destino humano”, e citando M.
Plessis complementa:
[...] uma palavra apenas bastava para dar a este prazer a reflexão sobre a
morte, para evocar-nos o comedimento, a prudência e a resignação para com
o devir. Através de conselhos, confidências e convites a amigos, as odes
transmitem-nos o seu pensamento epicurista, a exaltação à amizade, ao
vinho e ao amor, a verdadeira ataraxia
137
.
Como se pode notar, as incongruências de seu tempo, as inquietudes do/de poeta
se manifestam aí. Cantou os prazeres da vida, mas não pôde se furtar às obrigações, no caso,
cívicas. Foi em grande parte um uate, propagou os ideais da pátria, mas não escondeu seus
interesses particulares, literários, líricos.
136
HADAS, Moses. Roma imperial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983, p. 107.
137
VILLENEUVE, F. “Text etablit et traduit”. In: HORACE. Odes et epodes. Paris: Les Belles
Lettres, 1991, p.
xxxiv.
58
De acordo com a cronologia artística do poeta, escreveu primeiramente Epodos,
por vezes de tom satírico, e Sátiras. Num segundo momento, as Odes e as Epístolas. E, por
fim, Cântico Secular, escrita a pedido do governo para ser apresentada durante os Jogos
Seculares, no ano de 17 a.C..
O tempo se constitui numa temática de grande força e importância na obra de
Horácio. É um elemento que se faz presente constantemente nos poemas por meio de
marcadores que representam o seu passar. Nas odes, é bastante freqüente a referência às
mudanças de estação, seja através da descrição da paisagem: plantas verdejantes, folhas que
caem das árvores, rios congelados etc., seja através do espírito dos homens decorrente dessas
mudanças.
Bento Prado de Almeida Ferraz, nas notas de sua tradução de Odes e epodos, ao
traçar a biografia de Horácio, afirma: “este se distinguia de Virgílio profundamente. Enquanto
seu amigo tinha os olhos voltados para o passado, ele vivia do presente: era o homem do seu
tempo”
138
. O que nos faz recordar, sem dúvida, de Drummond, da sua preocupação para com
o tempo, para com o tempo presente. A idéia é corroborada pelo fato de que o presente é, em
essência, o tempo da lírica, visto que o poeta olha para o mundo, para a vida e expressa o seu
sentimento “aqui e agora” para com o objeto do seu olhar. Achcar, citando H. Fränkel, diz: “a
lírica se põe a serviço do presente, do ‘dia’, e é ‘efêmera’”
139
. É preciso salientar, entretanto,
que este sentimento hic et nunc expresso pelo poeta é, antes de tudo, resultado de um olhar
que pode se dar em direção a um passado, ou mesmo a um futuro. Pode ser, também, a
presentificação de uma lembrança, portanto, de um passado, ou a presentificação do desejo de
uma realização futura, como pode ser percebido em Horácio e facilmente em Drummond. O
sentimento expresso é presente, mas não necessariamente o objeto desse olhar “vive” nesse
tempo. Em oposição, o tempo da épica é o passado. É para ele que o vate se volta a fim de
exaltar os grandes feitos de uma nação.
Acrescente-se a isso a trajetória artística de cada um. Virgílio escreveu a
grandiosa epopéia nacional romana, Eneida. As Bucólicas, embora escritas sob o gênero lírico
e retratem o presente dos pastores no campo, visam a mostrar a beleza e a tranqüilidade da
antiga vida campestre romana. Mas, sobretudo, visam a remeter para o ideal de paz e
felicidade que a velha Roma havia experimentado enquanto pequena aldeia agropastoril da
região do Lácio, bem de acordo com a política da época de resgatar os antigos e bons valores
138
FERRAZ, Bento Prado de Almeida. “Tradução e notas”. In: HORÁCIO. Odes e epodos. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 247.
139
ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar comum: alguns temas de Horácio e sua presença em
português. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 60.
59
do passado e implementar a volta do homem para o campo. Horácio, por sua vez, enveredou
pelos caminhos das sátiras e dos epodos, poesias de teor irônico e crítico, dirigidas à
sociedade da época de quem retratava os vícios, retiradas do período vigente e dirigidas para o
seu tempo, portanto.
A preocupação do poeta com o presente vai resultar nos famosos versos da
décima primeira Ode, do livro I, no popular até hoje carpe diem. Apesar de terem entrado
para a história como sendo de Horácio, Achcar, ao apontar para as origens e a genealogia do
carpe diem, mostra-nos sua longa tradição na lírica ocidental que passa por Homero, Hesíodo,
Aristófanes, Semônides de Amorgos e Alceu, na Grécia, e por Catulo em Roma. E prossegue,
“muito freqüente na poesia antiga, com prolongamentos numerosos também nas literaturas de
línguas modernas, desde o fim da Idade Média, ele tem em seu centro a consideração da
efemeridade da existência e o convite ao prazer”
140
. Foi modelo de muitos poemas e poetas
desde então, entre estes podemos lembrar Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Ricardo
Reis, e Carlos Drummond de Andrade, como será visto no próximo capítulo.
Segundo Oliva Neto
141
, na época de Augusto coexistiram duas tradições de
poetas: o poeta que falava em seu nome e o poeta como representante impessoal de uma
autoridade que vem de fora dele, subentenda-se, que vem do Estado, que vem de Augusto. Em
Horácio coabitam os dois. O poeta que canta os temas de seu interesse e inspiração, os temas
do vinho e do amor, e o poeta que canta o civismo, a reverência aos deuses, à pátria, sob o
incentivo do poder público. Na linha de persecução do extenso projeto de Otávio Augusto
para o Império Romano, é preciso que se mencione o papel das artes e, é claro, da literatura
no sentido não só de proclamar os nobres valores da sociedade romana, como também de
incluir o Império entre as grandes civilizações, ao lado da Grécia, por exemplo. A Hélade
havia sido um grande império, havia deixado para Roma uma grandiosa literatura, modelo
sobre o qual os autores romanos se debruçaram. O grego era uma língua importante, de
comunicação entre os povos mediterrâneos. Os romanos naquele momento eram os senhores
do mundo, dominavam-no política e economicamente, mas ainda não haviam conquistado o
mais alto degrau no plano cultural. Faltava à Urbe a pujança arquitetônica, ser dona também
nas artes e fazer do latim uma língua internacional. Os planos de Augusto remetem a estes
objetivos e são realizados. Os melhores artistas são contratados. Otávio se gabava de ter
recebido uma cidade de madeira e deixado outra em pedra, parte dela ainda hoje de pé, ainda
140
Ibid., p. 20.
141
OLIVA NETO, João de. O livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo. São
Paulo: EDUSP, 1996, p. 39.
60
eterna. Na literatura, os maiores escritores foram os dessa era. Entre eles Horácio. Daí o fato
de se poder falar de uma nova Idade do Ouro, e não só nas artes. Foi a PAX ROMANA.
Além da propagação dos projetos para o império idealizados pelo Princeps
Romae, entre os muitos papéis que a literatura desempenhava, um deles foi, sem dúvida, o de
projetar o latim como língua culta. Neste sentido Horácio foi muito importante. Em sua obra
percebe-se claramente o cuidado com o idioma, o emprego do sermo nobilis, tão caro a
Cícero. E nisso se distingue o venusiano em relação a Catulo, seu mestre, de certa forma. Em
comum entre ambos, o tema dos prazeres da vida: o amor e o vinho, o tempo que escorre e os
poemas em forma de diálogo, ao gosto alexandrino. Mas, diferentemente, o segundo
empregou não apenas um “estilo elegante, caracterizado pela riqueza vocabular e pela
abundância de figuras”, tal como Horácio, mas também “linguagem popular, ponteada de
modismos, de diminutivos, de expressões do dia-a-dia, extraídas das formas coloquiais”
142
.
Aquele, por sua vez, mesmo ao referir-se a sensualidades, ou fazer uso da sátira, não utiliza
vulgarismos, sermo uulgaris.
A respeito do estilo e da linguagem dos dois poetas, cito aqui a passagem de um
artigo de José Carlos Fernández Corte, em que trata da influência de Catulo sobre Horácio, a
fim de marcar o estilo fortemente rebuscado e racional deste, como veremos mais tarde
quando da análise de seus poemas, por oposição a uma maneira de escrever mais popular e
cotidiana, modernista se poderia arriscar dizer, e emocional daquele.
Al contrario de Catulo, Horacio se muestra mucho más seletivo en la
elección de sus términos y sobre todo en el orden y el puesto que ocupan en
la frase: una de sus mayores virtudes, la callida iunctura, procede de esta
tendencia a evitar el prosaísmo, verdadera piedra de toque y causa de la
obscuridad de su poesia como puede verse en las explicaciones de los
comentaristas antiguos. Tampoco se muestra inclinado a conseguir la unidad
mediante nexos sintácticos evidentes, sino más bien por sutiles
contraposiciones de imagenes o por el juego de sentencias y ejemplos.
143
Do estilo, cabe ainda falar da poesia em forma de diálogo presente na obra
estudada. Praticamente todos os poemas são compostos sob a forma de diálogo entre o eu-
lírico e uma segunda pessoa, notadamente enunciada por um vocativo. Essas pessoas são de
três tipos basicamente: personagens comuns da vivência do poeta - amigos e amantes; outros
poetas contemporâneos, como Válgio e o amigo Virgílio; e as musas ou a própria lira,
142
OLIVA NETO, João de. O livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo. São
Paulo: EDUSP, 1996, p. 59.
143
CORTE, José Carlos Fernández. “Catulo”. In: ______. Bimilenario de Horacio. Salamanca:
Ediciones Universidad, 1994, p. 40.
61
instrumento companheiro. Oliva Neto, ao retratar a época de Catulo, menciona a “posição
privilegiada da poesia [...] por causa das condições histórico-políticas para o exercício da
palavra oral”
144
durante o período republicano, momento de debates e embates políticos no
Senado. Diferentemente, no governo de Augusto, quando da instauração do regime imperial,
do poder de mando do “Primeiro dos Cidadãos”, a palavra é atribuída a poucos. No momento,
como já se disse, havia dois tipos de poetas: os que falavam em seu nome e os que falavam
como “profeta”, como “representante impessoal de uma autoridade que vem de fora dele”,
que vem do Estado.
2.7 O TEMPO NA LÍRICA DE HORÁCIO
Iniciemos esta parte do trabalho delimitando o universo de Odes e Epodos e os
poemas que são representativos do nosso tema central, o tempo, na poesia de Horácio. A obra
está dividida em duas partes. A primeira, contendo as odes, é composta por quatro
subdivisões, conforme as edições e formatações possíveis na época, antes do advento da
imprensa, denominadas de livros. Ou seja, é composta por quatro livros, que totalizam
originalmente 104 odes. O primeiro livro possui 38 odes; o segundo, 20; o terceiro, 30; e o
quarto, 15. Um problema inicial com que me deparei foi a constatação de que a recente edição
de 2003, de Almeida Ferraz
145
, sobre a qual pautei minha leitura, não apresenta a totalidade
dos poemas. Isso se deve ao fato de ser esta uma edição póstuma, em que as traduções foram
selecionadas e organizadas pelos filhos do professor de Latim Bento Prado. A fim de
complementar a leitura para a análise do tema, utilizei uma edição bilíngüe espanhola,
traduzida por Manuel Fernández-Galiano e com notas de Vicente Cristóbal
146
e,
principalmente, uma seleção dos principais textos da obra horaciana, organizada por José
Ewaldo Scheid, Quinto Horácio Flaco: obras seletas
147
. A obra póstuma de Almeida Ferraz
é resultado das longas preparações de aula do professor, em que ele, também professor de
Filosofia e Matemática, recitava, diagramava, escandia e recriava “no português que bebera
144
OLIVA NETO, João de. O livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo. São
Paulo: EDUSP, 1996, p. 39-40.
145
FERRAZ, Bento Prado de Almeida. Tradução e nota. In: HORÁCIO. Odes e epodos. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 247.
146
CRISTÓBAL, Vicente. Introdução da tradução espanhola. In: HORACIO. Odas y epodos.
Madrid: Cátedra, 1997, p. 19-20.
147
SCHEID, José Ewaldo. Quinto Horácio Flaco: obras seletas. Canoas: EDULBRA, 1997.
62
nos clássicos”
148
os poemas de Horácio a serem levados para a sala de aula. Nas palavras de
seu filho Ferraz Júnior, o tradutor foi “leitor constante de Pascal, sublinhava a importância do
estilo, tanto no nível da expressão literária como no da construção matemática”, [...] “um dos
seus maiores cuidados”
149
. A escritura do material data da década de 1930. Curiosamente, o
professor recebeu o Certificado de Registro Provisório de Professor (Português, Latim e
Matemática), em abril de 1936, “assinado por ninguém menos que Carlos Drummond de
Andrade”
150
.
A palavra ode é derivada do grego odé e significa canto, canção de estrofes
simétricas. Cultivada na Grécia do século VI a.C., teve como principais representantes Safo,
Alceu e Anacreonte. Epodos, por sua vez, é uma forma lírica inventada por Arquíloco, em que
um verso mais longo é seguido de outro mais curto
151
. É constituído de versos jâmbicos,
alternadamente trímetros e dímetros. De acordo com Antonio Houaiss
152
, a etimologia da
palavra remonta ao grego, “epoidos, ou, pelo lat. epodos ou epodus, i num dístico, verso
menor que segue um mais longo” e mais, “epo el. comp. antepositivo do gr. epos, eos - ous ‘o
que se exprime pela palavra; discurso; palavra dada [...]; palavra de um canto”. Na poesia de
Horácio, o epodo é marcado pelo tom satírico.
A fim de organizar o modo como o tema é apresentado na poesia do venusiano,
pensamos a análise dos poemas pela temática do carpe diem, pela sua recorrência, variações e
subtemas no grupo de vinte e duas odes e também no único caso dos epodos; observamos
também o uso do sermo nobilis, associado ao seu papel de vate.
2.8 O TEMPO E A TEMÁTICA DOS POEMAS
O tempo não se encontra entre os temas mais dedicados ao estudo na poesia
horaciana, mas é, sem dúvida, o elemento motivador para o famoso carpe diem, é a
advertência sobre a efemeridade da vida - uita breuis e, em oposição, a arte que supera a vida
- ars longa. É por intermédio da percepção e expressão da fugacidade do tempo que o autor
148
FERRAZ, op.cit., p xvi.
149
Ibid., p. xix.
150
Ibid., p.xvii.
151
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 6. ed. 5. tir. Rio de Janeiro: FAE, 1992.
152
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1.ed. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
63
manifesta a curta duração da vida e a necessidade de agir rápido em relação ao tempo que
escorre, de fazer alguma coisa, “agarrar o dia”, antes que as Graças coloquem empecilhos em
nosso caminho, ou que a nova Idade do Ouro, a era de Augusto, a Pax Romana se encerre. O
tempo fugaz, expresso pelos relógios naturais, as estações do ano, as lunações, funciona como
um eterno lembrete ao leitor e aos homens de que o tempo passa, a vida urge e que é preciso
aproveitar cada momento antes que a morte chegue, ou a grande era acabe. Marco Aurélio, o
imperador filósofo, quase dois séculos mais tarde, vai dizer: “Atente para cada objeto
existente, pense que ele já está se dissolvendo, já está em transformação, se quiser, em
putrefação ou dispersão. Cada coisa nasceu para morrer”
153
. Daí o relógio dos ciclos naturais
de Horácio estar sempre a girar, o tempo a passar e a necessidade de aproveitar todos os
momentos. Numa época de ouro, como a da Paz Romana, cada passo do tempo é um
momento a menos de relativa paz e tranqüilidade e um passo a mais em direção à Idade da
Prata e à degradação.
Silva Bélkior, ao falar de Ricardo Reis, da/na relação entre as obras de Horácio e
Fernando Pessoa, diz que “Pessoa-Reis, o epicurista-estóico, o poeta pagão marcado com a
obsessão do efêmero da vida e com a antevisão da morte – donde a urgência de viver, no
prazer e na alegria, o momento presente – de tudo se serve, como de pretexto para insistir na
iminência do fim
154
. Em Horácio, a visão de efemeridade da vida e da iminência da morte
não me parece uma obsessão, mas antes o sentimento de necessidade, bem ao gosto hedonista,
de viver e aproveitar o que for possível antes que seja tarde. Entre os vinte e dois poemas
selecionados, foram classificados cinco tópicos que se fazem recorrentes dentro do tema o
tempo:
a) Carpe diem
O popular carpe diem, que ajudou a tornar famoso e a prolongar a glória e a vida
do poeta romano para além dos seus cinqüenta e sete anos, para além do seu século, encontra-
se na ode número 11, do livro I:
Tu ne quaesieris (scire nefas) quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. Vt melius quicquid erit pati!
153
MARCO AURELIO. Meditaciones: selección. Madrid: Alianza Editorial, 1996, p. 79.
154
BÉLKIOR, Silva. Horácio e Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: CBAG, [s.d.], p. 28.
64
Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis, debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum, sapias, uina liques et spatio breui
spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.
(Horácio, 2003, p. 38-9)
Indagar, não indagues, Leuconói
qual seja o meu destino, qual o teu;
nem consultes os astros, como sói
o astrólogo caldeu:
não cabe ao homem desvendar arcanos!
Como é melhor sofrer quanto aconteça!
Ou te conceda Jove muitos anos,
ou, agora, os teus últimos enganos,
– prudente, o vinho côa e, mui depressa
a essa longa esperança circunscreve
a tua vida breve.
Só o presente é verdade, o mais promessa...
O tempo, enquanto discutimos, foge:
colhe o teu dia, - não no percas! – hoje.
Este é um dos poucos poemas em que os marcadores da passagem do tempo, os
ciclos naturais não aparecem e atordoam nossa consciência, tal como o tique-taque de um
relógio nos impacienta numa noite de insônia. Talvez por ser nesta ode que o tempo se mostra
como temática central e é expresso literalmente: “o tempo, enquanto discutimos, foge”. O
mesmo carpe diem reaparece depois em II 14, III 8, III 29 e no epodo XIII. Em II 14, o
“tempo fugaz” abre o poema: “Eheu fugaces, Postume, Postume, / labuntur anni...”
(“Escorrem fugazes, Ó, Póstumo, Póstumo, os anos...”)
155
. Neste poema, igualmente, o
relógio da natureza não nos atordoa, somente as palavras de advertência do poeta. Nas odes
III 8 e III 29, ele também não aparece, talvez por não haver gravidade em suas propostas.
155
Como o poema não consta da tradução de Ferraz, utilizei aqui, e o farei sempre que assim ocorrer, a
tradução espanhola e uma tradução minha para o português dos mesmos versos.
65
Ambos os poemas são convites do poeta a Mecenas para compartilharem de momentos
tranqüilos e celebrarem com vinho a amizade, além de proporcionar ao segundo um
temporário afastamento das pesadas atividades políticas. A idéia do carpe diem se faz
prenunciar na ode I 9, poema em que a neve do inverno obriga a todos o recolhimento, a
aproveitar o dia, tomar vinho e não se preocupar com o futuro. No epodo XIII, o tema
ressurge com uma variação mínima rapiamus occasionem diem em vez de carpere diem.
Neste caso, o relógio de marcação do tempo, a ação da natureza, é descrita no presente, em
pleno movimento, o que dá mais ênfase ao imperativo de aproveitar o momento, reforçado,
entre outros elementos, pelo verbo rapire - arrebatar, tomar violentamente e occasionem -
ocasião, momento. O verbo no presente do subjuntivo tem sentido quase que de imperativo, é
um convite para beber um vinho, recitar poesia e esquecer os problemas, porque chove e neva
e não se faz possível trabalhar:
Horrida tempestas caelum contraxit et imbres
Niuesque deducunt Iouem; nunc mare, nunc silua
Threicio Aquilone sonant; rapiamus, amici,
occasionem de die, dumque uirent genua
et decet, obducta soluatur fronte senectus.
Hórrida tempestade o céu moveu
e chuva e neve sobre a terra caem;
ora a terra, ora a selva, então, ressoa,
ao ímpeto forte do Aquilão da Trácia.
Aproveitemos a ocasião, amigo,
que a nós nos oferece o dia, e, enquanto
no-lo os joelhos permitem e o decoro,
que se expulse a velhice carrancuda.
[...]
156
Na ode 11, o “aproveite o dia” tem um sentido mais genérico, dirigido a Leuconói,
uma musa e aos leitores, confidentes do poeta, funciona como que um conselho a ser tomado
para a vida. Temos nestes dois poemas, portanto, as referências diretas ao carpe diem, que
depois não são mais ditos literalmente, mas que não deixam de se fazer constantes junto com
156
FERRAZ, Bento Prado de Almeida. Tradução e nota. In: HORÁCIO. Odes e epodos. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 221.
66
as manifestações dos relógios naturais a admoestar-nos com a lembrança da passagem do
tempo.
b) A morte
A morte é o tópico mais recorrente no universo deste corpus. Aparece por dez
vezes, três como tema central do poema (Ode 4, livro I; ode 3, do livro II; ode 7, do livro IV),
quatro como referência direta (odes 9,16, do livro II; ode 30, livro III; ode 12, do livro 4),
três de forma subentendida (Odes 11 e 32 do livro I). Nos poemas em que a morte é o tema
central, as odes 4 (livro I) e 7 (livro IV) têm uma estrutura semelhante: iniciam com a já
mencionada descrição da paisagem externa e a mudança climática, relógio natural no mundo
antigo. Nos dois casos, as mudanças de estação acontecem no sentido inverno - primavera. O
primeiro descreve a mudança climática e as fainas humanas: a temporada de pesca, a partir da
primavera – “trahuntque siccas machinae carinas” (“são levadas ao mar as secas quilhas”) e
as dificuldades da pecuária e da agricultura, anteriormente, no período do inverno – “ac neque
iam stabulis gaudet pecus aut arator igni” (“Já não se aquece o gado nos estábulos, / não goza
o lavrador junto à lareira”[...]). O segundo descreve tão somente as transformações dos
campos e rios – “Diffugere niues, redeunt iam gramina campis/ arboribusque comae; / mutat
terra uices et decrescentia ripas / flumina praetereunt.” (“Lá se foram enfim as brancas
neves, / reverdecem os campos; o arvoredo, / verde, revive a sua antiga coma; / muda a terra
de aspecto; os rios minguam / e retomam, de novo, o antigo leito”). Como já foi dito antes, em
ambos os casos, a constatação da passagem do tempo não faz outra coisa que alertar para a,
cada vez mais iminente, aproximação da “eqüitativa” morte.
Entre os textos em que a morte é referida diretamente, mas não é tema, os
assuntos são variados. A ode 9 do livro II é um aconselhamento de Horácio ao confrade
Válgio para que este deixe de chorar um velho já morto e volte a viver. A ode 16 do livro II
trata da preocupação dos homens para com o dinheiro, indiferentes ao fato de que todos, ricos
e pobres, têm de habitar o mesmo reino dos mortos ao fim. Na ode 30 do livro III, a morte é
derrotada pela arte, a única que consegue sobrepô-la, mesmo que não de forma definitiva: ars
perennior aere morteque. Destaque-se a recorrência da idéia da morte eqüitativa e do destino,
devoradores de ricos e pobres nas odes 4, do livro I, 16, II e ode 7, IV.
Por vezes, a morte não é o tema central e nem mesmo explicitamente se
manifesta, mas nem por isso deixa de ser entrevista. São os exemplos das odes 11 e 32, do
livro I e o epodo XIII. O primeiro, novamente o poema do carpe diem, não oferece qualquer
67
menção à palavra. Contudo, o futuro e o destino não desvendados pelos astros podem ser
diversos, longos em esperança ou breves em vida, mas de qualquer modo só existem duas
certezas, a do momento presente e a visita da negra senhora, ou das três “atras irmãs”. O
segundo apresenta a arte poética como elemento principal, a suplantar o período de uma vida,
a vencer o tempo, e em parte, a morte. O terceiro retoma a idéia do segundo.
c) Os prazeres da vida
A ocorrência dos temas amor, vinho e, em menor escala, poesia fazem do tópico
“prazeres da vida” um elemento significativo na poesia horaciana. Dentre os poemas
selecionados, o “amor” aparece na ode 23, do livro I. Trata de uma menina que se mostra para
o amor sem estar madura para tal. O clima, neste caso, marca a passagem do tempo, não para
alertar da urgência de viver, mas para constatar a natureza das coisas e da vida, de que o amor
faz parte. Na ode 13, do livro IV, o amor se manifesta através de um de seus sentimentos
decorrentes, o sentimento de vingança e de revanche em relação a uma ex-amante,
concretizado para o poeta pela percepção da passagem do tempo e a decadência para a velha
Lídia. Lembra o poema 58 do mestre Catulo, em que ele fala da Lésbia que ele amara “mais
do que a si mesmo” e que “vive hoje nas encruzilhadas e becos / a eroticamente excitar / os
descendentes do magnânimo Remo”
157
. Aqui a passagem do “tempo alado” se mostra, não
por meio da geografia, mas antes no próprio ser que é motivo de escárnio: uma mulher de
“longa vida”, de “dentes amarelos”, “rugas”, com a fronte coberta de “neve”.
O vinho, por sua vez, aparece em II 11, III 29 e IV 12 sob a forma de convite de
Horácio a amigos. O primeiro, um convite a Quinctio Hirpino, o segundo, a Mecenas e o
último ao confrade Virgílio, neste caso, para que compartilhem de um, “pisado em Cales”.
Neste poema, o tempo anuncia inicialmente a chegada da primavera e com isso a necessidade
de comemorá-la. Mas nem por isso o poeta esquece de apressar o amigo, visto que a “sombria
morte” não esquece nunca de vir. No epodo XIII, quando um dia de inverno com tempestade
não permite que se faça qualquer outra coisa, só o que resta é o vinho e a poesia para
amenizar as dores do viver. Situação retomada na ode I 9. Digo retomada pelo fato de que os
Epodos foram escritos por primeiro. Nesta ode, a alta neve faz as árvores sofrerem sob o seu
peso, proporcionando o recolhimento junto ao fogo e a um vinho sabino de quatro anos,
deixando de lado tudo o mais: “dissolue frigus ligna super foco / large reponens atque
157
Tradução de Lauro Mistura. In: NOVAK, Maria da Glória; NERI, Maria Luiza. Poesia lírica
latina. 2.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p.15-7.
68
benignius / deprome quadrimum Sabina [...]”. É importante destacar que os prazeres da vida:
o vinho, o amor, a poesia, parecem cumprir o papel da verdadeira ataraxia proposta pelos
epicuristas e pelos estóicos. São estes elementos que conseguem verdadeiramente refrear a
ação do tempo, afastando as preocupações e as dores e estabelecendo a ação do prazer. Por
meio desses prazeres têm-se as poucas vitórias da vida sobre o tempo, da vida sobre a ação da
morte.
d) Ars longa, uita breuis
O aforismo de Hipócrates ars longa, uita breuis é por duas vezes revisitado nestes
poemas de Horácio, embora modificado, uitae breuis - “vida breve” versusspem longam” -
“esperança longa” (ode 4, I) e spatio breui – “vida breve” versusspem longam” – “longa
esperança” (ode 11, I). A longa esperança nos dois casos pode ser entendida como o desejo e
a ilusão humana de que ainda lhe reste bastante tempo de vida. Marca, sobretudo, a
efemeridade da vida e a urgência de se viver e aproveitar o dia.
A vida breve é citada na ode 16, do livro II: “Quid breui fortes iaculamur
aeuo/multa?” – “Por que, assim, tanto, intrépidos, visamos, / se a vida é breve?”. Pode ser
vista indiretamente ainda nas odes 25, do livro I e 13, do livro IV, pela constatação de que o
tempo passou para as antigas amantes: Lídia e Lice. A primeira, cada vez menos procurada
pelos jovens, cada vez mais descartada pela vida, que como o vento Euro empurra e leva as
folhas secas (“aridas frondes hiemis sodali/ dedicet Euro”); a segunda pelo cumprimento dos
votos do poeta de que o tempo passasse rapidamente e ele pudesse vê-la já velha, de “dentes
amarelos”, “rugas”, cabelos brancos, sem mais a antiga beleza e vigor que tanto encantaram
os jovens, inclusive ele.
A relação entre o aforismo e os versos citados pode ser estabelecida a partir da
famosa ode 30, do livro III, que inicia assim: Exegi monumentum aere perennius/ regalique
situ pyramidum altius – “Erigi monumento mais perene/ do que o bronze e mais alto do que a
real/ construção das pirâmides”. Além da “modéstia” do autor, o que observamos é o desejo e
a esperança de sobreviver aos limites temporais da própria existência através da sua arte,
expressos com a certeza de alcançar tal intento e com a certeza da grandeza de sua obra. A
esperança da imortalidade do poeta está depositada na certeza da sua grandeza artística. E, de
fato, o seu desejo se cumpre. Até hoje, passados dois mil anos, Horácio tem-se mantido vivo,
da mesma forma que Roma tem-se mantido eterna. Por intermédio da arte, entendida aqui
69
como os grandes feitos que qualquer um possa realizar, o homem consegue se sobrepor ao
tempo. Horácio burlou Saturno, o devorador de tudo. Horácio vive. Ars longa, uita breuis.
A proposição da “arte longa” reincide na ode 32, do livro I e no epodo XIII,
embora de forma atenuada. Na ode 32 o poeta exalta a lira e o canto, “doce lenitivo da fadiga
de Febo” e, da mesma forma, deseja que semper haerentem o canto permaneça por mais
tempo que o mortal cantor. No Epodo XIII, o canto, juntamente com o vinho, o perfume e a
companhia de um amigo é responsável pelo entorpecimento dos males da breve vida. O que
nos faz pensar que o canto, as artes, assim como outros prazeres da vida, o vinho, a amizade e
o amor sensual, também presente por vezes em Horácio, são remédios para combater a ação
do tempo, mesmo que pelo curto momento de uma noite, de uma tontura inebriante de vinho
etc.. Por meio deles, o homem consegue suspender, temporariamente ou quase eternamente
como a arte, a voracidade de Saturno. Por intermédio deles, as únicas consolações, o homem
consegue uma pausa suficiente para esquecer as dores da vida, principalmente a “dor atroz
que nos deforma o gesto”
158
. A vida é breve, mas a arte e os prazeres podem ser mais longos.
e) Antinomia juventude-velhice
O “tempo alado” transparece nos poemas, às vezes, por meio da antinomia
juventude-velhice. Na ode 4, do livro I, a juventude significa o tempo presente e o futuro
vislumbrado é a iminente chegada da morte. A passagem do tempo é a constatação de que a
vida passa rapidamente. Nas odes 25, do livro I e 13, do livro IV, a juventude representa o
vigor do amor, a própria vida e a velhice, a extinção de ambos – “dilapsam in cineres facem
(“extinto facho já desfeito em cinzas”) e a aproximação da morte. Nos dois poemas as raras
buscas dos jovens pelo amor de Lídia e de Lice é que determinam a fugacidade do tempo.
Nestes dois casos, diferentemente de outros, o que se vê é o tempo anunciado como já
escorrido e não como advertência da sua volatibilidade. Em II 11, a antinomia, além de
marcar a leveza da juventude e a aridez da velhice, marca, ao mesmo tempo, a própria
passagem dos anos: “fugit retro / leuis iuuentas et decor, arida / pellente lasciuos amores /
canitie facilemque somnum” (“Lá se foi a breve juventude e seu encanto; já a árida
velhice/senectude rechaça os amores lascivos e o sonho fácil.”)
159
.
158
FERRAZ, Bento Prado de Almeida. Tradução e nota. In: HORÁCIO. Odes e epodos. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 223.
159
Tradução de Vicente Cristóbal. In: HORACIO. Odas y epodos. Madrid: Cátedra, 1997, p.198.
70
f) A degradação dos tempos
Na ode 6, do livro III, o tema é a própria Idade de Ouro e a conseqüente
degradação dos tempos para os antigos romanos. Retomado posteriormente na ode 24 do
mesmo livro III, é extremamente importante por expressar essa idéia, pedra basilar entre os
antigos para a compreensão da decadência humana e, de certa forma, da cultura romana, que,
devo dizer mais uma vez, apesar de se encontrar no auge, já demonstrava degeneração. O
poema é dirigido diretamente ao povo romano, vide o vocativo “Romano”. Começa falando
dos “crimes” dos antepassados - “os maiores”, que os romanos expiarão. Depois se refere às
desgraças históricas que os deuses enviaram ao povo criminoso, além dos vícios morais
cometidos pelas pessoas comuns. A jovem moça que se regozija com a “dança jônica”; o
marido libidinoso sempre à procura de amantes; a cupidez por dinheiro. Dos tempos passados,
sempre melhores do que os presentes, só restam pioras; e o futuro, a certeza de mais pioras:
Damnosa quid non inminuit dies?
aetas parentum, peior auis, tulit
nos nequiores, mox daturos
progeniem uitiosiorem.
Que não degrada o tempo destruidor?
Dos remotos avós aos nossos dias,
o tempo piora, em regra, cada vez:
mau, com aqueles; pior, com nossos pais,
e péssimo conosco. Donde, em breve,
há de seguir-se idade mais viciosa.
160
Na ode III 24, há algumas repetições de situações expressas em outros poemas e
na ode III 6, como a riqueza, um mal, em oposição à simplicidade, os crimes e vícios dos
jovens e das gerações mais novas – degeneração dos costumes, portanto – e o papel do poeta
160
FERRAZ, Bento Prado de Almeida. Tradução e nota. In: HORÁCIO. Odes e epodos. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 120-1.
71
como vate, mestre da Urbe e conselheiro do Príncipe, como apontam Manuel Fernández-
Galiano e Vicente Cristóbal em Horácio.
161
Por fim, existem três odes em que o tema central não é o carpe diem, mas neles,
mesmo assim, a referência ao tempo aparece. São elas: I 12, em que temos no verso 45:
crescit occulto uelut arbor aeuo” – “tal qual uma árvore cresce/brota o tempo oculto”; II 5,
nos versos 13-4: currit ferox / aetas – “corre feroz o tempo”
162
e III 28, no verso 6: ueluti stet
uolucris dies – “como que imóvel permanece o alado dia”
163
.
Como forma de ligar o tema central “o tempo” com os seus subtemas, proponho
imaginarmos o seguinte percurso a permear a relação entre o tema principal e as partes.
Retomemos o pensamento materialista da filosofia epicurista que opera a partir das sensações.
Entre as percepções de sensibilidade o homem não se furta, como jamais se furtou, às
sensações de prazer e de dor, de calor e de frio. Da mesma forma, não deixa de perceber a
existência da morte, embora muitas vezes tente esquecê-la. A morte surge então como destino
e fim inevitável para qualquer ser vivo. Na compreensão epicurista, os deuses existem, mas
são indiferentes à vida e ao sofrimento humano. Daí que nos restam apenas duas realidades: a
vida de que sabemos um pouco e a morte de que não sabemos nada. Entre estes dois limites,
aparece um terceiro elemento: o tempo. Dele também não sabemos muito, mas entendemos
que ele existe porque a todos e a tudo morde, corrói. É ele que nos grita e atordoa a todo
instante através dos ciclos do dia-noite-semana-mês-ano para dizer que a vida passa e cada
vez mais temos menos dias para viver.
Nossa luta contra Saturno, o tempo devorador de tudo só é neutralizado em
pequenos momentos, tão efêmeros quanto a vida. Entre os instantes de vitória parcial, de
tranqüilidade da alma, a almejada ataraxia de epicuristas e estóicos, podemos citar aqueles em
que compartilhamos com os amigos, aqueles em que nos deixamos inebriar por uma boa
conversa, por um vinho, pelo amor e pelas artes. Por meio deles é que conseguimos enfim
dominar o tempo, suspender sua ação e segurar a vida e mantê-la sob nosso controle, mesmo
que pelo brevíssimo espaço de segundos ou minutos. Vitória maior, mais perene que essa
também é possível, como nos apontou Horácio. Para tanto o caminho deve ser a realização de
uma grande obra. Não necessariamente poesia, mas algo de qualidade que possa suplantar o
período de vida de quem a concebeu. Horácio ainda vive depois de dois mil anos. Roma ainda
é eterna. Para que isso possa se tornar realidade o poeta venusiano, tal qual a ação do tempo
161
CRISTÓBAL, Vicente. Introdução da tradução espanhola. In: HORACIO. Odas y epodos.
Madrid: Cátedra, 1997, p. 296.
162
Ibid., p. 116 e p.186-7.
163
Ibid., p.308-9.
72
sempre faz, nos advertiu: CARPE DIEM. Aproveite hedonisticamente a vida: beba, ame,
converse com os amigos, mas também como o verdadeiro epicurista alertava: aproveite o dia
para fazer o que deve ser feito, aproveite para viver mais do que o limite de tempo a nós
reservado. Viva eternamente, mesmo que por um, dois séculos, um ou dois milênios.
Entre a percepção do homem a respeito da evidência da vida e da morte, entre a
percepção de que a vida urge e é preciso fazer algo, ali está o tempo, sempre a passar, sempre
a degradar a matéria dos que vivem, sempre a fugir.
Para finalizar este capítulo, podemos dizer que carpe diem é o grande tema da
poesia horaciana, o tema que, sem a menor dúvida, imortalizou-o, que o fez eterno e superior
ao tempo. Não devemos esquecer, é claro, que o tema não é invenção de Horácio, mas antes
uma retomada dos grandes poetas gregos e mesmo romanos – Catulo é um exemplo – como
era a prática e o ideal da poesia, das artes e da cultura clássica antiga. Sendo o carpe diem o
grande tema, o “tempo” é o grande subtema a reforçá-lo. Ele é o responsável pela imagem-
símbolo de sua passagem. É ele que dita o ritmo do alerta, ritmo de despertador para a
urgência em se fazer algo, de aproveitar o tempo que nos resta antes do fim, por meio das
imagens de mudança climática: o fim do inverno e início da primavera, a chegada dos
ventos... Por outro lado, essa concepção, já existente, da urgência de viver bem a vida é
reincorporada com toda a força na época de Horácio pela influência do epicurismo no mundo
romano de então. Daí também a reiteração do tema do vinho e do amor, próprios da lírica
clássica, porém igualmente reforçados pelo pensamento da escola epicurista. A esses dois
temas Horácio acrescenta, por conta do helenismo, o tema da literatura ou poesia como
motivador de prazer e ataraxia. E somente por meio desses elementos – o vinho, o amor e a
poesia – o homem é capaz de alcançar a ataraxia, a tranqüilidade e a paz de espírito. Estes são
os únicos meios de o homem vencer o tempo, de amortecer o impacto de sua ação sobre os
mortais. O amor e o vinho por um período muito efêmero, mas a poesia e a literatura talvez
nem tanto, se considerarmos que Horácio, através de sua obra, ainda vive e influencia a
humanidade, mesmo dois mil anos depois.
E assim, da época de Horácio à de Drummond, o tempo não pára, dispara,
continua como sempre a devorar a tudo e a todos, os homens, seus prazeres, felicidades e
infelicidades, menos o que é sublime, como a alma e a literatura, como a poesia e a arte de
Horácio e de tantos outros grandes artistas e homens.
73
3 DE DRUMMOND A HORÁCIO, O TEMPO REPARA.
“Mas eu colhi
a laranja de flores deste instante
que vou mastigando como um
[deus.”
(Carlos Drummond de Andrade, “Adeus ao colégio”)
A fim de nos situarmos no tempo, num novo tempo, relembremos os fatos
históricos, políticos e sociais que levaram à concepção que se tem da Modernidade hoje.
3.1 A VISÃO DE TEMPO NA MODERNIDADE
A modernidade, como padrão econômico e social, se impõe a partir de duas
grandes revoluções sociais, a Inglesa e a Francesa. No que diz respeito à economia, o
enriquecimento com a expansão territorial no período colonialista, aliado ao desenvolvimento
científico, a importantes invenções, novos mecanismos e fontes de energia, proporcionara à
Inglaterra e à França, primeiramente, o avanço tecnológico e o surgimento da indústria como
novo filão econômico. Por conseqüência, houve grandes transformações na história da
humanidade: o enfraquecimento do poder agrário, a produção em larga escala e a expansão de
um mercado internacional, o estabelecimento do poder econômico da burguesia, o predomínio
e a consolidação do capitalismo como sistema econômico. Quanto ao aspecto social, o que se
viu foi um deslocamento de parte da população rural para as cidades em busca de emprego, o
surgimento da classe operária e o embate político-social entre esta e a dos grandes
proprietários.
A industrialização trouxe consigo a atração pelas cidades. Diferentemente do que
ocorrera com Roma, na Antiguidade, o inchaço, a superpopulação não se deu em um único
centro. Se, de início, apenas Londres e Paris foram pólos de atração, mais tarde várias outras
capitais e cidades européias também conheceram o fenômeno. A reprodução em larga escala
que se verificou na indústria se expandiu para muitas áreas, senão todas. Na verdade, tudo se
74
transformou em uma grande indústria, tudo é passível de se tornar produto, tudo é vendável,
todos são consumidores. Tudo se produz e reproduz em grandes proporções. As cidades e as
distâncias nelas cresceram e exigiram um transporte que fosse coletivo, uma rede de
comunicação que fosse mais abrangente. A ciência e a tecnologia possibilitaram o
atendimento dessas e de outras necessidades.
Na esfera social, a demanda por uma mão-de-obra especializada, que soubesse
operar o maquinário, fez surgir uma classe até então desconhecida: o operariado, uma
categoria que de seu só possuía o corpo e a força produzida por ele. Nas fábricas, a exploração
em excesso do esforço humano, incluindo mulheres e crianças, levou a revoltas, levantes e
organizações contrárias a tais posturas. Num ambiente e num momento em crise como o da
França, quando do surgimento do Estado burguês e liberal, e do capitalismo como nova
ordem econômica, foram muitas as situações de enfrentamento. Para Le Goff o “conceito de
‘modernidade’”, seria “uma reação ambígua da cultura à agressão do mundo industrial”
164
.
A ciência e a filosofia, a partir do pensamento positivista vigente, corroboram a
idéia de que o progresso é uma realidade inevitável. O conforto material que inúmeras pessoas
podem obter individualmente, a partir de então – se tiverem dinheiro –, assegura uma
tranqüilidade para muitos, o que até então era desconhecido. Com suas máquinas, o homem
moderno aumenta a produção e a reprodução em enormes quantidades, reduz o tempo de
tudo, diminui a qualidade de tudo, acelera para ganhar mais, dinamiza o mundo e se afasta da
natureza, do sublime, banaliza-se, coisifica-se. Estão postos aí os principais ingredientes que
compõem o caldo da modernidade.
3.2 NOVOS CICLOS
No campo literário, a modernidade na lírica, objeto de nosso interesse aqui, tem
início com Charles Baudelaire, fundamentalmente com As flores do mal. O poeta francês é o
paradigma da poesia deste momento histórico-cultural porque, ao mesmo tempo em que
rompe com a tradição clássica, reajusta alguns dos principais elementos da arte antiga, da
poética clássica, conforme as novas condições que o novo mundo proporciona, quais sejam: a
questão do sublime, o papel da arte e do poeta, o pensamento, a escolha das palavras. O ato de
164
LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: EDUNICAMP, 1996, p.167.
75
realinhar esses elementos por si só já caracteriza uma atitude moderna. Na disputa entre o
novo e o velho tempo:
[...] o inimigo é o antigo, que produziu o artificial, a obra-prima que se dirige
a uma elite, o estilo moderno será naturalista e inspirar-se-á numa natureza
em que as linhas sinuosas predominam sobre as linhas retas ou simples. Terá
como objetivo produzir objetos, invadir a vida cotidiana e abolir a barreira
entre artes maiores e menores. Em resumo, não se dirige a uma elite; mas a
todos, ao povo, torna-se social.
165
A modernidade, como toda ruptura, traz em si as marcas da quebra, neste caso
ficaram arestas que apontam para dois lados, para frente e para trás, para o passado e para o
presente, para o antigo e para o novo. As Flores do Mal concentra em si os estilhaços desta
quebra. Para Walter Benjamin, “Nenhuma das reflexões estéticas da teoria baudelaireana
expõe a modernidade em sua interpenetração com a antiguidade como ocorre em certos
trechos de As Flores do Mal
166
. Dentre estes trechos, o poema “O Cisne” seria um dos mais
significativos. Neste poema, estão dispostos e entrecruzados alegoricamente os elementos das
duas eras, a Paris desenvolvida, industrializada do século XIX, o poeta, um cisne, na verdade,
o Cisne (uma alegoria) e Andrômaca, personagem do mundo grego primitivo. Em comum
entre eles, o exílio. A troiana estaria perdida em Pirro, numa terra distante e num momento
diferente; o cisne, em seu tempo e na memória do poeta e este na sua própria cidade, em seu
próprio tempo.
Iniciemos, pois, o confronto da poética clássica com o novo modelo instituído por
Baudelaire. O primeiro ponto abordado por Aristóteles diz respeito aos gêneros que ele
considerava superiores, a epopéia e a tragédia, por serem mais abrangentes e por tratarem de
homens superiores. Ao nos reportarmos para o século XIX, veremos que os dois gêneros já se
encontram perdidos na poeira dos tempos. O poema épico se dissipou, transformando-se em
narrativas em prosa e a tragédia atenuou-se, assumindo em seu lugar o drama, fusão do lírico
e do épico, síntese do caráter individual que se antepõe ao coletivo, fusão do subjetivo com o
coletivo. Isto porque as condições sociais, políticas e culturais foram se modificando e não
propiciavam mais um ambiente de heroísmo, de nobreza. A partir do Renascimento, o
liberalismo começa a ocupar espaço e a nobreza a perder a vez, o antropocentrismo e o
desenvolvimento científico a afrouxar a força do pensamento religioso. Mais tarde, com a
franca decadência da nobreza e o ganho de poder da burguesia, o poder real daquela se
165
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2ed. São Paulo:
Brasiliense, 1991, p.81.
166
Ibid., loc. cit.
76
desestabiliza e já não há mais como se falar de homens superiores, de valores nobres, o que se
vê crescer é a mediania, a luta do homem comum pela ascensão social e pela sobrevivência
num mundo comum, burguês, sem o imaginário de deuses e semideuses, sem grandes poderes
e força descomunal, apenas humano.
A burguesia estabelecida, sentada sobre o conforto e na tranqüilidade de sua casa,
perdeu a prática do desafio à morte, a ação heróica de enfrentar os perigos e de fazer por si só
as coisas. Por receber tudo como produto pronto, perdeu a experiência de vida. Ao burguês e
ao homem moderno basta acionar alavancas, apertar botões para que se façam as luzes. A ele
não é dada a possibilidade de fazer história, pois já a recebe pronta, entregue na porta de casa.
Conforme Walter Benjamin,
O homem para quem a experiência se perdeu, se sente banido do calendário.
O habitante da cidade grande se depara com este sentimento nos domingos.
[...] Os sinos que outrora anunciavam os dias festivos, foram excluídos do
calendário, como os homens. Eles se assemelham às pobres almas que se
agitam muito, mas não possuem nenhuma história.
167
Assim, quanto mais o homem adquire benesses, quanto mais máquinas-escravos
ele tem à disposição para lhe fazer o serviço pesado, menos heróica é a sua vida, menos o que
cantar ele tem.
A vida do homem moderno deixou de ser ativa para se tornar contemplativa.
Neste caminho, o conforto isola e o homem desagrega-se, faz-se ilha. “Na verdade, a
experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-se menos
com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e
com freqüência inconscientes, que afluem à memória”.
168
A experiência do homem moderno
agora é a do que foi vivido e contado pelos outros, via tradição heróica e que chega pelos
jornais, pelos livros, contemporaneamente, pela televisão ou pela tela de um videogame, a que
ele no máximo vive indiretamente, fantasiosamente, virtualmente nos dias de hoje. A
memória não é a dos fatos que ele próprio experimentou, mas a de que outros contam e
cantam.
No capítulo 2, ao tratar da antiguidade e da lírica horaciana, tínhamos visto que a
natureza tinha grande relevância para o homem, era, de acordo com Platão
169
, o Grande
Exemplo, a fonte de inspiração para a mimese na arte e para a vida. A despeito disso, para o
167
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2. ed., São Paulo:
Brasiliense, 1991, p.136.
168
Ibid., p.105.
169
PLATÃO. Fedro. In: Diálogos. Porto Alegre: Globo, 1954, p. 249.
77
homem moderno, a cidade passa a ser refúgio e manancial para a arte, enquanto a natureza,
um elemento mais distante e inóspito.
Na obra de Baudelaire, tal como no centro da modernidade, a cidade tem um
papel fundamental. Contudo, diferente da Cidade Antiga, fosse ela pequena como a pólis em
que os cidadãos se faziam presentes na ágora e expressavam por si próprios os seus
pensamentos, escolhas e opiniões, e contribuíam diretamente para a política, fosse grande
como a Urbs imperial, em que a representação política se fazia necessária, dada a
impossibilidade de todos estarem presentes e falarem no foro, a cidade moderna congrega
milhares de pessoas vindas de diferentes lugares, com objetivos que nem sempre são comuns.
O bem coletivo, quando visado, não é mais o da cidade, mas o de uma coletividade abstrata, a
nação burguesa. Neste universo, a cidade é uma pequena representação de muitos quereres,
divididos, e que, somados aos desejos e escolhas de muitas outras cidades, vão se fazer
representar num espaço maior, abstrato, por vezes distante, desconhecido e alheio, chamado
país.
3.3 OS CICLOS CRIADOS PELO HOMEM
Se na Cidade Antiga, religião e Estado não podiam ser entendidos separadamente,
as religiões monoteístas e espiritualistas, como o judaísmo e o cristianismo, ao desfazerem o
paganismo, lançam algumas das bases para a formação da modernidade, como a individuação.
Na visão de Victor Hugo, uma
[...] religião espiritualista que supera o paganismo material e exterior desliza
no coração da sociedade antiga, mata-a, e neste cadáver de uma civilização
decrépita deposita o germe da civilização moderna. [...] ensina ao homem
que ele tem duas vidas que deve viver, uma passageira, a outra imortal; uma
da terra, a outra do céu, ensina que o homem tem responsabilidade para com
a sua própria vida individualmente
170
.
Com a Revolução Francesa, ocorre o decisivo golpe à tradição do espírito
religioso ligado à política desenvolvida pela Pólis, agora país, a cisão entre Estado e religião
no Ocidente. A partir de então o Estado torna-se laico e racionalista. Eis aí um novo Estado,
eis aí novos calendários, novos ciclos criados pelo homem.
170
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988.
78
No mundo moderno, o cidadão não pertence ao Estado, não existe uma relação
cativa entre ambos, pois este tem mais individualidade, vontade própria e liberdade de agir
conforme o seu livre arbítrio, além do que existe mobilidade social, possibilitando aspirações
em todas as camadas da sociedade. A divisão e a especialização de tarefas, que a atividade
industrial trouxe consigo, levaram à particularização. Agora o pequeno, contrariando a
percepção aristotélica, também é belo. O indivíduo não é tão pequeno e frágil como na Cidade
Antiga.
Na esteira dessa nova ordem, a arte não tem mais um caráter pedagógico, não é
instrumento de voz citadina, mas pode ser ela também mais uma mercadoria. A cidade não
possui um poeta a vaticinar o caminho que os cidadãos devem seguir. O poeta não é porta-voz
da Cidade. As condições não são favoráveis ao poeta, como diz Benjamin:
Primeiro porque o lírico deixou de ser considerado como poeta em si. Não é
mais “o aedo”, como Lamartine ainda o fora; adotou um gênero. (Verlaine
nos dá um exemplo concreto desta especialização; Rimbaud, já esotérico,
mantém o público, ex officio, afastado de sua obra.) Segundo, depois de
Baudelaire, nunca mais houve um êxito em massa da poesia lírica. (A lírica
de Victor Hugo encontrou ainda forte ressonância, por ocasião de sua
publicação. Na Alemanha é o Buch der Lieder que estabelece a linha
divisória.) Uma terceira circunstância, decorrente das duas primeiras: o
público se tornara mais esquivo mesmo em relação à poesia lírica que lhe
fora transmitida do passado.
171
A repercussão dos jornais como fonte de leitura proporcionou uma dinamização
na produção e propagação da literatura, a possibilidade de ler individualmente no conforto de
casa, papel que este meio adquiriu como instrumento de divulgação e promoção política
individual desviou a arte da função pedagógica, politizadora que outrora tivera, funcionando
agora mais como elemento de distração, apascentamento e formação de conceitos prontos
para as massas. Novos caminhos que, de acordo com Benjamin, propiciaram a perda de
prestígio da lírica:
As fontes das quais se alimenta o comportamento heróico de Baudelaire
irrompem dos mais profundos fundamentos da ordem social incipiente em
meados do século. Não compreendem senão as experiências que instruíram
Baudelaire sobre as mudanças radicais da produção artística. Essas
mudanças consistiam em que, na obra de arte, a forma de mercadoria, e no
público, a forma da massa, se manifestavam de um modo imediato e
veemente como nunca. Essas mudanças, mais tarde, a par de outras
171
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2. ed., São Paulo:
Brasiliense, 1991, p.104.
79
mudanças no domínio da arte, levaram, sobretudo, à decadência da poesia
lírica”.
172
Octavio Paz, em La otra voz, diz que, no passado, os leitores de poesia pertenciam
às classes dirigentes: cidadãos gregos, patrícios e cavaleiros romanos, depois clérigos
medievais, cortesãos da idade barroca. Entretanto, na modernidade, são os poetas, os solitários
e os inconformes. “Poetas y lectores burgueses pero rebeldes, a su origen, su clase y la moral
de su mundo. Esta es una de las glorias más ciertas de la burguesia, la clase social que tomó el
poder com el arma del pensamiento crítico y que no ha dejado de usarlo para civilizarse a si
misma y a sus obras”
173
.
Assim, a poesia não tem mais leitores. O poeta é um solitário. O predomínio da
prosa sobre a poesia, a diversificação de tipos de narrativas e de textos em prosa e o vasto
emprego dos mesmos são provas disso. O poeta é agora “também ele um homem espoliado
em sua experiência – um homem moderno”
174
. O poeta está sozinho, exilado num mundo em
que não há mais espaço para a experiência e para a poesia.
Entretanto, se o poeta não é mais porta-voz da cidade, entre a religião e a política,
a poesia passa a ser uma “outra voz”, adquirindo aí, finalmente, assim como a arte de um
modo geral, a autonomia negada, impossibilitada na poética clássica.
3.4 A DEGRADAÇÃO DO TEMPO
Se os elementos enfocados até o momento dizem respeito às condições que o
mundo moderno impôs ao homem, um novo tipo de Cidade, de Estado, de economia,
passemos então às propostas do poeta, da sua atitude rebelde frente a esta nova ordem. Num
mundo definitivamente burguês, Baudelaire opta pela camada mais baixa da burguesia,
categoria em que estava inserido economicamente. Por meio desta escolha poética,
revolucionária, ele manifesta a sua poesia e, por conseqüência, funda a poética moderna.
Como homem moderno, sem experiência, sem o poder de representar a voz do
Estado, o poeta não se distingue de outros cidadãos, passa a ser apenas mais um em meio às
172
Ibid., p.168.
173
PAZ, Octavio. La otra voz. Barcelona: Seix Barral, 1990, p.130.
174
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2. ed., São Paulo:
Brasiliense, 1991, p.130.
80
massas. Não é herói, não é vate. No limiar de duas eras, de duas culturas, a antiga e a
moderna, Baudelaire “não possuía nenhuma convicção, estava sempre assumindo novos
personagens. Flâneur, apache, dândi e trapeiro, não passavam de papéis entre outros, pois o
herói moderno não é herói – apenas representa o papel de herói”
175
. Multiplamente dividido,
não viveu como trapeiro verdadeiramente, sendo esta a máscara poética a marcar sua
sobrevivência, a recolher os rejeitos da sociedade para construir sua poesia. Mas, pelas ruas de
Paris, foi um flâneur, um dândi, um apache. Com Baudelaire, a multidão se torna personagem
na poesia lírica. Benjamin diz:
A multidão – nenhum tema se impôs com maior autoridade aos literatos do
século XIX – começava a se articular como público em amplas camadas
sociais, onde a leitura havia se tornado hábito. Tornou-se comitente,
pretendendo se reconhecer no romance contemporâneo, como os mecenas
nas pinturas da Idade Média. O autor de maior êxito do século acedeu a esta
exigência por imposição íntima. Multidão significava para ele a multidão de
clientes, do público, quase no sentido da antiguidade clássica.
176
Nos “personagens” e “heróis” vividos pelo poeta francês encontramos figuras
distintas, por vezes até contrastantes e incongruentes, como a do trapeiro e a do dândi, em
termos de aparência, ou a do apache e a do trapeiro, em termos de função social. Em comum
entre eles, o fato de quase todos pertencerem ao submundo, de terem qualidades e funções
sociais relegadas, renegadas pela sociedade e pelos ideais da poética clássica. Eis aí
claramente um dos principais pontos de rompimento com a antiguidade, com a poética de
Aristóteles, pois os homens retratados não são superiores, tampouco suas ações. A classe
social visada é a mais baixa, a marginalizada, a marginal, em que alguns personagens
prefiguram-se até mesmo como fora dos padrões da moralidade.
Por intermédio de seus personagens, Baudelaire funda uma nova estética, voltada
agora, para o mundo inferior: o das classes baixas, dos marginalizados e marginais. Em tal
universo, o belo buscado deixa de ser o da antiguidade, o ideal, o puro e perfeito, o eterno,
para se firmar como o moderno, o real, o humano, imperfeito, passageiro, encontrando-se
dentro do efêmero o eterno.
Situando um pouco mais o desenvolvimento histórico desta revolução artística,
Victor Hugo, em seu “Prefácio de Cromwell”, ou Do grotesco e do sublime, fala de três
grandes idades do mundo, do homem e da poesia: 1) os tempos primitivos – quando o mundo,
175
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2. ed., São Paulo:
Brasiliense, 1991, p.94.
176
Ibid., p. 114.
81
o homem e com ele a poesia despertam, quando “tudo pertence a cada um e a todos”
177
. A
poesia é a lírica; 2) os tempos antigos – representam a juventude da humanidade, quando “o
sacerdote e o rei dividem entre si a paternidade do povo”
178
, as nações começam a ficar
comprimidas no globo, gerando choques, migrações de povos, viagens. A poesia torna-se
épica; 3) os tempos modernos. Este terceiro teria uma de suas raízes na vitória do cristianismo
sobre o paganismo, a nova religião ensinando ao homem que ele tem duas vidas que deve
viver, uma passageira, a outra imortal; uma da terra, a outra do céu. Com o cristianismo, o
homem “sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do
belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a
sombra com a luz”
179
. O que não quer dizer que o grotesco não existisse na antiguidade, seria
difícil esquecer cenas e personagens de Petrônio, das sátiras romanas, e como complementa
Hugo: “A coisa aliás seria impossível. Nada vem sem raiz; a segunda época está sempre em
germe na primeira”
180
. Para ele, o gênio moderno nasce da fecunda união do tipo grotesco
com o tipo sublime. Entre os modernos, o grotesco tem papel imenso porque “se passa do
mundo ideal ao mundo real”, o gênio moderno nasce da fecunda união do tipo grotesco com o
tipo sublime. A poesia moderna é o drama “que funda sob um mesmo alento o grotesco e o
sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia, o drama é o caráter próprio da terceira
época de poesia, da literatura atual”.
O poeta francês reescreveu a experiência humana, não mais a antiga,
fundamentada no heroísmo, no enfrentamento aos perigos naturais da vida, na luta física e
material contra a natureza, mas a moderna estruturada no embate burguês pela busca da
redoma e proteção do conforto isolado do lar e da cidade. Contra esse mundinho, ele
experimentou algumas vivências totalmente opostas, viveu nas ruas, fez-se trapeiro, apache e
instaurou a vivência do choque e a desintegração da aura. Walter Benjamin, ao referir-se ao
declínio da aura na arte e no mundo moderno, à perda do sublime e a transposição dessa nova
situação na poesia de Baudelaire, comenta que:
Ele determinou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do
moderno: a desintegração da aura na vivência do choque. A conivência com
esta destruição lhe saiu cara. Mas é a lei de sua poesia que paira no céu do
Segundo Império como “um astro sem atmosfera”.
181
177
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988, p.25.
178
Ibid., p.27.
179
Ibid., p.28-9.
180
Ibid., p.36.
181
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2. ed., São Paulo:
Brasiliense, 1991,p 145.
82
Vivendo papéis desprezados e desprezíveis para a sociedade, o poeta chocou e
inaugurou uma nova poética, fundamentada na dessublimação. Para Ítalo Moriconi
182
, “A
dessublimação no caso nada mais seria senão modalidade moderna do sublime. O sublime
moderno deveria então ser definido como sublime dessublimado ou como emergência do
sublime na dessublimação”.
Na sua proposição poética, rebelde, de chocar, ao falar do baixo mundo, da
marginalidade, Baudelaire usa de palavras e pensamentos que até então eram negados,
excluídos do universo poético. Segundo Benjamin, a partir do início do século XIX, os
escritores começaram a empregar palavras da linguagem corrente. E “As flores do mal é o
primeiro livro a usar, na lírica, palavras não só de proveniência prosaica, mas também
urbana”
183
. Para expressar a modernidade, as palavras não podem ser apenas elevadas, têm
que ser também medianas e baixas, como a classe que a arte representa e a que, por vezes, se
refere. E neste sentido, podemos falar e questionar a idéia de degradação dos tempos. A
antiguidade marcou a expressão e auto-referenciação artística, cultural de uma classe e de
valores mais elevados que objetivava o sublime, o ideal. A modernidade, por sua vez, não
nega esses altos valores, contudo, fez com que segmentos sociais, até então, sempre apagados,
elididos pudessem transparecer num cenário, senão necessariamente e completamente
político, pelo menos artístico e cultural. Numa perspectiva meramente gradativa, ocorreu uma
degradação, desceu-se um nível, os tempos pioraram. Numa perspectiva social, por vezes
política, houve um progresso, certa evolução. Grupos sociais inferiores, desprestigiados, que
ao longo de toda a história da civilização ocidental tiveram suas vidas sacrificadas na
construção desse mundo, obtiveram minimamente um reconhecimento, uma nesga de lugar ao
sol.
Baudelaire se posiciona no mundo de forma dialética. Ultrapassando a fronteira,
mas ainda avistando os dois lados, o poeta vê o passado, os reflexos da Antiguidade e vive o
presente, a Modernidade. Dividido entre esses dois tempos vive o seu drama; repartido entre o
claro e o escuro, a multidão e o isolamento, o sublime e o submundo, o céu e o inferno,
Baudelaire construiu sua poesia e a poética moderna, ou como diz João Alexandre Barbosa:
182
A. MORICONI, Italo. “Quatro (2+2) notas sobre o sublime e a dessublimação”. In: Revista de
Literatura Comparada, n.4, ABRALIC, Florianópolis, 1998, p.105.
183
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2. ed., São Paulo:
Brasiliense, 1991, p. 96.
83
Entre prostitutas e santos, Baudelaire escolheu a “porta estreita”: aquela que
não leva a lugar nenhum (nem ao êxtase do sexo nem aos céus), mas a si
mesmo: o poema. Antes e melhor do que qualquer outro, Baudelaire, o
“flâneur”, o esgrimista, o dândi, sabia que “homem nenhum é uma ilha” a
não ser o poeta: o seu ancoradouro chama-se linguagem.
184
3.5 NO TEMPO DE DRUMMOND
No Brasil, a modernidade chega com um atraso de aproximadamente um século
em relação à Europa. Dadas as condições econômicas, políticas e sociais, não poderia ter sido
outra a situação. Apesar de o Estado nacional ter se estabelecido ainda na primeira metade do
século XIX – mesmo que sem revolta e na base de acordos – a economia pautada em
monoculturas, gerada por mão-de-obra escrava, comandada por uma oligarquia, fez com que
o país se atrasasse e se arrastasse num ritmo e numa existência medieval. De tal modo que
somente no novo século, após a abolição da escravatura e a proclamação da República, a
nação finalmente entra na modernidade. Só então a indústria se instala; surge uma classe
operária e o eixo populacional começa a se inverter, do campo para a cidade. Inicialmente,
São Paulo e Rio e mais tarde pelas regiões litorâneas afora.
E é na virada do século, no calor dessa transformação econômica e social que
nasce Carlos Drummond de Andrade. O auge da juventude do poeta é também o auge do
assentamento industrial no centro do país, sendo ele próprio um homem saído do campo para
a cidade. Sua obra reflete a época, o processo de desenvolvimento pessoal, da nação e da
literatura brasileira modernista.
Guardadas as devidas proporções, Drummond, tanto quanto Baudelaire fizera para
a poesia mundial, rompe com o passado e coloca a lírica brasileira na modernidade. Tanto
quanto este, ele se encontra dividido, entre um Brasil antigo e moderno. Entre o passadismo
da literatura nacional e o presente, moderno, ele faz poesia e registra o progresso urbano
irreversível, o surgimento do operariado, da massa, da desigualdade social no país e através
do sentimento lírico mostra a sua inquietude para com o momento. Entre o campo e a cidade,
entre o passado e o presente, entre o antigo e o moderno ele elabora a sua lírica. Sua poesia
rompe com o passado da poesia brasileira ao trazer para a mesma e para a linguagem poética
184
BARBOSA, João Alexandre. “Baudelaire ou a linguagem inaugural. A história literária como
tradição poética”. In: As ilusões da modernidade. Campinas: Perspectiva, p.63.
84
o cotidiano, o comum e o corriqueiro, até então negados, estranhos, distantes da matéria
poética, sem deixar de tratar e expor de modo concomitante o sublime e o erudito.
Neste aspecto, podemos observar que o embasamento arquitetônico da poética de
Drummond é Baudelaire, como pode ser evidenciado pela revolta para com o mundo
constituído, pela oposição à burguesia, pelo posicionamento em favor das classes mais baixas,
do homem do povo, pelo descontentamento com a época. Poética modernista que desfaz a
clássica e com ela dialoga a partir dos principais elementos constitutivos e formadores
daquela arte: a Cidade, o poeta e sua relação com a cidade, o pensamento, a linguagem, o
sublime, como veremos a partir de agora, baseado em parte pela tese de doutoramento A
cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond, de Maria do Carmo Campos
185
,
e na obra
de Drummond, especificamente em Nova Reunião - 19 livros de poesia
186
, mas não
exclusivamente.
Neste livro, publicado em 1983, o poeta mineiro faz uma retrospectiva e releitura
dos últimos 50 anos de lavra poética até ali. Reúne as publicações de Alguma Poesia, Brejo
das Almas, Sentimento do Mundo, José, A Rosa do Povo, Novos Poemas, Claro Enigma,
Fazendeiro do Ar, A vida passada a limpo, Lição de Coisas, A Falta que Ama, As Impurezas
do Branco, A Paixão Medida, Boitempo, Menino Antigo, Esquecer para Lembrar e mais a
seleção de alguns poemas extraídos de Viola de Bolso, Versiprosa e Discurso de Primavera e
Algumas Sombras. Textos que compreendem o início de tudo, em 1930 até 1962, e agrupam a
mais importante e significativa porção de sua escritura. São obras que repontam o seu
processo de evolução e amadurecimento lírico. No que diz Antônio Houaiss a respeito da
primeira Reunião (1969), também no plano biográfico, é:
Obra que é uma vida, inclusive no que esta encerra de defraudações e
vacilações, de ilusões e decepções, de atritos e de lubricidades. Não se quer
– é claro – com isso postular que a Obra valha como elucidação de uma
biografia; ao contrário, o que se quer dizer é que uma biografia existe e se
consome e se consuma na Obra [...].
187
Reunião que compreende e congrega as principais fases de sua obra apontadas
pela crítica: 1) a mais modernista, de ruptura com os padrões dos estilos anteriores, período
mais jovial e combativo e também mais introspectivo; 2) a social, como desdobramento,
185
CAMPOS, Maria do Carmo. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond. Tese de
Doutoramento, orientada pelo Prof. Dr. Flávio Wolf de Aguiar. São Paulo: USP, 1989.
186
ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova Reunião – 19 livros de poesia. 3.ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1987.
187
HOUAISS, Antônio. “Prefácio”. In: Reunião – 10 livros de poesia de Carlos Drummond de
Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio Editores, 1969, p. xix.
85
continuidade e evolução da primeira e 3) a metafísica, presente desde o início, oriunda, quem
sabe da timidez e da quietude mineira como fala Davi Arrigucci Jr., em Coração partido
188
,
ou da inquietação, inquietude do homem Carlos Drummond. O teor destes textos varia na
forma e na temática. Em sua grande maioria são versos livres, sem preocupação com o rigor e
a unidade da forma, bem ao gosto modernista.
Por outro lado, percebem-se ao mesmo tempo a presença e a permanência de uma
forma mais clássica, por assim dizer, sobretudo em sua segunda fase, em Claro enigma,
Fazendeiro do ar e A vida passada a limpo. Representam um número pequeno, mas nem por
isso menos significativo. São poemas sob a forma ou a proposição de elegias (“Elegia do Rei
de Sião” - Alguma Poesia; “Elegia 1938” - Sentimento do Mundo; “Elegia” - Fazendeiro do
Ar), epigramas (“Epigrama para Emílio Moura” - Alguma Poesia), sonetos (“Soneto da
perdida esperança” - Brejo das Almas; “Sonetos do passado” - A vida passada a limpo;
“Sonetilho do falso Fernando Pessoa” - Claro Enigma), apenas para citar alguns. Muito
raramente encontramos odes, como a “Ode no cinqüentenário do poeta brasileiro” -
Sentimento do Mundo. Um tipo de poema que não seria possível na modernidade,
incondizente com a falta de harmonia do mundo, com a falta de razão de cantar do poeta,
principalmente um poeta gauche, pois de acordo com Maria do Carmo Campos, “É no espaço
gerado pela impossibilidade da ode (hino) que se inscreve em Drummond o canto rouco da
lírica contemporânea a voz da cigarra que ninguém ouve, o hino que ninguém aplaude”
189
.
3.6 A LÍRICA DRUMMONDIANA
Em sua tese dedicada ao poeta mineiro, a autora citada realinha na obra de
Drummond os principais elementos que compõem a poética modernista iniciada com o poeta
francês: a cidade moderna, a perda da aura, a metáfora da viagem. Segundo ela, Drummond é
o “introdutor da sensibilidade moderna”
190
na poesia brasileira. É mandatário da poesia “pós-
188
ARRIGUCCI Jr., Davi. Coração partido – uma análise da poesia reflexiva. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002.
189
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo: USP, 1989, p. 21. (Tese de Doutoramento).
190
Ibid., p. 21.
86
baudelaireana, calcada na escavação do transitório e do efêmero como substâncias de possível
eternidade; é reduto heróico contra a brevidade e a desfiguração vital”
191
.
A leitura da tese corrobora a fortuna crítica de Drummond e aponta para os vários
e variados deslocamentos do poeta ao longo de sua extensa obra. Em termos biográficos, há
as transferências do campo para a(s) cidade(s), inicialmente, da fazenda para Nova Friburgo,
para Itabira e desta para Belo Horizonte e para o Rio de Janeiro. No plano subjetivo, a autora
propõe a migração de um universo obscuro, perdido, insatisfatório que a cidade pequena e
tediosa lhe proporcionava para a clareza e claridade despertada pela consciência que a cidade
lhe proporcionara. No plano pessoal, podemos pensar no desenvolvimento e transformação
do jovem inseguro, inconseqüente, em adulto. Na poesia, o seu eu-lírico viaja da certeza que a
ideologia socialista lhe dava, até o fim da segunda guerra mundial, rumo a “um lugar
supostamente metafísico”
192
, após a falência das revoluções socialistas; de um tempo real, o
presente, para outro irreal, etéreo, nem claro, nem preciso, o passado, a memória; de uma
poesia social, combativa ao que existe de real, dirige-se a uma lírica reflexiva, filosófica,
hipotética. Se não há como lutar com as armas de fogo, luta-se com outras, as palavras, o
pensamento.
A inquietude de Drummond, aludida por Antonio Candido, é confirmada por este
sentimento de deslocamento, de obliqüidade em relação ao mundo e ao tempo em que ele
vive. O eu - lírico drummondiano é conflitivo, por isso os inúmeros contrastes, campo e
cidade(s), passado e presente; o claro e o escuro, modernidade e eternidade, vida e morte.
Neste ponto ele diverge de Horácio, que, embora também dividido entre a sua vida na Urbs e
o gosto e o desejo de viver no campo, ainda assim classicamente busca e alcança a
tranqüilidade da alma, ataraxia que o poeta mineiro jamais atinge, almeja, já sabedor da
impossibilidade de encontrá-la. No dizer de Maria do Carmo Campos, “Um mito da busca
percorreria, talvez, a poesia de DRUMMOND no vislumbre de um território desejado e
(in)existente”
193
.
A atitude de Drummond, assim como a de Baudelaire, é romântica, no sentido de
reagir contra o mundo burguês (“Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram, / mas
a areia é quente, e há um óleo suave / que eles passam nas costas, e esquecem” – “Inocentes
do Leblon”), contra o cientificismo e o tecnicismo (“Há máquinas terrivelmente complicadas
para as necessidades mais simples” – “O sobrevivente”), no sentido de demonstrar um “gosto
191
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo: USP, 1989, p. 170. (Tese de Doutoramento).
192
Ibid., p. 170.
193
Ibid., p. 15.
87
pelas utopias libertárias”, a construção de um mundo melhor via socialismo (“Aurora, /
entretanto eu te diviso, ainda tímida, / inexperiente das luzes que vais acender / e dos bens que
repartirás com todos os homens” – “A noite dissolve os homens”), pelo mundo greco-romano
(“E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico, / senão a quebrada lembrança / de latina, de
grega, inumerável delícia?” – “Paixão medida”), de ser rebelde e contrário a este mundo,
insatisfatório (“porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhatan” – “Elegia 1938”).
André Bueno, ao caracterizar a postura romântica, diz:
Posto o mal-estar, muitas vezes a própria vida urbana será percebida como
feia, suja, decadente e viciosa, fazendo ressurgir o velho tema da vida no
campo, em contato com a natureza, como a verdadeira boa vida humana. Por
extensão, ganhará força a aproximação entre a sensibilidade e a imaginação
românticas e os impulsos utópicos: ilhas, viagens (reais ou imaginárias),
países exóticos, comunidades antigas, povos selvagens, atrações lúdicas e
eróticas como princípios para organizar o trabalho e a vida social.
194
Na obra de Drummond, vê-se claramente e de forma recorrente o tema da vida no
campo – sua origem, os impulsos utópicos (a clara tendência socialista, favorável às
revoluções comunistas, principalmente em A Rosa do Povo), as ilhas (“Sou encontrado 50
anos depois / naquela ilha do Atlântico próxima à foz do Orinoco” – “Propriedade”), as
viagens reais (por Minas, para Petrópolis, para o Rio) e imaginárias (“A tamanha distância
procuro, indago, cheiro destroços sangrentos, / apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas, relógios partidos, / sinto-te como
uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?”, “Carta a Stalingrado”, ou
“Navios... Sair pelo mundo / voando na capa vermelha de Júlio Verne”), as atrações lúdicas,
visíveis, no seu caso, no jogo com as palavras (“Hortênsia é saxifragácea” / “Hortênsia é
sexifragrância” – “Hortênsia”) e as atrações eróticas (“O arabesco em forma de mulher /
balança folhas tenras no alvo / da pele. / Transverte coxas em ritmos, / joelhos em tulipas. E
dança / repousando. Agora se inclina / em túrgidas, promitentes colinas” – “Corporal”).
O campo mostra-se na poesia de Drummond como lembrança do poeta-menino a
imaginar aquela sua história, aquela infância “mais bonita que a de Robinson Crusoé”
(“Infância”), como lembrança familiar, lembrança da tradição familiar de viver do e no
ambiente rural, visível entre outras coisas no “capim-jaraguá”, no “capim gordura” em que
pastam “200 bestas novas de recria, / 150 reses pisam o que foi / a vinha de 30 mil pés”, ou na
bota “rendilhada de lama, esterco e carrapicho” (“Bota”). Mas pode ser entendido também
194
BUENO, André. “Viagens pelo mundo desencantado”. In: Formas da crise: estudos de literatura,
cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Graphia, 2002, p.129.
88
como memória de uma vivência que o mundo industrial deixou para trás: “Há um chinês
dormindo no campo. Há um campo cheio de sono e antigas confidências” [...] “O campo está
dormindo e forma um chinês / de suave rosto inclinado / no vão do tempo” (“Campo, chinês e
sono”). O sentimento do poeta para com o campo é de perda, perda de uma época tranqüila,
segura junto à família, mas não de completo saudosismo. Há da sua parte a consciência da
inevitável passagem do tempo. O campo lhe proporciona lembranças, boas quando da
infância, ao ver o pai sair para a lida, ao tirar as suas botas no retorno ao final do dia, mas
definitivamente o campo não é mais, provavelmente nunca fora o seu lugar, sua propriedade,
o seu desejo de ganhar e de viver a vida:
O capim-jaraguá, o capim-gordura
recobrem a mina de ouro sem ouro.
Pastam 200 bestas novas de recria,
150 reses pisam o que foi
a vinha de 30 mil pés. O engenho
de serra, fantasma petrificado.
O moinho d’água mói o milho mói a hora mói
o fubá da vida. Fubá que escorre dos dedos,
polvilha amarelo os empadões de estrume
do curral. No espelho do córrego bailam
borboletas bêbadas de sol. Jabuticabeiras
carregadas esperam. No galho mais celeste
fujo da fazenda fujo da escola fujo
de mim.
Sou encontrado 50 anos depois
naquela ilha do Atlântico próxima à foz do Orinoco. (“Propriedade”).
195
Além do que, historicamente, em termos de país e de vida pessoal, o campo não se
faz mais possível, a força da economia nacional está na indústria, a família do menino-poeta
mudou-se para a cidade. O campo é passado, é lembrança, não tem mais volta.
Na esteira dessa idéia, podemos falar de um bucolismo presente em sua obra.
Sentimento bucólico ocasionado pela sua lembrança familiar, reminiscências de um período
de segurança e tranqüilidade junto aos pais (“mas falta a minha xícara, guardou /para quando
195
ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião: 19 livros de poesia. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1987, p. 624.
89
eu voltar?” – “Terceiro dia”), junto à mãe-terra (“Esta montanha aqui eu não entendo”). De
outra forma, este bucolismo pode ser visto como memória artística ocidental, a manutenção de
uma tradição literária que começa com os autores gregos, passa pelos romanos, como
Virgílio, Horácio, pela Europa medieval e renascentista, chegando até o Brasil de Cláudio
Manoel da Costa, Tomaz Antônio Gonzaga e outros.
Entretanto na poesia de Drummond, assim como no mundo moderno, a
tranqüilidade e o bucolismo não têm mais espaço, a não ser na lembrança pessoal e na
memória humana. A cidade e a industrialização os tomaram. O poeta demonstra muitas vezes
que a quietude é tediosa, não é o seu mundo, concluindo: “Que cerros mais altos, / vista mais
calmante, / sítios mais benignos, / nuvens mais de sonho, / fontes mais pacíficas, / gente mais
cordata, / bichos mais tranqüilos, / noites mais sossego, / sempiternamente / vida mais
redonda... / vida mais difícil...” (“Conclusão”). Em Horácio, era possível haver um bucolismo,
porque ele estava estabelecido no seu mundo artístico, social, político, que era acolhedor; ele
é um vate, a natureza é acolhedora. Em Drummond, não. O mundo e os homens estão
partidos, não há cidades para exaltar, não há o que cantar, o jeito é resguardar-se por vezes,
“Guardei-me para a epopéia / que jamais escreverei. [...] O que eu escrevi não conta. / O que
desejei é tudo. Retomai minhas palavras, / meus bens, minha inquietação” para então num
futuro cantar “Um mundo enfim ordenado, / uma pátria sem fronteiras, / sem leis e
regulamentos, / uma terra sem bandeiras, / sem igrejas nem quartéis, / sem dor, sem febre,
sem ouro”. (“Cidade Prevista”).
A Cidade evocada na obra de Drummond não é uma única, são várias. Talvez
possamos dividi-la em dois grupos: o das cidades pequenas e o das cidades grandes. No que
tange à pequena, ainda assim são muitas, basicamente as do interior de Minas. Entre elas, a
primeira, a predileta por motivos óbvios, a terra natal Itabira. Além desta, viu e mostrou as
cidades históricas, patrimônio artístico e cultural, orgulho mineiro. Mas há também espaço
para as cariocas Petrópolis e Nova Friburgo, fruto da lembrança infantil, nestes dois casos
amarga, por conta da separação familiar, dos medos e dos primeiros exílios.
A cidade pequena representa o atraso, a co-existência e a resistência do mundo
antigo aos modernismos, e despertam no poeta três sentimentos: 1) o de enfado e
descontentamento para com a pasmaceira, para com o provincianismo visível no recato dos
namoros (“[...] ele e ela, abraçados / em cheiros conjugados, // sem se tocarem (nada / autoriza
/ a licença / do beijo corporal) praticam sem detenção //– ai – o sexo aromal.” – “Poder do
Perfume”), nos “terremotos líricos” dos saraus na Belle Époque mineira (“O melhor dos
tempos”), nos olhares fofoqueiros de alguém “recortado em penumbra”, “debruçado à janela
90
diante da segunda-feira e das eternidades da semana” (“Chegar à janela”); 2) o sentimento de
amor e carinho com determinados personagens da cidade, de um modo geral com um
pensamento mais avançado ou menos mesquinho em relação aos demais, expresso no afeto
dedicado ao santeiro anarquista Alfredo Duval, “aliança no tempo” entre o menino e o
homem. (“A Alfredo Duval”), ao Dr. Câmara, “criador de uma espécie botânica sem par”,
uma “árvore-de-moedas” para o menino (“Flora mágica noturna”) e 3) o sentido telúrico
“Principalmente nasci em Itabira. / Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. [...] Oitenta por
cento de ferro nas almas. / E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”
(“Confidência do itabirano”), sentido de voltar-se para o berço, para suas raízes, para o
aconchego e segurança da terra e da família (“o desejo muito simples / de pedir à mãe que
cosa, / mais do que nossa camisa, nossa alma frouxa, rasgada...” – “A mesa”), por vezes essas
raízes são bem mais profundas, são transcendentes “horta de deitar no chão e possuir a terra, /
e de possuir o céu, quando a terra me cansa” (“Litania da horta”).
Quanto à cidade grande, novamente ela não é apenas uma, mas múltiplas, duas
reais, visitadas e vividas pelo poeta, no Brasil: Belo Horizonte e Rio de Janeiro e muitas
outras fora do país, em sonhos utópicos ou intelectuais, das quais ele só conheceu de fato a
capital argentina. “Atravessa as cidades mineiras, o Rio de Janeiro e muitas outras como
Paris, Berlim, Moscou, Buenos Aires, Stalingrado, Roma, cidades da América, a ilha de
Manhattan, indicadas entre a “cidadezinha qualquer” e a “cidade grande”, “o eu-lírico vai
rumando para uma particularização finíssima do visível urbano, em ângulo aberto para o
mundo”
196
. Essas duas cidades brasileiras expressam a visão da modernidade: a
industrialização, o crescimento urbano (“Entre carros, trens, telefones, / entre gritos, o ermo
profundo.” – “O boi”), os problemas sociais (“No hipermercado aberto de detritos, [...]
mulheres e crianças rápidas / catam a maior laranja podre” – “Fim de feira”). Embora na
capital mineira ainda exista uma possível tranqüilidade, ao dormir de noite na Floresta, dormir
“em paz de família mineira / para todo o sempre / garantida em bancos / e gado de corte”, sob
“a indulgência plena do Vaticano”, certo provincianismo (“Debaixo de cada árvore faço
minha cama, / em cada ramo dependuro meu paletó. / Lirismo. / Pelos jardins versailles /
ingenuidade de velocípedes” – “Lanterna Mágica, I / Belo Horizonte”) e poesia “Estes
crepúsculos sublimes criam outra Belo Horizonte, / não a dos tristes funcionários seriados, /
outra Minas, outro Brasil.” (“Estes crepúsculos”).
196
CAMPOS, Maria do Carmo. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond. São Paulo:
USP, 1989, p.40. (Tese de Doutoramento)
91
Nas menções ao Rio de Janeiro, além do encantamento com a vastidão do mar,
encanto de mineiro e de todos, é freqüente a insatisfação com a indiferença burguesa para
com os problemas sociais da cidade, do país e das pessoas em geral (“Fútil nas sorveterias. /
Pedante nas livrarias... / Nas praias nu nu nu nu nu nu. / Tu tu tu tu tu no meu coração. // Mas
tantos assassinatos, meu Deus. / E tantos adultérios também. / E tantos, tantíssimos contos-do-
vigário... / (Este povo quer me passar a perna.)” (“Rio de Janeiro – VII”), a insatisfação com a
miséria humana em “Fim de Feira”, com a violência, do “Papai Noel às avessas”, a roubar os
brinquedos das crianças, ganhos na noite de Natal, da morte “por engano” do leiteiro.
Apesar de algumas exaltações a pessoas, a certos cidadãos, principalmente do
interior, Drummond não canta a Cidade, porque ela não é mais digna de ser cantada, a
abstração que é o Estado moderno não permite uma relação mais orgânica entre este e os
cidadãos, o poeta e a arte se fazem desnecessários para uma pólis que não existe mais
enquanto espírito de coletividade, de patriotismo, transformou-se em ci(vili)dade, arte de
suportar o semelhante, universalizou-se. Os modernismos e modernidades propiciaram
conforto, isolamento e apagaram a humanidade e o senso de coletividade do cidadão, ou
Os hinos e odes ao progresso e aos espaços urbanos atuais não sustentam o
diapasão do bardo de Itabira que, simplesmente lúcido, registra o seu tempo.
As cidades não são celebradas, mas percorridas (poetizadas) como único
espaço plausível na duração deste nosso século.
197
Mas a verdadeira e única Cidade do poeta é Itabira. É a sua cidade, cidade-ilha,
isolada, acima do tempo e do espaço. No dizer de Affonso Romano de Sant’Anna, em
Drummond, o gauche no tempo, “Itabira é ele mesmo, o passado de Itabira é o seu passado, o
futuro de Itabira, por conseguinte, é a projeção de si mesmo no futuro”. Esta é “a pólis do
poeta”, uma “verdadeira cidade-estado do poeta construída no topo do tempo”
198
. E mesmo
sem ser mais possível política e socialmente a tarefa de vate na lírica moderna, Drummond o
foi para Itabira, enalteceu a cidade ternamente, não no plano político-religioso, mas
sentimental, familiar naquilo que ela representou para a formação do menino-poeta e do
poeta-menino. Cantou a grandeza e o pensamento progressivo de alguns cidadãos, como o
delegado que gostava de literatura e não de dar tiros, o “moço postalista Fernandinho” que
197
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo: USP, 1989, p. 170. p.44. (Tese de Doutoramento).
198
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond, o gauche no tempo. Rio de Janeiro: LIA/INL,
1972.
92
discutia política mundial com o menino, indiferentes às mesquinharias e provincianismo dos
concidadãos.
Se o poeta não tem mais muitas razões para cantar a cidade coletiva, se o poeta
não é mais o porta-voz desta, na visão de Campos, ele passa então a ser apenas mais um entre
a multidão, ele próprio se torna um herói multifacetado, é Carlos, é José, é Raimundo.
Contudo, se ele não é voz da cidade, sua poesia o é, voz dos que não têm voz ou direito a ela,
sua poesia “dá voz, por exemplo, ao anjo (ser híbrido e intervalar) e ao torto, aos párias e aos
mutilados do Canto ao homem do povo Charlie Chaplin, convocando não os sem-terra que
superpovoam nosso país, mas os sem-voz, atopias outras da cidade e do mundo, vasto
mundo”
199
, a mesma voz que Baudelaire dava ao trapeiro, ao apache e às prostitutas. Na
contramão dos poetas clássicos, “que haviam composto suas odes / para saudar atletas
vencedores”, Drummond levanta-se, “poeta da derrota” que nesse instante é, “para saudar os
atletas vencidos” (“Aos atletas”), aqueles a quem foi imputado o crime de lesa-pátria, ao
serem considerados responsáveis pela perda do que seria o primeiro título do Campeonato
Mundial de Futebol para o Brasil, como Feola, “pois perder é tocar alguma coisa / mais além
da vitória, é encontrar-se / naquele ponto onde começa tudo / a nascer do perdido,
lentamente”. O jogo para jogadores e atletas, na vitória ou na derrota, é fugaz, uma vez
encerrado, com alegria ou pranto, começa tudo de novo. Para os vitoriosos o novo embate
pode trazer queda, para os derrotados, o mais provável é a ascensão.
De todos os personagens referendados e, mesmo entre os homenageados como
Charlie Chaplin, a recorrência de suas ações, na maioria das vezes, assinala uma principal, a
de errar, vagar, viajar. O que nos faz lembrar da antiga alegoria da vida como viagem, como
aventura e desafio a ser enfrentado e o destino gauche traçado para o poeta pelo anjo torto.
Chaplin é muito sintomático neste sentido, ao evocar Carlitos o eterno viandante a vagar pelas
cidades modernas e a terminar sempre os episódios com o pé na estrada. Da mesma forma,
muitos poemas de Drummond começam em andamento. “A máquina do mundo” inicia com
uma conjunção aditiva a dar idéia de continuidade, subseqüência, “E como eu palmilhasse
vagamente / uma estrada de Minas, pedregosa”. No polêmico “No meio do caminho”, o poeta
é obrigado a interromper sua caminhada e não consegue avançar por haver uma pedra a
atrapalhar, ou seja, há de novo uma jornada em decurso, interrompida por um simples objeto
do reino mineral, por um ser inferior na escala da criação.
199
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo:USP, 1989, p.133. (Tese de Doutoramento).
93
Nesta jornada, o poeta moderno é apenas mais um em meio à multidão,
entretanto, sabe-se que ele não é qualquer um, é artista, homem de sensibilidade, de percepção
e inteligência num mundo que não tem mais interesse por sensibilidade, sublimação,
inteligência e poesia. Por isso o poeta é um solitário, tanto quanto Carlitos era, por isso o seu
isolamento, o seu fechamento em si, o seu “Segredo”: “A poesia é incomunicável. / Fique
torto no seu canto. / Não ame”. Daí o porquê de os poetas modernos sonharem com ilhas:
Debruço-me em teus poemas
e neles percebo as ilhas
em que nem tu nem nós habitamos
(ou jamais habitaremos!)
e nessas ilhas me banho
num sol que não é das fontes
mas que ambos refletem a imagem
de um mundo amoroso e patético. (“Ode no cinqüentenário do poeta
brasileiro”).
E assim, por causa da “desnecessidade do canto”, por causa de uma “Vida
menor” não há mais porque a poesia tratar apenas do sublime, distante e irreal. É preciso que
o mundo, tal como se apresenta, seja visto como é: humano, comum, cotidiano, feio e bonito.
De onde se depreende “o rastro baudelaireano em Drummond: a renúncia incondicional à
auréola e enfrentamento da poesia como matéria baixa, dessublimada”
200
. Lado a lado com o
belo e o lírico, o grotesco se posiciona, ocupa o seu espaço na lírica drummondiana. Encontra-
se no “Cabaré Mineiro”, onde “Cem olhos morenos estão despindo” o “corpo gordo picado de
mosquito” da “dançarina espanhola de Montes Claros”; junto “à latrina” para a “Higiene
Corporal”, o “caixote / de panos de limpar cu / de menino”.
O cotidiano, o corriqueiro, o comercial também se faz presente nessa lírica, no
emprego de numerais “E falam de negócio [...] de café tipo 4 e tipo 7” (“Os grandes”), de
símbolos e numerais pertinentes ao universo dos negócios “a mula & o muladeiro”
(“Conversa”) , da contabilidade “halley áureo foguete em órbita 180 / 210 240 360 dias-
cruzeiro [...] Quando seremos ricos, morena? / No fim de $5 anos-kofybrasa” (“Os nomes
mágicos”), são provas, entre outras, e podem ser pensados como deboche à preocupação
200
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo: USP, 1989, p. 28. (Tese de Doutoramento).
94
burguesa e capitalista com os negócios, com a quantidade, com a contagem de bens
materiais, com o acúmulo e o lucro.
O poeta cria, assim, uma “antilira” dedicada à burguesia, ao tecnicismo, ao mundo que
não quer saber do canto de Orfeu. “Se a lírica é travessia iniciada no “canto”, o poeta transforma-o
pela negação, pelo enfraquecimento do intuito celebrante (de cunho épico)”, como atesta sua “Oficina
irritada”:
Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
(...) Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer.
Eis aí o processo de dessublimação, processo iniciado por Baudelaire e seguido
por vários outros poetas modernos. “A consciência dos sentidos limitados é matéria da poesia
moderna, que se sabe dessacralizada e necessária, revigorada sempre pela força (lírica?) do
cotidiano. Auto-exilado da torre de marfim, o poeta emite o seu canto profano e prosaico,
impuro na seleção de motivos. [...] Constrói-se a paradoxal postura lírica drummondiana na
mescla das coisas elevadas e das baixas, do belo e do feio”
201
. Como nas várias menções e
apologias ao bonde, e muito claramente nesta:
bonde amarrado à vida de 50
mil passageiros, minha gôndola,
meu diário bergantim, meu aeroplano,
minha casa particular aberta ao povo,
eu te saúdo, te agradeço; e em pé no estribo,
agarrado ao balaústre,
de modesto que és, faço-te ilustre. (“Hino ao bonde”).
Dessublimação, nos nomes de produtos (“Resovin! Hecolite! / Nomes de países? /
Fantasmas femininos? / Nunca: dentaduras” – “Dentaduras duplas”). E até mesmo nas
propagandas veiculadas nos meios de comunicação da época, no sintomático poema-piada
“Verbo e verba”:
201
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo: USP, 1989, p. 153. (Tese de Doutoramento).
95
depurativo Salsa, Caroba e Manacá,
do Cacturgenol para urinas escuras,
e faz intercalar o comunicado do Partido
com o salutar aviso
de que o Pó Pelotense
é o único a evitar assaduras debaixo dos seios.
Assim como a poesia e o poeta possuem um lugar muito limitado na cidade
moderna, a natureza igualmente perde o seu espaço e sua vez no mundo. Nas metrópoles ela é
alijada e artificialmente, parcamente mantida por meio da criação de parques e jardins,
bolsões para suprir pequenas necessidades recônditas de naturalidade para o homem urbano
moderno. Em Belo Horizonte, figura o “Jardim da Praça da Liberdade”, que imita parque
europeu, “tão pouco brasileiro... mas tão lindo”. “Bonito demais. Sem humanidade. Literário
demais”, contrastando com os “jardins”, os matos do sertão mineiro sem “Nem repuxos frios
nem tanques langues, / nem bombas nem jardineiros oficiais. / Só o mato crescendo
indiferente entre sempre-vivas desbotadas / e o olhar desditoso da moça desfolhando
malmequeres”.
Contudo, Drummond não se deixa levar por estas estratégias enganosas da
modernidade. Embora busque como todos os homens um local pacífico para viver, ele sabe
que isto não existe, provavelmente nunca tenha sido e nunca seja possível a paz de espírito
para os mortais. A forma como “Um boi vê os homens” mostra isso, a “impossibilidade de se
organizarem em formas calmas, / permanentes e necessárias”. Sob este aspecto, Maria do
Carmo Campos fala da busca do poeta por um espaço, do mito do lugar ideal e da busca de
um tempo maior, da tentativa do impossível lugar ideal em “Boitempo”
202
. Razão pela qual
“O canto drummondiano percorre-se severo, distanciado de qualquer aura mansa e feliz”
203
.
Razão pela qual o poeta está sempre a viajar, a errar. A inquietude do poeta deixa claro que
“não há lugar tranqüilo a não ser na morte” (“O poeta escolhe seu túmulo”), não há
constância, nem eternidade senão depois de morrermos, ou em lugares que não existem mais,
eternos, portanto:
Onde foi Tróia,
onde foi Helena,
202
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo: USP, 1989, p.15-6. (Tese de Doutoramento).
203
Ibid., p. 156.
96
onde a erva cresce,
onde te despi.
onde pastam coelhos
a roer o tempo,
e um rio molha
roupas largadas,
onde houve, não
há mais agora
o ramo inclinado,
eu me sinto bem
e aí me sepulto
para sempre e um dia.
Na poesia de Drummond não se faz possível, nem se verifica um lugar ideal, um
lugar para ficar, um locus amoenus, a não ser na memória pessoal e coletiva, no inconsciente:
“Tão doce era viver / sem alma, no regaço / do cofre maternal sombrio e cálido” (“Nascer de
novo”). Itabira, quem sabe, seja o mais próximo disso, a fazenda e a casa da época da infância
talvez. Mesmo assim não são lugares plenos, há descontentamento com a pasmaceira, com o
pensamento tacanho da cidadezinha; há os medos do quarto escuro, dos fantasmas da família.
Além do que na conjunção do tempo e espaço são locais já perdidos, mortos, banidos. Sua
obra, apesar de falar de cidade(s), se distingue pelo não-lugar, apesar de falar de tempos, se
faz pelo não-tempo. O poeta percorre o seu caminho pela transversalidade.
A fortuna crítica de Drummond aponta para três fases em sua poesia: a primeira
de cunho mais irônico, mais engajado, aos pressupostos modernistas, da Semana de Arte,
evidenciada nos dois primeiros livros Alguma Poesia e Brejo das Almas. A segunda, voltada
para o social, tem o presente histórico do poeta e do mundo em combate entre o capitalismo e
a utopia socialista como elemento norteador. É que o poeta assume e propaga na sua arte, não
de forma panfletária a ponto de prejudicar o lirismo, sua posição política de esquerda, visível,
sobretudo, em Sentimento do Mundo, Rosa do Povo e José. A terceira caracteriza-se por um
fundo mais metafísico, voltado para a reflexão. Com o fim da Segunda Guerra e a constatação
da impossibilidade do futuro socialista almejado, “Trabalhas sem alegria para um mundo
caduco, / onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo” (“Elegia 1938”), o poeta
volta-se para o passado, para a memória, sua e da civilização ocidental. Verifica-se nesta
97
instância, a que denominam neoparnasiana, que o poeta resgata um pouco do estilo, das
fôrmas passadistas: sonetos, odes, elegias, e muito dos elementos clássicos. É quando o eu-
lírico se “despersonaliza”, na visão de Sant’Anna, o poeta vê o seu Eu igual, do mesmo
tamanho que o Mundo.
A observação dessas três fases interessa-nos aqui pelo seu aspecto dialético,
dialógico, bastante comuns na lírica drummondiana. O modernismo da primeira fase e a
modernidade nem sempre é o seu lugar, o neoparnasianismo coabita este ambiente. Por outro
lado, embora sua poesia também apresente formas poéticas clássicas, seu canto é rouco, seu
vocabulário é prosaico, suas rimas não são rigorosamente clássicas, seus versos não são
harmônicos, musicais. Nem se poderia exigir algo diferente de um modernista. Antônio
Houaiss cita o estudo de Hélcio Martins sobre esta questão, em que ele afirma que o poeta
mineiro “requinta-se em (...) captar os delicadíssimos, e não raro deliberadamente
despistados, filamentos da trama fonética do universo poético de Carlos Drummond de
Andrade, cujas rimas se mostram de fato, não ser apenas finais, ou mediais, ou iniciais, mas
também horizontais, verticais, diagonais, seriais e de todos os seus combinatórios”
204
.
Decisivamente, o mundo clássico em Drummond não se encontra na forma, e nem
poderia, sob pena de não ser moderno. Ainda assim, o universo greco-romano, que os
modernistas brasileiros vão negar ao negarem os parnasianos e todo o passado literário
nacional, transparece na lírica de nosso poeta através da temática central desta tese, a
efemeridade da vida e o tempo em sua característica primordial, a fugacidade, bem como em
seus subtemas, a morte, os tempos de vida – juventude e velhice, a arte versus a vida e outros,
transparece na memória da literatura e da cultura ocidental resgatada pelo itabirano.
Da temática clássica em Drummond é que podemos abstrair os loci similes, os
lugares-comuns da efemeridade da vida – de onde provém o decantado carpe diem horaciano
e a perenidade da obra de arte. Na poesia do bardo mineiro, esses lugares-comuns se
manifestam justamente na questão do tempo, na luta do artista contra a voracidade do tempo.
A poesia é a sua arma, nesta guerra entre o permanente (o monumento literário) e o passageiro
que é a vida do homem. A “poética drummoniana essencialmente se resume na verbalização
dos instintos da vida e morte, numa luta entre Eros e Tanatos”, é a “luta contra a morte
crescente”. Nesta luta, a memória cumpre um importante papel, porque retoma o passado e
com isso repete a vida. E “memória é a capacidade de repetir; a repetição é uma atividade
204
HOUAISS, Antônio. Introdução à Reunião: 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio,
1976, p.xxx.
98
inerente a todo organismo vivo e o fator responsável pela própria continuidade da vida. [...] O
ato de repetir é basicamente uma atitude contra o tempo”
205
.
Não podemos, contudo, imaginar o classicismo em Drummond como algo puro.
Tal qual o poeta, ele é gauche, desviado, mesclado, rebelde. É metalingüístico, dessublimado,
moderno. É o que se nota em “A Paixão Medida”, que apresenta a metalinguagem poética
como elemento principal. Neste caso, ironicamente, os tipos de pés substituem adjetivos e
substantivos, sem, entretanto, deixar que se perceba uma forma e uma aparência mais
comedida de descrever o defloramento de uma virgem, de sua “porta pentâmetra”, levada a
cabo “com ternura dáctila / e gesto espondeu” pelo eu-lírico, denunciando assim a desmedida
paixão, “de latina, de grega, inumerável delícia”.
“A Fonte Grega”, por sua vez, brinca com um monumento artístico e cultural,
símbolo de sacralidade e classicismo. Contra a ordem e a hierarquia, uma deusa grega feita
estátua é submetida ao castigo de ser eterna fonte “mijadora”. Proibida de dormir, de fazer
amor ou qualquer outra coisa, ela “mija nos séculos”. O poeta subverte a ordem “natural” de
os deuses castigarem os humanos, dessublima o que é elevado culturalmente, dessacraliza o
divino.
Se nem sempre o modernismo é o lugar do poeta mineiro, o classicismo tampouco
é o seu local preferido, desejo de permanência. Entre os dois, Drummond de modo inquieto
oscila, vaga, viaja. Entre a tradição e a modernidade, ele opera com a tradução. Entre a
transmissão pura e simples do legado clássico e a anulação total do antigo, ele opta pela
transposição, ele opta por agregar a esses novos valores. É o que atesta Eduardo Dall’Alba ao
falar do diálogo Drummond-Dante:
As evidências pontuam, entre outras coisas, a inferência, a partir das
transformações dos textos, num texto novo, que o poeta Carlos Drummond
de Andrade escreve, consolidando a sua obra dentro do sistema da moderna
poesia, na tradição do Ocidente. É isso que faz com que leiamos Dante
através dos poemas drummondianos”. É isso que o consolida como um
clássico.
206
Drummond é, portanto, clássico, não no estilo, mas no sentido de pertencer a um
grupo seleto de autores, de diferentes lugares e épocas, com quem dialoga. O poeta “se revela
um atento leitor do mundo moderno, do seu tempo, enquanto leitor de seus antepassados
205
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. 2. ed. Rio
de Janeiro: Documentário, 1977, p.164.
206
DALL’ALBA, Eduardo. Drummond: a construção do enigma. Caxias do Sul: EDUCS, 1998, p.81.
99
literários. Drummond lê outros poetas”
207
. Como ele mesmo confessa “Furto a Vinícius / sua
mais límpida elegia. Bebo em Murilo / Que Neruda me dê sua gravata / chamejante. Me perco
em Apollinaire. Adeus Maiakowski. / São todos meus irmãos.” (“Consideração do poema”).
3.7 O TEMPO NA LÍRICA DE DRUMMOND
O tempo e sua ação, uma das principais matérias na lírica de Drummond, se não a
principal, podem ser observados de duas formas: a primeira, numa perspectiva do leitor,
impressa no corpo da obra ao longo dos seus cinqüenta anos de trabalho, a partir de
marcadores naturais do tempo sobre o homem: a passagem dos anos na pessoa e no corpo do
poeta: infância, juventude, idade adulta e velhice e a partir de marcadores pautados pelo
testemunho do autor a respeito da história do país, do mundo e da sua própria, por meio de
fatos históricos (a revolução de 32 no Brasil, a passagem do Cometa Halley, a primeira e a
segunda guerras mundiais, as idas do poeta para o colégio, para Belo Horizonte e Rio de
Janeiro). A segunda, a partir da percepção que o poeta teve da fugacidade do tempo, da sua
expressão consciente e preocupação para com o tempo e o seu fluir.
Em uma de suas palestras proferidas em 1978, Jorge Luis Borges trata
especificamente do tempo e afirma que “o tempo é a sucessão”
208
. Na lírica horaciana, a
sucessão do tempo é vista através da natureza, da mudança das estações, da chegada dos
ventos primaveris ou de inverno, do tempo a fugir, que impulsionava a elaboração do notável
lugar-comum carpe diem. Na de Drummond, a passagem do tempo é visível, a partir de um
olhar sobre a obra como um todo, reflexo da sua trajetória poético-biográfica cinqüentenária.
Por ela desfilam todas as idades da vida humana e do autor: a infância e juventude, a idade
adulta e a velhice. Borges, na conferência referida acima, cita Plotino e a sua compreensão de
que existem três tempos, todos eles presentes. O presente atual, o presente do passado, que
deve ser entendido como memória e o presente do futuro que “vem a ser aquilo imaginado por
nossa esperança ou por nosso medo”
209
.
As marcas da passagem do tempo, na pessoa e no corpo do poeta, podem ser
constatadas a partir do recurso da memória usado para resgatar o processo de crescimento
207
DALL’ALBA, Eduardo. Drummond: a construção do enigma. Caxias do Sul: EDUCS, 1998, p.22.
208
BORGES, J. Luis. “O tempo”. In: Jorge Luis Borges: cinco visões pessoais. 2.ed. Brasília:
EdUnB, 1987, p. 41.
209
Ibid., p. 43.
100
físico e psicológico em sua primeira fase de vida. A infância, como já tivemos a oportunidade
de referir aqui, em poemas que retratam a descoberta do mundo: o prazer da leitura, com a
chegada da “Biblioteca Internacional de Obras Célebres”, “cheirando a papel novo, mata / de
pinheiros toda verde” e as boas sensações ao “passar a mão / no som da percalina, esse cristal
/ de fluida transparência: verde, verde”, de ver figuras: “Templo de Tebas. Osíris, Medusa, /
Apolo nu, Vênus nua”, de não dormir à noite para poder ler; a descoberta do sexo oposto, o
bater palmas “Na esperança / de ver as pernas no alto / da escada”.
A juventude é marcada e revisitada na lembrança dos namoros, difíceis naqueles
anos 20, nas “Dificuldades do namoro”, quando o menino sem dinheiro precisava pagar a
entrada da família toda, caso quisesse levar a namoradinha ao cinema – “se te levar ao cinema
/ levo também tua irmã, / teu irmãozinho, tua mãe”.
A fase adulta, por seu turno, situa-se (por vezes) na observação e narrativa da sua
matéria, o tempo presente, quando o poeta, já homem feito, enxerga o mundo partido. Quando
o poeta-homem olha para trás e vê os seus erros e a inconseqüência do jovem. A consciência
fica “suja”:
Vadiar, namorar, namorar, vadiar,
escrever sem pensar, sentir sem compreender,
é isso a adolescência? E teu pai mourejando
na fanada fazenda para te sustentar?
Toma tento, rapaz. Escolhe qualquer rumo,
vai ser isto ou aquilo, ser: não, disfarçar.
Que tal a profissão, o trabalho, o dinheiro
ganho por teu esforço, ó meu espelho débil? (“A consciência suja”).
Por vezes, situa-se na memória de um passado bem próximo. O da sua
transferência para a capital federal corresponde ao auge de sua literatura, período em que sua
obra e sua personalidade atingem a maturidade. Sua lírica reflete a combatividade ao
capitalismo e à burguesia. O poeta deseja construir um mundo melhor. O homem almeja
construir sua obra, sua vida.
Quanto à velhice, ela manifesta-se na obra, não de outra forma senão pela
consciência de sua chegada, da corrosão física do homem, do surgimento de rugas (“Começo
a distinguir / um sonilho, se tanto, / de ruga”) e da necessidade de apoios, de próteses, mesmo
101
antes de ela chegar completamente; “Dentaduras duplas! / Inda não sou bem velho / para
merecer-vos // Dentaduras duplas: / dai-me enfim a calma / que Bilac não teve para
envelhecer”. A madureza, idade da decantada sabedoria, traz consigo esta inútil, “Ingaia
Ciência”, porque o “agudo olfato, / o agudo olhar, a mão, livre de encantos, se destroem no
sonho da existência”. Por outro lado, a velhice permite que se diga não àquilo que não se quer
“Ah, não me tragam originais / para ler, para corrigir, para louvar, / sobretudo para louvar. //
Nem sequer li os textos das pirâmides / os textos dos sarcófagos, / estou atrasadíssimo nos
gregos, / Não conheço os Anais de Assurbanipal, como é que vou – / mancebos, / senhoritas /
chegar à poesia de vanguarda / e às glórias do 2.000, que telefonam?” (“Apelo aos meus
dessemelhantes em favor da paz”).
Amadurecimento, conhecimento, sabedoria e consciência não faltaram ao poeta.
Autoconsciência, aliás, foi o que menos faltou para o poeta. Ao longo da carreira lírica, foram
muitas as releituras, as reuniões dos destroços e fragmentos da vida, da sua vida, das poesias,
dos retratos e sentimentos doloridos, muitas as ruminações do “Boitempo”, as reescrituras,
muita vida passada a limpo, até o final, como prova Maria do Carmo Campos ao analisar as
últimas obras do poeta:
No jogo entre identidade e alteridade, dividido e multiplicado por entre
Carlos, Raimundo e José, DRUMMOND é muitos poetas girando nos
versos. Atípico, o menino de Itabira se reescreve sempre e, na medida em
que o tempo e a obra andam, retorna sobre o próprio corpo, projetado desde
o quando nasci [...].
A viagem bio-gráfica desse eu que não se estabelece dá-se entre o
esfacelamento primeiro (pernas, olhos, óculos e coração) e a recomposição
erótica do próprio corpo octogenário nas anteportas da morte.
210
Além da fluidez natural do tempo no corpo e na mente do poeta, há ainda a
demonstrada na própria natureza, nos ciclos da vida campeira, no calendário regido pelo
campo, pelo boi, Boitempo,
Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
210
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo: USP, 1989, p. 333. (Tese de Doutoramento).
102
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista. (“Boitempo”).
No bojo da memória drummondiana podemos visualizar não apenas a do seu
tempo de criança, mas amparado pela sugestão de Borges ao pensar a eternidade “todos os
nossos tempos passados, todos os tempos passados de todos os seres conscientes”
211
, num
sentido mais amplo, a de todos os tempos, o da humanidade, do Ocidente, da literatura e das
artes.
Se Horácio aponta para a passagem do tempo e alerta o leitor e o povo romano
para a necessidade de aproveitar o momento, o dia, a vida, porque ela é curta, a postura de
Drummond se distingue daquele. E não poderia ser de outro jeito. Se os antigos trabalhavam
com a idéia de degradação dos tempos, a Antiguidade talvez ainda vivesse de um modo
menos corrompido, mais próxima da Idade de Ouro que estava. O mundo deles ainda estava
integrado. Os homens viviam mais interligados à natureza, à política (união coletiva em
benefício da pólis e da Urbs). Os deuses eram manifestações da natureza, com quem o homem
211
BORGES, Jorge Luis. “O tempo”. In:______. Jorge Luis Borges: cinco visões pessoais. 2.ed.,
Brasília: EdUnB, 1987, p. 43.
103
interagia, de modo mais espontâneo e harmônico, sem intermediação, sem o peso de culpa e
de pecado.
O mesmo não procede com a Modernidade, em que reina a desagregação, a
fragmentação. O homem, então, se afastou da natureza. Agora ele a maltrata, agora ele a mata
e a si próprio. Quando o homem se multiplicou em larga escala e se fechou em si, se
individualizou. Teve que romper com a política mais imediata, direta e próxima que era a das
cidades antigas, para se esconder na representação político-partidária, partida, apartada,
portanto. Agora a política é mais abstrata, mais distanciada, complexa e, por vezes,
incompreensível, porque fundamentada numa concepção artificial de país. Noção de pátria
que não estabelece relações claras e precisas de identidade coletiva, de coletividade. Agora é
tempo de “homens partidos”. O próprio poeta, homem moderno, é gauche, é torto, erra por
caminhos tortos. Eis por que ele não pode ser um vate, não pode aconselhar o leitor ou o povo
em nada. Não pode vaticinar, cantar a nação e o mundo porque eles não são dignos de serem
cantados, não são exemplos a serem seguidos.
Assim, se em Horácio a percepção da passagem das horas leva o poeta a
aconselhar aos leitores a atitude de carpere diem, como forma de tentar suspender ou pelo
menos atenuar a ação de Saturno, por intermédio do vinho, da conversa com amigos, do amor
sensual, em Drummond, a passagem dos anos e das diferentes fases, em conjunto com a
timidez e introspecção de sua pessoa, remete-o em direção ao passado e à memória, a um
balanço de sua trajetória, a uma atitude reflexiva em relação à vida e ao mundo, que por sua
vez realimenta e impregna sua poesia.
O tempo na poesia de Drummond flui, foge, advindo do seu passado histórico-
pessoal, da sua época de criança e juventude registradas pela memória, rumo ao presente do
adulto histórico e pessoal, rumo a um futuro que é certo apenas no que diz respeito à morte.
Waltensir Dutra em seu estudo “O tempo elidido” divide o tempo, para este poeta, em três
seções:
Em Drummond, o tempo se apresenta de três formas: a) a recordação linear
– lembrança ou evocação; b) o tempo presente, o momento atual; c) o tempo
que à falta de melhor denominação, poderíamos chamar de “tempo
composto” em que o passado é projetado no presente ou o presente recuado
até o passado numa combinação de planos cuja identidade se imprecisa
[...].
212
212
DUTRA, Waltensir. “O tempo elidido”. In: BRAYNER, Sonia (org.). Carlos Drummond de
Andrade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977, p. 235.
104
Na verdade, o tempo, no todo da obra, se passa, passa e é registrado
fundamentalmente no presente, o que é próprio do gênero e da essência lírica, da sua lírica.
Não podemos esquecer que este é o tempo assumido pelo poeta, “o tempo presente, os
homens presentes, a vida presente” é a sua matéria. É um presente (e todo tempo presente é)
fugaz, que escorre rapidamente e, assim, retrata diferentes anos, décadas, idades, momentos
vividos por Carlos, o poeta e o homem, e nisso assinala a agilidade e a voracidade de Cronos.
Remonta à observação e à tentativa de compreensão do mundo que o circunda nos seus vários
períodos históricos, a revolução de 30 – “Pelo Brasil inteiro há tiros, granadas, literatura
explosiva de boletins, / mulheres carinhosas cosendo fardas / com bolsos onde estudantes
guardarão retratos / das respectivas, longínquas namoradas” (“Outubro 1930”). A Primeira
Guerra Mundial – “Desta guerra mundial / não se ouve uma explosão / sequer nem mesmo o
grito / do soldado partido / em dois no campo raso [...] Vem tudo no jornal / ilustrado
longínquo” (“1914”). A Segunda Guerra – “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais. /
Os telegramas de Moscou repetem Homero. / Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um
mundo novo / que nós, na escuridão, ignorávamos” (“Carta a Stalingrado”). O medo da
bomba atômica, “A bomba / é uma flor de pânico apavorando os floricultores” (“A bomba”);
a Copa do Mundo de Futebol em 1970 (“O momento feliz”), vista em detalhes pela primeira
vez na televisão, ao vivo, através de câmeras lentas e replays, quando então o poeta joga junto
com o time e com o país; a moda míni e a liberação feminina dos anos 60 e 70, através das
miniblusas, minissaias e biquínis. “Através do tempo, enquanto poeta e enquanto cronista-
poeta, Drummond torna o cotidiano tema e assunto de poesia e o eterniza, tirando-lhe a
dimensão de brevidade que o caracteriza e prolongando-o além de si próprio. O que angustia
o poeta é a consciência do momento que passa”
213
.
Assim como o presente, o passado em Drummond cumpre importante papel, é um
dos pilares sobre o qual se estrutura a obra. Passado que é expresso pela memória. Os diversos
tempos presentes vividos, fugidos, anos, décadas, momentos repercutem em seu texto, na sua
reflexão poética, alguns reiteradamente referidos ao longo de sua obra, visíveis, sobretudo, em
Boitempo, Menino Antigo, Esquecer para lembrar. A infância: a escola, a separação da
família, com a ida para o internato em Friburgo. A juventude e a distante guerra mundial, tão
distante que “não suspende a aula / de misteriaritmética” e a lentidão do dia-a-dia interiorano,
mas que é capaz de fazer o poeta tomar partido, mudar de idéia e “perorar” “com voz de calça
curta” e ordenar “ao município / que marche resoluto / a combater os boches” e não saber
213
BARBOSA, Rita de Cássia. Carlos Drummond de Andrade: literatura comentada. São Paulo:
Abril Educação, 1980, p. 93.
105
mais “o que é a verdade”. A vida adulta, com a sua ida para Belo Horizonte, para o Rio.
Através da memória, o poeta recupera o seu passado, a vida já vivida, a sua história, a história
do Brasil e do mundo no século de tantos absurdos, na vida absurda, mas bela.
Passado que, juntamente com a sua terra, Itabira e Minas, o poeta leva consigo o
tempo todo, por todos os lugares, no bolso da memória, por entre os cemitérios que também
transporta, junto aos retratos, que mesmo na parede doem, razões pelas quais ele caminha “um
pouco de banda”, torto. Segundo Rita de Cássia Barbosa,
Buscando no arsenal da memória – já no segundo poema de seu livro de
estréia – alguma coisa do que para si significou a “Infância”, o poeta se
transporta para o passado, ou o traz para o presente. Passado onde predomina
a imagem do pai-fazendeiro e cuja “história era mais bonita que a de
Robinson Crusoé”. Neste processo evocativo, através do qual Drummond
descreve, retrata e constata mesmo mais do que se deixa transportar
liricamente (não há nele traço algum de saudosismo romântico), oculta-se o
mesmo eu-oblíquo que adota, ao falar de si. Suas lembranças não brotam
espontaneamente, como a “Evocação do Recife” de Manuel Bandeira, mas
nascem malgrado o poeta, pois só elas explicam sua condição de ser e de ser
poeta. É o mesmo pudor de se autoconfessar, mas que não o impede de
captar sua infância e meninice, num clima de contida e disfarçada nostalgia
de um “bem” perdido e irrecuperável.
214
O passado revisitado no presente remete a dois sentimentos em relação a esse
mundo vivido: o de “nostalgia de um “bem” perdido e irrecuperável” e o de remorso e
arrependimento para com determinados atos seus. No primeiro caso são lembranças de coisas
boas, saudáveis, conforme já constatamos. No segundo, é o remorso por certas coisas não
terem acontecido de outro jeito, ou por problemas que não se resolveram, muitos dos quais
relacionados ao seu convívio com o pai, como nos mostra a viagem onírica encetada na
companhia do pai, quando ele descreve parte da sombria viagem, “patética através do reino
perdido”:
Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror noturno.
Porém nada dizia.
214
BARBOSA, Rita de Cássia. Carlos Drummond de Andrade: literatura comentada. São Paulo:
Abril Educação, 1980, p. 93.
106
A memória faz reviver o que já se encerrou, traz novamente para o presente aquilo
que já se foi, o passado torna-se novamente presente, é o que diz a epígrafe do próprio autor
em Boitempo III: “–– Você deve calar urgentemente / as lembranças bobocas de menino. / –
Impossível. Eu conto o meu presente. / Com volúpia voltei a ser menino”. Ou seja, o passado
faz-se presente mais uma vez, a memória o faz repetir, e por intermédio da repetição nos é
possível vencer, ou atenuar a força do tempo sobre nossa saudade ou arrependimento. A
memória é pasto para ruminar, como nos sugere o poema “Remissão”: “Tua memória, pasto
de poesia, / tua poesia, pasto dos vulgares, / vão se engastando numa coisa fria / a que tu
chamas: vida e seus pesares”. Nas palavras de Sant’Anna, ‘a reconquista do “paraíso perdido”
obedece a um impulso para alargar sua vida compensando o que a morte lhe toma a cada dia’,
um artifício para vencer o Tempo:
Consideremos primeiro que a repetição é uma atividade inerente a todo
organismo vivo e o fator responsável pela própria continuidade da vida. No
poeta considera-se a repetição como uma atividade lúdica simplesmente
impulsiva como o seria com a criança. Enquanto esta, pela prática da
repetição exercita-se no “princípio do prazer”, anulando a idéia do tempo, o
poeta, embora traga ostensivamente uma criança nos seus gestos, pela
repetição, atua em dois planos: entrega-se a uma atividade lúdica, que é a
suspensão momentânea do tempo, e se empenha na reconstrução do Ser, na
medida em que opera uma reintegração dos diferentes níveis de tempo, num
tempo único. O jogo do poeta-creator é essencialmente interessado. O ato de
repetir é basicamente uma atitude contra o tempo, necessidade de fixar a
essência do que passou e reexperimentar sensações do prazer antigo diante
do desconforto do tempo presente.
215
Quanto ao futuro, apesar de não se mostrar com a mesma freqüência e
intensidade, tem a importância de apontar para a fluidez do rio-tempo e o seu desembocar no
mar, a vastidão e incógnita que é a morte. Sobre o futuro na obra de seu conterrâneo,
Sant’Anna afirma que embora o futuro seja “expectação trágica do destino individual e
coletivo dos homens”, a “visão drummoniana do futuro não é mística, nem sequer religiosa”,
“o futuro a que se refere Drummond é a projeção não apenas de um anseio individual, mas
coletivo”.
O tempo sempre passa e o futuro logo se faz presente. Futuro do poeta-menino
que logo se presentifica, na relação memorialística do poeta adulto para com o menino no
passado, já então irrequieto, ansioso por conhecer os segredos do mundo e da vida que só
mais tarde entenderá:
215
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia/INL,
1972, p. 99.
107
(Que só mais tarde entenderei.
Por enquanto, perto de mim,
algo se passa, impercebido,
como sempre se passam coisas
no deserto Caminho Novo
ou
neste menino peito ansioso). (“Aniversário de João Pupini”).
Tempo que há de vir no desejo de um mundo melhor, sob a bandeira do
socialismo e do pensamento utópico, na certeza de que outros descontentamentos e protestos
virão – “À sombra do mundo errado / murmuraste um protesto tímido. / Mas virão outros”
(“Consolo na praia”) e principalmente na certeza da morte inevitável – “Vinte anos ou pouco
mais, / tudo estará terminado” (“Desfile”).
Para o mundo, o futuro não é muito promissor, visto que já está caduco, partido,
nem para o indivíduo, para o poeta, cujo destino é a morte: “Um minuto, um minuto de
esperança, / e depois tudo acaba. E toda crença / em ossos se esvai. Só resta a mansa / decisão
entre morte e indiferença.” (“A distribuição do tempo”) e um último resto de matéria n’O
sorriso da caveira, “Amigo, não sabes / que existe amanhã? / Então um sorriso / nascerá no
fundo / de tua miséria”. No que Drummond se distingue de Horácio, que vislumbrava,
vaticinava um longo futuro para si, a sua eternização via arte, que até se confirmou.
Drummond, ao contrário, pensava que “Viver é saudade / prévia” (“Memória prévia”), que na
vida se deixa pouca coisa, um pequeno legado, mesmo como poeta, no seu caso particular
apenas o “Legado” de um poema, “uma pedra que havia em meio do caminho”.
Apenas em alguns momentos o tempo vindouro se mostra positivo, esperançoso,
para Sant’Anna, especialmente em Sentimento do Mundo, José e A Rosa do Povo, o poeta se
mostra “uma reinterpretação moderna e sóbria da figura romântica do poeta-profeta”
216
. É
quando o presente histórico se prenuncia muito ruim, a guerra está acontecendo, e apesar das
baixas, das destruições, Stalingrado, a Tróia homérica moderna, revisitada, oferece
resistência, força e vida, por isso, ainda existem esperanças para o mundo, de que uma
216
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia/INL,
1972, p.102.
108
“grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem”. “Uma cidade sem portas, /de casas sem
armadilha, / um país de riso e glória / como nunca houve nenhum. / Este país não é meu / nem
vosso ainda, poetas. Mas ele será um dia / o país de todo homem” (“Cidade Prevista”).
Neste caso, tal como dissera Sant’Anna, o futuro é escatológico, desponta como o
fim de uma era ruim, marcada pelas guerras, o capitalismo e aponta para o começo de outra,
melhor, feliz, socialista. Essas são as poucas situações em que ele se mostra um vate, em que
ele se constitui “uma reinterpretação moderna e sóbria da figura romântica do poeta-profeta”,
quando “oprimido diante da realidade, esforçando-se por ver uma saída dentro da “noite
geral” do presente, o poeta supera o pessimismo e o pânico prevendo um tempo que, sendo
diferente do atual, seja também a realização de sonhos passados”
217
. É uma visão político-
social, uma esperança quase que religiosa, quando então, “Neste ponto, tanto a religião quanto
a ciência, tanto o místico quanto o psicanalista se acham de acordo: “For Freud as for St.
Augustine, mankind’s destiny is a departure from, and an effort to regain paradise”
218
. Mas,
de um modo geral, a visão drummondiana sobre o futuro é niilista. A constatação inequívoca
da vitória do tempo sobre o que é vivo, da corrosão de tudo o que está sobre a Terra o leva a
considerar que o futuro de tudo é a morte, é nada “Morrer acontece com o que é breve e passa
sem deixar vestígio” (“Para sempre”), morte que é a reincorporação à eternidade, a volta ao
ponto de partida.
A poesia de Drummond evoca também o tempo psicológico, que, conforme o
momento vivido e as sensações envolvidas nesses instantes soam fluir rápido ou lentíssimo,
numa variação da percepção de brevidade ou eternidade da vida. Às vezes, o tempo se estica
na longa noite do menino sem sono, a mais longa desde que nascera, tão longa que nem contar
nomes de países e de meninas, nem pensar em “mulher nua”, nem a “abença” dos pais adianta
(“Noturno”). Alonga-se por entre doces devaneios infantis, sentado debaixo de um pé de café,
vendo “o mundo abrir e reabrir o seu leque de imagens”, riqueza de “viver no tempo e fora
dele”, pelo menos até avistar uma cobra-coral, ou em experiências amargas, como na longa
viagem do menino em direção ao colégio interno “oito léguas compridas / no universo sem
estradas”, “morros de não-acaba / e trilhas de tropa lenta / a nos barrar a passagem” (“Fim da
casa paterna”), depois na longa viagem de volta, após sua expulsão (“Como custa a chegar o
chão de Minas. Será que se mudou ou se perdeu?” – “Adeus ao Colégio”).
217
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia/INL,
1972, p.102.
218
Ibid., p.103.
109
Às vezes o tempo passa rápido. Para o menino Carlos “O dia dura menos que um
dia / O corpo ainda não parou de brincar / e já estão chamando da janela: / É tarde.”. Para
todas as crianças, os bons momentos sempre passam rápido e é “Sempre tarde, antes de ser
tarde”. O tempo passa rápido, mesmo quando os problemas pareciam não ter solução para o
menino-poeta, já que para o adulto “tudo se resolveu em dez anos” (“Desfile”). O tempo é
veloz quando nos momentos de prazer, de “amor natural”, “é areia o prazer” (“O amor
natural”).
Por instantes o tempo fica suspenso, faz-se uma pequena morte, um vácuo de
eternidade e infinito: “Roupa e tempo jaziam pelo chão. / E nem restava mais o mundo, à
beira / dessa moita orvalhada, nem destino”;
219
“puro grito de orgasmo, num instante de
infinito?”.
220
Por aí podemos pensar que o poeta de Itabira não deixou de seguir o conselho de
Horácio, carpsit suum diem, colheu a “laranja de flores do instante” e mastigou-a “como um
deus” (“Adeus ao colégio”), agarrou-se ao seu dia, ao seu tempo, ao seu presente nas
diferentes épocas de sua vida. Viveu com intensidade a infância, quando foi mais feliz que
Robinson Crusoé. A juventude junto aos amigos e às namoradas. A fase adulta quando não se
omitiu do presente grave e importante e ativamente colocou sua poesia a serviço da luta por
uma Cidade, um mundo e uma Ordem melhor. Na velhice, em que assumiu a necessidade de
“dentaduras duplas”. E não negou, não escondeu seus medos durante o “Congresso
Internacional do Medo”, suas frustrações amorosas, seus remorsos, comuns a todos os seres
humanos.
Tal como no pensamento clássico antigo, a passagem do tempo na poesia de
Drummond sugere o pretérito como sendo o melhor dos tempos, neste caso porque já
encerrado, eterno; o presente como algo deteriorado e o futuro pior do que aqueles. Nisso
Drummond se mostra clássico.
Afora o passar das idades na obra ser inerente e concomitante ao amadurecimento
do homem-autor, o tempo é conscientemente percebido, analisado e referendado como fugaz
pelo poeta, o que se comprova em muitos dos seus versos, “Ela (a vida) te avisa que vai fugir,
está fugindo, / segunda, terça, torta, quarta, parda, quinta, / sápida, sexta, seca, sábado –
passou! / Domingo é soletrar o vácuo de domingo” // “O tempo vai passando (...) e você não
vê, você não sente...” (“A consciência suja”).
219
ANDRADE, Carlos Drummond de. “A castidade com que abria as coxas”. In: _____ .O amor
natural. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994, p. 67.
220
Idem.“Amor – pois que é coisa essencial”. Ibid. p. 5.
110
No poema “Desfile”, vários tempos desfilam na cabeça do poeta, apoiada sobre o
travesseiro numa noite qualquer, quando ele escuta “o tempo fluindo / no mais completo
silêncio”. Numa evocação à memória, por esta poesia-lembrança passam as idades já vividas.
“O tempo fluindo” retroativamente do presente para um passado, sem “cicatriz”, de corpo
“bem pequeno para tanta insubmissão”, para a ousadia juvenil de tentar “fazer poesia, /
queimar casas”, esbaldar-se, no momento em que nada se resolvia, “mas tudo se resolveu em
dez anos”. “O tempo fluindo”, avançando em direção à época da guerra, da gripe espanhola,
da primeira calça comprida. E “o tempo fluiu”, agora ele já tem barba, “calças experientes”,
“cicatriz”. “O tempo fluiu sem dor” e daqui há “vinte anos ou pouco mais tudo estará
terminado”, restando apenas e aproveitando o rosto no travesseiro, fechar “os olhos para
ensaio”.
Luis da Costa Lima
221
, no capítulo II do seu livro Lira e antilira, “Princípio-
Corrosão na Poesia de Carlos Drummond de Andrade”, trata justamente desta questão, do
modo como o poeta vê o transcorrer de sua história e da História, a degradação da vida, da sua
vida, inclusive literária e da História (as guerras, o socialismo que não consegue se firmar
como definitivamente vitorioso. “Pois o desgaste da corrosão caminha paralelo com a morte
da História no poeta”
222
; “a corrosão é a maneira pela qual a História se revela em CDA.”
223
.
Segundo o autor, o princípio corrosão não se faz presente em todos os momentos e poemas,
mas seria “um veio subterrâneo que subjaz e alimenta as mais diferentes faces da obra
drummondiana”
224
. Princípio que se mostra claramente no desgaste de valores morais dos
homens, que em “Romaria” pedem a Deus dinheiro para “comprar / aquilo que é caro mas é
gostoso”, pedem coragem para matar um desafeto, enquanto “Jesus já cansado de tanto pedido
(dorme sonhando com outra humanidade)”.
Corrosão manifesta na ironia do poeta para com o mundo que o cerca, como no
próprio exemplo acima, ou em “Sesta”, quando o poeta placidamente ri e descreve a “família
mineira”, cujos “olhos se perdem / na linha ondulada / do horizonte próximo / (a cerca da
horta)”, universo em que a única inquietação advém de ummosquito rápido”.
Corrosão que é, na verdade, paradoxalmente, princípio de luta e de construção da
sua poesia, da sua vida e pessoa. O desgaste físico que o tempo dita é motivo para que o poeta
lute, para que faça de sua vida um meio de construção, uma possibilidade de melhoria do
221
LIMA, Luis da Costa. “Princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade”.
In:_______. Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 200.
222
Ibid., p. 202.
223
Ibid, p. 235.
224
Ibid., p. 137.
111
mundo, se não do vasto Mundo, pelo menos a do seu mesmo. Nessa luta, o principal
instrumento de construção e reflexão é a sua poesia. Para Arrigucci Jr., “O tempo que corrói e
desgasta também acumula, mas nunca será o bastante para a ciência de ver, rever, a que se
refere o poeta, reiterando o movimento da própria reflexão”
225
.
O tempo na lírica de Drummond não é um só, são vários. É o presente, na sua
observância ao mundo ao redor. É o passado via memória e é o futuro, nas suas possibilidades
de vir-a-ser, na esperança, e na certeza do que virá, a morte. É o presente da modernidade e o
passado da antiguidade. É fugaz. Passa do mesmo modo que o faz para todos os seres vivos,
para as pessoas comuns e para os poetas. Entretanto, para o itabirano, ele foge de modo torto,
de acordo com o seu estilo gauche, “à maneira atravessada / que é própria de nosso jeito” (“A
mesa”), herança das tortuosidades da família. Passa de forma retardada “é sempre no passado
aquele orgasmo”, ou adiantada “Quando crescer (e cresço) / tudo estará presente / Ou perco
para sempre isto que não mereço?” (“Febril”). A tal ponto que Drummond nunca tem sossego,
nunca encontra o seu locus amoenus, de onde o seu não-lugar e o não-tempo.
3.8 O TEMPO E A TEMÁTICA DOS POEMAS
Seguindo a divisão e a proposta levantada no capítulo 2, referente às principais
marcas do tempo na obra de Horácio, aqui novamente a análise se faz pela contraposição aos
subtemas decorrentes do carpe diem horaciano na poesia de Drummond.
A despeito de se originarem de outro viés em Drummond, o histórico-literário-
biográfico, chama a atenção o fato de que os mesmos subtemas estudados no capítulo
anterior, podem ser revistos e revisitados na poesia do itabirano. Com o intuito de relembrá-
los eram estes os subtemas: a) carpe diem; b) a morte; c) os prazeres da vida; d) ars longa,
uita breuis; e) a antinomia juventude-velhice; f) a corrosão do tempo.
225
ARRIGUCCI JR., Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São
Paulo: Cosac & Naify, 2002, p.127.
112
a) Carpe diem
O carpe diem horaciano não se manifesta de forma precisa na lírica de
Drummond, mas subentende-se. Subsiste implicitamente como decorrência dos lugares-
comuns da brevidade da vida e da luta contra o tempo. Apesar disso, podemos pensar que o
carro-chefe da poesia horaciana, ainda assim, é tangenciado na lírica drummondiana, de forma
atenuada, na expressão esparsa do bucolismo. A modernidade não é propícia a cenas idílicas.
São tempos de “Antibucólica 1972”, quando então “Já era a pura estampa virgiliana / sub
tegmini fagi (leia-se oiti), / nos braços de Amarílis ou de Inês? / Emudece a canção, flauta de
cano, / e foge, pastor meu, dos verdes campos, / previne os bois, avisa os pirilampos, / que a
coisa não está de brincadeira”
226
. O bucolismo na poesia de Horácio é deflagrado por meio da
descrição e observação das paisagens: regatos, mudanças de estação, passagem dos ventos.
Elementos que, de um modo geral, inspiram-nos tranqüilidade e quietude da alma, raridade
neste ambiente e nestes tempos modernos. Elementos que nos lembram, tal como fizera o
poeta da Velha Roma, a necessidade mais que urgente de apreciar a poesia destas escassas
horas.
A temática clássica na obra de Drummond se mostra justamente nestes dois
principais tópicos, largamente adotados pela Literatura Ocidental, a efemeridade da vida e a
necessidade de lutar contra a ação do tempo. Destes dois topoi provém o famoso carpe diem
horaciano e as principais ações do poetar e mentar do nosso poeta mineiro.
Em Drummond, as cenas bucólicas não são preponderantes, e nem poderiam ser,
uma vez que o homem moderno rompeu com a natureza, decidiu-se por viver em grandes
cidades, onde não há mais lugar para o regato, para os aromas das flores e os animais; não há
mais tempo para a fruição de momentos junto à natureza e aos amigos. Não há como reparar
“nessa estrelinha, pálida, suja, na água do Arrudas” (“A consciência suja”), porque não é a
estrela que é suja, mas as águas do Arrudas e de muitos rios das metrópoles.Todavia, o
bucolismo está lá em sua poesia, nos campos das fazendas mineiras, na memória da infância,
ou mesmo na tentativa e no desejo de que exista, em meio aos “ferros rendilhados do gradil”
dos parques, de onde o menino-poeta espera “surgir alguma ninfa / sem que surja nenhuma (e
continuo procurando a metáfora do sonho)” (“Apontamentos”), onde “a natureza é imóvel”,
os caminhos “não levam a nenhum lugar. / São caminhos parados. De propósito. / O lago,
226
ANDRADE, Carlos Drummond de. Discurso de primavera e algumas sombras. Rio de Janeiro:
Record, 1977, p.115.
113
tranqüilidade oferecida”, “a pontezinha rústica de cimento” “feita para não passar” (“Parque
Municipal”).
Pode ser vislumbrado também na figura recorrente, simbólica do boi: pacato,
contemplativo, ruminante do pasto e das idéias (“Um boi vê os homens”). Reaparece, muito
discreta e sorrateiramente em “Sub” sob a sombra do verso virgiliano “sub tegmine fagi”,
rasteiramente sob a guarda e proteção de seres superiores, ou de elementos mais importantes,
a lua, o delegado, a consciência, o desenvolvimento. Para Maria do Carmo Campos,
Em BOITEMPO, DRUMMOND atravessa e indaga o bucolismo, apalpando
aqui e lá a (in)existência do lugar ideal. A idéia de um cenário-paraíso já
freqüentava parte da literatura do século XVIII e, no Brasil, a chamada
poesia do ouro relacionada ao período do Arcadismo mineiro, O desejo de
um “locus amoenus” era assaltado nos sonetos e nas liras pela dúvida ante a
existência desse lugar ou por alguma forma de estranhamento.
227
Lugar ideal, locus amoenus, o campo, a vida rural, tranqüila, pacífica, bem
definidos e conhecidos pelo homem clássico, preferido por Horácio, sugerido aos romanos
por Augusto, é, porém, impossível na modernidade. Na poesia de Drummond, os lugares
nunca são tranqüilos, são sempre inquietantes. Conforme Fábio Lucas, “Boitempo pode ser
considerado a retomada temática de Alguma Poesia e Brejo das Almas (1934). Ali estão o
localismo do interior mineiro, certo bucolismo policiado pelo olhar irônico, o preito às raízes
da família e da terra, o lado autobiográfico e a atitude crítica, entre o burlesco e o satírico”
228
,
ou seja, mesmo o bucolismo, que por tradição é pacífico e sereno, para Drummond ainda
assim é inquietante, intranqüilo, não é o seu lugar.
Lugares tranqüilos não são adequados para Drummond que, assim como Ulisses,
é um lutador. Luta contra as palavras, luta contra a morte, contra o mundo que lhe é adverso.
Donaldo Schüler, ao expor a sua compreensão da obra de Heráclito e de seu “(dis)curso”, fala
assim da “(M)(s)orte”:
Os que recebem a vida como um dom e estabelecem o descanso como meta
antecipam a morte, o descanso eterno. Gerar para o descanso é gerar para a
morte, é gerar a morte. O descanso, o do sono ou o da morte isola. Buscar o
descanso é meta dos idiotas.
A luta contradiz a morte. Luta-se com e contra. Quem gera filhos para a luta
cria companheiros, aliados ou adversários. A luta funda a comunidade, que
luta pelas leis, pelas muralhas, pela vida.
229
227
CAMPOS, Maria do Carmo Alves de. A cidade e o paradoxo lírico na poesia de Drummond.
São Paulo: USP, 1989, p. 301. (Tese de Doutoramento).
228
LUCAS, Fábio. “Apontamentos sobre Carlos Drummond de Andrade”. In: CHAVES, Flávio
Loureiro (org.). Leituras de Drummond. Caxias do Sul: EDUCS, 2002, p. 67.
229
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, p. 208.
114
De todo modo, é possível estabelecer uma analogia quanto à percepção da
passagem do tempo nos dois poetas, Horácio e Drummond. O primeiro antes da invenção dos
relógios mecânicos observava e caracterizava em sua poesia a ação do tempo por meio do
transcorrer dos dias e das noites, da mudança das estações, por meio da natureza, do
congelamento e/ou degelo dos rios, pela chegada dos ventos europeus. Maria da Glória
Bordini, no prefácio de Literatura e cidade moderna, diz que “na natureza o homem mantém
sua integridade; a cidade o corrompe”, que “romance e cidade moderna” são “desarticulação
das formas harmônicas”
230
. O poeta brasileiro, seguindo a estética modernista, expressa a
passagem do tempo e a desarmonia com a natureza através de objetos urbanos da
modernidade e do cotidiano, tais como:
1) Os jornais, que tiveram grande importância em sua vida e obra, dos quais foi
importante colaborador no país. Jornal, como diz a etimologia proveniente do
italiano, ‘giornale”, significa publicação diária. É datado, portanto, um
marcador bastante explícito, da passagem do tempo. Em “A casa do Jornal
antiga e nova” (Discurso de primavera e algumas sombras), a imagem das
folhas de papel rolando pelos cilindros da rotativa sugere a rapidez dos tempos
modernos e a extrema fugacidade do cotidiano:
Rotativa do acontecimento.
Vida fluindo
por cilindros, rolando
em cada bobina
rodando
em cada notícia
[...]
A cada méson
de microvida
contido
na instantaneidade do segundo,
a vibração eletrônica
da palavra-imagem compõe
230
BORDINI, Maria da Glória. “Prefácio”. In: CRUZ, Cláudio. Literatura e cidade. Porto Alegre:
EDPUCRS; IEL, 1994.
115
decompõe
recompõe
o espelho de viver
para servir
na bandeja de signos
a universalidade
do dia.
2) os relógios, mecanismos que são marcas do capitalismo, da urbanidade
moderna, podem ser de vários tipos, de bolso, de parede: “A hora no bolso do
colete é furtiva, / a hora na parede da sala é calma, / a hora na incidência da luz
é silenciosa” (“O relógio”). Embora nenhum deles tão “grave” quanto o da
torre da igreja, “Mas a hora no relógio da Matriz é grave / como a consciência”
ou tão aterrador como os ponteiros do relógio-bomba, atômica, “a bomba / tem
horas que sente falta de outra para cruzar / a bomba / furou e corrompeu
elementos da natureza e mais furtara e corrompera / A bomba / [...] / A bomba
/ [...] / A bomba / [...]” (“A bomba”).
3) o fluxo do tráfego, do trânsito das grandes cidades, no início do século vinte
ainda tímido e ralo, mas já se prenunciando rio caudaloso, por onde “O bonde
passa cheio de pernas: / pernas brancas pretas amarelas” (“Poema de sete
faces”), “os carros [...] passam com choferes” (“Canção da Moça-Fantasma de
Belo Horizonte”). Em alguns momentos tudo pára bruscamente, ao sinal de
“Dois silvos breves: Pare.” (“Sinal de Apito”). Stop. / A vida parou / ou foi o
automóvel?” (“Cota Zero”). Não. Foi apenas uma flor que nasceu na rua! Por
isso, “passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego”. (“A flor e a
náusea”). É o fluir contínuo do dia-a-dia que também precisa parar, seja para
descansar temporariamente e atenuar o desgaste do ritmo frenético, do peso da
vida ou para sempre, a fim de se obter o merecido descanso eterno.
Todavia, a expressão da passagem do tempo via ciclos naturais também é
perceptível. São visíveis na obra, embora não com a mesma tônica, a menção aos dias e às
noites, ao sol eterno que “incandesce / mármores rachados” do Cemitério do Cruzeiro; a
referência ao relógio dos animais no campo, relógio do “Boitempo”, em que o entardecer se
116
anuncia na sombra dos cascos, no “mugido da vaca”, o amanhecer, “no morno esguicho das
tetas”, em que “o dia é um pasto azul / que o gado reconquista”; menções ao fluxo das águas,
como as d’Aquele Córrego em que o menino vê a sua imagem e se pergunta: “Que menino é
esse aí?”, ou as águas da lembrança que fazem o poeta se perguntar: “Que menino é este
aqui?”.
b) A morte
Em Drummond, tal como em Horácio, a presença e a lembrança da morte é a
constatação de que a vida é efêmera. A percepção da fuga do tempo indica a iminência da
morte e a coloca na seqüência final, fatal, desse fluir. É o fim de todos os seres vivos.
Efemeridade que, em alguns casos, é ainda maior: a morte de crianças, nos registros
paroquiais, de “Os chamados”, em que mostram o falecimento dos irmãos do poeta enquanto
crianças de “8 dias”, “3 meses e 23 dias”, “2 anos, 9 dias”, ou “uma eternidade: 3 anos, 5
dias” e de outras, a quem “deus” vai “poupando, / acenando que esperem – para quê?”. Na
menção à Catherine: uma menina parisiense, que pedira ao mundo, aldeia global, postais para
alegrar a sua breve vida, encurtada pela leucemia: “Empresa dos Correios não atrase a
remessa / da chuva de postais / à menina, que o prazo / que a leucemia abriu / aos olhos
esperantes é um prazo fatal”. (“Postal para Catherine” – Discurso de Primavera e Algumas
sombras). Na morte de um irmão, que não resistira à “longa espera da encomenda pelo
correio”, “um preparado que não havia” (O preparado - Boitempo I). Na decisão de alguns, de
poetas, de abreviar mais, de antecipar o inevitável fim, escolhendo “o dia a hora o gesto / o
meio / a dis- / solução”, o suicídio. (“Homenagem”), ou de “Meninos suicidas”, “um acabar
seco, sem eco, / de papel rasgado / (nem sequer escrito)” a nos deixar “antes que pudéssemos
decifrá-los”, sem deixar “um traço / retorcido ou reto de passagem”.
Mas a morte não é apenas o motivo para uma reflexão filosófica. Significa
também um peso, o fardo de um passado, de uma memória familiar ancestral, que faz o poeta
andar torto, com o corpo penso, e de uma memória literária, pesada carga da humanidade. Em
uma de suas confissões no rádio, o poeta afirma que o que há de mais importante na literatura
“é a aproximação, a comunhão que ela estabelece entre os seres humanos, mesmo à distância,
mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso. Somos contemporâneos de
Shakespeare e de Virgílio. Somos amigos pessoais deles. Se alguém, perto de mim, falar mal
de Verlaine, eu o defendo imediatamente; todas as misérias de sua vida são resgatadas pela
117
música de seus versos. Como defenderia um amigo pessoal”
231
. Para Sant’Anna, “O approach
que o poeta faz da morte dá-se em três etapas: 1) a lembrança dos conhecidos e parentes
mortos que ficaram na província; 2) o desaparecimento dos amigos e companheiros de
geração na cidade grande; 3) o amadurecimento de sua própria morte”
232
.
Observa-se que, no que diz respeito à morte, falta ao poeta uma motivação
religiosa, no sentido institucional. Nota-se, antes pelo contrário, um sentimento de desilusão e
descrença para com a Igreja, detentora de grande prestígio em Minas Gerais e de muito
desprezo e indignação do menino Carlos: “Digo nomes feios / (calado, está visto). / Não vá
ser-me imposta / a perda total / de quantos domingos / Deus for programando / em Minas
Gerais. / Abomino a ordem / que confisca tempo, / que confisca vida / e ensaia tão cedo / a
prisão perpétua / do comportamento.” (“A norma e o domingo”). Por outro lado, sobra-lhe
espírito de coletividade, uma tendência social, socialista e evidencia-se uma percepção
materialista do mundo e da vida. O que o aproxima mais uma vez do pensamento clássico,
pagão, não cristão, também materialista no que diz respeito à relação com a natureza, com a
matéria física e não apenas com a alma. No que se assemelha ao pensamento epicurista e
estóico.
A visão da morte em Drummond está diretamente relacionada ao sentimento de
corrosão. A morte se dá todo dia, um pouco a cada instante, a cada segundo, minuto, ou hora
vivida. No contraste vida-morte, menciono Sant’Anna: “A vida apresenta-se como um
cultivar de antíteses: esse crescimento para baixo, essa viagem que se nega, esse tempo que se
destrói. A vida é a fermentação da morte. Ser, já é começar a não-ser, é estar no princípio do
fim. Ser, é ser para a morte”
233
. Quanto mais o tempo passa, menos vida resta aos mortais. O
avanço voraz de Saturno significa um pedaço a menos de todo e qualquer ser mortal. Como
podemos ver na queixa-ciúme do menino-poeta, dirigida a um Sebastião Ramos quando da
sua ida para o Internato: “Morrer vivo o ano inteiro é mais morrer / embora ninguém perceba /
e ficarei sem ombro / para acalentar a minha morte. / Ó Sebastião Ramos, você roubou meu
ombro”, ou em “Moinho”, a morte que é um moinho a triturar a juventude, “o milho teu
dourado”, a deixar “no farelo / um ai deteriorado”. Mói a vida dos jovens, “trigo eterno” e a
de criancinhas, “o nem sequer semeado”.
Na sua jornada, há um vetor direcionado para a construção, que segue da
escuridão para a claridade, do campo para a cidade, que corre do rio para o mar, da negação
231
ANDRADE, Carlos Drummond de. Tempo vida poesia. Rio de Janeiro: Record, 1986, p.58.
232
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra.
2. ed. Rio de Janeiro: Documentário, 1977, p.186.
233
Ibid., p.182.
118
ao segredo da “Máquina do mundo” à certeza do “Claro Enigma”, da vida para a morte. Nas
palavras de Sant’Anna,
Mais se afasta do tudo aparente se aproxima do nada essencial. Está
descobrindo que sua fome aumenta à medida que se alimenta: “Deixaste-nos
mais famintos / poesia, comida estranha” (Brinde no Banquete das Musas”,
OC. 277) e que todo ganho é perda, e que só se pode ganhar, perdendo-se:
“Ganhei (perdi) meu dia” (“Elegia, OC. 286). O poeta, enfim, está maduro
para o Nada, e passando sua vida a limpo pode afirmar: “Minha matéria é o
nada” (Nudez, OC. 295).
234
Nesse caminho, a morte nos leva, nos devolve ao nada, ao desconhecido, ao
grande enigma, ao não-lugar, ao não-tempo, ao a-histórico que parecem ser os verdadeiros
loci amoeni desejados pelo poeta, certeza da quietude definitiva, eterna: “A morte não / existe
para os mortos. // Os mortos não / têm medo da morte desabrochada”. Na verdade, “Os
mortos / conquistam a vida, não / a lendária, mas / a propriamente dita / a que perdemos ao
nascer” (“Vida depois da vida”). De onde o bucolismo do “Cemitério do Rosário”:
À beira do córrego, à beira do ouro,
à beira da história,
à beira da beira, os mais esquecidos
inominados
de todos os mortos antigos
dissolvem a idéia de morte
em ausência deliciosa,
lembrança de vinho
em garrafão translúcido.
A negação das respostas por parte de Deus, ou dos deuses, tanto quanto a negação
do homem à utopia socialista é que parecem ser responsáveis por esse nihilismo, pela negação
a Deus, à vida, pela desilusão com a própria história, e daí com “O historiador”, que “Veio
para contar / o que não faz jus a ser glorificado / e se deposita, grânulo, no poço vazio da
memória”.
A morte para Drummond é, sobretudo, construção. A constatação de que a morte
se aproxima faz com que ele lute pela vida com sua poesia-espada. No discurso de Donaldo
234
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra.
2. ed. Rio de Janeiro: Documentário, 1977, p. 241.
119
Schüler, “A morte é poética porque estimula realizações. Sob a sentença do fim,
produzimos”
235
. Foi o que fez o poeta. Contra a ação da morte, ele escreveu, poetizou e desta
maneira permaneceu, mesmo não sendo esta a sua intenção, mesmo não sendo “modesto”
como Horácio.
c) Os prazeres da vida
Quando estudamos este tópico no segundo capítulo vimos que o “aproveitar o dia”
em Horácio indicava uma atitude de embeber-se da vida, de seus bons momentos, de obter
tranqüilidade da alma, junto à companhia dos amigos, de um bom vinho, da literatura e do
amor, livre das preocupações e atribulações da vida. Ao nos defrontarmos com a poesia de
Drummond, vemos que destes itens apenas o vinho não se faz uma constante em sua temática
e referência lírica. O sentimento de prazer extraído do convívio com os amigos e a Literatura
pode ser evidenciado nas muitas homenagens prestadas aos escritores, nas efemérides de
Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, ou por ocasião de mortes (Américo Facó, Jorge de
Lima, Mário de Andrade). Amizade dos escritores mineiros, companheiros de bar em Belo
Horizonte, dos poetas brasileiros Mario Quintana, Manuel Bandeira, Mário de Andrade.
Amizade demonstrada por meio da leitura, do estrangeiro Fernando Pessoa e dos
extemporâneos, Camões, Dante, Virgílio, Horácio, consortes da amiga Literatura. Na
deferência aos conterrâneos, a princípio pessoas comuns, de atividades simplórias, mas que
tiveram grande importância na formação do menino-poeta. O funcionário dos Correios, o
delegado que apreciava literatura, o santeiro Alfredo Duval, etc.
Entretanto, se em Horácio, no quesito “prazeres da vida” o que mais se destacava
era a busca pela tranqüilidade, a obra de Drummond se notabiliza justamente pela falta e a
impossibilidade de ter sossego, seja pela “consciência suja”, pela “mão suja”, pelo remorso de
vadiar na juventude, seja pelo descontentamento político-social, e outros.
Dentre os muitos prazeres desta vida, o amor sensual, enquanto fruição e prazer, é
bastante exaltado pelas artes. Horácio, bem como tantos outros artistas da era clássica, livre
das amarras do pecado e da culpa cristã, não o escondeu, embora também não tenha feito dele
o seu principal tema, sob a pena de não ser aceito pelos padrões estéticos que preconizavam o
sublime e o elevado, de que os assuntos mais terrenos e “baixos”, do baixo ventre, por
exemplo, estavam excluídos. Drummond, do mesmo jeito, não omite tal temática, apesar de
235
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001, p.203.
120
recear um pouco a má interpretação de um público e de uma sociedade ainda despreparada
para compreender seu verdadeiro sentido, a exaltação à vida e ao amor em sua plenitude.
Rita de Cássia Barbosa lê previamente e oferece ao público, no ano da morte do
poeta itabirano, a antecipação de seu livro só de poesia erótica “O amor natural”, pedido para
ser publicado somente após o seu falecimento, movido pelo temor de ser mal compreendido e
confundido com pornografia. A autora observa que suas últimas publicações poéticas, já nos
anos oitenta, já destacavam o amor e o erotismo como componentes de seu trabalho. Os
títulos antecipavam: A paixão medida (1980), Corpo (1984), Amar se aprende amando
(1985), Amor, sinal estranho (1985). Entretanto, este tema, longe de ser novidade, seria nas
palavras de Rita de Cássia uma “preocupação antiga”. “De Alguma poesia (1930) a Esquecer
para lembrar (1979), o sentimento amoroso atravessa, implícita ou explicitamente, a poética
drummondiana. Fato que, ainda em 1962, o próprio autor incorpora, quando publica sua
Antologia poética e agrupa aí uma série de 23 poemas, abrangendo desde a obra de estréia até
Lição de coisas (1962), sob o título “Amar-Amaro”
236
. Isto é facilmente observável nos
poemas que relembram a curiosidade do menino-poeta para com o corpo feminino, as
primeiras experiências amorosas guardadas na memória da época jovem, os namoros e as
namoradas – a época de “vadiar, namorar, namorar, vadiar”, ou o objeto de olhar do poeta já
septuagenário dirigido à moda “avançadinha” das praias e ruas cariocas, por onde circulavam
“maiôs”, “mini-blusas” e mini-saias nos idos anos setenta.
O amor sensual, juntamente com outros prazeres da vida, ratifica na poesia de
Drummond, tal como já dissemos no capítulo anterior, a vitória parcial sobre o tempo, porque
é uma das fórmulas mágicas para a sua suspensão, neutralização, quem sabe, anulação,
mesmo que por pouquíssimo tempo. “Já gozamos. Já morremos. / E o tempo masca em seu
canto, / a garupa da novilha” (A moça mostrava a coxa – “O amor natural”). Ou “Roupa e
tempo jaziam pelo chão. / E nem restava mais o mundo, à beira / dessa moita orvalhada, nem
destino”
237
. O(s) prazer(es), embora breve(s), inconstante(s) para ter(em) mais eficácia,
rápido(s) e efêmero(s) como tudo o que é bom, mostra(m)-se longo(s), contínuo(s), eterno(s)
enquanto dura(m) na psique humana: “Já sei a eternidade é puro orgasmo!”, mas não apenas
na psique, também na “extrema região, etérea, eterna?” (Amor - pois que é palavra essencial).
No dizer de Affonso Romano de Sant’Anna, no posfácio da obra póstuma de Drummond, “O
236
BARBOSA, Rita de Cássia. Poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo:
Ática, 1987, p. 9.
237
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Já sei a eternidade é puro orgasmo”. In: ________O amor
natural. Rio de Janeiro: Record, 1992.
121
amor é o que há de imperioso na vida, é o momento luminoso na escuridão, a afirmação da
vida contra a morte, a procura da eternidade no fugaz instante”
238
.
Das inúmeras razões do amor para o homem, paradoxalmente, o amor-sexo, que
serve também para a procriação, para gerar mais vida, novas vidas, contém em si, ao mesmo
tempo, morte, ou suspensão temporária da vida, da pulsação, ensaio de morte. O amor rompe
com as fronteiras entre a vida e a morte, o tempo e a eternidade. O amor é “puro grito de
orgasmo, num instante de infinito?” (“Amor - pois que é palavra essencial”), “é primo da
morte, / e da morte vencedor, / por mais que o matem (e matam) / a cada instante de amor”,
por isso o poeta pede à amante: “chega de beber-me, de matar-me, e, na morte, de viver-me”
(“As sem razões do amor” – Corpo). De novo, aí tamm, na relação amorosa, o conflito,
original talvez, adâmico ou prometeico, de que fala Affonso Romano de Sant’Anna: “O
conflito original Eu versus o Mundo se expressa através de várias imagens bilaterais: ganho-
perda, praia-mar, essência-existência, seres-coisas, real-irreal, instante-eternidade, amor-
destruição, vida-morte”
239
.
O amor é um dos poucos meios capaz de reintegrar o homem à natureza,
reintroduzi-lo no paraíso, junto a Deus/aos deuses, na Idade do Ouro, colar os cacos desse
mundo fragmentado:
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
240
Integridade, paraíso, perfeição que acabam por cansar e promover o desejo do
não-lugar novamente. É a “Hora do Cansaço” (O amor natural):
As coisas que amamos,
238
SANT’ANNA, Affonso Romano de. “Prefácio”. In : ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor
natural. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 1994.
239
SANT’ANNA, Affonso Romano de. “Introdução ao Gauche”. In: CHAVES, Flávio Loureiro
(org.). Leituras de Drummond. Caxias do Sul: EDUCS, 2002, p. 32.
240
ANDRADE, Carlos Drummond de. “O amor – pois que é coisa essencial”. In:________. O amor
natural. Rio de Janeiro: Record, 1992.
122
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.
Pensá-los é pensar que não acaba nunca,
dar-lhes molduras de granito.
De outra maneira se tornam absolutas,
numa outra (maior) realidade.
Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos a cada ser e coisa a condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.
Do sonho de eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.
E, desse cansaço, promover nova ruptura, nova desintegração, nova fuga do
Paraíso e um novo recomeço.
d) Ars longa, uita breuis
O aforismo de Hipócrates que nomeia este ponto é igualmente referido,
relembrado por Drummond. A brevidade e fugacidade da vida, tanto quanto a do tempo, estão
nitidamente expressas na obra de Drummond. Apesar de que apenas a segunda parte, a da
brevidade da vida, é referendada e assumida para si em sua lírica, visto que ele afirma
algumas vezes e não parece crer na sua continuidade através da arte.
No que diz respeito à primeira parte do aforismo, o poeta demonstra uma
compreensão de que a arte, de fato, é maior e mais longeva que a vida. É o que se vê em
“Invocação com ternura”, um dos poemas dedicados a Federico Garcia Lorca, os artistas têm
vida mais extensa que as pessoas comuns:
123
Se mil mortes sofre quem ama,
é de amor que inda vives, Lorca.
E já baixam teus assassinos
a uma terra qualquer e vã,
enquanto, entre palmas e sinos,
tu inauguras a manhã.
Mas não a sua arte, para a qual ele tem uma postura restritiva, humilde e modesta,
como ele dá a perceber na entrevista com Lya Cavalcanti, “Que é que me pode ser atribuído
na história da humanidade, ou mesmo da contracultura? Nada. Rabisquei papelório
burocrático e uma versalhada do tipo livre”
241
.
Nem por isso, devemos pensar que o aforismo não seja aplicável a sua produção.
Se Drummond não se queimou na fogueira das vaidades como Horácio, ainda assim, nós,
leitores podemos conferir que sua arte é duradoura e perene, considerando que, conforme
Dall’Alba: “A poesia torna-se, então, o único elo entre o homem e os deuses; criar é tornar-se
também um deus, ainda que guardadas as proporções e diferenças; um deus menor que guarda
em si uma parcela de compreensão e plenitude do mundo”, que “O movimento do canto
deselevado do poeta Carlos Drummond de Andrade torna-se elevado pela proximidade
humana revelada em sua obra, e perene, pela agudeza com que carreia os conflitos e interesses
humanos”
242
. A aproximação com os deuses torna o poeta superior e sua obra apresenta maior
longevidade que a dos homens comuns.
A brevidade da vida está na íntegra da obra, no “princípio-corrosão”, na própria
essência da vida e da lírica. A vida é, de forma irrefutável, efêmera. E, como vimos no
capítulo 2, assim é a lírica, pautada no presente, sempre fugaz. Mais ainda, a lírica moderna
que canta um mundo fragmentado, desestruturado, cada vez mais individualizado, distante da
natureza, que não tem grandes feitos para cantar, nem para quem cantar.
A Vida é breve, a poesia, o poeta, tudo, “Este verso, apenas um arabesco / em
torno do elemento essencial – inatingível. / Fogem nuvens de verão, passam aves, navios,
ondas”. A vida do poeta e de sua escrita também.
241
ANDRADE, Carlos Drummond de. Tempo vida poesia. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 13.
242
DALL’ALBA, Eduardo. Drummond: a construção do enigma. Caxias do Sul: EDUCS, 1998, p.
21.
124
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo. (“Ontem”).
Já a eternidade, o “Eterno”, “é tudo aquilo que vive uma fração de segundo”, “é
tudo aquilo que passou, porque passou / é tudo não passa, pois não houve”. Eterno é o
infinito, antes ou depois da vida, porque não limitado, nem redutor, porque não é fugaz como
a vida, “é o menino recém-nascido / antes que lhe dêem nome e lhe comuniquem o sentimento
do efêmero”.
Jorge Luis Borges, numa passagem em que discorre sobre o tempo e a eternidade,
cita William Blake – “O tempo é a dádiva da eternidade” e assim completa:
Se a nós nos dessem todo o ser... O ser é mais do que o universo, mais do
que o mundo. Se nos revelassem o ser uma única vez, ficaríamos
aniquilados, anulados, mortos. Por outro lado, o tempo é a dádiva da
eternidade. A eternidade nos permite todas essas experiências de um modo
sucessivo. Há os dias e as noites, as horas, os minutos, a memória, as
sensações presentes e, depois, o futuro, um futuro cuja forma ignoramos,
mas que pressentimos ou tememos.
Tudo isso nos é dado de modo sucessivo, eis que não podemos agüentar essa
intolerável carga, ou essa intolerável descarga de todo o ser do universo. O
tempo viria a ser um dom da eternidade. A eternidade nos permite viver
sucessivamente. Schopenhauer disse que, felizmente para nós, nossa vida é
dividida em dias e em noites, nossa vida é interrompida pelo sono.
Levantamo-nos pela manhã, passamos nosso dia, em seguida dormimos. Se
não houvesse o sono, seria intolerável viver, não seríamos donos do prazer.
A totalidade do ser é impossível para nós. Assim, dão-nos tudo, mas de
forma gradual.
243
Desta forma podemos entender o tempo e a vida como pílulas de eternidade e,
talvez, propor que esta para Drummond seja a reintegração ao Cosmos, à Vida, à verdadeira
Vida, o fechamento do círculo, do ciclo.
Com seu sentimento nadificador em relação ao mundo e à vida, com sua timidez,
o poeta mineiro descrê na possibilidade de continuidade da vida e não almeja a permanência
de sua obra. A vida é efêmera e passageira, apenas isso, sem a possibilidade e nem o desejo
243
BORGES, Jorge Luis. “O tempo”. In: Jorge Luis Borges: cinco visões pessoais. 2.ed., Brasília:
EdUnB, 1987, p. 43.
125
do poeta em permanecer, nem de deixar pistas da sua passagem por aqui: “Mas não quero ser
senão eterno. / Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência / ou nem isso.
/ E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma sombra / e que não fique
o chão nem fique a sombra / mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma esponja
no caos / e entre oceanos de nada / gere um ritmo” (“Eterno”). Por esta e outras passagens fica
claro que o poeta não almeja eternizar-se por meio da arte. A eternidade que ele entende e
busca é a da sua desintegração junto à natureza, sem nenhum pejo de permanência. A não ser
breves lampejos de sua existência aqui, é o seu retorno ao não-tempo.
A eternidade para Drummond soa-me como a única possibilidade de anulação
total, de vitória total, completa e definitiva sobre o relógio do Tempo, porque anulação e
negação peremptória deste, porque suspensão da necessidade de pílula da vida, porque
obtenção da própria Vida. É o estágio anterior e posterior a esta vida, é o nada, o não-tempo.
Eternas são as palavras em estado pré-dicionário (“A palavra”: “Já não quero dicionários /
consultados em vão. / Quero só a palavra / que nunca estará neles / nem se pode inventar. /
Que resumiria o mundo / e o substituiria.”). Eternas são as almas antes de nascer e depois de
deixar de viver. Eterna é a morte nadificadora). É o infinito, o ilimitado, “o menino recém-
nascido / antes que lhe dêem nome / e lhe comuniquem o sentimento do efêmero”. O fim das
coisas ou o não-começo determina a impossibilidade de ação do tempo, indica o “tempo
elidido, domado” (“Vida menor”), a Eternidade, “eternas as palavras, eternos os pensamentos;
e passageiras as obras” (“Eterno”). Pois tudo que é vivo e é da vida se esvai, fenece, inclusive
sua literatura:
Tua memória, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida e seus pesares.
Mas pesares de quê? perguntaria
se esse travo de angústia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,
e nada resta, mesmo do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras,
senão contentamento de escrever,
126
enquanto o tempo, e suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo de teu ser? (“Remissão”).
Na sua verdadeiramente modesta consideração a respeito de sua obra, dela
restaria apenas a lembrança de um momento polêmico, “uma pedra no meio do caminho”, seu
único legado ao país que lhe dera tudo o que lembrava, sabia e sentia:
Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.
De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho. (“Legado”)
e) Antinomia juventude-velhice
Na poesia de Horácio, tínhamos visto que a antinomia juventude-velhice era uma
das formas de caracterizar a fluidez temporal. O poeta venusiano observa a natureza e vê o
tempo passar através do mundo exterior a si. Olha para as pessoas ao seu redor e constata a
intervenção de Saturno sobre elas. A juventude e a velhice são percebidas na figura de seus
amores, e amantes, objetos de desejo ou repulsa, mas não nele mesmo. Drummond igualmente
usa desta antinomia, mas, diferentemente, o faz a partir dele próprio. O tempo flui escorrendo
por dentro das veias e do corpo dele mesmo. O poeta percebe e reflete a sua degradação, o seu
processo de envelhecimento:
O inimigo maduro a cada manhã se vai formando no espelho
no espelho de onde deserta a mocidade.
Onde estava ele, talvez escondido em cabelos escoceses,
em cacheados cabelos de primeira comunhão?
onde, que lentamente grava sua presença
por cima de outra, hoje desintegrada?
127
Ah, sim: estava na rigidez das horas de tenência orgulhosa,
no morrer em pensamento quando a vida queria viver.
Estava primo do outro, dentro,
era o outro, que não se sabia liquidado,
verdugo expectante, convidando a sofrer;
cruz de carvão, ainda sem braços.
Afinal irrompe, dono completo.
Instalou-se, a mesa é sua,
cada vinco e reflexão madura ele é quem porta,
e esparrama na toalha sua matalotagem:
todas as flagelações, o riso mau,
o desejo de terra destinada
e o estar-ausente em qualquer terra.
3 em 1, 1 em 3:
ironia passionaridade morbidez.
No espelho ele se faz a barba amarga. (“O retrato malsin”).
O que faz com que o envelhecimento para o poeta mineiro seja motivo de reflexão
e amargor e não de riso ou sabor de vingança como naquele. Em O Avesso das coisas, livro de
aforismos, dois deles exprimem claramente a dificuldade e o sofrimento que é para o homem
envelhecer e saber-se em vias de acabar: “Chama-se velhice ao estado de deterioração do
corpo, que tenta submeter o espírito a igual miséria.” e o aforismo de Hipócrates reeditado,
“A vida é breve, a velhice é longa.”
244
. A última das idades torna-se eterna no plano
psicológico e cada vez mais efêmera quanto ao corpo, porque altamente degenerativo.
A juventude na lírica do poeta mineiro, da mesma forma que em Horácio, até
porque faz parte dessa fase, revela o pleno vigor da vida, a força, a libido, o arrojo, o
extravasar da energia vital, o sentimento e a certeza dessa força vital, indiferente ao maldizer
dos outros e às conseqüências:
Torno a bater. Pá pá pá.
As mãos estalam, desejo
e turva oração: Meu Deus,
244
ANDRADE, Carlos Drummond de.O avesso das coisas. Rio de Janeiro: Record, 1987, pp. 160-1.
128
as pernas por que me dano!
Ressoam pela cidade
as palmas no corredor.
Nos quatro cantos já sabem
de minha ardência.
Já me condenam, me prendem
e nunca verei as pernas
sublimes no alto da escada.
Mas bato. Bato rebato. (“As pernas”).
A juventude é, por excelência, efêmera no que diz respeito à evolução do corpo e
ao tempo e eterna do ponto de vista psicológico. A cada dia há um crescimento, o findar de
um estágio para o surgimento de outro, são muitas as mudanças na fisiologia. É o período em
que provavelmente ocorrem mais perdas e ganhos. Período em que a degeneração vem
sempre acompanhada de e é sempre suplantada pela regeneração. Muitas vidas e mortes ao
mesmo tempo num só corpo.
É uma fase em que o desejo de fazer-se adulto, de tornar-se autônomo e
independente e descobrir os segredos da vida são enormes. Tão grandes que parece que o
tempo não anda e o mundo se fecha, insistindo em negar o cumprimento das vontades, “É
preciso crescer / esta noite a noite inteira sem parar / de crescer e querer / a puta que não sabe
/ o gosto do desejo do menino / o gosto menino / que nem o menino / sabe, e quer saber,
querendo a puta” (“A puta”).
Mais do que em Horácio, na poesia de Drummond, a presença da antinomia
juventude-velhice salienta com mais contundência o quanto o tempo é implacável e passa
rápido, tanto na juventude quanto no último estágio da vida. Isto porque sua interferência dá-
se diretamente sobre o poeta, cuja produção e obra evoluem e entram em derrocada junto com
o homem.
f) Degradação dos tempos
Em Drummond, a degradação dos tempos não é apenas o distanciamento
gradativo de uma época mítica de ouro, como em Horácio. Era de ouro, lugar ideal, locus
amoenus, tempo imemorável passado, seu e da humanidade, tempo que “descanta a memória /
129
do tempo mais fundo / quando não havia / nem casa nem rês / e tudo era rio” (“América”),
que de vez em quando é revisitada pela memória e por um boi que vem de onde não há
fazendas para transportá-lo “sonho e compromisso ao País Profundo” (“Episódio”). É essa e
outras degradações mais, a degeneração da Vida, a do próprio poeta, inclusive. É a decadência
física e moral do mundo e da humanidade. A degradação aqui é fruto, principalmente, do
“princípio-corrosivo” de que tratara Luis Costa Lima, corrosão psicológica, resultado da dor
de viver num mundo que é hostil, causador de sofrimento e remorso.
De modo que a degradação se apresenta na matéria física: 1) humana, nas
“feéricas dentaduras, / admiráveis presas / mastigando lestas /e indiferentes / a carne da vida”
(“Dentaduras duplas”); no “Corpo, essa obra de arte que se vai degradando com o tempo” (“O
Avesso das coisas”), sabendo-se “que toda carne aspira à degradação” (“A mesa”). A
degeneração é morte gradativa e lenta: “não se morre uma só vez, nem de vez” (“A mesa”). 2)
das coisas, dos prédios e casas: O Hotel Avenida em demolição, restando apenas fantasmas de
um tempo e de vidas que já se foram, “Casais entrelaçados no sussurro”, “estrelas italianas,
porteiros em êxtase / cabineiros / em pânico”. As casas do poeta que se esvaem no tempo, “A
casa sem raiz”, a casa que “não é mais casa itabirana”, a casa em que “Falta... / Falto, menino
eu, peça da casa”, ou o “Casarão morto”, “O casão senhorial” que “vira paiol / depósito de
trastes aleijados / fim de romance p.s. de glória fazendeira”. As cidades que se degradam a
partir da economia: “As paredes / que viram morrer os homens, / que viram fugir o ouro, / que
viram finar-se o reino, / que viram, reviram, viram, / já não vêem”(“Morte das casas de Ouro
Preto”). De tudo, “desabava / por toda parte minas torres / edif / ícios / princípios / [...]
desabadesabadesabadavam” (“Desabar”). O tempo, a glória e o poder do dinheiro passam,
restando apenas “no chão de pedra o lembrete / estercorário da cena” (“Desfile”).
O mundo se degrada e se destrói com as guerras modernas. Tanto que os olhos do
poeta são pequenos para ver “o general com seu capote cinza / escolhendo no mapa uma
cidade / que amanhã será pó e pus no arame”, “a fila de judeus de roupa negra, / de barba
negra, prontos a seguir / para perto do muro” (“Visão 1944”). O homem oprime, reprime e
mata seus irmãos sob o tacão de regimes ditatoriais, razão pela qual o poeta pede “Notícias de
Espanha”, que, no entanto, “Ninguém as dá. O silêncio / sobe mil braças e fecha-se / entre as
substâncias mais duras. / Hirto silêncio de muro, / de pano abafando boca”.
O homem se degrada moralmente – “Entretanto há muito / se acabaram os
homens. / Ficaram apenas / tristes moradores”, a ponto de os ratos, reeditando Cícero (O
tempora! O mores!) proferirem: “– Que século, meu Deus! diziam os ratos. E começavam a
roer o edifício” (“Edifício Esplendor”). De modo a não reconhecer mais seus semelhantes: “A
130
noite desceu. Que noite! Já não enxergo meus irmãos” e a humanidade envelhece. É “Tempo
de absoluta depuração” (“Os ombros suportam o mundo”). “Assim nos criam burgueses. /
Nosso caminho traçado. / Por que morrer em conjunto? / E se todos nós vivêssemos?” (“O
medo”).
O poeta se autocorrói em remorso. Por seu canto não ser uma arma eficaz contra
as injustiças que assolam o mundo: “e que vale um canto? O poeta, / imóvel dentro do verso.
// cansado de vã pergunta, / farto de contemplação, / quisera fazer do poema / não uma flor:
uma bomba / e com essa bomba romper // o muro que envolve Espanha” (“Notícias de
Espanha”). Por não poder “sozinho dinamitar a ilha de Manhatan”. (“Elegia 1938”). Remorso
da sua relação e incomunicação com o pai, “desejar amá-lo / sem qualquer disfarce, / cobri-lo
de beijos, flores, passarinhos, / corrigir o tempo, / passar-lhe o calor / de um lento carinho /
maduro e recluso, / confissões exaustas / e uma paz de lã” (“Rua da madrugada”).
Acima de todas as destruições causadas pelo homem, está o Tempo a desgastar
tudo e todos, casas, cidades, o homem, a moral. Por isso, Drummond parece desejar o
aniquilamento como forma de reintegrar-se ao lugar ideal, o lugar perfeito, a eternidade, que
seria o não-tempo, local do exílio perfeito, como no exílio de “Nova Canção do Exílio”:
Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.
Onde é tudo belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)
Ainda um grito de vida e
voltar
para onde é tudo belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.
131
Além deste estudo, um levantamento estilístico dos poemas corrobora a presença
do tempo na lírica de Drummond. Tema que é expresso tanto por meio de uma forma mais
clássica, amparado pela permanência da natureza e suas manifestações da passagem do
tempo, quanto por uma forma moderna, pautada por marcadores da modernidade num mundo
urbano-cosmopolita. Marcadores que demonstram a resistência e a continuidade da tradição,
do movimento clássico e a inevitável evolução do pensamento, da arte, da literatura e do curso
da história. Neste contexto podemos pensar na eternização dos cânones e na efemeridade do
moderno.
Uma análise deste tipo pode reiterar a constância do tema, o tempo e o uso que o
poeta faz do sermo nobilis, preocupação sua com a linguagem elevada, importantíssima na
gramática da literatura clássica, propalada e defendida pelos estudiosos antigos, por referendar
o sublime. Todavia, o sermo humilis e o que chamo de sermo quotidianus, uma das defesas,
preocupações e estímulos da estética modernista também se fazem muito bem representados
na lírica de Drummond, por isso igualmente referidos aqui.
O mundo clássico antigo dependia da natureza para marcar o tempo e a sua
passagem e apenas começava a abstrair-se e livrar-se dessa relação física, corporal. O homem
moderno, ao contrário, com a criação dos relógios mecânicos, passou a ocupar-se do tempo
naquilo que ele tem de mais psicológico. Tomando como parâmetro apenas o plano
semântico, há, na poesia de Drummond, assim como na de Horácio, elementos a delimitar o
tempo natural, os ciclos naturais: a noite, o dia, o sol, rios, riachos, a representar o fluir do
tempo. Não são preponderantes, como naquele poeta, mas estão lá. A noite e o dia, por
exemplo, são substantivos bastante usados, tanto na forma metafórica quanto denotativa. A
primeira significando períodos difíceis para o poeta, como “Na passagem da noite”: “É noite.
Sinto que é noite / não porque a sombra descesse / (bem me importa a face negra) / mas
porque dentro de mim, / no fundo de mim, o grito / se calou, fez-se desânimo. / Sinto que nós
somos noite, / que palpitamos no escuro / e em noite nos dissolvemos. / Sinto que é noite no
vento, / noite nas águas, na pedra. / E que adianta uma lâmpada? / E que adianta uma voz?”.
Período difícil para o homem, quando “A noite dissolve os homens”: “A noite desceu. Que
noite! / Já não enxergo meus irmãos. / E nem tampouco os rumores / que outrora me
perturbavam. / A noite desceu. Nas casas, / nas ruas onde se combate, / nos campos
desfalecidos, / a noite espalhou o medo / e a total incompreensão. / A noite caiu. Tremenda”.
O dia representa o renascer de um novo momento, mudança de ânimo para o
poeta, “Mas esquecemos. O dia perdoa” (“Onde há pouco falávamos”), ou o renascer da
132
esperança utópica, socialista. Ambos, dia e noite, fazem parte da composição claro-escuro a
que aludem os críticos. Caracterizam o tempo, não exatamente como o relógio horaciano, a
estabelecer a mudança dos dias, das estações, já que o homem moderno dispõe de outros
instrumentos mais precisos, mas, sobretudo o psicológico, o estado de espírito do poeta e da
humanidade, quando na segunda guerra.
O sol não caracteriza apenas a passagem do tempo, o renascer do dia, mas
também a perenidade do seu repetitivo ato de brilhar todos os dias desde os primórdios. A
partir dessa idéia, algumas vezes é retomado o sentido e o uso clássico, o substantivo expresso
no plural, a marcar o seu surgimento todos os dias, relembrando muitas vezes Catulo, em seu
poema número cinco Horácio, em sua ode 5 do livro IV: “se vai mais grato o dia e brilham
mais / os sóis”. É o que acontece em “Elegia”, “na fuga deste dia que era mil / para mim que
esperava / os grandes sóis violentos”. Ou em “Verão Carioca 73”, com uma nova visita do
mito de Apolo, a percorrer o mundo em seu carro veloz, “O carro do sol passeia rodas de
incêndio sobre os corpos e as mentes, fulminando-as”. Os dois casos simbolizam a eternidade
da natureza, do cosmos e a efemeridade das coisas e do homem: “O sol eterno brilha de novo /
e seca a ferida // [...] // mas as ondas, tamm elas, secam, / e o sol brilha sempre”
(“Movimento da espada”). Em outros há a sugestão do começo do dia, a volta à realidade, a
continuidade da vida, apesar dos problemas e angústias “e de manhã o sol era menino novo”
(“A casa sem raiz”).
Rios, riachos e córregos fluem pela poesia de Drummond e remetem à imagem
heraclitiana do fluxo das águas e do tempo, qual “Aquele córrego” que “Não tem / nome
nenhum, tão miudinho / ele é. Pois é, qual riacho / qual nada. Ele é mesmo corgo / ou nem
isso. É meu desejo / de água que não me afogue / e onde eu veja minha imagem / me
descobrindo, indagando: / Que menino é esse aí?”. Águas que repetem a idéia clássica e
eternizam-na, tal qual o tempo, o sol e os dias se refazem desde sempre, mais recentemente,
desde a época do Império brasileiro, a repetir o sacrifício e a miséria dos negros brasileiros,
“Na Penha, o ribeirão fala tranqüilo // que Joana lava roupa desde o Império / e não se
alforriou desse regime / por mais que o anil alveje a nossa vida”: (“Repetição”). Líquido
constante e eterno, indiferente à efemeridade do homem. “Água-desfecho”, “antessabor da
linfa amara / a penetrar-me a língua e a percorrer / o mais furtivo poro de consciência. // Pois
submergido estou, a vida é clara, /e não mais necessita de clemência / o epilogado, esvaecido
ser”.
As quatro estações do ano até que surgem nas cenas drummondianas, mas de
forma distinta das de Horácio, pois não denotam, como relógio, a alteração e a passagem do
133
tempo. Novamente neste caso, a razão de suas aparições está na caracterização de um estado
de espírito. A esse respeito convém lembrar que o clima no Brasil, principalmente na porção
tropical, não é muito definido – não apresenta nitidamente quatro estações – como na Europa.
Entre os períodos climáticos, destaca-se o mês outoniço de maio, uma estação de melancolia
para o poeta, visto que, numa “Tarde de maio”, “Outono é a estação em que ocorrem tais
crises, / e em maio, tantas vezes, morremos”. Um pouco mais ameno no Rio de Janeiro, onde
“Entre os desmaios de maio, azula o céu carioca”, em que “Maio no Leblon”: “Macio maio!
Bem-vindo / aos que, de pupila doente, / refugiavam-se no poente, / dos revérberos da praia”.
Mas de todos os marcadores de tempo, os que mais se sobressaem na lírica do
poeta mineiro são os criados pelo homem moderno e já referidos anteriormente: o relógio,
símbolo-mor da Modernidade e do capitalismo, o calendário de Mariana, o tráfego das
grandes cidades a regular o começo e o fim da jornada de trabalho, como já foi dito. O jornal,
fonte de matéria e de trabalho para os poetas modernistas é outro elemento a precisar a
passagem dos dias, meses e anos. O bonde (boi da modernidade? – “no curral da manada dos
bondes” – “A um hotel em demolição”) é outra figura bastante utilizada na poesia
drummondiana: também sugere a fugacidade do tempo, seja como parte do trânsito das
grandes cidades no século passado, seja pelo fato de serem regulados por horários rígidos e
constantes para levarem os trabalhadores até o serviço. Tempo é dinheiro. “O esplêndido
negócio insinua-se no tráfico. / Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro. /
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul, / vem na areia, no telefone, na batalha de
aviões, toma conta de tua alma e dela extrai uma percentagem” (“Nosso tempo”).
Na poesia de Horácio, tínhamos visto a presença de referências a elementos da
natureza a simbolizar a fugacidade do tempo, da vida, rios, ventos e de outras a evocar a
criação humana, os perfumes, o vinho, a literatura e sua transitoriedade. Em Drummond,
percebe-se que os produtos elaborados pelas mãos e pela mente do homem (estrada, rua,
hotel, bonde, arabesco) são os que caracterizam a fugacidade e os provenientes da natureza, a
permanência, a constância, a eternização (raiz, minério, boi), com exceção para ‘flor’.
Representando o primeiro grupo: o da fugacidade, encontramos como exemplos o
substantivo viagem e seus correlativos, sob a forma de verbos e adjetivos, além de sinônimos
como errar. Viagem é o que caracteriza por si só o transitório, o fugaz, está na raiz da palavra,
via, caminho, estrada. Viajar é um ato de não-estar, de romper com a rotina e com a
constância, com o stablishment. Drummond afirma isso em “Passeios na ilha”:
134
Realmente, a viagem começa na embaraçosa arrumação das malas, quando
desfazemos algo do nosso quadro rotineiro. Os objetos mudam de lugar, são
aprisionados, e nós próprios nos exilamos. As ruas do nosso trajeto habitual
parecem dizer-nos adeus. Há um risco suspenso em toda viagem, isto é , em
toda quebra de costume, e com olhos que finalmente desvirginam a essência
das coisas nos despedimos, saudosos, daquilo que simplesmente nos
enfadava.
O desejo de voltar segue conosco, entrelaçado ao propósito de ir. Sucederá o
mesmo com os que fazem da viagem uma profissão - os pilotos, as
aeromoças, os representantes comerciais? Eles sentirão talvez, regressando à
casa, essa melancolia que a nós nos invade ao deixarmos a nossa.
245
A viagem é um pequeno exílio, um afastamento da cidade, da coletividade, um
processo de individuação, “Viajar é notícia / de que ficamos sós à hora de nascer?” (“Elegia
transitiva”). Por essa natureza individualizada, divergente, a contrapor o coletivo, o
estrangeiro é um problema, razão de preconceito e xenofobia. Em Drummond a viagem é a
sua principal condição, é o vaticínio do anjo de que o poeta irá errar, ser gauche, é o motivo
de sua inquietação: estar preso, não querendo estar, deixar os seus lugares, não o desejando.
A estrada, com sua variação urbana: a rua, é, por excelência, lugar de passagem,
para aqueles que têm casa, logicamente. Por sobre este canal de fuga, nada fica, nada se
eterniza, nem mesmo a terra que por vezes se acumula à beira. Os carros passam, a água da
chuva e os ventos passam. A areia fica até que o vento ou a chuva a carregue até mais adiante.
Na “Estrada” do poeta “Foge o tropel da trompa na poeira. / Tudo na terra é sozinho”. A
estrada é uma só, tanto quanto o viajante, mesmo que acompanhado. A rua, em proporção
menor, também é isso. E é o mundo, “a rua é o mundo que se percorre, a vida que se vive”. O
mundo e a vida que se consegue construir, “Meu passo torto / foi regulado pelos becos tortos /
de onde venho” (“A rua em mim”). A estrada é rio sem água. O rio seco pode se transformar
em estrada. Estrada é também fluxo de tempo.
O hotel, enquanto prédio, é lugar fixo, mas seu destino é atender os que estão de
passagem, os viajantes. “Todo hotel é morte, nascer de novo; passagem”, “Todo hotel é fluir”,
“por conta dos pecados deste hotel / e de quaisquer outros hotéis pelo caminho / que passa de
um a outro homem, que em nenhum / ponto tem princípio ou desemboque; / e é apenas
caminho e sempre sempre / se povoa de gestos e partidas / e chegadas e fugas e quilômetros”
(“A um hotel em demolição”). Por esses últimos versos, podemos inferir que hotel é metáfora
para eternidade, é o círculo sem fim, nem começo. É o que não guarda passado, memória,
245
ANDRADE, Carlos Drummond de. Passeios na ilha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975,
p. 33.
135
porque as pessoas nele não se fixam, nem almeja futuro, porque seu futuro é a espera por
hóspedes, por aquilo que é fugaz.
O bonde pode ser compreendido por sua dupla condição de passagem, de
passageiro. Por si só, é fugaz. Circula por uma rota, por uma rua ou estrada e pára
rapidamente para subida e descida das pessoas. Não se estabelece, não cria raízes. Em seu
interior transporta passageiros, que por ele e com ele, apenas passam, não ficam. É símbolo de
fugacidade, pois “Por um tostão passamos em revista palacetes art nouveau novinhos em
folha / penetramos no verde mistério abissal da Serra (...) / Por um tostão as lonjuras do Prado
Mineiro (...) / Viajamos por países modestos de Carlos Prates / e Lagoinha, pelo país violação
do Bonfim” (“Hino ao bonde”).
O arabesco é outra palavra que conota algo fugidio, dado o entrelaçamento de
linhas, de desenhos. Figura que diante do olhar é, a um só tempo, muitas e uma única, muitas
e nenhuma precisamente, como na diversificação de imagens, enlaces e desenlaces que o
“corpo inventa” na hora do amor, (“Corporal”):
De cinco, dez sentidos, infla-se
o arabesco, maçã
polida no orvalho
de corpos a enlaçar-se e desatar-se
em curva curva curva bem-amada,
e o que o corpo inventa é coisa alada.
Representando o segundo grupo: o da perenidade, podemos citar o minério, a
pedra, a raiz e o boi. A pedra, de grande repercussão e impacto no caminho e na poesia de
Drummond, é apenas uma parte, uma pequena unidade do extenso reino mineral, de que o
poeta também faz parte, por pertencer às Minas, por trazer de Itabira, “cidade toda de ferro”,
“oitenta por cento de ferro nas almas”, por trazer na sua essência, na sua alma, este metal. A
pedra é, por natureza, estática, dura, bruta, inflexível, perene. Quando “no meio do caminho”
torna-se um problema, uma questão para resolver, um universo por construir, uma lírica por
criar.
A raiz, mesmo pertencendo ao reino vegetal, perecível, nem por isso deixa de
sugerir firmeza, base de sustentação que é. Por jazer enterrada é a parte que se mantém mais
protegida, mais distante da fragilidade, da efemeridade do que está exposto: o caule, as folhas,
as flores e frutos. Em sentido figurado, raiz é a origem familiar, extremamente cara ao poeta,
136
“Meu passado / meus ossos de família / minha forma de ser / é de braúna” (“Braúna”). É a sua
origem telúrica, regional: “Minas é dentro e fundo” (“A palavra Minas”) e transcendente,
“Vinde feras e vinde pássaros restaurar em sua terra este habitante sem raízes / que busca no
vazio sem vaso os comprovantes de sua essência rupestre.” (“Chamado geral”).
Davi Arrigucci Júnior, numa bela análise do poema “Áporo”, proporciona-nos
uma leitura oportuna para pensar e estender a idéia de raiz e minério a outros textos do poeta
mineiro:
A raiz, labirinto vegetal e subterrâneo, é ainda um elemento de ligação entre
o exterior e o interior e, como o coração, é sentida intimamente como uma
espécie de matriz da vida de que se alimenta todo o organismo, ao mesmo
tempo em que se enterra, como algo morto é próximo do mineral. O minério,
precioso pela raridade e o difícil acesso, sugere da mesma forma a
dificuldade labiríntica e enterrado como a raiz, escondido da vista, como ela
desperta a imaginação para o que se oculta misteriosamente.
Postos juntos, “raiz” e “minério” evocam, além do mais, com seu atilho de
conotações, a origem, a esfera do trabalho e da mitologia pessoal do poeta: a
raiz encravada na terra de Minas; a mineração
que deu nome ao Estado; o
próprio trabalho poético drummondiano, muitas vezes associado
metonimicamente à sua terra natal, ao minério de ferro de Itabira, que
sempre lhe pesou na alma, à lavra como ato de lidar com as palavras –
mineração à cata de outro ouro mais difícil que o levado das Minas.
246
Raiz e minério representam a eternidade, o início e o fim. A pedra bruta como
origem, algo a ser burilado, a raiz à espera de fazer nascer à planta. Pedra e raiz como morte,
de volta para debaixo ou para junto da terra ao fim, sob a forma de poeira ou semente.
O boi, embora animal, mortal e efêmero, na lírica drummondiana, sugere a
quietude que o poeta não tem e não consegue alcançar. É a lentidão, o apascentamento que,
diferente das cidades pequenas, o seduz, porque repletos de pensamento, reflexão, ruminação,
quando ele vê os homens, “E como neles há pouca montanha, / e que secura e que
reentrâncias e que / impossibilidade de se organizarem em formas calmas, / permanentes e
necessárias”. O boi é a lembrança do seu passado familiar de fazenda. É a memória de um
bucolismo não mais possível na modernidade, apenas episódico, “alheio à polícia / anterior ao
tráfego” (“Episódio”).
As flores, a rosa em especial, devem ser tratadas à parte nesta seção, visto que
normalmente são símbolos de delicadeza, graça e efemeridade. É o caso de um certo
“Girassol” que, para o poeta, é “flor do desejo mais efêmera que qualquer outra flor”. Mas, de
maneira geral, Drummond entende a flor e a descreve forte, inteligente a buscar espaços para
246
ARRIGUCCI JR., Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São
Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 92-3.
137
sempre nascer, como “A Rosa do Povo”. Para ele, a flor é eterna porque morre, porque
encerra seu ciclo de vida. “Eterna é a flor que se fana / se soube florir” (“Eterno”). Para ele, a
flor não é frágil, mas resistente ao poder constituído, à burguesia, ao homem e seus
sensabores, “Uma flor nasceu na rua [...] Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia, rompe o
tédio, o nojo, o ódio” (A flor e a náusea”).
Em matéria de linguagem, o que se verifica na lírica de Drummond é um farto
manancial lingüístico, sobre o qual ele opera utilizando-se desde um vocabulário erudito, com
direito a arcaísmos e expressões latinas, até palavras de baixo calão. Creio que a escolha do
autor por essa grande variedade vocabular, para além da poética modernista de propor o
coloquialismo, passa pelo seu devotamento, respeito e luta com as palavras, de onde a sua
preocupação com todos os tipos, clássicas, populares, coloquiais, estrangeiras, regionais,
gírias. Daí o fato de podermos falar e pensar na dicotomia sermo nobilis e sermo humilis e as
sua implicações em razão de literatura clássica e moderna.
O sermo nobilis, expressão típica da poesia e da poética clássicas, é observado na
obra de Drummond através do emprego de um léxico e de uma estrutura sintática de cunho
erudito, porque moldados numa morfologia e sintaxe advindas do latim e do grego. Algumas
vezes, por conta de uma proposição poética e estilística de retomar fôrmas mais clássicas e
linguagem mais rebuscada, proporcionando um ambiente mais distinto, distante do comum e
corriqueiro, sublime, como em “Tempo e olfato”:
Que me quer este perfume?
Nem sequer lhe sei o nome.
Sei que me invade a narina
como incenso de novena.
Que me passeia no corpo
como os dedos tangem harpa.
E me devolve ao pretérito
e a um ser de lava, quimérico,
ser que todo se esvaía
pela porta dos sentidos,
138
e do mundo, em que saltava,
qual dum espelho lascivo,
retirava a própria imagem
na pura graça de origem...
Cheiro de boca? de casa?
de maresia? de rosa?
Todo o universo: hipocampo
no mar celeste do Tempo.
Nestes versos, notam-se algumas orações e estruturas sintáticas distantes do falar
cotidiano “Nem sequer lhe sei o nome” ou “qual dum espelho lascivo”. A última estrofe, um
pensamento todo pautado por sintagmas, sem a presença de verbos, indica um modo de
organização tipicamente das línguas clássicas e da lírica. Um léxico poético: “os dedos
tangem harpa”, “quimérico”, culto “pretérito”, hipocampo.
Por vezes, o uso do sermo nobilis funciona como ironia, dirigida à futilidade e
alienação de burgueses, freqüentadores de uma praia do “Verão carioca 73”, sem “esquírolas
de consciência”. Outras vezes é recurso lúdico-lírico, por exemplo, nos versos de
“Ssombração” [sic]. O léxico erudito “Claudicava da perna”, “Baixando de seus mundos /
intersidéreos”, “e carpe de mansinho”. Com isto, refere-se ao fantasma em evidência no texto
e soa antiquado, sugerindo a antiguidade e o isolamento do “avejão” num Rio de Janeiro
moderno, representado, neste caso, pela gíria “E o pobre, na sinuca” e pelos estrangeirismos,
“O fantasma sem chance / não dizia baibai, / peídemonanfance // nem outras falas doces [...]”.
O contraste das duas variantes lingüísticas invoca a longa distância espaço-temporal e moral
entre aquele e os moradores do “Flamengo à Tijuca”, bem como a impossibilidade de
comunicação e do assombro destes para com aquele, embora a recíproca não deva ser
verdadeira.
Ainda dentro do universo e da proposta de erudição e sublimação, há as
expressões latinas que revigoram a idéia de um sermo nobilis. Apesar de o menino Carlos na
escola “recusar” o latim: “não entendo, não engulo este latim: “Perinde ac cadaver
(“Recusa”), o poeta adulto o adota como recurso lingüístico-poético em sua obra.
Aproveitando o freqüente uso da língua latina pela Igreja, pela Ciência, pelo Direito e mesmo
no cotidiano das línguas ocidentais, o poeta itabirano utiliza-os bastante em seus textos.
139
Se as fórmulas eruditas escolhidas por Drummond atestam a tradição do sermo
nobilis na lírica ocidental, a variação lingüística menos nobre, comum, cotidiana corroboram a
sua adesão à estética modernista. Neste caso, o sermo humilis se mostra diversificado por
meio de formas orais, menos afeitas à escrita e a sua aceitação na literatura. São
regionalismos, reduplicações, repetições, diminutivos, onomatopéias. Mas há também, na
lírica drummondiana, alguns termos curiosos e estranhos para os cânones modernos, a que
denomino sermo quotidianus e o nome se justifica tendo em vista que é veiculado por meio de
e a partir do advento da mídia, dos meios de comunicação e das novas tendências artísticas,
das novas tecnologias. Reproduzem os nomes de produtos comerciais da época, da moda,
alguns já inexistentes, estrangeirismos, gírias, caracteres matemáticos ou comerciais,
neologismos e brincadeiras lingüísticas.
Entre as marcas de oralidade, poderia se destacar o modo de falar de pessoas
comuns, indiferentes ao eruditismo, em: ‘quede’, expressão bastante recorrente e já apontada
por Gilberto Mendonça Teles – “A rua acabou, quede as árvores?” (“Coração numeroso”),
“corgo” para córrego (“Aquele córrego), “quentando”, em vez de “esquentando” – “a família
mineira / está quentando sol” (“Sesta”), “pissui” para “possui” – “e na minha terra ninguém
pissui” (“Romaria”); o advérbio mais no lugar da conjunção aditiva – “afugentar cobras mais
carrapatos” (“Melinis Minutiflora”), “mais o boi mais o burrinho” (“O que fizeram do
Natal”); as forma orais: “abença” (“Noturno”), “tá!” (“Apelo aos meus dessemelhantes em
favor da paz”); os coletivos “saparia”, para sapos (“Festa no brejo”), “a povama deslumbrada”
(“Desfile”).
O grotesco, da mesma forma, tem sua representação no uso de palavras e
expressões de baixo calão. Não são constantes, mas aparecem. Nesse contexto, Drummond se
aproxima mais da concepção poética de Catulo e diverge da proposta de Horácio, ao aplicar
tanto o sermo nobilis quanto o humilis. É o que se vê já no título e depois no corpo do poema
“A puta”, ou nos xingamentos ditos no calor de uma “Briga”: “Puta que pariu” e “A sua, fio
da puta”. Na “Higiene Corporal”, em que “Junto à latrina, o caixote / de panos de limpar cu /
de menino”.
A escolha do poeta tanto pelo sermo nobilis quanto pelo sermo humilis, das
muitas variações lingüísticas, de padrão erudito e popular, de gírias e regionalismos, de
palavras nobres e vulgares, de um estilo clássico e moderno, permite-nos perceber o quanto
sua poesia foi eclética, múltipla, complexa e o amor que ele nutriu pelas palavras, de todas as
ordens e classe, um “amor sapiente”, semelhante ao que ele tivera para com os amigos, os
simples e os intelectuais, para com as cidades pequenas (Itabira e outras) e grandes (Rio e
140
Belo Horizonte), “um sapiente amor / me ensina a fruir / de cada palavra / a essência captada,
/ o sutil queixume” (“O lutador”).
Para encerrar este capítulo, observamos que Drummond não pontua de modo
explícito os versos de Horácio em sua obra, mas trabalha com temas extremamente caros
àquele, ao homem antigo e o de todas as épocas: o tempo, a efemeridade da vida e a
longevidade da arte. Temas que nos são transmitidos pelos clássicos greco-romanos, pela
cultura e literatura ocidental e que passam, necessariamente, também pelo poeta venusiano. O
poeta mineiro, ao dialogar com a tradição lírica ocidental, dialoga indiretamente com aquele e
faz-se também clássico. Ao fazer isso, olha com cuidado e carinho para o passado, conserta os
estragos do tempo na história da literatura e da cultura ocidental, pára novamente ao repetir os
grandes temas e as grandes questões humanas: o tempo, o espaço, a cidade, a arte e os artistas,
a morte e a vida passageiras, razão pela qual se pode dizer: de Drummond a Horácio, o tempo
repara.
141
4 DE HORÁCIO A DRUMMOND O TEMPO DISPARA;
DE DRUMMOND A HORÁCIO, O TEMPO REPARA.
“Só o presente é verdade, o mais promessa...
O tempo, enquanto discutimos, foge:
Colhe o teu dia – não no percas – hoje!”
(Horácio, I,11)
“Assim se passam os dias,
os anos, a eternidade.”
Carlos Drummond de Andrade
(“Os romances inocentes”)
Dois mil anos separam as épocas vividas por Horácio e Drummond. Isto, a
princípio, pode parecer inconciliável. No entanto, as obras dos dois poetas revelam-se
passíveis de contraposições, se considerarmos suas semelhanças e diferenças no que diz
respeito a dois importantes temas para o homem: a morte, a efemeridade da vida, o tempo.
Embora muitas coisas tenham mudado nestes dois milênios, apesar das distâncias espaços-
temporais, o que se nota são mudanças nas idéias, nas concepções históricas, políticas, sociais
e culturais que amparam os dois homens e as duas civilizações, mas não na essência humana.
Com todo o desenvolvimento tecnológico, com os avanços científicos da modernidade, com
toda a soberba e autoconfiança atual, o homem permanece frágil e a sofrer com os mistérios
da vida, com o envelhecimento e a morte. Continua a buscar sua continuidade e eternização,
seja por meio da arte, da glória, seja por meio da descendência.
O objetivo deste capítulo é confrontar as duas Artes Poéticas, a antiga e a
moderna, ilustrando agora com os textos de Horácio e Drummond; demonstrar as
transformações e/ou as manutenções de grandes temas: a morte, a efemeridade da vida, o
amor, o tempo, idéias e preocupações que ajudaram a construir a história da Literatura, bem
como da humanidade e, logicamente, as obras destes dois poetas. O estudo das Artes Poéticas
permite-nos visualizar o quanto o mundo se modificou, enquanto a análise de suas poesias nos
possibilita entender em que medida o homem mantém-se igual.
142
4.1 CLASSICISMO, HORÁCIO E DRUMMOND.
Nos períodos clássicos antigos, as artes, entre elas a Poética, a arte da palavra,
sempre estiveram a serviço das cidades. A Arte servia de instrumento pedagógico para as
populações. Atingia a todos, inclusive os que não tinham acesso à escrita, de onde advém a
importância das artes plásticas e do teatro na Grécia, por alcançar mesmo aqueles que não
lidavam com as letras. Nestas condições, ela funcionava como intermediária entre a Cidade e
o cidadão, entre comandantes e comandados, transmitindo valores políticos, religiosos e
morais.
Os estudos e a compreensão antiga sobre Poética apontam para a valoração de
artes maiores e menores. No que tange à Literatura, os estudiosos reiteram a grandeza da
Tragédia e da Epopéia, não apenas por seu tamanho, por serem mais extensas, mas muito
mais pelas qualidades humanas que defendem e expressam, pelos valores nobres e sublimes,
pelo espírito de coletividade, pelo seu aspecto histórico e político. Dentro desse contexto, a
Lírica não é desconsiderada. Entretanto, por ser uma manifestação mais individualizada, por
atender às preocupações e aos sentimentos expressos por um indivíduo, é tida como arte
menor. É menor não em qualidade, mas na quantidade. É menor porque parte de uma pessoa
isolada, sem força política, visto que o indivíduo e a individualidade não têm grande
significação e importância para a coletividade.
Aristóteles, ao refletir sobre A política, afirma que a Cidade provém da natureza,
porque a “sociedade, que se formou da reunião de várias aldeias constitui a Cidade”, porque é
da natureza humana viver em sociedade, “o homem é naturalmente feito para a sociedade
política”
247
. O pensador grego trabalha com valores de grandeza e pequenez, tanto morais
quanto de tamanho, para quem a sociedade, a Cidade é grande e plena, o indivíduo, pequeno e
frágil. Assim,
O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se
propôs a natureza. O todo existe necessariamente antes da parte. As
sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da
Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes
e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas às mãos e aos pés que,
uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a
realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da
Cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele não precisa dos outros
homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um
247
ARISTÓTELES. A política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 3.
143
bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de
sociedade.
248
Por aí, podemos pensar que são os mesmos caminhos e raciocínios trilhados pelo
estagirita para tratar ou deixar de tratar da poesia lírica, por ser esta, fruto de um produto
individual, menor, por ser uma parte e não um todo, o indivíduo e não o coletivo.
No mundo antigo, o homem integra a natureza e a ela se submete. Respeita os
deuses e todas as hierarquias, divinas e humanas. Dificilmente ousa desafiar os mais velhos,
os mais antigos, a tradição. Antes, pelo contrário, exalta-os e entende que o melhor está no
passado, e quanto mais longínquo, melhor.
A arte de então se origina do espírito religioso e político. Nasce da sociedade e à
Cidade se faz atrelada, assim como todas as coisas, todos os homens, razão pela qual a
reverencia. A arte antiga é pedagógica. É usada para a formação do cidadão a fim de que ele
viva em conjunto, que ele viva para a coletividade. Enquanto imitação, a arte copia a
grandiosidade da natureza, dos deuses, da Cidade, enaltece todos os feitos nobres para que os
cidadãos assim o façam.
Antes de ganhar espaço no cenário cultural grego, no período alexandrino, a
Lírica foi reconhecida por seus préstimos aos dois grandes gêneros de distinção por aquela
época, as poesias trágica e épica, como auxiliar no canto e na dança dos coros. Dessa forma, é
que ela é referida, quase descrita, na Poética de Aristóteles e de outros escritores da época.
Com Alexandre, o Grande, o Ocidente começa a experimentar o processo de
universalização e de supremacia de uma única força e voz sobre a de muitos, E pluribus unus,
que terá continuidade depois com o Império Romano e mais tarde com o cristianismo. É
quando a lírica se torna mais independente e passa a ser aceita com mais autonomia.
Das partes que compõem o todo da Poética, da Literatura, ou ainda, da Poesia, de
que tratara Aristóteles, estão o pensamento e a expressão do autor. A esse respeito os três
filósofos da Arte, o estagirita, Horácio e Longino, são categóricos em afirmar que o sublime é
o que deve ser buscado pelo poeta, tanto no plano do pensamento como no da expressão.
Longino reproduz as palavras de Platão, que exemplifica da seguinte maneira a visão oposta
ao sublime: “Aqueles que não experimentaram a razão e a virtude [...] repastam-se à tripa
forra e copulam [...] à maneira dos brutos, sempre de olhos baixos para a terra e para as
mesas”
249
. O sublime, pois, é a tentativa de voltar-se e aproximar-se do divino, do que há de
mais elevado. Os deuses, protetores da pátria e dos homens, juntamente com tudo o que lhes é
248
ARISTÓTELES. A política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4-5.
249
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A arte poética. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 85.
144
próprio e característico, são paradigmas que devem ser sempre perseguidos, se possível
imitados pelo poeta e, por extensão, pelos cidadãos.
Na lírica de Horácio, vislumbram-se muitas passagens em que o sublime se
mostra no pensamento e no conteúdo expresso de determinados poemas, sobretudo naqueles
em que trata da aurea mediocritas, quando afirma que o melhor da vida não está nos
extremos, nem na materialidade, na riqueza econômica que o mundo romano consegue
oferecer, mas na virtude e na honra, entre elas, a de morrer pela pátria e pelos amigos:
[...] somente àquele
esse nome lhe cabe que, sábio, usa
os dons dos altos deuses concedidos,
que pobreza padece aborrecida
que mais teme a desonra do que a morte,
que a entregar não se esquiva a própria vida,
em defesa da pátria e dos amigos. (Ode 9, IV).
Longino fala de cinco fontes geradoras de linguagem sublime. Duas seriam inatas:
o dom da palavra e a emoção veemente. As outras três, a moldagem das figuras, a nobreza de
expressão e a linguagem figurada, segundo ele, adquirem-se pela prática. E considera “belas e
verdadeiramente sublimes as passagens que agradam sempre e a todos”. As duas primeiras, as
inatas parecem evidentes na obra de Horácio, apesar de que a emoção possa ser entendida
como mais contida, para nossa visão pós-romântica. É inegável, entretanto, que a lírica
horaciana é sublime, tendo em vista que agrada a todos sempre, mesmo dois mil anos depois.
A nobreza de expressão pode ser conferida no que se convenciona chamar de
sermo nobilis, que é uma linguagem elevada e erudita. No caso de Horácio, isto é perceptível
tanto no campo semântico pela escolha dos vocábulos quanto no sintático com suas estruturas
fragmentadas, entrecortadas, muito ao estilo clássico, pois as línguas antigas permitem uma
grande flexibilidade.
Horácio, em sua Ars Poetica, enquanto teórico da Poética, não se revela purista,
antes vê na criação de neologismos a possibilidade de ressaltar, distinguir os vocábulos
comuns e simplórios, de sublimá-los desde que amparados pela tradição filológica grega.
Longino reitera a conceituação de sublime e não-sublime: “as coisas úteis ou apenas
necessárias ao homem são encontradiças, mas o que suscita admiração é sempre o raro”
250
.
250
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A arte poética. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 105.
145
Abrandamento compreensível entre poetas e estudiosos num mundo pós-alexandrino a
prenunciar as raízes de um individualismo e de uma modernidade.
A respeito da tradição, vimos que o mundo antigo é, por excelência, voltado para
o passado. Assim, tudo o que invocava o passado voltava-se, apontava e mais se aproximava
do modelo a ser imitado. O presente é ruim em relação ao tempo anterior, e o futuro será pior
ainda em relação ao atual. Nisso tudo, não havia nenhum demérito em desconsiderar as
realizações aqui e agora. Devia-se sempre fazer o melhor, ser paradigma de virtude, sem
querer ser o melhor, porque impossível. Melhores, mais sábios, bravos e heróis, contudo, só
os antepassados, os maiores dentro dessa escala degenerativa. Valor que implicará esse
conceito de beleza formulado por Longino, “Belo, na verdade, e merecedor de coroa de glória
é esse combate em que mesmo em ser derrotado por gerações anteriores não deixa de haver
glória”
251
. Isto é tradição, cuja significação dada no dicionário de Ernesto Faria, encaminha
para ‘ação de entregar, transmitir’; ‘narração histórica’; ‘transmissão de conhecimentos,
ensino’, ou seja, a tradição implica doação do conhecimento, da arte, da cultura. É repassar
algo para apropriação de outrem. A glória, o mérito é dado para o povo, para a nação, para os
feitos dos antepassados, para a coletividade e não para o indivíduo que conta ou canta, para
um autor.
Em sua obra, Horácio opera fundamentalmente com o sublime, mesmo quando
trata de questões consideradas mundanas, como a sensualidade e as desavenças, pertencentes
ao universo físico, corporal, limitado, finito. O teor elevado estaria no plano moral, religioso,
na valorização à pátria, à família, aos deuses; ou na escolha de palavras e de uma linguagem
não-usual (em negrito no texto a seguir), no uso de imagens para exemplificar e tornar vivas
as idéias do poeta (em itálico no texto), mesmo em questões não tão nobres, como o que se
verifica na contenda do poeta para com um desafeto, expressa no epodo 6:
Por que vexa a tua ira ao pobre peregrino,
se ante os maus se detém?
Volta, pois, contra mim teu ódio pequenino,
que morderei também.
Molosso ou fulvo cão lacônio experto e leve,
amigo do pastor,
251
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A arte poética. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 85-6.
146
perseguirei, de orelha erguida, sobre a neve,
seja a fera que for:
enquanto tu, cheio ainda o bosque do teu brado,
te mostras tal qual és,
afagando a erva tenra, exsurgida a teus pés... (Grifos meus).
[“Quid inmerentis hospites uexas, canis / ignauus aduersum lupos? /
Quin huc inanis, si potes, uertis minas, / et me remorsurum petis? /
Nam qualis aut Molossus aut fuluus Lacon, / amica uis pastoribus /
agam per altas aure sublata niues / quaecumque praecedet fera; / tu,
cum timenda uoce complesti nemus, / proiectum odoraris cibum”.]
Contudo, nem só de sentimentos elevados é composta a poesia horaciana, pois a
sensualidade, os desejos lúbricos, o humano tamm se fazem ver: “Ou, quando, com
palavras de violência, / censura o meu fastio: “Assim, não falhas, / com Ínaca; com ela, podes
bem, / três vezes e, uma só, comigo, e mal! / Miserável pereça aquela Lésbia, / a quem,
pedindo um touro, a ti me trouxe, / fraco, impotente, quando eu tinha Amintas / de Cós, em
cujo corpo se implantava / nervo mais rijo e forte do que nova / árvore, nas colinas. A que,
pois, / essa pressa em, três vezes, mergulhar, / no múrice de Tiro, a lã de esponja?”.
Drummond, do mesmo modo, trabalha com o sublime enquanto matéria de sua
poesia, visível no prestígio dado às raízes, a sua terra, a sua família, às artes, no respeito e
questionamento sobre a vida e a morte. Na linguagem, o sublime está na escolha de
determinados vocábulos, eruditos, técnicos, científicos ou já raros para a época,
economicamente distribuídos, sem que sejam cansativos na leitura ou pareça ostentação,
como os que se podem notar em “Canto negro”:
O mau era o nosso. E amávamos
a comum essência triste
que transmutava os carinhos
numa visguenta doçura
de vulva negro-amaranto,
barata! que vosso preço,
ó corpos de antigamente,
somente estava no dom
de vós mesmos ao desejo,
num entregar-se sem pejo
147
de terra pisada.
Amada,
talvez não, mas que cobiça
tu me despertavas, linha
que subindo pelo artelho,
enovelando-se no joelho,
dava ao mistério das coxas
uma ardente pulcritude,
uma graça, uma virtude
que nem sei como acabava
entre as moitas e coágulos
da letárgica bacia
onde a gente se pasmava,
se perdia, se afogava
e depois se ressarcia. (grifos meus)
Todavia, o poeta itabirano é moderno e reflete isso na contraposição ao sublime,
via linguagem e temática do comum, do humano, do grotesco até, na fala e palavreado dos
homens comuns, desprestigiados política, lingüística e culturalmente. Gente de “Saber
incompleto”:
– Mecê, cumpádi, já porvou
bunda de tanajura torradinha?
– De tanajura, cumpádi,
inté hoje nã
o.
Horácio é, indubitavelmente, clássico na forma e na substância de que trata.
Drummond é moderno, mas como negar alguns ímpetos clássicos na expressão e em algumas
formas poéticas?
148
4.2 OS POETAS E A(S) CIDADE(S)
Na relação entre o poeta e a Cidade, o que se observa é que nas sociedades
clássicas o poeta tem um papel importante, porque é ele que, juntamente com outros artistas, é
responsável pela propagação ideológica. Num mundo em que a escrita ainda não está
amplamente estabelecida entre as populações, os objetos artísticos cumprem a função de
socializar informação e conhecimento. De tal modo que o artista e a arte são porta-vozes do
Estado, propagadores de ensinamentos. As artes não são apenas para deleite, como na
modernidade, mas principalmente educativas. As obras são objetivamente instrumentos de
manifestação do ideário político, religioso e moral, muito mais do que em nossos dias. O
poeta, por ser um dos poucos que sabe ler e escrever, tem responsabilidades sociais, políticas
e quase que religiosas; está a serviço da Cidade, mais do que todo e qualquer cidadão. No
caso de Horácio, num grau mais elevado ainda, tendo em vista que fez parte do seleto grupo
de artistas amparados por Augusto e Mecenas, e por essa razão está comprometido com o
enaltecimento da pátria, dos deuses:
Essas paragens, Jove
as reservou para uma raça pia,
quando inquinou de ferro a idade de ouro;
endureceu os séculos, primeiro,
com o bronze; depois, mais, com o ferro,
dos quais fuga se deu ao homem pio,
sendo eu próprio o profeta que o predisse. (Epodo 16).
Não devemos esquecer que Roma, nesse caso, não é apenas a cidade, mas o
Império, Urbs et Orbis, a quem o vate deve se dirigir: “Ó tu, da Itália toda, ó tu, de Roma, / a
senhora do mundo, vígil guarda, / o cita errante, o medo, o indo te admiram / e o nunca dantes
dominado Cântabro!” (IV,14).
Além da cidade, o poeta venusiano louva os deuses protetores, a quem pertence a
urbe. Alerta o povo da sua inferioridade e obediência, inspira-o do sentimento nacional de
pietas, de subserviência incondicional. “Porque te reconheces / menor que os deuses é que,
enfim, imperas: / são eles o começo e o fim de tudo” (III,6). Relembra o passado histórico, de
honra e trabalho da raça, “a máscula / prole dos rústicos soldados, doutos / em as glebas
149
lavrar, com enxadões / sabelos e em a lenha recolher” (III,6), os feitos heróicos e os governos
de seus dirigentes “Citarei logo a Rômulo, a Pompílio e seu reino feliz”
252
.
A atuação político-pedagógica pode ser avistada no excerto abaixo, pelos maus
exemplos, aqueles que não devem ser seguidos pelos cidadãos, os descuidos para com as
coisas da pátria e o gosto pelos estrangeirismos: “Já não sabe o menino / livre montar a cavalo
/ nem caçar e entende mais / de brincar com o aro grego / ou de jogar os dados ilegais,
enquanto com perjúrio seu pai engana o hóspede / e o sócio com empenho de juntar grandes
somas / para seu herdeiro indigno”.
Como vate, o poeta antigo está voltado e integrado à Cidade e, por extensão, à
natureza. Dos deuses protetores e das musas, recebe o sopro que o inspira e o torna capaz de
cantar todas essas grandezas. “As cidades vencidas e os combates / desejando cantar, Febo me
adverte, / ao som de sua lira, não cometa / o mar tirreno em minhas frágeis velas” (IV,15).
Nessas sociedades, extremamente hierarquizadas, sem muitas possibilidades de rompimento
de tais entraves, o poeta está acima do povo, do cidadão comum, abaixo dos governantes e em
contato com os deuses, de quem recebe conselhos e inspiração. Ao povo se dirige. Nem por
isso, Horácio deixou de cantar assuntos de seu interesse particular e de foro íntimo, como
comprova o epodo 6:
Por que vexa a tua ira ao pobre peregrino,
se ante os maus se detém?
Volta, pois, contra mim teu ódio pequenino,
que morderei também.
[...]
Cautela! que ando sempre e sempre preparado
contra os maus como tu,
de Licambes tal como o genro desprezado
ou de Búpalo o imigo implacável e cru!
252
Tradução minha, em conformidade com a espanhola de Manuel Fernández-Galiano e Vicente
Cristobal. In: HORACIO. Odas y epodos. Madri: Cátedra, 1997, p. 299. “Citaré luego a Rômulo, a
Pompilio y su reino feliz” (II,9).
“Ya no sabe el niño / libre montar a caballo / ni cazar y entiende más, si le preguntas, / de jugar al aro
griego / o a ilegales dados, mientra con perjurio / engaña su padre al huésped / y al socio en empeño
de acopiar caudales / para su heredero indigno” (III, 24).
150
Supões que, se, feroz, alguém contra mim vier,
inulto, hei de chorar como um parvo cabritinho?
Com o poeta moderno, as mesmas coisas já não procedem. Em primeiro lugar,
porque o homem não está mais integrado à natureza, muitas vezes não mais acredita em
deus(es). Em segundo, porque a cidade, enquanto espaço político, não se apresenta mais como
foco único e legítimo de existência e de localização do cidadão. Este, cada vez mais
fragmentado, pertence à cidade, à região, à nação, ao estado (assim como ele, dividido) a
quem deve respeito, tributos. O cidadão, algumas vezes, pertence a si próprio. E o Estado
agora é uma instituição abstrata, longínqua, inatingível, criado artificialmente pelo homem
moderno que, por essa e por outras invenções, julga-se superior. Criador de invenções e
façanhas semelhantes a dos deuses, desestabiliza as antigas hierarquias, isola-se no reino da
natureza, fragmenta a vida e torna-se solitário.
Deste modo, a cidade de Drummond não é uma, mas várias. É Itabira, a principal,
porque foi onde tudo começou. É Belo Horizonte, Rio de Janeiro, as cidades históricas
mineiras, as frias Friburgo e Petrópolis, e até as urbes que ele nem conheceu, embora tenha
visitado em sonho, em desejo ou pela leitura: Paris, Madri, Londres, Stalingrado. A cidade do
poeta mineiro é fragmentada, é a sua coleção de cacos. É a reunião de muitas urbes. E não é
nenhuma delas. “Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração. / Nessa rua passam
meus pais, meus tios, a preta que me criou. / Passa também uma escola – o mapa – o mundo
de todas as cores. [...] Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra. /
Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios” (“América”). Isto
porque o poeta não tem sossego, como Carlitos, está sempre em viagem, a vagar pelo mundo.
Vive no não-lugar e no não-tempo.
O poeta moderno está, pois, sozinho, isolado do mundo, da(s) cidade(s),
incomunicável, incompreendido pela sociedade e pela multidão. Assim, muitas vezes, está
Drummond:
Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
[...]
151
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me.
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão. (A bruxa).
4.3 MODERNISMO, DRUMMOND E HORÁCIO.
O modernismo surge como rompimento da tradição, rompimento com o passado e
com a natureza. Após um longo processo de mudanças no Ocidente, iniciado com a
Renascença, a modernidade se depara com um mundo e uma Lírica bem distintos da época
clássica. O surgimento do jornal, enquanto fonte de informação e formação de opinião, desata
o elo da Literatura com o seu caráter largamente pedagógico-político. A complexidade da
política desde a formulação das nações modernas distancia a arte do Estado, tanto quanto o
país do cidadão. O desenvolvimento de novas tecnologias desobriga as artes da necessidade
de um realismo, de uma mimese. O surgimento da burguesia possibilitou a ascensão do
indivíduo e do individualismo. A industrialização permitiu a multiplicação e o
supercrescimento de tudo. As distâncias do planeta diminuíram e o tempo de realização das
tarefas se acelerou. Na medida em que o mundo ficou conhecido em todos os seus limites
físicos, o homem, com o aporte da ciência, partiu para as especificidades, para o estudo e
compreensão do microcosmo que compõe a matéria universal. Desse modo, a visão humana e
o mundo observado se fragmentaram.
Neste panorama, a literatura e a poesia acompanham tais evoluções e também se
modificam, particularizam-se e estilhaçam-se. Os dois gêneros clássicos começam a perder,
juntamente com a força política e social da aristocracia, a importância e a sofrer
transformações. A épica e a tragédia diminuem seus tamanho e poder, deixam de ser
coletivas, particularizam-se, individualizam-se, decaem da representação aristocrática para a
152
representação burguesa, tornam-se romance, crônica, conto, drama. E a lírica, já com a
contribuição dos poetas do período alexandrino, torna-se independente, livre da subserviência
que devia àquelas. Com a modernidade, tende a ser mais reflexiva e individualizada.
Por oposição aos gêneros épico e trágico, por serem históricos, políticos e
coletivos, a Lírica, de acordo com Staiger, é a-histórica, casual e subjetiva. Motivada por
situações e sentimentos que dizem respeito apenas a momentos individuais vividos pelo eu-
lírico, ela é comum tão somente àqueles que se dispõem, de acordo com seu estado de
espírito, a conferir as experiências pessoais e acidentalmente partilhadas. Sua recepção é feita
em ambiente compartilhado espontaneamente, externo e alheio aos acontecimentos que
interessam à cidade, à coletividade. É casual porque depende de que a vivência do poeta
coincida com a do leitor/receptor para poder ser dividida. É a-histórica porque o homem
disposto liricamente é “bem limitado”, mantém-se uno à paisagem enfocada naquele
momento, mantém-se uno com o passageiro e não com o eterno. Limita-se no tempo, o
instante e no espaço, o lugar ou objeto enfocado. Não se liga a, nem se preocupa com o
passado, histórico, e tampouco com a cidade. Como grande marca, a lírica, no dizer de
Staiger, “não encerra responsabilidade”, não prioriza o passado, não prioriza o futuro,
tampouco a coletividade, presa ao instante como está.
Sob esta ótica, Horácio é igualmente histórico e casual. Histórico, ao atender aos
preceitos da arte como pedagogia, presta serviço político de vate à Urbs. No epodo 2, em
favor da política do imperador Augusto. Quando o poeta exalta os antigos negócios, lícitos e
louváveis dos “mortais de priscas eras”, aqueles que “os pátrios campos, com seus bois
cultiva, / livre de toda usura” e repudia os valores da sociedade de seu tempo, afeita ao
dinheiro e sustento sem grandes esforços e à custa de outrem, tal qual Álfio, “o usurário, / já
prestes a fazer-se camponês, / todo o dinheiro recolheu, nos idos, / e procura empregá-lo, nas
calendas”.
Enquanto cantor da casualidade, ele trata de questões que dizem respeito apenas
ao indivíduo. Mesmo assim, garante um caráter mais amplo, universal e anedótico aos
poemas. É o que se pode perceber no Epodo 14:
A perguntar-me, cândido Mecenas,
por que se me espalhou, pelos sentidos,
com mole inércia, tal esquecimento,
qual te tragara, ardendo em louca sede,
o soporífero licor de Letes,
153
tu me assassinas: pois um deus, um deus
a mim impede de levar a cabo
os jambos começados, poema, que,
há muito prometi. Dizem que, outrora,
Anacreonte de Teos, igual, se ardeu
pelo sâmio Batilo e, muitas vezes,
o seu amor chorou, na cava lira,
em versos de lavor não acabado.
Tu também, infeliz, te queimas todo:
e, se fogo mais belo não ardeu,
em Tróia, quando foi sitiada, alegra-te
da sorte que te coube; a mim, Frinéia,
que não se satisfaz de um só amante,
é a liberta que a vida me consome.
Ao nos voltarmos para a obra de Drummond, podemos dizer que o poeta mineiro
é também, ao mesmo tempo, histórico e casual. Como negar a historicidade de A rosa do
povo? Como negar a presença cronística em sua poesia? A sua preocupação social para com
as vítimas do mundo burguês, capitalista? “O poeta / declina de toda responsabilidade / na
marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas /
promete ajudar / a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta, um verme” (“Nosso tempo”).
Ele é responsavelmente engajado sem perder a sublimação, a ternura, a poesia.
Por outro lado, Drummond é muitas vezes casual. Como quando se torna um só
com a paisagem, com o que é passageiro, com uma praça em que se vê sentado, a sentir o
“coração pulverizado”, que “range / sob o peso nervoso ou retardado ou tímido / que não
deixa marca na alameda, mas deixa / essa estampa vaga no ar, e uma angústia em mim, /
espiralante”. É casual em tudo o que diz respeito à sua história: Minas, as fazendas da família,
as suas raízes, as suas cidades, Itabira, Belo Horizonte, Rio de Janeiro.
A estética modernista transparece na poesia drummondiana naquilo que há de
mais moderno, a dessublimação, a degradação de princípios nobres, elevados, elitistas e
exclusivistas no plano político, social ou estético. Em termos sociais, no fato de dar voz aos
sem voz, prestígio aos desprestigiados:
À noite, do morro
descem vozes que criam o terror
154
(terror urbano, cinqüenta por cento de cinema,
e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral).
[...]
Mas as vozes do morro
não são propriamente lúgubres.
Há mesmo um cavaquinho bem afinado
que domina os ruídos da pedra e da folhagem
e desce até nós, modesto e recreativo,
como uma gentileza do morro. (“Morro da Babilônia”)
Em termos políticos, ao se posicionar contra a burguesia e o capitalismo “Há uma
hora triste / que tu não conheces. / Não é a da tarde. [...] não é a da noite [...] nem a da
conversa com indiferentes / ou com burros de óculos, / gelatina humana, / vontades corruptas,
/ palavras sem fogo, / lixo tão burguês, / lesmas de blackout / fugindo à verdade / como de um
incêndio” (“Uma hora e mais outra”).
E, por fim, em termos estéticos, ao ceder o espaço e a vez ao grotesco, ao que até
há pouco era impensável no universo sacro da poesia. Grotesco nas palavras, grotesco no
pensamento e nas ações, tanto quanto na menção à prostituta:
Quero conhecer a puta.
A puta da cidade. A única.
A fornecedora.
Na Rua de Baixo
onde é proibido passar.
Onde o ar é vidro ardendo
e labaredas torram a língua
de quem disser: Eu quero
a puta
quero a puta quero a puta.
Ela arreganha dentes largos
de longe. Na mata do cabelo
se abre toda, chupante
boca de mina amanteigada
quente. A puta quente. (“A puta”)
155
Por oposição ao classicismo, que se baseava na tradição, na força do passado,
podemos pensar que o modernismo atua com o sentido de tradução, de transposição de um
lado para outro, do passado para o presente. Logo, de afastamento e progressão, mas não sem
que traga elementos da outra margem. Do latim traductio, em que ‘trans/tra’ significa de um
lado para o outro, e ‘ductio’, condução. O dicionário de Faria
253
define o termo como: 1)
Passagem de um ponto a outro, ou de uma ordem ou classe social a outra. 2) Curso, o decorrer
do tempo. Não há então como negar o rompimento com o outro lado, tanto quanto não há
como negar a origem, o estágio anterior de que faz parte o elemento transposto, evoluído.
Nesse caminho, Drummond traduz. Transpõe o passado, avança no tempo, sem
deixar de trazer em seus pés grãos de areia do passado, tal qual o boi que lhe visita o presente,
vindo de um tempo e de um lugar remoto, sem deixar de conservar na memória os cacos do
que já foi. Memória, “Coleção de cacos”: “coloridos e vetustos / desenterrados” – cacos
“novos não servem” – “uma fortuna em rosinhas estilhaçadas, / restos de flores não
conhecidas”, “o roxo não delineado, / o carmim absoluto, / o verde não sabendo / a que xícara
serviu”.
Drummond é inegavelmente moderno. De Horácio não se pode pensar o mesmo,
mas como esquecer de certos arroubos mundanos, epicuristas, hedonísticos, por vezes quase
de dessublimação deste? Como esquecer a influência do mestre Catulo em determinados
poemas, o epodo 12, por exemplo? Este último quase moderno.
4.4 HORÁCIO, DRUMMOND E O TEMPO
As relações possíveis de se estabelecer entre as poesias de Horácio e Drummond
não estão na forma, completamente diferentes: a primeira clássica, formal, uniforme e regular;
a outra moderna, disforme e irregular, mas na temática do tempo fugaz e nos subtemas com
que interligam e se subdividem em escala maior ou menor, morte-vida, arte-vida, juventude-
velhice.
Horácio lida com uma visão cíclica da passagem do tempo atinente a sua época,
fundamentada na observação da natureza e dos seus ciclos,
253
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 6. ed. 5. tir. Rio de Janeiro: FAE, 1992.
156
Sempre a cair, a chuva não se espalha
pelos híspidos campos; a procela
iníqua o Cáspio mar não põe em fúria
eterna; nem , inerte o gelo dura
pelo ano todo, Válgio, lá nos campos
da Armênia (...) (II9).
Drummond o faz baseado na seqüência linear, própria do período pós-cristão, nas
fases da sua vida: infância, juventude, maturidade e velhice.
A guerra, a gripe espanhola,
descoberta do dinheiro,
primeira calça comprida,
sulco de prata de Halley,
despenhadeiro da infância.
Mais longe, mais baixo, vejo uma estátua de menino
ou um menino afogado.
Mais nada: o tempo fluiu.
No quarto em forma de túnel
a luz veio sub-reptícia.
Passo a mão na minha barba.
Cresceu. Tenho cicatriz.
E tenho calças experientes.
Tenho sinais experientes.
Tenho sinais combinados. (“Desfile”).
Com as máquinas e o conhecimento, o homem moderno cria um mundo todo seu
e se desvincula em parte da natureza. De posse dos relógios, não há mais necessidade de
marcar o tempo pela ação climática das estações.
A atitude do poeta romano é epicurista. Na sua função de vaticinar, ele vê o tempo
passar e adverte os romanos de que é preciso viver, aproveitar as horas e os minutos, já que a
morte é certa e imprevisível. É urgente fazer o que é necessário. Coletivamente, ser um bom
cidadão. Individualmente, gozar dos prazeres da vida, já que Roma vive uma fase tranqüila,
cheia de progresso e riqueza, após longos anos de guerras civis.
157
A tua idade, César, propiciou
aos nossos campos abundantes messes;
a Jove restituiu os estandartes
dos partas orgulhosos, arrancados
aos seus templos; fechou de Jano as portas,
dominadas as guerras; à licença,
que dos retos limites exorbita,
pôs freio; o vício erradicou, de vez;
as antigas virtudes revocou,
pelas quais, dantes, o latino nome,
junto às forças da Itália, se fez grande;
do grande império a fama e a majestade,
amplo, estendeu, do leito onde o sol morre
àquelas partes donde nasce o dia.
Guarda do estado, César, a civil
guerra, a violência, a cólera que aguça
o gume das espadas, que inimigas
as míseras cidades faz, não mais
o de o nosso repouso perturbar (IV, 15).
[...]
Drummond, por sua vez, não fala para uma coletividade muito ampla, apenas para
os amantes de literatura e de poesia. Não é vate, não fala pelo Estado. É, antes, um sujeito
particularizado, sozinho, isolado no seu gosto pelo sublime, com seus sentimentos e
experiências, a falar de/para um mundo dividido, isolado, sozinho, distante e impreciso:
Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora, em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.
E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).
E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.
158
Em sua porção histórica da lírica, o itabirano não se pronuncia em favor do poder
político e econômico constituído, mas antes se coloca contrário à força do capitalismo e ao
lado dos desvalidos, dos desprotegidos da segurança burguesa. Ocupa a mesma posição que o
cidadão comum, de tal modo que não pode, por conta de uma posição superior que não tem
aconselhar, advertir ninguém.
Por ter tido uma vida longa e sua poesia refletir a passagem dos anos, por ter sido
contemporâneo de uma História conturbada política e socialmente, como todas as épocas o
são, o poeta mineiro não exalta a vida e a premência de vivê-la. Não canta, nem exulta a
alegria de viver, alegria que nem sempre ele enxerga. Antes assinala suas mazelas e, em
algumas vezes, sente-se inferiorizado, prejudicado por não ter uma vida melhor, em ter que
apenas lutar para poder apenas sobreviver. É o que ele declara em juízo:
Se se admiram de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
Viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. Adiamento.
Calendário do ano próximo.
Jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! quanto.
Alguma vez os invejei. Outras, sentia
pena de tanta vida que se exauria no viver
enquanto o não viver, o sobreviver
duravam, perdurando.
E me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente,
de chegar a hora de também
viver.
Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. A verdadeira vida
sorria longe, indecifrável.
Desisti. Recolhi-me
cada vez mais, concha, à concha. Agora
sou sobrevivente. (“Declaração em juízo”).
159
A verdadeira vida não está neste mundo e neste tempo, localiza-se no não-lugar,
no não-tempo. Por essa razão, o carpe diem, o desejo e a “ordem” de viver o presente são
inviáveis em sua lírica.
A possibilidade de uma vida melhor está na outra vida, naquela que vem depois,
com a morte; está no infinito, na eternidade:
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida. (“Parolagem da vida”).
Não é por isso, entretanto, que se deve imaginar que a poesia drummondiana é
pessimista, amarga, triste. Ela também se faz de esperança e encantamento:
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
[...]
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado.
Coração amante. (Parolagem da vida”).
Ainda assim, Drummond não convoca ninguém a aproveitá-la, não como
imperativo.
160
Zélia de Almeida Cardoso, quando trata dos primeiros passos da Poesia Lírica no
mundo antigo, antes do poema, ainda sob a égide da fusão palavra e música, diz o seguinte:
A Grécia desde os primórdios de sua história, conheceu muitos tipos de
canções. As condições geográficas parecem ter contribuído para o
desenvolvimento do canto, especialmente favorecido pela existência de
intensa atividade pastoril. Diferentemente do que ocorre com o lavrador,
labutando o dia todo na lida com a terra e extenuando-se com o trabalho
pesado que lhe exaure as forças, o pastor vigia simplesmente o gado,
permanece solitário muitas vezes e tem disponibilidade suficiente para cantar
ou tocar.
254
Eis aí, portanto, alguns dos principais componentes da tradição lírica, o canto, a
palavra, os instrumentos musicais, a solidão do poeta, a natureza e até mesmo a situação do
dolce far niente, muitas vezes atribuída aos bardos ao longo da história. Neste caso, o que
mais interessa aqui é o bucolismo, termo a que Cardoso designa como sendo de origem grega
boukoliká, ou “cantos de boiadeiros”
255
. Com tal afirmação, atesta-se o longo percurso dos
ambientes naturais, como tema das artes, em poemas ou em qualquer cena poética, seja na
música, na pintura ou no cinema: os regatos, a sombra das árvores, os animais silvestres ou de
pastoreio. As odes e os epodos de Horácio repetem inúmeras vezes esses lugares, a fim de
ressaltar a tranqüilidade de espírito daqueles que observam ou vivem tais paisagens, os poetas,
os pastores, os bois. Padrão a ser buscado, ataraxia conveniente à proposta defendida por
Augusto, em sua política de retorno ao campo e aos antigos valores da sociedade romana.
Não entra o sol ardente o teu reino encantado:
tu, doçura e frescor, és prêmio ao boi cansado
da lavra e ao gado errante, espalhado nos montes,
sob a calma estival.
E, cantando eu a gruta e a soberba azinheira,
de onde, múrmura, brota a tua linfa ligeira,
– ainda tu te farás uma das nobres fontes,
uma fonte imortal. (III,13).
A poesia de Drummond, ao contrário, não permite quase esse tipo de
manifestação. Primeiramente, porque o poeta moderno muito pouco canta e quando o faz, de
um modo geral, é de forma rouca, pouco melodiosa, “Não deixarei de mim nenhum canto
254
CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 p.49.
255
Ibid., p. 61.
161
radioso, / uma voz matinal palpitando na bruma / e que arranque de alguém seu mais secreto
espinho. // De tudo quanto foi meu passo caprichoso / na vida, restará, pois o resto se esfuma,
/ uma pedra que havia em meio do caminho.”(“Legado”). Depois, o cenário, muitas vezes, é
urbano. A natureza é oferecida em pequenas doses: os parques e praças das grandes cidades
são pequenas ilhas artificiais, falsas e cercadas de problemas e intranqüilidade. Como no
“Jardim da Praça da Liberdade”, em que “Paisagem sem fundo. / A terra não sofreu para dar
estas flores. / Sem ressonância. / O minuto que passa / desabrochado em floração
inconsciente. / Bonito demais. / Sem humanidade. / Literário demais.”, ou no “Parque
municipal”, onde “A natureza é imóvel. / A natureza, tapeçaria onde o verde silente se reparte
/ entre caminhos que não levam a nenhum lugar. / São caminhos parados. De propósito.”
Além disso, o poeta mineiro é moderno, inquieto e avesso à ataraxia, à monotonia,
à “vida besta” pregada pela poesia bucólica.
Nem por isso, entretanto, que não se possam mencionar eventuais sopros do
espírito bucólico em sua poesia, expresso na constante presença do boi, nas coisas da fazenda
que fizeram parte de sua vida na infância e das várias gerações familiares. Resgate do
passado, memória e raiz, sua e da humanidade.
Boitempo, ou seja, aquele vago boi
imóvel na planura do passado.
A ruminar o verde-azul dourado
silêncio do que é e de quanto foi. (“Boitempo”, 1988).
4.5 O TEMPO
O tema do tempo apresenta como complexidade o fato de não ser perceptível de
forma muito concreta. Se existe a dificuldade de definir o que seja o tempo, desafio
enfrentado por grandes filósofos, como Plotino, Santo Agostinho, Sartre e outros, por grandes
escritores, o tempo dispõe da sua principal característica, a fugacidade, o constante
movimento em direção ao fim, à morte, o permanente processo de corrosão da matéria viva e
finita.
162
Enquanto tema e preocupação humana para com o seu fim, este tópico se faz
permanente ao longo de toda a história das Artes, sobretudo da Literatura. Transparece na
obra dos principais autores e em destaque aqui às obras de Horácio e de Drummond. O que há
de comum e de divergente, entre ambos, relembraremos a seguir. Entretanto, distingue-se,
sobremaneira, na visão de tempo de cada era.
Para os antigos, o tempo é cíclico, pautado pela Natureza, que dispõe de
alternâncias regulares e repetidas de fragmentos de tempo: dia-noite, as fases da lua, os meses,
as estações climáticas, o ano. A natureza e os deuses, superiores ao homem, determinam o
ritmo da vida. Fundamentados pela mitologia clássica, gregos e romanos acreditavam que
num passado remoto e imemorável o homem vivera um momento de plena felicidade, em
perfeita comunhão com a natureza e com os desígnios divinos, a chamada Idade de Ouro.
Mas, aos poucos, a humanidade foi se modificando, deteriorando-se e tomando cada vez mais
distância dessa fase maravilhosa. A tal ponto que o grande ciclo da história humana se
fecharia com o retorno àquele momento e lugar magníficos. Desse modo, o passado é o
modelo de perfeição a ser buscado, o presente é sempre o distanciamento e a degradação dos
bons tempos, como Horácio deixa entrever na ode 6 do livro III:
Que não degrada o tempo destruidor?
Dos remotos avós aos nossos dias,
o tempo piora, em regra, cada vez:
mau, com aqueles; pior, com nossos pais,
e péssimo conosco. Donde, em breve,
há de seguir-se idade mais viciosa.
De outro jeito, para os modernos, a visão do tempo é linear. Com o advento dos
profetas cristãos, judeus e islâmicos, o homem começa a centrar o conhecimento e a
percepção do mundo mais em si próprio, em sua história e realidade e não mais num passado
distante e não comprovado. Desde então, o tempo transcorre, considerando-se como marco o
surgimento desses e outros homens, e não mais mitos. Os ciclos naturais apontam agora para
o futuro, numa direção ascendente, num sentido em que a “vida” pós-morte será marcada pelo
reencontro com seus deuses. Este será o melhor momento, equivalente à Idade de Ouro dos
antigos. Em Drummond, este futuro não é necessariamente religioso, cristão, mas a
eliminação do tempo e a possibilidade de todos os tempos, ou eternidade estimulam-nos a
idéia de uma vida melhor, de uma bela vida, ou de uma “Vida menor”:
163
A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto, a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.
Mas a vida: captada em sua forma irredutível,
já sem ornato ou comentário melódico,
vida a que aspiramos como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima; um início; um sono;
menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;
o que se possa desejar de menos cruel: a vida
em que o ar, não respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã e tarde, já sem dor,
porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo
elidido, domado.
Não o morto nem o eterno ou o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.
Especificamente em Horácio e em Drummond, o tema do tempo, comum a
ambos, proporciona leituras ora convergentes, ora divergentes. Convergem nos subtemas que
o tempo fugaz suscita em cada autor, quais sejam, a morte, a antinomia juventude-velhice, a
164
duração da vida e da arte (ars longa, uita breuis), os prazeres da vida, a degradação dos
tempos. Divergem fundamentalmente no ponto de partida da poesia de Horácio, no carpe
diem.
a) Carpe diem
Em Horácio, como já foi dito, a constatação da fugacidade do tempo, observada
na natureza, nas estações que se alternam, leva o poeta a uma atitude de advertir o seu
leitor/ouvinte da necessidade e urgência de carpere diem, em seu benefício ou da pátria.
Só o presente é verdade, o mais, promessa...
O tempo, enquanto discutimos, foge:
colhe o teu dia, – não no percas! – hoje. (I,11).
Drummond, em contrapartida, observa a passagem do tempo na natureza mais
imediata, seu próprio corpo. Durante sua extensa carreira de poeta, expressa-a na carne de
sua poesia. O que interessa apenas a ele e ao leitor que se identificar com tal questão. Não tem
possibilidade de implicação política como em Horácio, a pressa em fazer-se melhor em prol
da pátria. Afora isso, este subtema contrasta na extensão e força de emprego na lírica dos dois
poetas. No primeiro, o carpe diem é o principal elemento, bastante recorrente, o que se
destaca como resposta à observação da passagem do tempo. Desencadeia uma postura
individual de aproveitar a vida, e outra coletiva, política de fazer o que é melhor para a pátria,
naquele momento romano, voltar-se para as coisas simples e frugais, afastando-se da
ostentação e soberba, conforme a política de Augusto pregava.
A poesia de Drummond, de outro modo, não aposta em tal argumento, pelas
seguintes razões: 1) o poeta é moderno, sozinho. Não tem a função, nem o poder de vaticinar,
de aconselhar ninguém, seja no plano individual ou coletivo; 2) o poeta não almeja a
tranqüilidade, inquieto que é; 3) o campo não é uma realidade possível num Brasil que está se
industrializando e urbanizando.
Mesmo assim, o campo e a sua tranqüilidade ainda são referências e se
materializam em sua lírica por intermédio do bucolismo, ora na memória individual, nas
lembranças familiares e da infância, “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha
mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre
mangueiras / lia a história de Robinson Crusoé. [...] // E eu não sabia que minha história / era
165
mais bonita que a de Robinson Crusoé.” (“Infância”), ora na memória coletiva, no passado
remoto da humanidade, exemplificado no “Episódio” de uma manhã qualquer:
Manhã cedo passa
à minha porta um boi.
De onde vem ele
se não há fazendas?
Vem cheirando o tempo
entre noite e rosa.
Pára à minha porta
sua lenta máquina.
Alheio à polícia
anterior ao tráfego
ó boi, me conquistas
para outro, teu reino.
Seguro teus chifres:
eis-me transportado
sonho e compromisso
ao País Profundo.
Embora não haja neste a postura de alertar o seu leitor da urgência de se fazer algo
antes que o derradeiro fim chegue, há de todo jeito uma luta por parte do poeta contra a ação
do tempo, conforme fica explícito no combate à corrosão, ou como já dissemos, na corrosão
como desencadeadora implícita de combate à destruição da vida. A obra do poeta itabirano
faz isso, mesmo sem ter sido este o seu projeto. Ao poetar Drummond mantém-se vivo como
um grande nome da literatura nacional e universal, eterniza-se.
b) A morte
A morte, tanto na obra do poeta romano quanto na do brasileiro, aparece como
principal atriz no balizamento da efemeridade da vida. Nos dois há uma visão materialista da
mesma, enquanto fim da matéria. Só que no primeiro a morte é ameaça à tranqüilidade total e
166
à segurança desta vida. Mantém-se abstrata, passível de acontecer a qualquer momento e a
qualquer um, mas mesmo assim distante. Horácio dificilmente cogita a sua e quando o faz, de
forma imodesta, privilegia mais sua permanência por meio da poesia.
No segundo, de modo distinto, a morte é mais complexa porque se dá bastante
próxima, iminente, material e psicologicamente. Na perda dos amigos e vizinhos, dos amigos
poetas, dos parentes que se foram “Lembro alguns homens que me acompanhavam e hoje não
acompanham. / Inútil chamá-los: o vento, as doenças, o simples tempo / dispersaram esses
velhos amigos em pequenos cemitérios do interior” (“América”). Mas principalmente a sua
morte. Em seu caso, ela está em seu interior, a corroer e degradar o corpo e a alma, num lento
e concreto processo, explicitado em “Desfile”, “Passo a mão na minha barba. / Cresceu.
Tenho cicatriz. / E tenho mãos experientes. Tenho calças experientes. / Tenho sinais
combinados. [...] Vinte anos ou pouco mais, / tudo estará terminado. / O tempo fluiu sem dor.
/ O rosto no travesseiro, / fecho os olhos para ensaio”.
Psicologicamente, a figura negra significa positivamente o fim do sofrimento
intrínseco a essa vida, o fim dos tempos, das dores causadas por suas mordidas, e a inserção
na eternidade, a ausência de limites físicos, psicológicos e espaciais. Total “Nudez”:
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve. (“Nudez”)
c) Os prazeres da vida
Igualmente nos dois autores, os prazeres da vida se manifestam como antídoto ao
ato devorador do tempo e da morte. Todos eles, os jogos, o vinho, a amizade, o amor e a
Literatura têm a propriedade de estancá-los. Seja pelo fato de repetir, reduplicar, exercitar ou
167
ensaiar a vida e, assim, estendê-la ou fazê-la pré-existir, seja pela criação de uma bolha, de
um novo mundo paralelo, uma nova vida, mesmo que por momentos fugazes. Como quando
se compartilha os momentos de prazer que o vinho, o amor e a amizade, a luxúria e uma boa
leitura podem proporcionar. Drummond o atesta: “Namorado é o ser fora do tempo, fora de
obrigação e CPF, / ISS, IFP, PASEP, INPS”
256
.
Em Horácio, os prazeres são epicuristas, da carne, manifestos no vinho, nos
odores dos perfumes, no amor sensual; e do espírito, manifestos no amor e amizade, na
grandeza da literatura, como bem exemplifica a ode 12, do livro IV:
Os pastores de nédias ovelhinhas
modulam, sobre a relva tenra, carmes
e, ao som das suas fístulas, deleitam
ao deus, a quem aprazem os rebanhos
e as colinas da Arcádia, que percorrem.
Esta estação, Vergílio, a sede excita:
mas, se desejas tu, que és favorito
dos jovens nobres, apreciar o vinho
pisado em Cales, beberás do meu,
uma vez que me tragas nardo, em troco.
Assim, pequeno vaso de perfume,
em câmbio, te dará tonel que dorme
na adega de Sulpício, cujo líquido
é em renovar as esperanças pródigo
e eficaz em curar as amarguras.
Se estás disposto a esse prazer, apressa-te
e vem, mas não te esqueças do meu nardo,
que não penso em matar-te a sede, grátis,
como se, em farta casa, eu fosse rico.
Deixa, um pouco, o interesse e não demores;
Lembrando sempre da sombria morte,
enquanto é lícito, os misteres graves
mistura, às vezes, com loucura breve:
é doce delirar, quando oportuno.
256
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Aos namorados do Brasil”. In: _____ A palavra mágica. Rio
de Janeiro: Record, 1998, p. 65.
168
Em Drummond, dos prazeres acusados por Horácio, apenas os jogos e o vinho
não tiveram a mesma força e recorrência na sua lírica. Embora, possa se dizer que os jogos
também se revelam na relativa constância do futebol e no emprego lúdico das palavras,
característico da poesia, e em especial, a sua. No entanto, o deleitamento que se sobressai é
oriundo daqueles propiciados pela literatura e pela amizade, em separado ou juntos, como em
“O poeta irmão”:
Cinqüenta anos: espelho d’água ou névoa? Tudo límpido ou
o tempo corrói o incalculável tesouro?
Vem do abismo de cinqüenta anos, gravura em talho-doce,
a revelação de Emílio Moura.
Era tempo de escolha. Escolha em silêncio, definitiva.
Na rua, no bar, nossos companheiros esperam ser decifrados.
Mas o sinal os distingue. Descubro, e para sempre,
a amizade de Emílio Moura.
Agora a noite caminha no passo dos estudantes versíferos.
Bem conhecemos as magnólias, as mansões art nouveau, os guardas-civis
imóveis em cada esquina. Vou consultando um outro eu:
a presença de Emílio Moura.
E Verlaine, Samain, Laforgue, Antônio Nobre,
Alphonsus, tanta gente, nos acompanham sem ruído.
Começa a tecer-se, renda fluida na neblina,
a canção de Emílio Moura.
O amor lúbrico é retomado muitas vezes ao longo dos cinqüenta anos de sua
poesia. Todavia, convém observar que enquanto vivo o autor raramente o narrou como
efetuado em seus escritos, expondo muito mais o desejo do que a concretização do ato. O que
relembra, assim, a idéia do não-tempo e do não-lugar, de que a verdadeira vida é sempre
depois, é a não-vivida, “Tudo é mais tarde. / Vinte anos depois, como nos dramas”
(“Paisagem: como se faz”). Ao final de sua vida, nos anos oitenta, contudo, o amor se
consolida, explode em realizações e orgasmos, “Já gozamos. Já morremos. / E o tempo masca
em seu canto, / a garupa da novilha” (“A moça mostrava a coxa”). Principalmente nos livros
169
Corpo (1984), Amar se aprende amando (1985) e O amor natural (edição post mortem), de
onde esta citação foi retirada.
d) Ars longa, uita breuis
O aforismo de Hipócrates, aproveitado pelos dois poetas em questão, opera
fundamentalmente com a segunda idéia, a de que a vida é breve. Ponto pacífico aferido pela
existência da morte e pelo fato de que a vida é, por essa razão, efêmera. A primeira, contudo,
é motivo de contraste.
De certa maneira, ambos entendem a arte como mais longa que a vida. Horácio,
famosa e sintomática ode 30, do terceiro livro:
Erigi monumento mais perene
do que o bronze e mais alto do que a real
construção das pirâmides, que nem
as chuvas erosivas, nem o forte
Aquilão, nem a série inumerável
dos anos, nem a dos tempos corrida
poderão, algum dia, derruir.
Não morrerei, de todo; parte minha
à própria morte não será sujeita:
eu, sempre jovem, crescerei, enquanto,
com virgem silenciosa, o Capitólio
suba o pontífice.
Isto é visível também em Drummond, na “Invocação com ternura”, dirigida a
Garcia Lorca: “E já baixam teus assassinos / a uma terra qualquer e vã, / enquanto, entre
palmas e sinos, / tu inauguras a manhã”, ou no aforismo “Não se pode afirmar que a vida de
Mozart foi curta se ela dura até hoje”, em O avesso das coisas.
O venusiano, no entanto, não tem o menor pejo de vaticinar a sua obra como
longa, quase eterna:
Não morrerei, de todo; parte minha
à própria morte não será sujeita:
170
eu sempre jovem, crescerei, enquanto,
com virgem silenciosa, o Capitólio
suba o pontífice. Dir-se-á que, grande
de origem humilde, a fiz, primeiro, a voz
latina ao metro grego, onde ressoa
o Áufido impetuoso e onde o Dáunio agreste,
de poucas águas, reinou sobre povos
rústicos. Enche-te do orgulho, pois,
que requerem meus méritos, Melpômone,
e, se o quiseres, cinge-me a cabeça
com a de louro délfica coroa!
Diferente, portanto, do itabirano que se mantém humilde e modesto em relação a
sua obra, para quem muito pouco restará de seu “Legado”: “Não deixarei de mim nenhum
canto radioso / uma voz matinal palpitando na bruma / e que arranque de alguém seu mais
secreto espinho”. O leitor e a crítica, no entanto, sabem que a permanência de seu trabalho é
uma realidade visível já enquanto o poeta era vivo, considerando-se os inúmeros estudos e
traduções que a sua poesia propiciou, além da fama de ser um dos maiores escritores de língua
portuguesa.
e) Antinomia juventude-velhice
A antinomia juventude-velhice está nos dois poetas, manifesta de formas
distintas. Em Horácio, o objeto do olhar para tais idades é dirigido a terceiros, em geral seus
amantes, jovens e velhos. A juventude é a afirmação da força da vida, o vigor, a beleza e as
coisas boas, razão de se viver. A velhice, contrariamente, é a decadência, o fenecer da beleza,
da saúde e a aproximação da morte. Para com esta segunda categoria de amantes, o poeta
romano tem uma postura de afastamento, de certa repulsa, posicionando-se ao lado dos
jovens.
Ouviram, Lice, os deuses os meus votos,
ouviram, Lice: fazes-te já velha
e, contudo, pretendes ser formosa,
e saltitas e bebes, impudente,
e, ébria, trêmulo o canto, a Amor procuras,
171
que só te manifesta indiferença.
Mas Cupido nas faces brinca, em flor,
de Quia, citarista douta. E, voa,
através dos carvalhos ressequidos,
e foge-te, porque te afeiam esses
teus dentes amarelos, essas rugas
e essa neve que cobre a tua fronte.
Já te não restituem mais a púrpura
de Cós e caras pedras os momentos
que, em anais conhecidos, encerrou
o tempo alado. Que é da tua cor?
Que é da tua beleza e dos teus gestos
cheios de encanto? Que daquilo tens
que, respirando amor, a mim também
me arrebatara, ó tu, beleza, após
Cínara, a mais feliz e sedutora?
Mas a Cínara breves anos deu
o fado, que a ti longa vida, igual
à de velha coruja, destinara,
para que, Lice, os férvidos mancebos
pudessem ver-te, rindo-se a valer,
extinto facho já desfeito em cinzas. (IV, 13).
Em Drummond, o objeto do olhar para as duas fases da vida é direcionado para
dentro de si. O poeta brasileiro vê, do presente, à distância, a sua juventude e infância, já
passadas há algum tempo. A primeira, igualmente enquanto um período de força,
efervescência e explosão de vida, por intermédio dos hormônios, dos desejos e febres. Mas
não sem as frustrações, as fraquezas, as inseguranças, as incertezas e os medos, comuns à
idade, de que o modernismo não costuma esconder. São revelações dos mistérios do sexo
sempre negadas no último momento, no instante de ver a calcinha da menina: “na rapidez do
balanço que só revela em primeiro plano / a imensidão instantânea da sola dos sapatinhos
brancos” (“Menina no balanço”), no instante de tocar com “A mão visionária” “o escuro
encaracolado”, “bosque, floresta encantada” nunca visto, mas contado: “xô... xô... /
mosquitinho / Ai!”, ou, na derradeira hora de espiar o “corpo das mulheres” por debaixo do
172
assoalho, quando “Le Voyeur” avista “nada / senão a sola negra dos sapatos / tapando a greta
do soalho”.
A velhice no poeta mineiro não apresenta o tom jocoso de Horácio. Isto porque a
senectude ilustrada é a dele mesmo, carregada do sofrimento, das dores e mudanças negativas
próprias da idade, revelada na “Carta” que dirige à mãe: “Eu mesmo envelheci. / Olha em
relevo, / estes sinais em mim, não das carícias // (tão leves) que fazias no meu rosto: / são
golpes, são espinhos, são lembranças / da vida a teu menino, que ao sol-posto / perde a
sabedoria das crianças”.
Em ambos os autores, a antinomia serve de recurso, mais um, para a confirmação
da passagem do tempo.
f) Degradação dos tempos
A degradação dos tempos em Horácio pode ser vista de modo mais etéreo e
distante, fundamentada num plano moral e mítico. Corrobora o mito da Idade de Ouro e da
decadência moral do ser humano. Dentro desse princípio, até a era de Augusto, período áureo
na história do Império Romano, é passível de corrupção (e que época não o é?), de falências e
vícios: cobiça ao dinheiro, desrespeito à família, aos deuses, levando o governo de então a
uma política de tentar retornar aos antigos valores da sociedade primitiva. É o que nos ilustra
a ode 2 do livro I:
A juventude, rara pelos vícios
dos pais, há-de saber que se afiara
o ferro contra irmãos, que, enfim aos persas
cabe melhor.
Que deus invocará o povo, para
suster o império que já rui? Que preces
farão a Vênus surda as virgens, que
dócil a tornem?
A quem mandará Jove expie os crimes?
Pedimos-te que venhas, recobertos
de nuvens os teus alvos ombros, tu,
173
áugure Apolo [...].
Para Drummond, a decadência dos tempos é mais ampla e diversificada. Além da
degradação moral, há uma visão filosófica que aborda desde a deterioração moral da
humanidade com as guerras mundiais e o capitalismo, incluindo o terrível acontecimento com
a bomba atômica, até a percepção do fim de tudo o que é matéria, o corpo, as casas, as
cidades. Acima de tudo, a corrosão daquilo que é íntimo e caro ao poeta mineiro: o seu corpo,
as casas e edifícios em que morou, os cinemas que freqüentou, os amigos e parentes com
quem conviveu ou de quem herdou o seu jeito de ser, as cidades e lugares que viu e visitou, as
fazendas, Itabira, Belo Horizonte, Rio de Janeiro. É o caso do Hotel Avenida, em demolição:
Vai, Hotel Avenida,
vai convocar teus hóspedes
no plano de outra vida.
Eras vasto vermelho,
em cada quarto havias
um ardiloso espelho.
Nele se refletia
cada figura em trânsito
e o mais que se não lia
nem mesmo pela frincha
da porta: o que um esconde,
polpa do eu, e guincha
sem se fazer ouvir.
E advindo outras faces
em contínuo devir,
o espelho eram mil máscaras
mineiroflumenpau-
listas, boas, más; caras.
50 anos-imagem
e 50 de catre
174
50 de engrenagem
noturna e confidente
que nos recolhe a úrica
verdade humildemente. (“A um hotel em demolição”)
4.6 A ESTILÍSTICA DOS DOIS POETAS
Finalmente, em termos de estilística, os dois escritores empregam um estilo
rebuscado, erudito, buscando, de acordo com a poética clássica, o sublime, o incomum
também na linguagem. Em Horácio, esta é predominante, como veremos a seguir, na ode 10,
do livro II, perceptível na alternância da ordem comum dos vocábulos (em negrito no texto),
nos sintagmas e orações entrecortadas (em todo o poema), na escolha das palavras, na opção
pela erudição (em itálico no texto).
Muito melhor, Licínio, viverás,
não buscando o mar alto, sempre afoito,
nem te ficando, cauto, junto à praia,
rábido o mar.
À áurea mediocridade, se alguém a ama,
da velha casa o desasseio evita;
mas, também, sóbrio, foge aos ricos tectos,
causa de inveja.
O vento agita sempre altos pinheiros,
fragorosas, desabam altas torres
e o raio fulminante o pico fere
de altas montanhas.
No dia aziago, espera; no bom, teme,
preparado o teu peito à sorte adversa.
Se Jove hoje nos dá duros invernos,
Leva-os depois.
175
Se vais, agora, mal, nem sempre o irás.
Desperta Apolo, em sua lira, às vezes,
a silenciosa musa, pois nem sempre
o arco distende.
animoso, forte, na desgraça:
sábio, saibas, porém, quando te é muito
próspero o vento, contrair a tua
túrgida vela.
257
(Grifos meus).
Não é por isso, contudo, que a desprestigiada língua popular, cotidiana,
corriqueira e, por vezes, baixa, das excreções e da libidinagem deixam de se prenunciar. Não
são expressos de forma tão vulgar, com linguagem chula, tal qual na poesia de seu mestre, o
poeta Catulo, mas, da mesma forma, fazem parte da poesia horaciana. De modo atenuado,
mas estão lá, como comprova o Epodo 12 e os destaques em negrito:
Que queres tu, mulher dos elefantes
negros digníssima! Por que a mim, não
vigoroso, mas cujo olfato é vivo
mandas tu cartas, mandas tu presentes?
Pois, mais sagaz, o cheiro mau percebo,
quando se aninha, em cabeluda axila,
pólipo ascoso ou fétido bodum,
do que o cão de bom faro, quando junto
ao lugar, onde o javali se oculta.
Que suor! que cheiro mau tresanda e cresce
dos murchos membros, quando ensarilhadas
minha armas, indômita, se apressa,
257
No original: “Rectius uiues, Licini, neque altum / semper urgendo neque, dum procellas / cautus
horrescis, nimium premendo / litus iniquom. // Auream quisquis mediocritatem / diligit, tutus caret
obsoleti / sordibus tecti, caret inuidenda / sobrius aula. // Saepius uentis agitatur ingens / pinus et
celsae grauiore casu / decidunt turres feriuntque summos / fulgura montis. // Sperat infestis, metuit
secundis / alteram sortem bene praeparatum / pectus. Informis hiemes reducit / Iuppiter, idem //
summouet. Non, si male nunc, et olim / sic erit: quondam cithara tacentem / suscitat Musam neque
semper arcum / tendit Apollo. // Rebus angustis animosus atque / fortis appare; sapienter idem /
contrahes uento nimium secundo / turgida uela”.
176
para acalmar o fogo, em que se agita;
quando já lhe não fica sobre o corpo
o úmido pó de gesso e aquela cor
tirada às excreções do crocodilo;
e quando, em tanta afobação, se rompem
e colchão e dossel que cobre o leito!
[...]
258
(Grifos meus).
Drummond, embora igualmente esbanje, de forma bem dosada, um léxico
sublime, raro, estranho para a fala popular, ele o faz em menor escala. São preciosismos como
“Ou tudo vige, / planturosamente, à revelia / de nossa judicial inquirição / e esta apenas existe
consentida / pelos elementos inquiridos?” (“A suposta existência”), latinismos, “Princeps
Promptorum” (“Príncipe dos Poetas”), testudo gigas (“A tartaruga”). Por vezes, em oposição
ao classicismo, traz à tona o grotesco, sob a forma de gírias e palavrões (“cu”, “puta”,
“bunda”). Entretanto, o que é preponderante, na verdade, é o falar cotidiano das pessoas
“sorver, papar” (“A mesa”), os regionalismos (“córgo” para córrego, “quentar” para
“esquentar”). Tudo muito ao gosto da estética modernista.
Finalizando, Horácio é poeta clássico porque, política e socialmente, é porta-voz
da Cidade e de toda a sua natureza, coletiva, religiosa, moral, com que mantém uma relação
una. Também, porque se mantém moderno, atual, “eterno”, mesmo depois de dois mil anos.
Todavia, é moderno. Como lírico alexandrino ajuda a lançar, em colaboração com a sua
época, imperial e imperialista, as raízes de uma individualização e o começo do fim do
espírito coletivista, mais fortemente presente no mundo grego. Mesmo enquanto vate assume
suas preocupações para com questões mundanas, comuns, particulares, burguesas. Seus
amores e desafetos.
Drummond é moderno por ser porta-voz de um indivíduo fragmentado,
compartimentado política, social, religiosa e moralmente, disposto em uma nação, em um
mundo dividido, com quem estabelece uma relação desarmônica e solitária. É clássico porque
guarda a memória e a reverencia, juntamente com a tradição e a linguagem do seu passado
258
No original: “Quid tibi uis, mulier nigris digníssima barris? / munera quid mihi quidue tabellas /
mittis nec firmo iuueni neque naris obesae? / namque sagacius unus odoror, / polypus an grauis
hirsutis cubet hircus in alis, / quam canis acer, ubi lateat sus. / Quid sudor uietis et quam malus
undique membris / crescit odor, cum pene soluto / indomitam properat rabiem sedare, neque illi /
iam manet umida creta colorque / stercore fucatus crocodili iamque subando / tenta cubilia tectaque
rumpit!”
177
pessoal, familiar, nacional, da Literatura e da humanidade. Torna-se eterno, ainda que não
quisesse ser.
E, assim, passaram os anos, os séculos, a antiguidade e assim passa a
modernidade. O tempo fugiu, foge e continuará a fugir, devorando tudo e todos. Menos os
prazeres vividos, os únicos que conseguem suplantar o poder mutilador do tempo. Os prazeres
mundanos, o vinho, o sexo, a gastronomia, por preciosos minutos ou horas e apenas os
sublimes, o amor, a amizade e a Literatura, por meses, anos, séculos. Somente os prazeres
garantem a certeza de que a vida é divina, especial, eterna. De Horácio a Drummond, o tempo
não pára, dispara, persiste em sua tarefa de carcomer a vida, de correr e corroer o que é finito,
menos “os monumentos mais perenes que o bronze”. Em sentido inverso, revisando a história
da Literatura e da Humanidade, de Drummond a Horácio, o tempo repara. Restaura os
grandes temas e preocupações humanas. Observa os estragos que impõe ao homem, assim
como as avarias que sofre com o trabalho dos artistas clássicos. Aqueles grandes homens que
conseguem a sublimação e pequenas vitórias, ainda que parciais sobre Saturno, compensam e
vingam, assim, os estragos causados aos pequenos mortais.
178
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185
ANEXOS
186
LIVRO DAS ODES
Liber I
I IV
Soluitur acris hiems grata uice ueris et Fauoni
trahuntque siccas machinae carinas,
ac neque iam stabulis gaudet pecus aut arator igni
nec prata canis albicant pruinis.
Iam Cytherea choros ducit Venus imminente luna
iunctaeque Nymphis Gratiae decentes
alterno terram quatiunt pede, dum grauis Cyclopum
Volcanus ardens uisit officinas.
Nunc decet aut uiridi nitidum caput impedire myrto
aut flore, terrae quem ferunt solutae;
nunc et in umbrosis Fauno decet immolare lucis,
seu poscat agna siue malit haedo.
Pallida Mors aequo pulsat pede pauperum tabernas
regumque turris. O beate Sesti,
uitae summa breuis spem nos uetat inchoare longam.
Iam te premet nox fabulaeque Manes
et domus exilis Plutonia, quo simul mearis,
nec regna uini sortiere talis
nec tenerum Lycidan mirabere, quo calet iuuentus
nunc omnis et mox uirgines tepebunt.
187
Livro 1
I 4
Brando se faz o rigoroso inverno,
pois já lá vêm Favônio e a primavera;
são levadas ao mar as secas quilhas.
Já não se aquece o gado nos estábulos,
não goza o lavrador junto à lareira,
nem mais alveja o prado a branca geada.
Já, à clara lua, Vênus Citerea
dirige os coros, e as formosas Graças
juntas às Ninfas, batem, em cadência,
pés alternos, a terra; dos Ciclopes
Vulcano acende as duras oficinas.
Convém cingir agora a fronte ungida
do verde mirto ou das olentes flores,
que a mole terra reproduz fecunda.
Convém agora que se imole a Fauno,
nos sagrados, sombrios bosques, anho
ou cabrito, conforme o seu desejo.
Pálida, a morte, eqüitativa, bate
às cabanas dos pobres e aos palácios
dos ricos. Ó feliz Séstio, esta vida
breve não nos promete uma esperança
longa. Eis já aí a noite, os fabulosos
manes e os reinos de Plutão vazios,
onde então, quando para lá partires,
não mais, com dados, tirarás a sorte
o reinado do vinho, como dantes,
nem mais admirarás o jovem Lícidas,
por quem ora se abrasa a juventude
e, logo mais, se abrasarão as virgens.
Obs.: As traduções não identificadas são de autoria de Bento Prado de Almeida Ferraz,
no livro Odes e epodos, op.cit..
188
I IX
Vides ut alta stet niue candidum
Soracte, nec iam sustineant onus
siluae laborantes, geluque
flumina constiterint acuto.
dissolue frigus ligna super foco
large reponens atque benignius
deprome quadrimum Sabina,
o Thaliarche, merum diota:
permitte diuis cetera, qui simul
strauere uentos aequore feruido
deproeliantis, nec cupressi
nec ueteres agitantur orni.
quid sit futurum cras fuge quaerere et
quam Fors dierum cumque dabit lucro
appone, nec dulcis amores
sperne puer neque tu choreas,
donec uirenti canities abest
morosa. Nunc et campus et areae
lenesque sub noctem susurri
composita repetantur hora,
nunc et latentis proditor intimo
gratus puellae risus ab angulo
pignusque dereptum lacertis
aut digito male pertinaci.
189
I, 9
Ó Taliarco,
Olha como o monte Soracte se ergue branco de espessa neve...
Olha como as florestas se esforçam por sustentar o peso...
Olha como os rios pararam por causa do gelo agudo...
Combate o frio:
acumula abundante lenha sobre o fogão,
tira com mais generosidade da ânfora sabina
o teu vinho de quatro anos.
O resto confia aos deuses!
tão logo tiverem acalmado os ventos, em luta com o mar encapelado,
não se agitam mais nem o cipreste
nem o freixo secular...
Não procures saber o que vai acontecer amanhã,
considera lucro certo
todo o dia que a Fortuna te conceder.
Enquanto és moço...
enquanto a morosa velhice estiver longe de ti, ainda vigoroso...
não desprezes as danças e os doces amores!
Freqüenta agora o campo de Marte,
as praças, os passeios
e os meigos sussurros ao anoitecer e à hora combinada.
(Tradução de José Ewaldo Scheid. In: Quinto Horácio Flaco. Canoas: EdULBRA, 1997,
pp.33-4.)
190
I XI
Tu ne quaeseris (scire nefas) quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. Vt melius quicquid erit pati!
Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis, debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum, sapias, uina liques et spatio breui
spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.
191
I 11
Indagar, não indagues, Leuconói
qual seja o meu destino, qual o teu;
nem consultes os astros, como sói
o astrólogo caldeu:
não cabe ao homem desvendar arcanos!
Como é melhor sofrer quanto aconteça!
Ou te conceda Jove muitos anos,
ou, agora, os teus últimos enganos,
prudente, o vinho côa e, mui depressa
a essa longa esperança circunscreve
a tua vida breve.
Só o tempo presente é verdade, o mais promessa...
O tempo, enquanto discutimos, foge:
Colhe o teu dia, não no percas! – hoje.
192
I XXXII
Poscimur. Si quid uacui sub umbra
lusimus tecum, quod et hunc in annum
uiuat et pluris, age, dic Latinum,
barbite, carmen,
Lesbio primum modulate ciui,
qui, ferox bello, tamen inter arma,
siue iactatam religarat udo
litore nauem,
Liberum et Musas Veneremque et illi
semper haerentem puerum canebat
et Lycum nigris oculis nigroque
crine decorum.
O decus Phoebi et dapibus supremi
grata testudo Iouis, o laborum
dulce lenimem, mihi cumque salue
rite uocanti.
193
I 32
Se cantamos, à sombra, tu e eu,
algo que belo, acaso, se revela,
ó tu, lira de Alceu,
que, no combate embora ou na procela,
levada às praias a acossada vela,
canta o jovial Leneu,
as musas, Vênus e o menino seu
e Lico de olhos negros e cabelos
nigérrimos e belos,
eia! dize um latino canto agora,
que vença o tempo, séculos em fora!
Ó doce lenitivo da fadiga,
de Febo glória antiga,
grata a todo banquete celestial,
ó salve! salve! que te invoco, amiga,
segundo o ritual!
194
Liber II
II V
Nondum subacta ferre iugum ualet
ceruice, nondum munia comparis
aequare nec tauri ruentis
in uenerem tolerare pondus.
Circa uirentis est animus tuae
campos iuuencae, nunc fluuis grauem
solantis aestum, nunc in udo
ludere cum uitulis salicto
praegenstientis. Tolle cupidinem
immitis uuae: iam tibi liuidos
distinguet Autumnus racemos
purpureo uarius colore.
iam te sequetur; currit enim ferox
aetas et illi quos tibi dempserit
apponet annos: iam proterua
fronte petit Lalage maritum,
dilecta quantum non Pholoe fugax,
non Chloris albo sic umero nitens
ut pura nocturno renidet
luna mari, Cnidiusue Gyges,
quem si puellarum insereres choro,
mire sagaces falleret hospites
discrimen obscurum solutis
crinibus ambiquoque uultu.
195
Livro 2
II 5
Ainda não sabe levar o jugo sobre o pescoço,
nem ajustar seus passos ao da junta;
nem suporta o peso do touro
que cai sobre ela, movido pelo amor.
Não pensa em outra coisa tua terneira,
que em campos verdejantes e em rios,
onde possa aliviar o rigoroso calor de verão,
onde possa desfrutar junto com outros novilhos
o frescor dos salgueiros. Deixa de lado
este desejo de uva azeda. Logo o outono
nos fará distinguir o negro cacho
daquele de cor púrpura.
Verás como já te segue, acossada
pelo tempo feroz que a ela sobrepõe os anos
e tira-os de ti; já com rosto impudente
Lálage pede marido.
Mais requerida que a esquiva Fóloe
ou Clóris, cujos brancos ombros brilham,
como em noites claras, a lua
sobre os mares, ou o cnídeo Giges,
para o qual, um coro de meninas,
ao hóspede mais sagaz fará difícil
a decisão ao apresentarem-se
de cabelo solto e semblante ambíguo.
(Tradução minha, a partir da tradução espanhola de Vicente Cristóbal (Op. cit.) e do original
em latim. Sentido literal, sem preocupação com a versificação.).
196
II VII
O saepe mecum tempus in ultimum
deducte Bruto militiae duce,
quis te redonauit Quiritem
dis patriis Italoque caelo,
Pompei, meorum prime sodalium?
cum quo morantem saepe diem mero
fregi coronatus nitentis
malobathro Syrio capillos.
Tecum Philippos et celerem fugam
sensi relicta non bene parmula,
cum fracta uirtus, et minaces
turpe solum tetigere mento.
sed me per hostis Mercurius celer
denso pauentem sustulit aere;
te rursos in bellum resorbens
unda fretis tulit aestuosis.
ergo obligatam redde Ioui dapem
longaque fessum militia latus
depone sub lauru mea, nec
parce cadis tibi destinatis.
obliuioso leuia Massico
ciboria exple; funde capacibus
unguenta de conchis. Quis udo
deproperare apio coronas
curatue myrto? quem Venus arbitrum
dicet bibendi? non ego sanius
bacchabor Edonis: recepto
dulce mihi furere est amico.
197
II 7
Finalmente de volta, meu amigo:
Ó Pompeu,
o primeiro dos meus companheiros,
arrastado tantas vezes comigo ao perigo extremo,
sob o comando de Bruto,
com quem muitas vezes passei parte de longos dias
com copo na mão
e ornados de flores os cabelos perfumados de aromas da Síria.
Quem foi que te restituiu
à Roma,
aos deuses pátrios,
e ao céu da Itália?
Compartilhei contigo a derrota dos Filipos
e a rápida fuga dos nossos,
lançando para longe o escudo vergonhoso
quando o valor dos nossos estava quebrado
e quando os mais corajosos enterraram o queixo no solo ensangüentado...
Depois de longa separação, festejemos o reencontro:
Mas o veloz Mercúrio
me acompanhou a mim, louco de medo,
por meio do inimigo através de uma nuvem de poeira
enquanto nova onda te engoliu
e te arrastou para novas guerras em mares tempestuosos!
Agora oferece a Júpiter o sacrifício prometido,
reclina debaixo do meu loureiro o corpo cansado com as longas guerras,
não poupes as ânforas para ti reservadas.
Enche polidas taças de Mássico que tudo faz esquecer,
derrama sobre ti perfumes abundantes de frascos-conchas.
Quem nos há de tecer logo coroas frescas de aipo ou de murta?
A quem nomeará Vênus rei do banquete?
Quero festejar a Baco à moda dos trácios,
gosto de estar fora de mim quando recupero um amigo.
(Tradução de José Ewaldo Scheid. Op. cit., p.50.).
198
II IX
Non semper imbres nubibus hispidos
manant in agros aut mare Caspium
uexant inaequales procellae
usque, nec Armeniis in oris,
amice Valgi, stat glacies iners
mensis per omnis aut Aquilonibus
querqueta Gargani laborant
et foliis uiduantur orni:
tu semper urges flebilibus modis
Mysten ademptum, nec tibi Vespero
surgente decedunt amores
nec rapidum fugiente solem.
At non ter aeuo functus amabilem
plorauit omnis Antilochum senex
annos nec inpubem parentes
Troilon aut Phrygiae sorores
fleuere semper. Desine mollium
tandem querellarum et potius noua
cantemus Augusti tropaea
Caesaris et rigidum Niphaten
Medumque flumen gentibus additum
uictis minores uoluere uertices
intraque praescriptum Gelonos
exiguis equitare campis.
199
II 9
Sempre a cair, a chuva não se espalha
pelos híspidos campos; a procela
iníqua o Cáspio mar não põe em fúria
eterna; nem, inerte, o gelo dura
pelo ano todo, Válgio, lá nos campos
da Armênia; não castiga, ininterrupto,
Aquilão de Gargano os carvalhais,
não permanecem os olmeiros viúvos
das suas folhas, tempo em fora. E tu
te empenhas a viver chorando Mistes
já morto, todo entregue a vãos lamentos:
não se afastam de ti os teus amores,
surgindo Vésper, ou fugindo, ao sol
que nasce. Mas o velho que três vidas
viveu, não nas viveu todas, chorando
ao amável Antíloco; os seus pais
e as suas irmãs frígias, incessantes,
o adolescente Troilo não prantearam.
Deixa, enfim, essas queixas que enfraquecem!
Cantemos, antes, os troféus de César,
o Nifates gelado e o rio medo,
às vencidas nações agora unido,
que, em mais humildes turbilhões, já rolam
e aqueles gelonos, cavaleiros
que equitação em campo exíguo fazem,
delimitado num prescrito espaço.
200
II XI
Quid bellicosus Cantaber et Scythes,
Hirpine Quincti, cogitet Hadria
diuisus obiecto, remittas
quarere, nec trepides in usum
poscentis aeui pauca. Fugit retro
leuis iuuentas et decor, arida
pellente lasciuos amores
canitie facilemque somnum.
non semper idem floribus est honor
uernis, neque uno Luna rubens nitet
uultu: quid aeternis minorem
consiliis animum fatigas?
cur non sub alta uel platano uel hac
pinu iacentes sic temere et rosa
canos odorati capillos,
dum licet, Assyriaque nardo
potamus uncti? dissipat Euhius
curas edaces. Quis puer ocius
restinguet ardentis Falerni
pocula praetereunte lympha:
quis deuium scortum eliciet domo
Lyden? Eburna dic age cum lyra
maturet in comptum Lacaenae
more comas religata nodum.
201
II, 11
A brevidade da vida não permite preocupar-se com o futuro:
Quíncio Hirpino,
não te preocupes com o que andem tramando
o belicoso Cântabro e o Cita;
separados de nós pelo Adriático;
não te aflijas com as necessidades da vida que se contenta com pouco.
Foge de nós a juventude imberbe com sua graça e beleza.
A velhice árida afugenta os amores folgazões e o doce sono.
As flores da primavera nem sempre conservam o seu viço,
nem a lua rubra brilha sempre com o mesmo aspecto
Por que fatigas o teu espírito com planos eternos que estão acima de tuas forças?
Maior felicidade têm aqueles que olham para o presente:
Enquanto ainda é tempo,
por que não bebemos sem preocupações
à sombra de alto plátano
ou à sombra deste pinheiro?
perfumadas as frontes encanecidas com rosas,
ungidas de nardo assírio?
O vinho dissipa cuidados desgastantes...
que servo nos há de servir um copo de Falerno ardente
enquanto aos pés murmuram as águas de apressado regato?
(Tradução de José Ewaldo Scheid. Op.cit., pp. 52-3).
202
II XIV
Eheu fugaces, Postume, Postume,
labuntur anni nec pietas moram
rugis et instanti senectae
adferet indomitaeque morti;
non si trecenis quotquot eunt dies,
amici, places illacrimabilem
Plutona tauris, qui ter amplum
Geryonen Tityonque tristi
compescit unda, scilicet omnibus,
quicumque terrae munere uescimur
enauiganda, siue reges
siue inopes erimus coloni.
Frustra cruento Marte carebimus
fractisque rauci fluctibus Hadriae,
frustra per autumnos nocentem
corporibus metuemus Austrum:
uisendus ater flumine languido
Cocytos errans et Danai genus
infame damnatusque longi
Sisyphus Aeolides laboris:
linquenda tellus et domus et placens
uxor, neque harum quas coli arborum
te praeter inuisas cupressos
ulla breuem dominum sequetur:
absumet heres Caecuba dignior
seruata centum clauibus et mero
tinget pauimentum superbo,
pontificum potiore cenis.
203
II, 14
Ninguém consegue evitar a morte:
Ah, Póstumo, Póstumo,
os anos correm velozes,
nem a piedade consegue retardar as rugas,
nem a velhice iminente,
nem a morte inexorável,
nem mesmo se todos os dias que lá vão,
aplacares com trezentos touros
ao inquebrantável Plutão
o qual detém cativos:
Gerião de três corpos.
E Titião,
por meio do rio lúgubre
que todos devem passar,
quantos nos alimentamos dos frutos da terra,
quer sejamos reis,
quer pobres colonos...
Não adianta fugir da morte:
Em vão fugiremos do sangrento Marte
em vão fugiremos do mar encapelado,
em vão do rouco Adriático,
em vão fugiremos, durante o outono, do malvado Austro, vento nocivo aos corpos.
Temos que ver o Cocito sinuoso e negro
Que se arrasta em lânguida corrente...
temos que ver a raça infame de Dánao
temos que ver Sísifo, filho de Éolo, condenado a trabalho eterno.
Nada deste mundo levarás contigo:
Deves abandonar as terras, a esposa adorada...
Nenhuma dessas árvores que cultivaste
há de acompanhar seu efêmero dono,
a não ser os odiosos ciprestes...
Um herdeiro mais digno
beberá o teu Cécubo guardado sob cem chaves
e molhará teu pavimento soberbo com esse vinho generoso,
de melhor qualidade do que o vinho das festas dos pontífices.
(Tradução de José Ewaldo Scheid. Op.cit., p. 55).
204
II XVI
Otium diuos rogat in patenti
prensus Aegaeo, simul atra nubes
condidit lunam neque certa fulgent
sidera nautis;
otium bello furiosa Thrace,
otium Medi pharetra decori,
Grosphe, non gemmis neque purpura ue-
nale neque auro.
Non enim gazae neque consularis
summouet lector miseros tumultus
mentis et curas laqueata circum
tecta uolantis.
Viuitur paruo bene, cui paternum
splendet in mensa tenui salinum
nec leuis somnos timor aut cupido
sordidus aufert.
Quid breui fortes iaculamur aeuo
multa? quid terras alio calentis
sole mutamus? patriae quis exul
se quoque fugit?
Scandit aeratas uitiosa nauis
cura nec turmas equitum relinquit,
ocior ceruis et agente nimbos
ocior Euro.
Laetus in praesens animus quod ultra est
oderit curare et amara lento
temperet risu: nihil est ab omni
parte beatum.
Abstulit clarum cita mors Achillem,
longa Tithonum minuit senectus,
et mihi forsan, tibi quod negarit,
porriget hora.
Te greges centum Siculaeque circum
mugiunt uaccae, tibi tollit hinnitum
apta quadrigis equa, te bis Afro
murice tinctae
uestiunt lanae; mihi parua rura et
spiritum Graiae tenuem Camenae
205
Parca non mendax dedit et malignum
spernere uolgus.
II 16
Surpreso no amplo mar Egeu, o nauta,
logo que nuvem atra esconde a lua
e estrela alguma arde no céu, aos deuses
pede descanso;
descanso pede a furibunda Trácia,
pede-o o meda de aljavas enfeitado,
Grosfo, porque, com gemas e ouro, nunca
podem comprá-lo.
Pois o ouro e o consular litor não tiram
as agitações míseras do espírito
e os cuidados que os tetos sobrevoam,
ricos de ornatos.
Vive com pouco e bem aquele a quem
pátrio saleiro esplende à mesa simples
e não lhe rouba o sono, o medo e a inveja,
sórdido vício.
Por que, assim, tanto, intrépidos, visamos,
se a vida é breve? Buscar outra terra,
sob outro sol? Mas quem, fugindo a pátria,
foge a si mesmo?
Navios de bronze o mórbido cuidado
escala; eqüestres esquadrões persegue,
mais rápido que o cervo, mais veloz
que Euro soprando.
Alegre no presente, que a alma odeie
os cuidados futuros, e a amargura,
adoce-a, a rir: felicidade inteira,
essa não há.
Morte precoce arrebatou Aquiles,
longa velhice consumiu Titono,
talvez o fado me conceda aquilo
que te negou.
Cercam-te cem rebanhos a mugir
de vacas sículas, relincha-te a égua
à quadriga apta, lã três vezes tinta
do áfrico múrice
para o teu uso tens; a mim, me deu
pequeno campo, o sopro das camenas
206
gregas e o dom de desprezar o vulgo,
Parca veraz.
Liber III
III VI
Delicta maiorum inmeritus lues,
Romane, donec templa refeceris
aedisque labentis deorum et
foeda nigro simulacra fumo.
Dis te minorem quod geris, imperas:
hinc omne principium, huc refer exitum.
Di multa neglecti dederunt
Hesperiae mala luctuosae.
Iam bis Monaeses et Pacori manus
non auspicatos contudit impetus
nostros et adiecisse praedam
torquibus exiguis renidet.
Paene occupatam seditionibus
deleuit urbem Dacus et Aethiops,
hic classe formidatus, ille
missilibus melior sagittis.
Fecunda culpae saecula nuptias
primum inquinauere et genus et domos:
hoc fonte deriuata clades
in patriam populumque fluxit.
Motus doceri gaudet Ionicus
matura uirgo et fingitur artibus,
iam nunc et incestos amores
de tenero meditatur ungui.
Mox iuniores quaerit adulteros
inter mariti uina, neque eligit
cui donet inpermissa raptim
gaudia luminibus remotis,
sed iussa coram non sine conscio
surgit marito, seu uocat institor
seu nauis Hispanae magister,
dedecorum pretiosus emptor.
207
Non his iuuentus orta parentibus
infecit aequor sanguine Punico
Pyrrumque et ingentem cecidit
Antiochum Hannibalemque dirum;
sed rusticorum mascula militum
proles, Sabellis docta ligonibus
uersare glaebas et seuerae
matris ad arbitrium recisos
postare fustis, sol ubi montium
mutaret umbras et iuga demeret
bobus fatigatis, amicum
tempus agens abeunte curru.
Damnosa quid non inminuit dies?
aetas parentum, peior auis, tulit
nos nequiores, mox daturos
progeniem uitiosiorem.
208
III 6
Dos teus maiores expiarás os crimes,
Romano, enquanto os templos, os altares
oscilantes dos deuses e as imagens
de negro fumo recobertas, não
refizeres. Porque te reconheces
menor que os deuses é que, enfim, imperas:
são eles o começo e o fim de tudo.
Desprezados, à Hespéria miseranda
muitas desgraças enviaram eles.
Por duas vezes já que nos repelem
ataques reprovados pelos deuses,
Moneses e de Pácoro os soldados,
que exultam de ajuntar nossos despojos
aos exíguos colares do seu uso.
A Roma, dos motins enfraquecida,
destruíram-na quase Daco e Etíope,
este, temido pela armada; aquele,
pela sua perícia em lançar setas.
Velhas idades em delitos férteis,
as núpcias inquinaram e as famílias
e a raça: o mal, oriundo dessa fonte,
o povo penetrou e a própria pátria.
Regozija-se a virgem casadoira
com lhe ser ensinada dança jônica,
e aos seus artifícios se submete;
e, tamanina, se prepara, em vista
dos amores impuros. Logo, à mesa,
onde bebe o marido, aí procura
amantes bem mais jovens: não escolhe,
retiradas as luzes, o mancebo,
a quem concederá os seus favores
ilícitos, às pressas; mas, a uma ordem,
abertamente e pronta se levanta,
sabendo-o o marido quer a chame
um mercador, quer a convide o dono
de navio espanhol, que, regiamente,
compra a sua desonra, a peso de ouro.
Não desses pais procede a juventude,
que enrubesceu o mar com sangue púnico;
que a Pirro, o ingente Antíoco e o terrível
Aníbal derrotou; mas, certo, é a máscula
209
prole dos rústicos soldados, doutos
em as glebas lavrar, com enxadões
sabelos e em a lenha recolher,
partida, às ordens da severa mãe,
quando o sol, lá do cimo das montanhas,
as sombras removia e aos bois cansados
as cangas retirava, trazendo a hora
amiga, com a fuga do seu carro.
Que não degrada o tempo destruidor?
Dos remotos avós aos nossos dias,
o tempo piora, em regra, cada vez:
mau, com aqueles; pior, com nossos pais,
e péssimo conosco. Donde, em breve,
há de seguir-se idade mais viciosa.
210
III, XXIV
Intactis opulentior
Thesauris Arabum et diuitis Indiae
caementis licet occupes
terrenum omne tuis et mare publicum:
si figit adamantinos
summis uerticibus dira Necessitas
clauos, non animum metu,
non mortis laqueis expedies caput.
Campestres melius Scythae,
quorum plaustra uagas rite trahunt domos,
uiuunt et rigidi Getae
inmetata quibus iugera liberas
fruges et Cererem ferunt
nec cultura placet longior annua
defunctumque laboribus
aequali recreat sorte uicarius.
Illic matre carentibus
priuignis mulier temperat innocens
nec dotata regit uirum
coniunx nec nitido fidit adultero;
dos est magna parentium
uirtus et metuens alterius uiri
certo foedere castitas,
et peccare nefas aut pretium est mori.
O quisquis uolet impias
caedis et rabiem tollere ciuicam,
si quaeret PATER VRBIUM
suscribi statuis, indomitam audeat
refrenare licentiam,
clarus postgenitis; quaetenus, heu nefas!
uirtutem incolumem odimus,
sublatam ex oculis quaerimus inuidi.
Quid tristes querimoniae,
si non supplicio culpa reciditur,
quid leges sine moribus
uanae proficiunt, si neque feruidis
pars inclusa caloribus
mundi nec Boreae finitimum latus
durataeque solo niues
mercatorem abigunt, horrida callidi
uincunt aequora nauitae?
211
Magnum pauperies obprobrium iubet
quiduis et facere et pati
uirtutisque uiam deserit arduae.
Vel nos in Capitolium
quo clamor uocat et turba fauentium
uel nos in mare proximum
gemmas et lapides, aurum et inutile,
summi materiem mali,
mittamus, scelerum si bene paenitet.
Eradenda cupidinis
praui sunt elementa et tenerae nimis
mentes asperioribus
formandae studiis. Nescit equo rudis
haerere ingenuus puer
uenarique timet, ludere doctior
seu Graeco iubeas trocho
seu malis uetita legibus alea,
cum periura patris fidea
consortem socium fallat et hospites,
indignoque pecuniam
heredi properet. Scilicet inprobae
crescunt diuitiae, tamen
curtae nescio quid semper abest rei.
212
III, 24
Riquezas e luxuosos palácios não tornam os homens felizes:
Ainda que mais rico do que os tesouros intactos
dos Árabes
e da opulenta Índia,
ocupes com tuas construções
todo o mar Tirreno,
e todo o mar Adriático,
não livrarás o teu espírito do terror da morte,
nem tua cabeça livrarás de seus laços
quando o cruel destino
cravar os pregos adamantinos
na tua fronte altiva.
Como renovar os costumes?
olhar para o exemplo dos bárbaros:
cuidar melhor da administração da República:
melhorar os costumes de todo o povo:
educar com mais severidade a juventude:
Mais felizes vivem os ciganos errantes:
transportam em carros suas casas móveis.
Mais felizes vivem os rudes getos
a quem os campos sem limites
produzem frutos e searas sem donos
que não cultivam mais de um ano a mesma terra.
e a quem, depois de finda a tarefa,
um substituto alivia
que agora entra nas mesmas condições.
Ali a mulher delicada
educa os enteados privados da mãe,
a esposa não se prevalece por seu dote contra o marido,
nem se fia em amante perfumado.
O dote mais precioso para eles
é a virtude dos pais,
é a castidade fiel à fé jurada
que foge de todo aquele que não seja o marido,
pois a infidelidade para eles é crime
e se pecarem, terão por castigo a morte.
Ó tu, sejas quem fores,
se pretendes acabar com as ímpias mortandades,
e com as guerras civis,
e se queres que em tuas estátuas
seja insculpido o título “Pai da Pátria”,
tenhas a coragem de refrear a indômita licenciosidade
e serás celebrado pelos vindouros
já que, “ó perversidade”!
invejosos odiamos a virtude, enquanto viva,
213
e dela temos saudades quando longe de nossos olhos.
De que servem estas tristes queixas,
Se o castigo não corta o mal pela raiz?
Que adiantam estas leis vãs sem disciplina
Se nem os ardores da zona tórrida
nem as regiões geladas perto de Bóreas,
nem as neves endurecidas no chão
tolhem o passo à cobiça do mercador?
se nem a fúria dos mares
Suspende a navegação do atrevido nauta?
e se a pobreza, tida como vergonhoso opróbrio,
Impede a empreender tudo
a sofrer tudo
e a abandonar a árdua vereda da virtude?
Depositemos essas gemas, essas pedras preciosas,
e esse ouro prejudicial,
origem de todas as desgraças,
no Capitólio para onde nos chamam os clamores da multidão
que aplaude esse sacrifício,
ou então joguemos tudo ao mar mais próximo,
se é que sinceramente nos arrependemos de nossos crimes.
Cumpre extirpar os germes das vergonhosas paixões
e enrigecer as nossas almas,
enfraquecidas por excessiva moleza,
com ocupações mais austeras.
O mancebo de boa família, ainda inexperiente,
é incapaz de manter-se na sela,
receia as fadigas da caça,
é mais versado no jogo
seja no círculo importado da Grécia
seja no dado proibido por lei,
enquanto o pai faltando fé jurada,
e passando para trás o sócio e o hóspede,
se apressa em amontoar fortunas
para um herdeiro indigno.
Se crescem as riquezas, diminui a tranqüilidade da alma:
Crescem, é certo, essas mal adquiridas riquezas
mas falta-lhes sempre não sei o que,
para a satisfação completa.
(Tradução de José Ewaldo Scheid. Op.cit., pp.79-0-1).
214
III, XXIX
Thyrrena regum progenies, tibi
non ante uerso lene merum cado
cum flore, Maecenas, rosarum et
pressa tuis balanus capillis
iamdudum apud me est: eripe te morae
nec semper udum Tibur et Aefulae
decliue contempleris aruom et
Telegoni iuga parricidae.
Fastidiosam desere copiam et
molem propinquam nubibus arduis,
omitte mirari beatae
fumum et opes strepitumque Romae.
Plerumque gratae diuitibus uices
mundaeque paruo sub lare pauperum
cenae sine aulaeis et ostro
sollicitam explicuere frontem.
Iam clarus occultum Andromedae pater
ostendit ignem, iam Procyon furit
et stella uesani Leonis
sole dies referente siccos;
iam pastor umbras cum grege languido
riuomque fessus quaerit et horridi
dumeta Siluani caretque
ripa uagis taciturna uentis.
Tu ciuitatem quis deceat status
curas et urbi sollicitus times
quid Seres et regnata Cyro
Bactra parent Tanaisque discors.
Prudens futuri temporis exitum
caliginosa nocte premit deus
ridetque, si mortalis ultra
fas trepidat. Quod adest memento
componere aequus; celera fluminis
ritu feruntur, nunc medio aequore
cum pace delabentis Etruscum
in mare, nunc lapides adesos.
215
stirpisque raptas et pecus et domos
uoluentis una, non sine montium
clamores uicinaeque siluae,
cum fera diluuies quietos
inritat amnis. Ille potens sui
laetusque deget cui licet in diem
dixisse: “Vixi”: cras uel atra
nube polum Pater occupato
uel sole puro; non tamen inritum,
quodcumque retro est, efficiet neque
diffinget infectumque reddet
quod fugiens semel hora uexit.
Fortuna saeuo laeta negotio et
ludum insolentem ludere pertinax
transmutat incertos honores,
nunc mihi, nunc alii benigna.
Laudo manentem; si celeris quatit
pinnas, resigno quae dedit et mea
uirtute me inuoluo probamque
pauperiem sine dote quaero.
Non est meum, si mugiat Africis
malus procellis, ad miseras preces
decurrere et uotes pacisci,
ne Cypriae Tyriaeque merces
addant auaro diuitas mari;
tunc me biremis praesidio scaphae
tutum per Aegaeos tumultus
aura feret geminusque Pollux.
216
III, 29
Ó Mecenas,
estirpe real de Tirreno,
a ti espera um vinho suave guardado em ânfora
antes nunca virada
juntamente com flores, rosas e essência
obtida de bálsamo, para teus cabelos.
Há tempo esta ânfora te espera em casa.
Não te demores mais.
Não olhes sempre para o mesmo Tibur úmido
Não olhes só para os campos da encosta de Éfula
e para a canga da montanha do parricida Telégono.
A abundância só gera preocupações.
Deixa-a para trás
juntamente com o palácio da altura das nuvens.
Pára de admirar a fumaça da rica Roma,
juntamente com seu luxo e seu burburinho!
Geralmente os ricos gostam de variação.
Gostam de mesas limpas sob o teto simples de pobre.
Seu tapete e sua púrpura
lhes alisam as rugas da testa preocupada.
Já brilhante o pai de Andrômeda mostra seu fogo escondido.
Prócio se manifesta furioso.
E a constelação nascente do Leão
atiçada pelo sol já traz os dias da seca.
Já o pastor procura a sombra para seu rebanho sedento.
Já procura cansado o riacho e os arbustos hirsutos de Silvano.
A margem permanece em silêncio intocada pelos ventos.
Tu, porém, andas preocupado
com o estado melhor dos cidadãos;
andas preocupado com o que estejam tramando
os Seres
a Bactra dominada por Ciro
e o guerreiro Tanais, cheio de traições...
A divindade com sabedoria
Nos ocultou em noite escura o desfecho do tempo futuro.
A divindade se ri quando um mortal se preocupa exageradamente.
Lembra-te de administrar o presente
com espírito tranqüilo.
O resto passa por si como passa um rio:
217
ora descendo em paz dentro de seu leito,
ora arrastando consigo cascalhos roliços,
ora levando consigo troncos, gado, choupanas,
sob o ronco das montanhas e o ruído das florestas
A corrente selvagem acaba com o fluxo tranqüilo.
Somente aquele é senhor de si mesmo e vive em alegria e paz
que consegue dizer cada dia à noite: “Eu tenho vivido”.
Amanhã o Pai do céu
ou encobrirá o céu com nuvens escuras,
ou então encobrirá tudo com o brilho do sol;
mas ele não poderá fazer que não tenha acontecido
o que já está atrás de nós;
nem ele poderá mudar
nem poderá fazer não acontecido
o que a hora fugaz nos tiver levado.
A Fortuna sente alegria com seu jogo cruel.
Sem consideração ela joga o seu jogo com incrível precisão.
Ela troca as honras inconsistentes,
favorecendo ora a mim ora a um outro...
Eu a louvo enquanto permanece comigo,
mas quando ela vibra seus rápidos golpes,
bem ligeiro eu devolvo o que ela me deu,
bem ligeiro eu me escondo sob os trapos de minha modéstia
e escolho a Pobreza Honesta sem dote.
Não é do meu jeito,
quando o mastro do navio geme sob violento Áfrico,
recorrer a preces desesperadoras
e fazer votos e promessas
para que minhas mercadorias de Chipre e de Tiro
não venham a aumentar os tesouros do fundo do mar ávido.
Assim, me levarão uma brisa suave e os gêmeos Castor e Pólux
com segurança e tranqüilidade através do Mar Egeu
protegido por meu barco birreme.
218
III XXX
Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non Aquilo inpotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
Non omnis moriar multaque pars mei
uitabit Libitinam; usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita uirgine pontifex.
Dicar, qua uiolens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnauit populorum, ex humili potens
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. Sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge uolens, Melpomene, comam.
219
III 30
Erigi monumento mais perene
do que o bronze e mais alto do que a real
construção das pirâmides, que nem
as chuvas erosivas, nem o forte
Aquilão, nem a série inumerável
dos anos, nem a dos tempos corrida
poderão, algum dia, derruir.
Não morrerei, de todo; parte minha
à própria morte não será sujeita:
eu, sempre jovem, crescerei, enquanto,
com virgem silenciosa, o Capitólio
suba o pontífice. Dir-se-á que, grande
de origem humilde, a fiz, primeiro, a voz
latina ao metro grego, onde ressoa
o Áufido impetuoso e onde o Dáunio agreste,
de poucas águas, reinou sobre povos
rústicos. Enche-te do orgulho, pois,
que requerem meus méritos, Melpômone,
e, se quiseres, cinge-me a cabeça
com a de louro délfica coroa!
220
Liber IV
IV VII
Diffugere niues, redeunt iam gramina campis
arboribusque comae;
mutat terra uices et decrescentia ripas
flumina praetereunt;
Gratia cum Nymphis geminisque sororibus audet
ducere nuda choros.
Inmortalia ne speres, monet annus et almum
quae rapit hora diem.
Frigora mitescunt Zephyris, uer proterit aestas,
interitura simul
pomifer autumnus fruges effuderit, et mox
bruma recurrit iners.
Damna tamen celeres reparant caelestia lunae:
nos ubi decidimus
quo pater Aeneas, quo diues Tullus et Ancus,
puluis et umbra sumus.
Quis scit an adiciant hodiernae crastina summae
tempora di superi?
Cuncta manus auidas fugient heredis, amico
quae dederis animo.
Cum semel occideris et de te splendida Minos
fecerit arbitria,
non, Torquate, genus, non te facundia, non te
restituet pietas;
infernis neque enim tenebris Diana pudicum
liberat Hippolytum,
nec Lethaea ualet Theseus abrumpere caro
uincula Pirithoo.
221
Livro 4
IV 7
Lá se foram enfim as brancas neves,
reverdecem os campos; o arvoredo,
verde, revive a sua antiga coma;
muda a terra de aspecto; os rios minguam
e retomam, de novo, o antigo leito;
Graças e Ninfas, nuas e atrevidas,
ousam formar e dirigir seus coros;
Ano e Hora, roubadores do almo dia,
a nós todos advertem: “Não esperes
vida imortal!” Os zéfiros o frio
suavizam: o verão que há de morrer,
mata o inverno; pomífero, porém,
lá vem o outono a carregar seus frutos;
virá, logo a seguir, o duro inverno.
As luas céleres, então, reparam
os danos todos do rigor do tempo.
Nós, porém, logo que tenhamos ido
para onde lá se foram Padre Enéias,
o rico Tulo e Anco, enfim, seremos
sombra e pó. Mas quem sabe lá se os deuses
aos nossos dias somarão mais dias?
Quanto ao amigo coração tu deres,
das mãos escapa e da avidez do herdeiro.
Quando morto e por Minos já julgado,
a nobreza, a facúndia ou a piedade
não te restituirão, Torquato, a vida:
nem Diana libertou do inferno Hipólito,
o pudico, nem pôde, enfim, Teseu,
do Letes as cadeias desatando,
de lá arrancar Peritoo, o seu amigo.
222
IV XII
Iam ueris comites, quae mare temperant,
impellunt animae lintea Thraciae,
iam nec prata rigent, nec fluuii strepunt
hiberna niue turgidi.
Nidum ponit, Ityn flebiliter gemens,
infelix auis et Cecropiae domus
aeternum obprobrium, quod male barbaras
regum est ulta libidines.
Dicunt in tenero gramine pinguim
custodes ouium carmina fistula
delectantque deum, cui pecus et nigri
colles Arcadiae placent.
Adduxere sitim tempora, Vergili;
sed pressum Calibus ducere Liberum
si gestis, iuuenum nobilium cliens,
nardo uina merebere.
Nardi paruus onyx eliciet cadum,
qui nunc Sulpiciis accubat horreis,
spes donare nouas largus amaraque
curarum eluere efficax.
Ad quae si properas gaudia, cum tua
uelox merce ueni; non ego te meis
inmunem meditor tinguere poculis,
plena diues ut in domo.
Verum pone moras et studium lucri,
nigrorumque memor, dum licet, ignium
misce stultitiam consiliis breuem:
dulce est desipere in loco.
223
IV 12
Da doce primavera companheiro,
vento da Trácia que acomoda as ondas,
as velas infla; sob o frio, o prado
já não mais sofre, nem os rios mugem,
pela neve do inverno entumecidos.
Infeliz, da cecrópia casa opróbrio,
ave que se vingou, cruel, da bárbara
paixão do rei, Procne seu ninho faz,
a Ítis chamando, com lamentos flébeis.
Os pastores de nédias ovelhinhas
modulam, sobre a relva tenra, carmes
e, ao som das suas fistulas, deleitam
ao deus, a quem aprazem os rebanhos
e as colinas da Arcádia, que percorrem.
Esta estação, Vergílio, a sede excita:
mas, se desejas tu, que és favorito
dos jovens nobres, apreciar o vinho
pisado em Cales, beberás do meu,
uma vez que me tragas nardo, em troco.
Assim, pequeno vaso de perfume,
em câmbio, te dará tonel que dorme
na adega de Sulpício, cujo líquido
é em renovar as esperanças pródigo
e eficaz em curar as amarguras.
Se estás disposto a esse prazer, apressa-te
e vem, mas não te esqueças do meu nardo,
que não penso em matar-te a sede, grátis,
como se, em farta casa, eu fosse rico.
Deixa, um pouco, o interesse e não demores;
Lembrando sempre da sombria morte,
enquanto é lícito, os misteres graves
mistura, às vezes, com loucura breve:
é doce delirar, quando oportuno.
224
IV XIII
Audiuere, Lyce, di mea uota, di
audiuere, Lyce, fis anus, et tamen
uis formosa uideri
ludisque et bibis impudens
et cantu tremulo pota Cupidinem
lentum sollicitas. Ille uirentis et
doctae psallere Chiae
pulchris excubat in genis.
Importunus enim transuolat aridas
quercus et refugit te quia luridi
dentes, te quia rugae
turpant et capitis niues.
Nec Coae referunt iam tibi purpurae
nec cari lapides tempora, quae semel
notis condita fastis
inclusit uolucris dies.
Quo fugit Venus, heu, quoue color, decens
quo motus? quid habes illius, illius,
quae spirabat amores,
quae me surpuerat mihi,
felix post Cinaram notaque et artium
gratarum facies? sed Cinarae breuis
annos fata dederunt,
seruatura diu parem
cornicis uetulae temporibus Lycen,
possent ut iuuenes uisere feruidi
multo non sine risu
dilapsam in cineres facem.
225
IV 13
Ouviram, Lice, os deuses os meus votos,
ouviram, Lice: fazes-te já velha
e, contudo, pretendes ser formosa,
e saltitas e bebes, impudente,
e, ébria, trêmulo o canto, a Amor procuras,
que só te manifesta indiferença.
Mas Cupido nas faces brinca, em flor,
de Quia, citarista douta. E, voa,
através dos carvalhos ressequidos,
e foge-te, porque te afeiam esses
teus dentes amarelos, essas rugas
e essa neve que cobre a tua fronte.
Já te não restituem mais a púrpura
de Cós e caras pedras os momentos
que, em anais conhecidos, encerrou
o tempo alado. Que é da tua cor?
Que é da tua beleza e dos teus gestos
cheios de encanto? Que daquilo tens
que, respirando amor, a mim também
me arrebatara, ó tu, beleza, após
Cínara, a mais feliz e sedutora?
Mas a Cínara breves anos deu
o fado, que a ti longa vida, igual
à de velha coruja, destinara,
para que, Lice, os férvidos mancebos
pudessem ver-te, rindo-se a valer,
extinto facho já desfeito em cinzas.
226
EPODO
XII
Quid tibi uis, mulier nigris dignissima barris?
munera quid mihi quidue tabellas
mittis nec firmo iuueni neque naris obesae?
namque sagacius unus odoror,
polypus an grauis hirsutis cubet hircus in alis,
quam canis acer, ubi lateat sus.
Qui sudor uietis et quam malus undique membris
crescit odor, cum pene soluto
indomitam properat rabiem sedare, neque illi
iam manet umida creta colorque
stercore fucatus crocodili iamque subando
tenta cubilia tectaque rumpit!
Vel mea cum saeuis agitat fastidia uerbis:
“Inachia langues minus ac me;
Inachiam ter nocte potes, mihi semper ad unum
mollis opus. Pereat male quae te
Lesbia quaerenti taurum monstrauit inertem,
cum mihi Cous adesset Amyntas,
cuius in indomito constantior inguine neruus
quam noua collibus arbor inhaeret.
Muricibus Tyriis iteratae uellera lanae
cui properabantur? tibi nempe,
ne foret aequalis inter conuiua, magis quem
diligeret mulier sua quam te.
O ego non felix, quam tu fugis, ut pauet acris
agna lupos capreaeque leones”.
227
12
Que queres tu, mulher dos elefantes
negros digníssima! Por que a mim, não
vigoroso, mas cujo olfato é vivo
mandas tu cartas, mandas tu presentes?
Pois, mais sagaz, o cheiro mau percebo,
quando se aninha, em cabeluda axila,
pólipo ascoso ou fétido bodum,
do que o cão de bom faro, quando junto
ao lugar, onde o javali se oculta.
Que suor! que cheiro mau tresanda e cresce
dos murchos membros, quando, ensarilhadas
minhas armas, indômita, se apressa,
para acalmar o fogo, em que se agita;
quando já lhe não fica sobre o corpo
o úmido pó de gesso e aquela cor
tirada às excreções do crocodilo;
e quando, em tanta afobação, se rompem
e colchão e dossel que cobre o leito!
Ou, quando, com palavras de violência,
censura o meu fastio: “Assim, não falhas,
com Ínaca; com ela, podes bem,
três vezes e, uma só, comigo, e mal!
Miserável pereça aquela Lésbia,
a quem, pedindo um touro, a ti me trouxe,
fraco, impotente, quando eu tinha Amintas
de Cós, em cujo corpo se implantava
nervo mais rijo e forte do que nova
árvore, nas colinas. A que, pois,
essa pressa em, três vezes, mergulhar,
no múrice de Tiro, a lã de esponja?
Para ti, sim, para que não houvesse
conviva igual, que mais quisesse a sua
amada do que tu! Ah! como sou
infeliz! Foges-me assim, como foge
do lobo a ovelha e do felino as cabras”.
228
XIII
Horrida tempestas caelum contraxit et timbres
Niuesque deducunt Iouem. Nunc mare, nunc silua
Threicio Aquilone sonant; rapiamus, amici,
occasionem de die, dumque uirent genua
et decet, obducta soluatur fronte senectus.
Tu uina Torquato moue consule pressa meo,
cetera mitte loqui; deus haec fortasse benigna
reducet in sedem uice. Nunc et Achaemenio
perfundi nardo iuuat et fide Cyllenea
leuare diris pectora sollicitudinibus,
nobilis ut grandi cecinit Centaurus alumno:
“Inuicte mortalis dea nate puer Thetide,
te manet Assaraci tellus quam frigida parui
findunt Scamandri flumina, lubricus et Simois,
unde tibi reditum certo subtemine Parcae
rupere nec mater domum caerula te reuehet.
Illic omne malum uino cantuque leuato,
deformis aegrimoniae dulcibus alloquis.”
229
13
Hórrida tempestade o céu moveu
e chuva e neve sobre a terra caem;
ora a terra, ora a selva, então, ressoa,
ao ímpeto forte do Aquilão da Trácia.
Aproveitemos a ocasião, amigo,
que a nós nos oferece o dia, e, enquanto
no-lo os joelhos permitem e o decoro,
que se expulse a velhice carrancuda.
Do teu celeiro tira o vinho velho,
fabricado no tempo de Torquato,
o meu cônsul. O resto, põe de lado:
um deus talvez, por favorável sorte,
cada coisa porá em seu lugar.
Apraz-nos, no momento, perfumar-nos
com aquemênio nardo e os corações
aliviar, com a lira celinéia,
como ao seu grande aluno aconselhou
o famoso centauro: “Invicto jovem,
Tróia, a terra de Assáraco, que cortam
do pequeno Escamandro as frias águas
e o lúbrico Simoento, lá te espera;
mas sua entrada as parcas te vedaram
que sempre tecem imutável trama,
e nunca mais tua cerúlea mãe
te levará, de novo, à tua pátria.
Lene ali, pois, ao menos, os teus males,
com vinho e canto, a só consolação
à dor atroz que nos deforma o gesto!”
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