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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
NELSON SOUZA JÚNIOR
DA TRANSCENDENTALIDADE DO DA-SEIN À
VERDADE DA ESSÊNCIA: CARACTERIZAÇÃO DOS
MOMENTOS ESTRUTURANTES DA FILOSOFIA DE
HEIDEGGER ENTRE O FINAL DA DÉCADA DE 20 E
O INÍCIO DA DE 30.
PORTO ALEGRE
2006
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
NELSON SOUZA JÚNIOR
DA TRANSCENDENTALIDADE DO DA-SEIN À
VERDADE DA ESSÊNCIA: CARACTERIZAÇÃO DOS
MOMENTOS ESTRUTURANTES DA FILOSOFIA DE
HEIDEGGER ENTRE O FINAL DA DÉCADA DE 20 E
O INÍCIO DA DE 30.
Tese apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, como exigência parcial para a
obtenção do título de Doutor em
Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Ernildo Stein
PORTO ALEGRE
2006
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................4
1 DA TRANSCENDÊNCIA À LIBERDADE ..........................................................18
2 DA LIBERDADE AO FUNDAMENTO................................................................61
3 O DESENVOLVIMENTO DA QUESTÃO DA VERDADE ................................93
4 DA CONCEITUAÇÃO DO MUNDO À ESSÊNCIA DA VERDADE ...............139
5 PRESSUPOSTOS DE UMA MUDANÇA ...........................................................184
CONCLUSÃO .........................................................................................................221
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................233
INTRODUÇÃO
Seguramente, o que orienta esta pesquisa, desde o seu início, é a detecção de um
elemento irrecusável e, ao mesmo tempo, bastante problemático na interpretação da
filosofia de Heidegger. Antes de todo o resto, é indispensável o aclaramento, mesmo
que limitado, de sua composição e de sua significância. Mais precisamente, o balizador
desta análise consiste na evidência de que um período central do percurso do
pensamento heideggeriano permanece, por determinadas razões, relegado a um segundo
plano, quando não é, pura e simplesmente, ignorado. Na realidade, o período que está
sendo referido compreende o produzido entre o final da década de 20 e o começo dos
anos 30. Atualmente, a interpretação da obra de Heidegger, nas suas apresentações mais
destacáveis, reconhece a especialidade do que ocorre nestes anos, porém, pelo que se
têm aaqui, uma dificuldade, aparentemente inultrapassável, para a penetração no
que é estabelecido ao longo deste período.
Entretanto, é forçoso destacar que a desconsideração desta fase do pensamento
de Heidegger não é gratuita e, portanto, decorrente de uma negligência analítica
injustificável. Ao contrário, ela se ancora, de maneira inegável, na própria absorção e
recepção da filosofia de Heidegger, a partir da peculiaridade do andamento da
publicação das obras, ou melhor, dos textos que a constituem. O que isso pretende
assinalar? Fundamentalmente, é mais do que sabido que a publicação das obras
5
completas (Gesamtausgabe) começa em 1975, com o aparecimento do curso de 1927,
Problemas Fundamentais da Fenomenologia. Melhor explicitando, até o surgimento
da edição definitiva da vastíssima produção de Heidegger, o que se tinha, do período
entre o final dos 20 e o começo dos 30, correspondia, desde Ser e Tempo, às
conferências O que é Metafísica? e Da Essência do Fundamento, ambas publicadas
em 29; à conferência Da Essência da Verdade, publicada em 1943; bem como o livro
Kant e o Problema da Metafísica, também do ano de 29.
Como conseqüência deste delineamento, é muito perceptível a ausência do
produzido, de modo contínuo, entre os anos de 27 e de 30. Visando uma melhor
elucidação, por produção ininterrupta deve ser entendido o que compõe o conjunto dos
textos originados dos cursos acadêmicos regulares ministrados por Heidegger, tanto em
Marburg quanto em Freiburg. Neste sentido, apenas com a edição das obras completas,
particularmente nas décadas de 80 e 90, o acesso a estes textos se torna possível e, com
isso, o começo, por assim dizer, do empenho para o entendimento desta lacuna no
pensamento heideggeriano. Contudo, o que notabiliza a interpretação da filosofia de
Heidegger ao aparecimento da edição completa? Para a autolimitação desta pesquisa,
esta questão é essencial. Ainda que de modo sucinto, é mais do que cabível dizer que,
por motivos bastante sustentáveis, a investigação sobre Heidegger, nas décadas de 60 e
70, dedica-se, antes de mais nada, à tentativa do alcance de uma perspectiva que seja
capaz de aclarar, ao mesmo tempo, as finalidades e as particularidades do texto de 26,
ou melhor, da obra capital de Heidegger que é Ser e Tempo.
Necessariamente, portanto, a tarefa premente consiste no deslindamento mais
abrangente do que é instaurado em Ser e Tempo. Em virtude deste imperativo, os
6
textos do final dos anos 20 são visualizados, em primeiro lugar, a partir do como eles
podem lançar luzes para o melhor entendimento do projeto erigido em Ser e Tempo, ou
seja, o da liberação do sentido do Ser através de uma ontologia fundamental radicada no
caráter compreensivo do Da-sein enquanto ser-no-mundo. Propiciar, então, o melhor
dimensionamento das proposições e articulações contidas no texto de 26. Este se torna,
por certo, o principal papel a ser cumprido pelos elementos que compõem as obras
disponíveis do fim dos anos 20. Concomitantemente, ainda que de modo menos
explicito e enfático, estas obras são consideradas enquanto as que propiciam as pistas,
mais ou menos determinantes, do que é denominado de viravolta (kehre) no pensamento
de Heidegger, ou melhor, da mudança do acento e, principalmente, do condicionamento
mais interno da questão fundamental do sentido do Ser, a partir da segunda metade da
década de 30.
Por esta aproximação com o que é mais característico da interpretação de
Heidegger, o que importa, até a publicação da edição definitiva, é a tematização
exaustiva de Ser e Tempo, alçando-o ao nível de texto definidor e paradigmático, ao
passo que o que lhe é mais imediatamente posterior é valorizado, em primeiro lugar,
pela sua suposta potencialidade para aclarar conceituações nucleares do texto de 26, ou,
então, para, sempre através do horizonte da compreensão do Ser, permitir o acesso ao
que concerne ao outro lado, ou melhor, à outra face da filosofia de Heidegger: o pensar
da viravolta. Assim posto, o mais marcante do final dos anos 20, assim como do
começo dos 30, encontra-se, na verdade, como um abastecedor dos momentos
estruturantes do percurso de Heidegger que parecem conter, internamente, intenções e
estruturações consistentes, mas que se mostram, para a análise interpretativa, por
intermédio do cotejo com os textos disponíveis do período em questão. Em vinculação
7
estrita a estes posicionamentos, as interpretações mais relevantes, isto é, mais
emblemáticas da filosofia de Heidegger, entre os anos 60 e 70, como, por exemplo, a de
W. Marx (1961), a de W. Richardson (1963) e a de O. Pöggeler (1963) exibem, cada
uma a sua maneira, os caracteres já assinalados. Isso é inegável.
Por conta disso, o período circunscrito entre 1927 e os primeiros anos da década
de 30 ingressa na cena enquanto um “entre” momentos bem delineados e
estruturalmente diferenciados, cabendo ao que lhe pertence possibilitar, com maior ou
menor intensidade, um esclarecimento mais pertinente do que o envolve desde sempre.
Nestes termos, é importante ressaltar que esta visada interpretativa domina, ou melhor,
sobredetermina o acesso mais privilegiado à obra de Heidegger, até o começo, em 1975,
da publicação da edição definitiva pela Vittorio Klostermann. Todavia, com o avanço da
própria publicação dos textos completos, este panorama, por assim dizer, passa a sofrer
alterações nenhum pouco secundárias. O que isso significa? Entre o final dos 70 e
durante as décadas de 80 e 90 aparece, pela primeira vez, o que engloba o realizado no
fim dos anos 20 e o no início dos 30. Como conseqüência mais imediata disso, a análise
interpretativa, mediante o escopo metodológico existente, vê-se diante de uma nova
obrigatoriedade.
Ela se configura, antes de qualquer coisa, na indispensabilidade da
problematização destes textos a partir do que eles trazem consigo. Pondo de um outro
modo, a interpretação passa a se voltar ao esclarecimento das especificidades
argumentativas, conceituais e procedimentais presentes nos cursos regulares dados por
Heidegger entre 27 e 32. Seguramente, com o aparecimento destas obras, a
compreensão do chamado primeiro Heidegger sofre uma modificação nenhum pouco
8
desprezível. De uma maneira bastante sugestiva, contudo, a forma interpretativa que
conquista a primazia é a que se dedica, pormenorizadamente, ao entendimento imanente
do que é desenvolvido nestes cursos. Assim determinado, o que se torna prioritário,
assim como mais fecundo, é a explicitação destes textos na e através deles mesmos, o
que só se mantém na medida em que eles são diferenciados e separados dos demais.
Em conformidade a esta postura analítica, é interessante observar o como da
absorção e da clarificação do que está contido no curso do semestre de verão de 28, As
Fundações Metafísicas da Lógica, publicado em 1978, e no curso do semestre de
inverno de 29/30, Os Conceitos Fundamentais de Metafísica, cuja edição é de 1983.
Nas duas situações, as especificidades trazidas são tomadas, primordialmente, como
desenvolvimentos autoreferenciados e que, devido a isso, é mais do que satisfatório o
exercício interpretativo que se prende à internalidade destes textos. Nestes termos, é
mais do que cabível ressaltar que as análises existentes destes cursos primam pelo
isolamento, e, o que é decisivo, pela autoreferencialidade do que é engendrado neles.
Por certo, em consonância a estes condicionantes, é inegável a percepção de que todos
os cursos, sem exceção, já asseguram, ou estão por garantir, a sua fortuna crítica.
Porém, qual é o verdadeiro status destas afirmações?
Sem dúvida, a dominância do isolamento e da autocentralidade dos cursos desta
fase lança um questionamento irrecusável. Assim, o que é produzido neste período deve
ser, mesmo, dimensionado por estes procedimentos? Concretamente, até agora a
resposta é bastante ambígua. Por um lado, a persistência, ou melhor, ocorre a busca
de uma sutilização metodológica capaz de dotar estes textos de um valor intrínseco.Por
uma outra perspectiva, no entanto, surge, desde o final dos anos 80, uma possibilidade
9
interpretativa que se assenta na indispensabilidade do pôr em relação estes textos frente
ao erigido em Ser e Tempo, bem como ao que constitui o chamado pensar da viravolta.
Certamente, o que conduz esta forma de exame é a certeza de que, durante o final dos
anos 20, Heidegger efetua a primeira figuração da viravolta, ou, então, concretiza os
primeiros passos que irão propiciar o atingimento de uma modificação essencial. Isso
significa dizer, em primeiro lugar, que o que concerne ao final dos anos 20 não é
somente considerado como um “entre” posições radicalmente diferentes e, talvez,
incompatíveis: a ontologia fundamental e o pensar do Ser.
Como, então, isso pode ser melhor aclarado? Nesta perspectiva analítica não
a admissão de que o final da década de 20 preenche, unicamente, uma tarefa
esclarecedora. Na realidade, o que mantém esta via é a assunção de que o que acontece
no final dos anos 20 corresponde, sim, a um movimento que precisa ser caracterizado de
maneira apropriada. Justamente por isso, há a rejeição de que, nestes anos, ocorre
apenas um adensamento compreensivo, responsável pela melhor exibição de
conceituações e articulações que são mantidas inalteradas. Em outras palavras, a
especificidade deste período para o entendimento da filosofia do “primeiro” Heidegger
não é apenas firmada, ela é exigida. Entretanto, isso se dá de um modo bastante singular
e, ao mesmo tempo, problemático. Por este encaminhamento, o que passa a ser a
condição possibilitadora é a conjectura de que, desde 27 e 28, Heidegger já se encontra
realizando a experiência da viravolta.
Em consonância a esta formulação, o que é procurado nos textos imediatamente
posteriores à Ser e Tempo consiste no indício, ou melhor, nos indicadores da passagem
de Ser e Tempo para Tempo e Ser. Assim, as obras compreendidas entre 27 e 29 são
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interpretadas através da possibilidade ou não em relação ao exercício da transição da
moldagem transcendental para a do acontecimento do Ser enquanto tal. Nestes termos, a
viravolta está ocorrendo e sendo operada logo após a publicação de Ser e Tempo.
Portanto, o que o sucede se inscreve na necessidade, de acordo com uma expressão
dos anos 30, de uma radical transformação do pensar. De um modo mais cauteloso, é
plausível afirmar que esta possibilidade interpretativa emerge na obra de J. Grondin, A
Viravolta no Pensamento de Heidegger, publicada em 1987, e se consolida, ao longo
da década de 90, por intermédio dos principais escritos de von Herrmann e dos que se
encontram sob sua influência mais direta.
Inegavelmente, a afirmação categórica de que há, no final dos anos 20, um
movimento crucial para o entendimento da filosofia de Heidegger deve ser considerada
como extremamente positiva. De uma maneira mais enfática, o que se dá, neste período,
jamais pode ser tomado como uma clarificação de posições previamente existentes, ou
então, enquanto um simples prenúncio do que está por vir. Na verdade, os cursos
publicados na edição completa não têm como ser subordinados, desde o início, ao que já
estava disponível, e que, por conseguinte, detinha um modo mais elaborado de
elucidação, pelo menos aparentemente. Entretanto, a assunção da especialidade do que é
trazido por estes textos o é, por certo, suficiente para uma caracterização adequada.
Sem deixar de reconhecer a validez intrínseca deste procedimento, o que importa, no
fundo, é o acesso ao mais contributivo destas obras em relação à totalidade do
produzido por Heidegger entre Ser e Tempo e os primeiros anos da década de 30.
Em vista disso, é mais do que decisivo ressaltar que a análise que está sendo
proposta parte de uma conjectura, se o termo é pertinente.Ao invés da aceitação de que
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os cursos realizam o primeiro exercício do pensar da viravolta, o que se mostra,
mediante um exame mais detido destes textos, é uma ligação mais complexa e sutil com
o elaborado em Ser e Tempo. O que isso pretende firmar? Fundamentalmente, os textos
posteriores ao de 26 precisam ser compreendidos enquanto os que realizam um
adentramento no projeto de uma ontologia fundamental. Por esta razão central, o que é
estabelecido, particularmente entre 27 e 29, não concerne à efetivação, mesmo que
insipiente, da viravolta, ou melhor, do pensar a verdade do Ser. Distanciando-se desta
determinação interpretativa, o que conduz a produção destes anos corresponde,
certamente, à procura pela intensificação da necessidade da liberação do sentido do Ser,
na e através da estruturação do Da-sein. Assim, o movimento existente não consiste,
ainda, no da transição para uma nova perspectiva, porém ele se destaca enquanto uma
agudização bastante peculiar da análise estruturante do Da-sein.
Todavia, qual a relevância destas articulações? Em primeiro lugar, o
reconhecimento de que o que é erigido e desenvolvido em Ser e Tempo não atinge a
sua possibilidade mais interna. Melhor exprimindo, a unidade formada pelos
constitutivos do Da-sein- desde a compreensão do Ser à assunção de si na
temporalidade ek-stática- requer, de maneira inequívoca, uma radicalização na qual o
próprio questionamento do sentido do Ser encontra os seus limites mais extremos.
Precisamente por isso, a conceituação fenomenológica necessita conquistar e preencher
os lugares, ou melhor, os sítios em que os problemas fundamentais da estruturação do
Da-sein asseguram, ao mesmo tempo, maior radicalidade e universalidade, o que é
crucial para a refundação da ontologia em bases existenciais. Isso significa dizer, de
uma vez por todas, que há, no final dos anos 20, um direcionamento para o encontro do
que totaliza o Da-sein de modo mais originário. Assim posto, a tarefa premente e
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ineliminável diz respeito, sim, à explicitação dos ativadores mais primais que envolvem
o Da-sein desde sempre.
Sem dúvida, a percepção de um movimento de intensificação, isto é, de
radicalização no interior da ontologia fundamental norteia, desde o início, os passos
desta pesquisa. Como conseqüência direta disso, o que interessa ser alcançado são os
momentos estruturantes, concentrados entre 27 e o início de 1930, em que a liberação e,
simultaneamente, a assunção de si do Da-sein, no cerne de seu autoquestionamento,
adquirem caracteres imprescindíveis. Efetivamente, estes caracteres, ou melhor, estes
elementos definidores da totalização do Da-sein estão enraizados no próprio movimento
questionativo do ente que nós somos. Portanto, eles não são apresentados como
conceitos que exprimem, isto é, representam uma pretensa objetividade acerca de nossa
estrutura formal. Muito diferentemente disso, as estruturas do Da-sein equivalem, de
modo estrito, à visualização do que funda o escopo manifestativo deste ente na sua
máxima abrangência, de acordo com uma perspectiva fenomenológico-transcendental.
Porém, um outro traço marcante necessita ser evidenciado. De maneira alguma,
os conceitos fenomenológicos devem ser tomados como conceitos previamente
determinados e preenchidos. Na realidade, o próprio movimento de radicalização da
ontologia fundamental se expõe nos conceitos da fenomenologia. Isso quer dizer,
portanto, que há, de modo inequívoco, uma imbricagem, ou seja, um entrelaçamento
entre exposição estrutural e conceituação fenomenológica. Sem o firmamento desta
mútua dependência, a pesquisa perde a sua sustentabilidade mais imediata. Objetivando
uma melhor aproximação, na medida em que existe uma interconexão entre estruturação
e conceituação, as estruturas do Da-sein, isto é, os conceitos que o mostram se
13
encontram, e isso é decisivo, numa elaboração ininterrupta, sempre em vista da
assunção mais penetrante e extrema deste ente através de si mesmo. Nesta formulação
contínua, o que importa ser trazido à luz, antes de tudo, é o que apresenta, num
momento estruturante específico, o núcleo da constituição do Da-sein, e que, em
decorrência disso, afirma-se como o identificável ao empenho máximo da clarificação
do sentido do ser deste ente.
Certamente, este é um balizador muito importante da pesquisa. Mas o que estas
articulações pretendem assinalar? A pesquisa se dedica à procura e à explicitação dos
momentos estruturantes, no final dos anos 20, do projeto da ontologia fundamental.
Como foi firmado, estes momentos correspondem aos núcleos da intensificação da
estruturação manifestativa do Da-sein. Precisamente por este escopo determinativo, o
que importa ser tematizado são as estruturas que exibem o encaminhamento da
liberação de si do Da-sein. Assim, a pesquisa se volta para as estruturas, isto é, para os
conceitos que realizam a fundação e o desenvolvimento da ontologia, ou melhor, da
metafísica do Da-sein. Na realidade, o que ocorre na conceituação destas estruturas o
é apenas a efetuação de um percurso intensificatório. Muito mais do que isso, no mais
central do desdobramento de cada uma das estruturas do Da-sein, ocorre,
ineliminavelmente, um redimensionamento e um esclarecimento das posições, assim
como das finalidades, de toda as demais. Por conseguinte, a explicitação de cada uma
delas implica, de modo sublinear, na reconfiguração das outras. Contudo, qual a
significância disso para a pesquisa?
No parágrafo 70 do curso de 29/30, Conceitos Fundamentais de Metafísica,
Heidegger afirma que os conceitos da fenomenologia jamais podem ser tomados
14
isoladamente. De um modo mais preciso, é o próprio caráter manifestativo do Da-sein
que “impede todo o isolamento e toda extração isolada de conceitos singulares”
1
. Por
conta disso, os conceitos fenomenológicos mantêm entre si uma conexão originária e
única. Esta conexão está vinculada ao factum da compreensão do Ser e é, no fundo,
instituída através do próprio Da-sein. Neste sentido, a radicalidade da conexão entre as
estruturas depende, frontalmente, do como da abrangência e da assunção de si do Da-
sein, numa circunscrição específica. Inegavelmente, portanto, cada conceito, isto é, cada
estrutura fenomenológica está enraizada nas demais. Desse modo, a positividade de toda
e qualquer interpretação reside na tentativa de tornar visível, a partir do mais central de
uma estrutura, a totalidade manifestativa alcançável do Da-sein, ou seja, do conjunto
ordenado das estruturas co-originárias.
Por este condicionamento, os conceitos fenomenológicos que são tematizados
nos capítulos que compõem a pesquisa trazem uma duplicidade determinativa
ineliminável. Em primeiro lugar, eles exibem, nas suas conceituações, o alcance de um
momento capital da estruturação do Da-sein. Neste sentido, a própria elaboração
conceitual consiste na liberação de um sentido mais radical do Da-sein no homem.
Visto por um outro ângulo, é inerente a cada conceituação a exigência de que os demais
conceitos fundamentais da metafísica do Da-sein cumpram um papel efetivo no
empenho de radicalização. Em vista disso, no desenvolvimento de cada conceito, ou
melhor, de cada estrutura há, inegavelmente, a presença operativa da integralidade do
que constitui o Da-sein, de uma forma ou de outra. Isso intenciona enfatizar que cada
estrutura singular deve ser tomada à luz da totalidade, uma vez que ela não apenas
1
HEIDEGGER, Martin. Die Grunbegriffe der Metaphysik. Gesamtausgabe, Band 29/30. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1992, p. 432.
15
contém a própria totalidade, porém ela a preenche de um modo tal que o conjunto co-
originário do que constitui o Da-sein é reconfigurado na sua radicalidade. Em outros
termos, as estruturas trazem o todo e, ao mesmo tempo, definem-o mais essencialmente.
Entretanto, como a pesquisa, a partir destes delineamentos, deve proceder? Sem
dúvida, o que a orienta é, mesmo, a procura pelos “lugares” da intensificação da
ontologia fundamental, concentrada no final da década de 20. Justamente por isso, ela se
volta, antes de todo o resto, para os textos que evidenciam os desdobramentos mais
significativos da filosofia de Heidegger deste período. De acordo com o que já foi
situado, estes textos consistem nos cursos realizados por Heidegger entre 27 e 30.
Portanto, a pesquisa não se dedica à análise completa e exaustiva do que é trazido por
estes cursos, o que, certamente, requereria a abertura de uma outra perspectiva
interpretativa. Melhor dizendo, o que é relevante é o acesso ao que ocorre de mais
singular nestes cursos frente ao aprofundamento do sentido liberatório do Da-sein. São
estes objetivos bastante específicos que necessitam ser percebidos e analisados
atentamente.
Entretanto, a pesquisa não se restringe aos cursos acadêmicos regulares. Na
verdade, estes cursos, sempre a partir do erigido em Ser e Tempo, são tomados como
os condutores iniciais, isto é, enquanto os propiciadores das tematizações que garantem,
pelo menos inicialmente, um status específico ao que é produzido na segunda metade
dos anos 20. Mais do que isso, é unicamente através da absorção do mais expressivo
destes textos que a compreensão do que já se tinha deste período, antes da edição
definitiva, torna-se mais criteriosa e produtiva. O que isso intenciona assinalar? De um
modo bem sugestivo, é por intermédio das conceituações desenvolvidas nos cursos,
16
principalmente entre 27 e 29, que se garante o solo, por assim dizer, para que as
articulações centrais da conferência Da Essência do Fundamento (1929), assim como
Da Essência da Verdade (1930) sejam dimensionadas nas suas reais amplitudes. Em
outras palavras, a ida ao mais essencial presente nos cursos lança luzes imprescindíveis
para o entendimento das conferências citadas, ao mesmo tempo em que firma com elas
um domínio expositivo fundamental dos limites do chamado primeiro Heidegger.
Por certo, é deste entrelaçamento do trazido pelas obras completas e do já
disponível, especialmente no ano de 1930, que a limitação incontornável do projeto da
ontologia fundamental, isto é, da metafísica do Da-sein se torna melhor dimensionável.
Nestes termos, através do percurso da intensificação da estruturação do Da-sein é
indispensável o atingimento, pela análise, de sua limitação mais interna, e, como
conseqüência direta, a percepção de sua interrupção, bem como o começo, ainda que
insipiente, de uma nova formulação capaz de redirecionar o questionamento do sentido
do Ser. Assim, a pesquisa possui como objetivo, também, a detecção, concentrada nas
últimas secções da conferência de 30, do que exige e, simultaneamente, possibilita, nos
seus momentos iniciais, um redimensionamento da questão fundamental da filosofia.
Certamente, os primeiros passos desta reorientação, ou seja, do que é denominado de
segundo Heidegger se dão nos cursos do começo da década de 30, notadamente nos
volumes 33 e 34 da edição completa.
Por esta caracterização, a pesquisa visa, circunscrita ao final dos anos 20 e ao
início dos 30, uma aproximação mais consiste com o que constitui a metafísica do Da-
sein, e com o que, através dos sues desenvolvimentos mais centrais, anuncia-se como
um pensar envolvido no e pelo acontecimento do Ser. Necessariamente, portanto, ela se
17
concretiza na estrita medida em que afirma a existência de um movimento muito sutil e
definidor neste período. No entanto, ela não se prende à evidenciação, pura e simples,
deste movimento. O que ela intenciona, no fundo, é um aclaramento mais unitário do
que concerne a uma fase crucial da filosofia de Heidegger. Sem dúvida, ao longo destes
anos o que está sendo tramada é a possibilitação mais extrema da metafísica a partir do
horizonte compreensivo do Da-sein, e, devido a sua autolimitação, as primeiras
figurações de uma perspectiva radicalmente distinta, mas que mantém com a primeira
laços inquestionáveis. Sem uma melhor visualização destas peculiaridades
determinantes, momentos nucleares do pensamento de Heidegger permanecem sendo
apenas entrevistos, o que é muito problemático. O que, então, deve propiciar o início
da análise?
1 DA TRANSCENDÊNCIA À LIBERDADE
Seguramente, Ser e Tempo, não traz, como uma de suas temáticas centrais, tal
como hoje é abundantemente reconhecido, o desenvolvimento explícito do problema da
transcendência. Isso não significa afirmar, contudo, que no texto de 26 não haja uma
visualização bastante singular desse problema que necessita ser tomada nos seus
próprios elementos, pois, através deles, pelo menos, alcançam-se as condições mínimas
para o ingresso neste problema capital da filosofia de Heidegger no final dos anos 20.
Não sendo possível ainda encontrar, em Ser e Tempo, a problematização
fenomenológica da transcendência, por outro lado, é correto dizer que,
fundamentalmente no §69, surgem alguns dos elementos nos quais, grosso modo, o
referido problema pode vir a ser delineado. Assim, no que diz respeito à intensificação
do projeto de uma ontologia fundamental em bases existenciais, Ser e Tempo
apresenta, nos seus limites mais estritos, os traços inicialmente delineadores do
problema da transcendência, sem os quais toda e qualquer dimensionamento mais
efetivo se torna insustentável e improdutivo. Como, então, inicia-se no §69 o
esclarecimento do que concerne a este problema?
Primeiramente, Heidegger afirma que a unidade ekstática da temporalidade (die
ekstatische Einheit der Zeitlichkeit) deve ser tomada como a condição possibilitadora
19
para que o Da-sein possa acontecer no seu Da (). Desse modo, se o cuidado (Sorge) é
o que corresponde ao modo de ser mais fundamental do Da-sein, ou seja, é o que
determina este ente na medida em que nele “se funda a abertura do aí”
2
, a necessária
exposição da fundamentação unificadora (einheitlichen Gründe) das possibilidades do
Da-sein somente poderá ser realizada através da temporalidade ekstática. Isso significa
dizer, antes de tudo, que ela corresponde mais originariamente ao regulador primal da
unidade possível das estruturas essencialmente existenciais do Da-sein”
3
.
Porém, o que Heidegger está começando a ressaltar, mediante o papel regulativo
atribuído à temporalidade em relação à unidade das estruturas do Da-sein, é que a
analítica, a partir daqui, deve assumir como sua tarefa mais premente o enraizamento
(Verwurzelung) do Da-sein na temporalidade, buscando com isso, na verdade, as
condições que permitam o acesso ao cerne da estrutura mais fundamental do próprio
Da-sein: ser-no-mundo. O que passa a ocupar, conseqüentemente, o primeiro plano não
é, apenas, o aclaramento da relação entre temporalidade e existência, o que por si
exigiria um direcionamento bem especial, porém, muito mais importante que isso, o da
relação entre temporalidade e ser-no-mundo, quando o que se está buscando não é mais
“a estrutura unitária deste fenômeno”
4
, o que foi assegurado, mas, o fundamento da
unidade da estrutura ser-no-mundo.
Em virtude destas posições, Heidegger, no início do §69, afirma que a analítica
deve perseguir questões bastante específicas. Ela deve propiciar, em primeiro lugar, o
2
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Gesamtausgabe, Band 2. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1926-1976, p. 464.
3
Op. cit., p. 464.
4
Op. cit., p. 464.
20
questionamento de como algo enquanto mundo é possível. Consecutivamente, o alcance
do sentido do mundo enquanto tal, e do modo como o mundo transcende e o que ele
transcende. A partir destas questões são obtidos os elementos indispensáveis para a
problematização da maneira na qual o mundo, enquanto transcendência, efetiva uma
relação de condicionamento com o ente que nele ingressa, isto é, com o ente
intramundano. Contudo, o que está em jogo na produção destas questões não é,
obviamente, a obtenção de respostas imediatas e satisfatórias. Muito diferentemente
disso, a exposição destas questões visa a clarificação inicial dos elementos com os quais
se pode pôr, expressamente, o problema da transcendência.
Apenas através do questionamento do modo de ser do mundo é que a estrutura
ser-no-mundo consegue ser exibida na sua possibilidade mais interna. Ser e Tempo
indica, ainda que inconsistentemente, que a relação entre mundo e ser-no-mundo, nesta
ordem, é uma relação fundamentadora. Neste sentido, mundo passa a ser o fundamento
da estrutura constitutiva do Da-sein. A analítica passa a se pôr, assim, num nível em que
através do questionamento do mundo e, principalmente, da problematização da unidade
entre mundo e Da-sein o que está ingressando na cena é a possibilitação mais primária
do próprio Da-sein. Através de que elementos, então, Heidegger começa, no texto de 26,
a exibir estas articulações?
Anteriormente foi dito que a condição de possibilidade do ser-no-mundo, cujo
caráter é o cuidado, é a temporalidade. O que está sendo buscado, agora, é o
fundamento do ser-no-mundo enquanto mundo. Diante deste esclarecimento, torna-se
crucial a aproximação entre temporalidade e mundo. Se a temporalidade condiciona de
maneira mais determinante o ser-no-mundo, como se pode entender, precisamente, o
21
modo no qual ela condiciona o mundo? O condicionamento da estrutura no seu conjunto
é uniforme? Será que no condicionamento do que fundamenta esta estrutura ocorrem
elementos bastante particulares?
Antes de tudo, o condicionamento temporal do mundo se ancora na certeza de
que “a temporalidade, enquanto unidade ekstática, possui um horizonte”
5
. Isso significa
dizer que as ekstases não são retrações para ... , porém um para onde elas se retraem.
É precisamente este para onde que Heidegger denomina de esquema horizontal
(horizontale Schema), sendo que este horizonte deve ser considerado distintamente em
cada uma das ekstases. Porém, o que determina o horizonte de toda ekstase, isto é, da
temporalidade? De maneira bastante aclaradora, Heidegger afirma que o horizonte
determina o “na perspectiva do que” o Da-sein está se abrindo para si mesmo. Então, na
e pela determinação horizontal da temporalidade, sempre e a cada vez, pertence ao Da-
sein um mundo aberto (ein erschlossene Welt). O que isso intenciona revelar?
Heidegger afirma que “na medida que o Da-sein se temporaliza, um mundo
também é”
6
. Dessa maneira, o mundo se abre na determinação horizontal da
temporalidade, pois somente ela, como foi mencionado, garante o para que de toda
abertura do mundo. Em outras palavras, a mundanidade do mundo está enraizada na
constituição mais determinativa da temporalidade. É correto afirmar, neste sentido, que
a estruturação do mundo é temporal porque esvinculada ao mais nuclear da própria
temporalidade. Entretanto, a relação entre, por exemplo, horizonte e abertura de mundo,
assim como, num nível mais profundo, entre pressuposição do mundo e manifestação
5
Op. cit., p. 482.
6
Op. cit., p. 483.
22
do ente se anunciam como extremamente importantes, mesmo que não haja ainda um
modo adequado para as suas tematizações.
Em Ser e Tempo, o início da tentativa de delineamento do problema da
transcendência põe a analítica diante de um universo de questões que, à primeira vista,
parecem se distanciar dos propósitos assumidos por Heidegger em 26. Por conseguinte,
os desenvolvimentos limitados do §69, no que diz respeito ao problema da
transcendência, propiciam, mesmo que de maneira implícita, o início da percepção de
que o projeto contínuo, no final dos anos 20, de fundamentação e radicalização da
ontologia necessita, antes de tudo, encontrar o âmbito no qual o problema da
transcendência deve ser explicitado, o que, como já foi afirmado, não pertence às
finalidades do texto de 26.
É sustentável dizer que o problema da transcendência, a partir de 27, torna-se um
problema nuclear para a ontologia fundamental. O que se pretende evidenciar com isso
é que somente no domínio estrito da explicitação da transcendência se passa a entender
os movimentos mais decisivos do projeto filosófico de Heidegger, no final dos anos 20.
O curso do verão de 27, Problemas Fundamentais da Fenomenologia, traz, sem
dúvida, no interior da primeira tentativa de elaboração do problema da diferença
ontológica (ontologische Differenz), um efetivo delineamento da transcendência
enquanto problema mais premente. Como ocorre, no curso de 27, esta aproximação?
No final do §19, Heidegger enfatiza que o que foi apenas indicado em Ser e
Tempo como um direcionador da análise, necessita, agora, ser tratado na sua
fenomenalidade. O caráter fenomenológico do mundo deve ser assumido como o
“lugar” no qual se concentram os elementos e articulações mais relevantes. Dessa
23
maneira, o mundo deve ser tomado não somente como um momento estrutural do ser-
no-mundo, porém, e isso é crucial, o que parece permitir, ao mesmo tempo, a
compreensão do ser-no-mundo em si mesmo e a compreensão de sua possibilidade mais
interna através da temporalidade, uma vez que, para Heidegger, no aclaramento do ser-
no-mundo a partir da temporalidade ocorre a interpretação do que possibilita a
compreensão do Ser e, de modo co-originário, a compreensão do ser do Da-sein, dos
outros entes que possuem o seu caráter, assim como dos entes não possuidores de suas
determinações.
Pelo menos no primeiro momento, o que gera surpresa é a afirmação, no início
do §20, de que apenas através do conceito de transcendência do Da-sein (Transzendenz
des Daseins) pode ser buscada a vinculação entre a própria transcendência do Da-sein e
a compreensão do Ser, única via pela qual a análise pode, positivamente, retornar ao
problema da temporalidade da compreensão do Ser. Assim, o que está sendo firmado é
o privilegiamento do conceito de transcendência como o “lugar” em que devem ser
visualizadas e tematizadas as articulações mais importantes. A partir de que traços,
então, pode-se chegar ao conceito fenomenológico de transcendência?
A compreensão do Ser pelo Da-sein, bem como a compreensão de seu ser e do
ser dos outros entes, está enraizada no fato de que “o Da-sein existe essencialmente em-
vista-de-si-mesmo”
7
. Isso significa dizer que a estrutura “em-vista-dedeve ser sempre
pressuposta no caráter compreensivo do Da-sein. O conceito de ser-no-mundo e, mais
diretamente, o conceito de mundo necessitam ser expostos através desta estrutura
7
HEIDEGGER, Martin. Die Grundprobleme der Phänomenologie. Gesamtausgabe, Band 24. Vittorio
Klostermann. Frankfurt am Main. 1975/1997, p. 420.
24
bastante peculiar, uma vez que se o mundo está sempre aberto, a abertura enquanto
tal está ligada, fundamentalmente, ao caráter existencial do Da-sein que consiste no em-
vista-de (Umwillen). Portanto, o mundo existe, ou seja, somente na existência do Da-
sein há mundo.
Como aclarar de modo mais consistente a relação entre mundo e Da-sein?
Heidegger afirma que, no Da-sein, a compreensão do mundo (Weltverständnis) é
compreensão de si mesmo (Selbstverständnis). No fundo, há um co-pertencimento entre
o mundo e o si mesmo porque ambos constituem, enquanto determinações fundamentais
do Da-sein, a unidade (Einheit) da estrutura ser-no-mundo. Sem dúvida, é precisamente
no alcance da relação determinativa entre o mundo e o si mesmo que, pela primeira vez,
o problema da transcendência deve ser tematizado.
O co-pertencimento do mundo e do si mesmo é possível porque o Da-sein
transcende. Porém, o que quer dizer transcender? Basicamente, transcender significa
passar sobre, ultrapassar, transpassar. Assim, o Da-sein deve ser definido como o ente
que ultrapassa, transpassa. Em outros termos, o transpassamento corresponde
fundamentalmente ao Da-sein. Na verdade, o Da-sein deve ser entendido como um
transpassamento permanente. No curso de 27, o que Heidegger esprocurando situar é
o sentido ontológico autêntico da transcendência. Devido à esta finalidade, a afirmação
de que o Da-sein é transpassamento põe a analise num domínio bastante fecundo. Ela
propicia, antes de tudo, uma distinção marcante. O conceito ontológico de
transcendência deve ser obtido através da exposição do como se o movimento de
transpassamento do Da-sein. Delineada desta maneira, a conceituação fenomenológica
25
da transcendência propõe uma moldagem muito particular para a relação entre o que
transcende e o transcendente.
Na medida em que transcender significa transpassar, o transcendente não pode
ser considerado como o “em-direção-a-que” ocorre o transpassamento propriamente
dito. Muito diferentemente disso, a exposição fenomenológica da transcendência
necessita mostrar que o transcendente é o que transcende no seu transcender. Visando
uma melhor explicitação, o transcendente é, para Heidegger, o próprio transcender. O
que começa a ser assumido, na busca do sentido autêntico da transcendência, é que o
Da-sein transcende a si próprio, e que nesta “transcendentalização” de si estão presentes
os traços mais caracterizadores de sua estrutura fundamental: ser-no-mundo. A partir
daqui, então, quais condicionamentos passam a poder ser revelados?
Transcendência significa “compreender a si mesmo a partir do mundo”
8
. Esta
formulação intenciona mostrar a peculiaridade do modo de ser da transcendência do Da-
sein. É imprescindível afirmar que somente um ente que transcende possui a
possibilidade de ser-a-si-mesmo. Dessa maneira, o pressuposto incontornável da
mesmidade (selbstheit) do Da-sein é a transcendência. Como enfatiza Heidegger, a
mesmidade do Da-sein está fundada na sua transcendência”
9
.
Em virtude de sua fundação na transcendência, a mesmidade do Da-sein contém,
implicitamente, uma dupla orientação, o que acentua ainda mais sua
incomensurabilidade frente a toda e qualquer determinação do ente. Para Heidegger, o
Da-sein se direciona, simultaneamente, para si (auf-sich-zu) e para além de si (vor-sich-
8
Op. cit., p. 425.
9
Op. cit., p. 425.
26
aus). Esta dupla orientação, sempre enraizada na transcendência que a possibilita,
constitui a pressuposição ineliminável para que o Da-sein se aproprie de si mesmo,
assim como para que ele exista com os outros entes. Contudo, o que necessita ser
exibido acerca deste caráter duplamente diretivo do Da-sein?
A transcendência se mostra na unidade mais central da estrutura ser-no-mundo.
Isso pretende firmar, antes de tudo, que a transcendência, explicitamente ou não, sempre
está sendo desencoberta no Da-sein. Devido a este prévio desencobrimento é que a
compreensão do Ser, por sua vez, desvela-se. Portanto, no curso de 27, Heidegger, pela
primeira vez, localiza positivamente a compreensão do Ser no seu enraizamento na
transcendência que funda a mesmidade do Da-sein. Por esta condução já se torna
perceptível um adensamento do problema da transcendência, uma vez que as
articulações entre este problema e os conceitos fundamentais da fenomenologia se
tornam cada vez mais concretas e exigentes.
O enraizamento da compreensão do Ser na transcendência cumpre, inicialmente,
a tarefa de assinalar que, sem uma compreensão antecedente do Ser, o Da-sein não pode
manifestar o ente, ou melhor, não pode ser tomado como o lugar da própria
manifestação do ente. Mediante o esclarecimento, ainda que insuficiente, da relação
entre compreensão do Ser e transcendência ocorre, sim, a aproximação com a presença,
no Da-sein, de um caráter manifestativo essencial.
Todavia, o asseguramento e a conseqüente clarificação deste caráter essencial se
encontram além dos objetivos do curso de 27. Na verdade, o que estas relações
intencionam mostrar é que a transcendência revela o Da-sein como um ser-em, ou
melhor, como um “ser-no-ente”. Isso significa dizer que o Da-sein se estrutura, co-
27
originariamente, enquanto “em-direção-a-si, ser-com-os-outros e ser-junto-a”
10
. Em
todos esses momentos estruturais (Strukturmomenten) co-originários
pressupostamente, o modo de ser transpassante da transcendência. Neste sentido, a
inter-relação destes momentos estruturais na sua unidade mais própria é o que deve ser
denominado de “o ser-em do Da-sein”
11
.
Porém, de que maneira deve ser entendido o caráter de “ser-em” do Da-sein?
Heidegger ressalta que o “ser-em” deve ser tomado no sentido de que o Da-sein possui,
efetivamente, uma familiaridade (Vertrautheit) consigo, com os outros Da-sein e com os
entes subsistentes (Vorhandenen) e disponíveis (Zuhandenen). Além disso, esta
familiaridade é caracterizada como sendo uma “familiaridade no mundo”
12
. Dessa
maneira, o que garante mais profundamente o “ser-em” enquanto unidade dos
momentos estruturantes do Da-sein é o mundo. Entretanto, o que é o mundo? Qual é o
sentido do mundo?
“Ser-em” é essencialmente ser-no-mundo. Como foi determinado pouco, o
Da-sein se constitui em-vista-de-si-mesmo. É precisamente nessa construção que reside
a sua mesmidade, ou seja, é por ser em-vista-de-si-mesmo que o Da-sein, ao mesmo
tempo, dirige-se para si e para além de si. Por conseguinte, estes dois elementos
constitutivos da mesmidade do Da-sein estão, mesmo, enraizados no em-vista-de. Isso
significa mostrar que a unidade que envolve o todo das relações (Bezugsganzen) que
concernem ao “ser-em” é o mundo.
10
Op. cit., p. 425.
11
Op. cit., p. 428.
12
Op. cit., p. 428.
28
Decisivamente, então, o problema da caracterização do conceito de mundo
pertence ao domínio da unidade que abarca o conjunto das relações, sempre co-
originárias, fundadas na transcendência do “ser-em”. Dizendo de um outro modo, o
momento estruturante do mundo corresponde estritamente ao da sustentação e ao da
motivação mais própria da mesmidade do Da-sein. Portanto, o ingresso no problema do
conceito de mundo põe a interpretação fenomenológica diante da questão acerca do
como é possível, no seu todo, o ser-no-mundo. É no âmbito da totalidade da estrutura
fundamental do Da-sein que a explicitação do conceito de mundo pode ser alcançada.
De que maneira Heidegger, no curso de 27, inicia a articulação desta questão?
É correto dizer que a transcendência funda a estrutura ser-no-mundo enquanto
tal. Para Heidegger, porém, duas perguntas imediatamente passam a ter primazia:
Porque a transcendência deve mesmo fundar o ser-no-mundo? A transcendência, por
sua vez, está fundada em que? As respostas a estas perguntas dependem, claramente, da
clarificação de como os momentos “ser-em” e “mundo” pertencem um ao outro, isto é,
o que necessita ser exposta, em primeiro lugar, é a conexão intrínseca destes momentos
estruturais. Como Heidegger realiza isso?
O “ser-em”, enquanto em-vista-de, somente é possível fundamentado no futuro.
Isso pretende assinalar que o caráter ekstático do tempo é o que possibilita a
transcendência do Da-sein, ou seja, o transpassamento está fundamentado na
temporalidade ekstática. Além disso, fundado na transcendência, o mundo, enquanto
unidade do conjunto das relações do ser-em”, também é possibilitado pela
temporalidade. Assim, através da vinculação com a transcendência, os momentos “ser-
29
em” e “mundo” são considerados, agora, como determinados mais abrangentemente
pelo caráter ekstático da temporalidade.
Para Heidegger, a transcendência do ser-no-mundo está fundada, na sua
integralidade, na unidade originária da temporalidade ekstático-horizontal. Pelo que
foi mencionado anteriormente, a transcendência possibilita a compreensão do Ser. Na
medida em que a própria transcendência está enraizada na constituição da
temporalidade, então, seguramente, a temporalidade é, por assim dizer, “a condição de
possibilidade da compreensão do Ser”
13
.
Diante da necessidade do esclarecimento destas articulações, Heidegger, na
abertura do §21 do curso de 27, enfatiza que o que deve ser buscado é o entendimento
da maneira na qual a temporalidade do Da-sein possibilita a compreensão do Ser, já que,
como está sendo admitido, a própria temporalidade constitui, sem dúvida, a fundação do
transpassamento do Da-sein. Neste sentido, o que deve ser destacado é que a
compreensão do Ser precisa ser dimensionada, pelo menos a aqui, como o núcleo
examinativo da transcendência do Da-sein. Por intermédio deste balanceamento bem
particular, é atingido o domínio em que a compreensão do Ser passa a ser visualizada no
seu enraizamento na constituição ekstático-horizontal da temporalidade. Então, o que
significa dizer que o Ser é compreendido através do esquema horizontal das ekstases da
temporalidade?
Em primeiro lugar, Heidegger assinala que a orientação para o esclarecimento da
compreensão do Ser deve ser obtida a partir de certos aspectos do conceito de esquema.
13
Op. cit., p. 429.
30
Isso se porque o esquema horizontal compõe o que deve ser denominado de “o
conteúdo geral do conceito de temporalidade”
14
, isto é, há um pertencimento mais
primal da temporalidade ao esquema horizontal. Expondo de um modo mais incisivo, a
temporalidade assegura para si o seu status a partir da unidade específica deste
esquema. Conseqüentemente, a acentuação da análise deve recair sobre as interconexões
que acontecem no interior do esquema horizontal, pois o modo de ser da temporalidade
varia de acordo com a unidade de suas ekstases (futuro, presente e passado), na medida
em que a primazia de uma delas, o que sempre ocorre, modifica conjuntamente as
demais.
No curso de 27, Heidegger admite que apenas na centralidade de sua estrutura
ekstático-horizontal é que a temporalidade pode, corretamente, ser considerada a
condição fundamental da possibilidade da transcendência do Da-sein, no que ela detém
de mais constitutivo. Unicamente por intermédio da exposição mais aprofundada do que
é central na estrutura da temporalidade é que a relação entre transcendência e
compreensão do Ser pode ser mais bem delineada. O que isso quer dizer? Fundada na
transcendência, a compreensão do Ser reside, estruturalmente, no projetar (entwerfen).
De uma maneira mais nuançada, pode-se dizer que “a temporalidade é, pura e
simplesmente, a sua originária projeção de si”
15
. Em decorrência disso, em toda e
qualquer ocorrência da compreensão do Ser, o que a possibilita mais profundamente é a
própria projeção da temporalidade.
14
Op. cit., p. 436.
15
Op. cit., p. 436.
31
Por este norteamento é que deve ser entendido, daqui para diante, que a
compreensão do Ser somente é possível na temporalidade, ou melhor, na autoprojeção
da temporalidade. Certamente, esta articulação traz consigo elementos imprescindíveis
para a intensificação da análise. Ao propor a autoprojeção da temporalidade como o
sítio da explicitação dos aspectos centrais da compreensão do Ser, Heidegger está
assumindo que a temporalidade é o mais primordialmente desencoberto (enthüllte) no
Da-sein. Em outras palavras, o Da-sein existe no previamente desencoberto da
autoprojeção da temporalidade. Isso significa dizer que a temporalidade, no seu caráter
autoprojetivo, propicia, sim, o próprio desencobrimento (Enthülltheit) do Da-sein
enquanto tal, bem como o do espectro de todas as suas possibilidades.
Contudo, os conteúdos destas articulações precisam ser examinados com maior
agudeza. Qual é a implicação mais decisiva trazida por eles? Na medida em que a
temporalidade é originariamente a sua própria projeção, em todo o acontecimento da
compreensão, ancorado no projetar, está se dando, expressamente ou não, o
desencobrimento da temporalidade. Dessa forma, em todo e qualquer desencobrimento
do Da-sein, ou seja, do seu “aí” há, como afirma Heidegger, “uma manifestação de si da
temporalidade”
16
. A relevância deste posicionamento se concentra no fato de que a
temporalização (Zeitigung) da temporalidade se mantém como o mais determinante no
desencobrimento do Da-sein, sempre radicado no projetar. Diante disso, a manifestação
da temporalidade deve ser tomada como o que ocupa, inegavelmente, o primeiro plano
na compreensão. Ela consiste, se o termo é cabível, no seu a priori. O que isso
intenciona revelar, então, no curso de 27?
16
Op. cit., p. 437.
32
A unidade ekstático-horizontal da temporalidade é, intrinsecamente, projeção de
si. Por essa razão, o projetar contém o traço constitutivo mais essencial das ekstases: o
dirigir-se para fora de si. Desse modo, a projeção, nas suas diferentes modulações,
encontra o seu fim no horizonte da unidade ekstática da temporalidade. No curso de 27,
Heidegger, devido à limitações metodológicas incontornáveis, afirma que o
aprofundamento da explicitação do projetar através da constituição das ekstases não
pode ser prosseguido, uma vez que a continuação requer, sem dúvida, o ingresso no que
ele denomina “o problema da finitude do tempo”
17
, onde o emerge o problema do
fim de cada ekstase (futuro, presente e passado), mas, a partir dele, o do começo
(Anfang) e o do ponto de partida (Ausang) da possibilidade de todo projetar.
Os obstáculos que aparecem nas partes centrais do §20 do curso de 27 mostram
o quanto Heidegger estava voltado ao desenvolvimento de sua concepção de
fenomenologia, assim como ao alcance de seus elementos compositivos.
Sugestivamente, ele chega a dizer que sem um completo domínio do método
fenomenológico e, acima de tudo, sem a segurança necessária para atuar em seus
problemas específicos, a interpretação da temporalidade e, muito importante, do que
advém dela permanece cercado de obscuridades, pois, como foi firmado, Heidegger,
em 27, admite que a temporalidade, condição de possibilidade da compreensão do Ser, é
bem mais determinante do que qualquer momento estrutural que surge através dela.
Nos limites estritos do curso de 27, a tentativa de um redirecionamento
metodológico, se a expressão é pertinente, ocorre no §22. Nele, Heidegger estabelece,
inicialmente, que a temporalidade torna possível o comportamento (Verhalten) do Da-
17
Op. cit., p. 437.
33
sein enquanto comportamento para com o ente, seja ele o próprio Da-sein, um outro Da-
sein, ou um ente disponível. Devido a unidade do esquema horizontal, a temporalidade
possibilita a compreensão do Ser, que apenas a partir desta compreensão é que o Da-
sein pode se comportar para com o ente. Porque a temporalidade se constitui enquanto
autoprojeção pura e simples, no Da-sein o Ser é sempre previamente desencoberto em
toda abertura (Erschlossenheit) ou descoberta (Entdeckheit). Isso pretende mostrar que
o esquema horizontal faz com que em todo o comportamento o ente sempre apareça
enquanto ente, compreendido a partir de seu ser, mesmo que esta distinção não seja
devidamente conceituada.
Na medida em que existe o Da-sein compreende o Ser e se comporta para com o
ente. Muito mais importante do que isso é a compreensão do Ser que permite o
comportamento para com o ente. Por esta razão, a diferença (Unterschied) entre Ser e
ente se encontra no Da-sein, isto é, ela está desde sempre mostrando o seu
pertencimento ao modo de ser mais essencial deste ente. Assim, existência significa
algo como “ser na realização desta diferença”
18
. Porém, o que necessita ser enfatizado,
neste momento da analise, é que esta diferença é temporalizada na temporalização da
temporalidade (in der Zeitigung der Zeitlichkeit). O que isso intenciona revelar?
Tal como Heidegger destaca, apenas porque a diferença desde sempre se
temporaliza fundamentada na temporalidade e sendo conjuntamente com ela, isto é, por
ser algo que se encontra projetado e desencoberto é que ela pode vir a ser
expressamente conceituada. A diferença entre Ser e ente é, na verdade, pré-ontológica
18
Op. cit., p. 454.
34
(vorontologisch) porque ela se mantém, na maioria das vezes, latente no Da-sein, ou
seja, sem que ocorra uma devida explicitação dela mesma.
Entretanto, ela pode vir a ser explicitada. Antes de tudo, pela sua fundamentação
na temporalidade, no Da-sein a unidade imediata entre a compreensão do Ser e o
comportamento para com o ente. Por pertencer constitutivamente ao Da-sein é que esta
diferença, para Heidegger, pode ser aclarada de diversos modos. Sem dúvida, a
ocorrência da explicitação se quando a diferença passa a ser afirmada, isto é, quando
a unidade imediata é rompida. Em termos bastante genéricos, mediante esta ruptura os
elementos da diferença se tornam mutuamente contrastantes. Assim, a diferença entre
Ser e ente se torna visível através da diferenciação entre um e outro. No curso de 27,
Heidegger estabelece que quando a diferenciação entre Ser e ente é expressamente
realizada, o Ser se torna passível de uma interpretação conceitual. Assim dimensionada,
a diferença entre Ser e ente deve ser entendida como diferença ontológica (ontologische
Differenz). Porém, o desenvolvimento expresso da diferença ontológica, por pertencer
estruturalmente ao Da-sein, o consiste num comportamento ocasional e arbitrário. A
radicalidade deste comportamento fundamental reside no fato de que nele a ontologia,
ou seja, “a filosofia se constitui enquanto ciência”
19
.
O positivo dimensionamento da estruturação da filosofia requer, segundo
Heidegger, que certas observações preparatórias sejam feitas, em vista da exibição de
que, enquanto ciência, a filosofia não é um acontecimento lateral no Da-sein, porém, na
medida em que é uma livre possibilidade deste ente, a sua necessidade está fundada no
19
Op. cit., p. 455.
35
que de mais essencial dele. Como Heidegger, então, aproxima-se dessas
articulações?
É indispensável afirmar que o conceito de filosofia (Begriff der Philosophie)
somente pode vir a ser exposto por intermédio de um entendimento apropriado da
estrutura do Da-sein. Por este condicionamento, o problema da transcendência pode
reingressar na análise de um modo muito mais produtivo. O que foi até aqui
determinado evidencia que a constituição da temporalidade, fundamento da projeção do
Ser, permanece encoberto. Entretanto, não é apenas a temporalidade que se mantém
oculta quando alguns de seus traços são anunciados. Mas diretamente ainda, o
fenômeno da transcendência, isto é, da relação fundamental do Da-sein consigo e com
os entes também permanece encoberto, mesmo que, como a análise consegue
mostrar, algumas de suas articulações já sejam visualizáveis.
Estes esclarecimentos visam a acentuação de que a partir de um correto
dimensionamento da filosofia enquanto possibilidade livre do Da-sein é que estas
dificuldades podem começar a ser consideradas de uma maneira positiva. O curso de 27
estabelece que a projeção originária da temporalidade é que propicia, necessariamente, a
tematização do Ser, assim como assegura a sua conceitualidade. Além disso, ela
possibilita a própria constituição da ontologia enquanto ciência. Neste sentido, a
filosofia, ou seja, a ontologia se caracteriza por ser “a ciência temporal”
20
. Nela, todas as
interpretações devem ser desenvolvidas a partir de uma adequada apresentação do que
se anuncia na temporalidade “no sentido da temporariedade”
21
. Isso pretende definir,
20
Op. cit., p. 460.
21
Op. cit., p. 460.
36
para Heidegger, que o caráter das proposições filosóficas é temporal. Como ele próprio
afirma, “todas as proposições da ontologia são proposições temporais”
22
.
Por estas articulações, a filosofia assume como sua tarefa o desencobrimento das
estruturas do Ser a partir do horizonte da temporalidade. No fundo, as proposições
filosóficas possuem o caráter de verdade temporal (Charakter der veritas temporalis).
Qual, então a significância desses posicionamentos? Através da análise da estrutura ser-
no-mundo, o que se tornou claro é que a transcendência pertence à constituição
fundamental (Seinsverfassung) do Da-sein. Na medida em que este ente transcende a si
mesmo, a própria transcendência possibilita com que o Da-sein exista como o que se
comporta para com o ente enquanto tal. Em decorrência disso, a transcendência precisa
ser dimensionada como a mais próxima (nächste) condição de possibilidade da
compreensão do Ser. Dizendo de um outro modo, a transcendência aparece como a
primeira estrutura, por ser a mais próxima, através da qual a ontologia pode iniciar a
conceituação do Ser.
Por intermédio destas explicitações, se torna perceptível o lugar que passa a
ser ocupado pelo problema da transcendência em Heidegger, no final dos anos 20. O
projeto de elaboração de uma ontologia fundamental assegura para si o status de
solidez, até então apenas pretendido, no momento em que o fenômeno da
transcendência é considerado como o fenômeno através do qual a ciência do Ser efetua
os seus questionamentos à luz de um entendimento apropriado dele. É unicamente por
este norteamento que Heidegger denomina a ontologia de ciência transcendental
(transzendetale Wissenchaft).
22
Op. cit., p. 460.
37
Contudo, estes posicionamentos merecem ser vistos com uma atenção duplicada.
Por um lado, é cabível dizer que a ontologia realiza a sua tematização, a do sentido do
Ser, por intermédio do fenômeno, ou melhor, do problema da transcendência. Muito
mais relevante do que isso, porém, é a fixação de que a correta problematização da
transcendência consiste, sim, no momento indispensavelmente construtivo da filosofia.
Em outros termos, a transcendência não deve ser pressuposta enquanto um fenômeno
preenchido, consumado na sua estruturação. Na verdade, o que importa ser destacado é
que a filosofia se intensifica ao elaborar conceitualmente a estruturação da
transcendência. Assim, ela deve se voltar, antes de qualquer coisa, para a exposição do
conceito originário de transcendência. A partir dos constitutivos deste conceito é que a
filosofia pode ser considerada enquanto filosofia transcendental. Como, então, adensar a
análise?
A transcendência está enraizada na temporalidade (Zeitlichkeit) e, devido a isso,
na temporariedade (Temporalität). Por conseguinte, o tempo deve ser caracterizado
como o “horizonte primário”
23
da filosofia transcendental. Em outras palavras, o tempo
é o horizonte transcendental. Isso significa dizer que o tempo, isto é, a temporalidade na
temporariedade corresponde ao lugar no qual se dão as possibilidades mais internas do
fenômeno da transcendência. Ele deve ser exposto, na verdade, a partir deste lugar. Para
Heidegger, na elaboração do conceito de transcendência o que se busca é a
temporariedade, pois, como foi afirmado, apenas ela assegura à filosofia o título de
ciência temporal. Diante disso, como o tempo necessita ser compreendido, no âmbito de
uma filosofia transcendental?
23
Op. cit., p. 463.
38
Enquanto afirmações acerca do Ser a partir da moldura do tempo, todas as
proposições ontológicas (ontologischen Sätze) são, seguramente, proposições temporais.
No fundo, apenas por serem proposições temporais é que elas precisam ser
caracterizadas enquanto proposições a priori (apriorische Sätze). Isso pretende firmar
que por ser a filosofia uma ciência temporal é que algo como o a priori nela faz sua
aparição. Assim, o a priori é, expressamente falando, uma determinação temporal
(Zeitbestimmung), cujo caráter ontológico capital é o de ser o primeiro. Por conseguinte,
ele significa, do ponto de vista fenomenológico, o que torna possível o ente se
manifestar enquanto tal.
Entretanto, o aclaramento do caráter mais central do a priori não pode ser
realizado tão diretamente. Heidegger afirma que somente através do esclarecimento da
temporariedade da compreensão do Ser é que se pode expor a razão pela qual as
determinações do Ser possuem, efetivamente, um caráter de aprioridade. Como foi
assinalado, em todo o comportamento para com o ente o Ser é compreendido
antecipadamente. Portanto, a possibilidade do comportamento para com o ente requer
uma precursora compreensão do Ser, ao passo que esta necessita, por sua vez, da
projeção do tempo. Desse modo, a dificuldade passa a se concentrar no reconhecimento
da instancia (Instanz) onde a exigência por precursões cada vez mais fundantes se dá.
Certamente, esta instância consiste na temporalidade enquanto constituição fundamental
do Da-sein.
Porque o tempo é a determinação da possibilidade, ou melhor, é a origem de
toda e qualquer possibilidade, ele se temporaliza enquanto o primeiro. Neste sentido,
Heidegger afirma, no curso de 27, que o tempo é o primeiro frente a qualquer modo de
39
ser do “primeiro”, uma vez que ele é “a condição fundamental do primeiro enquanto
tal”
24
. Por ser o tempo o originariamente primeiro, todas as possibilidades, nas suas
possibilitações, possuem o seu caráter, isto é, elas são a priori. Mas, o que significa
dizer que o tempo é o sentido da possibilidade de todo o primeiro, e de toda fundação
organizada de modo a priori?
Esta questão, sem dúvida, requer o ingresso no domínio mais próprio da conexão
entre temporalidade e aprioridade. A entrada neste campo exige o preparo metodológico
específico para a tematização do a priori. Para este fim, o núcleo do desenvolvimento da
análise ontológica reside na temporalidade do Da-sein, particularmente no modo de ser
de sua temporalização. O problema se torna, a partir daqui, o de estabelecer os recursos
indispensáveis para que o tempo seja conceituado através das possibilidades e das
modulações de sua temporalização. Como deve ser o empenho conceitual capaz de
desencobrir a temporalidade enquanto tal? Por intermédio de que explicitações ocorrem
o aprofundamento do método ontológico, isto é, da fenomenologia?
Estas questões centrais compõem os limites do curso de 27. Apesar da nítida
insuficiência de suas articulações e proposições mais significativas, o direcionamento da
análise para o problema da transcendência, tal como é caracterizado, mostra que
somente através da estruturação do fenômeno da transcendência, no seu horizonte mais
genuíno, é que são conquistados, ao mesmo tempo, os passos metodológicos requeridos
e os condicionamentos para a conceituação do sentido do Ser.
24
Op. cit., p. 463.
40
O curso realizado no semestre de verão de 28, As Fundações Metafísicas da
Lógica, necessita ser tomado, por diferentes razões, como um momento definidor no
que diz respeito à procura pelos limites mais adequados para o erguimento da ontologia
fundamental, no final dos anos 20. As razões mais centrais para o posicionamento deste
curso, como um momento decisivo, serão examinadas posteriormente. Porém, é cabível
dizer que nele, especialmente no início da segunda parte, ocorre, mesmo que de modo
sintético, uma análise das principais articulações e dos objetivos mais relevantes do que
foi produzido durante os anos de 26 e 27. Em virtude disso, nota-se a presença de um
empenho analítico que visa, nitidamente, absorver o que já foi elaborado para que, por
seu intermédio, ocorra um aprofundamento do questionamento filosófico. Devido a isso,
não a percepção de uma mudança nos norteamentos mais fundamentais, mas, sim, a
procura por um entendimento mais coeso e abrangente de suas potencialidades mais
internas.
O que, então, pode ser afirmado como o núcleo do aprofundamento proposto no
curso de 28? No §10, Heidegger diz que a questão do Ser somente pode ser estritamente
dimensionada tendo como guia o fenômeno da transcendência, ou melhor, o problema
da transcendência. Neste sentido, o domínio da análise tem que passar a ser o do
fundamento, uma vez que é neste domínio e, mais que tudo, na conexão mais fundante
entre fundamento e verdade que a ontologia necessita estabelecer o seu solo mais
autêntico. No curso de 28, a problematização da transcendência objetiva o
asseguramento, por assim dizer, do obscuro núcleo da relação entre Ser e tempo. Isso
significa que através da transcendência, na e pela temporalidade que a fundamenta, a
filosofia, ou seja, a ontologia fenomenológica assume, clara e definitivamente, como
sua tarefa essencial o entendimento da relação entre Ser e tempo.
41
Somente em 28 o sentido mais consistente destas articulações passa a ser exibido
pela ontologia. Precisamente por isso, tal como Heidegger ressalta, daqui por diante o
que necessita ser efetuado é o posicionamento e a elaboração mais radical e universal da
relação entre Ser e tempo, no âmbito da transcendência. Desse modo, o que quer dizer
radicalizar a questão do Ser? Sem dúvida, a conceituação mais aprofundada da relação
entre a compreensão do Ser e a estrutura do Da-sein. O que deve ser exposto,
fundamentalmente, é o modo no qual ocorre algo como a compreensão do Ser no Da-
sein. Em virtude disso, a análise requer “uma primordial e apropriada interpretação do
Da-sein”
25
. Este exame se concentra no aclaramento mais estrito do modo como o Da-
sein traz consigo, desde sempre, a compreensão do Ser.
Em decorrência destas posições algo precisa ser destacado. Para Heidegger, uma
interpretação mais primordial do Da-sein significa, seguramente, uma “interpretação
primordial do tempo enquanto tal”
26
. Neste sentido, há uma simultaneidade na
interpretação do Da-sein e do tempo, o que, por sua vez, corresponde à asserção de que
a interpretação que se busca é, no fundo, a do modo de ser da conexão entre ambos.
Portanto, se o Ser possui uma relação mais originária com o tempo e a compreensão do
Ser pertence à essência do Da-sein, o próprio tempo deve determinar a possibilidade da
compreensão. A temporalidade deve ser exibida, no questionamento do Ser, como a
constituição fundamental do Da-sein, o que acarreta, como havia sido tangenciado
pelo curso de 27, o dimensionamento da análise no co-pertencimento mais nuclear entre
a temporalidade e o a priori.
25
HEIDEGGER, Martin. Metaphysische Anfangsgründe der Logik. Gesamtausgabe, Band 26. Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1978-1990, p. 188.
26
Op. cit., p. 188.
42
Entretanto, o que significa universalizar o problema do Ser? De uma maneira
bastante provisória, pode-se dizer que a ontologia precisa ser tomada, na sua
especificidade, como a ciência do Ser” e não como a “ciência do ente” por excelência,
isto é, a que deve explorar o mais central da determinação do ente. Enquanto tal, a
“ciência do Ser”, ou seja, a ontologia não tem como problema nada que se vincule,
positivamente, à realidade do mundo exterior e a suposta independência ou não dos
entes frente à subjetividade cognitiva, ou melhor, epistemológica. Muito diferentemente
disso, a ontologia reconhece que apenas através do adequado posicionamento da
questão do Ser, nas suas modulações, é que os problemas epistemológicos poderão ser
visualizados mediante uma moldagem consistente.
Universalizar o problema do Ser de uma maneira produtiva diz respeito à
exibição de quais questões se encontram interdependentemente contidas nele. Assim, o
que importa aclarar é: quais questões já estão sendo assinaladas pelo termo Ser quando,
por exemplo, faz-se a pergunta sobre Ser e tempo? Certamente, uma delas consiste na
inclusão, no termo Ser, de um espectro de variadas regiões. O problema da
multiplicidade do Ser, caso considerado na sua universalidade, exige, sim, a
interpretação da unidade do termo geral Ser através dos diversos sentidos regionais em
que ele se apresenta. Pondo de uma maneira mais incisiva, o problema concerne “à
unidade da idéia de Ser e de suas variações regionais”
27
. O problema é mesmo o da
unidade e da generalidade do Ser enquanto tal e, mais do que isso, o da conceituação do
modo de ser de seu caráter regional.
27
Op. cit., p. 192.
43
Todavia, a unidade do Ser em meio a sua multiplicidade regional é somente um
dos aspectos da universalização do problema do Ser. Ao lado dele um outro merece ser
destacado. Para Heidegger, em toda e qualquer visualização do Ser já acontece a
referencia à relação entre o seu suposto caráter de existente e o seu caráter essencial. Em
virtude disso, o Ser sempre aparece trazendo, implicitamente, a articulação entre
existência e essência. O Ser é na articulação entre o seu modus existendi e o seu modus
essendi. Neste sentido, o problema da articulação dos modos de ser do Ser, ou seja, das
articulações do Ser constitui um aspecto de sua universalização.
Até aqui, a aproximação mínima, no curso de 28, com a universalização do
problema do Ser desconsiderou um traço efetivamente definidor. Enquanto tal o Ser é,
sempre, Ser do ente. Entretanto, o Ser não se estrutura como o ente, não possui o caráter
de ente. Em outras palavras, o Ser é diferente do ente e apenas a partir desta diferença é
que a compreensão do Ser é possível. Na compreensão do Ser, a diferença entre Ser e
ente está sendo pressuposta. Tal como o curso de 27 formula pela primeira vez, é
estritamente na diferença entre Ser e ente que a ontologia se torna possível. A primazia
desta diferença na estruturação da compreensão do Ser faz com que a universalização
do problema do Ser resida, antes de tudo, na questão da diferença ontológica. Isso
significa assinalar que com esta questão o problema do Ser e, mais relevante, o do
núcleo de sua interpretação entram em cena.
Além disso, particularmente vinculada à questão da diferença ontológica, há,
para Heidegger, a questão da conexão intrínseca entre Ser e verdade, ou melhor, a
questão do caráter de verdade do Ser. Seguramente, é a compreensão do Ser que permite
com que o Da-sein se comporte para com o ente, ou seja, com que o ente apareça
44
enquanto tal. Por conseguinte, é a compreensão que condiciona mais intimamente a
manifestação (Offenheit) do ente. Para que o ente se manifeste é indispensável que o Ser
“se dê” no desencobrimento específico que é a própria compreensão do Ser. Este
desencobrimento é o que Heidegger denomina de verdade. Na compreensão do Ser a
verdade ocupa o lugar de extrema centralidade. Dizendo de um outro modo, a questão
do caráter da verdade do Ser realiza, sim, a universalização do problema do Ser.
Mediante estas articulações, o termo geral Ser inclui quatro questões
fundamentais: a da diferença ontológica, a da articulação do Ser, a da unidade e
regionalidade do Ser, e a do caráter de verdade do Ser. Qual a relevância deste
conjunto? O que se tem até aqui diz respeito ao delineamento fenomenológico do
problema do Ser. Por esta moldagem se percebe, inequivocamente, que o Ser, na sua
estruturalidade, necessita ser exposto na e através da radicalização e da universalização
ontológicas concernentes a ele. Por essas razões, o problema efetivo, isto é, primeiro e
mais próximo, como assinalado no curso de 27, consiste precisamente no da
transcendência do Da-sein. Isso intenciona firmar que este problema apenas pode ser
tematizado à luz do problema do Ser. De acordo com Heidegger, o problema da
transcendência tem de ser posto, na sua radicalidade e universalidade, como o próprio
problema do Ser, pois na transcendência o que está sendo mesmo procurado é o modo
de ser da constituição do Da-sein, isto é, o de existir no comportamento para com o ente
precedido pela compreensão do Ser, cerne da diferença ontológica.
Com estes dimensionamentos, ainda que preparatórios, do problema específico
da transcendência, Heidegger, no curso de 28, realiza, através de um apêndice do §10,
intitulado Descrição da idéia e da função de uma ontologia fundamental,
45
esclarecimentos indispensáveis acerca das reais finalidades e dos limites de seu projeto
filosófico no final dos anos 20. Em primeiro lugar, por ontologia fundamental deve ser
entendida a própria fundação da ontologia em geral. Determinada desta maneira, ela
inclui a formulação que expõe a questão do Ser como problema basilar da metafísica na
e a partir da interpretação do Da-sein enquanto temporalidade. Além disso, ela traz
consigo a clarificação e a vinculação ordenada dos quatro problemas do Ser acima
mencionados, sempre tendo como horizonte a exibição fenomenológica da
temporalidade. Finalmente, ela necessita realizar o auto-esclarecimento desta
problematização, tanto nas suas tarefas quanto nos seus limites mais internos, o que
pode ser denominado, com muita cautela, de sua viravolta.
Conseqüentemente, duas perguntas passam a assumir uma posição determinante:
porque a ontologia fundamental se origina de uma analítica da existência? Até que
extensão a analítica assegura o seu sentido do próprio conceito de metafísica? O início
das explicitações destas perguntas se concentra na pressuposição de que os problemas
constitutivos da ontologia fundamental são, nas suas características mais essenciais, os
mesmos que pertencem à existência, ou seja, são os que se tornam visualizáveis na e
pela conceituação do Da-sein. Unicamente por este vínculo, enfatiza Heidegger, é que
os problemas do Ser ganham luminosidade através da existência.
Apesar desses posicionamentos, o apêndice do §10 lança, ainda que
sinteticamente, uma advertência bastante importante. É imprescindível ter consciência,
no que diz respeito à ontologia fundamental, que é, mesmo, a radicalidade e a
universalidade de sua problematização mais central, isto é, a do Ser que condiciona a
significância e os lugares específicos de todos os problemas até aqui assinalados.
46
Entretanto, por estarem fundados nesta problemática central, eles, nas suas
peculiaridades, não a preenchem integralmente. Dizendo de uma outra maneira, os
problemas da ontologia fundamental não esgotam o conceito de metafísica. O que isto
quer dizer?
Na medida em que o Ser já é sempre antecipado para que o ente se manifeste, a
ontologia fundamental, de forma latente, possui uma tendência em direção a uma
“transformação primordial da metafísica”
28
, apenas possível a partir de uma explicitação
da totalidade da problemática do Ser. Esta necessidade intrínseca da ontologia
fundamental de regressar, por assim dizer, ao seu ponto de partida pode ser percebida no
próprio factum da existência: a compreensão do Ser. Enquanto tal, ela efetua uma
distinção decisiva entre Ser e ente mediante a qual a manifestação do ente depende da
precursão do desencobrimento do Ser, explicito ou não, no Da-sein. Em outros termos, a
condição de possibilidade da própria manifestação do ente pressupõe a ocorrência
fáctica do Da-sein e esta, a seu modo, antecipa a ocorrência de algo como, por exemplo,
a “subsistência” da natureza. Portanto, lado a lado com o posicionamento radical do
problema do Ser, o que aparece, assim como salienta Heidegger, é que toda a
visibilidade da compreensão do Ser é, no fundo, determinada pela antecipação de que o
todo dos entes já se dá.
Por conseqüência, a indispensabilidade do desenvolvimento de uma
problemática especial que possui como seu tema o ente no seu todo. Para Heidegger,
esta investigação se ancora na essência da ontologia e decorre, sem dúvida, de sua
transformação (Umschlag). A rede de problemas produzida por esta transformação é
28
Op. cit., p. 199.
47
denominada de meta-ontologia. O que importa ser destacado, nos limites do §10, é que
a meta-ontologia somente é possível tendo como fundamento a radicalização e a
universalização do problema do Ser. Além do que, ela se sustenta nesta perspectiva
porque é no próprio aprofundamento da ontologia fundamental que emerge a
necessidade de transformação da filosofia. Neste sentido, a conceituação do problema
do Ser exige, concomitantemente, a tematização do ente em seu todo pela ontologia.
Sugestivamente, estas articulações propiciam, pela primeira vez no final dos
anos 20, o entendimento, mesmo que insuficiente, de que os problemas basilares da
metafísica exigem uma interpretação do Da-sein na e através da temporalidade e, com
ela, a aquisição do solo no qual a possibilidade intrínseca da compreensão do Ser se
torna evidente, o que assegura a necessidade e a evidencialidade da ontologia. Dessa
maneira, pela compreensão do Ser o que se torna mesmo premente é a explicitação da
própria problemática do Ser, concentrada nos quatro problemas apresentados acima.
Portanto, para Heidegger, a ontologia fundamental constitui a completude da fundação e
do desenvolvimento da ontologia, por intermédio da analítica do Da-sein e da análise da
temporalidade do Ser, consecutivamente. Contudo, a análise do tempo, por sua vez,
realiza a viravolta (Kehre) em que a ontologia expressamente retorna ao ôntico que nela
permanece sempre implícito. Na verdade, os movimentos de radicalização e de
universalização pretendem nortear a ontologia para a efetuação de sua necessária
transformação. Apenas aqui a viravolta aparece dimensionada enquanto meta-ontologia.
48
Por fim, no seu teor mais unitário, no apêndice do §10 do curso de 28, ontologia
fundamental e meta-ontologia compõem o “conceito de metafísica”
29
.
Estes posicionamentos bastante elucidativos acerca das intenções, dos limites e,
se o termo é cabível, da organização do projeto filosófico de Heidegger, até este
momento, marcam o cumprimento, iniciado no §69 de Ser e Tempo e relativamente
ampliado no curso de 27, da moldagem preliminar do problema da transcendência. Por
estas razões, a segunda secção do curso de 28, intitulada O problema do fundamento,
especialmente no §11, traz o dimensionamento mais pormenorizado, no final dos anos
20, acerca do fenômeno da transcendência, pondo-o, de maneira definitiva, no seu locus
mais apropriado. Fundamentalmente, isso pretende afirmar que, através do que é
exposto ao longo do §11, a transcendência assume, de uma vez por todas, o lugar da
primeira, porque mais próxima, estrutura em que se a elaboração do conceito de
metafísica, a partir das articulações presentes no apêndice. Como, então, Heidegger
inicia a exposição deste fenômeno?
Antes de tudo, a aproximação concreta com o problema do Ser demanda o
tratamento do problema do fundamento. Enquanto tal, ele deve ser preparado pela
analítica do Da-sein, a qual revela que a transcendência constitui o fenômeno básico da
existência. Dessa forma, o que importa, a partir daqui, é a elaboração do fenômeno da
transcendência não em vista da analítica do Da-sein, porém, e isso é crucial, em relação
expressa ao problema do fundamento. Dizendo de uma outra maneira, o fundamento
assume o papel de condição de possibilidade da explicitação da transcendência, ao
mesmo tempo em que, através desta elucidação, deve acontecer uma interpretação
29
Op. cit., p. 202.
49
adequada da essência do fundamento. A ambiência específica da essência do
fundamento é a transcendência. Como propiciar o entendimento disso?
Para Heidegger, o pôr em perspectiva o fenômeno da transcendência requer,
inicialmente, a clarificação do sentido do seu uso na filosofia. Para este fim, é suficiente
o exame dos dois sentidos usuais de transcendência, de onde todos os demais derivam.
Precisamente, o caminho do exame deve se concentrar no conceito de transcendente e
no modo de sua caracterização na filosofia. Este conceito significa: 1) o transcendente
em contradição ao imanente, 2) o transcendente em contradição ao contingente. No
primeiro conceito, o imanente é determinado como o que permanece em algo, ao passo
que o transcendente é definido como o que não permanece no “interior” de algo, porém,
“fora” deste algo, isto é, se mantém como uma exterioridade. O que isso pretende
assinalar? Seguramente, que no primeiro conceito usual de transcendente, o acento recai
no movimento realizado pelo que é determinado como imanente. Dessa maneira, o
transcendente é, sempre, considerado em relação ao imanente, sendo que o que
caracteriza esta relação é uma contradição central. O transcendente, tomado a partir do
horizonte do imanente, aparece como o que se conserva “fora” e, principalmente, parece
ir de encontro às determinações do imanente.
Na verdade, o que estas articulações preliminares já começam a exibir é que há a
identificação de um obstáculo entre o transcendente e o imanente, entre o “exterior” e o
“interior” que molda o caráter desta relação contraditória. Neste sentido, o movimento
efetivo do imanente consiste, tal como Heidegger afirma, na procura dos elementos que
irão propiciar a remoção desta barreira. Por conseguinte, o transcendente atua, por assim
dizer, como o que restringe a ação do imanente e, ao mesmo tempo, como o que
50
direciona a sua própria movimentação. Sinteticamente, a transcendência surge neste
enredamento. Ela é caracterizada, em sentido estrito, como o caminho da passagem que
intenciona ligar o imanente ao transcendente. Em outras palavras, na possibilidade ou
não desta passagem e, mais importante, na explicitação do como desta possibilidade.
O que se evidencia na caracterização da transcendência enquanto passagem,
através do conceito contrastante de imanência, é que sem o problema da superação da
barreira entre o “interior” e o “exterior” tudo, sem dúvida, perde solidez. Isso significa
dizer que o núcleo do problema está encerrado na determinação da “interioridade”, uma
vez que nela é que ocorre a exigência da eliminação do obstáculo. Para Heidegger, esta
visualização traz consigo um dimensionamento mais produtivo do fenômeno da
transcendência. Se o que está em jogo é, fundamentalmente, o domínio do interior”, a
transcendência corresponde ao modo como é definida a “subjetividade do sujeito, ou
seja, a constituição básica do Da-sein”
30
. Diante disso, é trazida frontalmente para a
análise a pergunta acerca da positividade ou não da definição do Da-sein enquanto algo
“interior”. Entretanto, o que é mais destacável diz respeito, pelo menos até aqui, a
percepção nítida de que a transcendência não é um elemento lateral da constituição do
Da-sein. Muito diferentemente disso, estas articulações já apontam que a clarificação da
essência do Da-sein apenas é possibilitada pelo fenômeno da transcendência.
O primeiro conceito usual de transcendência, alicerçado na imanência que o
contradiz, precisa ser entendido como o conceito epistemológico de transcendência”
31
.
De acordo com Heidegger, através da análise e da detecção dos limites estruturais deste
30
Op. cit., p. 205.
31
Op. cit., p. 206.
51
conceito de transcendência é que a epistemologia, ou melhor, a questão filosófica do
conhecimento necessita ser demonstrada. Porém, isso ultrapassa o alcance das
finalidades do curso de 28. O que é assegurado mediante o primeiro conceito de
transcendência é a diferenciação em relação ao segundo, isto é, ao conceito teológico de
transcendência. Então, o que o determina mais diretamente? Nele, a transcendência é
tomada como o que se opõe à contingência. O contingente é o que é “próximo de algo”,
o que possui familiaridade com elee, no fundo, o que pertence ao seu “modo de ser”.
Em virtude disso, o transcendente consiste no que se situa além desta proximidade, o
que não se deixa condicionar por ela e, mais centralmente, o que excede o
condicionamento, o pertencimento. Dessa maneira, o transcendente é tanto o
incondicionado quanto o excessivo.
Neste segundo conceito, a transcendência é definida como o caminho de
passagem para além do que é condicionado. Então, nele, assim como no primeiro
conceito, a acentuação da presença de uma relação, que ela não tem como ser
caracterizada como uma relação entre “interior” e exterior”, ou melhor, entre “sujeito”
e “objeto”, o que acontece no domínio cognitivo. Ao seu modo, ela se mantém enquanto
relação entre o condicionado” e o “incondicionado”. Nesta definição, o conceito de
transcendência é aclarado através da formulação do “em-direção-a-que” a própria
transcendência transcende. Portanto, o incondicionado, o transcendente é o momento
imprescindível da elaboração deste conceito de transcendência. Em decorrência direta
disso, já se percebe que a interpretação do fenômeno da transcendência exige, ao
mesmo tempo, a explicitação do sentido do “em-direção-a-que”.
52
Por intermédio destes esclarecimentos iniciais, Heidegger enfatiza que o que
importa, efetivamente, é a interpenetração destes dois conceitos usuais. Por ela, antes de
tudo, a afirmação do conceito epistemológico de transcendência de que algo sempre se
posiciona fora” do “sujeito” e contrariamente a ele merece ser vista de maneira mais
nuançada. No que se posiciona opondo-se ao “sujeito” a pressuposição de algo que,
concomitantemente, está acima dos “outros” e os envolve de maneira essencial. Isso
significa dizer que este algo se posiciona contra o “sujeito” e, ao seu modo, também
transcende tudo o que, condicionalmente, opõe-se a ele. Neste sentido, o transcendente
deve ser considerado como o que, duplamente, ultrapassa e excede todo o
condicionamento. Por conseguinte, a análise da constituição do conceito epistemológico
de transcendente se origina, sugestivamente, no da constituição do conceito teológico.
Na verdade, é correto afirmar que a última é motivadora da primeira. O que isso
pretende revelar?
Fundamentalmente, que os pretensos problemas epistemológicos da realidade do
mundo exterior e do como de sua acessibilidade e determinabilidade estão, no fundo,
implicados no problema teológico do conhecimento do incondicionado, assim como no
da demonstrabilidade de sua existência. Dessa maneira, é muito clara a mútua
dependência e a penetração recíproca nesses dois conceitos de transcendência. Visando
uma melhor elucidação, a lacuna apresentada pela inter-relação dos conceitos usuais de
transcendência reside, exatamente, na incapacidade de tematização desta específica
interpenetração, pois apenas a partir de um entendimento satisfatório do que a gera e
conserva é que tanto o problema do conhecimento quanto o da demonstração do ente
incondicionado passam a possuir um solo apropriado.
53
Todavia, as análises acerca de certos traços presentes nos conceitos usuais de
transcendência não correspondem ao domínio no qual o problema da transcendência
pode ser devidamente aclarado. Antes de tudo, para Heidegger, contrariamente aos
conceitos epistemológico e teológico de transcendência é indispensável afirmar que a
transcendência, no seu sentido mais estrito, não consiste numa suposta relação entre os
campos do interior” e do “exterior”, tal como a relação formulada através da pretensa
necessidade do “sujeito” ultrapassar as barreiras” que o separam do “objeto”. Visando
um melhor aprofundamento, o sentido originário da transcendência não pertence ao
domínio da relação cognitiva entre “sujeito” e “objeto”. Ao mesmo tempo, a
transcendência não deve ser dimensionada a partir do termo que, pura e simplesmente,
excede e, devido a isso, torna-se inacessível, isto é, incondicionável para a própria
cognição, como o que é apresentado no conceito teológico. O que, então, está sendo
exibido por estas articulações?
O curso de 28 procura apresentar o cerne do sentido originário da
transcendência. Em decorrência desta finalidade, a transcendência deve ser considerada
como o que constitui, primordialmente, a “subjetividade do sujeito”
32
. O que isso quer
dizer? Para Heidegger, “o sujeito transcende enquanto sujeito”
33
. Certamente, ele apenas
pode ser definido deste modo devido a sua constituição fundamental. Portanto, ser
sujeito significa transcender. Em outras palavras, o Da-sein não se limita a existir e,
ocasionalmente, realiza o movimento de ultrapassagem em direção a algo tomado como
“exterior”. Muito diferentemente disso, existência significa, radicalmente,
ultrapassagem, ou melhor, transpassamento. Enquanto tal o Da-sein é transpassamento.
32
Op. cit., p. 211.
33
Op. cit., p. 213.
54
A implicação mais direta disso é que a transcendência não tem que ser considerada
como um dos modos nos quais o Da-sein se comporta para com o ente, porém, na
medida em que ela é a sua constituição basilar, toda e qualquer relação com o ente se
encontra fundada nela, ou seja, a transcendência é, mesmo, a condição de possibilidade
do comportamento para com o ente.
Estas articulações permitem perceber que no fenômeno da transcendência o
que é ultrapassado, isto é, transpassado é o ente enquanto tal. Somente neste
transpassamento é que o ente se torna manifesto para o Da-sein. Porque o
transpassamento acontece no Da-sein, constituindo-o mais radicalmente, e através dele
o ente que não possui o caráter de existência é ultrapassado, o próprio ente é revelado
enquanto tal. Devido a isso, a transcendência é o que faz com que o ente ultrapassado
apareça como o que “se opõe” ao Da-sein e possa vir a ser tematizado por ele.
Necessariamente, então, o que o Da-sein ultrapassa não consiste no obstáculo entre ele e
seu suposto “objeto”. Na verdade, o que o Da-sein ultrapassa é o ente no seu todo, é a
inteireza do que se denomina de ente. Isso intenciona enfatizar que o Da-sein ultrapassa
todo e qualquer ente, inclusive a ele mesmo.
Até aqui, a interpretação exibe posições bastante centrais. Em primeiro lugar,
o que está sendo estabelecido é que, no conceito originário de transcendência, o Da-sein
é o transcendente. Como foi assinalado, ele é no seu transpassamento. Por uma outra
perspectiva, o sentido da transcendência afirma que o transpassado, ou seja, o
transcendido é o ente no seu conjunto, o que corresponde, se a expressão é pertinente, à
completude do universo do ente. Dessa maneira, tem-se, até o momento, a clarificação,
ainda que provisória, de dois momentos estruturais do fenômeno da transcendência para
55
a ontologia fundamental do primeiro Heidegger. Pelo que pertence a ele, nota-se, sem
dúvida, que o modo de ser constitutivo do Da-sein é muito particular, uma vez que,
enquanto transcendente, ele transpassa o ente e, concomitantemente, manifesta-o neste
transpassamento. Assim, há, na existência, a detecção de um duplo movimento no qual,
por uma via, o Da-sein se direciona “para além do ente” e, por outra, intensifica a
necessidade de sua vinculação com o próprio ente, na medida em que o manifesta
enquanto tal. Por conseguinte, o que deve ser buscado para o melhor entendimento
desses arranjos?
Para Heidegger, o que necessita ser explicitado no conceito de transcendência é,
precisamente, o “em-direção-a-que” o Da-sein transcende. Dizendo de um outro modo,
com que fim, ou melhor, em vista de que fim o Da-sein realiza o transpassamento.
Seguramente, o “em-vista-de-que” não consiste no ente puro e simples, num ente
especial, assim como não concerne à “completude”, à integralidade do ente. Por
conseguinte, no transpassamento do ente, o Da-sein não está se dirigindo ao próprio
ente, não esintencionando o ente. Em decorrência direta disso, o “em-vista-de-que” o
Da-sein transcende não detém o caráter de ente, não se constitui como o ente. Para
Heidegger, o que não possui a estrutura de ente e para onde ocorre a transcendência,
antes de tudo, deve ser considerado como mundo.
Porque a transcendência constitui o fundamento do Da-sein, ou seja, é o que
mais intimamente pertence a ele, pois é o que lhe possibilita, e porque, nela, o Da-sein é
transpassamento para o mundo, a caracterização, pelo menos inicial, do fenômeno da
transcendência deve ocorrer mediante a expressão “ser-no-mundo”. Desse modo, a
transcendência, no sentido de ser-no-mundo, daqui para diante, deve ser assumida pela
56
análise como “a constituição metafísica fundamental do Da-sein”
34
. Isso pretende
enfatizar que o projeto da ontologia fundamental, tal como formulado no apêndice do
§10, necessita ser intensificado a partir do enraizamento nesta constituição do Da-sein.
Contudo, a caracterização, no curso de 28, do ser-no-mundo como a constituição da
transcendência do Da-sein reproduz, nos seus traços mais marcantes, a de que a
estruturação básica do Da-sein é ser-no-mundo desde, pelo menos, Ser e Tempo? Por
conseguinte, ser-no-mundo, no sentido da transcendência, é o mesmo que ser-no-mundo
enquanto estrutura fundamental do Da-sein? O status e amplitude desta expressão
permanecem inalterados nas duas formulações? Ou será que modificações essenciais
ocorrem?
A resposta a essas perguntas deve ser bastante cautelosa e gradual. Heidegger
afirma que, em Ser e Tempo, a investigação propriamente dita, após a introdução e os
parágrafos iniciais da primeira secção, é iniciada pela tentativa, a partir dos parágrafos
12 e 13, do delineamento da primeira aproximação com a expressão “ser-no-mundo”.
Assim, começa a ser mostrado com maior clareza que o fenômeno “ser-no-mundo”
corresponde, sim, a algo nuclear para a analítica da existência, principalmente porque,
ao longo da investigação, ele aparece continuamente, sempre requerendo uma
elucidação ainda mais essencial. Em decorrência dessa exigência metodológica, a
investigação cada vez mais se concentra, não apenas na descrição básica do fenômeno,
porém, e isso é muito relevante, na articulação de seus momentos estruturantes e na
elaboração deles em conjunto, isto é, visando à formulação de uma unidade consistente
e produtiva.
34
Op. cit., p. 213.
57
Entretanto, na medida em que o avanço da investigação passa a pôr a
temporalidade em primeiro plano, ou seja, como a estrutura originária da existência, a
transcendência surge como algo concebível somente através da temporalidade ekstática.
Desse modo, em Ser e Tempo, a transcendência acompanha lateralmente os passos da
investigação, porém aos poucos ela passa a ser dimensionada como um problema
capital. Conseqüentemente, a análise da angustia, dos problemas acerca da
mundanidade do Da-sein, bem como, tal como enfatiza Heidegger, a interpretação do
conceito de ser-para-a-morte e a do conceito de consciência devem ser situados como
etapas gradativas da elaboração da transcendência, até que ela é assumida como um
problema no §69, como a análise já expôs no início deste capítulo.
Certamente, o que singulariza o empenho conceitual de Ser e Tempo é a
procura do horizonte a partir do qual o questionamento pode vir a ser desenvolvido. Por
essa razão central, por mais que problemas determinantes sejam visualizados e, até
mesmo, delineados minimamente, o que, desde sempre, está moldando a investigação
no que diz respeito ao conceito de ser-no-mundo é, sim, a expressão “ser-em”, uma vez
que apenas a partir dela é que podem ser descritas e, consecutivamente, articuladas as
estruturas que caracterizam o modo de ser do Da-sein. Portanto, em Ser e Tempo,
mesmo quando se afirma que a transcendência progressivamente emerge como um
problema crucial, no fundo, o âmbito em que as questões acerca dela são estabelecidas
permanece, inegavelmente, o do exame do “ser-em”.
Quando Heidegger afirma, no curso de 28, que a transcendência, no sentido de
ser-no-mundo, precisa ser assumida como a constituição metafísica fundamental do Da-
sein o que está em jogo não é mais, pura e simplesmente, a caracterização, sem dúvida
58
indispensável, do modo de ser do Da-sein. Na verdade, o projeto de radicalização e de
universalização da ontologia fundamental conquista, na relação entre ser-no-mundo e
transcendência, o único âmbito em que pode ocorrer o desenvolvimento da problemática
filosófica, ou seja, da problemática do Ser. Por essa razão essencial, a expressão “ser-
no-mundo”, quando aparece no §11 do curso de 28, evidencia, sim, o alcance
metodológico do domínio que permite, daqui para diante, uma real intensificação dos
propósitos do primeiro Heidegger.
O aclaramento do núcleo da relação entre ser-no-mundo e transcendência
depende, como foi firmado, da conceituação do fenômeno do mundo. Na medida em
que o Da-sein transcende para o mundo, este fenômeno, isto é, o próprio mundo deve
ser tomado, antes de tudo, como o que detém o caráter de totalidade. Porém, é
exatamente aqui que a análise necessita ser bem conduzida. O que já está sendo
assumido é que somente devido à presença deste caráter de totalidade, no fenômeno do
mundo, é que o Da-sein manifesta o ente enquanto tal, ou seja, no seu conjunto. A
problematização concreta da manifestação do ente, nuclear para a ontologia, depende do
entendimento do elemento constitutivo mais específico do mundo: a totalidade. Para
Heidegger, o que deve ser procurado não corresponde apenas aos conteúdos efetivos da
totalidade do mundo. Muito mais relevante e premente é a busca do modo de ser desta
totalidade e, por este norteamento, o do modo de ser peculiar da conexão entre o Da-
sein e a totalidade.
O adensamento metodológico do problema da transcendência, no interior da
problemática do Ser, requer, em primeiro lugar, a percepção de que o domínio em que a
análise se encontra é o da atividade primordial do Da-sein. Em outras palavras,
59
transcender é a ação originaria deste ente, a sua proto-ação. Isso pretende assinalar que,
no curso de 28, a moldura pela qual as questões acima determinadas deverão ser
elaboradas consiste na da ativação do Da-sein. Assim, o entendimento do caráter da
totalidade do mundo depende da previa explicitação da ativação do Da-sein em e
através de si mesmo. Para Heidegger, a caracterização transcendental do mundo
assegura a sua pertinência pela aproximação adequada com o conceito ontológico de
ação.
Do ponto de vista metodológico, a positividade do conceito de ação consiste no
fato de que o fenômeno do mundo se organiza enquanto “em-vista-de”. Em decorrência
direta disso, “mundo, o para onde o Da-sein transcende, é definido primeiramente pelo
em-vista-de”
35
. Neste sentido, o conceito de mundo exibe algo como a motivação, isto é,
a finalidade. No entanto, a definição do mundo enquanto “em-vista-de” põe,
inequivocamente, a análise numa região bastante obscura, pelo menos até aqui. Mesmo
que de uma maneira insuficiente, por ser definível enquanto “em-vista-de”, a
transcendência, ou melhor, o ser-no-mundo traz consigo, como seu possibilitador mais
interno, o querer. A motivação radica no querer e este, ontologicamente, funda-se na
liberdade (Freiheit). Portanto, apenas na liberdade a finalidade, o “em-vista-de” e,
consecutivamente, somente nele o mundo pode ocorrer.
O curso de 28 mostra que a estrutura unitária da transcendência é o ser-no-
mundo e, mais diretamente, o fenômeno do mundo. Todavia, o desenvolvimento
conceitual deste fenômeno possui como o seu determinante o problema da liberdade. É
indispensável acentuar, portanto, que a real clarificação do mundo se torna possível
35
Op. cit., p. 237.
60
no e pelo problema da liberdade. Dessa maneira, se a unidade da transcendência é o
mundo, o mais originário nele é a liberdade. Para Heidegger, a liberdade é a estrutura
originária da transcendência, isto é, do Da-sein na ação de e a partir de si. A
conseqüência mais imediata para análise, ainda nos limites do curso de 28, é que o
problema da transcendência, no aprofundamento metodológico de seus elementos,
expõe a conexão fundante entre liberdade e transcendência. Nesta relação, a
transcendentalidade do Da-sein, no seu núcleo, passa a ser posta em perspectiva, que
apenas na liberdade o ente pode transcender. O problema da transcendência, então, é o
problema da liberdade. O que intenciona assinalar a sugestiva “identificação” destes
problemas?
2 DA LIBERDADE AO FUNDAMENTO
No curso de 28, a afirmação de que existe, no fundo, uma identificação entre
liberdade e transcendência põe a intensificação do projeto da ontologia fundamental
num domínio bastante fértil, caso ele seja tomado na sua real abrangência. Inicialmente,
o que está sendo indicado é que a constituição metafísica do Da-sein, ou seja, o ser-no-
mundo decorre da liberdade. Neste sentido, somente onde liberdade pode ocorrer
algo enquanto “em-vista-de”, no qual, por sua vez, está radicado o que deve ser
elucidado ontologicamente como mundo. Visando uma síntese possível até aqui, a
liberdade provê a transcendência de sua possibilidade mais interna. Ela consiste, sem
dúvida, no elemento ativador indispensável da própria transcendência. Assim, o Da-
sein, precisamente porque é livre, precisa ser definido enquanto transcendente, ou
melhor, enquanto o que transcende a si mesmo se dirigindo ao mundo, sendo para o
mundo.
Por enquanto, as imbricações entre estes constitutivos da existência ainda se
mantêm muito obscuras. Em decorrência desta situação, o que necessita ser proposto
metodologicamente? Heidegger afirma que o que importa, antes de tudo, é o
aclaramento da relação entre liberdade e ser-no-mundo no e através do caráter primal do
fenômeno do mundo: o em-vista-de. Apenas por esta orientação o núcleo da conexão
62
entre transcendência e liberdade pode vir a ser estabelecido. Certamente, até aqui a
expressão “em-vista-de” foi considerada como uma determinação formal do Da-sein.
Por ela o que se apreende é que este ente existe com um “propósito”, existe se
conduzindo para “algo”. Porém, a aproximação metodológica com a expressão “em-
vista-de” exige um entendimento, mesmo que provisório, da “finalidade” para a qual o
Da-sein existe. O que isso quer dizer?
Sem dúvida, a elucidação da “finalidade”, isto é, do em-direção-a-que o Da-sein
transcende deve ser dimensionado adequadamente. Para que esta clarificação possa se
dar é imprescindível a remoção de uma dificuldade. Ela consiste na percepção do
caráter específico da questão em jogo. Em nenhum de seus momentos estruturantes, a
procura pela “finalidade” da existência deve ser assumida como a de um objetivo pré-
delineado e, devido a isso, já decidido e definido. Em outros termos, o em-vista-de”
não pode ser caracterizado como algo que é posto diante do Da-sein, cabendo a ele,
portanto, comportar-se, de uma forma ou de outra, frente a essa presumida objetividade.
Diferentemente disso, Heidegger assinala que a questão rejeita, desde o seu fundamento,
toda e qualquer atribuição objetivante. O correto dimensionamento da questão do “em-
vista-de” requer, sim, a concentração no que, efetivamente, questiona e não no que é
questionado na própria questão. Neste sentido, a aproximação precisa ser alcançada
apenas por intermédio da visualização do modo de ser do que questiona, quando põe a
questão em e a partir de si na sua real radicalidade.
Isso intenciona enfatizar que, na metafísica do Da-sein, o que questiona es
inteiramente envolvido na questão. Seguramente, em conformidade a sua estruturação, o
Da-sein assume o “em-vista-de” que o caracteriza de maneira definitiva, na medida em
63
que se põe no movimento de elaboração conceitual da própria questão. Em outras
palavras, a resposta à “finalidade” da existência exige, sempre e cada vez mais, o que é
comum no primeiro Heidegger, o questionamento intensivo do que se constitui na e pela
expressão em-vista-de”, uma vez que ela expõe, como foi mencionado, a relação
mais intrínseca entre liberdade e transcendência. Dessa maneira, o questionamento
metafísico, no âmbito da ontologia fundamental, singulariza-se por ser uma
investigação “em busca de algo”, e nunca uma investigação “sobre algo”, pois nela, na
sua centralidade, o que está em jogo é, mesmo, a inclusão continuamente mais radical
do ente que questiona.
No curso de 28, estes delineamentos propiciam o ingresso num território
bastante produtivo. Ele diz respeito à percepção de que o Da-sein é determinado pelo
“em-vista-de”. O que isso pretende exibir? Enquanto tal, o Da-sein se caracteriza por ser
o ente no qual o que importa é o seu ser, ou seja, o que nele acontece depende de uma
relação determinativa com o seu ser. Em virtude deste caráter definidor, o Da-sein, de
um modo muito particular, deve ser entendido como o ente que existe em vista do seu
próprio ser. É pertinente dizer, mesmo que de maneira provisória, que o Da-sein ocorre
em-vista-de-si-mesmo, isto é, que a “finalidade” do Da-sein concerne a sua
possibilidade de ser. Primeiramente, o “em-vista-de” é um em-vista-de-si-mesmo. Para
Heidegger, a proposição ontológica “o em-vista-de é um em-vista-de-si” supre, de um
modo inigualável, o imperativo do encontro de um solo sobre o qual a metafísica do Da-
sein pode ser elaborada. Em outros termos, com a determinação do “em-vista-de”
enquanto um em-vista-de-si, o que passa a ter primazia é a explicitação conceitual da
relação que o Da-sein mantém com o seu ser. Qual, então, a efetiva estatura desta
articulação?
64
Seguramente, este entendimento impõe, no curso de 28, a localização da análise
num outro nível. O status ontológico da expressão “em-vista-de-si” corresponde ao do
elemento através do qual a analítica do Da-sein, no âmbito da transcendência, deve ser
promovida. Assim, o que está sendo firmado, de uma vez por todas, é a vinculação
direta entre o caráter “em-vista-de-si” e o problema da transcendência, mediante o
fenômeno da liberdade. Para Heidegger, a conexão destes traços constitutivos diz
respeito, antes de tudo, à descrição “ontológico-metafísica da egoidade do Da-sein
enquanto tal”
36
. Sugestivamente, com o conceito de egoidade, sempre no interior do
problema da liberdade, o que se procura é o estreitamento máximo do nexo entre a
possibilidade de si, centralizada no “em-vista-de”, e a transcendência. Pertencendo a
ela, a egoidade se torna a condição possibilitadora da relação que o Da-sein mantém,
precursivamente, com o seu ser. Por este dimensionamento é aberto um horizonte em
que já é prenunciada a tematização da relação entre a compreensão do Ser e a
manifestação do ente, ou seja, a explicitação da diferença ontológica. Por ser
metodologicamente identificável à egoidade, a liberdade garante a definição do Da-sein
enquanto mesmidade (Selbstheit). Isso significa assinalar que o ser-a-si-mesmo está
fundamentado na liberdade, no caráter de ser “em-vista-de” da transcendência.
Estes arranjos, ainda pouco claros, buscam operar um distanciamento crucial
frente às problematizações do eu e, mais importante, da unidade estrutural do eu, ou
melhor, da subjetividade que o são compostas a partir dos organizadores
mencionados. Em primeiro lugar, na proposição ontológica “o Da-sein é, sempre,
essencialmente seu” o que se evidencia, decisivamente, é que a análise não está voltada
36
HEIDEGGER, Martin. Metaphysische Anfangsgründe der Logik. Gesamtausgabe Band 26. Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1978-1990, p. 240.
65
para a elucidação fáctica, isto é, ôntica do modo de ser a si mesmo do Da-sein. Na
verdade, o acento recai no que corresponde à essência da mesmidade do Da-sein. Por
conseguinte, se o “eu” é tomado como o tema da interpretação ontológica, então o que
está sendo exibido é, unicamente, a sua estrutura metafísica. A egoidade consiste,
fundamentalmente, nesta estrutura. Em virtude disso, para a ontologia o que precisa ser
explorado é o território da estruturação da mesmidade. Por conter estes traços, a
egoidade, tal como ressalta Heidegger, necessita ser definida de uma maneira bem
nuançada.
O curso de 28 explicita o conceito de eu de forma bastante reveladora. A
ontologia fundamental, enquanto analítica do Da-sein, aproxima-se do conceito de eu,
isto é, da egoidade do próprio Da-sein somente através da afirmação da peculiar
neutralidade deste ente. Pelo termo neutralidade, o que se pretende alcançar, em
primeiro lugar, é a certeza de que a análise se dá num domínio ontologicamente anterior
a toda e qualquer concreção fáctica. A precedência frente à concretude ôntica traz
consigo o indício, por assim dizer, “da positividade primal e da potência da essência”
37
.
Neste sentido, ela não pretende apontar uma abstração metodológica, uma
universalidade vazia. Ao contrário, pelo termo neutralidade o que está em questão, na
metafísica do Da-sein, é precisamente a origem na sua potencialidade mais interna, a
qual, sem dúvida, limita a partir de si própria toda a concreção ôntica do homem.
Isso significa dizer que o elemento neutral corresponde, basilarmente, ao que
Heidegger denomina de fonte primeira que emerge da existência e que a torna possível.
Em virtude disso, o Da-sein, na e pela sua neutralidade, jamais é o que ônticamente
37
Op. cit., p. 172.
66
ocorre, na medida em que sempre o que acontece é uma efetividade fáctica. Pondo de
um outro modo, a análise do Da-sein tematiza o ente que existe, porém o que está sendo
visado, e isso é nuclear, não concerne ao lugar da possibilitação ôntica do que existe. No
fundo, o constructo Da-sein apenas é dimensionável na metafísica. O elemento neutral
do Da-sein, portanto, mostra que o mais essencial da constituição deste ente é o que
unicamente importa.
Para Heidegger, a egoidade do Da-sein, devido ao seu caráter neutral não tem
como ser confundida com uma egocentricidade individual, ou seja, com um
restringimento ôntico ao indivíduo. Toda redução ao indivíduo não alcança,
minimamente, a exigência contida na conceituação da egoidade. Por conseguinte, a
noção de indivíduo não se torna, sob nenhum de seus aspectos, o centro propulsor da
problematização ontológica. Entretanto, a aproximação realizada pela neutralidade, tal
como exposta, deixa entrever que o Da-sein possui, também, um caráter de
isolamento. Assim como o que se deu com o caráter neutral, o isolamento do Da-sein
necessita ser esclarecido ontologicamente.
Mesmo que de modo sintético, é imprescindível dizer que o isolamento
metafísico do Da-sein, na definição da egoidade, diz respeito ao cerne de sua
multiplicidade determinativa. Enquanto possibilitação original, o Da-sein, desde
sempre, comporta-se para com o ente em seu conjunto de uma maneira variada. Como
já foi mencionado no capítulo anterior, o Da-sein se relaciona com o ente na unidade co-
originária do ser-junto-a, do ser-com e do ser-a-si-mesmo. Em decorrência disso, a
manifestação do ente, fundada na compreensão do Ser, concentra-se intensivamente
nele. O isolamento do Da-sein exprime o envolvimento, devido a sua amplitude
67
determinativa, com a radicalização do questionamento do Ser, isto é, com a própria
ontologia.
Na medida que a egoidade constitui a possibilidade mais interna da mesmidade,
a elucidação inicial do caráter neutral e isolacional do Da-sein se tornam bastante
fecundos. Mediante estes traços o que se atinge é a clareza de que a mesmidade pertence
ao modo de ser do Da-sein. Por este norteamento, o que se torna, a partir daqui, o lugar
privilegiado da análise corresponde ao núcleo da relação entre o conceito de mesmidade
e o constitutivo “em-vista-de”. Como aclarar esta articulação? A unidade estruturante do
ser-a-si-mesmo reside no em-vista-de”. Fundamentalmente, então, ser-a-si-mesmo
significa ser-em-vista-de-si. Assim, o constitutivo “em-vista-de” assegura o
pertencimento da mesmidade ao modo de ser mais essencial do Da-sein. Em outras
palavras, existir enquanto ser-a-si-mesmo requer, indispensavelmente, um dirigir-se a si.
A determinação mais própria da mesmidade do Da-sein traz como conseqüência
mais direta que a constituição metafísica deste ente escondicionada pelo “em-vista-
de”. Precisamente, ser-em-vista-de-si-mesmo compõe de maneira mais imediata o ser
do Da-sein. No fundo, existir significa ser-em-direção-a-si-próprio. Este aclaramento
permite a afirmação de que o “em-vista-de” consiste no comportamento fundante do
Da-sein para com o ente em seu conjunto. Por ser em-direção-a-si é que o Da-sein, em
sentido estrito, relaciona-se com o ente na sua integralidade. Em conformidade a esta
posição, a multiplicidade determinativa encontrável neste ente radica, sem dúvida, no
que garante a unidade da mesmidade. O que isso quer revelar para análise?
O aprofundamento da explicitação da mesmidade do Da-sein mediante o “em-
vista-de” traz uma implicação capital. Para Heidegger, o ente que é em-vista-de-si-
68
mesmo afirma, desde o cerne da liberdade, ser a origem irremissível de sua
possibilidade enquanto tal. Somente a partir da liberdade, cujo caráter é o “em-vista-
de”, o Da-sein pode, na medida em que transcende, compreender o Ser e, ao mesmo
tempo, comportar-se para com o ente em seu conjunto. Dessa maneira, a intensificação
do problema da liberdade propicia o entendimento de que o Da-sein, ao transcender,
transpassa deliberadamente o ente. Neste sentido, o que já se torna claro é que a
possibilitação de si do Da-sein engloba um traço marcante que é a “escolha”. Em outros
termos, o Da-sein, enquanto possibilidade, escolhe livremente ultrapassar o ente em seu
conjunto para manifestá-lo.
No curso de 28, estes posicionamentos necessitam ser devidamente esclarecidos,
uma vez que o objetivo da análise corresponde à procura pelo fundamento da ontologia.
No fundo, o que na livre escolha de si do Da-sein é o seu completo
autocomprometimento, isto é, o Da-sein assume a si próprio na e pela possibilidade
mais extrema que desde que existe ele já é. Por esta conceituação ontológica, o
fenômeno da escolha mais autentica de si, alicerçado no “em-vista-de”, corresponde à
mesmidade do Da-sein no seu ximo enraizamento. Nele, o que acontece é o
movimento de transcendentalização do ente em e a partir de si, e com todas as suas
determinações.
Para Heidegger, o que deve ser evidenciado, pelo que a análise atinge, é que,
enquanto constitutivo central da mesmidade do Da-sein, o em-vista-de-si-próprio
possui, inequivocamente, um escopo universal. Em outros termos, o Da-sein transcende
para este constitutivo. Ele é, na verdade, o transcendental. Explicitando afirmações
anteriores, a análise deve propiciar o entendimento mais pormenorizado deste
69
constitutivo, pois na medida em que ele carrega consigo a estrutura do mundo, apenas
através dele é possível o alcance do fenômeno da transcendência enquanto ser-no-
mundo.
Heidegger enfatiza que o “em-vista-de” se ancora no querer. Mais do que isso, a
limitação mais extrema do “em-vista-de” consiste em ser ele algo no e para o querer.
Este delineamento visa, antes de qualquer coisa, conduzir a análise para o domínio mais
interno do querer. Certamente, este domínio é identificável à liberdade. Nela é que algo
como o “em-vista-de” é prenunciado. Portanto, a exposição ontológica do “em-vista-de”
reside, inegavelmente, na essência da liberdade. Melhor dizendo, “a liberdade, nela
mesma, é a origem do em-vista-de”
38
. Contudo, um aspecto necessita ser
apropriadamente acentuado. Para Heidegger, a liberdade não é a origem causal do “em-
vista-de”. Não há a liberdade para que consecutivamente ocorra o que estrutura o
mundo. Muito diferentemente disso, a liberdade, fundando o em-vista-de”, forma com
ele uma unidade bastante especial.
Para a radicalização da ontologia fundamental, o entendimento, pelo menos
inicial, da unidade entre a liberdade e o constitutivo em-vista-de” requer o
posicionamento definitivo do problema da transcendência no domínio da liberdade.
Neste sentido, a procura pela essência da transcendência, tal como tangenciada no
capítulo anterior, apenas pode se dar no âmbito da própria liberdade. O que isso
pretende afirmar? Enquanto estrutura da transcendência, o mundo consiste na totalidade
que o Da-sein dá a si mesmo na compreensão. Isso significa dizer que o Da-sein é o ente
que compreende o mundo. No entanto, o que possibilita mais agudamente a
38
Op. cit., p. 247.
70
compreensão do mundo é o fato de que a liberdade se dá à compreensão. Desse modo, a
liberdade constitui a compreensão primordial do Da-sein. Em outras palavras, o Da-sein
compreende o mundo na e através da liberdade.
Enquanto compreensão primordial, a liberdade assegura a projeção do que ela
mesma torna possível, isto é, a projeção do “em-vista-de”. Para Heidegger, é
precisamente nesta projeção que o Da-sein assume, originariamente, o
comprometimento consigo. Por este encaminhamento, a liberdade faz com que o Da-
sein, no mais fundamental de sua essência, torne-se comprometido consigo, ou seja,
afirme este comprometimento como a sua possibilidade mais irrecusável. Mediante a
projeção do “em-vista-de”, a totalidade do comprometimento deve ser entendida como o
mundo. Assim, a compreensão do mundo no Da-sein é, na verdade, a compreensão,
radicada no “em-vista-de”, de seu comprometimento mais original consigo,
possibilitado pela liberdade.
Para a análise, o que estas articulações centrais trazem, como primeira
conseqüência, é que somente pelo comprometimento consigo que o Da-sein se põe,
desde sempre, enquanto o que se comporta para com o ente em seu conjunto. Portanto,
o mais nuclear da relação, no Da-sein, com o ente no seu todo está, sim, ancorado
exatamente neste prévio comprometimento. Deste modo, a mesmidade do Da-sein deve
ser considerada, daqui para diante, como uma livre assunção compromissada.
Entretanto, o que precisa ser aclarado acerca do mundo? Possibilitado pela liberdade o
Da-sein é projeção de mundo. Isso pretende mostrar que o Da-sein não é, pura e
simplesmente, mundo. Não há, por conseguinte, uma identificação ontológica entre Da-
sein e mundo. No fundo, a unidade que eles formam é bem mais complexa e nuançada.
71
Quando se afirma que o Da-sein é a sua projeção de mundo, o acento está
recaindo sobre a projeção. Para Heidegger, o projetar é possível porque nele o Da-
sein se projeta de uma maneira em que ele se mantém, unicamente, na e pela projeção.
Porque o Da-sein se sustenta a si próprio na integralidade da projeção é que se deve
admitir que há, neste ente, um comprometimento livre consigo. Em vista disso, a
conexão entre projeção e liberdade e, consecutivamente, entre mundo e liberdade deve
ser melhor dimensionada. Para que o Da-sein possa se sustentar na inteireza da projeção
na qual o mundo aparece, a liberdade tem que ser antecipada. Portanto, ela corresponde
à condição de possibilidade da projeção.
Seguramente, a projeção do mundo cumpre um papel crucial na definição do
problema da liberdade. É correto dizer que a própria liberdade sustenta a projeção nela e
contra ela mesma. Enquanto a essência da transcendência, a liberdade traz, no fenômeno
do mundo, o contrariamento ineliminável para a sua autoconservação, isto é, para a
potencialização mais radical do Da-sein. Neste sentido, o mundo, o em-direção-a-que da
transcendência, é o livre contrariamento do Da-sein em-vista-de-si-mesmo. Assim, o
ser-no-mundo o é nada mais do que a liberdade, porém, não mais entendida como
espontaneidade, ou seja, como auto-originação, de acordo com a conceituação causal
estabelecida por Kant.
Por intermédio das articulações propostas, o que importa ser destacado é que o
mundo, enquanto transcendência, possui o caráter de transpassamento do ente que nele
se apresenta. Fundamentalmente, o mundo, enquanto totalidade das possibilidades mais
intrínsecas do ente que transcende, transpassa todo e qualquer ente. Em virtude disso, o
72
Da-sein é em si mesmo excessivo, isto é, deve ser definido a partir de sua
insaciabilidade primal pelo ente”
39
. O que isso quer dizer?
Próprio do fenômeno do mundo, o transpassamento do ente se identifica ao
“estar-além-de”. Em outros termos, o mundo enquanto tal é excessivo. Na verdade, o
que distingue o Da-sein dos demais entes é o fato, incontornável, de ele se radicar nesta
excessividade. No que diz respeito, até aqui, à complexa relação entre mundo e
liberdade, cabe afirmar, mesmo que de modo insuficiente, que o mundo consiste, sim,
no próprio contrariamento automantenedor do constitutivo “em-vista-de”. Apenas na
medida em que o Da-sein transcende a si mesmo, apresentando-se livremente no em-
vista-de”, ocorre a ocasião, do ponto de vista ontológico, para que os entes se
manifestem enquanto tais. O que isso pretende indicar?
Certamente, um aspecto central da própria organização do Da-sein. É
indispensável que este ente já esteja aberto para si, na e a partir da liberdade, para que o
ente no seu todo possa emergir. Dessa forma, é por se constituir enquanto ser-no-
mundo, isto é, enquanto transcendência que o Da-sein deve ser considerado,
metafisicamente, como a possibilidade indepassável para que os entes ingressem no
mundo. Por conseguinte, apenas por intermédio do projeto de radicalização da ontologia
fundamental, do modo de ser questionativo do Da-sein, é que os “entes ganham a
oportunidade para entrar no mundo”
40
. Assim, o ingresso no mundo (Welteigang)
concentra, antes de mais nada, o momento relevante do caráter do ser-no-mundo, como
39
Op. cit., p. 249.
40
Op. cit., p. 250.
73
também se torna o conceito central para a compreensão do como os entes se
manifestam.
Em decorrência direta dessas posições, o ingresso no mundo necessita ser
visualizado com mais detalhes. Tal como Heidegger enfatiza “os entes não seriam
encontrados se não houvesse a ocasião para a entrada no mundo”
41
. A importância dessa
afirmação reside no direcionamento do problema para o que determina o ingresso. Neste
sentido, a entrada no mundo não é, por exemplo, um processo específico do ente no
qual, nele, algo ocorre e propicia a sua chegada a um mundo. Distintamente disso, o
ingresso é algo que acontece com o ente. Por sua vez, o acontecimento depende
intimamente do que se constitui enquanto transcendência. O ingresso no mundo,
portanto, é um acontecimento que se dá, sem dúvida, no âmbito da transcendência, ou
seja, no da constituição metafísica do Da-sein.
O ingresso no mundo é uma ocorrência do ser-no-mundo. Isso significa dizer
que é a existência que provê a oportunidade para que os entes apareçam. Por
dependerem estruturalmente do mundo, os entes que nele surgem precisam ser tomados
como entes no interior de um mundo, isto é, como entes intramundanos. Dessa maneira,
a intramundanidade passa a ser vista como o traço definidor do ente que não possui o
caráter transcendental do Da-sein. Em virtude disso, este traço o deve ser confundido
como o que pertence à própria essência do ente. Para Heidegger, a intramundanidade
diz respeito, primordialmente, à condição transcendental da emergência do ente.
Visando uma melhor elucidação, no cerne da intramundanidade está presente, sim, o
41
Op. cit., p. 251.
74
possibilitador, no Da-sein, de toda e qualquer experiência com o ente, de todo e
qualquer comportamento compreensivo para com o ente enquanto tal.
No curso de 28 é afirmado, de modo categórico, que é na elaboração ontológica
da mundanidade do Da-sein que o conceito de intramundanidade deve ser inscrito. Na
medida em que o mundo é o conceito transcendental por excelência, nitidamente,
portanto, existe a vinculação da intramundanidade ao desenvolvimento do conceito de
mundo, isto é, ao problema da transcendência. Então, o que se alcança do conceito de
mundo através deste norteamento? Como foi firmado, a intramundanidade pressupõe
o mundo. Assim, a emergência do ente sempre advém da “abertura” prévia do mundo.
Por sua vez, esta abertura pertence, transcendentalmente, ao Da-sein. Em virtude disso,
será que o conceito de mundo, radicado na existência, detém um caráter “subjetivo”?
Com este encaminhamento Heidegger intenciona acentuar um traço do conceito
de mundo. Pelo que se tem até aqui, mundo enquanto o Da-sein existe. Em outras
palavras, a emergência dos entes só ocorre na existência. É por isso, precisamente, que a
pergunta acerca da possível “subjetividade” do mundo ganha uma envergadura nada
desprezível. O Da-sein revela uma constituição subjetiva? Na verdade, a adequada
organização dos elementos presentes até aqui propiciam, no mais íntimo da conexão
entre mundo e intramundanidade, a “transformação fundamental do conceito de
subjetividade e do conceito de subjetivo”
42
. Por quê?
O estreitamento da relação entre ser-no-mundo e intramundanidade torna
perceptível que na emergência do ente algo já está sendo antecipado. Por conseguinte, o
42
Op. cit., p. 252.
75
ingresso no mundo decorre de um condicionamento muito peculiar. Este
condicionamento transcendental concerne, de um modo mais direto, ao caráter do
mundo. Por essa razão, é adequado dizer, por exemplo, que o mundo possui um caráter
entitativo? O mundo é ente? A resposta é inteiramente negativa. Isso significa assinalar,
antes de tudo, que o Da-sein, ao transcender para o mundo, não transcende para o ente.
Entretanto, é exatamente por não transcender para o ente que a manifestação do mesmo
se torna possível. Nesta medida, se for cabível um cotejo com o ente intramundano, o
caráter transcendental do mundo se aproxima sugestivamente do não-ente.
O mundo é o nada? Para a ontologia fundamental, ainda que de maneira
preliminar, o ingresso do ente pressupõe um o-ente. O mundo, portanto, corresponde
ao “nada” do ente. É em direção a este “nada” que o Da-sein transcende. Dessa forma, o
mundo, fundamentalmente, precisa ser caracterizado como o não-ente. Todavia, mesmo
que esta definição seja negativa, o que ela pretende anunciar é a impossibilidade da
elaboração do conceito de mundo e, consecutivamente, do problema da transcendência,
na liberdade, a partir da permanência num domínio entitativo, ou seja, ôntico. Em outros
termos, a estruturação do ôntico, através da intramundanidade, exige o estabelecimento
prévio dos limites mais singulares da transcendentalidade do Da-sein. É precisamente
neste nível que deverá ocorrer, dentre outras coisas, o esclarecimento ontológico do
conceito de subjetividade e do que deriva dele.
No curso de 28, a percepção de que unicamente no âmbito da intensificação do
problema da transcendência é que a metafísica do Da-sein pode assegurar o seu
fundamento põe, no horizonte da relação entre liberdade e mundo, o tempo, ou melhor,
a temporalidade como a possibilidade mais intrínseca da própria transcendência, isto é,
76
do ser-no-mundo. Por este direcionamento, a procura passa a ser a da conceituação do
mundo, no interior da projeção original que é a liberdade, na e através da temporalidade.
Como, então, o §12 do curso de 28 inicia as suas articulações?
Na medida em que é livre, o Da-sein se projeta no em-vista-de-si-mesmo,
enquanto o que reúne essencialmente a sua possibilidade de ser. Suspendendo diante de
si o “em-vista-de” e, mais decisivo, existindo nesta suspensão, o Da-sein se aplica, no
mais central de seu modo de ser, a sua possibilitação. A aplicação do Da-sein a si
próprio está enraizada, desde sempre, na liberdade. Em vista disso, o que foi aaqui
denominado de liberdade, ser-no-mundo e transcendência necessita ser visualizado mais
minuciosamente. O que importa ser firmado, em primeiro lugar, é que a liberdade
transcende enquanto tal. Nestes termos, o transpassamento do ente se origina na
liberdade e, por isso, o mais nuclear da própria manifestação do ente também se
concentra nela. Todavia como foi aclarado anteriormente, no seu movimento de
transcendentalização o Da-sein está sempre além do ente. Sem dúvida, o mundo
corresponde a este elemento, ou melhor, a esta estrutura totalizante ainda o
conceituada. Dessa maneira, a tendência do Da-sein de estar além do ente recebe a sua
apropriada limitação no fenômeno do mundo. Portanto, o Da-sein se mantém
comprometido consigo mesmo através do mundo e é, precisamente, devido a esta forma
de comprometimento que ele pode se relacionar com o ente. Para Heidegger, o
encaminhamento da clarificação do fenômeno da liberdade, por intermédio da
conceituação do mundo, requer, sim, a vinculação da temporalidade ao fenômeno básico
da transcendência. Como definir, então, a maneira de acesso à temporalidade?
77
Na ontologia fundamental, a análise do tempo, tanto na segunda parte do curso
de 27 quanto em Ser e Tempo, exibe traços bastante determinantes. Antes de tudo, a
essência do tempo possui um caráter ekstático. Intimamente ligado a este caráter, o
tempo possui uma estrutura horizontal. Devido a estes dois traços definidores, o tempo
temporaliza a si próprio, sendo a temporalização o fenômeno primordial do movimento.
Por essa tríplice determinação, o tempo não está subordinado à sensibilidade, assim
como não está ligado à razão, ou melhor, à consciência. Porque o tempo constitui a
“continuidade metafísica do Da-sein”
43
ele não tem como ser explicitado mediante um
esquema teórico. A temporalidade do Da-sein é, para Heidegger, anterior a toda e
qualquer teorização, e se dá num nível inteiramente distinto.
A apresentação sucinta das determinações ontológicas do tempo exige o
estabelecimento de um condutor pelo qual a vinculação da temporalidade ao mundo
pode ser obtida. Na sua temporalização, a temporalidade corresponde à unificação da
unidade do futuro, presente e passado. Estes três fenômenos básicos consistem, como
exposto no primeiro capítulo, às ekstases da temporalidade. Por esta razão direta, a
temporalidade se constitui enquanto o movimento” de unificação de si na e a partir das
unidades das ekstases, ou melhor, através da mútua variabilidade delas. O que importa
ser acentuado é que a unidade das ekstases é, primordialmente, ekstática. Para análise
isso traz como conseqüência que o modo de ser das ekstases se funda apenas na
temporalização.
43
Op. cit., p. 256.
78
Visando um melhor aclaramento, a temporalização “é a oscilação livre do todo
da temporalidade”
44
. Assim, na sua intrínseca mobilidade o tempo se expande e se
constrange. Na medida em que a essência ontológica do tempo se enraíza na unidade
oscilável das ekstases, o que unifica, por sua vez, esta unidade bastante peculiar ocupa
um lugar capital. Para Heidegger, o horizonte, ou melhor, o caráter horizontal pertence
ao núcleo da temporalidade. O que, então, deve ser entendido como horizonte? Para a
ontologia fundamental, o horizonte deve ser compreendido, pura e simplesmente, como
o que molda, como a moldagem. Neste sentido, ele é, na temporalidade, o limite por
excelência, isto é, o seu máximo propiciador. Em virtude de seu caráter limitativo, o
horizonte se manifesta através das ekstases. Desse modo, em conformidade à unidade
das ekstases em suas temporalizações, a unidade concernente ao horizonte é uma
unidade originária, a qual deve ser denominada de esquema.
Na verdade, a unidade horizontal da temporalidade nada mais é do que a
condição temporal da possibilidade do mundo e do pertencimento essencial do mundo
ao fenômeno da transcendência. Em vista disso, o que assegura a própria possibilidade
da transcendência é a unidade ekstática fundada no horizonte. Enquanto tal, a oscilação
entre as ekstases é identificável, sim, ao transpassamento do ente a partir do qual o
ingresso no mundo é propiciado. A mundanidade do mundo radica na temporalização,
assim como deve ser acentuado que a temporalidade horizontal, no cerne da oscilação
das ekstases, corresponde à mundanização. Portanto, o ingresso no mundo somente
acontece no interior da temporalização ekstática. O ingresso no mundo está baseado na
temporalização da temporalidade.
44
Op. cit., p. 268.
79
De um modo mais essencial, o tempo é, mesmo, uma abertura de si e uma
concomitante expansão enquanto mundo. Por essa razão, o que necessita ser explicitado,
agora, é o sentido da afirmação de que o mundo é “nada”. Se na problematização da
transcendência, o mundo, tal como está sendo continuamente ratificado, diz respeito a
algo essencial, a sua real caracterização se concentra, sem dúvida, no entendimento
desta afirmação. Assim, de que maneira o mundo é “nada”? Em primeiro lugar, se o
mundo é “nada”, ele não é, simplesmente, um nada negativo, ou seja, a negação abstrata
e vazia de algo.
Para Heidegger, o “nada” não está ligado a determinação expressa do ente.
Diferentemente disso, na afirmação “o mundo é nada” o que está sendo indicado, no
termo nada”, é o caráter de acontecimento do mundo. O mundo é “nada”, ou seja, o
mundo é acontecimento. Dessa maneira, o “nada” assinala um traço definidor do
mundo. Enquanto tal ele não é ente, mas, sim, um acontecer que se dá (es gibt). Por sua
vez, em conformidade ao que já foi estabelecido, o acontecimento é identificável,
certamente, à temporalização da temporalidade. O que isso quer dizer?
O mundo é o nada, ou melhor, é o acontecimento no qual a temporalidade se
temporaliza originariamente. Apenas no mundo a temporalidade emerge em e a partir de
sua temporalização. Por este norteamento, o mundo deve ser considerado a ocorrência
que assegura a unidade da ekstases na unidade primordial do horizonte.
Inequivocamente, a centralidade do escopo ekstático-horizontal está enraizada no
mundo. Na verdade, ele é o nada originário.
No curso de 28, as articulações precedentes propiciam um acesso bem mais
consistente aos limites da metafísica do Da-sein. Na procura pela interpenetração do
80
mundo e da temporalidade, o que deve ser enfatizado é que o tempo se temporaliza em
direção ao futuro. Isso significa afirmar que o todo da temporalidade ekstática e, mais
importante, a unidade original do horizonte são determinados em vista do futuro. Para a
ontologia fundamental, estas afirmações permitem firmar, decisivamente, que o mundo,
fundado no caráter ekstático-horizontal do tempo, temporaliza-se no “em-vista-de”. De
acordo com o que foi explicitado anteriormente, o “em-vista-de”, caráter primário do
mundo, fundamenta-se na liberdade, isto é, no ser projetivo em busca de si mesmo.
Assim, enquanto em-vista-de-si-mesmo, o Da-sein possui a possibilidade mais interna
do comprometimento consigo na temporalização determinada pelo futuro. Dizendo de
um outro modo, o Da-sein, ser-no-mundo, tem o seu movimento de constituição
precursionado pelo futuro.
Seguramente, o que se pretende exibir com estas posições é que apenas a
elaboração mais radical da temporalidade ekstática no seu conjunto, através do futuro,
permite o entendimento de que o ser-no-mundo temporaliza a si próprio enquanto
temporalidade. Para Heidegger, a primeira implicação desta exigência consiste na
certeza de que o ingresso no mundo somente ocorre na temporalização da
temporalidade. Consecutivamente, é no acontecimento da temporalidade que os entes se
manifestam enquanto tais. Contudo, a manifestação do ente, por sua vez, está, desde
sempre, envolvida pela compreensão antecipada do Ser. Nestes termos, a própria
possibilidade da compreensão do Ser reside na temporalização da temporalidade.
Estruturalmente, os entes ingressam no mundo, ou melhor, no tempo na e através da
temporalização. Porque os entes são, antes de tudo, compreendidos temporalmente é
que eles são determinados enquanto intratemporais.
81
O fato de que o ingresso do ente corresponde à ocorrência primal da estruturação
do Da-sein impõe à metafísica um esclarecimento definidor. Sem dúvida, o Da-sein é,
ontologicamente, temporalidade. Isso significa dizer, de uma vez por todas, que o Da-
sein necessita assumir como tarefa mais premente e incontornável a sua compreensão
através de sua temporalização. Em outras palavras, a metafísica do Da-sein pertence ao
lugar mais singular da estrutura deste ente. Na ontologia fundamental, a metafísica do
Da-sein surge da mesmidade deste ente. Enquanto tal a filosofia, ou melhor, o filosofar
se fundamenta no modo de ser a si mesmo do Da-sein.
O direcionamento das potencialidades da ontologia fundamental, no final dos
anos 20, para o domínio do questionamento de si do Da-sein revela a aproximação com
o problema do fundamento e, mais do que isso, com o da essência do fundamento.
Porém, a penetração neste domínio requer, do ponto de vista metodológico, a certeza de
que conexões imprescindíveis são visualizáveis em seus elementos centrais. Antes de
tudo, é indispensável enfatizar o modo de ser da relação entre transcendência e
temporalidade. Na transcendência, o transpassamento do ente em seu conjunto é
fundado na constituição ekstática da temporalidade. Em vista disso, transcender para o
mundo significa, precisamente, que a unidade da temporalidade possui o horizonte em
direção ao qual se a temporalização. Em outros termos, o em-vista-de-si-mesmo,
caráter primário do mundo, radica no horizonte originário do futuro. Nisto se concentra
o cerne da afirmação de que a transcendência é ser-no-mundo.
O que as articulações até aqui permitem atingir é que a transcendência
corresponde ao âmbito específico do problema do fundamento. Entretanto, a exposição
da essência do fundamento requer uma radicalização dos elementos assegurados. Na
82
verdade, o que quer dizer “essência do fundamento”? Para Heidegger, a questão da
essência do fundamento se mantém, unicamente, na procura pelo modo de ser do
fundamento na sua mais intrínseca possibilidade, ou seja, o que interessa é a clarificação
do sentido da necessidade metafísica do fundamento. Sendo assim, na essência do
fundamento o que se acentua é a indispensabilidade do entendimento da presença, na
metafísica, do porque enquanto porquê. Em outras palavras, porque se na metafísica
algo enquanto o porquê?
Pelo que se tem até aqui, como desenvolvimento consistente da ontologia
fundamental é adequado dizer que a ocorrência do porque” está, mesmo, enraizada na
existência do Da-sein. Seguramente, é devido à origem temporal da transcendência que
há, na metafísica, o porquê. Na medida em que o transcender possui como seu caráter
primário o ser-em-vista-de-si-mesmo, este constitutivo deve ser considerado como
fenômeno primal do fundamento enquanto tal. Em vista disso, a questão do fundamento
depende do modo de ser transcendental, originado na temporalidade, do que questiona,
isto é, do ser-no-mundo.
No curso de 28, estas orientações propiciam o alcance do solo através do qual o
problema da essência do fundamento pode ser elaborado. Como foi dito, o em-vista-
de-si-mesmo constitui o fenômeno primeiro do fundamento. Nele, o que se mostra,
ainda que de um modo preliminar, é que o fundamento transcende todo e qualquer ente.
Na verdade, o que condiciona a ultrapassagem do ente no fundamento é o fato
ontológico de que “o em-vista-de-si se temporaliza na liberdade”
45
. Enquanto contém a
projeção ekstática de sua possibilidade de ser, a liberdade compreende a si própria a
45
Op. cit., p. 276.
83
partir desta possibilitação projetiva e, ao mesmo tempo, conserva-a diante de si como
um comprometimento. Consecutivamente, a “liberdade é a origem de algo como o
fundamento”
46
. Portanto, a transcendência, âmbito do fundamento, possui na liberdade a
sua essência metafísica, ou seja, a sua originariedade. O que estas posições permitem
revelar?
Em primeiro lugar, a liberdade transcendental é, sim, liberdade para o
fundamento. Isso intenciona afirmar, categoricamente, que a liberdade é liberdade para
a transcendência. Por essa razão direta, o transpassamento do ente possui como sua
condição indispensável a autoprojeção comprometida da possibilidade enquanto tal.
Para Heidegger, a liberdade da transcendência é, necessariamente, liberdade para
transcendência, isto é, para a intensificação da transcendentalidade do Da-sein. No
fundo, o que está sendo posto em cena, através da afirmação de que o “em-vista-de”
consiste no fenômeno do fundamento, é o entendimento ontológico de que a liberdade
ostenta maximamente o caráter primal da transcendência. Em decorrência disso, o
comportamento do Da-sein para com o ente enquanto tal, radicado no em-vista-de-si, é
possibilitado pela liberdade.
Ao tematizar desta maneira o problema da essência do fundamento, Heidegger,
no curso de 28, está operando uma distinção bastante sutil e relevante. Em nenhum dos
momentos estruturantes do questionamento ocorre a afirmação de que a liberdade é o
fundamento, de que há, portanto, uma igualação entre liberdade e fundamento, ou
melhor, entre liberdade e transcendência. Sem dúvida, ambas constituem
metafisicamente o Da-sein, porém elas dizem respeito à lugares da determinação bem
46
Op. cit., p. 277.
84
especiais e que devem ser corretamente visualizados. Até aqui, a radicalização da
ontologia mostra que o domínio do fundamento é a transcendência. Neste sentido, a
suposta afirmação de que o âmbito do fundamento é a liberdade consiste, certamente,
num grande equívoco, uma vez que a liberdade ocupa, e isso é decisivo, no âmbito da
transcendência, a posição de sua mais extrema possibilitação. Dizendo de uma outra
maneira, somente a partir da liberdade é que o ser-no-mundo, no seu caráter de “em-
vista-de”, assume para si a tarefa de radicalização e universalização de seu
questionamento, ou seja, a de liberação para suas possibilidades mais extremas.
Com a emergência do problema da essência do fundamento, o que passa a ter
primazia na ontologia fundamental de Heidegger, no final dos anos 20, é a conceituação
mais estrita do fenômeno da transcendência, pois o nível da análise se torna o do
“fundamento do fundamento”, isto é, o do fundamento da transcendência. Enquanto tal,
a liberdade é o fundamento do fundamento. A penetração no fenômeno da
transcendência, à luz da essência do fundamento, conduz o exame para o núcleo do que
sustenta o ente enquanto comprometimento livre em-vista-de-si-mesmo. Por ser a
liberdade o horizonte de limitação mais profundo do Da-sein, a projeção do mundo, nela
concentrada, necessita ser explicitada na sua real amplitude. O que isso pretende
assinalar?
Seguramente, a indispensabilidade da entrada no território da clarificação da
essência do fundamento através da transcendência do Da-sein. Todavia, o
dimensionamento metodológico desta exigência o é efetuado no curso de 28. Na
verdade, o que propicia o adensamento da análise, mediante os elementos exibidos,
encontra-se presente na terceira e última parte da conferência Da Essência do
85
Fundamento, escrita no final de 28 e publicada em 29. Nela, o que assume o primeiro
plano é, mesmo, a procura pela explicitação do fundamento através de sua essência, isto
é, da transcendência a partir da liberdade. Como Heidegger, na conferência de 28,
orienta a análise?
Inicialmente, a questão passa a ser da medida em que , na transcendência, a
possibilidade interna para algo como fundamento. De acordo com o que foi firmado,
o fenômeno do mundo se dá no Da-sein enquanto a totalidade do em-vista-de-si-mesmo,
isto é, da co-originariedade do ser-junto-a, do ser-com e do ser-a-si-mesmo. Desse
modo, apenas se transpassando no em-vista-de-si é que o Da-sein pode ser a si próprio.
Para Heidegger, o núcleo do exame deve ser concentrar aqui. O transpassamento com o
caráter do “em-vista-de” ocorre, unicamente, “numa vontade que como tal se projeta
sobre possibilidades de si mesma”
47
. Essencialmente, esta vontade”, enquanto projeção
fundante, é o que projeta o Da-sein em-vista-de-si-mesmo. Portanto, ela deve ser
considerada como o que forma o “em-vista-de” enquanto transpassamento nela.
Isso intenciona afirmar que o que antecipa projetando o em-vista-de” é o que
deve ser chamado de liberdade. Neste sentido, “a ultrapassagem para o mundo é a
liberdade”
48
. Em decorrência disso, é na liberdade enquanto tal que o “em-vista-de” se
mantém em face de si. Em outros termos, a transcendência, caracterizada no “em-vista-
de”, é determinada, desde sempre, por esta projeção fundante. Assim, é na manutenção
do “em-vista-de”, pela liberdade, que o Da-sein ocorre, definitivamente, como o ente
que se compromete consigo, ou seja, como o que é responsável por si. Por conseguinte,
47
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen des Grundes; in Wegmarken. Gesamtausgabe, Band 9. Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1976, p. 163.
48
Op. cit., p. 163.
86
a ontologia fundamental deve enfatizar que apenas a liberdade é que pode levar com que
o mundo vigore e aconteça como tal. Para Heidegger, o mundo, na liberdade, é o seu
próprio acontecimento.
Como, então, a liberdade constitui a transcendência? O privilegiamento da
liberdade decorre do fato de que apenas nela o mundo acontece. Visando uma melhor
elucidação, a transcendência do Da-sein se move num modo bastante especial de
fundamentação. A liberdade, possibilitação extrema da transcendência, necessita ser
exposta não apenas como o modo singular do fundamento, porém, muito mais do que
isso, como a origem do fundamento em geral. Em virtude disso, a análise deve
propiciar, antes de tudo, o esclarecimento da relação originária da liberdade para com o
fundamento. Heidegger afirma, na conferência de 28, que esta relação deve ser
entendida como o fundar. Portanto, é fundando que a liberdade, ao mesmo tempo, e
toma a seu cargo o fundamento. Na liberdade, o fundar, radicado na dação e assunção
do fundamento, concentra-se, contudo, disseminado em três momentos específicos: o
fundar enquanto instaurar (Stiften), o fundar enquanto tomar-chão (Bodennehmen) e o
fundar enquanto fundamentar (Begründen).
A apresentação do fundar enquanto instaurar como o primeiro entre os modos é
proposital. Na metafísica do Da-sein, a primazia ontológica deste modo reside no que já
se tem da explicitação da transcendência. Seguramente, este fundar consiste “no projeto
do em-vista-de”
49
. Nele, o que é destacado é, sim, o transpassamento do ente em seu
conjunto. Neste sentido, o Da-sein, na projeção de mundo, é o que excede, uma vez que
apenas por “estar além” é que o ente se manifesta enquanto tal. Entretanto, somente este
49
Op. cit., p. 165.
87
modo projetivo do fundar não alcança a determinação da liberdade, isto é, da essência
da transcendência. Ao lado disso, o que deve ser acentuado é que no projeto de mundo
do Da-sein ocorre, sempre, o regresso ao ente no e através do transpassamento. O que
isso significa dizer?
O “em-vista-de” aponta de volta para o ente em sua inteireza desencoberto na
projeção do mundo. Isso exibe que o Da-sein, “projetante enquanto projetante”
50
, se
encontra em meio ao ente. Estar em meio ao ente não quer dizer, estruturalmente,
dirigir-se para o ente, ou melhor, conservar um comportamento específico para com o
ente. Na verdade, estar em meio ao ente corresponde a um constitutivo da
transcendência. Para Heidegger, o Da-sein, o que ultrapassa, deve estar situado em meio
ao ente. Entretanto, este caráter de estar situado revela, e isso é crucial, que o Da-sein já
se acha envolvido pelo ente de tal maneira que é por ele integralmente perpassado. Em
outras palavras, o pertencimento do Da-sein ao ente põe a transcendência como projeto
de mundo em que o que projeta já é dominado pelo perpassamento do ente.
O vinculo da projeção ao perpassamento gera, no âmbito da transcendência, uma
afinação (Eigenommenheit) com o ente. É precisamente nesta afinação que o Da-sein
toma chão em meio ao ente, ou seja, alcança o segundo modo do fundar. Porém, é
indispensável ressaltar que este modo de fundar não aparece após o primeiro, isto é, o
fundar enquanto instaurar, uma vez que eles são co-originários. Em virtude disso,
projeto de mundo e afinação com o ente configuram, até aqui, uma unidade bastante
complexa que necessita ser melhor elucidada. Para Heidegger, o Da-sein não poderia ser
perpassado pelo ente se a afinação não fosse acompanhada por uma irrupção do mundo
50
Op. cit., p. 166.
88
(Aufbruch von Welt). Isso significa afirmar que o Da-sein é afinado com o ente apenas
enquanto ser-no-mundo. Visando um melhor aprofundamento, o Da-sein funda, isto é,
instaura mundo somente enquanto “se autofunda em meio ao ente”
51
.
A partir destes traços centrais o que se torna prioritário, para análise, é a
explicitação do fundar da liberdade na unidade dos dois modos de fundar exibidos até o
momento. De que forma, então, isso pode ser obtido? Na conferência de 28, no fundar
instaurativo reside, como projeto de possibilidade de si mesmo, o fato ontológico do
Da-sein sempre se exceder. Por essa razão, o projeto de possibilidade é mais vasto do
que o que se apresenta, efetivamente, no que projeta. Esta limitação ocorre porque o Da-
sein se encontra situado em meio ao ente. Por conseguinte, é em decorrência direta desta
limitação que certas possibilidades são, previamente, subtraídas ao Da-sein. Contudo,
apenas a subtração, ou melhor, a privação (Entzug) de determinadas possibilidades de
poder ser-no-mundo, decididas na afinação com o ente, propicia ao Da-sein as
possibilidades acessíveis do projeto de mundo. Para Heidegger, a privação garante,
precisamente, para a obrigatoriedade do antiprojeto que permanece projetado, a força de
seu domínio no âmbito existencial do Da-sein.
No fundo, a transcendência é, em conformidade aos seus dois modos de fundar,
simultaneamente, o que excede e o que priva. Para Heidegger, o projeto de mundo, na
sua excessividade, se torna potente e apropriativo na privação. Em virtude disso, a
unidade formada pelos dois modos de fundar constitui um documento transcendental da
“finitude da liberdade do Da-sein”
52
. O que estas articulações permitem perceber? A
51
Op. cit., p. 167.
52
Op. cit., p. 167.
89
intensificação da unidade dos dois modos de fundar, índice da finitude, mostra,
certamente, que o projeto de mundo é que possibilita a compreensão do Ser. Todavia, o
próprio projeto não se caracteriza por ser a referencia do Da-sein ao ente. Ao seu modo,
a afinação que propicia o estar situado do Da-sein em meio ao ente, e ser por ele
disposto, sempre a partir de um desencobrimento do mundo, o corresponde a um
comportamento para com o ente.
Necessariamente, portanto, é na unidade que caracteriza estes dois modos de
fundar que ocorre, sim, a possibilitação transcendental do Da-sein enquanto um estar
direcionado ao ente. Isso significa assinalar que estes modos, conjuntamente, formam
um terceiro: o fundar como fundamentar. Nele, antes de tudo, a transcendência do Da-
sein assume a “possibilitação da manifestação do ente em si mesmo, a possibilidade da
verdade ôntica”
53
. Todavia, o ingresso neste modo de fundar requer um esclarecimento
preliminar. O termo fundamentar está sendo usado num sentido originário e não no
sentido, derivado e restrito, de demonstrar proposições teóricas. Por este norteamento,
fundamentar significa, estritamente, a possibilitação da questão do porquê em geral”
54
.
Assim, a conceituação do caráter fundador do fundamentar consiste, mesmo, na
clarificação da origem transcendental do porquê enquanto tal. Então, o que se procura é
a possibilidade transcendental do porquê.
Na conferência de 28, a busca da possibilidade do porquê deve ser conduzida
mediante a interrogação da própria transcendência, que ela foi determinada pelo dois
primeiros modos do fundar. Em virtude disso, o porquê surge na reunião do caráter
53
Op. cit., p. 168.
54
Op. cit., p. 168.
90
excessivo do projeto de mundo e do caráter privativo da afinação com o ente. Na
medida em que os dois primeiros modos de fundar formam uma unidade na
transcendência, a origem do porquê é transcendentalmente imprescindível. Para
Heidegger, na origem do porquê reside uma compreensão prévia, mesmo que o
temática, “do que-ser, como ser e ser (nada) em geral”
55
. O que isso quer afirmar?
Certamente, na origem do porquê ocorre a resposta primal (Urantwort) para todo o
questionar. Em outras palavras, a compreensão do Ser a primeira e última
fundamentação”
56
como resposta primordial que a tudo se antecipa. Portanto, é
precisamente nela que a transcendência se fundamenta enquanto tal.
Por trazer consigo o desencobrimento do Ser e da constituição do Ser, o
fundamentar transcendental deve ser tomado como verdade ontológica (ontologische
Wahrheit). Visando uma melhor explicitação, neste terceiro modo de fundar da
liberdade está, mesmo, a sustentação de todo o comportamento para com o ente. Assim,
o que se alcança é o indício de que apenas na compreensão do Ser, isto é, na verdade
ontológica o ente pode ser revelado. Existe, portanto, uma relação determinante bastante
especial entre verdade ontológica e verdade ôntica no cerne da fundamentação
transcendental. Neste sentido, toda a manifestação do ente, ou seja, a verdade ôntica é
precursionada pelo fundamentar transcendental, isto é, pela verdade ontológica. É
precisamente por este condicionamento indepassável que todo o descobrir (entdecken) e
o abrir (erschilißen) ôntico devem ser fundamentados, ou melhor, devem se legitimar
(ausweisen).
55
Op. cit., p. 169.
56
Op. cit., p. 169.
91
Na legitimação, caráter do terceiro fundar, se preenche o direcionamento
(anführung) ao ente requerido tanto pelo modo de ser do próprio ente como pelo modo
de ser de seu desencobrimento. Na unidade da transcendência, além da projeção e da
afinação, ocorre um terceiro fundar co-originário no qual se a elaboração da
compreensão do Ser. Portanto, a transcendência do Da-sein deve ser exposta como a
origem do fundar quando ela é levada a irromper (entspringen) na sua triplicidade. Em
decorrência disso, fundamento significa: possibilidade (Möglichkeit), chão (Boden) e
legitimação (Ausweis). Para Heidegger, o fundar da transcendência, na sua tríplice
determinação, obtém, na medida em que unifica primordialmente, o todo (Ganze) em
que “o Da-sein sempre deve poder existir”
57
. Na verdade, o acontecer da transcendência
enquanto fundar é a formação do espaço em que emerge a mostração de si do Da-sein
em meio ao ente em seu conjunto.
No tríplice modo de fundar da transcendência, a liberdade é liberdade para o
fundamento. Em primeiro lugar, isso significa definir que a liberdade “somente pode
subsistir na co-originariedade da origem transcendental do tríplice fundar”
58
. Em
conseqüência disso, a essência do fundamento se constitui na tríplice emergência
transcendental do fundar enquanto projeto de mundo, afinação com o ente e
fundamentação ontológica do ente. Sem dúvida, o fundamento assegura a sua
constituição porque irrompe da liberdade transcendental, isto é, finita. Ela, por sua vez,
não pode se subtrair ao que dela surge de maneira transcendental. Em outros termos, o
fundamento regressa à própria liberdade, e esta, enquanto origem, torna-se ela mesma
57
Op. cit., p. 170.
58
Op. cit., p. 170.
92
fundamento. Para Heidegger, a liberdade é o fundamento do fundamento. O que isso
pretende, efetivamente, ressaltar?
De acordo com as formulações da conferência de 28, o ser fundamento
(Grundsein) da liberdade não detém o caráter de um dos modos de fundar da
transcendência, porém ele se configura como a unidade fundante (gründende Einheit) da
ordenação do fundar. Enquanto tal, a liberdade é o abismo (Ab-grund), o sem
fundamento do Da-sein, uma vez que ela situa, por ser transcendência, o Da-sein diante
de possibilidades que são abertas nele próprio. Contudo, a abertura do abismo, ou seja,
do sem fundamento na transcendência compõe o movimento primordial (Urbewegung)
realizado pela liberdade no Da-sein em que ele deve, no transpassamento do ente que
projeta mundo, transpassar-se a si mesmo, e somente por esta ultrapassagem
compreender-se enquanto abismo através desta elevação (Erhëbung). O movimento da
liberdade assegura, decisivamente, a compreensão do Da-sein de que ele existe
enquanto originário conteúdo do mundo.
Em decorrência destas articulações, o asseguramento conceitual da mesmidade
do Da-sein exige o aprofundamento do modo de ser de sua fundamentação fundante.
Neste sentido, a liberdade é a fonte do princípio do fundamento porque, na agudização
da transcendência, a tríplice unidade do fundar assinala a diferença ontológica, isto é, o
não entre Ser e ente, o que lança a análise para o domínio da essência da finitude e, mais
diretamente, para o do questionamento da verdade ontológica, ou melhor, para o
problema da verdade e de sua essência.
3 O DESENVOLVIMENTO DA QUESTÃO DA VERDADE
É correto admitir que, durante o final dos anos 20, a questão da verdade assume
o lugar centralizador dos desenvolvimentos mais nucleares do projeto de radicalização
da ontologia fundamental. Isso pretende assinalar que mediante uma contínua
elaboração do fenômeno da verdade e, mais decisivo, da própria questão da verdade, as
determinações mais importantes passam a ser visualizadas entre si, o que propicia o
alcance definitivo das motivações mais essenciais do chamado primeiro Heidegger.
Entretanto, devido a seu escopo amplamente condicionante, o posicionamento, por
assim dizer, da questão da verdade, através do que foi aclarado nos capítulos
anteriores, necessita ser realizado de uma maneira cautelosa e gradativa.
Em decorrência destas configurações preliminares, o final do §8 e o início do §9
do curso de 28, As Fundões Metafísicas da Lógica, podem ser tomados como
localizadores bastante oportunos, caso seja mantido o que se obteve até aqui pela
análise. Em primeiro lugar, Heidegger afirma que a verdade possui uma relação
específica com o fundamento. Muito mais do que isso, é indispensável conceituar o
modo do pertencimento do fundamento à verdade, ou melhor, à essência da verdade.
Somente por esta orientação é que a essência do fundamento, isto é, o tríplice fundar da
liberdade transcendental assegura sua posição estruturante na metafísica do Da-sein. De
94
um modo mais imediato, o que aparece nesta articulação é que a verdade traz consigo,
ineliminavelmente, a exigência da explicitação fenomenológica do fundamento na sua
essência. Qual a relevância disso?
Mesmo que muito sintéticas, estas afirmações permitem indicar que a dimensão
do problema do fundamento está intimamente vinculada à questão da verdade.
Buscando uma melhor aproximação, a própria dimensão da questão da verdade e,
principalmente, a da essência da verdade corresponde, sim, ao domínio no qual o
problema do fundamento deve ser posto. Por um outro ângulo, o esclarecimento da
conexão entre verdade e fundamento diz respeito, sem dúvida, à mostração da maneira
em que a verdade, na sua essência, traz consigo o fundamento enquanto um de seus
constitutivos cruciais. Assim, a relação que a verdade mantém com o fundamento provê
a possibilidade mais interna para algo como o verdadeiro, na metafísica, tornar-se
presente e imprescindível.
De acordo com o curso de 28, o efetivo dimensionamento destas relações só se
torna visível através da tematização conceitual da essência da verdade. Para Heidegger,
porém, o aclaramento suficiente da essência da verdade não tem como ser obtido de
modo imediato. Isso significa dizer, de uma vez por todas, que a autolimitação do
método fenomenológico, no final dos anos 20, requer a prévia caracterização da verdade
e, mais do que isso, do como a questão da verdade deve ser estabelecida em e a partir de
seus elementos compositivos. Em vista desta exigência incontornável, o que se mostra
como o mais fecundo corresponde à tentativa de explicitação do que é apresentado no
§44 de Ser e Tempo, pois, nele, tal como Heidegger repetidamente enfatiza, busca-se
evidenciar o sentido essencial da verdade e, além disso, a abrangência desta questão
95
para a ontologia fundamental. De que forma, então, deve-se proceder uma aproximação
com este parágrafo do texto de 26?
Antes de tudo, Heidegger afirma que a filosofia, desde sempre, correlaciona
verdade e Ser. Devido a esta assinalação, filosofia significa, fundamentalmente, deixar
e fazer ver numa demonstração com respeito e no âmbito da verdade”
59
. Ao lado disso, é
também muito perceptível o entendimento da filosofia como uma ciência” que toma
para si o ente enquanto ente, ou melhor, o ente em relação ao seu ser. Portanto, o
adequado dimensionamento da filosofia depende do modo pelo qual a verdade é
considerada. Em outros termos, se a filosofia pode ser compreendida como a
“investigação” sobre a verdade, como a “ciência” da verdade, o que está sendo revelado
é que, nela, a verdade possui a mesma estatura do que se mostra em si mesmo. Sem
dúvida, uma co-penetração bastante radical entre a verdade e o que é denominado
como “ente” e “ser”.
Para Heidegger, somente na medida em que ocorre uma conexão originária
(ursprünglichen Zusammenhang) entre verdade e Ser é que o fenômeno da verdade se
torna pertencente ao domínio de problematização da ontologia fundamental. Neste
sentido, o problema mais direto concerne, sim, ao da detecção do vínculo que a verdade
estabelece com o Da-sein e, principalmente, com a sua determinação primordial: a
compreensão do Ser. É precisamente na busca dos limites deste norteamento que pode
surgir a possibilidade da elucidação do nexo fundante entre verdade e Ser. No fundo,
através destas articulações preparatórias, o questionamento da verdade o pode ser
59
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Gesamtausgabe, Band 2. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1926-1976, p. 282.
96
metodologicamente rejeitado, uma vez que, devido a sua abrangência e potencialidade
condicionante, as análises anteriores se encontram envolvidas por ele.
Na abertura do §44, Heidegger afirma que o importante é a circunscrição clara
do fenômeno da verdade, assim como a fixação dos problemas incluídos nele. Contudo,
o que necessita ser destacado é que tanto a circunscrição quanto a fixação decorrem,
seguramente, da agudização (Zuspitzung) do problema do Ser (Seinsproblems), o que
põe a análise, daqui para diante, num território inteiramente novo. Em virtude destas
aproximações iniciais, o encaminhamento da análise deve ser bem caracterizado. Antes
de tudo, o exame necessita partir do conceito tradicional de verdade (traditionellen
Wahrheitsbegriff), procurando liberar os seus fundamentos ontológicos. Através da
exposição destes fundamentos é que se assegura a visibilidade do “fenômeno originário
da verdade”
60
.
Sem dúvida, por intermédio desta visualização é que se obtêm as condições
indispensáveis para a clarificação da real ascendência (Abkünftigkeit) do conceito
tradicional de verdade. Entretanto, o que a análise pretende alcançar, fundamentalmente,
é que a questão acerca do modo de ser da verdade (Seinsart der Wahrheit) prende-se à
da essência da verdade. Por conseguinte, somente por esta orientação é que se alcança o
esclarecimento do sentido ontológico (ontologischen Sinnes) da expressão de que “a
verdade se dá”, bem como da maneira em que deve haver a pressuposição
(Voraussetzung) de que a própria verdade se dá. Como, então, ocorre a caracterização
do conceito usual de verdade?
60
Op. cit., p. 283.
97
Certamente, três posições assinalam a maneira na qual a verdade é conceituada
usualmente. Antes de qualquer coisa, o “lugar” da ocorrência da verdade é tomado
como sendo a enunciação (Aussage). Além disso, a essência da verdade enunciativa
reside na concordância (Übereinstimmung) entre o juízo (Urteil) e o seu objeto
(Gegenstand). A partir destas duas teses, é indispensável reconhecer que Aristóteles, ao
erigir a lógica, não apenas afirmou o juízo enunciativo como o lugar (Ort) originário da
verdade, porém disseminou a noção de que a verdade é concordância. Em Ser e Tempo,
o que visa ser problematizado não corresponde, em nenhum momento, ao
estabelecimento da história do conceito de verdade. Por conseguinte, as posições que
indicam a caracterização usual da verdade devem, exclusivamente, propiciar um campo
produtivo para o início da análise propriamente dita.
No texto de 26, o que assegura a pertinência da análise é a percepção de que o
entendimento da verdade enquanto concordância é, por razões centrais, demasiado
universal (allgemein) e vazio (leer). Devido a esta visualização, o que necessita ser,
efetivamente, analisado é o que determina a própria concordância. Em outras palavras, o
que deve ser posto em questão é o fundamento da concordância, é o fundamento desta
relação (Beziehung). Por esta orientação, a procura passa a ser dirigida ao que, sempre
implicitamente, põe-se com o conjunto da relação. O que interessa é, no fundo, a
exibição do caráter ontológico (ontologischen Charakter) desta implicitude presumida.
Inicialmente, o exame deve alcançar, mesmo que de modo provisório, o sentido
do termo concordância. Para Heidegger, a concordância de algo com algo (von etwas
mit etwas) possui, formalmente, o caráter da relação de algo para algo (von etwas zu
etwas). Assim, toda concordância e, mais relevante, toda verdade é uma relação. Sem
98
dúvida, a vinculação do sentido ao caráter da relação mostra, do ponto de vista
fenomenológico, que a verdade traz em si, estruturalmente, uma espécie de perspectiva.
É precisamente o direcionamento da análise para esta perspectiva que deve ser
promovido. Dizendo de uma outra maneira, o que está sendo procurado é o “na
perspectiva do que” concorda o que se relaciona na enunciação, isto é, o juízo e o seu
objeto. Portanto, em que medida juízo e objeto concordam?
Heidegger salienta que o conhecimento deve dar a coisa assim como ela é”
61
.
Neste sentido, a concordância detém o caráter da relação assim-como (So-Wie). Em
decorrência direta disso, o que se torna premente é o esclarecimento do que possibilita a
relação assim-como entre o juízo e seu objeto. No entanto, o teor destas articulações
evidencia, inequivocamente, que a estruturação da verdade não exige somente a
presunção de um conjunto relacional. Muito mais do que isso, é imprescindível
conduzir a elaboração da questão ao que suporta ontologicamente este conjunto
enquanto tal.
No âmbito do questionamento do modo de ser da concordância, o que se
apresenta como produtiva é a tentativa de análise do próprio modo de ser do
conhecimento, na medida em que o que está, no fundo, sendo visado é o fenômeno da
verdade que o caracteriza. Como, então, a verdade se expressa no conhecimento?
Fundamentalmente, na própria legitimação do conhecimento enquanto algo verdadeiro
(als wahres). Para Heidegger, é a auto-legitimação do conhecimento que garante a sua
verdade. Necessariamente, portanto, é na conexão da legitimação que a relação de
61
Op. cit., p. 286.
99
concordância (Übereinstimmungsbeziehung) deve ser evidenciada. O que isso pretende
assinalar?
Seguramente, o ingresso no cerne do problema da legitimação do conhecimento,
ou melhor, da enunciação. Em virtude disso, a legitimidade do conhecimento depende,
num sentido primordial, da concordância da enunciação frente ao que ela visa. Em
outros termos, a enunciação é “um ser para a própria coisa que é
62
. Assim, o que
assegura a legitimação é, de uma vez por todas, o fato ontológico de que é o próprio
ente (das Seiende selbst) que se visa na enunciação. Muito mais relevante, contudo, é o
atingimento da prova (Bewährung) definitiva de que o ente que enuncia é, mesmo, uma
apresentação (Aufzeingung) do ente enunciado. Para Heidegger, o ente que enuncia
descobre o ente para o qual ele é.
Em Ser e Tempo, o caráter mais singular da enunciação é o de ser descobridora
(entdeckend-sein). Desse modo, ao consumar a legitimação o conhecimento diz respeito
apenas ao próprio ente, que é nele que recai a prova da enunciação. Isso significa
dizer que o ente enunciado se mostra assim como ele é em si mesmo. Objetivando uma
melhor explicitação, o ente enquanto tal é como é mostrado, ou seja, descoberto na
enunciação. Pelo que se tem até aqui, o que corresponde estritamente à legitimação é o
caráter de “ser descoberto do próprio ente, o ente no como de sua descoberta”
63
. Para
Heidegger, a corroboração disso se origina no fato de que o ente enunciado se mostra
como o mesmo. Legitimação, portanto, significa que o ente se mostra na sua mesmidade
62
Op. cit., p. 288.
63
Op. cit., p. 289.
100
(Selbigkeit). A relevância da prova se fundamenta num mostrar-se dos entes
(Sichzeigens des Seienden).
O que foi exposto pela análise propicia o alcance de que, na ontologia
fundamental, o conhecimento, na sua constituição de ser descobridor, realiza-se para o
ente. O que isso pretende revelar? Em primeiro lugar, o caráter de ser-verdadeiro da
enunciação detém o sentido de descobrimento do ente em si mesmo. Inegavelmente, a
enunciação deixa ver (läßt sehen) o ente na sua descoberta. Por essa razão, a verdade da
enunciação deve ser compreendida como a de ser-descobridora. Desse modo, para
Heidegger, a verdade não possui a estrutura de uma conformidade entre conhecimento e
objeto, formalizada por intermédio da suposta adequação entre um ente dimensionável
enquanto sujeito, e um outro dimensionável enquanto objeto.
Através dos esclarecimentos iniciais do conceito tradicional de verdade, o que se
torna perceptível é que o ser-descobridor, isto é, o ser-verdadeiro não assegura sua
possibilidade mais interna na relação entre enunciação e concordância. Diferentemente
disso, a condição ontológica para algo como a verdade é o ser-no-mundo. Dessa
maneira, é na estrutura constitutiva do Da-sein que se localiza, por assim dizer, o
fundamento do fenômeno originário da verdade. Por conseguinte, como pode ser
reorientada a análise? Para Heidegger, a afirmação de que o ser-verdadeiro é o ser-
descobridor não deve ser considerada como uma aproximação aleatória com o que
concerne, efetivamente, ao fenômeno da verdade. Distanciando-se disso, a definição da
verdade enquanto descoberta intenciona trazer, antes de tudo, uma interpretação
101
necessária do que foi percebido, ainda que de modo pré-fenomenológico, pela “mais
antiga tradição da filosofia”
64
.
Sugestivamente, o ser verdadeiro do logos corresponde, na filosofia grega, ao
deixar ver o ente no seu não-encobrimento, isto é, na sua descoberta. Nestes termos, a
definição da verdade enquanto aléthéia indica, fortemente, que o que está em jogo é a
manifestação do ente nele mesmo, ou melhor, é a mostração do ente no modo de ser de
sua descoberta, de sua retirada do encobrimento. Em decorrência imediata disso,
pertence ao logos o o-encobrimento (Unverborgenheit). De acordo com Heidegger, a
tradução de aléthéia por verdade e, mais decisivo, as determinações mais centrais deste
conceito corriqueiro impedem, sim, o alcance do sentido do que a filosofia grega
estabeleceu como fundamento inequívoco do “uso” da palavra aléthéia.
Entretanto, uma advertência essencial precisa ser feita. Do ponto de vista
fenomenológico, o que deve se evitar, antes de tudo, é uma mística desmesurada das
palavras. Por um outro lado, Heidegger reconhece que a filosofia não pode dispensar a
manutenção da “força das palavras elementares”
65
, nas quais, sem dúvida, o Da-sein se
exprime. O que isso pretende enfatizar? Fundamentalmente, o imperativo da
legitimação do que foi usualmente interpretado como logos e aléthéia. Em vista disso, a
definição da verdade enquanto descoberta, pelo menos até aqui, não consiste numa
recusa da tradição, porém numa apropriação (Aneignung) originária dela. Precisamente
por isso, a definição da verdade enquanto descoberta e ser-descobridor não corresponde,
em nenhum de seus momentos estruturantes, a uma explicitação de palavras. No fundo,
64
Op. cit., p. 290.
65
Op. cit., p. 291.
102
esta definição surge da análise dos comportamentos do Da-sein habitualmente
denominados de “verdadeiros”.
As articulações propostas, certamente, evidenciam que o ser-verdadeiro
enquanto ser-descobridor é, mesmo, o modo de ser (Seinsweise) do Da-sein. Dessa
forma, o que possibilita, ou seja, o que determina ontologicamente a descoberta
necessita ser tomado como o verdadeiro no sentido ainda mais primordial. Para
Heidegger, portanto, é somente na fundação fenomenológica do próprio descobrir que
se visualiza o fenômeno originário da verdade. Pelo que já foi firmado, “descobrir é um
modo de ser-no-mundo”
66
. Em conformidade às formulações apresentadas nos
parágrafos iniciais da primeira secção de Ser e Tempo, a ocupação (Besorgen) que
ocorre, seja na circunvisão ou na observão, descobre entes intramundanos
(innerweltliches Seiendes). Estritamente falando, são eles os entes descobertos. Por
conseguinte, é mais do que admissível dizer que o verdadeiro é tomado num duplo
sentido. O que isso pretende revelar?
Na medida em que é descobridor, o que deve ser considerado como
primordialmente verdadeiro é o Da-sein, uma vez que age realizando um descobrimento
(Entdeckung). Num segundo sentido, a verdade diz respeito ao que é descoberto, ou
melhor dizendo, à descoberta (Entdecktheit) do ente no interior do descobrimento. Isso
significa que há, incontornavelmente, uma relação de determinação bastante específica
entre o descobrimento e a descoberta. Para Heidegger, e isso é capital, a descoberta dos
entes intramundanos radica na abertura do mundo (Erschloßenheit der Welt). Contudo,
a abertura é, mesmo, a possibilitação mais extrema do Da-sein, a partir da qual ele
66
Op. cit., p. 292.
103
assume o seu “aí”. Nos limites das problematizações de Ser e Tempo, a abertura se
constitui através do sentimento de situação (Befindlichkeit), da compreensão
(Verstehen) e do discurso (Rede), envolvendo, de maneira co-originária, tal como
Heidegger assinala, o mundo, o ser-em e o ser-a-si-mesmo.
Buscando uma melhor aproximação, a estrutura do cuidado (Sorge) enquanto
antecipar-se a si mesmo já sendo no mundo, sempre sendo junto ao ente intramundano,
conserva, previamente, a abertura. Assim, “somente com ela e através dela é que ocorre
a descoberta”
67
. Imprescindivelmente, portanto, o alcance do fenômeno originário da
verdade se dá na abertura do Da-sein. Em outras palavras, devido ao fato do Da-sein ser,
na sua possibilidade mais interna, a sua própria abertura, ele é essencialmente
verdadeiro. No fundo, “o Da-sein é na verdade”
68
. Esta proposição ontológica pretende
firmar, antes de qualquer coisa, que o mais central da constituição metafísica do Da-sein
pertence, sem dúvida, à abertura mais singular de seu “aí”. Como visualizar com mais
agudeza estes arranjos?
Através dos limites indepassáveis de Ser e Tempo, o que cabe ser aclarado, na
proposição “o Da-sein é na verdade”, é que a abertura em geral pertence à constituição
do ser (Seinsverfassung) do Da-sein. Na constituição deste ente, a abertura abrange o
todo (Ganze) do que o estrutura de modo mais essencial, o que foi prenunciado
mediante a elucidação do cuidado. Por esta orientação, o fenômeno do cuidado envolve
tanto o ser-no-mundo quanto o ser-junto aos entes intramundanos. Através da abertura
do Da-sein ocorre, de maneira co-originária, a descoberta dos entes intramundanos.
67
Op. cit., p. 292.
68
Op. cit., p. 292.
104
Além disso, o ser-lançado (Geworfenheit) pertence, igualmente, à estruturação
metafísica do Da-sein enquanto constitutivo de sua abertura. Nele, o que se revela é que
o Da-sein, desde sempre, corresponde a um ser-a-si-mesmo, a partir de um mundo
determinado (bestimmten Welt), e junto a um domínio circunscrito de entes
intramundanos pré-determinados. Fundamentalmente, a abertura é fáctica (faktische).
Do mesmo modo que o ser lançado, o projeto (Entwurf) pertence à constituição do Da-
sein. Nele, no seu sentido mais estrito, ocorre a abertura enquanto compreensão. É
indispensável ressaltar que o Da-sein pode se compreender tanto por intermédio da
“cotidianidade” e dos outros entes, quanto a partir de seu poder ser mais específico.
Seguramente, nesta segunda possibilidade o Da-sein abre-se para si mesmo em seu
poder ser mais autêntico. Esta abertura mais específica exibe, de uma maneira
inigualável, o “fenômeno da verdade originária no modo da propriedade”
69
.
Assim como envolve, integralmente, a compreensão e a facticidade, a abertura
também determina a decaída (Verfallen) do Da-sein. Isso intenciona enfatizar que o Da-
sein, na maioria das vezes, perde-se em seu “mundo”. Precisamente enquanto projeto de
possibilidade, a compreensão se situa, ineliminavelmente, nesta perda. Em virtude
disso, o que é aberto e descoberto se mantém como dissimulação (Verstelltheit) e
fechamento (Verschlossenheit), mediante os modos do falatório (Gerede), da
curiosidade (Neugier) e da ambivalência (Zweideutigkeit). Neste sentido, o “ser do ente
não é apagado, porém se desenraiza”
70
. Melhor explicitando, o ente não é encoberto na
sua inteireza, pois ele é descoberto, concomitantemente, na dissimulação. No fundo, ele
se mostra apenas em conformidade ao modo da aparência (Schein).
69
Op. cit., p. 293.
70
Op. cit., p. 293.
105
Para Heidegger, na constituição ontológica da decaída, o que já havia sido
descoberto volta a imergir na dissimulação e no encobrimento. Devido a estas
articulações centrais, o Da-sein é na não-verdade (Unwahrheit) porque se constitui,
essencialmente, na decaída. É necessário acentuar, contudo, que o termo “não-verdade”
está sendo empregado num sentido ontológico-existencial. Fechamento e encobrimento
dizem respeito, sim, à facticidade do Da-sein. Para a conceituação fenomenológica, o
preenchimento do sentido da proposição “o Da-sein é na verdade” inclui, definitiva e
originariamente, que o Da-sein é na não-verdade. Todavia, tal como Heidegger ressalta,
apenas na medida em que o Da-sein se abre, ele, também, se fecha. Mais do que isso,
somente na medida em que, no Da-sein, os entes intramundanos foram descobertos é
que eles podem ser encobertos e dissimulados.
No §44 de Ser e Tempo, estas posições visam evidenciar que, no âmbito do Da-
sein, o que importa, antes de tudo, é a apropriação do que se descobriu contra a
aparência e a dissimulação, assim como o contínuo reasseguramento da descoberta.
Pondo de uma maneira mais abrangente, jamais é através de um completo encobrimento
que as novas descobertas o realizadas, mas, sim, “através da descoberta no modo de
ser da aparência”
71
. Isso pretende indicar que, para a fenomenologia, o ente se
configura, desde sempre, como algo, isto é, o ente já foi, de certa maneira, descoberto,
mesmo que permaneça dissimulado. Qual, então, a conseqüência mais imediata destas
articulações?
Primeiramente, a verdade enquanto descoberta necessita ser, sempre, retirada do
ente. Sem dúvida, o ente é arrancado do encobrimento. Para Heidegger, a “descoberta é,
71
Op. cit., p. 294.
106
ao mesmo tempo, um roubo”
72
. A relevância destes elementos consiste na indicação,
ainda bastante insatisfatória, de que no fenômeno da verdade ocorre, por assim dizer,
uma ambigüidade fundamental. Dizendo de uma outra maneira, é mais do que sugestivo
perceber que o direcionamento da análise põe, seguramente, a verdade entre o
descobrimento e o encobrimento, o que acentua, mais uma vez, o envolvimento do Da-
sein tanto pela verdade quanto pela não-verdade. Pelo que se tem até aqui, o percurso a
ser cumprido pelo descobrir apenas é assegurado na distinção compreensiva entre
desencobrimento e encobrimento, e, muito importante, na resolução por um deles.
Para a analítica existencial, a condição ontológica para que se conceitue o ser-
no-mundo se encontra na própria constituição do Da-sein, ou seja, na sua caracterização
enquanto o projeto lançado. Neste sentido, a verdade (abertura) deve ser entendida
como o constitutivo primal da estrutura do cuidado. Em decorrência direta disso, o
delineamento inicial do fenômeno da verdade traz consigo, pelo menos, duas
determinações cruciais. Em primeiro lugar, a verdade, no seu sentido mais originário, é
a abertura do Da-sein na qual acontece a descoberta dos entes intramundanos. Além
disso, o Da-sein se situa, de maneira co-originária, na verdade e na não-verdade.
Quando contrastadas com a conceituação tradicional de verdade, estas
determinações podem ser aclaradas mediante um único ordenamento. É
imprescindível elucidar que a verdade enquanto concordância se origina na abertura, e,
seguramente, através de uma modificação (Modifizierung) específica dela.
Efetivamente, é a própria maneira de ser da abertura que possibilita, antes de tudo, a
visualização de sua modificação derivada, isto é, da verdade enquanto concordância.
72
Op. cit., p. 294.
107
Mais do que isso, é no próprio caráter da verdade enquanto abertura que reside o que
propicia a vigência da compreensão teórica, ou melhor, enunciativo-judicativa da
verdade. Como promover, então, uma aproximação com estes arranjos?
Seguindo os momentos centrais da exposição de Ser e Tempo, a enunciação e a
sua estrutura, ou seja, o como apofântico (apophantische Als) estão fundadas na
interpretação (Auslegung) e na sua respectiva estrutura: o como hermenêutico
(hermeneutischen Als). Por sua vez, e isso é decisivo, a própria estrutura da
interpretação está enraizada na compreensão, ou melhor, no que a condiciona mais
internamente: a abertura do Da-sein. Assim, a verdade enquanto abertura assegura o
status de determinação marcante (auszeichnende Bestimmung) frente à enunciação que
dela provém. Unicamente neste sentido é que se pode afirmar, para Heidegger, que as
raízes (Wurzeln) da verdade enunciativa se encontram na abertura da compreensão.
Todavia, o que necessita ser explicitado é o fenômeno da concordância mediante o seu
caráter mais particular, qual seja o de ser a derivação de algo primordial.
Visando esta finalidade, torna-se indispensável acentuar que a ocupação, isto é,
o ser-junto ao ente intramundano se constitui como descobridor. Tal como aclarado no
§34, o discurso pertence, sim, à abertura do Da-sein. Isso significa afirmar que o Da-
sein se expressa na medida em que descobre o ente. Para o projeto de uma ontologia
fundamental, na enunciação o Da-sein se expressa enquanto tal acerca do ente
descoberto. “A enunciação, portanto, comunica o ente no modo de sua descoberta”
73
.
Precisamente por perceber o teor comunicativo da enunciação, o Da-sein traz a si
mesmo para o descobrimento em relação ao ente tratado. Para Heidegger, no que é
73
Op. cit., p. 296.
108
pronunciado pela enunciação está concentrada a descoberta do ente. Dizendo de uma
outra maneira, a descoberta guarda a si própria no que é pronunciado.
Descoberta é sempre descoberta de algo. Todavia, o Da-sein pode se dispensar
de efetuar o descobrimento. O que isso pretende exibir? Fundamentalmente, que o
pronunciado pode se tornar algo disponível (Zuhandenen). Em decorrência desta
possibilidade, a disponibilização do pronunciado carrega consigo, necessariamente, uma
referencia (Bezug) ao ente acerca do qual ocorre a enunciação. Na verdade, o Da-sein,
mesmo na dispensa do descobrimento, mantém-se no ente a partir de um sentido
retomado e disseminado na e pela disponibilização do pronunciado. Na maioria das
vezes, a “descoberta não se mediante o descobrimento, mas, sim, apenas pela
apropriação do que é dito através de um ouvir dizer”
74
. Seguramente, o deixar ser
absorvido pelo dito diz respeito ao modo de ser do impessoal (Man).
Mesmo que sintéticas, estas articulações lançam a análise num território bastante
fértil. De acordo com Heidegger, o que é dito assume, sugestivamente, o lugar do
“sentido” do ente que é descoberto na enunciação. Em vista disso, a legitimação da
enunciação é impossibilitada. Isso acontece porque o pronunciado é considerado,
unicamente, como algo disponível, assim incapaz de evidenciar o caráter de
descobrimento da descoberta. O que se mostra é uma modificação extremamente
definidora. No domínio do impessoal, a legitimação do ser-descobridor da enunciação
depende, unicamente, da “legitimação” da referencia ao ente que é mostrado no
pronunciamento. Por conseqüência, a “enunciação se torna disponível”
75
. Do mesmo
74
Op. cit., p. 296.
75
Op. cit., p. 297.
109
modo, o ente sobre o qual a enunciação faz uma referencia descobridora se torna um
disponível intramundano ou um ente subsistente (Vorhandenes). Além disso, a própria
referencia passa a acontecer como algo subsistente.
Ao assumir o caráter de algo subsistente, a referencia se transforma numa
relação entre entes subsistentes. Em outros termos, a descoberta se transforma na
concordância subsistente de uma relação, igualmente subsistente, entre o
pronunciamento e o que é pronunciado. Para Heidegger, com o adensamento da
percepção de que a concordância nada mais é do que uma relação entre subsistentes, ou
seja, quanto mais se admite, sem reservas, que a relação é composta somente por
subsistentes, certamente, a referencia se manifesta como uma concordância subsistente.
Com a dominância do pronunciamento, a descoberta se dirige, integralmente, para o
modo de ser do disponível intramundano. Contudo, devido ao fato de que nele
permanece uma referencia a um sentido subsistente, a descoberta se torna uma “relação
subsistente entre subsistentes (intellectus et rei)”
76
.
Por estas orientações, o fenômeno da descoberta, fundado na abertura do Da-
sein, transforma-se num ser subsistente” que preserva um caráter relacional e, por
conseguinte, torna-se uma relação meramente subsistente. Para Heidegger, a verdade se
transforma numa concordância entre entes subsistentes encontráveis em um mundo.
Dessa forma, o que se obtém é o condicionamento mínimo para demonstração do
caráter ontologicamente derivado do conceito tradicional de verdade. Visando um
aprofundamento da análise, a tese de que o “lugar” autêntico da verdade é o juízo se
constitui, no fundo, como um desconhecimento (Verkennung) da estrutura da verdade
76
Op. cit., p. 297.
110
(Wahrheitsstruktur). Isso significa afirmar, categoricamente, que a enunciação não
corresponde ao “lugar” primário da verdade. De modo inverso, a enunciação, enquanto
modo apropriativo da descoberta e do ser-no-mundo, funda-se na descoberta, ou melhor,
na própria abertura do Da-sein. Ela, sim, consiste no “lugar” ontológico-existencial da
enunciação, e, ao mesmo tempo, configura-se como a condição possibilitadora para que
a enunciação possa ser, a sua maneira, verdadeira ou falsa, isto é, descobridora ou
encobridora.
O que se atinge com estas articulações é o entendimento de que a verdade, no
seu sentido originário, pertence à constituição fundamental do Da-sein, portanto ela é
um existencial. Por intermédio disso, segundo Heidegger, libera-se a resposta (Antwort)
à questão acerca do modo de ser da verdade, e do sentido da indispensabilidade da
pressuposição de que a “verdade se dá”. De que forma, então, necessita ser conduzido o
exame? Enquanto constituído através da abertura, o Da-sein é na verdade. Assim, a
abertura é um modo de ser essencial do Da-sein, pois “a verdade apenas se enquanto
e contanto que o Da-sein seja”
77
. Inicialmente, estas formulações intencionam indicar
que sem o Da-sein não há verdade, uma vez que, sem ele, a verdade não pode acontecer
enquanto abertura, descobrimento e descoberta.
Para a ontologia fundamental, toda a verdade está em conformidade ao ser do
Da-sein, na medida em que sua maneira de ser possui o caráter deste ente. Em virtude
destas afirmações, um problema passa a ocupar um lugar determinante. Por estar
vinculada essencialmente ao caráter do Da-sein, será que a verdade depende de uma
determinação “subjetiva”? A verdade é, antes de tudo, relativa ao “sujeito”? Para
77
Op. cit., p. 299.
111
Heidegger, se o “subjetivo” é considerado, pura e simplesmente, como o que decorre da
arbitragem do sujeito”, seguramente não. No seu sentido mais específico, o
descobrimento retira a enunciação do âmbito do “sujeito”, dirigindo o Da-sein para o
próprio ente. Somente porque a verdade enquanto descobrimento é um modo de ser do
Da-sein, é que ela pode ser subtraída do domínio “subjetivo”.
Além disso, a validade universal (Allgemeingültigkeit) está fundada no fato de
que o Da-sein pode descobrir e liberar o ente em si mesmo”
78
. Segundo Heidegger,
apenas através do descobrimento e da liberação é que o ente pode em si mesmo se
prender à enunciação, ou seja, a sua própria apresentação demonstrativa. Nos limites do
§44, estas posições, bastante sintéticas e insuficientes, visam anunciar que o problema
ontológico da subjetividade requer, sim, o seu pertencimento ao domínio da verdade.
Mais do que isso, somente a partir de certos desenvolvimentos da questão da verdade é
que a tematização da “subjetividade” e do “subjetivo” se tornam necessárias. Por
conseguinte, o que propicia o nexo mais fundante entre verdade e “subjetividade”
permanece obscuro, ainda que traços laterais já sejam visíveis.
Contudo, o norteamento da análise para o problema da pressuposição da verdade
(Wahrheitsvoraussetzung) se torna clarificável mediante o modo de ser existencial da
verdade. Assim, “Porque nós devemos pressupor que a verdade se dá?
79
. Para
Heidegger, esta pergunta traz consigo os elementos centrais para a sua visualização.
Antes de qualquer coisa, a análise precisa se voltar para o sentido fenomenológico do
“pressupor”, no âmbito da ontologia fundamental. Gradualmente, o que necessita ser
78
Op. cit., p. 301.
79
Op. cit., p. 301.
112
explicitado é o sentido do “devemos” e do “nós”. Através deste encaminhamento, o que
assume um papel destacável é a elucidação de que a verdade se dá”. Pelo que pode ser
alcançado até aqui, “nós” pressupomos verdade porque, sendo no modo de ser do Da-
sein, somos nela. O que isso pretende revelar? Fundamentalmente, que “nós” não
pressupomos verdade enquanto algo “exterior” ou “acima de nós”, acerca do qual “nós”
precisamos nos comportar valorativamente de uma ou de outra maneira. Objetivando
um melhor aprofundamento, o somos “nósque pressupomos verdade, porém é ela
mesma que possibilita ontologicamente que “nós” sejamos de modo a pressupor alguma
coisa. Em outras palavras, a verdade é a condição possibilitadora de toda e qualquer
pressuposição.
Portanto, o que significa “pressupor”? “Compreender algo enquanto o
fundamento do ser de um outro ente
80
. Assim, a compreensão dos entes nos seus nexos
essenciais (Seinszusammenhängen) somente é possível no fundamento da abertura (auf
dem Grunde der Erschlossenheit), isto é, no ser-descobridor do Da-sein. Com maior
radicalidade, pressupor verdade significa considerá-la enquanto o em-vista-do-que o
Da-sein é. Todavia, como a análise evidenciou, o Da-sein, precisamente na
constituição do cuidado, sempre se antecipa a si mesmo. Nesta antecipação de si,
fundamentada no projeto, o que está em jogo é o poder-ser mais próprio do Da-sein.
Como conseqüência direta disso, tanto a abertura quanto o descobrimento pertencem,
inequivocamente, ao poder-ser (Seinkönnen) do Da-sein enquanto ser-no-mundo.
De um modo mais efetivo, o que está em questão, no Da-sein, é o seu poder-ser-
no-mundo (In-der-Welt-sein-können). No cuidado, enquanto antecipação de si reside o
80
Op. cit., p. 301.
113
pressupor mais originário”
81
. Esta pressuposição é, sem dúvida, a abertura. Portanto, a
determinação mais essencial da projeção antecipatória de si do Da-sein está enraizada
na abertura. É estritamente neste sentido que o Da-sein é condicionado pela verdade,
isto é, pela pressuposição originária. No entanto, esta pressuposição não se comporta
para com os entes não dotados do modo de ser do Da-sein. Para a analítica do Da-sein, a
pressuposição da abertura alcança um momento estruturante nuclear do ser-a-si-mesmo
do Da-sein. Somente porque a pressuposição estrutura o poder-ser do Da-sein é que,
para Heidegger, deve-se pressupor, consecutivamente, que “nós” somos, também,
determinados pela abertura.
Pelo que se torna perceptível, a verdade possibilita antecipações e, mais do
que isso, corresponde à pressuposição primordial. Contudo, o caráter desta
pressuposição é bastante singular. Tal como Heidegger enfatiza, a “verdade se dá”. O
que isso quer dizer? Mesmo que de modo insatisfatório, o “se dá” da verdade, pelo qual
se deve determinar o seu ser, detém o sentido do ser do Da-sein. Assim, a conceituação
da pressuposição da verdade é atingível porque, antes de tudo, ela, desde sempre, faz-se
no e através do “ser do nós”, ou melhor, do modo de ser do Da-sein. Sugestivamente,
estas articulações pretendem indicar que a pressuposição da verdade exige que “nós"
devamos pressupor a verdade. Com isso, o “se dá” necessita ser enquanto abertura do
Da-sein, assim como esta abertura deve ser, sempre e a cada vez, “nossa”. Para a
autolimitação do método fenomenológico, há a presença da dependência recíproca entre
a abertura de si do Da-sein e a determinação mais essencial do sentido da verdade.
81
Op. cit., p. 301.
114
Estas posições do §44 permitem o ingresso num território igualmente capital.
Devido à conexão da verdade à estrutura do Da-sein, o desenvolvimento da questão da
verdade diz respeito, certamente, à facticidade do Da-sein, ou seja, ao caráter de ser-
lançado no mundo. Por conseqüência disso, a ontologia fundamental precisa assumir a
tarefa de aclarar se, na ambiência da facticidade, o Da-sein se decide livremente acerca
da possibilidade de se manifestar de modo mais próprio ou não. Este aspecto é muito
importante porque, pelo que foi elucidado, o ente que não possui o modo de ser do
Da-sein, isto é, o ente descoberto não traz em si nenhum traço pelo qual se pode
perceber que há, necessariamente, verdade e descoberta. Visando uma melhor
aproximação, o juízo, lugar” da verdade tradicional, exibe que a ão de julgar
pressupõe a verdade, ou melhor, a descoberta.
De acordo com Heidegger, o próprio juízo indica formalmente a pressuposição
da verdade. Ele indica, no fundo, que a enunciação, em seu modo de ser, é um
descobrimento. Entretanto, esta assinalação não consegue esclarecer a razão de ser do
caráter de descobrimento da enunciação, assim como o localiza o nexo, na
estruturação do Da-sein, entre enunciação e verdade. Ao mesmo tempo, mantém-se
ainda muito obscuro o modo de ser da verdade, e o sentido do pressupor e de sua
fundamentação ontológica no Da-sein. Certamente, o que dificulta o alcance destes
constitutivos se encontra no fato de que “não se pode demonstrar o ser da verdade”
82
.
Porque o Da-sein não pode se pôr a si mesmo à prova (Beweis), a verdade enquanto tal
não se deixa demonstrar na sua necessidade (Notwendigkeit), portanto o caráter de
82
Op. cit., p. 302.
115
dação da verdade não é passível de demonstração, ou melhor, não é tematizável
epistemologicamente.
Por estas articulações, mesmo que laterais, o estabelecimento da questão da
verdade mostra, de maneira bem sutil, a presença de um elemento definidor. Para
Heidegger, a filosofia “possui como tema o a priori e não o meramente positivo”
83
. Por
conta disso, o que precisa ser dimensionado adequadamente é o modo de ser do a priori,
uma vez que o esclarecimento da pressuposição da verdade requer, antes de qualquer
coisa, a detecção do que o compõe. Nestes termos, o que aparece em primeiro e
corresponde, por conseguinte, ao mais próximo para a análise ontológica é, sim, a
facticidade do Da-sein. Dessa maneira, ocorre a indicação formal do pertencimento do a
priori à facticidade. Através destes delineamentos, cabe ser procurada na facticidade a
determinação ontológica de que o Da-sein, co-originariamente, encontra-se na verdade e
na não-verdade. O que isso pretende apontar?
Para a elaboração da ontologia fundamental, os conceitos de uma “egoidade
pura” (reinen Icheit) e de uma “consciência em geral” (Bewußtseins überhaupt) são
inteiramente improdutivos frente à caracterização da facticidade e da constituição do
Da-sein enquanto tal. Neste sentido, a rejeição da “consciência” não significa, de
nenhuma maneira, a impossibilitação do a priori. Ao contrario, Heidegger admite, ainda
que sinteticamente, que a aprioridade do Da-sein, radicada na facticidade, jamais pode
ser assegurada através do posicionamento, apenas teórico-especulativo, de um “eu”
constituído como idealidade, tal como ocorre, em larga medida, na fenomenologia de
Husserl. No texto de 26, a via a ser traçada diz respeito, precisamente, ao ir ao encontro
83
Op. cit., p. 303.
116
da fenomenalidade do Da-sein, sem que se pretenda, de uma vez por todas, persistir na
sua idealização e absolutização.
Nos limites do §44, o ser da verdade (Sein der Wahrheit) mantém, e isso é
decisivo, uma conexão originária com o Da-sein. Unicamente porque o Da-sein se
constitui através da abertura, ou seja, pela compreensão, no projeto antecipatório, é que
se pode, do ponto de vista fenomenológico, compreender o Ser e tornar esta
compreensão tematizável. Objetivando uma intensificação pertinente, o “Ser- não ente -
somente se porque a verdade é”. Ao seu modo, ela é na estrita medida em que o Da-
sein acontece. Ser e verdade são, portanto, de um modo co-originário. Isso significa
dizer, peremptoriamente, que o questionamento efetivo do Ser decorre do
esclarecimento prévio do sentido e da estrutura da compreensão do Ser enraizada no
Da-sein. Em Ser e Tempo, apenas por esta orientação se torna discutível o que diz
respeito a uma ciência do Ser enquanto tal (Wissenschaft vom Sein als solchem), a partir
de suas possibilidades (Möglichkeiten) e variações (Abwandlungen).
Em decorrência direta disso, a real delimitação da análise, isto é, da investigação
por este fundamento é que sustenta a possibilidade de determinar o que se procura como
a descoberta dos entes, na e a partir da verdade que lhes corresponde.
Conseqüentemente, a “resposta à questão do Ser ainda precisa ser atingida”
84
. No texto
de 26, o domínio preparado pela analítica do Da-sein consiste, mediante a liberação
(Freilegung) do cuidado, no esclarecimento da constituição ontológica dos entes que
pertencem a algo enquanto a compreensão do Ser. Dessa maneira, percebe-se, sem
dúvida, uma distinção no modo de ser do Da-sein em relação ao ente que não detém o
84
Op. cit., p. 304.
117
seu caráter fundante, ou seja, a compreensão do Ser. Todavia, isso não assegura o
aclaramento da compreensão, pois o que se obtém é somente a transparência
metodológica (methodische Durchsichtigkeit) do processo de compreensão e
interpretação do Ser.
Mediante estas articulações, alcança-se, certamente, os limites inultrapassáveis
do §44. O texto de 26, no que concerne ao estabelecimento do problema da verdade,
exibe, como seu condicionante mais central, a assunção de que através do cuidado, ou
melhor, da constituição primária do Da-sein, pode-se, na intensificação do método
fenomenológico, circunscrever o sentido do Ser, a partir da conceituação da
compreensão do Ser, fundada na diferença entre Ser e ente. Porém, a indicação de que o
cuidado constitui o Da-sein possui um escopo universal e definidor? Mesmo que de
maneira preliminar e, mais do que isso, pouco consistente, Heidegger afirma que não há
uma evidência na qual o cuidado pode ser, de uma vez por todas, considerado o que
permite a “abertura” da estruturação mais originária do Da-sein.
Por conta disso, a pergunta mais direta consiste, sim, no esclarecimento da real
possibilidade ou não de que a multiplicidade estrutural (Strukturmannigfaltigkeit) do
Da-sein, concentrada no cuidado, garanta o acesso à totalidade (Ganzheit) mais primal
da facticidade deste ente. Neste sentido, a pergunta mais envolvente e, devido a isso,
mais inacessível, pelo menos até aqui, corresponde à produtividade do exame frente à
necessidade da exposição, de acordo com os motivos mais centrais de Ser e Tempo, do
que caracteriza o Da-sein no seu todo. Seguramente, o delineamento da questão da
verdade, tal como apresentado no texto de 26, lança a investigação, isto é, a
intensificação da ontologia fundamental num domínio preenchível apenas pelo que
118
passa a ter primazia nos cursos de 27 e 28, de acordo com o que foi analisado no
primeiro e segundo capítulos. O que isso intenciona revelar?
O curso de 28, As Fundações Metafísicas da Lógica, firma, de um modo
definitivo, que unicamente através do aclaramento contínuo da mesmidade do Da-sein,
de acordo com o que foi exposto no terceiro capítulo, pode-se vir a alcançar uma
visualização satisfatória da totalidade do que está em jogo, ou seja, da estruturação
metafísica deste ente. Em outros termos, ao estabelecer que a tarefa premente consiste,
sem dúvida, na radicalização da ontologia fundamental, Heidegger, ao longo dos anos
de 28 e 29, está indicando, dentre outras coisas, que o dimensionamento da questão da
verdade precisa ser efetuado de um modo mais nuançado. No que constitui a
centralidade do curso de 28, estas necessidades, porém, permanecem ainda pouco
presentes, mesmo que certas articulações sejam pré-figuradas, como, por exemplo, a
intricada relação entre verdade e fundamento, no âmbito do problema da
transcendência.
Objetivando uma aproximação mais fecunda, o curso do semestre de inverno de
28/29, Introdução à Filosofia, propicia uma tematização da questão da verdade muito
mais afinada com os propósitos que norteiam o pensamento do primeiro Heidegger,
durante o final da década de 20. Inicialmente, o texto de 28/29 assume o encargo de
elaborar, mesmo que de maneira limitada, a conceituação da essência original da
verdade (ursprünglichen Wesen der Wahrheit). Entretanto, um esclarecimento se torna
urgente e indispensável. A limitação do que é estabelecido no curso de 28/29 decorre,
antes de tudo, do fato de que a sua motivação mais imediata concerne à pergunta acerca
da essência da ciência. Por conta deste condicionamento, a questão da verdade surge
119
como o constitutivo capital da relação entre filosofia e ciência. Assim, em virtude desta
orientação, pelo menos no curso de 28/29, ocorre, como foi dito, o redirecionamento
do “lugar” da verdade na metafísica do Da-sein.
Entretanto, mesmo que a finalidade seja a de elucidar o sentido primordial da
ciência, o que é exibido, no §12 do curso de 28/29, permite um acesso decisivo ao
questionamento fenomenológico da verdade. Em primeiro lugar, Heidegger afirma que
a resposta à questão da verdade depende, fundamentalmente, do êxito que se obtém na
clarificação do Da-sein enquanto tal. Muito mais relevante do que isso, o que precisa ser
realizado é uma conceituação da estrutura do Da-sein na e a partir de sua possibilidade
mais interna. Em conformidade ao que está sendo posto, apenas por este norteamento é
que se torna visível, numa perspectiva analítica, o pertencimento do Da-sein à verdade,
ou melhor, à questão da verdade na sua inteireza. Por conseguinte, de que forma
Heidegger propicia, no §12, os desenvolvimentos necessários?
É imprescindível destacar que, na condução inicial da análise, o conceito de
mesmidade do Da-sein assume o primeiro plano. Através dele, o que se mostra como o
mais pertinente corresponde, por certo, ao caráter da tríplice determinação da existência.
Dizendo de um outro modo, o Da-sein possui uma triplicidade determinativa na qual,
co-originariamente, ele acontece enquanto “ser-junto-a” (sein-bei), “ser-com” (mit-sein)
e “ser-a-si-mesmo” (Selbstheit). No curso de 28/29, a intensificação metodológica parte
da necessidade da fixação e da retenção do que compõe o Da-sein enquanto “ser-junto-
a”. No fundo, o que está sendo assinalado, do ponto de vista formal, é que por
intermédio da explicitação do condicionamento mais específico do “ser-junto-a”, a
estruturação primal do Da-sein se torna atingível para a ontologia fundamental.
120
Por estes primeiros norteamentos, a primazia do ser-junto-a” consiste na
rejeição do enunciado enquanto o território mais apropriado da verdade. Isso significa
dizer, categoricamente, que a enunciação e a suposta concordância entre juízo e coisa”
deixam, de uma vez por todas, de ocupar um papel fundante. Devido a isso, o que se
pretende encontrar é o que constitui o “ser-junto-a”, uma vez que apenas nos seus
elementos constitutivos torna-se possível definir com mais agudeza a existência no seu
conjunto, e, consecutivamente, o sentido ontológico da subjetividade, sem o qual o
entendimento da enunciação e da relação usual entre “sujeito” e “objeto” permanecem
bastante obscuros. Como, então, Heidegger efetiva a análise, no curso de 28/29?
Antes de tudo, Heidegger enfatiza que a estadia (Aufenthalf) do Da-sein nos
entes possui, sim, modificações (Modifikationen) notáveis. Portanto, não a
indispensabilidade de que a ocupação (Beschäftigung) seja tomada como o sentido por
excelência do modo de ser do Da-sein em relação aos entes que não possuem o seu
caráter. Na realidade, a “ocupação com as coisas é somente um modo especialmente
determinado no interior da estadia nelas”
85
. Buscando um melhor entendimento, ao
“dirigir a atenção” (Augenmerk) ao ente intramundano, o Da-sein, como o que ocorre na
enunciação, atinge a propriedade (Eigenschaft) do ente. Para Heidegger, ao dar atenção
ao ente, o Da-sein experiencia que o próprio ente se encontra, de modo subsistente,
diante dele. Neste sentido, pertence ao caráter do atencionar (Aufmerken) a percepção de
que o ente se mantém, antecipadamente, como algo subsistente, mesmo antes de toda e
qualquer apreensão e tomada de posição, cognitiva ou não, acerca dele.
85
HEIDEGGER, Martin. Einleitung in die Philosophie. Gesamtausgabe, Band 27. Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, 1996-2001, p. 74.
121
Sugestivamente, estas articulações pretendem mostrar que, no atencionar, o Da-
sein não traz nenhuma determinação do ente. Distintamente disso, é o próprio ente que
“vai ao encontro” do Da-sein. O que isso pretende indicar? No desenvolvimento da
questão da verdade, o atencionar, certamente uma atividade (Tätigkeit) do Da-sein, ou
melhor, algo como uma ação espontânea, constitui-se, na sua máxima internalidade,
enquanto um deixar-vir-ao-encontro (Begegnen lassen). Em decorrência destas
posições, no cerne do atencionar reside, sem dúvida, um nexo extremamente sutil e
singular entre atividade e passividade. Na medida em que se constitui, desde o seu
fundamento, pelo deixar-vir-ao-encontro, o atencionar corresponde a uma passividade
bem particular, isto é, a uma receptividade (Receptivität) especial.
Para Heidegger, ela se caracteriza, ainda que de um modo indireto, por não
conter em si uma impressão (Eindruck) de algo “exterior”. Além disso, a receptividade
do atencionar o se configura como uma saída do Da-sein de si mesmo, na qual ele
passa a estar num outro domínio entitativo. Por um outro ângulo, esta receptividade não
se conserva como uma interiorização (Drinnung); do mesmo modo que “não é uma
relação causal, muito menos uma transcendência invertida”
86
. Em outros termos, o
deixar-vir-ao-encontro é, a sua maneira, uma espontaneidade (Spontaneität) cujo caráter
intencional detém o aceitar, o receber, ou seja, a própria receptividade. O que estas
posições pretendem revelar?
No adentramento do conceito de ser-junto-a”, a vinculação da espontaneidade
ao pensar (denken) e, de maneira mais geral, à atividade da consciência (Bewußtsein),
principalmente em Kant, restringe a compreensão da própria espontaneidade a uma
86
Op. cit., p. 74.
122
determinação do ente, no e através do pensar, unicamente por intermédio de atribuições
lógicas, o que, para Heidegger, corresponde a um equivoco fundamental (Grundirrtum).
Muito diferentemente disso, a espontaneidade, quando aclarada fenomenologicamente,
exige uma receptividade peculiar. Estritamente falando, no cerne do atencionar uma
livre dação (Freigebung) ao ente, ou melhor, um deixar-ser o ente para que ele se
mostre (sich zeigen) tal como é.
No curso de 28/29, estas posições permitem uma agudização essencial do
exame. O que está sendo afirmado, no fundo, é que a possibilidade da manifestação
(Offenbarkeit) do ente detém traços muito particulares. Segundo Heidegger, o ente só se
manifesta a partir de uma remissão (Verweisung) ao todo que, desde sempre, envolve-o.
O que isso quer dizer? Primeiramente, que a manifestação do ente depende de uma
“assunção” prévia do todo, ou melhor, do que parece determiná-lo enquanto tal. Em
virtude disso, o deixar-ser o ente, caráter fundamental do “ser-junto-a”, radica no
desvelamento (Enthülltheit) antecipado da determinação do sentido (Sinn) do próprio
ente. Assim, enquanto “ser-junto-a”, o Da-sein se comporta para com a diversidade
(Mannigfaltigkeit) do ente intramundano a partir da mostração imediata do que
configura a totalidade do domínio entitativo.
Visando um melhor aprofundamento, a manifestação do ente em si mesmo é
propiciada porque, antecipatoriamente, o próprio ente está desencoberto. É precisamente
o desencobrimento, ou melhor, o não-encobrimento (Unverborgenheit) que impulsiona,
de modo mais primal, a atencionalidade do Da-sein, nos seus traços mais importantes. O
não-encobrimento, portanto, diz respeito ao mais nuclear da atividade do Da-sein. Em
123
outras palavras, a “manifestação do ente é um o-encobrimento”
87
. Mais do que isso, o
não-encobrimento compõe o sentido inaugural do termo a-léthéia, ou seja, do que é
considerado como sendo a verdade. Desse modo, o verdadeiro, entendido como o não
encoberto, é o ente em si mesmo. Tal como Heidegger distingue, não é a enunciação
acerca do ente que é verdadeira, mas, sim, o ente enquanto tal. Na clarificação do
fenômeno da verdade, somente devido ao caráter de ser-verdadeiro do ente é que “as
proposições sobre ele podem ser verdadeiras num sentido bastante derivado”
88
.
Até este momento estruturante da análise, o que se atinge é que o sentido da
verdade (a-léthéia) é o não-encobrimento. Contudo, o que cabe ser destacado é que no
termo grego há, estranhamente, a introdução de uma determinação negativa (negative
Bestimmung), isto é, de um “a privativo. O que se intenciona assinalar? Para
Heidegger, na medida em que o conceito de verdade (Begriff der Wahrheit) pertence a
uma operação privativa, o que está sendo firmado, de modo categórico, é que o ente,
antes de tudo, necessita ser arrancado do encobrimento (Verborgenheit). Em
decorrência direta desses arranjos, a análise se depara com uma pressuposição muito
singular. Primeiramente, o ente reside no encobrimento. Desse modo, o estabelecimento
da questão da verdade deve clarificar o porquê da permanência inicial do ente no
encobrimento. De uma maneira mais enfática, o que importa é a elucidação do caráter
do acontecimento que produz, por assim dizer, a permanência no encobrimento.
Além destas tarefas, a ontologia fundamental, pelo seu teor intensificatório,
precisa tematizar, o que é bem mais complexo, o modo mais usual do encobrimento do
87
Op. cit., p. 78.
88
Op. cit., p. 78.
124
ente, pois, tal como está sendo exposto, ele se constitui, sem dúvida, como o “a priori”
do questionamento da verdade. Em outras palavras, sem a devida tematização do que
de mais específico no encobrimento, o sentido da verdade enquanto não-encobrimento
não assegura o seu status ontológico. Para Heidegger, a afirmação de que ocorre a
primazia do encobrimento frente ao não-encobrimento deve ser considerada como uma
“contribuição” imprescindível da fenomenologia. Todavia, a orientação para o
esclarecimento da conexão entre encobrimento e não-encobrimento depende de um
adensamento do caráter de “ser-junto-a” do Da-sein.
Pelo que a análise atingiu, a centralidade do atencionar consiste numa dação
livre, ou melhor, num deixar-ser o ente na sua manifestação. Porém, como dimensionar
o sentido mais específico do deixar-ser? No §13 do curso de 28/29, Heidegger firma que
na determinação do Da-sein enquanto ser-junto-a” há, indispensavelmente, o
envolvimento pelo deixar-ser. Nele, o que ocorre é a entrega (Überlassung) do ente para
ele mesmo. Efetivamente, portanto, o deixar-ser detém o modo de ser da entrega, ou
seja, da cessão de algo para algo. Em outros termos, ao entregar o ente a ele mesmo, o
Da-sein, na sua estruturação, está deixando com que o ente seja, ou melhor, es
possibilitando a manifestação do ente nele mesmo. Além destes traços, a entrega revela,
por sua vez, a nuclearidade da ação do Da-sein, que ela encerra, de maneira
indepassável, a relação entre “espontaneidade” e “receptividade”, ainda que numa
visualização insatisfatória.
Certamente, o deixar-ser possui um status globalizante, na medida em que ele
subjaz a todo e qualquer comportamento frente ao ente. Por anteceder, se o termo é
pertinente, à pluralidade dos modos de comportamento do Da-sein em relação ao ente, o
125
deixar-ser, na elaboração da verdade, corresponde a um particular “desinteresse” frente
ao ente. Buscando um melhor entendimento, o que se pretende indicar é que o deixar-
ser consiste na indiferença (Gleichgültigkeit) do Da-sein com respeito ao ente enquanto
tal. No domínio da radicalização da ontologia fundamental, a indiferença do Da-sein
pertence, inequivocamente, a sua essência metafísica. No fundo, tal como Heidegger
enfatiza, a “indiferença somente é possível no cuidado”
89
. O que é necessário, então,
para uma elaboração mais consistente destes arranjos?
Nos limites do curso de 28/29, a indiferença deve ser considerada como um
descuido (Lässigkeit). Entretanto, este descuido, no interior do entregar, não pode ser
entendido como uma negligência (Unterlassen), isto é, como um deixar de realizar algo
imprescindível. Distintamente disso, através do descuido, torna-se possível atingir o
mais interno do deixar-ser. Por este encaminhamento, o deixar-ser deve ser prefigurado
como um “agir mais elevado e originário”
90
. De maneira mais destacada, o
possibilitador do deixar-ser se encontra na essência do fundamento do Da-sein: a
liberdade. Portanto, apenas por intermédio da intensificação do problema da liberdade é
que a conceituação ontológica do deixar-ser se faz possível. Sem que se procure um
encurtamento analítico, o nexo entre indiferença e descuido, indispensável para a
aproximação com o deixar-ser, também depende de uma penetração mais nuançada no
problema da liberdade.
Apesar de lançar estas posições cruciais, o curso de 28/29 não se dedica ao
dimensionamento propriamente dito delas. Para intensificação da questão da verdade,
89
Op. cit., p. 102.
90
Op. cit., p. 103.
126
porém, o que necessita ser ressaltado é que o deixar-ser unicamente acontece na estrita
medida em que o que nele se manifesta, ou seja, o ente em si mesmo é verdadeiro. Isso
significa dizer que existe, seguramente, um vínculo condicional entre o deixar-ser e a
verdade, ou melhor, o não-encobrimento. Em outras palavras, é admissível indicar
formalmente que o deixar-ser é, mesmo, a condição ontológica mais imediata da
verdade. Por uma outra perspectiva, torna-se perceptível que a manifestação mantém
com o encobrimento uma relação primordial, e que ainda não tem como ser
adequadamente tematizada.
A admissão da incompletude das posições apresentadas até aqui não
impossibilita, de modo peremptório, o aprofundamento do exame no curso de 28/29.
Mediante as articulações já presentes, a tentativa de adentramento, mesmo que limitado,
na questão da verdade se dá, inicialmente, no §27. Nele, Heidegger firma que o deixar-
ser constitui a ação originária (Urhandlung) do Da-sein, da qual dependem, sem
exceção, todas as formas de comportamento em relação ao ente. Isso significa assinalar,
o que é muito relevante, que a análise deve se dedicar, por inteiro, à clarificação do que
pertence ao núcleo do deixar-ser. Em outras palavras, o que se intenciona encontrar é,
mesmo, o potencializador mais abrangente da ação original do Da-sein. Para Heidegger,
o que torna possível a ação original é a projeção antecipada (vorgängige) e, ao mesmo
tempo, não objetual (ungegenständliche) da constituição do ser do ente
(Seinsverfassung des Seienden). O que isso quer dizer?
Seguramente, a projeção precedente do ser do ente deve ser tomada como o
próprio deixar-ser do ente. O “projetar enquanto deixar-ser corresponde à ação
127
originaria da existência”
91
, no qual se concentra a possibilidade mais interna da
manifestação em vista do seu caráter de ser verdadeiro, isto é, de seu não-encobrimento.
Entretanto, no que consiste a projeção em si mesma? Primeiramente, o que importa ser
realçado é que a projeção da constituição do ser do ente manifesta-se como ser-na-
verdade (In-der-Wahrheit-sein) na possibilitação da própria verdade. Neste sentido, há a
detecção, ainda que preliminar, de uma relação essencial entre a projeção e a essência
da verdade (Wesen der Wahrheit). Assim, o problema mais central passa a ser o do
entendimento do modo de ser do vínculo entre a essência da verdade e a projeção.
Contudo, esta problematização não tem como se dar imediatamente. Para a
ontologia fundamental, o que se torna indispensável é o aclaramento do que ocorre na
própria projeção. Nestes termos, a compreensão de si do Da-sein traz, sempre e a cada
vez, algo como o é”, o “era”, e, geralmente, o ser”, sem que se atinja uma
conceituação desta compreensão. Pondo de uma outra maneira, no acontecimento do
Da-sein não há, na maioria das vezes, o asseguramento das possibilidades que
propiciam o entendimento de algo como o “ser”. Para Heidegger, porém, é por esta
peculiar compreensão do Ser que o ente enquanto tal se torna apreensível”
92
. Portanto,
a compreensão do Ser entende o ser do ente, isto é, ela sempre se dirige, previamente,
ao ente enquanto ente no que diz respeito ao seu ser”. Por essa razão, a compreensão
do ente enquanto ente, no e a partir do seu ser, é, sem dúvida, compreensão ontológica.
Visando uma elucidação mais consistente destas posições, a compreensão do Ser
ilumina e, ao mesmo tempo, conduz todo o comportamento frente ao ente. No entanto,
91
Op. cit., p. 199.
92
Op. cit., p. 200.
128
esta compreensão não pode ser considerada ontológica, já que ela não se efetua
mediante uma conceituação expressa do Ser. Em decorrência direta disso, a metafísica
do Da-sein necessita denominá-la de compreensão pré-ontológica (vorontologische).
Para Heidegger, o direcionamento para o ente, ou seja, todo o comportamento ôntico
está alicerçado numa compreensão pré-conceitual do Ser. Por conta disso, a ontologia
fundamental deve se voltar, incontornavelmente, para o desenvolvimento da apreensão
explicita do Ser, pois, pelo que se obtém, apenas por esta via é, de fato, gerada a
possibilidade da exposição do ente enquanto tal, através do seu caráter de ser-
verdadeiro. No curso de 28/29, a intensificação metodológica da análise decorre da
pressuposição de que a projeção mantém com a verdade um nexo primordial. Tal como
foi firmado, no seu sentido mais abrangente, o projeto da constituição do Ser é uma
compreensão pré-ontologica. Por essa indicação, o que importa ser destacado é que o
ente, devido a sua dependência em relação ao Ser, manifesta-se de um modo pré-
apreensivo, ou seja, pré-conceitual. A relevância disso consiste no fato de que o “não
encobrimento do ente se compõe a partir desta pré-conceitualidade”
93
. Assim, é apenas
por intermédio desta forma pré-temática de não-encobrimento que o ente pode se dar, e,
consecutivamente, vir a ser conceituado de um modo apropriado. Para Heidegger, por
conseguinte, a conceituação expressa do ente é, sim, sobredeterminada pelo como da
conceituação do Ser. O entendimento do ente se faz através das especificidades do
questionamento do Ser.
O que, então, caracteriza o projeto da constituição do Ser? Fundamentalmente, o
seu enraizamento no Da-sein. Por este apontamento, a existência, na sua estruturalidade,
93
Op. cit., p. 202.
129
é o “lugar” da dação do Ser. Por outro ângulo, o comprometimento (Bindung) do Da-
sein consigo decorre do que é compreendido no projeto. Pelo que exibe o §27, a
projeção, cerne do compreender, implica num certo não-encobrimento do Ser
(Unverborgenheit des Seins). Diante deste arranjo, na “compreensão do Ser, o próprio
Ser é desencoberto”
94
. Em outros termos, a compreensão do Ser possui, também, um
caráter de ser-verdadeiro. No fundo, o não-encobrimento do Ser funda o projeto, isto é,
a “verdade” do Ser é o a priori da constituição do ser do Da-sein, e, em virtude disso, do
ente que o possui a sua maneira de ser. Por preencher, antes de tudo, este papel
fundante na constituição metafísica do Da-sein, o não-encobrimento do Ser deve ser
chamado de verdade ontológica, mesmo que de forma pré-conceitual.
Certamente, estas posições permitem o ingresso no que concerne aos limites
mais estritos do curso de 28/29. No inicio do §28, Heidegger assinala que uma distinção
necessita ser firmada. Ela diz respeito à diferença entre os modos de ser-verdadeiro do
Ser e do ente. A verdade do Ser, ou melhor, o seu não-encobrimento possui o caráter de
desvelamento (Enthülltheit). Isso significa dizer que o Ser pertence, primariamente, ao
velamento, e que, por conseqüência disso, a sua verdade é identificável à retirada deste
velamento. Nota-se, portanto, uma conexão igualmente fundante, no âmbito do Ser,
entre encobrimento, velamento e desvelamento, a qual acentua um aspecto capital do
questionamento da verdade no primeiro Heidegger. Antes de tudo, a verdade ontológica
pertence ao domínio da relação entre velamento e desvelamento.
Como, então, Heidegger caracteriza a verdade ôntica? Por certo, a verdade do
ente detém, num sentido mais geral, o caráter de não-encobrimento. Todavia, a
94
Op. cit., p. 202.
130
singularidade do caráter da verdade do ente reside na manifestação (Offenbarkeit). Em
outras palavras, o não-encobrimento ôntico é manifestação. De maneira mais originária,
o ente possui um modo de ser manifestativo. Por essa razão, não é cabível dizer, do
ponto de vista fenomenológico, que o ente está velado. O velamento, sem dúvida, não
condiz com o domínio entitativo. Objetivando uma melhor elucidação, a saída do
encobrimento pressupõe, no ente, a sua manifestação. O não-encobrimento pertence à
manifestação. Assim, no domínio entitativo, a vinculação mais fundamental se entre
o encobrimento e o conceito metafísico de manifestação.
No curso de 28/29, Heidegger, além de indicar formalmente a distinção entre
verdade ontológica e verdade ôntica, propõe um aguçamento do caráter de ser-
verdadeiro do ente. De um modo bastante sintético, a manifestação do Da-sein não se
iguala à manifestação dos demais entes. A ontologia fundamental deve tomar a
manifestação do Da-sein como abertura (Erschloßenheit). Em virtude disso, os
desenvolvimentos mais nucleares do §44 de Ser e Tempo permanecem sendo os
condutores insuperáveis. Ao lado disso, o caráter manifestativo do ente que não possui o
modo de ser do Da-sein, isto é, o ente intramundano precisa ser entendido como
descoberta (Entdeckeit). Porém, uma dificuldade ineliminável é detectada aqui. Ela diz
respeito à visualização de que existe uma ordem definidora na relação entre abertura e
descoberta. O que isso pretende delinear?
Se a expressão é pertinente, a verdade do ente intramundano está fundada no Da-
sein enquanto ser-no-mundo. Em outros termos, a descoberta se origina na abertura.
Mesmo que de forma preliminar, a descoberta pertence à estruturação da abertura.
Decisivamente, então, a verdade ôntica está concentrada no não-encobrimento do Da-
131
sein, ou seja, na abertura de seu “aí”. Neste sentido, no aprofundamento da questão da
verdade, o Da-sein detém uma primazia ôntica, pois a abertura é imprescindível para
que os entes sejam descobertos, tal como exibido no começo deste capítulo. Sem
dúvida, o Da-sein é na verdade, ao passo que os outros entes se manifestam enquanto
verdadeiros através da possibilitação mais extrema da existência. É precisamente no
nexo fundamental entre Da-sein e abertura que o domínio da verdade ôntica encontra o
seu limite mais singular.
Porém, estas articulações devem ser contrabalançadas. O que significa afirmar
que a verdade pertence ao âmbito mais interno da estruturação do Da-sein? De acordo
com o curso de 28/29, a aproximação com um dos núcleos mais relevantes da
intensificação da ontologia fundamental. De um modo bastante cauteloso, o cerne da
verdade ôntica, isto é, a manifestação enquanto abertura exige, na sua possibilitação
mais extrema, uma verdade mais original: o não-encobrimento do Ser radicado na
compreensão do Ser”
95
. Em vista desta determinação, a abertura do Da-sein encerra em
si mesma um vínculo, extremamente peculiar, com o desvelamento do Ser, concentrado
no fato primário da existência, ou seja, na compreensão do Ser. Inequivocamente, então,
o exame começa a apontar para a efetuação de um nexo ainda mais amplo e, ao
mesmo tempo, bem mais complexo e nuançado.
No dimensionamento da questão da verdade, a radicalização da abertura do Da-
sein se dá, de um modo decisivo, na orientação da análise para o que compõe, num
sentido maximamente primordial, a manifestação deste ente. Procurando uma
explicitação mais produtiva, o caráter mais essencial do Da-sein deve ser apreendido
95
Op. cit., p. 204.
132
tendo-se em vista a verdade original exibida, por sua vez, na compreensão do Ser. Estes
arranjos permitem um duplo encaminhamento. Em primeiro lugar, como foi
mencionado anteriormente, a compreensão do Ser no Da-sein é o que propicia, de
maneira mais direta, com que ele se comporte com o ente na sua inteireza, ou melhor,
com a integralidade do domínio entitativo. Este norteamento da investigação
fenomenológica é possível, e, mais do que isso, ele encerra, nos seus momentos
estruturantes capitais, o que consiste na conceituação da verdade ôntica. Nela, o
desvelamento do Ser é pressuposto, contudo o que interessa é o aclaramento da
manifestação do ente enquanto tal, de acordo com a ordem estabelecida há pouco.
Diferentemente disso, Heidegger acena, no §28 do curso de 28/29, para uma
distribuição de papeis bem especial. Ela não se restringe à afirmação de que a verdade
ontológica é mais original do que a verdade ôntica. Para intensificação da metafísica do
Da-sein, a verdade ontológica se constitui, antes de tudo, na possibilitação efetiva da
verdade ôntica. Portanto, a verdade ôntica está fundada na verdade ontológica. Isso
significa indicar, então, que a conceituação do desvelamento do Ser unicamente pode
ser alcançada na e pela abertura do Da-sein. Melhor explicitando, apenas mediante uma
certa radicalização da abertura, procurando o seu elemento mais original, é que se
penetra no território da verdade ontológica propriamente dita. Com isso, a verdade
ontológica passa a ser uma questão metafísica determinante.
Em vista disso, o que assegura o delineamento do problema da verdade
ontológica? Inicialmente, a percepção de que a essência da verdade concerne ao
território da verdade ontológica, isto é, ao do desvelamento do Ser. Como conseqüência
mais direta disso, a análise, tal como Heidegger salienta, requer, continuamente, uma
133
“interpretação mais radical do Da-sein”
96
. De um modo mais explícito, o motivador do
exame se torna a busca do entendimento do sentido do desvelamento do Ser no que é
tomado como projeção. Assim, o que passa a ocupar um primeiro plano é a tentativa de
conceituação do que possibilita, de um modo mais extremo, a própria projeção. Para
Heidegger, isso propicia a visualização de que o fato fundamental (Grundfaktum) da
existência, ou seja, a compreensão do Ser detém um escopo ainda mais universal e
abrangente.
Sem dúvida, na “compreensão o Ser é desvelado e, no entanto, permanece
encoberto”
97
. Para Heidegger, a intenção da conceituação do sentido, no interior da
projeção, na medida em que o Ser se mantém na ambivalência do velamento-
desvelamento representa, para os limites da ontologia fundamental, a entrada numa
dimensão inteiramente nova, a qual, por sua vez, conduz a determinação do Da-sein à
novos abismos. O que, por conseguinte, deve ser proposto para a agudização do exame?
Estas articulações exigem, daqui para diante, a apreensão do que há de mais essencial na
ação originaria (Urhandlung) do Da-sein. Por esta razão, o deixar-ser (Seinlassen) tem
que ser questionado a partir de seu fundamento, ou melhor, mediante a sua possibilidade
mais interna. Unicamente por esta condução é que algo como a projeção do Ser pode vir
a ser explicitada, no domínio, é claro, da verdade ontológica.
No curso de 28/29, estas indicações cumprem o papel de mostrar que a análise
começa a assumir os problemas mais nucleares. Pelo que se possui até o momento, a
compreensão do Ser consiste, seguramente, num dar o Ser à própria compreensão (Sich-
96
Op. cit., p. 205.
97
Op. cit., p. 205.
134
zu-verstehen-geben-vom-Sein) enquanto projeto (Entwurf). Precisamente pelo seu
caráter de dação, a compreensão implica, em primeiro lugar, numa ação (Handlung) e,
mais do que isso, numa ação em que algo se dá. Nesta ação a permanência da
compreensão no que nela se dá. Do ponto de vista fenomenológico, portanto, a ação tem
o sentido de um mostrar transcendendo. Isso pretende afirmar que o Da-sein é
projetante, e que o seu caráter projetivo é, indispensavelmente, antecipatório. Em outros
termos, o Da-sein necessita previamente dar o Ser a si mesmo para que todo e qualquer
comportamento frente ao ente se efetue.
Para Heidegger, a “projeção é, em certo sentido, prévia, antecedente”
98
, de modo
que o ente apenas se manifesta a partir da compreensão do Ser. De um modo mais
preciso, somente à luz da compreensão do Ser é que o Da-sein permite que o ente venha
ao encontro. Em outras palavras, apenas no entendimento prévio do Ser é que se torna
possível o regresso (Zurück) ao ente. Assim, o comportamento do Da-sein frente ao ente
é, na sua essencialidade, um retorno através da compreensão antecedente do Ser,
radicada na projeção. Devido a essas articulações, por possui um modo de ser projetivo,
o Da-sein está além do este, isto é, o Da-sein está sempre realizando um
transpassamento do ente em seu conjunto. Por certo, é fundamentado neste
transpassamento que o ente se manifesta. Neste sentido, a transcendentalidade do Da-
sein constitui, inequivocamente, o acontecimento fundamental da questão da verdade
ontológica.
O que significa dizer, por conseguinte, que o Da-sein é transcendente? No que
diz respeito ao problema da verdade, a estruturação do Da-sein possui como o seu
98
Op. cit., p. 206.
135
proto-elemento, ou seja, como sua propriedade mais original a elevação (Erhöhung)
deste ente a partir dele mesmo. O que importa ser destacado, entretanto, é que a verdade
ontológica, no seu sentido estrito, é condicionada pela propriedade mais singular do Da-
sein. Nos limites do curso de 28/29, a “verdade ontológica está fundada na
transcendência”
99
. A verdade ontológica é, portanto, verdade transcendental
(transzendentalen Wahrheit). Seguramente, estas posições já permitem visualizar que os
elementos mais relevantes da tematização da verdade são transcendentais. Muito mais
do que isso, em decorrência do pertencimento da verdade à dimensão da transcendência,
a conceituação expressa da verdade ontológica requer, de maneira incontornável, a
determinação definitiva da essência da transcendência.
Sugestivamente, há, na metafísica do Da-sein, uma igualação entre o ontológico
(ontologisch) e o transcendental (transzendental). Ainda que de maneira preliminar,
evidencia-se uma conexão bastante especial entre ontologia e transcendência. Todavia, a
aproximação com estas posições deve ser feita gradualmente. Como foi firmado, o
desvelamento do Ser somente é possível na transcendência do Da-sein. Por conta disso,
o desvelamento detém um caráter de transcendentalidade. Para Heidegger, porém, a
constituição da transcendência não se esgota, ou melhor, não se preenche efetivamente
na verdade ontológica. Muito diferentemente disso, se é imprescindível firmar que a
transcendência é a condição possibilitadora da verdade ontológica, o mesmo não pode
ser dito acerca do desvelamento em relação à transcendência. O que provoca, por assim
dizer, este relacionamento tão particular entre transcendência e verdade?
99
Op. cit., p. 207.
136
Antes de possibilitar a verdade enquanto desvelamento, a transcendência
propicia, e isso é muito mais essencial, a irrupção (Einbruch) do Dasein em e através de
si mesmo, o que, certamente, gera a condição mais central para a manifestação e a
acessibilidade do ente enquanto tal. Pondo de uma outra maneira, na medida em que o
Da-sein transcende a si mesmo, tornando neste movimento o ente em seu conjunto
manifesto, é que algo como a verdade ontológica e a verdade ôntica podem ser
delineadas, e, consecutivamente, explicitadas. Por estas motivações cruciais, o nexo de
co-pertinência da transcendência e do não-encobrimento necessita ser deslindado com
mais cuidado e agudeza.
Na fixação do sentido da questão da verdade, é cabível dizer que a verdade
ontológica e a verdade ôntica, sempre por intermédio da transcendência, conservam
entre si uma relação primordial. Esta relação consiste na diferença entre Ser e ente
(Unterschied von Sein und Seiendem). Nestes termos, o que Heidegger está assinalando
é que a diferença entre Ser e ente necessita começar a ser dimensionada na sua real
amplitude. Assim, por diferença entre Ser e ente o que está sendo subentendido é a
questão da unidade específica (spezifische Einheit) dessa diferenciação, e do como pode
ser esclarecida a distinção entre ambos neste comum-pertencimento
(Zusammengehörigkeit). Portanto, Ser e ente, no que os distingue e os mantém nesta
diferenciação, apenas conseguem ser entendidos pelo que condiciona estruturalmente a
diferença enquanto tal.
Objetivando um melhor aprofundamento, a transcendência, nos limites do curso
de 28/29, deve ser estabelecida não somente como a condição mais possibilitadora da
verdade ontológica e, simultaneamente, da verdade ôntica, além de permitir a conexão
137
entre ambas. O que importa ser destacado, antes de tudo, é que somente através da
transcendência a diferença entre Ser e ente é possível, ou seja, é na e pela
transcendência que a metafísica assegura a sua mais intrínseca estrutura, mesmo que a
diferença ontológica, a seu modo, também não esgote o problema da essência da
transcendência.
Em virtude deste norteamento, a análise deve, daqui para diante, erigir, se o
termo é adequado, as condições indispensáveis para o acesso à essência da
transcendência, a partir do que é visualizável da questão da verdade, isto é, mediante
os conceitos que a compõem. Buscando uma aproximação mais completa, no início do
§29 do curso de 28/29, Heidegger enfatiza que o encaminhamento do exame precisa
assegurar para si a certeza de que o “deixar-ser consiste na ação originária do Da-
sein”
100
. Além disso, o que necessita ser realçado é que o deixar ocorre no interior da
projeção do Ser, ou melhor dizendo, acontece no transcender do Da-sein. Neste sentido,
portanto, a transcendência constitui o acontecer fundamental (Grundgeschehen) da
própria existência.
Para Heidegger, é precisamente por estas determinações que a ontologia
fundamental pode dimensionar de maneira correta, por exemplo, o sentido da
indiferença (Gleichgültigkeit) do Da-sein frente ao ente, uma vez que este traço
marcante do deixar-ser pertence, sem dúvida, ao âmbito da transcendência. Muito mais
decisivo, contudo, é a explicitação de que o deixar-ser emerge de um agir (Handeln)
primordial. No fundo, o deixa-ser consiste, integralmente, neste agir. No seu sentido
mais peculiar, o agir é um ser-livre (Freisein). Isso significa indicar, ainda que de modo
100
Op. cit., p. 214.
138
insatisfatório, que a projeção do Ser, no domínio do transcender, provém de uma ação
livre (freie Handlung). Unicamente onde a liberdade é possível algo como o
comprometimento (Bindung) e a necessidade (Notwendigkeit).
Por conseqüência destes arranjos, a explicitude da transcendência concerne à
ação original da liberdade do Da-sein (Freiheit des Daseins). De maneira mais enfática,
o acontecer do espaço da liberdade (Freiheitraumes) é a transcendência. Tal como
prenunciado no segundo capítulo, na relação entre liberdade e transcendência atinge-se
o fundamento (Grund) da estruturação do Da-sein, isto é, alcança-se o fundamento do
fundamento. O que já se mostra com bastante nitidez é que apenas a intensificação
destes nexos propicia a possibilidade concreta para a transição da questão do sentido da
verdade para o problema, ainda mais primal, de sua essência. Como, então, deve ser
estabelecida a moldagem inicial para isso?
4 DA CONCEITUAÇÃO DO MUNDO À ESSÊNCIA DA VERDADE
A passagem, se o termo é pertinente, da questão da verdade para a questão da
essência da verdade exige, no final dos anos 20, a assunção de condicionantes muito
particulares. Antes de tudo, a certeza de que todo e qualquer desenvolvimento da
questão da verdade ontológica, isto é, do desvelamento do Ser ocorre no domínio da
determinação mais interna da transcendência. Tal como foi mencionado no capítulo
anterior, há, para a metafísica do Da-sein, uma “igualação” metodológica entre verdade
e transcendência. De modo mais preciso, somente a partir da radicalização expressa da
transcendência é que a verdade ontológica atinge o seu núcleo mais essencial. Além
disso, a concentração da análise no problema da transcendência traz consigo,
inegavelmente, a necessidade da explicitação do que gera a relação entre a própria
transcendência e o seu fundamento, ou seja, a liberdade considerada como ação
originária do Da-sein.
Diante destas pressuposições, a metafísica do Da-sein se põe diante, novamente,
do fenômeno do mundo. Todavia, o que passa a ser buscado não corresponde à
descrição de elementos, ou melhor, de caracteres do fenômeno do mundo, o que, sem
dúvida, molda e garante parte significativa do projeto de intensificação da ontologia
fundamental, em especial nos anos de 27 e 28. De acordo com Heidegger, o
140
adentramento na questão da verdade ontológica não pode ser efetivado sem a
compreensão do mundo na sua estruturalidade. Dizendo de uma outra maneira, o que
importa, daqui para diante, é o aclaramento da mundanidade do mundo, uma vez que
sem o alcance do que o define mais propriamente, enquanto acontecer da
transcendência, os traços propiciadores da tematização da verdade ontológica
permanecem muito obscuros.
Certamente, o conjunto destas exigências lança a análise, mais uma vez, no
território da essência do fundamento, ou melhor, no do fundamento do fundamento. Em
vista disso, o curso do semestre de inverno de 29/30, Os Conceitos Fundamentais da
Metafísica, procura, no último capítulo da segunda parte, realizar clarificações centrais.
No início do §64, Heidegger afirma que mediante o suporte da tese comparativa de que
o homem é formador de mundo (der Mensch ist weltbildend), mesmo que ainda não
explicitada positivamente, pode-se chegar a uma caracterização (Kennzeichnung)
preliminar da essência do mundo. Por esta ordenação, o que surge, do ponto de vista
formal, é que “ao mundo pertence a manifestação do ente enquanto tal, do ente
enquanto ente”
101
.
O que deve ser destacado, em primeiro lugar, é que o mundo traz consigo, como
momento decisivo de sua estruturação, o enquanto (als). De um modo mais enfático,
algo enquanto algo (etwas als etwas) está, mesmo, vinculado ao mundo. É
precisamente devido ao pertencimento do enquanto à estruturação do mundo que, para
Heidegger, o ente, em geral, mostra-se enquanto ente. A importância disso reside no
101
Heidegger, Martin. Die Grundbegriffe der Metaphysik. Gesamtausgabe, Band 29/30. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1983-1992, p. 397.
141
fato de que apenas na mostração do ente enquanto tal subjaz a possibilidade do Da-sein
experienciar este ou aquele ente determinado, desta ou daquela maneira. Em outros
termos, o que assegura, sempre e a cada vez, o comportamento variável do Da-sein
frente ao ente é a sua prévia mostração enquanto ente, na e a partir do caráter do mundo
que é o enquanto.
Na caracterização preliminar do mundo, onde ocorre a manifestação
(Offenbarkeit) do ente enquanto tal, a relação com o próprio ente possui,
permanentemente, o caráter do inserir-se-aí (Sich-dar-auf-Einlassens) no sentido de
“deixar e não-deixar-ser o que vem ao encontro”
102
. Por este norteamento, somente onde
ocorre o deixar-ser há, concomitantemente, a possibilidade do não-deixar-ser. Isso
significa afirmar, de modo categórico, que, no Da-sein, a relação com o ente,
determinada pelo deixar-ser, necessita ser entendida como a assunção de um
comportamento, ou melhor, como o assumir um comportamento (Verhalten). Além
disso, o que precisa ser notado é que a assunção de um comportamento apenas é
possível na retenção (Verhaltenheit), na contenção (Verhaltung) e na postura (Haltung).
Estes traços, por sua vez, pertencem ao ente que detém o caráter de ser-a-si-mesmo. O
que estes arranjos iniciais pretendem revelar?
No curso de 29/30, a assinalação destes caracteres do fenômeno do mundo
permite, pelo menos, o delineamento do que está sendo procurado. Antes de tudo, e isso
é decisivo, o mundo corresponde à manifestação do ente enquanto tal. Em segundo
lugar, é imprescindível ressaltar que o enquanto molda o comportamento do Da-sein
em relação ao ente. Além destes dois constitutivos, o vínculo com o ente radica no
102
Op. cit., p. 397.
142
deixar ou não-deixar-ser, isto é, na assunção de um comportamento unicamente
encontrável no ente que possui o caráter de mesmidade (Selbstheit). Contudo, tal como
enfatiza Heidegger, estes caracteres do fenômeno do mundo apenas evidenciam que,
onde quer que eles estejam presentes, o mundo está acontecendo. Portanto, o problema
da essência do mundo, assim como o problema do modo de ser do mundo permanecem,
em conformidade aos limites deste delineamento, inteiramente não tematizados.
Em decorrência direta disso, estes arranjos iniciais não são suficientes para a
determinação fenomenológica do ser do mundo (Sein der Welt). Assim, o impulso em
direção à “profundidade do problema do mundo”
103
deve ser localizado, de acordo com
o curso de 29/30, no esclarecimento do sentido da expressão formação do mundo
(Weltbildung). Num momento capital do §67, Heidegger afirma que a “pergunta acerca
da formação do mundo é a pergunta sobre o homem que nós mesmos somos”
104
. Por
conseguinte, esta pergunta se dirige a nós mesmos e, mais diretamente, ao modo como
as “coisas” estão se dando em relação a nós. Em outros termos, o aclaramento da
expressão formação do mundo significa, fundamentalmente, a procura pela essência
do homem (Wesen des Menschen). Contudo, o que significa procurar pela essência do
homem?
Seguramente, “quando perguntamos acerca da essência do homem, perguntamos
por nós mesmos”
105
. No seu sentido mais estrito, este direcionamento intenciona
destacar que estamos perguntando pelo ente que nós mesmos somos intimados a ser.
103
Op. cit., p. 398.
104
Op. cit., p. 408.
105
Op. cit., p. 407.
143
Por conta disso, o encontro das condições para que seja posta a questão do homem
depende, incontornavelmente, da prévia correção do nosso autoquestionamento. O que
isso quer dizer? Inicialmente, a clareza de que toda e qualquer pergunta sobre o homem,
quando bem dimensionada, põe em questão, de modo efetivo, a “respectiva existência
do homem
106
. Mais precisamente, a pergunta pelo homem não deixa o homem singular
(einzelnen Menschen) sucumbir na indiferença tranqüilizadora (beruhigte
Gleichgültigkeit) de um exemplo, inexpressivo e indeterminável, da suposta essência
universal (allgemeinen Wesens) do homem.
Diferentemente disso, o que pode ser considerado, do ponto de vista
fenomenológico, como essência universal do homem se torna crucial na medida em
que o singular (Einzelne) se conceitua na sua estruturalidade. Concretamente, então, a
pergunta o que é o homem entrega, de maneira explicita, a cada homem a tarefa de sua
estruturação, isto é, de assumir o mais essencial de seu modo de ser. Para Heidegger,
esta entrega (Überantwortung) do Da-sein ao homem corresponde ao índex de sua
intrínseca finitude (inneren Endlichkeit). Estes posicionamentos, mesmo que bastante
sintéticos, propiciam a percepção do que está em jogo no esclarecimento da expressão
formação do mundo.
No início do §68, Heidegger enfatiza que a orientação decisiva para a pergunta
acerca da essência do homem, ou seja, para o entendimento da formão do mundo
corresponde, por certo, à visualização do dio (Langeweile) como uma tonalidade
afetiva fundamental (Grundstimmung). Em conformidade ao que foi exibido ao longo
da primeira parte do curso de 29/30, as tonalidades afetivas não possuem o status de
106
Op. cit., p. 407.
144
ocorrências laterais da existência. Ao contrario, elas constituem modos fundamentais
(Grundweisen) do próprio Da-sein. Enquanto modos estruturantes essenciais, nas
tonalidades afetivas o “Da-sein é e se manifesta de uma forma ou de outra”
107
. Isso
significa assinalar que a tonalidade afetiva, considerada genericamente, cumpre o papel
de trazer para nós, isto é, para o cerne de nossa singularidade o que de central, ou
seja, a necessidade da assunção de nossa estruturalidade.
Mesmo que de maneira sintética, o que importa ser ressaltado é que na
tonalidade afetiva algo se “de uma forma ou de outra para alguém”
108
. No curso de
29/30, Heidegger firma que o tédio profundo (tiefe Langeweile) exibe, de modo
indepassável, o sentido destas articulações. Visando uma melhor aproximação, através
do tédio profundo o “Da-sein em nós se manifesta”
109
. Precisamente neste
acontecimento, o Da-sein, isto é, a estrutura na sua internalidade põe cada um de nós, ou
melhor, cada homem singular diante do ente no seu todo (Seiende im Ganzen). No tédio
profundo, o que se torna manifesto, antes de tudo, é o ente no seu todo, e a nós mesmos
como nos encontrando em meio à manifestação do ente. Em virtude disso, a tonalidade
afetiva exprime, decisivamente, o passar a ser levado para o interior da manifestação do
ente.
Entretanto, o que se torna perceptível, através do dio profundo, é que o
direcionamento mais nuclear concerne, sim, à manifestação do Da-sein enquanto tal,
bem como da maneira como ele se encontra, a cada vez, disposto em meio ao todo do
107
Op. cit., p. 410.
108
Op. cit., p. 410.
109
Op. cit., p. 410.
145
ente. Sem que a análise possa, aqui, realizar uma descrição pormenorizada dos
constitutivos do tédio profundo, o que precisa ser atingido é que, nesta tonalidade
afetiva, o “abismo do Da-sein se descerra em meio ao Da-sein”
110
. Em vista destas
posições, a intensificação do questionamento acerca da manifestação do ente e do
mundo assegura um sítio inigualável. Para Heidegger, este alicerçamento, pelo menos
até aqui, consiste na visualização, decisiva e definitiva, de que as tonalidades afetivas
fundamentais são possibilidades marcantes da manifestação do Da-sein. O que isso
pretende revelar?
Sem dúvida, o caráter marcante das tonalidades afetivas fundamentais,
especialmente do tédio profundo, diz respeito ao fato de que o que se manifesta nelas
aparece, de certa maneira, em toda e qualquer tonalidade afetiva. Neste sentido, o que se
manifesta frontalmente no tédio profundo é o na totalidade. Assim, a procura pela
conceituação fenomenológica do mundo deve partir, de uma vez por todas, do indício
formal de que o próprio mundo possui, sempre, o caráter de totalidade (Charakter von
Ganzheit). Como conseqüência destes arranjos, o que se torna premente é a clarificação
deste caráter essencial do mundo. Para Heidegger, o sentido do na totalidade
corresponde, estritamente, à “forma do ente enquanto tal que se manifesta para nós”
111
.
Portanto, na totalidade pretende dizer, no fundo, na forma da totalidade. Entretanto,
como a análise deve ser encaminhada para que estas articulações sejam devidamente
dimensionadas?
110
Op. cit., p. 411.
111
Op. cit., p. 413.
146
Segundo os passos do §68, o entendimento exaustivo do na totalidade e, mais
importante, dos diversos problemas concentrados nele não tem como ser obtido de um
modo direto. Seguramente, o obstáculo principal reside na insuficiência das proposições
metodológicas estabelecidas até este momento do exame. Em virtude disso, a
localização do problema do caráter do mundo necessita ser buscada, primeiramente, a
partir do que é visado na expressão formação do mundo. Por ela, o que deve ser
privilegiado é que “mundo pertence à formação do mundo”
112
. Assim, o mundo
enquanto tal se forma. Mais relevante ainda, o mundo, tal como Heidegger destaca,
somente é o que é na e a partir desta formação. Porém, quem forma o mundo? Pelo que
é exprimido na tese comparativa, o homem é o formador do mundo. Necessariamente,
portanto, o nexo especial, mesmo que obscuro, entre homem, formação e mundo,
seguramente central para a compreensão do caráter formativo do próprio mundo.
Na verdade, a possibilitação do homem, ou melhor, a possibilitação do Da-sein
no homem consiste, precisamente, na formação do mundo. Em outras palavras, a
formação do mundo jamais pode ser tomada como uma ocorrência, ao mesmo tempo,
arbitrária e secundária. Distintamente disso, a formação do mundo acontece e, o que é
mais decisivo, apenas sobre o que “fundamenta este acontecimento, um homem pode
existir”
113
. Isso significa assinalar, categoricamente, que o homem enquanto homem é
formador do mundo. Portanto, o Da-sein no homem é, expressamente falando, formador
do mundo. Mas, qual é o sentido da expressão formação do mundo? Inicialmente, é
indispensável o reconhecimento de que a expressão formação do mundo é usada de
112
Op. cit., p. 413.
113
Op. cit., p. 414.
147
uma maneira plurívoca. Num primeiro sentido, o Dasein forma o mundo na medida em
que ele o põe. Ao lado disso, o Da-sein é igualmente formador quando um quadro
(Bild) do mundo; quando ele um aspecto (Anblick) do mundo; quando ele, enfim,
apresenta-o. Por último, O Da-sein é formador enquanto ele constitui o mundo,
enquanto ele é o que o enquadra (Einfassende) e o circunscreve (Umfangende).
Para Heidegger, a tríplice determinação do sentido do formar o mundo
unicamente se justifica mediante uma interpretação mais original do fenômeno do
mundo. Contudo, um traço merece ser destacado. Pela maneira como a determinação do
mundo se efetua, se pode visualizar, com bastante nitidez, que o domínio da
preparação do problema do fenômeno do mundo dispensa, peremptoriamente, os
recursos de elementos oriundos da análise lógica. Em outros termos, a problematização
expressa do mundo requer o estabelecimento de perguntas, fundamentalmente em
relação à manifestação do ente na totalidade, que sejam direcionadas por um prévio
balizamento do que configura uma interpretação fenomenológica. Assim, por exemplo,
a expressão formação do mundo deve ser integrada, antes de toda e qualquer coisa, à
ambiência centralizadora que é, como já foi exibido, a mundanidade do mundo. Diante
destes esclarecimentos, o que precisa ser trazido para a intensificação do exame?
No inicio do §74, Heidegger ressalta que a aproximação com a interpretação
imediata do fenômeno do mundo (Weltphänomens) deve ser orientada, sem dúvida, pela
caracterização formal alcançada: mundo enquanto manifestação do ente enquanto tal
na totalidade. Por este dimensionamento, o que se torna claro é que a determinação do
mundo não diz respeito, de maneira definitiva, ao domínio da enunciação e,
principalmente, ao do logos. Entretanto, a afirmação da recusa do pertencimento do
148
mundo à análise lógica e, com isso, ao território do enunciado não é gratuita. No curso
de 29/30, a visualização de que as temáticas tradicionais da metafísica o logos e a
racionalidade – constituem-se, antes de tudo, como encobrimentos do problema do
mundo. Dessa maneira, a possível persistência da metafísica do Da-sein nestas
ambiências usuais somente acarreta a agudização do desconhecimento do problema do
mundo, nas suas especificidades.
Ainda que de um modo bastante sucinto, Heidegger afirma, no §74, que o “logos
não é o começo radical para o desdobramento do problema do mundo”
114
. Muito mais do
que isso, na medida em que o logos mantém a dominância sobre a metafísica, o mundo
não tem como ingressar enquanto fenômeno mais estruturante. Todavia, o
distanciamento frente ao domínio do logos depende da assunção do esforço
(Anstrengung), em cada um de nós, para transformar o homem num Da-sein mais
originário (ursprünglicheres Da-sein). No fundo, apenas através da liberação do Da-
sein no homem, no interior da estruturação do mundo, é que as antigas questões
fundamentais (alten Grundfragen) podem vir à tona, novamente, de um modo
produtivo.
Seguramente, a continuidade da análise exige a fixação de que o mundo consiste
num acontecimento fundamental (Grundgeschehen), ou melhor, na dimensão original
(Ursprungdimension). Neste sentido, o que importa ser destacado, sempre através da
caracterização formal, é que o mundo acontece na e a partir da manifestação. Em vista
disso, é precisamente na manifestação, isto é, nos seus momentos constitutivos que o
mundo deve ser aclarado. Por este norteamento, a manifestação se torna, do ponto de
114
Op. cit., p. 508.
149
vista fenomenológico, a ocorrência efetiva da mundanidade do mundo. O que isso
pretende indicar? Fundamentalmente, a explicitação do que assegura a unidade (Einheit)
da manifestação corresponde ao lugar a partir do qual a essência do mundo (Wesen der
Welt) é determinável.
No curso de 29/30, estas articulações, mesmo que preparatórias, são centrais,
uma vez que elas visam o afastamento de certas dificuldades. Para Heidegger, o
esclarecimento do mundo não se configura como o de “uma coisa que se encontra diante
de nós
115
. Em decorrência direta disso, a compreensão do mundo não se efetua
mediante a discussão (Zerreden) acerca de algo previamente dado (Vorgegebenen).
Seguindo as mesmas diretivas, o mundo não é uma questão que decorre de “uma
perspicácia extraordinária, de uma intuição”
116
. Diferentemente disso, a tarefa da
conceituação do mundo admite, desde o inicio, que o seu caráter mais essencial reside
na vigência (Walten). Por este delineamento, todos os momentos preliminares da
análise, até aqui, possuem como objetivo indepassável a preparação para a entrada
(Eingehen) no acontecimento da vigência do mundo (Waltens der Welt).
Por certo, estas articulações propiciam o acesso inicial a um elemento bastante
particular da intensificação da metafísica do Da-sein, no âmbito da questão da verdade.
Heidegger enfatiza que a “inserção e o retorno filosofante do homem ao Da-sein nele
nunca podem ser conseguidos, porém só podem ser sempre preparados”
117
. Precisamente
por isso, o despertar (Erwecken) se mostra como um problema crucial. Nele, o que
115
Op. cit., p. 509.
116
Op. cit., p. 509.
117
Op. cit., p. 510.
150
passa a ser notado é que a inserção na vigência do mundo, ou melhor, a transformação
do homem no Da-sein diz respeito, primariamente, a cada homem singular (jedes
einzelnen Menschen). Além disso, o despertar concerne, sim, ao destino (Geschick) de
cada homem, ou seja, à possibilidade ou o de se deixar tomar pelo que é cabível. O
que isso intenciona revelar?
Para Heidegger, o que cabe somente se torna algo que necessita acontecer se,
cada homem singular, souber esperar e puder esperar por ele. Desta maneira, o
acontecimento do mundo implica, sugestivamente, na conquista prévia da força de uma
espera (Kraft des Wartens). Ainda que de um modo bastante sintético, através desta
conquista cada homem alcança a possibilidade de vir a ser transpassado pelo mundo e
pelos seus estruturantes. Expressamente falando, apenas pela assunção deste
transpassamento é que emerge a possibilidade, muito mais decisiva, da elaboração do
questionamento sobre o mundo. Para a análise, o que se obtém através destas
caracterizações é que, no curso de 29/30, cada vez mais a relação entre homem e Da-
sein passa a ocupar um lugar central. Isso pretende indicar, pelo menos até aqui, que a
procura da conceituação do mundo precisa ser conduzida, produtivamente, para o
núcleo desta relação ainda não tematizada.
Em virtude destas posições, a manifestação (Offenbarkeit), enquanto caráter
fundamental do mundo, deve ser entendida de um modo bem mais nuançado.
Agudizando os desenvolvimentos mais relevantes dos cursos de 28 e 29, Heidegger
firma que a “manifestação pré-lógica é um acontecimento fundamental do Da-sein”
118
.
Em primeiro lugar, a manifestação, encerrada no Da-sein, consiste, no âmbito da
118
Op. cit., p. 511.
151
conceituação do mundo, no “sítio em que está enraizado o enquanto e a estrutura-
enquanto”
119
. Todavia, o que merece ser ressaltado é que a manifestação traz consigo
três determinações essenciais: o vir-ao-encontro do comprometimento (sich
Entgegenbringen von Verbindlichkeit), a totalização (Ergänzung) e o desvelamento do
Ser dos entes (Enthüllung von Sein des Seienden).
Na abertura do §75, Heidegger assinala que a tríplice determinação da
manifestação necessita ser considerada na sua radicalidade. Sem dúvida, a manifestação
não preenche o sentido da expressão formação do mundo. Contudo, um
pertencimento essencial da própria manifestação à formação. Isso significa dizer que a
manifestação está ligada, efetivamente, ao questionamento ontológico do mundo. Para a
análise, estas articulações preliminares são bastante valiosas. Primeiramente, o que
passa a ter primazia é a apreensão da manifestação na sua estrutura original
(Urstruktur), isto é, através da unidade da mútua dependência de suas determinações.
Dessa maneira, o que necessita ser propiciado é o entendimento da manifestação na
unidade de sua estrutura original. Porém, a possibilitação desta exigência só pode se dar
de uma única maneira. No que ela consiste?
Para Heidegger, a análise fenomenológica não deve “recompor, mediante o
auxilio das estruturas do Da-sein, a estrutura originária do acontecimento fundamental,
triplamente caracterizado, próprio do Da-sein”
120
. Na verdade, o que importa é a
conceituação da unidade interna (innere Einheit) da manifestação, e, a partir disso, o
alcance da visualização da constituição fundamental (Grundverfassung) do Da-sein.
119
Op. cit., p. 511.
120
Op. cit., p. 513.
152
Como conseqüência destas ordenações, o que precisa ser explicitado devidamente é o
caráter do na totalidade da manifestação. Antes de tudo, é indispensável afirmar que o
na totalidade envolve, desde sempre, todo o domínio entitativo. Entretanto, o que gera
estranheza é a indiferença (Indifferenz) frente à manifestação do ente dos mais variados
comportamentos do Da-sein.
De uma maneira mais enfática, à indiferença em relação ao na totalidade
corresponde, sem dúvida, uma diferença inteiramente segura do comportamento, ou
melhor, do “engajamento relativo ao ente em questão”
121
. Neste sentido, o
comportamento variado (mannigfaltige) e diferente (differente) frente ao ente se
mantém sob o pano de fundo da indiferença (Hintergrund der Indifferenz). É
precisamente por esta indiferença em relação ao na totalidade que o ente, na maioria
das vezes, é apresentado enquanto ente. Contudo, tal como Heidegger reitera, a
universalidade da exibição do ente apenas enquanto ente, radicada na indiferença frente
à manifestação, traz consigo um elemento perturbador. A admissão ilimitada de que o
ente é, pura e simplesmente, enquanto tal, desta ou daquela maneira não revela, no
fundo, absolutamente nada, e, mais relevante, não detém o status de uma questão. Em
outros termos, a mera afirmação genérica de que o ente é não suporta, minimamente, os
pressupostos do questionar. O que isso quer dizer?
Pelo que foi explicitado nos capítulos anteriores, especialmente no segundo, o
questionar se singulariza por buscar aclarar o ente a partir de seu fundamento. Em
decorrência direta disso, a procura pelo fundamento constitui o território por excelência
do questionar. No entanto, ao pôr o fundamento como o que deve ser conquistado, o
121
Op. cit., p. 515.
153
questionar, desde o inicio, rompe com a indiferença, corriqueira nos comportamentos do
Da-sein, em relação à estrutura da manifestação. Dizendo de uma outra maneira, na
medida em que o fundamento passa a ocupar o primeiro plano, a atenção se volta para o
Ser do ente (Sein des Seienden) e, primordialmente, para o porquê da prévia e contínua
decisão (Entscheidung) acerca dele, no cerne da constituição do Da-sein.
No curso de 29/30, estas articulações propiciam uma intensificação crucial da
análise. Antes de tudo, o que interessa ser enfatizado é que o esclarecimento da
manifestação, a partir do caráter do na totalidade concerne, mais propriamente, ao da
relação entre Ser e ente. Assim, a metafísica do Da-sein requer a assunção do que funda
esta relação como a sua tarefa essencial. Portanto, a liberação (Freilegung) do Da-sein
no homem, ou seja, a própria transformação do homem no Da-sein, a partir de cada
homem singular, tem como sua ativação, imediata e incontornável, a tematização do que
possibilita a relação entre Ser e ente. Isso significa indicar, pelo menos até aqui, que a
liberação do Da-sein, locus dos principais desenvolvimentos nos anos de 29 e 30, deve
partir da rejeição da indiferença frente ao caráter mais estruturante da manifestação.
Então, de que forma necessita ser direcionada a análise?
Seguramente, o entendimento vulgar (vulgären Verstandes), voltado
integralmente para o ente, mantém-se fechado a uma diferença (Unterschied) bastante
especial. Ela consiste no que, para Heidegger, “por fim e no fundo possibilita todo o
diferenciar, assim como toda diferencialidade”
122
. Nestes termos, a presumida relação
entre Ser e ente está, mesmo, fundada na diferença entre ambos. Todavia, o que
significa, estruturalmente falando, diferença entre Ser e ente? Para a metafísica do Da-
122
Op. cit., p. 517.
154
sein, o problema o consiste na determinação do modo da diferença (Art des
Unterschiedes). Distintamente disso, a incerteza (Unsicherheit) e a perda de orientação
(Ratlosigkeit) ocorrem, por certo, na busca pela dimensão da própria diferenciação
(Unterscheidung).
Objetivando um melhor esclarecimento, a dificuldade mais imediata consiste no
caráter o entitativo da dimensão da diferença. Isso significa evidenciar que a
diferença enquanto tal não pertence ao ente. Em vista disso, o “Ser não é concretamente
um ente entre outros”
123
. Qual é, por conseguinte, o sentido do termo Ser? Para
Heidegger, o Ser não pode ser posto em algum lugar do domínio entitativo.
Precisamente por isso, Ser e ente o fundamentalmente distintos (grundverschieden).
Entretanto, eles permanecem vinculados um aos outro através da diferença. Em outras
palavras, a ponte (Brücke) entre os dois consiste, sem dúvida, no e. No curso de 29/30,
estas posições intencionam dirigir a análise para o que de efetivamente problemático
na diferença. No fundo, apenas através desta orientação é que o esclarecimento do
problema do mundo pode ser conquistado.
Para Heidegger, a diferença entre Ser e ente (Unterschied von Sein und
Seiendem) necessita ser fixada mediante nove pontos. Através deles, o que se procura,
primeiramente, é o alcance de um apoio (Anhalt) a partir do qual pode ocorrer uma
aproximação com esta enigmaticidade (Rätselhaftigkeit). Como primeiro ponto a ser
destacado, Heidegger afirma que “não reparamos nesta diferença entre Ser e ente,
123
Op. cit., p. 518.
155
precisamente onde a usamos a todo momento”
124
. Isso pretende assinalar que em todo e
qualquer emprego do termo e a diferença está sendo presumida. Mais fortemente,
entretanto, a diferença subjaz em todo o comportamento do Da-sein frente ao ente. O
segundo ponto marcante da aproximação com a diferença diz respeito, sim, ao fato de
que, ao fazermos uso ininterrupto desta diferença, não percebemos, minimamente, que
este uso implica um saber (Wissen), ou seja, uma regra (Regel) previamente
estabelecida.
Estes dois pontos podem ser melhor entendidos porque, de acordo com
Heidegger, a diferença é obscura a partir da dimensão de sua diferencialidade
(Unterscheidbarkeit). Por este delineamento, o Ser não pode ser posto num nível de
comparação com o ente. Nestes termos, portanto, a explicitação da diferença não se
no sentido de algo passível de se tornar conhecimento”
125
. Como conseqüência direta
do terceiro ponto, a diferença entre Ser e ente jamais pode ser exibida enquanto uma
diferença objetiva (gegenständlichen Unterscheiden). Por conta disso, o Da-sein, na sua
estruturação, desde sempre se movimenta no acontecer da diferença (geschehenden
Unterschied). Na verdade, uma co-determinação bastante especial entre o acontecer
da diferença e o próprio acontecimento fundamental do Da-sein, isto é, a manifestação
do ente na totalidade.
A partir do que foi anunciado até aqui, o quinto ponto da aproximação firma que
a diferença não acontece de maneira arbitrária e ocasional. No Da-sein, a diferença
provém do fundamento (Grund) e se conserva, permanentemente, no encaminhamento
124
Op. cit., p. 518.
125
Op. cit., p. 519.
156
da fundamentação. Para Heidegger, esta indicação formal é imprescindível, uma vez
que se a diferença não ocorresse, o Da-sein não poderia ser considerado um ser-junto-a.
Por conseguinte, o sexto ponto propõe que, num sentido mais amplo, o experienciar o
ente enquanto tal pressupõe, por certo, a compreensão de determinações específicas do
Ser. Por estes balizamentos, o que importa ser notado, caracterizando o sétimo ponto, é
que a “diferença deve ter acontecido”
126
para que um ente possa ser experienciado
desta ou daquela maneira. Neste sentido, e isso é decisivo, o experienciar do Ser nunca é
posterior ao do ente. De modo inverso, o ente, tal como Heidegger ressalta, já se
encontra, desde sempre, sob à luz do Ser (Lichte des Seins).
Contudo, o que estes arranjos trazem para a análise? Para a metafísica, a
diferença entre Ser e ente reside no começo (Anfang) do próprio Da-sein. Devido a esta
localização, o Ser, mesmo não sendo tematizado pelos comportamentos usuais do Da-
sein, é, continuamente, entendido numa articulação inexprimida (unausdrücklichen
Gliederung) quanto a sua essencialidade (Wassein) e sua existencialidade (Daßsein).
Necessariamente, então, o oitavo ponto destaca que a compreensão inarticulada do Ser
condiciona, no homem, a possibilidade para que, de um modo mais primal, a pergunta o
que é isto seja efetuada. No curso de 29/30, a junção ordenada dos oito pontos da
aproximação permite a visualização de que a diferença possui, ao mesmo tempo, o
caráter de unicidade (Einzigartigkeit) e de universalidade (Universalität).
Em virtude destas articulações, a análise precisa, antes de tudo, evidenciar os
problemas trazidos pela diferença entre Ser e ente. Além disso, na medida em que há,
como já foi mencionado, uma conexão entre o desvelamento do Ser do ente (Enthüllung
126
Op. cit., p. 519.
157
vom Sein des Seienden) e a manifestação do próprio ente, a diferença deve ser
apresentada como um momento essencial (Wesensmoment) do mundo. Muito mais
relevante do que isso, o que interessa é a percepção do como a diferença é, no fundo, o
momento nuclear através do qual a clarificação do mundo pode se dar. Nestes termos, o
que se abre é um campo inteiramente novo para o questionamento. Objetivando uma
melhor elucidação, o problema da diferença entre Ser e ente necessita ser considerado
como o problema da diferença ontológica (ontologischen Differenz).
Porém, o que significa ontológico? Fundamentalmente, o “ontológico é o que
concerne ao Ser do ente”
127
. Por conseqüência disso, a diferença ontológica é a que diz
respeito, de modo estrito, ao Ser do ente. Mais precisamente, ela corresponde ao espaço
em que tudo o que é vinculado ao ontológico se movimenta. Além disso, ela se
configura, na verdade, como a possibilitadora do ontológico, isto é, enquanto a
“diferença na qual o Ser se diferencia do ente que ele, ao mesmo tempo, determina em
sua constituição essencial”
128
. Em vista destas articulações, a diferença ontológica é o
que sustenta e norteia o próprio ontológico. Indispensavelmente, então, ela não consiste
numa diferença determinada (bestimmter Unterschied), ou seja, numa diferença que
pode ser consumada no interior (innerhalb) do domínio ontológico.
Em decorrência desta caracterização, o problema da diferença entre Ser e ente se
torna a moldura (Rahmen) da ontologia. Isso significa indicar, antes de tudo, que o
problema da diferença deve ser posto numa direção (Richtung) do questionamento que
possui, certamente, propósitos e limites bem determinados, seja no que diz respeito à
127
Op. cit., p. 521.
128
Op. cit., p. 521.
158
própria amplitude do questionamento, como, também, a sua originariedade. Em outras
palavras, com o problema da diferença ontológica e, principalmente, com a sua
elaboração (Ausarbeitung) subordinada à determinação do mundo, a ontologia alcança
nitidamente, pela primeira vez, a ambiência de sua conceituação. Entretanto, Heidegger
lança uma advertência bastante significativa. O desdobramento do problema da
diferença, ou melhor, a sua contínua intensificação pode trazer a indispensabilidade da
recusa da ontologia enquanto uma problemática metafísica insuficiente (unzureichende
metaphysische Problematik). O que isso pretende assinalar, nos limites do curso de
29/30?
Mesmo sem um aclaramento devido, o que passa a ingressar na cena é a
possibilidade, mediante a intensificação da diferença, de que a idéia (Idee) de ontologia
perca o seu sentido e a sua fundamentação. Melhor dizendo, através do desdobramento
(Entfaltung) do problema da diferença, o lugar (Stelle) da ontologia é, acima de tudo,
perdido. Para Heidegger, a agudização da diferença traz consigo, ineliminavelmente, a
percepção de que a idéia de ontologia compõe, assim, uma fase necessária (notwendiges
Stadium) do desenvolvimento da problemática fundamental da metafísica, isto é, do
sentido do Ser na e a partir da diferença entre Ser e ente.
Contudo, as condições metodológicas para estas tematizações ainda não foram
estabelecidas. No final do §75, Heidegger enfatiza que um esclarecimento sobre a
diferença deve ser realizado. Seguramente, o que se tem, pela análise, é que a diferença
é o espaço em que a ontologia se movimenta. Em conformidade a isso, é cabível dizer
que o questionar por se voltar para o ente nele mesmo (Seiende an ihm selbst) consiste
na manifestação do próprio ente. A sua maneira, esta manifestação deve ser considerada
159
como a verdade ôntica (ontische Wahrheit). Distintamente disso, o questionar que se
dirige ao ente enquanto tal, ou melhor, que põe questões em relação ao que constitui o
Ser do ente é, estritamente falando, a verdade ontológica (ontologische Wahrheit). Neste
questionar, há, sem dúvida, um “uso específico da diferença entre Ser e ente, e não
conta com o ente, porém com o Ser”
129
.
O que estes arranjos pretendem revelar? De um modo bastante sugestivo, a
localização da diferença não se tanto na verdade ôntica quanto na verdade
ontológica. A diferença o é determinável, portanto, pelo conhecimento ôntico
(ontische Erkenntnis), bem como não é pelo conhecimento ontológico (ontologische
Erkenntnis). Seguramente, ambos se fundam nela. Assim, na diferenciação entre a
verdade ôntica e a ontológica, o que aparece são, concretamente, traços que compõem a
diferença, mas não ela mesma. Devido a isso, a intensificação da metafísica do Da-sein,
tal como dimensionada no curso Introdução à Filosofia, requer a clareza de que o
questionamento da diferença, por ultrapassar os limites determinativos da verdade
ôntica e da ontológica, somente pode ocorrer no interior do que estrutura, de maneira
mais original, o Da-sein. Neste sentido, a manifestação do ente, por ser o espaço em que
o Da-sein se movimenta, constitui o lugar apropriado do questionamento da diferença.
No inicio do §76, Heidegger firma, de modo categórico, que a análise precisa
dar o passo essencial (wesentlichen Schritt) para o interior do acontecimento da
diferenciação entre Ser e ente, isto é, para o domínio no qual a diferença ocorre. Por este
norteamento, o que importa ser procurado, daqui por diante, é a estrutura originária
(Urstruktur) da manifestação. Pelo que se obteve até este momento, a manifestação
129
Op. cit., p. 523.
160
possui uma tríplice caracterização: o manter-se ao encontro do comprometimento, a
totalização e o desvelamento do Ser do ente. No fundo, estas determinações consistem
em assinalações para uma transposição, originariamente una, para o núcleo do Da-sein.
O que necessita ser enfatizado, antes de todo o resto, é que o deslocamento para o cerne
do Da-sein visa, unicamente, a unidade mais primal da manifestação. Por conseguinte,
qual é o caráter uno do acontecimento fundamental do Da-sein?
Para Heidegger, a estrutura da manifestação corresponde ao projeto (Entwurf).
Isso significa afirmar que a “essência do homem, o Da-sein nele, é determinada pelo
caráter do projeto”
130
. Precisamente por isso, o projeto enquanto estrutura originária do
acontecimento é, por certo, a estrutura fundamental da formação do mundo
(Weltbildung). De uma maneira mais explicita, o projeto é projeto de mundo. Na
metafísica do Da-sein, o mundo vige em e para um deixar-viger (Waltenlassen) que
possui, sim, o caráter de projeto. Até que medida, então, o projeto é a estrutura
originária da manifestação, tal como é triplamente caracterizada? Fundamentalmente, a
estrutura originária deve ser entendida como o que reúne os três caracteres da
manifestação em uma unidade articulada (gegliederte Einheit).
Em decorrência direta disso, no projeto, os três momentos da manifestação não
necessitam, apenas, aparecer ao mesmo tempo. Diferentemente disso, os momentos
precisam “co-pertencer nele a sua unidade”
131
. Dessa maneira, o próprio projeto deve se
mostrar na sua unidade originária. Para Heidegger, o que propicia a visualização, ainda
que insuficiente, do projeto é a certeza de que, nele, o que está sendo visado é a unidade
130
Op. cit., p. 526.
131
Op. cit., p. 527.
161
de uma ação (Einheit einer Handlung). Neste agir, o que de mais particular é o fato
de que no projetar este acontecimento do projeto permanece levando o projetante para
fora dele”
132
. O que isso pretende indicar? Na verdade o projetante, isto é, o homem é
levado efetivamente para o núcleo do projeto, isto é, para o mundo. Em virtude disso, ao
ser conduzido pelo projeto, o que ocorre é uma virada (Zukehrung) do projetante para si
mesmo. Entretanto, porque o projeto é uma virada que carrega consigo o projetante?
Certamente, a condução do projetar possui o caráter de dispensa (Enthebens) em
meio ao possível. Em primeiro lugar, é imprescindível que o possível, sempre na sua
possibilitação intrínseca, dispensado pelo projeto seja, por certo, um possível efetivo
(mögliches Wirkliches). Dizendo de um outro modo, o em-direção-a-que o projeto
dispensa faz com que o projetante (Entwerfenden) o possa descansar. Isto pretende
firmar que o projetado no projeto chega para o possível efetivo, ou seja, o projeto, na
verdade, vincula à possibilitação, ou melhor, ao que o possível efetivo da possibilidade
projetada (entworfenen Möglichkeit) exige por si da própria possibilidade para a sua
efetivação (Verwirklichung). Por conseqüência disso, o projeto é o acontecimento que
“deixa o comprometimento enquanto tal emergir”
133
, precisamente porque este
acontecimento sempre prenuncia uma possibilitação (Ermöglichung).
No curso de 29/30, nesta vinculação livre (freien Bindung) em que o
possibilitador se depara com o possível efetivo, sempre reside uma determinidade
(Bestimmtheit) singular do próprio possível. Para Heidegger, e isso é fundamental, o
132
Op. cit., p. 527.
133
Op. cit., p. 528.
162
“possível cresce em sua possibilidade e força de possibilitação através da limitação”
134
.
Inegavelmente, toda a possibilidade traz consigo os seus limites (Schranke). Entretanto,
o limite do possível se configura como o na totalidade, mediante o qual toda assunção
de um comportamento se põe, antecipatoriamente, em relação. Em vista destas
articulações, o acontecimento do projetar é estendível numa totalidade, na medida em
que ele a retém diante de si. Portanto, o projeto é, intrinsecamente, “totalizador no
sentido da formação pré-projetiva de um na totalidade”
135
. É precisamente nesta
totalização (Ergänzung) que se torna perceptível uma dimensão determinada de
possíveis efetivações.
Enquanto tais, o projeto e o projetar, tal como Heidegger salienta, dispensam
vínculos possíveis (möglichen Bindungen), e, simultaneamente, vinculam de maneira
extensiva no sentido de reter uma totalidade, o que, sem dúvida, é a condição
indepassável para que qualquer efetividade se efetue, sempre enquanto efetividade do
possível projetado. Porém, o projeto, na medida em que ocorre como uma extensão
(ausbreiten) que dispensa e vincula, exibe o caráter do manifestar-se (Sichöffnens).
Devido a isso, o projeto é, nuclearmente, o manifestar-se para a possibilitação
(Sichöffnen für die Ermöglichung) de um modo mais essencial, na possibilitação é
desencoberta a “relação mais originária entre o possível e o efetivo, entre possibilidade
e efetividade em geral enquanto tal”
136
. Qual, então, a abrangência destas posições?
134
Op. cit., p. 528.
135
Op. cit., p. 528.
136
Op. cit., p. 529.
163
No seu sentido mais estrito, o projetar corresponde ao desencobrimento da
possibilitação. Como conseqüência imediata disso, o projetar deve ser considerado,
fenomenologicamente, como o próprio acontecimento da diferença entre ser e ente. Por
estes dimensionamentos, o projeto constitui, sim, a irrupção (Einbruch) da diferença na
e a partir deste entre. De um modo mais enfático, o projeto possibilita os “diferentes na
sua diferencialidade”
137
. Concretamente, então, o projeto desvela o Ser do ente. O que
estes arranjos pretendem revelar é que os caracteres da manifestação, até aqui
considerados isoladamente, alcançam um entrelaçamento primal, e, simultaneamente,
tornam-se apresentáveis de maneira unitária, sem dúvida, na unidade da estrutura
originária que é o projeto. Em outros termos, no projeto acontece o factum ontológico
do deixar-viger o Ser do ente na totalidade. No projeto, no fundo, o mundo vige. O que
isso quer dizer?
Pelos desenvolvimentos apresentados no curso de 29/30, um avizinhamento
muito peculiar entre projeto e diferença ontológica. De uma maneira mais explícita, o
projeto surge, enquanto acontecimento instaurativo do Da-sein, na e a partir da
diferença entre Ser e ente. Isso significa firmar, peremptoriamente, que, nos limites da
intensificação metafísica do Da-sein, a irrupção da diferença molda e norteia a própria
tematização do projetar. Por uma outra perspectiva, o condicionamento do projeto, ou
melhor, do projetar pela diferença mostra, inequivocamente, o alcance insuperável das
finalidades do primeiro Heidegger. Na medida em que o projetar é, no fundo, o
acontecimento da diferença, o questionamento do Ser do ente se mostra, integralmente,
pertencente a ele. Em virtude disso, ainda que de maneira bastante restrita, a
137
Op. cit., p. 529.
164
problematização da verdade, ou melhor, da essência da verdade somente se torna
possível por intermédio destas orientações.
Todavia, uma advertência deve ser feita. Em nenhum dos momentos
estruturantes da análise ocorre, mesmo que lateralmente, a afirmação de que existe uma
identificação, no âmbito transcendental, das questões da diferença e da verdade. Para
Heidegger, o que se conquista é, sem dúvida, o domínio através do qual a procura pela
verdade na sua essência pode se dar. Exatamente por isso, a diferença ontológica
necessita ser considerada, tal com havia sido prenunciado no curso Introdução à
Filosofia, como a possibilitadora dos desenvolvimentos mais cruciais da questão da
essência da verdade. Em outras palavras, unicamente através do horizonte da diferença
entre Ser e ente é que o que compõe a intensificação da questão da verdade pode ser
visualizada. O que se conquista, portanto, é a certeza de que a verdade na sua essência
depende, fundamentalmente, da diferença, ao passo que a própria problematização da
diferença não pode se realizar sem os elementos que perfazem o conceito primordial de
verdade. Certamente, a interdependência, por assim dizer, dos problemas da diferença e
da verdade constitui uma das zonas mais complexas e obscuras da filosofia do primeiro
Heidegger.
Sem que se busque, deliberadamente, o restringimento do alcance destas
articulações, a afirmação de que o projeto desvela o Ser do ente põe a análise, de novo,
no território da clarificação da liberdade. Pelo que foi assinalado no curso de 28, As
Fundações Metafísicas da Lógica, e, posteriormente, corroborado e agudizado na
conferência Da Essência do Fundamento, a liberdade consiste no projeto primordial.
Neste sentido, é no que a liberdade projeta através dela mesma que o mundo assegura o
165
comprometimento indispensável consigo. Para Heidegger, a liberdade, sempre
entendida como a ação originária do Da-sein, concentra, na sua máxima internalidade, o
sentido do movimento de transcendentalização do próprio Da-sein. Assim, pelo que foi
exibido no primeiro e segundo capítulos, a liberdade, antes de tudo, cumpre o papel de
fundamentação da transcendência, isto é, apenas por intermédio de seu entendimento é
que a estruturalidade do mundo retém a sua sustentação.
Por ser a liberdade o fundamento do mundo, a vinculação entre o projeto e o
desvelamento conduz, inegavelmente, a análise para o sítio da essência da liberdade.
Pondo de uma outra maneira, uma vez que o desvelamento reside no projeto, apenas a
agudização do problema da liberdade, à luz da verdade ontológica, é que propicia o
avanço efetivo da análise. Através do projeto, então, o que se obtém é a formação de um
vínculo entre liberdade e verdade, sendo que o mesmo depende do desenvolvimento da
questão específica da essência da verdade. Devido a estes norteamentos, a conferência
de 30, Da Essência da Verdade, deve ser caracterizada como o lugar em que são
exibidas as articulações mais densas e, simultaneamente, mais complexas da metafísica
do Da-sein; do mesmo modo que certas determinações presentes nela propiciam a
entrevista de mudanças substantivas nos propósitos de Heidegger. Tal com é geralmente
aceito, o texto de 30 corresponde, dentre outras coisas, a um texto-passagem, no qual,
de modo bastante intensivo, ocorrem intensificações nucleares da metafísica do Da-sein,
e o lançamento de pressupostos para novas e diferentes conceituações.
Apesar de sua amplitude determinativa, o que, em primeiro lugar, a conferência
de 30 traz acerca do desenvolvimento da questão da verdade? Fundamentalmente,
Heidegger afirma, na terceira secção, que a liberação para uma medida que vincula
166
apenas é possível “enquanto um ser-livre para o manifestar de algo manifesto”
138
. De
uma maneira bastante sugestiva, o que está sendo anunciado nesse modo do ser-livre
(Freisein) é a dificuldade da conceituação da essência da liberdade (Wesen der
Freiheit). Nestes termos, a abertura que suporta todo e qualquer comportamento do Da-
sein em relação ao ente se funda na liberdade. Assim, é pertinente dizer que a “essência
da verdade é a liberdade”
139
. O que estes arranjos preliminares pretendem indicar?
Certamente, a intenção do que é apresentado na conferência de 30 corresponde a
penetração no domínio mais particular do agir (Handeln). Por conta disso, o que precisa
ser fixado, de uma vez por todas, é que a ação (Handlung) não pode se efetivar a não ser
mediante a liberdade de quem age. Neste sentido, o que carrega consigo a afirmação de
que a liberdade é a essência da verdade? Segundo Heidegger, a essência deve ser
entendida como o que fundamenta a possibilidade intrínseca do que, de maneira mais
próxima e geral, é tomado como acessível, e, principalmente, determinado. Portanto,
a tese de que a essência da verdade radica na liberdade é, no mínimo, surpreendente. O
começo da eliminação desta estranheza apenas pode ser propiciado a partir da assunção
da necessidade de uma transformação do pensar (Wandlung des Denkens).
Nos limites do texto de 30, o preenchimento do sentido da conexão essencial
(Wesenszusammenhang) entre verdade e liberdade impõe à análise “a perseguição do
problema da essência do homem”
140
. Entretanto, o que se procura, efetivamente, é uma
perspectiva que assegure a experiência (Erfahrung) de um fundamento essencial
138
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen der Wahrheit; in Wegmarken. Gesamtausgabe, Band 9. Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1976, p. 186.
139
Op. cit., p. 186.
140
Op. cit., p. 187.
167
encoberto do homem, ou melhor, do Da-sein no homem. Visando uma melhor
aproximação, a perspectiva que se pretende encontrar precisa, antes de qualquer coisa,
deslocar o exame para a zona (Bereich) em que a verdade se dá de maneira mais
originária. Além disso, a explicitação deste fundamento encoberto exibe que a liberdade
apenas é a condição da verdade por que ela mesma acolhe sua essência do que há de
mais primal da única verdade essencial (einzig wesentlichen Wahrheit).
Em conformidade ao que foi firmado inicialmente, a liberdade consiste no
manifestar algo manifesto. Exatamente por isso, como deve ser dimensionada a essência
da liberdade? Para Heidegger, o manifesto deve ser entendido como o ente tal como se
manifesta, em um comportamento manifestativo. Nestes termos, a liberdade deixa que
cada ente seja o que é. Assim, a liberdade se desoculta enquanto o deixar-ser (Sein-
lassen) o ente. Contudo, o caráter mais peculiar da liberdade deve ser aclarado mais
pormenorizadamente. Sem dúvida, o deixar-ser o ente não diz respeito a uma omissão
(Unterlassung) e, ao mesmo tempo, a uma indiferença (Gleichgültigkeit), o que já havia
sido prefigurado no curso Introdução à Filosofia. O regresso a essas articulações
revela, mais uma vez, a intensificação da metafísica do Da-sein, a partir das
fundamentações já indicadas e cotejadas.
Distanciando-se frontalmente da omissão e da indiferença, o deixar-ser significa
o “entregar-se ao ente
141
. Todavia, o caráter mais específico deste entregar-se
(Sicheinlassen) não pode ser elucidado como o simples emprego (Betreibung), a
proteção (Behütung), a assistência (Pflege) ou mesmo a planificação (Planung) de cada
ente encontrável. Estritamente falando, deixar-ser o ente detém o sentido do entregar-se
141
Op. cit., p. 188.
168
ao manifesto (Offene) e a sua manifestação (Offenheit), no qual todo e qualquer ente
ingressa para permanecer, e que, desde sempre, o próprio ente traz consigo. Numa
acentuação bastante significativa do texto de 30, Heidegger enfatiza que o manifesto é
concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu início, enquanto a-léthéia, ou seja,
enquanto o não encoberto (Unverborgene).
Para o adentramento na metafísica do Da-sein, a tradução do termo a-léthéia por
não encobrimento (Unverborgenheit) não é somente mais correspondencial, porém ela
propicia, quando bem direcionada, a apreensão mais essencial da definição usual da
verdade enquanto a conformidade da enunciação (Richtigkeit der Ausagge). Muito mais
relevante do que isso, a determinação da a-léthéia enquanto o encobrimento exige,
por certo, a tematização expressa do que constitui o desencobrimento (Entborgenheit),
isto é, a desocultação do ente (Entbergung des Seienden). Segundo Heidegger, o
entregar-se ao desencobrimento do ente não significa, de maneira alguma, um perder-se
nele. Pela conferência de 30, o entregar consiste, fundamentalmente, no desdobrar-se no
retrocesso (Zurücktreten) diante do ente para que ele se manifeste enquanto tal.
Seguramente, o que prevalece no deixar-ser é a exposição (Aussetzung) ao ente
enquanto ente, e, de modo mais emblemático, o deslocamento do comportamento do
Da-sein para o manifesto. Assim, o “deixar-ser, isto é, a liberdade é em si mesma
exposta, ou melhor, ek-sistente”
142
. Inegavelmente, portanto, a essência da liberdade
(Wesen der Freiheit), visualizada através da essência da verdade, mostra-se como a
exposição ao desencobrimento do ente. Buscando um avizinhamento com os limites
mais nucleares da metafísica do Da-sein, a liberdade se configura como o abandono
142
Op. cit., p. 189.
169
(Eingelassenheit) ao desencobrimento do ente enquanto tal. Assim determinado, o
próprio desencobrimento se mantém através do abandono. Em outros termos, na e a
partir da manifestação do manifesto, concentrada no abandono, o Da-sein é
propriamente o que é.
Visando um esclarecimento indispensável, o Da-sein, em consonância ao
estabelecido no texto de 30, retém, para o homem, o fundamento essencial
(Wesensgrund) que lhe possibilita ek-sistir. Em decorrência disso, existência, ou
melhor, ek-sistência, sempre enraizada na verdade, possui o sentido da exposição ao
desencobrimento do ente, de acordo com o que havia sido indicado. O que estes
arranjos, no fundo, pretendem revelar? Trazendo consigo um tensionamento
argumentativo nenhum pouco desconsiderável, Heidegger afirma que a relação entre a
liberdade e o homem deve ser esclarecida no que de mais capital. Aclarada enquanto
o deixar-ser o ente, a liberdade não possui o caráter de uma propriedade (Eigenschaft)
do homem. Diferentemente disso, a liberdade, cerne do Da-sein, apropria-se do homem
de uma maneira bastante particular.
Segundo os encaminhamentos do texto de 30, na medida em que se apropria do
homem, a liberdade se mantém como a única possibilitadora, para a humanidade
(Menschentum), do começo de um vínculo com o ente em seu todo, fundação oculta de
toda a historialidade do homem. Em vista disso, ainda que de maneira insuficiente,
apenas o “homem ek-sistênte é historial”
143
. Entretanto, estas articulações, presentes na
quarta secção, não têm como ser desenvolvidas mediante os recursos metodológicos
disponíveis. Por certo, através da dificuldade do aclaramento da relação entre a
143
Op. cit., p. 190.
170
liberdade e o homem, o que se percebe é um avizinhamento bem mais produtivo da
ligação entre a liberdade e a verdade ontológica. Como, então, reorientar a análise?
Enquanto deixar-ser o ente, a liberdade “cumpre e consuma a essência da
verdade no sentido da desocultação do ente”
144
. Devido a este nexo crucial com a ação
originária do Da-sein, a verdade é, mesmo, o desencobrimento do ente, através do qual a
manifestação se dá. Por estas posições, o que se torna admissível é que todo o
comportamento do Da-sein se movimenta, desde sempre, no âmbito da verdade, isto é,
do desencobrimento. Por conseqüência disso, é imprescindível assinalar que a
estruturação do Da-sein, no homem, intensifica-se na e a partir do modo de ser do
próprio desencobrimento. Inequivocamente, portanto, é no adentramento contínuo do
que gera a ligação entre a liberdade e a verdade que o questionamento pode, ao mesmo
tempo, se radicalizar e universalizar.
No início da quinta secção, Heidegger busca aclarar as articulações propostas
acima. Seguramente, todo o comportamento do Da-sein se lança no deixar-ser o ente.
Isso significa dizer que a liberdade afina o comportamento do Da-sein frente ao ente em
seu conjunto, uma vez que ela corresponde, expressamente, ao abandono ao
desencobrimento do ente. Assim dimensionado, o sentido das tonalidades afetivas, raiz
de todo e qualquer comportamento, é o que dispõe o Da-sein para o vínculo
desencobridor com o ente. De uma maneira mais radical, o deixar-ser envolve a
tonalidade afetiva, precedendo e penetrando em todo o comportamento dependente dela.
Em outras palavras, o comportamento do Da-sein é perpassado pela tonalidade afetiva
através da manifestação do ente na totalidade.
144
Op. cit., p. 190.
171
Estas articulações objetivam, sem dúvida, o alcance de uma zona ainda mais
fecunda para o desdobramento da análise. Todavia, é necessário afirmar que, a partir da
quinta secção, o que é apresentado na conferência de 30 possui, pelo menos, um caráter
ambivalente. O que isso quer dizer? Mesmo que a documentação disponível, até o
momento, não seja tão completa e confiável, é cabível ressaltar que um exame mais
aguçado do texto de 30 aponta para dificuldades incontornáveis. Atualmente, uma
convergência interpretativa no que concerne à indeterminação cronológica do que
aparece na conferência de 30. Na realidade, este texto foi refeito e, simultaneamente,
redimensionado, desde os seus alicerces mais centrais, ao longo de toda a década de 30,
vindo a ser publicado apenas no ano de 1943. Isso pretende assinalar, com bastante
ênfase, que muitos desenvolvimentos exibidos, principalmente a partir da quinta secção,
não correspondem, ou melhor, o estão em consonância com o propósito de
intensificação da metafísica do Da-sein, de acordo com o que foi percebido nos textos
de 28 e 29.
Certamente, o obstáculo mais imediato consiste na ausência de indicações acerca
do porquê das mudanças argumentativas, terminológicas e metodológicas visualizáveis
na versão publicada. Melhor dizendo, Heidegger, até onde se sabe, não identifica estas
mudanças e, mais relevante, não se dedica ao esclarecimento de suas datações
específicas, assim como de suas finalidades. Em decorrência disso, o que se tem, na
conferência de 30, é um texto extremamente abrangente e, ao mesmo tempo,
multifacetário, pois a conquista das unidades que permitem o entendimento satisfatório
não se dá por intermédio dos recursos metodológicos do final dos anos 20. Precisamente
por isso, a explicitação da essência da verdade, fundada na essência da liberdade, deve
ser buscada no núcleo mais interno da relação entre o deixar-ser e o desencobrimento, a
172
partir do desvelamento do Ser. Nesse sentido, o que interessa é o estabelecimento da
relação na qual a verdade, sempre no cerne da liberdade, passa a ter primazia no
questionamento do Ser.
O curso do semestre do verão de 30, Da Essência da Liberdade Humana, traz,
especialmente no final da primeira parte, elementos indispensáveis para o
prosseguimento do exame. No começo do §11, Heidegger, ratificando posições dos
anos de 26 e 27, afirma que Ser e Tempo “não significa uma novidade filosófica, muito
menos um ponto de vista filosófico”
145
. Na sua determinação mais interna, Ser e Tempo
constitui a questão diretiva (Leitfrage) da filosofia. Em vista disso, o que se torna o
motivo da problematização é, sim, a enigmaticidade do e. Assim posto, o e deve ser
considerado como o índex mais apropriado da problemática filosófica. No curso de 30,
a questão diretiva deve ser transformada na questão fundamental (Grundfrage) da
filosofia. Nesta medida, o questionamento se caracteriza por tematizar o e de Ser e
Tempo, e, mais decisivo, o fundamento de ambos.
Objetivando uma aproximação mais consistente, a questão fundamental consiste
na pergunta pela essência do tempo (Wesen der Zeit), uma vez que o Ser se funda nela.
Em outros termos, a questão do sentido do Ser unicamente pode ser desenvolvida
mediante a elucidação da essência do tempo. Para Heidegger, na passagem da questão
diretiva para a questão fundamental, o que se descobre é a própria questionabilidade
(Fraglichkeit) da questão diretiva. Inegavelmente, então, o que interessa ser buscado é a
condição de possibilidade da diferenciação (Unterscheidung) entre Ser e ente, pois
145
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen der menschlichen Freiheit: Einleitung in der Philosophie.
Gesamtausgabe, Band 31. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1982, p 115.
173
apenas esta diferenciação permite com que o tema da questão diretiva seja determinado
com maior agudeza. Por estes delineamentos, a problemática de Ser e Tempo
encaminha o aclaramento (Erhellung) da essência da diferenciação entre Ser e ente. A
questão diretiva, portanto, propicia o ingresso no domínio da diferenciação, o qual
concentra, sem dúvida, a compreensão prévia do Ser (Seinsverständnis).
De acordo com o curso de 30, a questão fundamental promove a
questionabilidade, no seu todo, da questão diretiva. Por conta disso, a indicação da
compreensão do Ser, e da conexão entre Ser e Tempo dota, seguramente, a questão
diretiva de sua necessidade mais intrínseca. Segundo Heidegger, somente por este
direcionamento a questão acerca do ente obtém a sua perspectiva mais integralizante,
assim como todas as demais questões vinculadas a ela. Então, o que se atinge mediante
estas articulações? Na questão fundamental, o que está em jogo é o e, isto é, a conexão-
e (Und-Zusammenhang) entre Ser e Tempo. Assim, se esta conexão é, mesmo, a
conexão primal, ela deve emergir, co-originariamente, da essência do Ser (Wesen des
Seins) e da essência do tempo. Ser e tempo são mutuamente afetados e tecidos. O que
isso pretende ressaltar?
Fundamentalmente, o e significa “o título do co-pertencimento originário do Ser
e do tempo, a partir do fundamento de suas essências”
146
. Estritamente falando, o
questionamento precisa se voltar para o co-pertencimento intrínseco (inneren
Zusammengehörigkeit) deles, e, ao mesmo tempo, para o que surge desta conexão tão
peculiar. No começo do §12, Heidegger firma que o perguntar pela essência do Ser e do
tempo implica, imprescindivelmente, no perguntar pela essência do homem (Wesen des
146
Op. cit., p. 118.
174
Menschen). Por este balizamento, a questão fundamental pelo Ser e pelo tempo obriga a
entrada na questão concernente ao homem. Por conseguinte, a questão do ente, tomada
na sua generalidade, conduz para a questão do homem (Frage nach dem Menschen).
Entretanto, estas posições devem ser aclaradas de um modo mais sustentável. Na
medida em que a problemática do vínculo entre Ser e Tempo força o questionar pelo
homem, o que está sendo privilegiado não é o homem considerado, pura e
simplesmente, como um ente ao lado de outros. Distintamente disso, o questionar pelo
homem necessita assumir, desde o seu início, que o tempo, fundamento da radicalização
do problema do Ser, pertence ao homem (zum Menschen gehört). Em vista disso, o
questionar pelo homem emerge apenas “do fundamento da questão fundamental”
147
. De
acordo com Heidegger, o questionar pelo homem a partir do mais essencial da questão
fundamental é o que torna possível, efetivamente, todo e qualquer questionamento
filosófico sobre o homem. De uma maneira mais explícita, o posicionamento adequado
da questão do Ser, isto é, o seu envolvimento pela essência do tempo dirige,
indispensavelmente, a questão acerca do homem.
Tempo e homem. O que isso significa? Em primeiro lugar, a assinalação de
que, na metafísica do Da-sein, o homem é tematizado através de sua relação com o
tempo. Isso se dá porque, ineliminavelmente, os caracteres do Ser (Charaktere des
Seins) estão, desde sempre, mesclados com os caracteres da compreensão do Ser
(Charaktere des Verstehens von Sein). Portanto, , sem dúvida, uma relação, ainda
muito obscura, entre a compreensão do Ser e o próprio Ser. Em outras palavras, a
relação entre Ser e compreensão do Ser é tão estreita que o que mantém a compreensão
147
Op. cit., p. 122.
175
é o mesmo que mantém o Ser. Neste sentido, ainda que de um modo lateral, a questão
do Ser corresponde a do seu desencobrimento (Entborgenheit) radicado na
compreensão. O que se alcança, por intermédio destas articulações, é a visualização
inicial de que a questão central depende, sim, da relação entre compreensão do Ser e
tempo.
No curso de 30, a indicação formal de que o acesso ao Ser é apenas possibilitado
pela compreensão necessita ser aclarado na sua radicalidade. Por certo, na questão do
Ser o que se procura é uma determinação específica do homem: a sua compreensão do
Ser. Considerada na sua real abrangência, esta determinação penetra em todos os
comportamentos do homem frente ao ente, inclusive nos comportamentos para consigo.
Na verdade, o que ocorre, desde sempre, não é unicamente a presença da compreensão
do Ser em todo comportamento. Muito mais do que isso, a compreensão é “a condição
de possibilidade do comportamento frente ao ente em geral”
148
. Sem ela, tal como
Heidegger destaca, o homem na sua essência seria impossível. Devido a isso, portanto, a
compreensão do Ser constitui o fundamento da possibilidade (Grund der Möglichkeit)
da essência do homem.
Seguindo os encaminhamentos do §12, se a questão do tempo é inseparável da
questão da compreensão do Ser, então, desde sua originariedade, a questão do tempo
precisa ser posta enquanto o fundamento da possibilidade da própria compreensão do
Ser, ou melhor, enquanto fundamento da possibilidade do fundamento da essência do
homem (Grunde des Wesens des Menschen). Assim, a questão da essência do Ser, assim
como a da essência do tempo concernem ao fundamento da essência do homem. Para
148
Op. cit., p. 125.
176
Heidegger, estas conexões são visualizáveis através do co-pertencimento do Ser e do
tempo, na e a partir do e. Precisamente por isso, a questão fundamental procura pela
totalidade do ente, sendo que a única posição positiva para o questionamento consiste
na tematização do fundamento da possibilidade do ser do homem (Menschseins).
Pelo que se tem a este momento da análise, o questionar efetivo (wirkliche
Fragen) conduz para a problematização do homem. Entretanto, o questionamento do
homem se dirige, somente, para o fundamento de sua essência, ou seja, para suas raízes
(Wurzeln). Ao lado disso, o que necessita ser destacado é que a questão fundamental diz
respeito ao ente enquanto ente na totalidade, e não ao homem em especial. Assim, é
pertinente dizer que a questão essencial, imediata e diretamente, não pertence ao
homem. Contudo, se o questionar é estruturado na sua radicalidade, ele, certamente,
“afasta o homem do seu sítio habitual e investe contra ele a partir do seu
fundamento”
149
. Necessariamente, portanto, o questionamento do ente na totalidade
enquanto um dirigir-para-o-todo (auf-das-Ganze-Gehen) é, ao mesmo tempo, um
dirigir-para-as-raizes (an-die-Wurzeln-Gehen).
Na abertura do §13, Heidegger enfatiza que o questionamento do tempo
intenciona, primariamente, mostrar como e em que medida ele consiste na condição
fundamental (Grundbedingung) da possibilidade da existência humana: a compreensão
do Ser. Por este norteamento, o que deve ter primazia é o indício de que o tempo
apenas se temporaliza suficientemente na singularização de cada homem para si
149
Op. cit., p. 127.
177
mesmo”
150
. Isso significa dizer, antes de tudo, que a desconsideração desta pergunta
mantém a essência do tempo, isto é, a temporalidade inteiramente encoberta. Nestes
termos, a temporalidade é o fundo da singularização (Vereinzelung). Melhor
explicitando, o questionar pelo Ser e Tempo, a partir de seus conteúdos, conduz à
singularização que reside no próprio tempo. Desse modo, o tempo, enquanto horizonte
do Ser, dirige sua amplitude determinativa para a questão do homem na sua
singularização (Menschen in seiner Vereinzelung). O que estas articulações preliminares
pretendem destacar?
Sem dúvida, a questão da singularização do homem diz respeito, unicamente, ao
singular enquanto singular (Einzelnen als Einzelnen). Em virtude disso, se a
singularização reside na essência do tempo, ela não tem como ser entendida como “a
particularização de um universal, pois o tempo o é originariamente universal”
151
. Para
Heidegger, o tempo é, sempre e a cada vez, singular, ou seja, ele pertence ao
fundamento da singularização de cada um. Por estas posições, o que se torna claro,
definitivamente, é que o alcance do escopo da questão do Ser provém do
direcionamento apropriado para o singular enquanto tal. Assim, a apreensão da
abrangência do Ser forma uma unidade muito especial com a retenção da singularização
do tempo. Na verdade, o questionamento da relação entre Ser e Tempo requer,
concomitantemente, um dirigir-para-o-todo (auf-Ganze-gehen) e um dirigir-para-a-raiz
(an-die-Wurzel-gehen) de cada homem singular.
150
Op. cit., p. 129.
151
Op. cit., p. 130.
178
Em conformidade ao curso de 30, a intensificação da questão fundamental da
filosofia demanda a visualização, continuamente mais intensificada, do singular
enquanto tal, ou seja, o próprio singular se torna o motivador da problematização. No
entanto, o adentramento, por assim dizer, no que estrutura o singular, ou melhor, a
singularidade depende, certamente, da prévia clarificação do sentido do fundamento da
possibilidade do Da-sein (Grund der Möglichkeit des Da-seins). Devido a este
condicionamento indepassável, o §14 afirma, mesmo que de maneira sintética, que a
liberdade constitui a possibilitação extrema do Da-sein. Portanto, somente através do
adequado posicionamento da liberdade, na metafísica, é que a análise pode se manter
como algo consistente e produtivo. Em primeiro lugar, o problema da liberdade
(Freiheitsproblem) não é erigido a partir da questão diretiva da filosofia. Ao contrário, a
“questão diretiva da metafísica é fundada na e pela questão da essência da liberdade”
152
.
Então, o que significa liberdade? Fundamentalmente, a liberdade é a pré-
ordenadora (vorgeordnet) e a dominadora (durchherrschend) do todo na totalidade
(Ganze im Ganzen). Justamente por encerrar a possibilidade mais extrema da existência,
a liberdade é, no mais interno de sua essência, mais originária do que o homem
(ursprünglicher als der Mensch). Neste sentido, o homem é apenas “um administrador
da liberdade”
153
, isto é, ele deve deixar-ser a liberdade que lhe cabe, de um modo tal
que, através dele, o todo da contingencialidade (Zufälligkeit) da própria liberdade se
torne visível. Na metafísica do Da-sein, portanto, a liberdade humana (menschliche
Freiheit) não possui o sentido de uma propriedade do homem (Eigenschaft des
152
Op. cit., p. 134.
153
Op. cit., p. 134.
179
Menschen). Na realidade, o homem corresponde a uma possibilidade da liberdade (eine
Möglichkeit der Freiheit).
Para Heidegger, o que importa ser enfatizado é que a liberdade irrompe no
homem, fazendo com que ele se volte para si mesmo. É por este envolvimento da
liberdade que o homem se torna possível. Buscando um aprofundamento indispensável,
por ser a liberdade o fundamento da existência, a questão da relação entre Ser e Tempo
está, efetivamente, enraizada nela. Isso ocorre porque a própria liberdade é a condição
insuperável da compreensão do Ser, na integralidade de sua abrangência e
preenchimento. Por conseqüência destas determinações, o homem, fundado na
liberdade, deve ser tratado como o sítio (Stätte) em que o ente no seu conjunto se
manifesta. Em outras palavras, o homem é o ente através do qual o ente enquanto ente
se mostra. Muito mais decisivo que isso, dimensionado a partir da liberdade que o
funda, o homem existe enquanto o que manifesta o Ser dos entes (Sein des Seienden).
Todavia, a manifestação do Ser do ente está concentrada no factum da
existência, ou seja, na compreensão antecipatória do Ser. Pelo que apresenta o §14, o
acontecimento da compreensão do Ser anuncia que o homem “só pode ser enquanto o
mais finito dos entes”
154
. Na finitude (Endlichkeit) do homem, a reunião
(Zusammenkunft) dos domínios antagônicos (Widerstreitenden) do ente. Na finitude
ocorre, ao mesmo tempo, a oportunidade (Gelegenheit) e a possibilidade para a
separação dos entes nos seus modos de ser específicos. Precisamente no cerne da
finitude reside o problema da possibilidade da verdade enquanto desencobrimento
(Wahrheit als Entborgenheit). Por estes delineamentos, o que se torna evidenciavel é
154
Op. cit., p. 135.
180
que a problematização da liberdade, ou melhor, da essência da liberdade deve ser
assumida como a tarefa mais premente da metafísica, principalmente em decorrência do
que ela envolve e determina.
Nos limites da exposição do curso de 30, Heidegger afirma que a liberdade
permite com que o “homem penetre em seu próprio fundamento, de tal maneira que ao
se perder na intencionalidade metafísica de sua essência, ele conquista a sua unicidade
existencial”
155
. Como estes arranjos podem ser visualizados? Seguramente, os textos
produzidos entre o final de 1929 e durante o início de 1930 mostram, nitidamente, o
atingimento dos limites mais específicos do projeto de intensificação da metafísica do
Da-sein. Primeiramente, o que merece ser explicitado é que as principais articulações
dos textos referentes a este período corroboram, sem dúvida, a finalidade de levar
adiante, ou seja, de intensificar os conceitos estruturantes apresentados nos cursos de
1928 e do início do ano de 1929. Por conseqüência disso, a tarefa interpretativa consiste
na elucidação das relações, muitas vezes subterrâneas, entre os diferentes momentos
constitutivos da filosofia de Heidegger na sua primeira fase.
Através do exercício comparativo entre estes momentos, o que passa a assumir o
primeiro plano é a percepção de que Heidegger promove, por assim dizer, uma
autolimitação nos desenvolvimentos do que é requerido pela metafísica do Da-sein. O
que isso pretende assinalar? Antes de qualquer coisa, a certeza de que os principais
elementos são conquistados, assim como o entendimento de seus lugares específicos.
Além disso, os desenvolvimentos presentes, nos textos acima mencionados, exibem as
caracterizações formais dos problemas e das questões mais essenciais. Precisamente por
155
Op. cit., p. 136.
181
isso, é mais do que cabível afirmar que o domínio efetivo da metafísica do Da-sein, tal
como elaborado por Heidegger, concerne ao da tematização do que define e,
simultaneamente, determina, sempre de modo transcendental, a intensificação da
estruturação do Da-sein no homem. Neste sentido, o que está sendo conceituado, nos
anos de 29 e 30, precisa ser entendido mediante o seu escopo caracterizador.
Todavia, a positividade argumentativa e metodológica presente na
sobrevaloração caracterizadora dos elementos e de suas relações traz, inegavelmente,
dificuldades centrais. Dentre todas, a mais decisiva diz respeito, sim, à incapacidade,
devido ao repertório metodológico disponível, para a realização da passagem do nível
da caracterização para o da conceituação do que funda as relações mais originárias. Em
outras palavras, o projeto da metafísica do Da-sein se mantém vinculado, única e
exclusivamente, às definições que caracterizam os seus momentos mais significativos,
porém o ingresso, por intermédio da própria caracterização, na conceituação expressa
do que é tomado como o mais nuclear não ocorre. Em virtude disso, o que há, no fundo,
é um intenso e ininterrupto exercício de caracterização, ao passo que o estabelecimento
a partir dela não é realizado. Como, então, estas limitações podem ser exibidas de uma
maneira mais direta?
Desde o curso Introdução à Filosofia, um estreitamento do vínculo entre as
questões da liberdade e da verdade. De uma maneira mais explícita, a liberdade,
considerada como a ação primal do Da-sein, é definida, desde o início, como o âmbito
da essência do fundamento, e, mais relevante, como o território no qual se o
cumprimento da própria questão da verdade. Nestes termos, o deixar-ser o ente, caráter
fundacional da liberdade, aparece como sendo o lugar por excelência do desdobramento
182
da verdade na sua essência, isto é, da verdade enquanto não-encobrimento. Por um lado,
portanto, o que conduz o questionamento da liberdade é a sua ligação radical com a
verdade na e através de seu escopo manifestativo. De uma outra perspectiva, contudo, o
que se percebe é que sem o papel de ativador da problematização, realizado pela
liberdade e seus constitutivos, o dimensionamento da verdade na sua essência seria
impossível.
Seguramente, estas moldagens concernem ao que de mais significativo é
produzido no final dos anos 20. Porém, certos traços precisam ser melhor
contrabalançados. De início, é fundamental reter que a verdade é definida como não-
encobrimento, ou melhor, como desencobrimento (Entborgenheit). Ao lado disso, a
unidade da estruturação do Da-sein é considerada como pertencendo ao que é mais
essencial no próprio desencobrimento. Em virtude destes arranjos, a liberdade,
concentrada no deixar-ser, é, mesmo, a potencializadora do núcleo mais originário do
não-encobrimento, ou seja, do desvelamento do Ser. Estritamente falando, a verdade do
Da-sein é a abertura (Erschloßenheit). Neste sentido, a abertura encerra, como mostrado
no terceiro capítulo, o que de mais determinante no que Heidegger entende por
verdade ôntica. Contudo, a metafísica do Da-sein não intenciona desdobrar ao extremo
o que compõe a verdade entitativa. Diferentemente disso, o que importa é o
estabelecimento do que condiciona a abertura manifestativa do Da-sein enquanto tal.
Quais são, então, os objetivos destas posições?
De acordo com o que foi exibido no começo deste capítulo, o projeto do mundo,
ou mais precisamente, a vigência do mundo exige a conceituação expressa da relação
entre manifestação do ente e desvelamento do Ser. Visualizando com maior agudeza, o
183
que interessa, antes de tudo, é a tematização da abertura do Da-sein na e através do
desvelamento do Ser que a envolve antecipatoriamente. Assim, o desvelamento
(Enthüllheit) é o núcleo mais interno da verdade, porém, nos limites da metafísica do
Da-sein, ele somente pode ser esclarecido mediante o adentramento na abertura
enquanto tal. Necessariamente, portanto, o desvelamento é a máxima condição
possibilitadora, mesmo que ele não exerça um papel operativo tão marcante. Sem
dúvida alguma, este papel ativador é reservado à manifestação o peculiar do Da-sein.
Buscando uma síntese possível, na essência da liberdade deve ser problematizado o
condicionamento fundante do desvelamento frente à manifestação enquanto abertura.
O obstáculo reside exatamente neste ponto. Pelo que os documentos disponíveis
revelam, a preparação deste questionamento é efetuada de maneira muito cautelosa e
minuciosa, tendo seu momento de culminância na quarta secção da conferência Da
Essência da Verdade. Dessa maneira, os elementos que integram o questionamento
estão presentes e, ao mesmo tempo, apropriadamente dispostos entre si. No entanto, o
início da conceituação expressa, através dos motivos exibidos acima, não se dá, e, mais
importante, não indicações acerca das razões do o prosseguimento do que estava
sendo projetado. Por conta disso, o que cabe ser afirmado, enfaticamente, é que a
essência da verdade é caracterizada, porém o alcance do que a constitui de modo mais
intrínseco não é conquistado. Assim posto, a transição da questão da verdade para a de
sua essência é concretizada apenas na sua primeira metade: a de sua caracterização. Os
desenvolvimentos consecutivos, muito mais centrais e abrangentes, são apenas
entrevistos, se o termo é pertinente. Por conseguinte, o que deve ser propiciado para um
entendimento mais fecundo destas dificuldades?
5 PRESSUPOSTOS DE UMA MUDANÇA
A limitação mais estrita e indispensável da metafísica do Da-sein põe,
seguramente, a liberdade como condicionadora de todo o questionamento. Justamente
por isso, desde o curso de 28, As Fundações Metafísicas da Lógica, ao curso de 30,
Da Essência da Liberdade Humana, o que se notabiliza é o privilegiamento,
ininterrupto e progressivo, da problematização da liberdade através de seus constitutivos
mais essenciais. Exprimindo de uma outra maneira, a afirmação, contida no próprio
curso de 30, de que a liberdade é o que ordena e, ao mesmo tempo, determina a
manifestação do ente na totalidade deve ser considerada, em larga medida, como uma
síntese insuperável dos propósitos da filosofia de Heidegger no final dos anos 20.
Devido à ocupação do primeiro plano, é somente a partir do desdobramento do que
concerne mais intrinsecamente à liberdade que os demais conceitos fundamentais da
metafísica podem ser melhor evidenciados, e, mais importante, contrabalançados e
reposicionados.
Necessariamente, então, o acompanhamento analítico do que é produzido no
final da década de 20 e no inicio do ano de 1930 propicia a clarificação de que a
liberdade percorre os momentos estruturantes mais definidores. Devido a este caráter
perpassante, é mais do que assumível dizer que apenas à luz do como da
185
problematização da liberdade ocorre, de um modo mais direto e produtivo, a
possibilidade para o entendimento das articulações que, por assim dizer, compõem a
filosofia de Heidegger nos primeiros anos da década de 30. Assim posto, o que precisa
ser apontado como condutor da análise, daqui para diante, é a procura, sempre no
interior da liberdade, de posicionamentos que assinalam, mesmo que de forma
insipiente, um redimensionamento central na distribuição dos papeis, e,
consecutivamente, nos objetivos do pensamento de Heidegger.
Ainda que de maneira insatisfatória, o capítulo anterior indicou que a tessitura da
conferência Da Essência da Verdade é, no mínimo, bastante especial. Visando um
melhor esclarecimento, é imprescindível ressaltar que as primeiras quatro secções do
texto de 30 pertencem, sem dúvida, ao âmbito da determinação da transcendentalidade
do Da-sein. Por conta disso, é mais do que adequado enfatizar que estas secções, tal
como apontam os interpretes mais exponenciais, de Richardson
156
à von Herrmann
157
,
estão inscritas no desenvolvimento do problema da transcendência. Em outros termos,
elas são nitidamente transcendentais. Diferentemente disso, é fundamental assinalar que
as outras cinco secções que compõem a conferência não podem ser determinadas da
mesma maneira. Nelas, o que salta aos olhos é, sim, uma modificação, súbita e sutil, do
como da argumentação, do posicionamento dos conceitos mais relevantes, e, o que não
é menos decisivo, do uso dos recursos metodológicos.
156
Na sua obra de 1963, Richardson estabelece a primeira interpretação completa da Conferência de 30.
Segundo ele, as mudanças no texto o bastante visíveis, e decorrem do ingresso no que ele próprio
denomina de Heidegger II, ou seja, do desenvolvimento da relação entre Ser e Pensar.
157
No texto de 2002, Verdade – Liberdade – História, von Herrmann pretende realizar uma interpretação
sistemática da Conferência de 30. Para isso, ele se dedica, exaustivamente, a um exame do texto de 30,
procurando evidenciar, em primeiro lugar, as suas tensões argumentativas e metodológicas.
186
Pelo que a documentação existente atesta, a conferência de 30 foi não só
reapresentada ao longo da década de 30, porém ela foi continuamente modificada em
muitos de seus aspectos mais significativos, vindo a ser publicada em 1943. Contudo,
tal como Heidegger parece afirmar na Carta sobre o humanismo (1946), os
propósitos, isto é, o que de mais essencial no texto permanece inalterado. O que isso
pretende indicar? Certamente, o texto de 30 oferece dificuldades incontornáveis e, por
enquanto, inultrapassáveis para o trabalho interpretativo. A principal delas corresponde
à datação das revisões e, portanto, à localização precisa dos ingressos e das subtrações
dos conteúdos que a mantém. Neste sentido, a não realização, pelo próprio Heidegger,
de um cotejo com outros textos da década de 30 torna o esforço analítico ainda mais
obstaculizado. Entretanto, a versão publicada de 43 deve ser tomada, antes de qualquer
coisa, como a que exibe as motivações mais nucleares de Heidegger no início dos anos
30. Pondo de uma outra maneira, somente por intermédio da admissão de que o mais
essencial da conferência de 30 pertence a este ano, a análise conquista a sustentação
para o seu prosseguimento.
A partir deste delineamento, de que forma necessita ser norteado o exame? Num
momento crucial da quinta secção, Heidegger corrobora que o deixar-ser, isto é, o
caráter primal da liberdade dispõe, sempre de maneira antecipatória, o Da-sein para o
ente em sua totalidade, em todo e qualquer comportamento. Isso significa dizer,
fundamentalmente, que o comportamento do homem (Verhalten des Menschen) é
perpassado pela manifestação do ente na totalidade (Offenbarkeit des Seienden im
Ganzen), enraizada no deixar-ser. Contudo, o que passa a chamar a atenção de
Heidegger, neste momento da exposição, é que o na totalidade jamais se deixa
apreender mediante o ente que se manifesta, não importando o modo de ser e o domínio
187
da manifestação. Inegavelmente, então, mesmo que o na totalidade perpasse a tudo
ininterruptamente, ele enquanto tal “permanece como o não-determinado e o não-
determinável”
158
.
Sugestivamente, o que está sendo afirmado é que o na totalidade não
corresponde, no fundo, ao escopo manifestativo. Assim, para a manifestação, cerne do
desencobrimento até aqui, o na totalidade se mantém na máxima indeterminação, ou
melhor, na plena inatingibilidade. Para Heidegger, o que funda o comportamento do Da-
sein frente ao ente não deve ser tomado, devido a sua indeterminabilidade, como algo
inexpressivo, ou seja, irrelevante. Distintamente disso, o que na realidade condiciona o
deixar-ser é uma ocultação do ente na totalidade (Verbergung des Seienden im Ganzen).
Neste sentido, o deixar-ser, em todo o comportamento singular, deixa o ente ser na
medida em que o desencobre (entbirgt). Porém, e isso é muito significativo, o
desencobrimento (Entborgenheit) de cada ente ocorre na e através da ocultação do ente
na totalidade. Por conseqüência direta destas articulações, o deixar-ser é,
concomitantemente, um encobrir (Verbergen).
Muito mais do que isso, na liberdade ek-sistente do Da-sein (ek-sistenten
Freiheit des Daseins) acontece, apropriativamente, a “ocultação do ente na totalidade, o
encobrimento”
159
. O que isso pretende assinalar? Mesmo que de modo preliminar, o
estabelecimento de posições que, sem dúvida, divergem frontalmente das exibidas nos
textos do final da década de 20. Como foi analisado no terceiro e quarto capítulos, desde
158
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen der Wahrheit; in Wegmarken. Gesamtausgabe, Band 9. Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1976, p.193.
159
Op. cit., p. 193.
188
o curso Introdução à Filosofia até a quarta secção da conferência de 30, o
desencobrimento possui como sua origem indepassável o desvelamento (Enthüllheit) do
Ser do ente. É precisamente por provir de uma ação desvelativa que a liberdade assume,
no Da-sein, a tarefa de cumprir e consumar a essência da verdade, isto é, o não-
encobrimento (Unverborgenheit) enquanto desencobrimento. Objetivando uma melhor
explicitação, o caráter desvelador, sendo efetivamente originário, garante a primazia da
liberdade na tematização da verdade ontológica, nos limites da metafísica do Da-sein.
De uma maneira bastante inusitada, Heidegger está firmando, no final da quinta
secção, que na liberdade ocorre, antes de tudo, o encobrimento (Verborgenheit). Assim,
a relação mais fundante que a liberdade mantém é, mesmo, com o encobrimento, sendo
que nesta relação o próprio encobrimento, pelo que se tem a o momento, parece
ocupar um papel preponderante. Encobrimento e liberdade. Qual a real amplitude
determinativa deste vínculo? Este dimensionamento exige o ingresso na sexta secção da
conferência de 30. Sem maiores mediações, Heidegger firma que o “encobrimento priva
o desencobrir à a-léthéia”
160
. Nestes termos, o encobrimento, fundamentalmente, nega à
verdade o seu traço mais peculiar. Em outras palavras, a negação do vigor
desencobridor da verdade é o que singulariza” o encobrimento. Entretanto, a privação
do cerne da verdade, isto é, do o-encobrimento pelo encobrimento precisa ser
aclarada na sua estruturalidade.
Muito antes de ser uma negação pura e simples da verdade, o encobrimento
guarda (bewarhrt) para a verdade o que lhe é mais próprio (eigenste) enquanto
apropriação (Eigentum). Assim, o que assegura a internalidade do desencobrimento é o
160
Op. cit., p. 193.
189
encobrimento. Melhor exprimindo, o encobrimento preserva a verdade para que ela
alcance o seu preenchimento, ou seja, para que ela se aproprie de si. Justamente por
isso, o encobrimento deve ser considerado enquanto o não-desencobrimento (Un-
entborgenheit), e, o que é decisivo, como a “mais própria e mais autêntica o-verdade
da essência da verdade”
161
. Em decorrência destas articulações, o encobrimento do ente
na sua totalidade não se põe, antes de tudo, como uma derivação lateral do
conhecimento do ente (Erkenntnis des Seienden). Ao contrário, tal como Heidegger
enfatiza, o encobrimento, a mais autêntica não-verdade , é sempre anterior a toda
manifestação (Offenbarkeit) do ente.
Seguindo os encaminhamentos da sexta secção, por preceder a manifestação do
ente enquanto tal na sua abrangência, o encobrimento necessita ser tomado como “algo
mais antigo do que o deixar-ser em si mesmo”
162
. Neste sentido, o encobrimento é, sim,
mais originário do que a ação primal do Da-sein. De um modo mais nuançado, o deixar-
ser, desencobrindo, se mantém no encobrir, e, devido a isso, relaciona-se,
primordialmente, com a ocultação (Verbergung). Porém, o que sustenta o deixar-ser
nesta relação com a ocultação? Para Heidegger, o que garante o deixar-ser, isto é, a
liberdade é o encobrimento do encoberto na sua totalidade (Verborgenen in Ganzen).
Em outros termos, o encobrimento do encoberto enquanto tal é o que envolve, desde
sempre, a ação manifestativa do Da-sein. Este encobrimento do encoberto, ou seja, do
ente na sua totalidade deve ser entendido como o mistério (Geheimnis).
161
Op. cit., p. 193.
162
Op. cit., p. 194.
190
Certamente, o que Heidegger intenciona acentuar é que o mistério, ou melhor, a
ocultação do encoberto (Verbergung des Verborgenen) exerce, a partir de si, um
domínio sobre o Da-sein do homem (Da-sein des Menschen). Buscando uma
visualização mais penetrante, no núcleo mais interno do deixar-ser que desencobre e, ao
mesmo tempo, encobre o ente na sua totalidade, o encobrimento acontece (geschieht)
enquanto o que aparece (erscheint) encoberto em primeiro lugar. Assim determinado, o
Da-sein guarda (verwahrt), na estrita medida em que ek-siste, o primeiro e o mais vasto
não-desencobrimento (Un-entborgenheit), ou seja, a não-verdade autêntica (eigentliche
Un-wahrheit). Portanto, o Da-sein, no homem, realiza, primariamente, a preservação da
não-essência (Un-wesen) apropriada da verdade: o mistério. Todavia, o que quer dizer,
mediante estes arranjos, não-essência?
Antes de qualquer coisa, é indispensável ressaltar que o termo não-essência não
pode ser compreendido, de maneira alguma, como uma diminuição da essência. Pelo
que a sexta secção está elaborando, a não-essência concerne ao “sentido da essência na
sua pré-essencialidade”
163
. Desse modo, o não da não-essência primal (anfänglichen) da
verdade enquanto não-verdade conduz, inequivocamente, para o âmbito (Bereich), ainda
não experienciado, da verdade do Ser (Wahrheit der Seins), e não mais da verdade do
ente. Para Heidegger, é exatamente através destes norteamentos que a essência da
liberdade deve ser redimensionada. Por conta disso, o deixar-ser o ente, isto é, a
liberdade consiste numa relação determinada (entschlossene). Melhor dizendo, a
liberdade do Da-sein se constitui numa relação que não está fechada (verschließende)
163
Op. cit., p. 194.
191
sobre si mesma. Portanto, o aclaramento da liberdade precisa ser obtido através do que a
determina mais originariamente.
Pelo que exibe a conferência de 30, unicamente por intermédio da ligação com o
mistério (Geheimnis) é que a essência da verdade pode vir a ser conceituada. Contudo, o
que se torna evidenciavel, por estas articulações, é que todo o comportamento do Da-
sein está, sem dúvida, fundado na relação entre a liberdade e o encobrimento. Isso
significa afirmar que o comportamento recebe desta relação a indicação (Weisung) para
o ente e seu desencobrimento. Por sua vez, a relação da liberdade com o encobrimento
se oculta de si mesma no interior da própria relação, pois a liberdade privilegia o
esquecimento (Vergessenheit) do mistério e nele se dissipa. Em decorrência direta deste
esquecimento da liberdade, o homem, no seu comportamento ininterrupto frente ao ente,
satisfaz-se, corriqueiramente, com a manifestação deste ou daquele ente. No fundo, o
homem se limita ao que é corrente (Gangbaren) e sujeito à dominação
(Beherrschbaren).
Para Heidegger, a residência (Ansässigkeit) no mais corrente consiste, por certo,
no não-deixar-viger (Nichtwaltenlassen) o encobrimento do encoberto. Na circunscrição
mais pertinente da residência no habitual, o encobrimento do ente na sua totalidade é
suportado como um limite (Grenze) que é comunicado por acaso. Dimensionado desta
maneira, o encobrimento enquanto acontecimento fundamental (Grundgeschehnis) se
perde no esquecimento. Entretanto, o “mistério esquecido do Da-sein o é eliminado
pelo esquecimento”
164
. Visando uma melhor elucidação, a retração do mistério no e para
o esquecimento dirige o homem historial (geschichtlichen Menschen) à permanência no
164
Op. cit., p. 195.
192
que é mais corrente. Assim determinado, o homem consuma o seu mundo mediante as
necessidades (Bedürfnissen) e as intenções (Absichten) mais recentes, preenchendo-o
com suas planificações (Planungen) e propósitos (Vorhaben).
Sem dúvida, a persistência no esquecimento do mistério, isto é, do encobrimento
fundante faz com que o homem, dimensionado historialmente, extraia de suas
planificações e de seus projetos as suas medidas (Maßen) mais fundamentais. Para
Heidegger, o problema se concentra efetivamente neste esclarecimento. A fixação nos
planos e nos projetos, continuamente renováveis e ampliáveis, impossibilita a reflexão
sobre o fundamento (Grund) mais específico desta assunção de medidas, assim como da
essência (Wesen) que possibilita esta tomada de medidas. Em virtude disso, o homem
somente acentua o seu engano, precisamente por considerar a si mesmo, enquanto
sujeito (als Subjekt), como a medida para todos os entes. No esquecimento do mistério,
a humanidade (Menschentum) persiste na proteção (Sicherung) de si própria através do
que é mais sujeitável no habitual (Gangbare). Por certo, esta persistência encontra o seu
limite (Grenze) na relação pela qual o homem não apenas ek-siste, porém,
simultaneamente, in-siste (insistiert), ou melhor, paralisa-se na estrita medida em que se
apóia no que o ente manifesto (offene Seiende) supostamente oferece.
O que estas articulações pretendem revelar? Em primeiro lugar, enquanto ek-
sistente, o Da-sein é, na maioria das vezes, in-sistente. Por ser fundamentalmente
exposto ao encobrimento, na “existência insistente vige o mistério”
165
. Entretanto, nela,
o mistério é tomado como a essência esquecida (vergessene Wesen) da verdade, e,
portanto, inessencial (unwesentlich). Na abertura da sétima secção, Heidegger reitera
165
Op. cit., p. 196.
193
que o homem, enquanto in-sistente, está inteiramente direcionado para o que é o mais
corrente do ente. Porém, um aclaramento deve ser realizado. Como havia sido
mencionado pouco, o homem somente pode in-sistir porque é, desde sempre, ek-
sistente. Isso significa assinalar que ele toma como medida diretiva (Richtmaß) a
exposição ao ente enquanto tal. Todavia, uma vez que o homem toma medida, ele se
desvia do mistério, ou seja, do encobrimento do encoberto. Neste sentido, um co-
pertencimento entre a doação in-sistente (Zuwendung) ao mais corrente e o afastamento
(Wegwendung) ek-sistente do mistério. No fundo, eles são a mesma coisa.
Como clarificar, então, a igualação entre a ek-sistência e a in-sistência?
Certamente, este modo de se voltar ao mais comum e de se desviar do mistério decorre
da transição incessante característica do Da-sein. Assim, a alternância do homem
corresponde ao errar (Irren). Visando uma melhor aproximação com a não-verdade, é
imprescindível enfatizar que o homem não ingressa no erro, ou melhor, na errância
(Irre). Ao contrario, ele se move, desde sempre, na errância porque ek-siste in-sistindo.
Inegavelmente, então, a “errância pertence à constituição mais interna do Da-sein a qual
o homem historial esabandonado”
166
. Melhor exprimindo, a errância é o espaço de
jogo (Spielraum) da oscilação em que a ek-sistência in-sistente se move continuamente.
Por conseqüência destes arranjos, a ocultação do ente encoberto na totalidade
(Verbergung des verborgenen Seienden im Ganzen), ou seja, o mistério domina a
desocultação (Entbergung) de cada ente que, enquanto esquecimento da ocultação,
torna-se a errância.
166
Op. cit., p. 196.
194
Na conferência de 30, estas explicitações põem a análise numa região
extremamente produtiva e complexa. Devido a seu escopo determinativo, a errância
precisa ser afirmada como a “antiessência essencial da essência primal da verdade”
167
.
Antiessência essencial, o que isso quer dizer? Antes de tudo, a percepção de que a
errância concentra todos os elementos concernentes ao encobrimento, ou melhor, ao que
precede à própria afirmatividade da verdade enquanto não-encobrimento.
Necessariamente, portanto, a errância se mostra como a dimensão aberta (Offene) para o
que se contrapõe à verdade essencial (wesentlichen Wahrheit). Em outros termos, a
errância é, ao mesmo tempo, o sítio (Stätte) aberto e o fundamento do erro (Irrtum). Na
determinação da não-verdade, o erro, tal como Heidegger enfatiza, não consiste numa
falha (Fehler) especifica, porém na dominância da historia (Geschichte) na qual estão
entremeadas todas as modalidades de ser do errar.
Pelos desenvolvimentos apresentados na sétima secção, todo e qualquer
comportamento do Da-sein detém sua maneira particular de errar. Cada maneira está
radicada na abertura (Erschloßenheit) que é mantida e na relação (Bezug) com o ente na
totalidade. Para Heidegger, o errar, isto é, a errância deve ser compreendida como um
constitutivo capital da manifestação enquanto abertura do Da-sein. É precisamente em
conformidade a este status que a errância move a marcha (Gang) da humanidade
historial. Assim posto, a errância domina o homem. Em outros termos, a dominância da
errância, ou seja, do esquecimento do encobrimento enquanto tal conduz o homem para
o desgarramento (Beirrung). No entanto, a própria errância propicia, através do
desgarramento, que surja, no Da-sein, a possibilidade (Möglichkeit) para o não se deixar
167
Op. cit., p. 197.
195
conduzir pelo próprio desgarramento. Efetivamente, portanto, o homem não se prende
ao desgarramento se for capaz de experienciar a errância, e, com isso, o ignorar o
mistério do Da-sein (Geheimnis des Da-sein).
Porém, de que forma a errância pode ser experienciada? Sugestivamente, a
resposta precisa ser encontrada mediante uma visualização mais aguçada dos elementos
presentes. Segundo Heidegger, devido a ek-sistência in-sistente do homem se mover na
errância, e em decorrência do desgarramento sempre ameaçar (bedrängen) o homem de
algum modo, a “ameaça esta repleta de mistério, e de um mistério esquecido”
168
. Por
estes delineamentos, o homem, no cerne do Da-sein, está submetido,
concomitantemente, à dominância do mistério (Walten des Geheimnisses) e à ameaça
(Bedrängnis) da errância. Decisivamente, então, por elas o homem se encontra na
miséria (Not) da coação (Nötigung). Isso significa aclarar que a essência da verdade na
sua inteireza, o que inclui a sua não-essência, mantém o Da-sein na miséria, a partir da
contínua alternância entre o mistério e a ameaça do desgarramento.
Quais são, então, as reais implicações destes arranjos? É indispensável ressaltar
que “o Da-sein é o voltar-se para a miséria”
169
. Precisamente por este dimensionamento,
emerge, no cerne do Da-sein, a desocultação (Entbergung) da necessidade
(Notwendigkeit), e, através dela, o homem ek-sistente pode ser transposto para o
inevitável (Unumgängliche). Em virtude destas afirmações, o desencobrimento do ente
enquanto ente é, ao mesmo tempo, a ocultação do ente na sua totalidade. Para
Heidegger, é na concomitância da desocultação e da ocultação que vige,
168
Op. cit., p. 197.
169
Op. cit., p. 198.
196
inequivocamente, a errância. Assim, a ocultação do encoberto (verborgenen) e a
errância pertencem à essência primal da verdade (anfängliche Wesen der Wahrheit).
Estas articulações, mesmo que sintéticas, põem a análise numa região bastante fecunda.
Num momento estruturante crucial da sétima secção, Heidegger estabelece que a
liberdade, conceituada através da ek-sistência in-sistente do Da-sein, unicamente é a
essência da verdade porque ela provém da própria essência originária da verdade, ou
melhor, da vigência do mistério na errância (Walten des Geheimnisses in der Irre). Por
estas posições, torna-se inelutável a percepção de que o vínculo entre a liberdade e a
essência mais originária da verdade constitui, sim, o âmbito das problematizações mais
nucleares. Ainda que a conferência de 30 ofereça esclarecimentos extremamente
sucintos e condensados, é mais do que cabível dizer que “algo” que sobredetermina,
de uma maneira muito peculiar, o deixar-ser do ente, ou melhor, a manifestação do ente
enquanto tal. Marcadamente, então, a ligação entre a liberdade e a errância, na qual se
enraíza o mistério, obriga, por assim dizer, a assunção de que o acontecimento
fundamental é o encobrimento, ou seja, o domínio em que a análise está se dando é, sem
dúvida, o da essência mais potencializadora da verdade.
Mantendo a seqüência argumentativa da sétima secção, o que importa ser
aclarado, mais diretamente, é o modo de ser da liberdade em relação à vigência da
errância. Em primeiro lugar, Heidegger aponta para uma composição muito sutil.
Buscando uma visualização disso, o deixar-ser o ente do Da-sein possui uma
simultaneidade bem singular. Melhor dizendo, ele é tanto o deixar-ser o ente enquanto
tal quanto o deixar-se o ente na sua totalidade. Em vista disso, o que se mostra é a
diferença, ainda não esclarecida, entre estes dois modos do deixar-ser. Contudo, o que
197
está sendo ressaltado é que o deixar-ser, na sua integralidade, somente acontece
adequadamente quando, de tempos em tempos, ele é aceito e assumido na sua essência
primal. Corroborando articulações anteriores, isso significa indicar, inicialmente, que a
penetração na essência da liberdade necessita se dar a partir de sua irrupção da errância.
Todavia, a clarificação do deixar-ser pela errância requer, como já foi sinalizado,
a assunção da própria errância. Para Heidegger, a aceitação da errância exige, antes de
mais nada, o seu reconhecimento enquanto tal. Em outras palavras, somente onde a
errância é considerada enquanto tal, ocorre a “resolução para o mistério que se põe a
caminho para a errância
170
. Quando esta resolução (Ent-schlossenheit) efetivamente
acontece, a questão da essência da verdade (Frage nach dem Wesen der Wahrheit) é
procurada de modo mais originário. Somente por este direcionamento resolutivo é que
se desvela (enthüllt) o fundamento da essência da verdade. Porém, este fundamento tem
que ser entrevisto de uma maneira mais aguda. No fundo, o fundamento da essência da
verdade corresponde ao seu entrelaçamento (Verflechtung) com a verdade da essência
(Wahrheit des Wesen). Nestes termos, o cumprimento da essência da verdade,
nuclearizado no deixar-ser, decorre do adentramento no que, se a expressão é pertinente,
essencializa a essência na sua determinação mais extrema.
Por certo, a “essencialidade” da essência reside, pelo que o texto de trinta exibe,
na sua antiessência, ou seja, no encobrimento do Ser enquanto tal. Neste sentido, a
resolução da liberdade consiste, de uma vez por todas, no ir-em-direção-ao mais nuclear
da errância, isto é, do encobrimento do encobrimento. De um modo mais enfático, o
dirigir-se da liberdade é, decididamente, um direcionamento para a antiessência da
170
Op. cit., p. 198.
198
verdade, para a verdade da essência. Contudo, na sétima secção, Heidegger não se
ocupa com o esclarecimento da expressão verdade da essência. Por conta disso, o que
pode ser apreendido é que, diferentemente do proposto pela metafísica do Da-sein, a
determinação resolutiva pelo mistério, início da penetração na antiessência da verdade,
não é tomada por cada homem singular enquanto tal. Por conseguinte, a liberação
(Freilegung) do Da-sein no homem, isto é, a transformação do homem a partir do Da-
sein não é mais responsável pelo alcance do mais significativo. O que isso busca
indicar?
Certamente, a assunção da essência mais original da manifestação do ente
enquanto ente na sua totalidade acontece, apenas, em momentos excepcionais. Neles, a
perspectiva (Ausblick) para o mistério, tendo em vista a errância, é o questionar
(Fragen) no sentido da única questão (einzigen Frage) que importa: o que é o ente
enquanto tal na sua totalidade. Este questionar pensa a questão essencialmente
desconcertante (beirrende) e, sem dúvida, ainda não apreendida na sua ambigüidade
mais intrínseca, qual seja a questão do Ser do ente. Para Heidegger, o pensar do Ser
(Denken des Seins), através do qual emerge este questionar, é concebido, desde Platão,
enquanto filosofia (Philosophie), e, apenas muito posteriormente, recebe a denominação
de metafísica (Metaphysik).
No inicio da oitava secção, Heidegger agudiza os posicionamentos mais
significativos da secção anterior. Para ele, é unicamente no “pensar do Ser que a
liberação do homem para a ek-sistência é alcançada”
171
. De um modo mais preciso, a
liberação humana para a ek-sistência consiste na fundação da história (Geschichte).
171
Op. cit., p. 198.
199
Assim determinada, e isso é muito relevante, a liberação enquanto tal, na e a partir do
pensar do Ser, deve se preencher na palavra (Wort). Por conta disso, o que significa a
palavra? Fundamentalmente, ela deve ser tomada como o liame (Gefüge) que guarda de
maneira indepassável a verdade do ente na sua totalidade. Entretanto, o asseguramento,
por assim dizer, desta articulação que é a palavra depende, frontalmente, dos que podem
ouvi-la. Mesmo que estas posições não sejam desdobradas, os que são capazes de ouvir
a palavra decidem a posição (Standort) do homem na história (Menschen in der
Geschichte).
Pelo que a conferência de 30 apresenta, no instante em que a palavra é assumida,
na inteireza de sua determinabilidade, a filosofia tem o seu início. Por esta razão, a
história do mundo (Weltgeschichte) retém da configuração da própria filosofia a sua
possibilidade instaurativa. Mas, o que precisa ser aclarado da filosofia enquanto tal?
Pelo que se tem até aqui, o atingimento de sua essência é condicionado pelo como do
estabelecimento da “relação com a verdade originária do ente enquanto ente na sua
totalidade”
172
. Para Heidegger, é exatamente por este condicionamento que a essência da
filosofia deve ser melhor visualizada. Por certo, a verdade enquanto o-encobrimento
implica na sua antiessência, ou melhor, no encobrimento. Portanto, em virtude da
vigência da ocultação, a filosofia, ao perguntar pela verdade, é em si mesma discordante
(zwiespältig). O que isso intenciona revelar?
Visando uma aproximação mais consistente, o caráter discordante da filosofia
está, sim, enraizado na sua ambivalência. Pondo de uma outra maneira, o pensar da
filosofia consiste, por um lado, na serenidade (Gelassenheit) que o se recusa ao
172
Op. cit., p. 199.
200
encobrimento do ente na totalidade. Ao mesmo tempo, contudo, o pensar se mantém, tal
como Heidegger enfatiza, na resolução (Ent-schlossenheit) rigorosa que, sem negar e
romper com a ocultação, obriga a sua essência a ingressar na dimensão manifesta do
compreender (Begreifen), e, em vista disso, a penetrar na sua própria verdade (eigene
Wahrheit). Na medida em que se funda nesta ambivalência, a filosofia se “torna um
questionar que não se volta unicamente ao ente, assim como não admite nenhuma
autoridade exterior”
173
. Isso significa dizer, decisivamente, que a filosofia necessita ser
entendida como a automantenedora (Selbsthalterin) de suas determinações, o que a faz
rejeitar toda e qualquer subjulgação (Verknechtung) em seu pensar.
Desde o seu início, o cumprimento da filosofia enquanto a conservadora de suas
próprias leis (Gesetze) decorre da primariedade (Anfänglichkeit) com a qual a essência
originária da verdade (ursprüngliche Wesen der Wahrheit) se torna imprescindível para
o questionar. Em outros termos, a radicalidade da assunção e, consecutivamente, do
encaminhamento para a essência do não-encobrimento, isto é, para o encobrimento
molda, por assim dizer, a sustentação do pensar filosófico. Então, o que estes arranjos
pretendem caracterizar? De acordo com Heidegger, a finalidade insuperável da
conferência de 30 corresponde, inequivocamente, à busca pelos propiciadores, mesmo
que apenas entrevistos, da mudança no direcionamento da questão da verdade. Por essa
motivação central, o que passa a ter primazia é a pergunta acerca da suficiência ou não
do problema da essência da verdade em vista dos delineamentos efetuados há pouco.
No final da oitava secção, Heidegger admite que a questão da essência da
verdade precisa ser compreendida, antes de tudo, como a questão da verdade da
173
Op. cit., p. 199.
201
essência (Wahrheit des Wesens). Porém, um esclarecimento crucial deve ser realizado.
Seguramente, no “conceito de essência a filosofia pensa o Ser”
174
. Por conseqüência
disso, a questão da verdade do Ser tem que ser posta como a mais fundante e, ao mesmo
tempo, totalizante. Ela possui, portanto, uma precedência inegável frente à questão da
essência da verdade, isto é, em relação à questão da liberdade ek-sistente do Da-sein. Na
medida em que, tal como Heidegger formula, a filosofia pensa, prioritariamente, o Ser,
o questionar deve começar a se voltar para o que consiste, no cerne de seu
acontecimento, a verdade da essência, ou melhor, o não-encobrimento do Ser. Assim
posto, o Ser enquanto Ser passa a assumir, se o termo é pertinente, o lugar a partir do
qual são decididos os movimentos que compõem, certamente, a filosofia e, mais do que
isso, o homem na sua historialidade.
Visando uma aproximação mais cautelosa, a indicação para o dimensionamento
da liberdade ek-sistente do deixar-ser (ek-sistente Freiheit des Seinlassens) na e através
da ocultação e da errância evidencia, de modo definitivo, que a questão da essência da
verdade não consiste numa universalidade abstrata (abstrakten Allgemeinheit). Ao
contrário, quando estabelecida a partir de sua fundação mais extrema, a essência da
verdade exibe o “único encoberto da história da desocultação do sentido”
175
. Este
encoberto é, sem dúvida, o Ser. De uma maneira mais concreta, a história da
desocultação, ou seja, a filosofia acostumou-se, por razões ainda não tematizadas, a
entender o Ser unicamente como o ente na sua totalidade (Seiende in Ganzen). Em
decorrência deste entendimento, a transição para a questão da verdade da essência, ou
174
Op. cit., p. 200.
175
Op. cit., p. 200.
202
melhor, do Ser não pôde, até agora, ser realizada. Quais são as implicações mais
imediatas desses arranjos?
Nos limites mais específicos do texto de 30, o adentramento nestas articulações,
ainda que insuficiente, apenas podo ser conquistado na nona secção, intitulada nota
(Anmerkung). na sua abertura, Heidegger enfatiza que “a questão da essência da
verdade emerge da questão da verdade da essência”
176
. Estabelecendo uma distinção
bastante elucidativa, ocorre a afirmação de que a questão da essência da verdade,
fundamento indepassável da estruturação do Da-sein, compreende a essência, em
primeiro lugar, no sentido da qüididade (Washeit) ou no de realidade (Sachheit). Em
vista deste condicionamento, a verdade é, no fundo, tomada como uma característica do
conhecimento (Charakter der Erkenntnis). Muito distintamente disso, a questão da
verdade da essência toma a essência verbalmente e pensa, na e através desta palavra, o
Ser (Seyn) enquanto a diferença que vige entre Ser e ente, mesmo que ela se mantenha
vinculada ao âmbito do representar da metafísica (Vorstellens der Metaphysik).
Na questão da verdade da essência, a verdade possui o sentido instaurativo do
abrigar aclarador (lichtendes Bergen) como traço fundamental do Ser (Seyn). De
maneira mais direta, o que se torna perceptível, neste delineamento, é a conexão
extremamente peculiar entre verdade e Ser. Melhor exprimindo, a verdade, sempre no
domínio da verdade da essência, consiste num elemento capital do acontecer do Ser. Se
a expressão é cabível, a verdade enquanto não-encobrimento (Unverborgenheit)
pertence à ocorrência do Ser, isto é, à vigência da ocultação, do velamento. Assim
determinado, o não-encobrimento, ou melhor, o desencobrimento (Entborgenheit) é,
176
Op. cit., p. 201.
203
primordialmente, no e para o encobrimento, uma vez que, pelo que se tem até aqui, ele
cumpre o papel de, ao mesmo tempo, garantir e aclarar a vigência do encobrimento
enquanto tal. Precisamente por isso, a verdade surge, em toda a sua amplitude
determinativa, da apropriação de si do encobrimento.
Mediante estas posições, a secção final do texto de 30 anuncia, categoricamente,
que a questão da essência da verdade encontra sua resposta (Antwort) na proposição a
essência da verdade é a verdade da essência. O que isso pretende revelar? Ainda que
de modo sucinto, o deslocamento irrecusável do mais significativo das quatro primeiras
secções para o nível em que as formulações relacionadas à verdade da essência ocorre.
Este movimento requer, certamente, uma filtragem muito aguda dos estruturantes que
precisam ser conservados, assim como da maneira pela qual deve ser obtida esta
permanência. Todavia, a nona secção não se dedica à exploração desta temática
extremamente complexa. Como uma pista dos direcionamentos possíveis, a resposta à
questão da essência da verdade, ou seja, a verdade da essência não deve ser considerada,
de nenhum modo, como uma proposição (Satz) no sentido de uma enunciação
(Aussage). Originariamente, a verdade da essência consiste, tal como Heidegger
acentua, no “dizer de uma viravolta no interior da história do Ser”
177
.
Dizer de uma viravolta (Kehre), o que isso intenciona assinalar? Seguramente, a
viravolta se porque o Ser mantém em si o abrigar aclarador. Portanto, a viravolta
está, desde sempre, enraizada na relação originária entre Ser e verdade. Visando uma
melhor explicitação, o pertencimento da verdade ao Ser faz com que ele apareça
(erscheint), primariamente, à luz da retração (Entzug) encobridora. Para Heidegger, o
177
Op. cit., p. 201.
204
nome desta clareira (Lichtung) é a-léthéia, ou seja, não-encobrimento . Isso significa
indicar, pelo menos aaqui, que a retração do Ser depende, na sua essencialidade, do
aclaramento que é a verdade na sua originariedade. Contudo, estas relações também não
são devidamente desenvolvidas no texto de 30. Pelo que Heidegger afirma, a
conferência Da essência da verdade deveria ser completada, desde o projeto original,
por uma segunda conferência. Esta conferência receberia o título Da verdade da
essência. Contudo, a inviabilizarão deste projeto decorre de razões que são,
sinteticamente, exibidas na Carta sobre o humanismo. Como, então, elas podem ser
delineadas?
No texto de 46, o conceito de projeto (Entwurf), tal como aparece em Ser e
Tempo, unicamente pode ser entendido como a única via na qual a compreensão do Ser
(Seinsverständnis), inserida na análise estrutural do ser-no-mundo, deve ser,
positivamente, dimensionada. Esta via consiste na “relação ek-stática para a clareira do
Ser”
178
. Todavia, a consumação apropriada desta via, isto é, do outro pensar (andere
denken) que deixa de lado a subjetividade (Subjektivität) o pôde ser realizada, devido
as suas dificuldades intransponíveis. Assim, a terceira secção da primeira parte de Ser e
Tempo, denominada Tempo e Ser, foi retirada, e, conseqüentemente, não publicada.
Qual o motivo mais imediato para a não publicação? Pelo que Heidegger acena na carta
à Baufret, na secção Tempo e Ser “tudo é invertido”
179
. Isso significa dizer, em
primeiro lugar, que a secção foi retirada porque o pensar não conseguiu dizer
adequadamente a viravolta (Kehre).
178
HEIDEGGER, Martin. Brief über den Humanismus; in Wegmarken. Gesamtausgabe, Band 9.
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermannm, 1976. 327.
179
Op. cit., p. 328.
205
Na sua inteireza, Ser e Tempo está impregnado da linguagem da metafísica
(Sprache der Metaphysik). Em virtude disso, as estruturas do Da-sein, mesmo
intensificadas ao ximo, não asseguram a transição para a clareira do Ser. Neste
sentido, a conferência Da Essência da Verdade cumpre o papel, dentre outras coisas,
de prover certas indicações ao pensar da viravolta (Denken der Kehre). De uma maneira
bastante enfática, Heidegger firma que este pensar não significa uma “modificação no
ponto de vista de Ser e Tempo
180
. Porém, no pensar da viravolta o que é alcançado é a
localidade da dimensão (Ortschaft der Dimension) a partir da qual Ser e Tempo é,
mesmo, experienciado. Esta dimensão consiste na experiência fundamental do
esquecimento do Ser (Seinsvergessenheit). Mediante o que é exibido na carta de 46, a
transição da essência da verdade para a verdade da essência não se efetuou porque,
centralmente, o pensar exigido para o adentramento na relação entre verdade e Ser
estava imerso na transcendentalidade do Da-sein, isto é, no que Heidegger define, num
contexto bem diferente, de linguagem da metafísica.
O que chama a atenção é que, na conferência de 30, a expressão esquecimento
do Ser não aparece uma única vez. Sem dúvida, os motivos exibidos na Carta sobre o
Humanismo o bastante genéricos, e, por conseguinte, insuficientes, apesar de
indicarem elementos muito significativos, como, por exemplo, o problema do pensar da
viravolta. A partir do final da última secção do texto de 30, esclarecimentos mais
criteriosos, ainda que limitados, podem ser obtidos. De um modo bem sugestivo,
Heidegger diz que, na própria conferência de 30, a questão decisiva do sentido (Sinn),
isto é, do âmbito do projeto (Entwurfbereich), ou melhor, da manifestação enquanto
180
Op. cit., p. 328.
206
abertura não é desdobrada intencionalmente. Mais do que isso, a questão da verdade do
Ser (Wahrheit des Seins), e não apenas do ente, não é desenvolvida. Nestes termos, o
texto de 30 parece se conduzir no caminho da metafísica (Bahn der Metaphysik), e,
apesar disso, realiza em seus momentos mais cruciais, como a transição da liberdade ek-
sistente para a verdade enquanto ocultação e errância, uma mudança (Wandel) no
questionar, uma mudança que diz respeito, sim, à superação da metafísica
(Überwindung der Metaphysik).
Por este escopo modificador, o que é tangenciado na conferência de 30 alcança
seu cumprimento (Erfüllung) na experiência essencial em que primeiramente através do
Da-sein, radicalizado e universalizado na ontologia do final dos anos 20, pode ser
preparada uma aproximação, para o homem historial, com a verdade do Ser. Assim, a
finalidade sublinear do texto de 30 é, sem dúvida, o estabelecimento contínuo da
verdade do Ser enquanto fundamento de “uma posição historial modificada”
181
.
Contudo, e isso é extremamente relevante, o direcionamento da conferência procura
pensar este outro fundamento a partir do Da-sein, ou seja, por intermédio da liberdade
enquanto essência da verdade. Por estas clarificações, o curso do questionar
(Schrittfolge des Fragens) é, em si mesmo, o caminho do pensar que se experiencia,
primordialmente, enquanto modificação da relação com o Ser (Wandlung des Bezug
zum Sein).
Os obstáculos presentes na conferência mostram, em primeiro lugar, a procura
ininterrupta pelos elementos e, mais decisivo, pelas articulações entre eles capazes de
181
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen der Wahrheit; in Wegmarken. Gesamtausgabe, Band 9. Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1976, p. 202.
207
propiciar o alcance e, consecutivamente, a assunção do novo fundamento, ou seja, da
verdade do Ser. Por conta destas motivações, a liberação, por assim dizer, em relação
aos organizadores mais constitutivos da metafísica do Da-sein, do final da década de 20,
torna-se uma problemática determinante. Entretanto, ela pode se dar no interior do
movimento de modificação da relação com o Ser. Justamente por isso, não uma
separação entre a questão da essência da verdade e a questão da verdade da essência. Ao
contrario, elas formam uma unidade (Einheit) bastante sutil e complexa, na qual, antes
de tudo, ocorre uma imbricação, ou melhor, uma interdependência marcante dos
caracteres que as compõem. Todavia, para os fins mais imediatos da análise, uma destas
características necessita ser ressaltada.
Buscando um melhor entendimento, a modificação da relação com o Ser, no
inicio da década de 30, não consiste num rompimento, puro e simples, com o que foi
conceituado na metafísica do Da-sein. Neste sentido, a conferência de 30 traz posições
muito tidas. Na realidade, a ruptura com o projetado, desde Ser e Tempo, acarreta a
própria perda de sustentabilidade e de inteligibilidade ao que Heidegger define como o
outro pensar. Isso significa dizer, pelo menos, que o acesso às mudanças no início dos
anos 30 depende, frontalmente, do percorrimento do caminho da intensificação da
metafísica do Da-sein. Sem este percurso, portanto, o pensar da viravolta não assegura o
seu sentido mais peculiar. Em vista disso, o que importa ser privilegiado, daqui para
diante, é o esclarecimento dos momentos centrais, nos textos imediatamente posteriores
a conferência de 30, em que o questionamento do Ser ganha, se o termo é pertinente,
novos contornos.
208
No curso do semestre de verão de 31, Metafísica de Aristóteles Livro 9 1-3,
Heidegger afirma que a questão do ente é idêntica à questão do Ser. Assim, o que passa
a ocupar o primeiro plano é o que propicia a equiparação (Gleichsetzung) entre as duas
questões. Objetivando um melhor entendimento, o que significa dizer que a questão é
do ente, quando o que está sendo procurado (Gefragt) é o Ser? Inicialmente, é
indispensável acentuar que a igualação entre Ser e ente, Ser = ente, provém da certeza
de que, no experienciar habitual do ente, o homem, ou seja, o Da-sein ek-sistente não o
nomeia como o Ser, como o ente (das Seiende), porém como um ente (ein Seiende).
Por conta disso, a nomeação do ente decorre da maneira na qual ele é,
usualmente, experienciado. Ao nomear o ente como um ente, o Da-sein revela que não
leva em consideração o porquê e o como do ente ser um ente especifico, e, mais
importante, o fato de ele pertencer ao domínio entitativo. Para Heidegger, estas
determinações são tomadas como inteiramente autocompreensíveis
(Sebstverständlichkeit), e, portanto, não devem se transformar em motivo de
questionamento. Contudo, o que quer dizer, pura e simplesmente, o ente? De um modo
bastante sugestivo, o ente é determinado, antecipatoriamente, a partir de seu todo
(Ganze), sem que, por enquanto, a caracterização deste todo seja alcançável. Assim, o
experienciar usual do Da-sein esquece que a nomeação do ente como um ente está
condicionada, desde sempre, pelo todo não apreendido, isto é, não determinado.
Por conseqüência destes arranjos iniciais, o ente é, primariamente, a reunião de
tudo (Insgesamte). Porém, qual o sentido aproximado desta totalidade (Gesamtheit) que
reúne? Segundo Heidegger, na medida em que o Da-sein passa a considerar os entes,
209
eles “são percebidos através do que os toma de assalto e os importuna”
182
. É
precisamente esta importunação (Aufdringlichkeit) que conduz o Da-sein para os entes
enquanto tais. Em outras palavras, a totalidade dos entes consiste, certamente, na
concentração originária (ursprüngliche Geballte) da importunação. Assim, a
determinação dos entes assegura um solo bastante produtivo. Por ele, o que se mostra
como premente é a explicitação, pelos recursos disponíveis, do sentido da
importunação.
Na realidade, o ente se dá a si mesmo e ao Da-sein no Ser. Em decorrência direta
disso, Heidegger afirma que “antes e acima de tudo o ente é o Ser
183
.
Imprescindivelmente, então, em toda e qualquer ocasião em que o ente está sendo
tomado enquanto tal, o que está sendo considerado é o Ser. Pelo que se tem até aqui,
estes arranjos devem nortear a igualação entre ente e Ser. Melhor exprimindo, a
equiparação corresponde, sem dúvida, a primeira resposta decisiva (erste entscheidende
Antwort) à pergunta o que é o ente. Pelos constitutivos da resposta, o que já pode ser
evidenciado é que o questionamento do ente enquanto tal, sítio incontornável da
filosofia, somente se realiza na procura pelo Ser. Assim posto, o ente enquanto ente é o
Ser. Entretanto, o que é o Ser? Fundamentalmente, a resposta (Beantwortung) à esta
questão constitui a resposta completa (volle Antwort) à questão concernente ao ente.
No curso de 31, estes posicionamentos devem ser assumidos na sua radicalidade.
Para Heidegger, portanto, a questão do Ser é a consumação do questionamento do ente.
182
HEIDEGGER, Martin. Aristoteles: Metaphysik IX 1-3, Von Wesen und Wirklichkeit der Kraft.
Gesamtausgabe, Band 33. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1990, p. 22.
183
Op. cit., p. 23.
210
Em vista disso, é a partir da entidade do ente que a procura pelo sentido do Ser assegura
o seu status mais definidor. Em conformidade à elementos presentes na conferência de
30, o avizinhamento da questão especifica do Ser apenas pode ser conseguido mediante
“o primeiro que questionou o ente nesta direção, ou seja, buscou compreender a questão
do Ser”
184
. O que é o Ser? Tal como Heidegger ressalta, Parmênides é quem inaugura,
na filosofia ocidental, a problematização do Ser enquanto tal. Por conseguinte, a
equiparação entre ente e Ser, núcleo do terceiro parágrafo, precisa ser dimensionada por
intermédio das posições mais destacáveis de Parmênides acerca da estruturalidade do
Ser. De que forma, então, estes objetivos podem ser atingidos?
Inegavelmente, o que move o interesse de Heidegger por Parmênides é a
detecção de que ele percebe a importunação (Aufdringlichkeit) do ente na totalidade.
Isso significa assinalar que o que funda o pensar de Parmênides é, mesmo, a
determinação desta importunação. Para ele, o uno (Eine) corresponde a este presente
importunante (aufdringliche Gegenwart). Nesta medida, o Ser é o uno (Sein ist das
Eine). Antes de qualquer coisa, isso intenciona mostrar que o ente enquanto tal se dá (es
gibt) no uno. De acordo com isso, portanto, o ente é, acima de tudo, o uno.
Necessariamente, a questão do ente é envolvida e se mantém ligada à afirmação do Ser
como uno. Entretanto, mediante o que foi exposto pouco, a busca da essência do
ente, ou melhor, da verdade do ente não preenche o caráter mais especifico do pensar
filosófico.
Ao estabelecer que o Ser é o uno, Parmênides está inaugurando uma forma de
questionar inteiramente distinta das demais. Para Heidegger, o que ocupa Parmênides
184
Op. cit., p. 23.
211
não é, prioritariamente, o ente enquanto ente. A sua maneira, o que ele persegue é, única
e exclusivamente, o Ser. O que isso quer dizer? Por certo, o questionar do Ser molda,
devido a sua originariedade, o questionar do ente. Como se sabe, questionar o ente é
questioná-lo no e a partir do Ser. No entanto, o que emerge, pela primeira vez, é a
problematização, mesmo que insipiente, do Ser enquanto Ser. Pondo de uma outra
maneira, o que surge é um pensar que, sem desconsiderar que o Ser é sempre ser do
ente, aponta para o acontecimento do Ser na sua internalidade, se o termo é cabível. Este
acontecimento requer, como prenunciado na conferência de 30, um pensar que seja
suficientemente capaz de estar na essencialidade do próprio Ser. Contudo, como
Heidegger delineia estas singularidades na afirmação de que o Ser é o uno?
Em primeiro lugar, é indispensável ressaltar que a questão do Ser não é
desdobrada por Parmênides. Efetivamente, o que é erguido corresponde a uma intuição,
que ela é, mesmo, uma intuição fundamental. De um modo mais enfático, o que
emerge é “a primeira verdade não a primeira no tempo, a primeira a ser encontrada,
mas a primeira que precede todas as outras e brilha atrás do que chega depois”
185
. Em
vista disso, a afirmação o Ser é uno, na sua intensividade determinativa, consiste numa
afirmação primal no sentido estrito (anfänglich im strengen Sinne). Qual a relevância
destas posições? Na filosofia, assim como nas possibilidades essenciais do Da-sein, o
começo é o superior (Größte), sendo que o que o sucede jamais consegue alcançá-lo.
Explicitando um traço bastante caracterizador na transição da essência da verdade para a
verdade da essência, Heidegger acentua que o que vem depois (Nachkommende) apenas
185
Op. cit., p. 23.
212
se mostra autêntico quando expressamente se instala no que é superior, assumindo-o
enquanto tal.
Sem que a análise possa percorrer os passos do curso de 31, especialmente no
que diz respeito aos conceitos fundamentais de Aristóteles, o que cabe ser iluminado, de
modo mais direto, é que a afirmação o Ser é o uno permanece sendo algo insuperado na
filosofia ocidental, mesmo com todas as modificações (Wandlungen) que ocorrem até
Hegel. Seguramente, este tipo de dimensionamento evidencia como Heidegger, no
inicio da década de 30, procura mover os seus pressupostos argumentativos e
metodológicos. Em primeiro lugar, o que salta aos olhos é uma distinção frontal em
relação a um dos núcleos da metafísica do Da-sein. Este núcleo concerne, por certo, à
manifestação do ente enquanto ente. Através do que foi analisado no segundo e terceiro
capítulos, a manifestação do ente, concentrada na transcendentalidade do deixar-ser,
enraíza-se na abertura do Da-sein, entendida como uma manifestação primordial. Nela,
o que ocupa o primeiro plano é a facticidade da compreensão do Ser.
Pelo que se sabe do projeto do final dos anos 20, largamente corroborado no
curso de 30, Da Essência da Liberdade Humana, o Ser constitui o horizonte da
compreensão, ou melhor, o horizonte da manifestação do ente enquanto tal na
totalidade. Por estes condicionamentos, então, o Ser é o limite, por ser o a priori da
compreensão, para o desencobrimento (Entdorgenheit) do ente. No curso de 28/29,
Introdução à Filosofia, e, em particular, no curso de 29/30, Os Conceitos
Fundamentais de Metafísica, a vigência do ser-no-mundo, caráter fundamental do Da-
sein, está intimamente vinculada à necessidade da tematização do desvelamento do Ser
(Enthüllheit des Seins). O que se percebe, tal como exposto no capítulo anterior, é uma
213
ordenação muito particular entre manifestação do ente, liberdade do Da-sein e
desvelamento do Ser, radicado na compreensão. Visando uma síntese possível, o ente se
manifesta enquanto tal no Da-sein a partir do caráter desvelativo da compreensão do Ser
que o instaura.
No curso de 31, mesmo que de forma extremamente redutora, o que deve ser
acentuado é uma mudança nesta orientação. Pelo que se no §3, a igualação entre Ser
e ente parte de algo muito específico. Na realidade, a igualação decorre da própria dação
do ente. O ente se (es gibt) a si mesmo e ao Da-sein, nesta ordem. Por conseqüência
direta disso, a análise fenomenológica deixa de estar voltada para a intensificação do
deixar-ser, uma vez que a dação parece ser mais originária e determinante. Nestes
termos, o que deve ser priorizado é o fundamento, por assim dizer, da dação do ente
enquanto tal. Como foi visualizado pouco, este fundamento corresponde ao
questionar do Ser enquanto Ser. Desse modo, é erigida uma dimensão em que a
essencialidade do Ser, a partir do ente na totalidade, passa a ser tomada na sua
movência, a qual foi prefigurada, nas circunscrições mais centrais da conferência de
30, como o acontecer da verdade da essência, isto é, como o acontecer do o-
encobrimento do encobrimento.
Além disso, principalmente a partir dos primeiros parágrafos do curso de 31, o
pensar do Ser se singulariza por estar fundado, integralmente, na história. No entanto, a
história corresponde, por certo, à história do próprio acontecimento apropriativo do Ser.
Em outras palavras, a história consiste num movimento excepcional e lacunar no qual,
primordialmente, ocorre o preenchimento do sentido da relação entre verdade e Ser.
Inegavelmente, então, o que Heidegger denomina de história diz respeito à marcha, se o
214
termo é pertinente, da ambigüidade do Ser, ou seja, da ambivalência do seu
encobrimento não-encobrimento, nuclearizado nos textos dos pensadores essenciais,
desde os pré-platônicos, como o curso de 31 evidencia ao privilegiar certos
posicionamentos de Parmênides. Por estes avizinhamentos, é correto afirmar que o
pensar do Ser é historial, e se iguala a filosofia ocidental quando dimensionado na e
através da questão fundamental, isto é, a questão da verdade da essência.
Estas clarificações mostram, de uma vez por todas, que as motivações do
pensamento de Heidegger, precisamente nos primeiros anos da década de 30, passam
por mudanças, no mínimo, muito expressivas. Para um melhor desdobramento desta
transição, o curso do semestre de inverno 31/32, Da Essência Da Verdade, traz
elementos especialmente reveladores. Antes de tudo, é imprescindível dizer que o curso
de 31/32 é composto de duas partes centrais, sendo que o primeiro objetivo é o de
formular uma interpretação da alegoria da caverna, presente no livro 7 da República de
Platão. Na segunda parte, sem dúvida alguma a mais complexa e nuançada, o que
importa é a problematização do conceito de não-verdade em Platão, mediante um exame
bastante peculiar do diálogo Teeteto. Para análise que está se dando, contudo, o que
possui primazia é o entendimento do como, no curso de 31/32, Heidegger se dedica a
tarefa do aprofundamento da passagem da questão da essência da verdade para a
questão da verdade da essência. De que forma, por conseguinte, os traços mais
marcantes devem ser visualizados?
No §2 do curso de 31/32, Heidegger firma que a acessibilidade do problema
fundamental da verdade somente pode ser conquistada na própria história do conceito
de verdade. O que isso quer dizer? Inicialmente, intensificando articulações do curso de
215
31, a retroveniência autêntica (echten Rückgang) na história toma distância do presente
(Gegenwart). Na realidade, ela considera o presente como algo que deve ser,
obrigatoriamente, superado. Nestes termos, a retroveniência genuína é o “decisivo
começo da futuridade autêntica”
186
. Acentuando um traço de sua abrangência
metodológica, a retroveniência é o que propicia o entendimento do que está
acontecendo atualmente. Tendo como ancoragem estas determinações, o que se mostra
como essencial é o entendimento do como, no começo da filosofia ocidental, a verdade
é conceituada. Em vista disso, o que se torna premente é o esclarecimento do que os
gregos (Griechen) têm do que é chamado de verdade. Melhor dizendo, que palavra eles
possuem para a verdade?
Para os gregos, a palavra que exibe a verdade é a-léthéia, ou seja, não-
encobrimento (Unverborgenheit). Isso significa assinalar, antes de todo o resto, que
algo verdadeiro é algo não-encoberto (Unverborgenes). Para Heidegger, estes
delineamentos já permitem a descoberta de elementos significativos. Em primeiro lugar,
o que os gregos consideram como verdadeiro, isto é, o não-encoberto é o que não está
mais encoberto (Verborgene), é o que está sem encobrimento (ohne Verborgenheit).
Buscando uma melhor aproximação, o verdadeiro é o que foi arrancado (entrissene) do
encobrimento, como se ele tivesse sido roubado do próprio encobrimento. Neste
sentido, o verdadeiro é o que o detém mais algo consigo: o encobrimento. O
verdadeiro é, propriamente, o que se livra (befreit) do encobrimento. Portanto, a
expressão grega possui, ao mesmo tempo, estruturas semânticas (Bedeutungsstrukturen)
e morfológicas (Wortstrukturen) bastante particulares.
186
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen der Wahrheit, Zu Platons Höhlengleichmis und Theätet.
Gesamtausgabe, Band 34. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1997, p. 10.
216
Fundamentalmente, a “expressão grega é privativa”
187
. Como conseqüência
imediata disso, na expressão não-encobrimento, a palavra negativa expõe a positiva.
Assim, o encobrimento é, enquanto acontecimento fundante, apresentado
intensivamente na sua negação. Por uma outra perspectiva, a palavra positiva, o
encobrimento, exibe a finalidade e a necessidade mais interna da negativa, ou seja, do
não. Além disso, a significação (Bedeutung) da palavra grega para a verdade não
mantém nenhum vínculo essencial com a enunciação (Aussage) e com a conexão de
coisas (Sachzusammenhang). Em vista destas elucidações, a essência da verdade não é,
mesmo, dimensionável a partir da concordância (Übereinstimmung) e da correção
(Richtigkeit). Peremptoriamente, verdade enquanto o-encobrimento (Wahrheit als
Unverborgenheit) e verdade enquanto correção (Wahrheit als Richtigkeit) são, de
acordo com Heidegger, concepções muito distintas, uma vez que emergem de
experiências fundamentais (Grunderfahrungen) radicalmente diferentes e que não são
relacionáveis.
Porém, como deve se dar uma aproximação mais produtiva com a concepção
grega? Para Heidegger, o direcionamento para a verdade enquanto a-léthéia dispensa a
fixação da análise na mera significação da palavra (Wortbedeutung). Desviando-se deste
procedimento, o que importa ser enfatizado, antes de mais nada, é que a palavra a-
léthéia diz respeito ao que o homem, desde o fundamento de sua essência, quer e
procura”
188
. Nesta medida, ela corresponde, seguramente, a uma palavra para algo
primeiro e sobredeterminante . Melhor dizendo, a a-léthéia constitui o fundamento do
187
Op. cit., p. 11.
188
Op. cit., p. 12.
217
Da-sein, que ela envolve o experienciar originário com o mundo e consigo mesmo do
homem. Assim posto, o aprofundamento da análise torna indispensável o
esclarecimento da experiência fundamental para os gregos em vista da qual a verdade é
concebida enquanto não-encobrimento.
De acordo com o curso de 31/32, se o verdadeiro tem o sentido do não-
encoberto, do que se livra do encobrimento, então, na experiência do verdadeiro
enquanto não-encoberto, ocorre um envolvimento da experiência do encoberto no seu
encobrimento (Erfahrung des Verborgenen in seiner Verborgenheit). Decisivamente, o
que os gregos denominam de verdadeiro não consiste na enunciação, na proposição
(Satz) e no conhecimento (Erkenntnis). Para eles, o não-encoberto é um ente enquanto
tal. Em conformidade a esta posição, os entes precisam ser experienciados, prévia e
simultaneamente, no seu encobrimento. A filosofia, portanto, “procura os entes
enquanto entes no seu não-encobrimento”
189
. Sem dúvida, a experiência fundamental do
encobrimento é o fundo do qual irrompe a procura pelo não-encoberto. Porém, o que
significa dizer que os entes se encobrem?
Seguindo os passos interpretativos de Heidegger, o prévio experienciar dos entes
no seu encobrimento cumpre um papel maximamente condicionador. Somente se o
encobrimento dos entes envolve e, ao mesmo tempo, importuna o homem de um modo
essencial, ocorre a necessidade e a possibilidade para que os entes sejam arrancados do
encobrimento. Neste empenho do homem, os entes são trazidos para o o-
encobrimento e, precisamente por isso, o homem se põe em meio ao ente desencoberto.
A partir destas articulações, uma determinação nuclear pode ser melhor visualizada.
189
Op. cit., p. 13.
218
Sugestivamente, o que está sendo estabelecido é que a vigência dos entes (Walten des
Seienden) se no encobrimento. Originariamente, então, os entes enquanto tais vigem,
ou seja, vigoram na ocultação. Melhor explicitando, há, por assim dizer, uma inclinação
primordial para que eles permaneçam no encobrimento. Mesmo que eles sejam retirados
da ocultação, existe uma “força” que os impulsiona de volta a ela.
Para Heidegger, a experiência fundamental dos gregos com a expressão a-
léthéia deve ser compreendida como o começo da filosofia, especialmente em
Parmênides e Heráclito. Desta maneira, o não-encobrimento constitui a efetividade
(Wirklichkeit), ou melhor, o acontecimento (Geschehen) que encaminha a filosofia
ocidental desde o seu início. Qual a envergadura destas afirmações? Corroborando as
prefigurações do curso de 31, a experiência fundamental que instaura a filosofia não
pode ser superada. Mais do que isso, o começo não tem como ser atingido (erreicht).
No fundo, o “começo é, essencialmente, o inalcançável e o superior”
190
. Assim, na
experiência do encobrimento dos entes ocorre algo maior e mais originário com o
próprio homem (Menschen selbst). Buscando uma melhor aproximação, este “algo” é,
propriamente, o acontecimento e a história (Geschichte) para a qual o homem sempre
deve conseguir retornar, se o que importa é a conceituação da essência da verdade
(Wesen der Wahrheit).
Neste momento do §2, Heidegger explicita os caracteres que propiciam a
conceituação da verdade enquanto o-encobrimento. Antes de qualquer coisa, o que
importa é o entendimento da maneira na qual deve se dar a retroveniência à filosofia
grega. Sugestivamente, o retorno precisa ocorrer mediante os desenvolvimentos da
190
Op. cit., p. 15.
219
questão da essência da verdade propostos por Platão e Aristóteles. Esta forma de
proceder, contudo, não está assentada na pretensa positividade e na maior amplitude do
que é estabelecido por estes pensadores. Por razões ainda não tangenciadas, Platão e
Aristóteles marcam o início da impossibilitação da experiência fundamental. Neles, a
postura fundante (Grundhaltung), isto é, o desencobrimento, concentrado no sentido da
palavra a-léthéia, é reformado (umbildet). Nesta reformulação, o que é preparado,
fundamentalmente é o alicerçamento para que a concepção usual da verdade, isto é, a
verdade como concordância e correção se torne, na e através de seu desdobramento,
determinante.
Por estas motivações, no dimensionamento da questão da essência da verdade,
ou melhor, da verdade da essência, o que ocupa o primeiro plano não é a tematização da
a-léthéia no seu sentido primal. Do mesmo modo, a análise não se dirige à clarificação
da verdade enquanto concordância. Diferentemente destes dois encaminhamentos, o que
precisa ser exibido é o enredamento (Verstrickung) destas duas conceituações da
verdade. Assim, o que necessita ser exposto é o modo pelo qual estes dois conceitos se
desordenam reciprocamente. Para Heidegger, a transição (Übergang) do não-
encobrimento para a correção é, sim, um acontecimento relevante, sem o qual o que
estrutura a filosofia ocidental se mantém muito obscuro. É justamente no empenho da
localização da passagem de uma conceituação para a outra, concentrado no
entrelaçamento delas, que a ida à Platão se mostra imprescindível.
Na circunscrição apropriada desta análise, o acompanhamento minucioso da
interpretação de Heidegger, especialmente acerca do Teeteto, não é indispensável.
Efetivamente, o que particulariza o exame de Heidegger é a certeza de que, em primeiro
220
lugar, Platão desconsidera o encobrimento como a primariedade intrínseca ao ente
enquanto tal. Ao rejeitar a experiência fundante do encobrir do ente, o que passa a ser
privilegiado é o não-encobrimento como o ponto de partida para o estabelecimento da
questão da verdade. Em consonância a isso, o ente é considerado, por Platão como o
não-encoberto, e não mais como o encoberto. A prevalência do não encobrimento traz
consigo, ineliminavelmente, a perda do caráter instaurativo da ocultação. Precisamente
por estas razões, o questionamento da antiessência da verdade, ou melhor, de sua não-
essência deixa de ser o impulsionador para o balizamento do mais essencial da questão
da verdade.
A rejeição da o-verdade, ou seja, do encobrimento enquanto acontecimento
originário exibe, incontornavelmente, uma passagem difícil e progressiva do âmbito da
verdade da essência, isto é, da verdade do Ser para o território da essência da verdade,
ou melhor, para o domínio do que, apenas, estrutura e condiciona o desencobrimento.
Através desta moldagem, a ambivalência que compõe o acontecimento do Ser o é
frontalmente negada, porém ela é bastante desvirtuada, uma vez que a não-verdade
passa a ser localizada como um limitador importante, porém decorrente e secundário em
relação ao não-encobrimento. Necessariamente, portanto, a não-essência passa a ser um
tema da afirmatividade da verdade considerada enquanto tal. Mediante estes
delineamentos, as configurações do pensar historial do Ser, no inicio da década de 30,
começam a adquirir uma forma própria.
CONCLUSÃO
Antes de tudo, um traço crucial deve ser enfatizado. Por certo, entre o final dos
anos 20 e o início da década de 30, o projeto filosófico de Heidegger se mostra como
algo extremamente complexo e singular. Na verdade, o cerne desta complexidade, assim
como desta especialidade, consiste na assunção, definitiva e categórica, de um
pressuposto bastante sutil, e que, em decorrência de sua quase intangibilidade, escapa,
por assim dizer, à interpretes fundamentais do pensamento heideggeriano. De um modo
mais preciso, o norteador sublinear corresponde, sim, à efetividade de um movimento
intensificatório do próprio questionamento do sentido do Ser. Por este norteamento, o
que se torna irrecusável é a necessidade da explicitação fenomenológica dos momentos
e dos lugares estruturantes do percurso de Heidegger neste período. O que isso
intenciona assinalar?
Fundamentalmente, a certeza de que a empresa heideggeriana não possui um
caráter estático, ou melhor, estacionário. Em outros termos, o que ocorre, por exemplo,
entre o estabelecido em Ser e Tempo e o que configura os adensamentos mais
limitativos da metafísica do Da-sein, especificamente nos anos de 29 e 30, não deve ser
tomado, de uma vez por todas, como o aclaramento, puro e simples, de articulações e de
conteúdos que se mantém os mesmos nas suas estruturalidades. Este é um elemento que
precisa ser permanentemente ressaltado. Por conseqüência direta disso, o que é
222
estabelecido nos textos imediatamente posteriores à Ser e Tempo, a partir do curso
de 27, Problemas Fundamentais da Fenomenologia, não tem como finalidade,
apenas, dar suporte e, com isso, esclarecer ainda mais a estruturação do Da-sein, via
analítica existencial, de acordo com a organização conceitual, argumentativa e
metodológica presente no texto de 26. Mais do que isso, a hipótese, nada desprezível, de
que o que é posterior à Ser e Tempo cumpre, certamente, o papel de revelador de suas
finalidades mais intrínsecas promove um desentendimento marcante.
Neste sentido, o que importa ser dito é que os textos do final da década de 20,
isto é, os que são compostos entre 27 e 29, não têm como ser considerados,
primariamente, enquanto interpretações, mesmo que sintéticas e mais pontuais, de Ser e
Tempo. Isso significa enfatizar que nestes textos, todos publicados nas obras
completas, há um vínculo estreitíssimo com o que é firmado no texto de 26, porém o
caráter, se o termo é pertinente, desta ligação não se reduz ao da subordinação, mais ou
menos nítida, frente ao proposto ao longo dos parágrafos de Ser e Tempo. Em virtude
disso, como deve ser entendida a relação entre o texto de 26 e o que o sucede?
O primeiro passo, ainda que insatisfatório, consiste na percepção de que os
cursos acadêmicos regulares, as conferências, assim como outros documentos
disponíveis trazem composições bastante particulares, e que não podem ser apreendidas
por intermédio de um procedimento pretensamente universal, capaz de abranger e de
filtrar as mais diferentes formulações, nas suas ocorrências e razões específicas. Tal
procedimento traz consigo, desde o início, a impossibilitação do esclarecimento dos
textos a partir deles mesmos, o que é nuclear, bem como o impedimento da efetuação
das relações que o primazia ao que é peculiar em cada um deles. Contudo, a
223
insistência no teor singular dos textos posteriores à Ser e Tempo, em nenhum momento
deve ser considerada como uma aceitação da diferença, ou melhor, da diversidade
conceitual e metodológica por si mesma.
Distanciando-se frontalmente disso, o que cabe ser mostrado é que há uma
afinação entre o texto de 26 e o que lhe é posterior. Enquanto tal, esta sintonia diz
respeito, sim, ao imperativo da conceituação, sempre mais radical e intensificada, do
questionamento do Ser, no e através do factum primal do Da-sein que é a compreensão
do Ser, nuclearizada na estrutura fundamental deste ente que é, tal como firma Ser e
Tempo, o ser-no-mundo. Assim, de um modo bastante cauteloso, pode-se afirmar que,
entre 26 e 29, o que está em jogo é, mesmo, a procura e o dimensionamento conceitual
dos radicalizadores da questão do Ser como horizonte da compreensão de si do Da-sein.
Esta é, portanto, a unidade muito particular que liga, que permite o encontro do que é
produzido nestes anos. No entanto, uma clarificação é inevitável. Por intensificação, ou
melhor, por radicalização, o que está sendo evidenciada é a procura, contínua e
incessante, pelas condições que possibilitam mais extremamente o desvelamento do
sentido do Ser, no e para o Da-sein.
Como conseqüência destas posições, o que caracteriza o final dos anos 20 é o
ininterrupto ir ao encontro do que, fenomenologicamente, acentua e, ao mesmo tempo,
adensa o questionamento originário, no âmbito da estruturação do Da-sein. Dessa
forma, o que é apresentado, nos textos disponíveis atualmente, necessita ser visto
mediante este encaminhamento insuperável. Em outras palavras, ocorre, sim, a
formação de uma conexão igualmente peculiar entre o que pertence a estes anos. Nela, o
que assume o primeiro plano é, sempre, o aprofundamento, até o limite possível, do que
224
propicia o alcance da totalidade manifestativa do Da-sein. Precisamente por isso, a
radicalização do que funda e desenvolve a metafísica, isto é, a ontologia fundamental
coincide, de modo decisivo, com o esclarecimento fenomenológico do que possibilita
mais internamente a ação do Da-sein em e através de si mesmo.
Entretanto, estas articulações exigem um entendimento mais nuançado. Nos
textos deste período, notadamente nos cursos dos semestres regulares, é perceptível um
ordenamento sucessivo de caráter intensificatório. Isso significa afirmar,
peremptoriamente, que o que é desenrolado nas partes centrais destes textos é
identificável, sim, ao alcance, num momento estruturante particular, do que consiste na
radicalidade expositiva, sempre fenomenológica, da manifestação do Da-sein. De um
modo bastante sugestivo, esta afirmação traz consigo o fato de que, na filosofia de
Heidegger, os conceitos fundamentais se encontram em permanente elaboração.
Inegavelmente, então, o movimento de radicalização é o de conceituação ininterrupta da
estruturalidade do Da-sein. Por conta disso, ocorre em Heidegger a negação do caráter
estático dos conceitos filosóficos, ou melhor, ontológicos. O que isso pretende
assinalar?
Pelo que foi mostrado no decorrer dos capítulos, os conceitos fenomenológicos
não o títulos, ou seja, emblemas de uma objetividade assegurada e consumada. Na
realidade, os conceitos da fenomenologia não possuem um escopo objetivante. Eles não
são apresentados como uma determinação de uma pretensa objetividade. Na verdade, os
conceitos fenomenológicos exibem, intensivamente, o próprio modo de ser da assunção
do questionamento de si do Da-sein, isto é, eles mostram o como da liberação do Da-
sein no homem, de acordo com uma formulação do curso de 29/30, Conceitos
225
Fundamentais da Metafísica. Necessariamente, portanto, os conceitos que compõem a
análise, do primeiro ao quinto capítulos, o igualáveis ao esforço fenomenológico de
esclarecimento do mais central no Da-sein, em face da questão do Ser. Somente deste
modo, como foi reconhecido na introdução, o percurso das finalidades do fim dos
anos 20 ganha importância e solidez.
Sem dúvida, do primeiro ao quarto capítulos, acontece uma interpretação densa e
que se alicerça no que é trazido pelos textos. No fundo, a finalidade é somente uma: a
de tornar exibível os momentos constitutivos da intensificação da estruturação do Da-
sein, a partir do que é erigido em Ser e Tempo. Em vista disso, os conceitos
fenomenológicos de compreensão, ser-no-mundo, mundo, transcendência, liberdade,
fundamento e verdade cumprem a tarefa de apresentar, se o termo é produtivo, o
movimento questionativo do Da-sein na sua assunção cada vez mais radical e ampla.
Por estes termos, estas conceituações - tomadas em si mesmas e, principalmente, em
relação umas com as outras - afirmam, de modo indepassável, os propósitos da filosofia
de Heidegger, ao mesmo tempo em que realizam estes mesmos fins. Esta duplicidade
determinativa é inegável.
Sem que seja necessária a realização de uma síntese dos desenvolvimentos mais
expressivos de cada um dos capítulos da análise, é mais do que correto admitir que, no
mais interno da relação entre os conceitos fenomenológicos de liberdade e verdade,
ocorre a autolimitação do projeto da ontologia fundamental, isto é, do projeto da
metafísica do Da-sein. Concretamente, então, a conceituação da essência da verdade, no
cerne da liberdade que a cumpre e a define, consiste no lugar mais extremo alcançável
através da análise dos estruturantes do Da-sein. Neste sítio bastante particular, o que se
226
nota, especialmente na terceira e quarta secções da conferência Da Essência da
Verdade, é a incapacidade argumentativa e metodológica para o adentramento na
conceituação do desvelamento do Ser, origem da manifestação do ente, através do que
constitui mais apropriadamente a verdade, isto é, o o-encobrimento do Da-sein: a
abertura.
Neste sentido, o direcionamento para a verdade ontológica, ou seja, para o
núcleo da relação entre Ser e tempo o é propiciado mediante a caracterização formal
da essência da liberdade: a exposição ao não-encobrimento do ente enquanto tal. Assim,
o que envolve primordialmente o Da-sein, isto é, a sua ativação originária que é a
liberdade enquanto deixar-ser não se mostra, no fundo, como a condição possibilitadora,
de uma perspectiva fenomenológico-transcendental, para a efetuação do aclaramento do
sentido do Ser, concentrado na verdade enquanto desvelamento. Esta autolimitação, ou
melhor, esta interrupção do movimento de radicalização, desde 27, da estruturalidade do
Da-sein marca, de um modo incontornável e definitivo, a realização, na e pela sua
impossibilitação, do que norteia, sem dúvida, as elaborações mais significativas do final
da década de 20.
Visando uma melhor aproximação, na essência da liberdade estão concentradas,
no âmbito transcendental, as fundamentações mais preenchedoras do sentido do ser do
Da-sein. Isso é inequívoco. No entanto, a questão da essência da verdade, isto é, do que
possibilita mais originariamente o não-encobrimento enquanto manifestação permanece
sendo apenas entrevisto, ou, tal como já afirmado, prende-se apenas a sua caracterização
formal, localizada na essência fenomenológica da liberdade. Nas últimas secções da
conferência de 30, o que chama atenção, certamente, é a prefiguração de uma mudança
227
bastante crucial no interior da tematização da verdade ontológica, se a expressão é
apropriada. Acerca disso certos esclarecimentos devem ser feitos. Costumeiramente, a
interpretação da filosofia de Heidegger denomina esta mudança de viravolta (Kehre).
Na realidade, o próprio filósofo aponta, em diversos momentos, para a mudança com
esta denominação. Todavia, e isso não corresponde a um excessivo zelo terminológico,
a viravolta consiste, fundamentalmente, no pleno exercício do pensar a verdade do Ser.
O que isso intenciona assinalar?
Pelo que se tem das obras completas, o texto em que a experiência do pensar
historial do Ser se mostra, pela primeira vez, nos seus traços mais definidores consiste,
seguramente, no curso do semestre de verão de 35, Introdução à Metafísica. Mesmo
que, salvo engano, o termo viravolta não se apresente nele, é mais do que oportuno
afirmar que é, mesmo, a questão da essência do Ser, título da terceira parte, que molda
os objetivos mais centrais. Essência do Ser, pensar historial do Ser. Estas expressões,
indispensáveis para a compreensão do chamado segundo Heidegger, ou seja, quando o
que assume o primeiro plano é acontecimento-apropriativo do Ser, desde seu
encobrimento, não pertencem ao domínio da radicalização da ontologia fundamental.
Isso traz consigo, sem dúvida, um problema capital. Antes de qualquer coisa, as
conceituações desenvolvidas durante os anos 20 não atingem o que é pretendido no e
pelo exercício da viravolta.
Precisamente por isso, a questão da essência da verdade, limite intransponível do
projeto do primeiro Heidegger, não tem como iluminar, através de si, os
redimensionamentos presentes no início da década de 30. Esta tarefa não é apenas
impossível. Concretamente, ela carece de sustentação. Portanto, é impossível a
228
visualização do começo da mudança, ou melhor, da passagem da essência da verdade
para a verdade da essência, tal como tematizada no último capítulo, a partir do que se
funda na questão da essência da verdade propriamente dita. Desse modo, as referências
existentes, principalmente nos esforços auto-interpretativos de Heidegger, à transição de
um projeto para o outro, assim como à fixação do que os distingue frontalmente, precisa
ser entendida como pertencente a uma dimensão muito específica da assunção da
viravolta, ou seja, do pensar a verdade do Ser enquanto encobrimento.
Assim, expressar a viravolta é, fundamentalmente, um modo de adentramento
nela. Para os limites da análise proposta nesta pesquisa, este é um elemento
extremamente relevante. Se pensar a viravolta é, sempre, pensar na viravolta, o que
dizer em relação aos momentos em que, de maneira muito visível, o pensamento de
Heidegger se encontra voltado para a configuração inicial da transição? Sem dúvida, é
esta configuração que ocupa Heidegger nos primeiros anos da década de 30. Neles, é
possível dizer, com muita cautela, que o questionamento se encontra à caminho da
viravolta, mas que não possui ainda os traços que a identificam e a determinam de modo
irrecusável. Nestes termos, os textos do início da década de 30, pelo que anuncia o
último capítulo, estão cercados, sim, por uma ambivalência insuperável. Em muitos de
seus momentos estruturantes, nota-se a presença de formas argumentativas,
terminológicas e metodológicas dificilmente compatíveis entre si, mas que se encontram
lado a lado ou mesmo imbricadas.
Em virtude destes delineamentos, a pesquisa se dedica, desde o seu início, à
fixação e ao esclarecimento, na estrita medida de suas limitações, do que corresponde, a
partir da conferência de 30 até os cursos de 31 e 31/32, à figuração inicial, isto é, à
229
moldagem, difícil e tortuosa, da questão da verdade da essência. Nestes termos, o que
merece ser destacado é a assunção definitiva de que a questão da verdade é, mesmo, a
questão fundamental do Ser enquanto Ser. Assim posto, é a partir do como da relação da
verdade frente ao Ser, ou seja, ao encobrimento que a filosofia, na sua própria
historialidade, adquire a sua estatura. Durante o início da década de 30, o Ser é tomado,
antes de tudo, como a não-essência da verdade, ou seja, como o que se contrapõe, se o
termo é correto, àão do desencobrimento do Da-sein no homem. Melhor assinalando,
a verdade pertence a sua não-essência, isto é, a verdade pertence à o-verdade. A
tematização efetiva disso o se mais no âmbito da transcendentalidade do Da-sein,
porém no da história do conceito de verdade, desde os pré-platônicos, mesmo que nesta
circunscrição ainda não apareçam os conceitos devidamente formulados da história do
Ser, do seu esquecimento e de sua entificação, assim como da superação e do
adentramento na metafísica.
Por estes posicionamentos, uma pergunta passa a ter primazia. Qual é, então, o
objetivo da elucidação do que ocorre na filosofia de Heidegger entre o final da década
de 20 e o início da de 30? No que diz respeito à intensificação contínua do projeto de
uma ontologia fundamental, radicado na metafísica do Da-sein, as motivações parecem
ser assinaláveis e sustentáveis. Entretanto, no que concerne à figuração inicial da
passagem do “primeiro” para o “segundo” Heidegger, os alicerces o conquistados
mais gradativamente. Sem que se procure um encurtamento desta exposição conclusiva,
na carta a Richardson de 62, Heidegger lança, ainda que de modo insuficiente, uma
afirmação bastante aclaradora. Acerca da distinção entre o “primeiro e o segundo
Heidegger”, o filósofo admite que uma condição deve ser sempre preservada. Ela
consiste, primordialmente, na certeza de que apenas pelo que é estabelecido no primeiro
230
Heidegger se torna acessível, desde o início, o que é pensado sob o segundo Heidegger.
Qual a real significância destas posições?
Em primeiro lugar, uma distinção deve ser firmada. O que concerne à expressão
primeiro Heidegger não se restringe, como foi repetidamente ressaltado ao longo da
análise, ao elaborado em Ser e Tempo, bem como aos textos, do final dos anos 20,
disponíveis até o começo da publicação das obras completas. Inegavelmente, o
“primeiro” Heidegger consiste num conjunto mais amplo e complexo de formulações e
de textos a serem interpretados. Justamente por isso, a afirmação presente na carta à
Richardson necessita ser melhor dimensionada. Ao dizer que o pensar da viravolta, isto
é, o pensar do Ser unicamente é alcançável a partir do projeto da ontologia fundamental,
nuclearizado na metafísica do Da-sein, Heidegger está, mesmo que implicitamente,
admitindo que sem a efetuação do percurso do final dos anos 20, nas suas modulações e
especificidades, a acessibilidade do próprio sentido da viravolta, já nas suas primeiras
figurações, torna-se comprometida. Por esta razão, a procura pelos momentos mais
constitutivos do desenvolvimento do “primeiro” Heidegger, no final da década de 20,
apresenta-se como uma tarefa ineliminável e premente, também por este motivo.
Pondo de uma outra maneira, o que vincula Ser e Tempo ao produzido durante a
década de 30 corresponde, seguramente, ao que ocorre nos últimos anos da década de
20 e aos primeiros da década de 30. Inequivocamente, portanto, sem uma visualização
pormenorizada dos lugares centrais da radicalização da metafísica do Da-sein, a
consistência da relação entre Ser e Tempo e os principais textos da cada de 30 é, no
mínimo, bastante problemática. Isso significa dizer que entre o “primeiro” e o
“segundo” Heidegger o há, portanto, um rompimento, uma ruptura no que diz
231
respeito ao mais essencial. Em conformidade ao que o próprio Heidegger assinala na
carta de 62, o pensar da viravolta é uma mudança, contudo ela não se enquanto uma
alteração da questão capital que orienta a estruturação contínua do Da-sein: a questão do
sentido do Ser. Por conseguinte, se não há, efetivamente, uma desvinculação com o que
é produzido nos anos 20, o entendimento dos passos da viravolta exige, sim, a
penetração nos núcleos mais determinantes do chamado primeiro Heidegger.
Melhor explicitando, a viravolta não é um movimento autoreferenciado, pois ela
não parte, pura e simplesmente, de suas intenções, conceituações e articulações. Assim
posto, o percorrimento do mais relevante do fim dos anos 20 se mostra como
indispensável para a análise interpretativa do pensar da viravolta. Neste sentido, o real
dimensionamento da questão da essência da verdade, no cerne da liberdade ek-sistente
do Da-sein, ocupa um lugar condicionante para o atingimento do que move a questão da
verdade do Ser, desde sua emergência. Entretanto, Heidegger acrescenta uma posição
destacável. O que caracteriza o projeto filosófico dos anos 20 é possibilitado,
definitivamente, pela sua presença no pensar da viravolta. Justamente por isso, no
desdobramento do pensar do Ser estão contidos os movimentos da intensificação da
metafísica do Da-sein. Dessa forma, é cabível dizer que na viravolta não acontece uma
anulação do produzido desde Ser e Tempo. Na realidade, o questionamento historial do
Ser se realiza mediante a assunção da estruturação do Da-sein, na mediada em que a
toma como um movimento imprescindível, principalmente na e através de suas
limitações.
Em vista desses esclarecimentos, o que se tem é um horizonte temático muito
vasto e produtivo. Por um lado, a metafísica do Da-sein é o que assegura o ingresso no
232
problema da viravolta. Ao mesmo tempo, é o pensar do Ser que garante a apropriação e
a localização mais adequada do projeto instaurado em Ser e Tempo. Nota-se, mediante
estes arranjos, um entrelaçamento entre o “primeiro” e o segundo” Heidegger que
somente pode ser esclarecido por intermédio de uma agudização da própria viravolta, o
que, certamente, distancia-se das finalidades desta pesquisa. No entanto, esta imbricação
precisa ser afirmada. De um modo mais enfático, o avanço das obras completas, nos
últimos anos, especialmente dos textos do final da década de 30, isto é, do que giram em
torno de Contribuições à Filosofia (1936-38) e de Preenchimento de Sentido (1938-
39) trazem o começo de um trabalho auto-interpretativo de Heidegger. Assim, nestes
textos é encontrável o início do empenho de delimitação e de elucidação, sempre a
partir da verdade do Ser, do que é empreendido durante a década de 20. Contudo, a
análise detalhada destes elementos ainda está por ser feita.
Visando uma síntese possível, esta pesquisa intenciona, fundamentalmente,
trazer à luz e esclarecer o movimento da filosofia de Heidegger entre o final dos anos 20
e o começo da década de 30. O que ela explora neste movimento são os momentos em
que a estruturação dos propósitos se intensifica e, com isso, surgem,
fenomenologicamente, proposições e articulações que se mostram como os lugares nos
quais o entendimento da filosofia de Heidegger neste período pode ser, razoavelmente,
alcançado. Neste sentido, a análise acompanha a ordem cronológica dos textos, o que é
indispensável, porém ela o se restringe a descrição, por mais necessária que seja, do
que neles é exibido. O que importa é, efetivamente, a detecção e a clarificação das
estruturas que dotam o pensamento de Heidegger de sua envergadura mais apropriada.
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