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está Ausente como eleidade, perde-se em um passado irrecuperável. Pensada desta forma, não
restaria nos vestígios presentes na obra algo da ordem do enigma?
O enigma vem a nós da eleidade. O enigma é a maneira do Ab-soluto,
estranho ao conhecimento, não porque iluminará com uma luz
desmesuradamente forte para a fraca vista do sujeito, mas porque já é
demasiado velho para o jogo do conhecimento, porque não se presta à
contemporaneidade que faz a força do tempo ligado ao presente, porque
impõe uma versão do tempo totalmente diferente.
233
Por que a face enigmática da obra pode ser já demasiado velha? Ora, com certeza
podemos falar da obra e situá-la em movimentos culturais, fazê-la pertencer a determinado
grupo; em suma, é possível tornar uma obra contemporânea aos seus vizinhos. Mas o próprio
ato criador, enquanto gesto que se esvai desde a intenção até a obra, é irrecuperável
234
. O
bronze que resta na estátua e clama por diálogo é de ordem completamente diferente daquela
das gotas de suor que o artista verte ao talhar a matéria-prima:
A significância do vestígio coloca-nos em uma relação “lateral”,
inconvertível em retidão (o que é inconcebível na obra do desvelamento do
ser) e que responde a um passado irreversível. Memória alguma poderia
seguir este passado ao vestígio. É um passado imemoriável e, talvez, seja
isto, também, a eternidade cuja significância relança obstinadamente em
direção ao passado. A eternidade é a própria irreversibilidade do tempo, fonte
e refúgio do passado.
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Através da obra de arte, chega-se ao artista de viés, fazendo-o falar coisas que não
foram por ele proferidas. A obra de arte, portanto, teria esta peculiaridade de expor a
irreversibilidade do tempo, o fato indelével de que há temporalidade, de que as rugas apontam
para a finitude de cada um de nós, de que ora ou outra o sono se transformará em morte: “O
pronome ‘Ele’ exprime sua inexprimível irreversibilidade, quer dizer, fora do alcance de toda
arte, não seríamos, a um primeiro momento, tomados pela noite que esta obra resguarda? Talvez haja aqui uma
reflexão possível que dê conta da relação entre La réalité et son ombre e Autrement q’être: a obra de arte é, sim,
sombra, mas não esgota-se na noite: vem à luz do dia na tematização da consciência.
233
DEHH, p. 214.
234
Mesmo remetendo a um passado imemorial, a obra de arte não é – do ponto de vista de Levinas - uma via da
Ética. Provavelmente o conceito de entretempo seja aquele que de forma mais explícita apresenta a tensão entre
ética e estética na obra de Levinas. Em Énigme et Phénomène (1965), por exemplo, ele aparece na seguinte
citação, na qual se discute o caráter anacrônico do rosto: “No entretempo, o evento esperado torna-se passado
sem ser vivido – sem ser igualado – em presente algum. Alguma coisa se passa entre o Crepúsculo em que se
perde (ou se recolhe) a intencionalidade mais extática, mas que visa sempre demasiado perto – e a Aurora em
que a consciência retorna a si, mais já tarde demais para o acontecimento que se afasta.” (DEHH, p. 211).
Percebemos, portanto, que o entretempo aqui já se refere ao tempo no qual se dá a relação ética, diferentemente
de 1948, época em que este conceito referia-se à suspensão do tempo na forma de obra artística. Dez anos
adiante, em 1975, Levinas utilizará novamente este conceito ao tratar da relação com o outramente que ser. (cf.
próximo capítulo).
235
HH, p. 62.