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ANA MÁGNA SILVA COUTO
DAS SOBRAS À INDÚSTRIA DA RECICLAGEM:
A INVENÇÃO DO LIXO NA CIDADE
(UBERLÂNDIA-MG, 1980-2002)
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
PUC-SP
2006
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ANA MÁGNA SILVA COUTO
DAS SOBRAS À INDÚSTRIA DA RECICLAGEM:
A INVENÇÃO DO LIXO NA CIDADE
(UBERLÂNDIA-MG, 1980-2002)
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Doutor junto ao
Programa de Estudos Pós Graduados em História, área de
concentração em História Social, sob a orientação da
Profª. Dra. Yara Aun Khoury.
MARÇO DE 2006
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RESUMO
Esta pesquisa buscou problematizar as relações vividas em torno do lixo, na cidade de
Uberlândia-MG, ao longo dos anos de 1980 a 2002. A questão do lixo constitui assunto
vasto e complexo. Como problemática do espaço e do viver urbanos, o lixo pode ser
apreendido, entre outras coisas, como empreendimento/negócio, trabalho/sobrevivência e,
também, no que se refere ao governo municipal, problema da administração pública e da
política.
Propusemo-nos a lidar com o lixo como objeto de análise histórica, problema social e
político, nova maneira de trabalhar e de sobreviver, fator com implicação direta na vida das
pessoas. A documentação analisada contribuiu para decifrar algumas transformações que
se inscrevem em diversos espaços, possíveis de ler nas diferentes formas de lida e
apropriação dos restos. Registros que traduzem o modo como a visão sobre o lixo veio
modificando-se, delineando um processo histórico em que as relações estabelecidas com
ele revelam profundas mudanças no corpo da cidade e na sensibilidade de seus moradores.
Nesse caminho, as alternativas e soluções que se encontram, para dar um destino aos
restos que a cidade produz, articulam-se à instituição dos lugares de lixo, contribuindo para
evidenciar importantes aspectos da vida urbana determinados hábitos da população e
limites de normas e leis, que, por vezes, deixavam de ser observados até mesmo pelos
órgãos públicos. Ao percorrer uma cartografia desenhada pelos restos, tomamos
consciência das hierarquias e contradições sociais que eles contribuem para desnudar. Num
curto período de tempo, a problemática do lixo assume diferentes dimensões e crescente
complexidade: de uma questão ambiental e de saúde pública a sua institucionalização como
mercadoria. O gerenciamento dos restos delineia não apenas novas ingerências da
sociedade, tanto sociais quanto políticas, como também uma percepção de que da
exploração do lixo é possível se auferir lucro.
ABSTRACT
This researchs sought problemas of relationship of living around the trash, in the city of
Uberlandia-MG, for the years of 1980 thru 2002. The question of the trash constituted
complex and vast matter. As problematics of the space and of live urban, of trash can be
learned, between other things, as empreendiment /negotiate, work/survive and as well in
what refers, to the municipal government, problem of the administration public and of the
political.
We proposed ourselves to deal with trash as object of analyzes history, social problem
and political, new way to Work and to survive, factor with implication strainght the life off the
people. A document contributed for deciphering some transformation that Itself inscribes In
the space possible of to read in the different forms of handles and apropriation of the
remainders. Register that will translate the way to look at the trash history in that the
relationship established with him reveals deep changes in the body of city and in the
sensibility of his inhabitantes.
In that road, the alternatives and solution that be found for give, a fate to the remainders
that the city produces, articulates itself to Institution of the places of trash, contributing for
evindential important aspects of the urban life determined habits of the population and
limits of norms and laws, that for times, left of to be observed keeps even by the
organizations publics. Upon studing a plan designed by the contradict social that they
contribute for disobey. In a short period of time, a problematic of the trash assumes different
dimentions and growing complexity: of a question environmental and of health public to his
institutionalization as merchandise. The management of the remainders delineate not barely
new instruction of the society, so much social as much as political, like a perception of the
exploration of the trash and possibility itself to earn profit.
BANCA EXAMINADORA
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A GRADECIMENTOS
Por mais sozinha que tenha me sentido nos três últimos anos em que estive
envolvida com esta pesquisa, sei o quanto ela é fruto de múltiplos esforços coletivos.
Muitas pessoas ajudaram-me, sem elas, teria sido impossível chegar até aqui. Ratifico
que os equívocos presentes são de minha inteira responsabilidade. Há tempos vinha
ensaiando na mente o que, afinal, escreveria nesse momento, pois bem, vou, enfim,
fazê-lo.
Agradeço à Professora Déa Ribeiro Fenelon por ter me incentivado quando meu
trabalho era apenas uma idéia em gestação. À Professora Heloisa de Faria Cruz,
porque despertou minha atenção para questões que vêm perseguindo-me
continuamente. Às Professoras Coraly Gará Caetano e Luzia Márcia Rezende pelas
preciosas observações ao ler e discutirem comigo o projeto inicial de pesquisa. Preciso
reforçar minha gratidão à Coraly, em razão do permanente e incondicional estímulo e,
também, por ter lido fragmentos do texto enquanto eu o produzia e, simultaneamente, a
ansiedade consumia quase todo o meu ser.
Ao José Amilton de Souza, pela generosidade, rara nos dias de hoje.
Compartilhamos muito: alegrias, anseios, idéias, documentos e textos.
Aos meus amigos do Núcleo de História Oral da Universidade Federal de
Uberlândia, onde tudo começou. Sou grata à Professora Jorgetânia, pelas conversas
em que trocamos, não poucas, dificuldades e dúvidas.
Quero ressaltar a valiosa contribuição de Soene Ozana de Lima, por suas
sugestões e seu entusiasmo pela pesquisa histórica.
À Tânia Brasília Fernandes, servidora pública municipal, em razão de sua
inestimável ajuda: apoio, informações, orientações, sugestões, enfim, por tudo.
À Professora Gizelda Simonini, pelas apreciações, quando da leitura em um
período que eu carecia de tal auxílio.
Ao CNPq, pela bolsa de estudos, que possibilitou desenvolver esta pesquisa.
Devo agradecer às Professoras do Programa de Estudos Pós Graduados em
História da PUC de São Paulo, em especial, às professoras Antonieta Antonacci e
Maria do Rosário Cunha Peixoto, pelas observações frutíferas durante a disciplina
Seminário de Pesquisa.
Às professoras Denise Bernuzzi de Sant'anna e, outra vez, Maria do Rosário
Cunha Peixoto, pelas inestimáveis críticas na ocasião do Exame de Qualificação.
À turma do doutorado por valiosos apontamentos durante nossos debates,
importantes para o amadurecimento da pesquisa. De diferentes etnias, origens,
sotaques, meus colegas personificavam uma curiosa amostra da fantástica diversidade
cultural que constitui o nosso país.
Com profundo respeito, agradeço à Professora Yara Aun Khoury, minha
orientadora. Reconheço e admiro a competência, o rigor e a seriedade que sempre
acompanharam suas exigências no desenvolvimento deste trabalho.
Agradeço à Dona Ione, pela gentileza em revisar o texto.
À minha família, minha mãe, meus irmãos, meus sobrinhos, uma referência à
Cássia Couto Fisher, por ter se prontificado a elaborar o abstract. Aos meus sogros,
pelas vezes em que me hospedaram, facilitando minha vida em circunstâncias de
árduo trabalho de pesquisa.
À minha amiga Eliete, por suas mensagens eletrônicas, quase sempre,
estimulantes e filosóficas.
Ao Alexandre, meu companheiro, agradeço a ajuda para resolver os diversos e
implacáveis problemas de informática. Cultivo a esperança de que o tempo e a vida
conceda-nos inestimáveis bens: humildade, maturidade e sabedoria, para sermos mais
sensíveis às pessoas e ao mundo à nossa volta.
Destaco a contribuição de vários profissionais envolvidos com a questão do lixo
na cidade, tanto na administração pública como no setor privado, quando aceitaram
dialogar comigo; os depoimentos concedidos auxiliaram-me na compreensão de certos
processos sociais inerentes a essa problemática.
Aos trabalhadores da usina de triagem do aterro sanitário de Uberlândia que se
dispuseram a falar de suas experiências de trabalho, permitindo-me refletir sobre elas.
Alguns, relatando questões de natureza muito pessoal, consentiram que eu fosse além
desse universo. Agradeço sinceramente o gesto de confiança.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 01
CAPÍTULO I
DAS SOBRAS AO LIXO: ANTIGOS E NOVOS USOS DOS RESTOS NA CIDADE, 32
CAPÍTULO II
DOS LIXÕES AO ATERRO SANITÁRIO: DESTINOS DO LIXO NA CIDADE, 94
CAPÍTULO III
CONTAMINAÇÃO E PERIGO: O LIXO COMO UM PROBLEMA AMBIENTAL E DE SAÚDE
PÚBLICA, 157
CAPÍTULO IV
SOBREVIVÊNCIA E PRECARIEDADE: O TRABALHO COM O LIXO E SUAS
AMBIGUIDADES, 223
CONSIDERAÇÕES FINAIS, 310
RELAÇÃO DE ACERVO E FONTES CONSULTADAS, 316
BIBLIOGRAFIA, 322
MAPAS E PLANTAS.
Localização dos bairros de Uberlândia, período de 1979-1980, 44
Localização do aterro sanitário na cidade de Uberlândia, 1999, 224
Planta do Bairro Guarani, nos arredores do aterro sanitário, 2002, 255
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Com a premissa de que há uma profunda correspondência entre a problemática do
lixo e as transformações sociais no espaço urbano, esta pesquisa buscou problematizar
as relações vividas em torno do lixo, na cidade de Uberlândia-MG, ao longo dos anos de
1980 a 2002.
A questão do lixo constitui um assunto vasto, com várias dimensões permeadas de
complexas relações sociais. Como problemática do espaço e do viver urbanos, o lixo
pode ser apreendido, entre outras coisas, como empreendimento/negócio,
trabalho/sobrevivência e, também, no que se refere ao governo municipal, como problema
da política e da administração pública.
Por isso mesmo, é visto aqui como um objeto de análise histórica e como um
problema social e político, um fator com implicações diretas na vida das pessoas. O lixo
domiciliar, comercial, industrial, hospitalar, ou o entulho, enfim, qualquer que seja a sua
origem, é heterogêneo em sua materialidade e, também, nas relações sociais
diferenciadas que são subjacentes a ele e que se modificam historicamente. Seja qual for
seu aspecto material, os restos estão presentes na cidade, incomodando as pessoas e
gerando conflitos. A maneira como lidamos com eles serve de indícios para pensar não
somente dimensões do processo de urbanização, como relações históricas de
apropriação de espaços e de poder.
Nesse caminho, o debate acerca das questões em torno do lixo na cidade
desempenha relevante papel. Gerado em grande quantidade, e expressivo por sua
variedade, o lixo interfere diretamente na vida urbana, possibilitando desvendar um
universo de complexas relações. Ele é revelador de novos hábitos e padrões de consumo
sociais, de modernos processos técnicos de reaproveitamento e de discursos
heterogêneos e difusos sobre questão ambiental, poluição e desperdício. Além disso, é
2
um expressivo fator de agregação de novas formas de trabalho e de sobrevivência no
espaço urbano.
Consideramos que a análise do lixo como expressão da sociedade pode delinear um
caminho de leitura das relações sociais existentes, assim como um perfil de cidade.
Investigar como as autoridades responsáveis enfrentaram o problema do lixo propicia
oportunidade, também, para um acerca dos constantes embates políticos tanto entre
moradores e poder público, como entre diversos setores no interior da própria
administração pública.
A motivação inicial para pensar a problemática do lixo em Uberlândia surgiu quando
concluímos a dissertação de mestrado intitulada: “Trabalho, Quotidiano e Sobrevivência:
catadores de papel e seus modos de vida na cidade – Uberlândia 1970-1999”. Nesta
pesquisa, discutimos as vivências dos catadores de papel na cidade: suas condições de
trabalho, moradia, saúde e outros aspectos da experiência desses trabalhadores.
Partimos do pressuposto de que pensar as experiências dos coletores de papel era
pensar também a constituição do espaço urbano e seus problemas; a falta de moradia, o
desemprego, a violência, dentre outras dificuldades enfrentadas pelas classes populares
na cidade. Interessou-nos perceber como os coletores vivenciam as contradições
existentes nas relações vividas, como ora eles resistem e ora sujeitam-se às práticas de
dominação social.
Durante as oportunidades que houve de debater a pesquisa sobre os coletores de
papel com diversos grupos de pessoas, a discussão acerca do lixo quase sempre vinha à
tona. Com o passar do tempo e com o amadurecimento das idéias, fomos percebendo
que a atividade dos coletores de papel era apenas um dos vários fios que tecem a
complexa rede de relações que envolvem a problemática do lixo na cidade. Para além de
uma precária alternativa de sobrevivência dos catadores de papel ou dos trabalhadores
do aterro sanitário, o lixo constitui um negócio para pequenos e médios empresários e
torna-se, cada vez mais, alvo de interesses, projetos, disputas e conflitos seja no âmbito
da iniciativa privada ou da administração pública.
Nosso anseio em refletir sobre a historicidade dessas relações ultrapassa o
interesse profissional, diz respeito ao fato de que crescemos e vivemos nesta cidade
durante anos. As indagações que levantamos nesta pesquisa são questões que nos
incomodam, profundamente, como historiadora, como profissional na área da educação,
3
como trabalhadora assalariada e, sobretudo, como cidadã. Na verdade, o lixo foi um “pré-
texto” para que pudéssemos discutir algumas dimensões do viver urbano experienciadas
bem de perto: o morar na periferia, a precarização e a exploração no trabalho, as
tentativas de compreender e de participar de decisões políticas que definem os rumos da
história da cidade; afinal, trata-se de questões que também perpassam a nossa história
de vida.
O que queremos dizer também é que, como escreve Maria Elisa Cevasco,
parafraseando Raymond Williams, “a defesa de uma instância totalmente objetiva e
neutra é um luxo acessível somente aos que consideram suas próprias idéias e
procedimentos como universais. Escrever é sempre alinhar-se, na medida em que este
ato sempre estrutura, implícita ou explicitamente, uma seleção específica, feita a partir de
um ponto de vista também específico. Nesse sentido, toda forma é uma tomada de
posição, uma declaração de princípios, feitas em condições que não são, é claro, de
nossa própria escolha”.
1
É preciso pontuar que o lixo, como uma questão social, econômica, política e
cultural, vem sendo aos poucos incorporada pela literatura especializada. Em algumas
áreas do conhecimento, essa problemática tem sido abordada mediante diferentes
recortes e perspectivas. No campo das mais diversas ciências como a Geografia,
Ecologia, Economia, Engenharia Química e Planejamento Urbano, o lixo é uma questão
que tem sido discutida com o objetivo de propor alternativas, haja vista que seu destino
final tornou-se um problema. Para algumas dessas áreas, o lixo encontra-se relacionado
com o “processo de degradação ambiental” e acarreta sérias “implicações na organização
do espaço e na qualidade do ambiente urbano”.
2
O contato com uma variada bibliografia
demonstrou uma preocupação com a questão do lixo no espaço urbano por parte de
vários profissionais. Suas reflexões influenciaram e se imbricaram às questões que
levantamos nesta pesquisa.
Como objeto de análise histórica, o lixo é um elemento ainda pouco pensado e
discutido pelos historiadores. O debate no campo da História sobre as relações entre o
lixo e as transformações no espaço urbano como fenômenos sociais é relativamente
recente. Cremos que, no processo de constituir uma abordagem para as Ciências Sociais,
1
CEVASCO, Maria Elisa. Para Ler Raymond Williams. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, “Apresentação”, p. 21.
4
a questão do lixo esteve associada a outros temas, como concepções e hábitos de
higiene, consumo e desperdício de recursos materiais como práticas da sociedade
moderna. Expressão disso é o fato de que, na historiografia geral, discussões sobre o lixo
propriamente dito estão ainda por ser feitas, sendo o volume de pesquisas sobre essa
temática ainda pouco expressivo.
Em outro sentido, mesmo sem uma ligação direta com o tema proposto, algumas
reflexões inspiraram-nos, como a obra de Keith Thomas, O homem e o mundo natural,
que traduz de maneira rica as articulações entre sociedade e natureza. Sua reflexão
aborda a relação do homem com a natureza, os animais e as plantas ao longo de três
séculos na Inglaterra. Com perspicácia, Thomas demonstra que as atitudes do homem,
ao interferir no mundo natural, revelam muito sobre as relações de poder e dominação
que se estabelecem no meio social, expressando, também, a sensibilidade e os valores
que permeiam cada período histórico.
Sua contribuição a esta pesquisa advém do entendimento de que uma discussão
sobre o lixo na cidade articula-se a uma reflexão sobre significativas transformações na
cultura, hábitos e costumes dos sujeitos, revelando suas intervenções na natureza e no
espaço. A leitura dessa obra inspirou-nos a refletir sobre o que autor denomina de
“profunda modificação das sensibilidades”, ou de “revoluções nas percepções”. Vale
ressaltar que ao pensar esses conceitos, do ponto de vista das relações que os homens
estabelecem com o ambiente natural e as outras espécies, o autor o faz à luz das
experiências das mais diversas classes sociais, o que ressalta a complexidade e a
riqueza de seu trabalho.
3
Na reflexão sobre o lixo na cidade, pelo viés de dimensões da cultura, das
transformações no comportamento e nas formas de sociabilidade, encontramos
inspiração também em Georges Vigarello, quando escreve sobre a história das práticas
de limpeza e dos cuidados com o corpo na França, entre os séculos XV e XIX.
Para o autor, a historicidade das normas e a própria formulação do conceito de
higiene dizem respeito a inúmeras transformações nos hábitos e nos costumes da
população, estimuladas, sobretudo, por critérios de asseio que pressupunham “uma
ligação entre mau cheiro e falta de limpeza”, que pretendiam limpar os corpos e os
2
SILVA, Edmilson Bechara e. Lixo Urbano - O que fazer com ele? Uma contribuição ao estudo do problema na
Região Metropolitana de Belém. Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, Brasília: UnB, 1993. p.24.
5
espaços, instituindo-se, assim, uma higiene que ambicionava remodelar os sujeitos e o
espaço urbano.
A abordagem de Vigarello, em O limpo e o sujo: uma história da higiene corporal,
contribuiu para aguçar nossa percepção de que uma discussão sobre o lixo implica
pensar como se forjam, historicamente, noções do limpo e do sujo, e de que maneira os
argumentos em defesa de uma cidade limpa buscam modificar alguns costumes da
população, instituir novos hábitos e redefinir na cidade os lugares considerados
apropriados ao lixo.
Uma reflexão que instiga a pensar o corpo da cidade sob a forma de questões
urbanas em torno do lixo. Algumas interrogações significativas, no que tange ao lixo em
Uberlândia, consistem em perguntas desta natureza: como e de que maneira
transformam-se as relações, o espaço físico, as maneiras de ver e conviver com o lixo
nas duas últimas décadas do século XX?
Para discutir as mudanças nos costumes e hábitos de diferentes classes sociais, no
que se refere às práticas de asseio e de limpeza e também no que se refere à própria
noção de higiene, Vigarello lida com diversos documentos, tais como regulamentos de
instituições educacionais, religiosas e de saúde. O autor recorre também à literatura e aos
“tratados de civilidade”, registros que lhe possibilita apontar como sutilmente se modificam
os padrões de limpeza. Deste modo, demonstra a intrigante relação entre norma, código e
“terreno social”, afinal, as normas não surgem do nada, “elas têm suas âncoras e seus
objetos. Trata-se, antes, de descobrir sua transformação futura ou sua complexificação,
sobretudo seus lugares de manifestação e seus modos de transformação”.
4
O livro de Georges Vigarello foi publicado no Brasil em 1996, e uma interessante
leitura desta obra é feita por Rosana Miziara, numa pesquisa cuja temática central é a
questão do lixo na cidade de São Paulo. Preocupada com o sentido social de normas e
comportamentos que se instituem historicamente em torno do lixo, Miziara estabelece um
profícuo diálogo com diversas fontes, nas quais percebe “diferentes maneiras de
conceber e de tratar o lixo”.
Ao analisar os discursos de administradores públicos, médicos e engenheiros,
dentre outros profissionais, a autora discute vários aspectos marcantes da história do lixo
3
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 18.
4
VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo: uma história da higiene corporal. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 02.
6
na cidade de São Paulo, demonstrando de que maneira a preocupação com o lixo,
inicialmente, restrita aos espaços privados, torna-se um problema urbano mais amplo e
complexo. Ao discutir as transformações nas formas de acondicionar, coletar e destinar o
lixo, a autora aponta como os lixões, os aterros sanitários, os incineradores e outras
técnicas que visam dar fim ao lixo, são soluções que acabam por engendrar outros
problemas e que expressam as antagônicas relações que se estabelecem em torno dessa
questão. Segundo Miziara, discutir a complexidade dos processos sociais que envolve a
questão do lixo exige uma reflexão
...sobre a realidade técnica e científica das ações políticas e econômicas que o transformam,
progressivamente, numa mercadoria rentável, num objeto de disputas de setores públicos e privados,
num tema estratégico para as campanhas para a ordem social, veiculadas pelos meios de
comunicação de massa, e ainda num assunto de grande importância para as instituições ligadas ao
planejamento urbano. Por isso, fazer a história do lixo é também repensar os limites da cidade e
mergulhar num campo de disputas locais.
5
Ao reconstituir uma trajetória do lixo na cidade, Lopes demonstra como este assume,
cada vez mais, um espaço significativo no âmbito de políticas públicas que pretendem
organizar a vida na cidade. Isso nos atentou para a importância de refletir sobre a
natureza das ações político-sociais que dizem respeito à preocupação do poder público
com o lixo urbano nas últimas décadas, motivou a análise dos diversos discursos,
propostas, ambigüidades e contradições ao se tentar gerenciar os restos.
Cremos ser relevante na discussão sobre o lixo, articulado ao processo de
urbanização, refletir, ainda, acerca de algumas dimensões do trabalho na vida urbana.
Nesse sentido, destacamos a contribuição do texto de Heloísa de Faria Cruz, quando
investigou as condições de trabalho e as tentativas de organização de carroceiros,
cocheiros, choferes de bonde, funcionários da limpeza pública, dentre outros
“trabalhadores em serviços”, na cidade de São Paulo entre 1900 e 1920.
Compreendemos que o trabalho de Cruz tem significativa importância por ser um
marco inicial da preocupação e do debate historiográfico acerca do processo de
urbanização da cidade, e de como isso significou, inclusive, a constituição de um rol de
5
LOPES, Rosana Miziara. Nos Rastros dos Restos: As trajetórias do lixo na cidade de São Paulo. Mestrado em
História Social, PUC: São Paulo, 1998. p. 19.
7
serviços nos setores de transporte urbano, comércio, saneamento, limpeza urbana etc., a
serem prestados à população. Necessários ao crescimento da cidade, esses serviços
também tornaram-se “um novo espaço de investimento do capital”.
6
Avaliamos que esses aspectos já sinalizavam para a complexidade que iam
assumindo as relações no espaço urbano. Indicavam, também, elementos interessantes
que, no momento presente, se articulam à problemática do lixo, como a responsabilidade
do poder público quanto à prestação de serviços à população, e a participação do setor
privado na gestão do lixo na cidade.
Ressaltamos que essas referências, seja sobre o lixo ou sobre a cidade, são
importantes porquanto demonstram a historicidade de tais reflexões, demarcando uma
trajetória de interpretação em que a problemática do lixo veio sendo analisada, embora,
por diferentes ângulos, sem que se tenha deixado de expor sua crescente complexidade.
Já em seu livro A Cidade e a Lei, a arquiteta Raquel Rolnik ao discutir a história da
legislação urbana em São Paulo, no período de 1886 a 1936, sob seu aspecto cultural,
econômico, político e social, reflete sobre o modo como a lei “relaciona diferenças
culturais e sistemas hierárquicos”. Para a autora, a ineficácia da lei em regulamentar o
uso do solo na cidade é justamente a garantia de seu sucesso. Quando pensamos sobre
isso em relação ao lixo em Uberlândia, avaliamos que nada há de casual na maneira
como a cidade se estrutura para destinar seus restos, e o que nos parece, à primeira
vista, uma grande desordem, consiste na verdade numa organização, que se pauta por
certa lógica e razão, em que subjaz a idéia de que há “territórios” na cidade nos quais o
lixo possa ser despejado, mesmo que a população que vive ali seja prejudicada.
7
Em nossa reflexão, estabelecemos, ainda, um diálogo com alguns estudos que
abordam a questão do lixo em outras dimensões. Trata-se de algumas pesquisas nas
áreas de Serviço Social e de Psicologia Social, que discutem experiências de trabalho
marcadas por formas de preconceitos e de estigmas sociais. São interlocuções que
traduzem olhares e questionamentos específicos, por meio dos quais vislumbramos
aspectos da realidade social investigada que nos auxiliaram no percurso desta
investigação.
6
CRUZ, Heloisa de Faria. Trabalhadores em Serviço: dominação e resistência, São Paulo 1900/1920. São Paulo:
Marco Zero, 1991. p. 07-33.
7
ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo:
Fapesp/Studio Nobel, 2003. p. 14.
8
A saber, a dissertação de mestrado na área de Serviço Social de Maria Fernanda
Escurra, que, situando-se no âmbito dos estudos sobre pobreza urbana, discute as
condições de vida e trabalho dos catadores de papel em Rosario, na Argentina.
Ao articular sua reflexão pelo viés da Pobreza e do Trabalho, Maria Fernanda define
tais trabalhadores como “excedentes populacionais úteis, excluídos do processo de
trabalho capitalista por meio de formas indiretas de subordinação do trabalho ao capital”.
Um aspecto interessante da pesquisa é que a autora estabelece uma discussão acerca
da inserção dos catadores de papel no interior de um circuito econômico, que gira em
torno da reciclagem do lixo. Um processo social que contribui para a visualização do
crescimento estatístico de reaproveitamento do lixo, na sociedade capitalista, que,
sustenta-se, basicamente, em pessoas que sobrevivem da coleta de materiais
recicláveis.
8
Nessa interação com uma bibliografia que articula uma discussão sobre lixo,
trabalho e preconceito social, fazemos, ainda, uma referência à dissertação de mestrado,
na área de Psicologia Social, de Tereza dos Santos, Coletores de lixo: a ambigüidade do
trabalho na rua.
9
Nessa pesquisa, a autora aborda as condições de trabalho e saúde dos
trabalhadores da limpeza pública da cidade de São Paulo, partindo de indagações da
seguinte natureza: “quem é este trabalhador que cuida da higiene e da estética da cidade
e para isso é obrigado a lidar com os restos, as sobras, com coisas que as pessoas
descartam”? Tendo questões assim como ponto de partida, a pesquisadora reflete
também sobre a relação entre coletor de lixo e sociedade; como são vistos e o que se
pensa sobre eles. Em sua análise, depara-se com uma associação feita pela comunidade
entre coletor de lixo e sujeira, expressando relações em que tais trabalhadores são vistos
como semelhantes ao lixo que recolhem. A abordagem de Santos remete-nos à
complexidade das relações que permeiam o debate sobre o lixo na cidade, somando-se aí
interessantes elementos da intersecção entre lixo, trabalho e cidade.
10
8
ESCURRA, Maria Fernanda. Sobrevivendo do Lixo: População Excedente, Trabalho e Pobreza. Mestrado em Serviço
Social, UFRJ: Rio de Janeiro, 1997.
9
Durante a leitura do texto será possível constatar que, ao longo da investigação, fomos incorporando outros autores
cujas contribuições foram extremamente valiosas. Se não foram mencionados aqui foi por absoluta falta de tempo.
10
SANTOS, Tereza Luiza Ferreira dos. Coletores de lixo: a ambigüidade do trabalho na rua. Mestrado em Psicologia
Social, PUC: São Paulo, 1996. “Introdução”, p. 01-07.
9
Assinalamos que esses trabalhos trazem, como característica marcante, a
preocupação com a exclusão social, com os estigmas e os preconceitos que sofrem tais
trabalhadores por lidar com o lixo no cotidiano. Dialogando com essa perspectiva,
buscamos problematizar esses conceitos e lançar “um olhar político”, que explicite as
diferenças, que atente ao “menos visível, ao menos audível”, e que possa “ocupar-se dos
processos de privação e de desigualdade a que a cultura popular responde com
estratégias alternativas”. “Um olhar político” que enfatize e identifique as relações em
torno do lixo na cidade, nas últimas décadas, como históricas, traduzindo as mais
diversas disputas sociais. Ansiamos perceber como tais relações são construídas e
refeitas no viver urbano, expressando, além de novos e conflitantes valores, novos
sujeitos e lutas políticas.
11
Nesse sentido, fazemos uma referência a pesquisas, na área de história, que tratam
especificamente de trabalhadores que sobrevivem por meio da coleta de materiais
recicláveis, como por exemplo nossa dissertação de mestrado, a qual já foi mencionada.
Destacamos, igualmente, o trabalho de José Amilton de Souza, que refletiu sobre as
experiências dos catadores que coletam materiais recicláveis “e se fazem presentes de
maneira ostensiva nas ruas da cidade de Santo André a partir da década de 1990”.
De maneira sensível, o autor dialogou com os catadores/carrinheiros por meio de
entrevistas orais e de outros documentos, o que lhe possibilitou decifrar o universo desses
trabalhadores. Preocupado em traçar outras formas de sobrevivência instituídas na
cidade, Amilton discutiu a atividade dos catadores, e seus meandros, como parte da
diversidade social que institui os “territórios cotidianos” da cidade. Esses trabalhadores
que garantem sua subsistência no comércio dos restos são representativos “de uma
cultura de sobrevivência”, na qual “a população pobre sempre organizou de maneira
criativa um conjunto de práticas necessárias para o sustento e a manutenção da vida”.
12
Deste modo, vislumbramos, ainda, uma grande contribuição no diálogo que
estabelecemos com determinados autores que investigaram a cidade de Uberlândia.
Esses estudos não somente integram um conjunto de reflexões, já produzidas sobre a
história da cidade, como também trazem diferentes abordagens e perspectivas.
11
SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias. São Paulo: Edusp, 1997, p. 55-63.
12
SOUZA, José Amilton de. Catadores/carrinheiros (as): imagens e diálogos com os territórios cotidianos da cidade
de Santo André. Doutorado em História Social, PUC: São Paulo, 2003. “Apresentação”, p. 01-39.
10
Algumas pesquisas de âmbito local, realizadas ao final da década de 1980, trataram
de questões como moradia, mendicância, crescimento urbano, migrações e outros
problemas graves que emergem com o desenvolvimento da cidade. São trabalhos que
sinalizam modos de pensar como o crescimento proporcionou significativas modificações
no espaço e nas relações urbanas.
Já outras pesquisas realizadas durante a segunda metade da década de 1990
refletem diferentes olhares sobre o desenrolar desse processo. Uma parte expressiva de
tal produção teve como prioridade temáticas relacionadas com as questões sociais e com
as condições de vida das classes populares, tendo como elemento norteador discutir a
participação desses grupos sociais na constituição da cidade.
13
O diálogo com a produção bibliográfica sobre a história de Uberlândia, em suas
diferentes abordagens, contribuiu para o levantamento de fontes e, sobretudo, para uma
reflexão que ampliou o conhecimento e a discussão sobre algumas questões referentes a
problemas mais específicos da vida urbana.
É preciso dizer que, na Historiografia local, a problemática do lixo na cidade ainda
não havia sido tratada de maneira direta. Isso porque, possivelmente, a interferência do
lixo na vida urbana, com a complexidade social que hoje se apresenta, constitua um
fenômeno urbano relativamente recente. Dentre as poucas abordagens sobre o tema, o
texto monográfico de Silva, sobre trabalhadores da limpeza pública já aponta alguns
problemas existentes no que concerne à administração do lixo na cidade. Ao discutir o
trabalho de homens e mulheres que varrem as ruas citadinas, abordou, ainda, as
condições de tais serviços prestados à população e as dificuldades enfrentadas, porque,
em meio a um acelerado processo de urbanização, experimentava-se, também, grande
precariedade.
14
13
Sobre pesquisas da segunda metade da década de 1990, Ver: CARMO, Luiz Carlos do. Função de preto”: Trabalho
e Cultura de trabalhadores negros em Uberlândia/MG – 1945/1960. Mestrado em História Social, 2000. COUTO, Ana
Mágna Silva. Trabalho, Quotidiano e Sobrevivência: Catadores de papel e seus Modos de Vida na Cidade - Uberlândia-
1970-1999. Mestrado em História Social, 2000. FERREIRA, Jorgetânia da Silva. Memória, História e Trabalho:
experiências de trabalhadoras domésticas em Uberlândia 1970-1999. Mestrado em História Social, 2000. LAVERDI,
Robson. Pelo Direito de Morar: Experiências de Luta por Reforma Urbana (1980-1988). Mestrado em História Social,
PUC: São Paulo, 1998. MORAIS, Sérgio Paulo. Trabalho e Cidade: trajetórias e vivências de carroceiros na cidade de
Uberlândia, 1970-2000. Mestrado em História, UFU: Uberlândia, 2002. PETUBA, Rosângela Maria Silva. Pelo direito
à cidade: experiência e luta dos ocupantes de terra do bairro Dom Almir - Uberlândia (1990-2000), agosto/2001.
SILVA, Patrícia Rodrigues da. Cotidiano e Trabalho: Trabalhadores ceramistas em Monte Carmelo/MG 1970/2000.
14
SILVA, Sônia Pereira da. A cidade passada a limpo: condições de vida e experiência dos trabalhadores da limpeza
pública (Uberlândia 1982-1997). Monografia em História, UFU: Uberlândia, 1999.
11
No que se refere à produção acadêmica geral, dentre as pesquisas que tratam direta
ou indiretamente a problemática do lixo na cidade, deparamos com alguns estudos nas
áreas de Geografia e Engenharia Química. Trabalhos que trazem como característica a
intenção de discutir o problema do lixo em Uberlândia, visando propor modelos de
gerenciamento dos restos. Sob perspectivas, interesses e metodologias diferentes, os
autores discutiram esse tema, constituindo, assim, um determinado olhar sobre a questão.
Esses pesquisadores centraram sua atenção no lixo doméstico e no lixo da
construção civil, talvez, por serem esses restos, no momento em que escreviam, fatores
de maior transtorno no dia-a-dia da população. Realizaram pesquisas de campo no aterro,
discutiram o funcionamento da usina de triagem e apontaram vários problemas e
limitações do poder público para administrar o lixo na cidade. De fato, produziram textos
que contêm números e informações, dados técnicos que, reinterpretados, indicaram
algumas pistas e contribuíram para a investigação sobre o lixo em Uberlândia.
Ponderamos que pesquisas dessa natureza são indicativas de que o problema do
lixo na cidade vem tornando-se fator de preocupação para diferentes sujeitos. A pesquisa
de Mirlei de Castro, na área de Engenharia Química, corrobora essa afirmação. Em seu
trabalho, a autora propõe-se a analisar o lixo doméstico com o objetivo de determinar
seus componentes. Para ela, caracterizar o lixo e compará-lo com o de outras cidades
seria uma iniciativa no sentido de apontar alternativas para o seu gerenciamento.
15
Nessa perspectiva, Castro levanta algumas questões em torno do lixo que
consideramos relevantes: a relação que a população estabelece com o lixo, as formas
pelas quais o descarta e seu nível de informação e de envolvimento com problemas
dessa natureza. De um lado, esses aspectos abordados pela autora são importantes para
minha pesquisa à medida que constituem elementos indicativos da problemática do lixo
no espaço urbano. De outro, observamos que tanto nessa como em outras abordagens
prevalece uma perspectiva na qual se vê o lixo, sobretudo, como um problema técnico.
Para além disso, é importante pensar a respeito de como a transformação do lixo
numa problemática urbana foi constituindo-se num campo de forças que se expressa em
15
CASTRO, Mirlei Silva Melo Vasques de. Uma análise comparativa do modelo de gestão de resíduos domiciliares
em Uberlândia. Mestrado em Engenharia Química, Uberlândia: UFU, 1998. Outros estudos sobre essa temática são
também pesquisas do Curso de Mestrado em Engenharia Química, na área de Engenharia Ambiental. Ver também:
CALÇADO, Marilda dos Reis. Resíduos Sólidos Domiciliares: da proposta aos testes de um modelo proativo de
gestão. Mestrado em Engenharia Química, Uberlândia: UFU, 1998.
12
conflituosas disputas. A crescente visibilidade dos diferentes restos produzidos no espaço
urbano tornou-se um elemento revelador do modo como, historicamente, o lixo vai
articulando-se a interesses do poder público, de empresários, de moradores e de
trabalhadores que sobrevivem de sua exploração.
Sobre as fontes utilizadas nesta pesquisa, a imprensa diária teve significativa
importância. No processo de investigação, os jornais auxiliaram a identificar na cidade
quais tipos de lixo eram produzidos, em que lugares, por quais sujeitos e que soluções
iam sendo engendradas no enfrentamento dos problemas que geravam. Ao discutir a
questão do lixo na cidade, por meio dos jornais, buscamos apreender como eles
retratavam e traziam o tema ao público leitor. Para tanto, nosso interesse centrou-se em
perceber os olhares e sentidos que os periódicos analisados atribuíam às campanhas,
projetos e políticas públicas relacionadas com o lixo, queixas da população e outras
questões, enfim, como esses veículos de comunicação se constituíam sujeitos, atuavam e
produziam a cidade, defrontando-se com a problemática do lixo.
Os projetos defendidos e as posturas políticas assumidas delineavam valores e
práticas sociais, que contribuíam para desvendar a que grupos esses veículos de
comunicação vincularam-se e quais interesses defenderam. Os jornais podem ser
considerados como expressão de certas forças na cidade e de sujeitos agindo/intervindo
em seus destinos. Por meio dessa fonte foi possível vislumbrar diversos elementos que
constituem o viver urbano e que se articulam à questão do lixo. Os fragmentos de notícias
sobre o lixo possibilitaram vislumbrar sua crescente complexidade na vida urbana,
trouxeram diagnósticos do presente, tensos ou harmônicos, leituras do passado e alusões
ao futuro, e geram possibilidades de apreensão das condições históricas que forjam
determinados processos sociais.
16
Discutir o problema do lixo no espaço urbano por meio da imprensa tornou-se um
caminho para refletir sobre dimensões das relações vividas na cidade, inspiração que teve
início com a nossa primeira experiência de pesquisa na imprensa, em 1999, e também na
leitura de alguns trabalhos que utilizaram jornais como fontes.
16
Essas questões são fruto das discussões que estabelecemos na disciplina Seminário de Pesquisa, com as Professoras
Antonieta Antonacci e Maria do Rosário, assim como das reflexões do Seminário Temático - História e Imprensa, com
a Professora Heloisa de Faria. São Paulo: PUC, agosto/novembro de 2002. Na ocasião, a leitura de várias produções que
fizeram uso da imprensa como fonte foram de valioso auxílio para a compreensão das diversas possibilidades desse
campo de estudo.
13
Dentre esses trabalhos, merece destaque a pesquisa da historiadora Lier Balcão, A
cidade das reclamações: moradores e experiências urbanas na imprensa paulista –
1900/1913. Em seu estudo sobre as experiências da população reclamante na cidade de
São Paulo, no início do século XX, a autora desvendou as várias articulações existentes
entre moradores, poderes públicos e imprensa, refletindo acerca do modo como esses
diferentes grupos sociais vêem a cidade e se relacionam com ela.
Sua interpretação contribuiu para politizar as queixas na imprensa e entendê-las
como expressão de relações sociais, de sujeitos com seus projetos e anseios. Por meio
das reclamações da população, foi possível ter uma maior visibilidade da cidade, que é
vivenciada de diferentes formas por diversos sujeitos. Segundo Lier, “o espaço jornalístico
composto pelas queixas e reclamações apresenta-se como espaço possível de diálogo
com essas populações, nele, elas se manifestam e inserem na esfera pública as suas
demandas e aspirações sobre o viver urbano”.
17
Destacamos também a monografia de Soene de Lima O poder da Imprensa na
Construção do Imaginário Social: Uberlândia 1907-1916. Nesse trabalho, a autora aponta
que, no início do século XX, o lixo já aparecia na imprensa local como um estorvo, um
incômodo no cotidiano da cidade. Sua contribuição adveio do fato de não só ter chamado
a atenção para a importância da documentação existente no Arquivo Público Municipal,
mas também por ter discutido como as classes populares tiveram suas reclamações
expostas nos jornais. Não obstante esse estudo mostrar ainda que as reclamações
partem mais de grupos sociais privilegiados, por vezes, também contrariados com as
condições de saneamento, de limpeza e organização dos espaços na cidade, do que da
população pobre, quase sempre, sem muitas condições e oportunidades de expressar
sua insatisfação.
18
Os jornais consultados foram: Correio, O Triângulo e Participação. Os dois primeiros
eram jornais de grande circulação. Foram fundados ao final dos anos de 1930 e, durante
quase todo o período delimitado por este estudo, ambos tiveram expressiva divulgação na
cidade. O Triângulo, na verdade, saiu de circulação logo no início da década de 2000.
17
In: BALCÃO, Lier Ferreira. A Cidade das Reclamações: moradores e experiência urbana na imprensa paulista –
1900/1913. Mestrado em História Social, PUC: São Paulo, 1998. “Introdução”, p.09.
18
LIMA, Soene Ozana de. O poder da Imprensa na Construção do Imaginário Social: Uberlândia 1907-1916.
Monografia em História, Uberlândia: UFU, 1999.
14
O Participação, por sua vez, foi um Boletim Informativo da Assessoria de
Comunicação da Administração Zaire Rezende, e sua leitura contribuiu para o
entendimento do modo como tal gestão lidou com o problema do lixo durante seu
exercício. Sua publicação teve início em maio de 1984, com uma tiragem inicial de 10 mil
exemplares. No entanto, deixou de circular no fim desse governo, em 1988. No Arquivo
Público só foi possível o acesso a alguns exemplares dos anos de 1984 a 1986.
O jornal Correio foi fundado em 1938 por um fazendeiro, José Osório Junqueira,
oriundo de Ribeirão Preto e também detentor de outros sete jornais. No início da década
de 1980, este jornal denominava-se Correio de Uberlândia; na década seguinte, passou a
chamar-se Correio do Triângulo, e, desde agosto de 1995, intitula-se, Correio.
Em uma pesquisa sobre as relações entre poder político e meios de comunicação,
Pacheco pondera que “esses veículos eram pertencentes a segmentos que estiveram no
poder em vários momentos da história de Uberlândia”. O autor assegura ainda que, na
década de 1940, o Correio foi vendido para um grupo de fazendeiros e empresários
ligados à UDN, e que isso favoreceu a ascensão política desse partido. A partir da década
de 1950, os proprietários do jornal assumiram o domínio sobre o sistema de telefonia em
Uberlândia, “aumentando demasiadamente seu poder de influência sobre a opinião
pública”.
19
Durante a década de 1980, percebemos que eram constantes as referências
elogiosas que o Correio de Uberlândia fazia ao PDS (Partido Democrático Social), que
conseguiu manter-se no poder local por vários anos. Quase na mesma proporção,
aparecem as críticas ao PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), oposição
naquele contexto. Além disso, nas edições em que abordava sua própria trajetória, o
jornal vangloriava-se de uma postura progressista, que procurava conciliar com “os
antigos valores da história da cidade”, buscando, segundo o seu diretor à época, fazer
“juz ao nome e à tradição: Correio de Uberlândia, o jornal da família uberlandense”.
20
Ao final dos anos de 1980, esse jornal anunciava uma nova linha editorial, que
incluía maior ênfase no “marketing” e na valorização do “jornal como mídia publicitária”.
21
Alinhado a essas inovações tecnológicas, possibilitadas pelo presidente José Sarney, que
19
PACHECO, Fábio Piva. Mídia e poder: representações simbólicas do autoritarismo na política. Uberlândia
1960/1990. Mestrado em História, Uberlândia: UFU, 2001. p. 65-66, 150.
20
Jornal Correio de Uberlândia faz 49 anos. Correio de Uberlândia, 06 de dezembro de 1987, n. 14.556, p. 02.
21
Correio de Uberlândia salta para Off-Set. Correio de Uberlândia, 02 de abril de 1989, p. 03.
15
havia liberado “um financiamento altamente vantajoso para a importação de máquinas
impressoras norte americanas, atualizadas e produtivas”, o Correio de Uberlândia
desenvolveu estratégias de adaptação às exigências do mercado, consolidando-se como
um importante instrumento de formação da opinião pública.
22
Dentre os profissionais que por muitos anos escreveram no Correio, estão os
jornalistas José Expedito, Ivan Santos, Alberto de Oliveira e Luiz Fernando Quirino. Este
último, assim como Ivan Santos são conhecidos por seus comentários que revelam o
alinhamento político com figuras de partidos conservadores, que estiveram, por muito
tempo, à frente na administração local, um aspecto indicativo das articulações entre
imprensa e setores dominantes na cidade, que, ao deterem o poder político, defendem
abertamente seus interesses econômicos, concentrados geralmente em “negócios rurais
e imobiliários urbanos e outros negócios de grande lucratividade como a telecomunicação
e o comércio atacadista”.
23
A ligação entre poder local e imprensa existente na cidade pode ser vista também
nas Atas da Câmara Municipal. No ano de 1980, alguns vereadores, não raras vezes,
faziam referências aos jornais locais e à publicação de matérias sobre suas próprias
atividades. Em diversos momentos, porém, as notícias sobre as atividades da
administração eram matérias encomendadas pelo poder público. Pois se tratava de textos
muito descritivos sobre ações ou projetos desenvolvidos por alguma secretaria da
administração. Esta articulação era promovida pelo Departamento de Imprensa, o órgão
responsável pela divulgação dos trabalhos de diversos setores da prefeitura.
Podemos dizer que os dois principais jornais analisados nesta pesquisa revelam
uma postura de consenso e sintonia com os governos municipais pois, historicamente,
colocaram-se como aliados dos grupos que estiveram à frente da administração da
cidade, de seus interesses e projetos. Quando os jornais traziam notícias sobre limpeza
de terrenos baldios, implantação de políticas públicas ou mesmo reclamações dos
moradores, não somente tornavam visíveis certas relações em torno do lixo, em
Uberlândia, como também contribuíam na defesa de projetos políticos que carregavam
em si uma determinada visão de cidade, que delineava concepções de estética, higiene e
progresso.
22
PACHECO, Fábio Piva. Mídia e poder: representações simbólicas do autoritarismo na política. op. cit., p. 69.
23
Idem, p. 73.
16
Mas, para a reflexão sobre a problemática do lixo na cidade, tornou-se fundamental
identificar quando os jornais, ao defender seus interesses, deixavam entrever outros
projetos políticos em conflito. Um exemplo disso ilustra-se quando, por vezes, as
reclamações sinalizavam disputas políticas entre vereadores da oposição e o governo
local. Nota-se que o tom de crítica da reclamação mudava se o vereador, portador do
reclame, pertencia a um partido aliado ao prefeito.
Avaliamos que a imprensa percorria diferentes espaços sociais na cidade.
Conquanto tenhamos observado que, entre os jornais analisados, O Triângulo, é que,
com maior freqüência, estendia o olhar sobre as paragens mais distantes. Portanto, em
razão da natureza dos vínculos que buscava estabelecer com as classes populares, esse
jornal tinha, também, a preocupação de enfocar questões que diziam respeito ao
cotidiano de quem vivia na periferia. Isso contribuiu para um determinado olhar sobre a
constituição da cidade e possibilitou apreender algumas estratégias dos moradores, a fim
de tentar melhorar as condições dos locais de moradia, ao encaminhar suas
reivindicações ao poder público, por meio de Associações de Bairro ou de representantes
do Poder Legislativo.
Durante a pesquisa, refletimos sobre o sentido e a historicidade das reclamações,
procurando situar seu lugar no interior dos jornais pesquisados. Durante a maior parte da
década de 1980, eles eram impressos com o máximo de oito páginas, mediante as quais
várias temáticas podiam ser observadas: notícias sobre a política local, violência urbana,
crimes, o dia-a-dia na cidade , além de campanhas, projetos e diversas atividades da
administração local, já o espaço reservado para as queixas eram as páginas finais.
24
O Triângulo, numa estratégia para aproximar-se da população, manteve, durante os
anos de 1990, duas seções para reclamações e denúncias por parte dos moradores de
bairros populares. Intituladas Reclames e Bairros, uma delas é assim descrita:
24
Nesse período, o jornal Correio já trazia em suas páginas propagandas de várias empresas da cidade, anúncios e
editais, além de publicar diversas notícias sobre moda, comportamento, beleza e sexualidade, o que revela como o
jornal buscava atrair e diversificar seu público leitor. O espaço para as reclamações dos moradores destinava-se ao
Caderno Cidades, e, por vezes, nas seções intituladas Cartas e Opinião. No decorrer da década de 1990, o Correio
ampliava seu número de colunas e passava a contar com as seguintes seções: Esportes, Economia, Geral e Variedades.
Naquele contexto, O Triângulo também já tinha um caderno para as mais diversas notícias sobre a cidade, denominado
Cidade Geral. Relembrando que as queixas dos moradores ocupavam espaço pouco significativo no interior dos jornais.
17
A página (Bairros) de “O Triângulo”, lançada no como do ano, é hoje um verdadeiro porta voz da
comunidade uberlandense. Pelos anseios da comunidade e pelas reclamações é possível à
administração detectar falhas na prestação de serviços e corrigi-las. A população liga, reclama e os
repórteres vão a campo descobrir os problemas. As visitas são cotidianas e incessantes. Com a
página, a cidade cresce e desenvolve.
25
Com isso, o jornal aproximava-se da comunidade que residia nos arredores da
cidade, afirmando-se interessado em seu anseios e problemas, numa visível estratégia
que buscava aproximar população e poder público, fundamentada no pressuposto de que
os moradores deveriam confiar nas autoridades, como se o projeto político de uma
“cidade que cresce e (se) desenvolve” incluísse, indistintamente, todos os grupos sociais.
Para a nossa análise, a existência dessas seções no jornal possibilitou um
panorama geral dos problemas na periferia da cidade. Contribuiu para a observação do
crescimento dos bairros ao longo dos anos, das dificuldades e das reivindicações de suas
populações ao poder público sobre o problema do lixo nesses locais.
Nessa perspectiva, as reclamações ainda podem ser lidas como um canal de
comunicação para os moradores da periferia, que, por meio delas, tentaram denunciar
carências e expressar expectativas e anseios em relação à cidade. As queixas foram
interpretadas como uma das alternativas encontradas por essa população para reivindicar
o direito a viver num espaço em que o lixo não fosse um incômodo a gerar tantos
problemas.
Creio que essa noção de direito se constituía no próprio embate político em que o
poder público, no processo de ter que lidar com a problemática do lixo na cidade, via-se
na contingência de estabelecer normas para a população, que, por sua vez, percebia,
num tenso jogo de forças, regras de disciplina e de higiene que pretendiam mudar seu
comportamento, mas descobria, também, a possibilidade de nas relações vividas fazer
negociações, cobranças e exigências.
26
25
O Triângulo, 18 de outubro de 1996, n. 9.497, p. 03.
26
A perspectiva das reivindicações sendo interpretadas como direitos, advém da leitura de Eduardo Silva, pois segundo
ele, “ninguém se queixa senão do que possa considerar um direito (ou do que seja reconhecido como tal), procuramos
recuperar o que o cidadão comum (...) considera lícito esperar do Estado. Ou, visto de forma mais profunda, a própria
concepção de cidadania prevalecente nas camadas populares. ... Tais reivindicações revelariam nos limites de nossa
amostragem o que a episteme da época ... não podia identificar ou nomear como um direito dos cidadãos.” Ver: SILVA,
Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1988, p. 148.
18
Além disso, percebemos que, no contexto de certas disputas entre moradores e
poder público, havia curiosos significados na maneira como o jornal intervinha, o que
transparecia na forma como elaborava o texto e “organizava” os fatos para a publicação
das queixas.
27
Essas articulações entre setores da imprensa e outros sujeitos na cidade podiam ser
vislumbradas, ainda, na trajetória do jornal O Triângulo. Fundado em 31 de julho de 1928,
ao final dos anos de 1950, foi integrado à Empresa Gráfica do Triângulo, patrimônio de
Renato de Freitas, ex-prefeito de Uberlândia. Em 1985, Luiz Fernando Quirino era diretor
de redação, função essa que foi ocupada, até 1983, pelo jornalista Alberto de Oliveira.
Nesse mesmo período, o jornal tinha como diretor presidente o Sr. Fábio Antônio
Pozzi, empresário no setor de transporte rodoviário, proprietário da Nacional Expresso,
empresa que detém a concessão de várias linhas de transporte estadual e interestadual,
com sede em Uberlândia. A ligação desse empresário como membro da direção do jornal
pode ser compreendida no conjunto de determinadas articulações políticas locais. No
início da década de 1980, O Triângulo vivia uma crise financeira, estando prestes a ser
fechado, apesar de o jornal já contar com recursos do poder público.
À época, Virgílio Galassi, prefeito da cidade, reuniu um grupo de empresários e os
incentivou a investir no jornal. O Triângulo sobreviveria graças a esses recursos advindos
dos empresários locais. Essa não seria a primeira nem a última das alianças costuradas
entre esses setores, o que revela interessantes questões subjacentes à relação entre
jornal e empresa. Relações que, não raro, incluem interesses e articulações com o poder
público. Em conversa com o Sr. Fábio Pozzi, ele próprio fez uma comparação entre o
investimento de recursos no jornal O Triângulo e a fase de construção do Parque do
Sabiá, com a qual colaborou, como empresário, na aquisição de cadeiras para o
Estádio.
28
27
Sobre o debate acerca do uso de jornais como fonte histórica e do modo como circunstancialmente costumam
“montar” a realidade, vemos como por demais elucidativo o comentário do historiador inglês Asa Briggs, durante uma
entrevista, na qual aborda a questão “de certas fraquezas fundamentais dos jornais que nos obrigam a suspeitar bastante
do que dizem e a utilizá-los com imensa cautela. Pois não podemos nos esquecer de que os jornais costumam ser muito
tendenciosos, são tremendamente mal-informados e só abordam uma pequena parcela da realidade. Apesar disso, eles
são uma fonte inestimável para o historiador, e não só pelo que dizem em suas matérias, mas pelo que também se pode
extrair de seus anúncios e ilustrações”. In: BURKE, Maria Lúcia Garcia PALLARES. As Muitas Faces da História,
Nove Entrevistas. São Paulo: Unesp, 2000, pp-57-80.
28
O Parque do Sabiá e o Estádio foram construídos na segunda gestão de Virgílio Galassi, 1977-1982. Fábio Antônio
Pozzi, presidente da empresa de transporte rodoviário Nacional Expresso. Conversa informal com a autora em 14 de
julho de 2004. Chegamos à conclusão de que teria que conversar pessoalmente com o Sr. Fábio Pozzi quando, ao
19
No que se refere ao jornal O Triângulo, ao lermos suas páginas não é difícil perceber
como seus editores e jornalistas revelam, por vezes, uma postura política conservadora,
na perspectiva de fazer, com freqüência, a defesa do governo municipal. Ao mesmo
tempo em que afirmam imparcialidade no tocante às questões políticas na cidade.
Numa de suas edições, em que tenta apresentar uma postura de isenção política
frente ao fervoroso debate sobre a construção ou não da penitenciária na cidade, O
Triângulo defende a idéia de que é preciso diferenciar opinião de simples veiculação de
notícias. Argumenta também ser uma empresa que carece de sustentação financeira para
se manter e que, como parte destes recursos vêm dos cofres públicos, uma vez que a
prefeitura paga para divulgar notícias de seu interesse, ao jornal, torna-se imperativo
publicar o que a administração local considera como sendo de “interesse do povo”.
29
Com isso, o jornal encontra-se na ambígua condição de ser um veículo de
informações à população e, ao mesmo tempo, consistir em uma empresa que também
presta serviços ao poder público local. Embora tente argumentar que essa é uma tarefa
neutra a qual busca desempenhar com total imparcialidade, sabemos que não é possível
ao jornal se esquivar da condição de quem fala a partir de um lugar social, nem de sua
responsabilidade política como órgão formador da opinião pública.
Assim, essa relação em que, para dar continuidade às suas atividades, um jornal
carece de investimentos econômicos, pode ser vislumbrada no fato de que, ao final da
década de 1990, O Triângulo e o Correio eram os únicos jornais de circulação diária.
Quando O Triângulo encerrou suas atividades, em 2000, restou somente um único jornal
de maior circulação na cidade, o Correio de Uberlândia, que, em janeiro de 1990, contava
com “8.000 assinantes” e “uma tiragem diária de 10.000 exemplares”.
30
Dez anos depois,
esse jornal detinha um “número de 8.500 assinantes com tiragem de 12.500 exemplares
diários”.
31
Num contexto em que a população se constitui de 500 mil habitantes, notamos
a dificuldade do jornal em expandir o público leitor, a despeito dos investimentos
financeiros que contribuíram para garantir sua continuidade.
solicitar à Débora Saraiva, uma ex-aluna, que trabalha como agente administrativo na Nacional Expresso, que buscasse
informações sobre a relação dele com o jornal O Triângulo, não obtivemos sucesso. Na ocasião, segundo Débora, até
mesmo a Assessoria de Comunicação da empresa não soube ou não quis informar acerca dessa ligação.
29
O Triângulo, 12 de novembro de 1985, Editorial. Coluna Assunto em pauta. Cumprimos nosso papel.
30
O Jornal e a nova década. Correio de Uberlândia, 03 de janeiro de 1990, n. 15.288, p. 04.
31
PACHECO, Fábio Piva. Mídia e poder: representações simbólicas do autoritarismo na política. op. cit. p. 68.
20
De todo modo, os periódicos constituem uma rica fonte, pois há uma diversidade de
questões que dizem respeito à vida cotidiana na cidade e aos problemas e conflitos em
torno do lixo. As notícias impressas diariamente nos jornais são expressão das relações
vividas na cidade, das disputas e conflitos, das transformações no espaço, nos costumes
e hábitos dos moradores. Nessa perspectiva, a imprensa pode ser apreendida “como
prática social e momento da constituição/instituição dos modos de viver e pensar”.
32
Importa também chamar a atenção para o modo como essas reflexões remetem-nos
a um outro aspecto significativo sobre a questão do lixo na cidade: em meio às disputas e
tensões, determinadas noções de cidadania iam sendo forjadas por diferentes sujeitos;
sendo interessante discutir como tal processo ia delineando-se por meio de práticas e
mobilizações sociais, novos discursos, normas e regulamentações.
É preciso dizer, ainda que, no decorrer da pesquisa, os jornais indicaram intrigantes
pistas, motivando-nos a querer apreender melhor determinadas relações por meio de
outros documentos e outros sujeitos, que estiveram ou ainda estão envolvidos com a
problemática do lixo. A exemplo de quando encontramos algumas referências sobre a
presença de catadores nos lixões e sobre uma Ação Civil Pública contra o Município
impetrada pelo Ministério Público Estadual no ano de 1993. Esses acontecimentos foram
mencionados uma ou duas vezes na imprensa, mas por considerá-los importantes
indícios da história do lixo na cidade, fomos à procura de outras evidências.
Dessa maneira, vários aspectos da vida na cidade puderam ser explorados na
imprensa local. Ao definir critérios para selecionar as notícias, buscamos organizá-las
estabelecendo uma relação mais direta com a problemática do lixo. Porém, a maneira
como a natureza delas se modifica, ao longo dos anos, torna visível a diversidade de
elementos que perpassam essa discussão. Notícias, anúncios e reclamações informavam
sobre diferentes formas de aproveitamento do lixo e revelavam como a questão ia
tornando-se cada vez mais complexa. Isso nos motivou, então, a agrupar as notícias por
temas, que foram definidos após a leitura de todo o material coletado na imprensa.
Nos periódicos consultados, verificamos as reclamações da população sobre a
questão do lixo, dentre outros problemas dos bairros populares. Isso possibilitou a
percepção de um amplo leque de questões relativas à vida urbana. As reclamações eram
32
CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ,
Fapesp, Arquivo do Estado de São Paulo, Imprensa Oficial, 2000. “Introdução”, p. 20.
21
reveladoras do cotidiano do morador comum que vivia na periferia. As notícias permitiram
identificar, também, projetos, campanhas e programas do poder público, implantados na
tentativa de administrar os diversos tipos de lixo produzidos na cidade, o que possibilitou
discutir a maneira como as administrações locais encaminhavam suas políticas públicas e
prestavam serviços à população.
Interessante notar como tanto as notícias sobre atividades e empreendimentos das
administrações locais, quanto as reclamações dos moradores, ainda que diferentes em
sua configuração política, informavam acerca de dificuldades de uma mesma natureza e
deixavam entrever como os poderes públicos foram buscando estratégias para enfrentar a
questão do lixo. Um processo que traduz, sobretudo, as disputas locais entre entidades,
instituições, empresas e moradores. São relações que revelam o lixo não só como um
elemento cada vez mais complexo, mas também como um aglutinador de interesses
diversos e conflituosos, de intensas disputas econômicas, políticas, sociais e culturais.
Dentre outras fontes utilizadas, constam também documentos das Secretarias de
Serviços Urbanos e de Meio Ambiente, como folders, panfletos e até algumas fotografias
que retratam as atividades dos trabalhadores na usina. De fato, o uso das imagens
fotográficas nesta pesquisa assumiu diferentes sentidos conforme o que estava sendo
discutido. Entendendo a fotografia como documento histórico, como “representação”, que
propicia uma leitura e interpretação de determinada realidade social, vemos a
necessidade de explicitar os objetivos em cada situação registrada. As imagens que
produzimos expressam nosso olhar e abordagem no que tange às relações analisadas. Já
as outras fotografias, pertencentes à Professora Jureth e ao acervo da Secretaria de
Serviços Urbanos, utilizamos por acreditar que elas poderiam contribuir para reforçar
certas questões tratadas no texto, de maneira tal que o leitor pudesse, ao ver as imagens,
melhor apreendê-las, fazendo também uma outra leitura.
33
Por meio da administração municipal, adquirimos também o Relatório de Avaliação
Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia. Esse documento foi solicitado pela
Secretaria de Ciência e Tecnologia a um grupo de professores da Universidade Federal
de Uberlândia, de diversas áreas como Geografia, Saúde e Engenharia Química. Um dos
33
ESSUS, Ana Maria Mauad de Sousa Andrade. “O Olho da História: Análise da imagem fotográfica na
construção de uma memória sobre o conflito de Canudos”. In: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, vol. 6,
n. 1.2. (jan/dez. 1993). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 1993. p. 25-39.
22
objetivos do Relatório era realizar um levantamento sobre os tipos de resíduos destinados
ao aterro. Como consistiu na sistematização de informações sobre o problema do lixo na
cidade para a Administração daquele momento, o documento contribuiu para resgatar
determinadas ações, encaminhamentos e políticas adotadas para enfrentar a questão, ao
longo dos últimos anos, e os desacertos e contradições desse processo.
Atas e requerimentos da Câmara Municipal, relatórios da Secretaria Municipal de
Serviços Urbanos e relatórios de prefeitos, ao final de suas gestões, integram uma
documentação que ajudou a evidenciar o processo de urbanização, os problemas mais
freqüentes, permitindo delinear de que modo a questão do lixo ia assumindo diferentes
contornos no cotidiano da cidade. As Atas da Câmara Municipal, que registram os
debates e as disputas políticas, serviram para demonstrar as propostas e projetos para
lidar com o lixo. Debates sinalizadores de como determinadas iniciativas do governo local,
no que se refere ao lixo, nem sempre contaram com total apoio do Poder Legislativo,
tendo havido poucas, porém, expressivas dissidências.
34
Por fim, as entrevistas realizadas com sujeitos que sobrevivem da exploração dos
restos na cidade: um garrafeiro, um catador de papel e os trabalhadores e trabalhadoras
do aterro sanitário. Estes últimos mereceram destaque, nesta pesquisa, por serem
sujeitos que, ao lidar diretamente com o lixo, realizavam um trabalho intrinsecamente
ligado às transformações políticas e econômicas nas formas de gerenciamento dos
restos. A atividade exercida por eles representou novas possibilidades no mercado de
trabalho, outras diferentes formas de sobreviver do lixo, até então, não existentes na
história de Uberlândia. O testemunho dos trabalhadores ajudou a apreender o aterro
sanitário como espaço de relações vividas, como um caminho para pensar o modo como
a cidade se relaciona com o lixo que ela produz e, antes de tudo, refletir o que significou
para eles conviver com isso.
34
As Atas da Câmara Municipal, até o ano de 1989, encontram-se no Arquivo Histórico. Para consultar os anos
posteriores, de 1990 a 2002, foi necessário pesquisar no setor de Assessoria Técnica da Câmara em que não há
condições apropriadas a consulta por pesquisadores. O mesmo pode ser dito sobre a seção de Arquivo Geral da cidade,
no Distrito Industrial, local em que se guardam documentos administrativos dos vários setores da prefeitura. Ao
encontrar parte dessa documentação no setor de Assessoria Técnica da Câmara Legislativa e na seção de Arquivo Geral
de Uberlândia, ficamos surpresa. Depois de muita procura, não esperávamos mais que tais documentos tivessem sido
guardados. Destacamos a necessidade de que registros históricos, como esses, fossem conservados em melhores
condições de preservação e acesso, não somente a pesquisadores como também a qualquer morador interessado em
obter informações que não estão disponíveis nos textos de introdução dos Guias Sei, nem nos sites que contam aspectos
da história da cidade.
23
A reflexão sobre o modo de trabalhar e a rotina diária dos trabalhadores, para além
do sentimento em relação ao trabalho, permitiu algumas inflexões sobre intrigantes e
complexos aspectos de nossa cultura que se traduzem na maneira como lidamos com o
lixo.
Nessa direção, as entrevistas ofereceram outras significativas contribuições: as
experiências narradas sob o ponto de vista de quem as vivenciou. Ao longo da
investigação, refletimos sobre o fato de que as reclamações das classes populares nos
jornais, não obstante ser indícios das condições de vida desses grupos na cidade, traziam
um certo anonimato, eram sempre os outros falando sobre eles, construindo seu perfil. Ao
passo que as narrativas nos aproximaram dos trabalhadores, de sua realidade social
vivida e da elaboração que, em suas próprias consciências, faziam dela. Além disso, a
relação entre memória e consciência, presente na narrativa oral, lembra-nos Portelli,
advém de que nossas fontes são seres humanos e de que sua “motivação para narrar
consiste precisamente em expressar o significado da experiência através dos fatos:
recordar e contar já é interpretar”.
35
Faz-se necessário esclarecer que incorporamos os relatos dos trabalhadores ao
conjunto de fontes da pesquisa, e que, ao compará-los a outros documentos, auxiliaram-
nos a pensar o processo de trabalho e sua relação com o gerenciamento do lixo. Mas,
não tivemos condições de aprofundar a análise dos depoimentos, como demandaria o
trabalho com fontes orais. A reflexão histórica exige fazer escolhas: em meio a
diversidade de questões presentes nos depoimentos, esforçamo-nos por manter o foco no
universo do trabalho e em sua mediação com as relações em torno do lixo na cidade. Ao
mesmo tempo, buscamos apreender como os sujeitos forjam, por meio de suas práticas
sociais, múltiplas possibilidades criativas no enfrentamento dos mecanismos de
dominação social. Disto nos falaram as narrativas: lutas e intensos processos de disputas
políticas, constituindo expressão de relações vividas, antagônicas e conflituosas.
Vale ressaltar que as entrevistas realizadas com profissionais comprometidos com a
questão do lixo na cidade, tanto na administração pública como no setor privado, também
nos auxiliaram na compreensão de certos processos inerentes a essa problemática. Ao
35
PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes
orais”. In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, vol. 1, n. 2, p.59-72, 1996. As reflexões de Alessandro
Portelli têm sido importante referência, pois têm trazido significativas contribuições a muitos historiadores envolvidos e
preocupados com os sentidos e as implicações do uso de fontes orais na pesquisa histórica.
24
pensar o conjunto de documentos como registros do viver urbano, e ao estabelecer um
diálogo entre as várias fontes, procuramos traduzir a diversidade de sujeitos, de relações
e de significados que aqueles atribuem a estas, expressas na história do lixo em distintos
contextos.
A análise sobre as relações vividas em torno do lixo na cidade tem nos levado a lidar
com algumas noções da história social como cultura, costumes, tradição, práticas sociais
e trabalho. Dialogar com essas referências teóricas, tendo em perspectiva o modo são
elaboradas nos textos de E. P. Thompson, inspirou-nos a refletir sobre os sentidos das
diversas transformações históricas no viver urbano que se articulam aos diferentes usos
que se fazem dos restos.
Outra importante contribuição desse autor consistiu em apreender a pesquisa como
processo constante de construção e reelaboração. Admitimos que o humor e a refinada
ironia de Thompson foram atenuantes componentes na árdua tarefa da pesquisa
histórica. Sua reflexão tem nos alertado para a importância de que, como historiadores,
temos que olhar para as “questões de fato” sem jamais perder de vista a historicidade do
“curso das mudanças sociais”, se quisermos “que a história ocupe um lugar entre as
ciências humanas significativas”. Quando diz “que todo processo de industrialização é
necessariamente doloroso, porque envolve a erosão de padrões de vida tradicionais”,
instigou-nos a pensar acerca das transformações na cidade de Uberlândia ao longo de
seu processo de urbanização e na forma como isso alterou o cotidiano e o modo de vida
da população, delineando novas ingerências em relação ao lixo, que revelam disputas e
tensões e, sobremaneira, a precarização da vida e do trabalho daqueles que sobrevivem
nas fímbrias da exploração dos restos.
36
Daí, a complexidade dessa reflexão em que buscamos apreender a noção de
costume como “um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses
opostos apresentavam reivindicações conflitantes”. Nesse mesmo processo, é preciso
desnudar o significado das mudanças nos padrões de vida na cidade, o surgir de novos
elementos que transformam a cultura, mas que, entretanto, encontram-se profundamente
imbricados de hábitos e costumes passados. Até mesmo porque o modo como as classes
populares teimam em manter antigas formas de viver, trabalhar, apropriar-se dos espaços
36
THOMPSON, E. P. “A lógica histórica”. In: A Miséria da Teoria: ou um planetário de erros. RJ: Zahar, 1981.
______. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, vol. II, p. 343-347.
25
ou lidar com os restos não denotam, necessariamente, um apelo ao tradicional e sim,
possivelmente, estratégias de defesa de suas formas de viver, de seus valores e de sua
cultura, que mostram como os costumes e as tradições são revividas e retomadas no dia-
a-dia dos trabalhadores. Se essas questões nos parecem conflitantes, e elas realmente
são, interessante retomar o alerta de que “o próprio termo ‘cultura’, com sua invocação
confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e
culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto”.
37
Uma reflexão sobre as formas alternativas de resistência/resignação/luta e
acomodação aos mecanismos de dominação social, trazidas à luz no processo de
investigação dos conflitos e tensões que norteiam as relações em torno do lixo na cidade,
demarca os rumos que estamos dando à pesquisa, como nos inserimos e o que
queremos no campo da história social e da cultura, qual seja, trabalhar a diferença, lidar
com o lixo na cidade semelhante a algo ainda não incorporado como uma questão a ser
encarada pela literatura especializada.
Por isso mesmo, é que a leitura de Raymond Williams traz uma contribuição
fundamental a esta pesquisa. Sua inestimável habilidade em desemaranhar os conceitos
à luz do processo histórico tem funcionado como um importante fator elucidativo, que
suscita a refletir sobre os ricos caminhos de transformação das relações vividas,
perceptíveis na cultura, que o lixo delineia. Olhando a questão do lixo na cidade, vemos
emergir novos hábitos e comportamentos, normas e técnicas, reveladores de um
processo social em formação, impregnado de disputas que se estabelecem entre diversos
e distintos sujeitos. No nosso entender, o lixo também demonstra que, “mesmo no século
XX, numa terra urbana e industrializada, é extraordinário como ainda persistem formas de
antigas idéias e experiências”. Isso é escrito por Williams, ao falar sobre “as atitudes dos
ingleses em relação ao campo e às concepções da vida rural”, na Inglaterra, apesar de
todas as transformações provenientes da Revolução Industrial. É preciso, no entanto,
para além de perceber tais dimensões da problemática do lixo na cidade, apreender o que
se enuncia de novo, o que está apenas emergindo nesse complexo processo social,
extremamente revelador de uma cultura e de valores que se forjam na sociedade
contemporânea.
38
37
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. “Introdução: Costume e Cultura. SP: Cia das Letras, 1998, p. 16-17.
38
Williams, Raymond. O Campo e a Cidade: na História e na Literatura. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 13.
26
Nesse sentido, a problemática do lixo no espaço urbano tem profunda articulação
com a questão da sociedade de consumo, em que se engendra uma série de
contradições. À luz de certas evidências, tornou-se imperativo ponderar algumas
implicações do que significa viver numa sociedade que define como orientação
fundamental produzir mercadorias, na qual coexistem coisas aparentemente
incompatíveis como fartura, desperdício e escassez. Sugerimos que uma das análises
mais coerentes acerca desse debate é elaborada também por Williams, quando, ao
comentar sobre a “sociedade dos consumidores”, alerta-nos que:
[esses problemas não podem ser resolvidos] através de medidas baseadas em uma fantasia que se
desenvolveu à sombra do ideal capitalista de uma produção sempre em expansão, sempre
competitiva e para sempre bem-sucedida. As fantasias mais benemerentes de dar a todos cada vez
mais de forma que não seja preciso fazer escolhas é o grito de morte da velha social-democracia. O
mundo não é apenas tão duro quanto nos dizem os capitalistas, é ainda mais duro. Há limites
materiais intransponíveis, ainda que se apliquem de forma desigual e em diferentes lugares, para a
produção e consumo indefinidos de mercadorias que são pressupostos e prometidos pelo sistema
capitalista e por seus sócios minoritários. Uma hora vamos ter que dividir, pode ser com aumento de
produção e com tempo disponível ou com recursos e disponibilidades reduzidos.
39
Na verdade, as relações em torno do lixo possibilitam desvendar a enorme teia de
contradições e desigualdades na qual elas se estruturam, mas também permitem
apreender as disputas e conflitos inerentes, que trazem dimensões políticas, econômicas,
sociais e culturais, e que denunciam a todo tempo lutas e embates que se travam na
defesa de determinados valores.
Cremos ser necessário, ainda, explicar sobre a temporalidade da pesquisa, cujo
marco cronológico situou-se entre os anos de 1980 e 2002. Essa delimitação adveio de
uma percepção de que os restos materiais, como objeto de análise histórica, contém
múltiplas possibilidades de abordagem, em tempos e espaços diferenciados, haja vista a
condição de problema social que o lixo vem configurando na constituição do espaço
urbano.
No processo de investigação, observamos que as últimas décadas do século XX
marcaram um período em que Uberlândia contava com acentuado crescimento urbano e
39
CEVASCO, Maria Elisa. Para Ler Raymond Williams. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 265.
27
populacional, fato evidenciado em várias pesquisas que abordam o fenômeno de
migração para a cidade. Em meados da década de 1980, o lixo assume, também, a
dimensão de um problema, situação que se revelava no fato de que a cidade, até então,
destinava seus restos nos lixões e precisava, constantemente, reorganizar seus espaços
de despejo, uma prática que perdurou até 1993, quando se terceirizaram os serviços de
limpeza pública. Portanto, o gerenciamento do lixo, tanto pelo poder público como pela
iniciativa privada, tornava-se elemento propulsor de conflituosas disputas políticas,
traduzindo os diversos interesses que se perpetuavam nas relações de poder
estabelecidas no âmbito da política local.
Além disso, a década de 1980 parecia despontar como um período rico de
significativas mudanças nos hábitos da população, engendrando novas formas de
produzir, consumir e descartar, traduzidas em diferentes noções de lixo e podendo ser
lidas na historicidade das relações vividas na cidade. Relações que delineiam a
precariedade das condições de trabalho de gente que sobrevive dos restos, como os
coletores de papel e, posteriormente, os trabalhadores do aterro sanitário, sujeitos que,
com sua experiência cotidiana de lidar com os refugos, contribuem para explicitar antigas
e novas formas de sobreviver da apropriação dos restos.
É preciso dizer, também, que o final do ano de 2002, quando o poder público
determinou a desativação da usina de triagem do aterro sanitário, constituiu um marco na
história do lixo na cidade, delimitando um retorno ao passado. Com o encerramento das
atividades da usina, o aterro começou a funcionar como um verdadeiro lixão, pois os
resíduos principiaram a ser enterrados, novamente, sem tratamento algum. Talvez isso
possa explicar a razão pela qual, escrevendo a história do lixo em Uberlândia,
defrontamo-nos com um atordoante vai e vem; movimento que parece estabelecer
contínuas rupturas e permanências, características dessa trajetória.
Como objeto de análise, o lixo apresenta-se como um elemento fragmentado e
fugidio, a tal ponto que dificulta sua própria definição e embaraça um pouco o percurso de
uma reflexão histórica. Razão pela qual, em vários momentos ao longo do texto, fizemos
a opção por usar o termo restos no intento de historicizar as diversas relações vividas
que são subjacentes a eles. O lixo tem ainda uma conotação negativa, por ser
culturalmente, quase sempre, associado a elementos ruins, àquilo que é sujo, repugnante
e passível de contaminação. Essas são imagens a serem problematizadas na pesquisa
28
histórica, que pretende, justamente, discutir sua complexidade e novos sentidos que são
atribuídos a elas.
No universo das reflexões sobre o lixo como uma questão urbana da cidade de
Uberlândia, deparamo-nos com vários tipos de lixo e, por assim dizer, com distintas
noções sobre ele, que se manifestam de diferentes formas nas relações vividas. Por meio
delas, os restos apareciam como sinônimo de sujeira e estorvo, mas também tinham
utilidade como fertilizante, tornavam-se alvo de diversos projetos, empresariais, uso
comercial, políticas públicas e passavam a ser fonte de trabalho e de sobrevivência.
Desse modo, alguns restos eram chamados de lixo, ao passo que outros não. Na própria
dinâmica da vida na cidade, conseguimos apreender o significado das relações em que o
lixo passou a ser visto como material descartável, ou, então, denominado como entulho,
em se tratando dos restos da construção civil. Essa diversidade que o envolve nos coloca
uma indagação fundamental: no processo de crescimento e urbanização de Uberlândia:
que feições o lixo assumia para diferentes sujeitos? Desvendar o emaranhado que
constitui o universo dessas relações é refletir sobre as articulações sociais que se
constituem em torno do lixo na cidade.
De fato, o lixo é uma problemática social e urbana. Por sua vertente, discutimos
dimensões da expansão da cidade, modos de produção social do espaço urbano e
estratégias de organização do trabalho e da sobrevivência.
Buscando tornar compreensível esta reflexão, organizamos os capítulos da seguinte
maneira: no primeiro capítulo, tratamos de determinados aspectos da produção dos restos
e sua relação com o processo de urbanização da cidade. Algumas transformações,
decorrentes desse período, possibilitaram uma leitura de certas alterações no modo de
vida dos moradores, expressivas de determinadas mudanças tanto nos usos que se
faziam dos restos como na própria natureza de sua produção. Com o crescimento da
cidade, os diversos tipos de lixo, produzidos em vários espaços, contribuíam para que se
pudesse vislumbrá-la como um lugar onde se materializavam relações que traduziam a
intensidade da produção e das disputas pela apropriação dos restos.
No segundo capítulo, discutimos como a cidade gerenciava o lixo. A administração
pública, empresas e moradores têm conflitantes interesses e atuações nesse processo.
As alternativas e soluções que se encontram, para dar um destino aos restos que a
cidade produz, articulam-se à instituição dos lugares de lixo. Tanto a questão do entulho
29
quanto a do lixo doméstico ajudaram a evidenciar importantes aspectos da vida urbana,
como determinados hábitos da população e os limites de uma legislação, que, por vezes,
era descumprida até mesmo pelos órgãos públicos. Ao percorrer uma cartografia
desenhada por esses restos, tomamos consciência das hierarquias e contradições sociais
que eles contribuíam para desnudar.
No terceiro capítulo, abordamos a questão do lixo hospitalar na cidade. Um tipo
específico de lixo, que consideramos extremamente revelador de algumas mudanças de
atitude em relação a problemática do lixo urbano. Por representar uma ameaça e riscos
de contaminação, por ser associado a doenças e a outros perigos, o lixo hospitalar
despertava um certo temor na população e, consequentemente, reações de protestos
diante da negligência com que, na maioria das vezes, era tratado pelas autoridades
responsáveis. Em meio a esse processo, o lixo hospitalar começou a exigir maiores
cuidados, contribuindo para que a questão do lixo na cidade, historicamente, se
transformasse, também, em uma questão ambiental e de saúde pública.
No quarto e último capítulo, refletimos sobre a atividade dos trabalhadores da usina
de triagem do aterro sanitário, entre os anos de 1997 e 2002. Buscamos apreender como
eles atribuíam significados a esse modo de atuar. Se, por um lado, admitiram enfrentar
algumas formas de preconceito social e discriminação, por outro, afirmaram que esse
trabalho consistiu numa alternativa de subsistência. Além disso, o gerenciamento do
aterro, o funcionamento da usina e as atividades lá exercidas careceram ser discutidos
porque revelam intrigantes aspectos das relações em torno do lixo em Uberlândia.
Nesse sentido, a experiência de dialogar com os trabalhadores foi, em alguns
momentos, delicada, difícil, pois implicou transpor determinadas barreiras e conflitos
éticos. Não obstante termos traduzido de maneira simples o objetivo das entrevistas,
tínhamos consciência de que, para eles, as nossas intenções talvez não estivessem muito
claras, afinal, nossa presença ali havia sido autorizada pela Secretaria de Serviços
Urbanos. Mesmo com aqueles trabalhadores que se dispuseram a falar abertamente
sobre o trabalho, fazia-se presente certo constrangimento. Sentimos dificuldades em ouvir
e escrever sobre a vivência desses trabalhadores, porquanto isso significou estar no limiar
de uma fronteira que dizia respeito ao privado, ao íntimo, àquilo que se preferia silenciar e
que parecia beirar o indizível. Eles constituíam uma categoria de trabalhadores que
mostrava uma ferida sensível: o comprometimento da saúde, o ser malvisto, decorrente
30
da relação de similitude, que, por vezes, as pessoas estabelecem entre o que é o
trabalhador que lida com o lixo e o que é o lixo, enfim, para eles, a sobrevivência
acarretava ter de realizar um de trabalho que atingia e feria a dignidade. Tudo isso nos
obrigou a repensar as relações com o mundo a nossa volta, a forma de encará-lo e os
valores que nos cercam, justamente, porque não é possível escrever sobre uma realidade
sem, em alguma dimensão, envolver-se e ver a si própria transformada por ela.
De fato, era desconcertante demonstrar solidariedade pelas dificuldades que os
trabalhadores enfrentavam, sem deixar transparecer que parte do que diziam nos
provocava também um misto de angústia e indignação. Embora soubéssemos que
qualquer cumplicidade que quisessem despertar estava longe de ser afetiva, mas seria,
sobretudo, política. Admitir sentir nojo do contato com o lixo ou argumentar em defesa de
condições mais seguras e salubres de trabalho podem ter sido maneiras pelas quais os
trabalhadores tentaram denunciar o que viviam. Quem sabe esperassem também que, de
alguma forma, tais denúncias pudessem se desdobrar em possíveis mudanças.
Quanto às entrevistas, é preciso dizer que há uma profunda mudança em sua
natureza, advinda do tempo, das condições e das circunstâncias em que foram
produzidas. As primeiras foram realizadas no aterro sanitário. Isso acarretou
determinadas implicações no modo reservado como alguns trabalhadores se
manifestaram. Lá não era um lugar apropriado para falarem com franqueza sobre suas
condições de trabalho e o que pensavam a respeito desse tema.
Quando nos referimos ao espaço do aterro, não temos em mente apenas o fato de
ser um local pouco propício ao diálogo; o intenso ruído das máquinas, o forte calor, a
incômoda presença dos mosquitos, mas também à vigilância constante da técnica de
segurança e de uma funcionária da cantina, ambas estavam sempre a circular pelo local
em que conversávamos. Levando isso em consideração, avaliamos que aqueles
entrevistados cujos depoimentos trouxeram abertas críticas às condições de trabalho,
como Ione Ribeiro, revelaram-se ousados e corajosos, pois o fizeram a despeito do temor
de que pudessem ser penalizados.
Nesse caminho, a documentação analisada é múltipla: a imprensa diária,
documentos da Câmara Municipal, pesquisas de autores que estudaram a realidade
urbana local, relatórios elaborados por professores e pesquisadores da Universidade,
fotografias que mostram o trabalho na usina, produzidas por servidores públicos da
31
Secretaria de Serviços Urbanos, além das entrevistas com trabalhadores e outros sujeitos
envolvidos com a questão do lixo na cidade, que ajudaram a responder algumas
indagações surgidas durante a investigação. Todos esses registros permitiram uma via de
acesso, um meio de abordar esse complexo universo que o lixo engendra. Eles auxiliaram
no propósito de decifrar algumas das transformações que se inscrevem no espaço
urbano, possíveis de ler nas diferentes formas de lida e de apropriação dos restos.
Registros que traduzem o modo como a visão sobre o lixo veio modificando-se,
delineando um processo histórico em que as relações estabelecidas com ele revelam
profundas mudanças no corpo da cidade e na sensibilidade de seus moradores.
A documentação ajudou-nos, ainda, a desnudar os diversos meandros que se
articulam a outros aspectos da problemática do lixo em Uberlândia, em que o
gerenciamento dos restos delineia não apenas novas ingerências da sociedade, tanto
sociais quanto políticas, como também a percepção de que do lixo agora
institucionalizado como uma mercadoria é possível se auferir lucro.
CAPÍTULO I
DAS SOBRAS AO LIXO:
ANTIGOS E NOVOS USOS DOS RESTOS NA CIDADE
As relações históricas que envolvem a produção do lixo no espaço urbano
constituem um rico campo de análise, pois nos possibilitam avaliar dimensões do seu
crescimento e transformação pelo viés dos restos que produz e descarta. A forma como a
cidade destina seus restos é reveladora de relações sociais que se estabelecem,
marcadas por tensões e disputas.
Propusemos, aqui, uma reflexão sobre o modo como a cidade, à medida que vai
crescendo e se transformando, vai modificando-se também nas formas de produzir e
destinar os restos. Apreender como se constituiu esse processo é problematizar suas
interferências no espaço urbano, nos hábitos, costumes e práticas da população.
Nessa perspectiva, partimos do pressuposto de que na relação com os restos
podemos entrever dimensões do processo de urbanização. Na intenção de discutir como
isso se desenrola, buscamos apreender em determinados aspectos das relações vividas
na cidade, ainda nos primeiros anos da década de 1980, algumas dimensões da
produção e uso dos restos. Tais práticas traduzem também algumas noções sobre os
refugos forjadas naquele contexto e modificadas ao longo do tempo.
Fatores como migração, surgimento de bairros periféricos e mudança nos hábitos de
consumo da população são elementos significativos para mostrar como a cidade foi
crescendo, modificando seus espaços e suas relações com os restos, sobre os quais
também foram se formulando outras noções.
Interessa discutir como tais elementos articulam-se a um aumento da produção de
restos e, também, como o acúmulo do seus diversos tipos, provenientes das muitas
atividades desenvolvidas na cidade, contribuem de maneira decisiva para a transfiguração
33
do lixo em um problema mais complexo. Problematizando esse fenômeno social,
revisitamos a cidade de Uberlândia, tendo em perspectiva certos aspectos que nos
permitiram inferir sobre algumas mudanças relativas aos modos de produzir, usar e
destinar os restos.
No conjunto das mudanças em curso, a migração para a cidade era um fator
dinâmico e interessante, explorado por muitos historiadores. Em Minas Gerais, Uberlândia
foi uma das cidades que se destacaram, até o início da década de 1990, por ter exercido
forte atração sobre aqueles que ansiavam melhorar suas condições de vida, no espaço
urbano.
Uma generosa parcela da população constituía-se de migrantes, que vieram de
cidades próximas ou mesmo de estados mais distantes. Até meados dos anos de 1980, a
população era de, aproximadamente, duzentas e quarenta mil pessoas, nas duas
décadas seguintes, essa quantidade mais que dobrou.
1
Um crescimento decorrente do
fato de que um grande número de pessoas veio para a cidade na crença de conseguir
trabalho e melhor condição de vida, contribuindo para várias transformações urbanas.
2
Todo esse movimento incluía, dentre seus atrativos, o trabalho na construção civil,
no setor agrícola, ou agropecuário, em Uberlândia ou nas cidades vizinhas. Essas eram
algumas ocupações exercidas por muitos trabalhadores migrantes. No que se refere ao
setor da construção civil, tal processo podia ser visualizado em alguns empreendimentos:
“ampliação do pólo industrial”, edificação de “casas populares e obras públicas”. Ao
discutir as experiências de trabalhadores da construção civil, em Uberlândia, Guilherme
aponta que alguns fatores, como o fortalecimento da região do Triângulo Mineiro,
atribuído, em grande parte, à sua industrialização, resultaram na “construção de
barragens, como a Usina de Emborcação, no rio Araguari, e as alterações na estrutura
econômica das cidade vizinhas, por exemplo, as transformações na estrutura agrária”.
3
1
Segundo dados da Prefeitura, o total da população, nesse período, era de 240.961, ver Plano Diretor, 27 de abril de
1994. Secretaria Municipal de Serviços Urbanos.
2
Para referências acerca de trabalhos sobre migração para Uberlândia e região, nas últimas décadas, ver: BOSI, Antônio
de Pádua. Os “Sem Gabarito”: Experiências de luta e organização popular de trabalhadores em Monte Carmelo/MG
nas décadas de 1970/1980. FERREIRA, Jorgetânia da Silva. Memória, História e Trabalho: experiências de
trabalhadoras domésticas em Uberlândia 1970-1999. SILVA, Dalva Maria de Oliveira. Memória: Lembrança e
Esquecimento - Trabalhadores nordestinos no pontal do Triângulo Mineiro nas décadas de 1950 e 60. Mestrado em
História Social, Programa de estudos Pós graduados em História. PUC: São Paulo, produzidos entre 1997 e 2000.
3
GUILHERME, Edimilson Lino. Trabalho, Quotidiano e Sobrevivência: experiências de trabalhadores da construção
civil em Uberlândia (1970-2000). Mestrado em História Social, PUC: São Paulo, 2001, p.23-24.
34
Tudo isso ajudou a atrair um expressivo contingente de trabalhadores para a cidade
durante aqueles anos.
Nessa perspectiva, além da chegada de novos habitantes, outros elementos
delineavam justamente o urbano em constituição e podiam ser vislumbrados, por
exemplo, no comércio ambulante, já expressivo nesse período. Gente circulando pelas
ruas, avenidas e praças, sinalizava as mudanças que vinham se dando. A solicitação de
um trabalhador, que utilizava o espaço público no dia-a-dia, ao prefeito da cidade, dá-nos
idéia da profusão de pessoas que circulavam pelas áreas centrais:
Gostaria que Zaire Rezende estudasse uma forma de nos autorizar a ampliar nossas barracas de
venda de suco. A cidade está crescendo e gostaríamos de poder dar mais comodidade a nossos
fregueses. João Batista Gomes, 60 anos, casado, dois filhos, mora na Av. Paes Lemes, n. 745, Bairro
Martins. É ambulante e vende caldo de cana na praça Tubal Vilela.
4
Na resposta do prefeito, publicada no jornal de sua assessoria, que se colocava
como porta voz dessa reivindicação, lêem-se vestígios que traduzem como a cidade vinha
se constituindo. Sem garantir ao vendedor que seu pedido para expandir o número de
barracas na praça seria atendido, o prefeito mencionou que havia sido feito um estudo
nesse sentido pela Secretaria de Serviços Urbanos. Declarou, também, que a praça era
pública e deveria “servir a vários segmentos da sociedade uberlandense”. Essa
diversidade de sujeitos e usos do espaço público, a que o prefeito se referiu, sinalizava
alguns fatores como o crescimento da população e do comércio, no qual se
materializavam relações não tão democráticas. À época, O Triângulo escreveu:
O comércio paralelo de ambulantes continua nas ruas de Uberlândia. As bancas vendem de tudo.
não garantem a qualidade. Neste flagrante de Marlúcio Ferreira, um possível comprador olha as
mercadorias enquanto o “comerciante” ataca de bóia-fria. É um retrato de Uberlândia que virou
metrópole ... (Vendedores ambulantes continuam) “estabelecidos” na praça, que antigamente era do
povo como o céu é do condor, mas hoje é do Camelô. Nesse comércio paralelo, que obriga o
pedestre andar aos trambolhões, surge a figura do artesão. O artesanato, geralmente, é fabricado em
São Paulo. São produtos de qualidade inferior, engana-trouxa, o que acaba justificando o ditado de
que o barato sai caro.
5
4
Uberlândia pergunta e o prefeito responde. Participação, ano I, n. 04, novembro de 1984, p. 04.
5
Comércio movimentado, ambulantes e barraquinhas e o irresistível impulso de fazer compras. O Triângulo, 28
de dezembro de 1985, p. 01.
35
Em sua pretensa “denúncia”, o texto aponta como o comércio ambulante já era
expressivo nas áreas centrais. “A principal praça da cidade” abrigava esses
trabalhadores: camelôs e ambulantes, estes últimos assim denominados por vender seus
produtos em diversos lugares e por não ter autorização da prefeitura para atuar. Expostas
no espaço público, as mercadorias variavam de brinquedos, roupas, até ervas e
remédios. Nessa notícia, notamos que o jornal, aliando-se aos interesses dos lojistas,
parece tentar empreender uma verdadeira campanha contra a presença dos vendedores
ambulantes no centro da cidade, atribuindo-lhes uma imagem desqüalificadora, tachando-
os de sonegadores e responsabilizando-os por tumultuar as vias públicas.
6
Enfim, o jornal trazia uma visão negativa sobre tais ocupantes do espaço público.
Novos olhares sobre documentos do período apreendem que essa intolerância era
também compartilhada por alguns setores do governo municipal. Em Ata da Câmara
Municipal, um vereador afirmou:
“No entanto, acho que ele (o comércio ambulante) não deva ser exercido, indiscriminadamente,
ferindo a harmonia da paisagem e dando às ruas do centro de nossa cidade um aspecto não muito
condizente com nosso fôros de civilização”.
7
Transparecem aqui as contradições inerentes às relações sociais que os sujeitos
estabelecem e aos interesses que defendem. No passado ou no tempo presente, os
trabalhadores estão sempre a enfrentar as tentativas de controle e o autoritarismo do
poder público. Indícios para pensarmos como a maioria dos representantes do povo
lidavam e ainda lidam com os problemas da cidade que envolvem as classes populares.
Entretanto, a presença expressiva de vendedores ambulantes, trabalhadores da
construção civil, carregadores de mercadorias, carroceiros, catadores de papel e os
demais que se utilizavam dos espaços públicos expõe interessantes aspectos desse
período. Eram pessoas que se movimentavam pela cidade e que, na busca da
sobrevivência, empreendiam atividades que ajudavam a transformar a paisagem urbana,
sinais das relações entre o aumento do número de habitantes, a expansão da indústria e
do comércio e a produção de lixo no espaço urbano.
6
Para maiores referências acerca da presença desses trabalhadores na cidade, ver: ARAÚJO, Luciene Alves de.
AMBULANTES: desempregados ou trabalhadores em busca de autonomia? (Uberlândia–MG, 1980/95). Boletim do
CDHIS, n. 18, UFU, 1º semestre de 1997.
7
Documentos da Câmara Municipal de Uberlândia, Livro de Atas do Poder Legislativo, 26 de março de 1987. Arquivo
Público Municipal. Secretaria Municipal de Cultura.
36
Olhar atentamente esse processo permitiu-nos captar elementos reveladores de
uma urbanização ainda em curso. Dessa maneira, vários terrenos baldios, diversas áreas
verdes sem edificações e inúmeras ruas sem asfalto faziam parte da paisagem urbana.
Ao mesmo tempo, os quintais com suas cercas de arame, o cultivo de hortaliças e a
criação de animais domésticos traduziam indícios de como muitos habitantes
organizavam a vida nesse espaço, revelando aspectos que influenciavam para infundir no
cotidiano dos moradores relações de maior proximidade e solidariedade.
O que pode ser considerado como uma das estratégias para conviver com as
dificuldades existentes, pois, em muitos bairros populares, a lama ou a poeira ajudavam a
compor a paisagem citadina. Também não havia água encanada ou contava-se com um
incerto serviço de abastecimento. Entre outras ausências, a de energia elétrica e redes de
esgoto, com a população tendo que improvisar alternativas a fim de eliminar os detritos.
8
Razão pela qual era comum a existência das fossas nos fundos dos quintais, como forma
de escoamento dos esgotos. Ademais, uma lei municipal proibia o “escoamento de águas
servidas das residências para a rua”, o que sugere a manutenção de tal prática.
9
Comum também era a raridade dos serviços de limpeza pública, como a coleta de
lixo. Em certos lugares, o lixo era depositado em latas ou tambores utilizados
coletivamente, e ficava dias aguardando para ser recolhido ou, via de regra, era
freqüentemente jogado em terrenos baldios, valas, encostas e brejos, não muito distantes
dos locais de moradia. Como o serviço de recolhimento era instável ou inexistente, muitos
moradores mantinham também o hábito de enterrar ou queimar seu lixo, às vezes, “nos
próprios quintais”.
10
Em tempos de seca, essa prática atingia dois objetivos: dar fim ao lixo
e atear fogo ao mato que constantemente invadia os espaços vazios e inutilizados.
Imaginamos que o modo como a legislação em vigor abordava o tema do lixo
doméstico fosse uma expressão de certos costumes da população. Referimo-nos ao
Código Municipal de Posturas de 1967, que, em seu artigo 36, menciona que “o lixo das
habitações será recolhido em vasilhas apropriadas, providas de tampas, para ser
removido pelo serviço de limpeza pública”. Podemos visualizar nessa prática
8
Espaço do leitor: falta água, conta aumenta. O Triângulo, 14 de junho de 1986, n. 5.888, p. 02.
Aumento de carros pipa para abastecer a cidade. O Triângulo, 30 de setembro de 1986, n. 5.963, p. 01.
Energia elétrica para os bairros. O Triângulo, 17 de março de 1987, n. 6.076, p. 07.
9
Lei 1460 de 27 de fevereiro de 1967, institui o Código de Postura Municipal, p. 163. Arquivo Público Municipal.
10
Idem, p. 163. O Código Municipal de Postura de 1988 traz também expressa a proibição de se queimar lixo “ao ar
livre, assim como dar outro destino que não seja a apresentação à coleta”. p. 08.
37
interessantes aspectos da maneira como se lidava com o lixo, inscritos em todo um
percurso de manusear, acondicionar e dar um destino a ele. Depositado, ainda, em latas
e tambores, levaria quase uma década para a utilização dos sacos plásticos e para o
recolhimento do lixo de porta a porta.
11
Delineavam-se, então, formas de tratar e destinar os refugos bastante
individualizadas, nas quais também se percebe uma concepção de limpeza que muito
difere do que temos por referência nos dias de hoje. Isso nos leva a pensar que, por esta
e outras razões, naquele momento, estabelecia-se uma maior convivência, ou melhor,
uma maior tolerância da população em relação ao lixo. Eram características do espaço
urbano desenhando uma cidade que, haja vista a maneira como se organizava a vida dos
moradores, convivia muito próximo com seus restos.
De fato, a cidade já vivenciava um crescimento. Mudanças indicando isso se
expressam em um texto publicado pelo jornal Correio de Uberlândia, no ano de 1981:
As constantes chuvas, que estão caindo por sobre a cidade, proliferam o matagal nos terrenos
baldios, alguns encobrindo residências vizinhas. O fato vem trazendo preocupação muito grande à
Administração Municipal, que pensa em redigir uma lei para ser aprovada pela Câmara Municipal
visando obrigar os proprietários desses imóveis a mantê-los limpos e murados. A limpeza destes
terrenos, segundo explicou o Prefeito Municipal pela televisão, ao ser entrevistado no programa
“Sérgio Martinelli”, onera muito os cofres públicos e por isso pensa transferir essa despesa para
aqueles que são os proprietários dos terrenos, abandonados à sua própria sorte, à espera de maior
valorização, para que eles fiquem obrigados a mantê-los sem mato e cercados, especialmente com
muros. A medida já se faz necessária há muito, uma vez que em bairros onde estão edificadas
majestosas residências, esses terrenos baldios formam um cenário pouco condizente com a beleza
arquitetônica, dando impressão de completo abandono e de total desmazelo pelos seus proprietários,
que precisam ser admoestados por uma Lei Municipal.
12
11
A respeito do uso das latas para acondicionar o lixo, o jornal Correio de Uberlândia traz uma interessante referência,
que, mesmo reportando-se ao ano de 1972 e à coleta de lixo no centro da cidade, permitiu-nos inferir acerca de alguns
aspectos que revelam como isso se configurou no restante da cidade, nos anos seguintes. Segundo o jornal, as latas
dispostas em frente às lojas começaram a ser alvo de reclamações devido ao mau cheiro que estavam provocando.
Atribuía-se isso ao fato de que ,“confeccionadas sem racionalidade, no que tange a facilidade de serem limpas, essas
latas, para sofrer seu esvaziamento de lixo e outros detritos, precisam ter seu compartimento aberto por baixo,
obrigando uma tremenda mão-de-obra dos garis”. Latas de lixo provocam reclamações. Correio de Uberlândia, 30
de dezembro de 1972, p. 07. Vale comentar aqui a maneira como o lixo era manipulado pelos trabalhadores da limpeza
pública e, também, como os sacos plásticos para acondicioná-lo eram, ainda, apenas uma novidade observada à
distância. Nesse mesmo jornal, encontramos uma notícia que versava sobre a experiência, na cidade de São Paulo, em
1971, de depositar o lixo em sacos plásticos. O texto em questão, não sem um tom de expectativa, trazia a seguinte
manchete: Lixo em sacos plásticos dá certo. Correio de Uberlândia, 05 de outubro de 1971, p. 05.
12
Matagal toma conta dos terrenos baldios. Correio de Uberlândia, 03 de janeiro de 1981, n. 13.048, p. 01.
38
Aqui, entremostra-se uma cidade em crescimento que, ao mesmo tempo, depara-se
com diversas limitações. O jornal descreve-nos uma paisagem urbana na qual alguns
elementos presentes no cotidiano destacavam-se: “o matagal” e “os terrenos baldios”,
sendo estas características muito comuns na cidade de Uberlândia naquele contexto.
No entanto, podemos observar como esses elementos naturais aparecem
associados pelo jornal à imagem de “abandono” e de “desmazelo”. O que nos transmite
ainda a idéia de que a preocupação com as condições de limpeza da cidade concentrava-
se na necessidade de eliminar do cenário urbano tais elementos. Transparece, aqui, uma
noção de sujo associada à falta de urbanização de alguns espaços, onde se considerava
que o mato era “pouco condizente” com a importância social que se dava a eles. Os
sentidos que se atribuíam à presença do “matagal nos terrenos baldios” traduz uma
concepção do que se considerava como limpo e como sujo naquelas circunstâncias
históricas, sua existência, torna-se, então, um sintoma das condições de limpeza da
cidade.
O texto, que pretende chamar a atenção para a necessidade de limpeza dos
terrenos baldios, tem por argumento o fato de que isso iria melhorar esteticamente esses
lugares em que havia “majestosas residências” de grande “beleza arquitetônica.” O que
significa dizer que não se está falando de qualquer bairro, mas de lugares nos quais havia
terrenos baldios cujos proprietários estavam “à espera de maior valorização”. Ao enfatizar
que locais assim precisam ser limpos para melhorar o aspecto da cidade, o jornal deixa
entrever uma visão do que seria uma cidade limpa e urbanizada e quais espaços
considerava que deveriam ser limpos a fim de embelezá-la.
Se, por um lado, essa pretensão de preservar a limpeza e a higiene no espaço
urbano se articulava perfeitamente à imagem de “cidade jardim”
13
, tão difundida pelas
elites locais, não sem a colaboração de alguns órgãos da imprensa diária, desde o
13
Denominação pela qual a cidade ficou popularmente conhecida desde os anos de 1930. Ver: MARTINS, Hilda dos
Reis. O lixo urbano em Uberlândia: a limpeza da “cidade jardim”. Monografia em Geografia, Uberlândia: UFU, 1999.
Interessante perceber que historicamente essa imagem permaneceu sendo convenientemente evocada no discurso de
algumas autoridades públicas, como na ocasião em que “o vereador Eurípedes Barsanulfo de Barros apresentou
indicação pedindo ao prefeito Zaire Rezende determinar à Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, proceder com a
máxima urgência a limpeza dos terrenos baldios da cidade. Para o líder do PFL, o espetáculo que se presencia hoje em
Uberlândia, é de tristeza com seus bairros completamente tomados por um vasto matagal. Nossa cidade, que sempre foi
conhecida como CIDADE JARDIM, está sendo confundida com CIDADE CAPIM. Acredita o vereador Eurípedes
Barsanulfo de Barros que haja amparo em lei para que a Prefeitura aja junto aos proprietários dos terrenos baldios, que
servem, inclusive, como se encontram, de esconderijo de marginais e “habitat natural” para insetos nocivos à vida”.
Limpeza de terrenos baldios. O Triângulo, 05 de março de 1987, n. 6.068, p.02. (grifos do texto original).
39
começo do século XX, como uma estratégia para atrair recursos financeiros e humanos
para a cidade, por outro, o texto revela, também, como a especulação imobiliária em
Uberlândia constitui uma prática de longa data. Assim, não se pode deixar de observar a
ênfase que o jornal dava à necessidade de uma Lei Municipal que coibisse a prática de
alguns espertos de acumular terrenos vazios, como se isso representasse uma atitude
arrojada por parte da administração local na tentativa de resolver de vez o problema. Na
verdade, o próprio Correio de Uberlândia havia publicado, no ano anterior, uma notícia
cuja manchete já dizia: “Lei sobre terrenos baldios só existe no papel”.
O vereador Eurípedes Barsanulfo de Barros protestou contra a situação em que se encontram os
terrenos baldios em Uberlândia. Disse ele que “há um verdadeiro desrespeito, uma verdadeira
bagunça”. E acrescentou: “eu gostaria que se tomassem providências para o cumprimento de uma lei
que obriga os proprietários a construírem esses melhoramentos ou a Prefeitura deverá fazê-lo,
debitando-lhes as despesas. Em aparte, o vereador Bailoni Júnior disse que “a lei já existe, mas
somente no papel. A Prefeitura não tem dinheiro para efetuar essas obras e não tem como obrigar os
proprietários”. Com essa opinião não concorda Barsanulfo de Barros, que insistiu na necessidade de
a Prefeitura construir os muros e passeios e debitar as despesas para os proprietários. Chegou a
afirmar que iria conversar com o Prefeito Municipal, e pedir-lhe que executasse aquela medida.
14
Assim, como expectantes desse respectivo diálogo entre os representantes do povo
na Câmara Municipal, percebemos como esse debate revela-se tão antigo quanto
ineficaz. Pois, mesmo sem recursos, a prefeitura continua a limpar terrenos que
permanecem “à espera de maior valorização”, em determinados lugares da cidade, ainda
que a norma que obriga os proprietários desses lotes a construir muros e passeios já
esteja instituída no Código Municipal de Postura de 1967. Em seu capítulo III, intitulado
“Da Higiene das Habitações”, essa legislação determina:
Art. 34 – Os proprietários ou inquilinos são obrigados a conservar em perfeito estado de asseio os
seus quintais, pátios, prédios e terrenos.
Parágrafo Único – Não é permitida a existência de terrenos cobertos de mato, pantanosos ou
servindo de depósito de lixo dentro dos limites da cidade, povoado ou vila.
15
14
Lei sobre terrenos baldios nó existe no papel. Correio de Uberlândia, 21 de junho de 1980, s/n. p. 01.
15
Lei 1460 de 27 de fevereiro de 1967, que institui o Código de Postura Municipal, p. 164. Arquivo Público Municipal.
Outros aspectos desta legislação são discutidos ao longo deste capítulo.
40
Esse Código constituía-se como a referência máxima de normatização da vida na
cidade, embora, aparentemente, no que se refere a algumas questões, fosse pouco
eficaz. Por isso mesmo, ele sofreu várias alterações até 1988, quando foi, então,
reformulado. Mas se, de um lado, a ineficácia da lei de conservação e asseio dos terrenos
acabou por favorecer os hábeis especuladores existentes na cidade, de outro, tal
inoperância teve como aliada a ausência de fiscalização e a falta de rigor na exigência de
seu cumprimento. A instituição disso como uma prática, evidentemente, não fora ao
acaso, pois a especulação imobiliária, como uma característica da cidade, coadunava-se
à lógica de crescimento ambicionada pelas classes dirigentes.
Nesse sentido, interessa apontar outras questões indicativas de como se
manifestava uma tentativa de racionalização que pressupunha uma determinada
organização do espaço urbano. A premissa de que uma cidade urbanizada e moderna era
uma cidade limpa e sem mato era partilhada também pela administração pública, e
continuava a se concretizar no intento de limpar os terrenos baldios localizados nos
“diversos bairros”.
Grupos de homens e máquinas continuam desenvolvendo atividades normais nos serviços de
limpeza pública, nos diversos bairros de nossa cidade. Atender a todos de uma só vez é
humanamente impossível, mas, após um estudo do departamento, naturalmente com prioridades
para alguns setores, o trabalho foi atacado e dentro em breve deixará Uberlândia com outra imagem
visual em matéria de limpeza pública. Além das ruas e avenidas que estão sendo “arejadas” pelo
pessoal da limpeza, os terrenos baldios estão merecendo atenção especial das máquinas pesadas,
pois estes também estão sendo limpos para que haja maior tranqüilidade da população.
16
O texto demonstra, novamente, a preocupação do poder público com a imagem da
cidade, que, para parecer urbanizada, deveria estar limpa. Interessante notar aqui como a
tarefa do “pessoal da limpeza” consistia em cuidar para que o mato não tomasse conta de
certos espaços, e como isso é sugestivo daquilo que se entendia como sujeira. O poder
público parecia empenhado na tarefa de dar à cidade “uma outra imagem em matéria de
limpeza pública”, garantir o asseio era assegurar também “a tranqüilidade da população”.
No entanto, isso iria contribuir para aumentar os serviços dessa natureza e evidenciar a
carência de recursos para atender a demanda. Nesse momento, a administração não
tinha uma estrutura para isso, como exemplifica o texto abaixo:
16
Limpeza pública chega também aos bairros. Correio de Uberlândia, 08 de julho de 1982, n. 13.423, p. 12.
41
Quanto aos lotes vagos, Zaire Rezende comunicou que a prefeitura não dispõe de equipamentos
suficientes para limpar todos os terrenos da cidade, por isso o trabalho vem sendo realizado num
espaço maior de tempo. Entretanto, lembrou que os proprietários de terrenos têm obrigação de
mantê-los limpos e sem mato, para que não se instalem ali marginais, ratos e animais peçonhentos.
17
Em sua declaração, o prefeito expressa a dificuldade que sua administração estava
tendo para manter limpa a cidade. O abandono de certas áreas em que crescia o mato se
tornava característico. Ao mesmo tempo, uma imagem de cidade do progresso não
condizia com terrenos baldios repletos de mato, uma vez que, a julgar por esta lógica,
propiciavam a presença de “marginais, ratos e animais peçonhentos”.
Percebe-se o sentido pejorativo que se construía em relação ao mato, sua
associação àquilo que se considerava como sujo, feio e passível de trazer algum perigo.
Nessa visão, o matagal era concebido como ausência de civilidade e sinônimo de
elementos que se assimilavam à pobreza, à sujeira e a tudo aquilo que era considerado
fora da lei ou de uma determinada ordem estabelecida. Por isso, a constante elaboração
de um discurso, tanto de certas autoridades públicas como de setores da imprensa, no
qual se entrelaçam limpeza da cidade e segurança da população, reforçando imagens
que começavam a se incorporar à paisagem urbana.
Tecer críticas à existência dos terrenos baldios invadidos pelo mato era uma
postura dos jornais que parecia anteceder os anos de 1980. Mas, lançando um olhar
retrospectivo para esse período específico, notamos como essas críticas se
apresentavam numerosas. O jornal Correio de Uberlândia, ao fazer uma conjugação entre
a presença do mato como sinônimo de perigo, de sujeira e de marginalidade, defendia a
idéia de que as áreas abandonadas, em que crescia o mato e acumulava a sujeira,
representavam um estorvo e comprometiam de forma negativa a imagem de uma cidade
que se projetava como limpa e urbanizada. Denominada pelo jornal como “a metrópole do
Triângulo Mineiro”, a cidade vivia um intenso processo de urbanização, tanto material
como imaginário, tendo em vista que se revelava impregnado da idéia de progresso e de
modernização, tão proclamada pelas classes privilegiadas e os administradores locais.
Sim, a cidade estava se transformando. Ao mesmo tempo, a existência de locais
em que predominava o mato e sua relação com a sujeira e o perigo, também começava a
17
Prefeito lembra que proprietários devem manter terrenos limpos. Correio de Uberlândia, 01 de junho de 1983,
n. 13.645, p. 12.
42
ser feita pela população, que passava a ver no matagal um grande transtorno, conforme
pode ser observado neste requerimento da vereadora Olga Helena
(...) ao Sr. Prefeito Municipal para que solicite à Secretaria Municipal de Serviços Urbanos que seja
efetuada a limpeza de um matagal existente nas ruas Aniceto Pereira e Casimiro de Abreu, Bairro
Tubalina. Justifica-se porque além de servir de esconderijo e valhacouto para malandros e malfeitores
de todas as espécies, tais terrenos baldios transformam-se em depósitos de lixo com evidente perigo
para a saúde pública pelo ajuntamento de moscas e mosquitos.
18
Nesse documento da Câmara Municipal, cujo objetivo era solicitar “a limpeza de um
matagal” em algumas ruas do bairro Tubalina, aparece uma referência aos terrenos
baldios como lugares que viravam depósito de lixo, focos de inseto e, por isso mesmo,
eram considerados uma ameaça à saúde da vizinhança local. Observamos, nesse
registro, que, para alguns moradores do bairro Tubalina, o matagal representava diversas
ameaças. A diferença é que, tanto para eles como para a população mais pobre em geral,
não se tratava de defender a imagem de uma cidade do progresso, mas de buscar
assegurar tranqüilidade e higiene, visto que se compreendia que o mato contribuía para a
falta de segurança, além da iminente realidade de se constituir em depósito de lixo.
Vários ofícios dessa natureza foram encaminhados ao poder público, naquele
contexto, solicitando a limpeza de terrenos baldios em localidades mais distantes do
centro, como o bairro Tubalina, ou então, mais próximas, como os bairros Brasil e Martins,
em que sempre havia “um local de entulhos, montes de lixo e depósito de material
orgânico gerando nuvens de insetos, mosquitos, colocando em risco a saúde dos vizinhos
pela contaminação”.
19
O documento, referindo-se ao bairro Brasil, relatava, ainda, que
“todas as famílias circunvizinhas se servem para jogar o lixo”.
20
São registros que apontam uma “grande quantidade de lotes (...) onde se acumulam
lixo, cresce o mato, enfim, prejudicando o habitante”. Esses documentos retratam
algumas noções de limpeza e higiene que se expressam nas relações vividas na cidade.
Importante notar como mediante eles sobressaem certos aspectos dos costumes da
população: primeiro, o lixo sendo destinado em qualquer canto, próximo às residências e
18
Documentos da Câmara Municipal de, Livro de Requerimentos, 28 de fevereiro de 1983. Arquivo Público.
19
Idem, Livro de Requerimentos, 01 de dezembro de 1983. Arquivo Público.
20
Idem, Livro de Requerimentos, 28 de fevereiro de 1983. Arquivo Público.
43
do convívio com moradores, segundo, o fato de que, apesar disso, o maior problema
ainda não era o lixo propriamente dito, mas o matagal e tudo o que a ele se associava.
21
Nas Atas do Poder Legislativo, encontramos sinais de que para a população mais
pobre da cidade o mato e a sujeira nos terrenos baldios não era algo que ferisse a
estética, mas uma visível demonstração de descaso do poder público. Tratava-se, então,
de um outro olhar e de uma outra concepção de cidade, expressando os diferentes modos
de vida e as diferenças de classe que instituíam o viver urbano. Embora as solicitações
fossem indícios de que tanto os moradores dos bairros mais distantes como aqueles que
residiam em locais mais próximos ao centro enfrentavam a questão dos terrenos baldios e
a combinação entre mato e acúmulo de lixo. Essas relações também revelam como esta
cidade, que buscava afirmar uma imagem de limpa e de urbanizada, enfrentava limites e
contradições, que se manifestavam em certos hábitos da população.
Esse é um aspecto da vida na cidade que nos auxilia a lidar com a noção de
periferia e centro e a pensar o significado de falar em diversos bairros periféricos num
determinado contexto histórico. Além da distância da região central, é preciso considerar
a existência e as condições dos equipamentos públicos nestas localidades. Pelas
características do espaço urbano, nos anos iniciais da década de 1980, até mesmo
alguns bairros próximos ao centro careciam de certa infra-estrutura. Em razão do nível
sócio-econômico de sua população, eram considerados periféricos do ponto de vista
social. O Bom Jesus é um desses, situado entre o Aparecida e o Martins, era conhecido
como bairro das Tabocas, e famoso por enchentes e catástrofes. Com suas casas
simples, construções coletivas irregulares, bares movimentados e crianças brincando nas
ruas, ainda é um bairro popular.
22
Sendo assim, o que é mais curioso em relação à carência de uma estrutura capaz
de atender à crescente demanda dos serviços de limpeza, é o modo como isso se tornava
revelador de alguns aspectos da cultura da população e de algumas relações vividas na
cidade. Uma leitura atenta nos jornais e documentos da Câmara Municipal consegue
captar como se configurava esta questão já antiga, porém, familiar e atual, dos terrenos
21
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Requerimentos, 02 de fevereiro de 1983. Arquivo Público.
22
Com essa perspectiva, lemos o mapa de 1979-1980 e procuramos vislumbrar como a cidade se constituía nesse
contexto histórico. No que diz respeito a essa forma de organização dos espaços na cidade, que define o lugar dos
grupos sociais conforme seu poder econômico, Rolnik observa que “a lógica de destinar as lonjuras para os pobres,
assim como a de proteger os bairros exclusivos dos ricos, atravessou, incólume, nosso século”, op. cit. p. 47.
44
baldios em que crescia o mato e acumulavam animais peçonhentos, dos moradores que
ali despejavam lixo e da prefeitura que se via na contingência de providenciar para que
fossem limpos.
Não é difícil notar como se sobressaem, durante todo o período delimitado neste
estudo, tanto na imprensa quanto nos registros do Poder Legislativo, referências ao
problema dos terrenos baldios e ao acúmulo de mato e sujeira. Cremos que tais
informações fornecem-nos elementos para dimensionar em que medida isso constituía
um estorvo à vida na cidade. Como, por exemplo, nesta situação em que
(...) uma limpeza geral de imóvel situado à rua 17, em frente o número 508, no Bairro Santa Mônica é
pedido feito pela vereadora Olga Helena da Costa, através de indicação a ser enviada ao prefeito
Zaire Rezende. O terreno está totalmente coberto pelo matagal que já ultrapassou as divisas com as
confrontantes, chegando até o passeio. Além do matagal, que tem propiciado o aparecimento de
cobras, o lixo acumulado no local torna-se foco de insetos e mau cheiro, incomodando toda a
população das imediações. A limpeza do imóvel é uma necessidade urgente.
23
O texto aponta-nos problemas que eram comuns para os habitantes de algumas
áreas da cidade: terrenos baldios, mato, acúmulo de lixo e transtornos para os moradores
mais próximos. Na verdade, essa é uma questão contemporânea. Basta andar um pouco
pela cidade, percorrendo os bairros, sejam populares ou de classe média e alta, para
perceber como qualquer espaço inutilizado é logo transformado em depósito de lixo.
A urgente “limpeza do imóvel”, mencionada no jornal, sinaliza que situações como
essa incomodavam com freqüência os moradores de tais localidades. O Santa Mônica,
um dos maiores bairros de Uberlândia, ao abrigar a Universidade Federal, a Câmara
Legislativa e o Centro Administrativo, é hoje um local privilegiado. Mas, em 1986, pelo que
descreve O Triângulo, ainda compunha a periferia da cidade, em que subsistia grande
precariedade nos serviços oferecidos aos moradores.
Diante desse quadro, podemos deduzir que, nos primeiros anos da década de 1980,
a população já reclamava da limpeza pública na cidade. Em um primeiro momento, as
reclamações eram principalmente para que se capinassem os terrenos que permaneciam
sem edificações à espera de melhores ofertas no mercado imobiliário. Nesse universo,
dois importantes pontos merecem ser ressaltados: primeiro, a concepção de limpeza
23
Olga Helena pede limpeza em imóvel. O Triângulo, 03 de abril de 1986, n. 5.840, p. 06.
45
pública, naquelas circunstâncias históricas, que, afinal, restringia-se a tentar eliminar o
mato e, por extensão, combater insetos considerados ameaçadores, como cobras e
escorpiões.
24
O segundo ponto refere-se ao fato de que os diversos problemas relativos
aos terrenos baldios remetem-nos a uma outra dimensão dessas relações, que se
expressa na intervenção do poder público nos terrenos particulares. Um elemento de
contradição a interferir diretamente na estrutura de organização dos espaços e na lógica,
conveniente e permissiva, intrínseca à posse da propriedade privada.
As demandas da população ao poder público possibilitaram-nos identificar a
natureza daquilo que incomodava e trazia problemas à vida urbana. As condições de
limpeza pública geravam muitas insatisfações porque os moradores esperavam que a
prefeitura mantivesse esses terrenos limpos, porém, com a expansão de tais áreas e com
a estrutura dos serviços de limpeza existente, era impossível administrar a totalidade do
problema.
Além disso, nesse período, a Secretaria de Serviços Urbanos responsabilizava-se
por grande parte das atividades que, atualmente, são executadas pela Secretaria de
Obras; como manutenção e reparo das vias públicas e outras atribuições que concernem
à Secretaria de Trânsito e Transportes. Com isso, temos, então, uma noção da
abrangência da atuação desse setor da administração pública, responsável pela limpeza
da cidade. Mesmo assim, sem perder de vista a especificidade do contexto histórico,
podemos dizer que a prestação dos serviços de limpeza pública, nos anos de 1980, não
continha ainda toda a complexidade dos dias de hoje.
O texto abaixo é um depoimento do Secretário de Serviços Urbanos, à época, o Sr.
Ilvio Andrade. Com humor e ironia, ele fala sobre a natureza das reclamações da
população:
Olha, reclamava e eu te digo que sempre reclamará. ... Você quando ocupa uma função pública, você
vai ver que as pessoas reclamam. Reclamam mesmo. Alguns, com razão, aliás, a maioria com razão.
Outros, por neurastenia, por solidão, por ódio à vida. As pessoas reclamam, nós humanos somos
desse jeito. Tinha uma demanda, tinha uma demanda muito grande, por exemplo, eu me lembro bem,
pra capinar lotes. Aquela cultura de Uberlândia, a cidade se expandiu, incontrolavelmente, gerou
aqueles grandes espaços vazios. Aí tem mato, tem braqueara e o povo tem horror daquele mato,
24
Nos primeiros anos da década de 1980, era comum a presença de escorpiões, dentre outros insetos, em terrenos
baldios e fundos de quintais. Em 1984, a Prefeitura, por meio do Setor de Vigilância Sanitária, deu início a um
programa de controle de zoonoses, a fim de combater e prevenir tanto o problema da raiva animal como o dos
escorpiões.
46
porque diz que vem aranha, inseto, escorpião, ladrão. Aí chega na época da chuva, estação chuvosa,
quando o capim começa a crescer, é uma demanda enorme de gente reclamando. Eu lembro que
tinha até tarado no terreno baldio de lá. “Tem um tarado aqui, porque vocês não limpam isso”!... Isso
era muito forte. E a questão dos escorpiões também, na época era bem pior do que hoje, que em
Uberlândia é bem mais controlado o gerenciamento desse assunto, né?
25
O Sr. Ilvio Andrade descreveu alguns aspectos do comportamento da população no
que se refere às condições de limpeza da cidade. Ao mesmo tempo, seu depoimento
deixou entrever como a especulação imobiliária auxiliava para aumentar as demandas de
capina e limpeza dos terrenos vazios. O poder público via-se pressionado pela população
a melhorar os serviços de limpeza. Considerando os temores que havia, representados
pelo mato: “aranha, inseto, escorpião, ladrão”, é possível perceber como certos aspectos
da cultura e da política podem ser vistos articulados a uma concepção de limpo e de sujo,
traduzida no comportamento da população.
Embora o lixo ainda não configurasse um problema social, como nos dias de hoje,
em razão de uma série de fatores que influenciaram para torná-lo uma problemática na
cidade, podemos observar como questões relacionadas com a limpeza pública já se
articulavam a alguns problemas sociais, como o desemprego. As “frentes de trabalho”
para limpar a cidade pretendiam também reduzir a falta de emprego, sobretudo, para uma
parcela dos trabalhadores sem muita escolaridade ou maior qualificação.
26
Um pequeno
fragmento de texto de um relatório de prefeito, do ano de1983, exemplifica claramente
essa questão:
A Secretaria (de Serviços Urbanos) está ultimando um mutirão para fazer a capina e a limpeza da
cidade. Essa medida visa também criar uma frente de trabalho para amenizar em parte o
desemprego.
27
É preciso lembrar ainda que, no início da década de 1980, certas características de
Uberlândia imprimiam ao seu espaço físico marcas diferenciadas daquilo que
25
Ilvio Antônio Andrade, engenheiro civil, Secretário de Serviços Urbanos no período de 1983-1987. Entrevista
concedida à autora em 27 de maio de 2004.
26
Sobre a questão do desemprego na cidade, há um requerimento na Câmara Municipal, feito pelo vereador José
Antônio de Souza, solicitando a formação de uma Frente de Trabalho. Naquela mesma ocasião, “Nilza Alves, Geraldo
Rezende, Olga Helena fizeram suas observações e chegaram à conclusão de que é imenso o número de desempregados
e que qualquer medida adotada ainda seria um paliativo mas já seria um passo à solução”. Documentos da Câmara
Municipal de Uberlândia, Livro de Requerimentos, 21 de fevereiro de 1983. Arquivo Público Municipal.
27
Relatório da Administração Zaire Rezende, (aos 38 dias de sua gestão), 1983-1988. Arquivo Público Municipal.
47
consideramos apropriado ao viver urbano. Em diferentes formas de conviver com os
restos, apreendemos certos aspectos da relações vividas e algumas noções de lixo que
se expressam por meio delas. É o que podemos entrever em um texto publicado no
Correio de Uberlândia.
O vereador Bailoni Júnior, apresentou na sessão do dia 15 p.p., um requerimento à mesa, solicitando
providências, no sentido de ser enviado ofício ao Prefeito Municipal, para proibição da existência de
um depósito de lixo a granel na área do Mercado, fazendo com que ele venha a ser ensacado pelos
próprios proprietários das bancas que funcionam naquele município. Justificando o seu pedido,
Bailoni mostra que o depósito está na confluência da Rua Olegário Maciel com a Av. Getúlio Vargas,
onde o local é dominado por forte corrente de vento, que, por sua vez, espalha o lixo, sujando as ruas
e as casas que por ali existem. Como se trata de pedido justo, porque como está, o lixo vem sendo
colocado indisciplinadamente, é de se acreditar que o chefe do Executivo baixe um ato administrativo,
proibindo o depósito.
28
Essa notícia permite-nos adentrar ao cotidiano da cidade: traduz o fluxo de pessoas
circulando por alguns espaços, como o mercado municipal em que o comércio,
principalmente, de gêneros alimentícios, era intenso, lugar em que a população se
abastecia de suas necessidades diárias de alimentação. À época, o mercado centralizava
o comércio atacadista de hortifrutigranjeiros.
Era naquele espaço que se realizava, também, o comércio varejista de “produtos
alimentícios da pequena indústria agropecuária, avícola ou extrativa, além de que, nas
lojas, eram vendidos artigos de armarinho de baixo preço, fazendas grossas, peças de
vestuário, instrumentos de lavoura e utensílios caseiros”. Como ainda não existiam as
feiras livres, nos bairros, era no Mercado Municipal que a população adquiria gêneros
assim, o que revela sua importância como um ponto estratégico para o comércio local.
De fato, o texto mostra-nos interessantes elementos sobre a organização e o uso
dos espaços. Ao se referir a um depósito de lixo, localizado na “confluência da Rua
Olegário Maciel com a Av. Getúlio Vargas”, sinaliza algumas transformações que
principiavam a ocorrer. Elas tornam-se perceptíveis no fato de que começava a se
estabelecer uma preocupação não apenas com o lixo, mas também com os lugares onde
ele se acumulava, os depósitos.
28
Mudança de depósito de lixo a granel. Correio de Uberlândia, 18 de outubro de 1980, n. 12.998, p. 08.
48
Segundo o jornal, o depósito, outrora existente, ajudava a espalhar o lixo e sujar as
imediações do lugar. A natureza dessa descrição possibilita-nos inferir acerca de uma
preocupação com a limpeza e a ordem do local. Observamos, ainda, uma determinada
dimensão da produção dos restos na cidade, pois, o que era denominado como lixo eram
na verdade resquícios das atividades no mercado. O intenso movimento de gente indo e
vindo, que comprava e, muitas vezes, alimentava-se no espaço do Mercado Municipal,
fazia com que se acumulassem ali os resíduos dessas atividades. O entendimento de que
isso comprometia a aparência do lugar entremostra-se na intenção de definir normas para
disciplinar as pessoas e o uso que faziam dos restos.
Percebemos como as relações com as sobras evidenciam certos aspectos da vida
na cidade, que começavam a ser normatizados. Os restos produzidos no Mercado
Municipal, espalhados pelas ruas ao redor, resultavam da comercialização de alimentos
no local, pois, “a parte da frente era ocupada por vendedores ambulantes, que se valiam
do grande movimento de pessoas no local, para comercializarem suas mercadorias:
canivetes, roupas feitas, artigos de armarinhos e bijuterias, que eram expostas no próprio
chão”.
29
Incomodado com tais práticas, consideradas como fator de sujeira e desordem, um
vereador solicitou ao prefeito que estabelecesse uma norma para que os proprietários das
bancas ensacassem esses restos. Nessa situação, podemos ver novamente o lixo
presente no discurso de algumas autoridades públicas, ao mesmo tempo em que se gesta
uma tentativa, com a proposta de proibição do depósito, de disciplinar a maneira de a
população descartar os restos. Atitudes que permitem inferir, também, um entendimento
de que o lixo atravancava a livre circulação das pessoas. Essa é uma concepção que
expressa um determinado ideal de cidade, na qual devesse predominar a ordem, a
limpeza e o trânsito desimpedido de mercadorias e compradores.
Nota-se que, ao publicar esse texto, o jornal Correio de Uberlândia deixa entrever o
modo como partilhava com as autoridades públicas a preocupação com a limpeza, a
organização e o controle de alguns espaços, expressando certa visão de cidade em que
29
Interessantes informações sobre a história do mercado constam na documentação anexa ao projeto de lei da vereadora
Liza Prado, n. 375/02, 04 janeiro de 2002, que propunha o tombamento do Mercado Municipal. Tendo sido aprovado,
esse projeto resultou na Lei 8.130, de 29 de outubro de 2002. Documentos da Câmara Municipal, Secretaria de
Assessoria Legislativa.
49
fosse possível erradicar ou coibir práticas avaliadas como indisciplinadas e
inconvenientes.
Além disso, tal situação propicia-nos vislumbrar como o poder público investia no
controle dos usos do espaço público na cidade. Documentos da Câmara Municipal,
relacionados com as atividades desse mesmo vereador, são mais um exemplo disso. Um
projeto de lei, elaborado no ano de 1977, que
(...) “disciplina o uso de logradouros públicos para a venda de produtos hortifrutigranjeiros e dá outras
providências”. Em seu Artigo 5º- “O poder executivo poderá requisitar a força policial para exigir o
cumprimento dos dispositivos contidos neste artigo.
30
Há também um requerimento, enviado ao Secretário de Serviços Urbanos, em 1981, no
qual
o vereador Adriano Bailoni Júnior, abaixo-assinado, requer de V.Ex.a., seja remetido ofício ao ilustre
Secretário de Serviços Urbanos, Dr. Paulo Euclides Ochiucci encarecendo do mesmo, sejam
determinadas as seguintes providências: (...) Limpeza pública na parte baixa do Bairro Martins, onde
há locais com capim acentuado e depósitos de lixo formados ao longo de determinadas vias
públicas.
31
O primeiro documento tinha em vista estabelecer normas para a venda de produtos
alimentícios no espaço público, ao passo que o segundo traduz a preocupação e o
envolvimento desse representante do Poder Legislativo com questões relativas à limpeza
pública na cidade. Como sistematizavam regras que visavam cercear determinados
costumes dos moradores é o tema que nos interessa aqui. São registros da Câmara
Municipal, que, produzidos num intervalo de quase quatro anos, por um mesmo vereador,
mostram uma insistência em torno da problemática do uso do espaço público e da noção
de limpeza da cidade, sinalizando algumas formas de intervenção do poder local nas
atividades de trabalhadores e moradores que se utilizavam desse espaço.
Refletindo ainda sobre o modo como foi configurando-se o espaço urbano, interessa
destacar que o Mercado Municipal teve grande importância para a cidade até 1977,
quando criou-se a CEASA – Centrais de Abastecimento de Minas Gerais. Construído em
meados da década de 1940, o Mercado permanece na Rua Olegário Maciel, na esquina
30
Projeto de lei do vereador Adriano Bailoni, processo n. 4.013, 29 de Setembro de 1977.
31
Documentos da Câmara Municipal de Uberlândia, Livro de Requerimentos, 27 de abril de 1981. Arquivo Público.
50
com a Avenida Getúlio Vargas. São vias que, asfaltadas naquela época, hoje fazem parte
da região central da cidade.
Nos dias de hoje, “o Mercado Municipal conta com quarenta e seis lojas comerciais e
nove depósitos para armazenamento de produtos”, embora não tenha mais a mesma
importância para a população no que tange à comercialização de alimentos, senão para
os moradores das proximidades. Trata-se agora de um espaço com caráter artesanal e
um atrativo turístico da cidade. A Getúlio Vargas, uma das principais avenidas, traz, em
quase toda a sua extensão, o predomínio de clínicas médicas, hospitais, consultórios e
laboratórios, além de escolas de língua estrangeira, bares, restaurantes e lanchonetes.
Assim, as relações em torno do lixo e as mudanças que se vislumbram por meio
delas podem ser observadas em outras maneiras de lidar com os restos na cidade. A
cena narrada a seguir remete-nos a outros modos de apropriação e uso das sobras. Atas
Câmara Municipal, do ano de 1983, registram as observações do Sr. Elias Eurípedes que
(...) contou de suas visitas pelos bairros, (nas quais se) deparou com um caminhão de lixo na
Tubalina, seguiu o veículo por 23 quilômetros até a Fazenda do Sr. Francisco onde um senhor, com
três empregados, fazem uma triagem e vendem para firmas em São Paulo as várias modalidades de
lixo. Com isto ele paga o aluguel da fazenda, os empregados e engorda lá no local do lixo, soltos uma
manga de uns 30 porcos. Há urubus e gaviões em quantidade. O resto que fica é queimado no local
planta-se milho e abóbora que nascem com todo vigor.
32
Nesse narrativa, o vereador transmite curiosidade e admiração diante de certas
atividades que pareciam passar ao largo do conhecimento de seus pares na Câmara
Municipal. O que revela a existência de certas iniciativas privadas no tocante ao lixo, que
nem sempre, se davam por vias políticas. Pelo contrário, na maioria das vezes, feriam
normas que o Poder Público considerava mais adequadas para reger a vida na cidade.
Essas iniciativas envolviam determinadas práticas baseadas no aproveitamento dos
restos, e não deixava de ser impressionante a extensão delas. Em seu relato, o vereador
mencionou ter visto uma fazenda, situada a “23 quilômetros” do Bairro Tubalina, na qual
se realizava uma verdadeira operação de “triagem” do lixo da cidade. Não conseguimos
precisar a origem de atividades dessa natureza ao longo da história de Uberlândia. Mas
todo o processo descrito no texto, no entanto, sinaliza que elas parecem ser antigas. A
32
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Atas do Legislativo, 26 de maio de 1983, p. 05.
51
separação do lixo orgânico e sua utilização para alimentar porcos e cultivar hortaliças
possibilita resgatar algumas práticas próprias da cidade, a organização em torno de
práticas rurais. O que se evidencia pela existência de muitas propriedades rurais, dentro
do perímetro urbano, em que se cultivavam hortifrutigranjeiros e se criavam animais.
Mesmo nos dias de hoje, no Setor de Chácaras Tubalina, próximo ao bairro Jaraguá,
ainda há diversas áreas em que podemos ver plantações de milho, mandioca e árvores
frutíferas. A menos de cinco quilômetros do centro da cidade, essa região valorizou-se
muito no mercado imobiliário. Os terrenos à venda, no local, são pastos provisórios para
uns poucos animais: vacas e cavalos. Nessa paisagem, casas simples e humildes, com
suas cercas de arame, coexistem com algumas residências sofisticadas, cujos habitantes
parecem querer se esquivar da convivência com a vizinhança. Um setor residencial com
essas características entremostra interessantes aspectos da constituição do espaço
urbano em Uberlândia.
Na história dos restos na cidade, há elementos que nos possibilitam nuançar a
presença do rural. Por meio de certas práticas dos moradores encontramos indícios de
uma cultura rural, na qual se observa o aproveitamento das sobras em diversas
atividades, a exemplo do uso do lixo orgânico como adubo. A compostagem, forma
utilizada ainda hoje, mostra como as relações com os restos apresentam não somente
elementos de mudanças, mas também de permanências. De fato, as relações em torno
do lixo na cidade exprimem claramente “como um modo de vida se infiltra no outro”.
33
Quando o texto refere-se ao hábito de queimar os restos para, em seguida, plantar
no local “milho e abóbora que nascem com todo vigor”, expressa a idéia de que os restos
serviam como um rico fertilizante para as plantas. O uso do lixo orgânico como adubo
deixa entrever uma noção das sobras como algo que se decompõe e que é absorvido de
forma natural. O fato de que o lixo da cidade retornava para as áreas rurais tem profundas
raízes num processo histórico em que dar um destino a ele ainda não significava sua
desnaturalização.
Outros traços dessa paisagem da cidade, de mais de duas décadas, como os
“urubus e gaviões em quantidade”, atraídos pelos restos, delineavam um tipo de
tratamento no qual o lixo permanecia exposto enquanto se decompunha naturalmente. O
que significa dizer que ainda se dava um destino ao lixo da cidade por meio de práticas
52
intrínsecas a um modo de vida eminentemente rural. Isso traduz formas de conviver com
os restos e, também, expressa relações em que se percebe maior tolerância, em razão
das várias maneiras de se aproveitá-los, revelando como a vida na cidade se imbricava
de elementos rurais.
Um olhar mais atento à cidade daquele período notará outros costumes dos
moradores que também evidenciavam as características rurais de seu espaço urbano.
Entre os anos de 1984 e 1986, o jornal Participação anunciava:
Prefeitura incentiva criação de hortas em toda cidade.
34
Prefeitura empresta terra para cultivo.
Para melhorar a renda de famílias carentes, o município está emprestando terrenos ociosos até dois
hectares nos bairros Esperança, Tocantins, e Jockey para o cultivo de hortas e cereais.
35
Nesses anúncios, o boletim de comunicação da prefeitura divulga algumas políticas
públicas implementadas em áreas periféricas. Notícias que servem para realçar como o
cultivo de hortaliças constituiu uma prática habitual nesse momento da história da cidade,
pois ajudava a complementar a renda das famílias de trabalhadores. Observamos, ainda,
que o costume da população de plantar hortas nos quintais aparece aqui sendo
estimulado pelo poder público. Uma outra evidência disso é que, em 1983, o vereador
Elias Eurípedes Teixeira solicitou à Secretaria de Ação Social que promovesse “incentivos
para a campanha de hortas familiares”, sob a seguinte justificativa:
A Secretaria de Agricultura de Minas, através das Secretarias de Educação e Assistência Social, fez
um trabalho visando criar no povo a consciência de uma economia doméstica através de hortas
familiares. Esse trabalho merece continuidade porque em Uberlândia foi muito reduzido o número de
pessoas que responderam positivamente ao apelo, e neste
momento de crise, é muito importante
oferecer condições de melhorar a alimentação das classes de baixa renda.
36
Assim, as hortas nos fundos dos quintais, por incentivo da prefeitura ou por iniciativa
própria, eram importantes para complementar os rendimentos e “a alimentação das
33
RONIK, Raquel. op. cit. p. 33.
34
Participação, ano I, n. 0, maio de 1984. p. 04.
35
Participação, ano III, n. 10, abril de 1986. p. 05.
36
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Requerimentos, 21 de março de 1983. Arquivo Público Municipal.
53
classes de baixa renda”, que compunham a população de bairros novos, como o
Esperança e o Tocantins. Recentemente loteados, esses bairros traziam em comum certa
distância da região central e a falta de intra-estrutura básica.
37
O Esperança, por exemplo, no início, foi povoado principalmente por pessoas que
migraram das várias favelas existentes em diversas localidades, naquele período, uma
característica que tem profundas implicações no fato de que, mesmo nos dias de hoje,
esse bairro parece ter sido esquecido pela cidade, tal sua condição de exclusão e
“isolamento”. Nas colunas de jornais, inclusive, não há muitas notícias sobre o bairro e,
nas raras ocasiões em que isso ocorre, contribuem para reforçar tal condição.
38
Esse bairro situa-se na zona norte da cidade, próximo a outros, como o Liberdade, o
Santa Rosa e, o mais recente deles, o Jardim América. Hoje, com vinte anos de
existência, o bairro ainda não tem um posto de saúde, uma escola de ensino médio ou um
ônibus que circule por suas ruas, daí os moradores terem que se dirigir ao Liberdade, ou
à Avenida Antônio Tomaz Rezende, que permite o acesso à parte superior do bairro.
“Além da falta de segurança, a comunidade ainda tem que conviver com lixos,
entulhos e outros tipos de sujeiras nas ruas, enquanto a prefeitura não toma as devidas
providências”. A população do bairro Esperança é composta, em sua maioria, de famílias
de trabalhadores empobrecidas, que partilham com os moradores do Liberdade o estigma
de morar num bairro cuja imagem é associada à existência de ladrões, à iminência de
assaltos, ao uso e tráfico de drogas e a muita violência.
39
Já o bairro Tocantins, localizado nas margens da BR-365, teve início em 1987 e,
apesar de também ter sido criado com o intuito de abrigar moradores das favelas, sofreu
muitas modificações nos últimos anos. De modo geral, o número de sua população teve
significativo crescimento e o fato de ser próximo a outros bairros maiores favoreceu no
sentido de melhorar sua infra-estrutura e de ampliar o comércio local.
37
Bairro Esperança – a solução municipal para o sonho da casa própria. Participação, agosto de 1984. p. 07.
38
Segurança preocupa povo no Esperança. Ruas ficam desertas à noite, moradores têm medo de sair de casa. O
Triângulo, 08 de dezembro de 1996, n. 9.540, p. 01.
39
Povo diz que Esperança serve como boca-de-fumo. O Triângulo, 22 de novembro de 1997, p. 05. Caderno Cidade.
Penso que uma investigação histórica sobre a trajetória do Bairro Esperança, que possa problematizar a desoladora
imagem de um lugar cujo nome tornou-se, no senso comum, sinônimo de violência e marginalidade, seria importante.
Possibilitaria discutir como o crime e a violência ajudam a fomentar o preconceito e o racismo, reforçar o autoritarismo
e a segregação, naturalizando a desigualdade e a injustiça social. Como nos lembra Teresa Pires do Rio, são complexos
os processos que emperram a democracia e desafiam sua efetiva consolidação para muito mais que um sistema político.
Ver Cidade de Muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp e 34, 2000.
54
O Tocantins situa-se contíguo ao Planalto e ao Luizote de Freitas, bairros também
periféricos, mas que foram sendo ampliados e cujos habitantes, constantemente,
reivindicavam e conquistavam melhorias para o local. Hoje o Luizote de Freitas é
considerado quase “uma outra cidade”, tamanha a expansão de sua população e de seu
comércio local, concentrado em sua principal avenida de acesso.
Há outros bairros em que se notam a existência e o crescimento dos centros de
comércio e de serviços locais, como o Tubalina, Tibery, Roosevelt e Brasil, dentre outros.
No entanto, no Luizote, isso é muito mais visível e surpreendente.
Porém, quando adentramos ao Luizote, reparamos certas características que ainda
o fazem um bairro popular: casas com muros de placas de concreto, terrenos baldios que
servem de pasto para animais, carroças que indicam a ocupação dos moradores, e
espaços públicos nos quais as pessoas se reúnem para conversar e distrair-se nas horas
de lazer.
Isso nos fez pensar sobre o fato de que a cidade, nos últimos anos, compõe-se de
“várias periferias com características e localizações diferenciadas” em seu espaço.
40
Ainda assim, o modo como alguns bairros evoluíram em termos de infra-estrutura, ao
passo que outros permaneceram bastante precários, é indicativo de certas articulações
que redefinem “a geografia política da cidade”.
41
Portanto, em 1988, as páginas do jornal
O Triângulo assim descreviam o Tocantins:
O local é distante e de difícil acesso, perigoso até, por estar às margens da rodovia BR365 ... A
divisão dos lotes permitindo a construção de dois imóveis, a falta de infra-estrutura, o desalinhamento
das ruas, a falta de iluminação elétrica na maioria das ruas ... são problemas urbanos que a
população do local está enfrentando e para os quais solicita que sejam dirigidas as atenções dos
senhores vereadores, secretários responsáveis pelo setor, DMAE e do próprio prefeito Zaire
Rezende.
42
Trazendo a público a realidade do bairro, o jornal explicitou a falta de infra-estrutura
com o que o local foi entregue a seus moradores. Ao chamar a atenção das autoridades
40
MOREIRA, Helvécio D. Formação e Desenvolvimento dos Bairros Periféricos em Uberlândia. Monografia em
História, UFU: Uberlândia, 1991, p. 17.
41
Quanto ao aspecto político que diz respeito às relações entre moradores da periferia e governo, Rolnik escreve que “o
pacto com a periferia consolidou-se no contexto da redemocratização, no qual melhorias urbanas se transformaram em
votos e lideranças de bairro em cabos eleitorais”. RONIK, Raquel. op. cit., p. 204.
42
Moradores do Tocantins preocupam-se com outros problemas do bairro. O Triângulo, 17 de maio de 1988, n.
7.051, p. 01.
55
públicas para isso, na verdade, O Triângulo tinha por objetivo algo mais além de
denunciar tal situação. Ou então, podemos dizer que a denúncia envolvia, também,
determinados interesses políticos. Era um ano de eleições e, ainda, o último ano da
administração Zaire Rezende, que havia implantado o referido loteamento.
De qualquer forma, por meio de tal notícia, o jornal O Triângulo permitiu apreender
alguns aspectos da vida na cidade, sobretudo, nas localidades mais distantes; espaços
nos quais se efetivavam relações que esboçam certos usos dos restos. Nesses primeiros
anos da década de 1980, a população residente em bairros periféricos, como o
Esperança e o Tocantins, era constituída por famílias de trabalhadores, com pouca ou
nenhuma renda, que, para auxiliar na subsistência diária, lançavam mão de algumas
estratégias, como plantar hortas em seus quintais. O texto abaixo é ilustrativo disso:
Anteriormente com pouco dinheiro você se dirigia à feira e conseguia com 2 mil cruzeiros encher a
geladeira e hoje devido aos preços elevados este mesmo valor dá apenas para comprar o
indispensável”. Essa afirmação é da dona-de-casa Maria das Graças Martins Ramos que
semanalmente vai à feira e gasta aproximadamente mil cruzeiros. Para economizar, Ana Elisa Alves
Leal pretende brevemente formar uma horta no quintal de sua casa, plantando verduras para que “o
dinheiro gasto na feira seja utilizado para outras necessidades presentes da família.”
43
Para a venda ou o consumo familiar, as pessoas cultivavam hortas em seus quintais,
na maioria dos bairros da periferia, como forma de enfrentar certas dificuldades inerentes
à vida da população mais pobre na cidade; desemprego, baixos salários e constantes
quedas do seu poder de compra.
Daí a freqüência com que os moradores de muitos bairros da cidade estabeleciam
relações de vizinhança que envolviam o comércio de alimentos; verduras, ovos, frangos e
porcos. “Somam-se a isso as também significativas relações de troca que poderiam
envolver ‘mudas’, raízes, remédios caseiros, entre tantos”.
44
Habitual, também, era a
compra do leite não pasteurizado, distribuído pelo leiteiro aos moradores em suas
próprias casas. Produtos como doces, quitandas e conservas eram feitos em casa e
comercializados, podendo ser obtidos na vizinhança ou mesmo com vendedores
ambulantes, que circulavam pelas ruas.
43
Sacolas vazias contam a história do povo. Primeira Hora, maio de 1983, n. 469, p. 05. MORAIS, Sérgio Paulo.
Trabalho e Cidade: trajetórias e vivências de carroceiros na cidade de Uberlândia, 1970-2000. op. cit., p. 21.
44
Idem.
56
Essa variedade de atividades empreendidas pelos trabalhadores, para ajudar no
sustento de suas famílias, ainda faz parte do mosaico de experiências que traduz modos
de trabalhar e de improvisar a sobrevivência, que caracterizam a vida urbana. Vivências
que revelam a cidade como “expressão de formas históricas de apropriação de
espaços”.
45
A leitura não apenas dos jornais, mas ainda de outros documentos da época, indica-
nos pistas de diversos elementos intrínsecos a esse modo de vida. Assim, também nos
permite vislumbrar outras formas de proveito dos restos. Utilizadas como adubo para as
plantas ou alimento para os animais, as sobras dos alimentos; cascas de frutas e
legumes, tinham grande serventia. Criar porcos, cavalos, galinhas e outros bichos
constituía um costume bastante disseminado entre os moradores na periferia, revelando a
existência de uma economia doméstica que se ancorava na criação desses animais.
Entretanto, em documentos da Câmara Municipal, essa prática é mencionada por
um vereador como sendo um grande inconveniente para as autoridades públicas:
Marcelino Tavares Mamede chamou a atenção para a criação de porcos dentro da cidade e citou
vários locais onde isto acontece. Disse já ter recorrido ao Sr. Carlito Cordeiro, mas sem efeito. Falou
inclusive do Matadouro Municipal que considera um chiqueirão do meio da cidade. Pediu ao líder do
Sr. Prefeito que tomasse providências. Em aparte, o vereador Eudécio Casasanta Pereira anunciou
um projeto para ver cobro nesta irregularidade.
46
Os hábitos dos moradores de criar “porcos dentro da cidade” era considerado como
verdadeira transgressão à ordem e à higiene. A principal intenção do legislador consistia
em alertar para a manutenção de tais práticas, sobre as quais parecia não se ter controle,
embora, como deixa transparecer o texto, a existência de um Matadouro Municipal no
perímetro urbano denotasse uma contradição que se revelava na própria organização da
cidade. Se a criação de animais vinha tornando-se um incômodo, ele era provocado não
somente por certos moradores: o Matadouro Municipal, no bairro Patrimônio, causa de
tantas reclamações da população, seria finalmente desativado e destruído apenas em
1983.
45
MAGALDI, Cássia Regina de Carvalho. “Entre o pensar e o fazer arquitetura em Salvador na virada dos séculos
XVIII e XIX”. In: Cidades. FENELON, Déa Ribeiro (Org.). Publicação do Programa de Estudos Pós Graduados em
História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nov. 1999. São Paulo: Olho d’Água. p. 28.
46
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Atas do Legislativo, 28 de março de 1980, p. 25.
57
Na verdade, a criação de animais domésticos era um costume dos moradores que
não constituía realmente um problema até aquele momento. Porém, no começo da
década de 1980, o poder público começou a empenhar-se no intuito de inibir tais
atividades. Essas tentativas de controle sobre certas práticas dos habitantes
evidenciavam modos de vida na cidade em tensão com processos de normatização da
vida social. A legislação existente, em âmbito municipal, também serviu para ilustrar o
desejo das autoridades de demonstrar à população como se inscrever na ordem urbana
que se pretendia impor. Nesse sentido, o Código Municipal de Postura de 1967, sobre a
“Higiene Pública”, anunciava:
A fiscalização sanitária abrangerá, especialmente, a higiene e a limpeza das vias públicas, das
habitações particulares e coletivas, da alimentação, incluindo todos os estabelecimentos onde se
fabriquem ou vendam bebidas e produtos alimentícios, e dos estábulos, cocheiras e pocilgas.
47
A legislação esclarecia a respeito da possibilidade de intervenção do poder público
nos diversos espaços da cidade, tanto públicos como privados. Assim como nas
atividades dos moradores quanto à produção de bebidas, de alimentos e também da
criação de animais, como sinalizou a referência aos estábulos e a outros lugares. A
negação do direito de ter autonomia sobre o uso dos espaços na cidade está expressa no
capítulo V, nas “medidas referentes ao animais”, em que o Código, no artigo 97,
estabelece que é “proibida a criação ou engorda de porcos no perímetro urbano da sede
municipal”.
48
Mais do que a intenção de controlar certas atividades dos moradores, tanto a
legislação como as normas e posturas definidas pelos administradores revelam uma luta
entre “padrões de vida tradicionais”, existentes na cidade, e uma outra lógica de
ordenação e de uso de seus espaços.
49
De todo modo, o fato de que a manutenção de animais nos quintais constituísse um
hábito já tão arraigado na cultura da população não mostrava que isso fosse um consenso
mesmo entre os moradores. Na verdade, o conflito entre norma e costume manifestava-se
mediante uma tensão que se materializava não apenas nas relações entre setores mais
empobrecidos da população e poder público, mas também entre antigos e novos
moradores. Estes últimos, ao chegarem aos bairros em crescimento, ao depararem com a
47
Lei 1460 de 27 de fevereiro de 1967, que institui o Código de Postura Municipal, p. 162. Arquivo Público Municipal.
48
Idem.
49
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.vol. II, p. 343-347.
58
prática de se criar animais nos quintais, talvez incomodados com a visão e o odor,
assumiam uma postura arredia, o que contribuiu, ao longo dos anos, para uma expressiva
mudança nos hábitos e na sensibilidade dos moradores. Interessante notar como isso
revela não somente a constituição e o aprendizado de novos valores, mas ainda o modo
conflituoso como passavam a se instituir socialmente.
Isso explica, inclusive, a freqüência das reclamações em torno da criação de porcos
e outros animais. Os reclamantes dirigiam-se às instâncias municipais e, não raras vezes,
até mesmo ao Centro Regional de Saúde, uma instância do Poder Estadual. Talvez
possamos dizer que no curso dessas mudanças e na conjunção de forças existentes na
cidade as reclamações iam assumindo, gradativamente, o caráter de denúncia.
Em âmbito municipal, quando se criaram instituições como a Secretaria de Saúde e
o Setor de Vigilância Sanitária, também se estabeleceram, de forma mais rigorosa,
algumas políticas de saúde e de higiene que pretendiam, fundamentalmente, um maior
controle sobre a criação de animais nos vários bairros da periferia.
Entretanto, o costume de criar animais para consumo doméstico é, sem sombra de
dúvida, potencialmente revelador da cultura dos moradores. Além daqueles que criavam
porcos e galinhas em pequena quantidade, havia pessoas que exerciam essa atividade
como empreendimento, pois mantinham centenas de suínos com o intuito de vendê-los,
sendo corriqueiro o comércio informal da carne desses animais. Mas, seja como
expressão de uma economia doméstica, seja como empresa, a criação de porcos
contrariava as normas de higiene estabelecidas pelo poder público.
Na ocasião em que conversamos com o Sr. Flávio Goulart, Secretário de Saúde
entre 2002-2004, ele assegurou que a criação de animais domésticos começou a ser
encarada como um sério problema por essa Secretaria no contexto dos anos de 1980.
O ex-secretário relatou a existência de alguns casos como o do bairro Dona Zulmira,
à margem esquerda do rio Uberabinha, próximo ao Luizote e ao Tocantins, em que um
proprietário detinha, no local, um grande depósito de ossos de animais que seriam,
posteriormente, transformados em farinha, num vagaroso processo de produção de ração
para animais. Só que enquanto isso não acontecia, esses ossos permaneciam estocados
59
e exalavam um odor desagradável, provocando reclamações na vizinhança e contendas
com a fiscalização.
50
Em 1983, as pessoas criavam animais nos quintais em muitos bairros da periferia,
cuja população era constituída de trabalhadores, como a Vila Saraiva ou o Bairro Dona
Zulmira. Naquele contexto histórico, a própria denominação de vila indicava que o lugar
era habitado pela população mais pobre, pois havia uma convenção que classificava os
lugares como bairro ou vila, conforme a condição social daqueles que os habitavam. No
mapa de 1979-1980, vê-se que determinados lugares ainda são denominados vila,
indiciando essa cartografia social.
O córrego São Pedro, que se localizava onde hoje é a Rondon Pacheco, uma das
avenidas principais da cidade, palco de desmoronamentos, inundações e reformas,
51
em
função das deficiências no seu sistema de escoamento, definia limites geográficos e
sociais, dividindo a cidade em dois lados. De acordo com essa cartografia, a margem
superior do córrego era reduto da classe média e alta, e, ao atravessá-lo, adentrava-se a
uma região povoada por setores mais empobrecidos da população, como a Vila Saraiva
ou o Bairro Patrimônio, conhecido popularmente como um recinto dos negros na cidade.
52
Em meio a essa paisagem urbana repleta de contradições, o costume dos
moradores de criar porcos e outros animais parece ter persistido por toda a década de
1980. Entendendo que atividades dessa natureza contrariavam as normas de higiene, e
na tentativa de cerceá-las, o poder público continuava a investir com muito rigor em seu
controle. Em um documento da Câmara Municipal, o vereador José Antônio de Souza, por
meio de um requerimento, fez uma solicitação ao prefeito para que mobilizasse
seu departamento de fiscais no sentido de coibir e erradicar da zona urbana os chiqueiros e
abatedouros clandestinos de porcos e outros animais. O Código de Posturas prescreve essa medida
50
A questão da criação de animais é apontada pelo Sr. Flávio A. de Andrade Goulart como o “grande problema
ambiental”, com o qual se defrontava a Secretaria de Saúde no início dos anos de 1980. Na ocasião, eu perguntei-lhe se
o lixo hospitalar já se configurava como um problema para essa Secretaria, naquele contexto histórico, e sua resposta
foi que os problemas ambientais naquele momento eram de outra natureza. No que se refere a estes e outros aspectos
sobre a vida na cidade, ele aponta, também, como uma “demanda sanitária”, a existência das “máquinas de arroz”
pertencentes às cerealistas, estabelecimentos que processavam a limpeza deste produto e que provocavam intensa poeira
na região em que estavam instaladas, próximas aos bairros Tibery e Custódio Pereira. Nesse período, (1983-1988) o Sr.
Flávio Goulart também esteve à frente da Secretaria de Saúde. Entrevista concedida à autora em 07 de junho de 2004.
51
Av. Rondon Pacheco: solução ou problema? O Triângulo, 12 de novembro de 1986, n. 5.994, p. 01.
52
Para uma interessante abordagem acerca da cultura e do modo de vida de setores da população negra na cidade em
décadas anteriores, Ver: CARMO, Luiz Carlos do. “Função de preto”: Trabalho e Cultura de trabalhadores negros em
Uberlândia/MG – 1945/1960. Mestrado em História Social, PUC: São Paulo, 2000.
60
e a administração anterior foi muito tolerante neste ponto, alegando não existir um matadouro
municipal. Porém, um erro não justifica o perigo de contaminação de toda a população consumidora.
Como prova do repúdio dessa população, estamos anexando um abaixo-assinado. O objeto principal
da presente
indicação é o chiqueiro da Rua São Salvador ao lado no número 1139 e Antônio
Crescêncio 1029/1047 no Bairro Brasil...
53
Sugerimos que esse documento possibilita visualizar de que modo determinadas
intolerâncias começavam a ganhar força na cidade. Nesse processo, antigos costumes de
seus habitantes pareciam não mais condizer com a nova ordem urbana. Com veemência,
o vereador manifestava-se contrário à criação de porcos no bairro Brasil e propunha-se,
ainda, a representar os interesses de certos vizinhos que também repudiavam esse
costume; expressando o grupo sua insatisfação por meio de um abaixo-assinado. O
documento, emblemático do repúdio que manifestavam aqueles que viam a criação de
animais como clandestina e como ameaça de contaminação da população, traduz a
intensidade com que alguns modos de vida podem tornar-se marginais em meio a
determinados processos de urbanização e produção.
No texto, o alvo da referida mobilização eram os chiqueiros da “Rua São Salvador” e
da Rua Antônio Crescêncio, situadas no bairro Brasil. Como indica o texto, a comunidade
do bairro constituía-se, em parte, por moradores que criavam porcos em seus quintais e
que os comercializavam na vizinhança. Relações que podem servir para dar-nos uma
idéia das transformações ocorridas na cidade nos últimos vinte anos: o bairro Brasil é hoje
um bairro de classe média, com terrenos e imóveis valorizados no mercado imobiliário.
Situado em local estratégico, próximo à região central, o bairro tem muitas áreas
comerciais, grandes escolas, além de ter, definindo seus limites com o bairro Bom Jesus,
a Avenida Monsenhor Eduardo, em que circulam vários ônibus que garantem o acesso da
população aos bairros do setor norte da cidade e ao distrito industrial.
Mediante essas transformações a cidade crescia e se modificava. Nesse processo
de urbanização, tanto para o poder público como para setores da elite e da imprensa
local, determinados costumes dos moradores começavam a ser vistos como inoportunos
à vida urbana, por serem considerados anti-higiênicos e ameaçadores à saúde e à ordem
pública. Uma concepção que espelha a tentativa de impor um movimento único e
53
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Requerimentos, 26 de maio de 1983. Arquivo Público Municipal.
61
homogeneizador de organização da vida na cidade, negando suas diferenças e
contradições.
Desse modo, as autoridades públicas, incomodadas com as práticas inadequadas
de comércio e hábitos de consoante natureza dos moradores, vislumbravam na
fiscalização, na ameaça de multas e, por vezes, até na força da polícia, uma maneira de
combatê-las.
54
Havia, inclusive, como relatou-nos o Sr. Flávio Goulart, conflituosas
situações que se arrastavam por anos, igual a do proprietário de um criatório de animais
que, na ocasião em que recebeu uma ordem de despejo da prefeitura, recorreu ao Poder
Judiciário, a fim de poder manter ativo seu estabelecimento.
Tendo permanecido extremamente arraigadas, até a década de 1980, essas práticas
começaram, nesse período, a ser mais vigiadas e controladas pelo poder público. Com a
criação da Secretaria de Municipal de Saúde e da Seção de Vigilância Sanitária, em 1983,
tentou-se, não sem inúmeras dificuldades, a erradicação de tais práticas. O Código
Municipal de Saúde, ao estabelecer “normas de higiene e segurança, e impedimentos”
para a “criação de animais”, em seu artigo 19, trazia as seguintes determinações:
É proibido criar ou conservar quaisquer animais, que, por sua espécie, quantidade ou má instalação,
possam ser causa de insalubridade, incômodo ou risco ao vizinho e/ou à população.
Parágrafo único – O não cumprimento da notificação prevista no artigo implicará em multa igual a 03
(três) U.F.P.U´s e em caso de reincidência, na apreensão sumária dos animais.
55
Já no artigo 20, o Código definia que “a manutenção de criatórios domésticos de
animais depende da licença e fiscalização da Secretaria Municipal de Saúde”. Essa
legislação exemplifica como o poder público buscou inibir práticas dessa natureza
advindas da população. Talvez, na intenção de legitimar tal desejo, elaborou-se, em 1987,
um decreto que mencionava que determinados locais públicos, vias, prédios, terrenos e
quintais, “localizados no perímetro urbano e nos Distritos, deverão ser mantidos em
perfeitas condições sanitárias, sendo terminantemente proibido o acúmulo de lixo,
vegetação e carcaça de animais”. Interessante notar aqui como a própria definição dos
54
De acordo com o capítulo V – das Infrações e Penalidades, do Código Municipal de Saúde: “As apreensões deverão
ser feitas por Agentes Sanitários da Secretaria Municipal de Saúde, podendo, em casos de ameaças ou agressões,
solicitar proteção ao órgão policial local. Esta proteção poderá ser pedida, rotineiramente, como medida de segurança
para todos os trabalhos da equipe fiscalizadora”. (grifos meus)
55
Código Municipal de Saúde, Lei 4360, de 11 de julho de 1986. Prefeitura Municipal de Uberlândia, Secretaria
Municipal de Saúde, Seção de Vigilância Sanitária.
62
restos ajuda-nos a vislumbrar o perfil desta cidade e como a pretensão de controlar o uso
deles remete-nos às transformações em curso naquele período.
56
Embora a elaboração de normas que visavam organizar a vida na cidade, sob o
ponto de vista de que para tanto era preciso extinguir as várias práticas que escapavam
ao crivo das autoridades, tenha se dado com profusão durante os últimos anos, não se
atingiu o patamar de controle almejado. Nesse contexto, também foram feitas
reformulações na legislação de 1967, que deram origem ao Código Municipal de Postura
de 1988, que, em sua primeira parte, estabelece normas sobre a “Higiene Pública” e
busca “regulamentar o comportamento dos cidadãos” no que se entende como relativo à
limpeza urbana e no que refere “aos costumes, à Segurança e às questões da Ordem
Pública”.
57
Entretanto, outras fontes evidenciam que houve, por parte da população, uma
grande resistência na tentativa de manter determinados costumes, que, afinal, eram
fundamentais como auxílio à sobrevivência. É oportuno lembrar aqui a pertinente
indagação de Lopes:
“... a norma pressupõe um tempo diferenciado daquela temporalidade específica aos costumes
locais? Esta questão é plausível, pois basta observar o quanto os velhos hábitos têm seu lugar até os
dias atuais, apesar de serem condenados pela lei. O lixo é um caso exemplar de descompasso de
tempo entre norma e hábito, entre o texto da lei e o que se passa na realidade cotidiana”.
58
Isso explica o fato de, em 1992, um vereador enviar uma indicação ao prefeito e
sugerir maior “fiscalização no bairro Pampulha”, porque lá havia residências em que se
criavam porcos e, em sua opinião, isso era acarretava prejuízos “à saúde pública, além de
insuportável mau cheiro”.
59
Se, por um lado, percebemos a crescente intolerância das
autoridades públicas a essa prática dos moradores, por outro, esse mesmo registro é
sinal de que a criação desses animais seria mantida por moradores de certos bairros
populares, e que, realmente, os costumes não se modificam no ritmo almejado por
aqueles que elaboram a lei.
56
Decreto 3.525 de 22 de abril de 1987, regulamenta a Lei 4360, de 11 de julho de 1986. Secretaria Municipal de
Saúde, Seção de Vigilância Sanitária.
57
Câmara aprova novo código de posturas. O Triângulo, 23 de junho de 1988, n. 7.077, p. 01.
58
LOPES, Rosana Miziara. Nos Rastros dos Restos: A trajetória do lixo na cidade de São Paulo. Mestrado em História
Social, PUC: São Paulo, 1998, p. 52.
59
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Requerimentos, Indicação n. 332/92, 27 de março de 1992.
63
Certamente, houve uma profunda modificação nos costumes. Já discutimos como o
processo de urbanização da cidade, o crescimento dos bairros, a chegada de novos
vizinhos e a fiscalização foram elementos que contribuíram para instituir outras práticas e
valores, desestimulando, dentre outros, o hábito de criar animais domésticos na periferia.
No entanto, apesar das transformações ocorridas na cidade, ao longo das década
de 1980 e 90, que, dificultaram a permanência dessas práticas, fazendo com que
passassem a ser menos toleradas pelas autoridades, com algumas modificações, elas se
mantiveram. A existência de uma quantidade significativa de lojas que comercializam
sementes para o cultivo de hortaliças e rações para animais reforça essa premissa. Esses
estabelecimentos, ainda hoje, podem ser vistos em mais de uma unidade em vários
bairros da periferia. Eles indicam certas características próprias da cidade, apontam
determinados costumes dos moradores e usos dos restos, a despeito das várias
intervenções do poder público.
De todo modo, existentes ainda nos dias atuais, práticas como cultivar hortaliças e
criar animais domésticos não são mais tão comuns como eram até o início dos anos de
1980. Elas encontram-se restritas a alguns espaços, mas também demonstram que um
olhar histórico sobre o uso dos restos na cidade possibilita trazer à luz “um confronto do
antigo e do novo modo de vida, num momento de transição”.
60
Mesmo tendo sido
reprimidas, essas práticas resistiram no tempo e no espaço. Em nossos dias, ao andar
por certos recantos, podemos observar pequenas chácaras, onde a criação de porcos,
vacas e galinhas é lugar comum. Seus proprietários, por vezes, tecem relações de
afinidade com a vizinhança; recolhem nas casas sobras de comida para alimentação dos
porcos, e vendem à comunidade local o leite não pasteurizado a um preço popular.
Quase sempre localizadas numa baixada, próximas a algum córrego, essas
pequenas chácaras situam-se contíguas a vários bairros. Outra curiosa característica,
além dos vários córregos que atravessam a cidade e do rio Uberabinha, que percorre uma
grande extensão em seu interior, há na organização dos espaços diversas chácaras e
áreas verdes definindo seus limites. Um mapa, de 1999, revela a permanência desses
espaços agrícolas em vários pontos da cidade, como o setor de chácaras Tubalina,
Uirapuru e Morada Nova.
60
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, vol. II, p.297.
64
Hoje, ao ver alguns carroceiros circulando por certas ruas dos bairros Pacaembu,
Liberdade ou Esperança, no setor norte, não conseguimos deixar de pensar como a
cidade, numa intensa desigualdade, consegue congregar tantos e heterogêneos modos
de vida.
A propósito disso, outras dimensões da vida urbana, referentes aos hábitos e aos
costumes dos moradores, permitem-nos refletir, ainda, sobre determinadas características
da cidade. Uma breve incursão a registros das sessões na Câmara retrata a existência de
fossas e cisternas:
Adriano Bailoni Júnior fez uma constatação de grave procedimento por parte de administração dos
programas financeiros do BNH, que sem que se proceda a execução dos trabalhos de infra-estruturas
como água, energia e esgoto entregam moradias. Citou, como exemplo o Conjunto Colibri ... (e o)
Conjunto Florestas, onde há fossas.
61
Esse documento expõe interessantes elementos do viver urbano, que desvelam
alguns aspectos do cotidiano das camadas mais empobrecidas da população. Nesse
mesmo registro, encontramos um relato do vereador Alceu Santos, em que ele narrou ter
ido ao “prolongamento do bairro Custódio Pereira” e ter presenciado “o povo carregando
água distante”.
A referida Ata do Poder Legislativo também nos informa que habitações recém-
construídas eram entregues à população sem a implantação da rede de esgotos. A
respeito disso, no Livro das sessões da Câmara Municipal, o vereador Adriano Bailoni
comentava “que o desejo de um rápido faturamento por parte dos empreiteiros leva ao
descaso das normas do Código de obras”. Segundo ele, tratava-se de ganância dos
empreiteiros e de “omissão dos órgãos da Administração Municipal”, pois já havia na
cidade “uma legislação específica acerca dos loteamentos urbanos”. Promulgada em
1976, a Lei 2.584 determinava que os loteadores tinham por obrigação “prover as áreas
loteadas com rede de água, esgoto e eletrificação”.
62
Entretanto, o prefeito Zaire Rezende, no relatório do trigésimo oitavo dia de sua
gestão, ao fazer uma avaliação da postura do poder público quanto à construção de
casas populares na cidade, declarou que “a prefeitura não acompanhou nem fiscalizou,
61
Documentos da Câmara Municipal, 25 de abril de 1980, p. 49. Arquivo Público Municipal.
62
JESUS. Wilma Ferreira de. Poder público e movimentos sociais: aproximações e distanciamentos - Uberlândia,
1982-2000. Mestrado em História: UFU, 2002. p. 26.
65
satisfatoriamente, o andamento dos projetos, (com isso) a COHAB e as empreiteiras
constroem mal e a prefeitura fica com o ônus”, ou seja, uma negligência que o prefeito
deixara de mencionar, resultara em prejuízo muito maior aos moradores. O que significa
dizer também que a legislação existente parecia ter sido ignorada pelas autoridades
públicas e por outros agentes envolvidos na construção de habitações populares na
cidade.
63
Na verdade, isso nos leva à inevitável suspeita de que, historicamente, instaurava-se
um tácito acordo entre esses sujeitos, única explicação para o fato de que várias áreas
tenham sido loteadas sem a devida infra-estrutura. Embora na Secretaria de
Planejamento seja possível ter acesso a uma relação dos diversos bairros loteados
durante a década de 1980, em quase todos constam data de aprovação, número do
projeto de loteamento e imobiliária responsável.
64
Situação que serve para evidenciar, no
dizer de Ramires, “os fortes vínculos das elites empresariais e políticas locais com o
poder central”, que prevaleceram como prática norteadora dos programas habitacionais
na cidade.
65
As Atas do Poder Legislativo apontam a falta de rede de esgotos em alguns lugares
da cidade. Daí, a existência das fossas, que constituíam uma alternativa para quem
morava na periferia e não tinha acesso à canalização de esgotos. Como um costume da
população mais pobre, as fossas mantiveram-se ainda por muito tempo, apesar de um
projeto de lei ter estabelecido a proibição de se construí-las já no ano de 1981.
66
Se, por
um lado, elas expressam algumas maneiras de viver na cidade, por outro, também
traduzem a falta de infra-estrutura que marcou seu processo de urbanização. A respeito
disso, o jornal Correio de Uberlândia, de maio de 1983, noticiava:
Moradores do Conjunto Minas-Brasil reuniram-se na última sexta-feira com o prefeito Zaire Rezende,
quando lhe expuseram várias reivindicações, como a falta de saneamento básico e as más condições
em que se encontra o referido conjunto, cujo loteamento não seguiu as prescrições legais para
aprovação.
67
63
Relatório da Administração Zaire Rezende, (aos 38 dias de sua gestão), 1983-1988. Arquivo Público Municipal.
64
Ver Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Urbano, Prefeitura de Uberlândia, Administração 2001-2004.
65
In: RAMIRES, Júlio Cesar de Lima. A verticalização do espaço urbano de Uberlândia: uma análise da produção e
consumo da habitação. Doutorado em Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: USP,
1998, p. 159.
66
“Foi aprovado em redação final o processo que proíbe a construção de fossas”. Documentos da Câmara Municipal, 22
de maio de 1980, p. 92. Arquivo Público Municipal.
67
Prefeito recebeu reivindicações de moradores de conjunto habitacional. Correio de Uberlândia, 17 de maio de
1983, n. 13.634, p. 06.
66
O Minas Brasil, localizado nas proximidades do setor industrial, ainda nos dias
atuais, é considerado um bairro periférico. Naquela época, uma comissão formada por
moradores reclamava ao prefeito que o conjunto havia sido “construído em local ermo e
totalmente isolado de outras áreas urbanas”.
68
Protestavam contra a falta de rede de
esgotos, de água encanada e de vias públicas que também não existiam no local.
Na mesma reportagem, o jornal noticia que “os moradores entraram com um
processo contra o loteador do terreno, o empresário Angelo Cunha Neto, mas a ação
estava paralisada”. Uma situação que delineava interessantes articulações na cidade.
Afinal, o Sr. Angelo, entre os anos de 1977-1982, ocupou uma cadeira no Poder
Legislativo Municipal e, em 1990, exerceu o cargo de gerente da Divisão de Limpeza
Urbana. Dessa forma, o Minas Brasil, apesar de ter sido povoado anos antes, constava,
na relação da Secretaria de Planejamento, como tendo sido loteado em 1987, com o
projeto de número 1370, e, o que é mais desconcertante, sendo responsável o Município
de Uberlândia.
Assim, observamos que a trajetória de ocupação do Minas Brasil envolvia uma série
de contradições, conflitos e disputas. Algumas notícias de jornais sobre o bairro
constituem indícios disso. A que destacamos a seguir, inclusive, talvez aponte um
desfecho para a questão judicial que diz respeito à origem do processo de povoamento do
lugar:
Uma comissão de moradores do bairro Minas Brasil esteve na Câmara Municipal reivindicando
melhorias para o local. Sem escritura dos terrenos eles querem esgoto e asfalto no bairro. A falta de
escritura deve-se ao fato de que os moradores conquistaram na justiça o direito de usucapião. Os
vereadores do PMDB se colocaram à disposição dos moradores, levando-se em consideração que
Irani Gonçalves, vereador peemedebista, é também o advogado dos moradores.
69
Tudo isso é indicativo de como a cidade crescia de forma desordenada, sendo
difíceis as condições de moradia daqueles que habitavam na periferia. Com o
crescimento, uma situação que se revelava comum, em Uberlândia, era o surgimento de
diversos bairros distantes da região central, para onde a população mais pobre mudava-
se, mesmo sem benfeitoria alguma. Este era o principal tema de debate quando a
68
Idem.
69
Moradores querem melhorias no bairro Minas Brasil. O Triângulo, 12 de abril de 1989, n. 7.271, p. 01.
67
administração local tentava regulamentar a lei de uso e ocupação do solo, pois havia, por
parte dos moradores,
(...) a preocupação com a existência de bairros sem infra-estrutura e distantes da área central,
juntamente com a implantação inadequada de imóveis sobre os lotes... Dentre as dúvidas colocadas,
os moradores da região industrial questionaram a criação de bairros em regiões periféricas, sem infra-
estrutura, para atender a população, que para estas regiões se deslocam.
70
A regulamentação dessa lei traduz interessantes aspectos de como a cidade vinha
se estruturando nesse período: sem organização e com muitas incertezas para os
habitantes da periferia. Os moradores do bairro Minas Brasil, por exemplo, em 1988,
segundo o jornal O Triângulo, ainda continuavam sem acesso à rede de esgotos:
João Eduardo Máscia, vereador líder do prefeito na Câmara Municipal e que diariamente vem
atendendo a todo o segmento da comunidade uberlandense no Gabinete do PMDB no Anexo I da
Câmara, apresentou em sessão plenária indicação ao DMAE (Departamento Municipal de Água e
Esgoto) para que se faça a implantação de rede de esgoto no Minas Brasil.
71
Ainda que o jornal noticiasse “o esforço que o PMDB”, em seu último ano de
governo, vinha fazendo para que a cidade pudesse ter mais de 90% do perímetro urbano
atendido em saneamento básico, para os moradores de alguns bairros isso não era
motivo de comemoração. Com uma precariedade que não era prerrogativa somente do
Minas Brasil, as fossas, existentes também em outros bairros, deixavam entrever uma
cidade que, em se tratando do acesso a determinados serviços, estruturava-se de
maneira bastante desigual. Na verdade, as fossas eram uma característica dos bairros
populares e distantes do centro.
Além disso, observamos que, quando começou a intervir no costume dos moradores
de manter fossas nos quintais, o poder público não o fez somente para possibilitar à
população o acesso aos serviços de esgoto, mas também, porque, naquele momento, as
fossas começavam a ser vistas pelos administradores como propensas a trazer
70
Lei do Solo na região industrial. O Triângulo, 01 de outubro de 1987, n. 6.210, p. 05.
71
Em 1988, o líder do prefeito na Câmara Municipal afirmava:“... que todos reconhecem o esforço que o PMDB vem
realizando no sentido de dar infra-estrutura urbana a todos os bairros, tendo já implantado o equivalente a 98 por cento,
da demanda de água e esgoto em toda cidade. A caminho de atingir os 100 por cento, a equipe do DMAE vem
trabalhando seriamente neste sentido ...” Esgoto no Minas Brasil. O Triângulo, 23 de abril de 1988, n. 7.036, p. 05.
68
“problemas de higiene e de saúde” para a cidade.
72
Isso nos remete a pensar sobre as
incessantes transformações no espaço público, às quais também se refere o antropólogo
Antonio A. Arantes. Nesse caso, defrontamo-nos com algumas mudanças reveladoras de
que no processo de urbanização, idealizado pelas autoridades públicas, certos modos de
morar e de viver na cidade passariam a ser, cada vez mais, marginalizados, configurando
uma paisagem urbana marcada pela “diferença e desigualdade”.
73
As condições como se constituíam a maioria dos bairros da periferia podem ser
visualizadas por meio das diversas notícias e reclamações publicadas nos periódicos
diários. Conforme os recortes de jornais, fossas e esgotos a céu aberto faziam parte do
cotidiano de muitos moradores, conforme anunciava outra vez O Triângulo, em 1989:
Em outra indicação apresentada, Luizote afirma a necessidade do Prefeito de Uberlândia, fazer
juntamente com o Diretor do Departamento Municipal de Água e Esgoto – DMAE – a implantação no
Bairro Aclimação de uma rede coletora. E conclui assim o seu pedido: “Uberlândia deve olhar para os
bairros da periferia e, principalmente, cuidar do saneamento básico. Não é mais admissível o regime
de fossa séptica e, menos ainda, o esgoto a céu aberto. A saúde do povo exige que esses
equipamentos urbanos mais importantes sejam logo implantados. Pede-se urgência no
atendimento”.
74
De fato, as fossas retratam certas condições de ocupação dos espaços na cidade.
Vários bairros da periferia possibilitaram um mapeamento dos lugares em que a ausência
de rede de esgotos indicava diferentes modos como as camadas mais pobres da
população ocupavam esses espaços.
75
Para exemplificar, tomamos como referência algumas notícias publicadas pelo jornal
O Triângulo, entre os anos de 1986 e 1987. Muitos bairros na periferia, Luizote, Planalto,
Nossa Senhoras das Graças, Maravilha, Lagoinha, Santo Inácio, Aclimação e outros,
eram, em meados da década de 1980, bairros em que ou não havia rede de esgotos ou
72
Rede de esgoto na Rua Sabinada. O Triângulo, 18 de dezembro de 1986, n. 6.019, p. 02.
73
ARANTES, Antonio A. Paisagens Paulistanas: transformações do espaço público. Campinas: Imprensa Oficial,
2000.
74
O Triângulo, 20 de setembro de 1989, n. 7.374, p. 06. Sem título.
75
Outro exemplo de diferentes formas de ocupação e de uso do espaço urbano pode ser representado pelas favelas.
Nelas, dentre outras características, também predominam as cisternas e as fossas. Além disso, a década de 1980 remonta
a um momento da história da cidade em que havia centenas de famílias morando em favelas em diversos lugares, como
em pontos, ainda não urbanizados, da avenida Rondon Pacheco, ou então, nas margens do Rio Uberabinha e, também,
próximos aos trilhos de ferro do bairro Brasil e final do bairro Marta Helena – a chamada favela da Fepasa.
69
esta era ainda muito precária. Manchetes do período ilustram essa realidade, a começar
pelo bairro Luizote de Freitas:
O mais populoso bairro vai ganhando vida própria na cidade - Água e Esgoto.
76
Nossa Senhoras das Graças – Rede de esgoto na Rua Sabinada.
Nilza trabalha em favor do Lagoinha.
Benefício para o bairro Santo Inácio.
DMAE dota o Maravilha de rede de esgoto.
DMAE convoca moradores do Bairro Planalto para ligação do esgoto.
Nas respectivas notícias, o jornal traz informações sobre reivindicações da
Associação de Moradores do bairro Luizote, solicitações de alguns vereadores em favor
dos moradores dos bairros Lagoinha e Nossa Senhora das Graças, e comenta, ainda, a
respeito de determinadas políticas públicas municipais de infra-estrutura em outros bairros
da periferia. Notamos a articulação do jornal com esses grupos sociais – organizações de
moradores, representantes do Poder Legislativo e da administração local. Além disso, o
fato de O Triângulo acompanhar e noticiar as mudanças nos bairros, permitiu-nos
identificar elementos do processo de constituição da cidade. Observarmos, então, que
esses bairros, que se iniciaram por volta de 1980, estavam tendo suas redes de esgoto
implantadas ou ampliadas somente ao final dessa década. Isso mostra como a cidade ia
se transformando, reestruturando e tentando superar certas carências que marcaram seu
crescimento.
Muitas notícias dessa natureza foram publicadas por O Triângulo nos primeiros anos
da década de 1980. Ressalte-se como elas expressavam certos argumentos do jornal,
que, por meio delas, propagava valores e ideais em torno da idéia de crescimento da
cidade, de urbanização dos espaços e, principalmente, de uma mudança nos costumes
dos moradores.
É preciso levar em consideração que, para a maioria da população que residia
nesses bairros, havia muita dificuldade em pagar pelo serviço de instalação da rede de
76
O mais populoso bairro vai ganhando vida própria na cidade - Água e Esgoto. O Triângulo, 04 de novembro de
1986, n. 5.988, p. 05.
Rede de esgoto na Rua Sabinada. O Triângulo, 18 de dezembro de 1986, n. 6.019, p. 02.
Nilza trabalha em favor do Lagoinha. O Triângulo, 20 de fevereiro de 1987, n. 6.061, p. 01.
Benefício para o bairro Santo Inácio. O Triângulo, 12 de maio de 1987, n. 6.112, p. 05.
DMAE dota o Maravilha de rede de esgoto. O Triângulo, 17 de junho de 1987, n. 6.137, p. 01.
DMAE convoca moradores do Bairro Planalto para ligação do esgoto. O Triângulo, 04 de setembro de 1987, n.
6.192, p. 01.
70
esgoto, pois, mesmo quando a prefeitura afirmava que pretendia “dar infra-estrutura a
todos os bairros”, ela cobrava por esses serviços. Em junho de 1980, o vereador Alceu
Santos, em sessão na Câmara Municipal, mencionou que, no “bairro Tubalina, 70% da
população usa cisterna e, diante do preço da instalação do hidrômetro, prefere ficar com a
cisterna. As exigências do Dmae pesam muito no bolso dos operários”.
77
Inferimos, então,
que se era difícil adquirir um hidrômetro para ter acesso à água encanada, isso constituía
razão compreensível para que parte da população tenha utilizado as fossas pelo máximo
de tempo em que isso foi possível.
78
Desse modo, a manutenção de cisternas e de fossas na periferia são práticas dos
moradores que nos possibilitam identificar, nos espaços vividos, características da vida
urbana que traduzem também a existência de heterogêneos modos de vida, desvelando a
cidade como um espaço político, constituído por diversos sujeitos, diferentes e
conflitantes interesses e, por isso mesmo, um espaço profundamente revelador de como
alguns grupos sociais vivenciam algumas formas de exclusão.
Pensando no modo como certos setores da população experimentam sua vivência
no espaço urbano, esse “sentimento muito forte de que o espaço público lhe pertence”, o
texto de Perrot, em que discute como as pessoas comuns reagiram ao controle do espaço
público, na França do século XIX, inspirou-nos a pensar a utilização das fossas como uma
alternativa precária que se colocava para a população que residia na periferia, mas
também como “uma resistência viva ou surda contra a especialização progressiva e a
delimitação de espaços funcionais”, que, sem dúvida, vinham acompanhadas de
“restrições”, imposições e tentativas de controle sobre a forma com que a população fazia
uso dos espaços públicos e privados na cidade.
79
Ressaltamos que dentre as transformações que visualizamos no espaço urbano, em
Uberlândia, ao longo do anos de 1980, algumas se articulavam à especulação imobiliária
77
Documentos da Câmara Municipal, 19 de junho de 1980, página 125. Arquivo Público Municipal.
78
“Estudar a viabilidade de parcelar o pagamento do hidrômetro em três parcelas por mês. Este foi o requerimento
apresentado pelo vereador Adalberto Duarte da Silva, considerando as dificuldades que a população carente está
enfrentando ao adquirir um hidrômetro. Segundo o vereador, “diante da obrigatoriedade de usar o aparelho, o DMAE
deve oferecer proposta que facilite a comercialização, uma vez que o baixo poder aquisitivo da população não permite o
pagamento à vista de dezoito mil cruzeiros por um produto”. In: Hidrômetro em três parcelas. O Triângulo, 26 de
agosto de 1988, n. 7.121, p. 01.
79
PERROT, Michele. “Os operários, a moradia e a cidade no século XIX.” In: Os Excluídos da História: Operários,
Mulheres e Prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.101-125.
71
na cidade, à precariedade como se constituíam os bairros periféricos e, também, ao
surgimento de novos bairros construídos naquele período.
80
Já fizemos referência ao processo de crescimento da cidade e a sua relação direta
com as políticas habitacionais e as atividades nos setores imobiliário e da construção civil.
Novos conjuntos habitacionais, construídos pela prefeitura, mediante programas de
habitação que conseguiam captar recursos do governo estadual e federal, ou então, por
empresas particulares, indica como a demanda por moradia tornava-se cada vez mais
urgente. Programas de habitação popular, como o Pró-Casa, de 1982, consistiam em uma
parceria entre o estado e a prefeitura, visando “atender ao trabalho de desfavelamento”
na cidade.
81
Nesse período, já haviam sido edificados alguns conjuntos como o Luizote de
Freitas, Segismundo Pereira e Santa Luzia, demonstrando como a cidade se expandia.
Esses bairros ficam a uma distância de sete quilômetros do centro e, em decorrência
disso, favoreceram a urbanização dos espaços vazios, sendo que uma certa infra-
estrutura a essas regiões só veio anos depois.
Em 1984, por meio do Programa de Habitação Popular, a administração que
assumira no ano anterior, construiu o Esperança e ampliou outros bairros, estimulando a
construção de moradias, conforme anunciava o boletim de comunicação desse governo:
O programa de habitação popular desenvolvido pelo governo Zaire Rezende propiciou o acesso à
casa própria a 800 famílias de baixa renda provenientes em sua maioria de favelas. Com a saída
destas famílias, praticamente teve fim as favelas da Rondon, margens do Uberabinha e recentemente
da Fepasa. Seus ex-moradores hoje residem no bairro Esperança, Vila Maria, loteamento do Leão
XIII, Santa Mônica, Industrial, Umuarama e Santo Inácio.
82
Diante da necessidade de apresentar soluções para o problema das favelas, a
prefeitura criou alguns loteamentos. O texto em questão revela como novos bairros foram
surgindo e outros foram sendo ampliados com demais loteamentos.
80
“A utilização do poder público como um espaço para beneficiar interesses econômicos também se expressa na
especulação imobiliária. Alguns estudos locais desenvolvidos nas áreas de geografia, arquitetura e história demonstram
como a construção de casas populares em bairros periféricos, a escolha da localização e o próprio crescimento da cidade
visaram beneficiar ora um grupo, ora outro que administrava a cidade”. In: JESUS, Wilma F. de. Poder público e
movimentos sociais: aproximações e distanciamentos - Uberlândia, 1982-2000. op. cit., p. 26.
81
Erradicação das favelas. Correio de Uberlândia, 13 de março de 1982, n. 13.108, p. 06.
82
O fim das favelas: casa própria para 800 famílias. Participação, ano II, n. 11, julho de 1986, p. 01 06.
72
Assim, à medida que o alargamento das “regiões periféricas” ia contribuindo para
alterar a geografia da cidade, outros problemas também surgiam. Para se ter uma
dimensão da expansão urbana que resultara no crescimento da periferia, observa-se que,
no ano de 1998, havia mais de 60 construtoras e 37 imobiliárias em Uberlândia, que
variavam em tamanho e formas de atuação no mercado. Dentre as construtoras, que
atuaram por muitos anos na cidade, estavam “a Encol (até 1996), a Construtora Simão, a
Minas Goiás, a Eldorado e a CCO”.
83
Um dado que permite dimensionar os lucros dessas
empresas com o mercado imobiliário local. Para além disso, um novo problema começava
a surgir e vinha, inclusive, sendo discutido por alguns vereadores em sessão na Câmara
Municipal:
(...) Orestes Cláudio Fernandes ... disse que só do terreno do Sr. Pedro Amancio foram retirados 70
caminhões de entulhos, disse então que isto é jogado em qualquer lugar sem nenhuma orientação
dos Serviços Urbanos. Eurípedes Barsanulfo de Barros lembrou a questão dos passeios, calçadas e
terrenos baldios, dizendo que nem mesmo no seu departamento conseguiria resolver; reconhece que
há falta de pulso da administração.
84
Esse documento sinaliza outros elementos do processo de urbanização, o
movimento de construções, reformas de moradias e de edificações, começava a deixar
vestígios nos contornos da cidade. Os resíduos das construções já pareciam provocar
alguns contrastes na paisagem urbana, eram os primeiros sinais do que viria a ser um
sério problema: a crescente produção de entulho.
Dispersos por vários lugares: “passeios, calçadas e terrenos baldios”, esses restos
não eram ainda objeto de maiores regulamentações do poder público. No entanto,
conforme o Código de Postura Municipal de 1967, o entulho não era considerado lixo e
deveria ser “removido à custa dos respectivos inquilinos ou proprietários”. Mas, sem uma
fiscalização instituída, esses restos eram despejados em diversos pontos da cidade.
Nos jornais locais, essa questão ganharia notoriedade apenas na segunda metade
da década de 1980. De todo modo, entendemos que, mesmo em anos anteriores, o
entulho pode ser visto como fator que parece contradizer a lógica de organização da
83
RAMIRES, Júlio Cesar de Lima. A verticalização do espaço urbano de Uberlândia: uma análise da produção e
consumo da habitação, op.cit., p. 164. Para uma discussão sobre a expansão urbana e a especulação imobiliária em
Uberlândia, ver também: SOARES, Beatriz Ribeiro. Habitação e produção no espaço em Uberlândia. Mestrado em
Geografia, USP: São Paulo, 1988.
84
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Atas do Legislativo, 19 de junho de 1980, p. 125-126. Arquivo Público.
73
cidade, haja vista que passava a exigir a intervenção do poder público, também, em
práticas e espaços de âmbito privado. A necessidade de tal atuação continuava a ser
debatida:
Angelo Cunha Neto ocupou a Tribuna para narrar o fato de um atropelamento na esquina da rua
Quintino Bocaiúva com a Cesário Alvim ocasionado por material acumulado no passeio. A Firma
Constril mantém ali em toda a extensão do quarteirão além da caliça outros entulhos. Alertou a
Secretaria de Obras para uma fiscalização mais rigorosa...
85
Vemos, então, o entulho a gerar tumulto na cidade: acumulado em lugares
movimentados, provocava acidentes e trazia insegurança aos transeuntes. Resíduos de
materiais de construção, amontoados na calçada, começavam a interferir nos usos do
espaço público, pois colocavam em risco a segurança de quem circulava pela cidade.
Além disso, nas ruas e avenidas do centro, que, com o passar do tempo iam sendo
alargadas, o entulho atrapalhava o fluxo de pessoas e de veículos, e não condizia com o
aspecto de limpeza e de beleza que se pretendia dar à cidade. A ampliação de seus
circuitos, a fim de torná-los mais amplos e mais dinâmicos, encontrava no entulho um
grande entrave. A necessidade de uma “fiscalização mais rigorosa” por parte da
Secretaria de Obras, mencionada pelo vereador, demonstra como o despejo desses
restos começava a exigir maior atuação do poder público. Uma intervenção que, no
contexto das relações vividas na cidade, desdobraria-se em diferenciadas ações.
Nos anos de 1990, a reforma de algumas edificações e a construção de
determinadas obras nas regiões centrais também contribuiriam para o aumento da
geração de entulho.
86
Não obstante isso, o crescimento da cidade sinalizava como tal
movimento foi mais intenso nas áreas periféricas, o que fez com que o poder público, ao
lidar com o problema do entulho, implementasse políticas públicas direcionadas aos
moradores dessas regiões.
Sugerimos que, junto com a urbanização, sobreveio um aumento significativo da
produção de restos na cidade, o que se revela tanto no problema do entulho como na
questão do lixo hospitalar. Este lixo e os problemas e preocupações que vinham trazendo
85
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Atas do Poder Legislativo, 20 de agosto de 1980, p. 181.
86
“Também se constatou um aumento do consumo da habitação verticalizada, à medida que novos profissionais
chegaram a cidade, tais como professores universitários, empresários, técnicos especializados, profissionais liberais,
gerentes de grandes em empresas e estudantes universitários”. In: RAMIRES, Júlio Cesar de Lima. A verticalização do
espaço urbano de Uberlândia: uma análise da produção e consumo da habitação. op. cit., p. 157.
74
para o poder público e os diversos setores da população são mais uma expressão da
complexidade crescente da questão do lixo e das relações em torno dele na cidade.
Os documentos apontam que, no final da década de 1980, o lixo hospitalar
começava não apenas a ganhar destaque na imprensa local, como também ia tornando-
se alvo da atenção do poder público, ao mesmo tempo em que teve início um primeiro e
infrutífero debate sobre a quem cabia a responsabilidade pelo seu transporte, tratamento
e destino final. Avaliados como oferecendo “grande risco de contaminação”, esses
resíduos ensejavam um debate, porque já se articulavam à questão ambiental e de saúde
pública.
Nessa perspectiva, podemos apreender que determinadas mudanças relacionadas
com o processo de crescimento, urbanização e crescente complexidade dos modos de
vida, possibilitam refletir acerca de algumas transformações na natureza dos restos que a
cidade passava a produzir e, também, de novos usos que se começavam a fazer deles.
Na década de 1980, houve uma intensificação do comércio na cidade, com a
chegada de novas indústrias, fábricas, armazéns atacadistas, supermercados e lojas, o
que resultou numa intensa circulação de mercadorias influenciando diretamente nos
modos e hábitos de consumo da população. Até aquele momento, era comum a compra
de gêneros de primeira necessidade nas “vendinhas”, mercearias e armazéns dos
próprios bairros. De acordo com esse costume, freguês e proprietário faziam o controle
das compras numa caderneta, cujo acerto seria feito apenas no final do mês. Em meio às
mudanças em curso, no âmbito da indústria e do comércio na cidade, essas relações
seriam substancialmente modificadas.
No que se refere à expansão do comércio de produtos industrializados em
Uberlândia, encontramos, no trabalho de Luzia Márcia Rezende, uma interessante
abordagem acerca das experiências de carregadores de mercadorias. A autora
demonstra como essa atividade assumia grande influência num contexto em que um
intenso “fluxo de mercadorias” constituía fator importante para marcar a cidade como
referência do comércio atacadista.
87
O crescimento de algumas empresas, tais como o Armazém Martins, Armazém do
Comércio, Armazém Peixoto e outros que iniciaram suas atividades como pequenas
87
SILVA, Luzia Márcia Rezende. Carregadores de mercadorias: memória e lutas – Uberlândia-MG, 1970-2000.
Doutorado em História Social, PUC São Paulo, 2003. p. 27-30.
75
distribuidoras de secos e molhados e que, em meados dos anos de 1980, já conseguiam
transportar mercadorias para diversas regiões do país, sinalizava a expansão desse setor
e contribuía para que se desse à Uberlândia o título de “capital brasileira do atacado”.
88
Assim, a cidade, que já vinha constituindo-se como “entreposto comercial”, em razão
das crescentes atividades de circulação e comércio de produtos industrializados,
começava a contar com um crescente número de mercearias e supermercados, o que fez
com que o consumo de produtos industrializados assumisse maiores proporções.
Dos armazéns aos supermercados houve significativas alterações nas formas como
as pessoas passaram a se abastecer: desde a liberdade de se locomover por amplos
espaços, a possibilidade de observar com tranqüilidade, para decidir levar ou não as
mercadorias, até a disposição e organização delas nas prateleiras, enfim, todos esses
fatores mostravam sensíveis mudanças não apenas nas maneiras de ver e adquirir o
produto, mas também nas relações entre as pessoas. Certamente, esse momento
marcava, ainda, o engendramento da imposição de uma proposta de consumo de massa,
pautada por um padrão de uniformidade que determinaria tanto os locais de consumo,
como a origem, a natureza e a quantidade dos produtos a serem consumidos pela
população.
Em decorrência dessas transformações, além das mudanças nos hábitos de
consumo da população, houve também um processo de geração de grande quantidade
de caixas e embalagens, resultante das atividades de compra e venda de mercadorias,
que iria contribuir para o desenvolvimento de um comércio paralelo na cidade, ou seja, a
comercialização dos restos resquícios do consumo de produtos industrializados.
As embalagens de mercadorias, depois de consumidas e descartadas pela
população, eram recolhidas e vendidas por trabalhadores que as inseriam em novos
processos de reaproveitamento.
89
Uma modalidade de comércio presente em anúncios de
jornais:
Compramos qualquer tipo de vasilhame. Telefone e mandamos buscar. Garrafaria Oeste. Rua Poços
de Caldas, 459, esquina com Bernardo Cupertino. Fone: 234-7791.
90
88
Sobre a expansão das atividades do setor de atacados em Uberlândia, ver também: JESUS. Wilma Ferreira de. Poder
público e movimentos sociais: aproximações e distanciamentos - Uberlândia, 1982-2000. op. cit., p. 24.
89
No que se refere à mudança nos hábitos de consumo da população, sobretudo, com a maior circulação de produtos
industrializados, destaca-se que os anos de 1980 marcam a implantação de “grandes supermercados como o Pão de
Açúcar, Makro, bem como a construção do primeiro shopping center da cidade”. In: RAMIRES, J. L. op. cit., p. 157.
90
Classificados. Primeira Hora, 21 de maio de 1985, n. 1.011, p.07. In: Morais, S. P. Trabalho e Cidade ..., op. cit. 34.
76
Compramos todo tipo de garrafas: litros, garrafões, refugos e grades. Pagamos o melhor preço da
praça, basta nos telefonar que mandaremos buscar em qualquer parte da praça e região. Casa da
Garrafa, Rua: Itumbiara, 339. Fone: 235-7735.
91
Em meados da década de 1980, a seção de Classificados de jornais como O
Triângulo, dentre outros, trazia anúncios que sinalizavam como esses materiais já
estavam sendo apropriados e incorporados num circuito comercial local. A intensidade
dessa prática pode ser mediada pelo significado da publicação dos anúncios, uma forma
de divulgação de tais atividades que indicava interessantes elementos das articulações do
jornal na questão dos restos na cidade. No ano de 1986, O Triângulo propagava esse
comércio.
Compramos qualquer quantidade de vasilhames, garrafas e litros de vinhos. Pagamos o melhor preço
da praça. Rua Tupaciguara esquina com Monsenhor Eduardo, informações pelo telefone:234-9449.
92
Avaliamos que tanto para os anunciantes como para os trabalhadores esses
anúncios eram de grande serventia. Afinal, eles desvelam um mercado local dos restos;
informam sobre a existência e a localização dos estabelecimentos de compra em vários
pontos da cidade, sobre os produtos comercializados: “todo tipo de garrafas”, “qualquer
tipo de vasilhame” em “qualquer quantidade”, “garrafões, refugos e grades”, enfim,
forneciam pistas para se visualizar como certos restos estavam surgindo como fonte de
sobrevivência, objeto de comércio e possibilidade de lucro, expressando, sobretudo,
relações vividas na cidade.
Esses restos comercializados eram objetos aparentemente sem importância,
largados nos quintais. Como foram se tornando passíveis de venda? Ao serem recolhidos
e vendidos, serviam para quê? Indagações que nos convidam a refletir sobre algumas
noções de útil e de inútil que se constroem em tais circunstâncias históricas. Simultâneo
ao recrudescimento do consumo de produtos industrializados, houve também um
aumento da produção e do descarte de restos considerados por muitos como inúteis. Já
para outros, que, inclusive, passaram a se apropriar deles, esses refugos principiaram a
ser de grande utilidade.
91
Idem.
92
Compram-se garrafas. Seção de Atlas, Editais e Avisos. O Triângulo, 03 de outubro de 1986, n. 5.966, p. 06.
77
Uma imagem de infância ajudou-nos a vislumbrar melhor essas questões. A
lembrança do homem que toda semana passava na rua trocando por algodão doce
“qualquer tipo de vasilhame”: o garrafeiro. Atividade existente ainda nos dias atuais, na
qual podemos situar umas das formas criativas de sobreviver dos restos. O Sr. José
Francisco Galdino trabalha como garrafeiro desde 1986 e, assim como outros, encontrou
nessa atividade um nicho de sobrevivência. Pela trajetória desse garrafeiro, também
percebemos determinadas estratégias do cotidiano de grupos mais empobrecidos da
população, que, diariamente, reinventam sua sobrevivência por meio de práticas que
envolvem a comercialização dos restos na cidade.
93
José Francisco contou ter trabalhado na Companhia Souza Cruz durante quase dez
anos. Ele fazia parte da CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) e sofria
muitas pressões dentro da fábrica. Quando foi demitido, decepcionado com o
autoritarismo que marcava as relações de trabalho na companhia, afirmou que “não
trabalharia mais para ninguém”, daí a razão de ter ido mexer com as garrafas. Sua
história configura um caso exemplar de que a possibilidade de sobreviver comercializando
garrafas e vasilhames colocava-se a uma parcela de trabalhadores na cidade. Dentre
outros elementos que sinalizam as possibilidades desse mercado, destacamos, ainda, o
início das atividades da empresa Uberlândia Refrescos S.A, responsável pela fabricação
do refrigerante coca-cola. Em 1976, essa fábrica já detinha uma produção diária inicial de
144 mil garrafas, expressão da demanda e da intensidade com que circulavam essas
mercadorias.
94
Quando começou, o Sr. José Francisco assegurou que era pequeno o número de
pessoas envolvidas nessa atividade e que o material recolhido tinha várias funções:
naquele período, a maioria dos produtos eram vendidos em embalagens de vidro, sendo a
reciclagem desse material uma prática recorrente. Os vasilhames de cerveja, refrigerante
e outras bebidas também eram reutilizados. Por essa época, ele revendia as embalagens
de vidro para empresas como a Paratudo – Raízes Amargas, uma fábrica e distribuidora
de um composto de nome semelhante, que, atualmente, também produz um energético.
93
José Francisco Galdino, natural de Cascalho Rico-MG, viúvo, tem duas filhas. Conta que ajudou a fundar o Partido
dos Trabalhadores em Uberlândia, confessa-se meio decepcionado com a política e, comentando sobre seu possível
apoio à candidatura de Aniceto Ferreira, ex-vereador pelo PT, diz: “a gente faz porque acredita” e não em benefício
próprio. Conversa informal com a autora em 28 de dezembro de 2003.
94
Ver: Banco de Dados Integrados do Município (BDI), Secretaria Municipal de Planejamento, 1991, p. 08.
78
Essa empresa, ainda atuante na cidade, é hoje liderança nesse ramo de negócio e
exporta seu produto para diversas regiões do país.
95
A empresa Paratudo, assim como proprietários de bares, mercearias e
supermercados, eram os potenciais compradores das garrafas que o Sr. José Francisco
coletava. O Butelão, uma outra empresa, comprava-lhe cacos de vidro, que eram
revendidos para indústrias de reciclagem. Esse material era repassado a fábricas em São
Paulo e Belo Horizonte e transformado em novas embalagens.
Ligeiramente decepcionado,
96
o Sr. José Francisco avalia que, ao longo dos últimos
anos, investir no comércio de restos na cidade possibilitou aos proprietários dessas
empresas transformarem-se em prósperos empresários e ampliarem seu patrimônio.
Além desses estabelecimentos, ele também vendia as embalagens de vidro para pessoas
que faziam conservas e doces caseiros. Uma freguesia, com a qual o Sr. José Francisco,
com menor intensidade, conta ainda hoje, são os “doceiros, pimenteiros, a área de
condimento em geral”, como ele mesmo explica. Esses produtos podem ser vistos, com
freqüência, sendo oferecidos por trabalhadores em algumas esquinas no centro da
cidade.
Há quase vinte anos, o Sr. José Francisco sobrevive comprando e vendendo
garrafas. Segundo ele, atualmente, há outros sete ou oito garrafeiros na cidade. Isso
mostra que os materiais recolhidos por esses trabalhadores ainda encontram espaço no
mercado, mesmo nos dias de hoje em que a maioria dos produtos industrializados tem
suas embalagens de plástico. O depósito na casa do Sr. José Francisco é um exemplo
concreto das múltiplas possibilidades de aproveitamento dos restos. Na fotografia abaixo,
pode se perceber a diversidade dos materiais ali encontrados.
95
Essa empresa iniciou suas atividades em 1951, lançando o composto Paratudo, que conseguiu grande aceitação no
mercado consumidor. Em seu site, a empresa atribui seu sucesso não somente a esse fato como também à cidade de
Uberlândia, devido a sua localização geográfica, a uma excelente rede de transporte, às oito rodovias existentes,
terminal intermodal de cargas, intenso tráfego aéreo e mão-de-obra qualificada. (www.paratudo.com.br)
96
Digo decepcionado, pois o Sr. José Francisco acredita que seria muito importante que os garrafeiros e as pessoas
envolvidas com a coleta de materiais recicláveis na cidade conseguissem se unir, como fazem os grandes empresários;
ele até faz uma referência a Ambev - fusão que resultou, em 1999, da união das empresas Antártica e Brahma.
Revelando uma certa irritação, avalia que infelizmente é preciso desconfiar de certas pessoas, e conta que, não raras
vezes, colegas seus também garrafeiros, ao comprar e não pagar, deram-lhe prejuízo. Com uma surpreendente
habilidade para se expressar, o Sr. José Francisco, relatando algumas questões sobre a organização do seu trabalho e
sobre as relações de solidariedade que tenta estabelecer com as pessoas mais pobres que diariamente trazem à sua casa
as garrafas que coletam com o intuito de suprir alguma carência mais imediata de alimentação, fala-me da necessidade
de se ter “energia e coragem”, de se ter indignação para que as mudanças aconteçam, enfim, que na verdade se trata “de
um processo que precisa de união, precisa de “dom de dividir dificuldade”. José Francisco Galdino, atua como
garrafeiro em Uberlândia desde 1986. Entrevista concedida à autora em 09 de junho de 2004.
79
Foto 1. O Sr. José Francisco, numa manhã de domingo, atende a uma senhora que queria comprar vidros.
Fotografia tirada pela pesquisadora em outubro de 2004.
Na parte da frente da casa, o garrafeiro acumula os materiais com que trabalha. Ao
ver esse amontoado de coisas, temos a impressão de uma verdadeira desordem, de uma
“bagunça” tal que impossibilita tanto a circulação como a convivência naquele espaço.
Mas, observando melhor, percebe-se uma lógica que organiza, seleciona e hierarquiza,
dando sentido e possibilitando apreender toda a riqueza do significado da palavra
aproveitar.
Nota-se a grande quantidade de garrafas, em formato, cores e tamanhos distintos.
Vasilhames de vinho, cerveja, aguardente, enfim, todo um amontoado de objetos que têm
finalidades específicas e, sendo assim, aceitação no comércio local e externo. Por
exemplo: as garrafas pequenas de cerveja, denominadas long neck, não são reutilizadas
na embalagem desse produto, por não ter retorno ao fabricante. Mas o garrafeiro, ao ter
uma quantidade suficiente dessas garrafinhas, envia para as fábricas de refrigerante da
região, tais como a indústria do guaraná Apolo em Araguari-MG ou do guaraná Cacique
em Carmo do Paranaíba-MG. Nesse caso, às vezes, é preciso que ele desembolse o
valor do frete, e, em certas circunstâncias, caso as empresas precisem entregar uma
80
carga de seu produto em Uberlândia, elas fazem o transporte das embalagens sem custo
algum para o garrafeiro.
A atividade exercida pelo Sr. José Francisco e outros garrafeiros que sobrevivem da
coleta desse produto, ou seja, o vidro, contribui para elucidar aspectos em torno do
comércio dos restos em Uberlândia. Ao ouvi-lo contar sobre como se estrutura o comércio
desses materiais, avaliamos que se configura uma verdadeira rede de negociações, todo
um conjunto de relações que exige esforço, persistência e inventividade, essenciais a
quem precisa garantir a subsistência contabilizando “lucro (que) são centavos”.
No que se refere ao uso das garrafas, pelo que conta o Sr. José Francisco, elas
podem ser aproveitadas, uma vez limpas e esterilizadas, como novas embalagens, ou
então, podem servir para moagem, processo no qual o vidro, ao ser fundido, é
transformado em novos vasilhames ou quaisquer outros artigos desse mesmo material.
Esse segundo caso já implica algumas dificuldades para o garrafeiro, pois é necessário
que ele disponha de recursos para o pagamento do frete, uma vez que as indústrias mais
próximas que reciclam esse produto localizam-se em Guarulhos-SP.
Isso significa dizer que o comércio do vidro destinado à reciclagem deixa de ser
interessante porque é muito dispendioso. Mas, com a sua experiência e habilidade, o Sr.
José Francisco desenvolveu algumas estratégias para enfrentar essa situação. Uma das
alternativas encontradas consiste na permuta de mercadorias com alguns de seus
fornecedores, a empresa que comercializa o guaraná Arco-íris em São José do Rio Preto-
SP, que lhe oferece, em troca do vidro, bebidas como refrigerante e aguardente. Estas
mercadorias são revendidas pelo Sr. José Francisco a comerciantes das redondezas e
também a alguns vizinhos, que, em troca da aguardente, oferecem-lhe outras garrafas
que ajudam a recompor o seu estoque. Todo esse intercâmbio faz parte do rol de
pequenos ajustes inerentes à atividade que o garrafeiro vem tecendo ao longo de quase
duas décadas de experiência nesse ramo. Como ele próprio diz: não se pode ter apenas
um fornecedor, mas vários, pois é preciso “diversificar a sua área”.
Essa grande diversidade para complementar a renda e ajudar na sobrevivência
diária ainda inclui a confecção de algodão doce em festas de aniversário infantis, herança
da época em que começou a trabalhar com o comércio de garrafas e contava com a ajuda
da esposa. Como ainda possui a máquina de fazer o algodão doce, o Sr. José Francisco,
durante a tarde aos fins de semana, presta esse serviço às pessoas interessadas, basta
81
que o busquem em sua casa, pois ele não tem um transporte adequado para levar a
máquina.
Tratando-se de incrementos criativos para auxiliar na subsistência, interessante
lembrar o fato de que os fornecedores do Sr. José Francisco, em sua maioria, são
catadores, carroceiros, trabalhadores idosos, enfim, pessoas que, para ajudar a
complementar a renda e a suprir alguma necessidade imediata de alimentação, oferecem
a ele garrafas, vidros e outros produtos. Interessante notar como essas relações sinalizam
uma interação entre o garrafeiro e parte da vizinhança local, mediante a prática de
aproveitamento dos restos, o que tem um sentido especial no contexto das relações que
envolvem a produção e o descarte do lixo na cidade.
Um dos outros produtos adquiridos pelo Sr. José Francisco são as cacharias
grades de plástico que servem para abrigar embalagens de cerveja e refrigerante as
quais também têm servido como objeto de comércio. A cacharia caracteriza outro produto
que vale a pena ser negociado somente no comércio externo e, que geralmente, é
remetido a uma indústria em Piracicaba-SP. De certa forma, podemos dizer que a
comercialização dessa mercadoria sinaliza o início de um processo que desencadeia uma
série de mudanças no comércio dos restos em Uberlândia. A verdade é que, além de
garrafas e vidros, outros materiais começaram a ser incorporados nesse circuito. O Sr.
José Francisco comentou que, “o processo de aparecer o plástico” e as (embalagens)
“não retornáveis” tornou mais difícil o seu trabalho “na área do vidro, da garrafa”.
97
Isso,
além de nos fazer inferir sobre as mudanças nos hábitos de consumo da população e no
comércio local de materiais recicláveis, permite situar esse momento como um marco na
história dos restos, que, até então, eram considerados como simplesmente lixo. A própria
denominação de materiais reaproveitáveis dá-nos uma idéia de como essa visão veio se
modificando.
98
97
José Francisco Galdino, depoimento citado.
98
Para além dos anúncios, os jornais trazem algumas referências sobre certas campanhas beneficentes realizadas por
organizações privadas, as Damas da Casa da Amizade, em meados dos anos de 1980, na qual também podemos
perceber uma forma de reaproveitamento dos restos, cujo comércio já configurava possibilidades de ganho material.
“Numa iniciativa das Damas da Casa da Amizade dos quatro clubes de Rotary da cidade, coordenadas pela
companheira Judith Barata, presidente do Departamento Feminino do “Cidade Industrial”, será iniciada, na próxima
segunda-feira para ter seqüência durante toda a semana, uma campanha de jornais usados. Segundo a coordenadora,
objetivo é de conquistar muitas toneladas e, com o produto da venda, arrecadar uma importância expressiva, para que as
Casas da Amizade dos Rotares uberlandenses possam seguir com a sua assistência social e aplicar filantropia aos nossos
irmãos mais carentes”. Campanha de jornais velhos será aberta na próxima segunda-feira. Correio, 09 de fevereiro
de 1985, n. 14.065, p. 06. Campanha de jornais velhos. Correio, 7 de novembro de 1984, n. 14.015, p. 06.
82
Ao comentar sobre as transformações que pôde observar nesse comércio, o Sr.
Magid, empresário do ramo de sucatas, afirmou que, até a década de 1970, poucas
pessoas trabalhavam direta ou indiretamente envolvidas com a indústria da reciclagem.
Em outras palavras, a concorrência praticamente não existia. Mas, daquele período até os
dias atuais, houve “um enorme impulso”. Esse movimento, a que se referiu o empresário,
deixa entrever algumas transformações ocorridas ao longo de mais de três décadas. Do
ferro velho à indústria da reciclagem, as mudanças foram ocorrendo gradativamente e, de
muitas maneiras, diversificaram-se os restos, mas não a prática de comercializá-los.
Houve uma ampliação do mercado de materiais recicláveis e do número de pessoas
envolvidas nessas atividades, mas, com isso, materiais como o ferro velho deixaram de
ser utilizados como no passado.
A indústria da reciclagem implicou um aproveitamento
maior de produtos como papel, plástico e alumínio. De qualquer modo, ferro velho,
garrafas, plásticos, alumínio, papel e papelão são restos que, historicamente, têm sido
recolhidos e revendidos, e, mesmo variando de intensidade, o comércio deles na cidade
demonstra intenso vigor.
99
Na pesquisa sobre catadores de papel em Uberlândia, apontamos que quase todos
os trabalhadores mais velhos, dentre os quais entrevistamos, sobreviviam ou já estavam
envolvidos, de alguma forma, na coleta de certos materiais, como sucatas e ferro velho,
desde a década de 1970. Mesmo hoje, denominados como catadores de papel, alguns
trabalhadores, ao andar por ruas e terrenos baldios dos arredores em que moram, ainda
recolhem diferentes materiais como ferro velho, alumínio, cobre, bronze, baterias e outros
tipos de metal.
100
Assim, esses trabalhadores circulam por quase toda a cidade, nos bairros mais
distantes ou em áreas adjacentes ao centro. Com a desvalorização desse tipo de
material, a maioria dos catadores começou, então, a recolher o papel. Quem andar pelas
ruas do centro, após as 18h, poderá ver os sacos plásticos cheios de papel, ou então, as
caixas de papelão em frente às lojas e bancos. São materiais que permanecem por pouco
99
A reciclagem é o aproveitamento de materiais como papel, plástico, papelão, alumínio, vidro e outros, que são
recolhidos por muitos trabalhadores que sobrevivem coletando esses restos pelas ruas da cidade. Quando repassados aos
compradores, esses materiais são revendidos à indústrias em outras localidades, que realizam novo processo de reciclar,
de transformá-los em novo produto.
100
O valor do quilo do ferro velho no mercado, em 1999, eqüivalia a 0,05 centavos de real, sendo difícil o acesso e a
venda desse material. São diferentes segmentos do comércio do ferro velho. Para o seu reaproveitamento, ao ser
desmanchado, dentre outras coisas, é utilizado para recuperar peças e outros materiais.
83
tempo nas calçadas, tendo em vista que estão sendo cada vez mais disputados pelos
coletores. Ao fazer diariamente determinados percursos, os trabalhadores saem dos
diversos setores e dirigem-se à região central, onde o comércio das lojas, supermercados,
papelarias, escritórios, bares, restaurantes e lanchonetes “facilitam” a aquisição desses
materiais.
A atividade dos coletores torna visível um panorama geral do universo de trabalho e
sobrevivência engendrado pelo comércio de materiais recicláveis em Uberlândia.
Ademais, a ocupação realizada por eles demonstra como algumas transformações
articuladas à problemática do lixo foram gerando novas possibilidades de trabalho, às
quais alguns trabalhadores apelam. Além disso, serve para apontar os circuitos desses
restos na cidade.
Numa pesquisa sobre as experiências dos carroceiros em Uberlândia, nas três
últimas décadas do século XX, Morais discute como uma parcela desses trabalhadores, a
partir da década de 1980, recorre à coleta de materiais recicláveis como alternativa de
sobrevivência. Isso acontece devido às transformações nas atividades de transporte de
pessoas e produtos, entre outras modalidades de prestação de serviços à população
desenvolvidas pelos carroceiros na cidade.
101
Se, por um lado, atividades como transportar pessoas, pequenas mudanças e,
posteriormente, recolher entulhos, indicam as múltiplas possibilidades de serviços
prestados por esses trabalhadores à população, por outro, as transformações na natureza
desse trabalho articulam-se diretamente às mudanças nas formas de produção do lixo na
cidade. Ao serem substituídos pelo transporte rodoviário, muitos carroceiros passaram a
recolher entulho e a coletar materiais recicláveis, o que remete novamente a uma
dimensão do lixo como possibilidade de trabalho.
A exemplo disso, o fato de que o comércio dos restos tem movimentado um
mercado no país. Em Uberlândia, há vários anos, esse mercado é expressivo por seu
volume e sua diversidade. Sobre o desenvolvimento desse ramo de negócios na cidade, o
jornal Correio informa:
101
MORAIS, Sérgio Paulo. Trabalho e Cidade: trajetórias e vivências de carroceiros na cidade de Uberlândia, 1970-
2000. Mestrado em História. UFU: Uberlândia, 2002.
84
Só em Uberlândia, cerca de 500 pessoas estão diretamente envolvidas no comércio de ferro velho.
Do proprietário de pequenas e médias empresas ao mais humilde catador de sucata. O setor se
divide em vários mercados distintos: o comércio de papel e plásticos usados, de sucatas e o mercado
de peças de veículos. De uma maneira geral, as empresas se especializam em um desses setores.
102
Naquele momento, já se percebia a amplitude do mercado de restos em âmbito
local, assim como o envolvimento de diferentes sujeitos. Uma inserção que, na
interpretação do jornal, configurava-se democrática e em condições de igualdade para
todos, fosse um médio empresário ou o “mais humilde catador”.
O que o texto não disse é que a especialização das empresas, a que se refere, pode
ser entendida também como sinônimo de como a indústria da reciclagem vem crescendo
de maneira satisfatória para quem tem recursos para investir. O Sr. Magid Cury é um
médio empresário nesse ramo e contou que trabalha com a comercialização de materiais
recicláveis desde a década de 1960. Inicialmente, sua idéia era ter uma indústria de
transformação de metais, por isso, começou comprando materiais para a indústria, mas
os recursos necessários à fundição eram vultosos, daí ele não levou o projeto adiante
.103
As atividades de empresários como ele demonstram que o lixo na cidade veio sendo
alvo de diferentes propostas. Quando começou em 1963, ele comprava cacos de vidro
para serem revendidos a fábricas em outros estados. Na década de 1970, tinha uma
fábrica de panelas, instalada no mesmo local. Mas atualmente, diz que lida somente com
a compra e revenda de metais e alumínios, que são recolhidos, principalmente, por
coletores.
Ao ouvir o Sr. Magid explicar o funcionamento de seu negócio, consideramos como
esse é um universo de obscuras e interessantes relações. Segundo ele, são diferentes os
processos que envolvem o comércio de materiais recicláveis. Para quem lida com o ferro
velho, este já não é mais tão interessante de comercializar. No que se refere a outros
materiais, o comércio mais lucrativo é o das latinhas de alumínio, por serem muito
valorizadas na indústria e circularem em grande quantidade no mercado, um aspecto
indicativo da relação entre os hábitos de consumo da população e a produção dos restos.
102
No ferro velho nada se cria, tudo se transforma. Correio de Uberlândia, 25 de junho de 1989, p.01.
103
Magid Cury, 55 anos, descendente de pais libaneses, casado, possui 3 filhos, proprietário da empresa Comércio
Metais Tabor Ltda., no Bairro Presidente Roosevelt. Conversa informal com a autora em 29 de Fevereiro de 2000.
85
Em seu depósito, o Sr. Magid compra cerca de 100 toneladas de material por mês,
que chegam por meio de seus fornecedores: as usinas de lixo, as oficinas, pequenos
comerciantes que estão se inserindo no ramo, mas, sobretudo, as mãos dos coletores.
Ele trabalha com mais dez funcionários, todos envolvidos nos vários processos de
organização desses materiais. O depósito ocupa uma área de aproximadamente 9.500m²
e é dividido em duas alas, sendo que numa delas prevalece maior organização, trata-se
do local onde se prensam as latas de alumínio. Quanto à outra ala, na verdade, consiste
num verdadeiro armazém de sucatas, em que se amontoam centenas de panelas velhas,
arames, fios de cobre e outras peças de metal. No lugar, funcionários também trabalham
prensando os metais. O setor das latas de alumínio pode ser visto na fotografia abaixo:
Foto 2. Trabalhadores carregam o alumínio prensado no depósito do Sr. Magid. Embaixo da cobertura, há um caminhão
no qual o empresário transporta o material para as indústrias. Fotografia tirada pela pesquisadora em fevereiro de 2004.
Segundo o empresário, o volume das latinhas diminui um pouco na época do frio,
acompanhando o movimento do consumo da população. O valor do dólar define o valor
do quilo do alumínio; se está alto, crescem as exportações e, conseqüentemente, há um
aumento no valor do alumínio internamente. O Sr. Magid explicou ainda que não é
86
interessante acumular os materiais, uma vez que o preço oscila muito. Quando
perguntamos se a concorrência era grande, a resposta foi afirmativa. Ele definiu a
indústria da reciclagem como um negócio lucrativo e também como uma “máfia”, em que
só permanece quem pode mais.
104
A acirrada disputa que se estabelece no comércio dos restos pode ser vislumbrada
na avaliação que o Sr. José Antônio da Silva, um coletor de papel, faz acerca da trajetória
do Butelão, empresa atuante na compra de recicláveis em Uberlândia há anos:
O Butelão tem mais de 30 anos que ele se estabeleceu com o papelão. ...Há 3 anos atrás aqui em
Uberlândia, tinha 3 depósito de papelão grande como o Butelão. Na época, o papelão chegou a 13
centavos o kg, porque tinha concorrente né? E se pagava menos, a gente ia vender pro outro que
paga mais. Aí aquele que pagava menos aumentava e aí ficou nessa guerra e tal. Só que, o Butelão
já tem muitos anos que trabalha aqui. Tem uma estrutura melhor, aumentô. Daí aumentando o preço,
daí que os otro não conseguiro, não aguentaro pagá o que ele tava pagano e fecharo as porta. Aí ele
baixô e hoje tá 4 centavo. É só ele que compra põe o preço, tem que vender pra ele... De certa forma,
ele tá explorando a gente, podia pagar bem melhor, porque se ele chegou a pagar 13 centavos e
continuava tendo lucro ele podia pelo menos uma média de 8 né? Continuava tendo lucro e a gente
ganhano um pouquinho mais.
105
Esse depoimento é elucidativo da atuação dos sujeitos envolvidos no comércio de
materiais recicláveis e de certos aspectos da vida na cidade. Sua fala mostrou, sobretudo,
a consciência que esse trabalhador tem da exploração a que estão submetidos os
catadores. Em sua explicação, o empresário comprador de papel é alguém que detém um
certo capital que lhe possibilita sustentar e eliminar a concorrência de outros
104
Observa-se que, atualmente, os pequenos comerciantes (sucateiros) que se inserem no mercado de recicláveis
começam revendendo os materiais que compram dos catadores dos bairros mais distantes a empresários como o Sr.
Magid, que já estão consolidados neste ramo. Para esses coletores, torna-se difícil trazer os materiais até um local mais
central, se residem num bairro localizado em um setor que, além de distante, é diametralmente oposto ao local do
depósito. Daí, configura-se uma verdadeira rede de atravessadores, na qual esses trabalhadores são extremamente
explorados. Sobre as relações entre catadores e sucateiros, Amilton de Souza reflete como ambos estão inseridos no
mercado do lixo, constituindo importante elemento de sua sustentação. Cumprem, porém, papéis diferenciados nesse
universo. Se os catadores começam a atuar nesse ramo devido à precarização das condições de trabalho, os sucateiros
representam justamente o elemento de ligação entre os trabalhadores e as indústrias, que conseguem obter significativos
lucros em detrimento daqueles que buscam sobreviver recolhendo restos pelas ruas da cidade. SOUZA, José Amilton de
Catadores/carrinheiros (as): imagens e diálogos com os territórios cotidianos da cidade de Santo André.
105
José Antônio da Silva, catador de papel, 45 anos, natural de Currais Novos-RN. Saiu de casa aos 15 anos de idade,
viajou por vários estados, Goiás, Mato Grosso, Pará e Minas Gerais. Ao longo de sua vida, trabalhou na roça e também
como ajudante na construção civil. Residindo em Araguari, tendo ficado desempregado, começou a coletar sucata na
rua e ao vir para Uberlândia, há mais de dez anos, estando na mesma situação, começou a catar papel. Entrevista
realizada em 07 de Março de 1999.
87
compradores. Ele também se revela consciente de que para o empresário, bem sucedido
por ter se sobressaído nesse ramo, há melhores condições de definir as normas para a
comercialização do papel. Desse modo, o relato do Sr. José Antônio expõe não apenas
alguns mecanismos do mercado dos restos, como também situações de classe e
diferenças de oportunidades na cidade.
No que se refere ao comércio de papel e papelão, o Butelão é a única empresa que
compra esse material em grande quantidade. Existem outras empresas, mas somente ele
compra o papel durante todo o ano e em maior volume. As outras empresas compram o
papelão somente para suprir pequenas necessidades, como o Café Estância, que troca o
papelão por suas embalagens. Além do mais, esse parece ser, ao menos no âmbito local,
um mercado um tanto incerto em que alguns pequenos empresários atuam
esporadicamente. Ao passo que o Butelão conseguiu firmar-se na cidade há vários anos
e, hoje, conta com estrutura para comprar, acumular e revender o papel.
106
No início dos anos de 1980, o Butelão lidava também com o comércio de cacos de
vidro, conforme relatou o Sr. José Francisco. Em 1988, segundo uma reportagem
publicada no Correio de Uberlândia, a empresa comprava e revendia “desde o mais
simples retalho de papel até os especiais como listagem de bancos e papéis de cigarro”.
A maneira como o jornal dá visibilidade à atuação desse empresário transparece nesta
notícia:
... O Butelão revende seu estoque para indústrias de papéis por todo o país ... Em matéria de
plásticos, a empresa compra 40% do mercado Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – e sua revenda
também é a nível nacional. Atualmente, contando com 20 funcionários diretos, o Butelão, empresa
que pagou 2 milhões de cruzados de ICM no último mês, comercializa indiretamente com mais de 600
catadores de papéis – denominados de “profissionais do lixo”.
107
Nota-se como o texto enfatiza a idéia de que a empresa tem uma grande atuação
nesse mercado local, ainda em constituição. O Butelão é apresentado pelo jornal como
um empreendimento que paga impostos e gera empregos, oferecendo oportunidade de
trabalho aos catadores.
Na abordagem do jornal sobre as atividades dessa empresa, cujo proprietário
aparece como um grande empreendedor, evidenciou-se um processo em que os restos
106
Butelão Comércio de Papéis e Sucata Ltda.
88
estavam constituindo um negócio na cidade. Ao ressaltar isso como tendo um caráter tão
positivo, podemos perceber o jornal atuando/intervindo ao dar visibilidade a essa
dimensão da vida e do trabalho urbanos. O que expressa também outras dimensões dos
restos na cidade, que, para alguns, configurava um modo de sobrevivência, já para
outros, possibilidade de lucro. Nesse comércio, enquanto uns se consolidavam como
empresários, outros continuavam tentando garantir a subsistência.
Em sua entrevista, o Sr. José Francisco referiu-se às origens do Sr. Élvio Prado, o
dono do Butelão. Ele contou lembrar-se da época em que o empresário recolhia o lixo na
Companhia Souza Cruz e que esta foi-lhe uma excelente oportunidade, pois, ao retirar os
refugos do espaço da fábrica, havia sobras de cigarro que o empresário também revendia
em pequenos bares e mercearias. Segundo o Sr. José Francisco, com oportunidades
assim, seria fácil sobressair. Nessa narrativa, sua intenção é justamente mostrar a
diferença de oportunidades e de classes na cidade, pois, enquanto ele continuou
trabalhador, o Sr. Élvio Prado afirmou-se como empresário.
Falamos anteriormente sobre o Sr. Magid Cury, também um empresário no mercado
dos restos. Sua trajetória, e a do Sr. Élvio Prado, ilustra a dinâmica e as mudanças em
torno desse comércio. Em 1988, o Butelão tinha seu estoque abastecido por “90% das
empresas de Uberlândia e região”. Já possuía três galpões na BR-050 e um depósito de
quatro mil metros no setor industrial. Em seu depósito, o papel era recebido, pesado e
prensado em até quinhentos quilos. Naquela ocasião, o Correio publicou uma notícia
sobre a empresa: falando sobre suas atividades ao jornal, o empresário acentuou como o
comércio do papel parecia ser de grande importância para a manutenção de seu negócio.
Comentou que, à “época do Plano Cruzado”, ele conseguiu exportar papel para outros
países, como Argentina e Venezuela, e que, à medida que “o poder aquisitivo do povo
aumenta, há um maior consumo de papéis” e para ele, “que vive do lixo”, isso era garantia
de aumentar os estoques e os lucros. Nessa mesma reportagem, entretanto, mencionou
que o mais lucrativo era a revenda de plásticos. Seja como for, o Sr. Élvio Prado investia
no comércio de vários produtos; vidro, papéis de cigarro, plásticos e todos os tipos de
papel. Talvez porque houvesse uma procura pelos diversos tipos de matéria prima para a
107
O lixo de todo o dia vira o sustento de muita gente. (O outro lado da história). Correio de Uberlândia, 06 de
novembro de 1988, p. 14.
89
indústria de reciclagem. Enquanto comercializava vários produtos, ao mesmo tempo, o
empresário tentava se acertar no que fosse “mais lucrativo”.
A existência de uma empresa como o Butelão, com sua capacidade de atuação, já
em 1988, é um elemento revelador da expansão do comércio dos restos na cidade.
Também demonstra como, naquele período, o Butelão já havia se consolidado como
referência na comercialização de materiais recicláveis em Uberlândia e na região. Nos
dias de hoje, essa empresa tem suas atividades centralizadas no comércio de papel.
Curioso observar como as investidas do empresário faziam sentido no contexto de
algumas transformações no mercado dos restos na cidade. Essas mudanças se
evidenciam, outra vez, nos anúncios:
Casa da Garrafa.
Compra e vende todo tipo de garrafas e litros. Rua: Itumbiara, 339. Fone: 235-7735.
Paga o melhor preço da praça.
108
O estabelecimento responsável por tal anúncio, a “Casa da Garrafa”, exercia suas
atividades no mesmo endereço há várias décadas, porém, 1992 foi o último ano em que
os jornais pesquisados divulgaram o comércio desses produtos. O anúncio acima foi
publicado no Guia Sei, uma publicação semelhante à lista telefônica, com mais
propagandas. Já no jornal Correio do Triângulo, nessa mesma data, encontrava-se um
tipo diferente de anúncio, indicativo das mudanças em curso no comércio dos restos:
Compra-se:
Sucatas de plásticos, sacarias vazias de adubo e lonas pretas. Tratar com Rosângela. Fone: (034)
238-5159.
109
Na verdade, os anúncios apregoados nos jornais se modificaram, o que sinalizava
algumas transformações na natureza dos restos comercializados. A exemplo disso, o fato
de que posteriormente não se publicam mais anúncios para a compra de garrafas,
garrafões e vasilhames, uma amostra de que a procura por tais produtos tenha talvez
diminuído. Afinal, começava a ganhar força o comércio de outros materiais para a
indústria da reciclagem, como o plástico, em suas várias modalidades. Essas
modificações também expressavam e se articulavam às novas maneiras como as
108
In. Guia Sei. Anúncios, p. 07. Uberlândia: Sabe, 1992.
109
Correio do Triângulo, 04 de julho de 1992, n. 15.982, p. 10.
90
pessoas começaram a se abastecer na cidade, ou seja, modificavam-se os hábitos de
consumo e a população passava a adquirir, com maior freqüência, produtos
industrializados, agora contidos em embalagens de plástico.
Talvez possamos dizer que, por essa época, começasse a surgir o encantamento
com a novidade que consistia o uso do plástico. Inúmeros produtos principiariam a ter
suas embalagens confeccionadas em plástico, variando as cores, tamanhos e formatos.
Diversos outros produtos surgiriam, num crescente ciclo de consumo e “desuso”.
Vislumbramos isso claramente quando ficamos atordoados diante dos inúmeros objetos
expostos à venda nas vitrines das lojas, nas ruas e calçadas da maioria das cidades.
110
Sobre a utilidade ou não desse mundo de parafernália que nos é imposto, de
maneira intrigante, o autor Gilles Lipovestsky convida-nos a pensar a respeito da
infinidade de “produtos estudados para não durar”, disponibilizados a todo instante no
mercado, de como são aperfeiçoados para melhor competir e, ironicamente, do modo
como logo se tornam obsoletos. Diante da premissa de que “o novo é superior ao antigo”,
o destino das mercadorias é, quase sempre, um “desuso sistemático”.
111
De fato, nisto consiste uma das grandes contradições de nosso tempo: o trinômio
consumo, desperdício e lixo. O que faremos com tantos restos que produzimos? Se, de
um lado, uma alternativa seria combater o desperdício, de outro, esse é um princípio que
já soa antagônico porque afronta diretamente o paradigma de felicidade humana em
vigor, profundamente enraizado na aspiração de se consumir mais e mais mercadorias.
Assim, determinadas transformações no comércio dos restos, a exemplo do
crescente interesse por materiais como plástico, papel e alumínio, em detrimento das
embalagens de vidro; garrafas, garrafões e vasilhames, já entremostrava o
desenvolvimento desse, cada vez mais, intenso ciclo de consumo e descarte. Sem
dúvida, tal processo pode ser considerado elemento expressivo das mudanças nas
110
Dentre as definições dicionarizadas para o termo substantivo plástico, considero a que o descreve como algo apto a
receber diferentes formas, ou a ser modelado com os dedos, como a mais apropriada para pensarmos sobre os sentidos
das várias possibilidades que a sociedade de consumo encontrou para o uso desse produto. Sobre isso, o autor Roland
Barthes reflete que, “mais do que uma substância, o plástico é a própria idéia de sua transformação infinita, é a
ubiqüidade tornada visível, como o seu nome vulgar o indica; e, por isso mesmo, é considerado uma matéria milagrosa:
o milagre é sempre uma conversão brusca da natureza. O plástico fica inteiramente impregnado desse espanto: é menos
um objeto do que o vestígio de um movimento”. In: BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993,
p. 111-112.
111
LIPOVESTSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 160.
91
formas de consumir, descartar e, consequentemente, na natureza do aproveitamento dos
refugos. O que resultou, ainda, num visível aumento do lixo produzido na cidade.
Como nos dias de hoje, vivemos o império do descartável, a atividade do Sr. José
Francisco, de comprar e revender garrafas, remete-nos a um período em que o descarte
das embalagens dos produtos norteava-se pela idéia de aproveitamento e reutilização,
um tempo em que, ao se adquirir uma certa mercadoria, ainda se trocava o vasilhame no
supermercado, sinal de uma outra forma de reaproveitamento dos restos.
De todo modo, a atividade de catadores de papel como o Sr. José Antônio, de
garrafeiros como o Sr. José Francisco, de sucateiros como o Sr. Magid Cury, de
empresas como o Butelão, e de outras menores existentes em Uberlândia, revelam
algumas dimensões da produção e destino dos restos na cidade, nas quais se envolvem
diferentes sujeitos. Nesse processo, trabalhadores e empresários empreendem uma
disputa pela apropriação dos restos, contribuindo para conferir a eles novos sentidos. À
medida que começam a ser aproveitados como materiais recicláveis, os restos deixam
entrever seu uso empresarial, o que possibilitou, também, a atuação dos coletores.
Uma atuação que precisa ser avaliada, ainda, sob uma outra perspectiva, a de que a
inserção dos trabalhadores no mercado do lixo revelou, sobremaneira, uma precarização
de suas condições de vida e trabalho na cidade. O Sr. José Francisco, por exemplo,
trabalhou durante vários anos na Souza Cruz, a companhia de cigarros que se instalou
em Uberlândia por volta de 1978. Até meados da década de 1990, os trabalhadores
dessa fábrica detinham um certo status, em razão de suas condições de trabalho;
perfaziam uma jornada de seis horas diárias e recebiam salários razoáveis para o
contexto local. Isso nos leva a refletir que, ao perder seu emprego na fábrica e ao recorrer
à coleta de garrafas para sobreviver, o Sr. José Francisco viu-se diante de uma brusca
ruptura em sua vida.
Desse modo, sua experiência tornou-se importante referência para pensarmos
acerca da contradição existente no fato de que, a despeito do expressivo aumento do
consumo da população, nos anos de 1980, isso não significou uma melhoria de vida para
todos os que habitavam na cidade. Ao contrário, para trabalhadores como o Sr. José
Francisco, e muitos outros que passaram a sobreviver da exploração dos restos, essa
92
realidade já se apresentava, lamentavelmente, como um súbito e contínuo “declínio no
padrão de vida”.
112
Entretanto, há, ainda, outras questões sobre a atividade desses trabalhadores que
merecem ser realçadas. Em primeiro lugar, o modo como o trabalho do Sr. José
Francisco e de tantos outros, garrafeiros e catadores de papel, indica um tipo de relação
com o lixo em que esses trabalhadores tornam-se, de certa forma, ambulantes na cidade.
Um elemento que, sem dúvida, muda a relação que esses sujeitos vivenciam com o
trabalho: ao realizarem determinados percursos, traçam certos caminhos e se
familiarizam com os lugares e com seus moradores. Nessa convivência, estabelecem
uma relação de apropriação de espaços na cidade, na qual também constroem diferentes
percepções e saberes, que lhes são extremamente úteis no cotidiano.
Em segundo lugar, entendemos que, nessa atividade de explorar recantos à procura
dos restos da cidade, são os trabalhadores que vão em busca do lixo e, para muitos
deles, há uma visão de que os materiais que recolhem pelas ruas da cidade não podem
ser considerados lixo. Ainda que, por vezes, possam estar em meio a ele. Delineia-se,
nessas relações, a complexidade que marca diferentes percepções sobre os restos, sobre
seu valor, sua utilidade e o que significam as diversas possibilidades de seu uso.
Nessa perspectiva, é possível dizer que os traços que, paulatinamente, definiram o
perfil dessa cidade foram marcados por significativas alterações nas relações vividas no
espaço urbano. Elas carregavam muitas implicações e expressavam, sobretudo,
sensíveis mudanças no comportamento e nos hábitos culturais da população no que se
refere aos restos.
Na verdade, essas relações faziam parte de todo um processo social em que o viver
na cidade começava a demandar maior organização, acarretando, também, a
necessidade de conviver com outros problemas causados pelo acúmulo de vários tipos de
restos produzidos por diferentes sujeitos, em distintos lugares do espaço urbano,
tornando visível um processo em que os serviços limpeza pública passariam a assumir
dimensões cada vez mais complexas.
Com o desenvolvimento urbano, as relações que as pessoas estabeleciam com a
cidade também começava a mudar. Os problemas em torno das condições de limpeza
articulavam-se ao comportamento da população e à questão da especulação imobiliária,
112
THOMPSON, E. P. op. cit., p.184.
93
fatores que contribuíam para aumentar as demandas de capina e limpeza dos terrenos
vazios. Por meio da imprensa e de outros registros, vimos que a presença de mato e de
sujeira nos terrenos baldios exprimia diferentes e conflitantes concepções de limpeza,
traduzindo noções, olhares e expectativas sobre o processo de urbanização da cidade.
As transformações nos hábitos de consumo da população delineavam um mercado
dos restos: o comércio de materiais recicláveis, em que transparecia certas mudanças e
permanências nas formas de produção e aproveitamento dos restos, desvelando como a
cidade se organizava e se transformava com a complexidade da vida urbana.
Nesse processo, a problemática do lixo veio assumindo crescente visibilidade, o lixo
doméstico, os restos da construção civil e o lixo hospitalar, à medida que precisavam ser
gerenciados pela administração pública, representavam vários problemas e, de forma
ambivalente, tornavam-se objeto da elaboração de novos discursos, projetos e interesses,
que revelavam, também, mudanças nas maneiras de ver e agir em relação ao lixo.
Discutir as ingerências que a cidade desenvolve tentando lidar com a diversidade dos
restos é a referência norteadora dos capítulos que se seguem.
CAPÍTULO II
DOS LIXÕES AO ATERRO SANITÁRIO: DESTINOS DO LIXO NA CIDADE
Podemos dizer que, historicamente, os problemas em torno do lixo envolvem
intensas reivindicações, projetos, disputas e conflitos. Como administrar o lixo da cidade?
Nas últimas décadas, essa questão começou a trazer grandes dificuldades ao poder
público, definindo a necessidade de ampliar a prestação de serviços de limpeza pública à
população. Sua complexidade mostrou também que, no processo de gerenciamento do
lixo na cidade, imbricam-se ações e interesses de vários outros sujeitos, como empresas,
moradores e trabalhadores que sobrevivem da exploração dos restos.
Neste capítulo, buscamos discutir a gestão do lixo pelo poder público. A
responsabilidade legal pelo gerenciamento do lixo cabe à prefeitura, no entanto, essa
problemática ultrapassa a esfera dos serviços de limpeza pública. As condições e a
extensão dos serviços municipais revelam carências e falta de estrutura para lidar com a
coleta, o transporte e o destino final do lixo. Ao mesmo tempo, demonstram o surgimento
de novos e variados empreendimentos, apontados como solução para o problema.
Nesse cenário, ainda há os conflitos com a população: se, por um lado, muitos
depositam lixo nos terrenos baldios, outros reclamam das ruas sujas, da coleta deficiente
e dos lixões que são vistos como comprometedores da higiene e da saúde pública. A
análise do lixo evidencia em que dimensões esses problemas vêm sendo enfrentados no
processo de urbanização, ou seja, suas influências na organização da vida na cidade.
Uma reflexão que nos remete a um debate sobre algumas implicações entre o destino do
lixo e sua relação com certas divisões hierárquicas e sociais que se estabelecem no
espaço urbano.
A discussão acerca de dois tipos específicos de lixo, o lixo doméstico e o entulho,
que iam assumindo expressiva visibilidade na imprensa local, pode nos auxiliar a elucidar
95
modos de destino, problemas provocados e implicações trazidas para a vida urbana.
Como se gerenciava, onde se desembocava, quais os conflitos e disputas intrínsecos aos
projetos que ambicionavam dar conta do lixo da cidade? Perguntas que nos levaram a
discutir os circuitos do lixo que se produzia, desde a coleta, transporte, tratamento, até o
destino final. Responder tais indagações foi perseguir algumas trilhas que pudessem
apontar como ao problema do lixo articulavam-se e tensionavam interesses de vários
setores da população; o poder público, moradores e, posteriormente, algumas empresas.
Uma característica de Uberlândia, e de outras cidades, é o fato de que as iniciativas
do poder público com o intuito de solucionar a questão do lixo nem sempre se revelaram
eficazes. No que se refere aos bairros da periferia, por vezes, foram considerados
espaços mais apropriados para descartar os restos dos quais a cidade queria se ver livre.
Razão para serem destinados nos lugares mais distantes, ainda que próximos aos
moradores dessas localidades. Aspectos evidenciados nas reclamações dos moradores
de bairros mais longínquos, sinais de que a presença do lixo em certos espaços
desenhava uma cartografia política e social no espaço urbano.
O que serviu para mostrar, também, as articulações existentes entre as reclamações
e as iniciativas da administração pública. No processo de investigação, percebemos que
as queixas da população iam tornando-se cada vez mais freqüentes, sobretudo, a partir
de meados da década de 1980, e que elas, certamente, influenciaram nas alternativas
que as administrações locais buscaram encontrar para o problema.
A documentação analisada deixou entrever uma cidade em que o lixo doméstico
começava a engendrar vários conflitos. As soluções propostas para lidar com isso nem
sempre se mostravam adequadas. As questões em torno dos lixões e dos aterros
sanitários eram expressivas de tais relações. A denominação de aterro sanitário já se
encontra presente na documentação desde 1984. Porém, do final dessa década até o ano
de 1997, o que realmente havia eram depósitos, que recebiam quase todo tipo de lixo,
enterrado sem critério algum de separação.
1
Elementos dessa natureza levaram-nos a fixar o olhar sobre o aterro sanitário, como
um meio de avaliar de que maneira o lixo foi sendo tratado na cidade, como isso se
1
De acordo com a literatura sobre o assunto, falar em aterro sanitário implica pensar em formas de tratamento do lixo,
em estudos específicos para o espaço, o terreno e o tipo de lixo a ser ali depositado. Um aterro sanitário demanda
planejamento quanto à sua implantação, manutenção e precauções com relação ao seu tempo de vida útil. Além disso, é
preciso permanente cuidado com o líquido contaminado e com a eliminação do gás que exalam os restos.
96
articulava a projetos, interesses e conflitos entre diferentes sujeitos. As relações em torno
do lixo traduziram não apenas como se deram, mas também a intensidade dessas
disputas.
Na história do lixo na cidade, os restos de atividades da construção civil não eram
levados ao aterro sanitário e, desse modo, qualquer lugar parecia ser apropriado para
destiná-los. Algumas transformações apontam a crescente produção desses refugos e as
conseqüências disso para a vida urbana. Os primeiros indícios de que tais restos
começavam a destoar em certos espaço podem ser vislumbrados em um ofício de
Marcelino Tavares, um vereador, que, em 1981, solicitou ao prefeito:
... enérgicas providências, junto ao órgão responsável pela fiscalização das ruas de nossa cidade,
principalmente nas vias do centro, como é o caso da Av. João Naves de Ávila, onde, num total
desrespeito à fiscalização, sua pista central está sendo utilizada como verdadeiro depósito de (...)
material de construção por parte de seus próprios moradores, fato que prejudica aos demais ...
2
Retratando alguns aspectos do viver urbano, esse documento fez uma alusão
pontual a certos locais da cidade e ao modo como eram apropriados por alguns
moradores. Deixou entrever as limitações das autoridades para controlar o despejo dos
restos de construção em vias públicas. Neste caso, nas proximidades da Avenida João
Naves de Ávila, atualmente importante ponto da região central.
Essa avenida permite o acesso ao Centro Administrativo, à Universidade e a outros
locais estratégicos. Ao longo de um trecho dessa via, há também muitas casas de
materiais de construção, o que significou, durante algum tempo, possibilidade de trabalho
a uma parcela dos carroceiros na cidade.
Além disso, a construção de edifícios, residências e conjuntos habitacionais, nas
imediações, provocou uma expansão daquele setor da cidade (leste) e, certamente,
contribuiu para o aumento dos resíduos de material de construção ali despejados. Isso
explica a descrição da Avenida João Naves de Ávila como um “verdadeiro depósito”.
Segundo o vereador, a presença desses restos comprometia a expectativa dos “demais
moradores” de que as ruas do centro deveriam estar limpas e desimpedidas.
Assim, no início dos anos de 1980, a cidade já se via diante do problema do
acúmulo de restos de materiais de construção nos terrenos baldios. Uma forma de
2
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Requerimentos, n. 442, junho a dezembro de 1981, n. 36.
97
destiná-los que deixava entrever certos aspectos do comportamento da população. Em
1983, o Secretário de Serviços Urbanos declarou que a prefeitura tinha muitas
dificuldades para controlar a situação, pois faltavam, inclusive, argumentos legais para
evitar que as pessoas despejassem tais refugos em lotes vagos. Existia uma profusão de
terrenos, nessas condições, em diversos setores de Uberlândia. A administração poderia
exigir que os proprietários os cercassem, porém, freqüentemente, nem isso era feito. A
legislação vigente, ainda de 1967, não considerava “infração alguém jogar lixo em áreas
privadas” e, talvez por isso, tal prática se perpetuava.
Mas, em meados de 1987, uma notícia no jornal O Triângulo dá-nos uma mostra de
como a questão do entulho começou a ser encarada pelos legisladores.
O vereador João Eduardo Mascia (PMDB), em indicação enviada a mesa diretora da Câmara
Municipal de Uberlândia, solicitou envio de ofício ao Prefeito Zaire Rezende, para que o mesmo
determine à Secretaria Municipal de Serviços Urbanos a remoção de entulho existente na rua Alaska,
no bairro Tibery, assim como em várias outras vias públicas do mesmo bairro. João Eduardo Mascia,
no mesmo ofício, solicita à divisão de limpeza urbana que faça também uma larga campanha de
conscientização daquela comunidade, no sentido de evitar que tal fato se repita. Mascia explicou que
“trata-se de um mau hábito que tem conseqüências graves para a saúde dos vizinhos”...
3
Inferimos como o problema do entulho vinha tornando-se comum em certos lugares
da cidade. Em documento enviado à Câmara Municipal, o vereador assegurou que o
entulho podia ser visto em várias ruas do Tibery, e que despejá-lo em terrenos baldios
consistia num “mau hábito” de alguns moradores, cujo comportamento é apontado como
prejudicial à saúde da vizinhança. Nessa relação, notamos como o jornal, fazendo uso
das palavras do vereador, não apenas tece um juízo de valor sobre os hábitos dos
moradores, como pretende sugerir atitudes consideradas mais adequadas.
De todo modo, a referência à necessidade de uma “larga campanha de
conscientização daquela comunidade”, um dever da Secretaria Municipal de Serviços
Urbanos, traduz a percepção de que o despejo de restos de materiais de construção em
terrenos baldios passava a ser, também, um problema de administração pública.
A questão do entulho, acumulado por várias ruas do bairro, parecia indicar
elementos do comportamento da população e do cotidiano citadino. Nessa época, o
3
Limpeza no Tibery. O Triângulo, 12 de agosto de 1987, n. 6.177, p. 05.
98
Tibery, ainda um bairro periférico, era um dos maiores, “mais antigos” e mais populosos
de Uberlândia. Em 1987, contava com uma população de mais de vinte e três mil
pessoas.
4
Nisso assemelhava-se ao Luizote de Freitas, cuja população era estimada em
trinta e cinco mil pessoas”.
5
Neste bairro, o despejo de entulho em certos lugares também
era um estorvo:
A Secretaria Municipal de Serviços Urbanos iniciou esta semana um intensivo trabalho de limpeza...
no Conjunto Luizote de Freitas. Numa ação de conscientização da população a Secretaria de
Serviços Urbanos está orientando os moradores quanto a manutenção da limpeza do bairro,
informando inclusive a localização de áreas reservadas para a colocação de entulhos. Todo este
trabalho... vem dar resposta a uma necessidade premente num dos bairros mais populosos da
cidade.
6
O texto indica como a administração local buscava estabelecer um controle sobre as
atividades dos moradores no que tange ao entulho. Nas colunas do jornal O Triângulo o
problema era abordado com freqüência. As notícias e reclamações apontavam-no em
diversas localidades, evidenciando o crescimento desordenado da cidade. Afinal, durante
o período em estudo, os bairros mais mencionados eram, quase sempre, os mais
distantes da região central, cuja infra-estrutura e falta de equipamentos coletivos
retratavam carência e descaso.
Entretanto, ao mapear essas localidades, deparamos com o fato de que o entulho
não era uma característica apenas da periferia. Ao contrário, podia ser encontrado
também em ruas e bairros próximos ao centro. As páginas de jornais informavam que
mesmo áreas nobres continuavam sendo local de depósito:
O vereador Elias Eurípedes Teixeira pede uma indicação ao prefeito municipal que determine à
secretaria competente a retirada de entulhos depositados na Av. Rio Branco, entre a Rua Geraldo
Moraes até a Av. João Naves de Ávila. Existem no local amontoados de lixo, restos de construção,
etc. ... E acresce ainda que, sendo a pista de mão dupla, os motoristas têm dificuldades para
movimentos e ultrapassagem. Solicita o edil que além da limpeza geral a Secretaria encontre forma
adequada para evitar a repetição do problema.
7
4
Bairro Tibery recebe pavimentação. O Triângulo, 14 de outubro de 1987, n. 6.226, p. 07.
5
O Triângulo, 27 de maio de 1993, n. 8.492, p. 04.
6
Prefeitura realiza trabalhos no Luizote. O Triângulo, 15 de setembro de 1987, n. 6198, p. 04.
7
Retirada de entulhos. O Triângulo, 21de novembro de 1987, n. 6245, p. 05.
99
As ruas relacionadas no texto, embora fizessem parte de uma localização
privilegiada, continham “amontoados de lixo” e restos de construção”. O apelo do
vereador ao prefeito era para que o devido setor da administração não só resolvesse a
questão como também evitasse “a repetição do problema”. O Triângulo continuava
noticiando que o problema persistia, causando muitas reclamações dos moradores.
Procurada por diversos moradores das proximidades da avenida Rondon Pacheco entre as ruas
Niterói e Salvador, Olga Helena da Costa solicitou à Divisão de Limpeza Pública da Secretaria
Municipal de Serviços Urbanos, a retirada de entulho naquela proximidade, por ser uma pista paralela
à Rondon Pacheco que dá acesso à firma COSAG – Materiais de Construções e à Escola de
Educação Física da UFU, cujo fluxo de veículos é bastante considerável.
8
Conforme o texto, a vereadora classificava o despejo de “entulhos em plena via”
como um “total desrespeito”. Além de prejudicar o aspecto da cidade, os restos ali
acumulados impediam “quase que totalmente o trânsito” e dificultava “seriamente o
acesso”. Ainda segundo o jornal, Olga Helena solicitava que se colocassem “placas
proibitivas” para impedir esta prática e que se aplicassem “punições aos infratores”.
9
Sugerimos, então, que, nesses lugares, a presença de tais restos era encarada com
menor tolerância. Situações emblemáticas de que o entulho era avaliado como um fator
de sujeira, que comprometia a limpeza e o fluxo de passagem urbanos. Percebemos que
o jornal, nas constantes notícias acerca do problema, quando o identifica e o localiza,
percorre certa geografia da cidade. Ao fazê-lo, deixa transparecer certa idealização do
viver urbano, que se traduz na sugestão de hábitos e comportamentos considerados mais
apropriados.
A maneira como os vereadores solicitavam à “secretaria competente” para
providenciar a retirada do entulho, e encontrar meios para evitar novas ocorrências,
mostra que esse problema ganhava nova configuração. Indica, ainda, a forma como a
administração local, pela freqüência com que o entulho começava a ser despejado
também em áreas públicas, era interpelada a regulamentar sua produção e destino.
Diante das exigências para lidar com a crescente produção desses restos e os
transtornos que geravam, a prefeitura deu início a um conjunto de medidas que pretendia
8
O trabalho de Olga Helena na Câmara, Atendimento a moradores. O Triângulo, 25 de novembro de 1988, n.
7.171, p. 05.
100
amenizar a situação. No ano de 1987, ela implantou o chamado “mutirão de limpeza”, um
programa que pretendia sanear a cidade:
O mutirão de limpeza, nesta primeira etapa, está sendo realizado nos bairros Jardim Brasília e Daniel
Fonseca, com serviços de retirada de entulho de terrenos baldios. ... Nestes mesmos locais, iniciam-
se na próxima semana ... uma ação educativa, através de distribuição de impressos e diálogo direto
com os moradores buscando uma conscientização para os graves problemas de lixo depositado em
lotes vagos.
10
Dentre as estratégias desse programa, falava-se de “uma ação educativa”, mediante
a distribuição de impressos, e de diálogo direto com os moradores, buscando uma
conscientização” para o problema do entulho em terrenos vagos. Uma das formas do
“mutirão de limpeza” limpar a cidade era educar a população. As ações da campanha
destacam-se pela maneira como o poder público mobilizava recursos da máquina
administrativa na tentativa de amenizar a questão, um sinal das proporções que ela
assumia. Dando continuidade a essas políticas, criaram-se, em 1988, os depósitos:
De acordo com o secretário, é pretensão dos órgãos envolvidos no mutirão, o estabelecimento de um
local em cada bairro para o despejo de entulhos. Ele acredita que assim a Prefeitura estará
solucionando um dos mais sérios problemas da cidade: o de lixo e entulhos em terrenos baldios. Pela
proposta, periodicamente, a Prefeitura mandaria máquinas e caminhões ao local previamente
estabelecido para o recolhimento do material, com o que acredita-se, será possível manter a cidade
permanentemente limpa.
11
Nesses lugares, os moradores poderiam despejar esse tipo de lixo, porque a
prefeitura “mandaria máquinas e caminhões” a fim de transportá-lo. Com isso, o poder
público convidava a população a destinar o entulho nos locais pertinentes:
Para evitar que os entulhos voltem a se acumular nos quintais das casas ... foram criados depósitos,
localizados nos próprios bairros, adaptados para o recolhimento destes materiais. Desta forma, torna-
se fácil para os moradores, após a poda do jardim ou a limpeza do quintal, transportar os entulhos
para o depósito, mantendo suas casas limpas e colaborando para a preservação do meio ambiente.
12
9
Idem.
10
Começa a limpeza em bairros da cidade. O trabalho de limpeza deverá durar cerca de 60 dias. O Triângulo, 10
de abril de 1987, n. 6.094, p. 05.
11
Bairros terão mutirão de limpeza. O Triângulo, 02 de agosto de 1988, n. 7.104, p. 01.
12
Modificação na coleta de lixo. O Triângulo, 25 de agosto de 1988, n. 7.120, p. 01.
101
Vale notar como, inicialmente, a própria definição de entulho era bastante ampla,
incluindo tudo o que parecia ser considerado inútil: restos de “poda do jardim”, “da
limpeza do quintal”, refugos como pneus, vidros ou garrafas. Por isso, a prefeitura havia
adaptado os depósitos não apenas para o despejo dele, mas, inclusive, para o de outros
“materiais”. Residem aí dois elementos interessantes: primeiro, a ingerência do poder
público na definição do que seria útil ou inútil para os moradores, e, segundo, que isso
revela, ainda, uma noção do problema muito própria daquele contexto, em que ainda não
era perceptível uma configuração ou definição mais clara do que era o entulho
efetivamente. Tempos depois, já na década de 1990, via-se como inconveniente as
pessoas jogarem outros tipos de lixo junto a esses resíduos. Assim, eles tornaram-se alvo
de várias políticas públicas, propagadas pelos jornais.
Quem não tem em casa ou no quintal um monte de lixo ou entulhos, ou mesmo coisas inúteis que vão
se acumulando, e não encontra um tempo para livrar-se delas? Em Uberlândia, especialmente nos
bairros periféricos e conjuntos habitacionais, onde as construções e reformas são constantes, é
grande a quantidade de entulhos nos quintais. E foi justamente com o objetivo de livrar os moradores
destes incômodos inquilinos, que a Divisão de Limpeza Urbana da Secretaria Municipal de Serviços
Urbanos, elaborou e está executando o “mutirão de limpeza” nos bairros.
13
Com esse projeto, instituiu-se a coleta nos bairros. A idéia de reservar espaços
específicos para o depósito desses materiais trouxe implicações interessantes. Se os
moradores, ao construírem ou reformarem suas casas, jogavam restos de construções
em terrenos vagos, então, era preciso normatizar tal prática. Não se pode deixar de
observar aqui como O Triângulo parece constituir um aliado do poder público nessa
tarefa. Um aspecto curioso do olhar desse periódico, sobre a questão do entulho, é que,
ao noticiar as atividades da prefeitura, parece valorizar a idéia de uma cidade limpa e
urbanizada, enfatizando que o cuidado com a limpeza assegurava à população “bem-
estar e segurança”.
14
Ao fazer tais associações, o jornal reforçava certos valores em torno
da idéia de limpeza e urbanização como sinônimo de melhoria e progresso. Nessa
tentativa de educar a população, alertava que o cuidado com o lixo evitaria riscos à saúde
13
Mutirão da limpeza continua nos bairros. O Triângulo, 20 de agosto de 1988, n. 7.117, p. 05.
14
Bairros terão mutirão de limpeza. O Triângulo, 02 de agosto de 1988, n. 7.104, p. 01.
102
e colaboraria “para a preservação do meio ambiente”. Isso deixa entrever uma outra
construção simbólica do jornal: delineia-se aí uma referência de cidadania.
15
No intuito de estabelecer códigos de comportamento para a população, buscava-se
definir normas para o descarte do entulho:
Dentre os serviços a serem prestados durante a execução do mutirão está o recolhimento de entulhos
em vias públicas e terrenos baldios, conscientização da comunidade e fixação de placas educativas
nos principais focos de lixo e entulho, definição, demarcação e divulgação de locais apropriados para
o despejo e o recolhimento de entulhos ...
16
As tentativas dessa administração para lidar com a desparamentada prática de
despejo do entulho ensaiaram-se quando se tentou criar um imposto diferenciado para os
terrenos vagos, taxando-os com tributos mais elevados. Uma proposta que visava
desestimular a especulação imobiliária e reduzir o número de terrenos desocupados.
Entretanto, no que tange a ambos os problemas, essa medida se revelou ineficiente.
17
Isso ocorreu também quando se pretendeu fazer alterações no Código Municipal de
Postura de 1967, com essa legislação passando a conter novas determinações sobre a
conservação da limpeza urbana:
Capítulo II.
Art. 4º Para preservar a estética e a higiene pública fica terminantemente proibido:
III – aterrar vias públicas, quintais e terrenos com lixo, materiais velhos ou quaisquer detritos,
excetuando-se os aterros executados pela Prefeitura;
18
Com as reformulações de 1988, o Código Municipal de Postura, em sua primeira
parte, ao tratar da Higiene Pública, “procura regulamentar o comportamento dos cidadãos
tanto no que diz respeito à conservação da limpeza urbana, do lixo, como também da
utilização da vias públicas e dos terrenos sem construções”.
19
Essa legislação passava,
então, a definir o despejo de entulhos em terrenos baldios como infração. Porém, isso não
acarretou muitas mudanças, e essa prática manteve-se, revelando um distanciamento
entre as normas e a realidade cotidiana, como se fosse outra cidade que pudesse ser
vislumbrada por trás do aspecto formal, político e institucional da legislação que pretendia
15
Modificação na coleta de lixo. O Triângulo, 25 de agosto de 1988, n. 7.120, p. 01
16
Idem.
17
MORAIS, Sérgio Paulo. Trabalho e Cidade: trajetórias e vivências de carroceiros na cidade. op. cit. p.49.
18
Lei 4.744 de 05 de julho de 1988, que institui o Código Municipal de Posturas.
19
Câmara aprova no código de posturas. O Triângulo, 23 de junho de 1988, n. 7.077, p. 03.
103
regulamentá-la. Espelha-se aqui a ambigüidade entre a cidade fruto de um imaginário,
impregnado por noções de ordem, harmonia e limpeza, e a cidade real, que se institui
com a prática cotidiana de seus habitantes, suas contradições e conflitos.
Todavia, os registros na imprensa sobre a “operação limpeza”, dos anos de 1987 e
1988, dão-nos a impressão de que uma verdadeira transformação estaria ocorrendo na
cidade. O Triângulo informava que vários serviços estavam sendo executados nos
bairros, conforme um cronograma estabelecido pela prefeitura, e que poderiam ser
solicitados pelos moradores por meio do SIM, Serviço de Informação Municipal. O trajeto
da Secretaria de Serviços Urbanos para executar os serviços era um mapeamento dos
espaços de incidência de entulho na cidade.
Os próximos bairros pelos quais vai passar o mutirão de limpeza serão: Dona Zulmira, Taiaman,
Santa Rosa, Liberdade, Gramado, Cruzeiro do Sul, Segismundo Pereira e Santa Luzia. Depois será a
vez dos bairros de pequeno e médio porte adjacentes ao centro da cidade.
20
De acordo com esse roteiro, o programa de limpeza atingiria tanto os bairros
grandes e distantes quanto os “de pequeno e médio porte adjacentes ao centro”. Isso
revela que o entulho era problema a atingir “diferentes pontos da cidade”, que afetava não
somente as áreas periféricas, mas toda a cidade.
21
As atividades desenvolvidas pelo programa eram atribuições de vários órgãos,
22
dentre eles, a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos. Criada em 1977, esta Secretaria
era, durante a década de 1980, responsável por diversos serviços na cidade, como
Trânsito e Transportes, Obras e Limpeza Urbana. À medida que a complexidade desses
setores começava a demandar maiores exigências, desmembrou-se esta Secretaria em
Pastas distintas, conferindo maior poder e autonomia a cada uma delas, o que iria
ocorrer, gradativamente, em períodos diferentes. No que se refere à Seção de Limpeza
Pública, fundada em 1978 e ampliada nos anos seguintes, sua obrigação pressupunha o
cuidado com a coleta e a destinação final do lixo, varrição de ruas, capinação e retirada
de entulhos e outros lixos das vias e passeios públicos, e a fiscalização dos serviços de
limpeza urbana. Dessa forma, verificou-se, dentre as transformações no gerenciamento
20
Mutirão da limpeza continua nos bairros. O Triângulo, 20 de agosto de 1988, n. 7.117, p. 05.
21
Limpeza já atinge grande parte da cidade. O Triângulo, 13 de maio de 1987, n. 6.113, p. 05.
22
Quando teve início, em 1987, o programa envolveu vários setores da Administração: a Secretaria de Obras,
Agricultura, Indústria e Comércio, Administração, Meio Ambiente e Saúde, assim como o DMAE – Departamento
104
do lixo, ao longo dos anos, uma crescente especialização das áreas responsáveis, que,
por sua vez, passavam também a contar com vários conhecimentos.
23
Em fins de 1980, vê-se, nos jornais, crescente notoriedade da Secretaria de Serviços
Urbanos. Por certo, devido à amplitude de sua atuação, mas também por influência dos
programas de limpeza e das campanhas educativas, que demandavam crescentes
intervenções na cidade.
24
Talvez pelo fato de implicar uma atuação política expressiva e,
por isso mesmo, delicada, essa Secretaria somava mais de três Secretários ao longo da
administração Zaire Rezende. Interessante como isso serve para acentuar a maneira pela
qual o lixo colocava-se na ordem do dia e impunha-se como importante questão política
na agenda do poder público.
25
Os mutirões de limpeza nos bairros eram uma maneira de a administração mostrar
desempenho, consistindo numa interessante estratégia do ponto de vista eleitoral. No ano
de 1988, quando das eleições para prefeito, a iniciativa de recolher entulhos nos bairros
da cidade, e outras ações que a envolviam, constituíam uma forma de o poder público dar
respostas à população que, por meio da imprensa, há muito já reclamava desse
problema.
Ainda assim, a leitura de algumas fontes nos permite inferir que o programa de
limpeza foi uma das primeiras iniciativas tomadas, dentro do período em estudo, para
confrontar diretamente o problema do entulho em Uberlândia. Daí em diante, o poder
público passou a assumir o papel de legislar e fiscalizar mais ativamente as ações dos
moradores no que se referia a esses restos. O acúmulo de entulho em terrenos vagos era
uma situação que começava a exigir dos órgãos municipais maior rigor na observação
das normas sobre o assunto. Mas, como o controle e a fiscalização não eram eficazes,
tornava-se também um elemento revelador do comportamento da população.
Municipal de água e esgoto e a FUTEL. Começa a limpeza em bairros da cidade. O trabalho de limpeza deverá
durar cerca de 60 dias. O Triângulo, 10 de abril de 1987, n. 6.094, p. 05.
23
Durante os anos de 1983-1988, modificou-se a estrutura administrativa existente, de maneira a criar várias seções na
Secretaria de Serviços Urbanos, sob a coordenação da Divisão de Limpeza Urbana, tais como a Seção de Coleta e
Destinação Final do Lixo, Varrição, Capina e Fiscalização de Limpeza Urbana. Ver: MARTINS, Hilda dos Reis. O lixo
urbano em Uberlândia: a limpeza da “cidade jardim”, op. cit., p. 19.
24
Teria sido muito frutífero explorar um pouco mais as campanhas educativas, o que não foi possível em razão da
ausência de materiais e informações sobre elas, os quais não foram devidamente preservados ao longo das
administrações.
25
A Secretaria de Serviços Urbanos durante a gestão Zaire Rezende foi coordenada pelos seguintes Secretários: Em
1983 – Paulo Roberto Franco de Andrade. Em 1986 – Ilvio Annio Andrade, 1987 - José Antônio de Souza, que, em
1988, deixou o cargo para candidatar-se a vereador pelo PMDB, e com isso assumiu Alcides Mello.
105
Se, por um lado, os registros na imprensa propagam que as administrações se
empenharam em manter a cidade limpa, destinando para isso expressivos recursos,
adquirindo máquinas e expandindo a estrutura das secretarias responsáveis, por outro,
noticiam também que a população continuava a reclamar da presença dos entulhos nos
terrenos baldios, e que, mesmo os mutirões tendo sido uma prática contínua nas décadas
de 1980 e 1990, o problema ainda persistia.
Em contrapartida, a cidade continuava expandindo-se, conforme um relatório de
prefeito da administração de 1993, que mencionava a construção de vinte e três conjuntos
habitacionais durante essa década.
26
Com isso, a cidade alargava, cada vez mais, suas
áreas periféricas. A implantação de novos loteamentos tornava-se uma prática comum, o
que motivava as pessoas a adquirir um terreno e a erguerem sua própria casa. Esse
processo, denominado de autoconstrução, ocorria com freqüência nos bairros cuja
populaçãoo teria condições de financiar um imóvel. Muitos desses loteamentos eram
implantados próximos a conjuntos habitacionais já existentes, contribuindo para a sua
expansão. Dentre os loteamentos, inaugurados durante a década de 1990, estão o
Aclimação, Maravilha, Canaã, Dom Almir, Seringueiras e São Jorge. Devido à falta de
infra-estrutura e às dificuldades de construir com poucos recursos, os moradores
destinavam os restos de construção nos terrenos baldios ou nos espaços vazios nos
arredores do bairro, o que fez com que isso se tornasse uma prática constante ao longo
dos últimos anos.
Dessa forma, o forte movimento de construções intensificava o problema do entulho
sem destino certo. A administração Virgílio Galassi, em 1989, afirmava estar “melhorando
a limpeza urbana da cidade”. O secretário Adalberto Duarte assegurava que determinaria
“rigorosas medidas” para sanar o problema, porém, seu apelo à população demonstrava
que a questão estava longe de ser resolvida:
27
“_ Faço um apelo a população no sentido de contar com a colaboração de todos. Não compete a
população tão somente as cobranças da melhoria dos serviços, mas também a compreensão, não
jogando entulhos em terrenos baldios”, disse Adalberto argumentando que é responsabilidade dos
proprietários de imóveis vagos a limpeza das áreas e não da Prefeitura.
28
26
Balanço da Administração Municipal, 1993-1996, p. 40. Arquivo Público Municipal.
27
Secretaria efetua limpeza urbana procurando melhorar o atendimento. O Triângulo, 01 de julho de 1989, n.
7.324, p. 07.
28
Idem.
106
Pelo pedido do Secretário, percebemos que a questão do entulho vinha se
agravando e que a população cobrava da prefeitura melhorias nos serviços de limpeza
pública. Ao dizer que as pessoas deveriam não somente reclamar como também não
jogar entulho nos terrenos vagos, o Secretário devolvia o problema aos moradores e
eximia a Prefeitura da responsabilidade em fazer vigorar a lei que determinava aos
proprietários de terrenos a obrigação de mantê-los limpos e cercados. Na verdade, tal
atitude do poder público evidenciava como a administração do lixo na cidade não era igual
para todos, ao contrário, assumiam-se diferentes posturas no encaminhamento de
soluções para os problemas. A despeito da legislação existente, a gestão do lixo atendia a
diferentes sujeitos e a seus respectivos interesses segundo critérios distintos, políticos e
de classe.
Nessa perspectiva, uma das “rigorosas medidas” tomadas pela secretaria
responsável foi “a instalação de mais de cinqüenta placas de advertência em vários
pontos da cidade”. As placas diziam que era “proibido jogar lixo e ou entulhos em locais
de acesso”.
29
Se elas foram tão eficazes como atualmente são, então, nada resolveram.
Nos dias de hoje, podemos ver essas placas afixadas em terrenos onde os entulhos estão
ali alojados em abundância. Em pouco tempo, essa iniciativa se revelaria
contraproducente, conforme a situação abaixo trazida a público pelo jornal O Triângulo
em 1991:
A Prefeitura Municipal de Uberlândia está tendo que retirar das ruas da cidade uma média de 400
toneladas de entulhos, restos de materiais usados em construção e reformas, todo mês. Um grande
número de pessoas vem jogando estes entulhos nos passeios e até mesmo no meio das ruas,
obstruindo a passagem de pedestres e veículos e aumentando inclusive o risco de acidentes. Para
retirar estes entulhos a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos tem gastado mensalmente cerca de
Cr$ 3milhões.
30
As crescentes despesas com o problema do entulho levaram a administração a
estabelecer maior controle sobre a questão. A exemplo disso, o Cidade Jardim foi citado
por ser “o bairro campeão deste tipo de infração”. O gerente da Divisão de Limpeza
Urbana, Ednoser Damasceno, afirmava que, em um único mês, 200 toneladas de entulho
foram retiradas do local.
29
Idem.
30
Entulho: 400 toneladas nas ruas. O Triângulo, 14 de agosto de 1991, n. 7.968, p. 01 e 03.
107
O Cidade Jardim é um bairro cujos terrenos são extensos e valorizados. Sua área foi
loteada num período em que muitos professores chegaram a cidade para trabalhar na
Universidade Federal. O loteamento, então, foi ofertado a um grupo social estratégico,
pois a instituição, em meados da década de 1980, era conhecida por pagar excelentes
salários.
Esses fatos trazem indícios para pensarmos que, apesar do entulho ser um
problema característico dos bairros populares, cujos moradores tinham dificuldades para
transportá-lo “até os locais indicados para despejo”, pois teriam que pagar por esse
serviço, há clareza de que, mesmo em bairros de classe média, esses restos apareciam
com incidência. Eram produzidos em grande quantidade por moradores de maior poder
aquisitivo, com melhores condições para construir ou reformar suas casas, mas que não
respeitavam a lei que exige que, ao construir ou reformar, deve-se transportar o entulho
aos lugares apropriados.
31
Assim, os conflitos entre população e administração local, decorrentes da
proliferação do entulho a descoberto, tornavam-se mais freqüentes. À medida que a
população reclamava, o Secretário afirmava que fazia o possível, pois o órgão dispunha
de poucos funcionários para cuidar da limpeza de toda a cidade, e novamente justificava
que os terrenos baldios eram problema de seus proprietários. Para Adalberto Duarte,
poderia até haver “falhas esporádicas” da prefeitura, porém, elas não significavam
omissão, o que ocorria, segundo ele, era “uma falta de educação da população, que não
colabora e continua sujando as ruas”.
32
Os limites para controlar a produção e o descarte
de entulho eram assim descritos pelo secretário:
A continuar desta forma, não há funcionário suficiente nem maquinário, por mais moderno que seja.
Uberlândia poderia dar exemplos de limpeza e de higiene para todo o Brasil, bastaria que a
sociedade se conscientizasse e não mais atirasse ... entulhos e restos de material de construção
usados por toda parte...
33
Ressaltamos algumas dimensões desse problema em que vemos como os
interesses e as maneiras de cada um encarar a questão se contrapunham. Se para o
secretário era “muito difícil a situação pois, enquanto poucos limpam, a população suja”,
31
Idem.
32
Secretário defende a execução dos serviços. O Triângulo, 19 de setembro de 1991, n. 7.993, p. 01.
33
Idem.
108
os moradores reclamavam da sujeira nos terrenos baldios e acreditavam que a prefeitura
se omitia. De todo modo, as reclamações sinalizavam que a administração não fazia seu
papel de fiscalizar e de exigir que a lei fosse cumprida por toda a população.
34
Naquela ocasião, o Secretário alegou que não era fácil manter a cidade limpa com
apenas trezentos funcionários e sem uma maquinaria moderna. “Entulhos atirados nos
terrenos baldios, praças e ruas” sujam as “diversas regiões de Uberlândia” o cenário,
descrito desenha uma imagem de sujeira e desordem. Mas, na visão do Secretário,
“Uberlândia poderia dar exemplos de limpeza e de higiene para todo o Brasil”. Mediante
tal referência de uma cidade limpa e bela, em que outras pudessem se espelhar, o
entulho surgia como elemento de contradição da ordem exemplar que se pretendia
impor.
35
Nesse sentido, interessa pensar a respeito de outros aspectos dessa questão. Em
primeiro lugar, o modo como parecia estar se definindo a noção de entulho tal como ela é
entendida nos dias de hoje. O que implicou a construção não apenas de um elemento de
controle, de estudo e de pesquisa, como também, em função disso, de uma
reorganização, advinda do poder público, dos vários discursos direcionados às relações e
aos problemas decorrentes da presença desses restos. Em segundo lugar, o fato de que
o entulho tornava-se, sobremaneira, objeto de políticas públicas, passando a demandar
constantes ações, campanhas e investimentos.
Observamos que a administração Virgílio Galassi, inicialmente, convocara a
população a colaborar para amenizar o problema desses restos nos terrenos baldios. Já
no seu final, esse governo a responsabilizava pela gravidade da situação. À proporção
que a questão se destacava na imprensa, os administradores se justificavam alegando
que o entulho, espalhado por vários cantos, era culpa da população que não colaborava e
sujava a cidade “principalmente por comodismo”.
36
Mas a administração Paulo Ferolla, em 1993, iria desenvolver outras estratégias.
37
Nessa gestão, o lixo foi sendo articulado a outros problemas da cidade, o que imprimia a
ele uma diversidade de discursos e interesses. Uma de suas primeiras iniciativas foi a
34
Em Uberlândia, no ano de 1993, havia mais 80.000 lotes vagos, segundo a Secretaria de Serviços Urbanos. In:
Damasceno explicou Serviços Urbanos. O Triângulo, 09 de fevereiro de 1993, n. 8.404, p. 01.
35
Sujeira toma conta da cidade. O Triângulo, 19 de setembro de 1991, n. 7.993, p. 01.
36
Idem.
109
execução do programa “Bairro Limpo”, por meio do qual a prefeitura buscava reduzir a
quantidade de entulho que se acumulava em diversos lugares:
O objetivo do programa que envolverá várias secretárias municipais é desenvolver nos bairros,
principalmente os da periferia, limpeza de terrenos baldios e recolhimento de detritos, com a
participação da própria comunidade, especialmente, a mão-de-obra ociosa (desempregada) de cada
bairro, mediante pagamento pela tarefa ...
38
O problema desses restos nos terrenos baldios, já histórico na cidade, era,
novamente, alvo de políticas públicas da administração. Naquele momento, assumia a
dimensão de “grande importância social
39
. O programa “Bairro Limpo” propunha-se a
remunerar a comunidade. Lançado, oficialmente, em 17 de abril de 1993, no Bairro
Ipanema, não causou entusiasmo entre a população, conseguindo atrair somente vinte
pessoas, que se cadastraram para trabalhar. Após a estréia, o programa continuava
sendo implantado em outros bairros, ganhando, pouco a pouco, a adesão dos moradores.
Quando executado em 26 de junho de 1993, no Bairro Tocantins, oitenta e duas pessoas
se inscreveram. Posteriormente, começou a ser solicitado em outros bairros:
O presidente da Associação dos Moradores do bairro Luizote de Freitas, Walter do Nascimento,
destaca que a medida, através do mutirão comunitário, ajudará a conscientizar a comunidade a
manter as ruas e os terrenos vagos do bairro sempre limpos. Ele já tem um mapa dos locais que
precisam ser limpos... quer prioridade para rua B-7, que é uma das mais extensas viasblicas do
bairro. Quer também fazer uma limpeza da localidade e ainda promover a retirada de entulhos de
lotes vagos que há nos três setores do bairro.
40
O programa ia despertando o interesse dos moradores de outros bairros. A razão
poderá ter sido a possibilidade de uma ocupação, mesmo que de curto tempo, para
aqueles que se encontravam desempregados, e, também, a necessidade da limpeza de
alguns espaços do bairro, que, normalmente, não seria realizada facilmente. A julgar
pelos registros na imprensa, o programa Bairro Limpo ganhava crescente adesão dos
moradores. Fato que serve para exemplificar como o problema da limpeza da cidade
37
Administração Paulo Ferolla da Silva, 1993-1996, MDU (Movimento Democrático de Uberlândia), Coligação dos
partidos, PFL, PTB e PL.
38
Bairro Limpo: prefeito fala hoje à tarde. O Triângulo, 16 de abril de 1993, n. 8.457, p. 05.
39
Lançamento do Bairro Limpo será no sábado. O Triângulo, 14 de abril de 1993, n. 8.455, p. 05.
40
Bairro Limpo lançado no Tocantins. O Triângulo, 27 de maio de 1993, n. 8492, p. 04.
110
vinha sendo associado a interesses que garantiam um retorno político à administração
local.
O Bairro Limpo havia sido uma promessa de campanha do prefeito Paulo Ferolla.
Em sua execução, envolveu a Secretaria de Trabalho e Ação Social. No balanço dessa
administração, a descrição do programa encontrava-se vinculado a tal secretaria, na área
de atendimento comunitário.
41
Porém, tratava-se de um projeto na área de limpeza urbana
e fazia parte das atividades desempenhadas pela Secretaria de Serviços Urbanos.
Portanto, o lixo pode ser entrevisto disseminado em articulações políticas que
delineavam, sobretudo, o forte assistencialismo que marcou esse governo. Circunstâncias
que possibilitavam ao poder público tirar proveito de situações que, em princípio,
caracterizavam dificuldades, como o problema do entulho e o crescente desemprego.
Além disso, é interessante notar como diferentes secretarias se envolviam com o
problema do lixo, a exemplo da Secretaria de Trabalho e Ação Social. O que demonstra
como a questão do lixo assumia uma nova conotação, envolta em propostas que
abrangiam moradores e trabalhadores. O programa Bairro Limpo incluía o rol das políticas
públicas implementadas pelas administrações, durante a década de 1990, para lidar com
o problema do entulho, e continuou sendo executado nos dois primeiros anos do governo
Paulo Ferolla, embora, segundo o relatório dessa gestão, estivesse desativado em
1995/96. Por essa época, O Triângulo noticiou que de volta, em dezembro de 1997, o
programa propunha aos moradores trocar quinze quilos de “lixo reciclável, como papel,
vidro e plástico, por um litro de leite”. Ou seja, quando voltou a ser implementado, já em
outra administração, o programa havia deixado de remunerar a comunidade.
42
A Prefeitura Municipal de Uberlândia, através da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, organizou
uma equipe com todos os equipamentos necessários para em conjunto com você, limpar todo o seu
bairro. Veja como funciona: desde já você deve organizar e juntar todas as coisas que não servem
mais para você, tais como: pneus, latas, madeiras, garrafas, caixas, móveis, utensílios velhos, restos
de construção, etc. Aí no dia marcado você coloca tudo que considera lixo para fora. Deixe seu
quintal bem limpinho e organizado.
43
41
Balanço da Administração Municipal (1993-1996), p. 25. Arquivo Público Municipal de Uberlândia.
42
“Bairro Limpo” concluiu atividades no domingo passado. O Triângulo, 17 de dezembro de 1997, n. 9.854, p. 05.
43
Circular distribuídas nos bairros: Projeto Bairro Limpo, 1998. Secretaria de Serviços Urbanos, 1997-2000.
111
Ao acompanhar a trajetória do programa Bairro Limpo, deparamos com uma
estratégia do governo local de promover-se politicamente junto à população, por meio de
políticas públicas de tal natureza. Além disso, é possível vislumbrar como a questão do
entulho passava a carecer, cada vez mais, da intervenção do poder público, pois, na
relação com moradores ou empresários, ele precisava manifestar-se sobre a produção e
o descarte de entulhos. Para tanto, seria necessário regulamentar leis, tentar coibir certos
hábitos da população e controlar as atividades que envolvessem a produção desses
restos. Nessa perspectiva, essa mensagem, veiculada em um panfleto, pretendia
contribuir para educar os moradores no intuito de organizar e limpar o quintal e o bairro.
No que se refere aos empresários, a necessidade de que a prefeitura interviesse no
problema do entulho apresentou-se quando o então gerente da Divisão de Limpeza
Urbana, Ednoser Damasceno, em 1991, declarou que alguns “terrenos vagos,
geralmente, (estavam) sendo usados por caminhoneiros para depositar o lixo”.
44
Esses
caminhoneiros trabalhavam para as empresas que, autorizadas pela prefeitura, prestavam
o serviço de retirada de entulhos por meio de caçambas conteiners que servem para
armazenar o entulho. Eles são postos em frente às construções e depois removidos por
caminhões. O início da década de 1990 foi marcado pelo desenvolvimento dessa
atividade. Com a crescente produção de entulho na cidade, as empresas viram nesse
setor um grande potencial. Ademais, a própria prefeitura criava condições favoráveis, pois
alegava que
(...) a Divisão de Limpeza Urbana não conta com máquinas especiais para a retirada dos vários
entulhos encontrados na cidade e o que o órgão vem fazendo é a contratação de empreiteira para
executar determinadas horas de serviço. “Não contamos com estrutura, por isso contratamos serviços
de terceiros”...
45
Com isso, crescia o número de empresas que exerciam a atividade de recolher
entulho. Um estudo, na área de geografia, sobre o entulho em Uberlândia, expôs a
constituição de uma rede em volta desses restos. Só para ilustrar a expansão desse
44
Entulho: 400 toneladas nas ruas. O Triângulo, 14 de agosto de 1991, n. 7.968, p. 01 e 03.
45
Leitores reclamam dos entulhos e dos terrenos baldios. O Triângulo, 17 de janeiro de 1992, n. 8.089, p. 06.
112
mercado, em agosto de 2002, havia 19 empresas envolvidas com essa atividade na
cidade. Elas “cobravam em média R$ 30,00 por 10 dias de locação”.
46
Conforme dados dessa pesquisa, poderíamos dizer que, durante a década de 1990,
quase que, a cada ano, surgia uma nova empresa, indicando o movimento ao longo
desse período. A atividade de tais empresas revela a existência de um rentável negócio
em torno dessa modalidade de prestação de serviço. A quantidade delas, com registro na
Secretaria de Serviços Urbanos, leva-nos a apreender que a questão do entulho na
cidade, aliada ao incentivo do poder público, foi para os empresários do setor uma
excelente oportunidade, em que a atividade de recolher os restos gerados pelo intenso
movimento de reformas e construções, transformou-se num interessante e, por certo,
lucrativo negócio. Nesse processo, vemos o entulho, fator de sujeira e de estorvo, tornar-
se alvo de propostas empresariais.
As empresas recolhiam o lixo das construções, no centro e na periferia, motivo pelo
qual as caçambas permaneciam, e ainda permanecem, “espalhadas por toda a cidade”.
Mas, em razão da maneira como eram utilizadas, provocavam muita confusão.
Segundo o secretário de Serviços Urbanos, Ednoser Damasceno, “a secretaria tem realizado uma
intensa fiscalização, e sabe que o perigo de acontecer acidentes existe, e por isso está notificando as
empresas proprietárias das caçambas e, no caso de uma reincidência, aplicará multas ou poderá até
mesmo cassar o direito de uso”.
47
Por esta notícia do jornal O Triângulo, vemos como a novidade das caçambas ainda
carecia de um mínimo de controle. Situadas em vários pontos, elas comprometiam o
aspecto físico e colocavam em risco a segurança de quem fazia uso do espaço público.
Como não havia regulamentação, a ausência de normas e a precária vigilância
aumentavam a possibilidade de que as caçambas provocassem “acidentes com veículos”
e impedissem “o livre transitar dos pedestres”. Apesar dos transtornos decorrentes do
excessivo número de caçambas, a lei que define normas para as empresas coletoras
seria sancionada somente em 1999. Ela determinaria que a supervisão do serviço caberia
à Secretaria de Serviços Urbanos. Não nos escapou aqui a enorme tolerância do poder
público em relação a esses empresários, pois, tanto a demora em definir a lei quanto o
46
ROCHA, A. L. O entulho em Uberlândia (MG) – realidade e perspectivas. Mestrado em Geografia, Uberlândia:
UFU, 2003, p. 40.
47
Posicionamento das caçambas ainda preocupa. O Triângulo, 07 de maio de 1995, n. 9.064, p. 03.
113
fato de que, nos dias de hoje, as caçambas continuam a ser um problema denunciavam a
falta de rigor com a qual a questão veio sendo tratada.
48
Outra dificuldade referente à presença das caçambas era que, além das empresas,
a população, na maioria das vezes, também fazia uso de forma inadequada, descartando
nelas outros tipos de lixo, conforme noticia O Triângulo:
O secretário alertou sobre o lixo doméstico que a população está jogando indevidamente nas
caçambas e não é permitido, já que o entulho tem local próprio para ser despejado e quando são
encontrados resíduos de origem orgânica, dificulta em muito o descarregamento.
49
Visualizamos, então, um novo problema em torno do entulho e das caçambas. O
alerta do secretário para que as pessoas não jogassem lixo doméstico junto ao entulho
demonstra uma tentativa de normatizar onde e como as pessoas deveriam jogar o lixo.
Certos aspectos do comportamento dos moradores transpareciam aqui, o aviso deixa
entrever a noção de que era necessário que a população estivesse atenta na hora de
descartar o lixo. As caçambas dispostas em determinados locais faziam com que a
vizinhança, talvez, por falta de informação, infringisse essas regras.
De fato, em meio a esse processo, evidenciavam-se algumas mudanças: primeiro,
na própria definição do que eram esses restos, agora, descritos como todos os dejetos
resultantes das construções: “entulho de obras, tijolos, telhas e sacos de cimento”.
50
Segundo, na tentativa de estabelecer certas normas para o seu descarte: além de ter
“local próprio” para se despejá-los, não devia misturar-se outras espécies de lixo a eles.
Em contraposição a um tempo em que a própria prefeitura convidava a população a
descartar o entulho junto com outros “materiais”, com as caçambas, a exigência era para
que não mais se misturassem outros resíduos a ele. A necessidade de interferência do
poder público revelava-se, ainda, na criação de outro programa cujo objetivo continuava a
ser limpar a cidade, de maneira que o entulho passava a ser, também, uma questão de
planejamento urbano. O Triângulo informa sobre mais uma estratégia nesse sentido:
A Secretaria Municipal de Serviços Urbanos iniciou um trabalho de pesquisa em Uberlândia a fim de
detectar pontos e terrenos baldios que servem como depósito de entulho... A intenção é transformar
estes locais em uma central de entulho, totalmente cercado e com um funcionário da prefeitura
48
Uso de caçambas será regulamentado este mês. O Triângulo, 04 de janeiro de 1995, n. 8.693, p. 03.
49
Posicionamento das caçambas ainda preocupa. O Triângulo, 07 de maio de 1995, n. 9.064, p. 03.
50
Prefeitura vai normatizar os depósitos de lixo na cidade. O Triângulo, 08 de janeiro de 1994, n. 8.677, p. 03.
114
orientando os moradores da região como utilizar o espaço. Hoje, em cada bairro ou localidade,
existem dezenas destes depósitos clandestinos. “Se legalizarmos dois ou três por bairro, a cidade
ficará mais limpa”.
51
As Centrais de Entulho foram criadas pela prefeitura a fim de tentar minimizar a
freqüência dos despejos desses restos ao léu, e de incentivar a população a depositá-los
em local determinado no próprio bairro. Em teoria, o entulho, ali acumulado, permaneceria
cercado e vigiado por “um funcionário da prefeitura”, que orientaria “os moradores da
região como utilizar o espaço”. Como o texto expressa, as centrais de entulho serviriam
para legalizar os “depósitos clandestinos", existentes há muitos anos na cidade. Embora a
regulamentação delas só tivesse ocorrido a partir de uma lei de 1998.
52
Essencialmente, a proposta era que os restos das construções e reformas, retirados
das casas, quintais e terrenos baldios, ficassem acumulados no depósito existente no
bairro, até que a prefeitura os recolhessem a fim de encaminhá-los ao seu destino final;
geralmente, áreas de erosão em que eram depositados com o intuito de aterrar o local.
Nos últimos anos, os restos coletados nas centrais de entulho são despejados em áreas
como a nascente do Córrego Perpétua, próximo ao bairro Aclimação, e, em outras áreas
de erosão, perto dos bairros Lagoinha, Morumbi e Morada Nova. Exceto o Lagoinha, os
outros são bastante populares e distantes da região central, sendo que o Morada Nova
constitui um setor de pequenas chácaras na cidade.
Depositar restos de construção civil em áreas dentro perímetro urbano, a fim de
conter a erosão nos locais, tem sido um recurso utilizado pela prefeitura, a despeito das
críticas de profissionais da área de Geografia, que condenam tal prática, por entendê-la
como fator de contaminação do solo e das águas subterrâneas. Se, de um lado, os restos
da construção são também denominados como “resíduos inertes” e, por isso mesmo,
considera-se que eles não acarretam tantas alterações ao ambiente em que são alojados.
De outro lado, é preciso lembrar que, na maioria das vezes, mistura-se lixo doméstico ao
entulho, o que contribui para alterar sua composição. Além disso, conforme explica o
Professor de Geografia da UFU, Luiz Nishiyama, a definição de “resíduos inertes” pode
ser questionada. Se pensarmos no cimento, por exemplo, o fato de que suas substâncias
51
Idem.
52
As Centrais de Entulho foram regulamentadas pela Lei 7.074 de 05 de janeiro de 1998. Ver: MARTINS, H., op. cit.,
p. 35.
115
modificam as características da água não deixa de ser um fator de contaminação. Assim,
vislumbramos aqui mais uma polêmica em relação ao problema do entulho na cidade.
53
Geralmente, os locais previstos para ser aterrados com entulho são escolhidos por
técnicos responsáveis e o despejo é regulamentado. Acontece que, nem sempre, as
coisas ocorrem de acordo com o regulamento. A exemplo de quando, em 1990, alguns
moradores denunciaram, por meio do jornal Correio de Uberlândia, que um caminhão da
prefeitura estava jogando lixo em local próximo de várias residências:
A prefeitura está despejando lixo num terreno ao lado da sede da liga das Escolas de Samba de
Uberlândia (Lesu), no Bairro Chaves, próximo ao Daniel Fonseca. A denúncia é do Presidente da
Associação dos Moradores do Bairro Chaves, Jeferson Leite, afirmando que os caminhões da
Secretaria Municipal de Serviços Urbanos... despejam a carga às margens da Avenida Geraldo Mota
Batista, nos fundos da Lesu. Segundo Jeferson ... entulho de material de construção é comumente
deixado no lugar. A Associação de Moradores dispõe de várias fotos de flagrantes de caminhões de
limpeza pública jogando suas cargas no terreno.
54
Esse acontecimento serve para dimensionar certos aspectos das relações que se
estabeleciam em torno do entulho. Revela contradições nas atitudes do poder público,
que se propunha a limpar a cidade e, ao mesmo tempo, depositava restos no perímetro
urbano, de maneira irregular. Segundo Jeferson Leite, os moradores achavam
“admissível” a descarga de entulho, pois ajudaria conter a erosão que ameaçava o
terreno. Essa afirmação sinaliza a tácita aceitação de alguns no que se refere a certas
práticas, que geravam aborrecimentos no convívio social, como o hábito de jogar entulho
em lotes vagos.
Outro exemplo disso foram as centrais de entulho, que, representando mais uma
tentativa em manter a cidade limpa, resultaram em mais complicações, porque na
realidade elas não eram vigiadas e a vizinhança, em contraposição ao que foi idealizado,
destinava diversos tipos de lixo ali. Enfim, configurava-se uma falta de ordenamento
quanto aos espaços apropriados para destinar esses restos na cidade. Uma desordem
que parecia não ser prerrogativa somente da população. A denúncia dos moradores do
53
também um interessante debate sobre a necessidade de reaproveitamento desses restos e sobre a contenção do
desperdício existente no setor que o produz em maior quantidade, a construção civil.
54
PMU acusada de depositar lixo hospitalar em local impróprio. Correio de Uberlândia, 24 de janeiro de 1990, n.
15.303, p. 10.
116
Bairro Chaves, na década de 1990, demonstrava contradições também na postura do
poder público.
Todavia, as centrais de entulho implantadas em vários bairros da periferia remete-
nos a algumas questões interessantes. Por que essas áreas foram consideradas mais
apropriadas ao despejo de entulhos? Em 2002, Uberlândia contava com dezessete
centrais de entulho, espalhadas por diversos lugares. Bairros como Santa Mônica e
Luizote de Freitas chegaram a possuir até mesmo duas. Os outros eram: Segismundo
Pereira, Tibery, São Jorge, Laranjeiras, Nossa Senhora das Graças, Jardim Brasília,
Taiaman, Guarani, Jardim Patrícia, Daniel Fonseca, Planalto, Jardim Canaã e Santa
Rosa.
A localização das centrais demonstrava que elas situavam-se, quase sempre, em
áreas periricas. Talvez porque nesses bairros a produção de entulho justificasse sua
existência. A lei que estabelece regras para o funcionamento das centrais determina que
sejam criadas em locais cuja produção de entulho seja muito grande. Elas foram
propostas como uma solução para lidar com esses restos, entretanto, as declarações do
vereador Aniceto Ferreira, do Partido dos Trabalhadores, referiam-se aos “danos para a
saúde pública”, provocados por tais depósitos:
“Fico preocupado com a saúde da população. Como a responsabilidade do vereador é fiscalizar os
atos da administração pública municipal, em fatos relacionados aos danos para a saúde pública,
ficamos ainda mais em alerta”, justificou. “As Centrais de Entulho apresentam ser locais propícios ao
habitat
de roedores e de insetos, a exemplo do mosquito
aedes,
transmissor da dengue, face à
presença de objetos retentores de água como o pneu”.
55
Ao avaliar os novos problemas que surgiram, justamente, da atuação da prefeitura
tentando solucionar dificuldades anteriores, o vereador assegurava que o acúmulo de
entulho, em certo ponto desses bairros, comprometia a paisagem e a qualidade de vida
da população que residia nas proximidades, além de contribuir para a desvalorização
social desses espaços. Apontava, ainda, que tais restos ficavam sujeitos às intempéries e
à ação dos moradores, sendo um risco de epidemia para a vizinhança local. Seu alerta
traduzia uma consciência política representativa de uma postura cidadã, a defender os
interesses da população que residia nesses bairros.
55
Aniceto quer análise em Centrais de Entulho. O Triângulo, 11 de junho de 1998, n. 10.001, p. 03.
117
Tendo por referência a perspectiva desse vereador, pensamos que a presença do
entulho em certos lugares da cidade não era, de modo algum, uma questão aleatória. Ao
contrário, pois, não havia centrais de entulho, a saber, no Cidade Jardim, que, em 1991,
aparecia na imprensa como um “bairro campeão”, na produção desses restos, justamente
por ser este um local privilegiado, ocupado por setores de classe média. Assim, podemos
afirmar que a distribuição desses depósitos em diversos bairros revelava uma certa
hierarquia social, que organizava os espaços e a vida na cidade.
56
Desse modo, a lei municipal que criou as Centrais de Entulho prevê que elas seriam
fiscalizadas pela Secretaria de Serviços Urbanos, e que programas educativos
orientariam a população sobre o que devia ser ali despejado. Medidas que efetivamente
não foram colocadas em prática. Observamos que estabelecer normas para a produção e
descarte do entulho em Uberlândia revelou-se difícil tarefa para a administração local que,
por vezes, também se contradisse no cumprimento das normas, elaboradas para tentar
mudar o comportamento da população e melhorar a vida na cidade.
Programas como “Mutirão de limpeza”, “Bairro Limpo”, as campanhas educativas, os
depósitos de entulho de 1988, que, uma década depois, transformaram-se nas “Centrais
de Entulho”, ou então, já nos anos de 1990, campanhas como “Uberlândia mais limpa” e
projetos semelhantes ao “Disk Cidade Limpa”, cujo objetivo era receber reclamações,
denúncias e sugestões da população, todos eles consistiram em políticas públicas
visando amenizar o acúmulo de entulho em diversos lugares da cidade. Foram medidas
que trouxeram retorno político às administrações que as implementaram. Do ponto de
vista dos problemas que se propuseram a resolver, revelaram-se bastante ineficientes,
mas, nesse mesmo processo, serviram para demonstrar de que modo essa questão foi
sendo assumida na cidade. Sem deixar de revelar, também, sensíveis mudanças na
própria concepção do poder público em relação ao problema do lixo.
Por fim, essa problemática exigiu um olhar atento ao conjunto da cidade, e isto nos
impôs a necessidade de discutir como o acúmulo de entulho nos terrenos baldios é um
problema que também diz respeito às atividade de trabalhadores que prestam serviços à
comunidade, recolhendo e transportando esses restos. Quando, por meio das políticas
públicas já referidas, a prefeitura instituiu o recolhimento de entulho nos bairros e,
também, quando autorizou a participação das empresas de caçambas nesse setor, os
56
Entulho: 400 toneladas nas ruas. O Triângulo, 14 de agosto de 1991, n. 7.968, p. 01 e 03.
118
carroceiros, por sua vez, viram-se prejudicados. Afinal, estabelecia-se uma concorrência
com esses trabalhadores: serviços como podar árvores, recolher restos de construções
ou capinar terrenos, eram freqüentes em várias regiões da cidade; porém, para continuar
a exercer tais atividades, os carroceiros precisavam enfrentar, além da disputa entre eles
próprios, uma acirrada competição “com as caçambas, caminhões de lixo e órgãos da
Prefeitura.
57
Fato que serve para evidenciar o modo como nas relações vividas
imbricavam-se múltiplos interesses e disputas, em que esses trabalhadores viam
reduzirem suas alternativas e nichos de sobrevivência, por meio da exploração dos
restos. Ademais, as diversas trajetórias do entulho denunciavam, ainda, de que forma a
cidade se organizava espacialmente.
Vimos como o lixo vem sendo um fator de preocupação para as administrações
públicas. Sua problemática contribui para ressaltar outros problemas da cidade, como a
carência dos serviços de limpeza pública e a falta de equipamentos coletivos. Em
Uberlândia, as questões em torno do lixo começaram a agravar-se no início da década de
1980, período em que começava haver um aumento da demanda pelos serviços de
limpeza. Ao mesmo tempo, a estrutura existente era precária. Sobre as condições do
setor, um Relatório de Prefeito, do ano de 1983, informa:
Quanto ao aspecto da limpeza pública, a Secretaria de Serviços Urbanos não está suficientemente
equipada para manter a cidade nos padrões desejáveis – tapar buracos, capinar ruas e terrenos
baldios – recolher o lixo lançado nas áreas não ocupadas, além de coletar o lixo domiciliar.
58
Naquele período, já não eram poucas as atribuições do órgão responsável pela
limpeza da cidade e pela coleta do lixo domiciliar. Para prestar esse serviço, a Secretaria
dispunha somente de dez veículos. Como a coleta atingia apenas “60% do setor urbano”,
as reclamações da população junto à Secretaria Serviços Urbanos eram constantes: por
telefone, por meio de lideranças de Associações de Bairro e, ainda, por intermédio de
vereadores, com bases eleitorais neste ou naquele bairro, elas chegavam e, apesar de
serem registradas, não eram atendidas a contento em razão de certas limitações:
Estamos programando para o fim de Agosto a chegada dos novos veículos, com o qual passaremos a
desempenhar com mais eficiência a coleta. Procedemos a retirada de vários animais mortos
57
MORAIS, Sérgio Paulo. Trabalho e Cidade: trajetórias e vivências de carroceiros na cidade. op. cit. p.47.
58
Relatório de prefeito, 10 de março de 1983. Arquivo Público Municipal.
119
chegando a 40 aproximadamente. O local de descarga do lixo chega a uma distância de 60 kms de
ida e volta, sendo que a estrada é toda de terra, provocando estragos nos veículos, e em
conseqüência disto, causa atrasos no processo de coleta e maiores gastos de combustível. Os
veículos atualmente trabalham 24 horas, sendo que chegam a dar 05 (cinco) viagens diariamente.
Estamos utilizando de 03 a 04 caminhões basculantes na execução deste serviço, sendo que sua
capacidade em relação aos veículos próprios para coleta, atinge apenas (1/4) um quarto, de sua
produção diária total.
59
As dificuldades descritas no Relatório de atividades da Secretaria indicam a
necessidade de expandir os serviços de limpeza pública. Além da falta de estrutura, já se
enunciavam também os problemas em torno do destino do lixo da cidade. A distância do
local de despejo, as condições de tráfego, o atraso dos serviços e o aumento dos gastos
com combustível eram os fatores responsáveis pela ineficiência dos serviços. O poder
público era responsável pelo lixo que toda a cidade produzia, principalmente, pela coleta e
destinação do lixo domiciliar. Entretanto, em alguns bairros da periferia, esse serviço
ainda era muito precário e, em outros, o que era pior, não existia:
A partir do dia 29 deste mês, o Bairro Jardim Brasília contará com os serviços de coleta de lixo que se
estenderá numa freqüência inicial, diária, a todas as ruas do bairro. Ilvio Andrade, secretário de
Serviços Urbanos observou que este serviço de limpeza urbana não foi executado anteriormente
neste bairro devido as precariedades das vias públicas e ao pouco volume de lixo que não justificava
em si a circulação de um caminhão. ... Ele adianta ainda que várias atividades ainda serão
desenvolvidas na comunidade para que os moradores adquiram o hábito de alojar adequadamente o
lixo em recipientes apropriados e lugares de fáceis acessos para a coleta.
60
O modo como a prefeitura lidava com a questão do lixo doméstico é aqui explicitado.
Com o aumento da demanda pelo serviços de coleta do lixo, e a dificuldade em atender a
todos, os bairros novos e distantes do centro ficavam sem atendimento. O Jardim Brasília,
no setor norte da cidade, inaugurado em 1983, só iria ser atendido com o serviço de
coleta no final do ano de 1984.
De acordo com o jornal, o Secretário mencionou algumas atividades que seriam
desenvolvidas com o objetivo de divulgar o início da prestação do serviço, e de alertar a
59
Relatório do Setor de Coleta de lixo, julho de 1983, Secretaria de Serviços Urbanos. Arquivo Administrativo
Municipal.
60
Coleta de lixo é estendida ao Jardim Brasília. Correio de Uberlândia, 24 de outubro de 1984, n. 13.994, p. 06.
120
comunidade local para que passasse a depositar “o lixo em recipientes apropriados” e
acessíveis para a coleta. Avaliamos que, em alguns bairros, a população não tinha, ainda,
a prática de acondicionar os restos de maneira adequada, uma vez que ou não havia o
serviço de recolhimento do lixo, ou, então, este era precário. Um fato que, segundo a
prefeitura, justificava-se pelas condições de trânsito das vias públicas:
Bairro Tubalina - O veículo n. 41 efetua coleta de lixo neste bairro diariamente, transitando somente
nas vias públicas que contém pavimentação. Isto se deve às condições precárias que se encontram
as vias que não possuem asfalto.
Bairro Industrial - Este bairro nos apresenta um inconveniente para a coleta de lixo em determinado
setor, pois as ruas não comportam o trânsito do veículo coletor, sendo a coleta realizada pelos
varredores devido as ruas serem muito estreitas e com tijolinhos à vista no meio delas
impossibilitando o tráfego. O lixo deste bairro é colocado em um depósito a céu aberto e
posteriormente, retirado por um veículo basculante que dá sua destinação final.
61
Ainda nos dias de hoje, a coleta de lixo no bairro Industrial é feita quase nesses
mesmos moldes, devido ao fato de que a maioria de suas ruas são pequenas e estreitas.
Razão pela qual os moradores levam o lixo até a praça, onde os coletores o recolhem.
Naquela época, devido à maneira como era acondicionado, a permanência do lixo “a céu
aberto” principiava a ser vista como “um inconveniente”.
Na tentativa de aperfeiçoar esses serviços, a Prefeitura dividiu a cidade em dez
setores, a fim de estabelecer os roteiros para o recolhimento do lixo. Dos setores, em
sete, a coleta era diurna e, em três, noturna; quatro setores correspondiam aos bairros
periféricos, e o restante era composto por áreas centrais e bairros mais próximos.
Percebe-se que a cidade se reorganizava para dar conta do lixo, mas, ainda assim, havia
complicações para atender a todas as localidades.
O Presidente da Câmara, vereador Silas Guimarães, solicita em indicação ao Prefeito Municipal que
determine à Secretaria Competente, estudos para que se altere a rota do caminhão coletor de lixo no
Bairro Santo Inácio. Atualmente, seu percurso normal é pela Rua 25, moradores da Rua 24,
aproximadamente com 70 moradias, solicitaram que o caminhão passasse também pelo local
sanando uma irregularidade e lhes proporcionando um benefício.
62
61
Relatório do Setor de Coleta de lixo, julho de 1983, Secretaria de Serviços Urbanos. Arquivo Administrativo.
62
Rota do caminhão de lixo. O Triângulo, 29 de setembro de 1987, n. 7.106, p. 01.
121
Para recolher o lixo, os caminhões esquadrinhavam espaços previamente definidos.
Só que, por vezes, a elaboração dos roteiros deixava de atender a dezenas de moradores
de um mesmo bairro. Apesar da ampliação dos serviços, quase 20 bairros periféricos
permaneceriam sem a coleta até que houvesse condições de tráfego. Aqui, já se
entremostra como a questão da limpeza da cidade deixava de ser algo trivial. Conforme
uma notícia publicada, em 1984, pelo boletim do governo local, o Participação:
Se por uma semana os 215 garis não pudessem executar seu serviço rotineiro, recolhendo 153
toneladas de lixo diárias, o cartão postal de Uberlândia seria um grande entulho de moscas, ratos e
outros animais ao longo das ruas e avenidas, com enormes riscos à saúde humana. Entretanto, este
serviço funciona bem na cidade. Com uma boa vantagem: muitas pessoas conscientizaram que a
limpeza urbana é tarefa dos próprios moradores.
63
Percebe-se nesse informativo a constante preocupação de difundir as ações e
políticas públicas da administração local. O texto fornece dados sobre a extensão da rede
dos serviços de limpeza pública: o departamento contava com “322 funcionários,
distribuídos em 03 setores de trabalho” varrição, capina e coleta de lixo. Em 1987, esse
contingente aumentou para 380 e, em 1990, já havia 500 funcionários envolvidos nas
atividades de limpeza da cidade. Números que mostram a complexidade que a recepção
e a gestão do lixo iam assumindo.
64
As condições do serviço de coleta eram exemplares
de que para lidar com a questão do lixo era preciso se reestruturar. Elemento
emblemático de que no enfrentamento desse problema a cidade não era única, ao
contrário, apresentava-se multifacetada, numa realidade bastante complexa.
65
O texto informava, ainda, sobre a quantidade de lixo produzida diariamente pela
população. Entretanto, provavelmente, chegara-se a esse número por estimativa, em
comparação a outros municípios de população aproximada, já que não se pesava o lixo
da cidade. Ainda levaria mais de uma década para que isso viesse a ocorrer. De todo
modo, não deixa de ser uma mostra de como o lixo já começava a ser contabilizado, em
decorrência dos gastos que exigia do poder público. Pode-se ter uma noção dos custos
do serviço de limpeza urbana mediante o percentual do orçamento público destinado à
63
Coleta de lixo funciona bem, com o apoio popular. Participação, ano 1, n. 03, outubro de 1984, p. 01 e 06.
64
Relatório do Departamento de Limpeza Pública, 10 de agosto de 1983, Secretaria de Serviços Urbanos.
65
Limpeza urbana aumenta área de atuação. Correio de Uberlândia, 10 de junho de 1983, n. 13.651, p. 12.
Inovações na limpeza urbana. Correio de Uberlândia, 15 de janeiro de 1985, n. 14.046, p. 06.
122
Secretaria de Serviços Urbanos: em 1988, a prefeitura reservara 8,9% para este setor.
Mas, apesar dos custos, o sistema de limpeza urbana ainda se apresentava deficiente.
66
Nesse sentido, é interessante perceber que o jornal busca apelar para a consciência
dos moradores em colaborar na tarefa da limpeza urbana. A intenção do Participação,
parece ser, de forma sutil, chamar a atenção da população para a necessidade de uma
mudança de hábitos no que concerne à questão do lixo. Em 1986, o poder público
empreendeu uma campanha educativa: nas páginas de alguns exemplares desse ano,
encontramos o slogan “Jogar lixo na cesta não dá trabalho”.
67
Se, por um lado, os investimentos demonstravam que a administração pública
buscava enfrentar o problema, por outro, a coleta, o manejo e o destino do lixo pareciam
ser fatores que ultrapassavam a competência dos serviços de limpeza pública. A gestão
do lixo já demonstrava ser mais do que uma questão técnica. Em certas circunstâncias, o
lixo surgia como causa de desordem, apontada pelos moradores e divulgada pela
imprensa:
Moradores das margens da Rodovia Uberlândia/Araguari, estiveram com o vereador Elias Eurípedes
Teixeira e apresentaram reclamações com relação ao depósito de lixo ao longo da BR-365. O fato
oferece um quadro que prejudica a saúde pública, bem como as próprias propriedades. O vereador
Elias Eurípedes Teixeira manteve contatos com a Secretaria de Saúde através do Dr. Luiz Henrique
Sutz, que levará ao conhecimento da Secretaria de Serviços Urbanos, para que juntas deleguem
poderes a fiscais a fim de proibirem tal anomalia ... Obrigando a todos os motéis da cidade o
cumprimento de uma Lei, não jogando lixo às proximidades das propriedades e muito menos dentro
delas. ... A solução do problema é de caráter urgente tendo em vista a imagem negativa que o local
oferece para os habitantes da região e para os transeuntes de nossas rodovias.
68
Uma situação vivenciada por habitantes dos arredores da cidade, na divisa de vários
bairros como o Dona Zulmira, Tocantins e Luizote de Freitas. Segundo o jornal Correio de
Uberlândia, os moradores reclamavam que um motel, situado nas proximidades, estava
jogando seu lixo nos terrenos vizinhos. Em conflito com o estabelecimento comercial, os
moradores solicitavam a intervenção do poder público para intermediar a questão. Por
meio do vereador, exigiam que se tomassem providências quanto ao problema. Além do
conflito entre moradores e empresa, observamos o lixo tornando-se atribuição de vários
66
Definido orçamento para 1988. O Triângulo, 29 de setembro de 1997, n. 6.208, p. 05.
67
Participação, ano II, n. 10, abril de 1986, p. 08.
68
Motéis estão jogando lixo em propriedades alheias. Correio de Uberlândia, 08 de junho de 1983, n. 13.649, p. 11.
123
setores da administração pública: o Poder Legislativo, na figura do vereador, a Secretaria
de Saúde e a de Serviços Urbanos. Gerando transtornos na cidade, o lixo passava
demandar a definição de normas para seu destino.
Indicação da vereadora Olga Helena da Costa, pede envio de ofício ao prefeito Zaire Rezende,
indicando a necessidade da colocação de depósito de lixo (latão) na Rua Tamóios, esquina com Rua
Olegário Maciel, no bairro Saraiva e na Rua C-2, no conjunto Luizote de Freitas I. Nos referidos
pontos, o lixo amontoado nas ruas está causando sérios problemas. Os caminhões demoram a
coletar o lixo e, dado o tempo que fica exposto, os cães o esparramaram pela via pública e passeio,
exalando mau cheiro e gerando um péssimo estado visual nestes locais.
69
Esse documento expõe significativas mudanças na percepção do lixo, existente até
então. Se, por um lado, resgata o fato de que, em 1986, ainda vigorava a prática de
depositá-lo em tambores e latões até que o caminhão de coleta o recolhesse, por outro,
há vários elementos novos: os restos, amontoados nas ruas e espalhados pelos cães,
exalavam mau cheiro, causavam mal-estar e repugnância, além de trazerem um aspecto
considerado negativo e ruim ao espaço urbano. Essa transformação em curso diz respeito
a uma prática de acondicionamento do lixo que, daí a algum tempo, seria encarada como
anti-higiênica. Estamos falando de uma nascente intolerância à visão, à presença e ao
odor daquilo que, há menos de uma década, era muito corriqueiro no cotidiano da cidade.
Sem dúvida, esses são expressivos sinais de um sentimento familiar à vida
contemporânea, uma concepção de higiene imbuída de uma significativa aversão ao lixo.
Claro está que isso não pode ser generalizado a todos os grupos sociais, embora,
seja reconhecível na imprensa esse movimento de estender a toda a população
percepções que eram próprias de determinadas classes sociais, residentes em lugares
determinados. Exemplo disso é a forma como o lixo doméstico, por ruas e terrenos e
baldios, começa a ser descrito pelos jornais locais como motivo de “desconforto a todos
os moradores”
70
Na verdade, ao olhar para o lixo, os jornais atribuem a ele valores
pejorativos como o de ameaças à saúde, tranqüilidade, beleza e ordem na cidade. A
limpeza urbana passava a ser, quase sempre, associada à “melhoria da qualidade de vida
da população”.
71
69
Latões de lixo nos bairros. Correio de Uberlândia, 04 de abril de 1986, n. 14.345, p. 10.
70
Recolhimento de lixo. O Triângulo, 02 de dezembro de 1986, n. 6.007, p 05.
71
Prefeitura presta homenagem ao dia do gari. O Triângulo, 16 de maio de 1987, n. 6.116, p 01.
124
Nesse sentido, interessa refletir como nas relações em torno do lixo, sobretudo, no
que se refere ao poder público, quase sempre, estava subjacente a tentativa de impor
mudanças a certos hábitos e costumes da população na intenção de formar e instituir
novos valores e comportamentos. Consideramos que os jornais colaboravam e, por
vezes, eram aliados nessa tarefa, por serem instrumentos do poder público na divulgação
de tais campanhas:
Com o propósito de orientar e conscientizar as pessoas que lançam lixo doméstico em terrenos
baldios, a Seção de Limpeza Urbana está executando trabalho de fiscalização neste sentido.
Portanto, caso venha a ser autuado em flagrante jogando lixo em terrenos baldios o fiscal da limpeza
interpolará o morador informando-o dos riscos que representa tal fato para a saúde e ao visual do
bairro, bem como dos dias e horários do caminhão da coleta de lixo. Esta medida está sendo
desenvolvida em caráter inicial e já em janeiro será dinamizada com maior número de fiscais sendo
que o primeiro bairro será o Brasil.
72
O texto publicado por O Triângulo demonstra como o poder público buscava, com
maior rigidez, instituir uma política de controle e fiscalização dos moradores que
cultivavam o hábito de jogar o lixo em terrenos baldios. Aliado a isso, a disposição do lixo
na calçada, mesmo sem saber o horário do caminhão de coleta ou se este passaria,
denunciava relevantes aspectos da cultura da população. Esse costume, somado à
precariedade dos serviços de coleta, contribuía para gerar vários problemas. A demora
para recolher o lixo dos tambores e latões apontava os limites dos serviços prestados pela
prefeitura. Apesar de ser uma prática que começava a ser considerada como anti-
higiênica, ela ainda permanecia porque era um recurso pelo qual se procurava amenizar a
deficiência na limpeza pública.
O texto indica uma tentativa de educar a população por meio de uma intrínseca
associação do lixo como ameaça à saúde dos moradores e ao visual agradável da cidade.
Propagava-se que o recolhimento do lixo estava sendo reformulado em alguns lugares e,
em outros, instituído. Fazia-se necessário moldar o comportamento das pessoas,
ensinando-lhes não mais jogar o lixo ao léu e, sim, a apresentá-lo pontualmente para a
coleta. Entretanto, no cotidiano da cidade, a questão do lixo exigia mais que a formação
de novos hábitos nos moradores, conforme noticia o Correio, em 1986:
72
Fiscais para a limpeza urbana. O Triângulo, 26 de novembro de 1985, p 06.
125
Os moradores de diversos bairros da cidade estão preocupados com a grande quantidade de lixo que
está se juntando nas ruas, devido a falta de caminhões para recolhê-los. O Departamento de Serviços
Urbanos da Prefeitura Municipal de Uberlândia informou que existem cinco caminhões quebrados há
mais de uma semana. Estes caminhões se encontram na oficina em processo de conserto, mas como
não há mecânicos suficientes para atender ao grande número de serviços, eles ainda não estavam
prontos até ontem à tarde.
73
Por certo, o lixo continuava a engendrar demandas ao poder público. Ao passo que
ele continuava a carecer de uma estrutura que permitisse atendê-las. A prestação de
serviços à população implicava lidar com situações assim: máquinas sem condições de
funcionamento nem reposição, atrapalhando a realização das atividades. As
conseqüências logo viriam: atraso nos serviço de coleta, sujeira pelas ruas da cidade e
incômodo para os moradores.
Diante disso, observa-se que, nos anos de 1980, o poder público empreendia um
conjunto de medidas para enfrentar o problema. Iniciativas como a instalação de “500
cestos de lixo em diversos pontos da cidade com maior concentração de pessoas: praças,
pontos de embarque de passageiros e portas de escolas”,
74
mostram maior atenção para
com a problemática do lixo. Mas, quando a receptividade aos cestos não ocorria como se
esperava, tendo sido depredados “a altas horas da madrugada”, apreende-se que as
questões em torno do lixo eram mais complexas e sinalizavam aspectos do viver urbano:
elementos do comportamento da população a exibir certas sociabilidades em
construção.
75
Assim, expandir a rede dos serviços de coleta, ampliar a quantidade de
equipamentos e instalar cestos de lixo, consistiam em soluções intermediárias que a
prefeitura apresentava para solucionar os problemas. Entretanto, pôde-se constatar que
gerenciar o lixo demandaria muito mais. Para além do que fora feito, a questão exigia
maior intervenção do poder público, sobretudo, no que se referia ao destino do lixo.
Os registros na imprensa apontam que, até meados de 1984, o lixo era destinado
em um terreno a céu aberto, num lixão, a 28 quilômetros de distância do centro da cidade.
Nesse local, escavavam-se valas, depositavam o lixo e cobriam-no com terra. As 130
73
Insuficiência de caminhões de lixo. Correio de Uberlândia, 28 de novembro de 1986, n. 14.510, p. 01.
74
Centro da cidade terá 500 cestos de lixo. O Triângulo, 11 de abril de 1986, n. 5.846, p. 04.
75
Prefeitura continuará substituindo coletores de lixo destruídos. O Triângulo, 09 de outubro de 1986, n. 5.970, p.
01.
126
toneladas de lixo produzidas diariamente pelos habitantes eram despejadas nessa área
sem controle ou fiscalização, o que favorecia “a utilização do lixo por pessoas ou animais
e a proliferação de insetos”.
76
Desta maneira, os lixões ajudavam a constituir o cenário urbano. Naquele momento,
o lixo já era um interessante sinal de como essa cidade crescia, organizava-se e
enfrentava carências, com suas contradições e desigualdades. O lugar em que se
depositava o lixo produzido, como as fontes indicam, era também espaço de trabalho e
forma de sobrevivência para alguns. Segundo o Secretário de Serviços Urbanos, Ilvio
Andrade:
(...) “verificamos que inúmeros porcos são criados na área e se alimentam do lixo que ali é depositado
diariamente. Esses porcos, evidentemente, são consumidos aqui em Uberlândia, trazendo riscos para
os consumidores... Ílvio Andrade argumenta que “esta obra significa um sossego para a saúde
pública, pois evita a proliferação de moscas, maus odores, vetores de doença. Os catadores de lixo e
criadores de porcos também não terão vez porque o aterro não será a céu aberto”, finaliza.
77
A presença de catadores nos lixões de Uberlândia pode ser apreendida em
referências na imprensa local ou nos documentos oficiais, embora preconceituosas, elas
registram a existência de pessoas que buscavam sua subsistência por meio do
aproveitamento dos restos. Relações em que o lixo pode ser entrevisto como alternativa
de sobrevivência para setores mais pobres da população. Práticas que foram, senão
silenciadas, ao menos pouco discutidas pela imprensa, a historiografia ou o poder público.
Por esses registros, não é possível saber muito sobre esses sujeitos. Eram homens,
mulheres, velhos ou crianças? Onde viviam, quem eram, o que recolhiam e de que
maneira aproveitavam esses refugos? Para perguntas dessa natureza não há sequer
indícios como respostas. Somente algumas poucas notícias nos jornais tratam da
atividade de catadores nos lixões, que parece se estender até meados da década de
1990, período que coincide com a história da existência dos lixões a céu aberto na cidade.
Entretanto, “os catadores de lixo e criadores de porcos” eram sujeitos e práticas
sociais que deveriam ser relegados ao esquecimento. Quando apareciam nos registros da
imprensa eram descritos de maneira desqüalificadora. No discurso oficial, eram
76
Zaire acompanhou o início de operação do aterro sanitário. Correio de Uberlândia, 06 de setembro de 1984, n.
13.962, p. 02
77
Aterro Sanitário: solução definitiva para o lixo urbano. Correio de Uberlândia, 02 de junho de 1984, n.13.683, p.
06.
127
considerados como uma ameaça à saúde pública, em que se estabelecia uma relação
entre o potencial de contaminação do lixo e a atividade desses sujeitos, classificados
como os “maiores agentes de doença”. Na visão do governo municipal, essas pessoas
eram um incômodo tanto quanto o lixo e, por isso, careciam ser expurgadas do convívio
social.
78
Nos primeiros anos da década de 1980, esses coletores não eram vistos pelas ruas
em número significativo como ocorre hoje. Com o lixo sendo despejado em áreas
distantes do perímetro urbano, os catadores recolhendo restos nos lixões não podiam ser
observados pela população. Ainda assim, suas atividades sugeriam as proporções do lixo
e de seu uso como meio de trabalho e sobrevivência na cidade naquele contexto
histórico. De qualquer forma, os lixões, como elemento da paisagem urbana, sinalizavam
para a crescente necessidade de o poder público apresentar alternativas para o destino
do lixo.
A destinação do lixo gerado na cidade, que tem sido motivo de preocupação constante da atual
Administração Municipal, terá uma solução definitiva no próximo mês com a implantação do aterro
sanitário...
79
Era preciso dar fim a ele, conquanto a quantidade produzida não gerasse maiores
receios:
O volume de lixo, no entanto, não chega a alarmar os técnicos da Secretaria de Serviços Urbanos,
que estão mais preocupados com a sua destinação final: um terreno a céu aberto, distante 28 km do
centro da cidade, em estrada de terra, na rodovia Uberlândia - Campo Florido.
80
Na visão do poder público, a situação ainda estava, relativamente, sob controle. A
questão do lixo é apresentada no texto de forma amena. O único inconveniente era o fato
de o lixo estar sendo jogado em local impróprio. Para lidar com isso, a administração local
via na construção do aterro sanitário “a solução definitiva” para os problemas do lixo
urbano. Ao se referir à trajetória do lixo na cidade de São Paulo, Miziara assegura que “a
78
“Na opinião do secretário Ednoser Damasceno”... Ver: Lixo poderá ser reciclado este ano. Correio de Uberlândia,
25 de fevereiro de 1993, n. 16.181, p. 10.
79
Aterro Sanitário: solução definitiva para o lixo urbano. Jornal “Correio de Uberlândia”, 02 de junho de 1984, n.
13.683, p. 06.
80
Destino do lixo deixa de ser problema. Participação, ano 1, n. 01, julho de 1984, p. 07.
128
construção de aterros sanitários, ou a idéia de sua criação, é a grande solução
encontrada para a destinação do lixo na década de 1970”.
81
Em Uberlândia, o aterro sanitário foi uma alternativa implementada já em 1984,
considerada um investimento viável devido às vantagens que supostamente traria. Um
projeto que custaria aos cofres públicos o valor aproximado de 12 milhões de cruzeiros,
mas que demorou quase dois anos para sair da fase de implantação. Quando foi
inaugurado, em 31 de agosto de 1984, dia do aniversário da cidade, o aterro sanitário foi
apresentado como um “grande benefício” para a população. Ao seu término, custou aos
cofres públicos não mais 12, e, sim, 30 milhões de cruzeiros, com as previsões da
Secretaria de Serviços Urbanos de que esse valor seria “recuperado em poucos meses”.
82
Aliás, nos projetos desenvolvidos pela prefeitura, não raro, apreende-se a idéia de
economia de recursos, ou, então, de lucro, na atividade de gerenciar o lixo. Com essa
premissa, o lixo passou a ser destinado a poucos quilômetros da cidade, o que tornava
mais fácil seu transporte, possibilitava manejar maiores quantidades de lixo em menos
tempo, além de poupar as máquinas e o combustível. Daí a razão pela qual a Secretaria
de Serviços Urbanos tenha previsto que os 30 milhões de cruzeiros seriam logo
resgatados. Acreditava-se que a gestão do lixo poderia fazer retornar aos cofres públicos
os custos anteriormente exigidos.
83
O lixão existente antes de se construir o aterro ficava em um terreno arrendado pela
prefeitura, em área rural. Naquele momento, mudava-se, então, a prática de destinar o
lixo às essas áreas, passando-se, agora, a despejá-lo em locais próximos ao perímetro
urbano. No primeiro aterro sanitário da cidade, o lixo domiciliar, depois de compactado,
era enterrado em valas e recoberto “apresentando uma superfície plana”, o que,
acreditava-se, favorecia “o aspecto visual”. Cada vala de 10 mil m
2
tinha capacidade para
receber lixo por um período de sete meses. A Secretaria de Serviços Urbanos assegurou
ter se “baseado em dados do IBGE, contendo projeções de aumento da população”, para
elaborar “o projeto do aterro sanitário, prevendo a construção de 24 valas para cobrir um
período de 12 anos”.
81
LOPES, Rosana Miziara. Nos Rastros dos Restos: A trajetória do lixo na cidade de São Paulo, op. cit., p. 33.
82
Secretaria de Serviços Urbanos entregará importantes obras. Correio de Uberlândia, 28 de julho de 1984,
n.13.934, p. 06.
83
Zaire acompanhou o início de operação do aterro sanitário. Correio de Uberlândia, 06 de setembro de 1984, n.
13.962, p. 02.
129
Essas políticas públicas trazem interessantes significados. Revelam o pressuposto
de que o lixo precisava ser destinado para longe do campo de visão das pessoas. Era
necessário que ele fosse aplainado a fim de que seu aspecto ruim pudesse ser
amenizado, ou seja, já se entremostrava uma certa aversão decorrente não apenas da
visão, mas também de outros elementos como a proximidade, quantidade e forma do lixo,
e a crença de que o procedimento de afastar e aterrar os restos eliminaria os problemas
que causavam.
Nessa perspectiva, o aterro pressupunha também uma visão de gerenciamento
pautada na técnica e na engenharia. Acreditava-se que ele consistia numa solução
moderna, ao passo que o lixão era considerado uma prática do passado, arcaica e anti-
higiênica, sinônimo de atraso e ameaça de doenças. O aterro, ao contrário, era símbolo
da racionalidade e do progresso, a inaugurar um novo tempo, de segurança e
tranqüilidade:
Para solucionar o problema a Secretaria de Serviços Urbanos partiu para a pesquisa de uma área
que prestasse para a implantação do aterro sanitário. Foram analisados diversos aspectos como
topografia, tipo de solo, profundidade do lençol freático, direção dos ventos dominantes e distância do
centro da cidade.
84
Assim, vemos a organização da cidade, “por princípio, essencialmente política”,
trazer em seu bojo projetos que revelavam as expectativas, ambições e interesses de
determinados grupos sociais, assim como os argumentos de que os benefícios futuros se
estenderiam a todos, sem distinção.
85
Na linguagem presente no texto, observamos,
ainda, a utilização de termos específicos, mostrando como o poder público, ao buscar
soluções para a questão do lixo, respaldava-se num discurso técnico e científico.
Não se pode deixar de notar como o jornal O Triângulo contribui para legitimar essa
postura, pois a notícia publicada reproduz na íntegra o técnico discurso sobre a
implantação do aterro. Uma tarefa para os técnicos da secretaria de Serviços Urbanos,
84
Aterro Sanitário: solução definitiva para o lixo urbano. Correio de Uberlândia, 02 de junho de 1984, n. 13.897, p.
06.
85
RONCAYOLO, Marcel. “Cidade”. In: Região. Enciclopédia Einaud. Imprensa Nacional/Casa da Moeda; Lisboa, vol.
08, 1986, p. 396-487. Na perspectiva do autor, a cidade é uma produção histórica, permeada por relações de poder, de
dominação, de resistência e de manifestações reveladas nas heterogêneas e contraditórias expressões da cultura urbana
vivida pelos sujeitos em seu cotidiano, constituindo então a cidade como lugar onde “... acumula-se uma grande soma
de experiências históricas”...
130
que eram competentes e detinham a melhor solução para o problema. Mais um exemplo
disso encontra-se em outra notícia publicada pelo mesmo jornal:
O vereador Evandro José Braga (PFL) solicitou em requerimento o envio de ofício ao Dr. Clayton
Rezende Nunes, engenheiro sanitarista e chefe da seção de recursos naturais da Secretaria
Municipal de Meio Ambiente convidando-o a comparecer à Câmara Municipal... para falar a respeito
de planos para a industrialização do lixo urbano. Em Uberlândia, cidade com 400 mil habitantes, (os)
problemas (com o) lixo urbano causam sérias preocupações.
86
Em nossa leitura, o lixo era visto como um problema técnico, para o qual se
propunha soluções modernas e eficientes. Vê-se como ele ia sendo considerado
atribuição de engenheiros e técnicos, fator que contribuía para a expressiva participação
de profissionais da área de engenharia nas decisões sobre o que fazer com o lixo da
cidade. Mas entendemos que falar do lixo como um problema técnico implica negá-lo
como propulsor de diversas disputas. O que se evidenciava na observação da realidade
urbana, pois os transtornos continuavam, demonstrando como a gestão do lixo perfazia
uma trajetória marcada por limitações e contradições.
As questões em torno do destino do lixo tendem a revelar que, apesar dos discursos
de planejamento, eficiência e técnica, as soluções propostas pelas autoridades públicas
não trouxeram os resultados prometidos ou esperados. Isso leva-nos a refletir sobre o fato
de que a pretensa racionalidade que buscava administrar a cidade não conseguia dar
conta da complexidade da vida urbana. Mesmo porque, segundo essa lógica de
“organização”, para limpar a cidade, bastava ao poder público expurgar o lixo para longe
dos olhares daqueles que não o toleravam, como se fosse o suficiente para harmonizar as
diferenças e os conflitos.
Essa realidade, em sua concretude, transparecia nas colunas de jornais. O Correio
de Uberlândia, em 1987, parecia pretender assumir a tarefa de denunciar os problemas
causados pelo lixo. Daí, nota-se, também, uma mudança na natureza das notícias, que se
tornavam mais constantes e incisivas. Segundo esse periódico:
Uberlândia que sempre se primou pela limpeza urbana, que sempre teve orgulho de suas vias
públicas, limpas e ricamente enfeitadas pelo brilho de suas lojas, hoje vê com tristeza o lixo se
86
Estação de tratamento de esgotos. O Triângulo, n. 7.035, p. 05.
131
amontoar pelas ruas sem pedir licença ou pagar qualquer imposto por ocupação indébita. A paciência
que a população tem demonstrado em ensacar seu próprio lixo e mantê-lo em local adequado não
tem encontrado respaldo, pois onde colocá-lo se não há o tal local apropriado, ou será que o mesmo
foi desapropriado? Ora, nos bairros a situação não é menos pior. E as praças? Sérgio Pacheco, Tubal
Vilela, Clarimundo Carneiro e todos os recantos verdes de nossa cidade? Sabemos que esforços tem
sido feitos, porém paliativos não são remédios eficazes. Há de haver uma saída ... senão, daqui a
alguns dias sentiremos saudades dos tempos de outrora: Uberlândia linda e respeitavelmente limpa!
87
Notícias como essa foram publicadas várias vezes nos anos de 1987 e 1988. Os
responsáveis pelas condições de limpeza da cidade são criticados pelo jornal, que
assegura que, em outros tempos, em outros governos, a cidade era mais limpa. O texto
faz referências pontuais a espaços públicos: ruas, praças e recantos verdes, lugares nos
quais o autor via lixo por toda parte.
Desta maneira, com humor, ironia e trocadilhos, o jornal aborda o problema do lixo,
articulando-o a questões políticas e projetando um ideal de cidade. Nada tão oportuno
como a questão do lixo para criticar um governo com o qual não se tinha afinidade
política. Já para a população que se deparava com tal problema no cotidiano, essa
parecia ser uma crítica contundente, pois apontava as dificuldades da prefeitura para
atendê-la com um mínimo de eficiência. Ao passo que os jornais, ao tratar a questão do
lixo, acabavam por expressar uma visão e um projeto de cidade. De forma ambivalente,
ao mesmo tempo que reforçavam valores e expectativas em torno da idéia de uma cidade
limpa, urbanizada e moderna, contribuíam para acentuar suas contradições.
Porém, em outro momento, notamos como o Correio tentou amenizar suas críticas
ao governo local. O jornal avaliou que havia sido feito esforços e investimentos, e atribuiu
parte dos transtornos ao contínuo crescimento da cidade. De fato, as críticas do jornal
reforçavam como o lixo ia tornando-se um problema no cotidiano urbano.
As fontes sinalizam que para dar conta do lixo era necessário que o poder público se
reestruturasse. As políticas públicas desenvolvidas para gerenciar os restos contribuíam
para redefinir os lugares de lixo; alteravam a geografia urbana à medida que
ambicionavam ordenar a cidade, mediante a lógica de que deve haver um lugar
tecnicamente apropriado para se depositar o lixo. Na constante insistência em certas
mudanças nas práticas da população quanto às maneiras de descartar, acondicionar e
87
Era uma vez uma cidade limpa. Correio de Uberlândia, 28 de outubro de 1987, n. 14.752, p. 01.
132
destinar o lixo, percebe-se como ele ia tornando-se objeto de planejamento no discurso e
nas ações dos administradores. As tentativas de manter a cidade limpa apontavam para
uma forma de ordenamento que desenhava a institucionalização dos lugares de lixo.
Como pondera Certeau,
... Se no discurso a cidade serve como um marco totalizante e quase mítico para as estratégias
socioeconômicas e políticas, a vida urbana permite cada vez mais a re-emergência do elemento que
o projeto urbanístico excluía. A linguagem do poder é em si mesma “urbanizante”, mas a cidade
torna-se presa dos movimentos contraditórios que contrabalançam e se combinam fora do poder
panóptico. A cidade passa a ser o tema dominante das legendas políticas, mas não é mais um campo
de operações programadas e reguladas...
88
Na cidade, o lixo era elemento a revelar inúmeras contradições. Os jornais apontam-
nas bem. As instituições que foram surgindo para cuidar dos restos sugerem o desejo de
controlar um problema cuja complexidade era cada vez mais crescente.
Ressalte-se que, durante alguns anos, secretários municipais e prefeitos foram a
outras cidades, estados e até a outros países para conhecer diferentes formas de
gerenciamento. O lixo ganhava espaço e importância nos discursos dos governos locais,
o interesse em conhecer experiências novas fazia-se acompanhar da pretensão de
apresentar um sistema de tratamento do lixo livre de “deficiências” e capaz de “evitar
falhas”.
89
Visitas a aterros e usinas de processamento em outras cidades consistiam
numa busca de parâmetros para resolver a questão do lixo em nível local. Esse era um
problema que atingia também outras regiões do país, que já implementavam medidas que
possibilitassem o aproveitamento dos restos.
90
Em Uberlândia, esses procedimentos
novos podem ter sido uma referência, mas reduziram-se a isso, pois, a despeito do
interesse dos administradores pelas várias técnicas, o aterro sanitário e a usina para
seleção do lixo só seriam implantados em 1997. Curioso constatar que, historicamente,
sempre se acenaram com propostas em torno da industrialização do lixo doméstico,
sendo que isso parecia indicar mais um desejo de modernizar-se do que uma consciência
verdadeira da necessidade de tal processo como alternativa diante da problemática do
88
CERTEAU, Michel de. “Andando na Cidade”. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Cidade, n.
23, Rio de Janeiro: IPHAN, 1994. p. 21-31.
89
Lixo em Uberlândia poderá sofrer alteração no processo. O Triângulo, 05 de outubro de 1993, n. 8.601, p. 04.
90
Em Uberaba, MG, segundo a imprensa local, em 1986 a Prefeitura inicia Usina do lixo com 35 milhões. Ver: O
Triângulo, 07 de outubro de 1986, n. 5.968, p. 05.
133
lixo na cidade.
91
Esse fato é corroborado em razão de que o lixo continuava a engendrar
problemas. Em 1989, o Correio de Uberlândia anunciava que o aterro sanitário era “uma
ameaça ao meio ambiente e à vida”.
O índice de poluição provocado pelo aterro sanitário da cidade, localizado cerca de 15km da Praça
Tubal Vilela, está alcançando um patamar preocupante para as autoridades municipais – que
garantem que vão transferi-lo o mais rápido possível - e até para técnicos da Universidade Federal de
Uberlândia. Segundo o professor do Departamento de Geografia da UFU, Irineu, que está fazendo
doutorado na área de solos, a situação do aterro sempre foi grave. “Desde o seu primeiro ano de
funcionamento, o aterro comou a se deteriorar e apresentar problemas de contaminação do solo e
das águas dos córregos próximos a ele”, garante o professor...
92
Cinco anos após sua implantação, o primeiro aterro sanitário da cidade era
considerado uma ameaça e deveria ser substituído. Planejado para servir por um período
de doze anos, não duraria nem a metade.
93
As normas técnicas de engenharia sanitária
que orientaram os técnicos da Secretaria de Serviços Urbanos estavam sendo
questionadas.
Entretanto, quando a administração que, naquele momento, assumiu o poder,
revelou a intenção de implantar um novo aterro, o Secretário de Serviços Urbanos entrou
“em contato com técnicos e engenheiros para vistoriarem a área nova”, o professor de
Geografia da UFU, Irineu, teve atribuída a ele, no Correio de Uberlândia, a respectiva
declaração:
“Não quero trabalhar sozinho neste projeto e não quero leigos dando opiniões erradas. Por isso
estamos pedindo aos especialistas de solo e questões ambientais para que se juntem a nós nesta
empreitada. Desta forma, tenho certeza de que enquanto as usinas de tratamento não são
implantadas, essa medida paliativa será menos prejudicial à saúde pública.”
94
Seu comentário foi elucidativo de relações estabelecidas no âmbito do poder público
que, de certa maneira, contribuíram na definição das políticas voltadas para o problema
do lixo. A documentação mostra como engenheiros químicos, engenheiros sanitários,
91
Ferolla e assessores conhecem em Rio Preto destinação final do lixo. O Triângulo, 03 de fevereiro de 1994, n.
8.699, p. 05.
92
Aterro Sanitário é fonte poluidora. Correio de Uberlândia, 19 de março de 1989, p. 05.
93
Aterro Sanitário: solução definitiva para o lixo urbano. Correio de Uberlândia, 02 de junho de 1984, n. 13.897, p.
06.
94
Aterro Sanitário: uma ameaça ao Meio Ambiente e à vida. Correio de Uberlândia, 19 de março de 1989, p. 05.
134
geógrafos e até administradores de marketing ajudaram a fundamentar as atitudes dos
governos locais ao lidar com o problema do lixo. O que expôs a complexidade dessa
questão, cuidar do lixo passava a exigir a atuação de profissionais de diversas áreas do
conhecimento, que, em conjunto, assessoravam e apontavam alternativas para os
problemas com os quais a cidade se defrontava. Soma-se a isso o fato de que surgiam
outros elementos, como a cobrança de critérios ambientais, contribuindo para redefinir
esse quadro. De fato, a questão ambiental já aparecia na imprensa, em fins de 1980, isso
se tornou mais visível, por exemplo, na atuação da Secretaria de Meio Ambiente e de
algumas Associações de Moradores.
95
Mas embora as medidas tomadas em relação ao problema do lixo tenham sido
alardeadas como técnicas e científicas, e tenham servido para legitimar as ações do
poder público, elas não significaram garantia de acertos. Os argumentos daqueles que
decidiam, mesmo imbuídos de rigor científico, apresentavam muitas contradições. Importa
refletir, como o faz Fenelon, o quanto isso desvela uma contradição dos “planos e
políticas oficiais sempre justificadas como o necessário caminho do progresso e da
modernidade”.
96
Nesse sentido, em 1989, o local de depósito do lixo urbano foi novamente
transferido. Apesar dos alardes de que o aterro era fonte de poluição e ameaça ambiental,
a prefeitura permaneceu utilizando o depósito por mais alguns meses. Na ocasião, o
Secretário de Serviços Urbanos, Adalberto Duarte, assegurara que “qualquer outra área
será menos prejudicial, desde que longe das nascentes”.
97
Assim, em abril daquele ano, o
lixo começou a ser destinado a quatro quilômetros do mesmo local. Meses depois, esse
novo aterro também já não era mais considerado adequado:
O atual aterro sanitário funciona a 24 km do centro de Uberlândia, nas margens da BR-497, que liga o
município à cidade do Prata. Depois de implantado, em abril, ele apresentou “alguns inconvenientes”.
Segundo Adalberto Duarte, nele existe o risco de contaminação do lençol freático, embora esteja
95
Nos jornais, encontramos referências sobre a criação da Secretaria de Meio Ambiente, em 1985, a regulamentação da
Lei Ambiental, em 1987, e a existência da COPAM (Comissão de Política Lei Ambiental), cuja função era fiscalizar o
problema do lixo na cidade e debater questões relacionadas com isso.
Prefeitura cria nova secretaria (Meio Ambiente). O Triângulo, 04 de dezembro de 1985, p. 01.
Cidade vai ganhar sua Lei Ambiental. O Triângulo, 03 de junho de 1987, n. 6128, p. 01.
Fiscalização contra poluição. O Triângulo, 09 de abril de 1987, n. 6093, p. 07.
96
FENELON, Déa Ribeiro, Cidades, (Org.). Publicação do Programa de Estudos Pós Graduados em História da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nov. 1999. “Introdução”. São Paulo: Olho d’Água. p. 07.
97
Aterro Sanitário: uma ameaça ao Meio Ambiente e à vida. Correio de Uberlândia, 19 de março de 1989, p. 05.
135
funcionando normalmente e recebendo diariamente cerca de 180 toneladas de lixo. Para que não
haja este problema quando da construção do novo aterro sanitário, o secretário disse que ele será
construído em uma área
cuja terra é apropriada. Mais compacta, com lençol freático profundo e
distante das nascentes de água. Além disso, completou o secretário, a área deve contar com toda
infra-estrutura, com água, luz, esgoto e acesso asfaltado.
98
O texto delineia os desacertos que marcaram a trajetória do lixo em Uberlândia.
Esse relato, publicado na imprensa local, leva-nos a crer que, do ponto de vista dos
administradores, o essencial era dar fim ao lixo produzido, as conseqüências se veriam
depois. Nesta perspectiva, a transferência do depósito de lixo implicava o fato de que,
novamente, na história do lixo na cidade, os restos eram despejados na zona rural. O
novo depósito de lixo localizava-se “nas nascentes do córrego dos Macacos, na Bacia do
Ribeirão Douradinho”. A área abrangia uma extensão de quase 15 mil m
2
e o lixo
começava a ser destinado no local com o intuito de eliminar a erosão. Considerava-se
vantajoso que o aterro se localizasse a 23 quilômetros do centro urbano: evitaria “o
contato direto de catadores” e, além disso, os custos com o aluguel de uma área
degradada eram menores.
A transferência da área de destinação dos resíduos sólidos urbanos das nascentes do córrego das
Pedras para a área das nascentes do córrego dos Macacos não seguiu nenhum critério ambiental,
muito ao contrário, ignorou todas as orientações ambientais que diziam ser essa uma medida
desastrosa. Na época, a partir das muitas críticas, o Secretário de Serviços Urbanos da Prefeitura
Municipal de Uberlândia, Sr. Adalberto Duarte, procurou professores da Universidade para que
fizessem estudos que indicassem áreas para a instalação de um aterro sanitário e que levassem em
conta critérios ambientais, além dos critérios econômicos. Foi elaborado um estudo preliminar que
nunca foi levado a cabo, por falta de recursos financeiros.
99
O texto acima faz parte do Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de
Uberlândia, produzido, em 2002, por um grupo de professores Universidade. Salientamos
que há uma especificidade neste relatório. Ele foi solicitado pela administração Zaire
Rezende, a mesma que, há vinte anos, instalara o primeiro aterro sanitário. Por ter a
pretensão de resgatar uma trajetória das políticas públicas para a questão do lixo na
98
Prefeitura já tem áreas para construção do aterro sanitário. Correio de Uberlândia, 02 de agosto de 1989, n.
15.179, p. 03.
99
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, Secretaria de Ciência e Tecnologia.
Administração 2001-2004. p. 75.
136
cidade, esse registro precisa ser analisado no conjunto das articulações e disputas
políticas locais.
Vale destacar, ainda, que se os fatores ambientais não justificavam a mudança do
depósito de lixo, isso sugestiona que os pressupostos que norteavam a administração do
lixo continuavam pautando-se pela economia de recursos. Tratava-se de uma situação
conveniente tanto para a prefeitura, que precisava definir outra área para o despejo do
lixo, como para o proprietário, que pretendia combater a erosão de sua propriedade com o
aterramento dos resíduos. Observamos que os mesmos problemas que justificaram a
mudança do local de depósito do lixo: o solo não ser apropriado e ser próximo de uma
nascente de água, depois, foram constatados também neste novo local.
Um levantamento feito pelo departamento de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia nos
dois aterros sanitários da cidade, localizados em uma área de erosões, sob orientação do geógrafo
Samuel do Carmo Lima constatou que o lençol freático (nascente de água que corre no subsolo) está
sendo contaminado pelo “xorume”, espécie de líquido viscoso e escuro do processo de
fermentação.
100
Esse levantamento, a que se refere o Correio de Uberlândia, também foi
mencionado no Relatório de Avaliação Ambiental. À época, os professores da
Universidade alegaram que a prefeitura já havia contaminado uma área e agora estava
comprometendo outra.
101
Entretanto, ao emitirem suas opiniões, esses profissionais não
obtiveram a atenção do poder público. Isso revela que, na implantação de certas políticas
públicas para dar solução ao problema do lixo, as administrações locais, não raras vezes,
ignoraram os alertas de alguns professores da Universidade comprometidos com tal
temática. Diante disso, isoladamente, sem um posicionamento mais consistente por parte
da instituição a que eram vinculados, tais profissionais não conseguiram mobilizar-se
numa ação que pudesse evitar o mal de que advertiam. Na verdade, faltou, até mesmo
entre eles, um entendimento que pudesse levá-los a se organizar de forma efetiva e,
assim, fazer-se ouvir pelas autoridades públicas. Afinal, é expressivo o número de
100
Aterro sanitário polui nascente subterrânea. Correio de Uberlândia, 08 de novembro de 1989, n. 15.246, p. 01.
101
Em 1990, o professor Samuel do Carmo Lima publicou um artigo em que discutia os riscos e as medidas necessárias
ao se escolher uma área para instalação de um aterro sanitário. Seu objetivo era alertar a prefeitura para que evitasse
repetir o mesmo erro. Mas a realidade mostrou que seus avisos foram em vão.
137
professores da Universidade, cujos nomes aparecem na imprensa, que, preocupados com
a questão ambiental, envolveram-se no debate sobre esse problema.
Ademais, a prática de depositar lixo num determinado local com o objetivo de
combater a erosão também foi criticada por geógrafos e ambientalistas, que alegaram ser
esta uma medida prejudicial e pouco eficaz. Em setembro de 1990, outras denúncias
envolvendo o despejo irregular de lixo são publicadas pelo Correio de Uberlândia:
Funcionando a menos de dois kms de uma escola e rodeado por pequenas propriedades rurais, o
lixão de Uberlândia recebe de 45 a 50 toneladas de lixo por dia. Com o mau cheiro intenso, a área
utilizada não passa de um buraco provocado pela erosão do solo que recebe detritos industriais e
hospitalares sem qualquer tratamento especial, o que na opinião de ambientalistas compromete a
água, as plantas e o ar da cidade...
102
O descaso com o qual a questão do lixo vinha sendo tratada explicitava-se com a
existência do lixão na zona rural, perto da Escola Municipal Presidente Costa e Silva. A
comunidade escolar e as famílias das crianças ficavam obrigadas a conviver com o mau
cheiro e a presença dos restos. Era muito comum, durante a tarde, que os caminhões
trafegassem em frente à escola levantando poeira e disseminando o odor do lixo por
todos os espaços.
103
Segundo o Relatório de Avaliação Ambiental, outras irregularidades
também foram constatadas, como o fato de que “o lixo proveniente das indústrias” era
despejado no local, independente do “seu grau de periculosidade, havendo, inclusive,
como mostrou uma pesquisa de campo realizada na época, descargas clandestinas e
noturnas”. Tudo isso serve para apontar as contradições que norteavam a administração
do lixo. Não raras vezes, os jornais noticiavam situações em que certos tipos de lixo, que
não deveriam, estavam sendo depositados no aterro, retratando a indefinição como marca
do problema. Uma realidade, não gratuita, que se articulava perfeitamente à maneira
como se encaminhava a questão do lixo na cidade.
104
O período compreendido entre o final da década de 1980 e a década de 1990 foi
marcado por profundas mudanças na gestão do lixo em Uberlândia. Um aspecto
fundamental nesse processo era a forma como se intensificava a participação de
empresas privadas no setor de limpeza pública. Um campo cuja atuação do poder público
102
Uberlândia não trata o lixo que produz. Correio de Uberlândia, 23 de setembro de 1990, p. 01.
103
Lecionei nessa escola durante o primeiro semestre de 1995, ano em que a prefeitura ainda despejava o lixo na região.
104
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, Secretaria de Ciência e Tecnologia, p. 76.
138
era alvo constante das reclamações dos moradores. Em 1989, o Secretário de Serviços
Urbanos, Adalberto Duarte, alegou:
“Ou conseguimos o maquinário necessário e nos preparamos para realizar um serviço à altura da
população uberlandense ou nos preparamos para dar à iniciativa privada os serviços de limpeza da
cidade”.
105
No jornal O Triângulo, o Secretário declarou que as condições da Secretaria de
Serviços Urbanos eram péssimas, que faltavam equipamentos, máquinas e homens em
número suficiente para atender às demandas da cidade. Ele comentou, ainda, sobre o
crescimento da população e o fato de que, em sua opinião, a administração anterior não
investiu como deveria na ampliação desse setor. Com isso, o Secretário pretendia
justificar a possibilidade de concessão dos serviços de limpeza pública à iniciativa
privada. Em seu argumento, se a prefeitura não tinha como oferecer bons serviços, as
empresas particulares então teriam.
Nos anos seguintes, discursos como esse tornaram-se freqüentes. Em 1990, Luiz de
Freitas Neto, presidente da Câmara Legislativa, sugeriu ao prefeito que “o recolhimento
de lixo e a limpeza urbana” fossem realizados por meio de “empresas particulares”. Ele
explicou que o lucro obtido com a venda de materiais recicláveis seria da empresa. Mas,
em compensação, a prefeitura economizaria, pois iria deixar de gastar com máquinas,
caminhões e funcionários. Sua idéia era a de que essas empresas prestariam melhores
serviços devido à “natureza particular de suas iniciativas”. Com o aproveitamento do lixo,
o aterro sanitário, “outra fonte de problemas para a prefeitura”, tornar-se-ia desnecessário.
Seus argumentos são reveladores de que a terceirização dos serviços de limpeza pública
fundamentava-se, também, na crença do poder público de que estaria, assim, livrando-se
dos problemas decorrentes do lixo.
“Transferir a responsabilidade pela coleta do lixo do município para a iniciativa
privada” passou a ser um projeto defendido, com freqüência, pela administração local. O
assunto era temas de reuniões, palestras e seminários. O prefeito chegou a receber a
visita de diretores da EBEC (Empresa Brasileira de Engenharia e Comércio), interessados
105
Privatização da limpeza pública. O Triângulo, 18 de maio de 1989, n. 7.295, p. 06.
139
na concessão dos serviços. Essa empresa, especialista no assunto, era responsável pela
administração da coleta de lixo em quatro cidades do estado de São Paulo.
106
Em 1992, O Triângulo, na seção Reclame, publicou queixas de moradores sobre o
“lixo jogado em passeios e até nas ruas”. Na ocasião, o diretor de limpeza urbana
explicou que o problema era a “falta de pessoal para atender toda a cidade”. Por isso só
se varriam as ruas do centro. Esclareceu, ainda, que a alternativa encontrada pela
prefeitura consistia em “privatizar o setor”, argumentando que, “com a privatização, o
melhoramento na varrição das ruas nos bairros será inevitável”. Essa atitude do poder
público marcava a inserção das empresas particulares no setor de limpeza urbana.
Atividades antes executadas pela prefeitura começavam a ser atribuídas a várias delas.
As gradativas transformações no âmbito da prestação de serviços públicos denunciavam
as opções políticas que iam sendo tomadas e que afrontavam diretamente os direitos e os
interesses da população.
107
Mas, ao cumprir com rigor uma agenda de terceirizações, a administração também
enfrentava alguns contratempos, como o que ocorreu quando uma concorrência foi
cancelada porque os preços apresentados pelas empresas estavam muito acima dos
valores pagos pela prefeitura. Em outra ocasião, a imprensa publicou uma notícia sobre
“denúncias de subemprego e utilização de mão-de-obra de menores”. Segundo o diretor
da divisão de limpeza urbana, tratava-se, na verdade, de uma única empresa que não
pagara devidamente os funcionários, e a prefeitura, “como co-responsável”, teve que
arcar com as despesas. No que se refere à utilização da mão-de-obra de menores, o
secretário assegurou que não tinha conhecimento de caso algum. Porém, essas não
foram as únicas ocasiões em que a prefeitura viu-se no papel de mediadora dos conflitos
entre as empresas privadas que lhe prestavam serviços e os trabalhadores por elas
contratados.
106
Empresa propõe privatizar coleta do lixo. O Triângulo, 27 de junho de 1990, n. 7.581, p. 01 e 03.
107
Leitores reclamam dos entulhos e dos terrenos baldios. O Triângulo, 17 de janeiro de 1992, n. 8.089, p. 06.
A empolgação do poder público local com a terceirização, no início da década de 1990, era justificada pela
racionalização de recursos e pela contenção de gastos. A prática política de delegar à iniciativa privada a prestação de
determinados serviços públicos tinha por argumento que isso acarretaria maior qualidade, competitividade e
produtividade. Pressupostos que a realidade mostrou serem muito contraditórios. De fato, esse não era um projeto
político isolado, articulava-se às transformações decorrentes do próprio sistema capitalista, o Neoliberalismo, que, ao
propor o chamado Estado Mínimo, cada vez menos intervencionista, deixa de assumir determinados deveres e
responsabilidades sociais para com a população. Sobre a precarização das relações e das condições de trabalho mediante
o processo de terceirização, ver FARIA, Aparecido de. “Terceirização: um desafio para o movimento sindical”. In:
140
Se, por um lado, a necessidade de expansão da Secretaria de Serviços Urbanos
poderia ser um indicativo das demandas em torno da limpeza pública na cidade, por
outro, esse discurso serviria também para justificar as licitações cada vez mais
freqüentes. Com isso, o lema dessa administração passava a ser: contratar empresas era
“melhor e mais econômico do que montar uma estrutura funcional” para a realização dos
serviços públicos. Difundia-se a idéia de que a limpeza da cidade poderia ser feita com
mais eficiência e velocidade por meio das empreiteiras.
108
Um outro aspecto importante é que, para além do interesse em economizar, havia
também uma certa euforia nas contratações. Para as empresas, o contrato com a
prefeitura era vantajoso e lucrativo. Um dado revelador disso é o fato de que em um dos
primeiros processos de licitação dez empresas candidataram-se.
109
Sinal de como a
prestação de serviços na limpeza pública tornara-se um interessante negócio, para o qual
se propunham novas tecnologias e avançadas soluções, em que
(...) o lixo revela-se, assim, como um lucrativo filão de mercado, e a iniciativa privada se organiza para
explorá-lo, criando ainda uma imagem de “salvadora”, na medida em que estaria contribuindo não
para a limpeza da cidade mas para a melhoria da qualidade de vida. As empreiteiras se
encarregariam de deixar a vida na cidade mais agradável, dando cabo aos tão repudiados dejetos.
110
Desse modo, no início da década de 1990, as empresas particulares já atuavam
praticamente em todo o setor de limpeza pública em Uberlândia. Elas eram responsáveis
pelo serviço de varrição das ruas e capina de áreas públicas. Nas várias ocasiões em que
falou em público, em 1993, o Secretário de Serviços Urbanos explicou que a usina de lixo
era uma das metas de sua secretaria para aquele ano. Porém, como isso exigiria
investimentos de um custo muito alto, a alternativa apontada seria uma parceria com a
iniciativa privada. “Se houver a participação de empresariado teremos condições de fazê-
lo o mais rápido possível”.
111
Nessa parceria, incluir-se-ia também a coleta do lixo:
Terceirização: Diversidade e Negociação no Mundo do Trabalho. Martins, Heloísa de S. e Ramalho, José Ricardo. São
Paulo: Hucitec Cedi/Nets, 1994.
108
Serviço de capina nos bairros acelerado. O Triângulo, 28 de janeiro de 1994, n. 8.694, p. 04.
Secretário revela que 70% dos bairros já sofreram a limpeza. O triângulo, 23 de março de 1993, n. 8.438, p. 03.
109
Limpeza pública terá hoje o resultado de sua concorrência. O Triângulo, 10 de fevereiro de 1993, n. 8.405, p. 05.
110
LOPES, Rosana Miziara. op. cit., p. 182.
111
Lixo: secretário tem proposta. O Triângulo, 04 de março de 1993, n. 8.422, p. 16.
141
A Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, já começa a preparar o edital de licitação que visa
privatizar a coleta e limpeza urbana de Uberlândia. A empresa que ganhar a concessão deverá
instalar uma usina de beneficiamento e reciclagem de lixo doméstico.
112
Com essa notícia, O Triângulo demonstrava um certo empenho em apresentar os
supostos benefícios da terceirização. Nessa mesma reportagem, o jornal fazia referência
a estudos do Banco Mundial que revelavam as vantagens da terceirização dos serviços
de limpeza urbana pelas administrações públicas, dentre elas, “as reduções de custos e
melhoria de atendimento ao público”. Ainda segundo o jornal, as prefeituras lançaram
mão de tal recurso para dar mais atenção à elaboração de políticas, regulamentação,
fiscalização dos serviços e atividades de assessoria. O texto mencionava, também, uma
informação do Secretário Municipal de que a terceirização parecia ser uma tendência em
países como Argentina, Colômbia e Chile. Informava, também, que, no Brasil, mais de
cem cidades já haviam privatizado seus serviços de limpeza urbana. Assim, O Triângulo
parecia demonstrar afinidade com o projeto de terceirização, haja vista que, em suas
colunas, essa alternativa era difundida com freqüência.
O jornal Correio do Triângulo, por sua vez, também colaborava nessa tarefa, porém,
com menos esforços. Ainda assim, é intrigante que os jornais tenham dado destaque ao
debate sobre a terceirização no setor público num momento em que a prefeitura via isso
como uma estratégia para melhorar as condições da limpeza pública na cidade.
113
Nessa perspectiva, certos acontecimentos também apontam alguns conflitos
simultâneos às tentativas da prefeitura de organizar o processo de gestão do lixo. No
início de 1995, a imprensa publicou diversas reclamações dos moradores em razão de
problemas com a coleta do lixo em vários bairros da periferia. Em meio a essas notícias,
O Triângulo, que tanto fez a defesa da terceirização desses serviços, viu-se na
contingência de ter que divulgar o confuso processo de licitação pelo qual,
(...) de acordo com a Abrelp (Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública), os serviços
de coleta, varrição, e disposição do lixo poderão se tornar deficientes, porque apenas empresas sem
experiência no setor podem participar do processo de concorrência. Isso aconteceu porque a
112
Privatização da Limpeza Urbana vai garantir cidade mais limpa. O Triângulo, 02 de março de 1994, n. 8.720, p.
04.
113
Cresce mão-de-obra terceirizada no país. Correio do Triângulo, n. 16.129, p. 06. Privatizações em todo o
mundo somaram US$53 bilhões em 92. Correio do Triângulo, 04 de março de 1993, n. 16.187, p. 07.
142
comissão de licitação exagerou tanto no julgamento da inabilidade de empresas especializadas,
quanto ao definir a habilitação das não qualificadas, aceitando documentações incompletas,
especialmente a respeito da demonstração da aptidão técnica para usar os serviços licitados.
114
A respectiva notícia informava, ainda, que sete outras empresas que se
apresentaram, acabaram por desistir, e as que permaneceram foram as construtoras
Araguaia Minas, Centro Oeste e Queiroz Galvão. Sobre esse assunto, o Secretário de
Serviços Urbanos comentou apenas que era preciso aguardar o resultado do
procedimento licitatório para que a empresa vencedora iniciasse os trabalhos. Ele
argumentava que seria preciso comprovar os valores oferecidos e averiguar se não
seriam feitos pedidos de impugnação. Segundo ele, “tudo questões técnicas”. Seria
mesmo? Afinal, o resultado oficial do certame seria modificado por outros acontecimentos.
Em novembro de 1994, a Construtora Araguaia Minas venceu a concorrência para
controlar os serviços de limpeza. A empresa ficaria responsável também pela implantação
do aterro sanitário e da usina de reciclagem de lixo. Mas, em fevereiro de 1995, a
Construtora Centro Oeste (CCO), que ficara em segundo lugar no processo de licitação,
entrou com uma ação judicial contra a Araguaia Minas, alegando que ela não apresentou
documentação que comprovasse sua experiência na construção de usinas de lixo.
115
Meses depois, uma liminar foi concedida, e a Araguaia Minas, desclassificada. Com isso,
a CCO assumiu os serviços. Todos esses problemas com a licitação, e o seu desfecho
final, contrariavam a afirmação do Secretário de Serviços Urbanos, Edinoser Damasceno,
que, ao tentar explicar a demora para a conclusão do processo, disse tratar-se apenas de
questões técnicas.
116
Uma análise dos acontecimentos demonstra que a disputa entre as empresas foi
acirrada. Dez empresas se inscreveram, somente três mantiveram suas propostas até o
final, dentre elas, duas das maiores construtoras da região. Concluído o processo, este foi
alterado em razão dos conflitos entre elas. De fato, não se tratava de uma questão
técnica.
A Construtora Centro Oeste talvez tenha tido melhores condições de garantir para si
a concessão dos serviços. Os motivos disso podem ter sido os questionamentos
114
Empresas capacitadas fora da coleta de lixo. O Triângulo, 06 de janeiro de 1995, n. 8.965, p. 01 e 03.
115
Limpeza urbana agora com Araguaia. O Triângulo, 24 de fevereiro de 1995, n. 9.007, p. 03.
116
CCO ganha o direito de construir usina. Correio do Triângulo, 11 de maio de 1995, n. 18.862, p. 08.
143
levantados pelo jornal O Triângulo acerca da falta de coerência nos critérios estabelecidos
pela prefeitura para que as empresas apresentassem as propostas. Esse jornal publicou
uma declaração da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública, que
assegurava que as empresas que permaneceram na concorrência não tinham experiência
na construção de aterros sanitários. Avaliamos que isso que pode ter fragilizado o
processo e possibilitado à CCO vencer a concorrência, conquanto ela fosse também
inexperiente nesse setor.
A CCO é uma grande empresa, conhecida na região por atuar na construção civil, e,
inclusive, na prestação de serviços ao poder público. Ela construiu obras grandes como a
rodovia que liga Uberlândia a Prata e o estádio do Parque do Sabiá, o que significa dizer
que, durante muitos anos, conseguiu garantir sua participação na construção de várias
obras para a prefeitura. Mas a Araguaia Minas também prestava muitos serviços à
administração pública. Grande parte das obras de asfaltamento e reconstrução de vias
públicas eram realizadas por ela. Isso mostra que as duas construtoras eram importantes
empresas da região e detinham a hegemonia para atuar junto à prefeitura. Na disputa
com a Araguaia Minas para assumir o controle do lixo na cidade, a CCO venceu.
Contudo, nem a imprensa nem a prefeitura contribuíram para esclarecer os
acontecimentos, uma vez que a CCO também não tinha experiência na construção de
aterros sanitários. Ao obter a concessão, ela subcontratou uma outra empresa a Limpel
Atividades Urbanas LTDA , para implantar a usina de lixo e gerenciar o aterro
sanitário.
117
Essas fatos incitam-nos a refletir dimensões da terceirização dos serviços de
limpeza pública em Uberlândia, processo que envolveu intensas disputas políticas. A
atuação das empresas, aliada a uma conveniente omissão da prefeitura, constituía um
jogo de forças em que se delineavam interesses e conflitos nas relações em torno do lixo.
Situações como essa deixam transparecer a rede de negócios que, paulatinamente, o lixo
produz, assim como o quanto as relações estabelecidas em torno dele são multifacetadas
e antagônicas.
Problematizar essas relações implicou ver o lixo como elemento propulsor de
intensos conflitos. Como na ocasião em que a prefeitura escolheu a área para a
117
CCO termina na próxima semana o lote II da rodovia Uberlândia/Prata. Correio de Uberlândia, 03 de agosto
de 1984, n. 13.940, p. 01. Ver também Correio de Uberlândia - Negócios, 19 de novembro de 1989, p. 15.
144
instalação do aterro. A princípio, o local seria nas proximidades do Cidade Jardim, porém,
os moradores, mobilizando-se contra isso, organizaram uma campanha de assinaturas e
buscaram o apoio do vereador Aniceto Ferreira, na tentava de que o poder público
escolhesse outra área.
118
Devido às pressões dos moradores, a prefeitura cedeu e resolveu escolher outra
área para instalar a usina, fazendo, então, uma permuta com a CEMIG Centrais
Elétricas de Minas Gerais de uma área no Distrito Industrial. Mas alienar um patrimônio
do Município acarretava a autorização do Poder Legislativo, por isso, um projeto foi
enviado à Câmara de Vereadores.
Na ocasião em que ocorreu esse debate, estabeleceu-se uma enorme polêmica.
Alguns vereadores da oposição solicitaram a presença de professores da Universidade,
dos Secretários de Serviços Urbanos e de Meio Ambiente, Leoni Gargalhone, “para
discutirem o projeto do executivo”. Os argumentos contrários à construção do aterro,
naquela área, apresentados por alguns professores e vereadores consistiam na “falta de
estudos ambientais prévios que indicassem ser essa área adequada para essas
finalidades”, assim como a “presença da belíssima cachoeira dos Dias, que indicava para
essa área um grande potencial turístico e de lazer”.
119
Em novembro de 1994, debates, denúncias e protestos de ecologistas e políticos
marcaram as sessões na Câmara Municipal. Na leitura do registro desses eventos,
constatam-se algumas dissidências, que esboçaram alertar para os problemas que
haveria com a implantação do aterro. No dia 17 daquele mês, professores da
Universidade, convidados a se manifestarem-se, assim o fizeram.
O professor Samuel do Carmo Lima argumentou quanto às condições ambientais da área escolhida
onde o projeto será instalado. Marilena Schneider salientou o projeto de despoluição do rio
Uberabinha e explicou que a área proposta não é um local adequado para instalação de uma usina
de reciclagem.
120
Naquele dia, outros sujeitos também apresentaram sua visão sobre o que ocorria:
118
Cidade Jardim não quer aceitar permuta de área. O Triângulo, 23 de novembro de 1994, p. 04.
119
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, p. 81.
120
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Atas do Legislativo, 17 de novembro de 1994, p. 03.
145
O vereador Aniceto Ferreira registrou a presença dos trabalhadores da Cemig e Sindicato dos
Eletricitários, os quais demonstram preocupação quanto a implantação da usina de reciclagem de lixo
e aterro sanitário.
121
O Correio do Triângulo noticiava parte desses acontecimentos, deixando entrever a
polêmica que se estabelecia:
O vereador Aniceto Pereira (PT), denunciou na semana passada que o aterro sanitário contido no
projeto de autoria do Executivo, em discussão na Câmara Municipal, iria contaminar o que resta de
uma das áreas de mata ciliar. Durante toda a semana passada o debate sobre a área apropriada
tomou conta das sessões. Diante de pressões, o líder do prefeito na Câmara, Hélio Ferraz (PFL),
retirou o projeto para fazer alterações. Ontem, o substitutivo do prefeito foi colocado em discussão na
última sessão ordinária do período, mas a falta de quorum impediu que ele fosse votado.
122
Observa-se, então, que devido às pressões e à visibilidade que a discussão ganhara
na imprensa, o prefeito viu-se obrigado a alterar o projeto. Uma mudança, que, segundo o
vereador Aniceto Ferreira, não iria “resolver o problema”, pois a construção do aterro
sanitário, “em uma área anexa, a 1 km de distância”, ainda seria um prejuízo ao município
e aos moradores daquela localidade. Naquela ocasião, o jornal publicou a argumentação
do vereador de que “o parque turístico não acontecerá porque é incoerente uma área de
turismo ecológico junto a um aterro sanitário”. Ao dizer isso, o vereador foi acusado, por
um colega, “Aristides de Freitas (PRN), de estar criando um quiproquó na imprensa para
fazer politicagem”. Na verdade, para obter a aprovação do projeto para a construção do
aterro sanitário, os aliados do prefeito precisavam desqualificar os argumentos contrários,
que, na Câmara Legislativa, não eram muitos, uma vez que “somente os vereadores
Aniceto Ferreira e Liza Prado manifestaram-se contrários ao projeto” do prefeito Paulo
Ferolla.
123
Todo esse debate foi acompanhado e apresentado pelos jornais. Em se tratando do
Correio do Triângulo, o processo de votação foi observado atentamente:
O líder do prefeito na Câmara passou a sessão tenso, quase não falou, pouco riu e parecia ansioso
para votar o projeto. O vereador Custódio Gonçalves (PMDB) e Onofre de Oliveira (PSD) defenderam
a proposta do Executivo alegando que ela é transparente e justa. Custódio Gonçalves disse que se a
121
Idem.
122
Prefeito muda área de aterro sanitário. Correio do Triângulo, 22 de novembro de 1994, n. 16.718, p. 07.
123
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Atas do Legislativo, 21 de novembro de 1994, p. 03.
146
prefeitura resolver instalar o aterro sanitário na primeira área ainda caberá aos vereadores o recurso
à justiça. “Se acontecer depois a gente resolve depois, o importante agora é votar o que está aqui”
defendeu.
124
O autor do texto chega a ser detalhista à medida que parece querer analisar o
estado psicológico dos que estavam presentes. No entanto, percebemos que o jornal,
apesar de ressaltar que a aprovação do projeto interessava ao prefeito e a seus aliados,
não atribui o mesmo peso aos argumentos contrários. Ainda assim, o Correio do Triângulo
ajuda-nos a conhecer a postura política da maioria do Poder Legislativo, e a apreender os
conflitos e disputas intrínsecos a esse processo, em que a questão do lixo passava a
envolver e a mobilizar diversos grupos sociais, insatisfeitos com as medidas tomadas pela
prefeitura.
Mas, indiferente aos protestos e alertas, o prefeito conseguiu aprovar um projeto
semelhante e garantir a instalação do aterro sanitário no Distrito Industrial, conforme
pretendia. Certamente, ele esperava por isso, pois, uma semana antes de obter a
aprovação do projeto, o Presidente da Câmara, Adalberto Duarte, anunciava que o edital
de licitação para implantar o aterro já estava disponível e que permaneceria “arquivado na
Casa”. É curioso o fato de se elaborar o edital de um certame licitatório enquanto não
havia se definido sequer o local da obra. Isso mostra que a administração tinha pressa em
encaminhar o processo. Ao ser indagado por que não havia registros de uma discussão
sobre isso nas Atas da Câmara, o vereador Aniceto Ferreira esclareceu que o Poder
Executivo tinha autonomia para implantar o aterro sanitário sem debater com o
Legislativo.
125
Além disso, o prefeito obteve a aprovação do projeto, porque, ao
encaminhar o substitutivo para votação na Câmara, este nada mencionava sobre a
construção do aterro, mas, somente, acerca da permuta de área com a CEMIG. Enfim, foi
um golpe de mestre da administração, senão um conchavo político diante de uma
situação tão melindrosa.
126
Na verdade, esse desfecho iria desencadear muitos outros conflitos, conforme
parecia enunciar-se pelas colunas do jornal O Triângulo:
124
Prefeito muda área de aterro sanitário. Correio do Triângulo, 22 de novembro de 1994, n. 16.718, p. 07.
125
Aniceto Ferreira, à época ex-vereador pelo PT, foi reeleito em outubro de 2004. Entrevista concedida à autora em 13
de fevereiro de 2004.
147
Claro que a Cidade Jardim, como bairro de classe média, suspendeu o projeto imediatamente, na
marra. Agora escolheu-se mal novamente a área para instalar o projeto de tratamento de lixo,
refutando ajuda da UFU que se propõe colaborar, sem ônus para a Prefeitura, na escolha da área
ADEQUADA, conforme determina a lei. Mas o que está errado na escolha da área? Existem três
erros fundamentais. O primeiro é que a área escolhida fica dentro do perímetro urbano. E na
Cachoeira dos Dias, próximo a um centro administrativo da CEMIG, aliás, proprietária da área em
questão. Próximo aos bairros Guarani, Taiaman e São José. O segundo é que fica na margem do
Rio, em Reserva de Preservação Ecológica, na boca de uma cachoeira muito bonita, aliás toda a área
é muito bonita. Uma vez despoluído o Rio, a área poderá ser um local de lazer e turismo.
127
De um lado, reparamos como o jornal busca naturalizar o fato de que, por ser um
bairro de classe média, o Cidade Jardim não iria tolerar um aterro sanitário nas suas
proximidades, como se isso espelhasse a ordem natural das coisas. De fato, a postura
dos moradores era expressiva de determinados valores, de concepções de classe e de
relações de poder. Relações que desnudavam ainda, outros elementos: concebia-se que
o lixo incomodava, causava aversão e repugnância aos sentidos. Porém, segundo essa
mesma visão, configurava-se uma hierarquia dos lugares de lixo na cidade, espaços em
que a presença dele era avaliada com maior tolerância, uns não, mas outros, sim,
deveriam suportá-lo.
De outro lado, o texto apresenta argumentos dos grupos que se opunham ao projeto
do prefeito: professores da Universidade, vereadores da oposição e moradores dos
bairros em que seria instalado o aterro, antecipando parte dos conflitos que estariam por
vir. Pois, ao longo da implantação do aterro sanitário, em meados de 1990, os moradores
de tais bairros começaram a reclamar do mau cheiro e dos mosquitos decorrentes do lixo.
Aliás, percebemos que o tratamento dado a essas reclamações diferia do
procedimento habitual dos jornais, em que as queixas eram apresentadas e depois não
havia repercussões. Pelo contrário, por aquela ocasião, os jornais traziam à luz todo o
debate que se desencadeava em torno da instalação do aterro, retratando os vários
conflitos em que se envolveram os vereadores Aniceto Ferreira e Liza Prado, professores
e estudantes do departamento de Geografia da Universidade, além dos moradores da
região em torno do aterro. Configurou-se um verdadeiro embate entre o poder local e
126
Conforme registro no Livro de Atas do Poder Legislativo: “Projeto de lei 522/94, que desafeta do domínio público, e
autoriza o município a permutar com a Companhia Energética de MG- CEMIG, os imóveis que especifica e dá outras
providências.” Em 18 de novembro de 1994, p. 04. Documentos da Câmara Municipal.
148
esses sujeitos. Portanto, o lixo podia ser entrevisto como elemento propulsor da
mobilização de certos setores da população em defesa de seus direitos, de tal modo que
esses grupos forjavam uma experiência de participação e de cidadania. Em se tratando
dos moradores, importante avaliar que a premissa de querer para si uma cidade melhor
assume mais força onde os serviços são mais precários, onde as carências são maiores.
Devemos abrir um parêntese aqui para assinalar como, a partir de 1990, é possível
observar uma mudança na natureza das reclamações. Mediante as modificações no
formato dos jornais, como o aumento da quantidade de páginas e de propagandas, as
queixas passavam a ser publicadas nas páginas 11 e 12, quase as últimas. Mas, a
mudança mais significativa encontra-se no fato de que a maioria das reclamações dos
moradores deixavam de ser intermediadas pelas Associações de Bairro ou, então, por
representantes do Poder Legislativo, como o foram na maior parte da década de 1980.
Com a criação das seções nos jornais, as queixas passavam a ser expressas
individualmente, com maior freqüência. Essas e outras mudanças na natureza dos
reclames eram reflexos de transformações no espaço urbano e nas relações vividas.
Compreendiam-se novas alternativas que a população ia elaborando a fim de apresentar
suas demandas às autoridades públicas. Estratégias que iam das reclamações isoladas à
formação de pequenos grupos, que se mobilizavam buscando a ajuda de figuras do Poder
Legislativo, cuja postura política era, em princípio, de oposição ao governo local.
Todavia, mesmo num período em que a imprensa contribuía para “denunciar” o
problema do lixo, divulgando com freqüência as reclamações da população, os projetos
da administração para gerenciar os restos mostravam pouca eficácia. Em fins de 1995, a
CCO contratou o engenheiro Romeu Santana Filho para fazer o projeto do aterro
sanitário. Em artigo publicado por O Triângulo, esse profissional declarou:
“Na minha palestra tentei distinguir o que é um aterro e o lixão. O lixão é simplesmente um depósito
de lixo a céu aberto. O aterro é uma forma de dispor o lixo no solo, dentro de critérios de engenharia
e especificações técnicas de operação, confinando este lixo no menor espaço possível sem agredir o
ambiente e protegendo a saúde...
128
Observamos, novamente, como um projeto do poder público para lidar com a
questão do lixo na cidade pretendia se constituir como marco, referência de grandes
127
Meio Ambiente, Turismo e Lixo. O Triângulo, 30 de novembro de 1994, n. 8.935, p. 02. (grifos do texto original)
128
Uberlândia terá usina de lixo. O Triângulo, 22 de dezembro de 1995, n. 9.251, p. 09.
149
mudanças. O aterro sanitário era propagado como resultado da técnica e da engenharia:
iria reduzir o volume de lixo, proteger o meio ambiente e assegurar a saúde da população.
Entretanto, as mudanças não vieram no ritmo que o jornal ou as autoridades pretendiam.
Em março de 1996, em reportagem intitulada “Aterro é usado como depósito”, O Triângulo
relatava o emaranhado de complicações que envolviam o lixo.
Tão elogiada por seu franco crescimento, e com status, de uma cidade industrializada, Uberlândia
provas de uma atuação sem desenvolvimento. (...) A céu aberto, lixo doméstico e animais mortos
convivem com (...) uma imensa população de urubus. Desrespeitando qualquer medida que pretenda
poupar problemas para os habitantes, máquinas e homens trabalham em condições precárias. Onde
estaria funcionando a Usina de Compostagem e Reciclagem do lixo, que deveria ser concluída até o
final de 1995, existe um gigantesco depósito que acolhe cerca de 300 toneladas por dia. Ao fundo do
terreno onde o lixo é depositado, corre o rio Uberabinha, principal responsável pelo abastecimento de
água em Uberlândia.
129
Esse texto não é só um bom exemplo da complexidade que a problemática do lixo ia
assumindo, como também um indício do modo como os jornais participavam/intervinham
nesse processo. A questão do lixo continuava, então, a provocar uma infinidade de
problemas, articulando-se a um jogo de interesses políticos que envolviam a
administração local e a Limpel. O Triângulo denunciava que a empresa, ao assumir o
gerenciamento do lixo, atrasava a implantação da usina, enquanto a prefeitura não se
posicionava quanto a isso, e, “sem um local apropriado para a destinação final do lixo”,
improvisava um “lixão”
Alguns dias depois, o jornal noticiava que o local estava “recebendo
indiscriminadamente lixo hospitalar, e que “as granjas locais também estão jogando ovos
e pintos ainda vivos”, agravando o problema. Nesta mesma notícia, talvez tentando
mostrar o outro lado da situação, O Triângulo também informava que a Secretaria de
Serviços Urbanos, por meio de seu assessor Marcelino Tavares, negava o fato, alegando
que havia um setor para receber o lixo contaminado, que era “aterrado em valas
assépticas e coberto por argila e brita”. Segundo o assessor, existiam fiscais responsáveis
por acompanhar as atividades no aterro e as referidas falhas não se confirmavam.
130
129
Aterro é usado como depósito. O Triângulo, 01 de março de 1996, n. 9.307, p. 09.
130
Lixo expõe catadores e crianças. O Triângulo, 12 de março de 1996, n. 9.318. p. 01.
150
A empresa administradora do aterro, por outro lado, alegava que o serviço era “feito
com cuidado em valas especiais”. Os restos descartados pelas granjas, ao chegar já
triturados, eram jogados no lixo comum sem causar problemas. Afirmava, ainda, que a
vigilância da empresa não permitia o acesso de pessoas que não trabalhassem no aterro.
Ao publicar essas declarações, O Triângulo tentava apresentar a versão dos
denunciados: a prefeitura e a Limpel. Porém, ao acompanhar os acontecimentos,
concluímos que tanto a empresa quanto o poder público elaboravam discursos, que,
apesar dos argumentos técnicos, contradiziam-se frente à realidade, também trazida a
público pela imprensa.
Em julho de 1996, o prefeito visitou as obras de construção do aterro sanitário,
prometendo a inauguração para o final do mês de agosto. Naquela ocasião, ele “lembrou”
que a prefeitura havia doado a área de 220.000m
2
para a execução da obra e que seria
“responsável também pelo pagamento dos profissionais e do próprio investimento feito
pela empresa”. Com entusiasmo, o aterro foi anunciado como uma possibilidade de
“maior qualidade de vida a todos os uberlandenses, além de gerar divisas e cerca de 400
empregos diretos e indiretos”.
131
O aterro sanitário, planejado para ter “uma vida útil
estimada em vinte e cinco anos”, constituía mais um projeto visando administrar o lixo da
cidade, e, assim sendo, era exaltado como eficiente solução, pois iria “contribuir para o
aumento da produtividade a um custo bastante reduzido”.
Assim, percebe-se como O Triângulo parece ter “apagado” de sua memória e de
suas páginas a cronologia das irregularidades no despejo de lixo no aterro, denunciadas
em março daquele ano, e as reclamações dos moradores de diversos bairros sobre
problemas com a coleta do lixo, que o próprio jornal havia publicado em sua coluna
Bairros nos últimos quatro meses. Além disso, O Triângulo “ignorava” que, ao longo desse
período, o aterro sanitário, não obstante na teoria ser um projeto perfeito, dotado de rigor
técnico e científico, na prática, as coisas se sucediam de maneira bem diferente. Antes de
ele começar a funcionar, já se mostravam algumas complicações, inclusive, por conta do
local escolhido para sua instalação. Em abril de 1996, outro jornal, o Correio do Triângulo,
noticiava que:
131
Prefeito visita aterro sanitário. .O Triângulo, 30 de julho de 1996, n. 9432, p. 05.
151
Restos de animais, dejetos e o mau cheiro do depósito de lixo da Prefeitura, nas proximidades do
bairro Guarani III, estão provocando o aparecimento de urubus, mosquitos e causando outros males
e, consequentemente, levaram a moradora da rua da Lambada, Elizabeth da Cruz Ferreira a
denunciar a situação. Segundo Elizabeth, o lixo comou a ser jogado no local há quatro meses, e o
odor afeta principalmente as crianças, que já apresentam sinais de doenças. Ela acrescenta que o
odor é mais forte na parte da tarde, quando o vento é mais evidente.
132
O relato mostra que a presença do aterro na cidade, antes de se concretizar,
efetivamente, já trazia vários transtornos à população que residia ao seu redor. À época, o
Secretário de Serviços Urbanos explicou que o mau cheiro devia-se ao fato de ainda não
se ter construído a usina de triagem, o que aconteceria “no prazo de 60 dias”. Segundo o
secretário, o que havia impedido a construção, até aquele momento, fora a chuva, pois
“com tanta lama não foi possível terminar a fundação do terreno”.
Essa é a única notícia sobre o lixão, e os problemas envolvendo a empresa e a
prefeitura, publicada pelo jornal Correio. Durante os próximos meses, tanto este jornal
quanto O Triângulo deixaram de publicar qualquer notícia sobre a situação dos moradores
daquela região. Imperativo refletir a respeito da ausência de trato dessa questão por parte
dos jornais. Um silêncio sugestivo das forças hegemônicas a que os jornais tentavam se
articular nesta situação específica. Causou surpresa o fato de que, em julho de 1996, O
Triângulo, na coluna Bairros, trouxe informações sobre o São José, porém, não fez
qualquer referência ao problema do lixão:
O bairro São José, próximo ao Jardim Brasília, na avaliação de muitos moradores é um bom local
para se viver, apesar de precisar de algumas melhorias, como todo local. Com uma população de 167
pessoas e 43 residências, pode ser considerado pequeno, mas em toda sua existência já conseguiu
crescer bastante, segundo os primeiros residentes que ainda permanecem no São José. Eles
afirmam, que quando se mudaram, não havia ainda nenhuma infra-estrutura...
133
Ao divulgar as reclamações dos moradores, o jornal tinha também a preocupação
em selecionar o que deveria ser publicado, quais problemas poderiam ser divulgados.
Meses depois, em suas páginas, o São José já não parecia ser “um bom local para se
viver”.
132
Lixo causa mau cheiro no Guarani. Correio do Triângulo, 03 de abril de 1996, n. 17.139, p. 10.
133
São José tem somente 43 casas e aproximadamente 200 moradores. O Triângulo, 24 de julho de 1996, n. 9.427,
Seção Bairros, p. 09.
152
Há vários dias, os moradores do bairro São José estão reclamando da infestação de mosquitos
dentro e fora das casas. A maioria acredita que é devido ao lixão próximo do setor e à falta de
limpeza diária. A falta de policiamento e de um posto de saúde também foram fatores bastante
mencionados pelos moradores. Para alguns, o número de ônibus que trafegam pelo setor é
suficiente, mas outros acham que deveria ser maior. “Poderiam trazer mais ônibus para este bairro,
estamos esquecidos aqui”, desabafa Ilza Cristina da Silva, moradora há 15 anos”.
134
Situado no setor norte, distante da região central, o bairro São José localiza-se perto
de outros bairros como Jardim Brasília e Maravilha. Existente há quase vinte anos, o
bairro ainda carece de infra-estrutura básica, e os moradores padecem sem acesso à
escola, posto de saúde ou telefones públicos suficientes. Foi próximo a este e a outros
bairros semelhantes que o aterro sanitário fora instalado, gerando mais problemas aos
moradores. Ainda assim, notamos como “a infestação de mosquitos dentro e fora das
casas, devido ao lixão próximo do setor e à falta de limpeza diária,” apesar de ser o mais
recente, era apontado pelo jornal como um inconveniente a mais em meio a infinidade de
problemas que já caracterizavam o bairro. Isso nos dá a impressão de que o jornal
buscava naturalizar uma questão muito séria e, sobretudo, política, em que consistia a
existência do aterro nas proximidades do bairro. Essa mesma atitude de O Triângulo pôde
ser observada em relação ao Guarani, na ocasião em que o citou na coluna Bairros.
135
“Guarani tem aprovação da população” era a manchete, aliás, pouco condizente
com o conteúdo do texto, com a realidade do bairro e, principalmente, com a notícia que o
jornal iria publicar, daí a poucos meses, nessa mesma coluna, denunciando a
“proximidade com o lixão” e o “aumento de insetos durante o dia, nas residências”,
problemas que foram mostrados, outra vez, como somente mais uma das precariedades
do lugar. O que demonstrava a estratégia freqüentemente utilizada por esse órgão da
imprensa, que, ao não poder se esquivar de divulgar um fato, procurava despolitizá-lo.
136
Se, por um lado, foi por intermédio desses jornais que os moradores conseguiram
trazer à público esses fatos e, desse modo, pressionar o poder público, por outro, a
verdade é que as primeiras reclamações pareciam não provocar reações da prefeitura,
que preferia continuar assegurando que a responsabilidade não era dela. Em dezembro
daquele ano, nas páginas do Correio do Triângulo, lia-se:
134
Manifestação de mosquito preocupa. O Triângulo, 17 de novembro de 1996, n. 9.522, p. 09. Seção Bairros.
135
Guarani tem aprovação da população. O Triângulo, 09 de julho de 1996, n. 9.415, Seção Bairros, p. 09.
153
Depois de mais de um ano de atraso nas obras da usina de reciclagem e compostagem de lixo
doméstico, a Limpel, empresa terceirizada que opera a usina, e a Secretaria Municipal de Serviços
Urbanos prometem que ainda neste mês a fábrica começa a produzir. Enquanto a conclusão não
vem, os moradores da região, principalmente do bairro Guarani, vão sofrendo diariamente com o mau
cheiro que exala do lixo jogado no canteiro da usina, que fica exposto durante cerca de 24 horas,
tempo necessário para ser separado e enterrado. De acordo com Maria Teresa, o lixo acumulado na
usina não é responsável pelo mau cheiro no bairro Guarani. Ela explica que os próprios moradores
acumulam entulhos nas ruas desertas e nas áreas verdes próximas às casas. “Desse jeito não há
como identificar de onde vem o odor”.
137
Vemos que, outra vez, a administração tentava justificar a demora para iniciar o
funcionamento da usina. “Segundo a gerente técnica, Maria Teresa de Freitas, a obra
vem sofrendo vários atrasos por questões financeiras e ainda falta terminar parte da
pavimentação e da rede elétrica”. Além de descumprir o contrato com a prefeitura, que,
assinado no início de 1995, previa a construção da usina dois meses após ter sido
firmado, a empresa responsável pelo lixo da cidade continuava a tratá-lo com descuido.
Além disso, a gerente da Limpel também alegava que o mau cheiro não era em
decorrência do aterro, mas do hábito da vizinhança de jogar lixo nos terrenos baldios. No
jogo de forças que se estabelecia, esse argumento pretendia esvaziar as críticas dos
moradores. Ao apresentar essa explicação da forma como o fez, o Correio permitiu–nos
identificar que interesses, naquele momento, ele defendia.
Mas as reclamações iam se intensificando, os moradores se mobilizavam, buscando
o apoio de vereadores, e o caso foi levado ao conhecimento do Ministério Público
Estadual, conforme noticiava O Triângulo:
A vereadora Liza Prado (PMDB) encaminhou ao Promotor de Justiça, curador do Meio Ambiente, Dr.
Fábio Guedes um abaixo assinado contendo 832 assinaturas dos moradores do bairro Guarani, que
pedem a remoção do lixão (depósito de lixo da cidade) existente na localidade e que provoca mau
cheiro vindo do aterro sanitário da Secretaria de Serviços Urbanos. Segundo a vereadora, o número
de assinaturas revela indiscutivelmente a indignação e revolta generalizada da população
circunvizinha ao aterro, notadamente no bairro Guarani, onde cerca de 300 toneladas de lixo são
despejadas diariamente.
138
136
Asfaltamento total é pedido no Guarani. O Triângulo, 22 de novembro de 1996, n. 9.526, p. 09.
137
Usina de reciclagem vai operar este ano. Correio do Triângulo, 20 de novembro de 1996, n. 17.362, p. 09.
138
Moradores do Guarani querem fechamento do aterro sanitário. O Triângulo, 24 de dezembro de 1996, n. 9.553,
p. 05.
154
Liza Prado, que se elegeu pela primeira vez pelo PcdoB (Partido Comunista do
Brasil), era uma vereadora que se tornava conhecida por sua habilidade em chamar a
atenção dos meios de comunicação, e que, naquele momento, estava conseguindo dar
visibilidade ao problema que ocorria há quase um ano. A vereadora denunciou que o
aterro trazia problemas à população do seu entorno, como a existência de moscas,
pernilongos, ratos e animais peçonhentos. Além disso, Liza fez menção, também, a “um
trabalho dos estudantes de Geografia da Universidade Federal (que) ilustra de maneira
categórica o grave erro que foi cometido pela administração municipal em manter o lixão
naquele local”. Segundo ela, o relatório dos estudantes trazia um diagnóstico da situação
e ainda propunha “fechar o aterro, que estava prejudicando não somente a população,
como também “o rio Uberabinha, a 500 metros do aterro”, pois corria “o risco de sofrer
uma contaminação de efeitos devastadores para o meio ambiente e à saúde humana e
dos animais”.
Poucos dias depois, o Correio do Triângulo também trazia informações que
apontavam que a existência do aterro sanitário, que sequer começara a funcionar, ia
revelando-se mais que um estorvo aos moradores que viviam ao seu redor. No mesmo
mês, outras notícias abordavam o problema, ressaltando sua gravidade. Somava-se a
isso o fato de que outros tipos de lixo também estavam sendo depositados no local, sem
trato especial algum, como o lixo hospitalar e o industrial.
139
Ainda assim, a Prefeitura e a
Limpel mantinham-se em silêncio, sem oferecer explicações à imprensa e aos moradores.
No ano seguinte, o novo Secretário de Serviços Urbanos tinha como uma de suas
primeiras tarefas receber:
Uma comissão formada pela vereadora Liza Prado, pelo químico Giovani Salviano de Melo e
moradores do bairro Guarani reuniu-se ontem pela manhã com o Secretário de Serviços Urbanos,
Antônio Carlos Carrijo, para pedir o fechamento do lixão, que fica próximo ao bairro. Segundo o
parecer da comissão, que foi defendido pelo professor Giovani Salviano, a usina de reciclagem e
compostagem da Prefeitura foi construída em local errado. De acordo com o químico, os moradores
dos bairros vizinhos do local, como o Guarani e o Tocantins, não agüentam mais o mau cheiro que
exala do lixo acumulado.
140
139
Moradores de bairros reivindicam retirada do lixão. Correio do Triângulo, 27 de dezembro de 1996, n. 17.367,
p. 09.
Lixo hospitalar preocupa. O Triângulo, 27 de dezembro de 1996, n. 9.555, p. 02. “Em conversas com os vereadores,
dirigentes da Limpel confirmaram a existência de todo tipo de lixo no aterro, principalmente o industrial. Diretores da
Limpel confirmam existência de todo tipo de lixo. O Triângulo, 28 de janeiro de 1997, n. 9.582, p. 07.
140
Comissão quer retirada do lixão. Correio do Triângulo, 09 de janeiro de 1997, n. 17.377, p. 10.
155
Conforme os argumentos do químico, a usina estaria contaminando o rio
Uberabinha, que abastece toda a cidade. Naquelas circunstâncias, isso pareceu não
causar surpresa alguma, tampouco acarretou qualquer providência. Entretanto, esses
acontecimentos evidenciavam uma contradição: o aterro sanitário, que iria trazer “maior
qualidade de vida a todos os uberlandenses”, desencadeava uma série de outros
problemas.
Quando, finalmente, o aterro começou a funcionar, em abril de 1997, marcou um
momento da história do lixo em que se delegava todo o seu controle a uma empresa
particular, o que acarretava implicações significativas. Ao adquirir a concessão para
prestar os serviços de limpeza pública, incluindo a coleta e destinação final do lixo, a
Limpel deveria seguir todas as instruções do Relatório de Impacto Ambiental na
implantação do aterro sanitário, a fim de evitar danos ao solo, reduzindo, assim, a vida útil
do aterro. Como a empresa implantara o aterro com dois anos de atraso, e o lixo foi sendo
depositado em condições indevidas, isso provocou uma redução de dez anos no tempo
de vida útil do empreendimento. Além disso, mesmo após o funcionamento da usina, o
aterro continuava a gerar reclamações da comunidade. Em junho daquele ano, O
Triângulo noticiava:
Mau cheiro, insetos, urubus, dores de cabeça e enjôos. Esta vem sendo a realidade dos moradores
dos bairros que circundam o aterro sanitário, entre eles o Guarani e o São José. As comunidades
se cansaram de reclamar do problema. Agora é a vez dos funcionários da Companhia de Energia de
Minas Gerais (CEMIG), Posto Amigão e Erlan que irá inaugurar, uma fábrica nas proximidades do
lixão. Nem mesmo no Dia Internacional do Meio Ambiente, o aterro deu uma trégua. Praticamente
todos os dias o gerente regional da Cemig, José Irineu Teixeira Neto, tem dor de cabeça, o mal acaba
quando está longe da companhia. “O odor incomoda muito. É desumano o que o lixão está fazendo
com a comunidade ao redor”...
141
Essa situação evidencia novamente, como o aterro não era somente um problema
da população carente que reclamava, outros sujeitos também se viam prejudicados.
Quando proprietários e trabalhadores dessas empresas também se queixaram dos
prejuízos que o aterro vinha causando ao local, a Secretaria de Serviços Urbanos
resolveu se pronunciar. Explicou que o problema não ocorria com a freqüência que dizia a
comunidade. O inconveniente era conseqüência de um certo tipo de resíduo, de difícil
141
Questão do aterro no Guarani volta a incomodar população. O Triângulo”, 06 de junho de 1997, n. 9.689, p. 05.
156
absorção pelo solo, que havia sido depositado no aterro. Dentre outras explicações, o
assessor técnico da Secretaria, Cláudio Guedes, assegurou que a situação já estava
resolvida. Alegava que, em 1996, tiveram dificuldades financeiras, mas já tinham sido
sanadas. Quanto ao fato de as pessoas protestarem contra o mau cheiro, Guedes
justificava que restos antigos estavam sendo removidos “para a construção de uma via de
circulação”. De fato, a maneira como o assessor referia-se à situação da empresa era
ilustrativa das relações que se estabeleciam entre esta e o governo municipal. Segundo
ele: “Quem é responsável pela questão é a Limpel, com a qual somos solidários, afinal, a
contratamos”.
142
Entretanto, se o papel das Secretarias de Serviços Urbanos e de Meio Ambiente era
fiscalizar os serviços, o que justificaria os moradores terem reclamado por tanto tempo
sem que nada tivesse sido feito? Sem dúvida, houve negligência desses órgãos da
Prefeitura, que, por sua vez, historicamente, manteve a prática de agir com extrema
condescendência em suas negociações com as empresas particulares. Todo o processo
de implantação do aterro sanitário, com o não cumprimento do contrato, os atrasos, as
reclamações da população, de que os serviços de coleta do lixo estavam piores, tudo isso
deixava claro como o poder público vinha sendo por demais tolerante em suas relações
com a Limpel, conquanto isso tenha resultado em má qualidade dos serviços.
Um outro aspecto nas declarações do assessor relembra a questão do lixo destinado
no aterro. Parecia haver uma eterna indefinição sobre o tipo de lixo que poderia ser ali
despejado. Ao iniciar suas atividades, a usina processava “todo o lixo recolhido
diariamente em Uberlândia”, com exceção do entulho, mas o que se vislumbrou como
uma solução para a questão do lixo, revelara-se mais um obstáculo a ser enfrentado.
O aterro fora proposto para receber somente o lixo doméstico e o lixo hospitalar,
sendo que este deveria ser coletado e enterrado separadamente. No entanto, não raras
vezes, a imprensa trazia notícias sobre o despejo de lixo industrial no aterro, mesmo que
ele não tivesse sido implantado para receber esse tipo de resíduo. Quanto ao lixo
hospitalar, estabeleceu-se um verdadeiro jogo de empurra-empurra entre a administração
local e os hospitais públicos e particulares, estratégia política em que nunca se definia a
quem caberia a responsabilidade por dar um fim a ele. Esse é o debate que buscamos
enfrentar no próximo capítulo.
142
Secretarias negam haver freqüência do problema. O Triângulo, 06 de junho de 1997, n. 9.689, p. 08.
CAPÍTULO III
CONTAMINAÇÃO E PERIGO: O LIXO COMO UM PROBLEMA
AMBIENTAL E DE SAÚDE PÚBLICA
Frente a uma realidade urbana e a um processo social em que o lixo vai deixando de
ser encarado apenas como uma questão circunscrita à limpeza pública, ou mesmo, um
fator a mais de desequilíbrio da vida na cidade, deparamo-nos com o problema do lixo
hospitalar, que, por sua vez, é emblemático da crescente complexidade desse cenário.
Durante as oportunidades que tivemos de discutir a pesquisa sobre a história do lixo
em Uberlândia com diversos grupos de pessoas ligadas às áreas de saúde, educação,
ecologia e engenharia, fomos alertados para a terminologia que, atualmente, substitui o
termo lixo hospitalar, qual seja a de resíduos dos serviços de saúde (RSS). Entretanto,
importa confessar que sentimos que esse termo parece pretender imprimir à problemática
do lixo hospitalar uma racionalidade que possa, inclusive, dar a impressão de ser essa
uma questão já sanada em nossa sociedade. Como as circunstâncias sociais com as
quais nos deparamos durante esta investigação apontam justamente o contrário, fizemos
a opção por usar o termo lixo hospitalar, por acreditar que ele traduz, em parte, receios,
temores, silêncios, preocupações e aversões que, historicamente, dizem respeito a essa
problemática.
Podemos dizer que o lixo hospitalar, em vários aspectos, ainda é um tabu, pois há
uma certa reserva em se falar sobre o assunto. Trata-se de um tema polêmico, cuja
abordagem contém termos técnicos e específicos. Como quase tudo que se articula à
ciência e à saúde, é de difícil compreensão para a maioria das pessoas. No entanto ele
passa a ser a manifestação de uma mudança nas atitudes em relação à problemática do
lixo na vida urbana, pois suas implicações, nesse meio, são muito amplas. Nas acepções
de “lixo perigoso”, “lixo séptico” ou “resíduos infectantes” classificações indicativas das
158
relações em torno desses restos , o problema dos refugos hospitalares envolve e atinge
diversos grupos sociais.
Devido à amplitude e à complexidade de que se reveste essa discussão, o exercício
a que nos propusemos foi apreender algumas implicações da presença desses restos na
cidade, certas transformações resultantes e valores emergentes nesse processo.
Produzidos no espaço urbano, cada vez mais, em maior quantidade, decorrentes do
aumento da população, do crescimento e urbanização da cidade, tais restos articulam-se
à problemática do lixo, com um importante diferencial, são, quase sempre, apontados
como muito mais prejudiciais que a maioria dos outros refugos. Se, por um lado,
observamos que o lixo hospitalar não é tão difundido na cidade como o lixo doméstico,
por exemplo. Por outro, nas ocasiões em que é ele despejado em terrenos baldios, causa
sérios transtornos a certos setores da população, que reagem, denunciam e protestam,
deixando entrever aspectos de uma intrincada intersecção entre moradores, poder público
e a questão do lixo hospitalar.
Daí que os resíduos hospitalares mostram justamente uma mudança na concepção
de lixo, que se reflete em novas formas de pensar e organizar a vida na cidade. Num
contexto social em que a questão ambiental ganha força, uma temática cujo debate é
recente não somente em Uberlândia, mas em todo o Brasil, o lixo hospitalar é alardeado
pela imprensa como “altamente perigoso”. Diante dos riscos de contaminação e de outras
ameaças que ele representa, constitui um marco o momento em se que começa atentar
para a necessidade de maiores cuidados quanto ao seu transporte e seu destino final.
Para além de um problema de limpeza urbana, ele passa a ser, também, uma questão
ambiental e de saúde pública.
Nesse sentido, apesar de toda a polêmica que esse debate provoca, o que fazer
com o lixo hospitalar e ambulatorial é um problema que persiste até os dias de hoje. A
quem compete a responsabilidade por seu transporte, tratamento e destino final? À
prefeitura ou aos hospitais, clínicas, laboratórios e farmácias? Definir se o cuidado com
esse tipo de lixo cabe ao poder público ou se às instituições e estabelecimentos de saúde
que o produzem é algo complicado e que, não por acaso, arrasta-se desde os anos de
1980. Nessa indefinição, inscreve-se a complexidade que a questão desses restos
assume em determinado momento histórico e que delineia as constantes limitações dos
administradores públicos. Em meio a esse processo, atentamos para o fato de que não se
159
discute qual seria a parcela de envolvimento da sociedade civil no que tange ao problema.
Entre as autoridades envolvidas, parece prevalecer um quase consenso de que a
população não se preocupa nem se envolve com a questão do lixo hospitalar. Por isso,
permanece um certo silêncio em que também não se dimensiona a fração de
responsabilidade de cada cidadão, de todos os que somos usuários dos serviços
hospitalares. Essas questões, articuladas a outros fatores e mudanças sociais, desnudam
os melindres desta reflexão.
Nas colunas dos jornais, observamos que, durante quase toda a década de 1980,
não há praticamente nenhuma informação ou artigo acerca do problema do lixo hospitalar
em Uberlândia, com uma única exceção para 1984, ano em que o Correio de Uberlândia
publica uma interessante notícia sobre a questão. Pela primeira vez, durante o período
em estudo, o assunto é trazido ao público leitor. Ao informar sobre uma reunião que
acontece na Sociedade Médica, o Correio de Uberlândia escreve:
O melhor funcionamento da coleta de lixo hospitalar foi tema de uma reunião realizada na última
segunda-feira, 23 de maio, na sede da Sociedade Médica de Uberlândia (Avenida Cesário Alvim, 2)
que contou com a presença dos secretários municipais Ilvio Andrade, de Serviços Urbanos e Flávio
Goulart, de Saúde, além de representantes de proprietários de todos os hospitais de Uberlândia.
1
Este texto sinaliza não apenas uma preocupação inicial com a questão, mas também
contribui para compreendermos como se configurava a situação do lixo hospitalar em
Uberlândia naquele contexto, pois
segundo o secretário de Serviços Urbanos, Ilvio Andrade, “a coleta e destinação do lixo hospitalar
sempre representou para nós uma situação crítica, pois tal lixo encerra grande risco de contaminação
e sempre foi coletado e depositado juntamente com o lixo domiciliar.
.
A declaração do Secretário explicita como, até então, as administrações cuidavam
do lixo hospitalar: ele era destinado ao mesmo lixão em que se depositava o lixo
domiciliar. Apesar de o poder público já manifestar que esse tipo de lixo oferecia riscos de
contaminação muito maiores, até aquele momento, a questão desses resíduos parecia
ser vista como um problema a mais no que se refere à limpeza pública. No entanto,
1
Lixo hospitalar: tema de reunião na Sociedade Médica. Correio de Uberlândia, 01 de junho de 1984, n. 13.896,
p.04.
160
quando surgem sinais de que essa visão começa a se modificar, repara-se como isso é
fundamentado num discurso médico, pautado pela idéia de patogenia dos resíduos. Não
por acaso, tinha-se à frente da Secretaria de Saúde um médico sanitarista; e, à de
Serviços Urbanos, um engenheiro. Daí, percebe-se, nos jornais, quando começam a
abordar a temática do lixo hospitalar, a elaboração de certos discursos e de imagens em
que se reforça a premissa de que esses restos traziam um grande potencial de risco à
saúde da população.
Na verdade, isso só acentua como a questão do lixo hospitalar é exemplar de que o
temor com relação ao lixo, a idéia de sujeira e de contaminação, tudo isso possui sua
própria trajetória, advém de determinadas experiências e do conhecimento que se tem,
desde o século XIX, a respeito das formas de transmissão de doenças por meio de
bactérias. Faz-nos pensar como a noção de sujeira e de perigo condensa uma intrínseca
ligação entre patogenia e higiene, instituída num processo social e histórico. Nossa
sensibilidade, no tocante ao que concebemos como sujo ou ameaçador à saúde,
construída socialmente, ajuda a classificar e ordenar o mundo à nossa volta e, desse
modo, as relações que estabelecemos.
2
Quanto ao lixo hospitalar, em Uberlândia, naqueles anos, a responsabilidade por seu
transporte e destino final recaía exclusivamente sobre a Secretaria de Serviços Urbanos,
assim como a tentativa de propor soluções para o problema. Num contexto em que o
poder público vinha destinando expressivas verbas para a construção do aterro sanitário,
a ameaça que os resíduos representavam era um convincente argumento em defesa dos
projetos de saneamento que se pretendiam implantar.
Se lembrarmos que o lixo domiciliar é altamente patológico, causando sérios riscos para a saúde da
população, podemos multiplicar várias vezes os riscos de contaminação causados pelo lixo
hospitalar... Para solucionar o problema, adianta Ilvio, a Secretaria de Serviços Urbanos está
ultimando, nesta semana, a preparação de um caminhão específico para esse fim, sendo que o
projeto do aterro sanitário, atualmente em construção pelos técnicos da referida Secretaria, prevê
uma área exclusiva para o funcionamento como vazadouro do lixo hospitalar.
3
2
A estreita relação entre sujeira, patogenia e sistema, é discutida por Douglas, que aponta justamente a historicidade de
tais noções, e o modo como nossa idéia de sujeira e nossas concepções de higiene são construções, pois resultam da
obediência à norma, do respeito por convenções e da complexidade de experiências sociais acumuladas. Ver:
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo, São Paulo: Perspectiva, 1976. p.11-56.
3
Lixo hospitalar: tema de reunião na Sociedade Médica. Correio de Uberlândia, 01 de junho de 1984, n. 13.896,
p.04.
161
Assim, o evento ocorrido na Sociedade Médica constituiu uma oportunidade para
que o Secretário pudesse anunciar certas medidas a serem tomadas em relação ao lixo
hospitalar. Em sua avaliação sobre o encontro, ele assegurou que houve, por parte da
classe médica local, “a melhor receptividade possível”. Apesar dessa avaliação positiva, o
evento não trouxe mudanças significativas, para além do que já havia sido anunciado. É
preciso esclarecer, também, que uma discussão dessa natureza, envolvendo poder
público e representantes dos hospitais públicos e particulares, só voltaria a repetir-se na
década posterior. Segundo o Sr. Ilvio Andrade, a reunião ocorrera por iniciativa da
administração local e consistiu num primeiro ensaio de dividir com essas instituições a
responsabilidade no trato do lixo hospitalar. Essa parece ser uma tarefa complicada,
mesmo nos dias de hoje, porém, mais difícil ainda para um momento em que a legislação
atribuía essa responsabilidade exclusivamente ao governo municipal.
No contexto da década de 1980, a administração local era responsável pela coleta
de todo o lixo produzido na cidade, incluindo o dos hospitais, clínicas, farmácias e
laboratórios. Assim, a prefeitura incumbia-se de dar fim ao lixo que esses
estabelecimentos produziam. Mas, diante da carência de recursos e da falta de uma
estrutura apropriada para atender à demanda dos serviços de limpeza pública, o lixo
hospitalar tornava-se uma preocupação a mais para o poder público e contribuía para
agravar um quadro social já precário. Relembrando as modificações que sofria a cidade
naquele período, como o crescimento da população, o surgimento de novos bairros, as
mudanças nas formas de consumir e alimentar-se, enfim, a instituição de novas relações
sociais, gerando circunstâncias que favoreciam o aumento significativo da produção de
resíduos hospitalares.
4
As difíceis condições da estrutura dos serviços de limpeza pública podem ser
ilustradas com o fato de que, na ocasião em que se pretendia implantar a coleta do lixo
hospitalar em separado do lixo doméstico, foi preciso escolher um dos caminhões da
pequena frota da Secretaria de Serviços Urbanos e pintá-lo de branco. Iniciativas que
sinalizam para a freqüente improvisação por meio da qual se resolviam os problemas.
Esse caso específico denota como, na lida com a questão do lixo na cidade, as
dificuldades iam sendo encaminhadas conforme surgiam, sem haver antes um
4
Se nos lembrarmos do movimento de pessoas que se deslocam das pequenas cidades da região no intuito de se
tratarem no Hospital de Clínicas da Universidade, essas questões assumem tonalidades ainda mais fortes.
162
planejamento, consistindo, também, num aprendizado para os que estavam à frente do
poder local.
Isso também se corrobora por uma avaliação feita, recentemente, pelo Sr. Ilvio
Andrade. Ele conta que, à época, assumiu a Secretaria de Serviços Urbanos sem
experiência alguma no serviço público, e assegura que uma das grandes dificuldades
encontradas foi a “inexistência de uma formação técnico-administrativa específica da
equipe de limpeza urbana”. O Sr. Ilvio recorda-se de que havia um grande despreparo em
sua equipe, uma carência enorme de pessoas qualificadas, que detivessem formação
específica para propor soluções diante das demandas que apareciam.
5
De todo modo, em setembro de 1984, o lixo hospitalar em Uberlândia começou a ser
coletado separadamente do lixo domiciliar, em um veículo apropriado e destinado a uma
área exclusiva no aterro sanitário recém-inaugurado. Essas foram as primeiras iniciativas
para lidar com a questão e, mesmo que pareçam paliativas, entendemos que o caminhão
branco, no qual se sabia transportar o lixo hospitalar, sinalizava a preocupação que o
problema começava a despertar nas autoridades públicas.
É possível constatar o fato por meio de uma cuidadosa leitura dos jornais, em que se
percebe a crescente ênfase dada ao problema do lixo hospitalar, a partir do final da
década de 1980. Isso reflete o fato de que, além de chamar a atenção do poder público, a
questão passaria a envolver diversos setores sociais. Naquele período, não havia uma
legislação específica nem políticas públicas mais definidas sobre o assunto, em âmbito
local. Entretanto perseguir a trajetória do lixo hospitalar na cidade revela como técnicos,
engenheiros, ambientalistas e movimentos sociais envolveram-se com a questão,
apresentando propostas, projetos, soluções e encaminhamentos, constituindo um enredo
no qual se articularam diferentes e conflitantes interesses.
Na verdade, a temática do lixo hospitalar tem como marca uma grande indefinição,
que diz respeito não somente a quem deve ser responsável por ele, mas também a quem
são os seus produtores, pois ele é gerado também por clínicas, laboratórios, farmácias e
outros estabelecimentos. Os problemas em torno dessa questão são abordados pelo
Correio de Uberlândia:
5
Ilvio A. Andrade, Secretário de Serviços Urbanos, 1983-1987. Entrevista concedida à autora em 27 de maio de 2004.
163
O vereador João Eduardo Máscia solicitou envio de ofício ao Prefeito Municipal pedindo ao mesmo
que determine à Secretaria Municipal competente, que promova a coleta de lixo das farmácias,
laboratórios e similares, de forma especial, a exemplo da coleta feita nos hospitais. O lixo destes
estabelecimentos conta com materiais altamente perigosos tais como seringas, agulhas, curativos,
etc.... que, colocados em locais impróprios, oferece sérios perigos de contaminação, principalmente
de crianças. É necessário que se faça um novo sistema de coleta com os devidos critérios e dentro
de horários e padrões adequados.
6
Dessa notícia, infere-se que a prefeitura ainda não havia sistematizado, de forma
ampla, a coleta do lixo hospitalar na cidade. Ainda que os resíduos dos hospitais já
estivessem sendo coletados separadamente, o mesmo não ocorria com os de outros
estabelecimentos de saúde. O vereador ressalta os problemas decorrentes: o lixo
hospitalar estava sendo coletado junto com o lixo domiciliar, e, além de disso, permanecia
exposto nas calçadas até que o caminhão passasse para recolhê-lo. O texto enfatiza os
“perigos de contaminação” dos resíduos e, ao mesmo tempo, denuncia a presença deles
no espaço público, indicando uma complicada situação a exigir maior atuação e
planejamento do poder público também nesse setor.
Uma breve incursão pela legislação existente fornece-nos elementos para refletir
sobre determinados processos sociais que refletem mudanças nas formas de ver e
pensar a questão do lixo hospitalar na cidade. Ao tomarmos o Código de Postura de
1967, por exemplo, vemos que ele nada traz sobre o tema. Não há referências
específicas sobre o lixo hospitalar. O que encontramos, nas disposições concernentes
aos hospitais, casas de saúde e maternidades, são regulamentos definindo quais os
cuidados necessários para manter uma higiene “rigorosa” em ambientes como
lavanderias, depósitos de roupas servidas; medidas para a “instalação do necrotério”,
precauções de limpeza na cozinha, na lavagem das louças e no preparo dos alimentos. A
ênfase no uso de água quente, para a esterilização e a “completa desinfecção” dos
diversos utensílios, expressa o teor das preocupações com a higiene e a limpeza desses
estabelecimentos de saúde, indicando, também, como a suposta ingerência do poder
público nesses locais ainda se restringia ao funcionamento interno deles.
Significativas mudanças nesse quadro espelham-se no Código de Posturas de 1988.
No capítulo intitulado “Do Lixo”, também não encontramos citação expressa sobre o lixo
6
Coleta de lixo. Correio de Uberlândia, 26 de agosto de 1987, n 14.711, p. 03.
164
hospitalar, mas já se percebem ali indícios de como a questão desses restos extrapola o
interior dos estabelecimentos de saúde, invade o espaço público e ganha corpo na
organização da vida na cidade. Neste documento, conforme o artigo 10, o lixo hospitalar
passa a ser, inclusive, classificado como “resíduos sólidos especiais”:
§ 3º Consideram-se resíduos sólidos especiais aqueles cuja produção diária exceda o volume ou
peso fixado para a coleta regular ou os que, por sua composição qualitativa ou quantitativa,
requeiram cuidados especiais no acondicionamento, coleta, transporte ou destinação final.
7
Segundo a legislação, a coleta e o transporte desse lixo são de responsabilidade da
Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, mas também podem ser realizados por
particulares, por meio de concessão. Além disso, quanto ao destino final, a lei determina,
no artigo 14, que
É obrigatória a incineração de resíduos hospitalares e congêneres em equipamentos de uso coletivo
ou mesmo individual, projetados e operados especialmente para este fim.
8
Esse conjunto de normas que envolve a questão do lixo hospitalar torna-se
representativo de certas mudanças no viver urbano e nas relações em torno desses
restos. Em primeiro lugar, a legislação já reflete algumas transformações em âmbito
político local, como a coleta separada e a destinação em lugar específico no aterro
sanitário. Tanto isso como a própria existência de uma definição legal para o lixo
hospitalar sinalizam o crescimento de sua produção, que contribui para elevá-lo à
condição de um sério problema para a vida na cidade.
Dentre outros aspectos que merecem ser ressaltados, encontra-se o fato de que a
lei atribuía a responsabilidade da coleta e do transporte desse lixo somente à Secretaria
Municipal de Serviços Urbanos. Não havia exigências sobre a participação ou mesmo a
fiscalização de outros setores como as Secretarias de Saúde e de Meio Ambiente.
Também, conforme a lei, o lixo hospitalar era uma obrigação da prefeitura e não há
referência quanto aos hospitais e aos estabelecimentos de saúde. Mesmo a Lei Orgânica
do Município, já da década de 1990, que também prevê a incineração do lixo hospitalar,
não traz uma reformulação dessa norma, e a obrigação de cuidar desses restos
permanece com o poder público. Tudo isso serve de elemento para avaliarmos a visão e
7
Lei 4.744 de 05 de julho de 1988, que institui o Código Municipal de Postura, Capítulo III – Do lixo, p. 08.
8
Idem.
165
a percepção existentes em relação ao problema, com o poder público concentrando em
suas mãos várias obrigações. Mas, à medida que a questão do lixo hospitalar vai
tornando-se mais complexa, ele tenta delegar responsabilidades à iniciativa privada.
Quanto à determinação de um incinerador específico para o lixo hospitalar, trata-se
de uma grande polêmica. A implantação desse equipamento tem sido uma proposta muito
debatida há vários anos, defendida por alguns e criticada por outros, tendo sido
executada por um curto período de tempo, sob a responsabilidade do Hospital Escola da
Universidade. Outras possibilidades para o destino desse lixo foram apresentadas por
diferentes setores da cidade, sempre envoltas em diversos discursos e conflitantes
interesses políticos.
Em março de 1989, início da terceira gestão do ex-prefeito Galassi, a questão do lixo
hospitalar reaparece na imprensa local. O Correio de Uberlândia publica matéria na qual
alerta para o fato de que o lixo hospitalar estava sendo destinado de maneira imprópria,
contrariando “as normas de disposição que dizem que este tipo de lixo deve ser
queimado”.
9
Dois aspectos merecem ser ressaltados nessa notícia: primeiro, o destino
final do lixo hospitalar permanecia um problema sem solução. Segundo que, apesar de a
legislação local determinar a obrigatoriedade da incineração dele, essa era uma medida
com a qual a prefeitura, constantemente, apenas acenava. Isso se pensarmos num
processo em que o lixo teria como destino um incinerador público, pois, de outra forma,
existem indícios de que, por muito tempo, houve a prática de simplesmente atear fogo nos
resíduos nos locais de despejo.
Nesse mesmo ano, o Secretário Municipal de Habitação e Meio Ambiente, Ivan
Pereira, declara que a prefeitura vinha desenvolvendo estudos para implantação de uma
usina de reaproveitamento do lixo e que este projeto incluía “a instalação de um
incinerador para a destinação do lixo hospitalar”.
10
Desde a administração anterior, já se
falava sobre a possibilidade de adquirir um incinerador como solução para o destino final
desse lixo. Enquanto o projeto não se transformava em realidade, alguns fatos ocorridos
na cidade evidenciavam a necessidade da maior intervenção das autoridades públicas.
9
Aterro Sanitário: uma ameaça ao Meio Ambiente e à vida. Correio de Uberlândia, 19 de março de 1989, 05.
10
Empresas cuidarão de praças, lixo poderá ser incinerado. Correio de Uberlândia, 31 de março de 1989, n.
15.199, p. 13.
166
Em fins da década de 1980, com o lixo ganhando visibilidade tanto nas páginas dos
jornais quanto nos discursos do poder público, percebe-se, também, uma profusão de
notícias a respeito do lixo hospitalar, sobre o qual começam a se fomentar incontáveis
debates. Algumas dessas notícias são denúncias de moradores e de entidades civis em
decorrência de problemas relacionados com o destino desses restos. Assim, por meio da
imprensa, podemos apreender novos receios e preocupações que começam a fazer parte
do cotidiano da população e que traduzem novas atitudes, sentidos e percepções da vida
na cidade. As reações de determinados grupos sociais, frente ao problema do lixo
hospitalar, surgem quando esses resíduos, indevidamente, começam a aparecer nos
espaços públicos, como terrenos baldios, encostas e outras áreas.
Um outro indício de certas mudanças em torno da questão lixo hospitalar está no
fato de que, se, durante a década de 1980, para a Secretaria Municipal de Saúde, o lixo
ainda era um problema “muito incipiente”, ao longo dos anos seguintes, pode-se dizer que
esse quadro se transforma de maneira significativa.
11
Até mesmo porque importantes
fatores externos iriam contribuir para acentuar a complexidade da questão do lixo
hospitalar em Uberlândia.
Nesse sentido, é impossível deixar de relacionar esse problema a alguns
acontecimentos, de âmbito mais geral, próprios do contexto histórico dos anos de 1980, e
que, certamente, se refletiram na realidade local. Primeiramente, a descoberta e a
disseminação do vírus da AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome - Síndrome da
Imunodeficência Adquirida), que, a julgar pelos registros nos periódicos locais, causaram
um grande impacto na população e nas autoridades públicas responsáveis pelo problema
do lixo hospitalar. Durante o ano de 1987, encontram-se, nos jornais pesquisados, várias
notícias e artigos que abordam o tema da AIDS nas mais diferentes perspectivas, o que
revela como essa questão despertava o interesse e a preocupação de alguns setores da
população.
12
11
Este termo foi usado tanto por Marco Aurélio Ribeiro de Sá, quanto por Paulo Roberto Franco Andrade. Marco
Aurélio, à época, era coordenador do Setor de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde. Na ocasião em que lhe
perguntei como esta Secretaria lidava com o problema do lixo hospitalar, no início da década de 1980, ele comentou
que, quando começou a trabalhar no respectivo setor, em 1986, “a discussão de lixo era muito incipiente”. Já, o
professor Paulo Roberto foi Secretário de Serviços Urbanos, durante alguns meses do ano de 1983, e, ao usar esta
mesma expressão, refere-se ao modo como o lixo, naquele contexto, ao contrário do que ocorre hoje, ainda não ser fator
de mobilizações e pressões sociais, cujo objetivo é exigir do Poder Público Municipal a execução de determinadas
políticas públicas.
12
Secretaria de Saúde inicia prevenção da Aids. O Triângulo, 26 de agosto de 1987, n. 6.186, p. 01.
167
Não havíamos feito essa conexão entre a questão da AIDS como um fato marcante
da década de 1980, e a maior preocupação com a problemática do lixo hospitalar até o
momento em que isso é mencionado por Carmen Sílvia, uma geógrafa que trabalhava na
Secretaria de Meio Ambiente, a quem entrevistamos para saber sobre sua participação na
Comissão do Lixo Hospitalar, em 1991, composta por representantes de diversos setores
sociais. Lembramo-nos de que Carmen comentou que não pertencíamos à geração que
vivenciou o advento da AIDS, e que, por isso, não tínhamos noção do que isso significou
para a juventude da época. De todo modo, já se consegue hoje avaliar como a
emergência da AIDS contribuiu para afetar as relações entre as pessoas, provocando
uma série de reflexões e mudanças de comportamentos, valores e tabus, tanto do ponto
de vista social, como afetivo e sexual.
13
Se considerarmos esse quadro como um fenômeno social numa relação direta com
a questão do lixo hospitalar, vamos nos deparar também com várias transformações, que
reforçam antigos temores e trazem outros novos. Os receios que temos da possibilidade
de contaminação dentro das instituições de saúde têm uma longa trajetória histórica,
relacionada com o fato de serem espaços de confinamento e reclusão, de dor, doença e
morte. Lugares cujo curso dos acontecimentos não sabemos nem determinamos, e onde
permanecemos frágeis e submissos. De outro lado, a questão dos resíduos hospitalares
também ultrapassa os limites das instituições de saúde, tornando-se um problema fora
delas, nos mais diversos espaços. Carmen, inclusive, relacionou a iniciativa da prefeitura
de recolher o lixo hospitalar separado do lixo doméstico, em parte, por conta de reações
Aids: a melhor prevenção é a educação. Correio de Uberlândia, 12 de setembro de 1987, n. 14.722, p. 01.
Comércio ilegal de AZT está sendo investigado. Correio de Uberlândia, 15 de setembro de 1987, n. 14.723, p. 12.
O AZT será produzido em Montes Claros. Correio de Uberlândia, 24 de setembro de 1987, n. 14.730, p. 01.
2.102 casos de Aids no Brasil. Correio de Uberlândia, 09 de outubro de 1987, n. 14.741, p. 01.
Aids: uma constante preocupação no Brasil. p. 01.
Esquadrão da Aids já passou a peste gay para 40 pessoas. (Florianopólis). O Triângulo, 27 de outubro de 1987, n.
6.227, p. 01.
13
Algumas reflexões nesse sentido, no campo da medicina e da psicologia, demonstram como, entre vários outros
aspectos, a AIDS implicou um grande impacto no imaginário coletivo e nas redes sociais, de tal modo que determinadas
reações ainda em processo também têm modificado significativamente o relacionamento entre médico e paciente,
exigindo maior diálogo, e, invertendo, ou provocando o questionamento, acerca do modelo tradicional entre o primeiro,
que detém o saber, e o segundo que, numa atitude passiva, pouco teria a contribuir para sua própria cura. Muitos
profissionais estão avaliando como “vinte anos de atuação da AIDS no planeta foram decisivos para imbricar o tema na
subjetividade contemporânea de modo a fazer parte indivisível dela”. Estão discutindo também o significado de
algumas mudanças como a produção de novas drogas no tratamento da doença e a possibilidade de se viver com AIDS,
quando, durante muito tempo, se estabelecia uma forte e evidente associação entre infecção e morte. Para um rico
debate sobre o tema, ver As transformações da AIDS: impacto na subjetividade. Seminários do Banco de Horas, 2000.
“Apresentação”, p. 05-06.
168
da população diante da imagem do caminhão de lixo que misturava os resíduos e deixava
vestígios pelas ruas.
O Professor Paulo Franco, ex-secretário de Serviços Urbanos, por sua vez,
assegura que já havia uma preocupação das autoridades com relação ao problema do
lixo hospitalar e que a necessidade de coletar esses resíduos separadamente do lixo
doméstico era, inclusive, uma antiga reivindicação dos trabalhadores da limpeza pública.
Como a preocupação com a questão se acentuou, esses trabalhadores, finalmente,
tiveram sua reivindicação atendida.
14
Isso nos induz a pensar acerca do modo como
nossas relações com o lixo revelam um processo em curso no qual se entrelaçam,
simultaneamente, antigos e novos receios. A exigência dos coletores para que se
recolhesse o lixo hospitalar em caminhões diferentes, e, como relembra Carmen, os
temores da população no que tange ao veículo que transportava esses resíduos,
misturando-os e deixando sinais disso por onde passava, também nos permite apreender
alguns aspectos inerentes ao processo social que diz respeito a algumas mudanças de
atitude quanto a esses resíduos. Trata-se, novamente, da maneira como nossa relação
com o lixo delineia certos anseios, medos, enfim, toda uma sensibilidade reveladora de
condições sócio-culturais que marcam contextos históricos específicos.
15
Nesse sentido, mais um sinal das mudanças na sensibilidade e na visão sobre o lixo
hospitalar pode ser vislumbrado na legislação que, ao regulamentar a circulação dele pela
cidade, passava a exigir que “quaisquer materiais” ou “resíduos sólidos que exalem
odores desagradáveis” devem ser transportados de maneira “a não provocar
derramamento nas vias ou logradouros públicos”. A mesma lei também iria proibir “a
utilização de restos de alimentos provenientes de estabelecimentos hospitalares e
congêneres”.
16
Essas reformulações legais, datadas de 1988, espelham os receios e preocupações
em curso no contexto. No entanto, quando indagamos a outras pessoas que trabalharam
na administração pública e que estavam, direta ou indiretamente, envolvidas com a
14
Paulo Roberto Franco Andrade, foi Secretário de Serviços Urbanos, durante cerca de seis meses, no governo do
PMDB, em 1983. Ele esclareceu que deixou o cargo por conta de algumas “divergências de natureza político-ideológica
que foram se agravando”. Entrevista concedida à autora em 07 de junho de 2004.
15
Discutimos, no capítulo IV, o modo como os trabalhadores do aterro sanitário falaram de seus diversos temores em
relação ao lixo, como o medo de cortar, espetar ou contaminar-se com algo que possa vir em meio aos restos que
manipulam. Para eles, o trabalho com o lixo constituía uma ameaça à saúde e à integridade física.
16
Código Municipal de Postura, julho de 1988, Capítulo III – Do lixo, art. 11 e 12, p. 08
169
questão do lixo hospitalar, quais fatores motivaram o poder público a se preocupar de
forma mais efetiva com o problema, a maioria não se recordava, ou então, atribuía o fato
unicamente a um “ineditismo” daquela administração. Interessante como isso revela as
diferentes visões, o envolvimento e a consciência de cada um em relação a essa
problemática.
De qualquer forma, num contexto de reações e de temores relacionados com a
descoberta da AIDS, a prefeitura iniciava a coleta do lixo hospitalar em um caminhão
específico, além de reunir, pela primeira vez, a comunidade médica local a fim de debater
o problema dos resíduos. Destacamos que a conexão entre esses acontecimentos são
aspectos importantes em se tratando da questão do lixo hospitalar na cidade.
Sobre as notícias que abordam o tema da AIDS, publicadas nos jornais locais, em
1987, é preciso dizer que chamam nossa atenção porque, mesmo depois da consulta na
imprensa em periódicos e boletins selecionados para a pesquisa, retornamos aos jornais,
especificamente, ao ano de 1987, a fim de observar se e como as notícias do final desse
ano abordavam o acidente com o césio 137, em Goiânia, ocorrido em setembro. Esta era
uma interrogação a qual já nos fazíamos há algum tempo: qual teria sido o impacto que
esse acidente provocou em Uberlândia e de que modo isso influenciou na questão do lixo
hospitalar?
Os jornais evidenciam que o fato lamentável trouxe muita consternação a todo o
país. O conjunto de notícias sobre o que ocorrera em Goiânia e suas conseqüências nos
meses consecutivos são expressivos e evidenciam que, de alguma maneira, isso trouxe
reflexos em âmbito local. Também apresentamos essa questão para as pessoas que
entrevistamos com o objetivo de recuperar mais elementos sobre a problemática do lixo
hospitalar na cidade. Elas foram consensuais em assegurar que, evidentemente, o fato
em si trouxe um alerta e maior atenção; no entanto, pelo que se recordavam, a
repercussão não foi muito além disso.
17
17
Lixo radioativo será removido. Correio de Uberlândia, 10 de outubro de 1987, n. 14.742, p. 01.
Pará diz “não” ao lixo radioativo. Correio de Uberlândia, 14 de outubro de 1987, n. 14.7423, p. 01.
Acidente de Goiânia é tema de decoração (Belo Horizonte). Correio de Uberlândia, 22 de outubro de 1987, n. 14.747, p. 02.
Goiás. O Triângulo, 08 de outubro de 1987, n. 6.125, p. 01.
Tragédia de Goiânia foi “acidente radioativo e não nuclear” afirmou ontem o Presidente Sarney”. O Triângulo,
15 de outubro de 1987, n. 6.219, p. 01.
Goiânia recebeu corpos das vítimas de radiação. O Triângulo, 27 de outubro de 1987, n. 6.227, p. 01.
Crianças atômicas não podem entrar para a escola. O Triângulo, 06 de novembro de 1987, n. 6.234, p. 06. Goiânia. Correio de
Uberlândia, 04 de dezembro de 1987, n. 14.778, p. 05.
170
Mas uma notícia publicada pelo jornal O Triângulo, um mês após a tragédia na
capital goiana, cuja manchete dizia: “Reitor descarta possibilidade de acidente atômico na
cidade”, mostra que é bem provável que o incidente tenha feito com que as autoridades
ficassem mais atentas aos riscos oferecidos por elementos radioativos manipulados nos
hospitais e, certamente, aos perigos que o lixo hospitalar já representava, mesmo que não
haja muitos indícios de como isso tenha repercutido. Até mesmo porque já havia uma
certa preocupação com o problema dos resíduos hospitalares, e o incidente com o césio
137 contribuiu para acentuá-la, dando mais visibilidade e reforçando a necessidade de
critérios mais rigorosos na coleta. Como avaliou Carmen, aquele foi um acontecimento
“relevante”, que se juntou a uma “somatória de coisas”. Entendemos, então, que a
repercussão do que houve em Goiânia, na verdade, adentrou um processo social já em
movimento, no qual alguns olhares já se voltavam para a problemática do lixo hospitalar
na cidade. Sem dúvida, ações mais efetivas ainda levariam uma década para serem
postas em prática. Mesmo assim, isso nos instiga a refletir como determinados
acontecimentos contribuem para a expansão de políticas públicas direcionadas para a
questão ambiental.
Precisamos levar em conta que a AIDS surgiu num determinado período,
provocando um grande impacto, inclusive, uma sensível alteração no quadro das
doenças, exigindo a ampliação de hospitais e de clínicas à época. Mas, de todo modo, ela
constituiu um problema datado, um fator surpresa, ao passo que o incidente em Goiânia
estava relacionado com práticas já antigas de manipulação de elementos radioativos. O
uso de equipamentos de raios x remonta a mais de um século, caracterizando
procedimentos com os quais as instituições de saúde já estavam familiarizadas, embora
sem atentar ao perigo que representavam. Todavia, tanto um quanto outro foram fatos
que contribuíram para uma mudança de visão sobre o lixo e implicaram uma nova
sensibilidade no que se refere ao problema. Oportuno lembrar Guatarri, quando escreve:
Chernobyl e a AIDS nos revelaram brutalmente os limites dos poderes técnico-científicos da
humanidade e as “marchas-a-ré” que a “natureza” nos pode reservar. É evidente que uma
responsabilidade e uma gestão mais coletiva se impõem para orientar as ciências e as técnicas em
direção a finalidades mais humanas. Não podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos
171
aparelhos de Estado para controlar as evoluções e conjurar os riscos nesses domínios, regidos no
essencial pelos princípios da economia de lucros.
18
Sugerimos, então, que a AIDS e o acidente com o césio 137 em Goiânia foram
acontecimentos que estiveram, de certa forma, assim como a própria questão ambiental,
articulados à crescente desconfiança com relação à ciência e à técnica, e a uma
percepção, social e histórica, de que elas não somente são falhas como estão sujeitas
aos interesses e projetos de determinados grupos dominantes. Serviu de lição para isso o
ano de 1945, em que o mundo foi obrigado a se defrontar com o fato de que a produção
científica não almeja apenas proporcionar bem-estar às pessoas, curar doenças ou salvar
vidas, ao contrário, revelou-se uma ameaça, não somente a alguns, mas a toda a espécie
humana.
19
Nessa perspectiva, avaliamos que o fenômeno da AIDS, o que ocorreu em Goiânia e
as implicações inerentes a isso ajudaram a realçar a gravidade da situação do lixo
hospitalar em Uberlândia. Durante a investigação, encontramos outras evidências de
como esses acontecimentos repercutiram. Por isso, podemos pensar que os resíduos
hospitalares influenciaram para o agravamento da problemática do lixo, à medida que
despertaram a preocupação e exigiram o envolvimento de diversos setores sociais. Além
disso, a ocorrência de alguns fatos, já nos anos de 1990, ajudou a fomentar um intenso
debate sobre o problema.
Um deles diz respeito a uma notícia publicada pelo Correio em 1990. A respectiva
um matéria denuncia que “caminhões da prefeitura” estavam despejando lixo de hospitais
e de laboratórios “em área de erosão situada entre o rio Uberabinha e a Av. Geraldo
Motta Batista nos fundos da Liga das Escolas de Samba de Uberlândia”. As páginas do
jornal descrevem o que estava ocorrendo:
18
Guatarri, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 2000, p. 25.
19
Acerca da relação sociedade e técnica, Gonçalves reflete que ... “não se trata de dizer, como tem sido comum na
crescente tendência ao irracionalismo, que a ciência e a técnica são responsáveis pelos problemas da sociedade, uma vez
que elas próprias são sempre constituídas socialmente e está é uma verdade que precisamos relembrar. A questão nos
seus devidos termos é, portanto, indagar o que a sociedade quer fazer com a ciência e a técnica”... Para o autor, se não
houver uma apropriação social desses elementos e se não rompermos com a idéia de que os todos os problemas serão
resolvidos com o uso de alguma técnica, caminharemos seguramente para uma tecnocracia. In: GONÇALVES, Carlos
Walter Porto. Os (des) caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 1989, 141-142.
172
Jeferson Leite, que tem várias fotos comprovando a descarga de lixo e o contato de crianças da
região com materiais perigosos como esparadrapos e pedaços de materiais descartáveis, de uso
tanto em hospitais quanto em farmácias e laboratórios, afirmou que a descarga de lixo de várias
espécies vem sendo feita há vários meses, e ainda continua, como foi constatada pela reportagem do
Correio em companhia do gerente da Divisão de Limpeza Urbana, Orestes Cláudio Fernandes, na
tarde de terça-feira.
20
A denúncia feita pela Associação de Moradores do Bairro Chaves causou grande
impacto à época. O que pode ser mediado pela atitude do jornal em publicar mais duas
reportagens sobre o ocorrido, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos.
Interessante perceber a participação dessas entidades na questão do lixo hospitalar,
sobretudo, sua manifestação por meio do jornal. São circunstâncias que também deixam
entrever o problema dos resíduos dispostos nos terrenos baldios, sendo este um
fundamental elemento de mobilização de alguns setores da população contra o que
parecia ser resultado da negligência do poder público.
O Secretário de Serviços Urbanos, Adalberto Duarte, ao ser questionado, afirmou
não ter conhecimento sobre o assunto. Segundo ele, não havia informação na Secretaria
que confirmasse o respectivo fato. Os órgãos responsáveis por acompanhar a coleta e o
despejo do lixo hospitalar, o Serviço de Vigilância Sanitária Municipal e Estadual, não se
manifestaram e atribuíam-se mutuamente a responsabilidade pela fiscalização.
Rosângela de Fátima, coordenadora deste setor na Diretoria Regional de Saúde, uma
instância da Secretaria Estadual de Saúde, assegurou que iria investigar a denúncia, mas,
ao mesmo tempo, delegou a obrigação de fiscalizar à Secretaria Municipal de Saúde.
Esse fato é curioso porque nos permite entrever vários elementos que se articulam
ao problema do lixo hospitalar. Tudo parece indicar que ninguém se imputava a
responsabilidade pelo incidente. Confirmou-se apenas que o lixo foi disposto
aleatoriamente, sem cuidado algum. Propício a ser manuseado por qualquer pessoa, ele
era visto como ameaça à saúde da população, que, por sua vez, reclamava de uma
postura de descuramento do poder público. O fato de que a denúncia chegava ao jornal
por meio da Associação de Moradores do Bairro Chaves sinalizava a participação desses
grupos sociais, que, ao se mobilizarem, contribuíam para evidenciar o problema que o
destino do lixo hospitalar já delineava.
20
PMU vai apurar descarga de lixo ilegal. Correio, 25 de janeiro de 1990, n. 15.304, p. 05.
173
Repara-se como esse acontecimento assumiu conotações mais complexas, o que se
confirma pelo envolvimento de órgãos estaduais e municipais, responsáveis pela saúde
pública, enunciando que o ocorrido não era somente uma questão de deficiência nos
serviços de limpeza. Ainda assim, a julgar pelas notícias na imprensa, não houve uma
participação da Secretaria de Saúde no sentido de contribuir para esclarecer o que
ocorrera, um indício da natureza de seu envolvimento com a questão do lixo hospitalar.
Logo, a prefeitura teve que admitir o despejo dos resíduos no local. Mas, quando se
constatou a irregularidade, responsabilizaram-se o motorista e os funcionários. O
Secretário de Serviços Urbanos “eximiu de responsabilidades a administração Virgílio
Galassi”.
21
Em contrapartida a essa atitude omissa, o Correio do Triângulo registrou, na
ocasião, uma declaração do ex-gerente da Divisão de Limpeza Urbana, Hermes Quirino,
de que este setor contava com seis fiscais “especialmente treinados para acompanhar os
serviços de coleta de lixo, principalmente, do lixo hospitalar”, e que não havia a
possibilidade de os funcionários, como os motoristas e os garis, tomassem a iniciativa
própria de descarregar o lixo em local proibido, sem a prévia autorização de seus
superiores, por temerem a fiscalização.
22
Esse acontecimento revela um visível descuido no trato com o lixo hospitalar, pois
demonstra que este estava sendo, então, coletado e transportado de maneira displicente.
Não há afirmações sobre isso nos jornais, mas o fato ocorrido aponta que o lixo
hospitalar, ou parte dele, estava sendo novamente recolhido sem as devidas precauções
e sem um veículo apropriado. Naquele momento, o Correio do Triângulo outra vez
denunciou:
Enquanto não se decide de quem é a responsabilidade, as crianças dos bairros Chaves, Valleé e
imediações continuam brincando por entre os dejetos, levando para casa esparadrapos e até estojos
descartáveis.
23
Os problemas relativos ao lixo hospitalar tornavam-se cada vez mais evidentes. Em
um relatório da Secretaria de Serviços Urbanos, de junho de 1990, a situação dos
resíduos no aterro sanitário foi descrita por uma equipe de funcionários coordenada pela
engenheira química, Maria Teresa de Freitas, da seguinte maneira:
21
Prefeitura vai apurar descarga de lixo ilegal. Correio do Triângulo, 25 de janeiro de 1990, n. 15.304, p. 05.
22
Continua a sindicância sobre lixo “irregular”. Correio do Triângulo, 26 de janeiro de 1990, n. 15.305, p. 15.
23
Responsáveis não sabem explicar a situação. Idem.
174
A respeito do lixo hospitalar verificou-se que:
- o lixo não é embalado em sacos adequados (plástico resistente);
- os depósitos de lixo nos hospitais são em locais não apropriados;
- os garis não têm o cuidado necessário para proteção;
- o caminhão não é lavado e desinfetado diariamente;
- o lixo hospitalar fica na calçada onde há movimento de pessoas.
Diante de tal situação, faz-se necessária uma fiscalização rigorosa na área da coleta de lixo
hospitalar, pois os riscos de contaminação são grandes e podem acarretar complicações futuras.
24
Vimos, então, que uma série de fatores envolvendo esses resíduos já estavam
sendo constatados pelo poder público; eles diziam respeito à maneira como o lixo
hospitalar era embalado, aos trabalhadores que o manipulavam, à presença dele no
espaço público e à ausência de cuidados específicos nas instituições de saúde. Tudo isso
demarca que as questões em torno desses restos pareciam impor aos administradores a
necessidade de maior responsabilidade e de medidas mais efetivas. Ainda no ano de
1990, esse problema surgia na imprensa outra vez. Na ocasião, o Correio do Triângulo
divulgou uma notícia sobre despejo indevido em áreas rurais:
Funcionando a menos de dois km de uma escola e rodeado por pequenas propriedades rurais, o lixão
de Uberlândia recebe de 45 a 50 toneladas de lixo por dia. Com o mau cheiro intenso, a área utilizada
não passa de um buraco provocado pela erosão do solo que recebe detritos hospitalares sem
qualquer tratamento especial, o que, na opinião de ambientalistas, compromete a água, as plantas e
o ar da cidade...
25
Dessa forma, percebemos a intrincada rede de complexas situações que envolvem a
questão do lixo hospitalar. O jornal aponta as várias implicações decorrentes do que
parecia ser a incapacidade ou a inércia do poder público para enfrentá-las. Menciona,
ainda, que o fato trazia inúmeros prejuízos ambientais à cidade. Mas, em razão dos altos
custos, a Secretaria de Serviços Urbanos descartava a idéia de uma usina de lixo “nos
moldes da recém-inaugurada na cidade de Uberaba”. Ao ressaltar que a cidade vizinha,
mesmo sendo menor, já efetivara medidas no intuito de tentar resolver a questão, o jornal
parece pretender expor algumas idéias, a saber: Uberlândia estaria na retaguarda quanto
24
Relatório da Secretaria de Serviços Urbanos, 04 de junho de 1990. Documentos da Seção de Arquivo Geral.
25
Uberlândia não trata o lixo que produz. Correio do Triângulo, 23 de setembro de 1990, p. 01.
175
à capacidade para resolver o problema do lixo, e a sugestão de uma usina de lixo emergia
como a única ou a melhor alternativa.
26
Além disso, constatamos que o lixo, apesar de ser um problema do espaço urbano,
não permanece circunscrito a ele. Na história da cidade, ele tem sido constantemente
destinado a áreas rurais, nas margens de rodovias, ou então, na periferia. Isso ocorre,
freqüentemente, com os restos de construções, mas, no caso do lixo hospitalar, a
situação se tornava mais delicada. À época, o professor de Geografia, Samuel do Carmo,
publicou o que, certamente, podemos chamar de uma tentativa de alerta. Em sua
avaliação:
O lixo urbano se apresenta, hoje, como um dos grandes problemas, entre tantos outros problemas da
cidade. As administrações públicas municipais, mesmo aquelas que não tomam as decisões cabíveis
na busca de uma melhor solução, gastam enormes fatias de seus orçamentos na coleta e na
destinação do lixo. O destino final do lixo urbano (doméstico, hospitalar, industrial, etc.) é uma
questão de saúde pública e de meio ambiente. Se não tomarmos providências quanto a estas
questões, corremos o risco de morrer sufocados em tanto lixo que produzimos. O lixo hospitalar, bem
como o lixo industrial perigoso não devem ser destinados ao aterro sanitário junto
com os resíduos
comuns. O lixo hospitalar deve ser incinerado e o lixo industrial perigoso deve ser destinado em
aterros sanitários especiais, segundo norma da ABNT 2:09.60 (“Aterros de Resíduos Perigosos
Critérios para Projeto, Construção e Operação”).
27
Entretanto, para aqueles que detinham o poder de administrar a cidade e seus
problemas, advertências dessa natureza não chegavam a surtir efeitos. Ao menos é o que
parece, pois, naquele momento, o lixo hospitalar voltava a ser enterrado juntamente com
o lixo doméstico, no lixão, localizado na Fazenda Douradinho. Isso revela uma grande
contradição, visto que tanto o poder público como os jornais locais alertavam para os
riscos de contaminação que esses restos poderiam trazer à população. Ao mesmo tempo,
fomentavam-se debates e propostas sobre o que fazer com o lixo hospitalar em
Uberlândia, conforme o jornal O Triângulo.
26
Sabe-se que sempre houve uma certa rivalidade entre as duas cidades, e o fato de que Uberaba tenha estado à frente
na implantação de uma usina de lixo constituía, também, um motivo de desconforto para as autoridades públicas. Ainda
assim, interessante perceber como cada cidade busca resolver, isoladamente, o problema do lixo, tendo influência nisso,
o fato de que a Constituição Federal de 1988 concede plena autonomia aos municípios para encaminhar questões dessa
natureza.
27
LIMA, Samuel do Carmo. “Escolha de uma área para aterro sanitário e a sua implantação – Estudos Ambientais. In:
Sociedade & Natureza, Revista do Instituto de Geografia da UFU, n. 2(3), junho de 1990, p. 61.
176
Preocupado com o destino que vem sendo dado ao lixo hospitalar da cidade, o vereador Luizote de
Freitas, que é médico e sabe do perigo que esse restolho representa para a população, apresentou
ao Legislativo, para apreciação e aprovação de seus colegas, apoiado por vários edis, um projeto de
lei, visando a uma emenda a Lei Orgânica do Município, dando nova redação ao § artigo 150, que,
se merecer o “ad referendum” da Casa de Leis, passará a ter esta redação:
§ 4º - O lixo hospitalar de clínicas, de laboratório, de gabinetes dentários e de farmácias terá como
destinação final o INCINERADOR PÚBLICO, exceto a parte reciclável.
28
A notícia sinaliza como o tema do lixo hospitalar vinha sendo alvo de debate pelas
autoridades públicas. A proposta do vereador de emendar a Lei Orgânica, acrescentando
ao artigo que determina que “todo lixo hospitalar, de clínicas, de laboratórios e de
farmácias terá destinação em incinerador público” a seguinte frase: “exceto a parte
reciclável”, demonstra que, nas discussões sobre o problema, já se evidenciava uma
percepção de que o lixo hospitalar poderia ser selecionado antes de ser incinerado, e de
que nem todo lixo produzido pelos estabelecimentos de saúde precisaria ter como destino
o incinerador.
29
Essa proposta denota que o debate e a preocupação em torno do tratamento e do
destino dos resíduos já se faziam existentes entre algumas figuras do Poder Legislativo.
Outro indício de como essa questão vinha se constituindo em um delicado assunto entre
eles apresenta-se nas Atas do Poder Legislativo, de novembro de 1991.
Vereador Luizote de Freitas fez notificação de notícia vinculada publicada no jornal Estado de Minas
a respeito do lixo hospitalar em Uberlândia. Falou da preocupação no que diz respeito à reciclagem
do lixo doméstico e hospitalar, e no que diz respeito a pessoas, que estão interessadas em vender
equipamentos obsoletos e antiecológicos e que não se usam mais nos grandes centros, para a
cidade de Uberlândia, como a usina de lixo de Uberaba. Falou do fato de pessoas
interessadas e
desinteressadas, em termos econômicos, terem vindo aqui a convite, na época em que era
presidente, para participarem de palestra a respeito do assunto e que não estavam preocupados com
o problema. Lamentou a notícia, publicada no jornal “Estado de Minas”, a respeito do lixo hospitalar...
Lamentou o fato de o trabalho que está sendo desenvolvido há mais de dois anos ser jogado fora
sem uso. Trabalha-se e não se encontra respaldo junto àqueles
ligados diretamente a isso. Mas isso
vem a motivar os vereadores a trabalharem um pouco mais, em cima do assunto, para tornar
Uberlândia digna da população que hoje a ocupa e trabalha.
30
28
Lixo hospitalar: vereador quer alterar a legislação. O Triângulo, 14 de junho de 1991, n. 7.926, p. 03.
29
Lei Orgânica do Município de Uberlândia. Câmara Municipal, setembro de 1992, p. 56.
30
Documentos da Câmara Municipal, Livro de Atas do Poder Legislativo, 01 de novembro de 1991. Arquivo Público.
177
Desse texto, sem dúvida, confuso, podemos extrair algumas idéias interessantes.
Primeiramente, vê-se como, nesse período, o lixo hospitalar era um tema recorrente. A
referência à notícia publicada no Estado de Minas, jornal de Belo Horizonte, sobre a
questão do lixo hospitalar em Uberlândia evidencia como o tema ultrapassara as
fronteiras da cidade. Se o vereador lamentou a publicação da notícia, sua repercussão
não deve ter sido positiva. Outro ponto que merece destaque é a sua menção à venda de
“equipamentos obsoletos” para a cidade.
Trata-se de um intrigante aspecto no que refere ao lixo hospitalar que tem, ainda,
uma dimensão mais ampla, sobretudo, no que concerne a uma relação entre a
problemática do lixo na cidade e a administração pública, as várias ofertas de recursos
tecnológicos que são propostas para lidar com essa questão. Sobre isso, o Sr. Ilvio
Andrade comenta que, quando se trabalha na “prefeitura, aparece muita gente com
produto novo, com tecnologia nova, ofertando”.
31
Mais um exemplo disso está relacionado
com a trajetória de um grupo cuja principal atribuição foi propor uma solução para o
destino do lixo hospitalar na cidade.
Em julho de 1991, o Secretário de Serviços Urbanos criou uma Comissão de
Estudos do Lixo Hospitalar, formada por representantes de diversas instituições como a
Associação dos Hospitais Particulares, o Hospital de Clínicas da Universidade Federal,
com representantes também da própria universidade, além das Secretarias de Meio
Ambiente, Serviços Urbanos e Saúde, da Sociedade Médica e do SOS Meio Ambiente.
Reunindo distintos segmentos sociais, representativos dos setores público e privado, e de
entidades da sociedade civil, essa comissão foi criada justamente com o objetivo de
pensar e de propor alternativas para o destino do lixo hospitalar. Por isso mesmo,
avaliamos ser ela um importante elemento para discutir como a cidade lidou com o
problema do lixo hospitalar, como diversos sujeitos se envolveram nisso e quais os
sentidos dessa atuação. Daí, buscamos discutir vários acontecimentos simultâneos à
existência da Comissão, no intento de apreender um processo social que propicie
entender, em parte, algumas transformações em torno da questão do lixo hospitalar.
Carmen Sílvia Lopes geógrafa que fez parte da Comissão explica como eles
se viram diante da responsabilidade de apontar um caminho para a situação do lixo
31
Ilvio A. Andrade, Secretário de Serviços Urbanos de 1983 a 1987. Entrevista concedida em 27 de maio de
2004.
178
hospitalar. Assim, discutiram sobre possíveis tecnologias a serem sugeridas para
solucionar o problema da disposição final. Todos os entrevistados se recordam e falam
disso com naturalidade, como se tratasse somente da escolha de um outro procedimento,
e não tivesse sido essa uma decisão política que dissesse respeito a determinados
projetos, interesses, lutas e anseios de diversos sujeitos.
Naquele ano, alguns participantes visitaram várias cidades com o propósito de
conhecer meios de tratamento do lixo hospitalar. Logo, o grupo analisou as vantagens e
desvantagens de algumas tecnologias e estudou ofertas de empresas interessadas em
vender equipamentos. Carmen comentou como havia sido esse debate:
A comissão discutia justamente isso: resolveu-se o problema da coleta e nós passamos a discutir
tecnologias. Avaliou-se, em primeiro lugar, a possibilidade de se implantar o sistema de
autoclavagem, mas naquela época a comissão entendeu ser esta uma tecnologia cara. Há
aproximadamente um ano e meio, participei de uma discussão com um grupo que estava tentando
vender para a PMU tecnologia que envolvia também o processo de autoclavagem, mas o problema
de custo elevado ainda constituía um obstáculo.
32
Carmen contou-nos que, quando a comissão discutiu a possibilidade de se
autoclavar o lixo hospitalar, havia argumentos contrários e favoráveis a esse tipo de
tecnologia. O autoclave é um aparelho onde se esteriliza o lixo no interior do próprio
hospital. Seu funcionamento assemelha-se ao de uma panela de pressão. Já esterilizado,
o resíduo seria transportado para o aterro sanitário e soterrado. Um importante detalhe,
ela relembra que a eficiência do processo de autoclavagem era um argumento defendido
por “técnicos que estavam apresentando a tecnologia”. Carmen refere-se, também, a uma
outra discussão sobre o tema, da qual ela participou recentemente e, assim sendo, é
interessante observar como esse debate ainda continua, e essas tecnologias são
discutidas como possibilidades, diante do fato de o lixo hospitalar permanecer como um
problema a ser resolvido.
De qualquer forma, o que nos interessa aqui é apontar para esse “assédio” de
recursos tecnológicos freqüente na administração pública. Isso pode ser observado, outra
32
Carmen Sílvia Lopes de Paiva, geógrafa, atuou como técnica administrativo por vários na Secretaria de Meio
Ambiente. Na época em que participou da comissão, trabalhava na Seção de Educação Ambiental. Em 2001, retornou à
prefeitura como assessora neste mesmo órgão, cargo que ocupou até meados de 2003. Possui uma trajetória de
militância na APR - Animação Pastoral Social do Meio Rural, entidade ligada à igreja católica que, em 1994, tentou
criar uma associação de catadores de papel na cidade. Entrevista concedida à autora em 18 de maio de 2004.
179
vez, na ocasião em que a coordenadora da Comissão, Maria Teresa Franco, declarou à
imprensa:
“Para o dia 24 de outubro está sendo organizada uma palestra com o especialista em incineração
Cláudio Augusto Desire, de São Paulo, mas o local ainda não está definido. Se ele nos convencer
que o equipamento é eficiente, vamos depender de verba, finalizou a coordenadora.”
33
Novamente, deparamos uma situação que demonstra como a comissão foi rodeada
por propostas de técnicos e de empresas que prometiam soluções mágicas e definitivas
para o problema do lixo hospitalar. Há indícios de que essa não foi a única ocasião em
que esse grupo enfrentou esse debate. Na verdade, apesar de tanto o incinerador quanto
o autoclave não terem sido adotados sob a justificativa de serem tecnologias muito caras,
essa discussão ocupou por muito tempo os integrantes da Comissão.
Vale a pena recuperar aqui um acontecimento ocorrido durante o ano em que esse
grupo esteve reunido, pois isso nos ajuda a explicitar, em parte, os meandros que
envolveram a sua trajetória. Referimo-nos a um debate na sede da Unimed que, além dos
membros da comissão, buscou reunir um público mais amplo. Organizado pelo setor de
Vigilância Sanitária da Diretoria Regional de Saúde, o evento pretendia discutir a
implantação de um sistema de tratamento de lixo para a cidade, principalmente, de um
sistema de seleção e tratamento do lixo hospitalar. Na ocasião, o engenheiro alemão
Jorge Andrés Hirdes que, à época, era consultor da Secretaria Nacional de Meio
Ambiente, em Brasília, foi convidado para apresentar e defender o sistema de
autoclavagem. Ao fazê-lo, Jorge Andrés teceu muitas críticas ao uso dos incineradores,
avaliando que se tratava de um método caro, complicado e que, no Brasil, na forma como
eram instalados, os equipamentos tornavam-se fatores de grande poluição e de risco à
comunidade. Assegurou que, mesmo em países da Europa ou nos Estados Unidos, os
incineradores já eram alvo do repúdio da população por representarem uma ameaça à
saúde e ao ambiente.
34
33
Lixo hospitalar sem definição. O Triângulo, 11 de outubro de 1991, n. 8.012, p. 05.
34
Segundo George Rosen, assim como a histórica preocupação com a poluição da água, surgiu também a percepção
quanto ao problema da poluição atmosférica. Na década de 1950, não se tinham noções efetivas no que se refere às
conseqüências da poluição do ar sobre a saúde das pessoas. O que já não ocorre nos dias de hoje. Mesmo naquele
tempo, o autor afirmava que “a atmosfera da comunidade industrial moderna é, em suma, um mar, poluído e
ensombrecido por muitas espécies de resíduos. Nesse ambiente, é quase impossível se evitar o contato com agentes
produtores de câncer; essa contaminação pode ter contribuído para o aumento da enfermidade, como causa de morte,
nos últimos cinqüenta anos. Dificuldades intrínsecas vêm impedindo, no entanto, uma solução para o problema. As
180
Argumentos contrários aos de Andrés e favoráveis a outros processos de tratamento
do lixo hospitalar, como a incineração, foram apresentados por um médico da Fundação
Hospitalar de Ouro Branco, Minas Gerais. Esse debate constituiu um interessante
acontecimento, pois nele, foram abordadas diversas questões sobre o lixo hospitalar que
já vinham sendo discutidas em âmbito nacional. Contando com a participação de
representantes dos hospitais particulares e de professores universitários, o evento denota
como essa discussão envolveu diferentes setores sociais. Além disso, a julgar pela
maneira como transcorreu o debate, podemos ter uma noção das dificuldades
enfrentadas pela Comissão de Estudos do Lixo Hospitalar.
Mencionamos isso porque houve um momento em que, após a exposição dos
palestrantes, os participantes estiveram debatendo as propostas. Diante das críticas de
Jorge Andrés ao método da incineração, uma pessoa presente (representante de uma
multinacional que comercializava incineradores) queixou-se de que a postura do
engenheiro era demasiadamente parcial. Iniciou-se, então, uma intensa discussão
durante a qual, de um lado, o vendedor tentou desfazer a imagem negativa que ele
acreditava que Jorge Andrés estivera traçando dos incineradores. De outro, o engenheiro
retomou suas afirmações de que aqueles equipamentos eram poluentes e as empresas,
como as representadas pelo vendedor, queriam somente vender seus produtos já em
descrédito no exterior.
35
Esse debate prosseguia calorosamente, entretanto, interessa-nos pensar o sentido
das propostas que estavam sendo feitas. Em um momento posterior, um professor
universitário questionou a presença do vendedor, afirmando que, como representante de
uma empresa, ele era “suspeito” para estar ali, porquanto aquela discussão não se
restringia à escolha de uma ou de outra tecnologia, mas do entendimento de qual era o
melhor procedimento para lidar com o problema do lixo hospitalar na cidade.
Sem dúvida, essa é uma assertiva emblemática de determinadas questões que
estiveram no cerne das discussões no âmbito da Comissão. Afinal, por que o debate
causas da poluição do ar envolvem uma série grande de interesses – governamentais, comerciais, industriais. In:
ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1994, p. 348.
35
Debate sobre o Lixo Hospitalar em Uberlândia, na sede da Unimed, em 1991. Esse evento está registrado em duas
fitas cassetes cedidas pelo Sr. Marco Aurélio. Ao transcrever a gravação, encontrei dificuldades para compreender os
diálogos, pois há muitas passagens inaudíveis e, em certos casos, as pessoas não se identificaram antes de começar a
falar, limitando ainda mais o entendimento. De todo modo, com as devidas inferências, entendo que esse debate encerra
importante significado no contexto em que a questão do lixo hospitalar tornou-se alvo de tantas discussões e propostas.
181
sobre equipamentos tecnológicos assumiu tamanha importância para o grupo? Talvez
isso tenha uma relação direta com as políticas de financiamento do governo federal para
projetos de saneamento básico, e com a organização de setores do empresariado,
mobilizados no intuito de obter vantagens com a comercialização dessa tecnologia junto
às prefeituras.
36
É importante pontuar como a Comissão constituiu-se de forma bastante
heterogênea. Eram pessoas que representavam distintos setores da sociedade:
servidores da prefeitura, de áreas técnicas e administrativas, professores universitários,
ambientalistas articulados a outros movimentos sociais, médicos dos setores público e
privado , todos com visões e posturas divergentes no que se refere ao tema debatido.
Enfim, aquele era um grupo dotado de uma especificidade, lidando com questões muito
polêmicas.
Precisamos, pois, recobrar também aqui a diversidade temática presente no
universo da Comissão. Além das denúncias de despejo de resíduos hospitalares em
alguns locais da cidade, com os moradores reclamando nos jornais, assuntos como a
disseminação da AIDS, o acidente com o césio 137 e outros fatores relacionados à
questão ambiental, entrecruzaram-se e constituíram alvo da preocupação do grupo.
Delicadas e angustiantes, todas as temáticas que desembocaram na Comissão, se não
tiveram um peso nas decisões tomadas, ao menos, de maneira contundente, fizeram
parte de seu horizonte de reflexões. Interpretando esse momento, sustentamos que
aquelas pessoas enfrentaram sérias discussões: contingencialmente, envolveram-se
numa complicada polêmica em torno de questões ligadas à saúde, ciência, tecnologia e
mudanças sociais em curso.
Entretanto, parece ter prevalecido a controvérsia sobre a questão técnica, com a
Comissão tentando fazer escolhas por um ou outro equipamento, e aí há um outro
elemento a se considerar. Trata-se do fato de que o grupo, ao discutir possíveis
36
A partir da década de 1990, o governo federal, por meio do Programa Nacional de Limpeza Urbana, iniciou uma
política de financiamento de projetos na área de saneamento básico. Contando “com recursos orçamentários da ordem
de US$ 1 bilhão”, o programa “destinava verbas também para a implantação de incineradores de lixo hospitalar e para a
integração, melhoria e implantação de aterros sanitários. In: SILVA, Edmilson Bechara e. Lixo Urbano - O que fazer
com ele? Uma contribuição ao estudo do problema na Região Metropolitana de Belém, op.cit., p.66.
Quanto aos empresários, de acordo com Miziara, desde 1970, o lixo hospitalar caraterizou “um novo negócio” para as
empreiteiras. Empreendimentos que contavam com lobbies e argumentos técnicos envolvendo incineradores, sistemas
de coleta seletiva e contratos caríssimos, tudo isso, com o aval do poder público. In: LOPES, Rosana Miziara, op. cit., p.
158.
182
procedimentos técnicos, não tinha como se manter tão isento ou tão neutro quanto
pretendia. Longe disso, se pensarmos como “as escolhas tecnológicas são,
primordialmente, opções políticas que atendem hegemonicamente a interesses dos
setores dirigentes para a solução de seus problemas”.
37
Isso implica refletir que tanto a
tecnologia como a capacidade de escolha são atributos humanos, jamais dotados de
neutralidade. Em outras palavras, quaisquer decisões que a Comissão tenha tomado
refletiram os interesses que, a despeito dos conflitos e embates, prevaleceram. Ao
interpretar sua trajetória, vemos como a questão da tecnologia surge revestida de um
discurso técnico em oposição a certos interesses políticos que a norteiam. Pensando,
ainda, sobre os diálogos e sobre as evidências que contêm dos conflitos com os quais
essas pessoas se depararam, há um momento em que alguém da Associação dos
Hospitais Particulares interveio, argumentando que deveria prevalecer no debate a
isenção de quaisquer interesses comerciais.
... Nós já havíamos discutido esse problema há algum tempo ... Nós tivemos aqui um Secretário da
Saúde que trouxe uma Lei Municipal dizendo que era obrigatório a colocação do incinerador. E nós
dos hospitais respondemos a ele: - Olha, nós não vamos fazer! Se a intenção da Prefeitura é fechar,
então que feche já, porque nós não temos recursos pra isso. É um processo muito caro. A nossa
realidade agora não nos permite isso. Então, o assunto tem que ser discutido mais demoradamente,
com os pés no chão. Não é uma lei de cima pra baixo, (que se) coloca e nós temos que cumprir.
Porque primeiro nós temos que pensar se temos condição de cumprir e, naquela ocasião, incineração
era absolutamente impossível de ser adotado. Então eu acho que esse assunto deve ser discutido,
mas por uma comissão completamente isenta de qualquer interesse comercial. O interesse maior tem
que ser o do município e da vida de quem aqui convive. O comércio tem que ficar de fora.
Os elementos mais ricos desse fragmento de texto precisam ser compreendidos à
luz da trajetória da Comissão, por mais que isso nos pareça fragmentado. Se tomarmos
os argumentos presentes nessa fala e, circunstancialmente, os generalizarmos, talvez
possamos situar, em parte, a visão e a postura da Associação dos Hospitais Particulares
como um dos segmentos sociais envolvidos no debate sobre o destino do hospitalar, no
interior da Comissão. Para a entidade, havia um certo autoritarismo do poder público
quando determinou o cumprimento da lei que exigia a incineração dos resíduos. Além
37
ALMEIDA, Josemar Paes de. “A instrumentalização da natureza pela ciência”. In: Revista Projeto História, São
Paulo: PUC/EDUC, n. 23, nov. 2001, p. 169-207.
183
disso, conforme alegava, era preciso discutir a questão por mais tempo. Ainda que o
depoimento não explicitasse quais seriam as suas propostas, tudo indica a existência de
um visível impasse entre o entendimento da entidade e o de outros setores sociais
presentes na Comissão. Conflitos que se estenderam por toda a década de 1990 e ainda
se fazem presentes nos dias de hoje: as divergências entre o interesse público e o
privado diante da questão lixo hospitalar na cidade. A resistência dos hospitais
particulares dava-se à proporção que um encaminhamento para o problema acarretar-
lhes-ia despesas financeiras.
De todo modo, a existência da Comissão e o papel que desempenhou elucidam
interessantes aspectos da realidade do lixo hospitalar. Podemos dizer que a Comissão
constituiu novamente um marco no debate sobre o problema na cidade. Afinal, desde
1984, não houve iniciativa alguma dos segmentos envolvidos em discuti-lo, e o número de
entidades presentes é revelador da importância que o tema ia assumindo, de forma a
envolver outros setores sociais além dos hospitais e da prefeitura.
Contudo, a Comissão é também um elemento simbólico e representativo de que,
não obstante toda a polêmica, havia um grande distanciamento do que ocorria, pois a
questão dos resíduos ainda era tratada com descuido, gerando insatisfação à população.
Em setembro, quando o grupo emitiu um parecer sobre a questão do lixo hospitalar, nas
páginas do jornal Correio, moradores reclamavam:
“O problema aqui é escandaloso, a própria Prefeitura amontoa lixo em um longo espaço, tudo a céu
aberto”. Esta declaração é do morador do bairro Santo Inácio, Joaquim José de Oliveira que es
irritado com a negligência do órgão municipal. Oliveira, afirmou que o lixo doméstico se mistura com o
hospitalar e a Prefeitura queima tudo, provocando uma fumaça irritante aos olhos e o mau cheiro
insuportável. Ele disse que nesse tempo de ventania é uma “fedentina que nojo, fazendo com que
os moradores das proximidades percam o apetite e impossibilitando a visibilidade dos motoristas que
trafegam nesse trecho”.
38
A notícia revela uma situação em que, novamente, a população denunciava a
prefeitura por despejar resíduos em local impróprio. Dessa vez, à “beira das rodovias”,
numa área perto do Santo Inácio, bairro situado na periferia. Uma circunstância que
demonstra a falta de controle que o poder público detinha sobre o problema. Enquanto
38
Prefeitura é negligente com o lixo. Correio do Triângulo, 21 de setembro de 1991, n. 15.743, p. 10.
184
não tomava medidas sérias que o solucionasse, o lixo hospitalar era descartado sem
qualquer precaução ou fiscalização. A prioridade parecia ser somente dar um fim aos
resíduos, ainda que provisoriamente. Outrossim, constata-se que atear fogo no lixo não
era um costume apenas da população, porque isso era feito, inclusive, por funcionários da
própria Prefeitura. Assim, além da proximidade com os resíduos, os moradores se viam
atormentados também pela fumaça.
Porém as conseqüências de tal atitude logo se tornaram visíveis e denunciaram que
não se poderia continuar a protelar a questão. O lixo hospitalar era bem mais que um
simples contratempo, denunciava os problemas que a cidade enfrentava e exigia das
autoridades públicas compromisso e responsabilidade.
Contrapondo-se às críticas em torno do problema do lixo hospitalar e da
precariedade que envolvia o setor de limpeza pública, anunciava-se o investimento de
recursos a fim de melhorar os serviços:
A Prefeitura Municipal promoveu ontem às 14 horas desfile de veículos adquiridos com recursos
próprios do município, a fim de melhorar e dinamizar os serviços prestados pelo poder público à
sociedade uberlandense. Desfilaram seis caminhões coletores de lixo domiciliar, um caminhão coletor
de lixo hospitalar...
39
Num discurso contraditório, alardeava-se, inclusive, que a capacidade de
atendimento já era suficiente para atender à demanda existente:
Atualmente, a Prefeitura Municipal dispõe de 27 caminhões para a coleta domiciliar e dois especiais
destinados ao lixo hospitalar. De acordo com o secretário, Uberlândia está equipada para atender aos
habitantes, inclusive no que se refere ao lixo hospitalar, sendo que um dos caminhões é totalmente
moderno...
40
Apesar dessa estrutura dotada de equipamentos modernos e em condições de
atender à cidade, anunciada pelo poder público e reforçada pela imprensa, o problema do
destino do lixo hospitalar continuava por ser resolvido. As denúncias de moradores na
imprensa sobre a prática irregular de despejo podem ter sido uma das razões pela qual a
prefeitura criou a Comissão.
39
Lixo: novos caminhões foram entregues. O Triângulo, 08 de novembro de 1991, n. 8.034, p. 07.
40
Leitores reclamam da coleta do lixo em bairros da cidade. O Triângulo, 27 de dezembro de 1991, n. 8.073, p. 04.
185
Aterro sanitário, incinerador, autoclaves, enfim, qual a melhor solução para as duzentas toneladas de
lixo coletadas diariamente em Uberlândia? A polêmica continua, principalmente, em relação ao lixo
hospitalar. Amanhã, às 14 horas, mais uma vez a Comissão de Estudo do Lixo Hospitalar vai se
reunir na Secretaria de Serviços Urbanos. Na oportunidade, serão rediscutidas as soluções,
orçamento, e a comissão apresentará o parecer sobre o destino final do lixo hospitalar.
41
Em atividades como palestras, debates, estudos e viagens, a Comissão evidenciava
a necessidade de estrutura, de recursos, de envolvimento e de responsabilidade dos
diversos setores sociais para enfrentar o problema. Exemplo disso foi quando propôs “a
seleção do lixo dentro dos hospitais”, alternativa que iria exigir maior participação dos
hospitais quanto ao destino dos resíduos. Vale ressaltar que grande parte dos
argumentos sobre o risco de contaminação centram-se na maneira como eles são
manuseados dentro das instituições de saúde. Defende-se a idéia de que o lixo hospitalar
deveria ser selecionado na fonte que o produz, pois, isso contribuiria para reduzir seu
potencial de contaminação. Portanto, se houve essa controvérsia na Comissão, isso serve
para avaliarmos como podem ser lentos e conflitantes os processos de mudança social
que envolvam interesses distintos. Nos dias de hoje, a iniciativa de implantar a coleta
seletiva nos hospitais, depois de muitas resistências, vem se dando gradativamente.
Ainda assim, não nos escapa como a importância disso parece soar como se fosse uma
novidade.
Ao emitir um parecer, a Comissão posicionou-se contrária à implantação de um
incinerador, por avaliá-lo muito poluente. Sugeriu duas possibilidades: uma seria o aterro
sanitário, onde o lixo poderia ser enterrado “em valas sépticas com cal e
impermeabilizantes”. A outra consistia na aquisição de um autoclave. De acordo com a
coordenadora, a segunda opção tornaria desnecessária as valas sépticas, já que o lixo
não estaria mais contaminado. Porém, tanto uma quanto outra alternativa implicava o fato
de que permanecia cabendo à prefeitura a responsabilidade pelo destino do lixo
hospitalar.
Conclusão essa que nos leva a refletir sobre o sentido e a trajetória da Comissão.
Interessa relembrar que ela fora criada pelo Secretário de Serviços Urbanos. Tratou-se de
uma iniciativa da própria Prefeitura, talvez em razão das pressões de setores da
população por meio das denúncias feitas na imprensa. Outro aspecto importante é o fato
41
Duzentas toneladas de lixo por dia. Correio do Triângulo, 31 de setembro de 1991, n. 15.753, p. 10.
186
de que o grupo tinha como coordenadora Maria Teresa, que pertencia à Divisão de
Limpeza Urbana. Isso significa dizer era dirigido por alguém diretamente ligado aos
interesses da administração. É preciso levar em consideração que, apesar de ser
engenheira química, o cargo de Maria Teresa era o de assistente administrativa e que sua
representação como figura de liderança na Comissão se devia, em parte, à afinidade que
tinha com algumas autoridades, a saber, o próprio Secretário, Adalberto Duarte,
presidente da comissão.
Claro que a formação de engenheira teve sua importância, pois, naquele momento,
a maioria dos setores da administração pública contava com poucos profissionais
qualificados, e Maria Teresa já atuava no setor de limpeza urbana, tinha certa experiência
e era considerada uma pessoa capaz para representar o poder público no debate sobre o
destino do lixo na cidade. Tanto que, em 1993, criou-se a Seção de Estudos e Projetos na
Divisão de Limpeza Urbana, da qual ela se tornou chefe. Assim, percebemos indícios de
como ia formando-se uma estrutura com características específicas para solucionar o
problema do lixo, delineando sua crescente complexidade. Atentamos, sobremaneira,
para uma gradativa especialização tanto de técnicas como de saberes, visando dar conta
dos resíduos.
Pouco tempo depois, quando assumiu os serviços de limpeza pública na cidade,
mediante uma concessão, a Limpel Atividades Urbanas convidou Maria Teresa para ser a
gerente e estar à frente do setor de planejamento. Uma estratégia de muita esperteza,
afinal, devido a sua experiência na administração pública, ela conhecia bem como
funcionava toda a estrutura, organização e funcionamento desse serviço.
Desse modo, voltando ao desempenho da Comissão, sua existência tornou-se
indicativa de como o lixo hospitalar era visto e discutido na cidade, e dos rumos que se
apontaram para o problema. Por isso, seria importante procurar apreender alguns
aspectos relativos a sua trajetória. No entanto, as colunas dos jornais não nos ajudaram a
encontrar respostas para algumas interrogações: como teria sido o debate entre seus
membros? Ou ainda, que interesses o nortearam? Para recuperar fragmentos da memória
da Comissão, foi preciso buscar isso junto às pessoas que, de uma forma ou de outra,
dela participaram.
Porém, é preciso dizer que, ao localizar alguns participantes, quase todos
demonstraram pouco ou nenhum entusiasmo diante da idéia de falar sobre o assunto.
187
Muitos, ainda que interessados ou envolvidos com a problemática do lixo na cidade,
garantiram que tudo ocorrera há muito tempo e que não se lembravam dos detalhes.
Curioso é que foram quase unânimes em afirmar: “Nós não chegamos à conclusão
alguma”. Foi quase consenso entre os membros que a Comissão nada tivesse sido
decidido de importante. Parecia haver uma certa indisposição em refletir sobre os
sentidos da atuação do grupo ou se teria ele influenciado nos rumos que assumiu a
questão do lixo hospitalar. Duas integrantes abordaram o assunto:
Mas aí, no final, acabou num dano em nada porque tinha um segmento que era a favor do
incinerador, outros já eram a favor de ir pra autoclavagem. Tinha outros a favor de aterro. Nós não
chegamos à conclusão nenhuma. Foi até uma infelicidade.
42
Eu fui (...) porque eu trabalhava na Seção de Educação Ambiental e isso envolvia, caso fosse
realmente mudar tudo. O setor de Educação Ambiental tinha que ter um envolvimento direto nisso,
porque nós teríamos que fazer um trabalho muito forte na cidade. ... Me lembro vagamente disso.
Isso é uma névoa na minha cabeça, esse negócio. Justamente porque eu num era, o meu trabalho,
na eventualidade de se executar as propostas saídas daquela comissão, o meu trabalho seria ...,
como num aconteceu então eu acho que a minha participação, inclusive perdeu um pouco o sentido,
né? É, acabou num se consolidando. Aquela coisa não virou. É, aquela coisa lá não virou. Então, a
minha participação dever ter perdido o sentido, em função disso eu devo ter saído. Mas eu acredito
que essa comissão deve ter durado mais um tempinho e, mas também num deu em nada. Quer dizer,
essa coisa do aterro sanitário vem depois, né?
43
Depoimentos como esses revelam muito sobre uma primeira atitude dessas pessoas
quando solicitamos que se lembrassem do acontecido. Na visão que elas trazem hoje da
Comissão, não há muito a ser dito, ou ao menos, foi essa a impressão que buscaram
transmitir. A primeira fala pertence à Maria Teresa, coordenadora, que, inclusive,
acompanhou o processo do início ao fim. Mesmo tendo declarado que tudo acontecera
“muito tempo”, para que pudesse lembrar, ela se recorda de como o grupo dividiu-se ao
defender as diferentes propostas que surgiram naquele momento. Concluiu lamentando
que não se chegou a lugar algum. Teria sido mesmo assim? Esse ponto de vista parece
ser compartilhado por Carmen, que, mesmo não tendo permanecido até a conclusão das
atividades, acredita que a Comissão “não deu em nada”. Interessante observar que tanto
42
Maria Teresa Franco de Freitas, assistente administrativa na Divisão de Limpeza Urbana e coordenadora da Comissão
de Estudos do Lixo Hospitalar. Atualmente, é gerente da Limpel. Entrevista concedida à autora em 17 de maio de 2004.
43
Carmen Sílvia Lopes de Paiva, geógrafa. Entrevista concedida à autora em 18 de maio de 2004.
188
Maria Teresa quanto Carmen eram integrantes do grupo e faziam parte do quadro de
servidores da prefeitura, ainda que representassem setores distintos e tivessem visões e
envolvimento diferenciados no que se refere à problemática do lixo na cidade.
Carmen, por exemplo, foi participar porque trabalhava na Secretaria de Habitação e
Meio Ambiente, entretanto ela também atuava em uma entidade chamada SOS Meio
Ambiente, que reunia intelectuais e profissionais de diversas áreas, envolvidos com a
questão ambiental. Aliás, o surgimento dessa entidade é representativo de um momento
em que essa questão passava a envolver maiores contingentes sociais na cidade.
44
Trata-se, antes de tudo, do fato de que o SOS Meio Ambiente teve sua formação
motivada por um acontecimento político de março de 1989. À época, uma outra comissão,
composta de diversos profissionais, vereadores e professores universitários mobilizou-se
num protesto contra a decisão do prefeito, logo que assumiu a Prefeitura, de desmembrar
a Secretaria de Meio Ambiente, criada em 1985, pelo governo anterior, cujo perfil havia
sido mais progressista, pois se constituiu, em parte, de grupos que tinham suas origens
nos movimentos sociais, num contato direto com as classes populares.
45
O que é mais intrigante é que a criação da Secretaria de Meio Ambiente sinalizou
justamente para um período em que começou a surgir, na sociedade civil, principalmente
por meio de movimentos sociais como as Associações de Moradores, uma preocupação
com a questão ambiental no município. Isso vai se destacar nos últimos anos da década
de 1980, em que o SOS Meio Ambiente teve uma importante participação. Um informe do
jornal O Triângulo traz à luz fragmentos desse contexto histórico.
44
No Brasil, o momento histórico-cultural em que a questão ecológica começa despertar a atenção de alguns setores da
sociedade é, sem dúvida, entremeado de contradições sociais. Em plena década de 1970, vivia-se sob uma ditadura
militar, com a esquerda acreditando que o caminho para a revolução seria o combate ao imperialismo, cujo objetivo,
pensava-se, era conter o avanço industrial no chamado terceiro mundo. Entretanto, por meio das alianças que faz a
burguesia, respaldadas principalmente pelos militares, o país atinge um significativo patamar de industrialização. Na
verdade, anterior a uma preocupação com a questão ambiental no país, já existente no exterior, houve uma ingerência
do Estado nesse sentido na intenção de garantir que investimentos econômicos aqui pudessem ser feitos. Em meio a
outros fatores, o movimento ecológico também tem suas origens e contribuições na chegada de exilados políticos,
vindos da Europa e imbuídos das influências dos movimentos ambientalistas europeus. Para uma rica abordagem dos
movimentos ecológicos no Brasil e das ambigüidades que os cercam, ver GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)
caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 1989.
45
“De janeiro de 1981 a agosto de 1982, em 46 bairros da cidade, realizamos 512 reuniões em casas de famílias,
alcançando um comparecimento de 6.709 pessoas. Nessas reuniões foram debatidos os problemas do país, do estado e
do município. Esta PROPOSTA, ora apresentada, é fruto desse trabalho em que muito aprendemos a respeito de
Uberlândia. É resultado das sugestões de milhares de pessoas das mais diferentes camadas sociais. Não quer isto dizer,
no entanto, que ela seja definitiva. Valiosas contribuições, que certamente serão dadas por pessoas, entidades e
instituições, serão por nós acolhidas”. In: Texto da Proposta de governo para as eleições municipais de 1982, PMDB, p.
01. (grifos do texto original).
189
Lídia Maria Meirelles, vice-presidente da entidade SOS Meio Ambiente, que tem sede, na Av. Afonso
Pena, 119, sala 07, nos endereçou um ofício. A mensagem tem por finalidade nos informar que no
próximo dia 05 de junho, de 09 às 11 e das 14 às 19 horas, o Movimento SOS Meio
Ambiente, estará
realizando uma série de atividades na Praça Clarimundo Carneiro (Pça da Prefeitura como é
chamada), visando, assim, comemorar com projeção, o Dia Internacional do Meio Ambiente. No
período da manhã, será desenvolvido um trabalho com as crianças das escolas próximas, que serão
mais uma vez conscientizadas sobre a importância da conservação do verde e o combate à poluição.
No período da tarde, a programão prevê apresentações artísticas, como dança, música, poesia,
teatro e outras atrações, em que será destacada a importante participação das Associações de
Moradores que assim poderão manifestar os problemas ambientais de seus bairros, podendo ainda
participar dessas atividades pessoas que queiram manifestar sobre o tema meio ambiente.
46
Atentamos, então, para alguns aspectos do incipiente processo de mobilização da
sociedade civil em torno da questão ambiental em Uberlândia. Sinais de determinadas
mudanças na cidade, nas quais podemos observar a participação das Associações de
Moradores e certas articulações de setores da imprensa local, ao divulgar à população
informações sobre as atividades realizadas em praça pública. Durante aqueles anos, era
comum vermos as pessoas reunidas nos diversos espaços públicos, mobilizadas em
torno de abrangentes questões políticas e sociais. É nesse cenário que a questão
ambiental vai tomando corpo no horizonte dos movimentos sociais, pastorais da igreja e
outras entidades.
Antes de ser uma organização, o SOS Meio Ambiente adveio do grupo que se
organizou para protestar contra a ameaça de fragmentação da Secretaria de Meio
Ambiente. Embora alguns de seus membros tenham vindo de um movimento anterior de
caráter semelhante.
Foi oficialmente lançado em Uberlândia nesta semana o “Movimento Verde”, encabeçado por uma
comissão integrada, entre outros, por profissionais ligados às áreas social, ecológica, de saúde e de
comunicação. Uma das principais propostas deste “Movimento” é a de criar e fomentar na população
uma consciência ecológica.
47
A entidade compunha-se de intelectuais e profissionais das áreas de saúde ou
relacionadas com a questão ambiental que, num determinado momento, mobilizaram-se
para enfrentar o novo governo e sua política de desarticulação da Secretaria de Meio
46
Atividades na praça. O Triângulo, 02 de junho de 1989, n. 7.304, p. 05.
47
Movimento Verde foi lançado em Uberlândia. O Triângulo, 16 de abril de 1988, p 05, n. 7.032, p. 01.
190
Ambiente. Carmen, ao reconstituir a história do SOS Meio Ambiente, não faz distinção
entre um e outro movimento. Ela, ao falar sobre o perfil de seus membros, relembrou-se
da presidente, Marilena Schneider, professora de Geografia da Universidade, e comentou
também sobre a opção que fizeram por ser um movimento e não um partido político, pois
quando, à época, discutiu-se a possibilidade de que a entidade se convertesse no PV
(Partido Verde) local, o grupo decidiu permanecer como estava, a fim de garantir sua
pluralidade, acreditando que isso não iria comprometer sua postura ideológica de ser um
movimento de esquerda atento aos problemas ambientais existentes na cidade, o que
parece ter contribuído para incomodar as autoridades públicas.
48
Nesse sentido, em meio
ao processo de constituição do SOS Meio Ambiente, um grupo de pessoas elaborou um
documento que foi entregue ao novo prefeito, no qual afirmava que a atitude dele de
desativar a Secretaria de Meio Ambiente
... representaria um retrocesso e uma vergonha para a comunidade uberlandense, numa época em
que o Meio Ambiente é alvo de atenção especial em todos os níveis políticos do País, e o Brasil
passa pelo constrangimento de sofrer críticas internacionais pelo descuido face aos problemas
ambientais.
49
Ao acompanhar o desenrolar dos acontecimentos pelo jornal O Triângulo, vimos
que, ao ser desmembrada, a Secretaria de Meio Ambiente teria suas atribuições
transferidas para a pasta da Agricultura, secretaria que ainda estava por ser criada, e
também para a Secretaria de Saúde e a FUTEL – Fundação de Turismo, Esporte e Lazer.
Indiferente aos protestos, numa entrevista coletiva, o prefeito alega que “desta forma, o
Meio Ambiente de Uberlândia receberá um tratamento bastante especial, tanto na zona
rural quanto urbana”.
50
Representando mais uma contradição na história do lixo na cidade, tal situação
reforça a premissa de que, em muitas ocasiões, a problemática do lixo esteve
subordinada aos interesses políticos dos administradores. Por vezes, isso decorreu em
ações que, além de prejudicar a população, parecem, no mínimo, obscuras. Vemos que, a
cada mudança de prefeito, davam-se novos rumos para a questão do lixo.
51
48
Carmen, geógrafa, depoimento citado.
49
Meio Ambiente protesta contra a desativação. O Triângulo, 03 de fevereiro de 1989, n. 7.228, p. 05.
50
Idem.
51
Uberlândia fica sem Secretaria de Meio Ambiente. O Triângulo, 24 de janeiro de 1989, n 7.220, p 01.
191
Não há registros na imprensa que esclareçam por que a Secretaria de Meio
Ambiente foi integrada à Secretaria de Habitação. Entretanto, em 08 de março de 1989, o
Chefe do Poder Executivo enviou à Câmara Municipal um projeto de lei cujo objetivo era
reestruturar a Secretaria de Meio Ambiente. Diante de algumas dificuldades que
enfrentava para aprovar de imediato o projeto, o prefeito encaminhou uma mensagem ao
Presidente da Câmara, argumentando o seguinte:
É irreal e místico o sonho de especialização de um órgão, que seja depositário, fonte geradora e
guardião exclusivo de soluções milagrosas, separadas do conjunto do problema. Por isso é que uma
parte de execução da política ambiental, relativa a recursos naturais, será confiada também à
Secretaria Municipal de Agricultura, em razão do íntimo e permanente contato que esta manterá com
o meio rural do Município. Essa formulação pretende envolver a Secretaria Municipal de Agricultura
no aperfeiçoamento das técnicas agrícolas, diminuindo a poluição dela resultantes. Nenhum órgão da
administração terá mais condições para um trabalho permanente junto ao meio rural, que a Secretaria
de Agricultura, através da Seção de Preservação dos Recursos Naturais. Observe-se, no entanto,
que as atividades de Normatização Ambiental, que fixarão a política ambiental, serão conservadas na
Secretaria Municipal de Habitação e Meio Ambiente, através de Seção para isso especializada.
52
Com essas justificativas, buscava explicar por que propunha diluir as atribuições da
Secretaria de Meio Ambiente em outros setores. Assegurava, também, que “a construção
de novas habitações, de que Uberlândia carecia, havia de ser feita com respeito às
modernas normas de preservação ambiental”, daí o fato de agregar Habitação e Meio
Ambiente. Mas, outro intrigante fragmento dessa mensagem deve ser ainda destacado:
É por isso que perde em crédito, seriedade e moral, toda atividade conservacionista que perca o ser
humano de vista, e que pretenda reduzi-lo a mero espectador de belezas naturais. E é também assim
que ficam caracterizadas atitudes de mera promão demagógica de políticos, ou defesa de
interesses econômicos de bastidores.
Parecia haver elementos de uma disputa política que não se expressa com clareza
no documento. Entretanto, exatamente esse trecho, que nos parece ligeiramente confuso,
é que se torna revelador de como a decisão do prefeito em reestruturar a Secretaria de
Meio Ambiente envolvia certos interesses políticos e, para usar um termo presente no
52
Lei 4.895, de 18 de abril de 1989, reestrutura a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, amplia suas atribuições,
altera sua denominação e tomas outras providências. Arquivo Público Municipal.
192
documento, “de bastidores”. Afirmativa que tenha, talvez, relação com o fato de os
servidores dessa Secretaria estarem participando do movimento de protesto, inclusive,
fazerem parte do SOS - Meio Ambiente. A exemplo de Carmen, que trabalhava na Seção
de Educação Ambiental, e de um colega seu, Clayton Nunes, engenheiro sanitarista e
chefe da Seção de Recursos Naturais, ambos servidores públicos e militantes que até
ajudaram a fundar o movimento que acabou por se constituir na entidade.
Outro fato que reforça essa idéia é que Carmen, ao recordar sua trajetória na
administração pública, aponta que a atitude do prefeito de reestruturar a Secretaria de
Meio Ambiente tinha ligação com o empenho de um grupo de servidores, do qual ela fazia
parte, concernente às questões ambientais na cidade. Ela mencionou a interferência nos
conflitos entre moradores e algumas indústrias cujas atividades eram poluentes, como as
várias cerealistas, no Bairro Tibery, além de uma preocupação com outras formas de
degradação ambiental existentes. Em sua opinião, para o governo conservador que
assumira naquele momento, era preciso combater ações dessa natureza, ainda mais
estando no interior da própria administração.
Essas questões são narradas por Carmen com entusiasmo. Devemos admitir que,
dentre todas as pessoas entrevistadas, para buscar apreender a situação do lixo
hospitalar na cidade, ela foi quem revelou mais disposição em falar sobre os
acontecimentos daquele período. Atribuímos isso, em parte, à sua militância política, a
uma consciência e vontade de que a atuação dos movimentos sociais nos quais ela
esteve inserida fosse, de alguma forma, relembrada e registrada.
De todo modo, o que Carmen aponta sobre a participação de técnicos da Secretaria
de Meio Ambiente nas questões ambientais, e em movimentos sociais preocupados com
a temática, pode ser visto em alguns jornais, como O triângulo. No contexto das
articulações desse periódico, vemos sua participação ao divulgar certas atividades
realizadas pelos movimentos. Daí podermos ver inscritas nas páginas desse jornal certas
transformações urbanas em processo.
Assim, notamos como tensões e disputas políticas tornam-se reveladoras de
algumas mudanças sociais em curso no que se refere à problemática do lixo. Podemos
pensar que a questão ambiental assumia maior importância na cidade. A atuação de
entidades, como o SOS Meio Ambiente e algumas Associações de Moradores, contribuía
para dar visibilidade aos problemas dessa natureza. Geralmente, foram tais entidades que
193
estiveram à frente de denúncias publicadas pela imprensa local, envolvendo problemas
com o despejo de lixo hospitalar em bairros da periferia. De qualquer maneira, a atuação
desses movimentos delineiam a constituição de novos sujeitos na cidade e a contribuição
deles na cobrança de uma maior coerência do poder público quanto às políticas
ambientais.
Nessa perspectiva, no final da década de 1980, lemos, no jornal O Triângulo, várias
notícias acerca de protestos de moradores, por meio de suas Associações, contra a
poluição provocada por algumas empresas como a Braspelco, que lida com a curtição de
couro. Localizada no Setor Industrial, as atividades dessa empresa provoca, ainda hoje,
enorme mau cheiro nos arredores, como o Residencial Gramado, um bairro de classe
média, e alguns mais populares, como o Jardim Brasília e São José, dentre outros.
53
Desse modo, notamos, também, como O Triângulo se articulava nesse debate. Suas
páginas trazem vários aspectos do cotidiano da cidade no que se refere à questão
ambiental, envolvendo ora a perspectiva de moradores, com denúncias e reclamações,
ora do poder público, com argumentos e projetos.
Considerando a atitude do prefeito de subordinar a Secretaria de Meio Ambiente a
uma outra pasta, ele é, no mínimo, contraditório quando, em agosto de 1989, sanciona a
lei que define como de utilidade pública a entidade SOS Meio Ambiente. À época, a
Comissão de Direitos Humanos, Trabalho e Apoio Comunitário emitiu seu parecer.
I – O SOS – Meio Ambiente é uma entidade organizada que tem como campo de atuação o Município
de Uberlândia, tendo, até então, desenvolvido campanhas para sensibilizar as autoridades
constituídas e todo o conjunto da sociedade uberlandense na luta para a preservação do meio
ambiente e por melhor qualidade de vida à toda comunidade.
II – A questão ecológica, em nível mundial, está no centro das decisões políticas e, neste sentido, é
necessário que o Poder Público favoreça: condições à entidade, que já desenvolve há mais de um
ano o trabalho de defesa ecológica, para auxiliá-la nas ações na área ambiental.
54
Apesar de não atender a todos os requisitos para adquirir o status de uma entidade
considerada de utilidade pública, como ter um ano de funcionamento, a entidade
53
Associação de Moradores quer providências contra curtume. O Triângulo, 07 de outubro de 1989, n. 7.387, p. 05.
Poluindo o Gramado. O Triângulo, idem.
54
Lei 4.956 de 28 de agosto de 1989, declara de utilidade pública a entidade SOS – Meio Ambiente. Arquivo Público.
194
conseguiu a aprovação do projeto, tendo por argumento justamente seu desempenho
quanto à questão ambiental.
A atuação do SOS Meio Ambiente ocorreu, também, quando a prefeitura criou a
Comissão de Estudo do Lixo Hospitalar. A entidade conseguiu garantir sua participação
no debate como representante da sociedade civil. Explicando a trajetória do movimento,
Carmen relatou o envolvimento da entidade em diversos assuntos, e assegura que, como
“não existia uma política ambiental legal no Município”, esta tinha que lidar com muitas
“demandas”. Dessa maneira, a geógrafa ajuda-nos a entrever as ações do movimento no
sentido de chamar a atenção para os problemas ambientais na cidade. Desse modo,
avaliamos que a existência de movimentos como esse repercutira nas discussões sobre a
problemática do lixo. Talvez seja possível afirmar que, naquele contexto, a questão ia
tomando o aspecto de um problema social que é hoje o lixo na cidade. No texto abaixo,
Carmen aponta a relação entre uma mudança na visão de setores da sociedade sobre a
questão ambiental, a problemática do lixo e, neste mesmo processo, o problema do lixo
hospitalar:
Eu acho que é a própria mudança de postura da sociedade em relação a questão ambiental. Porque
a questão ambiental, até a década de 60, começo da década de 70, ela era feita é, muito em grupos
de iniciados, digamos assim, não é? Por grupos de pessoas que já tinham uma certa formação
voltada pra questão ambiental. Mas por aqueles movimentos todos de 60, 70, aquela coisa, então
começa... A questão ambiental coma a virar um paradigma. Ela começa a aparecer como um
paradigma, um novo paradigma na sociedade. E aí a sociedade coma a se mobilizar, criando
movimentos e tal. O que num era muito o que acontecia em Uberlândia, mas Uberlândia sofria os
reflexos do que tava... pelo menos os órgãos públicos é, fundamentalmente os órgãos públicos, o fato
de já existir uma Secretaria de Meio Ambiente. Que foi criada pra desenvolver a política pública de
meio ambiente no Município e que foi a primeira do Estado. No interior, tirando Belo Horizonte, Então,
eu acho que juntando essa questão dessa popularização, de uma maior popularização da questão
ambiental já naquele período e a própria existência de uma Secretaria de Meio Ambiente na cidade,
fez com que esse assunto virasse pauta, entrasse numa pauta, né? A questão do lixo hospitalar.
Porque você discutia a questão dos resíduos sólidos, então era só mais uma variável dos resíduos
sólidos. Porque, de repente, você tinha que discutir os resíduos sólidos de uma forma mais ampla,
né? Então aí tem, e aí já naquela época começa a questão da discussão da coleta seletiva, já vinha
tudo isso junto com essas coisas, né? E o lixo hospitalar era uma variável dessa discussão de coleta
e disposição final e tratamento final de resíduos sólidos.
55
55
Idem.
195
Sua fala auxilia-nos a refletir acerca da historicidade do processo social em que o
lixo hospitalar assumia a dimensão de uma questão ecológica que, articulada à
problemática do lixo na cidade, contribuiu diretamente para uma transformação na forma
de encarar o problema. O que tem uma profunda articulação com o fato de que a cidade
começava a ser pensada, portanto, numa perspectiva ambiental.
Conforme Carmen recupera em seu depoimento, essa é uma questão mais ampla
que acaba por repercutir, em Uberlândia, a existência de uma Secretaria de Meio
Ambiente, em meados da década de 1980, pois representa a gênese de uma
preocupação com a questão ambiental na realidade urbana local e, sobretudo, uma
percepção inicial dos problemas a que isso dizia e ainda diz respeito. Quando se propôs a
criação desse órgão, objetivava-se não somente arborizar a cidade e preservar áreas
verdes, mas também melhorar a limpeza urbana e criar um sistema de “tratamento dos
lixos industrial, doméstico e hospitalar”.
56
Contudo, o que nos interessa acentuar aqui é de que maneira o problema do lixo
hospitalar começava a ganhar destaque, e como isso ocorria em meio a uma discussão
sobre a problemática do lixo. Havia outros fatores, mas esse problema incorpora-se a
uma questão mais ampla, que é o destino do lixo na cidade. Segundo o Professor Luiz
Nishiyama, houve um contexto específico em que começou a surgir uma consciência de
que a questão do lixo precisaria ser levada mais a sério:
Olha, bom, o lixo eu diria que sempre foi uma questão ambiental, sempre foi, mas as cobranças mais
intensas com relação ao lixo, elas começam aí na década de 90, início da década de 90, né? Aí que
se começa a perceber mais o lixo como uma questão ambiental, embora o lixo sempre tenha sido um
problema ambiental, né? Mas até então não havia uma importância tão grande, não se via uma
importância tão grande de se dispor o lixo adequadamente. Então, no final da década de 80, início da
década de 90, é um momento que se começa em Uberlândia essa visão, principalmente no meio
acadêmico, né? Essa visão da necessidade de dispor o lixo de uma forma mais adequada, o lixo
como um problema ambiental sério.
57
56
In: Texto da Proposta de governo do PMDB para as eleições municipais de 1982, p. 06.
57
Luiz Nishiyama, professor do Instituto de Geografia da Universidade Federal. Na ocasião em que o Ministério
Público impetrou uma Ação Civil Pública contra o Município de Uberlândia, em razão das condições de disposição do
lixo no aterro sanitário, o promotor responsável, Fábio Guedes, solicitou ao professor Luiz Nishiyama e a seu colega, o
químico Giovani Salviani de Melo, um parecer sobre a situação do aterro. Entrevista concedida à autora em 17 de maio
de 2004.
196
Sobre o modo como uma discussão a respeito da questão ambiental ganhava corpo
na cidade, Carmen relembrou, ainda, um outro aspecto interessante. Quando o SOS Meio
Ambiente deixou de atuar, em 1993, ela começou a militar na APR (entidade ligada à
Igreja Católica, que há vários anos auxilia movimentos sociais rurais e urbanos na região).
Segundo a geógrafa, Frei Rodrigo, coordenador da entidade, participou da Eco 92 no Rio
de Janeiro.
58
Ela avaliou que as discussões que já se faziam em torno da questão
ambiental assumiram mais consistência depois disso, pois o grupo tomou maior
consciência da importância e da complexidade que envolvem a temática. Esse é um fato
que nos permite dimensionar como certas idéias e influências chegam e circulam pela
cidade, ou seja, como políticas ambientais internacionais expandem-se e refletem-se em
âmbito local. Naquele momento, a abrangência da APR era qualitativa em Uberlândia;
seus membros, mesmo não sendo muitos, eram pessoas com inserção em vários setores
sociais, a Igreja, a Universidade, o Partido dos Trabalhadores, Associações de Moradores
e escolas públicas secundaristas. Em se tratando desse processo de reconfiguração de
determinadas lutas sociais, Arantes analisa como
... os movimentos sociais têm produzido uma visível ampliação das esferas da vida social em relação
às quais reivindicam-se direitos e explicitam-se deveres e responsabilidades de cidadania. Essa
ampliação participa da consagração dos novos sujeitos de direitos formadores da heterogeneidade
social e política a que me refiro. Exemplos disso, no Brasil, são os movimentos contra a exclusão de
base racial (ou, em versão soft, contra a discriminação racial), pela legalização do aborto, o uso de
drogas, a união civil entre homossexuais, a demarcação de territórios indígenas, a defesa do meio
ambiente etc. A polêmica em torno de reivindicações como estas vem projetando a luta pelos direitos
de cidadania além das usuais questões de classe.
59
Diante de vastas diferenças que ajudam a compor a sociedade brasileira, a questão
ambiental começa também a constituir um importante recorte social, um viés para a
participação e a exigência do direito de cidadania por parte de alguns grupos. Embora
58
A Eco 92 foi um dos maiores eventos já realizados para discutir soluções para os problemas ambientais, ocorrido em
junho de 1992, no Rio de Janeiro. A II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento –
CNUMAD – reuniu governantes de 114 países e representantes de mais de 3 mil Organizações Não-Governamentais
(ONGs). Ver: TAKAYANAGUI, Angela M. Magosso. Trabalhadores de Saúde e Meio Ambiente: ação educativa do
enfermeiro na conscientização para gerenciamento de resíduos sólidos. Tese de doutorado em Enfermagem, Escola de
Enfermagem, Ribeirão Preto: USP, 1993, p. 12.
58
Samuel do Carmo Lima, professor do Instituto de Geografia da Universidade.
59
ARANTES, Antonio A. “A guerra dos lugares: mapeando zonas de turbulência”. In: Paisagens Paulistanas:
transformações do espaço público. Campinas: Imprensa Oficial, 2000, p. 106-160.
197
tenha prevalecido, nesse cenário de mudanças e de reformulações de antigas e novas
bandeiras de luta dos movimentos sociais, durante algum tempo, no que tange à questão
ambiental, uma certa ingenuidade quanto à sua complexidade e sua dimensão política.
Quanto a isso, Carmen pondera que:
... talvez porque as pessoas tivessem uma visão um pouco romantizada, um pouco romântica da
questão ambiental, Ne? Passarinhos, borboletas e tudo mais, eles perderam um pouco o medo, e
depois acabaram chegando e viram que a questão ambiental é séria, é uma questão política muito
séria, tanto quanto a questão de saúde, a questão de educação, a questão de moradia, a questão de
segurança alimentar, a questão econômica; porque a questão ambiental, ela permeia tudo isso,
sabe? ... Porque ela, não é só através, mas também através da questão ambiental, você começa a
fazer embates muito sérios. Você começa a provocar embates muito sérios. Através da questão
ambiental.
60
Dessa forma, sustentamos que, em Uberlândia, a questão ambiental se tornou um
fator de muitos conflitos, razão de diversos enfrentamentos entre o poder público e os
movimentos sociais envolvidos com a problemática. De um lado, talvez seja possível
vislumbrar aí uma certa politização da questão ambiental: se olharmos a cidade como
locus privilegiado do “confronto e reordenação das diferenças”, vamos deparar com um
processo social em que as demandas desses movimentos influenciaram,
circunstancialmente, para desequilibrar determinadas relações poder e de hegemonia em
âmbito local. De outro lado, embora os processos de mudança social revelem uma
tomada de consciência e enunciem novas posturas e concepções de organização da vida
urbana, neles, subjaz, ao mesmo tempo, certa fragilidade mediante o embate de
interesses entre distintos setores sociais.
61
Ainda assim, para pensar como todos esses elementos que sinalizavam mudanças
de visão e de atitude, no que se refere à questão ambiental, na cidade, articulavam-se ao
problema do lixo hospitalar, vale destacar, ainda, o fato de que, no início da década de
1990, a vereadora Nilza Alves tenha elaborado um projeto de lei cujo objetivo era definir
que o lixo hospitalar passasse a ser uma responsabilidade da Secretaria de Saúde. Uma
proposta que também foi discutida pela Comissão de Estudos do Lixo Hospitalar.
62
60
Carmen, geógrafa, depoimento citado.
61
ARANTES, Antonio A. op. cit., p. 106-160.
62
“A coordenadora afirma que a partir da análise do projeto da vereadora e também das experiências mantidas em todo
o país, será levada uma proposta aos hospitais e ao poder público”. In: Comissão debateu lixo hospitalar. O
Triângulo, 04 de setembro de 1991, n. 7.978.
198
Nilza Alves elegeu-se pela primeira vez pelo PMDB, em 1982. Algum tempo depois,
filiou-se ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) pelo qual conquistou seu segundo
mandato, em 1988. O projeto dela passou por diversas comissões na Câmara e não
chegou a ser votado em plenário, mas se pode notar sua própria elaboração como
sintoma da preocupação que o lixo hospitalar já despertava. Não foi possível o acesso a
esse projeto, entretanto, teria sido proveitoso tomar contato com as observações,
contrárias ou favoráveis, e, assim, poder apreender alguns aspectos da visão que se tinha
sobre o lixo hospitalar. Afinal, trata-se de um contexto em que principiava o debate entre
vários setores envolvidos com o que fazer a respeito do problema.
63
De todo modo, a atuação da Secretaria de Saúde na trajetória do lixo é também
reveladora de certas mudanças em curso. Se pensarmos em termos de suas intervenções
no espaço urbano, no início da década de 1980, quando essa Secretaria tentava
combater a criação de porcos, argumentando preocupações com a saúde da população e
a higiene da cidade. Já, nos anos de 1990, a Secretaria de Saúde se viu às voltas com o
problema do lixo hospitalar, que veio tornando-se questão ambiental e de saúde pública.
O envolvimento tanto da Secretaria de Saúde como da de Meio Ambiente com a
problemática do lixo é sugestivo da complexidade que a circunda.
No entanto as fontes indicam que o envolvimento da Secretaria de Saúde com a
problemática do lixo hospitalar tem sido menos abrangente, se comparado ao da
Secretaria de Serviços Urbanos ou de Meio Ambiente. Um exemplo emblemático disso é
o fato de que o representante da Secretaria de Saúde na Comissão de Estudos do Lixo
Hospitalar, o Sr. Marco Aurélio de Sá, pertencia ao quadro do Setor de Vigilância
Sanitária e não da própria Secretaria, o que indica o grau de envolvimento e o olhar que
se tinha em relação ao assunto. Aliás, a questão do lixo acentua bem a expressiva
ausência de diálogo e de um trabalho em conjunto entre as diversas Secretarias
Municipais, sobretudo, aquelas que são legalmente responsáveis. Exceto pelas ocasiões
em que isso era uma determinação maior, é possível notar a visível falta de intercâmbio
63
Essa não foi a única ocasião em que não pude ter acesso a documentos que muito auxiliariam na investigação. Creio
que essa situação mostra como, por vezes, são tratados certos assuntos relacionados com a memória da população, dos
diversos governos e de projetos políticos importantes para os rumos da vida na cidade. Denota, ainda, de um lado, uma
falta de compromisso de alguns setores da sociedade com essas questões. De outro lado, estimula-nos a pensar em como
as relações em torno da memória são por demais políticas e comprometedoras. Por isso, os silêncios, os esquecimentos
e as ausências de documentos e registros de ações do passado que talvez pudessem ajudar a compreender porque
determinadas situações se perpetuam no presente.
199
entre esses setores da administração pública na busca de soluções para os problemas da
vida na cidade.
Mas a complexidade que a questão do lixo ia assumindo, e como isso encetava
exigir a participação de certos setores da administração pública, entremostra-se,
sobremaneira, em alguns debates da Comissão. Durante a investigação, tivemos acesso
a alguns textos que contribuíram nos estudos realizados por ela. Esse material aborda
temas relacionados com lixo hospitalar, saúde pública e outros assuntos ligados ao
problema da AIDS e também ao acidente com o césio 137. Na verdade, trata-se apenas
de um conjunto de textos, a exemplo de um artigo do médico infectologista Uriel Zanon
sobre os riscos do lixo hospitalar, publicado pela Revista da Sociedade Brasileira de
Medicina Tropical, e de correspondências provenientes de entidades como a ABES
(Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental) e a ABLP (Associação
Brasileira de Limpeza Pública).
64
Assim, interessa destacar, em linhas gerais, os temas abordados nesses textos, pois
isso pode ajudar a elucidar algumas questões com as quais o grupo se deparou durante
suas reflexões. De fato, esse material apresenta um debate que já vinha sendo travado
em âmbito nacional desde o final da década de 1980. A saber, a necessidade de definir
formas adequadas de tratamento, transporte e destino final dos resíduos. Nessa
perspectiva, os textos retratam um panorama geral dos riscos à saúde que esse tipo de
lixo representa; a possibilidade de contaminação dentro dos hospitais em razão da falta
de cuidado e de higiene ao se manuseá-lo. Os textos abordam, ainda, a importância do
gerenciamento do lixo hospitalar pelas instituições de saúde, pois compreende-se que
64
O acesso a esses textos ocorreu quase por acaso. Quando tentei localizar o Relatório produzido pela Comissão de
Estudos do Lixo Hospitalar ao concluir suas atividades, não obtive sucesso. O documento não se encontra nos arquivos
públicos, nem nos arquivos das Secretarias de Serviços Urbanos ou de Saúde, nem mesmo Maria Teresa, a
coordenadora, guardou consigo uma cópia do relatório. Em compensação, quando conversarmos com Marco Aurélio de
Sá, do Setor de Vigilância Sanitária, soubemos que ele havia preservado alguns textos numa pasta em seu local de
trabalho. Segundo Marco Aurélio, esse material havia subsidiado as discussões do grupo. Uma parte dele es
relacionada abaixo. Alternativas de Gerenciamento de Lixo Hospitalar. MOREL, Maria Marcia Orsi. “Trabalho
apresentado no Seminário promovido pela CONLURB nos dias 28 e 29 de maio último na cidade do Rio de Janeiro”.
Texto s/data. Incineração de lixo pode ser proibida pelo Governo. In: Vidativa – Boletim da ABES, de 16 a 30 de
junho de 1991. O lixo dos hospitais. J. A. Lutzenberger, 25 de junho de 1990. Riscos infecciosos imputados ao lixo
hospitalar realidade epidemiológica ou ficção sanitária? ZANON, Uriel. In: Revista da Sociedade Brasileira de
Medicina Tropical, 23(3): 163-170, julho/setembro de 1990. Moradores da Glória protestam contra fumaça de
incinerador. In: Jornal do Brasil, 04 de setembro de 1990. Lixo Hospitalar: Higiene ou Matemática? FILHO, Luiz
Antônio Bertussi – ex-engenheiro sanitarista da Secretaria de Saúde do Paraná. In: Informativo Técnico da ABLP, n.
33, p. 27-29. Texto s/data.
200
nem todo lixo hospitalar é considerado infectante e seria preciso, então, separar a parte
contaminada da não contaminada.
Nesse material, discute-se, também, a dificuldade de se definir o que é lixo
hospitalar, dada a diversidade de sua origem e de sua constituição, inclusive, a
denominação de resíduos dos serviços de saúde busca alcançar a amplitude de sua
produção. Naquele momento, já se tinha como referência uma classificação dos resíduos,
elaborada pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), em 1987. Com isso,
pretendia-se alertar para o fato de que o lixo hospitalar não deveria continuar sendo
depositado junto a outros tipos de lixo nos aterros e lixões, uma prática recorrente ainda
hoje em muitas cidades brasileiras. Um outro tema presente é o debate sobre as
tecnologias para lidar com o lixo hospitalar e suas respectivas contra-indicações, a saber,
o incinerador e a poluição causada por ele, razão pela qual, em 1991, o CONAMA
(Conselho Nacional de Meio Ambiente) emitiu uma portaria desobrigando a incineração
em todo o país.
Essa documentação indica como a controvérsia sobre o lixo hospitalar assumia
dimensões nacionais. Intrigante, também, é constatar como a ABES, entidade
representativa de profissionais da área de engenharia, envolve-se profundamente nessa
polêmica, e com forte poder de mobilização. Envolvimento que se mostra, inclusive, no
desempenho desses profissionais diante da busca de soluções para a questão do lixo.
Maria Teresa, por exemplo, é engenheira e, associada à ABES, é por intermédio dela que
esse debate chega à Comissão em Uberlândia. A respeito da atuação dos engenheiros na
gestão do lixo, Miziara salienta que eles “tinham voz ativa também no projeto de
higienização e, assim, na elaboração da “política dos restos” para a cidade. Ainda
segundo a autora, “o recrudescimento do discurso dos engenheiros sobre os dejetos
ocorreria especialmente a partir da década de 1960”.
65
Em relação ao material arquivado por Marco Aurélio, os textos enfatizam, ainda, os
riscos de contaminação do lixo hospitalar dentro dos hospitais, trazendo informações
sobre infecções hospitalares e outras doenças, que, conforme algumas estatísticas,
estão, em maior ou menor proporção, associadas aos resíduos. De fato, esse material
chama a atenção para a responsabilidade das instituições de saúde no manuseio e na
seleção do lixo hospitalar em sua origem. Um tema delicado para a Comissão, porque
201
esbarrava justamente na resistência dos hospitais particulares em assumir esse dever.
Maria Teresa, comentando a postura do representante da Associação dos Hospitais
Particulares, garantiu que existia uma disposição em acatar todas “as decisões da
Comissão”. Conforme as explicações dela, o debate no grupo parecia ter prosseguido em
ritmo harmonioso, e não havia conflito de interesses entre a Associação e outros setores
também representados ali.
66
Entretanto, ao contrapor a visão da coordenadora à de outros sujeitos que
acompanharam esse debate, tem-se uma visão diferente dessas circunstâncias. O
Professor Samuel Lima faz uma releitura do que ocorreu:
Outra polêmica dessa reunião era o que fazer com o lixo hospitalar. E a associação médica que
estava presente na mesa, o presidente da associação médica dizia o seguinte: o lixo hospitalar é tão
comum quanto os outros. Aí ele fez uma relação de quanto tempo o paciente passa nos ambulatórios
e quanto tempo depois o paciente vai pra casa, de modo que ele gera muito mais lixo hospitalar na
casa do que no hospital propriamente dito e tal. O lixo hospitalar e o lixo doméstico são iguais, não
tem problema nenhum, essa era a argumentação que ele fazia, porque havia um movimento pra se
criar uma destinação, uma incineração. Na época, o incinerador era colocado como uma solução,
depois ele foi sendo questionado pela contaminação aérea que produz. Mas como era um processo
muito caro, o pessoal das clínicas estava querendo se ver livre dessa responsabilidade.
67
Apesar de não ter participado diretamente da Comissão, o Professor Samuel
acompanhou as discussões. Sua fala resgata fatos que nos propiciam tomar contato com
determinados argumentos da Associação dos Hospitais Particulares.
Embora saibamos que as instituições de saúde, em sua maioria, resistiram e ainda
resistem a assumir, juntamente com o poder público, o destino do lixo hospitalar, há
certos aspectos, nos argumentos apresentados, que nos induzem a refletir sobre a
responsabilidade que também compete à população nesse processo. É preciso
considerar que somos todos usuários do sistema de saúde, consumidores de
medicamentos e produtos que geram restos a serem descartados. Além disso, grande
parte da sociedade olha com simpatia para o avanço tecnológico, que possibilitou o uso
65
LOPES, Rosana Miziara, op. cit., p. 45.
66
Maria Teresa de Freitas, depoimento citado. Ela se refere ao Sr. Nelson Duarte que, à época, era administrador do
Hospital Santa Genoveva.
202
de produtos como seringas e agulhas descartáveis, em detrimento do antigo processo de
esterilização. O que resultou num maior volume de lixo circulando e sendo despejado em
algum lugar; um fator complicado, já que, na maioria das cidades brasileiras, o destino
mais certo do lixo hospitalar tem sido os lixões. No entanto, cabe pensar que, diante de
novos elementos que surgem nessa problemática e que se articulam, sobretudo, às
inovações tecnológicas, a dificuldade maior certamente não está nos resíduos em si, mas
na destinação que se dá a eles.
68
Em Uberlândia, reações de setores da população quanto ao destino dos restos
ocorreram quando eles principiaram a ser descartados em vias públicas, próximo aos
habitantes da periferia, atemorizando-os, por representar uma ameaça de contaminação.
O lixo hospitalar, sobre cujo destino o poder público não tinha controle, despejado junto
aos moradores, é uma das imagens que passaram a demarcar a paisagem urbana.
Na verdade, para compreender os meandros políticos que envolvem esse debate, é
preciso lembrar que, naquele contexto, prevalecia uma indefinição quanto à
responsabilidade de cuidar do lixo hospitalar. Como se tratava de medidas que exigiam
um grande investimento, tentava-se sempre adiar a efetivação de políticas públicas ou
iniciativas do setor privado para lidar com o problema. Uma questão ainda dos dias atuais:
Porque até hoje a idéia é polêmica, quando se pergunta de quem é a responsabilidade. Aí os
empresários do setor de saúde dizem que, clínicas, clínicas odontológicas, consultórios, hospitais,
outros tipos de clínicas: “não, isso aí, o problema de lixo é da prefeitura”. Eu vou colocar o lixo aqui na
porta, vocês resolvam. Aí a prefeitura diz que quem gera o lixo é que tem arcar com os custos da sua
destinação. E aí essa polêmica fica sem solução, né? Tanto com relação ao lixo hospitalar quanto
com relação ao lixo industrial. Enquanto não se resolver quem realmente vai pagar essa conta,
porque é uma conta alta. E aí ninguém paga, e se ninguém paga a coisa vai do jeito que vai hoje.
69
67
Samuel do Carmo Lima, professor do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, envolvido há
vários anos com a questão do lixo na cidade. Escreveu artigos e tem atuado politicamente frente aos projetos e políticas
públicas implantados pelos administradores. Entrevista concedida à autora em 18 de maio de 2004.
68
Isso nos lembra novamente de como o problema do lixo implica refletir sobre o complexo e antagônico processo
social que diz respeito ao intenso volume de sua produção na sociedade contemporânea. “Há que se destacar que, desde
a década de 60, vem sendo incorporado, cada vez mais, às práticas de saúde e à vida diária das pessoas, o uso de
descartáveis e de embalagens plásticas. Ainda, segundo alguns autores, o maior problema decorrente do aumento de
volume gerado nos serviços de saúde é a questão da dificuldade para se desfazer deles”. In: TAKAYANAGUI, Angela
M. Magosso. Trabalhadores de Saúde e Meio Ambiente: ação educativa do enfermeiro na conscientização para
gerenciamento de resíduos sólidos. pp. cit., p. 62.
69
Samuel do Carmo Lima, professor do Instituto de Geografia da Universidade.
203
É justamente a contemporaneidade dessa controvérsia que nos possibilita
compreender o significado da atuação da Comissão, que, ao contrário do que se
recordam alguns de seus participantes, não foi de importância medíocre. Afinal, ela se
defrontou com questões complicadas, marcadas por interesses muito distintos. Não
obstante, os membros, ao se lembrarem do desempenho da equipe, traduzirem a
impressão de que, a despeito das intensas polêmicas, não houve avanço algum, cabe
perguntar se teria sido mesmo assim. Porque os rumos que tomaram o debate na
Comissão, e o parecer que ela emitiu, refletem os embates políticos e os projetos em
disputa. Para exemplificar isso, destacamos o fragmento de texto abaixo:
Segundo Maria Teresa, existem problemas iguais ou maiores que o lixo hospitalar, no lixo domiciliar
são encontradas pilhas (que contêm radioatividade), mercúrio, inseticidas, agrotóxicos, etc., afirmou.
Pensando nisto, a Comissão vai propor uma campanha educativa e conscientizadora do município
para que as donas-de-casa façam a separação dos lixos orgânicos ou não contaminado do
contaminado, concluiu a engenheira.
70
Essa notícia foi publicada pelo Correio do Triângulo na ocasião em que se divulgou
o parecer da Comissão. Por meio dessa declaração, atribuída à Maria Teresa, o jornal
esclarece que o grupo concluíra suas atividades recomendando o aterro sanitário como
solução. À primeira leitura, essa declaração parece ser incoerente, pois é como se, após
tantas discussões, a coordenadora ponderasse que o lixo hospitalar não era um problema
tão grave assim. Inconsistente, porque esse foi um dos argumentos apresentados pela
Associação dos Hospitais Particulares, conforme lembra o Professor Samuel.
Ora, o lixo hospitalar começava a ser visto como algo sério e complicado, afinal,
formara-se um grupo para discuti-lo. Em que pese o fato de o lixo domiciliar trazer muitas
dificuldades para a administração, ele não envolve diretamente o interesse de
proprietários de hospitais. Muito articulado à tentativa de amenizar a gravidade da
situação do lixo hospitalar, o Correio do Triângulo publica, ainda, o trecho de um texto
específico sobre os riscos do lixo hospitalar, aliás, com um vocabulário bastante técnico
para um leitor leigo.
70
Perigos do lixo hospitalar. Correio do Triângulo, 31 de setembro de 1991, n. 15.753, p. 10.
204
No artigo do cientista Uriel Zanon, intitulado “Riscos Infecciosos Imputados ao Lixo Hospitalar –
Realidade Epidemiológica ou Ficção Sanitária”, publicado na Revista da Sociedade Brasileira de
Medicina Tropical, julho e setembro de 1990, ele conclui que “apenas os resíduos cortantes ou
perfurantes, especialmente aqueles que contenham sangue, podem oferecer perigo para os que o
manipulam, o risco imputado aos resíduos não cortantes, mesmo quando sujos de sangue ou
secreções, é improvável, exceto no caso dos recipientes contendo culturas de microorganismos
vivos.
71
Reproduzindo o referido artigo, o jornal prossegue, então, argumentando que os
“resíduos comprovadamente infectantes” eram produzidos em pequena quantidade nos
hospitais e que poderiam ser “autoclavados”. Avaliamos que o fragmento seguinte,
naquele contexto, serviu bem aos interesses dos hospitais particulares, pois também dizia
que:
“Logo, não há razão para a cobrança de uma taxa para recolhimento do lixo hospitalar porque, em
sua maior parte, ele é idêntico ao lixo doméstico, tampouco para instalar uma usina de incineração,
cujo preço é quinze vezes maior do que o de um aterro sanitário”
72
Vê-se a participação do Correio do Triângulo no debate sobre a questão do lixo
hospitalar na cidade e as alianças que buscou aí estabelecer. Esse recorte,
especialmente, traz um desfecho bastante articulado à declaração da coordenadora de
que o lixo hospitalar não era um problema tão grave quanto se pensava. Harmonizou-se,
perfeitamente, ao parecer da Comissão de que a melhor alternativa seria implantar um
aterro sanitário. Além disso, demonstra as articulações do jornal aos interesses que
prevaleceram naquela disputa, pois ele apresentou e defendeu uma posição que
beneficiou os hospitais particulares. Outra situação exemplar da postura que o jornal
assumiu foi o seu silêncio quanto ao fato de a equipe ter avaliado que os hospitais
precisariam providenciar a seleção dos resíduos no interior das instituições.
Ao que tudo indica, mesmo com a representação de diferentes setores sociais, os
interesses dos proprietários de hospitais particulares acabaram por prevalecer na
Comissão, aliados a uma conveniente postura do poder público de não enfrentar o
problema, fazendo opção por uma suposta economia de recursos. A aquisição de
quaisquer equipamentos tecnológicos exigiria recursos dos cofres municipais, custos a
71
Idem.
72
Idem.
205
serem repartidos com as instituições de saúde, ao passo que o aterro sanitário constituiu
uma solução mais econômica e, sobretudo, demandou iniciativas somente do poder
público.
Portanto, a Comissão, ao contrário do que assegurou Maria Teresa, chegou sim a
uma conclusão e teve, sem dúvida, uma importante atuação. Quando, quiçá por força das
pressões existentes, o grupo apontou o aterro sanitário como a opção mais viável para o
destino do lixo hospitalar, ele tornou-se emblemático do modo como a prefeitura lidava
com essa problemática. Afinal, os temas discutidos não foram apresentados à opinião
pública nem pela imprensa nem pelo poder público. Além disso, a Comissão tampouco
questionou a maneira negligente como a prefeitura vinha cuidando do lixo hospitalar na
cidade.
Não se pode dizer que essa tenha sido a vontade de todos os membros que
atuaram na Comissão. Mas, a bem da verdade, prevaleceu uma determinada posição,
que contribuiu para legitimar a postura assumida pela administração no tocante ao
problema do lixo hospitalar. Naquele momento, definiu-se a implantação do aterro
sanitário, só executada quatro anos depois. Por muito tempo, não mais se discutiu a
participação dos hospitais na gestão dos resíduos. O fato de que a Secretaria de Saúde
tenha tido como Secretário, por duas gestões consecutivas, Paulo Salomão médico e
proprietário de um dos grandes hospitais particulares da cidade não é um fato
insignificante. Na verdade, a prefeitura prosseguia sem definir um planejamento para o
lixo hospitalar, o que continuava a ser relatado pelos jornais. No Correio do Triângulo, lia-
se:
A coleta, transporte e desova do lixo de toda a cidade contêm oito tipos de irregularidades, conforme
pesquisa feita pelo Departamento de Química da Universidade Federal de Uberlândia... A maior parte
do lixo hospitalar da cidade é jogada a céu aberto no lixão, e as moscas e outros insetos encarregam-
se de contaminar o restante do ambiente.
73
Dois anos após o término das atividades da Comissão, a questão do lixo hospitalar
foi abordada também por O Triângulo. As afirmações do químico Giovani Salviani,
professor da universidade, de que o lixo hospitalar estava sendo transportado e
73
Prefeituras tentam se livrar do lixo. Correio do Triângulo, 04 de abril de 1993, n. 16.214, p. 09.
206
depositado em meio a vários outros tipos de lixo, contrariava as declarações do recém-
empossado Secretário de Serviços Urbanos, publicadas por esse jornal no mês anterior:
Uberlândia possui hoje uma das melhores coletas de lixo hospitalar do Estado e atende a todas as
exigências de prevenção e controle do material coletado. A afirmação é do secretário de municipal de
Serviços Urbanos Ednoser Damasceno de Souza, ao falar sobre as medidas que são tomadas quanto
ao recolhimento deste tipo de produto. Segundo o secretário, o lixo hospitalar recolhido pela
Secretaria é incinerado no aterro sanitário da Prefeitura, na fazenda Douradinho, a 28 quilômetros da
cidade. A coleta é feita por pessoal treinado, obedecendo às normas de segurança e proteção.
74
Não configura apenas uma coincidência o fato de que, poucos meses antes, outro
jornal, o Correio do Triângulo, publicara uma notícia em que o Secretário de Serviços
Urbanos também tecia elogios à eficiência do órgão que ele representava:
Embora o aterro não possua a impermeabilidade desejável e total, o lixo hospitalar recebe um
tratamento especial. Conforme declarou o Secretário Municipal de Serviços Urbanos Ednoser
Damasceno de Souza. Ele afirmou que o lixo hospitalar é colocado em valas abertas no chão e em
seguida aterrado. Segundo ele, o maior problema do lixo é que o mesmo pode ser considerado um
meio de proliferação de doenças e, para evitar esse dano, o aterro atende bem as necessidades da
cidade.
75
A natureza dos discursos, a precisão das informações e o contexto em que são
produzidos levam a crer que esses textos constituem matérias que a administração pagou
aos jornais para que fossem publicadas. A afirmação do Secretário de que o lixo
hospitalar era “incinerado no aterro sanitário e que a coleta era feita por pessoal treinado,
obedecendo às normas de segurança e proteção”, só faz sentido se levarmos em
consideração que ele havia assumido a Secretaria no início daquele ano, que estava ou
mal informado da realidade que ocorria na cidade ou, então, interessado em que essa
realidade fosse apresentada de maneira diferente à opinião pública.
A segunda hipótese parece ser a mais provável e é reforçada pelo fato de que dez
dias após a publicação da referida notícia, O Triângulo publica uma nova matéria sobre o
mesmo assunto, na qual o secretário dizia “ser favorável à implantação de incinerador de
lixo em Uberlândia”. O texto esclarece que o lixo hospitalar era enterrado e que a
74
Coleta de lixo hospitalar é apontada como eficiente. O Triângulo, 04 de março de 1993, n. 8.422, p. 16.
75
Em um só dia cidade coleta 220 toneladas de lixo. Correio do Triângulo, 04 de dezembro de 1992, n. 16.115, p. 09.
207
incineração era uma proposta a ser estudada, assegurando também que “uma lei
ambiental em vigor no Município” proibia o uso de incineradores.
76
Ainda assim, se, por um lado, os textos nos jornais apresentam discursos que se
contradizem e que colocam o Secretário em constrangedora situação, por outro, também
são registros que retratam as práticas políticas que norteavam o “tratamento” dado ao lixo
hospitalar na cidade nos últimos anos. Demonstram, assaz, as articulações dos jornais,
que, conforme seus interesses, ao mesmo tempo em que denunciavam irregularidades,
publicavam notícias que não correspondiam nem à realidade nem aos argumentos
apresentados.
Em meio a essas contradições, percebemos que a intervenção do jornal O Triângulo
constitui-se, por vezes, na tentativa de reforçar certos valores e imagens. Por exemplo,
quando o problema do lixo hospitalar é apresentado como a contra-imagem de uma
cidade “industrializada” e “em franco desenvolvimento”. Assim, tem-se uma noção na qual
o lixo é retratado como “uma afronta à qualidade de vida dos uberlandenses”. Nessa
perspectiva, o lixo hospitalar é fator de contradição da vida urbana, na intenção de
amenizá-lo como tal, o jornal busca fortificar a visão do lixo como um problema técnico,
despolitizando-o.
77
Curioso observar que os argumentos tanto do Secretário Ednoser Damasceno como
do Professor Giovani Salviani, publicados pelo jornais, fazem associações entre o lixo
hospitalar e a possibilidade de “contaminação” e “de proliferação de doenças”. Ambos os
dois chamam a atenção para o caráter de risco oferecido por esse tipo de lixo. A diferença
é que, vindo do Secretário, esse alerta parece-nos desconexo em relação ao que era
praticado pelos governos locais. Em 1994, a indefinição continuava sendo a marca
principal na forma como a administração gerenciava o problema do lixo hospitalar.
Uma comitiva uberlandense esteve em São José do Rio Preto ontem para conhecer o tratamento que
é dado ao lixo municipal. (Em Uberlândia) o aterro sanitário atende à demanda municipal, mas não
tem destino específico para os lixos hospitalares e industriais.
78
76
Lixo: Ednoser defende uso de incinerador que lei proíbe. O Triângulo, 14 de março de 1993, n. 8.431, p. 01.
77
Aterro é usado como depósito. O Triângulo, 01 de março de 1996, n. 9.307, p. 09.
78
Ferolla e assessores conhecem em Rio Preto destinação final do lixo. O Triângulo, 03 de fevereiro de 1994, n.
8.699, p. 05.
208
O descuido como a questão era tratada passava a ser alvo de denúncias ao
Ministério Público, que, por meio da Curadoria do Meio Ambiente, ajuíza uma Ação Civil
Pública
contra o município de Uberlândia, cujo objetivo é fazer com que o lixão onde é depositado todo o lixo
da cidade, seja alterado, com a correção de irregularidades que atualmente são cometidas. Outro
problema relatado pelo promotor diz respeito ao fato de não existir separação entre o lixo urbano e o
hospitalar, também depositado no local.
79
Essa ação, ajuizada pelo promotor Fábio Guedes, é outro marco na trajetória do lixo
hospitalar na cidade. Aponta como o problema veio assumindo, cada vez mais, maiores
proporções. Além disso, o envolvimento do Ministério Público Estadual que, a partir
daquele momento, começava a fiscalizar e a cobrar do Município, de forma mais efetiva,
políticas públicas mais claras com relação ao lixo, demonstra o descuramento marcante
que prevalecia. Diante da notícia publicada na primeira página do jornal O Triângulo, a
atitude do governo local em defesa própria foi, apenas, “uma aceitação do problema” e a
solicitação de um tempo para as devidas “mudanças e adaptações”. Na verdade, foram
quase três anos até que tais alterações fossem realizadas, quando a prefeitura, então, já
havia delegado grande parte do serviço de coleta do lixo à iniciativa privada.
80
Mas, em meio a outras complicações urbanas, e a outros restos, o lixo hospitalar,
“por ser tão perigoso que deveria ser incinerado”, continuava a ser debatido por diversos
setores sociais, sobre o qual se apontava a necessidade de políticas públicas. À época, O
Triângulo publicou uma afirmação do professor Salviani de que a contaminação pelo lixo
hospitalar poderia “acarretar, entre outras conseqüências, doenças, deformações no
crescimento humano e até câncer”.
81
Por aqueles dias, o jornal viera divulgando notícias
como esta:
O novo aterro sanitário, que fica no bairro industrial, está recebendo indiscriminadamente lixo
hospitalar, fazendo com que crianças e catadores de lixo corram riscos de contaminação. O aterro
recebe quatro toneladas por dia de lixo contaminado.
82
79
Ministério Público aciona o Executivo e exige o fim do “Lixão”. O Triângulo, 22 de out. de 1994, n. 8.903, p. 01.
80
CCO assume coleta de lixo com nova frota. O Triângulo, 03 de agosto de 1995, n. 9.137, p. 07.
81
Idem.
82
Lixo expõe catadores e crianças à contaminação. O Triângulo, 12 de março de 1996, n. 9.318, p. 01.
Aterro é usado como depósito. O Triângulo, 01 de março de 1996, n. 9.307, p. 09.
209
Não nos passa despercebido como O Triângulo parece se empenhar na tarefa de
denunciar os problemas em torno do lixo hospitalar. Ademais, notamos como se reforça,
por meio da imprensa, uma associação entre lixo hospitalar e riscos de contaminação.
Uma temática sobre a qual se estabelece uma grande polêmica, pois não há um
consenso entre os especialistas, cientistas e pesquisadores quanto ao grau de
periculosidade dos resíduos.
Numa tese na área de Enfermagem, ao discutir o problema do lixo hospitalar em
Ribeirão Preto-SP, Magosso aborda a questão sob o ponto de vista do gerenciamento dos
resíduos nos estabelecimentos de saúde. Segundo ela, o lixo hospitalar, “para muitos
autores, significa um risco em potencial para a saúde humana e ambiental. Já, para
outros, não representa maior risco para a comunidade que os resíduos domésticos”. Um
outro fator, apontado pela autora, é a divergência quanto à classificação dos resíduos,
que ocorre tanto no Brasil quanto no exterior. Nos Estados Unidos, a saber, as agências
federais de saúde estabelecem distintas classificações para esse lixo. Atualmente, ainda
presenciamos essa indefinição e, como já vimos, ela não é apenas conceitual.
83
Em 1997, implantou-se a usina de triagem, e o lixo hospitalar e ambulatorial voltou a
ser enterrado em valas separadas. No ano seguinte, a prefeitura permanecia responsável
pela coleta e destinação de todo o lixo hospitalar da cidade, mas divulgou que iria
“começar a cobrar pelos serviços”. A Secretaria de Serviços Urbanos recolhia cerca de
“2,8 mil quilos de lixo hospitalar por dia”, nesse contexto. Entretanto, em setembro de
1997, já existia um decreto definindo normas quanto aos deveres dos prestadores de
serviços de saúde:
Art. 2º Este decreto aplica-se aos resíduos sólidos gerados nos aeroportos, terminais ferroviários e
rodoviários, indústrias, construção civil, hospitais, clínicas odontológicas, e demais estabelecimentos
congêneres, bem como aos prestadores de serviços de saúde, principalmente aqueles que
apresentem elementos poluidores nocivos ao meio ambiente e à saúde pública, classificados
conforme NBR 10004/87, da ABNT.
84
Observa-se que a legislação específica já contém definições sobre quais os
estabelecimentos considerados produtores de lixo hospitalar. Fundamentando-se em
83
TAKAYANAGUI, Angela Maria Magosso. Trabalhadores de Saúde e Meio Ambiente: ação educativa do enfermeiro
na conscientização para gerenciamento de resíduos sólidos, op. cit., “Apresentação”, p. 01-23.
84
Decreto 7.401, de 26 de setembro de 1997, regulamenta a responsabilidade de coleta, transporte, tratamento e destino
final de resíduos sólidos. Documentos da Secretaria de Serviços Urbanos, Administração 1997-2000.
210
norma da ABNT, que classifica esse lixo em diferentes categorias, a legislação buscava
regulamentar a atribuição de responsabilidade dos estabelecimentos de saúde quanto ao
destino dos resíduos. A classificação da ABNT enquadra-os da seguinte forma: grupo A
(resíduos que contenham “agentes patogênicos”, de alta periculosidade, como por
exemplo: sangue e hemoderivados); o grupo B corresponde aos resíduos que possuem
“características químicas”, o grupo C são os “rejeitos radioativos”, e o grupo D é
constituído por resíduos que “não se enquadram nos grupos descritos anteriormente e
não demandam tratamento diferenciado dos resíduos de origem domiciliar”.
85
Essa definição explicita o que é o lixo hospitalar e aquilo que se considera como lixo
contaminado, perigoso. Assegura-se que, da quantidade total de resíduos produzidos em
um hospital, entre 10 e 40% possam ser assim caraterizados.
86
A classificação da ABNT
já havia norteado o debate, de 1991, sobre lixo hospitalar, conquanto, somente nos
últimos dois anos, é que se tenham tomado iniciativas no sentido de se respeitar essa
norma, mediante ações que visam a maiores cuidados com o lixo hospitalar.
Em seu artigo terceiro, o decreto determina que os estabelecimentos de saúde
teriam “a responsabilidade financeira de destinação dos resíduos poluentes sólidos ou
líquidos, desde a geração, transporte e tratamento, até a disposição final, de forma a
atender aos requisitos ambientais e da saúde pública”. Essa lei também ordena que os
hospitais devem apresentar um plano de gerenciamento de resíduos, sujeito à aprovação
do poder público.
87
De fato, ao longo de quase seis anos que se seguiram após sua
aprovação, essa legislação em nada alterou o quadro da questão dos resíduos no que
tange às instituições de saúde. Mas é preciso considerar a própria classificação do lixo
hospitalar, a definição de quais são seus produtores e a regulamentação da
responsabilidade que lhes cabe quanto ao cuidado com os resíduos, como um processo
social amplo e complexo, cujas disputas entre as forças sociais desvendam novos valores
e concepções emergentes na vida urbana.
85
Anexo I do Decreto 7.401, de 26 de setembro de 1997.
86
Relatório de Avaliação Ambiental, p 143.
87
Segundo o Decreto 7.401, o plano de gerenciamento de resíduos sólidos consiste em: “documento integrante do
processo de licenciamento ambiental, que aponta e descreve as ações relativas ao manejo de resíduos sólidos, no âmbito
dos estabelecimentos mencionados no Art. 2º deste decreto, contemplando os aspectos concernentes à geração, volume
quantidade, características físico-químicas e biológicas, segregação, acondicionamento, coleta, armazenamento,
transporte, tratamento e disposição final, bem como a proteção à saúde pública”.
211
Em abril de 2003, em meio a grande polêmica, a prefeitura conseguiu estipular a
cobrança de uma taxa pelo transporte e destinação do lixo de estabelecimentos que
“produzem acima de 200 quilogramas de resíduos por dia, na média do mês”, os
chamados “grandes geradores”. Provocando uma reação de contrariedade por parte dos
hospitais particulares, essa legislação tornava-se expressiva dos limites que a
administração encontrava para fazer com que tais instituições assumissem suas
obrigações. Vemos nuanças dessas disputas políticas no próprio texto do decreto:
Considerando que o Município de Uberlândia desempenha relevante e insubstituível papel na tutela
jurídica do Meio Ambiente, necessitando adequar os instrumentos existentes, inclusive redefinindo
alguns, a fim de que os mesmos estejam conectados com o desafio da construção de uma cidade na
perspectiva e com os pressupostos do desenvolvimento sustentável;
Considerando que a política adotada para a coleta de resíduos sólidos especiais, transbordo e sua
destinação se presta à mudança de atitude da Administração frente aos agentes grandes geradores
de lixo;
Considerando os custos envolvidos na seleção e preparação de áreas para disposição final dos
resíduos gerados, em nossa cidade...
88
Chamamos a atenção para a referência que esse decreto faz a uma “mudança de
atitude da Administração frente aos agentes grandes geradores de lixo”, pois isso fornece
uma idéia da maneira como o poder público, historicamente, também veio sendo
conivente com a postura desses estabelecimentos. Talvez já fosse possível escrever a
história do lixo hospitalar em Uberlândia tendo por referência a legislação e sua trajetória.
Isso acarretaria abordar a quase inexistência de uma lei mais consistente, no início da
década de 1980, que, mesmo depois de elaborada, apresentava certa ineficácia, e, até os
dias de hoje, há muitas dificuldades em fazê-la vigorar. Ao fazer uma avaliação sobre
isso, o Sr. Ilvio Andrade assevera:
Já naquela época, década de 1980, a coleta do lixo hospitalar era objeto de preocupação por parte
dos municípios mais avançados. Sensíveis ao problema, nos munimos do conhecimento necessário e
implantamos o serviço de coleta de lixo hospitalar com os recursos disponíveis então, o que,
inegavelmente, constituiu-se em um avanço expressivo. Não conseguimos, entretanto, implantar a
cobrança pelos serviços. Foi gigantesca a resistência dos hospitais e laboratórios, detentores de boa
parcela do poder político na cidade, à implantação da idéia.
89
88
Decreto 9.152 de 29 de abril de 2003. Estabelece forma de repasse dos custos operacionais para destinação final de
resíduos sólidos especiais e toma outras providências. Administração 2001-2004.
89
Ilvio A. Andrade, Secretário de Serviços Urbanos, 1983 a 1987. Entrevista concedida em 27 de maio de 2004.
212
Em seu comentário, o Sr. Ílvio traduz certos elementos das relações vividas na
cidade, apontando como o problema do lixo hospitalar é representativo dos interesses de
certos setores, a exemplo dos hospitais particulares, e como essas instituições sempre se
articularam com muita eficiência a fim de defendê-los. Outro exemplo da capacidade de
se organizarem é o fato de terem entrado com uma ação na Justiça, alegando ser
inconstitucional a cobrança da taxa pelo transporte e destinação dos resíduos, definida
pela prefeitura. Essas instituições argumentam que o valor estipulado é exorbitante.
90
Diante disso, abriremos um parêntese para falar um pouco a respeito da posição das
instituições de saúde do setor privado acerca das políticas públicas municipais que
envolvem o lixo hospitalar. Para ter uma noção de como os hospitais particulares vêem
este problema, conversamos com o Sr. Valdo Gonçalves, diretor financeiro do Hospital
Santa Genoveva, que, entre os anos de 1989 e 1992, foi diretor presidente da instituição.
Porém, ele assegurou não se recordar das discussões sobre o lixo hospitalar efetuadas
naquele período. Quando perguntamos a ele acerca da postura assumida pela
Associação dos Hospitais Particulares, o Sr. Valdo disse não se lembrar e avaliou que
sempre se formam tantas comissões e se fazem tantas reuniões e, ao final, não se chega
a lugar algum. Embora as observações do diretor não possam ser generalizadas, elas nos
servem de referência para discutir como, atualmente, as instituições privadas de saúde
encaram essa questão, e algumas de suas atitudes e estratégias de mobilização frente às
exigências que o lixo hospitalar vem impondo-lhes.
91
Segundo o Sr. Valdo, a instituição na qual trabalha sempre procurou tratar o
problema do lixo hospitalar dentro do que a lei determina. O que é por demais
interessante, pois ele mesmo assegura que, em anos anteriores, os hospitais particulares
não se sentiam pressionados em relação ao problema do lixo hospitalar. Primeiro, porque
inexistiam leis rigorosas que determinassem as obrigações. Segundo, o potencial de risco
desses resíduos não era tão grande. Na visão do diretor, foi a partir da década de 1990
90
Essas informações me foram dadas pelo Sr. Flávio A. de Andrade Goulart, à época, Secretário de Saúde. Entrevista
concedida à autora em 08 de junho de 2004.
91
Valdo Gonçalves Borges, médico pneumologista, diretor financeiro do Hospital Santa Genoveva. Existente desde
1975, quando era ainda a Santa Casa, esta instituição é, hoje, assim como o Santa Clara e o Santa Catarina, uma das
maiores instituições de saúde do setor privado na cidade. Conversa informal com a autora em 14 de julho de 2004.
Em muitas ocasiões, procurei o então diretor da Associação dos Hospitais Particulares, Sr. Fernando Morais, com o objetivo de tomar
conhecimento de possíveis propostas da entidade, encaminhadas ao Poder Público, com relação ao problema do lixo hospitalar. Não
consegui ser recebida por ele, tampouco ter acesso a quaisquer documentos que indicassem a postura ou os argumentos da entidade
frente a uma situação tão complexa como a do destino dos resíduos hospitalares, que diz respeito diretamente à saúde e aos interesses
da população.
213
que a contaminação pelorus do AIDS e por outras doenças contribuiu para gerar
maiores temores.
Nessa perspectiva, quando indagamos quais as maiores dificuldades enfrentadas
pelo Hospital Santa Genoveva para implantar a separação dos resíduos na origem, que
vinha sendo feita há poucos meses, o Sr. Valdo, com certa reserva, alegou que havia sido
um processo tranqüilo, até mesmo simples. Para ele, as dificuldades se encontram no fato
de que os hospitais fazem sua parte separando os resíduos na fonte, mas a prefeitura, ao
coletá-los, mistura-os indistintamente. A respeito da cobrança de uma taxa municipal pelo
transporte e destinação do lixo hospitalar, o Sr. Valdo comentou que havia uma
indignação dos hospitais particulares, pois consideravam-na abusiva. Ele afirmou que era
um absurdo uma instituição como o Santa Genoveva pagar 30 mil reais por mês pelo
serviço de coleta do lixo e, comparando, disse que pagavam esse mesmo valor pelo
fornecimento de energia elétrica. O Sr. Valdo assegurou que não é que não quisessem
pagar, apenas desejavam que o valor cobrado fosse menor. Esta é a razão pela qual os
hospitais particulares, por meio de sua Associação, levaram a questão ao Poder
Judiciário.
Comentando acerca de sua participação em algumas reuniões da Associação
recentemente, o Sr. Valdo relatou-nos uma questão curiosa acerca das articulações dos
hospitais frente às novas determinações legais em torno do lixo hospitalar. Conforme o
Decreto 9152, de 29 de abril de 2003, a Prefeitura passou a exigir dos estabelecimentos
de saúde, um PGRSS (Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos de Saúde),
documento no qual precisam apresentar um planejamento de todo o processo que
envolve o lixo hospitalar: produção, separação e acondicionamento para apresentação ao
serviço de coleta, cuja responsabilidade é do poder público.
Em seu relato, o diretor conta que, durante uma reunião da entidade, os hospitais
particulares acordaram que contratariam uma empresa e que fariam o plano de
gerenciamento em conjunto. No entanto alguns resolveram sair à frente e providenciar a
elaboração do documento individualmente. Com isso, outros hospitais, como o Santa
Genoveva, ao serem informados, tiveram que providenciar seu plano de gerenciamento
quase que de última hora. Na avaliação do Sr. Valdo, diretor financeiro que é, com um
certo prejuízo, uma vez que a empresa contratada para elaborar o documento, diante do
desajuste no acordo anterior, conseguiu maior valorização por seus serviços.
214
Consideramos esse quadro das relações entre os hospitais particulares sintomático do
modo como o lixo hospitalar desvenda disputas e conflitos intrínsecos às relações vividas
na cidade. Isso nos mostra que o desentendimento não parece ser prerrogativa somente
do diálogo entre a prefeitura e os hospitais particulares, mas até mesmo entre essas
instituições.
92
Isso pode ser percebido por uma declaração do Sr. Valdo, em que ele sugeriu, como
possível solução para o impasse entre a prefeitura e os hospitais particulares, a aquisição
de um incinerador para o aterro sanitário municipal. A máquina seria comprada com o
valor destinado ao pagamento pelo serviço de coleta dos resíduos, numa espécie de
consórcio entre as instituições de saúde. Com isso, na visão do Sr. Valdo, os hospitais
deixariam de pagar pela condução do lixo hospitalar. Quando perguntamos se a prefeitura
teria que arcar com os custos, entre outros, do transporte, manutenção do incinerador e
destino final dos resíduos, o diretor confirmou e acrescentou, ainda, que os hospitais
particulares pagam impostos para isso. Em sua opinião, a responsabilidade pelo que fazer
com esses restos parece ser unicamente do Poder Público Municipal.
De todo modo, é interessante observar que a estipulação de uma taxa pela coleta do
lixo hospitalar trouxe nova preocupação aos hospitais particulares, a necessidade de
diminuir o volume de resíduos. Essa idéia tornou-se consensual entre as instituições de
saúde, porque o valor cobrado pela prefeitura é estimado por tonelada recolhida.
93
Assim, podemos ver como a questão do lixo hospitalar em Uberlândia envolve uma
infinidade de conflitos e interesses políticos, além de muitas contradições. Como já
mencionado anteriormente, a proposta de incineração do lixo hospitalar sempre foi muito
discutida e cogitada, sem que se conseguisse realmente implantá-la. Quando a prefeitura
92
Cogita-se, entre as instituições particulares de saúde, como uma possível solução para o problema do lixo hospitalar,
a possibilidade de que os resíduos sejam transportados em caminhões, com bombos apropriados, para Belo Horizonte,
onde seriam então incinerados. Isso, pretensa e supostamente, eximiria os hospitais particulares do pagamento da taxa
para recolhimento dos resíduos, estipulada pela Prefeitura. Até onde pude saber, isso não ainda se concretizou. Tais
informações foram-me concedidas pelo Sr. Eduardo Simões, administrador do Hospital Santa Genoveva. Conversa
informal com a autora em 04 de outubro de 2004.
93
Mesmo que se considerem outros estabelecimentos de saúde como geradores de lixo hospitalar, tais como farmácias,
clínicas médicas, odontológicas e veterinárias, dentre outros, na verdade, os hospitais “são considerados os maiores
produtores de resíduos infectantes, pela especificidade do serviço, pelo porte da área física e consequentemente maior
volume de lixo gerado, em relação aos demais estabelecimentos de saúde”. In: TAKAYANAGUI, Angela M. p. 99.
Ressalte-se que uma outra medida visando à economia de recursos, implantada pelo Hospital Santa Genoveva, foi a
tentativa de comercializar o lixo do setor administrativo, em que predomina grande quantidade de papel e caixas de
papelão. A idéia inicial era reverter esse valor para pagar pelo serviço de coleta, mas, como os recursos obtidos foram
considerados insignificantes, desistiu-se do arranjo. Além disso, era complicado armazenar os materiais em razão da
falta de espaço físico, o que levou o hospital a continuar doando-os a catadores que já os recolhiam anteriormente.
215
terceirizou os serviços de coleta do lixo, no contrato com a Limpel Atividades Urbanas,
previa-se a instalação de um incinerador, entretanto, isso jamais ocorreu. Portanto,
acreditamos ser importante abordar aqui uma primeira experiência de incineração do lixo
hospitalar desenvolvida pelo Hospital Veterinário da Universidade Federal.
Em 1996, o jornal O Triângulo anunciava que o Hospital de Clínicas da Universidade
já possuía um aparelho “de grande utilidade na queima de detritos”. No entanto, essa
primeira e, até então, única experiência de incinerar o lixo hospitalar foi uma iniciativa do
Hospital Veterinário, que viu no uso desse equipamento uma forma de eliminar os
resíduos que produz em maior quantidade animais mortos. O Hospital havia adquirido
o incinerador por meio de um “empréstimo” ao negociar com a empresa White Martins. Na
verdade, a empresa cedera o equipamento, mas o hospital teria que arcar com os custos
do combustível, que seria fornecido por ela. A máquina, instalada em uma área no
Campus Umuarama, tinha capacidade para incinerar 100 quilos de resíduos por hora,
mantinha uma temperatura de 1200º C e funcionava com gás de cozinha e oxigênio.
Durante o primeiro ano de funcionamento do incinerador, somente o lixo do Hospital
Veterinário foi incinerado. Mas, no ano seguinte, o Hospital de Clínicas da Universidade
começou a enviar todo o seu lixo para ser queimado também. Entretanto, esse processo
foi interrompido em setembro, quando o equipamento fora danificado. Embora
contratados e cedidos pela Prefeitura, os funcionários que operavam a máquina não
tinham experiência e, ao depositaram certos materiais, como vidro, latas ou gesso,
estragaram-na.
Tendo sido utilizado durante dois anos, o incinerador fora desativado sob a alegação
de não corresponder “às exigências dos órgãos ambientais”, conquanto, durante o
período em que esteve funcionando, isso tenha ocorrido sem o licenciamento concedido
pela Prefeitura e outros órgãos estaduais responsáveis.
Art. 20 A partir da vigência deste Decreto, não poderão ser instalados incineradores de resíduos
sólidos em áreas residenciais, comerciais, bem como nas respectivas proximidades, salvo se
providas de equipamentos técnicos que impossibilitem incômodos à vizinhança. A implantação
somente poderá ser permitida, em áreas previamente aprovadas pelo Município de Uberlândia,
devendo ainda, seguir todo o processo de licenciamento, conforme exigência da legislação ambiental
estadual e municipal.
94
94
Decreto 7401, de 26 de setembro de 1997. Regulamenta a responsabilidade de coleta, transporte, tratamento e destino
final de resíduos sólidos que menciona e toma outras providências. Secretaria de Serviços Urbanos, 1997-2000.
216
Abaixo, a fotografia mostra o equipamento em atividade.
Foto 3. No Hospital Veterinário, um trabalhador opera o incinerador para a queima do lixo hospitalar.
Fotografia produzida pela Professora Jureth Lemos no ano de 1998.
De fato, quando o incinerador foi instalado no Hospital Veterinário, em 1996, essa lei
ainda não estava em vigor, o que já se efetuava no ano de 1998; inclusive, o Hospital de
Clínicas não obteve o licenciamento em razão das condições de operação do incinerador,
ainda que a Prefeitura estivesse a par dessa questão. Afinal, ela havia cedido os
funcionários que operavam a máquina e, segundo o jornal O Triângulo, partiu da direção
do hospital uma proposta de uso comum do equipamento, com a condição de que o
Poder Executivo estabelecesse “um convênio com a administração do Hospital
Universitário para a incineração do lixo hospitalar recolhido pelo município”. Possibilidade
essa que acabou por não se concretizar por falta de entendimento entre o poder público e
a Universidade. A bem da verdade, desde o início, esse projeto careceu de um
planejamento efetivo, pois não houve uma preocupação com as normas ambientais e de
segurança, nem se elaborou um EIA/RIMA (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental).
Em conseqüência disso, o incinerador provocara reclamações da vizinhança que
reside nas proximidades do Hospital, área nobre da cidade. Os moradores protestaram
contra a fumaça expelida pela máquina e promoveram um abaixo-assinado mostrando
217
seu descontentamento. Uma situação expressiva dos atritos decorrentes de certas
medidas para lidar com o lixo que, ao invés de serem propostas num diálogo, são
impostas à população. Conforme as condições sócio-econômicas e o poder de
mobilização, certos grupos sociais conseguem se fazer ouvir e valer seus direitos.
95
Ressalte-se que, paralela à iniciativa de incineração, houve uma outra proposta para
lidar com o lixo hospitalar. No jornal Correio, lê-se a respeito da coleta seletiva dos
resíduos:
O único hospital de Uberlândia que está incinerando o lixo hospitalar contaminado é o Hospital de
Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O projeto de coleta seletiva do lixo hospitalar
foi implantado em fevereiro. Os resíduos infectados são separados do material comum... Os restos
produzidos dentro do hospital estão passando por acondicionamento padronizado em sacos, que são
separados por cores. No saco branco, é colocado o lixo contaminado e, no preto, o lixo que pode ser
reciclado.
96
Em 1998, realizou-se uma outra experiência referente ao lixo hospitalar que merece
ser destacada: a seleção dos resíduos dentro do Hospital de Clínicas, com o objetivo de
reduzir a quantidade de lixo a ser incinerado. A professora de Enfermagem da Escola
Técnica da Universidade, Jureth Lemos, foi estimulada a desenvolver esse projeto. Ela
assegura que “pouquíssimos hospitais fazem a separação dos resíduos potencialmente
contaminados dos resíduos não contaminados.
97
Essa iniciativa foi descrita no Relatório de Avaliação Ambiental no intuito de discutir
as condições em que o lixo hospitalar era transportado e acondicionado no aterro
sanitário. Os pesquisadores argumentavam que há uma contradição no fato de os
resíduos serem separados na origem, mas se misturarem durante o transporte e no
destino final, uma vez que, no aterro, não há valas distintas para enterrar o lixo
contaminado. Interpretando alguns materiais produzidos durante o desenvolvimento
desse projeto, avaliamos que, dentre suas contribuições, está o fato de tornar visíveis
alguns aspectos acerca da situação do lixo hospitalar no interior das instituições de
saúde: as pessoas que o manuseiam, o nível de informação e de consciência delas, as
95
Lixo hospitalar preocupa. O Triângulo, 27 de dezembro de 1996, n. 9.555, p. 02.
96
PMU vai cobrar por coleta de lixo em hospitais. Correio, 20 de março de 1998, n. 17.746, p. 09.
97
Esse projeto depois lhe serviu como atividade de conclusão do curso de bacharelado em Geografia. LEMOS, Jureth
Couto. Segregação dos resíduos de serviços de saúde: para reduzir os riscos à saúde pública e ao meio ambiente.
Monografia em Geografia, UFU: Uberlândia, 1998.
218
dificuldades e vantagens de se implantar a seleção dos resíduos e o significado de uma
experiência dessa natureza.
98
Em princípio, implantar um sistema de coleta seletiva parece ser uma tarefa
relativamente simples. Ao conhecer o processo, vê-se que não é bem assim. Para
começar, é preciso envolver e informar todas as pessoas implicadas. Nesse caso
específico, “formou-se uma equipe de trabalho com profissionais da Divisão de
Enfermagem, Setor de Limpeza, Comissão de Controle de Infecção Hospitalar, assessor
da Diretoria Administrativa do Hospital e o pesquisador para adequar o projeto à realidade
do Hospital”. Esta equipe, uma vez formada, observou em que condições era feito o
armazenamento externo dos resíduos e também buscou informar-se junto aos
funcionários como era feito o descarte em cada setor, a fim de dar início ao processo de
seleção.
99
Para iniciar o Sistema de Coleta Seletiva, o hospital foi dividido em duas áreas: a de
âmbito administrativo e as de âmbito hospitalar, devido a sua extensão e à necessidade
de orientar um grande número de funcionários. A primeira corresponde aos respectivos
setores: Direção, Farmácia, Divisão de Enfermagem, Setor de Limpeza, Recepção,
Serviço Social, Faturamento, Divisão de Arquivo Médico e Estatística, Material e
Consignação, Custos, Convênio, Tesouraria. Ao passo que as áreas de âmbito hospitalar
incluem outros setores como: Bloco da cirúrgica I e II, Bloco da Pediatria, Ambulatórios,
Centro Cirúrgico, UTI, Hemodiálise, Oncologia e Psiquiatria, Laboratório de Análise
Clínicas, Patologia Clínica, Nutrição, Lavanderia e Manutenção. A descrição desses
setores já nos fornece uma idéia da complexidade da estrutura de um hospital e do grau
de dificuldade para envolver tantas pessoas em um projeto com tal objetivo.
100
O processo de Coleta Seletiva consiste em separar o lixo contaminado e o lixo não
contaminado a fim de reduzir o volume dos resíduos que, naquele momento, estavam
98
Não há informações muito precisas sobre a relação entre o lixo hospitalar e a incidência de doenças ou de infecções
hospitalares, entretanto, essa é uma das razões pelas quais a questão desse tipo de lixo provoca tantos temores entre a
população e reforça a necessidade de maiores cuidados dentro das instituições de saúde. “A associação Paulista de
Estudo e Controle de Infecção Hospitalar (APECIH), estima que 50% dos casos desse tipo de infecção decorrem do
desequilíbrio da flora humana, já debilitada no momento em que o paciente é internado por qualquer motivo; 30% são
devido aos despreparos e à falta de cuidado dos profissionais de saúde ao manipular os materiais e pacientes ou transitar
em local de risco; 10% correspondem à instalações inadequadas que facilitam a propagação de infecção, (a falta de pia
para lavar as mãos e os 10% restantes são causados pelo lixo ou outras situações”). In: LEMOS, J. Couto, op. cit, p. 09.
99
Idem, p. 11.
100
“Caracterização dos Resíduos Sólidos dos Serviços de Saúde do Município de Uberlândia”. In: Relatório de
Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, p. 139
219
sendo incinerados. À época da implantação do sistema, fevereiro de 1998, o lixo
contaminado era queimado; o restante, enviado ao aterro sanitário. Na separação, os
resíduos contaminados são depositados em sacos brancos, já os não contaminados,
chamados de comuns, em sacos pretos. Na área externa do hospital em que ficam
alojados, depois de recolhidos, os resíduos permanecem em lados opostos. No processo,
separam-se, também, as caixas de papelão, os restos de alimentos dos pacientes, assim
como restos de alimento da cozinha que ficam ali mesmo em uma câmara fria.
101
Logo no começo da implantação do processo de Coleta Seletiva, percebeu-se que o
volume de resíduos contaminados era muito maior e que, com o tempo, à medida que os
funcionários foram se envolvendo e se informando sobre o sistema, esses números foram
sendo modificados. Para isso foi-lhes oferecido um treinamento e se distribuiu um folheto
com explicações acerca do funcionamento do sistema.
Após alguns meses depois de implantada a Coleta Seletiva dentro do Hospital de
Clínicas, observou-se que o peso dos resíduos contaminados diminuiu de mais ou menos
60% para 40% do total de 2.000 quilos de lixo hospitalar produzidos pela instituição. Com
o processo de separação, houve um aumento da quantidade de materiais recicláveis, os
resíduos comuns foram estimados em 600 quilos, o que corresponde a 30%, as caixas de
papelão, e os restos de alimentos, tanto da cozinha quanto dos pacientes, continuaram
estáveis, constituindo aproximadamente 28% do total dos resíduos.
Portanto, a experiência de seleção do lixo hospitalar, com o objetivo de reduzir sua
quantidade, trouxe resultados satisfatórios. A despeito das dificuldades mencionadas, um
sistema de separação dos resíduos na origem demonstra ser uma alternativa mais
racional, eficaz e econômica e, o mais importante, estimula a consciência da necessidade
de pensar e efetivar medidas para cuidar deles.
Se, por um lado, pode-se afirmar a necessidade de que tanto os hospitais como a
população se envolvam com o problema do lixo hospitalar. Por outro, é fundamental que o
poder público também faça sua parte. É incoerente a Prefeitura exigir dos hospitais um
planejamento do que fazer com os resíduos e ela própria não fiscalizar as condições em
101
Segundo a Professora Jureth, até há bem pouco tempo, ainda havia uma prática informal no Hospital de Clínicas de
doar restos de alimentos da cozinha para chacareiros da região. No Hospital Santa Genoveva, quando perguntei se isso
também ocorria, o administrador afirmou que sim, comentando que lá esse é um costume em vigor. Considerando que a
legislação proíbe tal prática, vimos, no que tange ao lixo hospitalar, um bom exemplo do descompasso entre a norma e a
prática cotidiana das pessoas no interior das instituições de saúde.
220
que são transportados e acondicionados no aterro sanitário. Não era novidade para as
autoridades, servidores públicos e parte da comunidade universitária envolvida com essa
problemática que, em 2004, o lixo hospitalar da cidade era destinado ao aterro sanitário, e
o lixo contaminado, sem tratamento algum. O que ocorria, inclusive, com os resíduos do
Hospital da Universidade, que estavam sendo selecionados no interior da instituição. Ao
serem transportados, os resíduos se misturavam, contaminados e não contaminados,
fazendo com que o processo de separação realizado no hospital fosse inútil. A fotografia
abaixo registra o despejo do lixo hospitalar no aterro sanitário.
Foto 4. No aterro sanitário, caminhão da Limpel descarrega sacos contendo lixo hospitalar. Como se vê, sacos
brancos e pretos são despejados no mesmo local. Fotografia produzida pela Professora Jureth Lemos, 1998.
O Hospital da Universidade, pelo fato de ser um hospital escola, ser público, possuir
maior estrutura, mais recursos tecnológicos e atender a uma parcela significativa da
população local e dos municípios vizinhos, é o maior produtor de resíduos da cidade. Sua
produção de lixo hospitalar corresponde a cerca de duas toneladas diárias. A quantidade
221
produzida pelos hospitais da rede privada é estimada em 1.200 quilos por dia.
102
Para
termos uma noção da produção geral de lixo hospitalar em Uberlândia, a cidade possui:
01 hospital público e 11 particulares, 21 centros de saúde, 436 consultórios e clínicas
médicas, 850 consultórios odontológicos, 246 drogarias, 40 laboratórios de análise clínica,
além dos ambulatórios de cadeias e presídios. Em conjunto, esses estabelecimentos
produzem uma expressiva quantidade de resíduos, cujo transporte e destino final é de
inteira responsabilidade do poder público. Como todo o serviço de coleta do lixo está nas
mãos da iniciativa privada, cabe à Prefeitura fiscalizá-lo.
103
Em 1984, o lixo hospitalar aparece na imprensa sendo associado pelo poder público
a um enorme perigo de contaminação. Nas últimas duas décadas, tal associação continua
sendo feita por profissionais comprometidos com questões ambientais e de saúde pública,
que alertam para os riscos de contaminação e para a necessidade de cuidados
preventivos.
Ao refletir sobre as soluções que foram sendo propostas para lidar com a questão do
lixo hospitalar, defrontamos com o fato de que tanto o incinerador como o aterro sanitário
ou os materiais descartáveis são elementos representativos do avanço da tecnologia.
Entretanto, como alternativa para resolver certas questões em torno do lixo hospitalar,
esses artefatos acabam por acarretar outros problemas. Tratando-se do incinerador, alvo
de tantas propostas e debates pelas autoridades públicas, não foi um projeto no qual a
prefeitura tenha tomado frente, ao contrário, a breve história da incineração do lixo
hospitalar só contribuiu para acentuar tanto a ausência de planejamento quanto a essa
questão, como a complexidade do tratamento do lixo na cidade.
Um olhar para a trajetória do lixo hospitalar descortina a premente necessidade de
uma ação conjunta entre os setores responsáveis e interessados em encontrar soluções.
Tanto a Comissão de Estudos do Lixo Hospitalar, de 1991, como a Comissão de
Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário, instituída dez anos depois, exprimem a
constituição de políticas públicas ambientais, nas quais o lixo hospitalar se insere, e suas
contradições. Grande parte da indefinição e dos diversos impasses em torno desse
102
Resíduos Sólidos dos Serviços de Saúde Destinados ao Aterro Sanitário”. In: Relatório de Avaliação Ambiental do
Aterro Sanitário, p. 18.
103
Esse levantamento diz respeito ao ano de 2004 e foi obtido junto ao Sr. Marco Aurélio. Observa-se a disparidade
entre o número de hospitais públicos e o de particulares, o que denuncia o crescimento da iniciativa privada na área da
saúde e propicia o reconhecimento de como tem sido tratada com imenso descaso pelas administrações locais, numa
postura política que fere os interesses e os direitos da população, mas beneficia diretamente o setor privado.
222
problema advém do fato de que, ao contrário de outros tipos de lixo, o hospitalar não gera
lucro, senão para quem fabrica aparatos tecnológicos para dar fim a ele ou quem faz de
seu tratamento um negócio.
104
Esses restos deixam de ser atrativos, porque não
constituem uma mercadoria passível de comercialização. Na verdade, são um incômodo
maior, visto que denunciam a precariedade, a lentidão das iniciativas, e o modo como o
governo municipal, os hospitais públicos e particulares e a população precisariam assumir
a questão de forma mais efetiva. Longe de conterem uma valorização, constituírem-se
como lucrativos, os resíduos hospitalares demandam gastos dispendiosos e soluções
consideradas difíceis a exigirem responsabilidade, seriedade e, acima de tudo,
compromisso social com a saúde e a segurança da população por parte das autoridades
públicas e dos dirigentes dos setores público e privado de saúde.
Daí, vimos como a questão do lixo hospitalar se constitui numa especificidade
própria no contexto da problemática do lixo urbano. No entanto, assim como outros
restos, também se articula a um crescimento urbano sem planejamento, o que se reflete
nos resíduos hospitalares despejados à “beira das rodovias”. De fato, o lixo hospitalar é
também fragmento do mosaico de restos produzidos na cidade, com uma significativa
diferença, devido ao seu caráter “perigoso”, ele expõe com muito mais força os diversos
conflitos intrínsecos a essa problemática. Além disso, com toda a carga negativa que
pesa sobre eles, esses resíduos representam mais um dentre os vários fatores de risco
com que se defrontam os trabalhadores do aterro sanitário, de quem falaremos a seguir.
104
Em 2005, instalou-se em Uberlândia, no Distrito Industrial, a Sterlix - ambiental, empresa cujo investimento é tratar
o lixo hospitalar contaminado, a fim de ser disposto no aterro sanitário. Num sofisticado panfleto, ela divulga que presta
serviços em 28 municípios e que, dentre seus clientes, estão o poder público municipal, hospitais da rede privada,
profissionais liberais, indústrias, e empresas de recolhimento de resíduos. Seus métodos consistem tanto no processo de
autoclavagem como de incineração. A presença dessa empresa é indicativa de como a cidade constitui um atrativo
mercado em razão não apenas do volume da produção de lixo hospitalar, mas também dos limites e percalços no
caminho para a busca de alternativas entre os setores sociais locais envolvidos com essa problemática.
CAPÍTULO IV
SOBREVIVÊNCIA E PRECARIEDADE:
O TRABALHO COM O LIXO E SUAS AMBIGUIDADES
Consideramos este capítulo uma dimensão do intrincado da problemática do lixo no
espaço urbano e sua complexidade. Ao abordar a atividade dos trabalhadores da usina de
triagem do aterro sanitário de Uberlândia, vamos nos deparar, também, com vários outros
sujeitos e travar um diálogo que pretende, justamente, apreender elementos desse
universo de trabalho e sua articulação com o gerenciamento do lixo e determinados
aspectos da vida na cidade. Situar historicamente e politizar essas relações permitiu
ampliar o debate acerca de como novas ingerências da sociedade moderna sobre o lixo
desvendam-no como uma mercadoria, e de que maneira isso influiu nos modos de vida
da população mais deserdada da cidade.
Buscamos discutir as implicações do aterro sanitário como empresa, lugar em que
se pretende obter do lixo lucro, e refletir ainda sobre seu significado como espaço de
produção. Por meio dele, os trabalhadores organizam o trabalho e a sobrevivência. Esse
modo de trabalhar tem sido uma forma de subsistência para uma expressiva parcela da
população em muitas localidades deste país. Dialogar com esses sujeitos propiciou uma
percepção de como interpretam o preconceito e a desqualificação social existentes.
O fim do ano de 2002 foi marcado pelo fechamento da usina de triagem de lixo por
determinação da prefeitura. Concluiu-se, depois de um processo de avaliação, que a
empresa não estava funcionando conforme as normas exigidas pelo COPAM Conselho
Estadual de Fiscalização Ambiental.
224
A questão urbana e política em que consistiu a desativação da usina resultou em
prejuízos à cidade. Quanto aos trabalhadores, quase todos ficaram desempregados. Ao
procurá-los depois disso, só obtivemos sucesso com alguns poucos.
Entretanto, uma vez desempregados, sem vínculos e sentindo-se lesados pela
empresa, alguns trabalhadores expuseram interessantes questões que, inclusive,
destoavam dos depoimentos iniciais. O exercício de cruzar essas entrevistas com as
anteriores e também com as de outros empregados que ocupavam postos diferentes
permitiu-nos discutir o funcionamento da usina durante todo o período em que os
trabalhadores lá estiveram e as diversas contradições e ambigüidades desse processo.
UBERLÂNDIA: localização do aterro sanitário na cidade.
Legenda: (1)
Fonte: GUIA SEI, Uberlândia, 1999.
225
O mapa de 1999 propicia situar o aterro sanitário na cidade, lugar onde funcionava
também a usina de triagem, instaurada em 1997, dois anos após a fundação do aterro.
Desde o início, por si só, esse fato acarretava complicações, o contrato entre a prefeitura
e a empresa determinava a implantação simultânea do aterro e da usina. Porém, no
intervalo entre a construção de um e a do outro empreendimento, a Limpel depositava o
lixo no local de maneira irregular e, desse modo, deixou de executar importantes medidas
do processo de licenciamento ambiental. Afinal, hoje se compreende que um aterro
sanitário sem usina de triagem não pode ser definido como tal.
Em conseqüência disso, quando a empresa conseguiu a permissão, por meio dos
órgãos responsáveis, a licença obtida, em vez de ser de instalação (LI) foi caracterizada
como de operação corretiva (LO), porque já existiam vários problemas a serem sanados.
Oito meses depois de sua instalação, foi realizada uma visita de inspeção à usina e
verificou-se que havia uma série de condicionantes a serem retificados; a exemplo do fato
de que “umas das esteiras encontrava-se fora de operação”, e de que não havia um
técnico de segurança do trabalho a fim de acompanhar a atividade dos funcionários.
1
Para iniciar a conversa com os trabalhadores, demos prioridade a determinadas
questões acerca da atividade que realizavam, condições de trabalho, dificuldades mais
comuns em sua realização e a própria trajetória de inserção na empresa. Nesse sentido,
algumas indagações serviram de ponto de partida. Para eles, quais eram os sentidos
daquele emprego? Como era o cotidiano de trabalho e os modos de trabalhar? Como
dominavam os procedimentos e lidavam com as normas existentes? Esses e outros
elementos serviram de referência para apreender os significados atribuídos ao trabalho
com o lixo. De que maneira isso era experimentado? Analisar o dia-a-dia na usina era
defrontar com a realidade ali vivida, expectativas, desilusões, carências e conquistas.
Tudo isso diz respeito a uma cultura de sobrevivência, marcada pela precariedade que,
historicamente, vem se forjando no espaço urbano.
Alguns trabalhadores narraram que esse trabalho possibilitou-lhes um aprendizado
sobre o processo social de aproveitamento do lixo, que começaram a atentar para o
desperdício de recursos contidos em meio aos restos, expressão das contradições
sociais. Em seus depoimentos, eles foram revelando uma percepção de que o lixo sinaliza
atitudes, comportamentos e práticas, o que nos inspirou a refletir sobre como os restos
226
traduzem profundas questões sociais, econômicas, políticas e culturais de nossa
sociedade.
No princípio, ao ouvir as entrevistas, sentíamos um certo desânimo, porque elas
pareciam não ser tão relevantes do ponto de vista da estrutura de funcionamento do
aterro. Com o tempo, constatamos que nos enganáramos, os depoimentos traziam
contribuições fundamentais para compreender a usina como empresa e, ao mesmo
tempo, espaço do qual os trabalhadores se apropriavam. Por mais fragmentadas que se
apresentassem, juntas, as entrevistas articulavam registros que nos permitiriam discutir as
implicações disso.
Em Uberlândia, há vários anos, os trabalhadores haviam exercido diversas
atividades antes de ingressarem na usina, exceto algumas mulheres que há tempos não
efetuavam ocupação remunerada. Um dado que, talvez, tenha relação com o fato de que,
no início, grande parte do quadro de funcionários da usina era constituído por mulheres.
Possíveis explicações para isso é algo que discutiremos adiante.
Há uma série de elementos comuns na trajetória daqueles a quem entrevistamos, a
procedência do interior de Minas Gerais, da zona rural, a vinda para a cidade em busca
de emprego e na crença de conquistar melhores condições de vida. A maioria disse estar
desempregada à época em que começou a trabalhar na usina. Algumas mulheres contam
que souberam da oferta de vagas por meio de cartazes em estabelecimentos comerciais
dos bairros em que moram. A Limpel costumava afixar esses anúncios ou estabelecer um
ponto para inscrições, estratégias para recrutar mão-de-obra. Outros meios mencionados
consistiam em agência de empregos e assistentes sociais para sensibilizar os candidatos.
Ao procurar a empresa, os trabalhadores passaram por uma avaliação e foram
selecionados.
Os trabalhadores antigos moravam em bairros um tanto distantes da região central,
Mansur, São Jorge, Santa Luzia e Tibery. Já os contratados mais recentes residiam nas
proximidades do aterro, bairros Guarani e Tocantins. Outra experiência comum entre eles
era a de estar desempregado, à procura de algo que pudesse garantir a própria
sobrevivência e a da família. Sobre esse processo, Maria Aparecida contou o seguinte:
1
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, Anexo VI (Parecer técnico FEAM nº 071/2001),
p. 02. Secretaria de Ciência e Tecnologia. Prefeitura Municipal de Uberlândia, Administração 2001-2004.
227
Ah, eu estava desempregada, né? E tava procurano trabalho, tava fazeno bico. E eu soube que tava
fazeno entrevista no supermercado do meu bairro e eu procurei. Fui até o supermercado, quando eu
cheguei lá eles estavam fazeno mesmo, entrevista pra ..., seleção de pessoas pra entrá aqui, né? Na
época era a Dinah, a assistente social. Aí ela me perguntou se eu interessaria trabalhá, me mostrou
umas fotos, como era o tipo de trabalho, se eu me importaria de trabalhá com aquele tipo de trabalho.
Eu falei pra ela: É difícil, mais no momento eu estou precisando, e quando a gente está precisando,
você aceita qualqué coisa até você arrumá outra coisa melhor, né? E com o tempo passou e eu
aqui, cinco anos.
2
A trajetória de Maria Aparecida revela as dificuldades que ela enfrentara diante da
ausência de trabalho. Expõe uma realidade vivenciada por enorme contigente de pessoas
em todo o país: a falta de oportunidade de inserção no mercado formal, uma vez
desempregado, passa a ser muito difícil se recolocar. Trata-se da experiência de
trabalhadores também no espaço urbano de Uberlândia, que, por força das contingências,
improvisam a sobrevivência em atividades precárias e provisórias, que, vão tornando-se,
na maioria das vezes, permanentes. Maria Aparecida já lidava com um universo de
precariedade do trabalho, ou, o que era pior, da falta dele. Mas, quando recordou esse
momento, houve importantes aspectos a serem considerados. Ela referiu-se à presença
de uma assistente social explicando como era o serviço, mostrando fotos e perguntando-
lhe se estava preparada para fazer “aquele tipo de trabalho”. Esta cena, a assistente
social e sua tarefa de convencer os candidatos, indica a percepção por parte da empresa
de que a natureza do trabalho demandaria tal empenho. Segundo Maria Aparecida, as
fotos mostravam trabalhadores na usina de Uberaba e, nelas, tudo parecia “muito
organizado”. As estratégias de que a Limpel precisou lançar mão são sugestivas de que
não estava sendo fácil recrutar esse pessoal.
Seja como for, diante da procura sem êxito por emprego, os trabalhadores viram a
atividade no aterro como alternativa frente à extrema necessidade. Isso é reafirmado por
Sílvio de Faria, que trabalhou lá por mais de dois anos, na função de operador de prensa.
Para ele, o trabalho era para ter sido provisório, até que aparecesse algo melhor, o que
não aconteceu. Era por isso que, apesar de insatisfeito, ele permanecia. Sílvio contou que
soube que a Limpel estava contratando por meio de uma agência de empregos:
2
Maria Aparecida Moreira, 34 anos. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
228
Não, eu cheguei na agência um dia, eles disse que tava precisano aqui. Eu já tava andano há bem
tempo. Procurano alguma coisa. Aí eu cheguei aqui, de primeiro eu tive um impacto, um susto, né?
Com isso aqui. Mais eu tava, eu precisava trabalhar. Eu falei assim: eu fico aqui três meses, eu acho
que é o tempo suficiente pra até pintar outra coisa. Aí o tempo passou, até que pintaram outras
coisas, mais nível salarial o mesmo daqui, eu já tava me adaptado aqui. Eu falei: não, eu vou esperar
outra oportunidade. E tô aqui até hoje.
3
Com franqueza, Sílvio declarou que sua primeira impressão foi de susto e, até hoje,
o contato com o lixo causava-lhe um certo nojo. Ainda assim, ele continuou na empresa,
pois precisava. Seu depoimento é representativo de uma situação análoga à de todos os
entrevistados: a busca por um emprego. Mesmo que em situações e condições
diferenciadas, a maioria deles não estava exercendo atividade remunerada alguma
quando foi para o aterro. Dessa forma, os trabalhadores expuseram a falta de
oportunidade em relação a outras formas de trabalho. Suas observações indicam a
consciência que têm de processos de exclusão e marginalização na cidade. A despeito
das impressões negativas sobre o trabalho com o lixo, também expressaram ter sido essa
a oportunidade que surgiu e, diante das circunstâncias, tiveram de enfrentar. Marliete
Araújo trabalhava na esteira. Ela explicou como foi deparar-se com essa possibilidade:
Eu nem sabia que tinha a usina, né? Aí, minha vizinha vei cá e fez inscrição e foi lá e me perguntou:
“Tu num qué entrá na usina não? Lá mexé com o lixo”? Eu quero, tô precisano trabaiá. Só meu
marido (trabalhando) mais ganhava pouquinho. Aí vim cá, fiz inscrição lá na Limpel, no outro dia já
comecei, tô aqui até hoje. Até que eu gosto daqui.
4
Diante das dificuldades pelas quais estava passando com a família, sem emprego e
pagando a prestação da casa financiada, Marliete assegurou que não se incomodava com
o fato de ir “lá mexé com o lixo”. Exercer ocupação pela qual recebesse um salário
representou alívio para o difícil momento que estava vivendo. Ela não foi a única a
declarar que gostava de seu trabalho, houve também quem afirmasse ter se acostumado.
As várias explicações que os trabalhadores elaboravam para falar do modo como viam o
próprio trabalho delimitam intrigantes aspectos das relações em torno do lixo. Os
depoimentos apontam como a implantação da usina em Uberlândia, em 1997, assegurou
a esses trabalhadores inserirem-se novamente no mercado de trabalho local. Isso ocorreu
3
Sílvio Roberto de Faria, 38 anos. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
229
num contexto em que eles, além de estar precisando, não encontraram outra saída. É
preciso lembrar que ela fora instaurada num período que, como toda a década de 1990,
foi marcado por intensa crise econômica. Num momento de recessão em todo o país, a
população mais pobre sentia isso intensamente na cidade, pois as ofertas de emprego
estavam cada vez mais escassas em diversos campos profissionais.
Em suas narrativas, os trabalhadores revelaram os sentimentos que cultivavam em
relação ao trabalho e o que pensavam sobre o lixo, de maneira muito diversa. Assim,
apontaram vários elementos do cotidiano, as dificuldades existentes e as que
mencionaram que foram, aos poucos, superando. Num diálogo inicial, buscamos
apreender aspectos que fossem próprios do trabalho realizado por eles, as
particularidades. Mas, ao solicitarmos que falassem sobre o que achavam mais difícil, uns
diziam não haver dificuldades, outros indicavam características que, na verdade, são
próprias do trabalho em muitas empresas, a exemplo da obrigação de acordar cedo ou
permanecer de pé horas a fio.
Entretanto, ao ouvir outros entrevistados, fomos percebendo que a atitude de falar
do próprio trabalho, comparando suas exigências à de outro qualquer e minimizando-as,
parece ter consistido num mecanismo típico de que alguns se utilizaram para estabelecer
uma interlocução, e poder lidar com um mal-estar advindo da especificidade da própria
ocupação. É admissível que toda atividade profissional contenha seus limites. Mas, para
esses trabalhadores, talvez esse mal-estar fosse de uma dimensão tamanha que não
fosse possível falar apenas dele. Daí, isso constituiu uma tentativa de abordar o
problema, inclusive, de forma mais amena. Explicar que se acostumou ao trabalho é um
exemplo do uso desse subterfúgio. Mas, Dilma, referindo-se ao mau cheiro do lixo,
revelou que nada parecia ser pior:
Ah, foi difícil... O fedor, porque antes num era que nem é hoje não, né? Antes era diferente. Hoje não,
hoje tá muito modificado. Mais antes não, antes aqui era ruim, era triste, melhorou bastante. ... O que
eu achava mais ruim só era o fedor mesmo ... Acostumei, hoje eu acostumei.
5
Na fala de Sílvio, também transparecem as primeiras reações ao ambiente de trabalho.
4
Marliete Araújo Alves Lemes, 42 anos. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
5
Dilma Correia, 27 anos. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
230
Cê pensa: nossa, vou tê que por a mão nisso aqui, convivê com isso. Aí os primeiro dia cê fica assim,
né? Às vezes tem dificuldade de alimentá. Ocê olha pro cê, cê chega a tê nojo mesmo. Eu procuro
assim tê o máximo de higiene possível, pra num se contaminá aqui, levá alguma coisa pra casa...
6
Outra trabalhadora, Edna Trindade, admitiu ainda que aquilo que mais a incomodava
era o odor e os mosquitos. Quando fizemos uma observação a respeito de achar curioso
que não tivesse se acostumado ao mau cheiro, que ainda o sentisse, ela afirmou que
ninguém se “acostuma assim não”. Sentimos constrangimento. Na verdade, por que
imaginar o contrário? Ouvindo-as, avaliamos que o momento em que os trabalhadores se
adentraram à usina, mediante a natureza do próprio trabalho e a precariedade com que
se defrontaram, configurou um verdadeiro teste de resistência. Suportar o odor dos
restos, conter a repugnância, vencer a intolerância inicial, era um primeiro passo para
sentir se conseguiria submeter-se àquelas condições. Como contaram alguns, muitos não
se adaptaram. Isso também nos propiciou refletir sobre o modo como os trabalhadores
agiam nesse processo: o esforço que empreendiam ao tentar adaptar-se continha,
simultaneamente, uma dose de submissão e reação, uma luta interior experimentada por
todos, mas vivenciada individualmente de maneira distinta. Se uns afirmaram ter se
acostumado e até gostarem do trabalho, outros garantiram que jamais se acostumariam e
suportavam-no porque precisavam.
Na narrativa de Dilma, o trabalho na usina parece dividir-se em dois tempos, antes e
depois, o começo e agora. No princípio, era “triste”, era “ruim”, agora “melhorou bastante”.
Na verdade, ela foi contratada pela Limpel poucos meses após o início das atividades e
teve, então, a oportunidade de vivenciar esse processo, que, conforme explicou:
... Era mais perigoso, acontecia mais acidente entendeu? Porque o povo da cidade, eles num tava
nem aí, só que agora não, a prefeitura, né? Acho que é a prefeitura mesmo (diminuiu) muita coisa.
Antes vinha no lixo, até nenezinho a gente encontrava aí, sabe? Coisa de hospital, hospital não, acho
que era de alguma clínica... Muitas vezes não, mas encontrei umas duas ou três vezes ...
7
Ter sido contratada quando a usina começou a funcionar foi uma experiência
vivenciada também por Edna, cujo depoimento contém detalhes importantes.
6
Sílvio Roberto de Faria. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
7
Dilma Correia. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
231
Não, nois ficamos uns três dias, porque não tinha material pra gente. Não tinha uniforme, não tinha
luva. Depois que chegou que a gente foi pra esteira. E aí a gente ficou olhando, observando como é
que eles trabalhavam, né? Porque quando nois entrou aqui, nois entramos vinte e seis pessoas de
uma vez. A gente ficava só observando, que tava bem no começo, eu acho que tinha pouca gente
trabalhando. Aí nois foi direto pra esteira.
8
As narrativas dessas trabalhadoras tornam-se emblemáticas de vários aspectos que
envolvem a questão do lixo na cidade, como os problemas enfrentados durante a
instalação, e a própria trajetória de funcionamento, da usina administrada pela Limpel. A
fala de Edna revela dificuldades que marcaram o início das atividades. Os depoimentos
apontam como os trabalhadores, no começo, estranharam o ambiente, a alta temperatura
sob o galpão de zinco, a sujeira e a lida com a própria inexperiência. Mas, não obstante
essas limitações inerentes à natureza do trabalho, eles precisavam enfrentar, também, a
instabilidade que predominou no processo de gerenciamento da empresa.
Em maio de 1998, o empreendimento contava com 108 empregados, além do
“encarregado geral, Onacir Jorge da Costa, o engenheiro Cláudio Paiva sob supervisão
geral de Heitor Eduardo”, todos funcionários da Limpel. Com o tempo, esse quadro seria
modificado com a contratação de um profissional de segurança do trabalho, por exemplo.
9
As condições em que se organizava o trabalho transparecem, ainda, em um relatório
elaborado pela FEAM (Fundação Estadual do Meio Ambiente), órgão do COPAM, que
fiscalizava as atividades na usina uma vez por ano, geralmente. Esse documento registra
“que o empreendimento vinha sendo regularmente fiscalizado por agentes de inspeção do
Ministério do Trabalho, que classificam a atividade exercida no local como grau de risco
3”.
10
De fato, não eram poucos os entraves, e a própria Limpel foi buscando aperfeiçoar
aspectos da rotina de trabalho em razão de circunstâncias que o exigiram.
8
Edna Pereira Trindade, 35 anos. Entrevista realizada 05 de dezembro de 2001.
9
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário, Anexo VI (Parecer técnico FEAM nº 071/2001), p. 03.
10
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, idem.
Clênia relatou que a atividade na usina era classificada, no que se refere ao grau de insalubridade, de risco à saúde, em
40%, e, de modo semelhante, ao de periculosidade, porque havia risco de explosão. Conversa informal com a autora,
em 29 de dezembro de 2005. Seja como for, no que tange a estas classificações, sua gravidade é definida pela natureza
da lesão resultante de possíveis acidentes do trabalho. A de risco 3 corresponde àquela “que leva ao afastamento do
trabalhador do trabalho por tempo indeterminado ou definitivo, podendo provocar invalidez parcial ou total (amputação
de membros, perda de substância, fraturas graves, queimaduras extensas e graves, contaminação e intoxicações graves,
entre outras) incluindo todas as doenças do trabalho e/ou a morte. In: Novos desafios em saúde e segurança do trabalho.
NETO, Antônio Carvalho e SALIM, Celso Amorim (Orgs.). Belo Horizonte: PUC-Minas, Instituto de Relações de
Trabalho e Fundacentro, 2001, p. 115.
232
Dilma não foi a única a referir-se ao fato de que, no começo, o trabalho era mais
insalubre e, também, a relacioná-lo com a questão do lixo na cidade. Zileila Martins, ao
falar de sua adaptação, contou que a “primeira semana” de trabalho “foi difícil, porque o
lixo acumulava muito” e, ao chegar à esteira para ser separado, já em estado de
fermentação, trazia um odor “horrível”. Segundo ela, naquele momento, tentou-se
processar todo o lixo da cidade nas esteiras, intento no qual se fracassou, passando-se,
então, a destinar grande parte do lixo ao aterro, onde os resíduos eram apenas
enterrados. Outra trabalhadora, Silvany Moreira, explicou que o ritmo de trabalho era mais
intenso àquela época.
O funcionamento da usina implicava um amplo conjunto de atividades. Quando
chegavam carregados de lixo, os caminhões compactadores eram pesados numa balança
apropriada e seguiam levando os resíduos, ou direto para o aterro, onde seriam
soterrados, ou, naquele contexto, para um fosso, em que permaneciam até serem
transportados para a esteira por meio de um braço mecânico. O fato de ir para o aterro ou
para a esteira resultava da origem do lixo, se veio dos bairros periféricos ou do centro,
conforme explicou Clênia Maria, a técnica de segurança, cujas funções estavam
relacionadas com a supervisão dos trabalhadores da esteira.
Esse material de reciclagem, ele vinha pra nós, a gente escolhia os caminhões da região mais central
de Uberlândia e alguns bairros também próximos do centro, porque são pessoas de maior poder
aquisitivo, né? E com certeza devido a isso a gente tinha mais material pra ser reciclado.
11
Mesmo nos dias de hoje, na entrada do aterro, há uma guarita onde um funcionário controla
a passagem dos caminhões e registra os valores apontados pela balança. Isso é feito porque a
empresa é remunerada pela prefeitura conforme a quantidade de lixo destinada ao aterro e não
pela quantidade de resíduos selecionados. Na fotografia abaixo, podemos ver o lixo sendo
retirado do fosso por um funcionário.
11
Clênia Maria Rocha Jerônimo, 42 anos. Entrevista realizada em 12 fevereiro de 2003.
233
Foto 5. Na usina de triagem, funcionários operam a máquina que retira o lixo do fosso. Fotografia produzida
por servidores públicos. Arquivo da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, 1998-2000 (data provável).
De fato, tanto Clênia quanto Cristiano eram responsáveis por gerenciar o
funcionamento da usina. No início, ele era auxiliar de serviços gerais, tendo sido
promovido a encarregado geral do aterro quando contrataram Clênia. Com a nova função,
Cristiano deveria ocupar-se da parte técnica da organização do trabalho, ou de
atribuições teoricamente mais sistematizadas. Porém, no dia-a-dia, tudo parecia funcionar
sob a supervisão do encarregado geral e da técnica de segurança, e seus papéis
pareciam misturar-se de tal modo que, não raro, algumas trabalhadoras reportavam-se a
ambos como “os chefes”. Eles eram a referência para o encaminhamento de eventuais
problemas.
Conforme a documentação aponta, o funcionamento do aterro era coordenado,
ainda, por um engenheiro que, inclusive, elaborava os relatórios trimestrais que a Limpel
tinha por obrigação enviar à prefeitura e à FEAM (Fundação Estadual do Meio Ambiente).
Nesses relatórios, a empresa registrava como vinha executando os serviços e prestava
conta das alterações que eram exigidas pelo órgão após as visitas de inspeção realizadas
periodicamente. Em se tratando do percurso dos restos no interior da usina e de todo o
processo produtivo que os envolvia, é Clênia quem, novamente, esclarece.
234
... Bom, o material que a gente passava ali pela triagem. A gente passava logo no início
aproximadamente de 150 a 180 toneladas por dia, a gente passava pela linha de triagem. E lá
funcionava da seguinte maneira: nós tínhamos um equipamento, onde trabalhava um funcionário, a
função dele era tá abastecendo as esteiras com uma garra, é assim que a gente chama o
equipamento. E esse material ia passando lentamente pelas esteiras, né? E onde o pessoal separava
lata de alumínio, papelão, vidros e garrafas de plástico, que a gente chama de PET, e um outro
material que a gente chama de plástico duro. E esse plástico duro são vasilhames de xampu, quiboa,
detergente, né? Esse material era separado na esteira, colocado nos tambores e carrinhos, era
transportados, né? Pelo ajudante geral pro setor das prensa. Lá, esse material era prensado, né?
Amarrado com arame, isso é fazer fardos, né? E depois esse era transportado prum pátio de estoque.
Além disso, a gente fazia também o composto orgânico, que seria terras, os restos de frutas, alimento
... Aí a gente coloca ele diretamente no pátio, alguns funcionários tiram algum pedacinho de madeira,
alguma coisa, né? Pra num estragá a máquina e fica lá em decomposição, depois vai ser triturado
esse material, depois peneirado.
12
O depoimento de Clênia teve o mérito de auxiliar na compreensão de como se
estruturava, de maneira geral e com certa objetividade, o trabalho na usina. De acordo
com a técnica de segurança, para o processo de reaproveitamento dos restos, em 2002,
quando a usina, então, passava a funcionar com apenas uma esteira, havia cerca de 60
funcionários. Dividiam-se em diferentes funções: 40 eram serviços gerais (atuavam na
esteira), 12 carrinheiros, 06 operadores de prensa, além dos operadores de garra e de
máquina, motoristas e porteiros.
Já o depoimento dos trabalhadores, quase sempre, apresentava aspectos
específicos, que ressaltavam a natureza do trabalho, porque profundamente marcados
pela percepção e vivência adquiridas no dia-a-dia na usina. Conforme disseram algumas
trabalhadoras, segunda-feira era o dia mais difícil em razão de lidarem com o lixo que
permanecia acumulado no fosso durante o fim de semana. Quanto a isso, Dilma relatou:
(O) fedor do lixo, principalmente, na segunda feira é bravo. Cê chega aqui na segunda feira pro cê vê
o fedor, é triste. Porque é o lixo da noite e do sábado. Fica dentro daquele buraco entendeu?... Na
segunda feira, nois vai mexê nele. Ele passou a noite, acho que eles pegam no sábado de dia...
13
Segunda-feira era realmente o dia mais complicado. Esse fato a que Dilma se referiu
foi confirmado pela técnica de segurança, argumento que usou para que marcássemos as
12
Clênia Maria Rocha Jerônimo, entrevista realizada em 12 fevereiro de 2003.
13
Dilma Correia. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
235
entrevistas a partir de terça-feira. No que tange à maneira como se estruturava o trabalho
na usina, avaliamos que, a despeito da precariedade, havia a instituição de um controle e
de um conjunto de regras. Exemplo concreto era a presença da esteira, porque traduzia a
imposição de um sistema de trabalho, exigindo e imprimindo ritmo aos movimentos dos
que ali estavam. Era uma máquina determinando o procedimento a ser executado,
semelhante a uma linha de produção, como se vê por meio desse depoimento:
... No meu caso, a gente são seis pessoas na frente. Então na frente, essas seis pessoas, a gente vai
abrí, rasgá, abrí a sacolinha com a faca. Então eu trabalho na função de abrí. E mais pra frente tem
minhas colegas que já estão catando. E aí cada um tem um processo de separá o reciclável.
14
Maria Aparecida esclareceu acerca do processo de trabalho, a disposição dos
funcionários na esteira e as diferentes funções executadas: abrir os sacos de lixo e dispor
os resíduos para os colegas que os separavam. As trabalhadoras asseguraram que,
geralmente, quem rasgava os sacos estava propenso a machucar-se, pois, ao fazê-lo,
poderia deparar com objetos cortantes ou produtos tóxicos. Falaram também sobre a
necessidade de empregar certa força física devido ao peso dos sacos e à dificuldade em
abri-los, por isso, usavam uma faca afiada para a execução dessa tarefa, o que
acarretava outro risco. Silvany explicou que, na seleção dos materiais reaproveitáveis,
havia também exigências.
É um serviço que num cansa muito fisicamente, cansa mentalmente, porque você precisa estar
concentrada, né? Porque se ocê num concentrá, as coisas passam, você num vê! Então, cansa muito
mentalmente, precisa estar ligada mesmo pro cê fazê um serviço melhor. Se ocê desligá, aí num tem
como cê trabalhá. ... Então, tem que tá atenta àquilo ali, ela tá ali rodano, eu vô tê que tá olhando pra
ela, se eu ficá olhano pra lá pra cá, eu num vô vê nada que tá passano ... se é o meu produto, eu
pego, se num é eu deixo pro outro, né?
15
A fotografia abaixo mostra os trabalhadores selecionando o lixo na esteira.
Observamos que, sem se aproximar muito deles, quem registrou a imagem pareceu ter se
preocupado mais em evidenciar o equipamento, a organização do trabalho, a amplidão do
espaço e menos os sujeitos que ali atuavam ou a expressão de suas faces.
14
Maria Aparecida Moreira, 34 anos. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
15
Silvany Moreira de Freitas Andrade, 37 anos. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
236
Foto 6. No galpão de triagem, trabalhadores separam materiais recicláveis do lixo. Fotografia produzida por
servidores públicos. Arquivo da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, 1998-2000 (data provável).
Cansaço mental, necessidade de concentração, preocupação em pegar um produto
e não outro, todas essas características foram descritas pelas trabalhadoras. São
aspectos que demonstram a imposição de um ritmo de trabalho e de uma permanente
disciplina, cessando somente ao se desligar a esteira. Um rigor acentuado pelo fato de
que, segundo elas, a organização e a disposição na esteira para recolher os materiais
exigia agilidade e sintonia, o que significava não poder sair do lugar sem comunicar o
colega e ter sua saída condicionada à presença dele. Se alguém precisasse deixar a
esteira, por algum motivo, deveria avisar ao outro, a fim de não prejudicar o rendimento
do trabalho, controlado pela máquina. Uma situação que colocava os trabalhadores na
condição de ter de dar satisfações ao parceiro para afastar-se da esteira, e, dependendo
da relação estabelecida, oferecia a oportunidade de controle e vigilância de uns sobre os
outros. Desse modo, as regras de organização do trabalho sugeriam a imposição de um
rígido sistema. A exemplo do fato de que, se um deles precisasse trocar de atividade, por
estar exausto, deveria primeiro falar com a técnica de segurança, uma vez que os critérios
237
para a rotatividade nas funções ficavam a seu encargo. Não era permitido que
negociassem entre si a posição na esteira nem o material a ser selecionado.
Para os trabalhadores entrevistados, algumas tarefas eram mais exigentes, como
permanecer na ponta da esteira e rasgar os sacos. Dilma contou sobre as dificuldades de
quem, semelhante a ela, ficava exatamente nessa posição.
... Porque o nosso serviço, a maioria do pessoal trabalha num lugá que num é muito forçado, mais já
tem uma parte que é mais forçado, igual da metade da esteira pra frente, que é cortá, pegá rejeito,
entendeu? Porque o rejeito é aquele sacão pesado ... tréim pesado que vem, terra, esses tréim
assim, ... cê tem que rapá, papelão molhado que é muito pesado também, aliás até já pegamo, cê
tem que tirá o plástico filme, que aquele plástico preto cê tem raspá o saco prá tirá o cisco, que tá
pesado, senão rasga, né? Só isso de mais difícil que tem, porque os otros lá de separá é mais fácil,
mais manero, que é pegá o pet, a lata, latinha, tá tudo mais fácil. Mais difícil que tem é só isso
mesmo, e o rejeito né?
16
Dilma falou da especificidade de cada lugar na esteira, das diferentes atribuições
que se tinha conforme essa divisão. Descreveu aspectos do processo de trabalho,
ressaltando tarefas consideradas como exaustivas por demandar maior esforço físico:
cortar, abrir os sacos de lixo e lidar com o rejeito na esteira.
O rejeito é tudo aquilo que não é aproveitável, nem na triagem nem na produção do
adubo, devendo ir para o aterro, desde pedaço de madeira até fralda descartável, papel e
absorvente higiênico, tecido, embalagem a vácuo ou confeccionada com materiais
diversos, a exemplo de papel carbono e isopor. De um lado, pela sua própria constituição,
o rejeito é matéria cujo destino é mesmo ser enterrado, não se pode defini-lo como sobra
ou resto, porquanto não oferece serventia alguma. De outro lado, ele é muito
característico da vida urbana, que pode ser qualificada pelas formas de produção de lixo,
é expressivo de determinadas mudanças nos hábitos de consumo sociais, de novas
práticas impregnadas da idéia de adjetivos como prático, fácil, rápido e moderno.
Assim, a despeito de declarar que, com o passar do tempo, foram acostumando-se
ao trabalho, havia tarefas que os trabalhadores admitiam ser mais exigentes fisicamente.
Ah, tem dia que tem, porque a gente, igual, às vezes, que, não é todo dia que tem lixo na esteira,
quando não tem lixo na esteira, às vezes, a gente tem que fazer outra atividade. A gente vai catá
papel, catá plástico, que tem que deixá sempre limpo. O aterro lá em baixo, a gente sentimos dor nas
16
Dilma Correia. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
238
pernas, dor na coluna, mas o dia que é mais desgastável é o dia que a gente desce pro aterro, que lá
tem o biogás; quando é de tarde, a gente fica que não agüenta. Aí a gente não tem o mesmo
preparo físico, a gente já sente dificuldade de subir na escada...
17
Ione referiu-se a aspectos do trabalho considerados precários e propiciou o
conhecimento de certos detalhes da rotina do aterro. Se, por algum problema mecânico,
ou em razão da falta de energia elétrica, a esteira não funcionasse, os trabalhadores
realizavam outras tarefas: deveriam varrer toda a parte superior da usina, área que ficava
exposta ao público, isso era feito, sobretudo, caso visitantes estivessem sendo
esperados. Havia enorme preocupação em apresentar o aterro como um ambiente limpo,
arborizado, agradável, em contraposição a imagem cultural predominante de aterros
sanitários, a de lugares de lixo, sujeira, mau cheiro, inseto. A outra atividade a que Ione
fez alusão, “descer para o aterro”, era avaliada como sendo por demais insalubre, porque
implicava trabalhar sob o sol quente, respirar o gás que exala do lixo e curvar-se sobre o
solo para recolher os refugos, motivo das dores nas pernas e na coluna. Nos
depoimentos, os trabalhadores referiam-se a tarefas que denominavam como “tirar o
rejeito”, fosse na esteira ou no aterro, e é preciso confessar que muito tempo se passou
para que entendêssemos o que realmente era feito.
De fato, quando desciam para o aterro, onde eram cavadas as valas para soterrar o
lixo, eles deveriam apanhar o rejeito que ficava por cima da terra após os tratores já terem
recoberto o lixo. Por que isso era necessário? A explicação é que a empresa alugava
máquinas para soterrar e compactar os refugos e pagava-as por hora. Se os veículos
demorassem muito a remover a terra para recobrir totalmente o lixo, a Limpel teria
maiores gastos. Daí, os trabalhadores coletarem o rejeito e o ensacarem a fim de ser
enterrado. Segundo a técnico de segurança, isso era ainda mais comum em “época de
ventania”, confirmando o que dissera Ione a respeito de, por vezes, eles precisarem
realizar esse trabalho, inclusive, na área em que se depositava o lixo hospitalar.
18
A tarefa de lidar com o rejeito no aterro era sentida como mais extenuante do que
lidar com ele na esteira, de tal modo que as mulheres começaram a reclamar dos danos
que acreditavam que essa tarefa causava à sua saúde. Quanto a isso, Dilma esclareceu:
17
Ione Ribeiro, 33 anos. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
18
Essas informações foram fornecidas tanto por Ione, em sua casa, quanto por Clênia, no aterro sanitário. Conversa
informal com a autora, em 28 e 29 de dezembro de 2005, respectivamente.
239
Mais difícil que tem é só o rejeito, né? Só que nós mulher, nois num mexe com o rejeito lá embaixo,
só cá em cima. Antes era, era mulher..., só que comô a dá muito problema nas mulheres, aí tirô.
Nos braços, que é muito forçado, sabe? Aí começou dá dor no braço, eles com medo de prejudicar
mais, né? Eles tirou as mulher lá de baixo. Aí vai só homem.
19
Dilma assegurou que possíveis reclamações por parte das mulheres teriam
conseguido alterar, nesse aspecto, a organização do trabalho, fazendo com que
deixassem de descer para o aterro. Curioso é que, quando comentamos esse fato com
Ione, tempos depois e fora do espaço do aterro, ela negou que a empresa tivesse cedido
às pressões, embora confirmasse que algumas mulheres tenham mesmo reclamado.
Assim, pareceu estabelecer-se uma contradição entre o depoimento de ambas as
trabalhadoras, inclusive, isso também ocorreu quando comparamos a fala de Ione à de
Edna a respeito de algumas mudanças na natureza das relações na usina.
Olha, eu acho que hoje seria mais fácil do que quando a gente entrou. Porque quando a gente entrou
aqui era muito mais difícil, era mais severo... Os chefes, quando a gente entrou aqui, era diferente,
eles era muito severo, um pouco rígido, pegava muito no pé da gente. Hoje não, hoje a
gente tem
mais liberdade. Hoje a gente conversa uns com os outros, e eles não gostava disso, não gostava que
ficasse conversando. Hoje não. O Cristiano, que é o chefe, graças a Deus, ele é uma pessoa muito
comunicativa. Se tiver algum problema, a gente chega nele, procura resolver pra gente. Acho que
hoje seria muito mais fácil pra pessoa entrar aqui do que quando a gente entrou.
20
Em sua narrativa, Edna explicou que o rigor antes existente cedeu lugar ao diálogo,
à negociação. Mas sua fala expressou como, durante certo tempo, houve tentativas de
determinar que os trabalhadores sequer conversassem entre si. Ao falar sobre o assunto,
Ione apresentou uma visão diferente e não identificou tais mudanças:
... Ao decorrer do tempo, assim, eu fui cada dia mais pensando assim: - não, vai melhorar, sei lá, que
os funcionários assim, eles ia ter mais assim, aspecto assim de poder opinar naquilo que tava
prejudicando. Só que era até o contrário, quanto mais cê... eles até evitava, que às vezes a pessoa
reclamava, eles sempre agia assim com, num sei, com implicação, né? Ou então, cortava a cesta,
sempre arrumava um jeito de fazer com que os funcionários não tivesse liberdade pra isso. ... Era, era
muito difícil, porque lá, assim, dependendo do que cê falasse assim que era contra a empresa, não
contra a empresa, mais contra aquele serviço que tava te prejudicando, ali era motivo de docê tá
19
Dilma Correia. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
20
Edna Pereira Trindade. Entrevista realizada 05 de dezembro de 2001.
240
chamando pra brigar. Assim, eles viam como essa forma. Tanto é que muitas pessoas eles
mandaram embora, depois falava: “Ah, fulano conversava demais!” Porque ali cê num tinha direito
de tá reclamano.
21
Embora se contrariem e tenham sido emitidos, em circunstância e espaço
diferenciados, num intervalo de quase dois anos, esses depoimentos deixam transparecer
determinados aspectos das relações que se estabeleciam na usina. A exemplo de como a
empresa lidava com sugestões que emergiam nas rotinas de trabalho. Uma indisposição
para o diálogo que, segundo Edna, alterou-se com o tempo, mas que, conforme Ione,
prevaleceu do começo ao fim.
Acostumada que estivesse a ficar de pé várias horas seguidas, Ione afirmou que
cuidar do rejeito no aterro era exaustivo e, em um segundo depoimento, demonstrou
indignação ao falar o que pensava que a tarefa significava para ela:
Não, a nossa saúde, eu penso assim, que no caso, nós tínhamos o equipamento, na esteira nós
tínhamos o material, mas lá no (aterro não). Eu acho que eles não preocupava tanto com a saúde
não, senão não mandava a gente lá pro aterro no meio daquele sol de 40 graus, porque virava uma
estufa, se a temperatura tava 25, chegava lá por causa do gás ia pra uns quarenta, quarenta e cinco
graus. Eu acho assim, eles não preocupou tanto com saúde não, porque se eles tivesse
preocupado...
22
Ione ofereceu uma dimensão mais ampla das dificuldades que os trabalhadores
enfrentavam, e de como eles classificavam-nas, porque, numa eventual hierarquia das
atividades, lidar com o rejeito era o que consideravam o pior a ser feito. Ione contribuiu
para essa impressão, quando assegurou que nem todos os trabalhadores eram
designados a cumprir tal tarefa, os que tinham mais afinidade com os chefes conseguiam
esquivar-se da ingrata obrigação.
A exploração presente nas relações de trabalho na usina instiga-nos a refletir sobre
a maneira como, nesse sistema, muitos homens e mulheres, todos os dias, são
expropriados de suas energias, o corpo do trabalhador é sugado à exaustão, até ser
considerado não mais rentável. A força física, sempre tão necessária, importante bem de
que dispomos, é empregada conforme os interesses dos que se apropriam dela e dos
21
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em junho de 2003. Por essa época, os trabalhadores já haviam sido demitidos pela
Limpel. Ao longo do texto, discuto a especificidade dos depoimentos colhidos nesse contexto.
22
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em junho de 2003.
241
rendimentos que produz. Com a saúde comprometida, os trabalhadores se vêem lutando,
com muita dificuldade, para se proteger ou se recuperar, usurpados de algo tão precioso,
explorados e não reconhecidos pelo que fazem.
23
Os entrevistados relataram, ainda, a respeito de uma exigência quanto à
produtividade. Havia uma determinação da empresa de que receberiam “o prêmio”
conforme os lucros obtidos com a venda dos materiais, dez ou quinze por cento do valor
seria repartido entre eles. Essa era, certamente, uma maneira de estimulá-los. Recurso
que, de forma sutil, servia para exigir maior produção e interferir no ritmo de trabalho.
Outro exemplo de normas definidas pela empresa, que gerava desagrado entre os
trabalhadores, configurava-se nesta situação: a restrição para ausentar-se, mesmo para
uma consulta médica, pois isso significaria ser privado dos tickets de alimentação e,
inclusive, de receber pelo respectivo dia de serviço, mesmo apresentando um atestado
médico. Ione referiu-se a essa estratégia de controle da empresa.
Eu penso assim que a gente quando fosse mandado embora, ou de seis em seis meses, tinha que tê
um exame de tirá chapa do pulmão, porque a gente geralmente não tem a mesma ...,igual se a gente
for só, pede atestado, perde o dia, perde os tickets, perde tudo. Então a gente num tem condição de
ficá indo no médico pra tá acompanhano a saúde da gente.
24
Revelando uma preocupação com a saúde, ela demonstrou sua consciência de que
determinados direitos dos trabalhadores não estavam sendo respeitados. É difícil precisar
se essa postura da empresa era um mecanismo para lidar com o absenteísmo de modo
geral, ou se era uma tentativa de inibir o número de funcionários que se ausentavam em
decorrência dos acidentes de trabalho. De qualquer forma, ambas as situações
demarcam importantes aspectos do universo de trabalho na usina, porque evidenciam o
embate entre os trabalhadores e a empresa, que se utilizava de determinadas estratégias
a fim de constrangê-los a não exigir certos direitos. Esses exemplos evidenciam as
relações de conflito e exploração que, para alguns, não passavam despercebidas.
Ademais, havia, no próprio espaço do aterro, uma diferenciação quanto ao
tratamento dado aos trabalhadores. Atentamos para isso na ocasião em que indagamos a
uma funcionária se o salário era igual para todos que atuavam no setor de triagem.
23
Atentemos para o fato de que à força soma-se a exigência da resistência física e da submissão, elementos sempre
presentes, de maneiras distintas, na experiência de diversas categorias de trabalhadores; dos carregadores de
mercadorias às trabalhadoras domésticas e tantos outros.
24
Ione Ribeiro, entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
242
Joselita pareceu hesitar ao responder: “É, na carteira é”.
25
Fizemos semelhante
pergunta a outros e soubemos que havia uma diferenciação no salário conforme a função
exercida. Perto do galpão onde se localizavam as esteiras, havia o setor de prensas, para
onde os carrinheiros transportavam os resíduos já selecionados que retiravam dos
tambores. Utilizando as máquinas, os operadores compactavam os materiais recicláveis
em fardos de peso e tamanho variados. Conquanto permanecessem todos no mesmo
espaço, carrinheiros e operadores, o fato de exercer funções distintas interferia nas
relações que se estabeleciam entre eles e aqueles que atuavam na esteira. No que se
refere à diferença salarial, Sílvio mencionou que havia “três faixas salariais” e que o
pessoal da esteira recebia o menor salário. Mas essa não era a única desvantagem para
esses trabalhadores. Segundo Dilma, não havia muita afinidade entre eles, da esteira, e
os outros, “os da prensa”:
Ah, os que mexe lá na prensa a gente não tem trânsito com eles não, sabe? Aliás nois nem entra lá
dentro nas prensa, nois da esteira num entra nas prensa não. ... Conversá, nois conversa. Só que lá
da prensa, eu acho que o serviço, eles acham que lá é melhor do que o nosso, entendeu? Uma que
eles também só faz o serviço que já vem de nois. Se num fosse nois eles num faiz nada, entendeu?
Lá eles num gosta porque eles só tão trabalha no enquanto nois tamo mandano serviço pra eles.
Comparação: se nois num dé serviço pra eles, eles num trabalha. Se nois, dizê assim, nois pará na
estêra, eles num tem serviço lá nas prensa. Porque eles só dá pra fazê o que a gente manda da
estêra pá prensa ... É melhor, eles num mexe mais com o fedor, nois mexe mais. Pior que tem é só a
esteira mesmo. Nois da esteira, nois güenta de tudo.
26
Dilma revelou aspectos de uma hierarquia social que se estabelecia dentro da usina.
Em sua avaliação, aqueles que atuavam na prensa acreditavam que o trabalho realizado
por eles era melhor do ponto de vista da aceitação social. Embora tenha constatado isso,
ela inverteu essa relação, valorizando a importância de seu trabalho e o de seus colegas.
Dilma afirmou que, se o pessoal da esteira não selecionasse os materiais recicláveis,
nada haveria para se fazer nas prensas. Admitindo o que nomeou de “uma certa
inferioridade”, ainda que velada, sentida pelo pessoal da esteira, Salvador dos Santos
recordou-se de que estranhava que quase nunca os chefes chamassem a atenção
daqueles que lidavam com as prensas.
27
25
Joselita Andrade Silva, 34 anos. Entrevista realizada em 20 de setembro de 2001.
26
Dilma Correia. Entrevista em 23 de julho de 2002.
27
Salvador dos Santos Alves, 45 anos. Trabalhou na usina por três meses no ano de 1999. Localizei-o quase por acaso,
pois, num dia de domingo em que eu andava pelas ruas de seu bairro, procurando por alguns trabalhadores, certos
243
Analisando o modo como os trabalhadores vivenciavam as tensões na usina, como
lidavam com a hierarquia ali instituída e a interpretavam, defrontamos com a
complexidade desse universo de trabalho. A forma de organização existente acarretava
uma divisão social da qual muitos tinham plena consciência, porque se concretizava com
a delegação das atividades, com a hierarquia e as relações de poder inerentes a ela. Não
era apenas o trabalhar com o lixo que estava sujeito ao preconceito social, os
trabalhadores experimentavam-no em maior ou menor proporção conforme a distribuição
de tarefas no interior da empresa.
Para além das diferenças entre integrar o grupo “dos da esteira”, ser carrinheiro ou
prensista, marcadas pela proximidade ou distanciamento no contato físico com o lixo,
havia também outro fator de valor simbólico e com profundas raízes na desqualificação
social que os trabalhadores diziam sentir. A técnica de segurança e o encarregado geral,
chefes que eram, simbolizavam, de certa maneira, elementos como autoridade,
capacidade de mando e saber técnico. Desse modo, em meio às relações de conflito no
ambiente da usina, tais aspectos tinham profundo significado e influência.
Avaliamos que é possível fazer uma releitura que desvende como os trabalhadores
lidavam com as contradições existentes, de que maneira interpretavam-nas e, ao fazê-lo,
alguns estabeleciam contundentes críticas ao que viam. O que contavam a respeito do
processo e das condições de trabalho, das tentativas de propor soluções diante dos
problemas rotineiros enfrentados, demonstram que tentavam interferir e modificar as
circunstâncias, dentro dos limites que se apresentavam.
Não raras vezes, nos depoimentos, os trabalhadores sugeriam novas atitudes que
as pessoas deveriam assumir com relação ao lixo. Essas narrativas passavam a incluir
outros sujeitos, “o povo da cidade”,
28
que descarta seu lixo sem muita preocupação com o
que vai acontecer, quem vai manipulá-lo e, talvez, ferir-se, e retratavam uma complexa
realidade em que o poder público é que teria que intervir e buscar solução. Maria
Aparecida, reproduzindo a fala da assistente social com quem conversou, discorreu sobre
certos limites do trabalho:
Ela falava: “Olha, é um tipo de trabalho difícil porque vocês vão trabalhá com o lixo. Então você imagina o que
você coloca no lixo de sua casa, é o que você vai trabalhá”. Às vezes, até a gente que é mais pobre, humilde,
né? Vamos dizé, tem mais cuidado, que você não vai coloum gato num saquinho de lixo. Você não vai colocá
moradores falaram-me dele. Ao procurá-lo, fui recebida por ele em sua casa. Nosso diálogo interessante, Salvador
revelou-se um homem simples, simpático e extrovertido. Conversa informal com a autora em 06 de junho de 2004.
244
um cachorro pra mandá pra coleta de lixo. Geralmente, a gente tem o cuidado de ou enterrá ou então pedi a
carrocinha pá tirá, né? E às vezes vem pra cá este tipo de material. Foi o que ela me falou, esse tipo de coisa. Aí
eu vim, pensei e fiquei. Não sei se é por devido à necessidade, é um trabalho difícil, não é fácil de trabalhar, mais
como eu estava precisano e comecei a acostumá, né?
29
Maria Aparecida retratou aspectos do que significava o contato diário com o lixo:
enfrentar o imprevisível. Outros trabalhadores também contaram que, além de penas de
aves, deparavam-se com gatos e cachorros mortos, em conseqüência de um costume de
setores da população de colocá-los no lixo em vez de enterrá-los. Duas entrevistadas
mencionaram, que certa vez, encontraram uma criança morta no saco de lixo e que isso
provocou um choque entre os trabalhadores. Sinais de que o trabalho com o lixo revelava-
se como uma atividade marcada por circunstâncias inusitadas, levando-os a observar
hábitos culturais próprios de determinadas classes, e diversos aspectos sociais inerentes
a eles.
Quando Zileila enumerou as dificuldades de quem começa a trabalhar na esteira,
ressaltou o odor dos resíduos, o cansaço de permanecer de pé ao longo de toda a
jornada, o ato de observar o movimento da esteira trazendo o lixo, pois, segundo ela, no
princípio isso deixa a pessoa tonta. Essas e outras impressões também foram apontadas
por Silvany:
Achei difícil colocar a mão lá, pegá aquelas coisas, o mau cheiro, isso que eu achei difícil. Minha
maior dificuldade era essa, sabia que eu ia ter que mandar a mão na massa mesmo, né? Cheguei
aqui tinha equipamento: luva, avental, máscara, uniforme, tudo, né? Até nos primeiros dias, assim,
num foi tão difícil. Pensei que seria mais difícil, mais num foi. Logo eu me acostumei. É um serviço
que num cansa muito fisicamente, cansa mentalmente, porque você precisa estar concentrada, né?
Porque se ocê num concentrá, as coisas passam, você num vê! Então, cansa muito mentalmente,
precisa estar ligada mesmo pro cê fazê um serviço melhor. Se ocê desligá, num tem como cê
trabalhá... Então, tem que tá atenta àquilo ali, ela tá ali rodano, eu vô tê que tá olhando pra ela.
30
As narrativas desenham a experiência: a resistência inicial diante da visão do lixo.
Retratam o ambiente, equipamentos, normas, dificuldades, necessidades de atenção e
agilidade na esteira, sensações de tontura, enfim, as exigências próprias da natureza do
trabalho. Tudo isso foram elementos presentes em vários depoimentos. Zileila recordou a
própria adaptação:
28
Dilma Correia. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
29
Maria Aparecida Moreira. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
245
É, tudo na vida a gente tem que, é como se diz, fazer o que gosta, né? Cê fazendo as coisas, você
vai tomano gosto pelo que você fez, né? Tá fazeno, né? Então, eu acho assim, da minha parte eu
gosto de trabalhar aqui. Mas, no início, pra mim, foi um pouco complicado, né?
31
Essas trabalhadoras descreveram a relação que estabeleciam, inicialmente, com o
trabalho, os obstáculos e o acostumar-se a eles. Asseguram que, ao serem vencidas
algumas resistências, pode se tomar gosto pelo que fazem. Dessa maneira, os
depoimentos deixam entrever dois movimentos simultâneos: num primeiro momento, os
trabalhadores apontam a atividade que realizavam como igual a qualquer outra,
suavizando sua natureza; logo em seguida, um movimento de auto-afirmação, em que
eles buscam fazer-se sujeitos nesse processo. Superando resistências ou acostumando-
se às dificuldades, reafirmam-se como trabalhadores na luta pela sobrevivência.
Nessa perspectiva, as impressões dos trabalhadores acerca do próprio trabalho são
marcadas por muitas ambigüidades. Alguns o vêem como um trabalho sujo, como Sílvio,
que dizia ainda hoje sentir certo asco. Mas, para todos, mesmo os mais experientes, atuar
com os restos acarretava sempre o risco de cortar-se com objetos pontiagudos que
poderiam vir junto, agulhas, fragmentos de metal e cacos de vidros. Zileila, por exemplo,
assegurou que o uso da luva não oferecia proteção suficiente e que, em meio ao lixo,
"não se sabe o que vem”. Ao falar daquilo que os refugos continham, ela traduziu, em
parte, a fragilidade dos trabalhadores, pois estavam propensos a todo momento a deparar
com algo considerado ameaçador.
Silvany, expondo sua visão, descreveu a atividade que fazia como perigosa, em que
corria o risco de machucar-se com objetos cortantes e perfurantes. Ela explicou que
encontravam no lixo grande quantidade de agulhas devido ao fato de que muitos, por
terem pessoas doentes em casa, fazem uso de seringas e agulhas, mas descartam-nas
sem muita cautela. Já Ione Ribeiro declarou acreditar que, possivelmente, trata-se de
certos estabelecimentos de saúde, localizados nos bairros, nos quais os veículos
específicos, que fazem a coleta do lixo hospitalar, não recolhem esses resíduos com a
devida regularidade. Essa foi sua explicação para a tamanha quantidade de agulhas que
encontravam no lixo. Ressalte-se como essa questão, apontada pelos trabalhadores,
denuncia a necessidade de as pessoas pensarem sobre o que descartam e de que
30
Silvany Moreira de Freitas Andrade. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
246
maneira o fazem. O fato de os trabalhadores acharem seringas, agulhas, materiais que
foram usados para fazer curativos, e relatarem ter medo de se contaminar, torna evidente
não apenas a íntima ligação entre lixo e saúde pública, como também a negligência da
maioria das pessoas, que assim desprezam esses refugos, por falta de informação, de
consciência, ou por descaso. As trabalhadoras mostraram-se conscientes frente essa
realidade, interpretando-a e demonstrando ter potencial para sugerir normas de
tratamento do lixo tanto na usina quanto na própria cidade.
32
Silvany e Ione contaram que já haviam se espetado com agulhas no lixo. Ione
machucou-se três vezes, tendo perfurado o dedo. Só não houve nada grave, a exemplo
de uma infecção, porque eram vacinadas. Conforme ela mencionou, os trabalhadores
tomavam uma vacina antitetânica, e mais duas, uma contra hepatite B e outra contra
febre amarela. Curioso é que, quando perguntamos se a vacinação foi feita logo que
foram contratados, Ione negou, assegurando que somente depois de dois anos a
empresa começou a executar esse procedimento. Isso se confirmou por uma informação
dada por Clênia, que esclareceu ter sido ela própria quem começou a organizar o sistema
de vacinação, o que ocorreu assim que foi contratada. Ainda sobre essa questão, no
Relatório de Avaliação Ambiental, encontramos um parecer da FEAM, alegando que,
numa vistoria realizada em abril de 1999, o órgão foi informado de que os trabalhadores
“estavam vacinados contra tétano”, e somente isso; ao passo que, em 2001, numa outra
inspeção, registrou-se que “estavam vacinados contra tétano, febre amarela e hepatite B”.
Durante esse intervalo de dois anos, não há referências de que tenham sido feitas visitas
à usina.
33
Além do perigo de cortar-se com determinados objetos, os trabalhadores
mencionaram outros riscos a que estavam expostos, como o da contaminação com
produtos químicos e tóxicos. Ione também chamou a atenção quanto a esse problema:
Igual às vezes passa muito amoníaco, sabe? Um material forte igual amoníaco, num sei se o cheiro
afetou. Eu mesma já suspeitei, uma vez eu respirei um material que eu não sei quê que era. Eu sei
que me sapecou muito a garganta, o pulmão, fiquei muito tempo com dificuldade de respirar. E às
31
Zileila Martins de Melo Costa, 29 anos. Uma das primeiras trabalhadoras com quem conversei. Entrevista realizada
em 20 de setembro e 05 de dezembro de 2001.
32
O fato de que os trabalhadores encontravam resíduos hospitalares no lixo doméstico diz respeito também à
responsabilidade da sociedade quanto à produção desses restos. Um aspecto que, como já apontamos, não tem sido
levado em consideração no debate sobre a questão do lixo hospitalar na cidade.
33
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário, Anexo VI (Parecer técnico FEAM nº 071/2001), p. 04.
247
vezes também quando a gente respira, mesmo com a máscara, respira algum tipo de gás, a gente,
bom, eu quando vai fazê limpeza lá embaixo, quando é de tarde a gente não agüenta nem respirá. ...
Vem em embalagem, quando assim, geralmente é uns produto, vidro escrito, é : “veneno”. Aí a gente
já nem abre, já tem o lugar certo de mandá pra enterrá, né? Agora quando tem uma coisa aberta,
rasgada, né?
34
Situação semelhante é lembrada por Zileila, certa vez um colega seu, ao cortar um
saco, teve os olhos atingidos por soda cáustica. Ela não deixou de enfatizar que, na
ocasião, ele estava usando os óculos e que, ainda assim, seus olhos foram alvo do
produto. Com isso, os trabalhadores apontavam que, apesar do uso dos equipamentos de
proteção individual, luvas, máscaras, óculos, aventais, mesmo assim, estavam sujeitos a
certos ferimentos. Essas questões demonstram um importante aspecto da atividade que
realizavam, o fato de ser um trabalho que afetava de maneira significativa a saúde deles.
Uma preocupação que alguns traziam pela experiência de já terem sido atingidos ou
porque se davam conta do risco constante a que estavam expostos diariamente. Certos
depoimentos expressavam o temor e a consciência da precariedade do trabalho.
Em vários momentos, os trabalhadores revelaram-se conscientes do perigo de se
contaminarem com determinados resíduos. Uma consciência que adveio de vários fatores
que se encontram interligados: primeiro, da proximidade com a experiência real e
concreta, eles viam isso ocorrer a seus colegas com certa freqüência; segundo, a ameaça
e o perigo de contágio eram, muitas vezes, apresentados aos trabalhadores pela própria
empresa, ao promover palestras realizadas por médicos e outros profissionais da área de
saúde.
Em seguida, é preciso lembrar que, tanto do ponto de vista desses profissionais
como do imaginário social, se faz presente uma forte associação entre lixo e doença. O
que se tornou mais evidente com a complexidade da questão do lixo hospitalar em
decorrência dos perigos que esses resíduos passaram a representar, gradativamente, nos
últimos anos. Finalmente, acrescente-se a isso o medo que as pessoas possuem de se
contaminar com doenças como AIDS, hepatite tipo B e outras infecções, transmissíveis
pelo contato com resíduos contaminados. Como os trabalhadores não estavam imunes a
tais receios nem a tais riscos e realizavam o trabalho em condições precárias, que os
34
Ione Ribeiro, 33 anos. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
248
expunha a esses perigos, temos mais um elemento para avaliar a dimensão dos temores
que carregavam.
Assim, os depoimentos revelam que os trabalhadores viam a atividade no aterro, sob
vários aspectos, como prejudicial à saúde. Além dos riscos, Edna chama a atenção para o
excesso de barulho no aterro. Para ela, os ruídos da esteira, prensa e tratores
aumentavam o cansaço de quem permanecia oito horas por dia naquele local. À medida
que explicava certos aspectos do trabalho, ela demonstrava a consciência daquilo que é
prejudicial à saúde. Ao refletir sobre o risco de se machucarem, Zileila avaliou:
Geralmente, as pessoas, elas num tem assim consciência. Vamo supor que elas quebra um copo, um
prato, elas jogam no lixo de qualquer jeito. Se elas tivessem, assim, o bom senso de enrolar num
jornal ou na folha de um caderno ou mesmo escrever lá: vidro, né? Ou agulhas, porque geralmente as
pessoas tomam injeção em casa, doentes, onde que eles vão jogar a agulha? No lixo. Se eles
tivessem o capricho de tampar a agulha ou dobrar ela, ou amassar ela, evitaria muitos de machucar
aqui. Por quê? Geralmente, tem funcionário afastado porque furou o dedo com a agulha, cortou o
dedo com a faca. Porque, geralmente, a faca quebra o cabo, joga a faca, de qualquer jeito. Isso nós
não sabemos o que vem dentro do lixo. Então nós tamo ali na frente cortano, arrisca passar um
produto tóxico, nois cortá e ele vim no nosso rosto, né? Então, vidro mesmo, caco de vidro voar no
olho, como já aconteceu. Então, nós usamos máscara, usamos óculos, luva, duas luvas, mais isso
acho que não impede da gente acabar se cortando.
35
Certas narrativas mostram que os acidentes de trabalho em que os funcionários se
feriam com objetos cortantes eram freqüentes. Se alguns evitaram falar abertamente
sobre o tema, já outros contaram que se machucaram ou se lembravam de que algo
semelhante aconteceu a algum colega. Zileila, por exemplo, no depoimento em que
explicou quais fatores faziam com que os trabalhadores se machucassem, chamou a
atenção para a responsabilidade da população nesse processo. Ela afirmou, sem titubear,
que o hábito da maioria das pessoas de descartar o lixo de qualquer jeito, sem cuidado ou
precaução é falta de “bom senso” e de “consciência”. Na verdade, Zileila parecia querer
alertar que o gesto relapso de quem joga objetos cortantes no lixo, cacos de vidro e
agulhas, sem sequer um aviso indicando o que está sendo ali descartado, pode ferir um
trabalhador. Em sua narrativa, ela emitiu, inclusive, sugestões de como as pessoas
35
Zileila Martins de Melo Costa. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
249
deveriam proceder a fim de evitar os acidentes. Lemos, em sua atitude, indícios de como
os trabalhadores vão adquirindo alguns saberes no trabalho com o lixo.
De modo geral, eles conseguiam ver os lados melhor e pior da atividade que
realizavam, demonstrando uma apreensão da complexidade que a envolvia. Entretanto
isso se diferenciou quando conversamos com outros trabalhadores e constatamos que,
para estes, o trabalho na usina era visto de maneira distinta, não se tratando de uma
atividade que impusesse riscos à integridade física daqueles que a executavam. Quando
entrevistamos Roberto Alves, cuja função é operador de prensa, indagamos sobre qual
sua opinião sobre o trabalho na esteira e, como quase tudo em seu depoimento, ele teve
pouco a informar, assegurando apenas que era um “trabalho tranqüilo”, que não
acarretava maiores riscos.
36
Clênia parecia também partilhar essa opinião, pois avaliou:
Em relação ao trabalho do pessoal, inclusive eu já chegava até algumas vezes a comentar com os
funcionários. O trabalho não era pesado, sabe? O trabalho dos funcionários da triagem não é
considerado um trabalho repetitivo. Por quê? Porque pra ser repetitivo, que inclusive provoca alguns
problemas de saúde, tendinite, essas coisas, teria que ser tipo uma linha de montagem, teria que ser
uma coisa tipo uma exigência de uma produção. Na linha de triagem, não havia uma exigência,
entendeu? Quanto à produtividade. (...) A nossa esteira ela tem um ritmo, de girar contínuo, ela não
aumenta a velocidade, entendeu? Por exemplo, ela tem dois pontos de parada. Suponhamos que,
num determinado momento, cai alguma coisa a mais, um material a mais, tanto no início como no
final, os funcionários tem como pará a esteira, certo? Pra dá uma aliviada...
37
Essa é a visão da técnica de segurança a respeito do trabalho na usina. Uma
maneira de enxergar a situação que se sintonizava com o funcionamento da empresa, o
tratamento dispensado aos trabalhadores e as condições a que eram submetidos. Clênia
atribuía o desgaste físico a outros fatores que não a natureza do trabalho:
... O trabalho é desgastante, na minha opinião, por dois motivos: tem funcionários aí nossos que tem
seis anos de empresa. Então é um período bem grande, né? Pra você trabalhá, tê horário, de manhã,
à tarde, a maioria dos funcionários da esteira são mulheres, que trabalham direto na esteira, são
mulheres. Pra você vê, normalmente, a mulher que trabalha fora, ela faz duas funções, além de que
ela cumpre aquele seu horário, ou ela chega à tarde e dá uma organizada nas coisas, né? Ou
sábado, se num dê conta de fazê todo o trabalho doméstico, tem que inteirá até com uma parte do
domingo. Então o período de descanso da mulher, na minha opinião, é reduzido, né? (...) Então por
36
Roberto Alves da Silva, 30 anos. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
250
isso é desgastante. Você trabalhá o dia todo, separando material de pé,? Separando material e
você chega em casa, você ainda tem que fazer um jantar, você tem que lavá uma louça. Quando é o
sábado, como nois não trabalhamos, é o dia de você lavá, de você passá, de você fazê uma limpeza
maior na casa, então, daí o desgaste, tanto físico como emocional. Seriam duas jornadas que ela
enfrenta.
38
Há alguns aspectos no depoimento de Clênia que nos estimularam a refletir acerca
do modo como as empresas e os técnicos que nelas atuam costumam ver os
trabalhadores. A própria denominação de “recursos humanos”, utilizada no setor
administrativo, indica muito sobre isso e traduz uma determinada postura política.
Predomina aqui uma visão técnica acerca das relações de trabalho, como também das
causas que tornam por demais extenuantes as condições em que ele é realizado.
Nessa perspectiva, compreendemos por que os argumentos da técnica de
segurança, para justificar o desgaste do trabalho, configuravam-se unicamente em fatores
relacionados com os trabalhadores, condições biológicas e socioculturais, como o fato de
que o quadro de funcionários era constituído por expressivo número de mulheres, cujas
obrigações incluíam também tarefas domésticas e cuidados com a família, e que muitas
atuavam na empresa há mais de cinco anos. Argumentos que poderiam ser, em parte,
razoáveis, mas que, confrontados com as narrativas delas, não se sustentavam. Seus
depoimentos a respeito do próprio trabalho foram sugestivos de que a atividade no setor
era extenuante, e não somente pelos motivos apresentados por Clênia.
Além disso, é interessante refletir que tanto a visão dela como a de Roberto Alves
assemelham-se não apenas sobre o que disseram das características do trabalho na
esteira, como também quanto ao fato de que ambos trabalhavam na usina, mas não
realizavam essa atividade. A técnica de segurança tentou salvaguardar os interesses da
empresa, num contexto em que diversas críticas vinham sendo feitas ao gerenciamento
do aterro.
Já Roberto, ao longo de toda a entrevista, não teceu uma crítica sequer à empresa,
assumindo uma postura fria e distante. Vemos seu silêncio e distanciamento por si sós
como reveladores de que havia algo a dizer e não foi dito. Sua recusa ou seu nada ter a
revelar foi uma opção de não se envolver, de isentar-se. Uma escolha em não se
comprometer fazendo qualquer observação sobre a sua atividade ou a de seus colegas,
37
Clênia Maria Rocha Jerônimo. Entrevista realizada em 12 fevereiro de 2003.
251
reforçada pelo fato de que, em alguns momentos, ele teceu elogios à empresa. Uma
postura bem diferente foi assumida por Sílvio, também operador de prensa.
Enquanto Roberto se fechou, distanciou-se, Silvio se expôs, numa atitude a sinalizar
abertura, proximidade. No espaço da entrevista, descreveu a si próprio como um
trabalhador que lida com o lixo, e dispôs-se a refletir acerca do que isso significava para
ele e para as suas relações com outras pessoas. Descreveu-nos como via o próprio
trabalho e o de seus colegas; as dificuldades e os riscos a que estavam expostos, enfim,
as impressões dele sobre aquele ambiente e o que eles ali realizavam. Explicou que, ao
manusearem a prensa para compactar os fardos de materiais, qualquer “vacilo”
pressupunha o risco de perder um membro superior. Claro está que, ao assumirem
atitudes tão diferentes, tanto Sílvio como Roberto demonstraram posturas diferenciadas
diante da realidade com que se defrontavam na usina e, sem dúvida, de que modo eles
se inseriam nela.
39
Segundo a técnica de segurança, a atividade na esteira não podia ser considerada
repetitiva. Porém, vê-se que isso não seria possível, porquanto, na tarefa de separar e
retirar materiais recicláveis do lixo, os movimentos pouco variavam e dependiam apenas
do que estava sendo selecionado. Zileila apontou a possibilidade de os trabalhadores
revezarem entre si a posição na esteira. Por quê? Porque realizar a mesma atividade,
durante todo o dia, exauria-os.
O pessoal lá em cima, mesmo as pessoas que trabalham no meio da esteira catando os material.
Que a gente às vezes pensa: pra mim catar esse material e esse, é fácil, né? Mais imagine cê ficar
pegando o dia inteirim, jogando pet pra trás assim, de tarde seus braçoso tá doendo, né? Então,
mais tem outro lugar que cê vai catar latinha, vai por só assim. Você vai cansar menos, né? Então,
acaba que aquela pessoa que tá trabalhando ali naquele local, trocá com aquela que tá trabalhando
nos pet.
40
Basta ler o depoimento de Zileila para saber que, em sua percepção, o trabalho na
esteira estava longe de não ser repetitivo. Quanto ao aspecto da exigência ou cobrança
de produtividade, cremos que o fato de os trabalhadores serem privados de receber os
tickets de alimentação caso se ausentassem, mesmo apresentando um atestado médico,
é indicativo do nível de instância da empresa.
38
Clênia Maria Rocha Jerônimo, idem.
39
Sílvio Roberto de Faria. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
40
Zileila Martins de Melo Costa. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
252
Assim, as contradições entre o que dizia a maioria dos trabalhadores entrevistados,
a respeito de suas condições de trabalho, e as afirmações de outras pessoas que se
relacionavam com eles ocorreram em várias circunstâncias.
Além disso, a precariedade das condições de trabalho na usina podem ser
evidenciadas por meio de outros registros, como o Relatório de Avaliação Ambiental do
Aterro Sanitário, no qual tais circunstâncias de trabalho são descritas como
“extremamente precárias, com elevados riscos de acidentes e à saúde”.
41
Em se tratando
das observações sobre os trabalhadores, contidas nesse documento, avaliamo-nas como
muito genéricas. Isso significa dizer que a situação em que trabalhava o pessoal da
esteira não fora o enfoque principal da atenção dos pesquisadores. De fato, ao longo de
nossa investigação, constatamos certo silêncio em torno desses trabalhadores.
“Esquecimento” que não é insignificante, nem pode passar despercebido pela análise
histórica. Ele faz parte de um processo mais amplo no qual se evidenciam diversos
olhares e interesses.
De todo modo, é preciso levar em consideração que o objetivo do Relatório consistiu
em apresentar um parecer à prefeitura a respeito do funcionamento do aterro, de maneira
geral, e sugerir uma alternativa diante dos problemas encontrados. A produção desse
documento, por vários professores da Universidade Federal, diz respeito a uma
conjuntura sócio-política específica. Diversos fatores motivaram a sua elaboração:
suspeitas de contaminação do lençol freático e das águas superficiais, poluição
atmosférica provocada pelo aterro, além do fato de que, em abril de 2001, havia sido
instaurado um inquérito pela Curadoria do Meio Ambiente órgão do Ministério Público
com o intuito de apurar tais ocorrências. Ademais, um auto de infração contra a Limpel,
registrado pela FEAM (Fundação Estadual do Meio Ambiente), também serviria para
alertar que algo errado ocorria. A prefeitura viu-se pressionada por um conjunto de
circunstâncias que, em parte, antecederam aquela administração, mas que, naquele
momento, tornaram-se patentes, exigindo providências efetivas. Para a missão de
investigar, identificar e apontar soluções para o problema, formou-se a Comissão de
Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário, em setembro de 2001.
42
41
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, p. 102.
42
Importante destacar que a iniciativa de formar uma comissão para investigar a situação do aterro sanitário veio da
Secretaria de Ciência e Tecnologia, e não de outras pastas envolvidas com a questão do lixo, a de Serviços Urbanos ou
de Meio Ambiente. Além disso, criada em 2001, primeiro ano do governo Zaire Rezende, a Secretaria de Ciência e
253
Em nossa avaliação, o Relatório mostra como a empresa relutou em fazer as
mudanças que lhe eram cobradas pelos órgãos de fiscalização. Assim, tanto a população
que mora ou trabalha nos arredores do aterro como os funcionários que lá atuavam foram
prejudicados em decorrência de tal postura. A precariedade das condições de trabalho
foram, em parte, amenizadas devido às pressões daqueles que estavam sujeitos a elas. À
medida que enfrentavam obstáculos e tomavam consciência da situação, os
trabalhadores encontravam argumentos para pressionar por melhorias no ambiente da
usina.
Como a intervenção da prefeitura constituiu-se de forma morosa, depreende-se uma
excessiva tolerância com a empresa, o que foi prejudicial aos trabalhadores. Na verdade,
isso nos instiga a pensar sobre os significados da presença destes trabalhadores na
cidade, pois, quando o aterro passa a ser um elemento da vida urbana, fator de soluções
e ao mesmo tempo de novos problemas, ainda assim, permanece a falta de interesse e
de compromisso em relação a eles e às condições em que trabalhavam naquele espaço.
Apesar de a atividade exercida por eles estar instituída formalmente, isso não resultou no
reconhecimento ou na valorização do que faziam. De fato, esses sujeitos revelam o que a
cidade, muitas vezes, abriga, mas tenta esconder, traçando determinadas formas de viver
ou de trabalhar que são escusas.
Sobre a visão dos pesquisadores que produziram o Relatório, acerca das condições
de trabalho no aterro, avaliamos que reflete, de certa maneira, um olhar técnico ao pensar
a questão do lixo.
43
Conquanto o documento exponha os vários interesses políticos e
Tecnologia se propôs a implementar diversos projetos relacionados com a questão ambiental, problemas sociais e
populações carentes, como cooperativas de coletores de materiais recicláveis em bairros mais pobres. Um dos projetos
dessa Secretaria, o Ciência Cidadã, envolvendo professores e alunos de 21 escolas municipais, e também professores da
Universidade, ofereceu oficinas sobre metodologia científica, levantou problemas locais como descarte de pneus,
violência familiar, águas pluviais, agrotóxicos, e buscou apontar possíveis soluções. De fato, essa Secretaria deparou-se
com diversos problemas na cidade, a saber: a contaminação da água de uma escola rural pelos dejetos de uma granja
localizada na região. Neste caso específico, a Prefeitura precisou tomar medidas urgentes, como suspender o uso da
água, embora muitas outras situações irregulares, apontadas nos diversos relatórios, não tenham sido solucionadas.
Avaliamos que a Secretaria de Ciência e Tecnologia pareceu ter esbarrado não apenas em várias dificuldades para
implantar seus projetos, mas também em muitos interesses de empresas locais pouco dispostas a assumir uma postura
consciente de respeito pelos moradores e pelo ambiente. Desse modo, alegando falta de verbas, o poder público
encerrou as atividades desse órgão no ano seguinte.
43
Uma abordagem ilustrativa do que denomino um olhar técnico sobre a questão do lixo apresenta-se na visão de um
pesquisador, que, discutindo essa problemática, escreveu “considerando que a (usina de triagem) está devidamente
licenciada pela FEAM/COPAM e que os processos de triagem/compostagem, aterramento do lixo e tratamento de
efluentes líquidos e gasosos atendem satisfatoriamente às normas técnicas e legais, entendemos que a questão dos
tratamento dos resíduos sólidos domésticos no Município de Uberlândia está atendido a contento”. In: MENDONÇA,
Mauro das Graças. Políticas e condições ambientais de Uberlândia-MG, no contexto estadual e federal. Mestrado em
Geografia, UFU, 2000, p. 142.
254
econômicos que norteiam essa problemática, a análise, em si, carece de sensibilidade,
quando deixa de se debruçar sobre a atividade dos trabalhadores. Exemplo disso é como
o Relatório se subdivide em capítulos, nos quais se aborda a questão do aterro sob várias
perspectivas: o despejo do lixo hospitalar, do lixo industrial, a discussão sobre a
legislação ambiental, a saúde da população do entorno no âmbito epidemiológico. No
entanto os trabalhadores não foram enfoque de um capítulo específico, nem se teve a
preocupação de discutir suas condições de trabalho sob o ponto de vista da segurança,
tendo em vista a ausência de salubridade ali evidente, ou da responsabilidade da
prefeitura, considerando ser seu papel fiscalizar o empreendimento. Constatou-se,
inclusive, que o trabalho era prejudicial aos funcionários e até se sugeriu que fosse feita
uma pesquisa sobre o estado de saúde deles. Entretanto esse estudo dependeria da
concordância da Limpel, razão pela qual talvez não tenha sido realizado.
De qualquer maneira, o Relatório contém relevantes informações acerca das
condições de trabalho na usina, e deixa entrever dois importantes aspectos: primeiro, que,
para aqueles que o produziram, a prioridade não era abordar de que modo trabalhava o
pessoal da esteira; segundo, que isso não foi considerado importante nem mesmo sob o
ponto de vista do poder público, pois, alguns trabalhadores relataram que a fiscalização
da prefeitura consistia, basicamente, em verificar como o lixo estava sendo aterrado e a
quantidade de toneladas registradas pela empresa.
Nesse sentido, interessante resgatar alguns elementos que antecederam a fundação
do aterro sanitário. Primeiro, quando começou a funcionar, não instaurou a usina no prazo
combinado e o lixo veio sendo despejado sem tratamento algum. Período em que
moradores da região muito reclamaram da instalação do empreendimento no local. Isso
serve para ressaltar como o estabelecimento do aterro em área densamente povoada,
como o Setor Industrial, trouxe prejuízos à população do entorno que reside ou trabalha
por ali. Já se previa, também, que os trabalhadores da usina correriam riscos de saúde
devido às condições de trabalho. Para conseguir a licença de operação, era necessário
que a Limpel apresentasse à FEAM uma documentação, que incluía um EIA/RIMA
(Estudo e Relatório de Impacto Ambiental). Essa pesquisa trouxe um quadro geral dos
aspectos positivos e negativos da fundação do aterro. Quanto às condições de trabalho, o
Relatório de Avaliação Ambiental informa que o EIA/RIMA previa que algumas
características do empreendimento seriam prejudiciais aos trabalhadores, teriam um
255
“impacto sócio-cultural e econômico na comunidade local”, e, também, “um impacto sobre
os recursos hídricos”.
44
O Guarani é um dos bairros situados na área de influência do aterro, distante menos
de 500 metros do empreendimento, sua proximidade é ilustrada na figura abaixo.
Planta do Bairro Guarani, nos arredores do aterro sanitário. Fonte: Relatório de Avaliação Ambiental do
Aterro Sanitário, capítulo V, p. 02.
Conforme o Relatório, entre 1999 e 2001, a população do bairro Guarani apresentou
variações em seu quadro de doenças, contraindo males causados pela destinação
inadequada do lixo. Os pesquisadores chegaram a tal conclusão depois de avaliar, entre
outros aspectos, dados obtidos no posto de saúde local.
45
Com isso, a Limpel não pode alegar desconhecimento dessa realidade, tampouco a
prefeitura, que, aliás, autorizou a instauração do aterro a despeito dos prejuízos que
haveria. As dimensões privilegiadas pelo poder público não consideraram o que
44
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, p. 84-85.
45
“Avaliação das condições de saúde da população do Bairro Parque Guarani, circunvizinho ao Aterro Sanitário de
Uberlândia, (MG)”. Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário, capítulo V, p. 01-19.
256
moradores e trabalhadores perderiam com isso, sequer discutiram o projeto com a
comunidade, conquanto tenham sido feitas pressões para isso por parte de moradores da
região, de vereadores da oposição e de professores da Universidade. Para tanto,
encontraram respaldo na própria legislação, pois
“Nos casos de licenciamento em que se aplicam a exigência de EIA e RIMA, a Legislação Ambiental
prevê a realização de Audiência Pública, destinada a expor à comunidade as informações sobre o
sistema de tratamento e ou disposição final do lixo e os estudos ambientais realizados, dirimindo
dúvidas e recolhendo as críticas a respeito para subsidiar a decisão quanto ao licenciamento”.
46
Contradições que desvendam como a questão do lixo serve para evidenciar
determinados empreendimentos que não atendem às necessidades e ferem os interesses
da maioria da população e, não obstante isso, são levados adiante. O aterro tornou-se
presença marcante na cidade, visto que, anunciado como eficiente solução, deveria ser
alternativa para sanar o problema do lixo e acabou por desencadear novos e diversos
problemas, envolvendo sempre conflitantes interesses.
Ao contrário do que se possa pensar, a polêmica em torno da construção do aterro
sanitário em Uberlândia, entre os anos de 1994 e 1997, não foi uma questão localizada.
47
Nos últimos tempos, controvérsias dessa natureza têm ocorrido com relativa freqüência
em várias cidades do país. No Rio de Janeiro, a implantação de um empreendimento
semelhante no bairro de Paciência, na zona oeste, local de intenso povoamento, foi objeto
de muitos conflitos: de vícios no procedimento licitatório e de licenciamento ambiental a
questionamentos técnicos e embargos judiciais.
48
Em Manaus, uma usina de triagem,
situada no bairro da Compensa, operava com 13 esteiras e processava cerca de cem
toneladas de lixo por dia, mas foi fechada porque a comunidade não tolerava o mau
cheiro. Essas são realidades que instigam refletir de que maneira o lixo, numa relação
46
In: Como destinar os resíduos sólidos urbanos. Licenciamento Ambiental. Material de orientação da FEAM
(Fundação Estadual do Meio Ambiente), 2002, p. 39. Secretaria de Serviços Urbanos, Arquivo da Seção de Coleta.
47
Lixo causa mau cheiro no Guarani. Correio do Triângulo, 03 de abril de 1996, n. 17.139, p. 10.
Manifestação de mosquito preocupa. O Triângulo, 17 de novembro de 1996, n. 9.522, p. 09. Seção Bairros.
Moradores do Guarani querem fechamento do aterro sanitário. O Triângulo, 24 de dez. de 1996, n. 9.553, p. 05.
48
Ecologistas e catadores: alternativa para lixão no Rio. Jornal Brasil de Fato, São Paulo, ano 3, n. 150, 12 a 16 de
janeiro de 2006, p. 13.
257
direta com a questão ambiental, incide profundamente nas políticas públicas e na vida
urbana.
49
No que se refere ao processo de apropriação do lixo pela iniciativa privada, que, na
última década, observamos na cidade, é oportuno lembrar que, segundo Lopes, desde os
anos de 1970, quando o mercado das construções deixou de ser tão lucrativo, as
empreiteiras encontraram um nicho de investimento na gestão do lixo, elas tinham,
inclusive, todo um aparato técnico para isso.
50
Vale retomar que a CCO era uma grande
construtora, presente na região desde 1967, entretanto, em meados da década de 1990,
apesar de a imprensa ter silenciado quanto a isso, ela havia praticamente falido. Assim foi
que, ao gerenciar o lixo, por meio da Limpel, a CCO conseguiu se manter. Isso sinaliza
como a gestão do lixo propiciou não apenas o monopólio dos restos, mas também a
manutenção de privilégios econômicos a determinados grupos sociais na cidade.
Porém, embora tenha encontrado um meio de atuação com garantia de
lucratividade, a empresa também se viu enfrentando novos problemas. Em um ofício
encaminhado à FEAM, no ano de 1995, ela reconheceu suas limitações para executar o
compromisso que assumia naquele contexto.
Estamos encaminhando o FCE (formulário de caracterização do empreendimento) com a
finalidade de iniciarmos o licenciamento ambiental da destinação final dos resíduos sólidos do
Município de Uberlândia.
Lamentavelmente, a inexperiência e a falta de orientação levaram a desvios no procedimento
recomendado para tal caso (licenciamento preventivo) ... Propomos a este conceituado órgão um
acordo no sentido de viabilizarmos o atual programa em andamento e o respectivo licenciamento
ambiental corretivo; ficamos, desde já, prontos para as sanções e multas advindas do desvio original,
e demais obrigações requeridas para tal tipo de empreendimento...
51
Nesse documento, entremostra-se a complexidade que a problemática do lixo e da
questão ambiental passavam a engendrar, impondo desafios, talvez, inesperados e
49
Ver: Experiências de gestão participativa do lixo urbano. Cartilha do UNICEF (Fundos das Nações Unidas para a
Infância), Campanha Lixo e Cidadania: criança no lixo, nunca mais! setembro de 1998, p 44. “Não pode deixar de ser
mencionada a polêmica que sempre surge quando da escolha do local para implantação de novos aterros sanitários, fato
este que é mundialmente conhecido “síndrome NIMBY– not in my back yard (não no meu quintal). Nestas situações,
muitas vezes, o Ministério Público é chamado a intervir, oportunidade em pode atuar não apenas visando a solução
pontual relativa à locação do novo aterro, mas de uma forma mais ampla, chamando a discussão do sistema integrado de
gerenciamento do lixo, inclusive contemplando a inserção dos catadores de uma forma organizada no processo”. In:
Procuradoria Geral da República, 4ª Câmara de Coordenação e Revisão, Projeto do Ministério Público, Manual do
Promotor Público, Brasília, junho de 1999, p. 17. Campanha Lixo e Cidadania: criança no lixo, nunca mais! (grifos do
texto original)
50
LOPES, Rosana Miziara, op. cit., p. 170.
258
exigindo soluções das autoridades responsáveis. Nesse processo, em 2001, conforme
consta do Relatório, a Promotoria de Justiça Especializada na Defesa do Meio Ambiente
havia determinado à Secretaria Estadual de Saúde uma vistoria e um parecer sobre as
condições do aterro à época, em que se observaram vários aspectos de seu
funcionamento.
- Recursos humanos: funcionários sem EPIs, controle de vacinação dos funcionários e controle de
exames periódicos apresentados de forma incompleta.
- Infra-estrutura: condições inadequadas das instalações físicas dos vestiários feminino e masculino,
com presença de trincas, rachaduras, pisos soltos, sem revestimento impermeável nas paredes, sem
lavatórios, sem ralos sinfonados e chuveiros em número insuficiente; má conservação dos
escaninhos para guarda dos pertences dos funcionários;
- guarda temporária da alimentação trazida de casa pelos funcionários em local não refrigerado;
- inexistência de lavatórios para lavagem de mãos junto ao refeitório, dotado de papel toalha e sabão
líquido;
- presença de animais no local (cachorros e aves); lixo espalhado em toda a área destinada à triagem
e compostagem do aterro sanitário; inexistência de local para higienização de ferramentas e
equipamentos, tratores e caminhões
- Área de triagem e compostagem: inexistência de responsável técnico para controle do
processamento de compostagem (o técnico responsável havia se desligado da empresa e não fora,
até aquele momento, contratado outro profissional); lixo colocado em área não coberta;
armazenagem de fardos prontos para serem encaminhados para reciclagem em área descoberta;
presença de vidro e plástico junto ao resíduo orgânico destinado a compostagem...
52
As questões aqui enumeradas ajudam a compreender algumas das circunstâncias
que favoreceram o fechamento da usina. Discutiremos essas informações comparando-as
com os depoimentos dos trabalhadores entrevistados, entre ambos os registros, há
semelhanças e contradições. Zileila, certa vez, admitiu que alguns trabalhadores, por
vezes, devido ao calor e ao desconforto, deixavam de usar máscaras ou óculos. Não
obstante ela ter tido a preocupação de assegurar que a empresa exigia a utilização dos
equipamentos.
Porque aqui eles é muito rígido com os equipamentos, sabe? Com avental, com luva, sabe? Então,
todo mundo que trabalha, eles têm a consciência que a gente, nós temos que usar, né? E quem num
usa, no caso se alguém que, geralmente, tava fazendo calor, esses dias tava fazeno, as pessoas, às
vezes, não usam, eles são advertidos. Eles têm que assinar uma ... sabe? Eles são advertido pela
51
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, Anexos (parte I), p. 17.
52
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, p. 106-107.
259
técnica de segurança..., fica de cima, sabe? Não acontece nada que ela num tá vendo. Então,
geralmente, quando a pessoa corta, passa álcool. Se for um corte mais grave, ela encaminha pro
médico, né? Então...
53
Esse depoimento de Zileila propiciou refletir sobre a ambigüidade inerente a esse
processo conflituoso entre os trabalhadores e a empresa, no que tange ao uso dos
equipamentos de segurança. Ela garantiu que a técnica de segurança fiscalizava com
rigidez os funcionários, a fim de que utilizassem o aparato de proteção e que, em caso de
acidente, ela se prontificava a encaminhá-los ao médico. Mas, conquanto fosse uma
exigência do processo de trabalho, nem todos tinham plena consciência da necessidade
de usá-los, uma vez que calor e desconforto poderiam ser razões para resistirem.
Vale refletir ainda sobre a maneira como Zileila fazia uso dos pronomes pessoais: a
saber, quando dizia “eles” referindo-se à empresa. Em outro momento, “eles” eram os
trabalhadores, com quem ela logo se identificava, pois refez a sentença e concluiu: “a
gente, nós temos que usar”. Quando utilizou a terceira pessoa do singular, referiu-se à
técnica de segurança. Uma estratégia dentro do modo didático como Zileila se expressa,
mediante o hábito de inserir em suas frases um porquê, respondido, em seguida, por ela
mesma. Além de um recurso para se fazer entender melhor, essa era uma alternativa
encontrada para descrever as condições de trabalho na usina sem se comprometer. De
diferentes maneiras, isso aparecia também no depoimento de outros entrevistados. O
que, de certo modo, revelava cuidado e habilidade para falar de como se constituía o
funcionamento da usina e a ação dos sujeitos, apontando a existência de determinados
problemas, mas, ao mesmo tempo, buscando não gerar polêmica com os responsáveis.
Zileila, a despeito de ter apontado limites das condições de trabalho na usina,
buscou isentar de responsabilidade a técnica de segurança e a empresa. Quando lhe
perguntamos se, ao longo do período em que trabalhava na usina, houve um tempo em
que a vigilância sobre os trabalhadores era menos intensa, ela reconstituiu essa trajetória:
Antes no começo, as pessoas, era outro técnico de segurança, inclusive, até trocaram ele. As
pessoas fazia, como se diz, o que queria, porque as pessoas que num têm consciência, elas, fica
sem óculos, fica sem máscara. Mas, prejudicando a quem? A ela mesma, né? Aí acabaram trocando
o técnico de segurança, pôs a Clênia, sabe? Aí ela foi muito rígida, sabe? Então todo mundo tem que
usar e todo mundo tem consciência de que tem que usar, sabe? Inclusive a gente teve palestras, teve
53
Zileila Martins. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
260
filmes, mostrando os riscos de acidente. Tudo. Então, todo mundo que tá trabalhando aqui hoje é
informado que tem que usar, né?
54
Essa exposição de Zileila ajudou a recuperar alguns elementos do próprio processo
de implantação da usina, de sua trajetória e dos problemas com os quais se deparou na
tentativa de organização de um novo modo de trabalhar com o lixo. Nesse percurso, a
empresa, diante de determinados obstáculos, como a resistência de alguns trabalhadores
em utilizar os equipamentos de segurança, precisou encontrar soluções. No intuito de
conscientizar os funcionários acerca do risco de
acidentes, a Limpel lançou mão de certos
recursos, palestras e filmes, além de contratar outro profissional da área de segurança do
trabalho, pois o anterior à Clênia, não desempenhava a função a contento.
“Então todo mundo que tá trabalhando aqui hoje é informado que tem que usar”,
essa conclusão de Zileila faz-nos refletir sobre a instituição desse modo de trabalhar, das
dificuldades e limites que se impunham tanto à empresa quanto aos trabalhadores. Nesse
ínterim, com a experiência diária, no contato com o lixo, alguns foram tomando
consciência dos riscos do trabalho; embora outros, talvez, não, porque, na verdade, isso
se chocava com os seus hábitos, com a falta de costume em usar os equipamentos,
que a maioria realizava atividades nas quais eles eram desnecessários.
Ione garantiu que não teve problemas para se adaptar aos acessórios de proteção,
conquanto achasse que a máscara era dura e os óculos de acrílico, desconfortáveis, pois
pareciam conter um pouco de grau e embaçavam a visão, e tivesse admitido que, após o
almoço, em dias quentes, não fosse fácil permanecer sob o galpão de zinco, envolta em
tantos objetos. Entretanto, ela havia trabalhado na Neon-Uberlândia, empresa que produz
luminosos e cartazes para outdoors, onde auxiliava na lavagem de painéis contendo
resíduos de tinta e produto tóxico, e estava habituada a usar equipamentos de segurança.
Observamos, ainda, que o depoimento de Zileila revelou uma preocupação em
demonstrar como a situação dos trabalhadores na usina parecia ter evoluído do ponto de
vista da segurança no trabalho. Aproveitando que ela, ao recuperar essa trajetória, fez a
defesa da técnica de segurança, destacamos o que a própria Clênia declarou a respeito:
54
No caso de Zileila, esse tato para falar do trabalho tornava-se evidente. Na verdade, sua situação era mais delicada,
pois, ao entrevistá-la, pela segunda vez, em dezembro de 2001, soube que há cinco ou seis meses ela havia se casado
com o encarregado geral do aterro, Cristiano de Jesus Costa.
261
No nosso caso aqui, num tem riscos esses riscos graves assim. No caso da coleta, tem risco muito
grave por causa do trânsito também, né? Mais aqui no grupo que eu trabalhava aqui na triagem risco
fatal assim nós não temos, não tínhamos. Mais em relação a lidar com pessoas, é como eu te falei ...
É, os meus acidentes de trabalho aqui na linha de triagem eram coisas mínimas mesmo. A gente
praticamente nem encaminhava pra médico, a gente fazia uma higienização, né? A gente orientava o
funcionário, se sentisse alguma coisa, me procurá, no mesmo dia ou no outro dia, se no dia não
acontecesse nada de diferente, né? Pra gente tá encaminhando, que era eu que controlava isso aí,
de perto mesmo. Então, o dia todo, todos os dias, ali junto com o grupo, né?
55
É importante esclarecer que, na ocasião dessa conversa, a usina já havia sido
desativada, e permaneciam lá apenas poucos funcionários. Portanto, a razão pela qual
Clênia tenta organizar sua fala no tempo pretérito. De todo modo, nota-se como ela se
preocupou em deixar claro que, no espaço da usina, os trabalhadores não corriam riscos,
assegurando que os acidentes de trabalho na linha de triagem “eram coisas mínimas
mesmo”. Perigoso era o trabalho na coleta do lixo, devido ao trânsito nas ruas da cidade.
Aqui, posto que se contrapondo aos depoimentos de alguns entrevistados, Clênia remete-
nos a curiosas questões relacionadas com o ambiente da usina, o universo do trabalho
com o lixo e o preconceito e estigma que sofrem aqueles que o exercem. Quando
ponderou que a coleta do lixo na rua oferece mais risco que a atividade na usina, a
técnica de segurança ressaltou, consciente ou não, que trabalhadores do lixo não são
apenas os que estão no aterro. Nessa comparação, ela não somente ampliou esse leque
para incluí-los, como também sugeriu a consciência de que o aterro, apesar de seus
embaraços, significou certa organização, uma tentativa de sistematizar o tratamento e o
destino do lixo. Embora o conjunto do trabalho com o lixo permaneça ainda uma
problemática urbana que envolva questões de saúde e higiene.
Clênia demonstrou uma segunda preocupação, descrever a si mesma como
profissional atenta e solícita às necessidades dos funcionários. Quando pedimos a ela
que falasse como se configura a segurança do trabalho no Brasil, fez esta avaliação:
A segurança do trabalho, de alguns anos pra cá, melhorou muito, muito, muito. Porque eu acredito
que, de vinte anos pra cá, tanto é, os gerentes de empresa como o próprio funcionário tá muito mais
conscientizado, né? Da questão de, tá, tô falano da gerência, de investir em segurança do trabalho,
de tê o profissional técnico de segurança do trabalho, que esse profissional quase nem existia
vinte anos atrás. E a lei exige que as empresas tenham esse profissional. É, e esse profissional é
55
Clênia Maria Rocha Jerônimo. Entrevista realizada em 12 fevereiro de 2003.
262
importantíssimo que ele faça um trabalho, né? De conscientização dos funcionários, com muito
cuidado, com tolerância, com calma, porque é muito importante. Porque um acidente de trabalho ele
abrange a empresa, o próprio funcionário, a família inteira. Porque, se ele tem um acidente mais
sério, ele fica afastado, depois de 15 dias ele tem que tá dando entrada em documentos no INSS pra
tá recebendo, né? O auxílio acidente do trabalho. Então realmente é desgastante, então é um
trabalho importante.
56
Clênia recuperou, em parte, a questão da segurança do trabalho no país, sua
trajetória e o universo dessas relações. Ela avaliou ter ocorrido uma evolução nesse
campo, em decorrência de vários elementos: legislação que passou a definir normas e
obrigações, surgimento da figura do técnico e maior consciência por parte de empresários
e empregados.
57
Contudo, ela falou em segurança do trabalho sob a ótica da empresa e
tendo em vista sua própria experiência, citou a necessidade de ter cuidado, calma e
tolerância com os funcionários. Sua atitude é compreensível, pois não há produção de
discurso sem intencionalidade. Tais requisitos eram necessários justamente pelos
entraves previsíveis na instituição de novos hábitos a eles, como o uso dos EPIs. Seja
como for, avaliamos que a função de um técnico de segurança do trabalho dentro de uma
empresa é, no mínimo, contraditória, afinal, conciliar os interesses entre patrões e
empregados, de modo a tentar assegurar a integridade física destes e a expectativa de
rendimento daqueles, parece ser melindrosa tarefa.
58
Todavia, ao entrevistarmos Ione Ribeiro, poucos meses depois de quase todos os
trabalhadores terem sido demitidos pela Limpel, por conta do fechamento da usina,
56
Clênia Maria Rocha Jerônimo, idem.
57
Discutir as condições de trabalho na usina de triagem motivou-nos a fazer algumas leituras que apontam justamente
para a complexidade desse universo que diz respeito à segurança do trabalho, à saúde ocupacional, ao permanente
conflito de interesses entre empresários e trabalhadores e ao modo como tais relações extrapolam o espaço da produção.
Ao traçar uma trajetória da saúde pública, da antigüidade até meados do século XX, Rosen, referindo-se a alguns países
da Europa e aos Estados Unidos, aponta interessantes aspectos acerca da saúde ocupacional, como o fato de ser um
campo grande e complexo, que, tenderia a crescer com a evolução industrial. Já na década de 1950, escrevia que “hoje
sabemos não ser possível limitar a saúde do trabalhador às instalações industriais, pois as condições de vida, na casa, e
as de trabalho, na fábrica, têm efeitos importantes. Assim, se não compreendemos essa situação por inteiro, não
podemos prevenir a insalubridadade. Entende-se, cada vez mais, a necessidade de se coordenar os cuidados médicos na
indústria com os cuidados médicos, gerais, recebidos pelo trabalhador e por sua família”. In: ROSEN, George. Uma
história da saúde pública. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1994, p. 315.
58
Para se ter noção da amplitude que abarca as competências de um técnico de segurança do trabalho dentro de uma
empresa, destacamos as seguintes: “esclarecer e conscientizar os empregados sobre acidentes de trabalho e doenças
ocupacionais, estimulando-os em favor da prevenção. Colaborar, quando solicitado, nos projetos e na implantação de
novas instalações físicas e tecnológicas da empresa. Analisar e registrar em documentos específicos todos os acidentes
de trabalho ocorridos na empresa ou estabelecimento, com ou sem vítima, e todos os casos de doença ocupacional,
descrevendo a história e as características do acidente e/ou da doença ocupacional, os fatores ambientais, as
características do agente e das condições dos indivíduos portadores de doença ocupacional, ou acidentados”. In: Segurança e
Medicina do Trabalho – Manuais de Legislação. São Paulo: Atlas, 1998, p. 28-29.
263
ficamos com a sensação de que Clênia, raras vezes, buscou um meio termo nessa
conciliação. Algumas evidências apontam que ela esteve muito mais zelando pelos
interesses da empresa do que buscando garantir a segurança dos trabalhadores.
Exemplos disso se encontram no próprio campo de atuação de Clênia, quando se
verificou a segurança do trabalho na usina. Determinados procedimentos, como controle
de vacinação dos funcionários, exames periódicos e uso dos equipamentos, não estavam
sendo realizados como deveriam. Conforme o Relatório de Avaliação Ambiental, os
registros de verificação desses procedimentos apresentavam-se incompletos.
Em nossa conversa, Ione relatou que, somente depois de dois anos na usina, foi que
deram início ao processo de vacinação dos trabalhadores. Isso denota que, entre os anos
de 1997 e 1999, eles estiveram desprotegidos contra possíveis doenças e infecções que
pudessem contrair no contato com o lixo. Somando-se a isso a constatada falha no uso
dos equipamentos de proteção, a situação tornava-se ainda mais complexa, revelando
como foi lento o processo de a empresa organizar o trabalho na usina, tentar superar as
falhas e garantir meios para a prevenção da saúde e proteção da integridade física dos
funcionários.
Há outros elementos indicativos de como era a estrutura e o espaço físico da usina.
Em 2001 e 2002, entrevistamos os trabalhadores e, para isso, usávamos o espaço da
cantina. Como as entrevistas ocorriam sempre pela manhã, podíamos ver, num canto,
marmitas guardadas sem refrigeração. Lembramo-nos de que, até mesmo ali, os
mosquitos importunavam sem parar, dentre outros problemas que também foram aludidos
no Relatório, a carência de uma infra-estrutura mínima lavatórios e chuveiros
insuficientes e a inexistência de pias para lavar as mãos junto ao refeitório, com “papel
toalha e sabão líquido” poderia ser constatada por quem visitasse o aterro.
Nesse caminho, as visitas à usina, feitas por escolas, universidades e pessoas de
outras cidades que vinham conhecer o empreendimento, constituem importante dimensão
da experiência dos trabalhadores. Consoante vimos, eles enfrentavam o preconceito
dentro mesmo de seu espaço de atuação. Não apenas da parte de colegas que exerciam
outras funções, mas também de pessoas que visitavam o aterro. Essa avaliação foi Maria
Aparecida quem fez ao responder se seus colegas compartilhavam desse sentimento:
264
Eu acho que sim, eu acho que sim, porque não é um trabalho bem visto. É um trabalho pra quem,
porque inclusive a gente é até humilhado aqui dentro mesmo. Não pelos nossos colegas. (É) que às
vezes vem caravana, aqui vem muita caravana de escola. Então as pessoas chega e coloca o dedo
nas narinas e coma a falá: - “que mau cheiro”, outros então, né?: - “Eco, como vocês agüentam”?
Então isso já é uma forma da gente se senti muito pequeno, né? Mais é o trabalho que a gente faiz.
Eu acho que qualqué um gostaria de trabalhá numa coisa melhor.
59
Maria Aparecida traduziu sua percepção do que significa trabalhar com o lixo:
realizar uma atividade que é malvista pelas pessoas. Um sentimento que disse ser
experimentado também por seus colegas. Na leitura que ela própria fez dessas relações,
um movimento simultâneo de enfrentar a humilhação e ao mesmo tempo de reafirmar a
dignidade. Quando os visitantes esboçavam gestos de nojo e repugnância em relação ao
lixo, os trabalhadores sentiam-se diretamente atingidos. Embora soubessem que as
pessoas não estavam se manifestando em relação a eles, acabavam assimilando como
se assim o fosse, afinal, estabeleciam uma convivência diária com aquilo que os outros
sequer suportam ver e quanto mais sentir o odor. Por isso, o sentimento de humilhação,
ser comparado ao lixo, sentir-se diminuído.
Conquanto a vivência da humilhação seja uma experiência individual, absorvida e
digerida de maneira diferente e singular, ela é também uma experiência social, porque
vivida coletivamente. Sentida na pele, se elaborada na consciência daqueles que
vivenciam o que é ser estigmatizado e que vão tomando consciência de seus direitos, a
humilhação é um sofrimento que pode vir a ter um alcance político. Não são poucos os
trabalhadores submetidos a formas de preconceitos e estigmas sociais, veladas ou
escancaradas. Ao buscar enfrentá-las, estão lutando não apenas contra algo que queira
rebaixá-los, mas também contra todo um mecanismo de dominação, que contribui para
determinar o lugar social de cada um e definir as relações vividas, os valores e a
sensibilidade.
60
Essa é uma das razões pelas quais os trabalhadores da usina afirmavam com certa
ênfase que aquele era o trabalho que faziam, o qual lhes permitia sobreviver. Uma
insistência significativa, uma maneira encontrada por eles para provar que seu modo de
trabalhar é tão digno quanto qualquer outro. Reelaborando essas contradições, mostram-
se sujeitos denunciando a complexidade do universo de trabalho, das relações que
59
Maria Aparecida Moreira. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
265
estabelecem, da luta contra o preconceito e do esforço que empreendem pela
sobrevivência.
Partilhando essa experiência de se sentir humilhado e de, ao mesmo tempo, tentar
reafirmar a dignidade, os trabalhadores estabeleciam, entre eles, relações de
companheirismo e de solidariedade. Certos elementos do dia-a-dia na usina sinalizam
como isso se configurava.
O dia de trabalho começava às 7h30. Aqueles que não residiam nas imediações
faziam um longo percurso no ônibus da empresa, uma vez que eram muitos funcionários.
Geralmente, paravam às 17h, a fim de varrer a área próxima ao barracão em que fica o
refeitório, a entrada de acesso a usina e outros espaços. Terminavam por volta das
17h30.
Durante o horário do almoço, reunidos, aproveitavam para descansar. Alguns
utilizavam esse tempo para dormir um pouco, outros, conversar com os colegas e, até
mesmo ler, como é o caso de Sílvio, um leitor voraz, que, em seus momentos de repouso,
lia quase todos os livros e revistas que costumam vir junto com o lixo.
Aí cada um fica num canto aí, deita, outros pega um livro, revista, vai lê, o que num falta aqui ..., aqui
você tem a oportunidade de ler todos os jornais, todas as revistas. Então pelo menos informação,
fica desinformado quem quer. Chega um pouquinho atrasado, mais chega. Porque aqui é igual o que
eu te falei, revistas, livros é o que não falta. Então, eu, como adoro ler, tô sempre de olho em tudo
que acontece. Tem gente que fala assim: “você lê isso?” - Não custa nada! Quê que vai me prejudicá
se eu leio um livro aí, um evangélico ou um de umbanda ou sei lá o quê, uma Playboy ou sei ou ...
no que tá escrito lá, vou ganhá alguma coisa, num tô perdeno nada.... No horário de almoço, dentro
do ônibus mesmo. Se tivé coisa muito interessante, vai pra casa, eu leio lá. Desde que a revista
esteja em bom estado, possa ir ... Às vezes, chega em bom estado, às vezes, não.
61
Discorrendo sobre seu hábito e gosto pela leitura, Sílvio contou-nos a respeito do
que faziam seus colegas durante o intervalo de almoço. À medida que descrevem o dia-a-
dia na usina, os trabalhadores deixam entrever como esse era um momento precioso para
a convivência: conversar, brincar, rir, contar piada e descansar, assim narrou Maria
Aparecida:
60
Ver Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. COSTA, Fernando Braga da. op. cit., p. 130.
61
Sílvio Roberto de Faria. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
266
Geralmente, o horário de almoço da gente é o quê? É uma hora e meia de almoço. Meia pra você
almoçá, uma hora ou você dá uma deitadinha, dá uma descansadinha, né? Alguns jogam conversa
fora, mais como devido ser um serviço que você fica muito de pé, a maioria qué é descansá mesmo.
Ou fica sentado, conversano, no horário de almoço da gente.
62
Porque acordavam cedo e permaneciam muito tempo de pé, os trabalhadores
davam prioridade ao descanso nesse intervalo. Em sua fala, Marliete apontou o variado
uso que faziam desse tempo:
Eu muitas vezes vou dormir, põe um papelão lá no chão e durmo. Que uma hora dá pra dormir
bastante... É, uns dorme, outros fica conversano, outros fica jogano carta.
63
Marliete fez uma descrição interessante, a de os trabalhadores cochilando deitados
em um pedaço de papelão sob uma sombra qualquer. Vemos imagens semelhantes em
alguns lugares, aliás, já fazem parte da paisagem urbana: os garis que, durante o horário
de almoço, se deitam tranqüilamente num canto e conseguem dormir um pouco, a
despeito da movimentação; é impressionante a maneira como conseguem se apropriar
dos espaços públicos. Mesmo enfatizando que o uso do horário de almoço era para o
repouso, os trabalhadores assinalaram ainda como era um tempo para a convivência e o
diálogo.
A gente alma aqui... Fica aqui mesmo, debaixo aqui, fica na sombra, esperano começá o horário de
trabalho. Conversano, fica aí bateno papo até dá o horário, deu o horário a gente já desce, né? Vai
trabaiá. Conversano, sobre tudo, né? A gente conversa sobre tudo...
64
“A gente conversa sobre tudo”... com essa frase, Roberto, embora tenha se
mostrado bastante reservado em sua entrevista, transmitiu a idéia de que a convivência
que os trabalhadores foram estabelecendo entre si era importante fator no cotidiano. Edna
também enfatizou como muitos de seus colegas, ao contrário dela, eram comunicativos, o
que possibilitava um bom entrosamento entre eles, independente de ser homem ou
mulher.
A gente almoça, cata um papelão e vai pra aí, debaixo dessas árvores aí, fica aí descansando. Esfriar
um pouco a cabeça, que é muito barulho. ... Conversano, ixi é tanta coisa! É história de família, a
gente vai contar história, vai contar piada...
65
62
Maria Aparecida Moreira. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
63
Marliete Araújo Alves Lemes. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
64
Roberto Alves da Silva. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
65
Edna Pereira. Entrevista realizada 05 de dezembro de 2001.
267
Os trabalhadores comentaram que, habitualmente, conversavam sobre a família, o
trabalho e os problemas do dia-a-dia. Em grupos maiores ou em dupla, por ter mais
afinidade com um ou outro colega, compartilhavam o tempo de descanso, fazendo dele
um momento de sociabilidades criativas. Lembramo-nos de que Edna, em seu
depoimento, refletiu sobre a importância desses momentos de descanso e diálogo entre
eles. Segundo ela: “se a gente não puder conversá nem brincá com as pessoas, acaba se
fechando muito e as horas nem num passa nesse lugar”. Edna confessou ainda que algo
de que sentiria falta quando saísse do aterro seriam “as amizades”. Procurando resumir
em poucas palavras como era o relacionamento entre os colegas, Maria Aparecida
avaliou que “eram todos como uma família” e que, entre eles, “não havia diferenças”.
66
Ouvir os trabalhadores contar a respeito do que faziam nos momentos de descanso
no aterro instigou-nos a refletir sobre vários sentidos das práticas desenvolvidas por eles.
A capacidade de se apropriar daquele ambiente e de construir relações que lhes
propiciava forjar um espaço de trabalho digno. Assim, o constante exercício de
sociabilidade demarcava uma profunda habilidade, que era a de conseguir transformar o
aterro, um lugar hostil e pouco propício à convivência, num espaço em que valia a pena
estar presente pela possibilidade de estarem juntos conversando e partilhando suas
histórias, suas experiências.
Eles se identificavam entre si. De fato, estavam lá porque precisavam trabalhar, e
não haviam encontrado oportunidade em outro lugar, em condições melhores. São
realmente ambíguas tais relações. Primeiro, esse trabalho provia-lhes dificuldades de
sobrevivência e até necessidades de outra ordem. Contudo, muitos deram a impressão de
esperar ser um trabalho transitório, até que aparecesse ocupação melhor. Eles
aprenderam e desenvolveram maneiras de lidar com o lixo, mas não fizeram disso uma
profissão, nem pareciam criar raízes no lugar.
Segundo, todavia sentissem calor, cansaço e desconforto, os trabalhadores
procuravam enfrentar esses obstáculos com criatividade e bom humor. Quando
comentaram sobre os procedimentos e exigências da atividade que realizavam, deixaram
entrever como, ao longo do tempo, foram estabelecendo vínculos e fomentando entre si
valores como o companheirismo e a preocupação com a integridade física do outro. Zileila
declarou que, quando havia um novo colega em fase de adaptação, ela sempre procurava
66
Maria Aparecida Moreira, conversa informal com a autora em 06 de junho de 2004.
268
ajudá-lo, orientando-o sobre a melhor forma de lidar com as dificuldades. Fazia isso
porque acreditava que tal atitude contribuiria para amenizar o choque que muitos
contavam ter quando se deparavam naquele ambiente de trabalho. Ela explicou que se
tivesse recebido esse tipo de auxílio, teria sofrido menos quando começou, porque não
recebeu ajuda dos colegas nessa fase nada disse. Talvez não estivesse se referindo a
eles em particular, mas às condições de trabalho, mais precárias naquele estágio. Isso
nos fez pensar sobre a solidariedade entre os trabalhadores e como se dariam esses
laços. Elementos que, de certa forma, pareciam articular-se ao processo de adaptação.
O princípio, em qualquer atividade, é sempre mais difícil, foi assim que traduziram a
idéia de que, com o tempo, se acostumaram ao espaço da usina e às atividade que
realizavam. O odor do lixo, o ruído dos tratores, a poeira, o calor e as moscas eram
características do lugar em que permaneciam por mais de oito horas durante cinco dias
da semana. Não se trata de dizer que os trabalhadores tenham deixado de sentir esse
ambiente, porém, que aprenderam a suportá-lo. No cotidiano, apropriando-se dos modos
de trabalhar, lidando com as normas existentes, dominando certos procedimentos, eles
passaram a ver o trabalho de maneira diferente. Nisso, o relacionamento com os colegas
teve um peso significativo. A exemplo das relações de colaboração entre os
trabalhadores, Ione expôs a preocupação que tinham uns com outros, diante do perigo de
se machucarem:
Nois trabalhamos com luva e no caso, geralmente assim, quando alguma coisa assim, tipo injeção,
quando uma vê já avisa pra outra e uma vai avisando pra outra. Agora mais quando num vê,
dependendo do que tá marrado na sacola aí geralmente...
67
A necessidade de avisar os outros sobre objetos que pudessem espetar ou cortar
surgiu também em outros depoimentos, como o de Silvany:
... Por exemplo, se eu abro aqui uma sacola cheia de seringa, vou avisar pra minha colega: Você não
põe a mão porque tem ..., aí uma vai passando pra outra. Então, com isso, a gente evita
muito
acidente. Porque eu vi, mais os outros não viram, meu dever é avisar pra todo mundo. É assim que a
gente trabalha lá, quando vê uma coisa, talvez vê um animal morto. Ou, lá vai passano! Aí a gente se
afasta da esteira. É assim que a gente trabalha.
68
67
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
68
Silvany Moreira de Freitas Andrade. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
269
Nas frases de Silvany, interessantes elementos da relação entre os trabalhadores.
Em seu depoimento, notamos o componente da obrigação exigência da maneira como
se estruturava a atividade na esteira. Mas, nesse mesmo processo, com a convivência no
dia-a-dia, a experiência que foram adquirindo diante das próprias pressões e do medo
que experimentavam, os trabalhadores tornaram-se mais próximos e aprenderam a se
respeitar mutuamente. O testemunho de Ione é emblemático disso:
Não porque igual aqui, a gente, supõe, eu pelo sô menos assim, se eu tô estressada em casa, assim
algum problema, eu deixo lá, e a mesma coisa daqui, principalmente daqui. É que aqui tem dia que a
gente fica contrariado com as coisas, com certas coisas, então a gente parece que vai aprendeno
uma lição de quando a gente saí do portão pra fora, o próprio organismo parece que encarrega de
deixá
tudo aqui, sabe? Então assim, deixa a poeira, deixa tudo, sabe? Então... Que a gente pensa,
aqui num é uma coisa pra muito ... num é fixo, né? A gente tá aqui por tá, mais um dia tem que saí.
Então, o que vale é o companheirismo, a amizade. Num falo que, assim, tem muita, a gente num tem
aquela amizade igual é amiga, amiga, mais assim, na medida do possível a gente vai aprendeno a
respeitar, e a respeitar os direito de cada um, né?
69
Ione traduziu sua visão sobre o relacionamento com os colegas. Apesar das
contrariedades, da vida ou do trabalho, aprendia-se que o melhor era valorizar “o
companheirismo, a amizade”. Mesmo quando esses laços não eram tão fortes, “na
medida do possível”, cultivava-se o respeito pelo outro. Lições que foram sendo
adquiridas no dia-a-dia e na relação com os colegas. A tolerância, que passava a compor
o universo dos trabalhadores, conectava-se a algo que possuíam em comum: o trabalho,
a lida com o lixo como construção da sobrevivência.
Se, de um lado, isso constitui uma dimensão dos limites; de outro, há uma enorme
riqueza contida na maneira como a atividade dos trabalhadores na usina propicia a
possibilidade de refletir sobre diversos aspectos de nossa cultura, que se expressam na
maneira como se lida com o lixo. Mais rico ainda é perceber como os próprios
trabalhadores avaliam, por meio do lixo, determinadas atitudes da população, as quais
consideram inadequadas por revelarem desperdício, descuido ou irresponsabilidade. Um
exercício em que, ao tomar contato com o lixo que a cidade produz, os trabalhadores
identificam, lêem e interpretam determinadas relações do viver urbano.
Expondo a respeito do que vinha no lixo, suas respostas e observações variavam.
Comentando se havia coisas que poderiam ser aproveitadas, Ione fez referência a certos
270
objetos que eram separados e levados ao Museu do Lixo existente na usina à época.
Geralmente, “algum trabalho ou algum material antigo” seguia para lá. Tratava-se da
estrutura de um ônibus velho, de onde se retiraram os bancos e em cujo interior
organizaram o respectivo museu, espaço que também sugeria o reaproveitamento dos
restos e que, apesar da aparência simples, constituía uma iniciativa dentro de um
empreendimento mais amplo: a exploração, a comercialização do lixo e a propaganda em
torno disso. De acordo com Clênia, quando a usina foi desativada, desmancharam o
Museu do Lixo. Os objetos: ferro a brasa, panela de ferro, moedor de café, telefones
antigos e brinquedos em geral foram doados a quem os quis.
Seja como for, as visitações à usina e o próprio museu são elementos da cidade, a
indicar como a problemática do lixo veio levando as escolas, por exemplo, a pensar como
ele é tratado, a ver e a discutir como se configura essa questão, no começo, estimuladas
pela prefeitura, depois, por iniciativa própria.
O aterro foi uma das soluções encontradas pelo poder público para dar um destino
ao lixo, propagada como sinônimo de modernização. Nessa perspectiva, a usina de
triagem simbolizava uma maneira técnica e racional de dar fim ao lixo. Mas, não obstante
os novos problemas que geraram, tanto um quanto outro representaram importantes
aspectos na construção da experiência urbana, sobretudo, para os trabalhadores.
Conforme alguns relataram, o lixo é revelador dos hábitos de consumo da
população. Silvany apontou como os restos indicam elementos da sociedade que os
produz:
É dá pra saber, né? Um pouco de coisa que eles consomem. Eles consomem mais são refrigerante,
xampu, material de limpeza, né? Esse tipo de coisa... Tipo roupa, calçado, eles jogam coisas que
serviriam pra outras pessoas não têm, que... dava pra aproveitar, coisas boas. E, muita coisa eles
jogam fora, coisa boa mesmo. Então eu achava assim, poderia dar para quem precisa, doar. Então eu
acho um desperdício.
70
Sondando o lixo, os trabalhadores conseguiam saber a natureza do consumo que
predomina na cidade. Assim, lançavam olhares sobre certos lugares, seus habitantes e
suas práticas. A presença das embalagens de produtos industrializados, refrigerantes
contidos em PET e cervejas em latas de alumínio, entre outros, evidenciam os hábitos de
alimentação, a capacidade de produção de resíduos e o poder de compra dos moradores,
69
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
271
ou de uma parcela deles, pois o lixo selecionado nas esteiras provinha da região central
da cidade e de bairros mais próximos a ela, locais onde reside uma população privilegiada
economicamente. A principal justificativa para isso deve-se ao fato de o lixo desse setor
ser rico em recicláveis, portanto, atrativo para ser explorado. Ainda que o perfil desses
restos também se modifique conforme o dia da semana.
Principalmente porque a gente, a gente separava, tinha quantidades maiores ou menores,
dependendo do que a população consumia. Então se nós fôssemos analisar, por exemplo, uma
época que mais a gente conseguia material, era época de festa, carnaval, natal, ano novo, época do
dia das mães. Por quê? Normalmente, são períodos que a população consome mais bebidas, mais
refrigerantes e mais cervejas e, conseqüentemente, o nosso trabalho aumentava.
71
Segundo a técnica de segurança, o lixo produzido pela população nos fins de
semana e feriados é mais rico em materiais descartáveis; embalagens de produtos
industrializados, alumínio e plástico, o que fazia com que os trabalhadores, na segunda-
feira, sofressem uma alteração em sua rotina, o ritmo era mais exigente. Um aspecto da
organização do trabalho na usina em que se entrevê a articulação existente entre
produção de lixo, festividade, hábitos de consumo e padrão de vida da população.
A pesquisa de Castro, em que buscou caracterizar o lixo de Uberlândia, informa
sobre a origem e o conteúdo do lixo doméstico da cidade. De acordo com a autora, os
restos vindos do centro apresentam maior quantidade de materiais recicláveis do que os
da periferia, que, por sua vez, se alteram nos fins de semana, quando a população, nos
períodos de descanso e lazer, consome mais mercadorias, cujas embalagens são
reaproveitáveis. Seu estudo aponta, ainda, que quintas e sextas-feiras são dias em que
se estabelece uma uniformidade no lixo de toda a cidade, havendo uma predominância de
restos orgânicos. Esses resíduos, assevera Castro, são predominantes no lixo urbano,
tanto em Uberlândia quanto em cidades de perfil semelhante. O fato de se encontrar
quantidade expressiva de sobras de alimento compondo os resíduos é sintomático de
outro aspecto dos hábitos de consumo da população, comprar mercadorias em excesso
ou não conferir a data de validade delas. Esses restos descartados, por falta de atenção
ou de informação, sinalizam o desperdício inerente aos hábitos de uma parcela dos
moradores.
72
70
Silvany Moreira de Freitas Andrade. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
71
Clênia Maria Rocha Jerônimo. Entrevista realizada em 12 fevereiro de 2003.
72
CASTRO, Mirlei Silva Melo Vasques de. op. cit., p.101.
272
Além disso, há outros aspectos dessa questão que consideramos indícios de
relações vividas na cidade, que desvelam uma determinada organização, que transparece
na maneira como se produz e se destina o lixo. Em primeiro lugar, o fato de que o debate
acerca do problema do lixo remete sempre a quem são seus maiores produtores. Nesse
caso, será que se pode entender que as classes potencialmente consumidoras deveriam
assumir maior responsabilidade quanto ao destino do lixo, já que o produzem em
expressiva quantidade? Em segundo lugar, e talvez essa não seja uma justificativa
plausível do ponto de vista da Limpel, agora nos parece mais compreensível o fato de
terem aumentado as reclamações dos moradores dos bairros periféricos, sobretudo, a
partir da terceirização dos serviços de limpeza pública. Eles alegavam que o serviço de
recolhimento vinha decaindo em qualidade. Se considerarmos a instituição de uma
hierarquia no processo de coleta do lixo na cidade, então, recolher o lixo da região central,
certamente, era prioridade para a empresa.
Manuseando os resíduos, os trabalhadores identificavam não apenas o que a cidade
consome, mas também o que desperdiça. Julgando inaceitável que certos objetos
pudessem estar no lixo, eles rejeitavam a idéia de que fossem vistos como tal. Com um
misto de incompreensão, Sílvio falou das discrepâncias sociais que os restos expressam.
Porque uma coisa que eu observo muito aqui é o tanto de livro que as pessoas jogam fora, que
poderia ser doado à biblioteca. Até livro assim completo mesmo, enciclopédia muito boa mesmo,
importante, José de Alencar já vi muitos. Livro de estante mesmo que o pessoal devia, tá
incomodando em casa? Dá pra biblioteca, doa lá, livro de pesquisa. Livro que, às vezes, faz falta
numa escola pra aluno que não tem condição de comprá... Que são muitos, né? Num é pouco.
73
A abundância de recursos que se vê no lixo denuncia sua origem. Silvany, em seu
depoimento, apontou como “eles” jogam fora roupas em condições de serem usadas por
outras pessoas. “Eles” são aqueles que produzem um lixo com muitas “riquezas” e, na
linguagem dos trabalhadores, desperdiçam. Uma insensatez quando nos deparamos com
tanta carência e miséria a nosso redor. Interpretando essas contradições sociais, Sílvio
estranhava quando encontrava livros junto aos refugos, num país onde o analfabetismo
ainda impera e o hábito de leitura é exceção, pois livros, revistas e jornais custam caro,
sendo acessíveis a uma pequena parcela da população. Diante da existência de escolas
73
Sílvio Roberto de Faria. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
273
em que sequer há uma biblioteca, tal atitude é, no mínimo, incoerente. Sílvio deu
exemplos e teceu sua crítica à consciência precária inerente à maneira como as pessoas
descartam certos objetos. Os trabalhadores, cuja luta pela sobrevivência é árdua, vêem
como descabido esse descarte pródigo. Para eles e muitos outros que sempre ensinam
aos filhos a importância de se conter e de aproveitar melhor os recursos para que não se
tornem escassos, o esbanjamento chega a ser indecoroso.
Nesse sentido, percebemos diversos elementos na leitura que os trabalhadores
faziam do lixo da cidade: a origem, o consumo, o desperdício e as relações intrínsecas a
essas práticas. Por meio dos restos, eles também liam os hábitos, os costumes e a
intimidade dos moradores. O que constituía uma forma de se relacionarem com a cidade,
mapeando-a, como se fizessem um diagnóstico social. Isso também não deixava de ser
um domínio sobre ela, uma espécie de reversão.
Em outras palavras, eles, que foram incumbidos da tarefa de cuidar dos restos
recusados, aquilo que ninguém quis, passavam, assim, a adquirir maior consciência dos
problemas relacionados com o lixo na cidade. Saberes que os trabalhadores iam
produzindo no contato com os resíduos, elementos que conseguiam discriminar antes
mesmo de ser feita a triagem do que seria reaproveitado, daquilo que iria transformar-se
em fibra, alumínio, vidro ou papel.
Interessa, pois, refletir acerca de uma característica fundamental do lixo: um forte
componente de anonimato, quecontribui para acirrar a intolerância a ele.
Historicamente, somos intolerantes aos problemas existentes nas cidades e que
permanecem pouco visíveis, sem que se indique sua origem, configuração e destino. O
lixo é sempre coletivo, pois o que o caracteriza como tal é o fato de se apresentar em
grande quantidade. Ele aparece muito como alvo de estudos e debates, mas sem
menções aos trabalhadores que o manipulam e vivem dos recursos desse trabalho. É
com isso que conviviam os trabalhadores, com espaços de trabalho que são lugares de
lixo, todo ele reunido num só ambiente, em que tudo se mistura. Isso se mostrava de
modo muito forte, o lixo chegava até eles, impunha-se. Talvez, esse seja um aspecto que
influencie no fato de serem considerados “trabalhadores do lixo”. Vê-los trabalhando na
esteira ou ver a imagem do lixo amontoado no fosso propicia uma noção do que faziam.
274
Foto 7
. Um trabalhador opera a máquina que retira o lixo do fosso de recepção para colocá-lo na esteira.
Fotografia produzida por servidores públicos. Arquivo da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, 1998-2000
(data provável).
Em contraposição ao caráter de anonimato do lixo e a sua faceta impositiva, os
trabalhadores contribuíam para sua identificação, pois determinadas características dos
refugos indicavam sua origem. Pela triagem e classificação dos restos, davam finalidade a
algo, até recentemente, considerado inútil. Nisso residia, em parte, a importância da
atividade que exerciam. Em alguma dimensão, essa percepção transpareceu nos
depoimentos de alguns, por vezes, como uma maneira de lidar com o preconceito que
percebiam e sentiam; agora, em outros momentos, caracterizava uma tentativa de
reafirmar que o trabalho que faziam era necessário tanto para eles quanto para a cidade.
Sobre já ter se sentido discriminada em decorrência da ocupação que realizava, Ione
respondeu:
Não, nunca. Eu penso assim, desde que a gente esteja trabalhando honestamente e, supõe, o
dinheiro que eu ganho aqui, é o dinheiro que eu sustento meus filhos, o dinheiro que eu compro uma
roupa bonita. Qué dizê, quando eu vô saí daqui, eu tomo meu banho, visto minha roupa. Então, o
serviço que a gente faiz aqui é independente da vida lá fora. De eu podê chegá no meu lar, tê
dinheiro pra comprá meus móveis, minhas coisas, então, é independente. Então eu não penso isso.
275
Eu penso assim: aqui eu venho para trabalhar, mais a hora que eu saí, que eu chego na minha casa,
tê minhas coisas, é o dinheiro pra comprá algumas roupas. Então, eu fico é contente...
74
Dividida entre o preconceito e a própria afirmação, Ione atribuía a seu trabalho vários
elementos, entre eles, o da conquista da sobrevivência, sua e dos filhos, e a manutenção
de outras necessidades “uma roupa bonita”. Ao conhecermos parte de sua trajetória de
vida, seu testemunho ganha um sentido maior. Ione é solteira e tem dois filhos. A filha de
quatorze anos está sob os cuidados da prima, que é dona da casa em que Ione mora
atualmente, e a quem paga um valor a título de aluguel. Em sua entrevista, ela contou
que, quando morava no bairro Mansur, a casa pertencia a seu cunhado. Antes de ir
trabalhar na usina, Ione fazia serviços como diarista. À medida que foi narrando esses
fatos, ela deixou entrever que, nestes últimos anos, sua vida foi marcada por várias
dificuldades e pela necessidade de contar com a ajuda da família.
Talvez por isso, o trabalho na usina era importante para Ione. Significava a garantia
de manutenção da casa, dos filhos, enfim, da própria sobrevivência. Esses foram seus
argumentos para assegurar que não se sentia desqualificada socialmente em razão dele.
Quando disse: “o serviço que a gente faiz aqui é independente da vida lá fora”, Ione quis
dizer que a atividade que exercia pode ser vista com reservas pelas pessoas, mas, para
ela, tinha um sentido que teve de ultrapassar isso, uma visão da qual Silvany compartilha:
Eu me sinto, às vezes, no começo eu me sentia assim, um pouco pra baixo, né? Hoje eu me sinto
quase uma guerreira, que, são pouca gente que suporta, né? Este tipo de trabalho. Muito pouco
mesmo, porque aqui passou muita gente por pouco tempo... Então eu me acho batalhadora, sabe?
Uma guerreira... Não me envergonho do meu trabalho, é muito legal. E se as pessoas me
perguntarem, eu não escondo. É meu trabalho e daqui eu tiro o sustento dos meus filhos ...
75
Nas entrevistas, os trabalhadores demonstraram os sentimentos que cultivavam em
relação ao trabalho. A maioria não negou a existência do preconceito e assegurou que, de
alguma maneira, aprendeu a superá-lo. Nessa imagem que buscaram construir sobre o
trabalho e sobre si, percebemos uma tentativa de se reafirmar, de firmar uma visão
positiva, justamente para conviver com a impressão depreciativa que o seu trabalho
poderia causar aos outros. A respeito disso, Sílvio emitiu sua opinião:
74
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
75
Silvany Moreira. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
276
Olha, uma coisa que eu observo muito, a gente enfrenta discriminação. Às pessoas vê a gente com
..., quando ocê chega ni algum lugar, eles falam o quê que cê faiz, onde trabalha, as pessoas já te
olham assim ..., como se ocê fosse as últimas das pessoa.
Ele assegurou, ainda, que esses sentimentos também eram experimentados por
seus colegas. Ao falar de como enfrentava a discriminação, declarou:
... Ah, eu levo de boa né? Eu sei quem eu sou, então. Isso aí a gente enfrenta. Não, (os colegas) eles
reclama a mesma coisa... Fala, a gente fala sobre isso, as dificuldades, quando a gente encontra
fora.
76
Os trabalhadores entrevistados, ao comentar sobre o fato de serem estigmatizados
por labutar com o lixo e como enfrentavam isso, deixavam transparecer como essa é uma
situação muito complexa. Lembramo-nos de Sílvio afirmar que, até hoje, o lixo causa-lhe
nojo, e de Ione, com certa ênfase, explicar que tomava banho e trocava a roupa ao sair do
aterro. Isso denota que, para eles, ainda persistia a idéia do trabalho com o lixo sendo
associado à sujeira e à falta de higiene. Vemos, aqui, a forte presença e poder do
imaginário social, demarcando determinadas associações que aprendemos a fazer em
nossa relação com o lixo, as quais os trabalhadores também assimilam. Eles precisavam
relacionar-se com obstáculos que são da própria natureza do trabalho, o lixo é quase
sempre encarado como fonte de contaminação. Envolvidos nesse emaranhado de
contraditórios sentimentos, impressões negativas e resistências diversas, os
trabalhadores buscavam enfrentar, além dos preconceitos que sofriam, os seus próprios,
e com isso construírem uma auto-imagem positiva e uma nova percepção sobre o
trabalho que realizavam. Nesse sentido, Zileila descreveu a impressão que as pessoas
tinham do que ela fazia:
Às vezes as pessoas recriminam... - “Nossa, mas você trabalha no lixo!” Mas, deve ser um bicho de
sete cabeça, né? “Ah, eu não fazia isso por nada no mundo”. Mais aí, com o tempo, a gente vai
informando pras pessoas que não é bem isso que elas pensam. Ás vezes, elas acabam mudando a
idéia delas
77
Reações de surpresa, reserva, nojo e pena são atitudes diante de quem revela que
“trabalha no lixo”. Esse era mais um dos limites impostos aos trabalhadores: deparar com
situações sugestivas da desqualificação social a que estavam propensos. Alguns talvez
76
Sílvio Roberto de Faria. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
277
tivessem vergonha de contar onde trabalhavam e o que faziam. Observamos que
atribuíam, cada um, de diferentes maneiras, distintos significados ao trabalho, como forma
de enfrentamento na vivência dessas relações.
A idéia de que as pessoas possam mudar sua opinião a respeito de quem “trabalha
no lixo”, presente na fala de Zileila, é instigante, até porque houve momentos, durante a
entrevista, em que ela descreveu-se como alguém que vinha aprendendo com a atividade
que realizava no que se refere ao comportamento das pessoas em relação ao lixo.
Segundo ela, as visitas que as escolas fazem ao aterro, contribuem para que as
crianças possam aprender e ensinar aos pais como se deve "organizar" os restos para
serem descartados. Naquele momento, Zileila foi tomada por grande entusiasmo, contou
que equipes de outras cidades vinham visitar o empreendimento, que servia de modelo
para outras localidades que queriam implantar essa prática de gerenciamento dos
resíduos. Nessa perspectiva, entre 1997 e 2000, um projeto piloto de coleta seletiva de
lixo, desenvolvido pelas Secretarias de Serviços Urbanos e Meio Ambiente, abrangendo
escolas públicas municipais e estaduais, envolveu “34.400 alunos, professores e
comunidade, com palestras educativas, distribuição de folders, e apresentação teatral”,
período em que se efetuaram “8.400 visitas à Usina de Triagem e Aterro Sanitário”.
78
Tudo isso sinaliza o caráter de espaço de trabalho empresarial da usina, o
investimento feito para divulgá-la como a solução ideal que os administradores haviam
encontrado para o problema do lixo. Nesse sentido, são flagrantes as contradições que o
lixo engendra e desnuda, pois, durante a fase de implantação e posteriormente, a usina
apresentou diversas falhas, denunciando a carência de planejamento técnico e
administrativo que ali imperava.
Entretanto a maneira perspicaz como Zileila conseguiu articular o problema do lixo à
falta de informação da maioria das pessoas, à questão ambiental e ao desperdício, é sinal
do modo como essa trabalhadora investe nessa mudança, em novas conotações que o
lixo vem assumindo na vida urbana. Ela e alguns de seus colegas, pela vivência do
trabalho na usina, incorporaram o discurso de reaproveitamento do lixo, veiculado pelos
servidores da prefeitura, o que sugere ainda como, a partir do aterro, estão se produzindo
informações sobre o lixo na cidade.
77
Zileila Martins de Melo Costa. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
278
A premissa de reciclar a fim de economizar os recursos naturais, “O lixo que não é
lixo”, é desse modo que o poder público tenta esclarecer alguns setores da sociedade
para a necessidade de reaproveitar os materiais recicláveis. A justificativa para essa
preocupação é “o crescente aumento da produção de lixo e a necessidade de diminuir as
explorações desnecessárias dos recursos da natureza”. Um panfleto distribuído à
população divulgava que “a cada 50 kg de papel que reciclamos, evitamos o corte de uma
árvore adulta, diminuímos os gastos de energia elétrica na fabricação, economizamos
50% de água, e provocamos menos poluição”.
79
Vale a pena ponderar sobre o modo como os discursos do poder público a respeito
da questão ambiental se misturam, como o interesse configura-se mais por cuidados com
o ambiente, por benefícios para uma população que aparece de maneira difusa e
abstrata. Consideramos que incorporar condições precárias de trabalho, de modo mais
explícito e enfático, seria lidar com sujeitos bem localizados, o que implicaria assumir os
trabalhadores do lixo como interlocutores, tornar a problemática desse trabalho mais
visível. Porém, isso não parece ser uma intenção dessas forças hegemônicas na cidade.
Quanto aos trabalhadores, apropriar-se dessas informações e difundirem-nas,
servia-lhes para valorizar a própria atividade, contribuir com a mudança de imagem sobre
o lixo e sobre quem trabalha com ele e conseguir a "aceitação" das pessoas com as quais
convivem. A exemplo de Ione, que assim se pronunciou:
Meu trabalho? Eu acho bom porque é uma coisa que contribui com o meio ambiente também. É uma
atividade que a gente não sabia a importância dela. Eu penso isso, né? Que hoje em dia, no caso eu
já tenho, eu já vejo assim, uma necessidade maior de ter mais cuidado com as coisas que venha
agravar, suponhamos, os rios, as plantas, a natureza.
80
Ione reafirmou a importância de seu trabalho com a idéia da questão ambiental. No
exercício dele, adquiriu essa consciência ou pelo menos o que o poder público, por meio
da Secretaria de Serviços Urbanos e de Meio Ambiente, apregoa como sendo isso. Trata-
se de outra dimensão dessas relações, a ocasião das visitas ao aterro, o ter de encarar o
78
In: Texto explicativo da campanha “Lixo Selecionado - Ambiente Preservado”. “Coleta Seletiva do lixo. Participe
você também”. Projeto piloto das Secretarias de Serviços Urbanos e de Meio Ambiente, 1997-2000. Arquivo da Seção
de Coleta. Prefeitura Municipal de Uberlândia.
79
Campanha “Lixo Selecionado - Ambiente Preservado”. “Coleta Seletiva do lixo. Participe você também”. Projeto
piloto das Secretarias de Serviços Urbanos e de Meio Ambiente, 1997-2000
80
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
279
olhar do outro, não era para os trabalhadores apenas motivo de constrangimento, era
também oportunidade de observação e aprendizagem. Foi isso que Ione deu a entender
quando relatou que alguns estudantes universitários alertaram-lhes que deveriam calçar
botas de borracha em vez de couro, como as que usavam, porque estas absorviam
umidade, e isso não era saudável.
Ressaltamos como essas experiências dos trabalhadores foram criando condições
para a incorporação do discurso acerca da importância da reciclagem do lixo. Argumentos
que vêm ganhando força, cada vez mais, nas políticas públicas municipais, em
organizações da sociedade civil, nos jornais e em outros meios de comunicação social.
Os trabalhadores, ao incorporar o discurso da reciclagem e da necessidade de
preservação do ambiente, incluíam-se nesse processo como sujeitos, enfatizando:
É lógico que é importante! Uma, que a gente tamo ganhando nosso salário, devido trabalhar com o
lixo, mais é melhor do que a pessoa vir não fazer nada. Como se diz, as pessoas que num têm
informação, elas pensam que é coisa do outro mundo, né? Mais a gente sempre tem que ter um
tempinho ... pra explicar, mostrar a realidade. É fácil? Não é fácil! Mais tudo na vida não tem um
pouquinho de dificuldade? A gente também tem que, né? ... Bom, as pessoas geralmente pensam: -
“Não, cê tá trabalhando no lixo? Aquilo lá num tem serventia pra nada”. Lógico que tem! Porque a
gente reciclando, é uma coisa que a gente também ajudando a natureza. Porque imagina a natureza,
cê vai e enterra o lixo todinho, cê tá enterrando, tem material que dura cem ano pra decompor.
Imagina a natureza lutar cem ano pra decompor um material sendo que ele poderia ser reaproveitado.
Então tudo que a gente recicla, tá sendo reaproveitado, inclusive, no mundo inteiro tá tendo usinas de
reciclagem. Por quê? Porque eles viram que tem uma renda boa, além de tá ajudando a natureza.
81
Zileila revelou uma percepção mais apurada e articulada da realidade em que vive,
ao fazer todo um intrincado percurso de análise: tece críticas sutis ao comportamento das
pessoas, reafirma a importância do próprio trabalho no sentido de contribuir com a
natureza, de evitar a poluição e a degradação, incorporando vários elementos de um
discurso ecológico voltado para uma preocupação ambiental, e relaciona a reciclagem em
Uberlândia com o mesmo procedimento em outros países. Essa consciência se forja tanto
nas rotinas de trabalho, quando mencionam ter modificado certos hábitos, desde que
passaram a trabalhar com o lixo, quanto se constitui numa estratégia narrativa de sua
parte no sentido de construir uma imagem positiva de si própria, do trabalho que faz, do
81
Zileila Martins de Melo Costa. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
280
benefício e da consciência que adquire por meio dele. Desse modo, tenta minimizar o
preconceito e conquistar aceitação. Nesse discurso, percebe-se, ainda, o argumento de
que o reaproveitamento do lixo é, sobretudo, fonte de sobrevivência para muitas pessoas.
Essa visão foi explicitada por Ione:
Eu acho bom, porque deu muito emprego pra outras pessoas também que num tinha emprego fixo e,
ao mesmo tempo, tá ajudando na limpeza da cidade, contribuino. Eu acho isso muito bom, porque é
uma nova ..., um novo conhecimento que as pessoas durante muito tempo deixaram de ter. Eu penso
isso, que, durante muito tempo, foram muitas coisas que as pessoas jogaram fora, agora isso serve,
outras pessoas estão aproveitano. Então, eu acho bom. Igual o pessoal que faz coleta particular, né?
Dos papéis, dos papelão, dos pet ...
82
Essa é uma questão destacada em vários depoimentos. O reconhecimento de que o
trabalho na usina, com todas as dificuldades intrínsecas, constituiu uma possibilidade de
subsistência, uma garantia de salário para dar conta das necessidades mais urgentes.
Por terem vivenciado a experiência do desemprego ou do ganho incerto, os trabalhadores
admitiram que aquela atividade era preferível a não ter outra ocupação.
O que eu penso? Eu penso que é um trabalho como qualqué um, que tivesse, às vezes, precisano
teria que fazé, né? E é um trabalho também que como se diz; todo trabalho que você faz, seja ele
qual seja, desde que seja com honestidade, você, alguém tem que fazê. Que, às vezes, as pessoas
olham a gente e falam, quando a gente fala que trabalha na usina de reciclagem: “Nossa, você não
tem medo de se contaminá lá? Você não tem medo de machucar?” Tudo bem, a gente corre todo o
risco, qualqué trabalho que você esteja fazeno. Esse é um trabalho que você tem que tê mais
atenção, claro. Óbvio. Só que alguém tem que fazê, né? Alguém tem que fazê esse tipo de trabalho.
E como eu entrei aqui já conheceno o trabalho, eu estou aqui e faço. Gosto de trabalhá. Gosto de
trabalhá com esse tipo de trabalho, já acostumei, então ...
83
Diversos elementos transpareceram no depoimento de Maria Aparecida:
necessidade, medo, perigo e, simultaneamente, honestidade, dignidade e disposição em
fazer algo que não é bem visto pelas pessoas. “Alguém tem que fazê esse tipo de
trabalho” essa sentença delineia a aguda percepção que ela possuía acerca dos
limites, das barreiras que, sob vários pontos de vista, esse trabalho lhe impunha. O modo
como via e discorria sobre isso expressa a sagacidade com que era capaz de interpretar
82
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
83
Maria Aparecida Moreira. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
281
essas relações, de buscar entender e explicar o lugar social que ocupava nelas, e as
contradições intrínsecas a isso.
Maria Aparecida declarou conhecer e saber realizar o trabalho, ao mesmo tempo,
admitiu ter sido o que sobrara para fazer. Isso desvenda as ambigüidades e oscilações na
experiência dos trabalhadores. A compreensão e a afirmação de que “alguém tem que
fazê esse tipo de trabalho” traduz a percepção de que são eles que realizam um trabalho
do qual ninguém quer se ocupar, mas também podem ser interpretadas como um olhar
sobre a cidade e a vida urbana, que, no estágio atual de desenvolvimento, requerem a
realização dessa modalidade de trabalho. Conquanto possam ser pensadas formas de se
aperfeiçoá-lo, de maneira a evitar o contato direto com a sujeira, com os materiais
cortantes e, por conseguinte, os riscos à saúde. Para tanto, os próprios trabalhadores
sugeriam pistas de coleta seletiva, quando observavam que a população poderia ter mais
cautela ao descartar o lixo, propostas com altos e baixos na administração e no cotidiano
urbanos.
De todo modo, os trabalhadores se defrontam com um universo em que as opções
efetivas são escassas. Exemplo disso é quando, apesar de ter dito que gostariam de
exercer outra ocupação, as trabalhadoras, concomitantemente, demonstraram uma visão
realista da situação em que se encontram:
Olha, eu trabalho aqui porque assim, se, claro! Eu acho que qualqué um, se você encontrá uma coisa
melhor. O objetivo de todos nós é melhoria de vida, né? É sê alguém, tê uma coisa assim ... Então se
eu encontrasse uma coisa melhô, desde que seja uma coisa certeza, eu iria sim. Mas não saí aqui
pra ficá desempregada bateno de porta em porta, isso jamais eu faria.
84
Eu sinto bem. Só que a gente pensa também em saí, eu penso sabe? Mais eu imagino assim que
depois fica difícil pra encontrá outro serviço também, né? Aí, fazê o quê? Cê vai deixá o certo pelo
duvidoso, o jeito é ficá.
85
Maria Aparecida e Dilma foram enfáticas ao afirmar que não sairiam da usina sem a
perspectiva de um emprego melhor em vista. Aquele não era um trabalho bom, mas era
certo. Embora, em outro momento, Maria Aparecida também tenha comentado que
gostaria de fazer um trabalho em que não corresse tantos riscos, que comprometesse
menos sua saúde. Quando a usina foi fechada, em razão de suas relações na Limpel,
conseguiu ser contratada como gari. Mas não considera a varrição de vias públicas
84
Maria Aparecida Moreira, idem.
85
Dilma Correia. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
282
menos cansativa que sua atividade anterior. Em sua avaliação, o trabalho na rua e as
intempéries fazem com que aquela seja uma ocupação igual ou mais precária do que a
sua. Já Dilma ponderou que houve uma época em que teve oportunidade de adquirir
outro emprego; porém, como o salário era equivalente, a despeito da natureza de seu
trabalho, ela não via grandes vantagens:
A minha família não gosta não, que eu trabalho aqui não. Meu pai é contra isso desde que eu entrei
aqui. Ele já encontrou até serviço pra mim, mais eu num quis não. Uma que ganhava o mesmo tanto
que a gente ganha aqui... Perigoso, ele acha perigoso. Ele acha que tem risco de saúde ... Depois de
trinta minutos ali você, entendeu? ... Tem gente que dá dor de cabeça. Eu não, porque já tem muito
tempo, mais dá...
86
Entremeando fatos, os trabalhadores enumeraram as várias restrições decorrentes
do trabalho com o lixo, contidas tanto em sua realização quanto na maneira como é visto
pelos outros. A vergonha de revelar onde trabalhava era sempre atribuída ao outro, mas o
fato de quase todos citarem isso indica o quão perturbador era o tema.
Não, eu tem até orgulho de falá pros ôtro. Tem hora que eu falo assim: “Onde cê trabaia”? Trabaio lá
no lixão, pronto! Mais é porque, uma, que eu gosto de trabaiá aqui, né? Porque tem gente que tem
vergonha de trabaiá aqui ... Às veiz tem vergonha da profissão, né? Mexé com lixo. Eu não, nunca
tive. Porque muitas veiz a pessoa é discriminada num lugá, mais eu nunca fui não. Antes de trabaiá
aqui, antes de trabaiá na Granja, trabaiava de balconista. Trabaiei quatorze ano de balconista, mais
uma profissão que eu não tem vontade de voltá mais. E aqui eu gosto, toda vida eu gostei.
87
Quando se dispuseram a esclarecer sobre o sentimento de constrangimento ao
declarar que trabalhavam numa usina de lixo, os trabalhadores não se furtaram a discutir
os diversos aspectos que contribuíam para isso. Os modos como procuravam explicar a
razão da vergonha que sentiam e do preconceito que sofriam apontavam uma infinidade
de complexas questões.
... Gente boba, né? Eu acho que é. Porque cada um com sua profissão. Às veiz que mexe com lixo é
porque num tem, às veiz num tem estudo, num conseguiu uma coisa melhor. Cê num vê? Em São
Paulo, o povo fala que tem dotor, até dotor trabalhano de lixeiro, barreno rua, essas coisa, direto
passa na televisão. Num arruma a profissão dele, tem que rebaixá. O que achá, né? Prá num passá
fome. Aí, muitas vezes, porque tem gente que é, que às veiz se trabalhá no lixo, às veiz tem nojo de
você ou coisa assim. Mais muitas veiz que é bobeira também das pessoa, né?
88
86
Dilma Correia, idem.
87
Marliete Araújo Alves Lemes. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
88
Marliete Araújo Alves Lemes, idem.
283
Tratar o tema da vergonha, do estigma e do preconceito, enfrentados pelos
trabalhadores, é interpretar situações contraditórias. Quanto a isso, os depoimentos
possibilitam indagações acerca da relação trabalho e escolaridade. A fala de Marliete
remeteu a certos aspectos dessa realidade em que a falta de estudo favorece o
desemprego ou trabalhos precários, no entanto ela também observou que há “dotor que
num arruma a profissão dele e tem que rebaixá”. De fato, esse é um problema cujas
dimensões desvendam uma tensão, falta trabalho para muita gente e o desemprego
permanece como um horizonte na cidade. Sílvio reagiu diante da idéia de que todos que
trabalhem no lixo o fazem por serem incapazes ou por não terem qualificação ou
escolaridade para realizar outra atividade.
89
... E as pessoas acha que num condição de fazê outra coisa. Não é isso. Que aqui tem muita gente,
que, às vezes, no meu caso, eu pensei: ah, três meses, eu arrumo outra coisa e saio. Mais o que
pintou não foi interessante, acabei ficano. ... Que eu trabalhava no almoxarifado, ali sentado,
limpinho, com a caneta na mão, papel. De repente, pá! Num sei se você desceu lá embaixo, viu a
esteira ou não. Desceu, né? Cê viu, pra quem não tá acostumado, o impacto é terrível...
90
Denunciando a ausência de oportunidades e alternativas no mercado de trabalho,
Sílvio explicitou uma situação real de desigualdade em que os trabalhadores eram
duplamente punidos. Eles se submetiam a um trabalho precário porque não vislumbravam
outra saída e, além disso, tinham de enfrentar o fato de que essa é uma ocupação
malvista socialmente. Ione, ao refletir sobre isso, de maneira crítica, expôs o que pensava
acerca daquilo que tem servido para justificar o preconceito. Ela entendia que a
discriminação que sofriam não decorria apenas da atividade que realizavam.
... Não, a discriminação não é tanto pelo serviço. Geralmente, a discriminação, hoje em dia, é pelo
grau de escolaridade que a pessoa, geralmente, muitos de nós não temos, né? Assim, eu ainda tô
estudando. Mais tem muitos, porque não têm condições, outros porque já pararam, não têm um
conhecimento, então, acho que a maior discriminação é isso aí, que muitas vezes a gente... Eu acho
que começa aí, pelos estudos, não é pelo fato de qualidade do serviço não.
91
89
Isso lembra uma situação ilustrativa, quando a prefeitura do Rio de Janeiro, em junho de 2003, abriu inscrições para a
seleção de garis. O salário era de, aproximadamente, 600 reais. Os candidatos se inscreviam por ordem alfabética e
milhares aguardavam todos os dias na fila. Houve tumulto e interferência da polícia. Os meios de comunicação
divulgaram, com um “tom de surpresa”, que, dentre as pessoas ali, havia alguém com nível superior.
90
Sílvio Roberto. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
91
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
284
Analisamos a fala de Ione como emblemática das relações vividas no aterro.
Buscando combater o preconceito, ela interpretou certos aspectos e apontou o fato de
que outros profissionais, apesar de também trabalharem na usina, por terem uma
qualificação (a saber, a técnica de segurança), não são estigmatizados por isso. Daí a
razão pela qual, para Ione, não é o trabalho com o lixo que desperta o preconceito e, sim,
a situação de exclusão com que se deparam aqueles que o exercem, alijados de chances
que lhes permitam optar por realizar um serviço diferente, menos precário, menos
prejudicial à saúde.
Os trabalhadores falaram acerca de seus sonhos e expectativas, demonstrando,
cada um à sua maneira, o que ainda anseiam e esperam conseguir na vida. Para Sílvio, a
realização pessoal estaria na possibilidade de trabalhar por conta própria, embora de
imediato não soubesse o que faria. A forma como encara o trabalho e como fala sobre ele
traduz uma ambigüidade. Primeiro, descreve-o semelhante a uma experiência ruim, deixa
transparecer um certo pesar, como se o visse quase análogo a um castigo. Depois,
reporta-se aos aspectos positivos existentes no fato de achar que nesse trabalho se
tornou uma pessoa mais consciente, mais atenta a certas atitudes, comportamentos e
práticas em relação ao lixo, que antes não observava, tanto da sua parte quanto da dos
outros.
Essa carga negativa com que, a princípio, Sílvio discorre sobre sua ocupação
relacionava-se, de certa maneira, a suas experiências anteriores de trabalho, ao fato de,
ao contrário da maioria de seus colegas, ele ter estudado um pouco mais, chegando a
concluir o ensino médio. Assim, sua permanente insatisfação, razão pela qual, frustrado,
lamentava: “pôxa, num esperava vim cair aqui”. Desvela-se, portanto, uma “dimensão
temporal” do trabalho, cuja percepção é marcada não só por fatos do presente como do
passado.
92
Há, também, outra dimensão sobre a qual queremos refletir. Conquanto Sílvio
demonstrasse uma sensibilidade para a natureza do trabalho de seus colegas que
atuavam na esteira e fizesse contundentes críticas, avaliamos que grande parte de sua
indignação é canalizada para si, como se, em relação a ele próprio, especificamente, a
92
Sobre essas relações, Chanlat escreve que “o sofrimento no trabalho” possui uma dimensão tanto temporal quanto
espacial, “na medida em que o sofrimento não só implica processos construídos no interior do espaço da fábrica, da
empresa ou da organização, mas convoca de acréscimo processos que se desenrolam fora da empresa, no espaço
doméstico e na economia familiar do trabalhador”. In: CHANLAT, Jean-François (Coord.). “Uma nova visão do
sofrimento nas organizações”. In: O indivíduo na Organização – dimensões esquecidas. SP: Atlas, 1996, p. 149-173.
285
injustiça de ter de se submeter àquele trabalho parecesse maior. Ele declara: “por que
afinal eu estudei um pouco e não precisava de nada disso aqui ter acontecido...” Uma
situação contraditória em que Sílvio, embora fosse solidário com os que, como ele,
partilhavam a vivência naquele ambiente, também expusesse um pouco de preconceito.
O trabalho em si era uma contingência imposta a todos, mas ele se via como mais
qualificado, motivo pelo qual aspirava a algo melhor.
Para além disso, Sílvio é observador, atento, expressa-se bem e tem um verdadeiro
encantamento pela leitura, o que aguça sua percepção. Houve uma época em que
trabalhou num almoxarifado, ocupação que exige relativa capacidade de organização, de
atenção, enfim, em que ele talvez usasse mais suas habilidades intelectuais. Na verdade,
ao falar de suas expectativas, Sílvio transmite valores também compartilhados por muitos
trabalhadores, o desejo de autonomia, de valorização, de reconhecimento e, sobretudo, a
vontade de fazer algo que realmente lhe satisfaça, que o realize.
Assim como Sílvio, Ione falou de seus anseios, marcados por certos impasses.
Todos os dias, quando saía da usina, ela ia para a escola, cursava o supletivo do ensino
fundamental na sede de um sindicato. Enquanto alguns colegas desistiram devido ao
cansaço, Ione insistia, apesar dele. Dizia ver os estudos sempre pelo “lado bom”,
independente das dificuldades. Pretendia continuar estudando até concluir o ensino
médio, não vislumbrava “prestar faculdade, apenas fazer curso de idiomas, curso de
computação, esses cursos assim básico, mais não...” Contando por que resolveu voltar a
estudar e como imaginava que isso a ajudaria, ela explicou:
Porque, hoje em dia, a gente cada dia mais, a eficiência dos estudos, a gente vê que tá sendo mais
cobrada devido a tecnologia, tudo tá sendo modernizado de uma forma que o estudo tá sendo uma
necessidade. No dia-a-dia com meus filhos, no meu trabalho também, onde quer que eu esteja.
Porque eu não sei até que dia que eu vou ficar aqui, mais seja onde, qualquer lugar onde eu estiver
trabalhando, eu creio que vai contar.
93
O depoimento de Ione desvenda a problemática do estudo como uma exigência
cada vez mais presente na vida e no trabalho urbanos. Refletindo diante dessa realidade,
ela vê a necessidade de buscar aprimorar sua formação, visto que isso poderá ajudá-la
tanto na vida profissional, como no sentido de auxiliar os filhos em seus estudos. De fato,
93
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
286
Ione avaliava os estudos como aumento de possibilidade no mercado de trabalho. Maria
Aparecida também se referiu a poder acompanhar o ensino dos filhos:
Estudei muito pouco. Agora que eu voltei pra escola, né? Tô fazeno a sexta séria, tô estudano ainda
e tô aí batalhano de novo. ... Não, o que me motivou a voltá estudá foi, você vê, com o espaço de
tempo, como a minha filha já tá no segundo grau e, de repente, você precisa até pra você ensiná um
trabalho de escola pro seu filho. E você de repente olha e imagina: eu não sei ensiná um trabalho pro
meu filho, imagina eu precisano de procurá um emprego, precisano preenché um curriculo melhor,
uma coisa melhor. Então, por isso que eu voltei à escola. É muito difícil se você não tivé estudo.
94
Nesse sentido, os problemas apontados por Ione e Maria Aparecida revelam as
tensões e ambigüidades inerentes. As instâncias do mercado de trabalho, cada vez mais
seletivo, são sentidas na pele pelas trabalhadoras. Algumas falaram da vontade de um dia
ter um trabalho diferente e expressaram dúvida se conseguiriam, pois acreditam que, para
todas as atividades que se queira fazer é preciso "estudar um pouco mais". Embora
tenham consciência dessa realidade, a falta de perspectivas e de oportunidades com que
se depara uma grande parcela da população mais pobre, essas trabalhadoras não
parecem resignadas; ao contrário, desejosas de sobreviver em melhores condições,
mostram-se dispostas a continuar lutando.
Para elas, a vida com dignidade para si e para os filhos é um anseio. Embora não
seja próprio das classes populares planejar a vida, o número de filhos ou uma carreira,
porquanto isso se vislumbre às famílias de classe média,
95
os trabalhadores trazem a
expectativa de que os filhos estudem e, com isso, conquistem um futuro melhor. Edna
confessou esperar que as filhas tenham uma vida diferente da sua:
Não até que não, o meu sonho agora eu deposito nas minhas filhas, né? O que eu não tive, eu vou
dar pras minhas filhas, pra elas ter o que eu não tive. Então o meu sonho hoje é ver minhas filhas
bem, vou lutar pra elas ter o estudo que elas merece... Não, mais meu sonho mesmo é criar minhas
filhas e vê elas bem. Quero que elas seja independente e que não dependa de homem pra sobreviver
na vida.
96
Já Zileila admitiu que via necessidade de se preparar para uma velhice tranqüila:
94
Maria Aparecida Moreira. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
95
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum, “Introdução”, op.cit, p. 21.
96
Edna Pereira Trindade. Entrevista realizada 05 de dezembro de 2001.
287
Ah, eu gostaria de poder trabalhar, assim, pra na minha velhice, eu ter uma velhice calma. Uma
velhice, assim, que eu pudesse falar assim: não, hoje eu posso ficar aqui em casa, sem precisar de
me preocupar em ir trabalhar. Porque até hoje cê vê, colegas de trabalho mesmo que a gente tem,
pessoas já bem de idade e lutano, né? Imagine se eles tivesse feito o futuro deles quando eles era
mais novo, eles num taria precisano de tá vim trabalhar porque senão, final do mês. Mulheres com 50
anos... Ficar em casa cuidando de neto, sabe? Eu espero ter pelo menos uns quatro neto. Mais, pra
isso eu tenho que batalhar muito. Eu tenho que batalhar agora que eu tô tendo força pra trabalhar,
tem saúde, porque na velhice cê acaba adoecendo, né? As pessoas, igual minha mãe mesmo, minha
mãe ela tem 50 anos, ela já tá velha! Já tá doente. Mais ela ainda precisa trabalhar. Eu espero que,
quando eu tiver essa idade, minha vida tenha entrado nos eixos.
97
Estas são algumas perspectivas de que falaram: vida digna, estudo para os filhos,
uma velhice segura. Ao falar de suas expectativas futuras, Zileila forneceu um panorama
da situação de muitos de seus colegas na usina, na verdade, um horizonte para velhos
pobres na cidade. Mulheres e homens que ajudam a constituir um grupo social comum.
São pessoas que começam a encarar uma série de limitações em razão da idade e da
saúde, afetada por anos de trabalho em condições difíceis, enfim, uma dura realidade em
que envelhecer torna-se um peso maior do que deveria. Essas pessoas, apesar de já
terem trabalhado muito em suas vidas e ainda o fazerem, jamais tiveram seu trabalho
valorizado e hoje vivenciam e representam aquilo que outros temem para si no futuro.
Vale a pena comentar, ainda, sobre o fato de Zileila, ao final de sua entrevista, falar
sobre a necessidade de as pessoas aprenderem melhores hábitos em relação ao lixo. Ela
declarou: “o lixo é o futuro"... e imaginamos que, ao dizê-lo, estava novamente fazendo
uma metáfora com a própria vida, talvez estivesse pensando em sua experiência, em seu
casamento com Cristiano, que ela conheceu ao ir trabalhar no aterro:
... Nessa parte, eu agradeço de ter vindo trabalhar aqui porque eu acho que o meu futuro tava aqui,
sabe? Futuro assim: meu sonho de ter um esposo que me amasse, que cuidasse de mim, que
cuidasse dos meus filhos, sabe? Que me desse uma casa, sabe? Os meus sonhos, a maioria deles
foi realizado. E eu vindo trabaiá aqui, mesmo as pessoas no como ter criticado que eu tava
trabalhando no lixo. Mais eu não sabia que o meu futuro tava aqui e muito menos eles! Muitas
pessoas ficaram de boca aberta pra ver assim que a gente fez uma festa de casamento. Não deixou
(nada) a desejar. Tive lua de mel, uma coisa que eu jamais imaginaria que eu ia ter.
98
97
Zileila Martins de Melo Costa. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
98
Zileila Martins de Melo Costa, idem.
288
Sua história é ilustrativa da capacidade dos trabalhadores de lutar contra o
preconceito, superar as dificuldades e construir a sobrevivência com dignidade. De fato,
demonstra como investia na mudança de sua imagem como trabalhadora que lidava com
o lixo. Ao narrar esse acontecimento de sua vida, relacionado com o trabalho, a família,
seus anseios e suas expectativas, Zileila motivou-nos a refletir sobre o sentido desse
trabalho para as outras mulheres. No princípio, elas eram maioria no aterro, explicaram
que, com o tempo, houve uma tendência de equilíbrio entre o número de indivíduos do
sexo masculino e feminino.
Todas as entrevistadas são mães, possuem dois ou mais filhos, divorciadas ou
solteiras, assumem sozinhas a subsistência e a educação deles. Nesse e em outros
aspectos, assemelham-se a muitas mulheres em Uberlândia que enfrentam essa
realidade e ajudam a constituir estatísticas que revelam um contingente expressivo de
famílias sustentadas unicamente pelo parco salário que elas recebem, na maioria das
vezes, como trabalhadoras domésticas. Edna, Ione, Silvany e outras já haviam exercido
essa ocupação e voltaram a fazê-lo. Esta é, provavelmente, uma das razões pelas quais
predominavam as mulheres no aterro: o fato de, em geral, por necessidade, elas se
submeterem a condições de trabalho e de remuneração mais precárias, com maior
freqüência, que os homens.
Para as trabalhadoras, fazer esse tipo de trabalho a fim de garantir a própria
sobrevivência e a dos filhos tinha algumas implicações específicas, diferentemente dos
homens, a despeito de realizarem a mesma atividade. Elas enfrentavam dificuldades de
conciliar o trabalho com as atividades domésticas, o conviver e o cuidar dos filhos. A filha
adolescente de Ione mora com uma prima, pois ela teme deixar a menina sozinha em
casa. Edna, desde que se divorciou, mora nos fundos da casa da mãe, de maneira que
possa economizar o aluguel e a avó ajude a olhar as netas. Ela comentou, em sua
entrevista, que mal conhece seus vizinhos, porque permanece grande parte do tempo
trabalhando. Contudo as trabalhadoras afirmaram a importância do salário que recebiam
para a manutenção da família e fizeram referência aos aspectos positivos que
conseguiam vislumbrar no fato de exercerem uma ocupação fora de casa. Mesmo para
aquelas que possuem um companheiro, conquistas como comprar uma casa financiada
só foram possíveis porquanto elas trabalhavam.
289
Assim, buscando apreender as possibilidades e perspectivas dos trabalhadores para
além do trabalho na usina, descortinamos esforço, luta e força de vontade no intuito de
garantir a sobrevivência com dignidade. Enfrentando a realidade social vivida, eles
forjavam práticas criativas e se constituíam sujeitos.
Os sentimentos que constatamos entre esses trabalhadores traduzem o medo, a
insegurança e a precariedade que experimentavam de maneira constante, e, também, a
ambigüidade: numa certa perspectiva, o trabalho com o lixo era visto como sujo, perigoso,
prejudicial à saúde e, por isso mesmo, marcado por uma visão negativa. Mas significava
ainda o meio pelo qual garantiam a sobrevivência e realizavam algumas expectativas.
Maior aceitação ou rejeição ligava-se às oportunidades que tiveram na vida
anteriormente. Premidos pelas carências enfrentadas na cidade, trabalhar no aterro
sanitário possibilitou-lhes uma sensibilidade em relação ao lixo e uma nova visão de si
próprios.
Nessa perspectiva, entrevemos uma grande contradição no fato de a prefeitura ter
determinado o fechamento da usina de triagem e de quase todos os trabalhadores terem
ficado desempregados. Afinal, para eles, um dos mais convincentes argumentos sobre a
importância da reciclagem do lixo consistia justamente na idéia de gerar emprego.
Apreendemos, então, determinadas tensões entre estas políticas públicas: de geração de
empregos e em favor da questão ambiental, um dos elementos da qualidade de vida,
idéia em projeção hoje, mas vista de modo despolitizado.
Quando a usina foi desativada, somente Zileila permaneceu no aterro, entre
dezenas de pessoas que atuavam na esteira. Edna, Ione, Maria Aparecida e Silvany, as
únicas que reencontrei, contaram a respeito de seus colegas. Marta também conseguiu
ser contratada pela Limpel para trabalhar na limpeza pública. Dilma é auxiliar de serviços
gerais em uma escola particular. Sílvio mudou-se da cidade, Joselita permanecia
desempregada, Marliete esteve em situação análoga, durante vários meses. Há dois
anos, ela atua no setor de limpeza de uma fábrica da Monsanto, perto de Araxá, MG.
Desde que saiu da usina, ainda em 1999, Salvador dos Santos intercala suas
atividades como bóia-fria em pequenas cidades da região com a atividade de carroceiro,
quando acaba o tempo da colheita. Uma possibilidade que talvez se entremostre a outros
trabalhadores da usina, que se viram, no início de 2003, sem ter o que fazer para
sobreviver.
290
Em junho deste ano, ao revermos Ione, soubemos que, ao serem demitidos pela
empresa, os trabalhadores sentiram-se prejudicados. Em razão disso, ela e outros
colegas processaram a empresa. Ione foi a única a mover uma ação trabalhista, no
conjunto dos entrevistados, e não a levou adiante por desconfiar que seu advogado, sem
consultá-la, estava negociando com a profissional que representava a Limpel. A leitura de
seu processo, na Justiça do Trabalho, ajudou a compreender, em parte, o olhar e a
interpretação dos trabalhadores no que se refere às relações com a empresa,
principalmente, nos últimos meses de trabalho.
99
Na ocasião, abatida e indignada, Ione relatou diversos problemas enfrentados na
usina, mas que não haviam sido mencionados antes, não daquela forma. Mesmo em sua
primeira entrevista, ela não se furtou a descrever as dificuldades com que lidavam, porém,
àquela época, fazia isso com certo cuidado. Contou que, quando as atividades foram
encerradas, em dezembro de 2002, alguns continuaram na usina, durante mais de um
mês, realizando tarefas como recolher o rejeito no aterro, varrer as áreas expostas aos
visitantes ou plantar grama. Segundo Ione, isso era feito sob o sol quente e sem
equipamentos devidos, como luvas mais seguras.
Essas e outras questões expostas tanto por Ione como por Edna e Silvany
contribuíram para desvelar intrigantes aspectos do funcionamento do aterro e da atuação
do poder público e da iniciativa privada no gerenciamento do lixo na cidade. Embora, ao
compararmos as diferentes leituras que elas conseguiram fazer desse processo e que se
dispuseram, em parte, a contar-nos, tenhamos deparado algumas contradições. A
exemplo de Edna ter declarado que nada via de irregular nas atividades realizadas nos
últimos dias de trabalho porque foram contratadas como serviços gerais e essas
atribuições eram cabíveis. Já Silvany, mesmo não tendo feito referência se havia ou não
99
No Fórum da Justiça do Trabalho, em Uberlândia, em fevereiro de 2006, constavam 296 processos contra a Limpel,
ou a Limpebrás, novo nome adotado pela empresa e, ainda, contra a Imperial Serviços Urbanos, contratada pela Limpel
para executar parte dos serviços de capina manual e mecanizada. Destes, 60 estão em andamento, outros, até 1999,
foram arquivados; já, os anteriores, incinerados. As ações pertencem a trabalhadores de diversas categorias: serviços
gerais, coletores de lixo, garis, motoristas, mecânicos, eletricistas de veículos de manutenção e demais. As
reivindicações referem-se basicamente a hora extra, regularização do INSS, verbas rescisórias: FGTS, 13º salário e
férias proporcionais e, em certos casos, seguro e indenização de acidente de trabalho. De fato, consultamos cerca de um
terço dos processos em andamento. Observamos como eles foram tornando-se cada vez mais complexos; alguns,
movidos por grupos de 10 ou 11 trabalhadores, passaram a envolver o poder público municipal, chamado a responder
solidariamente com a Limpel, e a argumentar fundamentando-se nos Acordos Coletivos de Trabalho realizados entre a
Limpel e o SINDEACO (Sindicato dos empregados nas empresas de asseio e conservação e similares do Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba – MG), demonstrando a participação da entidade no universo dessas relações, sobretudo, no
começo da década de 2000. Nessa perspectiva, em razão de sua própria natureza, amplitude e complexidade, uma
análise mais cuidadosa dos processos demandaria uma vasta pesquisa.
291
equipamentos de proteção mais adequados, acrescentou que chegaram a carregar
pedras para entupir valetas, e que considerava tudo aquilo “um abuso, uma humilhação”,
principalmente para as mulheres, pois, segundo ela, “os homens eram poupados”, por
vezes, eles se insubordinavam, recusando-se a realizar determinados serviços, e não
eram punidos por isso. Silvany citou ainda outro caso para ilustrar a desigualdade que via
nessas relações: nos últimos meses de trabalho, as mulheres saíram de férias em período
alternado ao dos homens, que, quando retornaram, logo deixaram a empresa e, ao
contrário delas, não cumpriram o aviso prévio.
100
Interpretamos que o fato de essas trabalhadoras terem assumido atitudes e posturas
tão diferenciadas, diante da realidade com que se defrontavam na usina, tem ligação
direta com as relações que lá estabeleciam e o modo como se inseriam nelas. Em seu
primeiro depoimento, Edna demonstrou a simpatia e a afinidade que cultivava com os
chefes na usina; de outra vez, admitiu que, numa ocasião em que faltou ao trabalho, não
perdera os tickets de alimentação por isso, o que seria o esperado, haja vista que era
norma da empresa, rígida demais, na opinião de algumas, só que respaldada em acordo
coletivo com o sindicato que representa os trabalhadores da limpeza urbana. Mas Ione e
Silvany teciam relações de outra natureza, eram tidas como boas funcionárias, sérias e
esforçadas, daí permanecerem até a desativação da usina, mas mantinham certa
distância dos chefes e não hesitavam em reclamar do que considerassem errado e
injusto. Quanto a isso, acreditavam ser encaradas com reservas tanto por eles quanto por
alguns colegas.
101
Meio triste ao se expressar, Ione parece ser daquelas pessoas que refletem muito
antes de falar, revelando uma profunda consciência de suas condições de existência, de
100
Silvany Moreira de Freitas Andrade, 37 anos. Conversa informal com a autora em 04 de fevereiro de
2006.
101
Edna Pereira Trindade, 35 anos. Conversa informal com a autora em 04 de fevereiro de 2006.
No que se refere ao procedimento de impor a perda da cesta básica ou dos tickets de alimentação a quem faltasse um dia
de serviço, Silvany reconheceu que houve uma ocasião em que também foi poupada, quando se ausentou para
permanecer com a filha pequena que adoeceu e precisou ser internada num hospital por quatro dias. De todo modo,
entrevistado algum mencionou o SINDEACO nos depoimentos, tampouco, o acordo coletivo entre este e a empresa
que, quanto a essa questão, determinava: “Farão jus a cesta básica, os empregados que trabalharem na limpeza e coleta
de lixo e se demonstrarem assiduidade integral, entendendo-se como tal, a do empregado que não faltar nenhuma vez
durante o mês, nem apresentar qualquer atestado médico, ressalvado apenas, as ausências por acidente de trabalho,
morte do cônjuge ou filho (devidamente comprovado por documento hábil). In: Acordo Coletivo de Trabalho, cláusula
nona, parágrafo único, vigência 2002-2003. Documentação anexada ao Processo 00010/2006. Justiça do Trabalho, 3ª
Região, 4ª vara, Uberlândia - MG. Essa ação trabalhista, ainda em andamento, está sendo movida por Hilton José da
Silva, serviços gerais III, contra a Limpel. Na petição inicial, ele alega que não recebia o salário equivalente a sua
292
seu lugar social no mundo, com uma visão ampla e crítica acerca das relações que
vivencia. É essa consciência, manifestada também por outros trabalhadores, que delineia
como os sujeitos, em suas narrativas, expressam suas concepções sobre o que
reconhecem como seus direitos. Ao interpretar a própria realidade, os trabalhadores
apresentam ricas noções sobre o que compreendem como exploração e injustiça.
Silvany, argumentando “não era serviço nosso” , declarou que certas tarefas
executadas pelos trabalhadores na usina não eram pertinentes. Ela e Ione viam nisso
enorme incoerência. Há mesmo uma contradição se considerarmos que, num acordo
coletivo entre a Limpel e o sindicato, figura, dentre várias classificações, a de plantador de
grama, serviços gerais I, II e III, e “operador de usina de reciclagem e compostagem de
lixo”, que corresponde à atividade desempenhada por eles e cujo salário era superior em
mais de vinte por cento. Esse acerto foi firmado em 2002, mas a condição deles jamais foi
alterada, permaneceram como serviços gerais até a demissão no ano seguinte.
102
No que se refere às condições de trabalho, em sua primeira entrevista, Ione já havia
manifestado uma visão de seu trabalho como prejudicial à saúde. Na opinião dela, os
trabalhadores careciam de maior assistência e de cuidados preventivos por exercerem
uma atividade insalubre. Em um segundo depoimento, além de retomar essa questão,
Ione apresentou um complexo panorama das relações no aterro que nos possibilita
vislumbrar como se configurava um tema quase “proibido”, os acidentes de trabalho:
Igual, aconteceu do rapaz perder o braço ali. Só que ali deu um problema no INPS, porque precisava
de ter papéis legalizando que foi um acidente. Tanto é que ele não foi aposentado, pôs até a empresa
no pau por causa disso. Por quê? Precisava da técnica de segurança, cada coisa que acontecer ali,
eu mesmo tive agulhada nos dedos várias vezes. Num lembro dela hora nenhuma falar: - “Ó, cê vai
fazer um curativo, cê vai fazer um exame”. Sendo que o doutor Sérgio, toda vez que ia lá, falava: -
“Quando o empregado sofrer um acidente, seja de agulhada, seja o que for, ele tem que ser
encaminhado por escrito. A técnica de segurança tem que dar um papel”, assim, assim... Isso nunca
foi feito. Inclusive, já várias outras pessoas, teve um rapaz, duas pessoas lá, que foi lá embaixo
acender o biogás, houve um, porque tinha um gás acumulado e jogaro eles longe. Simplesmente, ela
não deu um papel pra eles ir fazer um exame, se tinha machucado por dentro alguma coisa, porque
foram arremessado bem longe, eles contou, sabe? E no entanto, isso nem chegou a conhecimento,
classificação na categoria, exige o pagamento de horas extras e indenização em razão de doença ocupacional e acidente
de trabalho.
102
In: Acordo Coletivo de Trabalho, cláusula quinta, piso salarial das diversas categorias. Na cláusula quarta, quanto ao
período de prevalência: “... vigência de 12 meses, iniciando-se em 01/05/2002 e terminando em 30/04/2003.
Documentação anexada ao Processo 00010/2006. Justiça do Trabalho, 3ª Região, 4ª vara, Uberlândia, MG.
293
fora outras coisas mais que, alguns acidentes que acontecia, eles sempre evitava. Evitava falar,
evitava dar a guia pra que as pessoas fizesse um acompanhamento, então...
103
Ione apontou um complicado aspecto sobre a organização do trabalho naquele
espaço. Pelo que ela contou, os acidentes de trabalho na usina eram freqüentes e, por
vezes, graves, resultando em sérios danos à integridade física dos trabalhadores. Além
disso, na ocorrência deles, parecia haver resistência não apenas em falar sobre o assunto
como também em viabilizar medidas necessárias, a saber, comunicar o evento ao INSS
(Instituto Nacional de Seguridade Social) “e preencher um formulário próprio conhecido
por CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho). Expedido pelo INSS, esse documento
“contém informações sobre a empresa, o acidentado, o acidente e o laudo do exame
médico. Ademais, permite ao trabalhador, em caso de aposentadoria, assegurar a
totalidade do valor de seu salário.
104
De fato, os acidentes ocorriam ainda com outros trabalhadores além dos da esteira,
não obstante, pela natureza do trabalho, eles estivessem propensos a isso. Silvany, de
um lado, garantiu que não observava esse comportamento reservado da técnica de
segurança no que se refere a esse assunto, de outro lado, avaliou que prevalecia relativo
grau de indefinição quanto às reais atribuições dos funcionários e que isso lhes era
prejudicial. Ao passo que Edna alegou que os acidentes eram raros na verdade, e os
atribuiu ao descuido e às brincadeiras que, por vezes, predominavam.
105
Seja como for, além dos depoimentos, há outros registros que evidenciam a
ocorrência de acidentes de trabalho na usina, conquanto quase todos tenham evitado
falar sobre a questão. As trabalhadoras relataram que era corriqueiro encontrar cacos de
vidro. Como isso provocava acidentes de trabalho, principalmente, entre os coletores, a
Limpel promoveu uma campanha junto à população para orientá-la sobre a necessidade
de cuidados ao descartar esses restos. A respeito disso, Ione esclareceu:
103
Ione Ribeiro, entrevista realizada em junho de 2003.
104
Para um panorama geral sobre a complexa temática dos acidentes de trabalho, Ver: Acidentes do trabalho: os casos
fatais – a questão da identificação e da mensuração. Waldvogel, Bernadette Cunha. Belo Horizonte: Segrac, 2002.
(Coleção de Estudos e Análises, PRODAT, v.1, n. 1), “Introdução”, p. 28.
105
Em seu depoimento, Ione referiu-se a José Eustáquio Antônio, empregado que, em junho de 2000, sofreu um
acidente enquanto fazia a limpeza da esteira e que também processou a Limpel. Há diferentes versões sobre o caso, uma
delas, de que a esteira foi ligada indevidamente, a outra, apresentada na ação trabalhista, a de que permanecia ligada por
exigência da empresa. De todo modo, esse funcionário havia desempenhado várias funções: serviços gerais, carrinheiro,
prensista, ajudante de limpeza, de manutenção e, por último, porteiro. Mas, segundo relatou Silvany, limpar a esteira
não era atribuição dele à época do acidente. Processo 881/2004, p. 03. Justiça do Trabalho, 1ª vara, Uberlândia, MG.
294
Não, a não ser os garis. Os garis que têm mais freqüência de acidente como esses materiais. Nois
trabalhamos com luva e, no caso, geralmente assim, quando alguma coisa assim, tipo injeção,
quando uma vê já avisa pra outra e uma vai avisando pra outra. Agora mais quando num vê,
dependendo do que tá marrado na sacola aí geralmente ...
106
Essa foi a resposta de Ione quando a indagamos se era comum que se cortassem
com os cacos de vidro. Já Maria Aparecida mencionou a campanha realizada pela
empresa em decorrência dos freqüentes acidentes.
Não, houve uma mudança sim, porque, inclusive, a empresa mesmo andou fazendo uma campanha,
né? Pedindo pra que, passou, eu não sei se ainda passa, mais até falava no rádio: “Não coloque o
material cortante no lixo, devido a acidentes com os coletores”. Então eu acho que as pessoas
começô a conscientizá ... Devido isso, as pessoas começô a tomá mais cuidado e também tem a
fiscalização também, né? Que tá sempre olhano se tá colocando ou não, né? Não, cartazes foram
vários, eles distribuíram panfleto pequeninho para que as pessoas tivesse consciência, ou às vezes,
colocasse nos hot door pedino. Então o pessoal ... ficaram mais conscientizado.
107
Maria Aparecida referiu-se a essa campanha, quando perguntamos se havia
observado mudanças no comportamento da população em relação ao modo de descartar
o lixo, desde que começou a trabalhar na usina. Segundo ela, houve uma alteração nas
práticas de descarte por parte dos moradores, atribuída à divulgação. De fato, a própria
Limpel assumia que os acidentes de trabalho com os coletores eram constantes. Tudo
aponta que a realização da campanha foi decorrente de pressões que a empresa
começou a sofrer, como reclamações dos funcionários e ausências dos que se
acidentavam. A tentativa de conscientizar a população foi feita mediante a distribuição de
panfletos nos terminais de ônibus, avisos na rádio e televisão, visando reduzir o número
de acidentes com os trabalhadores que recolhiam o lixo da cidade.
Segundo José Donizete, técnico de segurança da Limpel, um trabalhador acidentado
permanece quatro ou cinco dias afastado de suas atividades. Ele ponderou, ainda, que,
entre 1998 e 2001, havia uma média de nove acidentes de trabalho por dia, sendo que,
106
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em 12 de dezembro de 2001.
107
Maria Aparecida Moreira. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
O lema da campanha realizada pela empresa trazia dizeres como este: “O mau armazenamento do lixo provoca
‘acidentes de trabalho’ com os coletores e garis que fazem a coleta e a varrição em sua rua. Não machuque quem cuida
de você! Organize seu lixo”. Material produzido e distribuído pela Limpel, s/data.
295
no segundo e terceiro ano, esse número chegou a 16 e 17, respectivamente, sofrendo em
seguida gradativa redução.
108
Ao ouvir o técnico de segurança explicar sobre a freqüência com que os funcionários
da limpeza pública se machucavam, avaliamos que os trabalhadores da usina estavam
sujeitos a esse mesmo risco devido à natureza do trabalho, que oferece semelhante
perigo. Mas, no caso deles, não se falava sobre isso, nem se realizavam campanhas
preventivas. Não foi possível quantificar o número de trabalhadores que se acidentavam
na usina diariamente, conquanto os depoimentos e outras evidências tenham nos
sensibilizado para um dado por demais relevante. O fato de que alguns trabalhadores
tenham se ferido, em alguma ocasião, tendo sua saúde e integridade física ameaçadas,
tornava-se, para os outros, o que Portelli nomeia como “o complexo horizonte das
possibilidades”. Menos a realidade efetiva e mais o que se imagina e se teme que venha
a acontecer. Medos reais e imaginários eram experienciados por eles todos os dias, o
perigo constante sempre presente no horizonte “constrói o âmbito de uma subjetividade
socialmente compartilhada”, num desgaste difícil de imaginar para quem não o
experimenta. Esse sentimento seria mais forte e exaustivo se porventura os trabalhadores
associassem os acidentes de trabalho à idéia de doença, invalidez ou morte,
representando outra dimensão de um trabalho tão insalubre a ponto de precarizar a
própria vida.
109
Se considerarmos que, em nossos dias, se compreende saúde como mais do que
simplesmente não estar doente, estar saudável é poder usufruir de um “estado de
completo bem-estar físico, mental e social”, definição da OMS (Organização Mundial de
Saúde),
110
então, é preciso lembrar que as precárias condições de trabalho,
possivelmente, levariam também a somatizações, stresse e, talvez, a certos distúrbios
psicológicos. Embora devamos ponderar que “as pressões normativas da vida do trabalho
são suficientemente seletivas para eliminar da empresa os sujeitos que sofrem de
108
José Donizete de Oliveira, técnico de segurança da Limpel que atua junto aos coletores de lixo. Conversa informal
com a autora na sede da empresa, em 17 de maio de 2004.
109
PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos: Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes
orais”. In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, vol. 1, n. 2, p.70, 1996.
109
Maria Aparecida Moreira. Entrevista realizada em 23 de julho de 2002.
110
MARTINS, Jaci Silva. Lixo Hospitalar - Gestão e Responsabilidade: a experiência de Dourados – MS. Mestrado em
Política e Gestão Ambiental, Brasília: UnB, 2000, p.12.
296
sintomas mentais ou distúrbios do comportamento, mesmo que sejam leves. De maneira
que, na empresa, a maioria dos trabalhadores está no limite da normalidade”.
111
Nessa perspectiva, as condições de trabalho e a desativação da usina levam a
questionar o papel e a responsabilidade do poder público. Não havia uma fiscalização da
prefeitura? Na avaliação de Ione, do modo como era, deixava a desejar.
Da prefeitura os fiscais ia lá, mas era pra fiscalizar apenas assim a quantidade de lixo, coisa assim
que eu acredito que eles, sabe por quê? Porque lá eles num, é, eu num sei, eu acho que a prefeitura
mesmo tinha que fiscalizar dum jeito mais eficiente. Porque eu vejo assim que tinha um tal de
favoritismo ali por dentro que eu num sei até quando que ia, sabe? Aí então onde que muita coisa ali
ficava sem ser vista. Eu não sei se era proposital ou se era devido esse, que rolava um por outro,
aquele favoritismo, então num sei por que motivo que...
O relato de Ione contribuiu para desnudar a complexidade da questão do lixo na
cidade. A ingerência da prefeitura na usina configura um tema complicado. Tudo
demonstra que se limitava a observação do gerenciamento do aterro, da rotina diária dos
procedimentos técnicos executados, ainda assim, uma fiscalização que se revelou
insuficiente. De acordo com a técnica de segurança, os servidores públicos responsáveis
por acompanhar os serviços ali executados tinham por tarefa olhar as condições de
limpeza do aterro, galpão, canaletas de escoamento, verificar o horário de funcionamento
das frentes de serviço na área de aterramento e o registro de controle da balança, onde
são pesados os caminhões, uma vez que a empresa recebe pelo quantitativo de lixo a ser
enterrado.
Mas, mesmo no que tange a essas questões técnicas, o desempenho da empresa
veio sendo avaliado como insatisfatório pela FEAM, que visitava o aterro cerca de uma
vez por ano e recomendava determinadas mudanças. Entretanto a prefeitura não
acompanhava em que medida essas recomendações iam sendo seguidas, e, por mais
contraditório que seja, a Limpel se autofiscalizava.
112
A despeito das irregularidades
111
CHANLAT, Jean-François (Coord.). “Uma nova visão do sofrimento nas organizações”, op. cit., p. 149-173.
112
A autofiscalização da empresa é fato reconhecido pela própria Secretaria de Serviços Urbanos, como mostra este
documento encaminhado à FEAM, em 12 de março de 1998. “Em atendimento aos condicionantes na Licença de
Operação do Aterro Sanitário/Usina de Triagem e Compostagem/Uberlândia-MG, estamos encaminhando
Monitoramentos do referido empreendimento. Vale lembrar que os trabalhos de operação, supervisão, bem assim o
próprio monitoramento é de responsabilidade da Limpel-Atividades Urbanas. Assim sendo, solicitamos o envio de
quaisquer apreciações que couberem, de modo que possamos orientar nosso gerenciamento sobre a eficiência dos
trabalhos desta concessionária”... In: Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário, Anexos (parte I), Ofício n.
507/98, p. 109.
297
constatadas, ela protelava as devidas providências sem sofrer sanções efetivas em
conseqüência disso. No Relatório, consta o registro de uma única ocasião em que tenha
sido multada pela prefeitura.
De fato, o poder público não se considerava responsável nem interferia nas relações
de trabalho na usina, o que acarretou, inclusive, enorme controvérsia legal. Seja como for,
sua fiscalização, como sinalizaram os acontecimentos, demonstrou-se descurada e
contribuiu para acentuar esse obscuro universo das relações em torno do lixo, em que,
para o poder público, não era possível normatizar todas as coisas, ou não havia interesse
nisso.
113
A exemplo da ocasião em que Sílvio mencionou o fato de ser comum que certas
indústrias enviassem para o aterro mercadorias que poderiam ser aproveitadas, mas,
taxativamente, garantiu que elas eram enterradas. Tratava-se de produtos que haviam
sido danificados em razão de impactos durante o transporte, o que impedia que
pudessem ser comercializados. Segundo Sílvio, alimentos assim iam direto para o aterro.
Alimentação vai direto pro aterro, não pode pegar. ... Toda mercadoria faltando dois, três meses pra
vencer, eles jogam fora, né? É da, Martins, Arcom, União. Essa carga, às vezes, assim, irregular que
a fiscalização pega, joga tudo fora, joga tudo fora. Condições tem né? Só que a legislação brasileira
não permite né? Por causa daquela lei, se contaminá alguém, quem doou é responsável. ... Todos os
riscos são deles, se eles doarem. Aquele resto de comida que em bom estado, pode ser
consumido, eles prefere jogá fora. Caso aconteça qualquer coisa, a responsabilidade é total deles.
Essa lei tá no Congresso, diz que é prá ser votada, tá engavetada lá ... Então por isso que muita
Na verdade, a questão do acompanhamento e do controle dos aterros sanitários, gerenciados pela iniciativa privada,
configura um problema amplo e complexo, que ultrapassa a realidade de Uberlândia. “O governo federal não fiscaliza.
Muitas vezes não tem condições de ir ao município saber, efetivamente, se o que foi apresentado corresponde à
realidade. Não há fiscais. Por outro lado, o município não tem gente capacitada para usar esse dinheiro de forma correta.
Em 1999, o governo federal financiou 60 aterros no estado de Goiás. No ano passado, a Caixa Econômica Federal, que
operacionalizou o empréstimo, foi conferir e eram 60 lixões; não havia um funcionário especializado em aterro
sanitário. O município construiu o aterro, cercou, comprou uma balança e não colocou ninguém para operar. O
motorista da companhia de limpeza jogava o lixo muitas vezes do lado de fora da cerca. Então o problema é muito
grave, porque falta capacitação na grande maioria dos municípios”. Ver: Heliana Kátia Tavares Campo, diretora do
UNICEF, em entrevista à Revista Ecologia e Desenvolvimento, n. 91, 2001, seção Páginas verdes.
113
Um dos processos que consultamos na Justiça do Trabalho demonstra o emaranhado das relações entre a prefeitura e
a iniciativa privada, no que se refere a determinadas questões legais, nele, o poder público municipal é convocado a
responder solidariamente com a Limpel, em razão da responsabilidade subsidiária, fundamentada legalmente na teoria
da Responsabilidade Civil do Estado. Diante disso, a administração defende-se, argumentando com base na lei federal
que regulamenta os contratos de licitação, (Lei 8.666/93), que a isenta quanto a conflitos trabalhistas nas relações entre
as empresas terceirizadas prestadoras de serviços públicos e os empregados que elas contratam, embora isso não seja
válido para situações que envolvam débitos previdênciários. Porém, novas interpretações legais apreendem que essas
empresas, ao deixar de cumprir algumas obrigações trabalhistas, ferem determinados direitos dos trabalhadores
assegurados na Constituição Federal de 1988, e não se concebe que o poder público possa ser conivente com essa
postura. Ver: Processo 00947/2003. Justiça do Trabalho, 3ª Região, 1ª vara, Uberlândia, MG.
298
coisa é jogado fora. Às vezes, um caminhão bate, a carga é segurada, o seguro manda jogá fora. A
mercadoria tá em ótimo estado, pode ser consumida, mais num, vai ser enterrado... Muitas vezes vi
descer caminhão de batata aqui, às vezes o produtor traz pra vendé, num tem preço, eles perde. Em
vez de doar, não, por causa disso. Se eles doá e qualqué coisa imprevista acontecê...
114
Esse depoimento foi dado por Sílvio no espaço da usina, talvez por isso, ele nada
tenha mencionado sobre o que Ione e Salvador também contam sobre a questão das
mercadorias que lá chegavam. Quanto a isso, Ione relatou curiosos fatos.
Então, eu acredito que, ali, porque eu via, igual, tinha funcionário da prefeitura que carregava
materiais, caminhão ia lá levá as coisas, então eles levava. Então eu não sei se isso, em troca disso,
eles fazia vista grossa. ... Suponho, materiais, igual, a carga tombava e alguma coisa que era de
aproveitar, que eles mandava enterrar, eles ficava pra eles. ... Tinha gente da prefeitura, tinha
encarregado, tinha muita gente ali dentro que beneficiava dessas coisas, desses produto.
115
Recordamos que o aterro não havia sido licenciado para receber lixo industrial, o
que caracterizava uma irregularidade. Nesse sentido, o Relatório de Avaliação Ambiental
menciona que havia certa
... conivência do poder público em relação ao resíduo industrial, sem caracterização, que é destinado
ao aterro. Cabe ressaltar que a entrada de resíduos ao aterro é controlada tanto por funcionários da
prefeitura, quanto por funcionários da Limpel Atividades Urbanas ...
116
Conforme alguns depoimentos, as relações de corrupção e favoritismo que se
estabeleciam incluíam, ainda, aqueles trabalhadores que usufruíam de certos privilégios.
Era, muito, muito, muito, porque tinha pessoa ali que saía, as vezes ela, eles dava os tickets, sei lá,
cobria a hora. Já outras pessoas, não era todos, mais tinha um grupinho, principalmente aqueles que
sempre quando alguém levava no pau, eles ia depor a favor da empresa, sabe. Quer dizer, a favor da
empresa assim, se tinha acontecido alguma coisa errada e a pessoa ia lá distorcer certos fatos, então
tava a favor da empresa.
117
Nessa narrativa, Ione demonstra, em parte, a natureza das relações no aterro. Havia
regras, mas elas não eram imparcial e objetivamente estendidas a todos. Segundo ela, a
114
Sílvio Roberto de Faria. Entrevista realizada em 05 de dezembro de 2001.
115
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em junho de 2003.
116
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, Secretaria de Ciência e Tecnologia. Prefeitura
Municipal de Uberlândia, Administração 2001-2004, p. 153.
299
técnica de segurança, ao fazer acepções entre os funcionários, permitia que alguns
escapassem de certas normas, como ser privado dos tickets em caso de falta. Se não
pertencia ao “grupinho”, o indivíduo era punido com rigor. Situações como essa servem
para acentuar a complexidade das relações vividas na usina. Segundo ela explicou, não
raro, a Limpel foi denunciada à Justiça do Trabalho por funcionários que se sentiam
lesados em seus direitos trabalhistas ou prejudicados em alguma circunstância.
Ah, lá era comum. Uma é porque assim, era comum pelo fato de que, igual, eu olhei no meu papel de
fundo de garantia e tava faltando, e fora outras coisas mais que eles assim, o descaso que eles
fazem com o pessoal, né? Igual nós fomo mandado embora com esse tempo tudo lá trabaiano, eles
num pediram uma chapa pro pulmão, sendo que a gente, esse gás é muito perigoso. Parece que a
reação dele coma depois de cinco ano. E muita gente lá dentro mesmo deu probrema de, algumas
pessoas saiu com probrema de tuberculose, outros problemas mais, né? Então uma coisa que afeta
por dentro do organismo. A gente não tivemo pedido de exame de sangue, não tivemo chapa de
pulmão, nem nada, que era uma coisa que eu acho que seria necessária.
Preocupada com a saúde, Ione refletiu que, ao sair do aterro, os trabalhadores
viram-se desprovidos de qualquer assistência médica, ainda que muitos deles tenham
adoecido. Por perceber esse comportamento da empresa, Ione recusava-se a ir depor
nessas audiências. Ela contou ter avisado à técnica de segurança que, caso fosse, não
omitiria “certos fatos”, mesmo que, por conta disso, a Limpel a demitisse. O fato de sua
decisão ter sido acatada revela que a empresa temia o que ela teria a dizer.
Desse modo, não foram poucas as dificuldades que enfrentaram os trabalhadores
antes e depois de serem demitidos. Os relatos dos que conseguimos reencontrar
apontaram as várias contradições que marcaram o gerenciamento do lixo, relações que
envolveram a Limpel, os trabalhadores e o poder público, que, omitindo-se, permitiu que
aqueles que tinham menor poder de barganha, saíssem mais prejudicados nesse embate.
Ao comentar que teria que providenciar testemunhas para confirmar que trabalhou na
empresa e que havia obstáculos demais para que se organizassem a fim de, juntos,
exigirem seus direitos, Ione ainda ponderou:
... Ah, mas hoje em dia, é uma burocracia pra isso, porque sempre a corda acaba arrebentando do
lado mais fraco. Então tem muita coisa ali que cê num pode, num tem o direito de falá hoje em dia.
Tem isso também ...
117
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em junho de 2003.
300
Quanto ao papel desempenhado pelo poder público nesse processo, Ione avaliou
que deveria ter havido mais seriedade.
Eu penso assim, que no caso assim, se tivesse posto gente ali pra fiscalizar tudo, o quê que saia, quê
que numa saía, eu penso assim, que muita coisa ali tinha resolvido tanto pros funcionário como pra
reciclagem. ... Enquanto interessou eles, eles fizeram maior propaganda, né? Porque eu acho assim,
que num foi uma coisa que prejudicava não, porque senão muitos município não brigou pra ter a
reciclagem nas cidades aí, né? Porque eu penso que é uma coisa que beneficia. Mais pelo que me
falaro o aterro dava muito dinheiro, agora num sei de que forma, se era hora extra deles lá ou porque
motivo, mais assim que me comentaram.
118
Na tentativa de encontrar algum sentido para a desativação da usina, Ione parecia
querer cobrar da prefeitura um mínimo de coerência: se fizeram tanta propaganda, se a
reciclagem era benéfica para a cidade, qual seria então a razão? Na verdade, os
argumentos para o fechamento da usina de triagem articulam-se a vários elementos que
já discutimos aqui: o não cumprimento das obrigações contratuais por parte da Limpel e a
falta de fiscalização e de cobrança da prefeitura. O Relatório de Avaliação Ambiental
refere-se ao fato de que, além das irregularidades no manejo do lixo, a empresa não
implantou a coleta seletiva na cidade, conforme havia sido firmado no contrato com a
prefeitura. Segundo o Relatório, a usina custava caro aos cofres públicos, mas não
cumpria sua função. Na avaliação dos profissionais que a inspecionaram, o fato de não
haver “tratamento prévio dos resíduos hospitalares”, um incinerador para esse processo,
um sistema de coleta seletiva na cidade e, ainda, o fato de receber resíduos industriais
sem a autorização dos órgãos ambientais tornavam a questão bastante complicada.
Segundo eles, nos últimos anos, à medida que aumentou o volume de lixo produzido na
cidade, a usina não conseguiu acompanhar esse movimento, ao contrário, houve uma
redução da quantidade de resíduos triados e, “conseqüentemente, um aumento da
quantidade de resíduos a serem aterrados, observando-se os dados relativos à
quantificação de resíduos entre os anos de 1998-2001”.
Um outro aspecto a ser destacado no Relatório é o fato de que a responsabilidade
por todas as falhas e irregularidades cometidas cabe a quase todos os envolvidos no
processo, pois de acordo com esse documento:
118
Ione Ribeiro. Entrevista realizada em junho de 2003.
301
Não há fiscalização adequada por parte dos órgãos ambientais, secretarias municipais de Serviços
Urbanos e Meio Ambiente, ferramentas existentes na administração pública para avaliar o
empreendimento, tanto nos aspectos gerenciais e administrativos, quanto ambientais;
Dessa maneira, o Relatório prossegue apontando a responsabilidade não apenas do
poder público municipal, mas também da FEAM, constatando a
Existência de algumas falhas (que) foram detectadas nas ações da FEAM, como órgão fiscalizador:
(a) permitir que o monitoramento seja efetuado pelo empreendimento a ser fiscalizado; (b) dilatação
exagerada dos prazos para cumprimento de qualquer condicionante por ela imposto; (c) não ter
critérios além da existência de uma LO do empreendimento, para que o município receba o ICMS
ecológico, sem que o fator de qualidade seja observado; (d) não exigir o monitoramento das
voçorocas.
De acordo com as questões levantadas na documentação, a FEAM, ao abrir um
processo administrativo contra o município, em abril de 2001, contribuiu para que se
tentasse apurar o que vinha ocorrendo. Entretanto, esse órgão também deixou de cumprir
seu papel de fiscalizar e de fazer cumprir as normas legais. Simultaneamente ao processo
instaurado pelo FEAM, foi instaurado um inquérito por parte da Curadoria do Meio
Ambiente, por, dentre outras razões, haver suspeitas de contaminação do lençol freático.
De um lado, são diversos os elementos que contribuíram para a desativação da
usina. Sem dúvida, a negligência, a conivência e o prevalecimento de interesses pessoais
em detrimento do cumprimento das normas legais existentes foram fatores decisivos em
todo o processo. De outro lado, apesar dos vários prejuízos causados aos trabalhadores e
à população, a Limpel não foi punida, ao contrário, ainda detém todo o controle do lixo na
cidade, sendo responsável por seu transporte e destino. Segundo o Relatório, o fato de
que houve o descumprimento de diversas normas contratuais permitiria à prefeitura o
rompimento unilateral do contrato com a empresa. Conforme a lei, caberia, ainda, a título
de sanção, advertência, multa, suspensão ou declaração de inidoneidade.
119
Mas nada
119
De acordo com a Lei de Licitações, “pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida
a prévia defesa, aplicar ao contrato as seguintes sanções: I-Advertência; II-Multa, na forma prevista no instrumento
convocatório ou contrato; III-Suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de contratar com a
Administração, por prazo não superior a 2 anos; IV-Declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a
Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a
reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir
a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada”..., (art. 87, I, II, III e IV da Lei
8.666/93. Ver: Direito Administrativo. ROSA, Márcio Fernando Elias. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 89-118.
302
disso ocorreu. Aliás, avaliamos que o fechamento da usina em tais circunstâncias acabou
por favorecê-la, pois agora está livre dos trabalhadores, de suas reclamações, e dos
entraves gerados pela atividade desempenhada por eles. Ao passo que o lixo permanece
sendo enterrado sem qualquer processo de triagem, subtraindo a vida útil do aterro.
Graves fatores a denunciar um complexo cenário: toma-se conhecimento de questões
sérias para a vida na cidade e não se fazem esforços para evitar danos irreparáveis ao
ambiente, à saúde e ao bem-estar da população. Os pesquisadores concluíram a
avaliação com a seguinte assertiva: “Não é de conhecimento da comissão, a instalação
de nenhum processo administrativo por parte da prefeitura em relação à Limpel Atividades
Urbanas Ltda., caracterizando sua co-responsabilidade”. Diante disso, ficamos a nos
perguntar quais outros obscuros interesses estiveram em jogo e nortearam essa
contraditória decisão do poder público no enfrentamento da questão do lixo na cidade.
120
Tudo aponta que a questão ambiental parece ter configurado grande influência
nesse processo, entretanto, de modo análogo, interesses políticos e econômicos também.
O Relatório traz curiosas informações acerca da realidade das usinas no Brasil, segundo
alegam especialistas, elas possuem “tecnologia obsoleta, transferida dos países
desenvolvidos para os países pobres”. Grande parte delas são compostas de
equipamentos eletromecânicos, nem sempre necessários, carentes de especificação
adequada. Muitos fabricantes de maquinários “enxergaram no lixo um filão, e passaram a
produzir equipamentos adaptados para as ‘usinas’”. Isso se tornou um problema para as
prefeituras que os compram, pois não há acompanhamento técnico. Ademais, há uma
expectativa de que as usinas são lucrativas, o que não condiz com a realidade, senão
para quem fabrica ou comercializa as máquinas. As esteiras da usina de Uberlândia, por
exemplo, permanecem no local, mas não possuem utilidade alguma, talvez, sejam
vendidas como sucata.
Quanto aos trabalhadores entrevistados, dimensionamos o que significou para eles
a experiência na usina ao longo dos anos em que lá estiveram. Além da possibilidade de
um trabalho fixo, na ausência de alternativas, alguns, como Ione, Dilma, Silvany, Sílvio e
Zileila, cada um a sua maneira, nas observações que faziam sobre o lixo, relações de
trabalho ou trajetória pessoal, demonstraram que esse trabalho proporcionou-lhes uma
maior consciência de si próprios e da vida na cidade. Pelo que contaram de suas
120
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, “Conclusões finais e aspectos jurídicos”, p.14.
303
histórias, parecem ter vindo para Uberlândia, de certa maneira, ingenuamente, cultivando
expectativas que, em parte, foram frustradas. Nesse processo, o olhar sobre a cidade
mudou, tornou-se mais complexo. A vivência da falta de oportunidade, da situação de
trabalho precário, enfrentando preconceito e se firmando como sujeito, tudo isso os tornou
mais conscientes das dificuldades e problemáticas da vida urbana.
Uma relação ambígua em que valorizar o próprio trabalho não acarretava fechar os
olhos a sua natureza insalubre. Lamentando que tenham ficado desempregados, Ione
também avaliou que, nas condições em que trabalhavam, não poderiam nem queriam
mais ficar. Silvany, por sua vez, afirmou que permanecer por quase seis anos na usina
“não foi legal”, ela o fez “porque precisava”, e hoje atribui o cansaço excessivo e as dores
nos braços que sente ao desgaste físico que o trabalho provoca. Um aprendizado
doloroso de fato, mas que lhes ampliou uma percepção acerca dos limites e
potencialidades de sua condição de trabalhadora, sua saúde e seus direitos.
121
Sobre o modo como o lixo vem sendo alvo de discussões em diversas áreas,
importa destacar, ainda, de que maneira o aterro com sua produção, o composto orgânico
e a matéria prima para a indústria da reciclagem, propiciava também negociações com
vários sujeitos na cidade. Nesse sentido, o Relatório faz uma referência à “presença de
vidro e plástico junto ao resíduo orgânico destinado à compostagem”, e aí não pudemos
deixar de fazer uma associação com um debate entre os estudantes de Geografia da
Universidade a respeito do composto orgânico produzido pela Limpel. Como grande parte
do lixo da cidade é constituído por restos de alimentos, a usina aproveitava-o para fazer
adubo e comercializá-lo com agricultores da região. O problema é que, devido à maneira
como o lixo orgânico mistura-se a outros, não é possível, no processo de triagem, retirar
todos os componentes, o que faz com que o adubo seja de qualidade ruim. Os estudantes
de Geografia e até mesmo um servidor público, que atua na Secretaria de Serviços
Urbanos, comentaram sobre o assunto, confirmando, então, que, inicialmente, os
agricultores se entusiasmaram com o composto orgânico fabricado na usina, mas, depois
de fazer uso dele por um tempo, chegaram à conclusão que, por apresentar outros
elementos em sua composição, o adubo era prejudicial às plantações. Com isso,
passaram a recusá-lo mesmo quando doado. Em abril de 1997, a Secretaria de Serviços
Urbanos realizou uma vistoria técnica no aterro e constatou que a usina ainda não estava
121
Silvany Moreira de Freitas Andrade, 37 anos. Conversa informal com a autora em 04 de fevereiro de 2006.
304
em “plena operação” e que “o composto produzido era de má qualidade”.
122
Ao longo de
todos esses anos, em relação a essa situação, esse quadro não se modificou muito.
A Limpel comercializava, também, os vidros que eram separados pelos
trabalhadores. O vidro, uma vez selecionado, era vendido a garrafeiros, como o Sr. José
Francisco, que contou ter comprado vidro da Limpel durante um ano. Segundo ele,
adquirir o vidro da empresa era “trabalhoso e perigoso”, porque estava “na boca do lixo”, e
sujeito a riscos de “contaminação”. Quanto às condições em que o vidro era ofertado pela
empresa, o Sr. José Francisco explicou que havia um processo no qual os funcionários da
usina selecionavam o vidro, e que depois ele mesmo tinha que separar, no pátio onde
ficavam expostos, dentre os vários tipos de vidro, aquele que lhe interessava.
No que se refere a esse processo de comercialização, todo o lucro resultante da
venda dos materiais recicláveis pertencia à Limpel. Saber dos valores que ela obtinha
revelou-se uma difícil tarefa. No Relatório de Avaliação Ambiental, não há informações
sobre isso, nem a Seção de Coleta da Secretaria de Serviços Urbanos tinha dados a
respeito. Algumas indicações dos trâmites desse comércio foram dadas pela técnica de
segurança e pela gerente da Limpel, Maria Teresa. De acordo com Clênia, os materiais,
uma vez selecionados, eram vendidos e, como “Uberlândia não tem uma empresa que
faça uma reciclagem propriamente dita”, enviados para outras cidades do estado.
No início, ia mais pra outros estados, São Paulo e Paraná, depois, pouco tempo agora, a gente
descobriu empresas em Minas que já fazem esse trabalho então esse material tava indo pra lá.
123
Já Maria Teresa não se envolvia diretamente com essa questão, ainda que, sendo
gerente da Limpel, e como responsável pela coordenação das diversas atividades da
empresa, ela tivesse condições de saber um pouco mais além do que pode ser lido
abaixo:
Vendia para as indústrias recicladoras. Ás vezes não, isso aí também eu não posso te informar
porque eu não comercializava. Isso aí depende muito de mercado e de preço. O que oferece, o que
paga melhor. Exatamente, tem esse problema, quem paga o frete, né?
124
122
Esse parece ser um problema característico dessa modalidade de tratamento de lixo, pois “um estudo realizado em 21
‘usinas’ de alguns estados brasileiros revelou a presença de metais pesados – como mercúrio, chumbo e cobre – no
composto orgânico em diferentes estágios de maturação. Essa baixa qualidade do composto levou a ‘usina’ de Araras,
no interior de São Paulo, por exemplo, a estocar 9 mil toneladas deste composto, para as quais não havia compradores
interessados”. In: Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário de Uberlândia, pp. 18 e 86.
123
Clênia Maria Rocha Jerônimo. Entrevista realizada em fevereiro de 2003.
124
Maria Teresa Franco, gerente da Limpel. Entrevista concedida à autora em 17 de maio de 2004.
305
De todo modo, ao ouvi-la explicar sobre o critério que a Limpel adotava para
comercializar os materiais, “o que oferece, o que paga melhor”, passei a atentar para
alguns aspectos desse intrigante mercado. Na verdade, a empresa enfrentava as mesmas
dificuldades de pessoas como o Sr. José Francisco e outros que atuam no comércio de
materiais recicláveis. Como não há indústrias de reciclagem em Uberlândia, é necessário
transportá-los para lugares em que elas existam. Sendo caro o frete, por vezes, era
melhor , então, repassá-los a sucateiros e comerciantes já estabelecidos na cidade.
No caso do vidro, a situação era análoga, e isso explica por que a Limpel fornecia
vidros ao Sr. José Francisco. Quanto ao alumínio, a empresa o vendia, por vezes, ao Sr.
Magid, comerciante do ramo de sucatas. Era mais fácil e mais rápido do que arcar com as
despesas para mandar esses materiais para outro estado. Um indício é o fato de que,
logo após ter sido desativada a usina, a Limpel montou um depósito de compra de
materiais recicláveis no Distrito Industrial, que foi fechado poucos meses depois por não
ter resultado nos lucros que esperavam. Naquela ocasião, a empresa procurou pelo Sr.
José Francisco, interessada em repassar-lhe o que sobrou. As negociações entre a
Limpel e os sujeitos envolvidos com esse comércio demonstram as articulações em torno
dos restos na cidade e deixam entrever os meandros do mercado do lixo. Trata-se de
relações que servem para revelar a usina como espaço de produção, no qual se pretendia
a máxima exploração do lixo, já institucionalizado como uma mercadoria.
Esse é um aspecto da problemática do lixo que nos remete a pensar sobre o fato de
que, em seu gerenciamento, os empreendimentos privados estão ligados à seleção e ao
comércio da matéria prima, aos restos que podem ser reaproveitados no processo de
reciclagem. Isso significa dizer que a iniciativa privada, ao assumir a responsabilidade de
cuidar do lixo, o faz somente no que se refere a uma parte dos resíduos. Entretanto há um
tipo de lixo, cujo destino é o aterro sanitário, que precisa ser enterrado e, por vezes,
tratado para não trazer prejuízos ambientais. Aqui, parece haver um abismo tanto entre os
interesses e as práticas dos empresários quanto no que se refere à consciência que
deveria ter o poder público diante de um problema que, em princípio, é responsabilidade
sua.
Nesse sentido, interessa destacar, ainda, o fato de que a prefeitura tentou implantar,
durante o ano de 2004, um sistema de coleta seletiva. Essa havia sido uma proposta de
campanha do PMDB nas eleições anteriores, em outubro de 2000, e implantada somente
306
no último ano de gestão, servindo de atrativo eleitoral. O projeto de implantar a coleta
seletiva incluía, também, a formação de cooperativas de catadores de papel.
Com inúmeras dificuldades para “organizar” as entidades, por conta de uma série de
questões legais e porque o número de coletores que se apresentaram para participar do
processo não era suficiente, finalmente, a prefeitura implantou o sistema de “Coleta
Solidária”, com o apoio da CORU – Cooperativa dos Recicladores de Uberlândia. Em
maio de 2004, a entidade contava com trinta e três catadores associados, sendo que sete
deles pertenciam à diretoria. Como estava no início de suas atividades, e defendia sua
gestão pelos próprios coletores, ela carecia da estrutura oferecida pelo poder público.
No que se refere ao sistema de coleta seletiva, era organizado da seguinte maneira:
às terças e quintas, apanha-se o lixo seco – que é como se chamam os restos: alumínio,
vidro, metal, papel, vários tipos de plástico; pet ou plástico duro. Esses materiais são
previamente separados pelos moradores; já, outros, sacos e copos plásticos, a entidade
recebe como doação de algumas empresas. Quanto ao lixo comum – o lixo “molhado” –,
permanece sendo recolhido pelos trabalhadores da limpeza pública.
Entretanto a coleta seletiva limitou-se a alguns bairros: Daniel Fonseca, Tubalina,
Tabajaras, Vigilato Pereira, Karaíba, Jardim das Acácias, Itapema Sul, Nossa Sra. da
Abadia, Morada da Colina, Gávea e Cidade Jardim, próximos ao centro e à Unidade de
Reciclagem da Coleta Solidária. Foram escolhidos porque, em sua maioria, são bairros de
classe média, cuja população tem alto poder aquisitivo, consome maior quantidade de
produtos industrializados e, por isso, produz um lixo mais rico em materiais recicláveis.
Além disso, há o argumento de que ainda não é possível estender esse sistema a toda a
cidade, pois custaria caro.
125
Assim, segundo o Sr. Álvaro Alberto de Carvalho, servidor público que auxiliava na
Cooperativa, a “preocupação da prefeitura é organizar e gerenciar para melhorar”. Mas é
preciso levar em consideração que, com a desativação da usina de triagem, a prefeitura
deixou de receber o chamado ICMS ecológico, verba do governo estadual destinada aos
municípios que apresentam sistemas de tratamento de lixo e esgoto. Trata-se de valores
expressivos, uma vez que, até dezembro de 2000, havia sido “repassado à Prefeitura o
valor de R$3.487.000,00 referente à cota parte do ICMS pelo critério Saneamento
125
A Cooperativa funcionava no galpão da prefeitura, situado no final da rua Tomazinho Rezende, bairro Daniel
Fonseca, próximo às margens do rio Uberabinha. Segundo o Sr. Álvaro, nessa área, a Prefeitura ambiciona criar um
307
Ambiental”.
126
Portanto, percebemos que, além de ser chamariz eleitoral, a cooperativa
envolvia também outros interesses para a administração. Ela traria retornos políticos e
econômicos. Relações que nos induzem a pensar acerca do modo como o lixo torna-se
cada vez mais importante, à medida que ele representa lucro, pois observamos que os
diversos discursos sobre higienização e preservação ambiental são mais argumentos do
que propostas efetivas.
De todo modo, a criação da CORU teve importante significado no âmbito da
problemática do lixo, sobretudo, no que tange às relações entre catadores de papel e
empresários desse setor. Em tese, ao comprar diretamente dos coletores e pagar melhor
preço a eles, a cooperativa estaria contribuindo para amenizar a exploração que sofrem
esses trabalhadores. Quando se recusava a negociar com o Butelão, empresa que
monopoliza o comércio de papel na cidade, a entidade tentava aquebrantar seu poder de
barganha na hora de determinar o preço do material. Lembramo-nos do Sr. João Batista,
um dos dirigentes, na ocasião em que lhe indagamos se comercializavam com o Butelão,
ele hesitou responder e, em seguida, disse que não, que a cooperativa não poderia
negociar com aquela empresa, que, há tantos anos, vem explorando a todos eles que
sobrevivem como catadores de papel, afinal, é justamente contra isso que estão
lutando.
127
Conforme ele esclareceu, a entidade negocia produtos com empresas e pessoas na
cidade: o alumínio com a Reciclo, o vidro com Clodoaldo – um garrafeiro –, mas também
pode dar preferência a empresas de outras localidades, caso paguem um preço melhor.
Mas a CORU tem, também, uma preocupação com a questão ambiental, por isso é que,
mesmo não sendo material lucrativo e de fácil comercialização, ela vê a necessidade de
coletar e de dar um destino ao vidro.
Seja como for, as assertivas do Sr. João Batista consistem em ótimo argumento de
defesa da importância e da necessidade da cooperativa para uma cidade, que, nos
Parque Linear, que inclui um projeto de recuperação do rio e a criação de áreas de lazer. Interessante notar como novos
empreendimentos para a cidade assumem uma roupagem ecológica e de suposta preocupação com a questão ambiental.
126
Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário, “Conclusões finais e aspectos jurídicos”, p 124.
A Lei 12.040/96, conhecida como “Robin Hood”, possibilita o repasse de verbas aos municípios que possuem sistemas
de tratamento de lixo e ou de esgoto, bem como áreas de preservação ambiental. Dados da Secretaria Municipal de
Meio Ambiente informam que Uberlândia recebe mensalmente uma média de 112 mil reais provenientes do critério
meio ambiente. Valor referente ao tratamento de lixo e às unidades de conservação ambiental. Ver: MENDONÇA,
Mauro das Graças. Políticas e condições ambientais de Uberlândia-MG, no contexto estadual e federal, op.cit, p. 139.
127
João Batista Ferreira Passos, catador de papel associado à Cooperativa, que também faz parte da direção da entidade, natural de
Monte Alegre – MG. Conversa informal com a pesquisadora em maio de 2004.
308
últimos anos, vem se defrontando com sérios problemas ambientais e cujos governantes
alardeiam discursos e promessas de políticas públicas nesse sentido. Entretanto, a bem
da verdade, para o expressivo contingente da população que tem buscado sua
sobrevivência na exploração dos restos, a cooperativa pode ser sinal de melhores
condições de trabalho e de relações mais democráticas, mais humanas.
Embora a questão política, em suas várias dimensões, esteja sempre presente, a
desnudar os conflitos de interesse inerentes às relações vividas. Em meados de 2005, um
desentendimento entre a CORU e o novo governo acarretou a perda do galpão pela
entidade.
128
Toda a estrutura ali existente passou a ser gerida pelo INDERC (Instituto de
Desenvolvimento Regional do CINTAP), uma OSCIP (Organização Social Civil de
Interesse Público) criada, em 2002, pelo CINTAP (Centro das Indústrias de Minas Gerais
e Alto Paranaíba), a fim de apresentar soluções para os resíduos sólidos dessas
empresas.
De acordo com Adriana Nunes, coordenadora da organização, a prefeitura delegou
o projeto de coleta seletiva ao INDERC, numa modalidade de prestação de serviço
considerada viável, prática e sem burocracia, em que o termo de parceria firmado
pressupõe a dispensa do procedimento de licitação. O poder público alega não possuir
condição e estrutura para desenvolver esse projeto, razão pela qual o acordo com a
entidade vem sendo mantido há cerca de dois anos.
Segundo Adriana, a missão do INDERC é fomentar alternativas para o problema do
lixo na cidade, mobilizando setores da sociedade em torno dessa questão, associações
de moradores, de catadores de papel, ONGs (Organizações não governamentais) com o
intuito de formular soluções que possam envolver em políticas públicas dessa natureza
setores da
população e trabalhadores que sobrevivem da coleta de recicláveis. Sua
proposta é oferecer formação às associações de catadores até que possam se auto gerir.
Claro está que isso seria feito em espaço físico e com recursos públicos.
129
Nessa perspectiva, é contraditório que a CORU tenha se retirado do galpão e ido
para o Jardim Ipanema, bairro periférico e distante, próximo ao aeroporto local. Desde
então, a cooperativa vem sobrevivendo em difíceis condições, tentando manter-se com
128
Administração Odelmo Leão Carneiro, 2005-2008, eleito pelo PP (Partido Progressista), cuja base governista
compõe-se dos seguintes aliados políticos: PFL, PL, PDT, PTC, PTB, PRP, PSDB, PSDC, PSC, PSL, PMN, PHS.
129
O INDERC é uma organização diretamente ligada à FIEMG (Federação das Indústrias de Minas Gerais, Regional
Vale do Paraíba), cuja sede, em Uberlândia, também abriga a entidade, que, de fato, em sua origem, surgiu na defesa de
interesses dos empresários. Conversa informal com Adriana Nunes, coordenadora, em 29 de dezembro de 2005.
309
doações de empresas e entidades, e sem o apoio do poder público. Ela ainda conta com
34 associados, e um de seus dirigentes, o Sr. Francisco Alves, explicou que não puderam
permanecer na estrutura que pertence à prefeitura, porque não firmaram um acordo por
escrito com a administração anterior. Reconheceu que tal situação acarretou muitas
dificuldades, pois, agora, a Cooperativa precisa arcar com, entre outros, os custos do
espaço alugado. No entanto, contando com a ajuda de parentes e de simpatizantes, estão
buscando mantê-la em operação, apesar de toda a precariedade. De fato, já não podem
competir com os sucateiros da cidade e agora pagam menor preço ao material ofertado
pelos catadores. Quando não conseguem vendê-lo para indústrias em outras localidades,
em razão do frete, acabam por comercializá-lo em Uberlândia mesmo, perdendo um
pouco com isso.
Mas, com firmeza e convicção, o Sr. Francisco também declarou acreditar que a
experiência e o aprendizado que estão, passo a passo, conquistando há de ajudá-los a
superar os vários obstáculos e, sobretudo, a garantir a sobrevivência com dignidade e
autonomia. Sua luta e a de muitos outros coletores desvenda intrigantes aspectos das
relações em torno dos restos na cidade, a exploração de suas diferentes potencialidades,
a constante disputa política de poder e de espaço entre diversos sujeitos, na qual os
trabalhadores imbricam-se buscando defender o direito ao trabalho e à vida.
130
130
Francisco Alves Ferreira, 56 anos, presidente da CORU e membro do Conselho Fiscal da entidade. Ele, Graceli
Donizete de Oliveira, e uma outra trabalhadora associada, colaboram com a organização do espaço físico da
cooperativa, recebem, separam e comercializam os materiais. Conversa informal com a pesquisadora, na sede da
cooperativa, localizada na Avenida Sideral, n. 1889, em 05 de fevereiro de 2006.
310
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos este um espaço propício para falar de certas inquietações que foram
surgindo no decorrer da investigação. Para nós, confessamos que a reflexão sobre o lixo
na cidade tornou-se por demais angustiante. Ao discutir as relações de produção e
descarte do lixo, apontamos como possibilitam apreender diversos aspectos das
transformações que o espaço urbano veio sofrendo nas últimas décadas. Refletimos,
ainda, sobre os vários sujeitos envolvidos nesse processo: de trabalhadores que
sobrevivem da exploração do lixo, movimentos sociais, empresas, ao poder público local.
Tivemos a intenção de mostrar como os restos constituem alvo de disputas e embates
entre esses sujeitos, o que acarretou pensar, também, certas mudanças na natureza do
que se concebia como lixo.
Os restos revelam muito sobre a organização dos lugares na cidade, como
determinadas articulações sociais desnudam a complexidade do viver urbano. Em suas
diferentes trajetórias, abrem-se caminhos para a abordagem de outros temas que se
articulam à problemática do lixo: padrões de consumo, desperdício, saúde pública,
questão ambiental, alternativas de trabalho e sobrevivência, formas de exploração e
acumulação. Diante de toda essa diversidade, o diálogo com as fontes, e a busca em
apreender a historicidade delas, ajudaram-nos a traçar os rumos da pesquisa.
Os jornais analisados indicaram pistas sobre a cidade que se desenha nas
aspirações, nos projetos do poder público e das elites locais. No que tange à questão do
lixo, diversas vezes, a imprensa não apenas traduziu uma certa visão de classe como
também a defendeu. Ambições, desejos e projeções em torno de um ideal de cidade,
limpa, urbanizada e civilizada, contribuindo para uma tentativa de reordenar e reorganizar
espaços, hábitos e práticas, conflituando com outros modos de viver existentes no
urbano. Conquanto essas experiências de disciplinar a população tenham sido sempre
fator de tensões, percebemos como determinados valores e noções de cidadania iam
sendo incorporados e reelaborados pelos moradores, que passavam a expressar suas
demandas e seu desejo de viver num ambiente considerado mais saudável.
311
Queremos chamar a atenção para o modo como essas reflexões remetem a outro
aspecto significativo sobre a questão do lixo na cidade: nos dias de hoje, muitas pessoas
declaram-se preocupadas com os problemas ambientais e com a preservação da
natureza, de políticos e administradores públicos a setores da imprensa e vários outros
grupos da sociedade civil. De fato, a questão ambiental vem assumindo, cada vez mais,
maior importância no espaço urbano. Nosso tempo encontra-se profundamente marcado
por uma sensibilidade voltada para os cuidados com a vida, higiene, saúde e outros
valores nesse sentido.
Entretanto inúmeras contradições no cotidiano e na organização da vida na cidade
induzem-nos a questionar o quanto são realmente genuínos determinados discursos em
defesa de tais valores. A querer dimensionar em que medida, como escreve Thompson,
“uma grande parte da política e da lei é sempre teatro”.
131
Para exemplificar isso,
recordamos que, no segundo capítulo deste trabalho, discutimos como, na década de
1990, moradores dos bairros Guarani, São José e Taiaman, sofreram as conseqüências
da implantação do aterro sanitário nas proximidades. Essa população teve de se defrontar
com o mau cheiro do lixo, insetos e prejuízos outros que o empreendimento lhes
proporcionava.
No contexto de Uberlândia, para as classes mais desfavorecidas, tal situação não
retratava uma novidade, ao contrário, ela compreendia uma longa trajetória. Desde a
década de 1970, a abertura de determinadas empresas no Distrito Industrial, tão
alardeada por algumas administrações como benéfica, por gerar empregos e impostos,
significou uma deterioração das condições de vida da população que já residia ou que
passava a residir nos bairros adjacentes a essa região.
Já no terceiro capítulo, destacamos que, em fins de 1980, o jornal O Triângulo
noticiava os protestos de algumas associações de moradores contra a poluição
provocada pela Braspelco, empresa que atua na curtição de couro e, ainda hoje, causa
enorme mau cheiro nos bairros vizinhos. Outras empresas, como a Souza Cruz, com a
fabricação de cigarros, e as várias granjas existentes em diferentes localidades são
responsáveis por significativos danos aos moradores de seu entorno.
Atualmente, os moradores do Guarani, Tocantins, São José e outros bairros, já tão
penalizados com a presença das empresas e do aterro, enfrentam, agora, os problemas
131
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. “Patrícios e Plebeus”. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 48.
312
decorrentes de uma estação de tratamento de esgoto, que, instalada na região, propicia
intenso e fétido odor, em determinadas horas do dia, causando desconforto e mal
enormes à saúde da população.
Embora tenham-se mobilizado em algumas ocasiões, os moradores dessas
localidades jamais conseguiram demover os empresários de sua postura intransigente e
de indiferença com relação aos prejuízos que acarretam à população e ao ambiente; e
tampouco puderam contar com o poder público, cujos encaminhamentos jamais se
contrapuseram aos interesses do grupo detentor de maior poder de barganha nessa
disputa. Tensões dessa natureza denunciam como antigas práticas políticas, degradantes
e predatórias, ainda se mantêm, a despeito de certas mudanças sociais que nos acenam
promessas de um viver urbano mais saudável. As administrações implantam áreas de
preservação ambiental como alternativa de lazer para os moradores, asseguram estar
protegendo a natureza e a saúde, mas recuam quando isso demanda enfrentar um jogo
de forças em que determinados interesses políticos e de classe têm prevalecido em
detrimento dos direitos da população.
Se, por acaso, essas questões parecem menores porque, na superfície, atingem tão-
somente a setores sociais mais empobrecidos, então, é preciso relembrar o desfecho da
desativação da usina de triagem e o que isso significa para toda a população da cidade. A
responsabilidade pelo transporte e destino do lixo urbano ainda cabe à Limpel. No entanto
os resíduos estavam sendo enterrados sem separação nem tratamento, o que provoca a
contaminação do solo e da água. Além disso, em pouco tempo, será preciso providenciar
outro local, pois o grande volume de lixo que o aterro recebe diariamente pressupõe a
aceleração do fim de sua vida útil. Decididamente, tudo isso causa incalculáveis prejuízos
para a vida, saúde e bem-estar, não de alguns, mas de todos os moradores.
Há outras contradições sobre as quais sentimos não poder nos furtar a discutir.
Refletindo sobre algumas formas de sobrevivência, por meio da exploração do lixo, que
testemunhamos em Uberlândia, deparamos com o fato de que, nas últimas décadas, um
contingente expressivo de pessoas tem buscado garantir sua subsistência coletando
restos na cidade. Trata-se de um fenômeno social com profundas raízes no desemprego,
na precariedade do trabalho, na falta de perspectivas e de oportunidades, que tem
resultado em um número cada vez mais crescente de trabalhadores vivendo da
exploração dos refugos.
313
Desde a década de 1970, catadores e carroceiros encontraram ali um nicho de
sobrevivência. Na segunda metade dos anos de 1990, os trabalhadores do aterro
sanitário. No final de 2004, a Cooperativa de coletores delineia justamente uma tentativa
de organização dessa categoria de trabalhadores e sua luta contra a exploração, em prol
de melhores condições de trabalho e de negociação dos materiais recicláveis. Em âmbito
nacional,um movimento social organizado, lutando pela regulamentação da profissão
de catador, cujo lema defende a idéia de que “o lixo não é lixo” e de que o coletor é um
trabalhador. Um dos maiores entraves com que se deparam os catadores são os
sucateiros atravessadores que levam vantagem quando lhes pagam um preço irrisório
pelo quilo de papel, alumínio ou vidro. Conscientes da importância que vem assumindo o
mercado do lixo, os trabalhadores reivindicam a valorização da atividade que realizam, da
contribuição social que oferecem.
Em fins de 2000, em Uberlândia, existiam, aproximadamente, 2.500 trabalhadores
que se utilizavam de uma carroça como instrumento de trabalho e, talvez, mais ou menos,
2.000 lidavam com a coleta de materiais recicláveis. Nos dias de hoje, esses números
certamente aumentaram. Basta observar a quantidade significativa de pessoas que
circulam pelas ruas da cidade, nos bairros e no centro, recolhendo restos.
Se, de um lado, ao tomarmos consciência da exploração inerente ao universo
dessas relações, percebemos a importância de iniciativas como associações e
cooperativas de catadores, por traduzirem a luta pelo direito à cidadania e ao trabalho
com dignidade, garantias que precisam ser conquistadas pelos próprios trabalhadores. De
outro lado, essas mesmas relações parecem antagônicas, quando confrontadas com
nosso modelo econômico produtivo, a sociedade de consumo, em que a aquisição de
mais e mais produtos vem constituindo um parâmetro de realização do indiduo e
propicia, ao mesmo tempo, um esbanjamento e uma escassez absurdos. Se é preciso
reduzir a quantidade de lixo gerada, e se um caminho seria o combate ao desperdício,
então, estamos indo na direção errada.
Assim, a realidade mostra-se muito complexa. Essa percepção tornou-se mais forte
no diálogo com as fontes orais, na proximidade com os trabalhadores da usina de
triagem, com a conflituosa e antagônica realidade social vivida e denunciada por eles.
Conquanto tenhamos refletido sobre como se mostravam sujeitos nas relações que
experimentavam na usina, como se apropriavam daquele espaço, dando a ele um
314
aspecto menos inóspito, também temos consciência do quanto eram desumanas as
condições de trabalho que lhes eram impostas. A precariedade, a exploração, a
insalubridade, o desrespeito aos direitos trabalhistas e os acidentes de trabalho, dentre
outros fatores, desnudam o caráter espoliativo e ambíguo dessas relações e obriga-nos a
indagar o que significa submeter pessoas a tais formas de degradação, sobretudo, numa
sociedade que se diz preocupada com a questão ambiental e com a preservação da
natureza. Será que os trabalhadores não se inserem nesse universo cuja sensibilidade
encontra-se tão voltada para os cuidados com a vida, higiene e saúde? A visão de
sociedade e de natureza, que parece predominar e que se depreende dessas relações,
legitima atitudes por demais predatórias, pois cabia aos trabalhadores contribuírem para a
limpeza da cidade, a não contaminação dos solos e dos rios e o reaproveitamento da
matéria-prima, mas se concebia natural e possível que eles mesmos poderiam estar
submetidos às conseqüências dos males que se queria evitar para toda a comunidade.
Claro está como isso desvenda as contradições que envolvem os familiares
discursos oficiais politicamente corretos sobre natureza, preservação ambiental, combate
à poluição e outras questões. São práticas como essas, silenciadas, por serem nada
ecológicas, que apontam atitudes que, como dizia Milton Santos, se sintonizam bem com
a lógica do “modelo produtivo adotado e que, por definição, é desrespeitador dos valores
desde os dons da natureza até a vida dos homens".
132
Diante disso, torna-se imperativo
admitir que o conceito de natureza que tem predominado em nossas relações não apenas
separa e dicotomiza homem e sociedade, como também, ao se instituir socialmente,
define que certos direitos, como proteção à saúde, a um ambiente saudável e à qualidade
de vida, constituem privilégios, defendidos e assegurados somente para uma minoria.
De fato, as relações em torno do lixo na cidade expõe o quanto é imperativo forjar
uma convivência social em que a inclusão dos grupos desfavorecidos esteja na ordem do
dia. Como nos alerta Williams: “uma hora vamos ter que dividir, pode ser com aumento de
produção e com tempo disponível ou com recursos e disponibilidades reduzidos”.
133
Elas
explicitam, também, antigas contradições sociais que permanecem em nosso tempo, no
qual vem se fortalecendo uma estrutura sócio-econômica que se sustenta na exploração e
na desigualdade.
132
SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1993. p. 47.
133
CEVASCO, Maria Elisa. Para Ler Raymond Williams. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 265.
315
No que se refere à CORU e a seu empenho em manter-se ativa, mesmo sem apoio
do poder público, refletimos que, embora, hoje, seja preciso esforço de imaginação para
visualizar uma sociedade em que o campo de oportunidades seja mais fértil, que as
pessoas possam usar de seu potencial criativo para tecer relações mais humanas, que
uma trabalhadora não precise dizer que trabalhar com o lixo foi o que lhe restou para
fazer na vida, e que a própria natureza desse trabalho possa ser modificada, é preciso
reconhecer que, em algumas experiências sociais, numa luta diária pela construção da
cidadania, muitos estão traçando caminhos chegar a isso.
316
RELAÇÃO DAS FONTES CONSULTADAS.
I – Jornais Locais
I. A - Correio de Uberlândia – de 1980 a 1999 (todos os anos – completo)
I. B - O Triângulo – de 1985 a 1999 (todos os anos – completo)
I. C - Participação – Boletim da Assessoria Comunicação da Administração Zaire Rezende, de 1984 a 1986,
período de circulação do jornal, (meses de abril, maio, junho, julho, agosto, outubro e novembro).
II. – Documentos da Administração Pública.
II. A. Atas da Câmara Municipal, de 1980 a 2002.
II. B. Relatórios de Prefeito, anos de 1983-1988 e 1993-1996.
II. C. Código Municipal de Postura, 1967 e 1988.
II. D. Código Municipal de Saúde, 1986. Lei 4. 360. Secretaria Municipal de Saúde, Seção de Vigilância
Sanitária.
II. E. Lei Orgânica do Município de Uberlândia, promulgada em 1992.
II. F. Documentos da Secretaria de Serviços Urbanos, anos de 1980-1986.
II. G. Plano Diretor, 27 de abril de 1994. Secretaria Municipal de Serviços Urbanos.
II. H. Relatório de Avaliação Ambiental do Aterro Sanitário, 2002. Secretaria de Ciência e Tecnologia.
II. I. Projeto de lei n. 375/02, 04 janeiro de 2002, que propunha o tombamento do Mercado Municipal.
II. J. Projeto de lei n. 4. 013/77, 29 de Setembro de 1977.
II. L. Decreto 3.525 de 22 de abril de 1987, regulamenta a Lei 4. 360, de 1986. Secretaria Municipal de
Saúde.
II. M. Banco de Dados Integrados do Município (BDI), 1991. Secretaria Municipal de Planejamento.
II. N. Relação de bairros loteados, década de 1980; data de aprovação, número do projeto de loteamento e
imobiliária responsável. Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Urbano, Administração 2001-2004.
II. O. Lei 4.895, de 18 de abril de 1989, reestruturava a Secretaria de Meio Ambiente. Arquivo Público.
II. P. Lei 4.956 de 28 de agosto de 1989, declarava de utilidade pública a entidade SOS Meio Ambiente.
Arquivo
II. Q. Decreto 7.401 26 de setembro de 1997, regulamenta a responsabilidade da coleta, transporte,
tratamento e destino final de resíduos sólidos. Secretaria de Serviços Urbanos, Administração 1997-2000.
II. R. Decreto 9.152 de 29 de abril de 2003. Estabelece forma de repasse dos custos operacionais para
destinação final de resíduos sólidos especiais. Secretaria de Serviços Urbanos, Administração 2001-2004.
II. S. Levantamento da produção geral de lixo hospitalar, ano de 2004. Secretaria Municipal de Saúde.
II. T. Como destinar os resíduos sólidos urbanos - Licenciamento Ambiental. Material de orientação da
FEAM (Fundação Estadual do Meio Ambiente), 2002. Secretaria de Serviços Urbanos, Arquivo da Seção de
Coleta.
II. U. Texto explicativo da campanha “Lixo Selecionado - Ambiente Preservado”. “Coleta Seletiva do lixo.
Participe você também”. Projeto piloto das Secretarias de Serviços Urbanos e de Meio Ambiente, 1997-
2000. Arquivo da Seção de Coleta.
317
III. – Outras Fontes.
III. A. Texto da proposta de governo do PMDB para as eleições municipais de 1982.
III. B. Textos que subsidiaram a Comissão de Estudo do Lixo Hospitalar, 1991, (cedidos por Marco Aurélio
de Sá). Alternativas de Gerenciamento de Lixo Hospitalar. MOREL, Maria Márcia Orsi. “Trabalho
apresentado no Seminário promovido pela CONLURB nos dias 28 e 29 de maio último na cidade do Rio de
Janeiro”. Texto s/data. Incineração de lixo pode ser proibida pelo Governo. In: Vidativa – Boletim da
ABES, de 16 a 30 de junho de 1991. O lixo dos hospitais. J. A. Lutzenberger, 25 de junho de 1990.
Riscos infecciosos imputados ao lixo hospitalar realidade epidemiológica ou ficção sanitária?
ZANON, Uriel. In: Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 23(3): 163-170, julho/setembro de
1990. Moradores da Glória protestam contra fumaça de incinerador. In: Jornal do Brasil, 04 de
setembro de 1990. Lixo Hospitalar: Higiene ou Matemática? FILHO, Luiz Antônio Bertussi – ex-
engenheiro sanitarista da Secretaria de Saúde do Paraná. In: Informativo Técnico da ABLP, n. 33, p. 27-29.
Texto s/data.
III. D. Experiências de gestão participativa do lixo urbano. Cartilha do UNICEF (Fundos das Nações Unidas
para a Infância), Campanha Lixo e Cidadania: criança no lixo, nunca mais! setembro de 1998. Material
cedido por José Amilton de Souza.
III. E. Ecologistas e catadores: alternativa para lixão no Rio. Jornal Brasil de Fato, SP, 12 a 16 de jan. de
2006, p. 13.
III. F. Processo 00010/2006. Justiça do Trabalho, 3ª Região, 4ª vara, Uberlândia, MG.
III. G. Acordo Coletivo de Trabalho entre a Limpel e o sindicato que representa os trabalhadores da limpeza
urbana, 2002-2003, (SINDEACO). Anexado ao Processo 00010/2006. Justiça do Trabalho, 3ª Região, 4ª
vara, Uberlândia, MG
III. H. Processo 881/2004. Justiça do Trabalho, 3ª Região, 1ª vara, Uberlândia, MG.
III. I. Processo 947/2003. Justiça do Trabalho, 3ª Região, 1ª vara, Uberlândia, MG.
III. J. Processo 1.744/2003. Justiça do Trabalho, 3ª Região, 2ª vara, Uberlândia, MG.
III. L. Entrevista de Heliana Kátia Tavares Campo, diretora do UNICEF, à Revista Ecologia e
Desenvolvimento, n. 91, 2001, Seção Páginas Verdes.
III. M. Documentos do Processo de Ação Civil Pública contra o Município impetrada pelo Ministério Público
Estadual, em 17 de maio de 1993, em razão das condições de disposição do lixo no aterro sanitário.
Fontes Iconográficas.
Fotografias da empresa do Sr. Magid Cury e da residência do Sr. José Francisco Galdino, produzidas pela
pesquisadora.
Fotografias do aterro sanitário, algumas cedidas pela Professora Jureth Couto, outras, pela Secretaria de
Serviços Urbanos, Arquivo da Seção de Coleta.
318
IV. FONTES ORAIS.
Entrevistas com trabalhadores da usina de triagem do aterro sanitário de Uberlândia.
1. Clênia Maria Rocha Jerônimo – Veio de Araxá, Minas Gerais. Ela tem 42 anos, trabalha na Limpel há
quatro anos como técnico de segurança do trabalho. Atua nesta área há oito anos, já tendo trabalhado em
outras empresas nas área de construção civil e de serviços de limpeza e de higienização. Em sua
entrevista, ao falar sobre as condições de trabalho dos funcionários na usina, Clênia comenta que o
cansaço e o desgaste físico de que reclamam os trabalhadores se deve muito mais ao fato de que a maioria
dos trabalhadores compõe-se de mulheres, que, como donas de casa, precisam cumprir diversas tarefas
domésticas; lavar, passar e cozinhar, do que ao trabalho no aterro propriamente dito.
2. Dilma Correia – Ela veio de Itaporanga, Paraíba, e reside em Uberlândia há nove anos. Trabalhou por
mais de cinco anos na usina, tem 27 anos e possui dois filhos. Assim como muitas das entrevistadas, dentre
suas atividades anteriores, Dilma foi trabalhadora doméstica, e também funcionária em uma fábrica de água
sanitária. Ao iniciar o trabalho no aterro, sua maior dificuldade foi lidar com o mau cheiro proveniente do lixo.
Assegura que se sente bem em relação ao trabalho que faz; por vezes, pensa em sair, mas se sente
insegura em razão da possibilidade de ficar desempregada.
3. Edna Pereira Trindade – Vive em Uberlândia há vinte e três anos, sua cidade de origem é Unaí, Minas
Gerais. Edna tem 35 anos, é divorciada e tem duas filhas de 9 e 11 anos. Permaneceu na usina por mais de
cinco anos. Antes de se casar, aos 20 anos, sobrevivia como trabalhadora doméstica desde os 13. Durante
o tempo em que esteve casada, não exerceu atividade remunerada. Admite que já se sentiu discriminada
por trabalhar no aterro, porém, apesar das dificuldades, considera que seja um trabalho como qualquer
outro, e que lhe garante a sobrevivência honestamente. Edna mora no Jardim Brasília, bairro no setor norte
da cidade.
4. Ione Ribeiro – Nasceu em Uberlândia, durante a infância morou em Uberaba, Minas Gerais, voltando a
residir em Uberlândia em 1983. Desde os dez anos de idade já era trabalhadora doméstica. Antes de
trabalhar na usina, fazia atividades como diarista. Ela tem 33 anos, é solteira e tem um casal de filhos de 9 e
14 anos, mora no Bairro Daniel Fonseca, em uma casa de fundos, que aluga de sua prima. Ione entrou na
Limpel por meio de uma cooperativa. Assegura que a discriminação que sofrem os trabalhadores do aterro
é mais porque não possuem muita escolaridade e menos pela atividade que realizam.
5. Joselita Andrade Silva. Uma das primeiras trabalhadoras entrevistadas. Na ocasião em que
conversamos, uma colega sua também esteve presente. Joselita tem 34 anos e mora em Uberlândia há 16
anos. Sua cidade de origem é Conceição das Alagoas, Minas Gerais. Ela trabalhou no aterro sanitário por
mais de quatro anos. É casada, tem três filhos e reside no bairro Guarani em casa própria. Ao longo de sua
entrevista, manteve-se um pouco distante e fria, respondendo às perguntas de forma evasiva e breve.
319
6. Maria Aparecida Moreira –Vive em Uberlândia há mais de duas décadas, sua cidade de origem é
Presidente Olegário, Minas Gerais. Ela tem 34 anos e possui três filhos. Como a maioria dos funcionários,
ela reside no Bairro Guarani. Maria Aparecida diz que sente vontade de trabalhar em um lugar em que não
corresse tanto risco de machucar ou contaminar-se como avalia que ocorre no trabalho com o lixo. Pensa
que ela e seus colegas são humilhados pelo comportamento das pessoas que visitam o aterro, atitudes
como tapar as narinas e questionar como eles agüentam o mau cheiro são interpretadas como ofensivas.
7. Marliete Araújo Alves Lemes – Veio do Rio Grande do Norte quando era ainda criança, morou em São
Simão, Goiás, e Cachoeira Dourada, Minas Gerais. Em Uberlândia reside há doze anos. Ela trabalhou e
morou na Granja Rezende por quase dois anos. Esteve alguns anos sem trabalhar fora de casa até
começar a trabalhar no aterro sanitário, onde permaneceu por mais de quatro anos. Marliete tem 42 anos, é
casada, tem dois filhos, um já com 23 e outro com 9 anos. Apesar do cansaço, não dificuldades em seu
trabalho e gosta do que faz. Conta que algumas pessoas talvez tenham vergonha em dizer que trabalham
com o lixo, às vezes podem ser discriminadas, mas este não é o seu caso. Mora no Bairro Mansur em uma
casa financiada pela Caixa Econômica Federal. Estudou até a sexta série, sempre teve dificuldades na
escola e conta que não gostava de estudar.
8. Marta Abílio dos Santos Nasceu em Araguari, Minas Gerais, mas reside em Uberlândia há mais ou
menos vinte anos. Marta tem 32 anos e três filhos. Em sua entrevista, mostra-se meio relutante em falar
sobre as dificuldades do trabalho, mas conta que fez algumas amizades no aterro. Em determinado
momento, confessa quase não ter amigos nem conversar muito com as pessoas do lugar onde mora. Ela
era trabalhadora doméstica antes de exercer a atividade de auxiliar de serviços gerais na usina, onde
trabalhou por mais de cinco anos. Marta é moradora do bairro Marta Helena, no setor norte da cidade.
9. Roberto Alves da Silva - Nasceu e cresceu em Uberlândia. Morador do Bairro Luizote de Freitas, possui
casa própria, pois quando se casou foi morar num imóvel que pertencia a sua esposa. Ele tem 30 anos e
possui dois filhos. Na usina, sua função era operador de prensa, a qual exercia há um ano e três meses. Já
havia trabalhado por dois anos como vigilante no Banco Real e trabalhou também como operador de prensa
na Granja Rezende. Toda a sua entrevista é marcada pela negativa. Roberto usava constantemente a
expressão: “Não, não tenho nada a declarar sobre isso não”... Ele não teve nada a dizer acerca de suas
dificuldades no trabalho, possíveis conflitos com os colegas ou com seus vizinhos. Entretanto, quando fala
sobre o salário e as condições de trabalho na usina, afirma ser tudo “excelente”. Estudou até a sexta série e
parou para poder trabalhar. Segundo ele, não tem nenhuma grande expectativa em sua vida, considera-se
satisfeito. Também nunca se sentiu discriminado pelo trabalho que faz. Em seu bairro, freqüenta uma igreja
evangélica.
10. Salvador dos Santos Alves – Localizei-o quase por acaso, pois num dia de domingo em que eu
andava pelo Bairro Guarani procurando por alguns trabalhadores do aterro, certos moradores falaram-me
dele. Ao procurar por Salvador, consegui entrevistá-lo em sua própria casa. Sua cidade de origem é
320
Espinosa, Minas Gerais. Ele tem 45 anos, vive com sua esposa Maria José e os quatro filhos dela. Morador
do Bairro Guarani há nove anos, Salvador dos Santos trabalhou na usina por 3 meses durante o ano de
1999. Nossa conversa foi bastante interessante, Salvador revelou-se um homem simples, simpático e
extrovertido. As experiências de trabalho dele são as mais diversas, já atuou como pedreiro, segurança na
empresa Sopro Divino, trabalhou em uma firma de limpeza, exerceu atividades como bóia-fria na colheita de
café em cidades da região, como Iraí de Minas. Quando acaba o tempo da colheita, realiza pequenos
serviços como carroceiro e também recolhe materiais recicláveis. Salvador declarou que sempre encarou o
trabalho na usina como um serviço normal, “um meio de vida”, avalia também que qualquer trabalho possui
seus aspectos positivos e negativos, enfim, corre-se algum tipo de risco.
11. Silvany Moreira de Freitas Andrade – Vive em Uberlândia há 10 anos, sua cidade de origem é São
Simão, Goiás. Moradora do Bairro Guarani, tem 37 anos e dois filhos. Ela trabalhou na usina por mais de
cinco anos. Quando começou, sentia dificuldades em pôr as mãos no lixo, mas diz que se acostumou ao
mau cheiro. Em sua entrevista, conta que, no início, sentia-se um pouco “pra baixo”, hoje se sente quase
uma guerreira, pois acha que poucas pessoas suportariam o trabalho que ela faz.
12. Sílvio Roberto de Faria – Veio de Araxá, Minas Gerais, para Uberlândia há seis anos. Sua cidade de
origem é Santa Rosa da Serra, Minas Gerais. Na usina, sua função era operador de prensa, onde estava há
dois anos e seis meses. Ele tem 38 anos, é casado e possui duas filhas, uma de 2 e outra de 6 anos. Sílvio
contou que sua primeira impressão do trabalho que faz no aterro, foi de susto e até hoje o contato com o
lixo causa-lhe um certo nojo. Antes trabalhava em um almoxarifado. Para ele, a maior dificuldade do seu
trabalho é a discriminação que sofrem por realizarem esta atividade. Mesmo com bom humor e
tranqüilidade, Sílvio descreve suas impressões sobre o trabalho no aterro da seguinte maneira: “é o último
grau que eu caí..., mais não pode, eu nunca esperava cair aqui...”
13. Zileila Martins de Melo Costa – Vive em Uberlândia há onze anos, sua cidade de origem é Unaí, Minas
Gerais. Ela tem 29 anos, é casada e tem dois filhos, além dos filhos do primeiro casamento de seu esposo,
Cristiano Jesus Costa, que também trabalha na Limpel como encarregado geral do aterro. Eles residem no
Bairro Talismã em uma casa que adquiriram por meio de um financiamento que terão que pagar por 16
anos. Zileila está usina há quatro anos e oito meses. Antes, ela trabalhou em uma empresa que organizava
rodeios na cidade e também na Colorfio, uma fábrica de meias na qual permaneceu durante quatro anos.
Sua entrevista é rica, ela se expressa com facilidade e entusiasmo, apresentando reflexões intrigantes.
Entrevistas com outras pessoas envolvidas com a questão do lixo na cidade de Uberlândia.
1. Adriana Nunes, coordenadora do INDERC, organização ligada à FIEMG. Conversa em 29 de dezembro
de 2005.
2. Aniceto Ferreira, à época, ex-vereador pelo PT, foi reeleito em outubro de 2004. Entrevista concedida à
autora em 13 de fevereiro de 2004.
321
3. Carmen Sílvia Lopes de Paiva, geógrafa, atuou na Seção de Educação Ambiental, na Secretaria de Meio
Ambiente. Participou da Comissão de Estudos do Lixo Hospitalar, em 1991. Entrevista em maio de 2004.
4. Ilvio Antônio Andrade, engenheiro civil, foi Secretário de Serviços Urbanos no período de 1983-1987.
Entrevista concedida à autora em maio de 2004.
5. Flávio A. de Andrade Goulart, médico sanitarista, professor aposentado. Foi Secretário de Saúde durante as duas
administrações do PMDB na cidade. Entrevista concedida à autora em junho de 2004.
6. Francisco Alves Ferreira, 56 anos, presidente da CORU e membro do Conselho Fiscal da entidade. Conversa
informal com a pesquisadora em 05 de fevereiro de 2006.
7. José Antônio da Silva, catador de papel, 45 anos, natural de Currais Novos-RN. Começou a coletar sucata na rua e,
ao vir para Uberlândia, há mais de dez anos, estando na mesma situação, passou a catar papel. Entrevista realizada em
março de 1999.
8. José Francisco Galdino, natural de Cascalho Rico-MG. Sobrevive como garrafeiro desde 1986. Morador
do Bairro Pacaembu, zona norte da cidade. Entrevista realizada em outubro 2004.
9. João Batista Ferreira Passos, catador de papel associado à CORU, que também faz parte da direção da
entidade, natural de Monte Alegre, MG. Conversa informal com a pesquisadora em maio de 2004.
10. Luiz Nishiyama, professor do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia. Foi autor do
laudo técnico sobre a situação do aterro sanitário, emitido ao promotor Fábio Guedes na ocasião em que o
Ministério Público entrou com uma Ação Civil Pública contra o Município de Uberlândia. Entrevista
concedida à autora em maio de 2004.
11. Marco Aurélio Ribeiro de Sá, geógrafo, participou da Comissão de Estudos do Lixo Hospitalar. Na ocasião, era
coordenador do Setor de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde. Entrevista realizada em junho de 2004.
12. Maria Teresa Franco de Freitas, engenheira química, gerente da Limpel. Foi coordenadora da Comissão de Estudos
do Lixo Hospitalar. Entrevista concedida à autora em maio de 2004.
13. Samuel do Carmo Lima, professor do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, tem escrito
artigos e tido uma atuação política frente aos projetos e políticas públicas implantados pelo poder público. Entrevista
concedida à autora em maio de 2004.
14. Paulo Roberto Franco Andrade, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal de
Uberlândia. Foi
Secretário de Serviços Urbanos durante o primeiro semestre da primeira Administração Zaire
Rezende. Entrevista concedida à autora em de junho de 2004.
322
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Maria de Fátima R. Uberlândia Operária - Uma Abordagem Sobre as Relações Sociais em
Uberlândia – 1950 a 1964. Mestrado em História: Campinas: UNICAMP, 1992.
ALVARENGA, Nízia. M.
As Associações de Moradores em Uberlândia: Um Estudo das Práticas Sociais e
as Alterações nas Formas de Sociabilidade. Mestrado em Ciências Sociais, São Paulo: PUC, 1988.
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