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Flávio da Silva Ribeiro
David Hume e História
Uma análise dos Ensaios Morais, Políticos e Literários
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História Social da Cultura da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em História.
Orientador: Marcelo Gantus Jasmin
Rio de Janeiro
Novembro de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410540/CA
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Flávio da Silva Ribeiro
David Hume e História
Uma análise dos Ensaios Morais, Políticos e Literários
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo
Programa de Pós-graduação do Departamento
de História da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Profº Marcelo Gantus Jasmin
Orientador
Departamento de História – PUC-Rio
Profº Bernardo Medeiros Ferreira da Silva
Departamento de Ciências Sociais – UERJ
Profº Antônio Edmilson Martins Rodrigues
Departamento de História – PUC-Rio
Profº João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410540/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, do autor e do
orientador.
Flávio da Silva Ribeiro
Graduou-se no curso de História, em Bacharelado e
Licenciatura, pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Iniciou o curso de Mestrado em História
Social da Cultura em 2004. Foi estagiário do Centro
de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação
Getúlio Vargas durante o período de 03/2001 a
10/2003.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Ribeiro, Flávio da Silva
David Hume e história: uma análise dos Ensaios
morais, políticos e literários / Flávio da Silva Ribeiro ;
orientador: Marcelo Gantus Jasmin. – Rio de
Janeiro :
PUC, Departamento de História, 2006.
100 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)
Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História
Inclui bibliografia.
1. História Teses. 2. História socia
l da cultura.
3. Hume, David, 1711-
Empirismo. 6. Iluminismo escocês. 7. Século XVIII. I.
Jasmin, Marcelo Gantus. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História.
III. Título.
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Agradecimentos
À PUC-Rio, especial ao Departamento de História, pelo largo e
inestimável aprendizado durante a pós-graduação, cujos ensinamentos me
acompanharão para sempre. Às entidades de fomento à pesquisa científica, em
particular ao CNPq e à FAPERJ, que, em me concedendo bolsas durante a pós-
graduação tornaram viáveis a elaboração deste trabalho. Tal auxílio é, para
qualquer empreitada intelectual, inestimável.
À banca examinadora desta dissertação, constituída pelos professores
Bernardo Medeiros Ferreira da Silva e Antonio Edmilson Martins Rodrigues,
cujas observações ampliaram ainda mais as minhas perspectivas em relação ao
que abordei nesta pesquisa. E, principalmente, ao meu orientador, Marcelo
Jasmin, que com suas críticas a este trabalho ensinou-me ainda mais do que com
ele aprendera em sala de aula.
À minha mãe, que acompanhou toda a tarefa, do início ao fim, me dando
os subsídios essenciais para que eu pudesse cumpri-la.
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Resumo
Ribeiro, Flávio da Silva; Jasmin, Marcelo Gantus. David Hume e
História. Uma análise dos Ensaios Morais, Políticos e Literários. Rio de
Janeiro, 2006. 100p. Dissertação de Mestrado Departamento de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A presente dissertação procura compreender algumas reflexões sobre a
história contidas nos Ensaios Morais, Políticos e Literários do filósofo escocês
David Hume (1711-1776). Neste trabalho (1758), cuja característica dominante é
a heterogeneidade dos temas abordados, o autor busca o conhecimento dos
“assuntos humanos” sob uma perspectiva secularizada, mostrando que entre uma
idealização da sociedade (e de uma conduta moral dos homens que nela vivem) e
sua realidade concreta a escolha para o verdadeiro esclarecimento deve recair
sobre esta última, desmistificando quaisquer hipóteses metafísicas e religiosas
como guias ao saber. Tomando a Inglaterra como exemplo preferencial não
apenas dos avanços conquistados pelo mundo moderno europeu, mas também dos
principais problemas deste, Hume estabelece algumas reflexões – tal como a
moderação nas disputas políticas e a interdependência econômica entre os países –
que têm por objetivo a fundamentação de uma ciência política. Para esta concorre
também uma crítica empírica, que levará o escocês a priorizar os aspectos gerais
das sociedades (como a economia, as instituições, os avanços cnicos) como
modo de explicação da dinâmica histórica, que, segundo sua percepção, opera por
transformações lentas e graduais, de forma seqüenciada, nunca ou raramente de
maneira abrupta e imediata. Procuramos, além disso, analisar a importância
metodológica de sua regra geral para a reflexão histórica, pois, por meio desta
regra, Hume faz tanto considerações acerca do passado como propõe observações
gerais para sua época e para o futuro, assinalando, desta forma, a maneira como as
sociedades se desenvolveram e como elas, provavelmente, se desenvolveriam
doravante, almejando o primeiro passo em direção a um conhecimento científico
do funcionamento do conjunto social, capaz de permanecer ante as próprias
mudanças circunstanciais pelas quais as sociedades naturalmente passam.
Palavras-chave
História; David Hume; Inglaterra; empirismo; Iluminismo escocês; século XVIII.
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Abstract
Ribeiro, Flávio da Silva; Jasmin, Marcelo Gantus (advisor). Hume and
History. An analysis on the Essays Moral, Political and Literary. Rio de
Janeiro, 2006. 100p. MSc. Dissertation Departamento de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The present research aims to comprehend some thoughts on history within
the Essays Moral, Political and Literary, by the Scottish philosopher David Hume
(1711-1776). In this particular work (1758), whose dominating characteristic is
the heterogeneity of the proposed themes, the author is looking for the knowledge
of “human affairs” under a secular perspective, exposing that between an
idealization of society (including the moral conduct of men who live under her)
and its concrete reality, the choice towards the very true knowledge must stand
with the last, demystifying any metaphysical and religious hypothesis as guides to
the capacity of learning. Taking England as a preferential example of the advances
and problems of modern Europe, Hume sets some reflections – just as moderation
in politics affairs and the economic interdependence among States which
observe the goal of founding a science of politics. In its basis remains an empirical
criticism, which leads the Scot to conceive a priority to the general aspects of
societies (as economy, institutions, technical advances) as a model of explanation
on the historical dynamics, which, according to his conception, is transformed
slowly and gradually, in a sequential way, never or rarely trough fast and
immediate changes. One looked for, besides these aspects, to analyze the
methodological importance of the author’s general rule to the historical concern,
for, by using her, Hume wonders about the past and either proposes general
directions for his time and future, marking, this way, how societies historically
must have developed and how they, probably, would develop themselves from
now on, aiming the first step to a scientific knowledge of society as a whole, that
would be able to remain even through the circumstantial changes that naturally
take place in societies.
Keywords
History; David Hume; England; empiricism; Scottish Enlightenment; eighteenth
century.
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Sumário
1. Introdução 8
2. O Iluminismo 11
2.1. O método científico 11
2.2. O Iluminismo escocês 19
3. Hume e a Inglaterra 26
3.1 Hume escreve os Ensaios 26
3.2. O desenvolvimento da sociedade civil e a moderação 28
4. Hume e a Europa 43
4.1. A força das leis 43
4.2. Crítica ao passado e o desenvolvimento do presente 46
4.3. A relação entre os estados e o comércio 53
4.4. O trabalho no mundo comercial e a coincidência dos interesses 57
5. Hume e História 61
5.1. O tratamento dos fatos históricos 61
5.2. O mundo de uma dimensão 65
5.3. Virtude e progresso 68
5.4. O aprimoramento segundo um conservador 74
5.5. Ironia e julgamento 78
5.6. A uniformidade da natureza humana 84
5.7. A quarta observação 88
6. Conclusão 94
7. Bibliografia 98
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1
Introdução
Traduzidos para o português recentemente em sua forma completa, os
Ensaios Morais, Políticos e Literários do filósofo escocês David Hume são, como
argumenta o cientista político e estudioso da obra humeana, Renato Lessa,
exercícios de filosofia pública. Hume, assim como os iluministas escoceses,
buscava unir a fundamentação de uma perspectiva filosófica a um grau de
cientificidade, como supõe a exigência do método científico baseado na reflexão
sobre a experiência e na não contradição entre o pensamento e os fatos
observados. Nos seus Ensaios, esta reflexão se volta principalmente para os
assuntos de uma Europa moderna, com especial atenção aos problemas ingleses.
Ao empreender esse tipo de análise de maneira mais ou menos sistematizada,
Hume também acaba por se comprometer com uma reflexão histórica que, como
apresentaremos em nosso trabalho, abrange uma visão crítica da história e (com
menor peso quantitativo) da historiografia antiga, assim como uma visão histórica
das transformações recentes do mundo moderno. Não seria equivocado afirmar,
inclusive, que sua preocupação ao olhar a antiguidade clássica estava voltada,
especialmente, ao seu presente histórico.
Por esta razão, preocupamo-nos em oferecer neste trabalho, que trata de
Hume e história, algumas importantes reflexões sobre esta que se encontram nos
Ensaios. Temos, assim, primeiramente, uma visão abrangente do Iluminismo
europeu em sua tentativa de promover uma análise empírica e não apriorística,
significativamente anti-religiosa, até a concepção da utilidade do método
científico para o tratamento dos fatos da vida comum, sendo esta uma
característica fundamental dos Ensaios. Também expusemos alguns pontos
relacionados mais diretamente ao Iluminismo escocês, como a proeminência da
coletividade sobre elementos particulares na reflexão acerca de problemas sociais,
assim como para a reflexão histórica.
Nos dois capítulos subseqüentes, “Hume e a Inglaterra” e “Hume e a
Europa”, preocupamo-nos em identificar as características centrais de seu projeto
nos Ensaios; na primeira parte, o papel da moderação em política que, afinal,
representava uma meta para o escocês no sentido do desenvolvimento social e que
mostra mais pontualmente o debate em torno de questões contemporâneas, como
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o facciosismo, o papel e importância do governo, uma revisão crítica das
representações históricas que sustentavam as percepções deste, e, por fim, como a
observância às leis e às instituições pôde preservar a liberdade atual, o caminho
realizado na trajetória social sob o ponto de vista de uma história compreendida
empiricamente. Na segunda parte, “Hume e a Europa”, observamos uma reflexão
de caráter mais abrangente, na qual sobressaem os aspectos de uma ciência
política, e, com maior evidência, as propostas para o desenvolvimento de uma
Europa pensada como formando uma integração. Neste sentido, uma das teses de
Hume se refere à interdependência necessária entre os países, cuja verificação se
tanto pela ponderação histórica acerca da antiguidade quanto pelo
desenvolvimento notado no período moderno. A economia desempenha, por meio
da centralidade das relações comerciais entre os estados (sob o regime da
preponderância das leis e instituições em detrimento das vontades individuais),
um papel de destaque para as generalizações que o escocês realiza como
determinações de uma ciência política. Uma preocupação recorrente nesses dois
capítulos é com a força dos movimentos políticos de seu próprio tempo sobre os
rumos da história, de como a presente conjuntura poderia ser subvertida e declinar
para um estado tal de coisas no qual não seria mais possível uma reflexão
científica, dada a necessidade desta de certa estabilidade (o uso da moderação)
para inferir verdades gerais de longo prazo.
Por isso, no último capítulo, a nossa preocupação foi a de mostrar alguns
aspectos relacionados à visão histórica e ao tratamento dos fatos históricos
realizados por Hume. Em primeiro lugar, a importante e conhecida regra geral
exposta no ensaio Da Origem e do Progresso das Artes e das Ciências, em que a
distinção entre acaso e causas norteia a elaboração de observações gerais, isto é,
de observações que fundamentam uma ciência política voltada para as grandes
mudanças sociais observadas historicamente. Em seguida, nos demais itens,
delimitamos alguns aspectos contextuais implicados na concepção histórica de
Hume, tanto no que se refere à sua (por vezes ambígua) visão e entendimento da
história clássica e do desenvolvimento social, quanto na sua argumentação acerca
de sua verificação dos avanços na modernidade e a longa duração dos sistemas de
governo para a compreensão de suas mudanças num longo período de tempo.
Nestes últimos casos, debatemos o que nos pareceu ser uma metodologia para a
inferência em política, diretamente ligada às suas observações gerais. Também
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percebemos ser necessária uma contraposição a leituras de sua filosofia política
como que desvinculada de interesse histórico, dado seu ceticismo que, por fim,
teria prevalecido sobre seus projetos “reformadores”, o que, ponderamos,
revestiria sua reflexão do traço simplificado de uma “psicologia aplicada aos fatos
históricos”. Por fim, para o melhor entendimento acerca da dualidade que
encontramos entre uma teoria histórica e uma concepção da história com
características “pendulares” (progresso e decadência), analisamos a quarta
observação do mesmo ensaio sobre as ciências e as artes, que trata do
desenvolvimento das sociedades em termos de progresso e decadência, de uma
intermitência fadada a se repetir em ciclos, por uma “necessidade” histórico-
social.
Duas leituras foram importantes para algumas interpretações dos Ensaios
de Hume: as análises de Duncan Forbes, um dos maiores especialistas do
pensamento do escocês, em seu notável e abrangente Hume’s Philosophical
Politics, que forneceu maior clareza contextual à filosofia política do escocês,
relacionando as diversas observações encontradas em nosso objeto de estudo a
outras existentes em diferentes trabalhos do autor. Outra leitura importante foi a
de J. G. A. Pocock que, em seus livros sobre Edward Gibbon (particularmente os
volumes II e III de Barbarism and Religion), discorre em pormenores sobre o
contexto social e intelectual da Inglaterra nos séculos XVII e XVIII, evidenciando
o profundo debate que englobou pensadores e agentes políticos em geral, sobre
virtude e refinamento, no qual vemos o retrato de uma filosofia política (e da
história) durante as complexas transformações sociais que antecederam o
capitalismo chamado “de fato”, no local mesmo onde esses debates tiveram
grande repercussão pública: a Inglaterra do escocês David Hume.
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2
O Iluminismo
2.1
O método científico
O período designado Iluminismo pode ser compartimentado em várias
seções. Exploradas, uma a uma, convergem para o que se pode descrever como a
tentativa de entendimento do homem em sociedade. A evolução do pensamento
para tal sentido não pode ser imaginada, entretanto, sem a consciência de que tal
reflexão do homem moderno deve em muito ao cientificismo do século XVII. Ou
a dúvidas mais ou menos céticas que tiveram por direção um processo - para
usarmos um termo mais próximo a nós - de secularização. Estudos sérios são
capazes de nos mostrar o quanto de forças antagônicas estava em jogo em tal
movimento, e que a expressão “unidade” é verdadeira se apenas temos em mente
conceitos prontos e sistemas estanques. Não obstante, se o pensamento escapa
com maior facilidade ao termo unitário, é difícil vê-lo se desenvolver, período a
período na história, além dos limites que são impostos por uma maneira de ver o
mundo (no caso o homem e a sociedade) e não outra. Daqui a diante vamos nos
centrar no termo “ciência” e em suas implicações.
A revolução científica do século XVII não nasceu de forma abrupta da
mente de alguns inspirados homens que, descobrindo a independência das ações
naturais e uma certa regularidade na física dos objetos do mundo, desvendaram
seus mistérios. A própria base dessa revolução não lhes permitia reivindicar tal
feito. Vemos, por exemplo, no mais célebre de seus componentes, Isaac Newton,
o respeito à magnitude do misterioso na natureza, o que Voltaire chamaria de
“modéstia filosófica”; nas palavras do historiador Peter Gay “Newton (...),
respected the facts, heroically faced obscured phenomena, and refused to make
systems
1
”. O fato é que na Europa do século XVII não mais predominava a
escolástica medieval, quando os grandes sistemas do saber tinham por tarefa
essencial a conciliação entre a percepção sensível e a revelação
2
. Galileu, outra
figura proeminente do método científico, homem dos séculos XVI e XVII, é
exemplar na percepção de que o tempo das revelações, das descobertas puramente
1
GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. Volume I. New York: Norton, 1977, p.139
2
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas, São
Paulo: Editora da UNICAMP, 1997, pp. 68-69
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12
individuais, com o auxílio da centelha divina, não comportava a dimensão dos
fatos do mundo:
Galileu não teve uma intuição fulgurante dessas experiências[acerca da distância
percorrida pelos corpos em queda livre] nem das relações constantes que elas
estavam fadadas a confirmar. Foi levado a ela por muitos anos de reflexão e
observação. No decorrer desse longo processo de descobrimento, sucedeu-lhe
seguir pistas falsas e esbarrar em impasses. (...) não desistiu: tinha flexibilidade
suficiente para tomar consciência de seus próprios erros e a coragem de partir em
busca de soluções melhores. Finalmente, obteve sucesso... até certo ponto
3
.
Todavia, o juízo de que os processos físicos demandavam tempo e
experiência para se converterem em medidas humanas de conhecimento - o que
ficou conhecido como método - não implicava, geneticamente, a total
emancipação entre saber e Deus. É bastante conhecida a contenda entre Descartes
e Newton, o primeiro vendo o mundo como sistema, o segundo elaborando as leis
do mundo de fato, o primeiro como geômetra, o segundo como físico e, ambos,
crentes. A revolução que de fato engloba esses dois nomes foi maior do que eles
no sentido das gerações seguintes. Transformações sociais, políticas e até
religiosas não estavam no programa do cientificismo; mas foi o cientificismo, e
seu método, o que melhor promoveu tais transformações: Few scientists in the
time of Boyle and Newton predicted that true religion and true science would
some day be at war
4
.” Mesmo um Leibniz, também crente, não o percebe. Num
debate com um discípulo de Newton, Samuel Clarke, Leibniz faz observações à
heterodoxa visão newtoniana de Deus como relojoeiro, pronto a reparar, de
tempos em tempos, Sua obra; ele diz que a força e o vigor do mundo, ao contrário,
permanecem sempre no mundo, e apenas vão de uma parte a outra, de acordo com
as leis da natureza e a bela ordem preestabelecida por Ele. Peter Gay sintetiza os
desdobramentos de tal idéia: “Leibniz was proved right in defending the regularity
of the universe, [but] wrong to think that his view would preserve natural
religion
5
.”
Essa distinção entre ciência e religião, a nós tão espontânea quando nos
debruçamos sobre esse período da história das idéias não estava, entretanto,
definida sequer nos seus maiores expoentes. O que faz essa relação ser tão
estreita, diríamos até indissociável, é que o método científico é, por definição, um
3
ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998, p.89
4
GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. Op. Cit. p.140
5
Idem, p. 143-144
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13
método progressivo, que descentraliza o observador, constrangendo-o a sempre
verificar a dinâmica das coisas existentes, para, então, estabelecer
conhecimento. Isso ofende o princípio religioso, seu freqüente uso da revelação,
com seu sentido do sagrado, seus intermináveis comentários, sua idéia de uma
ordem inviolável do mundo, onde toda a realidade era fixada num lugar imutável
e dificilmente discutível. E também ao sistema religioso de conhecimento,
inacessível aos comuns, não popularizado, na mão de copistas, erudito - na
prática, intransponível. O cientista, ou o filósofo que fala de ciência, é homem de
cartas, de letras; ele procura os relatos de viajantes e não se contenta em
simplesmente contemplar o dado: quer analisar, os homens e o mundo. Buffon,
um exemplo, escreve na sua Histoire Naturelle, de diversos volumes, em meados
do século XVIII, nada menos que a história da Terra, “from the moment it had
first been shaken loose from the sun by a comet, blazing hot, to a time of universal
death on a frozen planet; he wrote about the formation of the continents, the
nature of man, about animals, plants, rocks. The profusion of his work mirrored
the lavish wealth of nature
6
”. A Faculdade de Teologia da Sorbonne enxerga aí,
acertadamente, a profanação da crença cristã. Piedosamente, mas não sem alguma
insinceridade, Buffon se retrata. Diz que nunca quis contrariar a cronologia das
Sagradas Escrituras. Isso não o impediu, após tal fato, no decurso de tão larga
investigação, de ignorá-las sistematicamente.
O método de conhecimento científico, desenvolvido no século XVII,
popularizado sem dúvida por Newton
7
, abarcou a filosofia justamente por esse seu
caráter de progressão, essa abertura que a metodologia calcada na observação e na
experiência ensejava para outras áreas que não somente a física. Voltaire, que em
1738 lança seu Éléments de la philosophie de Newton, bate nesta tecla, insistindo,
com orgulho, ser o primeiro homem de letras francês a vislumbrá-la
8
.
Reverenciado pelo Iluminismo como gênio de tal método, Newton será o nome a
ser associado ao legado científico, que, como legado, naturalmente sofre
transformações e adaptações. Sua aplicação aos problemas filosóficos, de uma
maneira mais ampla, leva a um aprofundamento da cisão entre religiosidade e
conhecimento. Duas gerações posteriores de filósofos tenazmente abraçarão seu
6
Ibidem, p. 152
7
Ibidem, p. 128
8
Ibidem, p. 137
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14
método, mas não seu Deus: a primeira geração separa Newton de seus elementos
cristãos; a segunda, indo além, elimina qualquer religiosidade possível
9
.
Essa mudança, essa perseguição a qualquer pressuposto religioso, se faz
mais compreensível na nova ênfase que se dará não apenas à posição das coisas
do mundo, mas do homem no mundo. São concepções distintas. Uma quer buscar
da natureza a sua existência tal qual nos é dado experimentá-la. São corpos que
caem, pedras que se modificam, a ação e reação dos objetos. Tal concepção pode
sim confrontar a genealogia cristã, mas faz-lhe mais sulcos na sua superfície do
que remover a idéia de um Criador. Mas como aceitá-Lo plena e vigorosamente,
sem contrariar Seus ditames, quando se trata de conhecer e explorar Sua criação?
Perde-se aí, de maneira consistente, a mediação entre saber e revelação,
estabelecida por Ele, para as criaturas da Terra. A filosofia do Iluminismo, diz-nos
Cassirer, fará esse duplo movimento pagão: a natureza a ser conhecida por si
mesma; o espírito também. Ambos deixam de ser impenetráveis ao conhecimento,
ambos consistem em “princípios que lhe [ao homem] são plenamente acessíveis,
que ele é capaz de descobrir e de explicar racionalmente por si mesmo
10
”.
Uma conseqüência que essa mudança proporciona refere-se ao próprio
cartesianismo. Mesmo já tendo sido suplantado por Newton, ainda no século
XVII, sedefinitivamente dado como falho para o empirismo do século XVIII.
Na querela com Newton, em se tratando do conhecimento dos objetos do mundo,
perde em sua visão sistematizante, que busca investigar de “cima para baixo, dos
axiomas e princípios para os fatos, (...), [e não] inversamente, destes para
aqueles”. Newton aponta-lhe o equívoco: “Não podemos começar por hipóteses
gerais sobre a natureza das coisas para deduzir daí o conhecimento dos efeitos
particulares
11
”. No Iluminismo, essa inversão será mais aprofundada ainda. Em
boa parte do pensamento do século XVII, Descartes incluso, é a racionalidade que
destila do mundo das aparências as suas sombras. É ela, por conseguinte, o canal,
o meio para acessar o conhecimento do homem, que pensa e por isso existe. Nada
pode ser menos observável que isso, diz-nos o empirismo do século seguinte. Para
o século XVII as paixões são o acessório, o obscuro, o instintivo frente à razão.
No século XVIII, transposto o método científico para a investigação do ser
9
Ibidem, p. 142
10
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Op.Cit. p. 75.
11
Idem, p. 83
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15
humano, será a psicologia, e não o puro pensamento, o canal para o saber. De
negativo, o instinto passa a positivo. A representação, a idéia clara e distinta,
capaz de dominar os impulsos dos sentidos, isso não se observa na natureza
humana. As paixões não podem ser controladas pela razão, porque elas são a real
natureza, o “impulso originário indispensável da vida da alma” e não sua
fechadura. Liberdade não é simplesmente controlar as paixões, mas, inversamente,
dar por sua existência (e importância) e buscar compreendê-las
12
.
É sobretudo o pensamento secularizado que pode sustentar tal afirmativa.
Tanto se fez assim que, para a história das idéias, um racionalismo ainda com
resquícios de religiosidade, como encontramo-lo em Descartes, contribuiu para o
“paganismo” científico não pela extensão da clareza de seu discurso, pelo
pressuposto de sua razão, mas pela força de sua dúvida. Como observa Peter Gay,
“his radical skepticism (...), had helped to destroy the pernicious metaphysics of
the Scholastics and offered a method capable of destroying the rather less
pernicious metaphysics of seventeenth century philosophers, including his own
13
”.
Vemos aí que não é nem tanto o desenvolvimento do método científico que abre o
caminho definitivo para soluções mais ousadas, centradas num embate com a
religião e na secularização, mas sim a possibilidade de ser adaptado a outras áreas
do saber. Quando se torna uma certeza, com Newton, leva a um resultado não
antecipável que é fartamente manejado, com maior ou menor sucesso, no
Iluminismo. Se no século XVII Newton é aclamado como um totem entre os
homens, uma quase unanimidade, no século seguinte o seu método servicomo
contraposição às divergências das chamadas escolas filosóficas para a busca de
respostas ao problema que é de todos os tempos - o homem e a sociedade. O fato
de haver uma ampla área de acordo com relação ao processo de conhecimento do
mundo físico impulsionou - ou melhor, tornou mais viável, e menos metafísica -
essa adaptação
14
. Torna-se possível uma ciência do homem e da sociedade.
Duas partes dessa progressão são importantes aqui. A primeira se passa na
Holanda. Um dos principais centros de difusão das idéias newtonianas no
continente europeu, e durante anos o centro, foi a universidade holandesa de
Leyden. Recebendo diversos estudantes e visitantes estrangeiros incluindo
12
Ibidem, p. 149-150
13
GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. Op. Cit. p.149
14
Idem, p. 164
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16
Voltaire
15
– ela influenciou pensadores e ensejou novas perspectivas para o uso do
método científico. Os trabalhos de seus professores eram prontamente traduzidos
na Inglaterra. Buscavam uma lógica da ciência experimental, isto é, o primado de
um empirismo que, segundo Cassirer, é a verdadeira fonte dos trabalhos de
Hume
16
. Sua rigorosa metodologia nesse sentido tendia a estabelecer uma ponte
entre os problemas físicos e aqueles concernentes ao acesso possível do
conhecimento humano
17
. A outra parte dessa progressão coube a Locke. Baseado
também num método experimental concernente ao problema humano, o filósofo
avança em direção a uma “crítica” dos objetos a serem selecionados para a
realização de tal feito. Determiná-los precede os usos da análise experimental que,
como método, é eficaz, mas apenas na medida em que se presta a esclarecer a
partir do fato, e não somente de uma intuição. Ora, qual seria esse fato da natureza
humana a ser plenamente investigado pela experiência dos homens no mundo? Os
processos mentais. Todavia, não estão eles tão bem discernidos, dispostos e
nítidos, com a perspectiva de uma certeza, como no cartesianismo. O método
experimental faz valer, antes de tudo, a observação e, por isso mesmo, não pode
começar sua investigação por onde o espírito termina, na racionalidade:
(...) para resolver esse problema, para discernir exatamente a natureza específica
do espírito humano, o outro caminho senão percorrer de lés a lés toda a
extensão do seu domínio e reconstituir a ordem do seu desenvolvimento desde os
primeiros até as suas realizações supremas. O problema reduz-se, portanto, a um
problema genético. Somente a gênese do espírito humano pode fornecer uma
solução verdadeiramente satisfatória para o problema da sua natureza
18
.
De modo que a psicologia será colocada, assim, na base da teoria do
conhecimento do espírito humano. Tal feito o passa despercebido entre seus
contemporâneos:
Voltaire situa Locke muito acima de Platão – e D´Alembert declara na introdução
da Enciclopédia que Locke é o criador da filosofia científica, tal como Newton o
foi da física científica. Condillac, num exame rápido da história do problema da
alma, associa Locke diretamente a Aristóteles; declara ele que tudo o que foi
produzido nesse meio tempo não conta, por assim dizer, para nada no avanço do
verdadeiro problema
19
.
15
Ibidem, p. 136
16
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Op.Cit. p. 92
17
Idem, p. 93
18
Ibidem, p. 136
19
Ibidem, p. 143
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17
Combatendo as idéias inatas cartesianas Locke inaugura, para Voltaire,
uma real história da alma, não-apriorística. E somente uma psicologia para
facultar esse início, essa elaboração primordial da vida encontrada no psiquismo.
Segundo Cassirer, todo o desenvolvimento posterior à doutrina empirista de
Locke, a partir da psicologia, terá uma tarefa principal: revogar qualquer divisão
entre sensação e reflexão, esse dualismo de que não escapa Locke e que,
principalmente no Iluminismo escocês, deverá fenecer. Hume mesmo dirá, em
vários momentos, em várias obras que, diante das paixões, a razão é limitada; que,
por si só, a razão não produz nenhuma ação, não enseja nenhuma volição
20
. Esse é
o chamado do sensualismo para as ciências humanas.
Essa maneira de investigação da identidade humana, elaborada no
Iluminismo, está associada à contestação frontal de quaisquer princípios cristãos
explicativos de uma natureza. A necessidade de uma secularização não está
apenas entrevista nela, é o movimento mesmo de sua afirmação. E como
movimento terá, até o fim do século, duas importantes frentes. A primeira, e
podemos falar aqui daquela segunda geração pós-newtoniana, será a firme
negação de qualquer pressuposto ao conhecimento fornecido pelo cristianismo,
num embate ao mito da Gênese
21
, a consideração de que, longe da onipresença do
Criador, o homem é um ser lançado à Terra a uma posição entre os animais
inteligentes, apenas. Isso está expresso na idéia de que o máximo avanço em
ciência revela também o conhecimento dos limites do próprio conhecimento, o
que se traduz em novas investigações. Tal noção, antimetafísica, voltada à
natureza humana, é fundamentalmente secular. A segunda frente consiste na
transposição do método científico para os estudos humanos. A observação dos
processos físicos e as sucessivas experiências necessárias para determinar-lhes
suas leis é possível pois se observa uma constância nos objetos, em suas
características gerais, na experiência. Por esta razão pode-se inferir do passado o
acontecimento do futuro no mundo natural:
Quando, tomando por base certas observações, prevemos fatos que ainda não
observamos diretamente, apoiamos-nos no axioma de uniformidade da natureza.
Sem esse axioma, sem a hipótese de que as leis que descobrimos hoje na natureza
vão manter-se e perdurar mais tarde, toda conclusão inferida do passado para o
20
SCHNEIDER, Louis. The Scottish Moralists: on human nature and society. Chicago and
London: The University of Chicago Press, 1967, introdução, p. xviii
21
GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. Op. Cit. p.168
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18
futuro cairia manifestamente no vazio. Ora, como esse mesmo axioma será
demonstrável? (...)
Nas palavras de S´Gravesande, da universidade holandesa de Leyden, em
1717,
“Não se trata de um axioma estritamente lógico mas de um axioma prático; sua
validade não decorre da necessidade do pensamento mas da necessidade da ação.
Toda a ação, toda a transação prática com as coisas não estaria vedada ao homem
se este não pudesse levar em conta que os ensinamentos recolhidos de uma
experiência passada ainda valem no futuro, conservam sua força e sua
validade? O raciocínio que conclui do passado e do presente para o futuro (...) [é]
um raciocínio que, por analogia, é perfeitamente válido e até indispensável. (...).
Temos (...) o direito e a obrigação de confiar nele, visto que nos é imprescindível
aceitar por verdadeiro tudo cuja refutação implicaria a supressão para o homem
de todo e qualquer meio de existência empírica, de todo e qualquer tipo de vida
social
22
”.
O modelo físico pode ser, assim, transposto e tornar-se, para o homem e a
sociedade, um conjunto de pressuposições biológicas e sociológicas, em cujo
interior a analogia determinará (se não com toda a certeza), ao menos com a maior
probabilidade possível, o devir a partir da observação e da experiência. Embora o
Iluminismo reconheça que o caráter individual e a influência do meio
expandem as possibilidades de existência humana (e, por conseqüência, social) no
tempo e no espaço, “nature had built a certain uniformity into man´s basic patterns
of growth and behaviour
23
”. Eis o primado das paixões, o caminho para as
chamadas “primeiras” ciências humanas, a sociologia em destaque. A
uniformidade da natureza humana é correlata à estabilidade dos objetos nos
processos físicos. O que é observado no passado, dentro de parâmetros
experimentais, deverá se repetir no futuro. Como isso acontecerá, eis a questão do
método, que impõe deduções, erros, revisões e, por fim, a certeza para se tornar
uma lei científica. Este será, nos séculos seguintes, um dos pontos mais criticados
do Iluminismo. Assim como os philosophes fizeram de tudo para ver o homem
sem intermédio de Deus, a partir do XIX poucos afirmarão conhecer o homem
sem sua relação cultural, histórica e profundamente (até mesmo de maneira
irreconciliável) diversa, temporal e espacialmente.
22
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Op. Cit. p. 94
23
GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. Op. Cit. p.168
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19
2.2
O Iluminismo escocês
No iluminismo escocês, a adoção de uma metodologia científica voltada
para os assuntos humanos esteve ligada intimamente à idéia de que a formação de
grupos sociais é um procedimento natural da humanidade, sendo a sociabilidade
uma espécie de regra da natureza humana. Esta idéia, que também está
relacionada à Jurisprudência Natural (ou Lei Natural), parte do pressuposto de que
o comportamento dos indivíduos observados em sociedade não advém de um
evento único, ou de uma determinação estabelecida por um contrato racional
24
,
mas sim de uma tendência, de uma inclinação natural. Como prova desta idéia, a
observação ponto fundamental da metodologia científica de comportamentos
sociais variados mostra que, antes de qualquer argumento deliberado, a natureza
humana se apresenta de forma impositiva, e que, em seus traços essenciais, ela
contradiz a noção de que o egoísmo (a primazia da individualidade) é o
denominador comum da conduta humana, que o egoísmo é a característica que se
poderia encontrar em qualquer tempo e lugar:
(...) in the eighteenth century, by many British authors, society ceased to be
viewed as an artificial creation, instead it came to be called a natural relation.
Simple proofs of its naturalness were found in the helplessness of babes and in
the fact that the most primitive peoples as yet discovered lived in some sort of
organized life
25
.
Essa postura dará preferência à vida em conjunto em detrimento de
características advindas de vontades individuais, compreendendo que a sociedade
não é um empreendimento artificial, mas sim natural, sendo, portanto, possível
analisá-la tal como ela se mostra, e não imaginá-la, idealmente, como ela deveria
ser. Para o iluminismo escocês, a transferência da metodologia científica para os
assuntos humanos estava diretamente relacionada ao processo de secularização do
conhecimento; desta maneira, e como veremos em Hume, a negativa a
idealizações acerca da conduta social humana torna-se um imperativo, e, através
da observação, será possível separar o que é produto de pura especulação
filosófica daquilo que de fato se mostra no comportamento humano. Isso não
significa que os escoceses deixassem de especular e de propor generalizações. A
24
SCHNEIDER, Louis. The Scottish Moralists. Op. Cit. p. xvii
25
BRYSON, Gladys. Man and Society: the Scottish inquiry of the eighteenth century. New York:
Augustus M. Kelley, 1968, p. 149
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20
perspectiva da análise, contudo, sofre uma mudança decisiva. O ponto
fundamental dessa mudança é que características individuais encontrar-se-ão,
necessariamente, subordinadas a características coletivas. A racionalidade, por
exemplo, pode demonstrar perfeitamente certas regularidades de determinados
indivíduos, pode esclarecer determinadas ações, mas é insuficiente perante a
quantidade de comportamentos que se encontram no conjunto social, ou a maneira
como os seres humanos respondem às mais diversas situações cotidianas.
Comportamentos como o hábito e o costume, que haviam sido descritos como
de fundo irracional
26
, passam a ser considerados como formas de sociabilidade,
pois são observáveis de maneira generalizada e não necessitam de correção ao
contrário, expressam a natureza social do homem
27
. As intervenções no ambiente
social, portanto, devem levar em conta o comportamento da natureza humana (que
não prima pela estrita racionalidade), que é a partir dela que as comunidades se
estruturam; como um indício desse comportamento, a psicologia ocupa um lugar
importante, porque através de sua análise pode-se compreender como o homem
age na cena social
28
.
Duas formas de intervenção na vida social se apresentam por meio das
instituições e das regras expressas nas leis. Para os escoceses, tratava-se de
empreendimentos positivos na medida em que funcionavam para organização da
sociedade, isto é, sua eficiência era medida por sua utilidade, no sentido de que
um maior vel de organização social tendia a beneficiar um maior conjunto de
pessoas que buscam objetivos de maneira individual
29
. O escocês Dugald Stuart,
que segundo Louis Schneider sintetiza a visão geral de alguns pensadores
iluministas, entendia que
(...) social institutions represent a kind of deposit of wisdom, a heritage of the
community that has put into them, over the time, sagacity and reflection on much
experience, transcending by far that of any individual. (…) the wisdom so
deposited in social institutions has been built piecemeal, to be sure, and is hardly
the product of an intelligence that plans everything out at once in a total
conception of the ends institutions are to fulfill
30
.
26
SWINGEWOOD, Alan. Origins of Sociology: the case of the Scottish Enlightenment. British
Journal of Sociology, vol. 21, nº2, 1970, p. 170
27
BRYSON, Gladys. Man and Society. Op. Cit. p. 172
28
SCHNEIDER, Louis. The Scottish Moralists. Op. Cit. pp. xxix-xxx
29
BRYSON, Gladys. Man and Society. Op. Cit. p. 158
30
SCHNEIDER, Louis. The Scottish Moralists. Op. Cit. p. xliii
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21
Se a sociedade não é, então, um conjunto artificial, e se não é também um
projeto a ser construído racionalmente (ou que teve sua data de nascimento
conforme o desejo e/ou a finalidade de um Criador), ela deve ser vista sob o
ângulo de uma lenta formação, gradativa, que passou por estágios e que, com o
tempo, foi se aprimorando, quando as intervenções de várias gerações se
mostraram úteis, expandindo o número de beneficiados e tornando-a cada vez
mais complexa. Para David Hume, por exemplo, a idéia do aprimoramento social
indicava também um aprimoramento do indivíduo, que o meio, a coletividade,
determinava substancialmente a concepção que uns tinham dos outros. Em uma
discussão sobre o advento da propriedade, Hume diz que a segurança desta é obra
da organização do governo e que a estabilidade da posse se mostra mais benéfica
que a sua instabilidade, de modo que, embora num primeiro momento o
reconhecimento da posse de outros se aparente a uma “convention of abstinence”
por parte de quem reconhece,
In time, after the social organization is operating well and men reflect on what it
does for the preservation of common interests, it becomes a chief source for the
promulgation of many other moral ideas beyond those that have to do with
possessions.
Em suma, a intervenção que as regras de governo impõem se justifica pela
utilidade e melhoria decorrentes das mesmas. Isso afeta o curso das gerações:
“Men, (...), become more and more society-minded”. E, como o próprio Hume
diz, “the next generation must imbibe a deeper tincture of the same dye
31
”; assim
como para Adam Fergunson, que, descartando qualquer espécie de artificialidade
no surgimento da sociedade, pensa que “when people for long periods availed
themselves of the benefits thereof and complied with the general requirements,
they consented to the government
32
”. Desta mesma ênfase da melhoria das
condições conforme as gerações se sucediam, advêm uma percepção retrospectiva
do desenvolvimento social
33
. Como a observação da conduta humana informava
aos escoceses que o homem era eminentemente um animal social, ele deve ter
então progredido de um estágio de organização a outro. Mais importante, porém,
que uma classificação apenas de ordem política - para explicar essa progressão -,
era o valor também dado pelos escoceses às estruturas sociais e econômicas:
31
BRYSON, Gladys. Man and Society. Op. Cit. p. 159
32
, Idem, p. 164
33
CHITNIS, Anand. The Scottish Enlightenment: a social history. London: Croom Helm, 1976, p.
94
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22
The Scots (...), classified societies as savage, barbaric and polished (Adam
Fergunson, William Robertson) or as hunting, pastoral, agricultural and
commercial (Adam Smith, John Millar) in terms of their prevailing mode of
production
34
.
A importância dada aos mais variados fatores que envolvem o conjunto
social é, sem dúvida, uma forte característica da análise deste iluminismo. Tanto o
hábito, quanto o costume e a simpatia (a análise desta última vinha desde os
gregos
35
) são interpretados de forma extensiva sob o ponto de vista social. Para
Hume e para Adam Smith, por exemplo, “sympathy is not primarily a virtue to be
acquired; it is a natural and universal human trait, a power of the imagination
which allows a person to put himself in another’s place”, e, reforçando sua
perspectiva social, “It is a fellow-feeling (…); sympathy allows us to participate in
any passion or experience of another (…), and that reception makes of us, (…),
persons different from those we were
36
”. É assim que o desenvolvimento social é
um desenvolvimento também do indivíduo
37
; a sociedade como um todo, por
meio do governo, se desenvolve de maneira mais “abstrata”, impessoal, e os
indivíduos, com as suas próprias necessidades, se satisfazem mais conforme o
conjunto social lhes permite uma maior interação com outros indivíduos no
sentido de uma realização mútua. Quanto mais o governo se aprimora (e, com
isso, aprimora a sociedade) mais a vontade individual se satisfaz por meio da
interação com os outros, isto é, criam-se igualmente mais oportunidades para
realizar tal fim (a satisfação própria). Mas, de certa maneira, é como se a
coletividade, para o iluminismo escocês, acabasse por suplantar qualquer
característica individual dos homens, que conforme as interações se tornam
cada vez mais complexas, a “sociedade” acaba por exercer uma espécie de
controle (por meio do julgamento moral das atitudes de cada um) sobre seus
participantes:
We acquire from other persons our first notions of ourselves as selves, and we are
constantly molding and remolding ourselves to win their approval. In turn we
judge all persons who come into communication with us: (…). Society presents
itself to us, thus, as a vast network of interstimulation and response (using terms
of our day), in which individuals are greatly controlled by the wishes, the
judgments, the praise and disapproval of others individuals. Indeed, in these
discussions of Smith’s (…) [and in Hume] which prefigure so much of modern
34
SWINGEWOOD, Alan. Origins of Sociology. Op. Cit. p. 168
35
Idem, p.169
36
BRYSON, Gladys. Man and Society. Op. Cit. p. 160
37
Idem, p. 104
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23
social psychology, there sometimes seem to be no individuals at all, so organic is
the relation of person to person conceived to be
38
.
A preocupação com a moralidade, por parte do iluminismo escocês, está,
justamente, relacionada à importância dada à natureza humana. Sem o intermédio
de Deus, num cenário secular, a fundamentação do comportamento moral dos
indivíduos poderia, à primeira vista, encontrar-se em aberto, pois a determinação
primordial de como as pessoas julgam as outras é da natureza humana, não de
uma imposição da razão. Neste sentido, o esquema de funcionamento das
instituições sociais, para que se garantisse o cumprimento das regras que
permitiriam aos homens uma convivência sem violência (isto é, por meio da
comunicação), torna-se um dos problemas principais para a reflexão. Não se trata
mais, portanto, de controlar verticalmente a moralidade, e sim de corrigir, da
maneira mais abrangente possível, os maus aspectos que determinadas ações e
julgamentos possam exercer sobre a solidariedade social. Desta forma, se uma
concepção “evolutiva” das sociedades, é porque esta figura abstrata que é a
instituição interveio para buscar o bem comum e também para implementar novas
maneiras de desenvolvimento da sociedade - tudo, claro está, de maneira bastante
gradual, conforme as demandas sociais, o desenvolvimento do comércio, o
aparecimento de novas tecnologias, as próprias mudanças políticas etc. É neste
sentido que o que expomos acima se explica: uma quase “dissolução” do
indivíduo perante as forças (como as instituições, a política, a economia) que
representam o coletivo.
Um último aspecto desta breve exposição sobre algumas características do
iluminismo escocês nos interessa aqui. Na modernidade, a Europa (e,
principalmente, a Inglaterra, bem mais que a Escócia
39
) havia, segundo os
escoceses, atingido um substantivo grau de civilização
40
, o que significava, como
afirma Lorde Kames (assim como boa parte de seus contemporâneos), a highly
organized political society
41
”. A compreensão de estar num patamar superior ao
que havia no passado correspondia, em muito, ao projeto de determinar as etapas
38
Ibidem, p. 160
39
POCOCK, J G A. Linguagens do ideário político. Sérgio Miceli (org.). Tradução de Fábio
Fernandes. São Paulo:EDUSP, 2003, p. 173
40
Esta é uma questão que teve grande influência na teoria histórica de Hume, como veremos no
quinto capítulo desta dissertação.
41
BRYSON, Gladys. Man and Society. Op. Cit. p. 168
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24
de desenvolvimento até aquele momento e, a partir desta concepção, demonstrar
as características que garantiriam a estabilidade e novos aprimoramentos sociais.
A história ocupa, aqui, um lugar especial. De maneira semelhante àquela
valorização social do coletivo
42
, preferindo-o a aspectos individuais, a reflexão
histórica se encontra intimamente preocupada com os eventos de impacto mais
geral, ou, melhor dizendo, com eventos cuja transformação independem de
decisões particulares e de momentos “grandiosos”: em Hume um dos principais
expoentes no que se refere também à reflexão histórica do período
43
- “Kings,
battles and dates are passed over for discussions of manners, customs, ideas,
institutions”, principalmente nos seus Ensaios
44
. Esta preocupação histórica do
iluminismo escocês reflete também a própria questão da moralidade. Como
dissemos acima, não se tratava de regular estritamente o comportamento moral,
mas de alcançar o entendimento de sua formação, observando suas manifestações,
compreendendo sua dinâmica. A contribuição da história, aqui, para alguns desses
iluministas, não está apenas em seu valor educacional (como a leitura do ensaio
Do estudo da história, de Hume, talvez suponha); antes, seria como um grande
painel que retrataria as transformações, ao longo do tempo, da própria consciência
moral da humanidade
45
, na medida em que esta se aprimorava até alcançar este
alto grau de civilidade:
Undoubtedly one of the motives for the writing of history was pride in the
achievements of the age, and the desire to set them off favorably against the
comparative lack of achievement in the past. It was a “polite”, and “polished”
generation, whose accomplishments could be portrayed advantageously by the
side of those of “rude” and “barbarous” periods of the past or of some other
section of the world
46
.
Esta percepção da história abrangia, pois, um método de investigação das
sociedades em suas grandes “representações”, uma afirmação dos aprimoramentos
da civilização moderna, e uma reflexão filosófica que poderia, a partir de tais
evidências “empíricas”, explicar cada passo desse desenvolvimento e apontar as
correções necessárias para que este não retrocedesse e para que os ganhos dessa
era de esclarecimento frutificassem em novos aprimoramentos para futuras
42
SWINGEWOOD, Alan. Origins of Sociology. Op. Cit. p. 177
43
BRYSON, Gladys. Man and Society. Op. Cit. p. 102
44
Idem, p. 106
45
HAAKONSSEN, Knud. Natural Law and Moral Philosophy: from Grotius to the Scottish
Enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 7
46
BRYSON, Gladys. Man and Society. Op. Cit. p. 79
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25
gerações. Neste aspecto, a reflexão histórica não era “autônoma”. Ela possuía uma
função. Como diz-nos Gladys Bryson, a história ainda era considerada como um
ramo da literatura, e a “elegância” na maneira de escrevê-la conferia-lhe
considerável liberdade expressiva: “its [da história] very association with
philosophy brought it into popularity. The result of this association was not
history for history’s sake, but history for philosophy’s sake
47
”. Em síntese, a
reflexão histórica no iluminismo escocês, como suporte para considerações
filosóficas, sofreu uma transformação metodológica importante, pois, além de
desvencilhar-se da exemplaridade clássica (para a qual o valor pedagógico da
história era central), buscou, a partir de seu uso para a filosofia, determinadas
regularidades da própria natureza humana que poderiam ser compreendidas se
o foco da análise se deslocasse para manifestações sociais mais amplas e, de
alguma maneira, interligadas, sem se restringir a um ou outro aspecto (como a
política, ou a economia) de tais manifestações. A partir do momento em que se
“desliga” de aspectos particulares, essa reflexão histórica ganha um contorno mais
moderno; ainda que resultasse, em última instância, numa afirmação dos avanços
de sua própria época, tal metodologia mostrou-se de grande influência. Pois já não
faria mais sentido imaginar a história como uma sucessão de eventos sem
correlação entre si; tornou-se importante mostrar, em razão da preocupação com a
natureza humana, que determinadas regularidades apareciam no decurso histórico,
e que uma comparação crítica entre os períodos poderia lhes dar, aos iluministas e
aos homens em geral, uma contribuição fundamental para a compreensão social
de seu próprio tempo; e que, finalmente, a incidência sobre a moralidade se
mostraria inequívoca, a partir de um suporte científico, que eles almejavam pela
primeira vez para tal tratamento.
47
Idem, pp. 78-79
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3
Hume e a Inglaterra
3.1
Hume escreve os Ensaios
Segundo uma declaração em sua breve autobiografia, Hume nos predispõe
a crer que seus Ensaios foram possíveis, inicialmente, devido à sua inclinação
pessoal a ser “naturalmente dotado de um temperamento alegre e otimista”, que o
fez se recuperar do fracasso de seu monumental Tratado da Natureza Humana
(que nasceu morto da gráfica”) e dar “seqüência com grande ardor aos meus
estudos”, que obtiveram, por sua vez, êxito: “a obra [os primeiros Ensaios] foi
recebida favoravelmente, o que logo me fez esquecer completamente a minha
frustração anterior
48
”. Embora se recorra com mais freqüência, nos estudos
humeanos, ao seu Tratado, por ser obra mais densa e desenvolvida de seu
pensamento, os Ensaios Morais, Políticos e Literários dão uma mostra
considerável do filósofo cuja proposta era a de aproximar suas reflexões à vida
daqueles que as liam. Toda sua crítica é em relação ao que justamente
“ultrapassa” a vida ordinária, como a metafísica e a teologia, ou ao que supõe
desvendar o homem sem observar-lhe cautelosamente, como na premissa
cartesiana e na contratualista. Os Ensaios, em sua constituição dinâmica e a gama
de assuntos que engloba, definem um “exercício de observação de questões que
dizem respeito à vida comum
49
”. Fortemente influenciado por uma visão cética na
qual a vida comum era o “lugar de ocorrência dos fenômenos humanos e o objeto
de investigação”, e também por uma “orientação experimental na filosofia” que
ambicionava “uma ciência fundada na observação e na experimentação”, Hume
desenvolve aquilo que Renato Lessa chama de forma-ensaio: curta, sintética,
variada, em oposição à forma de seu Tratado, cujo “fracasso” o impulsionou a
uma mudança estilística, embora ainda filosófica; densa apesar da linguagem
ordinária que nela emprega, “ainda que culta e referida à República das Letras”,
guiada pelo moto de “tomar a história humana como objeto e como lugar de
48
HUME, David. Minha Própria Vida. In Ensaios Morais, Políticos e Literários. Tradução de
Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, p. 74
49
LESSA, Renato. A condição hum(e)ana e os seus Ensaios. Introdução à edição brasileira dos
Ensaios Morais, Políticos & Literários de David Hume. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, p. 20
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27
exercício da filosofia
50
”. Quem é esse público e que história é tratada? É o público
inglês da primeira metade do século XVIII; e toda a história que ele necessitava
minimamente aprender:
(...); mas devo julgar uma ignorância imperdoável das pessoas, seja qual for seu
sexo ou condição social, que não conheçam a história de seu próprio país, além
da história da Grécia antiga e de Roma
51
.
Para J. G. A. Pocock, os Ensaios podem ser compreendidos como uma
forma de história contemporânea, dos problemas morais, políticos e literários de
seu período. Num quadro mais ampliado, “They are the problems of a polite
society, a polite society is conceived as modern (and indeed recent), and
modernity is a historical problem which a history must be written to explain”. E,
embora Hume se refira especialmente à Inglaterra, às suas transformações desde
meados do culo XVII, “this history is European in a strongly western sense”,
pois extrapola as fronteiras deste país para analisá-lo e compará-lo a seus vizinhos
europeus, o que Duncan Forbes chama de “science of comparative politics”, mas
não apenas isso. Pocock toca num ponto crucial que repetidas vezes aparece nos
Ensaios:
Much of the historiography explicit and implicit in the collected Essays is
therefore a criticism of ancient politics, Athenian, Spartan and Roman, and a
demonstration of ways in which a modern politics may accept its own
shortcomings as the price of its superiority over the ancient
52
.
De fato, Hume não deixa de elogiar a liberdade de expressão na Inglaterra,
não deixa de atestar a distorção do antigo conceito de liberdade, não deixa de
apontar as vantagens da polidez, da “delicadeza de gosto”, acessível ao homem
moderno. Mas, embora esses sejam indicativos do progresso, não são
estabilidades, não existe uma constância, sendo os assuntos humanos por demais
frágeis, a começar pela política: “(...) human government is an imperfect affair
(...), and there is no equillibrium which can be expected to last for all time
53
”. A
estrutura dos Ensaios observa essa consciência, sua filosofia contida pretende
50
Idem, p. 20-27. Ver também sobre a forma do ensaio POCOCK, J. G. A. Barbarism and
Religion, Volume II: narratives of civil government. Cambridge, New York and Melbourne:
Cambridge University Press, 1999, pp. 185-186
51
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. pp. 784-785
52
POCOCK, J. G. A. Barbarism and Religion.Volume II. Op. Cit. pp. 179-180 (grifo meu). Ver
também FORBES, Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. In DUNN, John, HARRIS, Ian
(editores). HUME. Volume II. Cheltenham, Lyme: Edward Elgar, 1997, p. 85
53
POCOCK, J. G. A. Barbarism and Religion. Volume II. Op. Cit. p. 186
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28
uma interação, uma intervenção com a vida ordinária. Como Lessa aponta, na
comparação entre os Ensaios de Hume e os de Montaigne, não isolamento,
retiro em Hume. Sua composição é constituída pela obrigação de estabelecer a
good Correspondence entre os domínios do conhecimento e da conversação
ordinária”, numa expressão, os Ensaios são “exercícios de filosofia pública
54
”.
3.2
O desenvolvimento da sociedade civil e a moderação
Como veremos mais adiante, havia, na Inglaterra do século XVIII, uma
tendência a enxergar nos escritos políticos de Hume um caráter conservador, uma
necessidade sempre retomada de manutenção da “ordem”, pois, para ele, a
barbárie não seria apenas uma manifestação indesejável: haveria, inclusive, o
perigo de destruição do que num longo período pôde ser estabelecido. Uma
palavra aqui se destaca, a moderação. Nos Ensaios, quando ela aparece, possui
um significado preciso. É difícil de se esperar moderação em homens de partido
de qualquer espécie
55
”. Historicamente os partidos sempre estiveram em disputa;
no passado recente “as facções tinham como único fundamento a mesquinhez dos
preconceitos ou a paixão do interesse
56
”. É este homem, o filósofo, que resiste a
esta teia unidimensional: “Cabe, portanto, apenas ao filósofo, que não pertence a
nenhum desses partidos, avaliar todas as circunstâncias e atribuir a cada uma delas
o seu verdadeiro valor e influência”. Mesmo que ao filósofo escape o completo
entendimento de um tema, ele é, ao menos, capaz de moderação
57
. Talvez haja
o peso do termo em política, a moderação que apenas “garantiria” a mera
conservação da ordem em vigor.
Moderar é apontar um meio-termo em um debate. Mas de que meio-termo
se trata aqui? A resposta foi dada: um meio-termo entre partidos. O assunto é a
política inglesa. O pano de fundo é uma constituição mista, que ora favorece a
corte, os partidários do soberano, da autoridade, da monarquia, ora o parlamento,
o partido do campo, da liberdade, com viés republicano. Numa oposição simples
é uma luta partidária entre a necessidade de autoridade do soberano e a
necessidade de liberdade dos súditos (representados pelos Comuns). Este é o
54
LESSA, Renato. A condição hum(e)ana e os seus Ensaios. Op. Cit. pp. 30-31
55
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 145
56
Idem, p. 698
57
Ibidem, pp-714-715
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29
cenário dado ao moderador humeano dos Ensaios, e o que se é uma discussão
que entrelaça interesse e história, ou melhor, da preponderância observada nos
homens em acreditar numa verdade estabelecida” e de como é,
proporcionalmente, mais difícil compreender o princípio da discussão, antes que
se houvesse dado como verdade o já estabelecido.
São dois os pontos importantes para o escocês aqui. O que é governo, o
que é partido. O caso exemplar dessa questão está ligado à gestão de Robert
Walpole à frente do governo inglês, como Primeiro Lorde do Tesouro. Ele é
acusado, e com prova, de patronagem. Usa a prerrogativa da distribuição de
cargos da coroa para influenciar decisões no parlamento. É o poder monárquico
que manipula a decisão republicana. Todavia, este pano de fundo não é o busílis
ao qual Hume irá se entregar. Para isso ele esvazia qualquer grau de singularidade
incorporado ao vulto de tal autoridade. Um bom governo não é de homens, mas de
leis; a figura do legislador é que se faz central. A constituição, o emblema das leis,
é onde a questão reside. Se a constituição é boa, o problema Walpole será
contornado - no caso, a sua corrupção. Se ela é má, o caso Walpole, ao menos,
ajudará a aperfeiçoá-la
58
. A dificuldade neste debate está não no seu caráter
pontual, mas justamente em enxergá-lo tão somente assim, onde o partidarismo
o facciosismo - aflora. O contraponto ao imediatismo (ou ao fanatismo das
facções), se não é a história em si, é ao menos a constituição da sociedade civil e
da natureza humana
59
.
“O homem, nascido numa família, é forçado a viver em sociedade, por
necessidade, por inclinação natural e por hábito
60
”. Hume deixa claro que o
homem não é homem sozinho, o que Gilles Deleuze aponta com clareza:
A verdade é que o homem é sempre o homem de um clã, de uma comunidade.
(...). O que encontramos na natureza, a rigor, são famílias; assim, o estado de
natureza já é desde sempre algo distinto de um simples estado de natureza. (...) o
problema da sociedade não é o de limitação [o puro interesse próprio, exacerbado
no egoísmo], mas de integração.
58
Ibidem, pp. 124-126
59
HAAKONSSEN, Knud. Natural Law and Moral Philosophy: from Grotius to the Scottish
Enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 114: “(...) even in the
explanation of the most specific event, there will be references to the universal principles of
human nature underlying all moral thought and to the institutions to which those principles have
led. (…). The more general parts of politics explain that such institutions are the kind of things that
must have a history, while the more specific parts reveal the history they have actually had.
60
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 135
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30
O homem não é, por princípio e definição, mais egoísta que parcial
61
. É
assim que cabe a pergunta, como surge a sociedade civil, o governo? Não
como saber, apenas como conjeturar: “é provável que tenha sido durante um
estado de guerra”, onde são requeridos “consenso e unanimidade”. É o nascimento
do elo social, quando ascendem os deres entre a população, aqueles que poderão
controlar “os efeitos perniciosos da desordem”. De tanto crerem na divisa da
realeza por um lado, e na liberdade original perdida, por outro, os partidários do
século XVIII esquecem a precariedade da história, esquecem que “O governo
começa de uma forma mais acidental e imperfeita”, que a sociedade civil nasce
duma circunstância, e não definida. Que o perfil dos primeiros mandatários é o
mais distante possível da figura de um partidário, pois, para a sociedade civil
existir, “devem demonstrar qualidades pessoais superiores, de valor, força,
integridade ou prudência, que atraiam o respeito e a confiança”. Nenhum der é
soberano (no e) desde o princípio. Todavia, segundo Hume, o líder enxerga “um
interesse evidente na administração imparcial da justiça”. Os primeiros
governantes devem ser os magistrados, cuja função é “reparar a fraude e a
violência e obrigar os homens, mesmo contra a sua vontade, a respeitar os seus
próprios interesses reais e permanentes”. O propósito do governo é justamente o
de distribuir a justiça; em havendo (e sempre ) perturbação na sociedade, o de
“corrigi-la e regenerá-la”. Em seu princípio, a sociedade civil requer dos homens
de liderança probidade, e é pela força do hábito que essa autoridade da justiça
fará a ordem ser consolidada, pois “os homens, uma vez acostumados à
obediência, nunca pensam em abandonar este caminho”. Numa analogia possível
entre o princípio do governo e as disputas partidárias em curso na Inglaterra,
vemos Hume ponderar: “Em todos os governos, existe uma perpétua luta
intestina, aberta ou secreta entre a autoridade e a liberdade; e nenhuma das duas
pode prevalecer de maneira absoluta (...)
62
”. Desde a origem do governo a
sociedade civil é negociação, mas também imposição. Não são a autoridade nem a
liberdade puras que prevalecem, e sim, justamente, sua combinação dada por
quem controla o governo. O maior legado cabe, portanto, “aos legisladores e
61
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade: ensaio sobre a natureza segundo Hume.
Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed.34, 2001, pp. 32-34
62
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. Ensaio Da Origem do Governo,
pp. 135-140
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31
fundadores de estados, que transmitem um sistema de leis e instituições para
assegurar a paz, a felicidade e a liberdade das futuras gerações
63
”.
Se o início é imperfeito, isto é porque o próprio da sociedade civil é
transformar-se, aperfeiçoar-se. O legislador é quem conduz a esse apuramento,
mas não sem inimigos. Hume os assinala: “são os fundadores de seitas e de
facções”, são os partidários
64
. As facções são divididas em pessoais e reais, mas
as primeiras são domésticas apenas, típicas nas pequenas repúblicas,
essencialmente passionais. Antônio até poderia ter razão em odiar Pedro; mas seu
neto odiará o neto deste, Lúcio, somente porque é afeito à sua própria família, a
seu próprio grupo, não aceita outro. Odiará por apego à sua facção, a seu partido,
Lúcio coisa alguma lhe fez. Nada é mais comum que isto
65
. Facções reais podem
ser de interesse, princípio ou de afeição. São reais porque é um fato o que as
divide. Quando são facções de interesse, nada mais desculpável, mais natural, é a
nobreza com suas prerrogativas, o povo com suas necessidades, nem poderia ser
de outra forma. Cabe ao legislador cautela e firmeza. A sua função, afinal, é
manter o equilíbrio sobre as ações da sociedade e determinar as corretas decisões.
Inexplicáveis, todavia, são as facções de princípio, fenômeno apenas moderno
segundo Hume, pois não é um fato concreto o que divide seus partidários, mas
uma abstração. Na diferença de princípio as opiniões nem sempre se manifestam
em ações. se alocam, por exemplo, as diferenças de religião. Mas nenhuma
religião é sem líderes, o que leva a Hume a fazer uma correção: “Essas divisões”,
a menção é à cristandade, cujas guerras de religião tiveram forte impacto na
Europa, “podem ser, em relação ao povo, consideradas facções de princípio; mas,
quanto aos sacerdotes, que são os seus principais instigadores, são na verdade
facções de interesse”. As facções de afeição se assemelham às pessoais, mas com
um desnível. Não é a família ou o grupo próximo a quem se apega, mas à
soberania, a quem se deseja que lhe governe, que lhe mande. São facções
subservientes a um símbolo, como uma carismática. Por isso mesmo são
freqüentemente violentas
66
.
63
Idem, p.155
64
No tocante às noções de seita, facção e partido, ao menos no ensaio Dos Partidos em Geral, p.
157, Hume não faz distinção alguma entre elas, apenas nas suas características que, mesmo assim,
se entrelaçam: “devo reconhecer que raramente se encontra um partido puro e sem mistura”.
65
Idem, pp. 157-159
66
Ibidem. Ensaio Dos Partidos em Geral, pp. 155-166
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32
Mas as facções, os partidos são naturais
67
, os homens se inclinam a eles, e
se o hábito favorece o aperfeiçoamento da sociedade civil, também consolida os
grupos. É forçoso, por isso, reconhecê-los, mas com o olhar filosófico da
moderação. É esse olhar que os princípios desses partidos na Grã-Bretanha,
mesmo compreendendo que ambos, a Corte e o Campo, “constituem uma espécie
de partidos mistos, influenciados ao mesmo tempo pelo princípio e pelo
interesse
68
”. Hume contestará, então, os dois princípios importantes desses
partidos/facções ingleses. No primeiro, do partido da autoridade, prega-se uma
obediência passiva, isto é, não caso em que o governo possa ser enfrentado e
destituído, a autoridade do rei deve ser assimilada pelos súditos em qualquer
circunstância. Embora em épocas de paz e ordem isso seja preferível, diz-nos
Hume, a função do governante é a da distribuição da justiça, ele age para a
utilidade pública, segue a legislação, jamais podeser como Nero ou Filipe II, a
questão é apenas saber qual “o grau de necessidade capaz de justificar a
resistência [a um governo], tornando-a legítima e recomendável”, o que logo é
indicado: apenas “em casos extraordinários”, pois a insurreição traz consigo os
“malefícios da guerra civil”, e “o surgimento, em qualquer povo, de uma
inclinação para a rebeldia
69
torna os dirigentes mais tirânicos. um limite
para a autoridade, mas isso é excepcional, pois a recorrência à violência é normal
ao povo, o dever principal é o da obediência, portanto. A exceção é ao capricho
desmedido do poder:
(...) sua administração [do Estado] deve ser calculada para um prazo muito maior
do que a vida de um indivíduo, ou mesmo de uma família, ele [o governante, o
legislador] deve adotar máximas amplas, duráveis e generosas, de acordo com a
suposta extensão de sua existência
70
.
Quanto ao outro partido, que apregoava a liberdade fundamental, e, por
conseguinte, o direito à resistência, o escocês perfaz o caminho da constituição da
sociedade. Tal medida é necessária já que se vê diante do argumento de um
“contrato original”: o povo é que consente ao governante governar, tem o direito
de resistir se lhe aprouver. Mas esse estado de coisas para Hume pode ser
imaginário: “É obvio que nenhum pacto ou acordo de submissão geral foi
67
Ibidem, p.156
68
Ibidem, p. 168
69
Ibidem. Ensaio Da Obediência Passiva, pp. 691-696
70
Ibidem, p.523
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33
celebrado, pois isso estaria muito além da compreensão de selvagens”. A
sociedade nasceu imperfeita, não contrato original. E da mesma forma nenhum
outro contrato de tal espécie poderia ser celebrado no presente - é a força do
hábito o que se esquece aqui: “Em toda parte encontramos também súditos que
reconhecem esse direito [o da soberania] de seu príncipe, considerando que
nasceram submetidos à obrigação de obediência e respeito a seus pais. Essas
relações são sempre concebidas de forma independente de nosso
consentimento(...)
71
”. A história serve, então, para demonstrar a natureza dessa
imperfeição: é Átalo, rei de Pérgamo, que mata (ou deserda) seus filhos para dar a
coroa a seu sobrinho
72
, são os atenienses, cuja “ampla democracia” excluía
mulheres, escravos e estrangeiros na votação de leis, isto é, mais de 90% da
população
73
- todos os governos são fundados na usurpação e na conquista, o
princípio mais provável é na guerra. Tudo leva, na sucessão, na mudança de
governo, a marca da força e da violência, é isso o que a experiência diz, o que a
história mostra, “Onde estão o comum acordo, a associação voluntária de que
tanto se fala
74
?” Porque nenhuma mudança é feita em torno de um contrato, cada
sucessão tem como único significado o soterramento do suposto “enlace” original,
da sua validade e autoridade
75
que, mesmo assim, era bastante excludente. Daí o
oposto da idéia do contrato não ser a tirania (representada por uma excessiva
autoridade real), mas o progresso, a própria história:
É necessário introduzir inovações em todas as instituições humanas, e são felizes
aqueles casos em que o gênio esclarecido da época as orienta no sentido da razão,
da liberdade e da justiça. Mas a nenhum indivíduo é lícito realizar inovações
violentas: estas são perigosas mesmo quando são feitas pelo legislativo(...)
76
.
A moderação pressupõe a possibilidade de acordo, não sem que antes se
evidencie a maneira pela qual este deve ser conduzido. Mesmo que a contenda
assuma ares partidários, ela é subsidiada pela argumentação, mesmo por detrás do
facciosismo há uma lógica, não vemos Hume, então, fazer outra coisa senão
contrapor a essa lógica o crivo da experiência. Estabelecer uma lúcida relação
entre o passado e o presente, retornar às origens e ponderar sobre o
desenvolvimento é, muito ao contrário de uma visão negativa da história, uma
71
Ibidem, pp. 661-669
72
Ibidem, p. 583
73
Ibidem, pp. 670-671
74
Ibidem, p. 669
75
Ibidem, p. 668
76
Ibidem, p. 676
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percepção dos limites que constituem o homem e a sociedade e uma proposição
para a possibilidade de seu conhecimento e permanência. Desta maneira, se um
argumento é revestido de ardor fanático por um grupo, facção ou partido, interessa
saber até que ponto sua validade é uma distorção da experiência (isto é, também
da história) e até que ponto, igualmente, ela importa na constituição da sociedade
civil. Voltemos às liberdades fundamentais, contrárias ao poder monárquico:
(...) os direitos da humanidade devem ser considerados eternamente sagrados,
nenhuma decisão de uma tirania ou de um poder arbitrário pode ter autoridade
suficiente para aboli-los. A liberdade é uma benção tão inestimável que, sempre
que surgir qualquer possibilidade de recuperá-la, a nação não deve temer
enfrentar grandes riscos, nem se lamentar diante de um derramamento de sangue
ou de uma dilapidação do tesouro.
Porém,
(...) a única regra de governo que os homens conhecem e reconhecem são o
costume e a prática. Como guia, a razão é tão incerta que sempre estará sujeita a
dúvidas e controvérsias. Se, em alguma ocasião, ela prevalecesse entre o povo, os
homens a tomariam certamente como regra de conduta; ainda assim continuariam
num estado de natureza isolado e primitivo, sem se submeter ao governo civil,
cujas únicas bases são a autoridade e o precedente, e não a pura razão. Romper
esses laços seria desfazer todos os vínculos da sociedade civil, deixando a todos a
liberdade de seguir seus interesses particulares, por meio dos expedientes ditados
pelo apetite, ainda que disfarçado sob a aparência da razão. O próprio espírito de
renovação é em si pernicioso, por mais positiva que possa parecer a sua
finalidade particular, em alguns momentos; (...)
77
.
A idéia de liberdade pelo hipotético contrato original (e o direito à
resistência) ou pela noção de um passado mais igualitário (restabelecimento de
uma antiga constituição), embora louvável é incoerente, pois não observa que “A
verdadeira regra de governo é a prática estabelecida em cada época
78
”, e que em
qualquer época mais recuada não encontraremos proposições contemporâneas,
mas uma outra história, com outras práticas, um outro esquema, embora o homem
tenha sido sempre o mesmo segundo sua natureza
79
. De maneira correlata, não
pode haver tão somente uma obediência passiva, que “O exemplo de todas as
77
Ibidem, pp. 698-700. Ver também HUME, David. Uma Investigação Sobre os Princípios da
Moral. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. Campinas, São Paulo: Editora da
UNICAMP, 1995, p. 65
78
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 704
79
HAAKONSSEN, Knud. Hume’s Obligations. In TWEYMAN, Stanley (editor). David Hume
Critical Assessments. Volume V. London and New York: Routledge, 1995, p. 572: “[there is a]
Hume’s view that the natural principles in the human mind have conventional expressions, and
that these can vary from time to time, and place from place. In this way it becomes possible for
him to reconcile the idea of a basically uniform human nature with the facts of historical and
geographical differences”.
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nações vizinhas demonstra que já não é seguro confiar à coroa as mesmas
prerrogativas que ela exercera anteriormente, em épocas mais rudes e simples
80
”.
Qualquer posicionamento deve, portanto, estar inserido nesta preocupação
maior que é a de uma coerência tanto histórica quanto das inclinações da natureza
humana, tanto da legislação e violência dos primeiros governos quanto da
necessidade humana de se acomodar em grupos ou de se fixar a uma idéia à
revelia de sua correspondência histórica. Sendo a história de Hume nos Ensaios a
história inglesa contemporânea focada na política, segue-se que sua argumentação
retornará freqüentemente aos problemas dos partidos. Falando sobre um trabalho
subseqüente do escocês, a História da Inglaterra, David Wootton aponta no
filósofo um traço importante:
(...) Hume’s claims to impartiality are (…) misleading unless one notes that
Hume claims to support Whigs and Tories [os partidos ingleses] alternately: in
other words, he is always partial, even if he is not always on the same side. (…).
There is nothing arbitrary about this changing of sides: in Hume’s view, it was a
characteristic of English history that the “disinterested” (that is to say, the
impartial) “fluctuated between the factions (…)”. The history was written from
the point of view of such disinterested individuals, whose concern was with the
public good
81
.
Tendo tal característica em mente, podemos destacar em Hume duas
preocupações recorrentes nos Ensaios: a inovação violenta no governo e o excesso
de liberdade. No ensaio Da Liberdade de Imprensa, após analisar brevemente a
relação entre autoridade e liberdade em governos monárquicos e republicanos,
Hume diz que na Inglaterra, onde um governo misto, existe “um temor e uma
desconfiança recíprocos”, que só não leva a uma tirania (já que é em parte
monárquico) porque “predomina a parte republicana do governo”. Sendo a
desconfiança inerente aos governos mistos, a manutenção do caso inglês se
pelo expediente de “leis gerais e inflexíveis”, e pela extinção de “todos os poderes
discricionários”. Assim, “nenhum homem pode ser acusado de um crime sem que
se apresente aos juízes uma prova legal”, e, da mesma forma, os juízes devem
manter “uma vigilância intensa sobre os abusos e as arbitrariedades dos
ministros”. O perigo de um desequilíbrio de forças políticas é o que pontua essa
problemática relação. A liberdade responde ao anseio de uma eterna supervisão,
mas o temor de que uma parte extrapole suas prerrogativas esconde um perigo
80
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 699
81
WOOTTON, David. David Hume, “the historian”. In NORTON, David Fate (editor). The
Cambridge Companion to Hume. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 301
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mais difícil de discernir: “Freqüentemente, o entusiasmo do povo precisa ser
instigado, para que sejam refreadas as ambições da Corte; e o medo de que esse
entusiasmo seja instigado precisa ser usado para prevenir essas ambições”. Isso
justifica a imprensa livre, é do interesse da parte predominante do governo, a
republicana. Não obstante, e como que para apenas sinalizar o perigo, Hume
conclui: “Deve-se, contudo, admitir, embora seja difícil, talvez impossível, propor
um remédio adequado para a liberdade de imprensa ilimitada”, por ser um mal do
governo misto, e talvez, até mesmo, uma licenciosidade
82
.
Todo governo é fundado sobre a opinião. Por uma questão numérica, a
força está sempre do lado dos governados. É verdade que a antiguidade “sempre
origina a opinião
83
”, que o tempo é uma importante baliza de um governo. Isso
não significa, porém, que a opinião não venha a se transformar:
Ora, houve uma mudança sensível e repentina na opinião dos homens nos últimos
50 anos, graças ao progresso da educação e da liberdade. A maioria das pessoas,
nesta ilha, se libertou de qualquer reverência supersticiosa por nomes e pela
autoridade (...). A mera palavra rei impõe pouco respeito; e falar de um rei como
vigário de Deus na terra ou dar-lhe qualquer daqueles títulos magníficos que
antigamente deslumbravam os homens provocaria apenas o riso de todos. (...) o
menor choque ou convulsão basta para fazer em pedaços (...) o poder real,
deixando de ser sustentado pelos princípios e opiniões dos homens, (...) [sendo]
imediatamente dissolvido
84
.
Tal seria o grau de impacto de uma liberdade excessiva. Posto que uma
relação entre uma idéia republicana, a liberdade e o progresso
85
, por que a
moderação de Hume o inclina a rejeitar tal solução para seu tempo e país? Em
primeiro lugar, porque Não está em questão uma bela república imaginária, cujo
plano um homem possa traçar de seu gabinete
86
”. Em segundo, porque Hume
sabe, de antemão, que as mudanças em política podem ser imprevisíveis
87
, e para
pior. Embora sua argumentação se paute predominantemente em exemplos
específicos à Inglaterra - como no caso de Cromwell, que derrotou a coroa e
82
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Ed. cit. Ensaio Da Liberdade de
Imprensa, pp. 101-105
83
Idem, p. 129
84
Ibidem, pp. 151-152
85
Ibidem, p. 231: “Mesmo que uma república seja bárbara, ela inevitavelmente chegará à LEI (...).
Da lei vem a segurança, da segurança a curiosidade, e da curiosidade o conhecimento. Os últimos
degraus dessa evolução podem ser acidentais; os primeiros, porém, são necessários”.
86
Ibidem, pp. 152-153
87
Ibidem, p. 197: “Importantes revoluções têm acontecido nos assuntos humanos, e tantos
acontecimentos contrariaram as expectativas dos antigos que eles bastam para que se permita
esperar que ocorram ainda mais mudanças”.
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governou quase como um tirano - para afirmar que o fim da monarquia não
significará a instituição de um governo livre (quem quer que derrube e reduza em
pedaços a constituição mista “será um monarca absoluto”; como houve um
exemplo desse tipo, sabemos que “uma pessoa assim jamais renunciará ao seu
poder, nem tampouco instituirá um governo livre
88
”), é possível perceber um
ponto mais profundo que este - tão localizado à experiência britânica - em sua
argumentação moderada. Trata-se de um problema mais geral, relacionado à
constituição de um sistema de governo, de sua forma, amplitude e alterações.
Quando Hume se detém sobre a possibilidade da inovação, no caso inglês,
sua conclusão é a de que prefere um monarca absoluto à inovação de um governo
popular, embora ame a liberdade
89
. Como notamos acima, a história recente
inglesa o inclinava a ver, em tal inovação, uma mera substituição de um monarca
por outro. E até mesmo a possibilidade de constantes guerras civis
90
. A ênfase de
Hume se dá nas inovações violentas. Tais mudanças apenas são aceitáveis quando
“a aplicação da justiça”, por parte do governante “implicar conseqüências
altamente perniciosas [à população], [então] essa virtude deve ser suspensa e
substituída pela utilidade pública, nos casos de emergência extraordinária e
urgente”, naqueles em que o povo “se encontra sob risco iminente de se tornar
vítima da violência e da tirania
91
”. Existem outras revoluções, de caráter gradual,
que são lentas e significam mudanças que estão de acordo com o curso natural das
coisas. Não há violência, nem imposição desmedida:
Os soberanos devem aceitar a humanidade tal como a encontram, e não podem
querer impor qualquer mudança violenta em seus princípios e modos de pensar.
Um longo período de tempo, com uma variedade de acidentes e circunstâncias, é
um requisito para produzir aquelas grandes revoluções que alteram tão
profundamente a face dos assuntos humanos. E, quanto menos natural for um
conjunto de princípios que sustenta uma sociedade particular, mais dificuldade
terá o legislador para administrá-la. A sua melhor política é ceder à inclinação
geral da humanidade e lhe oferecer todas as melhorias, se ela for suscetível.
Vemos em Hume que existem melhorias universais, “a indústria, as
atividades econômicas e o comércio aumentam o poder do soberano, bem como a
felicidade dos súditos”. Mas elas podem, ao mesmo tempo, estar em perigosa
contraposição ao desenvolvimento próprio de um Estado, de um país. Trata-se, e
88
Ibidem, p. 153
89
Ibidem, pp. 152-153
90
Ibidem, p. 154
91
Ibidem, pp. 692-693
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isto é o essencial, não de um antagonismo, mas do gesto que estabelece a
inovação: “uma política violenta pode fortalecer a esfera pública em detrimento da
riqueza dos indivíduos
92
”. O aprimoramento se faz pela força do curso natural das
coisas, ele é genérico, entram os acidentes, as circunstâncias, mas não o puro
individual. Das inovações violentas deste “pode-se sempre esperar (...) mais mal
do que bem”. Henrique VIII é um exemplo: sua inovação, a ponto de romper com
o Papa e reformar a Igreja da Inglaterra, foi produto de “um monarca despótico”,
suas reformas “foram fonte de diversas desordens e perigos”. “Tiveram bons
resultados”, ajuíza o escocês, mas eram contrárias ao curso natural das coisas;
derivaram do puro interesse do soberano, o que, segundo a experiência nos
mostra, é freqüentemente nocivo. E se não o foi, é porque “a história oferece
exemplos do contrário, ainda assim estes não podem ser considerados precedentes
válidos”, provam apenas que “na ciência política, existem poucas regras que não
admitem exceções ou que não possam eventualmente ser modificadas pelo
acaso
93
”.
Ora, o curso natural das coisas, as “revoluçõesgraduais estão na regra da
natureza da sociedade civil. As inovações que estabelecem a melhor autoridade
possível são aquelas feitas “no sentido da razão, da liberdade e da justiça”, e isso
o vimos. E aqui pode ser observada uma crítica fundamental de Hume à sua
época. Ela visa, antes de tudo, dissociar as crenças sociais daquelas que são
essencialmente partidárias. A autoridade distingue-se de qualquer princípio
abstrato, pois se funda no hábito, na experiência, no tempo. Desta maneira, quem
articula um “contrato” ou uma “passividade” como base política nada mais faz
que repercutir falsas crenças. Não é o caso de desacreditá-las integralmente, mas
de fazer uma correção, o que é aceitável pela observação (que inclui a natureza
humana como foco privilegiado) e por uma conjectura baseada na experiência
(que inclui a história como o local de observação das transformações sociais). Tal
correção é necessária justamente porque a manifestação de tais expressões, de tais
crenças, encontra-se não na orla da constituição de uma sociedade como a inglesa,
mas em seu interior. É notória a insatisfação de Hume quanto à religião, neste
sentido; ele até pensa que “a religião se justifica, mas em sua situação muito
92
Ibidem, pp. 407-408 (grifo meu)
93
Ibidem, p. 676
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especial, fora da cultura, fora do conhecimento verdadeiro
94
”. Da mesma forma, a
liberdade é plena quando se faz acompanhar da felicidade social: é apenas
possível através da justiça
95
. Retomamos então essa discussão acerca da obrigação
do legislador, a distribuição da justiça - mas acrescentando que a regra política é a
regra de um tempo; então, se existe (e, principalmente, se se conhece) tal coisa
como o progresso ideal, o que refrearia sua aplicação imediata? o vimos em
parte: não se trata de imaginar o virtual, a especulação não pode ser exterior à
experiência. Em conjectura, podemos igualar a humanidade, compactá-la no bloco
de uma natureza humano-social e relatar sua diacronia provável; mas os Ensaios
mostram que não basta se deter nisto. A história contemporânea à luz da filosofia
política parece demonstrar que deve haver um ponto de partida histórico-social. É
a história inglesa articulada a uma série de abstrações, mas com um propósito que
é o de reafirmá-la.
É nesta situação que percebemos o que Hume pontua como constituição
original do governo. A constituição mista inglesa gerava desconfianças recíprocas
entre as partes do governo e entre o povo. O mal do facciosismo está aí, no
antagonismo desmedido, na crença sem fundação, na negativa à experiência, na
idealização histórica. Esse é o tema de boa parte dos Ensaios, a correção
necessária que a filosofia política elabora para sua audiência. Pois esse
facciosismo, esse excesso de liberdade estaria em vias de desarticular não somente
a presente situação do governo, mas a possibilidade de um governo sem guerras
civis. Isso se explicaria, segundo Pocock, porque “Hume concebia a história como
o trabalho de forças passionais convertidas em racionalidade por uma rie de
agentes, dentre os quais o principal era o governo”. Essa percepção do
desenvolvimento social afastava, duplamente, a crença em qualquer partidarismo
e a de uma revolução abrupta em política. Primeiramente, segue Pocock, porque
tais forças passionais tinham a primazia em relação a uma “prudência racional ou
à cultura legislativa”, e a experiência e os costumes poderiam fazer o governo
existir e mantê-lo existindo”. É o que Hume quer dizer quando afirma que o
governante deve “ceder à inclinação geral da humanidade e lhe oferecer todas as
94
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Op. Cit. p.81
95
HUME, David. Uma Investigação Sobre os Princípios da Moral. Op. Cit. p.42: “Poucos
prazeres nos são dados pela mão aberta e liberal da natureza, mas pela técnica, trabalho e
diligência podemos extraí-los em grande abundância. Daqui as idéias de propriedade tornam-se
necessárias em toda a sociedade civil; daqui a justiça deriva sua utilidade para o público”.
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40
melhorias, se ela for suscetível”. Em segundo lugar, porque “Hume não
acreditava na racionalidade original” de uma constituição antiga, arcaica. Ao
contrário, ele preferia “ver o governo como um fenômeno moderno e observá-lo
retroativamente no tempo, quando teria sido menos coerente do que agora
96
”: não
havia nada parecido com um retorno ao período ideal.
Mas, ao mesmo tempo, podemos chegar a alguma conclusão se
observarmos o que Hume diz a respeito do período em que havia “menor
coerência” na sociedade civil governada. Para isso devemos ir ao seu ensaio Dos
Primeiros Princípios de Governo. Lá, ele afirma que “Um governo pode durar
muitas eras, embora a balança do poder e a balança da propriedade nem sempre
coincidam”. A estabilidade de um regime absoluto é possível. Pois uma coisa é a
aquisição da propriedade, outra a fundação do poder. Vemos aqui porque a
ascendência dada ao legislador se sobrepõe a qualquer outra instância social para
a determinação do verdadeiro legado de um governo. Constituir o poder é
distribuir a justiça de alguma forma, uma espécie de “ordem” é necessária para
que a sociedade civil exista. “Mas onde a constituição original permite qualquer
partilha de poder, mesmo que pequena, com uma classe que possua grandes
propriedades, é fácil para eles reforçar gradualmente a sua autoridade, fazendo
com que a balança do poder coincida com a balança da propriedade”: tem sido
assim na Inglaterra, conclui
97
. Essa delicada balança perpassaria, então, a história
inglesa, talvez um tanto rude em seus primórdios, sem dúvida mais coerente
agora. O escocês entende, por isso, que da conturbada origem da sociedade, que
da precária distribuição da justiça antiga, além da tirania observada em seu
desenvolvimento, há na Inglaterra essa liberdade, que deve ser salvaguardada
ciosamente
98
. Mas não se trata de apoiar a liberdade em si. Antes, o que a
sustenta. Daí ser possível dizer que “Procuremos estimar e aprimorar na medida
do possível o nosso antigo governo, sem encorajar uma paixão por essas
novidades [como a de uma república pura na Inglaterra] perigosas
99
”. Ou de
reafirmar o valor da constituição no caso da patronagem de Walpole:
A coroa tem tantos cargos à sua disposição que, quando ela é apoiada pela parte
honesta e desinteressada da Câmara, sempre poderá orientar as decisões do todo,
pelo menos num grau suficiente para preservar a antiga constituição de qualquer
96
POCOCK, J. G. A Linguagens do ideário político. Op. Cit. pp. 178-179
97
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p.132 (grifo nosso)
98
Idem, p. 140
99
Ibidem, p. 134
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41
perigo. Podemos, portanto, dar a essa influência o nome que nos aprouver;
podemos chamá-la pelos nomes insidiosos de corrupção e dependência; mas um
certo grau e uma certa espécie dessa influência são inseparáveis da própria
natureza da constituição; e necessários à preservação de nosso governo misto
100
.
É o valor da constituição que Hume determina como guia à moderação
num estado onde a liberdade é possível. Pode ser uma atitude não muito cômoda
estar sempre a defender uma causa aqui e outra ali. É necessária, porém, que
prescreve a livre vontade. Mas ao mesmo tempo não é puramente conservativa,
visto que para sua filosofia política as inovações devem acontecer na sociedade
civil. A moderação, neste sentido, refreia uma idéia falsamente deliberada
devolvendo ao hábito e ao costume o valor duma identidade. A associação entre
liberdade e república pura gerava entre os partidários na Inglaterra uma ânsia que
nada tinha de histórica, mas que é da natureza humana. Ser gradativo, possuir
alguma forma de controle sobre essa natureza, não é outra coisa a que Hume
chama de delicadeza de paixão
101
, por exemplo. Da mesma maneira, ser
moderado é estar ao largo dos partidos e aprimorar-se pelo conhecimento, o que
significa uma postura algo filosófica de respeito a um desenvolvimento social que
é possível numa larga duração. Diante dos conflitos de seu tempo Hume diz “É
bem sabido que todo governo tem que acabar um dia, e que a morte é inevitável
para a política da mesma forma que é para o corpo animal”. Mais adiante, ele
conclui: “(...) se existem motivos para termos desconfiança em relação à
monarquia, por aparentemente representar o perigo maior, temos também motivos
para desconfiar do governo popular, pois este representa um perigo ainda mais
terrível. Isso pode nos dar uma lição de moderação em todas as nossas
controvérsias políticas
102
”. vimos, anteriormente, que Hume preferiria um
regime absoluto. Acreditamos ser possível perceber, agora, que não era totalmente
conservadora essa sua eleição, que para o autor dos Ensaios preservar uma
constituição não era preservar um regime específico assim como apelar pela
liberdade não significava tê-la em mãos de qualquer maneira. Atuando na brecha
entre uma suposta oposição de um devir arbitrário e um guiado pela força da
divindade, encontra-se a alternativa de um devir que vai de uma incoerência a
100
Ibidem, pp. 144-145
101
Ibidem. Ensaio Da Delicadeza do Gosto e da Paixão, pp. 95-100
102
Ibidem, p. 152 e p. 154
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42
uma possível congruência, uma história que lentamente sedimentou o que em
aparência é natural – a filosofia de Hume nos diz: falsamente natural.
Ainda assim - que o conhecimento leve à moderação, e que da moderação
se chegue aos termos necessários à felicidade social - podemos perceber no
escocês que esse é um projeto que reconhecia a precariedade de sua
manutenção, mesmo acreditando na possibilidade de sua existência:
Não se pode afirmar em que medida o entusiasmo e outros movimentos do
espírito humano podem levar os homens a negligenciar a ordem e o bem público.
Mesmo que as diferenças de interesse sejam eliminadas, o favor e a inimizade
pessoais podem fazer surgir facções caprichosas e incontáveis. A ferrugem pode
aparecer nas engrenagens mesmo da mais aperfeiçoada máquina política,
comprometendo seu funcionamento. (...), ainda assim as repúblicas, como os
indivíduos, têm suas ambições, e os interesses imediatos muitas vezes fazem os
homens esquecerem a posteridade. A meta de fazer um governo assim florescer
durante muitas gerações é um incentivo suficiente para o empenho dos homens.
Isso sem pretender atribuir a qualquer obra humana aquela imortalidade que o
Todo-Poderoso parece ter recusado às suas próprias criações
103
.
É assim que termina seu ensaio Idéia de uma República Perfeita, onde tece
um modelo de governo representativo, tentando evitar toda idealização subjacente
a projetos semelhantes em prol de uma realização pensada no interior de um limite
conjuntural. Por isso mesmo não o inevitável, ou a idéia de um recurso último;
antes, a consistência de um modelo progressivo. Nenhuma linha invisível
determina, ou poderá determinar, o destino das sociedades: a república perfeita de
Hume é repleta de interdições; aproxima-se, em sendo assim, do retrato de um
instante do aprimoramento, e, ainda mais, da idéia da dependência da vontade de
homens esclarecidos para a sobrevivência da própria trajetória social
104
. Como
escreve Pocock, acerca, entre outras coisas, do desalento de Hume com o
facciosismo de seu tempo: “Há, (...), poucas razões para se acreditar que os
sentimentos do filósofo estivessem mais moderados nos últimos meses de sua
vida
105
”.
103
Ibidem, p.742
104
FORBES, Duncan. Hume’s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 319
105
POCOCK, J. G. A Linguagens do ideário político. Op. Cit. pp. 169-170
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4
Hume e a Europa
4.1
A força das leis
No ensaio Da Liberdade Civil Hume pondera sobre a eficácia de uma
ciência para a política. Em sua opinião, “o mundo é jovem demais para que se
possa formular em política um grande número de verdades gerais, que
permanecerão verdadeiras até a mais remota posteridade”. Maquiavel, por
exemplo, é criticado em seu O Príncipe porque viveu “numa época remota demais
do mundo para que fosse um bom juiz da verdade política”. Se há uma lição que a
ciência política pode adiantar é que a posteridade freqüentemente rejeita
verdades gerais. Face à possibilidade de que tudo possa vir a mudar, Hume
declara que pretende “realizar neste ensaio uma comparação exaustiva entre a
liberdade civil e o governo absoluto, mostrando as grandes vantagens que a
primeira oferece em relação ao segundo (...) (grifo meu)”. Quais o essas
vantagens? O saber, as artes, o comércio. A experiência grega e romana mostrou
que o ápice do saber e das artes foram frutos de governos livres. A experiência
moderna, o escocês diz, mostra que “em todos os casos (...) o comércio se
encontra nos governos livres”. O que pensar, porém, da Roma e Florença
modernas, onde as artes e as ciências se desenvolveram em plena tirania e
usurpação da liberdade? E, principalmente, o caso da França, “que raras vezes
gozou de uma liberdade duradoura e no entanto levou as artes e as ciências a uma
perfeição nunca ultrapassada pelas outras nações”? Eis uma mudança decisiva que
Hume credita, ao menos em parte, ao aprimoramento político:
“(...) devo observar que todos os tipos de governo, livre ou absoluto, parecem ter
sofrido uma grande mudança para melhor, nos tempos modernos, em relação
tanto à administração doméstica quanto à das questões externas. A balança do
poder é um segredo em política, que na época atual passou a ser plenamente
reconhecido; e devo acrescentar que a polícia interna dos Estados também passou
por grandes aprimoramentos ao longo do último século”.
E dela surge a categoria que é a mostra desse avanço: a monarquia
civilizada, onde “a propriedade está em ordem, a indústria é fomentada, as artes
florescem”. Isso é possível de constatar, pois na Europa mesmo os monarcas
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modernos não foram tão maus quanto “Tibério, Calígula, Nero ou Domiciano
106
”.
Mas o que o escocês salienta é uma força que age como solo das decisões, uma
marca que é, na prática, apenas elidida pela barbárie:
Mas, embora a lei, fonte de segurança e felicidade, desponte tarde em todos os
regimes, e seja o resultado lento da ordem e da liberdade, não é preservada com a
mesma dificuldade com que surge. Quando ela deita raízes, é uma planta rígida,
que dificilmente perecerá na cultura doente dos homens ou pelo rigor das
estações.(...) aquilo que é útil para os mortais comuns, uma vez descoberto,
dificilmente passa ao esquecimento, a não ser pela total subversão social ou
invasões bárbaras, capazes de obliterar todos os vestígios da civilização e das
principais artes
107
.
As monarquias civilizadas se tornaram governos leis, não de homens
108
.
Não obstante, apesar de tal garantia, qualquer monarquia, ainda que civilizada,
será inferior em comparação a uma república. É verdade que na primeira os
ministros e os magistrados são regidos por leis gerais e inflexíveis
109
, mas nada há
que limite o príncipe. Ele e a lei ainda se confundem, embora tal sensação seja
minimizada
110
. Pelo fato do progresso a lei se tornou mais extensiva, mas o passo
determinante, em tais monarquias, para que haja aprimoramento, é revestido do
caráter particular. É a França - cujo abuso dos impostos não está em seu peso, mas
em seu modelo arbitrário que depende de “um príncipe ou ministro
suficientemente dotado de discernimento para saber reconhecer seus interesses e
os da nação e com suficiente força de vontade para romper com os antigos hábitos
(...)
111
”. Ora, vê-se que inferioridades e incertezas, mas onde a força da lei vai
se enraizando tais diferenças se mostram menos cristalizadas. O que Hume
procura entender é como uma desigualdade clássica rompeu o véu da pura
dicotomia e se tornou de tão difícil explicação pelos modelos mais esquemáticos;
ou melhor, de como o problema do desenvolvimento das ciências e das artes,
inclua-se o refinamento, que é um problema da civilização ocidental,
desembocou numa igualdade (senão igualdade, ao menos aproximação) na qual os
países e seus sistemas de governo já não podem mais ser pensados por uma
correspondência clássica, mas talvez como que “refletidos”. A força das leis e do
106
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. Ensaio Da Liberdade Civil, pp.
195-206
107
Idem, p. 239
108
Ibidem, pp. 203-204
109
Talvez aqui Hume enxergue as monarquias civilizadas de maneira mais próxima ao governo
misto inglês. Para isso, ver o ensaio Da Liberdade de Imprensa, p. 104
110
Ibidem, p. 240
111
Ibidem, pp. 204-205
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45
progresso formaria um eixo de comparação. Se a república é ainda um modelo de
perfeição, para a história contemporânea a Hume ela não se mostra mais como o
único exemplo de aprimoramento.
Podemos encontrar nos Ensaios uma dupla abordagem da política na
Europa. De um lado, e sobressaindo, vemos o escocês se debruçar sobre os
problemas ingleses, sua constituição mista, o facciosismo, a questão Walpole. De
outro, e servindo às vezes de contraponto, os avanços nas monarquias ocidentais,
a realidade da monarquia civilizada, o desenvolvimento das ciências e das artes.
Essa não é uma divisão inteiramente consciente de Hume, ao menos no esquema
proposto dos Ensaios, que neles tais temas se encontram, com exceções,
“entrecruzados”. Ele fala da Inglaterra e da França simultaneamente, confronta,
também, a história antiga a essas realidades, enfim, ele não separa para analisar: à
medida que o tema pede, ele aponta, compara, iguala ou diferencia as formas de
governo que conhece
112
. É com base nesse expediente que vemo-lo afirmar que
nos governos monárquicos há “uma fonte de aprimoramento e nos governos
populares uma fonte de degeneração que, com o passar do tempo, levarão essas
duas espécies de política civil ainda mais perto da igualdade”. A França, por
exemplo, poderia vir a ser rival no comércio com a Inglaterra. Pesava-lhe, como já
foi dito, a arbitrariedade dos impostos, havendo, todavia, remédio para tal. O
maior estorvo para esses dois tipos de governo residia, contudo, na questão dívida
pública, cujos beneficiários eram os financistas, “uma raça de homens odiada”.
Num governo monárquico ao menos a dívida não pesaria diretamente sobre o
povo, já que o rei pode “abrir falência quando lhe aprouver”. Num governo
popular a dívida é pública em todos os sentidos, os credores pertencem ao povo e
a falência do governo é a ruína do trabalho em geral. O crédito público sem
limitações é enganoso e fatal para a “república” inglesa, pois gera a multiplicação
dos impostos, levando a um estado tal de coisas que seria preferível a servidão à
liberdade sem o controle dos gastos
113
. Hume enxergava nessa aproximação
provável (entre as monarquias e repúblicas) um evento negativo: a liberdade era
112
FORBES, Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. p. 86: “No doubt the
European civilized monarchies were inferior in political civilization, but there was no qualitative
difference between the two types of government”. Ver também POCOCK, J. G. A. Barbarism and
Religion. Volume. II. Op. Cit. p. 188: “(…) [for Hume] republic and absolute monarchy were less
antithetical than complementary; so that the history of Europe and the theory of politics were alike
in entailing the study of both.”
113
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. pp. 201-206
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46
superior como forma de governo. O que de um lado se relacionava a um
aprimoramento possível às monarquias civilizadas correspondia a uma
degeneração quase que irremediável nos governos livres, especialmente na
Inglaterra. Se Hume via, embora com restrições
114
, o desenvolvimento da
civilização ocidental não se limitar ao governo livre, sabia que onde ele poderia
ser “perfeito” (e nesse sentido ele trata principalmente da Inglaterra) havia tantos
ou mais percalços quanto em um Estado de servidão. Duncan Forbes declara que
o autor dos Ensaios tinha plena crença no índice de civilização superior dos
governos modernos no tocante à liberdade
115
, e que uma de suas maiores
contribuições à ciência política foi a de combater os preconceitos entre uma forma
de governo e outra, mais precisamente os preconceitos ingleses em relação a
outros países “não aliados
116
”, tornando possível assim uma ciência política
comparada
117
. Era necessário, para tanto, analisar a história contemporânea
inglesa e a situação geral da Europa, e a partir daí delinear não uma percepção
interna (onde sobressai a moderação) como também uma compreensão da
realidade política exterior, ultrapassando quaisquer conotações “fixas”.
presente um forte sentido de “estratégia” externa, que caminha lado a lado à
análise de outros sistemas de governo. A unidade que o escocês percebe calca-se
no verificado desenvolvimento da civilização ocidental. que esse
desenvolvimento é problemático, por ser instável. Outro tema recorrente nos
Ensaios será o da coligação entre as nações européias, não desejável, mas de
grande importância para a manutenção desse progresso.
4.2
Crítica ao passado e o desenvolvimento do presente
Porém, antes disso, faz-se necessário notar aqui que Hume empreende pelo
menos duas críticas severas aos governos da antiguidade clássica. A primeira faz
parte de um debate acerca da superioridade populacional destes em relação à
situação presente, o que era identificado como algo positivo, que “onde quer
114
Idem, p. 202: “(...) o comércio, na minha opinião, poderá declinar nos governos absolutos, mas
não porque é menos seguro, e sim porque é menos honroso.
115
Ibidem, p. 101: “Nada surpreende mais um estrangeiro que a extrema liberdade, de que
desfrutamos neste país [Inglaterra], de comunicar o que quisermos ao público, e de criticar
abertamente qualquer medida decretada pelo rei ou por seus ministros”. Ver também FORBES,
Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. p. 88
116
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. pp. 507-509
117
FORBES, Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. pp. 91-92
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47
que existam uma felicidade e uma virtude maiores, além de instituições mais
consolidadas, também haverá uma maior população
118
”. Ora, diz Hume, quando
se favorece a antiguidade nesta discussão esquece-se de ler seus textos
apropriadamente, já que evidenciam o justo contrário: a escravidão, as guerras
perpétuas, indústria e comércio rudimentares, a extensão demasiada dos territórios
pela conquista. Tudo isso engendra a infelicidade (pela condição anti-social da
escravidão), a imprevisibilidade da qualidade de vida, a destruição desmedida nos
conflitos, os cios e desordens em sociedades hipertrofiadas. A segunda crítica
está relacionada à balança de poder. É complementar à primeira, pois o que fica
explicitado nela é a inconsistência dos governos antigos, a imprudência de suas
medidas em relação às nações vizinhas, a contradição entre governar e o
sempiterno estado de beligerância. A balança de poder, fenômeno moderno
119
,
evidencia o reconhecimento da autonomia dos países, a prudência necessária à
política para escapar ao estado de guerra permanente. Essas duas críticas
procuram não apenas contrastar o passado e o presente. Em primeiro lugar,
podemos dizer que elas fazem parte de um método comparativo: “Em geral,
podemos observar que a questão relativa à comparação entre populações de
diferentes épocas ou reinos implica conseqüências sérias e normalmente leva a
conclusões importantes sobre a sua política, seus costumes e a constituição de seu
governo
120
”. Em segundo, que tal método pretende satisfazer uma exigência de
ação. A dedicação de Hume à historiografia antiga, em vez de afastá-la da
realidade do presente, aproxima-a o tanto quanto é possível uma aproximação.
Cremos que isso não significava para o escocês que havia lições no passado
capazes de satisfazer a circunstâncias do presente; ao contrário, percebe-se, ainda
que de maneira latente, o fosso entre o desenvolvimento civilizador e uma certa
“juventude” do mundo antigo
121
. Há os que argumentarão sobre a uniformidade da
natureza humana e o caráter algo conservador da filosofia política do autor dos
Ensaios. Contudo, não pode se pode negligenciar a importância de uma noção
118
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 563
119
Idem, p. 503 e p. 507: “(...) parecemos [os ingleses] estar mais dotados do espírito de
emulação dos antigos gregos do que influenciados pelas visões prudentes da política moderna”.
120
Ibidem, p. 561
121
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. London, New York, Melbourne: Cambridge
University Press, 1979, p. 161: “(…) to talk of French ‘slavery’ [por ser uma monarquia, e não
uma república] was political rant: for one thing, it obscured the vast superiority of a modern
civilized monarchy to even the republics of antiquity”.
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48
como a de monarquia civilizada; ou a necessidade do intercâmbio mais fluente
entre os países civilizados. Sobre este último ponto, novamente Duncan Forbes:
It may seem to be rather stretching a point to talk of a science of comparative
politics in Hume. But it is not so much the weight of the contents that matters.
Hume’s essays (…) are packed with thought, but he does not get down to the
detail of the laws and institutions of the republics and civilized monarchies of
Europe, and so far as the latter are concerned, it seems to be France that he has in
his sights most of the time. What matters is not the deployment of information,
but the breaking down of the insular prejudices that made a comparative science
of politics impossible. This allowed Hume to balance the pros and cons of the
free and absolute governments of his day in a manner that, however rudimentary,
is that of comparative politics, and to grasp the central feature of the modern state
in the broadest possible perspective
122
.
Qual seria, então, a dificuldade em se perceber essa relação mais
abrangente e necessária entre as nações? Uma parte da solução está contida nas
duas críticas acima: não podemos governar como governavam os antigos e
tampouco pensar em governo na forma singular como eles o imaginaram. A outra
se encontra sintetizada no Tratado da Natureza Humana:
(...) embora o intercâmbio entre diferentes Estados seja vantajoso, e às vezes até
necessário, não é tão necessário nem tão vantajoso quanto o intercâmbio entre os
indivíduos, sem o qual é inteiramente impossível à natureza humana subsistir.
Portanto, como a obrigação natural à justiça entre diferentes Estados não é tão
forte quanto a existente entre indivíduos, a obrigação moral, dela decorrente,
deve partilhar de sua fraqueza; e devemos necessariamente ser mais indulgentes
com um príncipe ou com um ministro que engana um outro do que com um
cavalheiro que quebra sua palavra de honra.
Falta, à moral do príncipe (isto é, no que concerne também a moral e
relação entre Estados), a vivacidade que possui entre os indivíduos no interior
duma sociedade
123
. Sob o rigor da natureza humana, inclinamo-nos a negligenciar
com mais freqüência as relações que de imediato não nos tocam
124
. A partir deste
ponto de vista, torna-se possível argumentar que para Hume a ciência política
possui essa função de corrigir pela reflexão uma tendência que é de todos os
homens e tempos
125
. Mais importante, porém, é o tipo de correção a que se
122
FORBES, Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. p. 92
123
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Débora Danowski. São Paulo:
Editora da UNESP, 2002, Livro III, Parte II, Seção XII, pp. 607-608
124
HUME, David. Uma Investigação Sobre os Princípios da Moral. Op. Cit. p.97: “(…) e a
simpatia para com pessoas distantes de nós [é] muito mais tênue do que aquela por pessoas que
nos são próximas e imediatas”.
125
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Op. Cit. p.48: “A verdadeira moral (…), não
consiste em mudar a natureza humana, mas em inventar condições artificiais objetivas tais que os
maus aspectos dessa natureza não possam triunfar. Para Hume, assim como para todo o século
XVIII essa invenção será política, somente política.”
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propõe. Hume não suspende o atual estado de coisas; nem busca tão somente uma
sabedoria contida na história. Ele é o que Forbes chama de “forward-looking”:
alguém que percebe o quanto determinadas mudanças políticas e sociais de seu
tempo não são exclusivamente produtos de incoerências dos homens (ou de sua
história), mas fenômenos que, enquanto tais, devem ser analisados, julgados e
classificados no sentido de oferecer uma atualizada explicação dos fatos
humanos: sua crítica a Maquiavel, no ensaio Da Liberdade Civil, é a
demonstração disso
126
.
Visto que uma de suas maiores preocupações centrava-se na perda da
legalidade representada pelo faccionismo, e que sua percepção da possibilidade
revolucionária era cercada de reservas, seu reconhecimento da fundamentação do
governo pela duração e aprimoramento legislativo (não ruptura) indica que
espécie de filtro” poderia ser consignado a fim de propor um avanço social, uma
abertura: a economia. É através dela que a comunidade de nações,
dessemelhantes no que cinge a forma de governar, porém aproximadas por um
progresso que é, em seu todo, passível de notação, formaria esse conjunto
permeável a trocas, influências e, sem dúvida em Hume, prenhe de
desenvolvimento. Ele até pensa que a China poderia ser, na sua específica
monarquia pura, “a melhor de todas as formas de governo, por proporcionar tanto
a tranqüilidade em relação ao exercício do poder real quanto a moderação e a
liberdade nas assembléias populares
127
”. Mas o caso apresenta-se exclusivo, e
seus resultados tão lentos (o progresso das ciências é o exemplo dado), que
impedem maiores traços comparativos à Europa, seu objeto de reflexão
preferencial.
Podemos encontrar parte da idéia dessa coligação nas três primeiras
observações que Hume faz em seu importante ensaio Da Origem e do Progresso
das Artes e das Ciências, a saber:
Primeira Observação: É impossível para as artes e as ciências surgirem,
inicialmente, num povo, se este não viver a benção de um governo livre;
Segunda Observação: Que nada é mais favorável ao surgimento da
educação e da instrução que a vizinhança de estados independentes ligados pelo
comércio e pela política;
126
FORBES, Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. p. 89
127
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 236
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50
Terceira Observação: Que, embora a única Estufa natural dessas plantas
(as artes e ciências) nobres seja um estado livre, mesmo assim elas podem ser
transplantadas para qualquer governo; e que uma república é mais favorável ao
crescimento das ciências, e uma monarquia civilizada ao progresso das artes
128
.
A primeira observação está ancorada na idéia de que o saber, para os
homens em sociedade, “é um requisito para instruí-los sobre as vantagens
decorrentes de uma política melhor e de uma autoridade mais moderada
129
”, ou
seja, não pode nascer no despotismo, é até refratário a ele, tal nos diz a
experiência - apesar das reservas- dos gregos, dos romanos. A terceira observação
relaciona-se a dois fatores: a possibilidade da lei estável numa monarquia
civilizada, o que permitiria a “transplantação” e o desenvolvimento autônomo das
artes e ciências, e, em segundo lugar, que a própria experiência confirma, o
desenvolvimento mesmo sob a tirania e a usurpação da liberdade. Mas esta última
divisão não chega a ser inflexível para o escocês. Nos dois ensaios em que trata
mais da relação entre governo e saber (neste e no Da Liberdade Civil) ele chega à
seguinte conclusão: na monarquia (civilizada ou não) o refinamento é o que
prepondera, favorecendo as belas-artes
130
; some-se a isso que “todos os tipos de
governo, livre ou absoluto, parecem ter sofrido uma grande mudança para melhor,
nos tempos modernos (...)
131
; ademais e isso Hume levanta como hipótese a ser
julgada pela posteridade uma fonte de aprimoramento nos governos
monárquicos
132
. Em suma, o autor dos Ensaios está escrevendo sobre uma Europa
moderna e progressiva não importa o sistema de governo, tornando possível,
assim, a “transplantação” das ciências e das artes.
Por fim (e a que mais nos interessa aqui), a segunda observação. O maior
benefício que a conjuntura nela descrita pode proporcionar é o da constante
emulação, que impediria um país “de aceitar muito apressadamente o modelo do
outro nas questões das artes e do saber”. O fato é que Hume enxergava no
consenso integral o estágio logo anterior à opressão (o descomedimento da
soberania), sendo aquele inclusive seu modus operandi fundamental,
freqüentemente por meio da força. Em sua percepção isso ganhava o contorno de
128
Idem, pp.228-238
129
Ibidem, p. 231
130
Ibidem, p. 241
131
Ibidem, p. 202
132
Ibidem, p. 204
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51
um retrocesso: quando a igreja romana cristã impôs a filosofia peripatética como
“única a ser admitida em todas as escolas”, houve uma “depravação de todo tipo
de instrução”; com o tempo, porém, a “humanidade rejeitou essa afronta”, e por
isso, “a Europa é, no presente, uma cópia ampliada do que a Grécia foi no
passado”, tanto no conteúdo do saber quanto na força de seus debates
133
. Todavia,
tal “cópia” passa, além de uma determinada tradição na maneira de pensar, por
uma questão geográfica. Hume, que poucas vezes utiliza o expediente geográfico
como força explicativa
134
o faz aqui sob uma condição especial. Não é o clima,
não são os acidentes topográficos em si, a proximidade ou distância de rios e
mares, é a divisão. É uma geografia associada, antes de tudo, à política, e,
principalmente, à emulação, à diferença:
Se considerarmos a face do globo, a Europa, de todas as quatro partes do mundo,
é a mais dividida por mares, rios e montanhas; e a Grécia o mais dividido entre
todos os países da Europa. Assim, essas regiões se dividiam naturalmente em
diversos governos distintos. E, dessa forma, as ciências surgiram na Grécia, e a
Europa vem sendo desde então a sua pátria mais constante
135
.
A distinção dos governos torna-se mais importante, por exemplo, que o
juízo de uma unidade ideal
136
. A diferença entre os países, relacionada ao
progresso dos modos de governar na Europa, funciona como possibilidade de
abertura ao debate, à discussão. Importante, em nosso argumento geral no sentido
de uma filosofia política, é a concepção da relação entre os países em um nível
institucional, o que, por sua vez, torna relativa qualquer afinidade prioritária
advinda de uma sucessão dinástica, assim como favorece o acordo em questões
delicadas, como o fato da guerra
137
. Nesse aspecto, o escocês possuía uma
compreensão em aparência contraditória à sua predisposição em aceitar
preferencialmente a continuidade em detrimento do ímpeto por mudanças. Desta
133
Ibidem, pp. 234-235
134
SABINE, George H. Hume’s Contribution to the Historical Method. In DUNN, John,
HARRIS, Ian (editores). HUME. Volume I. Cheltenham, Lyme: Edward Elgar, 1997, p. 8: “ (...), a
similarity of character is always correlated with direct communication and opportunity for
imitation than with similarity of physical conditions”.
135
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 237
136
POCOCK, J. G. A. Barbarism and Religion. Volume. II. Op. Cit. pp. 189-190
137
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. pp. 507-508: “Nossas guerras
com a França foram iniciadas com justiça, e até mesmo, talvez, com necessidade; mas elas sempre
foram longe demais em decorrência de nossa obstinação e paixão. (...). Observamos aqui que mais
da metade de nossas guerras com a França, e todas as nossas dívidas públicas, se devem mais à
nossa própria perseverança imprudente do que à ambição de nossos vizinhos”.
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52
maneira vemos, no parágrafo logo após a supracitada passagem, a possível
contradição e sua justificativa:
Algumas vezes estive inclinado a pensar que interrupções ocorridas em certos
períodos culturais, desde que não se façam acompanhar pela destruição de livros
antigos e registros históricos, poderiam ser favoráveis às artes e às ciências, por
quebrarem o avanço da autoridade e destronarem os usurpadores tirânicos da
razão humana. Neste particular, elas têm a mesma influência que as interrupções
nos governos políticos das sociedades
138
.
Cumpre salientar, neste momento, que com essas três observações Hume
está fundamentando, por uma provável origem e pela experiência, o
desenvolvimento proporcionado pelo saber nos diferentes sistemas de governo
europeus. A primeira e segunda observações dizem respeito ao surgimento, seja
do saber e de suas conseqüências - a educação e instrução - de um fenômeno
central à civilização, e a terceira relata a adequação do saber (artes e ciências) na
política moderna - as ciências nas repúblicas, as artes nas monarquias. Deixemos
esta última distinção de lado, por enquanto. Importa-nos mais o esquema proposto
na segunda observação: o da vizinhança de estados independentes ligados pelo
comércio e pela política. Embora neste tópico Hume inicie sua explanação em
termos mais abstratos (acerca da extensão de um domínio e suas conseqüências), e
depois ilustre isso com a história antiga, podemos interpretá-lo como não somente
indicando um surgimento provável, uma “estufa natural”, mas um modo de
organização desejável para a presente época. Deliberadamente ele inclui o
exemplo da filosofia cartesiana e da teoria newtoniana: ambas foram mais
duramente contestadas não por franceses e ingleses, respectivamente, mas, num
contexto de emulação, por estrangeiros
139
. Assim, a possível ligação entre estados
independentes pode ser relacionada a dois fatores: a transição de algumas
140
monarquias para uma forma civilizada (sobressaindo a lei
141
), e o
desenvolvimento do saber, que sob a salvaguarda da estabilidade legal, leva ao
aprimoramento cultural, e aqui é onde Hume faz sua distinção entre a qualidade
das artes e das ciências. Nada tem de acidental a geografia neste esquema, mas ela
seria de todo insuficiente sem o progresso proporcionado pela lei geral. O saber
138
Idem, p. 237 (grifo nosso)
139
Ibidem, p. 235
140
É importante salientar, mesmo tardiamente, que quando Hume pensa em monarquias
civilizadas, está se referindo, especialmente, à França. Ver FORBES, Duncan. Hume and the
Scottish Enlightenment. Op. Cit. p. 91.
141
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 239
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53
leva à emulação, mas esta subsiste onde a lei preferência à liberdade ante a
autoridade despótica; estancado o debate, o saber fenece. Tendo diante de si,
portanto, um quadro de repúblicas e monarquias civilizadas, Hume pode
desdobrar as manifestações do saber de acordo com tais sistemas e a natureza
humana: a utilidade requerida na república fortalece o gênio da ciência; a
necessidade de agradar, e até mesmo uma certa feminilidade
142
, nas monarquias,
condiz ao virtuose das belas-artes
143
. Tal distinção vai ao encontro da idéia de que
as formas de governo possuem a primazia na influência dos costumes
144
. Uma
aristocracia (uma monarquia) instila a polidez que se traduz em refinamento. Já na
Inglaterra, A elegância e a propriedade do estilo têm sido por demais
negligenciadas (...). A primeira prosa culta que tivemos foi escrita por um homem
que ainda está vivo
145
”.
4.3
A relação entre os estados e o comércio
A idéia de que o progresso era discernível por manifestações como as
ciências e as artes não excluía a constatação de que tal fato era dependente de
transformações políticas e econômicas cujos rumos ainda se encontravam
incertos, e que pouca claridade havia sido dada aos princípios ou mecanismos de
sua composição, necessária que era para a ação do presente, no sentido de mantê-
lo e de possibilitar às futuras gerações um legado. Neste aspecto, Hume procurará
vincular sua percepção das monarquias civilizadas à do intercâmbio entre as
nações, de modo que a partir de uma constatação fosse possível definir não a
natureza desse progresso, mas também a forma de sua continuidade. Vimos que
sua crítica a Maquiavel relacionava-se não às novas disposições dos governos
modernos como também à ausência do comércio como questão de estado; de
maneira semelhante, sua crítica à falta de uma balança de poder na antiguidade
estende-se ao provincianismo muita vez praticado na Inglaterra em relação a
outros países. Por fim e sem esgotar o tema, seu tour de force no ensaio Da
142
Idem, p. 236
143
Ibidem, pp. 240-241
144
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 226: In Hume’s science of
politics, political institutions and forms of government were crucial ‘moral causes’ and
determining agents”. Ver também POCOCK, J. G. A. Barbarism and Religion. Volume. II. Op.
Cit. pp. 188-189
145
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 200. Hume refere-se a
Jonathan Swift.
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54
População das Nações Antigas representa a desmistificação de uma vã glória num
passado que é em muito distante da dinâmica do presente. Pois ao presente Hume
associa o desenvolvimento institucional subjacente ao progresso. Assim, a política
pode ser reduzida a uma ciência porque
Tão grande é a força das leis, e de determinadas formas de governo, e tão pouco
dependentes elas são dos humores e dos temperamentos dos homens, que se
podem às vezes deduzir delas conseqüências quase tão certas e gerais quanto
aquelas das ciências matemáticas
146
.
Mas em se tratando da relação entre os países a dificuldade logo se
apresenta sob a forma de “acidentes e acasos, (...) dos caprichos de umas poucas
pessoas
147
”. O que está em jogo na história moderna é a concepção de um Estado
cada vez mais atrelado às suas responsabilidades institucionais, de modo que uma
decisão aparentemente desconectada do particular incide, por sua vez, numa regra
ao Estado intrínseca, apropriadamente despersonalizada:
Para a maioria das pessoas, todo julgamento ou conclusão é particular. (...). O seu
olhar se confunde ante uma perspectiva muito extensa; e as conclusões que dela
derivam, mesmo quando são expressadas com clareza, parecem intrincadas e
obscuras. Porém, por mais intrincadas que possam parecer, é certo que os
princípios gerais, se forem justos e sólidos, devem prevalecer no curso geral das
coisas, embora possam falhar em determinados casos particulares; (...) Posso
acrescentar que essa também é a questão principal dos políticos
148
.
Para este Estado, pensado institucional, a exceção, a falta particular ou o
vício compreendem antes parcelas estagiárias que elementos fundamentais e
estáveis de repetição. Eis onde se formula com mais insistência a centralidade do
hábito. Que estes aspectos negativos retornem e se façam presentes em todas as
épocas e situações, em lugar algum é indicado por Hume que eles estejam no
mesmo movimento que demarca a civilização moderna da sua antecessora. Nos
ensaios ditos econômicos o escocês se preocupa insistentemente com o comércio.
Os juros, a importação, exportação, a manufatura são todos indicados mormente à
sua luz. Para nosso objetivo interessa o argumento central relacionado a tal prática
e suas implicações no que diz respeito à idéia política encontrada aqui. O
comércio, assim, se destaca em sua função no Estado: “A grandeza de um
Estado e a felicidade de seus súditos, por mais independentes que sejam em
146
Idem, p. 109. Ver também FORBES, Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit.
p. 89
147
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 401
148
Idem, p. 400
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55
alguns aspectos, costumam ser indissociáveis do comércio
149
”. Encontramos toda
uma rede que leva da terra à manufatura, do trabalho ao prazer, da acumulação
monetária à necessidade de sua fluência entre Estados: são todas essas interações
somente possíveis por meio do comércio. O indivíduo preguiçoso tornar-se-á um
motivado, o Estado restrito perece ante a fraqueza da subsistência
150
. Quando a
acumulação de capital faz-se associada, neste momento, à restrição das
possibilidades que não se encontram de imediato visíveis, o filósofo, o moderador,
intervém, para designar neste caso a função não só do Estado, mas dos homens em
geral.
Uma das questões que Hume levanta e talvez seja esta a questão
principal aqui – é a de que há uma interdependência necessária entre os Estados. E
que tal fato não é só percepção histórica, mas também enseja um projeto político.
O comércio exterior eleva o estoque de trabalho da nação, que por sua vez pode
ser convertido para o bem público. Contudo, esta não é uma questão de
quantidades, mas sim do subjacente a elas: “(...) os homens e os produtos são a
força real de qualquer comunidade. É o simples modo de vida que afeta a esfera
pública (...)
151
”. Para o indivíduo, a vida simples pode até ser desejável; todavia,
nenhum Estado funcionaria se assim o fosse. O escocês se pergunta, então “‘Qual
dos modos de vida do povo, o simples ou o refinado, é o mais vantajoso para o
Estado e o bem público?’”, para logo responder “Eu preferiria o último (...), ao
menos em relação à política; e consideraria isso como uma razão adicional para o
estímulo ao comércio e às manufaturas
152
”. Tal interdependência é a base do
desenvolvimento das nações, o progresso é um evento que extrapola a história de
uma única comunidade:
Se consultarmos a história, observaremos que, na maioria das nações, o comércio
exterior antecedeu o desenvolvimento das manufaturas domésticas e deu origem
aos luxos locais. (...). Assim os homens se familiarizaram com os prazeres do
luxo e com os lucros do comércio; e a sua sensibilidade e diligência, uma vez
despertadas, os levam a novos aprimoramentos, em todos os ramos do comércio,
tanto o doméstico quanto o exterior
153
.
149
Ibidem, p. 401
150
Ibidem, p. 410: “Num Estado sem manufatura (...). Todo o trabalho é voltado somente para a
satisfação das necessidades básicas, gerando pouco ou nenhum excedente”.
151
Ibidem, p. 450
152
Ibidem, p. 449
153
Ibidem, p. 412
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56
Isso vale especialmente para a Inglaterra, em sua conturbada e obtusa
relação com a França, cujos ciúme e ódio ilimitados eram francamente
prejudiciais à primeira, não à segunda
154
. Todos esses preconceitos resultam, ao
fim, numa “apatia” do Estado, numa ignorância do progresso em política
155
.
dois séculos atrás, o escocês prossegue, a agricultura e as manufaturas da ilha
eram “toscas”, “imperfeitas”: “Cada melhoria que fizemos desde aquela época
surgiu da nossa imitação dos estrangeiros”. E, “apesar do estado avançado das
nossas manufaturas, nós ainda adotamos, cotidianamente, em todas as atividades,
as invenções e melhorias de nossos vizinhos
156
”. A relação comercial incide nas
relações pessoais, pois, ao contrário dos financistas, os comerciantes são “uma das
raças mais úteis de homens, que servem de agentes entre aquelas partes do Estado
que estão totalmente isoladas e ignoram as necessidades umas das outras
157
”. O
comércio, neste sentido, aproxima-se da função da lei, que é a de estabelecer
contato, por meio de um único interesse que é o do Estado, entre suas partes
constituintes, formando uma integração que, embora artificial, condiz com a
natureza das relações sociais humanas, neste caso uma ampliação delas
158
.
A consulta à história convém também para corroborar a tese de que o
intercâmbio entre Estados não apenas favoreceu o surgimento do saber, mas que o
modo de civilização é fundamentalmente precário e, de maneira formidável, ele se
inscreve na Inglaterra na medida em que está inscrito nas suas adjacências:
(...) o crescimento das riquezas e do comércio em qualquer outra nação, em vez
de prejudicar, geralmente estimula as riquezas e o comércio de todos os seus
vizinhos; e que um Estado dificilmente consegue levar muito longe sua indústria
e comércio quando todos os estados vizinhos estão atolados na ignorância, na
preguiça e na barbárie.
Se os Estados vizinhos “não nos tivessem instruído originalmente,
continuaríamos sendo bárbaros no presente”; caso tal instrução não fosse um
processo contínuo, “nossas atividades cairiam num estado de marasmo e
154
Ibidem, p. 478
155
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 173: “(…) any one trying to
demonstrate the truth of the Englishman’s belief in the superiority of his free government will ‘in
all probability’ be refuted by the continued progress of civilization in general and the ‘civilized
monarchies’ in particular”.
156
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 494
157
Idem, p. 459
158
Ibidem, p. 495: “A natureza, ao conceder uma diversidade de temperamentos, climas e solos às
diferentes nações, assegurou o intercurso e o comércio mútuos, desde que todos se mostrem
trabalhadores e civilizados”.
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57
perderiam o caráter de competição e novidade, que tanto contribui para o
progresso
159
”. Esse tipo de relação, fundada no comércio, dá ao Estado um
aspecto mais aproximado ao da gerência, isto é, toda linguagem, todo acordo
tende a situações nas quais ele é pensado para o público em detrimento dos
particulares. Tal condição se encontrava justificada no caso da lei, cujo anverso
permanecia na exceção dos soberanos. No que tange o comércio, encontramos o
monopólio da riqueza como uma contradição no Estado
160
. Para Hume, a maneira
pela qual se poderá contornar esta “disfunção” será a de considerar as relações
comerciais num espectro mais generalizado, ampliando o potencial do trabalho – e
seus ganhos - na medida em que o aprimora, abrindo para a economia novas
possibilidades: “Mas vou mais longe, ao observar que, quando se preserva uma
comunicação aberta entre as nações, é impossível que a indústria doméstica de
cada uma não receba um estímulo do desenvolvimento das outras
161
”.
4.4
O trabalho no mundo comercial e a coincidência dos interesses
O trabalho em Hume está longe de ser uma condição natural, porém. É o
ócio que prevalece ante o engenho. Não que o trabalho esteja, contudo, em
desacordo com a natureza humana, pois as condições externas ao homem o
impelem à ação e a utilidade do trabalho torna a vida sem ele opressiva
162
. O
trabalho, portanto, deve sua aceitação pelos homens na medida da sua utilidade, e
toda a dificuldade em contornar o ócio natural está justamente na sua
exterioridade, pois encontramo-lo associado, especialmente, ao hábito. Como o
hábito está nos modos e não nos genes, para uma família ou uma nação de
trabalhadores, será o exemplo do trabalho que possibilitará o aperfeiçoamento
contínuo, o “espírito de trabalho” será o progresso de uma nação: “Se o espírito de
trabalho for preservado, ele pode ser facilmente desviado de um ramo [de
produção] para outro
163
”. Ora, compreendido como a força de Estado o emprego a
ser dado ao trabalho será o comércio. Ultrapassando a situação de subsistência,
159
Ibidem, pp. 494-495
160
Ibidem, p. 414: “Acrescente-se que, quando as riquezas estão concentradas em poucas mãos,
estas devem usufruir todo o poder, e assim tenderão a conspirar para que toda a carga tributária
recaia sobre os mais pobres, o que irá oprimi-los ainda mais (...)”.
161
Ibidem, p. 494
162
Ibidem, p. 460
163
Ibidem, p. 496
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encontraremos na manufatura um desenvolvimento dificilmente constatável por
meio somente da agricultura. Pois a primeira é o resultado de uma técnica,
enquanto a última gera, com mais naturalidade, a indolência
164
. A manufatura
inclina-se para a diversidade; assim, qualquer aproximação a uma produtividade
apenas básica deverá ser rechaçada como estanque: “E qualquer povo será mais
feliz se possuir uma variedade de manufaturas do que se possuir uma única grande
manufatura, que dê emprego a todos”. É a sua intrínseca relação com o comércio a
justificativa, porque “A sua situação é assim menos precária e eles [os
trabalhadores] sentirão menos intensamente quaisquer mudanças e incertezas, às
quais todo ramo particular de comércio sempre estará exposto
165
”.
O trabalho encontra no comércio uma função mais elaborada para o
desenvolvimento não do Estado, mas também dos indivíduos
166
, o que de
pronto já o credencia a uma expansão, que Hume visa explicitar através da
interdependência entre os Estados. Quanto maior a necessidade inscrita nessa
trajetória, mais a alavanca do progresso moverá a população adiante. Do mais
baixo ao mais elevado grau, os indivíduos são todos atingidos pelo refinamento
subseqüente a essa evolução:
Outra vantagem da diligência e dos refinamentos nas artes mecânicas é que eles
geralmente produzem refinamentos também nas artes liberais: uma não pode ser
levada à perfeição sem estar acompanhada pela outra. A mesma época que produz
grandes filósofos e políticos, renomados generais e poetas, normalmente também
é fértil em hábeis tecelões e construtores de navios. (...). O espírito da época afeta
todas as artes; e as mentes dos homens, uma vez afastadas de sua letargia e postas
em fermentação, voltam-se para todos os lados, aprimorando todas as artes e
ciências. A ignorância profunda é totalmente eliminada e os homens gozam
aquele privilégio das criaturas racionais, de unir o pensamento à ação, de cultivar
os prazeres do espírito bem como aqueles do corpo
167
.
O comércio exterior encontra-se, assim, justificado. Hume constantemente
enumera sua maleabilidade, as diversas possibilidades dele resultantes, sua
congruência com a natureza humana, a felicidade dos líderes e do povo unidas por
uma coincidência cujo poder de expansão era como que ilimitado. De fato, ao
priorizar o comércio, o escocês estabelece uma justa contraposição entre os
poderes de poucos e a possibilidade de satisfação da maioria, como os fabricantes
164
Ibidem, pp. 408-409
165
Ibidem, pp. 496-497
166
Ibidem, p. 460: “O comércio estimula o trabalho, contagiando cada membro do Estado e não
deixando ninguém sucumbir ou tornar-se um inútil”.
167
Ibidem, p. 422. Ver também p. 412
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59
domésticos
168
. A multiplicidade dos afazeres se apresentava como uma condição
em sincronia à multiplicidade dos ganhos: uma divisão levaria necessariamente a
outra. O hábito do trabalho multiplicado pela expansão comercial levaria à
felicidade social e à potência do Estado. Não é outra coisa, portanto, a que Hume
aspira:
Uma desproporção muito grande entre os cidadãos enfraquece qualquer Estado.
Se fosse possível, toda pessoa deveria usufruir dos frutos de seu trabalho, com a
satisfação plena de todas as suas necessidades e de muitas conveniências da vida.
Ninguém pode duvidar de que semelhante igualdade é adequada à natureza
humana, e que ela acrescenta muito mais à felicidade dos pobres do que subtrai
da dos ricos. Ela também aumenta o poder do Estado, fazendo com que qualquer
imposto ou taxa extraordinários sejam pagos de bom grado. (...), quando a riqueza
se distribui entre a multidão, a carga fica mais leve sobre todos os ombros, e os
impostos não representam uma mudança significativa no estilo de vida de
qualquer um
169
.
Não obstante, a profundidade dessa coincidência entre a parte da
população mais necessitada de recursos e a outra que, naquele dado momento,
detinha o que se convencionou chamar de capital, acabou por se apresentar mais
frágil do que Hume supunha. Na sua concepção de Estado, Hume diz que tanto
governo quanto justiça estão atrelados a uma imagem de controle. Sem dúvida,
não há governo sem quem o principie, o líder em uma guerra provavelmente, nem
sem quem o determine na sua figura máxima (as leis), como o legislador. Nem há,
de fato, continuidade da sociedade civil sem um soberano e os magistrados. Eis a
característica que é o fulcro das monarquias civilizadas, a lei. Mas a lei e o
governo são fixados e representados por agentes institucionais inerentes a tais
composições, o que quase não se percebe quando se freqüenta a imagem
econômica do escocês. Encontramos, é verdade, um papel do Estado, mas um
papel de manutenção das condições de existência do comércio, não da forma de
sua distribuição:
Mas pode-se alegar que existem exemplos freqüentes de Estados e reinos que
foram, no passado, ricos e opulentos, e são hoje pobres e indigentes. O dinheiro
que abundava nesses países não os abandonou? Respondo que, se eles perderam
168
Ibidem, pp. 412-413: O comércio com os estrangeiros, “ao proporcionar à parcela mais
opulenta da população artigos de luxo, com os quais ela nunca tinha sonhado, desperta nela o
desejo de um estilo de vida mais esplêndido do que aquele desfrutado por seus ancestrais. E, ao
mesmo tempo, os poucos mercadores que detêm o segredo da importação e da exportação obtêm
lucros enormes; e, tornando-se rivais em riqueza da antiga nobreza, produzem em outros
aventureiros a tentação de se tornarem seus rivais no comércio. A imitação logo propaga todas
essas atividades”.
169
Ibidem, pp. 413-414
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60
seu comércio, sua indústria e mesmo sua população, não podiam esperar
conservar seu ouro e prata.
A existência da população e da indústria mantém o contínuo fluxo de
dinheiro, que por sua vez “acompanhará com segurança os negócios humanos, se
não houver medo nem insegurança” do Estado e dos investidores
170
. A questão
toda está, portanto, em determinadas qualidades apresentadas pelos agentes
produtores e pelos do comércio, mantidos pela figura do Estado. De acordo com
esta visão, a livre iniciativa estabelece um potencial de competitividade a todos
acessível, inscrito na voracidade da paixão humana e conformada ao hábito; daí
ser lógica a idéia de que todo esforço é seguido por uma compensação equivalente
(se não, aproximada a isso). Como Deleuze aponta, numa comparação entre a
raridade de bens imóveis (quando o Estado determina um fim simultaneamente à
manutenção dos meios) e a “motivação qualitativa” do comércio, “Hume conclui
que, em uma sociedade, a harmonia quantitativa das atividades econômicas”, isto
é, a distribuição das riquezas num Estado comercial, “se estabelece
mecanicamente, contrariamente ao que se passa na propriedade”, que, dada sua
limitação em relação a quem reclama posse, “invoca um legislador e um Estado”.
Não há dúvidas de que este tem um papel mais alargado em toda a ciência política
de Hume, o que não impediu, todavia, que a previsão do escocês esbarrasse num
problema ainda a ser resolvido não na Inglaterra de seu tempo, mas em toda a
Europa:
Sem vida, continuará sendo o caráter de uma época, às vésperas do
desenvolvimento do capitalismo, não ter visto, de ter por somente vezes
pressentido que o interesse dos proprietários fundiários, dos capitalistas e
sobretudo dos trabalhadores não era um só e mesmo interesse
171
.
170
Ibidem, pp. 490-492
171
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Op. Cit. p.51. Ver também FORBES, Duncan.
Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 321: “Hume’s philosophical science does not know
class-interest, apparently, or the social and economic aspect of parties”.
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5
Hume e História
5.1
O tratamento dos fatos históricos
Em seu ensaio Da Origem e do Progresso das Artes e das Ciências Hume
propõe uma metodologia para a análise histórica. O exame historiográfico nele
contido, em seu sentido mais estrito, está condensado nas ginas iniciais, que
logo dão lugar a quatro observações de cunho generalizante. Três delas foram
descritas aqui, no quarto capítulo, e a última o será em breve. Em uma das poucas
análises que se pode encontrar especificamente voltadas para os Ensaios, Pocock
diz que naquele ensaio a tentativa mais complexa de reflexão epistemológica
acerca do conhecimento histórico feita pelo escocês. Ao contrário do que se
poderia concluir à primeira vista, tal exame “is not to be foundem seu ensaio
intitulado Do Estudo da História
172
, assim como o conceito da uniformidade da
natureza humana, tal como é sistematicamente empregado por Hume, não se
explica somente pela famosa (e muito utilizada) passagem da sua Investigação
Acerca do Entendimento Humano
173
. Essa metodologia histórica compreendia
uma técnica clara e deliberada de estabelecer uma hierarquia do tratamento dos
fatos sociais a fim de obter uma base que tornasse possível, no seu caso, fazer
generalizações.
O escocês inicia seu argumento apontando a influência da causalidade nos
“assuntos humanos” em geral, distinguindo o que deve ser atribuído ao acaso e o
“que resulta de causas”. A história, ele prossegue, não teria razão de ser se todo e
qualquer evento derivasse exclusivamente do acaso; é apenas em aparência que os
fatos não se relacionam entre si: a conexão entre um efeito e sua causa é mais fácil
de inferir do que de perceber
174
. A inferência, que é dada logo a seguir, aparece
sob a forma de uma regra geral: O que depende de poucas pessoas deve, em
grande medida, ser atribuído ao acaso ou a causas secretas e desconhecidas. O
172
POCOCK, J. G. A. Barbarism and Religion. Volume II. Op. Cit. p. 183. O capítulo deste livro
de Pocock (afinal sobre Edward Gibbon) intitula-se “The Essays as contemporary history”.
173
HUME, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Tradução de Anoar Aiex. São
Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1999, p. 91. Ver, especialmente, FORBES, Duncan. Hume´s
Philosophical Politics. Op. Cit. pp. 109-121. Ver também DEES, Richard H. Hume and the
Contexts of Politics. In DUNN, John, HARRIS, Ian (editores). HUME. Volume II, p. 494
174
POCOCK, J. G. A. Barbarism and Religion. Volume II. Op. Cit. p. 183. Hume expõe
semelhante idéia em seu ensaio Do Comércio, p. 400
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62
que depende de um grande número, em geral, provém de causas determinadas e
conhecidas
175
”. Hume parte do pressuposto de que as pessoas, ordinariamente, são
afetadas por “paixões e interesses universais”. Mesmo um sentimento como a
“avareza ou o amor ao ganho” resulta, em sua performance social, numa rede,
numa integração, não numa peculiaridade; trata-se, pois, de um movimento
conjunto que impulsiona a trajetória das sociedades para uma determinada direção
(Hume usa a imagem de uma balança) que pode ser explicada pela causalidade.
Onde predomina um verificado interesse geral, onde uma inclinação prepondera,
uma causa por detrás, ocorrerá um efeito apurável: “quando algumas causas
promovem uma paixão ou inclinação particular, num certo período e em meio a
um povo determinado, (...), a multidão será certamente levada pelo sentimento
comum, que a governará em todas as suas ações”.
Com o acaso ocorre o oposto. As paixões universais dão lugar à
“teimosia”, à “loucura”, ao “capricho”. Hume oferece pelo menos dois exemplos
relacionados entre si. No primeiro, vemos sua posição negativa acerca de
sociedades onde o Estado é governado, preponderantemente, por indivíduos
(monarcas, príncipes etc.) que pautam decisões gerais de acordo com suas
personalidades, inescrutáveis a qualquer metodologia histórica. A força do
acidental é grande aqui e para o escocês a mera troca desses indivíduos inverteria
inteiramente a história das nações que comandam. No segundo exemplo ele trata
daqueles indivíduos que, em meio à multidão, resistem “ao contágio” do
sentimento comum – podem ser os gênios, artistas, pensadores. Estes são afetados
não apenas pelas causas (e, por conseguinte, pelas paixões) gerais, comumente
“de natureza mais rude e obstinada”. Escapam ao domínio delas por serem, em
excesso, “delicados e refinados”; “o menor acidente na saúde, na educação ou na
fortuna de um indivíduo basta para alterar o seu curso e adiar a sua ação”.
Influenciam-nos causas ou paixões que, embora presentes em um determinado
período, não se disseminam; como conseqüência, não afetam a totalidade,
esquivam-se da causalidade definida pela regra geral, em resumo, são causas cujo
impacto é biográfico. Por isso mesmo, “A sua influência num determinado
período jamais assegura que sua influência será a mesma em outra época, mesmo
que todas as circunstâncias gerais sejam as mesmas nos dois casos”.
175
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. pp. 223-224
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63
A metodologia histórica proposta pelo autor dos Ensaios considera, assim,
as mudanças gerais ou, dito de modo algo anacrônico, culturais. Mudanças que
afetam uma grande quantidade de pessoas como, por exemplo, “a origem e o
progresso do comércio em qualquer reino”. Com isso ele pretende estabelecer
uma certa base comparativa entre um período histórico e outro, para a partir daí
poder afirmar com mais exatidão que um preceito ou uma idéia em comum
encontrados na atualidade - ou em outro momento - decorreram de uma sucessão
de eventos que, mesmo dessemelhantes, determinaram de alguma forma a
manifestação de ações aparentemente descosidas entre si
176
. Entretanto, uma
dificuldade com o tema deste ensaio, pois a origem e o progresso das artes e das
ciências parece estar mais na força do acaso do que na das causas gerais: “a
curiosidade ou o amor ao saber tem uma influência muito limitada” no universo
comum das pessoas, que “requer juventude, ócio, educação, gênio e exemplo
para se apoderar de uma pessoa. Jamais existirão compradores de livros se não
existirem livreiros, mas, freqüentemente, podem existir leitores onde não existem
autores”. Não obstante, sensível à percepção de que em qualquer sociedade
poucos são os eventos que podem ser inteiramente atribuídos ao acaso, Hume
desdobra a sua idéia de causas para aplicá-la ao aparente imprevisível. Ele afirma
ser verdade que os gênios (um dos “motores do progresso das artes e das
ciências) são raros e pouco familiares, em estatura psíquica, aos seus coetâneos;
mas também diz ser impossível tal tipo de geração espontânea. Se causas
específicas, coexistentes às causas mais rudes e facilmente difundidas, podem
engendrar paixões que afetam de maneira particular pessoas mais refinadas, é
porque provavelmente algumas dessas causas específicas atuavam, de modo
latente, no conjunto social. Hume denomina tal atuação de “gênio” do povo. O
gênio individual, segundo o escocês, sintetiza essas causas específicas existentes,
mas ainda não manifestadas, dando-lhes forma e sentido definidos, assimiláveis
agora aos demais indivíduos por meio de sua superior sensibilidade. O gênio de
um povo”, o seu fogo, “não é aceso no paraíso, ele apenas percorre a terra, passa
de um coração a outro e arde mais brilhantemente quando encontra um material
mais bem preparado e disposto da forma mais feliz”. Portanto, como Hume diz,
alguns “princípios ou causas” afetam, em todas as épocas, apenas um grupo de
176
SABINE, George H. Hume’s Contribution to the Historical Method, In DUNN, John, HARRIS,
Ian (editores). Op. Cit. Vol. I, p.1
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64
pessoas; todavia, no caso das artes e das ciências, esses princípios ou causas
deviam se encontrar presentes em algumas sociedades, que de maneira não
convergente. O que o gênio particular faz é tornar claro aquilo que, sem passar por
ele, não seria naturalmente observado. E, ao mesmo tempo, ele pode demonstrar
(como sintoma histórico), por meio de sua individualidade especial, o
desenvolvimento social de todo um período. Esta ligação entre um gênio e seu
meio, diz-nos o escocês, pode ser um indício capaz de explicar “por que uma
nação é mais refinada e culta numa época em particular que as suas vizinhas”,
tornando possível, assim, inferir de tais acontecimentos “princípios gerais
177
”.
Essa regra geral, desenvolvida no ensaio sobre as artes e ciências, possui
algumas implicações. A primeira é que, vista de maneira abrangente, dela se
infere que vários períodos na história que simplesmente não poderiam ser
descritos pela regra geral, pois dificilmente alcançar-se-ia um número razoável de
acontecimentos (ou de relações entre um evento e seu meio) a serem levantados,
não sendo suscetíveis a qualquer explicação possível. É bem verdade que o gênio
individual, mesmo impermeável a generalizações, possui alguma conexão com a
sociedade na qual aparece
178
, mas nem sempre ela é segura, ou provável o
suficiente, para escapar à “infinidade de falsos refinamentos e sutilezas”, das
“fantasias
179
. Uma outra implicação seria a de que se pode vislumbrar uma
forma histórica mais aproximada à nossa. É que a distinção entre acaso e causas,
ao mesmo tempo em que reconhece a impossibilidade de explicar certos eventos,
se prende ao que há de mais essencial na história das sociedades, isto é, as grandes
transformações. A relevância dos múltiplos e variados episódios é posta em xeque
por uma descrição vertical do que de pertinente se pôde observar dentre a pletora
dos acontecimentos, estabelecendo como projeto uma clara distinção entre o
secundário e o essencial
180
: “um interesse inteligente pela história não poderia
tolerar as falsas pistas constantes que atraíam a curiosidade dos antiquários
181
”.
Outra implicação é o lugar facultado à história dos costumes, como mencionamos
177
Idem, pp. 223-228
178
SABINE, George H. Hume’s Contribution to the Historical Method. Op. Cit. p. 5. Hume
expressa semelhante idéia em seu ensaio Do Refinamento nas Artes, p. 422
179
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 227
180
HADDOCK, B. A. Uma Introdução ao Pensamento Histórico. Tradução de Maria Branco.
Lisboa: Gradiva, 1989, p. 109
181
Idem, p. 108
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65
acima. Nada é mais importante que “as revoluções domésticas e graduais de um
Estado”, em contraposição às “revoluções externas e violentas, que são
geralmente provocadas por indivíduos isolados
182
”. Para Hume, uma figura
individual era considerada como relevante para o desenvolvimento social se
representasse, de alguma maneira, o interesse do conjunto, e não expressasse
apenas a sua vontade, a sua individualidade vemos tal consideração quando
emprega os termos “legislador” (em seu papel como indivíduo) e “legado” (como
uma herança coletiva): são praticamente sinônimos
183
.
5.2.
O mundo de uma dimensão
Nada disso significa para Hume, dada a limitação a qual uma teoria sobre
os assuntos humanos está submetida (o perigo iminente de que tudo possa vir a
mudar, como houve mudanças no passado
184
), que a história deva ser
compreendida, em algum momento, como uma série de eventos fora da alçada dos
próprios eventos humanos. Como historiador, ele demonstra a preocupação com o
material a ser usado em sua análise: são os registros
185
. Evidentemente, essa
característica por si mesma não confere ao escocês o privilégio de um método
novo, sem precedência. Destaca-se, porém, ao delimitar radicalmente a influência
que qualquer outra força explicativa (como a teologia e a metafísica) teria face aos
materiais conhecidos e produzidos pelos próprios homens. Como observa Renato
Lessa, “Diante dos enunciados proferidos pelos humanos, Hume não argüirá a
respeito de sua consistência lógica, ontológica ou epistemológica
186
”. A
preocupação em observar não pressupõe qualquer força sistemática agindo
anteriormente ao dado, o que irá se refletir na maneira como o acontecimento será
tratado numa inferência.
No interior desta postura metodológica, um debate acerca da doutrina
jusnaturalista que vinha sendo desenvolvido pelo menos desde o século XVII,
segundo a qual os homens respondiam às demandas sociais a partir de sua
condição natural, isto é, do estado de natureza intrínseco em que uma das
182
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 224
183
Idem, p. 155. Ver também FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 316
184
Idem, p. 197
185
Ibidem, p. 237
186
LESSA, Renato. A condição hum(e)ana e os seus Ensaios. Op. Cit. p. 20
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66
primeiras características seria o egoísmo. Já vimos anteriormente que Hume
contrapõe esse egoísmo à experiência, à existência de uma solidariedade já a partir
do interior da própria família, dos grupos. Ele também via a sociedade não como
um empreendimento negativo, a ser sempre corrigido por um novo contrato;
esquecem os que pensam assim a força do bito e do costume, naquilo que
oferecem de útil e até mesmo de necessário aos seres sociais. Dois pontos nos
importam neste momento. O primeiro está relacionado à uniformidade da natureza
humana, cujo peso para a visão histórica do escocês trataremos melhor depois.
Adiantaremos, contudo, que esta era uma característica do jusnaturalismo,
principalmente no sentido de que o homem era pensado como igual em todos os
tempos, sendo considerado em seu contínuo estado de natureza, “trans-
histórico
187
”. É a partir desse valor que Meinecke faz sua crítica à historiografia
de Hume:
(...) su historiografía quedó confinada, a pesar de las grandes cualidades que supo
conferir con su método específico, al campo del pensar iusnaturalista, por causa
del viejo prejuicio fundamental, nuevamente revigorizado por Locke, de que la
naturaleza humana es idéntica en todos los tiempos
188
.
Contudo, deve-se aceitar essa crítica apenas de maneira parcial. O
“prejuízo” jusnaturalista não levou Hume a algum tipo de trans-historicidade, não
na acepção dada pelo “homem natural” contida. Em nenhuma análise do
escocês o homem se desvincula do hábito, assim como, para ele, todo conjunto de
regulação social pressupunha uma espécie de herança que passava por
transformações essencialmente graduais
189
.
O segundo (e mais importante) ponto está na fundamentação de tal
doutrina no que compete a ordenação dos fatos sociais humanos. A premissa
jusnaturalista não estava errada, segundo Hume, ao manifestar a sociabilidade
humana, a lei de autopreservação e o impulso sexual como eventos a serem
considerados a partir da observação da conduta humana no mundo. O que ele irá
contestar é que, embora a premissa da observação de tais fatos esteja correta, ela
se acha, em última análise, subordinada a uma espécie de “obrigação” anterior aos
187
JASMIN, Marcelo Gantus. Racionalidade e História na Teoria Política. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1998, p.47
188
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su Genesis. México: Fondo de Cultura Economica,
1943, p.175
189
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. pp. 407-408 . Ver SABINE,
George H. Hume’s Contribution to the Historical Method, Op. Cit. Vol. I, p 7. Ver também
FORBES, Duncan. Hume’s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 316
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67
homens em si. Como nota Forbes, “The ‘is’ of human nature constitutes a reason-
governed ‘system’ that is an ‘ought’, which in turn presupposes a God-governed
system of all rational beings who recognize their obligation as moral agents
190
”.
Hume vai de encontro ao jusnaturalismo na medida em que este passa, às
vezes de forma sutil
191
, da observação do acontecimento social à afirmação
daquilo que não é dado à observação afirmar. Não há, portanto, no escocês “tão
somente” a destruição de uma fundação “metafísica”, racionalista” e
“individualista” da Lei Natural. O que ele faz é estender a linha de observação até
sua tensão máxima, delimitando o ponto a partir do qual nenhuma especulação
poderá ter proveito
192
. Hume um tratamento necessariamente empírico onde
havia um suporte (mais do que uma prática
193
) teológico (e metafísico) para
inferências. O escocês rejeita a necessidade e a possibilidade de se imaginar uma
orientação advinda de uma sanção e fonte divina, de uma “razão” ubíqua, de um
senso superior. O jusnaturalismo, por dar prioridade a estas explicações,
categorizava as relações sociais dadas somente à observação em seu sentido
“inferior”, “secundário”. O que permanece em Hume é este último sentido
194
. Boa
parte de seu esforço em valorizá-lo corresponde, antes, à secularização, e não a
uma negativa radical de todo e qualquer princípio da Lei Natural, mesmo que esta
possuísse nculos com explicações teológicas. É a partir deste posicionamento
que o escocês fundamenta algumas de suas afirmações contrárias ao
jusnaturalismo: ao contratualismo, pois não se observa nenhum “contrato” na
história da sociedade; ao homem natural, pois a parcialidade observada em
qualquer lugar nos mostra que o homem é tão egoísta quanto capaz de se
solidarizar e formar grupos
195
; a uma “ordenação” superior, pois está além dos
limites empíricos que justificariam chamar de inferência uma consideração. Se o
mundo possui, com Hume, somente uma dimensão, é porque cada um desses
190
FORBES, Duncan. Hume’s Science of Politics. In DUNN, John, HARRIS, Ian (editores). Op.
Cit. Vol. II, pp. 9-10
191
Idem, p.9
192
FORBES, Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. p. 98
193
B. A. Haddock mostra que na jurisprudência inglesa (segundo a common law, que distava de
“tempos imemoriais”), vigorava a regra prática mais que a escrita, o que priorizava a “sabedoria
consagrada no processo e precedente”, sendo assim “superior a tudo quanto fosse expresso num
ato de vontade, porque aproveitava completamente a experiência de gerações na adequação de
instituições e práticas às exigências de situações imprevistas”. HADDOCK, B. A. Uma
Introdução ao Pensamento Histórico. Op. Cit. pp. 63-64
194
FORBES, Duncan. Hume’s Science of Politics. Op. Cit. p.6 e 9
195
SABINE, George H. Hume’s Contribution to the Historical Method. Op. Cit. pp.3-4. Ver
também DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Op. Cit. p. 32 e 34
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68
pontos é demonstrável empiricamente, nem que seja apenas para fazê-lo ao
homem comum, que está atravessando a rua
196
.
5.3
Virtude e progresso
A observação da vida comum não punha a Hume somente a questão do
aprimoramento de seu método histórico para a refutação de princípios teológicos
subjacentes ao mesmo. Na Inglaterra de seu tempo um profundo debate acontecia
à medida que as práticas sociais sofriam uma transformação decisiva em relação a
ideais republicanos ainda cultivados. Como foi exposto no terceiro capítulo, o
posicionamento de Hume acerca dos debates políticos que envolviam os dois
partidos ingleses em sua época era marcado pela moderação. Tal postura visava
não apenas evitar um desastre social, uma guerra civil, mas fazia parte de um e
mesmo movimento de observação dos assuntos humanos em suas variadas
esferas. Segundo J. G. A. Pocock, dois acontecimentos foram importantes balizas
para a discussão da qual Hume irá participar: o aumento da profissionalização do
exército e a fundação do Banco da Inglaterra, ambos em fins do século XVII
197
.
Interessa-nos aqui os aspectos mais gerais desse debate. O que se passou a
considerar como um problema moderno (principalmente para a percepção neo-
harringtoniana) foi a suposta perda de um ideal de virtude republicana por parte
dos cidadãos, o que implicava numa nova visão da participação do homem em
sociedade. A república (é importante lembrar) com a qual havia este tipo de
identificação era a romana, não devido à grande herança filosófica que legara,
como também ao seu sistema político, que não deixava de admirar mesmo os
philosophes
198
. Mas o principal deste debate não se restringia a uma maior ou
menor admiração por esses laços com a antiguidade clássica, e sim com o que
esses dois acontecimentos vieram a instaurar na cena histórica no final do século
XVII e no século XVIII.
No centro deste debate encontramos a propriedade. O ideal de virtude
antigo rezava que o homem social e político existia em função da coletividade na
196
FORBES, Duncan. Hume’s Science of Politics. Op. Cit. p. 11
197
POCOCK, J. G. A. Modalidades do Tempo Político e do Tempo Histórico na Inglaterra do
Início do Século XVIII. In Linguagens do ideário político. Op. Cit. p. 135. Idem, A Mobilidade da
Propriedade e o Nascimento da Sociologia do Século XVIII. Op. Cit. p. 147
198
Ibidem, O Declínio e Queda de Gibbon e a Visão de Mundo do Final do Iluminismo. Op. Cit.
p.189
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69
qual participava de maneira ativa, exercendo com diligência suas atividades ao
encontro de uma convergência entre o eu e o todo. Tanto no que dizia respeito à
identidade política, econômica, ou a qualquer aspecto da vida social, a
propriedade indicava, com maior clareza, o grau de comprometimento do
indivíduo para com seus semelhantes: o que aqueles dois acontecimentos viriam
mudar seria o coeficiente de incerteza que se abria no mundo moderno. Enquanto
a propriedade pudesse funcionar como índice de participação na vida blica, o
homem seria, por princípio, ao mesmo tempo livre e senhor de seu destino.
Haveria, portanto, uma “coincidência” entre as suas expectativas e o que poderia
acontecer num futuro mais ou menos distante, que sua identidade estava
atrelada à sua participação ativa. O homem, assim, poderia não se posicionar
numa questão política pública como também pegar em armas se necessário fosse
para defender a sua comunidade
199
. Por mais idealizada (e até mitológica
200
) que
tenha sido essa noção de indivíduo antigo para a era moderna, a profissionalização
do exército e o surgimento, em grandes quantidades, de uma riqueza móvel
representaram mudanças de fato na imagem republicana calcada numa
semelhança mais ou menos próxima a essa virtude antiga (Pocock ressalta que tal
imagem “idealizada” fora definida, principalmente, por James Harrington e
reforçada pelos neo-harringtonianos por volta de 1670
201
). Indo mais ao centro
deste debate, nos diz Pocock, encontraremos principalmente a noção de uma
degeneração da personalidade dos indivíduos sociais modernos
202
e um temor
quanto ao futuro
203
. A propriedade, que tão bem apoiava a virtude e o ideal
cidadão, possuía essa qualidade essencial que era a estabilidade, qualidade que
passava a ser confrontada com a revolução financeira e a ascendência do
comércio.
Pelo lado do debate que defendia a virtude tal qual era suposta por esse
ideal republicano, o crescimento das relações essencialmente comerciais entre os
homens os despojara da antiga convergência entre o eu e o todo, perda essa que,
acompanhada da profissionalização do exército, excitava negativamente o
199
Ibidem, A mobilidade daPropriedade. Op. Cit. p.148
200
Ibidem, The Varieties of Whiggism from Exclusion to Reform. In Virtue, Commerce and
History: Essays on Political Thought and History, Chiefly in the Eighteenth Century. Cambridge:
Cambridge University Press, 1988, p. 235
201
Ibidem, A mobilidade da Propriedade. Op. Cit. p.146
202
Ibidem, The Varieties of Whiggism. Op. Cit. p. 235. Ibidem, O Declínio e Queda. Op. Cit. p.
192
203
Ibidem, Modalidades do tempo. Op. Cit. p. 137
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70
indivíduo a uma autocentração que, o tempo iria dizer, o tornaria não mais
egoísta como corrupto. Acentuando esta percepção, aconteciam, simultaneamente
às transações comerciais, também aquelas de caráter especulativo, feita por
financistas e baseadas no crédito, o que, segundo Pocock, abria a possibilidade de
os homens se tornarem potenciais devedores uns dos outros no futuro. E o pior era
que, enredados nesse novo enlace, a participação ativa no mundo social poderia
degenerar num cenário em que cada homem
seria julgado e governado, a cada momento, pela opinião de outros homens
quanto à probabilidade de que (...) gerações inteiras ainda por nascer, estariam ou
não em condições e dispostas a quitar seus débitos em uma data futura (...). Os
homens, parecia, eram governados pela opinião quanto a se certas fantasias
dominantes viriam um dia a se realizar
A preocupação que se verificava com este fato era a ascensão de uma nova
ideologia, baseada na “imagem de um futuro secular e histórico”, “aberto e
indefinido”: “No mundo do crédito financeiro, o governo estava fundado na
opinião, e a razão era serva das paixões”. Isso representava um embate do homem
com sua própria história. O deslocamento fundamental era que a antiga confiança
nutrida entre os concidadãos republicanos havia se transformado numa confiança
do crédito especulativo, que variava não conforme a integridade do indivíduo, mas
“conforme as esperanças e os medos do público investidor
204
”. Esses temores,
expressos quando as relações capitalistas se alargaram por meio de uma
complexidade maior do comércio e da especulação financeira, terão como base,
nesse período, a perda da virtude antiga. A contraposição a tais receios será
expressa pela afirmação positiva desse mundo incerto na modernidade, por meio
da idéia de refinamento.
A principal crítica a ser feita a esse antigo ideal de virtude se encontra,
sistematicamente, em quase todas as partes dos Ensaios de Hume. Podemos uni-
la, sem prejuízo interpretativo, à sua postura determinada em separar o paradigma
da observação dos fatos do mundo de qualquer hipótese transcendental. Pois o
escocês operou, como vimos anteriormente, uma atualização dos pressupostos da
sociabilidade humana em um mundo secularizado. Podemos relacionar também
essa crítica àquela empreendida contra a idealização de um passado histórico
(presente em relação às formulações contratualistas de sua época e também em
204
Ibidem, pp. 135-138
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71
seu ensaio Da População das Nações Antigas
205
) e de uma proposta puramente
teórica e virtual para o futuro
206
. Seu ponto fundamental é que os defensores da
virtude antiga não imaginaram a república romana como ela historicamente deve
ter sido:
A virtude do patriota sua autonomia e engajamento não pode ser questionada
desde que exista uma polis ou república em que possa ser exercida. Mas pode-se
provar que ela repousava sobre bases arcaicas e restritivas. A cidade antiga
situava-se em um mundo em que nem o comércio nem a agricultura eram
adequadamente desenvolvidos, e por essa razão (...), o cidadão virtuoso era
usualmente um senhor de escravos. Sua devoção às leis da cidade era
característica de um mundo em que nem o comércio nem a cultura (...) forneciam
laços sociais capazes de manter os homens unidos, e apenas a ‘severa paidéia’(...)
da disciplina civil podia desempenhar a tarefa
207
.
Mas a tarefa que se colocara para os intelectuais que criticavam essa antiga
concepção de virtudeo estava de todo resolvida apenas por meio deste gesto. O
que de novo se percebeu, de maneira geral, era a abertura para um futuro incerto
que se materializava na figura não só do comércio, mas principalmente do homem
especulativo (financista). Tornava-se necessário compreender se havia algum
aspecto positivo relacionado a essa transformação. A posse e estabilidade
fornecidas pela propriedade teriam permitido ao indivíduo antigo fazer-se cidadão
e lhe garantido o controle da situação geral de seu universo social, mas sempre
pela ótica de uma coletividade primordial; é esta ótica que se desfaz de um lado
para se refazer mais adiante. Se o mundo comercial e especulativo era dotado dos
signos individualista e passional, a regulação do futuro não poderia mais ser
imaginada como o simples ato de esperar que este estivesse representado, de
alguma forma, no presente, e sim como o ato de, pela experiência, compreender
tais dimensões por meio da probabilidade: não apenas para que as coisas
funcionassem a contento, mas também para “criar condições sob as quais seu
atendimento [das expectativas] seria mais provável
208
”.
205
Forbes faz um comentário interessante, ao falar sobre a noção de uniformidade da natureza
humana, acerca dessa desmistificação sempre presente em Hume: “(incidentally, it might be
argued that Hume’s insistence on the fundamental similarity of the ancients and the moderns was a
useful historical corrective of the very common view of them as super-human, in some ways
unnaturally, i. e. supernaturally, virtuous)” FORBES, Duncan. Hume’s Philosophical Politics…
Op. Cit. p. 118
206
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. pp. 152-153
207
POCOCK, J G A. A Mobilidade daPropriedade Op. Cit. p.154. Idem, O Declínio e Queda. Op.
Cit. pp. 192-193
208
Ibidem, A Mobilidade da Propriedade. Op. Cit. p. 153
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72
É verdade que a dinâmica de um mundo comercial e especulativo tendia ao
descontrole das condições sociais num período de longo prazo, mas, ao mesmo
tempo, ela indicava, por contraste, novas relações nas quais o controle não estava
de todo ausente, mas sim deslocado. Se de um lado tem-se uma relação entre
virtude e liberdade, e, de outro, comércio e imprevisibilidade (outras relações são
igualmente possíveis), a crítica ao arcaísmo e à restrição subjacentes à antiguidade
estabelece um paralelo importantíssimo ao homem moderno, na medida em que
lhe uma noção profunda de seu distanciamento em relação ao passado
antigo
209
. Numa crítica à visão do homem econômico como figura conquistadora e
masculina, Pocock mostra como a virtude antiga (que não deixava de representar
um símbolo de domínio) não foi substituída por um outro tipo de virtude, mas sim
por uma nova postura diante da dinâmica do mundo moderno, reconhecidamente
passional e perigosamente imprevisível:
[Tal imagem do homem econômico] é uma fantasia da industrialização do século
XIX (o Manifesto Comunista é sem dúvida um exemplo clássico). Seu
predecessor do século XVIII era visto como um ser no todo feminizado, (...),
ainda lutando contra suas próprias paixões e histerias e contra forças internas e
externas deixadas à solta por suas fantasias e apetites (...). a nova imagem
especulativa do homem econômico era o oposto da figura essencialmente paternal
e romana do cidadão patriota. Portanto, no debate do século XVIII sobre as novas
relações entre sociedade organizada e economia, a produção e a troca são
regularmente equiparadas à ascendência das paixões e do princípio feminino. Elas
recebem um novo papel na história, que é o de refinar as paixões, mas existe o
perigo de que possam tornar as sociedades efeminadas
210
.
não se trata mais de restabelecer, mas sim de comparar; também não
apenas de comparar, mas de empreender um sistema de meios tal que o perigo
possa ser minimizado para que se aproveite a contrapartida que a modernidade
oferece e que a antiguidade não poderia ter oferecido. Vemos uma noção de
progresso por meio do refinamento das paixões (isto é, do imprevisível) em
contato com uma abundância maior de objetos, de possibilidades e de trocas que
somente o mundo comercial seria capaz de disponibilizar e tornar mais acessível:
A mente formulava suas idéias em resposta às sensações e aos objetos
encontrados na experiência. À medida que os homens evoluíam em sua
capacidade produtiva, ao longo dos sucessivos estágios da história, eles
expandiam suas próprias mentes, multiplicando os objetos aos quais elas
respondiam
211
.
209
Ibidem, O Declínio e Queda. Op. Cit. p.193
210
Ibidem, A Mobilidade Propriedade. Op. Cit. p. 154
211
Ibidem, O Declínio e Queda. Op. Cit. p.195. Ibidem, Barbarism and Religion. Volume III. Op.
Cit. p. 374
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73
O duplo movimento, de comparar com distanciamento e criar um novo
modo de ligação entre o indivíduo e sua coletividade era, sem dúvida, mais auto
centrado. Mas, apenas na medida em que poderia responder a, e não procurar
substituir, novas demandas por meio de uma autorepresentação que se distinguia
da virtude antiga com a mesma profundidade que a modernidade se distinguia do
passado clássico e que a expectativa social se projetava para um futuro em aberto.
Havia um preço a pagar, que seria a constante dúvida de se, em perdendo a
virtude, o homem mercantilista não estaria se associando cada vez mais à
corrupção
212
. Para uma concepção histórica e sociológica, entretanto, esse preço
era menor que a elasticidade analítica que o novo tempo engendrava
213
. O
princípio da virtude antiga feneceu quando a análise crítica da sociedade deixou
de pensar o presente a partir de uma reflexão (mais ou menos útil, mais ou menos
idealizada) das práticas do passado exclusivamente, e pôde assim formular uma
imagem que, doravante, para se sustentar, deveria observar a experiência dos fatos
humanos e inferir por meio de uma probabilística existente no próprio campo
social. É assim que uma nova forma de solidariedade é erigida em lugar daquela
antes tão segura e estável da virtude
214
:
A ascensão do comércio e da cultura tinha compensado a perda em virtude, que
essa ascensão trouxera consigo, e tinha aumentado enormemente a capacidade
humana de produção e consumo, de troca, independência e solidariedade; e, sobre
essas bases, deviam ser erigidos novos sistemas éticos que mostrassem como a
preocupação do homem com o seu próprio bem-estar poderia ser convertida em
preocupação com o bem-estar de seus próximos sociais
215
.
212
Ibidem, p.192. Ibidem, A Mobilidade da Propriedade. Op. Cit. p. 160. Ibidem, Hume e a
Revolução Americana. Op. Cit. p. 183
213
Cremos ser este o motivo pelo qual um dos principais ensaios de Pocock sobre esse profundo
debate intitular-se A Mobilidade da Propriedade e o Nascimento da Sociologia do Século XVIII.
214
Pensamos que o uso de expressões como “em lugar de”, “sob a”, “em vez de” etc. não
correspondam, precisamente, à cisão entre, ao mesmo tempo, uma imagem idealizada do passado e
uma percepção de “superioridade” do presente como, também, ao paradigma de um mundo estável
no passado e instável na modernidade e, principalmente, às novas bases metodológicas, que
mutatis mutandis, ajudaram a definir o conhecimento sociológico e histórico dos séculos seguintes.
Sem entrar no mérito da questão epistemológica, vemos uma proximidade entre esta colocação e a
definição de Michel Foucault, em seu livro As Palavras e as Coisas, acerca da transição dos
“períodos epistêmicos” (a passagem de um modo de pensamento e reflexão teórico a outro): “(...)
essas epistemes não se sucedem umas às outras dialeticamente, nem se agregam. Elas
simplesmente surgem uma ao lado da outra (...). Uma nova ciência da vida (...) não se insurge
contra as suas predecessoras; ela simplesmente se cristaliza ao lado delas, preenchendo o ‘espaço
deixado pelo ‘discurso’ das ciências anteriores”. WHITE, Hayden. Foucault Decodificado In
Trópicos do Discurso: ensaios sobre a critica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca
Neto, Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: EDUSP, 1994, pp. 257-258
215
POCOCK, J G A., O Declínio e Queda. Op. Cit. p. 192. Idem, Hume e a RevoluçãoAmericana.
Op. Cit. p.178
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74
Esse debate, em torno de tal “antítese”, circundou quase toda a filosofia da
história do século XVIII
216
. Sua importância aqui nos ao menos alguma
dimensão do que estava relacionado tanto à idéia de progresso quanto à de
secularização. À perda da virtude seguiu-se, pois, um incremento da vida social,
mas não houve então uma substituição de um ideal por outro; antes, podemos
observar um prejuízo na crença em ideais, que se materializa, por exemplo, na
desconfiança de Hume em projetos “de gabinete”, por assim dizer. Afigura-se que
por mais progressistas que fossem os iluministas (os ensaios econômicos de
Hume, analisados brevemente no quarto capítulo desta dissertação, transpiram
essa esperança) esse confronto entre indivíduo e história, entre passado e futuro
traduzia-se melhor em termos de aspiração
217
- que difere da idealização pelo
motivo primeiro da aceitação de um futuro em aberto e incontrolável em seu todo.
Esse juízo reafirmava a incompatibilidade gerada no interior de um período
histórico, provavelmente sem retorno, e que requeria à percepção filosófica (num
sentido amplo) “uma explicação das forças em ação na história, baseada em uma
contradição fundamental e reconhecida
218
”.
5.4
O aprimoramento segundo um conservador
Podemos afirmar que a concepção histórica de Hume, embora abalada
diante deste cenário, se fiava por pelo menos dois princípios claros e interligados:
(a) cada época deve ser reconhecida pelas suas práticas (principalmente políticas)
estabelecidas
219
; (b) a sociedade comercial, polida e cosmopolita é superior a
qualquer outra que tenha existido
220
.
Uma forma de compreender como esses princípios estavam articulados em
seu pensamento pode ser feito por meio de uma de suas principais propostas
“progressistas”. Estamos nos referindo ao que foi debatido no quarto capítulo:
216
Ibidem, The Varieties of Whiggism. Op. Cit. p. 231
217
Uma passagem, retirada do ensaio Idéia de uma República Perfeita, pode tornar esse ponto
mais claro: “A meta de fazer um governo assim florescer durante muitas gerações é um incentivo
suficiente para o empenho dos homens. Isso sem pretender atribuir a qualquer obra humana
aquela imortalidade que o Todo-Poderoso parece ter recusado às suas próprias criações”. p. 742
(grifo nosso)
218
POCOCK, J G A., Hume e a Revolução Americana. Op. Cit. p. 176
219
FORBES, Duncan. Hume’s Philosophical Politics. Op. Cit. p.309
220
POCOCK, J G A., The Varieties of Whiggism. Op. Cit. p. 250
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75
uma comunidade de nações ligadas por meio do comércio e da política (e, de
maneira indireta, pela cultura). Essa proposta rendeu-lhe, por muito tempo, o
rótulo de “conservador
221
”, que parece contradizer a atual noção de que no
Iluminismo o progresso da sociedade humana apresentou-se como um problema
principal aos philosophes. Contudo, tal qualificação encontra-se fundamentada
nesse debate profundo acerca da virtude e do refinamento, debate este que, como
vimos, não foi compreendido pelos iluministas sem que permanecesse a
desconfiança em relação a uma possível degeneração do homem social moderno
via corrupção. Hume era tido como um conservador, mas o contexto desse
conservadorismo está diretamente relacionado à sua discordância profunda para
com manifestações correntes do ideal republicano que, em sua época, associavam
o ideal de virtude antiga à conquista cada vez maior da liberdade (não civil,
como também política) e boa parte de um certo chauvinismo para com a França
reside no fato dela justamente ser uma monarquia
222
. Embutida em tal ideal,
Hume percebia uma intransigência que, fomentada pelo faccionismo, em muito o
desagradava. Esse fenômeno é tratado diversas vezes em seus ensaios políticos,
que refletem, no plano histórico, uma forte tendência de seu tempo em unir uma
visão idealizada do passado a aspirações imediatas do presente. Por empreender
essa separação, por pensar prioritariamente numa atualização do conhecimento, e
procurar o tom da imparcialidade
223
, Hume é considerado um conservador
224
. Seu
temor, em última análise, sempre voltava para este mesmo ponto: o perigo de uma
exaltação advinda do facciosismo
225
. O problema maior dessa visão republicana
221
FORBES, Duncan. Hume’s Science of Politics. Op. Cit. p.1. WEXLER, Victor G. David
Hume’s Discovery of a New Scene of Historical Thought. In DUNN, John, HARRIS, Ian
(editores). Volume I, p. 510. No período de Hume, ser um conservador significava estar associado
ao partido da nobreza (Tory), que desejava a manutenção de seu status quo e de seus privilégios.
Hume, afinal, não concorda inteiramente nem com o “conservadorismo” dos Tories, e nem com o
“liberalismo” dos Whigs, que tendia a um republicanismo demasiadamente “literal”, como o
debate sobre virtude e refinamento procura mostrar.
222
Uma ciência política comparada se torna possível com Hume, pois ele detestava esse tipo de
manifestação algo paroquiana e insular. Ver FORBES, Duncan. Hume and the Scottish
Enlightenment. Op. Cit. pp. 91-92
223
Entretanto, mesmo em buscando a imparcialidade, Hume não deixava de ser tão parcial assim.
WEXLER, Victor G. David Hume’s Discovery of a New Scene. Op. Cit. p. 509
224
O “conservadorismo” de Hume se explica também porque, ao adotar tal critério metodológico,
desagradava, naturalmente, os republicanos (Whigs), tidos por liberais. Por conseqüência, como
em qualquer momento da história política humana, era associado ao partido conservador (Tory),
que, entre outras coisas, apregoava a “obediência passiva”, não menos contestada pelo escocês.
225
CONNIF, James. Hume´s Political Methodology: A Reconsideration of “That Politics May Be
Reduced to a Science”. In DUNN, John, HARRIS, Ian (editores).Volume I. Op. Cit. p. 390:
“Violence in language leads to violence in action. Hume, very much aware of the arbitrariness of
all opinions, was opposed to both no matter who the party”.
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76
(ligada a ideais da antiguidade) era que ela também tomava emprestada do
passado clássico um certo anseio imperialista subjacente ao projeto de
reformulação do mundo segundo o qual a liberdade pura deveria ser não só
almejada por todos os povos como também espalhada (e implementada) para
aqueles que viviam sob o jugo de qualquer forma autoritária de governo
226
. Um
ideal político, por si mesmo, é uma fórmula admitida segundo determinadas
concepções que vigoraram sob determinadas circunstâncias
227
. O republicanismo
moderno (contemporâneo a Hume) se esquecia, sobretudo, deste último ponto.
Um ideal político ignora, assim, a diversidade política encontrada naturalmente
em povos que vivem num mesmo período
228
; mais ainda se enganam os homens
quando teimam, por um ideal, em assemelhar-se a um passado que lhes causaria
espanto caso fosse a eles revelado em sua condição real (social e material)
229
. Um
ideal político puro, ainda que criterioso, dotado de cautelas e recomendações é
“impossível de se realizar
230
”. Um ideal republicano (na sua forma pura, “trans-
histórica”) não teria condições de funcionar pelo mesmo motivo que não
funcionara no passado; aos que objetavam que a falência do império romano teria
acontecido devido ao luxo desmedido, ao uso de mercenários, enfim, à perda da
virtude (que, por isso mesmo deveria ser reverenciada no presente), Hume
empreende a crítica histórica com mais vigor: a virtude era belicosa, era
“desumanamente severa”, a economia antiga era primitiva
231
: “the decline and
fall of the empire was a consequence of the decline and fall of the conquering
republic, and both an effect of the limitations of the acient economy
232
”. E isso
226
Idem, p. 382. Um exemplo interessante dessa idéia “imperialista” é expresso no próprio medo
que os ingleses tinham da França: “The danger that France might manage to rid herself of her
burden of debt quicker than England and be in a position to give the law to all Europe was one of
the most powerful arguments used by contemporary writers”. FORBES, Duncan. Hume´s
Philosophical Politics. Op. Cit. p. 175 (grifo nosso)
227
Tal noção de ideal político é o que se subentende da concepção de Hume de que cada época
deve ser julgada conforme suas práticas, principalmente as políticas.
228
Hume fala sobre o erro contido na exaltação, constatável em muitos dos partidários, da “virtude
de ancestrais remotos”: “(...) a falácia é facilmente percebida quando se comparam diferentes
nações que são contemporâneas, situação em [que] podemos julgar de modo mais imparcial,
analisando da forma adequada a oposição entre costumes com os quais estamos bastante
familiarizados”. HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 431
229
Podemos mencionar mais uma vez o ensaio Da População das Nações Antigas como marco
dessa crítica histórica de Hume.
230
POCOCK, J G A., Hume e a Revolução Americana. Op. Cit. p. 175. Ver também CONNIF,
James. Hume´s Political Methodology. Op. Cit. p. 393: “Hume shows, partly through ridicule and
partly by revealing the complexity and uncertainty of political issues, that sure political
knowledge, either rational or scientific, is impossible”.
231
POCOCK, J G A. O Declínio e Queda. Op. Cit. pp. 192-193
232
Idem, Barbarism and Religion. Volume III. Op. Cit. p. 387
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acaba por se transformar num juízo acerca do próprio pensamento antigo. No
Iluminismo,
“(...) a filosofia política seria admirada em sua modalidade romana e estóica, mais
do que ateniense e acadêmica. (...). Em conseqüência, o Iluminismo anglo-francês
(...) estava condenado a levar adiante a tradição humanista e cívica e a tradição
republicana clássica do Renascimento, e a ver o fracasso da filosofia antiga e o
fracasso da política da Antiguidade como uma única coisa
233
.
Observamos, assim, como aqueles dois princípios, citados no início deste
sub-capítulo, se articulavam em Hume: uma noção histórica crítica das práticas
políticas de cada período e uma concepção de progresso que se revelava pelo
contraste obtido justamente por tal crítica. Que essa “ciência política comparada” ,
como a denomina Forbes, careça de informações em profundidade sobre muitos
dos governos que aborda
234
e faça, em diversos momentos, uma comparação
exaustiva entre a antiguidade clássica e a modernidade, era porque tal comparação
calava profundamente nos debates políticos de seu tempo. Esses dois princípios
encontram-se na fundamentação do projeto de Hume, que, visto no contexto de
uma reflexão histórica, condiz com a afirmação de Forbes de que em Hume (como
também para os iluministas escoceses) persegue-se mais o improvement dos
assuntos humanos, “a harsh necessity to adapt more or less painfully to something
objective and coldly observed”, do que propriamente a crença ou um estatuto do
progresso
235
.
A adoção de uma perspectiva empírica o leva, portanto, a considerar que
se existe algo como o progresso ele deve ser realizável por meio de uma expansão
da qualidade material de vida que apenas uma economia fluente poderia fornecer.
De fato, essa é uma proposição que busca interpretar nas conquistas modernas a
inflexão pela qual o sujeito social se transformou num agente histórico secular,
por isso mesmo mais elástico, diversificado, e, por vezes, mais especializado. A
autocentração é um fenômeno positivo na medida em que reflete tais
transformações e reafirma não a complexidade de um presente histórico novo,
como também a dilatação das relações sociais e, com isso, a possibilidade de
233
Ibidem, O Declínio e Queda. Op. Cit. p. 189
234
FORBES, Duncan. Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. pp. 107-108
235
FORBES, Duncan. Hume’s Science of Politics. Op. Cit. p. 5. Idem, Hume´s Philosophical
Politics. Op. Cit. pp. 187-188. Ver também WOOTTON, David. David Hume,“the historian”. Op.
Cit. p .295: Hume não compartilhava da idéia de Turgot de que toda história é uma história do
progresso rumo à perfeição.
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percepções multifacetadas da realidade, numa abertura aos espíritos da capacidade
de comparar situações e objetos e, por meio de uma síntese, refinar-se: esse ser
histórico é (e deve ser), principalmente, um empreendedor, tanto na sociedade
quanto de si mesmo (por meio do refinamento). O que Hume verifica são
justamente as condições de possibilidade para que tal projeto se realize: as
monarquias civilizadas
236
; a moderação em política
237
; a balança de poder; o
refinamento das paixões
238
; a expansão do comércio pela troca entre uma
pluralidade de Estados
239
. Com cada um desses argumentos e ambições ele
promove a atualização da percepção histórica dos agentes sociais e,
principalmente, políticos de seu tempo. Essa é a medida de sua reflexão sobre a
modernidade:
Hume’s object was to get men, both Whigs and Tories, to turn round and face the
present and the future; a new secular, scientific age of economic challenge and
opportunity especially
240
.
5.5
Ironia e julgamento
Acima apontamos que um dos princípios de Hume era a de uma crença na
superioridade da sociedade comercial moderna sobre a antiga. Contudo, essa
superioridade tinha um efeito de comparação em nada direto, muito mais
problemático e complexo do que o entusiasmo pela verificação de um mundo
melhor. Não deve subsistir na análise, também, a falsa suposição que confundiria
individualismo com o sujeito autocentrado. De pronto Hume argumenta que o que
há é uma nova forma de organização social, oblíqua, indireta, mas eficiente
quando bem administrada pelo Estado, pela justiça, quando aprimorada pela
cultura, quando o hábito do trabalho num mundo comercial um sentido
irreversível à vida
241
. Ademais, é a parcialidade das nossas afeições o que nos
define, mais que o egoísmo subjacente à expressão “interesse próprio”, avara de
nascença. De fato, do que foi exposto aqui, a crítica histórica parece ter
imprimido a mudança mais profunda na concepção política de sociedade para o
236
FORBES, Duncan. Hume’s Science of Politics. Op. Cit. p. 3
237
Idem, Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 223: “The mixed monarchy of Britain was a
form of government which called especially for the virtue of moderation (…)”.
238
POCOCK, J G A, The Varieties of Whiggism. Op. Cit. p. 236
239
Idem, Barbarism and Religion. Volume III. Op. Cit. pp. 373-382
240
FORBES, Duncan. Hume’s Science of Politics. Op. Cit. p. 5
241
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 460.
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escocês (e dos philosophes). Mas essa crítica possuía um sentido, uma razão que a
articulava para que se ativesse somente ao essencial da história.
Em Hume esse sentido se define, no interior de uma história política,
sobretudo pela instituição e pela lei. A política pode ser uma ciência quando
estabilidade, a estabilidade do governo (instituição e lei), independente dos
humores de homens particulares
242
. Sua tentativa de tornar evidente que a
causalidade, por meio de uma regra geral, poderia demonstrar o desenvolvimento
daquilo que de mais importante existe na estrutura das sociedades (ciências e
artes, saber) parte de uma verificação histórica: existe uma regularidade política
que torna tal comprovação possível
243
. As três primeiras observações em seu
ensaio sobre as artes e as ciências dão o tom mais claro desta verificação, em
relação a uma crítica do passado e também à condição institucional dos governos
modernos: (a) as artes e as ciências são produto de governos livres; (b) a educação
e a instrução são produtos de governos livres e relacionados entre si; (c) houve
uma disseminação de ambas porque o governo moderno, a força das leis a
possibilitou. Nesta última observação, mais até do que nas duas primeiras, Hume
empreende uma ponderação exatamente calcada na sua verificação histórica, na
sua descoberta da civilidade na Europa. É esse enfoque que lhe permitiu
diferenciar as leis e as instituições como forças preponderantes na sua teoria
histórica: e no interior delas, como índices de todo o desenvolvimento social,
encontrar os legisladores, os homens de Estado:
The perfecting of law and government presupposes a certain degree of
advancement in the ‘more vulgar arts at least of commerce and manufacture’. We
cannot expect a government to be well-modelled by a people who do not know
how to make a spinning-wheel (…).Thus the appearance of the legislator
presupposes a certain level of civilization
244
.
O que temos em Hume, de mais importante em sua história social, são os
elementos do progresso, de uma modernidade. O que não existe é um processo
que, doravante, mudará o aspecto do mundo sem que as pessoas nele envolvidas
possam fazer algo em contrário. Há ainda no escocês uma contrapartida que torna
quase impossível à sua crítica histórica imaginar um desenvolvimento que não
possa vir a ser solapado num dado momento: a consideração da natureza humana.
242
FORBES, Duncan Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 222
243
Idem, Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. p. 104: conceito de “regularidade dos
governos modernos”.
244
Ibidem, Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 316
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80
Mas para que essa observação não incorra em anacronismo, devemos levar em
conta que os Ensaios não tratam somente de observações históricas, formando um
conjunto integrado que encontrava na regra geral uma síntese. Esse trabalho
possuía múltiplas faces, e para usar novamente a expressão de Forbes, ele tratava
mais de uma atualização secularizada do conhecimento social do que de um
aporte epistemológico que englobasse todos os fatos segundo um singular
pressuposto. Não é por outra razão que a instabilidade no presente que
encontramos em sua comparação histórica (a possibilidade de que tudo possa vir a
mudar com uma revolução apressada”) se relaciona diretamente ao
recrudescimento do facciosismo em seu tempo, e que esse mesmo trabalho de
comparação e de constatação de um progresso seja definido como ( e que tenha
por objetivo) a promoção da moderação em política
245
.
Encontra-se (por isso mesmo) com freqüência uma crítica à visão histórica
dos philosophes e em especial a Hume. Se por um lado é facilmente identificável
a importância da história tanto para o entretenimento (que era uma forma de
conhecimento, e, portanto, de refinamento
246
) quanto como negativa a qualquer
pressuposição trans-histórica, por outro ela é usualmente equiparada ao gesto
irônico de observação impassível dos assuntos humanos destituídos de qualquer
significado geral
247
. Todavia, por mais correta que possa parecer, tal crítica não
deve ser aceita sem algumas ressalvas. Poderíamos dizer até, sem distorção
interpretativa, que Hume agiu como um historiador (mutatis mutandis) moderno
na fundamentação de sua verificação histórica. Esta partiu de uma constatação das
mudanças recentes de seu mundo, intimamente ligadas à regularidade dos
governos modernos. Posto isso, ele identificou o que dava condição a essa
regularidade (que se lhe expressava por meio de um tipo de liberdade
248
): a
segurança da propriedade, o fomento da indústria, o florescimento das artes, em
suma, governos de leis, não de homens. Vem daí seu conceito de monarquia
civilizada. Ora, sua crítica histórica o fez considerar, pelo menos, duas coisas
245
Ibidem, p. 150 e p. 309. CONNIF, James. Hume´s Political Methodology. Op. Cit. p. 386
246
Esse é o tema do ensaio Do Estudo da História.
247
“Quando Hume passou da filosofia para a história (...). Achou ele cada vez mais difícil, porém,
manter o interesse por um processo que lhe exibia o eterno retorno da mesma insensatez em
muitas formas diferentes”. WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século
XIX. Tradução de Jose Laurenio de Melo. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 68
248
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. pp. 140-173: é sempre válido
lembrar que o conceito de liberdade na maioria dos governos que Hume conhecia era algo mais
próximo do social, não do político.
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importantes: era necessário definir politicamente o estatuto da modernidade o
que se tornava possível por meio de uma metodologia comparativa -, e, em o
definindo, compreender suas condições de existência. Essas se mostraram a ele
instáveis porque no interior do empirismo –e isso se encontra na sua explicação da
regra geral no ensaio sobre as artes e ciências não existe somente um
movimento histórico que, uma vez registrado, pode ser desdobrado até uma
conseqüência última, uma finalidade: nesse aspecto, agentes do presente podem
modificar substancialmente as condições de um futuro próximo com o poder de
quem é capaz de derrubar os frágeis sedimentos que garantem a continuidade da
história.
De maneira que, para alguns, Hume adotará uma abordagem histórica
irônica por sempre encontrar elementos “irracionais”, “rudes”, que ele teimaria
em julgar e corrigir; e isso acaba por arrastar qualquer outra consideração que
tenha feito sobre a matéria. Para Meinecke, por exemplo, “Su pensamiento e
investigación históricos no fueron predominantemente otra cosa que psicología
aplicada, o, más exactamente, un intento de confirmación por la historia de su
propia idea de la naturaleza humana
249
”. O problema dessa visão (eu não diria o
equívoco) é que ela trata todas as considerações do escocês apenas pelo viés de
uma psicologia aplicada aos fatos históricos; é que ela associa, automaticamente, a
sua percepção histórica ao fato de que, sendo o homem dotado de mecanismos
psicológicos atemporais, sua conduta repetir-se-á ad infinitum apenas como
resposta às circunstâncias dadas; como se o próprio Hume tivesse considerado,
afinal, que seu esforço de atualização resultara inútil, e que a história voltaria a se
repetir como sucessões de progresso e decadência. Mas é isso, principalmente, o
que não encontramos na sua verificação histórica, tampouco no próprio debate
acerca da virtude e do refinamento. Nesses dois casos, o passado é criteriosamente
analisado conforme as condições de existência demonstradas entre ele e o
presente, o que constitui um esvaziamento de qualquer tom exemplar dado à
história. Talvez o ponto principal de tal crítica feita ao escocês seja o fato de que,
mesmo em compreendendo essas novas forças históricas em ação, ele ainda
insista num julgamento destas em relação aos princípios da natureza humana
250
.
249
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su Genesis. Op. Cit. p. 179
250
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 786: “(...) mas, quando fala
como um Historiador, em suas narrativas particulares, ele [Hume trata de Maquiavel como
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Não é equivocado dizer que tal julgamento histórico acaba por equiparar, de
alguma forma, os atos dos indivíduos do passado aos do presente. Contudo, é
igualmente prejudicial enformar todo seu método comparativo, seja em relação ao
passado e em relação à política de seu tempo, por esse mesmo e exclusivo viés de
equivalência. uma passagem mais longa do próprio Meinecke que coloca com
maior precisão a noção de história em Hume:
La experiencia le enseñaba, sin embargo, que la diversidad del gusto entre los
hombres, pueblos y épocas, es mucho más considerable de lo que pudiera parecer
a primera vista (…). Las inocentes peculiaridades que encontramos en las obras
de arte del pasado, no deben perturbar nuestro juicio. Los errores especulativos de
la religión son igualmente disculpables y la crítica de la poesía antigua puede
prescindir de los absurdos de la doctrina pagana sobre los dioses. Pero donde se
manifiesta la beatería y la superstición o donde las ideas de la moral y de la
congruencia aparecen sensiblemente violadas, en tal caso debe juzgarse que el
arte se ha deformado
251
.
O que encontramos pode ser descrito como uma dualidade: as questões
morais, presentes no julgamento histórico, onde pesa o conceito de uniformidade
da natureza humana, de uma moralidade que é sentida e não racionalizada por
todos os homens e em todas as épocas
252
, e que cabe ao historiador considerar a
virtude de um tempo ou, em contrário, os seus vícios. E um tratamento dos fatos
históricos, em cujo centro não se encontram biografias ou feitos admiráveis, mas
todo o trabalho do tempo sobre uma quantidade tal de pessoas (e de suas relações
sociais) que passa a se tornar possível inferir o desenvolvimento de eventos que
englobam uma totalidade como a Inglaterra e a Europa, a história antiga e a
contemporânea. Isso pode explicar porque Hume achava que as análises de
Maquiavel eram “falhas”, “limitadas” e que chegava a conclusões “que a
experiência posterior não tenha refutado completamente”; que o florentino havia
“vivido numa época remota demais do mundo para que fosse um bom juiz da
verdade política”; que, afinal, “o mundo é jovem demais para que se possa
formular em política um grande número de verdades gerais, que permanecerão
verdadeiras até a mais remota posteridade
253
”. A esse respeito, seria errado
afirmar que Hume tornou-se um historiador irônico, ou que seu ceticismo ao final
prevaleceu. Mais correto seria afirmar que antes de ser um “psicólogo”, Hume era
exemplo de historiador] demonstra uma indignação tão intensa contra o vício e uma aprovação tão
vigorosa da virtude, em muitas passagens (...)”.
251
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su Genesis. Op. Cit. p. 188
252
CONNIF, James. Hume´s Political Methodology. Op. Cit. pp. 391-392
253
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. pp. 195-196
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um moralista, um sociólogo e um historiador
254
, que possuía uma visão
secularizada dos assuntos humanos que se traduzia pela atualização do
conhecimento, tendo como resultado o julgamento do passado na sua relação com
um projeto “de uma sociedade justa na sua própria época
255
”. Aquela dualidade
significa que, em Hume, qualquer forma de relativismo embutido no método
comparativo encontrará como limite o julgamento do historiador
256
. Todavia, esse
julgamento é posterior não a uma concepção otimista (uma idealização e um
projeto trans-histórico), mas sim a uma teoria histórica que leva em conta
transformações na coletividade, nos modos, nos costumes de povos, sendo essas
transformações percebidas pelo aperfeiçoamento político, pelo desenvolvimento
dos governos. Este é o marco para Hume, a partir do qual realiza suas
generalizações: a tese de que se pode verificar o desenvolvimento social conforme
seu governo. É provável que, por definir esse recorte, esse modelo, Hume tenha
pensado que tal aprimoramento era extremamente recente, e que poderia correr
excessivos riscos por ser o fator primordial para o futuro das nações
257
; que, como
moralista, cabia a ele denunciá-los. Em síntese, seu método histórico (crítico-
comparativo) é principalmente secularizado. O que não é um sentido histórico
desenvolvido a partir desse método. Em seu lugar, encontramos uma abordagem
judiciosa dos fatos históricos. Não uma autonomia dos fatos históricos porque
não houve, “automaticamente”, uma “substituição” do sentido escatológico,
providencial, por outro equivalente
258
. A compreensão das relações sociais para
Hume estava relacionada a um devir em aberto, sendo que o julgamento moral dos
fatos históricos realizado por aquele que os analisa ocupa apenas uma parte do
método.
Um elemento de grande importância para aquele período, assim, reside na
distância das concepções sociais (muitas vezes idealizadas) do passado e do
presente, que tal abordagem da história tornou mais explícita. O que era também
uma característica do século XVIII, e que de maneira especial está representada
em Hume, é estabelecer um critério que avalia, com alguma solidariedade, os atos
254
DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. Op. Cit. p. 12
255
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso. Op. Cit. p.164
256
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 504: “Príncipes e homens de
estado, em todas as eras, podem, de antemão, se mostrar cegos em seus raciocínios sobre os
acontecimentos. Mas seria extraordinário que os historiadores, posteriormente, não formassem um
julgamento mais sólido sobre eles”.
257
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 229
258
SABINE, George H. Hume’s Contribution to the Historical Method. Op. Cit. p. 18
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84
históricos em relação a uma (ainda que comprovável empiricamente) constante da
natureza humana: no caso, um critério moral
259
.
5.6
A uniformidade da natureza humana
Vimos anteriormente que o escocês dava prosseguimento à hipótese da Lei
Natural reconhecendo o vínculo dos homens em sociedade, secularizando-a. A sua
regra geral se fia, sobretudo, por uma história das grandes transformações, capaz
de demonstrar, através de uma gama de exemplos, o grau de penetração de
determinadas mudanças sociais. Por isso o gênio dificilmente é uma mera
individualidade à parte do meio no qual surgiu. As mudanças em Hume, pelo que
ele demonstra ser o limite de seu tratamento dos fatos históricos, são
essencialmente frutos de uma integração social entendida como existente:
To this Zeitgeist, as well as to individual genius, must be attributed the
achievement of a people, whether in the practical affairs of government, politics,
and commerce, or in such intellectual products as literature and art. For, from this
point of view, the individual is seen to exist no longer as an isolated unit but to
stand in the closest reciprocal relations with the society about him
260
.
Tal consideração demonstra, a princípio, que uma história de longa
duração é fundamental para que se apreenda todas as variantes do
desenvolvimento de uma civilização, e de que maneira as transformações puderam
suceder-se e dar origem ao Estado contemporâneo. Pensadas como numa rede, as
informações particulares contêm em si o registro de tal ligação. Em sendo assim,
uma crítica histórica é capaz de revelar que por detrás dos eventos mais singulares
existe toda uma explicação ordinária, uma relação melhor demonstrável quando
mais fatos vêm à superfície, para substituir o trabalho da imaginação pura pelo da
evidência verossímil. Aqui se encontra de forma marcante (e problemática) o
conceito da uniformidade da natureza humana. Como observamos, sua
característica mais criticada é a da trans-historicidade, reflexo da concepção de
um homem em constante estado natural. Poucas dúvidas restam de que para o
autor dos Ensaios as relações sociais não eram de forma alguma diretas, e de que
259
Idem, p. 1: Para a atual historiografia, “As no two beings have exactly the same physical
antecedents, so no two have precisely the same training and formative influences brought to bear
upon them, and no two stand in exactly the same functional relations to other men. In a word, no
two are precisely the same person”.
260
Ibidem, p. 2
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85
havia transformações inegáveis entre um período histórico e outro que se
manifestavam na própria representação do homem moderno versus o antigo. A
consequência que o conceito de uniformidade da natureza humana em Hume
reflete, em sua ponderação histórica, é que, embora dessemelhantes conforme a
variação temporal e sica, todos os indivíduos são dotados de princípios
psicológicos uniformes, cujo fundo básico é a moralidade: “We proceed not from
what we ‘known’ but from what we believe, think to be so, and, most importantly,
what we want to be so
261
”. A conduta humana é uniforme que nascemos com
determinados sentimentos que guiam nossas ações, e que não podem ser
explicados pela força do intelecto:
A natureza dotou todos os animais de um preconceito semelhante, em favor de
sua descendência. Assim que a criança indefesa a luz, embora a todos os
outros olhos pareça uma criaturinha desprezível e miserável, ela é vista por seu
pai orgulhoso com a maior afeição e é preferida a qualquer outro objeto, por mais
perfeito e bem acabado. Somente a paixão, derivada da estrutura e formação
originais da natureza humana, atribui valor ao mais insignificante dos objetos
262
.
Essa característica é capital à existência social humana. A uniformidade -
os mecanismos psicológicos semelhantes - é o que permite a integração entre os
homens e a continuação da espécie, é o que garante certos padrões de
expectativas, que os julgamentos mais comuns não sejam arbitrários, é o que torna
possível, em última análise, a comunicação: “In Hume’s view, the postulation of a
moral sense is supported by empirical evidence. When we undergo a certain
experience, we feel certain sensations; (...). What is more, we can generalize from
our own experience from that of others. When we see others experience an
emotion, our nature leads us to experience the same emotion
263
”. Como bem
distingue Forbes, nesse caso a semelhança das atitudes humanas forma uma
“psicologia geral”. São abstrações percebidas na variedade concreta da
experiência humana, são invariáveis que encontramos nas mais variadas ocasiões
(como exemplo, se espera que bebês não raciocinem como adultos), mas que não
se reportam especificamente ao “conteúdo da mente”, este sim diverso e variável,
de acordo com as circunstâncias sociais e históricas
264
. Existe uma padronização
do sentimento que se reflete diretamente no juízo moral. Este é o argumento que
261
CONNIF, James. Hume´s Political Methodology. Op. Cit. p. 391
262
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 287
263
CONNIF, James. Hume´s Political Methodology. Op. Cit. p. 392
264
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. pp. 117- 119
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86
abandona a imagem de brutalidade, egoísmo e selvageria no princípio dos tempos
e instaura uma de socialização (ainda que mínima, relativamente) - a percepção de
si é comparável a dos outros, a associação é a premissa da natureza, agora e no
passado. Convenções tornam essa primeira reunião ultrapassada em seus modos
conforme a distância temporal se alarga entre um ponto e outro. Todavia, essa
característica primeva conserva-se inalterada, e a uniformidade não se desgasta no
tempo:
Psychology, or the science of man in its narrowest sense, Hume thinks is about as
certain a science as any that deals with matters of fact and existence, in so far as
we know our minds by introspection.(…); repetition of experience must imply
abstraction. The principles of general psychology are certain in so far as they are
abstract: the mechanism of association would presumably be the same even if
human nature were to undergo a total change in every other respect.
Encontramos uma diferença maior quando o tema da reflexão se torna
mais complexo, e os fatos da experiência contradizem o senso comum da
introspecção, como no caso do desenvolvimento das artes e ciências ou quando as
mudanças gerais dependem de particularidades, da singularidade de um caráter ou
de um evento fortuito. A escolha da política, nesse sentido, também não é casual
para a análise de Hume, que nela o observador experiente é capaz de prever e
antecipar um efeito conforme sua experiência no assunto. Em política encontra-se
uma regularidade mais explícita posto que nela o envolvimento do todo social é
decisivo, e suas deliberações geram um impacto abrangente sobre a sociedade
265
.
Por isso, quanto mais particular for, menos previsível; inversamente, quanto mais
relacionada a características regulares (leis e instituições), maior será o grau de
previsibilidade a seu respeito e, nesse sentido, por mais tempo uma verdade geral
poderá ter serventia
266
. A oposição entre causas e acaso conecta-se à uniformidade
da natureza humana porque em conjunto, em grandes quantidades, os homens
tendem a comportamentos que podem ser descritos em termos uniformes. A
função do historiador é desvendar que tipo de causa prevaleceu e que aspectos se
tornaram acessórios via uma amostragem empírica que se revelará uniforme
segundo o grau de penetração de uma tendência em uma sociedade: a história de
uma monarquia poderia ser completamente diferente caso o soberano fosse outro,
mas dificilmente é tão instável e idiossincrática quando a vontade de um não se
265
Idem, p. 224. Ver HUME, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Op. Cit. p.
96 (citado por Forbes)
266
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. pp. 119-120
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sobrepõe às regras determinadas pelo tempo. É assim que a verificação histórica
de Hume lhe permite generalizar. A impessoalidade que observa no
desenvolvimento dos estados modernos é não benefício da lei como demonstra
o aprimoramento social, uma vez que é esse período histórico que admite a
fundamentação de uma ciência política
267
.
Por todas essas características, a uniformidade da natureza humana
corresponde em Hume simultaneamente a uma psicologia (referindo-se à
introspecção) e a uma evidência empírica de caráter histórico, isto é, que admite
mudanças profundas sobre os indivíduos dotados de uma mesma sensibilidade e
moralidade. Torna-se, assim, simplificada uma visão exclusivamente psicológica
da história como palco de eventos demonstrativos dessa interioridade constante na
diacronia
268
. É fato que, segundo o critério da moralidade, o historiador
compreende também um juiz, como a descrição sobre o estudo da história torna
manifesta; simultaneamente há também o não menos importante fato de uma
crítica histórica secularizada, que impõe, por meio de evidências, o devir como
mudança, como diferença de situações e de expectativas. Quanto mais se associa
uma concepção psicológica uniforme à esfera do interesse histórico de Hume,
menos este se distingue do “preconceito jusnaturalista”, como se, à revelia da
percepção de um estado moderno e refinado devêssemos procurar o mesmo
homem natural entre os gregos antigos e os ingleses
269
.
267
Idem, p. 222: “Politics can be treated as a science to the degree that it is independent of the
humors and temperament of particular men; in so far as there is a more or less regular form of
government”.
268
HUME, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Op. Cit. p. 39 (nota): “Se inato
é equivalente a natural, então se deve conceder que todas as percepções e idéias do espírito são
inatas ou naturais, em qualquer sentido que tomemos este último termo, (...), entendendo por inato
o que é primitivo ou não copiado de nenhuma percepção precedente, podemos então afirmar que
todas as nossas impressões são inatas e que nossas idéias não o são” (grifo final nosso).
269
A crítica de Forbes a uma interpretação trans-histórica de Hume centra-se ao fato de que a
uniformidade da natureza humana está relacionada à descrição da vida comum, sendo os mais
variados exemplos históricos a confirmação das invariáveis humanas mais banais e cotidianas, não
menos importantes por isso, mas sem referência exclusiva às causas complexas das transformações
sociais, como o desenvolvimento econômico de um período ou a relação entre o estado e os
legisladores. FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics.Op. Cit. p. 117
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88
5.7
A quarta observação
A última observação do ensaio sobre as artes e as ciências possui
implicações relevantes para a compreensão do tratamento dos fatos históricos em
Hume. Nela lemos Que, quando as artes e as ciências chegam à perfeição em
qualquer estado, a partir desse momento naturalmente, ou melhor,
necessariamente, entram em decadência e raramente ou nunca voltam a ser o que
eram nessa nação onde originalmente floresceram
270
”. Deve-se notar,
prontamente, que na observação Hume aborda de maneira central as artes e
ciências, mas não de maneira aberta a questão do desenvolvimento político, de
leis ou instituições. Na seqüência do breve argumento, o escocês retoma o
aprimoramento da modernidade nas artes (e nas ciências, embora não
explicitamente): “Os modelos que nos deixaram os antigos deram origem a todas
as artes há cerca de duzentos anos e contribuíram para o seu progresso em todos
os países da Europa”. Trata-se de uma evidência empírica e, por isso, apenas em
aparência, “contrária à razão”. O que é demonstrável, “conforme à experiência”, é
que há, historicamente, uma lacuna cultural entre a antiguidade e o presente: “Por
que não tiveram [esses modelos] um efeito semelhante durante o reinado de
Trajano [53-117 d.c.] e seus sucessores, quando esses padrões ainda estavam
quase intactos e ainda eram admirados e estudados no mundo inteiro?”; mesmo
sob Justiniano (527-565) e “ao longo de culos, nenhum poeta apareceu que
pudesse pretender sequer imitá-los
271
”. Para compreender como essa lacuna se
deu, Hume estabelece um argumento análogo à sua segunda observação (do
mesmo ensaio sobre as artes e ciências) e que se encontra também nos seus
ensaios econômicos, a saber, o papel da emulação. Quando uma livre
correspondência econômica e política entre os estados, ocorre, simultaneamente,
emulação e imitação, saudáveis ao aprimoramento e desenvolvimento daqueles.
Nesses dois casos (economia e política) observa-se que muito para ser feito, e
que apenas lentamente o estado conquista seus maiores benefícios, de modo que a
concepção primeira é a de uma via em aberto
272
, que não deve admitir obstáculos
270
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 251
271
Idem, pp. 251-252
272
No ensaio sobre a balança comercial Hume argumenta acerca da desconfiança em “relação ao
livre comércio”. Não obstante ele defender certas “tarifas protecionistas”, esta é uma característica
secundária quando trata em geral do assunto. Por isso mesmo, na seqüência a esse ensaio,
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à competição e a influência. Diferente efeito encontra-se nas artes e ciências,
porém. Sob um determinado período, contrariamente à lenta “evolução”
institucional e econômica, aquelas chegam à perfeição. Um Homero e um Virgílio
são artistas geniais e irretocáveis, estabelecem um padrão de gosto para o seu
tempo e adiante dele, obliteram os demais, estancam a emulação, não como
rivalizá-los. A genialidade, todavia, é um processo dependente do meio. O gênio
necessita de “repetidas tentativas” até encontrar a repercussão que lhe indique o
parâmetro de sua excelência. Por isso mesmo, quando a perfeição foi atingida
num tempo, o terreno para que um novo gênio desponte acha-se estéril.
Acostumada à arte maior, a sociedade não acomoda a inferioridade natural das
primeiras iniciativas de um futuro mestre, e a conseqüência será o silêncio e até o
desprezo, e já não há emulação possível e, tampouco, o “elogio e a glória”,
estímulos essenciais para o gênio de um homem em formação. Segue-se então
uma apatia necessária nas artes, uma decadência fadada a repetir-se em ciclos,
quando outras condições históricas impõem novas perspectivas e os antepassados
podem ser uma vez mais a referência para diferentes modalidades de artes e
ciências, quando “não existe comparação entre o espírito daquela época e o
moderno
273
”.
Essa percepção do desenvolvimento das artes
274
e ciências na história é
denominada por Forbes como “pêndulo oscilante” (swinging pendulum).
Incoerente, todavia, à sua noção de gradual progresso via experiência político-
social, tal visão de períodos históricos de perfeição e de decadência pode estar
mais próxima do “prejuízo” estético baseado na canonização da antiguidade,
sobretudo em seu período. E tal “prejuízo” pode ser inferido diretamente dos
próprios Ensaios, que a avaliação dos paradigmas dos antigos usualmente se
torna clara durante a explicação das mais variadas teses, mesmo sendo, em Hume,
tais paradigmas ajuizados constantemente de maneira crítica e também
comparativa – a ubiqüidade, entretanto, já demonstra o grau de penetração e
influência da antiguidade. Do ponto de vista de uma teoria histórica, o escocês
realiza de modo semelhante nesta quarta observação o que faz em outras de
encontramos um outro com o título menos ambíguo possível de sua teoria econômica: Da
Desconfiança no Comércio. Ibidem, p. 470 (nota) e p. 493
273
Ibidem, pp. 252-254
274
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 315
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caráter político: a noção de um progresso recente e sua comparação com eventos
históricos do passado, representados, muito brevemente, por Trajano e Justiniano.
Essa observação serve também a uma ponderação do escocês: “Talvez não
seja vantajoso para qualquer nação importar arte de seus vizinhos que tenham
atingido uma grande perfeição. Isso extingue a emulação e estanca o vigor da
juventude
275
”. Contrastando o papel da emulação e imitação encontrado no
desenvolvimento da sociedade civil, chega-se ao ponto que causa a real distinção
para as artes e ciências e, por conseguinte, a adoção de uma perspectiva pendular
nestes casos: a concepção de exemplos perfeitos. Isso significa que o olhar
estético (no caso, priorizando as artes) europocêntrico de Hume, não obstante
qualificado de cosmopolita, pode ser demasiadamente gido, implicando uma
concepção quase (se não inteiramente) universal de cultura, vista como, embora
distinta historicamente (refiro-me à expressão “espírito da época”, por ele
empregada), muito assemelhada num contexto contemporâneo.
Esta, entretanto, não é a implicação mais relevante em nossa análise. Cabe
compreender como duas concepções antagônicas de desenvolvimento histórico
subsistem no autor. Acima vimos que uma das implicações da regra geral era a de
que determinados períodos históricos simplesmente não poderiam ser descritos
empiricamente, pela falta de maiores evidências das relações sociais ocorridas em
seu interior. Implicitamente podemos inferir que em determinados períodos
históricos tal falta se deveu a uma condição algo “bárbara” e, se comparados a
períodos anteriores, essa condição não foi primeira, constituindo uma espécie de
“decadência” cujo exemplo altivo é a Idade Média. Hume é razoavelmente
explícito sobre este aspecto: “(...) somente os sentimentos e as opiniões dos
períodos civilizados são transmitidos à posteridade (...)
276
”. No ensaio sobre as
populações antigas, e adotando o ponto de vista do desenvolvimento do universo,
isto é, o mais amplo possível, ele afirma “(...) não podemos estar seguros se, no
presente, ele [o universo] está avançando rumo ao seu ponto de perfeição ou se
está se afastando dele, decaindo
277
”.
275
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Op. Cit. p. 253
276
Idem, p. 431. Essa passagem, do ensaio sobre o refinamento nas artes, faz parte do contexto no
qual Hume procura mostrar que gregos e romanos eram tão refinados quanto virtuosos (segundo o
rígido conceito de virtude antiga em contraste com o de refinamento moderno), tema tratado
neste capítulo.
277
Ibidem, p. 558
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Isso contradiz, porém, a própria compreensão de progresso gradual pela
experiência, que demanda uma quantidade de tempo sem referência exclusiva à
modernidade. Além disso, sob a ótica estritamente pendular da história,
subentende-se que o aprimoramento dos governos modernos se deva à capacidade
de apreensão da exemplaridade reconhecida nos períodos civilizados do passado,
resgatada por uma iluminação atual e revestida de deferência suplementar mas
tal descrição não permeia a idéia de uma crítica comparativa praticada por Hume.
O que parece estar na base dessa “incoerência” é que o desenvolvimento histórico,
quando estabelecido de modo contínuo, é longo, gradual, lento, o aperfeiçoamento
se distingue no decorrer de gerações e, em seu centro, o demorado trabalho das
leis e instituições. Simultaneamente, pode-se observar as mudanças políticas (e
revoluções) apressadas, cujo caráter é negativo por justamente ir de encontro ao
tempo necessário ao aprimoramento. A longa duração em história é, portanto, uma
percepção que se torna possível quando a história demonstra de alguma forma
continuidade, ou, para usar uma expressão mais contemporânea, uma evolução,
onde se pode identificar pontos de contato entre um período e outro. Uma teoria
da história em Hume está por isso atrelada à sua verificação da modernidade, e
essa teoria existe enquanto tal sob a noção de aprimoramento, que divisa, entre
outras coisas, a regularidade entre um período e outro, instaurando,
conseqüentemente, descontinuidades, que podem estar refletidas na concepção
pendular de períodos onde o desenvolvimento social se encontrava mais
dependente de características particulares (proeminentes numa soberania
dinástica, por exemplo) ou não estava, de algum modo, mais explicitamente
caracterizado (como numa forma primitiva de técnica agrícola, e como num
estado de trocas comerciais incipientes e inconstantes).
Se há em Hume uma concepção da história de fluxos e refluxos, de
decadência e progresso, há, não obstante, também uma concepção da história de
continuidade, de longa duração, que se encontra marcadamente na trajetória
político-social, explicitada na regularidade institucional dos governos modernos.
O que a teoria histórica do escocês não encontra de maneira abrangente e
uniforme nos períodos do passado é o que ela demarca como a característica
principal do presente. Igualmente, pode haver no presente a mesma instabilidade
social (ou o perigo da mesma) que propiciou a decadência no passado (e essa
instabilidade, no presente, está representada, enormemente, pelo facciosismo). E
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talvez seja por isso que tal método de compreensão e de teorização da história não
subsista sem a idéia de que esta deve, via política, ser controlada
278
, e que o
desenvolvimento social desmesurado leva, necessariamente, a um ponto extremo
de instabilidade social, a partir do qual o processo histórico irá se mover na
direção contrária
279
. Em assim sendo, o papel dos agentes políticos, das
instituições e de determinadas circunstâncias é prioritário em relação ao futuro,
que na modernidade se apresentava mais imprevisível ainda. Representando a
totalidade social eles (tais agentes e circunstâncias) na verdade a moldam,
influenciando seus modos e costumes: a história é, assim, pensada de “cima para
baixo”, pelo motivo de que em Hume não há como pensá-la em termos de
continuidade de outra maneira
280
.
Quando Hume fala em perfeição e decadência como processos
“necessários” (e até mesmo inevitáveis) devemos compreendê-lo especialmente
na sua reflexão sobre as artes e ciências. Quando fala a propósito de experiências
políticas do passado, e de seu malogro, refere-se, sobremaneira, a um controle
maior ou menor (e a uma importância maior ou menor) das instituições (ou de
lideranças) políticas sobre o desenvolvimento social – e aí não vemos tanto
progresso e decadência, fluxo e refluxo: antes, uma descontinuidade, uma quase
ausência de compreensão de tal controle e observância (para usar um exemplo, a
economia primitiva da antiguidade e a decorrente falência do império romano
devido a uma expansão não sustentável do mesmo). Portanto, a importância da
crítica para esta teoria histórica; a importância da regularidade moderna; da
concepção de aprimoramento via política
281
; do projeto de atualização e
secularização do conhecimento; de um certo grau de civilidade que, sobretudo,
acaba por determinar a existência da História. E, por isso também, da
impossibilidade de um entendimento do processo histórico que não se remetesse,
de alguma forma, à modernidade; da intermitência no desenvolvimento do
278
FORBES, Duncan. Hume´s Philosophical Politics. Op. Cit. p. 190 e p. 228
279
Idem, p. 190
280
Ibidem, p. 320: “The role of society is to provide the ‘opinion’ on which all governments are
said to be founded. But this ‘opinion’ is a negative check on government: not a positive social
force. The people in the last resort can unmake a government: they cannot make one. (…). The
majority of the people are always found either in a state of political inertia, owing to the enormous
power of habit and habitual deference to authority, so that, in addition to inspired leadership,
external factors, (…), are required to translate opinion into action.” (grifo nosso)
281
Ibidem, p. 322: “Not only is government absolutely essential to the progress of civilization, it
is an active agent in the process”.
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passado versus a regularidade e continuidade possíveis no presente
282
; dos
períodos obscurecidos da história
283
.
A idéia de que a história se definia meramente pela sua utilidade restringe-
se ao seu caráter de via para o aprimoramento, tornando os seres refinados,
compreendendo uma parte da concepção de Hume. A outra parte pode ser descrita
pela formulação de Pocock, citada no terceiro capítulo: o governo como fenômeno
contemporâneo que se formou num longo processo histórico, da incoerência
antiga a uma coerência maior na modernidade.
282
Ibidem, Hume and the Scottish Enlightenment. Op. Cit. p. 88
283
SABINE, George H. Hume’s Contribution to the Historical Method. Op. Cit. p. 21
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6
Considerações finais
Os Ensaios Morais, Políticos e Literários de Hume são de difícil síntese.
Em suas alusões às vezes diretas, às vezes indiretas, pode-se, contudo, apreender
desta obra a intenção de estabelecer uma filosofia política que, por sua vez,
compreende uma visão da história e um tratamento dos fatos históricos. Como
expomos, havia uma dupla percepção: uma história (principalmente das artes e
ciências) que se mostrava em fluxos e refluxos de progresso e decadência, cujo
parâmetro seria uma perfeição alcançada por obra de uma genialidade que, em
determinados períodos, expõe a relação entre o indivíduo e seu contexto (isto é,
quando ele traduz o “espírito de um tempo”, e, por conseguinte, um progresso
geral da coletividade) e que em outros períodos, (embora existam exemplos de
genialidade) não é possível inferir a mesma relação, de onde se deduz uma
decadência, pois apenas o indivíduo sobressai. O movimento de fluxo e refluxo se
porque no progresso geral as artes e ciências alcançam uma perfeição que,
segundo Hume, leva a uma decadência necessária até que um novo momento
histórico favoreça diferentes modalidades nessas áreas. A outra percepção de
Hume ligada à história estaria numa ciência política que enxergava o
aprimoramento moderno não como um evento sem lastro histórico, mas como
uma gradação de longo prazo que se instituiu no decorrer de sucessivos períodos e
cuja “manutenção” passa por um envolvimento das forças políticas em ação na
sua conformidade com um devir simultaneamente ancestral (no que se refere ao
entendimento crítico da história do passado) e contemporâneo (no que se refere ao
entendimento das causas que levariam ao aprimoramento social, como a
necessidade de trocas entre os estados legais, regidos por leis e instituições, não
pelos homens). Devido a esta dupla abordagem, Hume se coloca de maneira algo
paradoxal no tratamento, por um lado, da política e economia e, por outro, das
artes e ciências. Para aquelas, o escocês considera a emulação, a disputa e a
imitação como indispensáveis ao aprimoramento no decurso histórico, por
entender que qualquer avanço nessas áreas é extremamente gradual. Em sendo
assim, a condição moderna apenas alcançou sua virtude em termos de liberdade,
instituições, justiça, comércio, tecnologia etc. após sucessivos estágios”, após
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uma certa continuidade histórica, que pode ser compreendida teoricamente se
pensada em termos de longo prazo, e que, por isso mesmo, não admite “cortes”,
interrupções, “revoluções apressadas” e, principalmente, idealizações que não
passam por uma crítica histórica. No que se refere à visão histórica das artes e
ciências, entretanto, a perfeição atingida num período, obra de individualidades,
não corresponde à emulação e imitação (o escocês diz que estas devem ser
inclusive evitadas por serem prejudiciais), representando, no máximo, e em
apenas alguns momentos históricos, o espírito da época. Tal compreensão o leva a
considerar a história como uma descontinuidade dividida em perfeição e
decadência, em ciclos, e, para Forbes, como um “pêndulo”, delimitando, como
que por uma necessidade, as rupturas e os cortes que não participam da
compreensão teórica da história política e econômica.
Contudo, ainda que em aparência tais posturas instaurem um paradoxo,
elas se tornam mais discerníveis à medida que se compreende a idéia de Hume
sobre a modernidade, e por que apenas nesta uma ciência política se tornara
possível. Na sua lenta transformação histórica, as sociedades passam por
mudanças que acabam por desconectar o elo das práticas do passado e das práticas
do presente. A crítica comparativa de Hume é, neste sentido, voltada para um
devir sempre mutável, e as intervenções humanas na vida política instituem
intervenções no “conteúdo mental” das gerações que se sucedem, o que significa
dizer que a semelhança entre um grego antigo e um inglês contemporâneo é de
ordem psicológica, não histórica. Percebe-se, no tratamento dos fatos históricos
feito pelo escocês, uma sensibilidade dessa variação, que repercute na concepção
das transformações políticas da modernidade pelo conceito que Forbes designa de
regularidade política, isto é, o atestado de uma mudança geral (entenda-se
Europa) calcado na sobriedade e na potência da lei enquanto elemento que
permite o desenvolvimento político dos Estados, num cenário de complexificação
das relações sociais a partir de verificadas mudanças na vida material (que a
Inglaterra exemplificava muito bem, como observamos no debate acerca da
virtude e refinamento, e no aspecto positivo dado às trocas comerciais). Por esta
razão Hume entendia que certa liberdade social havia sido alcançada na Europa
moderna, mesmo quando se tratava de monarquias, e que esta liberdade permitia o
exercício de novas práticas (econômicas, sociais etc.) e o aprimoramento dos
indivíduos. As monarquias civilizadas faziam parte do mesmo movimento que
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demarcava uma existência social voltada para uma nova relação com as coisas e
com o mundo material, aberta a novas possibilidades, podendo ser compreendida
pela reflexão secularizada que excluía da convivência ordinária quaisquer
elementos supra-existentes ou convicções particularizadas: a generalização em
política depende da regularidade institucional (quando as leis antecedem as
vontades individuais) que, por sua vez, possibilita a existência de novas práticas e
a abertura a uma compreensão crítica do mundo as generalizações que Hume
empreende remetem a questões de caráter político, do sustentáculo dessa vida
social mutante, e tratam, no mais, de refletir sobre as condições de possibilidade
desse devir, e, por isso mesmo, encontramos nelas o temor obstinado para com
revoluções “apressadas” e idealizações trans-históricas.
Torna-se importante, por isso, em nossa reflexão sobre a história, a partir
dos Ensaios de Hume, compreendermos que uma noção metodológica baseada
num levantamento das transformações gerais pelas quais passam as sociedades
historicamente, um tratamento que se faz empírico na medida em que relaciona a
história social a uma coletividade, a uma solidariedade capaz de explicar eventos
que de outra forma seriam considerados na sua singularidade, pelo que condensam
em si e pelo que marcam subseqüentemente a história de um povo. Esta
explicação, que pressupõe um relacionamento contemporâneo entre as mais
diversas manifestações sociais, e que, conseqüentemente, distingue entre a causa e
o acaso, acaba por estabelecer uma prioridade da História sobre o episódico.
Todavia, ela é coexistente, em Hume, a uma percepção de que tal prioridade
pode ser estabelecida quando se percebe um sentido de continuidade com ênfase
nas práticas políticas, o que o leva a demarcar, retrospectivamente, a história em
períodos intermitentes, principalmente a história da “cultura”, que atada por
forte dependência à história política. Não é coincidência alguma o fato de as artes
(e ciências), após uma longuíssima “lacuna” histórica, terem “ressurgido”, aos
olhos do autor dos Ensaios, no mesmo período em que se encontra a lei antes da
vontade e o geral antes do indivíduo, em que uma metodologia “científica”
finalmente pôde ser transplantada para a reflexão dos assuntos humanos.
A ciência política tem, pois, como objetivo essencial estabelecer as
condições estruturais a partir das quais as manifestações da cultura se alocam,
permitindo assim a continuidade do desenvolvimento social. Esta estrutura
primeira, a ser definida por tal ciência, haverá de constituir, historicamente, um
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espaço de previsibilidade que servirá como contraponto à constante mutabilidade
das diversas práticas nas sociedades modernas; em Hume o mundo pode alcançar
uma condição de aperfeiçoamento diante da qual será reconhecida a sua
“maioridade”, quando ele deixar de ser “jovem demais para que se possa formular
em política um grande número de verdades gerais, que permanecerão verdadeiras
até a mais remota posteridade”, quando, finalmente, sínteses teóricas forem capaz
de não apenas descrever, mas também de estabelecer um direcionamento à
trajetória das sociedades.
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