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LUCIANO ASSIS MATTUELLA
Da sombra à exposição: sobre a temporalidade na dimensão estética de Emmanuel
Levinas
Dissertação apresentada como requisito para obtenção
do grau de mestre pelo Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza
Porto Alegre
2008
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2
LUCIANO ASSIS MATTUELLA
Da sombra à exposição: sobre a temporalidade na dimensão estética de Emmanuel
Levinas
Dissertação apresentada como requisito para obtenção
do grau de mestre pelo Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovado em 30 de Outubro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza (PUCRS) – Orientador
__________________________________________________
Prof. Dr. Edson Luiz André de Sousa (UFRGS)
__________________________________________________
Prof. Dr. Ernildo Jacob Stein (PUCRS)
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3
À memória de meu pai, Itacir Bruno Mattuella,
aquele que me ensinou as sutilezas de caminhar
sobre pedras.
4
Agradecimentos
Agradeço à minha família, pelo porto seguro de onde parti e que agora carrego dentro de mim
aonde quer que eu vá,
à Ana Paula, por ter desfeito tantos mares revoltos em suaves ondas de carinho e
companheirismo,
ao Jerônimo, por ter turvado nas cores simples da amizade as águas profundas de um oceano,
ao Rodrigo, à Ana Beatriz, à Raquel e ao Augusto, por terem sempre me ajudado a medir e
desmedir as distâncias,
ao amigo Mauro, aos professores Marcelo Fabri, Draiton Gonzaga de Souza, Hans-Georg
Flickinger e Edson de Sousa, por terem me mostrado que o horizonte é um lugar para se
sonhar, não para se chegar,
ao professor Ricardo Timm de Souza, por ter-se feito farol às avessas, iluminando não o ponto
de chegada, mas tudo aquilo que já estava ali em lusco-fusco.
Aos leitores, por impedirem o naufrágio.
(a realização deste trabalho não teria sido possível sem o apoio financeiro da CAPES)
5
Resumo
O trabalho aqui apresentado tem por objetivo central estudar a idéia de temporalidade no
âmbito da estética do filósofo Emmanuel Levinas. É estudado, de forma cronológica, o
período que se extende desde 1948 - época da primeira formulação, no atigo La réalité et son
ombre - do que se poderia chamar de uma estética levinasiana - até 1974, ano em que é
publicada aquela por muitos é considerada a obra de maturidade do autor, Autrement qu’être
ou au-delà de l’essence. De modo a tornar explícita a questão da temporalidade, o
desenvolvimento dos conceitos de sensibilidade e de linguagem, tão importantes para a teoria
levianasiana, é investigado de modo cuidadoso. Busca-se, por fim, apresentar os diversos
lugares que Levinas atribui ao artista e a sua produção: desde a obra como sombra da
realidade (1948) até a arte como exposição mesma da essência (1974).
Palavras-Chave: Arte, Estética, Levinas, Temporalidade
6
Abstract
The central purpose of this work is to study the idea of temporality within the field of the
aesthetics of the philosopher Emmanuel Levinas. It is studied, in a cronological way, the
period that extends from 1948 - when the first formulation of a so-called levinasian aesthetics
is proposed in the article La réalité et son ombre - to 1974, year of the publication of
Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, understood by many as the work of maturity of the
author. In order to clarify the question of temporality, the development of the concepts of
sensibility and language, very important to the levianasian theory, is carefully studied.
Therefore, the various places attributed by Levinas to the artist and its production are intended
to be presented: from the work of art as the shadow of reality (1948) to art as the very
exposure of the essence (1974).
Keywords: Arts, Aesthetics, Levinas, Temporality
7
Siglas das Obras de Levinas
1
DE – De l’évasion
DEHH – En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger
EE – Da existência ao existente
HH – Humanismo do outro homem
IH – Les imprevus de l’histoire
AE – Autrement qu’être ou au-delà de l’essence
TA – Le temps et l’autre
TI – Totalité et Infini
1
As traduções das citações das obras listadas no original em francês são nossas. As obras traduzidas para o
português foram citadas literalmente, mas sempre se manteve a correspondência e a conferência com a obra
original.
8
Sumário
Introdução ............................................................................................................................ 9
Capítulo 1 - Um cair da noite, uma invasão de sombra: a arte fora do tempo ............ 14
1.1. A crítica antiestética ...............................................................................................14
1.2. A musicalidade da imagem ................................................................................... 16
1.3. A suspensão do tempo ........................................................................................... 19
1.4. Beleza, Entretempo e Morte .................................................................................. 20
1.5. Idolatria e Forma ................................................................................................... 22
1.6. Sensibilidade como participação ........................................................................... 27
1.7. Por uma crítica filosófica ....................................................................................... 31
Capítulo 2 - A inversão do rosto feminino: a beleza como suspensão do amanhã ........ 34
2.1. Considerações Iniciais ............................................................................................ 34
2.2. Sensibilidade .......................................................................................................... 35
2.3. Obra e Beleza ......................................................................................................... 45
2.4. Religião e Rosto ..................................................................................................... 49
Capítulo 3 - A ausência como estilo: a obra destinada ao futuro além do horizonte .... 52
3.1. Considerações Iniciais ............................................................................................ 52
3.2. Ausência do artista ................................................................................................. 52
3.3. Arte e Obra ............................................................................................................. 58
3.4. Vestígio e Estilo ...................................................................................................... 61
Capítulo 4 - A arte em estado de busca: o tempo da exposição e da ostentação do ser . 67
4.1. Da Sombra à Ostentação ........................................................................................ 67
4.2. Hipóstase e Ostentação ........................................................................................... 70
4.3. A anfibologia do ser e do ente ................................................................................. 71
4.4. Exegese e Dizer da arte ........................................................................................... 73
4.5. Sensibilidade e Forma ............................................................................................. 75
4.6. Diacronia e Imagem ................................................................................................ 81
4.7. Entretempo .............................................................................................................. 85
Conclusão ............................................................................................................................. 88
Referências Bibliográficas .................................................................................................. 91
9
Introdução
Até não muito tempo atrás, podia-se dizer que o campo da estética na teoria de
Emmanuel Levinas autor a quem damos atenção neste trabalho – era pouco estudado,
negligenciado em relação à preocupação com as questões que abordam a ética. Ainda hoje, a
maior parte dos trabalhos e da vida acadêmica em torno de Levinas versam a respeito dos
temas clássicos de seu arcabouço teórico a alteridade, a relação face-a-face, o Infinito -,
categorias pertencentes, à primeira vista, somente ao domínio da ética deste autor.
Há, entretanto, nos últimos anos, uma crescente no corpus de textos dando conta de
conceitos que, mesmo que de modo polêmico e um tanto ainda por vezes incipiente, podem
ser estudados dentro de uma visada original, a de uma estética levinasiana. Não é mais
possível, portanto, afirmar que a estética em Levinas careça de estudos e de aproximações
sérias. Trabalhos como os de Mauro Castro
2
, Cohen-Levinas
3
e Guy Petitdemange
4
, entre
tantos outros, tecem uma excelente revisão da questão estética na obra do filósofo lituano,
constituindo ao mesmo tempo em que delimitando -, desta forma, uma outra entrada ao
difícil e rigoroso pensamento de Levinas.
Este movimento de abertura de leituras sobre estética em Levinas talvez seja, de um
certo modo, mimético ao movimento que o próprio autor fez ao longo do tempo em sua
própria escrita. A reflexão sobre arte em Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, obra
magna publicada em 1974, é visivelmente diferente daquela crítica mordaz e um tanto obtusa
que podemos ler em La réalité et son ombre, texto de 1948, produzido às beiras do fim da
Segunda Guerra. Analisado de forma sistemática, o percurso levinasiano apresenta, no
decorrer de seus livros, uma interessante reconsideração da arte, uma revalidação de sua
importância.
Se em 1948 o “poeta exila a si mesmo da cidade”
5
, não participa do mundo sério das
questões éticas e das decisões de seu tempo está platonicamente agrilhoado ao fundo da
caverna -, em 1974 ele é aquele que faz o ser reluzir anfibologicamente na linguagem através
2
Cf. CASTRO, Mauro César de. Grandeza e Falsidade da Arte: A Questão Estética na Obra de Emmanuel
Levinas. Porto Alegre: PUCRS, 2007 (dissertação de mestrado).
3
Cf. COHEN-LEVINAS, Danielle. Ce qui ne peut être dit. Une lecture esthétique chez Emmanuel Levinas.
Revue d’Esthétique n. 43, 2003, pp. 147-152.
4
PETITDEMANGE, Guy. L’art, ombre de l’être ou voix vers l’autre? Un regard philosophique sur l’art.
Emmanuel Levinas. Revue d’Esthétique 36, 1999, pp. 75-94.
5
IH, p. 125.
10
da arte, que é entendida como a “ostentação por excelência”
6
. O que em um primeiro
momento era tomado como “o acontecer mesmo do obscurecimento, um cair da noite, uma
invasão de sombra”
7
vem à luz do mundo dos homens e coloca-se como um problema e um
ofício a ser obrado entre os homens. A arte faz o percurso das sombras até a ostentação.
Esta valorização da arte resta na obra de Levinas, ao final das contas, como uma
ambigüidade
8
: se nos primeiros textos o estético é o reino do mais aquém do ser, do mundo
que ainda não é mundo, fora da linguagem e do tempo, um mundo assombroso e terrível
mundo do anonimato do Il y a impessoal -, nas obras tardias é a estética que conta da
relação não-violenta, sensível, que acaricia o calor da alteridade sem fazer dela uma palavra
morna. Assim, um dos objetivos que temos no presente trabalho é apresentar, ainda que de
modo breve, as mudanças que o conceito de sensibilidade sofre ao longo dos escritos de
Levinas.
Esta ambigüidade estética como o reino do Il y a, mas também como via de acesso à
relação ética poderia muito bem criar um ponto de basta na teoria levinasiana, tornando-se
uma muralha intransponível frente à qual restasse tão somente resignar-se e decidir-se por
uma ou outra possibilidade. Mas não parece ser o que está ocorrendo. Comentadores atuais
têm buscado fazer destes paradoxos e destas ambigüidades material para reflexão cuidadosa e
produtiva, de modo a revitalizar o pensamento de Levinas através dele próprio, como é o caso
de artigos como o de André Brayner de Farias
9
.
Portanto, esta dissertação não tem como meta resolver as encruzilhadas enfrentadas na
leitura das obras de Levinas, mas sim, na medida em que elas forem sendo encontradas,
explicitá-las e apresentar os desvios que alguns comentadores tomaram. É cuidado nosso não
calar o texto levinasiano, não obrigá-lo a um sentido restrito e único, cuidado que parecia ser
preocupação de fundo do próprio Levinas: que os textos servissem de início de diálogo, que
não se esgotassem na letra prensada.
O filósofo lituano justamente entendia a linguagem como o palco em que poderia se
apresentar a atitude ética, não como uma coleção de nomes para designar as coisas, mas como
a convocação mesma do outro, ainda que através do desejo de um “bom dia” feito ao acaso
para o vizinho de porta. A linguagem, portanto, também guarda em si ressonância dos
6
AE, p.70.
7
IH, p. 110.
8
Cf. LANNOY, Jean-Luc. D’une ambiguïté. Études Phénoménologiques. n° 12, 1990, pp. 11-44.
9
FARIAS, André Brayner de. O infinito pode ser estético? Entre o silêncio e o dizer itinerários da arte em
Levinas. Veritas, vol. 52, n. 2 (2007), pp. 5-21.
11
paradoxos que Levinas constrói a respeito da arte. Desta forma, é também ela uma das
categorias que temos como objetivo estudar neste texto.
Sensibilidade e linguagem são dois conceitos que permitem ao nosso trabalho dar
conta de seu objetivo central: estudar a idéia de temporalidade dentro do âmbito da estética
de Levinas. A noção de tempo, tão cara à Filosofia desde os seus primórdios, adquire na obra
do autor estudado uma importância central nossa relação com a alteridade, com o Infinito,
aquilo que nos torna humanos, é a possibilidade de nos relacionarmos diacronicamente (fora
da história dos vencedores, fora do mundo da luz e dos utensílios) com o outro.
O brilho do rosto de outrem reluz fora do mundo da razão, é resistência contra a
fumaça sepulcral e a terra encardida dos campos de concentração, contra o doloroso metal que
ergue belas construções, mas que também dilacera carnes. Ser humano é habitar um tempo
que não se esgota em história universal
10
. Carregado desta ferrugem histórica, o conceito de
tempo é para Levinas particularmente caro, de modo que podemos apresentar a revalidação da
arte em sua obra precisamente sob a forma de um convite a que o poeta adentre novamente no
tempo dos que lhe são contemporâneos fato que se dará nos textos que se seguem a Totalité
et Infini (1961), como La signification et le sens, de 1964.
Procuramos reconstruir o itinerário que vai desde La réalité et son ombre (1948) até
Autrement qu’être ou au-delà de l’essence (1974), desde a sombra até a ostentação. A idéia é
explicitar em cada momento o que podemos chamar de aurora da obra a arte saindo da
escuridão da noite do não-ser e encontrando lugar no dia da essência –, a noção da
temporalidade que sustenta as reflexões de Levinas ao momento. Sempre que possível,
também evidenciaremos como o refinamento do pensamento levinasiano sobre a arte incide
na esfera dos conceitos que o acompanham por todo o percurso como, por exemplo, o de
poesia, abordado de modo especial neste estudo.
O primeiro capítulo, intitulado Um cair da noite, uma invasão de sombra: a arte fora
do tempo, centra-se no artigo La réalité et son ombre, publicado em 1948 na revista Temps
Modernes e, posteriormente, em um livro chamado - de modo muito pertinente, dado contexto
de guerra Les imprevus de l’histoire. Este texto é uma incisiva crítica antiestética, de modo
que Levinas acusa a arte de uma espécie de desvirtuamento com relação às questões centrais e
tão importantes que se passavam à época: como se as telas, as músicas e as esculturas
fizessem papel de ridículo ao serem pareadas aos campos de concentração e aos projéteis
gastos enfileirados junto aos corpos jogados no chão. A sensibilidade, mera produtora de
imagens cortina de fumaça que esconde a realidade destitui o homem de sua capacidade
10
Cf. PIVATTO, Pergentino. Ser moral ou não ser humano. Veritas, vol. 44, n. 2 (1999), pp. 353-367.
12
racional e aprisiona-o no encantamento da beleza e do acabamento. Como falar de um mundo
acabado enquanto ainda as famílias choram pelos seus entes queridos mortos no shoah? Trata-
se de uma arte fora do tempo, não-séria, fora inclusive da linguagem.
O segundo capítulo - A inversão do rosto feminino: a beleza como suspensão do
amanhã -, por sua vez, tem por referência Totalité et Infini (1961), considerada a primeira
grande obra de Levinas. Ainda trazendo em si os assombros do pós-guerra, a obra sustenta
também uma crítica à arte, desta vez mais direcionada à questão da beleza na obra de arte. A
arte bela – resignada à sua forma acabada – fecha-se no mutismo, não carece de palavra que a
faça vibrar: em outros termos, seduz ao resplandecer o brilho opaco do tudo já ter sido dito. O
enigma da alteridade do futuro é resolvido em imagens que o destituem de seu caráter de
incerteza tudo está calculado, as edificações e as obras regelam o tempo. A linguagem
surge agora como possibilidade de abertura ao Infinito, como escuta da palavra de outrem,
meio de interromper a sedução da beleza. A sensibilidade adquire ares mais leves que aqueles
de 1948, sendo entendida como um viver de..., fruição de um mundo anterior aos conceitos.
Nosso terceiro capítulo, que chamamos A ausência como estilo: a obra destinada ao
futuro além do horizonte, busca em artigos publicados em En découvrant l’existence avec
Husserl et Heidegger (1967) e Humanisme de l’autre homme (1972) indícios de como
podemos entender, seguindo Levinas, a questão do estilo do artista. A obra acabada independe
do artista para existir, este restando, portanto, como esgotado no ato criativo após terminada
sua obra, o artista passa a habitar um passado imemorial. Cada estátua, cada tela, cada
partitura, remete ao artista enquanto ausência, in absentia. A linguagem é entendida, então,
como tendo por essência fazer luzir o ser. A arte vem à luz do dia e é endereçada a um futuro
enigmático do qual o artista não será contemporâneo.
O quarto - e último - capítulo, finalmente, ao qual demos o título de A arte em estado
de busca: o tempo da exposição e da ostentação do ser, procura expor a concepção de arte
encontrada no livro Autrement qu’être ou au-delà de l’essence (1974), considerado por muitos
comentadores a principal obra de Levinas, seu escrito de maturidade. A arte, mais do que dar-
se na luz, passa a ser a própria ostentação do ser, tornando o mundo que apresentamos a
outrem digno de preciosidade. A linguagem desempenha aqui papel muito importante, sendo
possibilidade da verbalização do nome, mantendo o ente acordado no mundo, abrigando-o dos
pesadelos imagéticos da noite e convocando-o à responsabilidade. A sensibilidade, muito
distante daquela concepção de 1948, é via de acesso a outrem, movimento privilegiado de
exposição à alteridade - sinceridade. A arte constitui-se na colocação de si mesma em questão:
13
é ela um enigma para si própria, estabelece em seu âmago uma núcleo interrogativo que a
impede de fechar-se autonomamente e calar-se ao diálogo.
Apesar da profunda reconsideração que Levinas desdobra acerca da arte, há,
evidentemente, certos pontos fixos que o acompanham durante toda obra, posicionamentos
que podemos encontrar em todos os seus escritos. Exemplo disto é o temor à idolatria, marca
profunda do ensinamento judaico que, ao final das contas, é sempre o limite encontrado por
todo texto levinasiano, mesmo o mais otimista. Adorar um pedaço de bronze talhado na forma
da divindade nunca é igual a elevar uma prece a Deus ou iniciar diálogo com um semelhante.
A relação estética, por mais nobre que se torne, nunca é religião, no sentido específico de
Levinas, ou seja, o encontro ético com a alteridade. Estes pontos de insistência sobre certos
aspectos talvez sejam justamente aquilo que marca o estilo de Levinas em seus textos.
14
Capítulo 1
Um cair da noite, uma invasão de sombra: a arte fora do tempo
Um poema como um gole de água no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre
[ na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa
[ condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
(O Poema, Mario Quintana)
“És tão belo, demora-te!”
(Fausto, Goethe)
1.1. A crítica antiestética
É de fato surpreendente a argumentação de Emmanuel Levinas em 1948 a respeito da
estética e da arte. Para um leitor acostumado tão-somente à delicadeza da tinta levinasiana, às
sentenças escandidas ao estilo quase poético, causa espanto deparar-se com uma frase como
esta: “O poeta exila a si mesmo da cidade. (...) Há algo de mau e de egoísta e de covarde no
gozo artístico. Existem épocas nas quais se pode ter vergonha, como de fazer festejos em
plena peste.”
11
Artigo escrito pouco tempo depois do absurdo do Holocausto, La réalité et son ombre
sustenta uma dura crítica com relação à arte enquanto presumidamente uma forma de
expressão que “prolonga e supera a percepção vulgar”
12
, como se o artista conseguisse dizer
através de sua obra aquilo que não pode ser dito, o inefável. Crítica esta anunciada na livro
De la existence a l´existant, de 1947, sob a forma de uma acusação de que a arte pode
11
IH, p. 125.
12
IH, p. 107.
15
“arrancar-nos do mundo”
13
: como se ela fizesse desfalecer o mundo à nossa volta, subsumisse
o ser-no-mundo em troca de um entre as coisas ao fornecer “uma imagem do objeto em lugar
do próprio objeto”
14
.
Eis o ponto nodal da intuição antiestética levinasiana, como podemos perceber na
seguinte citação: “A imagem não engendra, como o conhecimento científico e a verdade, uma
conceituação não comporta o ‘deixar ser’, o Sein-lassen de Heidegger, em que se efetua a
transmutação da objetividade em poder”
15
. Desta forma, a arte - por seu efeito de sedução
medusante aliviaria dos ombros o peso do mundo no qual o sujeito carrega o fardo da
responsabilidade que o torna humano. Ela é exotismo, pois arranca o homem do mundo.
Através do conceito, do conhecimento, o sujeito toma posse do mundo, apreende o
mundo em sua instrumentalidade e em sua verdade: desvela-o para si: “(...) é o objeto
apreendido, o objeto inteligível. pela ação s mantemos com o objeto real uma relação
viva, o apreendemos, o concebemos”
16
. Conhecer é lançar luz sobre o mundo, é tornar visível.
Na dimensão da visão, o sujeito é dotado de poder e de iniciativa. A imagem, por outro lado,
não traz à tona a luminosidade da consciência, ela neutraliza a relação com o mundo, “é o
eclipse do objeto e do mundo ao qual este pertence”
17
, escurece o mundo através de sua
opacidade:
O comércio com o obscuro, enquanto acontecimento ontológico totalmente
independente, não descreve categorias irredutíveis às do conhecimento?
Gostaríamos de mostrar este acontecimento na arte. A arte não conhece um
tipo particular de realidade decide sobre o conhecimento. É o acontecer
mesmo do obscurecimento, um cair da noite, uma invasão de sombra.
18
O cair da noite equivalente não a um ir mais-além - como o anseio de uma arte que
exibisse a realidade em sua mais real forma mas sim a um mais aquém, a uma alegoria da
realidade. A pergunta de Levinas é importante neste contexto:
Desprender-se do mundo significa sempre ir mais além, em direção à região
das idéias platônicas e em direção ao eterno que domina o mundo? Não se
13
EE, p. 61.
14
EE, p. 61. No artigo “Aesthet(h)ics: On Levinas’ Shadow. Colloquy n. 9, 2005, pp. 29-47.”, Matthew Sharpe
comenta que os “textos de Levinas sobre estética (...) afirmam que a confrontação com uma obra de arte envolve
uma perturbação do sentido do sujeito do que Heidegger chamou ‘mundo’. De acordo com Levinas (...) isto é
porque qualquer obra de arte, como tal, é sempre de algum modo exterior ou estrangeira ao nosso círculo de
experiência padrão.” (p. 32). O autor comenta, neste sentido, sobre as obras de Marcel Duchamp, muito
marcadas pelo procedimento de tirar um objeto corriqueiro de seu contexto, “desde modo desvestindo-o de seu
ambiente existencial.” (p. 32).
15
IH, p. 111.
16
IH, p. 111.
17
GRITZ, David. Levinas face au beau. Paris: L’Eclat, 2004, p. 28.
18
IH, p. 110.
16
pode falar de um desapego mais aquém? De uma interrupção do tempo por
um movimento que vá mais aquém do tempo, em seus interstícios?
19
Se o mais-além da realidade é o reino de sua conceituação, o mais aquém é uma
dimensão em que o conceito não está presente, em que o mundo como tal não se ao sujeito
como possibilidade. O mais aquém é a noite obtusa, sem estrelas a servir de referência, aquilo
que Levinas conceitua como sendo o Il y a, a pura existência destituída de existente:
“‘consumição’ impessoal, anônima, mas inextinguível do ser, aquela que murmura no fundo
do próprio nada. (...) O em sua recusa de tomar uma forma pessoal, é o ‘ser em geral’”
20
. A
arte, portanto, flertaria com os intervalos escuros, como os interstícios da noite que murmura a
existência sem existentes.
Não estaria esta concepção de arte influenciada pelo filósofo Franz Rosenzweig, a
quem Levinas sempre admirou e admite não ser possível fazer as devidas referências, dado a
sua obra estar tão impregnada pelo pensamento desse filósofo? Em A Estrela da Redenção,
Rosenzweig diz o seguinte sobre a relação entre arte e linguagem:
Ela mesma [a arte] é linguagem: linguagem do inexpressável, linguagem de
quando ainda não linguagem, linguagem do antemundo. Não a palavra,
mas a arte, é a verdadeira linguagem do mundo de antes do milagre da
Revelação, que se ergue ante nós como uma imagem histórica daquele
antemundo. Ela, na articulação de sua essência, é a vinda visível à intuição
dos elementos do Todo, que emergem dos escuros fundamentos do nada.
21
Percebem-se alguns elementos que servem de base para a reflexão de Levinas, em
1948, sobre a arte: uma linguagem que desnude um antemundo, aquele de antes do milagre da
Revelação. Uma linguagem que ainda não é linguagem, mas um arremedo de linguagem, uma
palavra que não apresenta ainda um mundo revelado. Parece como uma espécie de inspiração
para a idéia levinasiana de um mais aquém da linguagem e do mundo, espaço em que o
existente ainda não se ergueu, reino do Il y a.
1.2. A musicalidade da imagem
O existente erige-se sobre o fundo do Il y a na forma de uma hipóstase, como Levinas
chama, como um adormecimento que interrompe a vigília no ser anônimo. É a passagem do
verbo ao substantivo, da dissolução em identidade – não poder fazer calar o incessante
murmúrio do Il y a é a impossibilidade de assumir uma identidade. A insônia é entendida pelo
19
IH, p. 109.
20
EE, p. 67.
21
ROSENZWEIG, Franz. La Estrella de la Redención. Salamanca : Edicione Sigueme, 1997, p. 192.
17
autor como o próprio esquecimento no anonimato não lugar de repouso, não posição
possível para descanso, é estar à deriva na existência:
A impossibilidade de destruir o inevitável, o invasor e anônimo murmúrio da
existência, manifesta-se particularmente por meio de determinados momentos
nos quais o sono escapa a nossos apelos. Vela-se quando não mas nada a
velar, e apesar da ausência de toda razão de velar. O fato nu da presença
oprime: é-se obrigado ao ser, obrigado a ser. Destacamo-nos de todo objeto,
de todo conteúdo, mas não há presença.
22
Adormecer é, portanto, encontrar um lugar no fundo anônimo, é poder deixar de
escutar o murmúrio da existência, silenciar as vozes da impessoalidade: “Deitar-se é
exatamente limitar a existência ao lugar, à posição”
23
. O artista, ao substituir o objeto pela
imagem, exila a realidade e a si próprio - neste fundo de anonimato, pois faz anoitecer o
mundo iluminado. A opacidade das imagens media a relação do artista e do espectador com a
realidade, uma relação que não se dá através de conceitos. Como nos mostra Catherine
Chalier, no prefácio ao livro de David Gritz:
Travestindo os objetos com um tesouro de cores e de formas ou, ao contrário,
apresentando a sua nudez de ser, como o faz a pintura contemporânea, ela [a
obra de arte] acabaria por arrancar aos homens o consentimento com esta
noite.
24
Se a insônia é estar jogado à impessoalidade do ser, a relação com as imagens não é a
hipóstase do sono tranqüilo, mas sim o adormecer inquietante do pesadelo: “(...) o instante da
estátua é o pesadelo”
25
. É um sono mergulhado em imagens que trazem em si “algo de
inumano e assombroso”
26
. Portanto, não é uma relação de posse, é mais uma passividade, é a
impossibilidade de não acompanhar um ritmo: “Maior que nossa iniciativa, a imagem assinala
uma ascendência sobre nós: uma profunda passividade. Possuído, inspirado, o artista, diz-se,
escuta uma musa. A imagem é musical.”
27
Esta idéia da musicalidade da imagem é bastante presente na crítica antiestética de
Levinas. A noção de ritmo não deve aqui apenas ser aplicada ao que é da ordem acústica, não
deve estar restrita ao campo da música, mas é preciso que seja elevada ao estatuto de uma
categoria estética ampla - toda a imagem é musical.
22
EE, p. 79.
23
EE, p. 86.
24
GRITZ, David. Levinas face au beau. op.cit, p. 28.
25
IH, p. 121.
26
IH, p. 124.
27
IH, p. 111.
18
A idéia de ritmo, que a crítica de arte invoca tão freqüentemente, mesmo
deixando-a no estado de uma vaga noção sugestiva e chave-mestra [passe-
partout], indica mais a maneira pela qual a ordem poética nos afeta do que
uma lei interna desta ordem.
28
Como se a realidade se desfizesse em “conjuntos fechados de elementos que se
reclamam mutuamente como sílabas de um verso”
29
, que se impõem a nós sem que os
assumamos. Frente à realidade que se poeticamente, estamos absortos em sua completude
ritmada fechada em rimas perfeitas não temos mais iniciativa. Ou seja, trata-se aqui da
inexistência de um si mesmo livre que possa responder em seu próprio nome. O sujeito não
abre, neste âmbito, a significação de um mundo tendo-se como referência; antes, forma parte
do espetáculo, é mais uma coisa entre as coisas.
Tudo acontece como se a sensação, pura de toda concepção, a famosa
sensação inapreensível à introspecção, aparecesse com a imagem. A sensação
não é um resíduo da percepção, mas sim uma função própria: o ascendente
que exerce sobre nós a imagem uma função do ritmo. O ser-no-mundo,
como se diz hoje em dia, é uma existência com conceitos. A sensibilidade se
apresenta como um acontecimento ontológico distinto, mas não se realiza
mais que através da imaginação.
30
Levinas não crê que a imagem circunscrita na materialização de um quadro pintado,
por exemplo possa ser tomada como uma janela aberta para uma suposta realidade
representada. A imagem esgota-se nela própria, é silenciosa, é muda. Ao contrário do signo,
que tem em si uma transparência plena (pois remete sempre a algo), a imagem é opacidade,
mantém relação com a coisa representada através da semelhança. O que leva Levinas a
afirmar que a imagem, “pode-se dizer, é a alegoria do ser”
31
. Não seria através da imagem
que se teria acesso ao ser; através da imagem (se é que através é uma boa palavra a ser
utiizada aqui) tem-se acesso apenas à própria imagem, à não-verdade.
Portanto ela remeteria não à presença do objeto que se desfez no Il y a o objeto
substituído -, mas sim à ausência da realidade representada, ao reino do não-ser, da sombra do
ser. Poder fruir esteticamente de um quadro é estar frente à cor da tinta, de uma música, à
consistência do som, de uma escultura, à pedra em que é talhada. Para Levinas algo de
assustador na fruição estética, algo que remete ao mais aquém do tempo: toda imagem é, no
28
IH, p. 111.
29
IH, p. 111.
30
IH, p. 113.
31
IH, p. 116.
19
fim das contas, plástica e (...) toda obra de arte é, no fim das contas, estátua uma suspensão
do tempo ou, ainda melhor, seu retardo sobre si mesmo.”
32
1.3. A suspensão do tempo
Se mantivermos em mente a importância que Levinas outorga ao tempo no decorrer de
toda a sua obra filosófica, podemos ter uma idéia mais clara de porque esta “suspensão do
tempo” atribuída à arte fere tão incisivamente a intuição levinasiana. Parece não ser à toa que
em La réalité et son ombre o autor utilize o termo inumano para designar a eterna suspensão
intervalar em que se sustenta toda obra de arte. O humano, para Levinas, reside justamente
nesta possibilidade de abertura ao Outro, à alteridade que se faz Rosto trazendo consigo o
despertar para um passado pré-original, anárquico. O tempo é a própria condição da
humanidade, mas o tempo
não como horizonte ontológico do ser do ente, mas como modo do para-além
do ser, como relação do “pensamento” ao Outro e – através de diversas
figuras de socialidade em face do rosto do outro homem (...) como relação
ao Totalmente Outro, ao Transcendente, ao Infinito. Relação ou religião que
não é estruturada como saber, ou seja, como intencionalidade.
33
Ou seja, a relação ao Infinito vai mais além que aquela do conceito com o mundo, e
talvez desnecessário dizer infinitamente mais além daquela com a imagem. Se a
intencionalidade traz à luz do dia do pensamento a essência do mundo como tal, o sensível “é
o ser na medida em que se assemelha, em que, fora de sua obra triunfal de ser, obscurece,
desprende esta essência escura e inapreensível, esta essência fantástica que nada permite
identificar com a essência revelada na verdade
34
. A sensibilidade como a condição de estar à
deriva nas enegrecidas águas do intervalo.
É a partir daí que podemos começar a tratar a noção levinasiana de entretempo, o
tempo que se “torna plástico”
35
. A obra de arte abre para este tempo sem tempo, esta
impossibilidade de assumir um presente desde o qual trabalhar o mundo, construir uma casa e
abrir-se para o infinito ético impossibilidade da hipóstase e do sono. Segundo Levinas, a
“estátua realiza o paradoxo de um instante que dura sem porvir”
36
. Uma estátua, por exemplo,
32
IH, p. 119.
33
TA, p. 8
34
IH, p. 118.
35
Cf. ROLLAND, Jacques. Parcours de l'autrement: lecture d'Emmanuel Lévinas. Paris: PUF, 2000, p. 244ss.
36
IH, p. 119.
20
é sempre tingida de uma espécie de impossibilidade de vida, e mesmo uma impossibilidade de
morte:
No interior da vida, ou melhor, da morte da estátua, o instante dura
infinitamente: eternamente estará Laocoonte preso no laço das serpentes,
eternamente sorrirá a Gioconda. Eternamente o porvir que se anuncia nos
músculos tensos de Laocoonte não saberá fazer-se presente. Eternamente o
sorriso da Gioconda, a ponto de abrir-se, não se abrirá.
37
Talvez seja por isso que Levinas fale de um mais aquém do tempo: é a impossibilidade
mesma de assumir um presente para si, é o próprio anonimato do Il y a. O autor evoca a idéia
de destino, ou seja, de uma fábula que se repete sempre a mesma, um tempo aprisionado no
instante que não chega sequer a se consumar: “Este presente, incapaz de forçar o porvir, é o
destino mesmo, esse destino refratário à vontade dos deuses pagãos, mais forte que a
necessidade racional das leis naturais. (...) – o destino não encontra lugar na vida”
38
.
1.4. Beleza, Entretempo e Morte
Abre-se aqui o que se pode ler como uma crítica de Levinas à idéia da beleza na arte
39
,
uma vez que o belo daria conta do acabamento da obra, do fechamento da obra em si, desta
recusa a receber qualquer coisa mais”
40
: “A obra acaba apesar das causas de interrupção
sociais ou materiais. o se como um início de diálogo”
41
. A beleza, em certa medida, é
um apagamento do futuro na forma de acabamento.
A obra acabada esquece a alteridade, consuma-se na suficiência de um instante que
não pode ser ferido. A noção de entretempo está intimamente ligada à resistência da obra a ser
espedaçada, a ter um presente que abra para a renovação. O recolhimento em si, a assunção de
um presente a habitar, é para o sujeito a construção de uma casa onde morar, de onde sair para
trabalhar e estabelecer comércio com o mundo. É uma construção necessária para a
possibilidade de abertura ética.
37
IH, p. 119.
38
IH, p. 120.
39
Catherine Chalier ajuda-nos a ilustrar este ponto: “Prisioneira para sempre do instante em que o pintor ou o
escultor realiza sua obra, a beleza carrega a marca de um acorrentamento ao irremediável.” (GRITZ, David.
Levinas face au beau. op.cit, p. 12) Ou, ainda: “(...) a beleza da obra fecharia em um mundo sem saída, ela não
faria sinal para ninguém e ela não deixaria entrever nenhum esperança. Fixada em um destino imutável, a beleza,
triste ou alegre, apoderada apesar de tudo pelo artista sobre a inanidade do , daria ainda mais garantias à
morte.” (GRITZ, David. Levinas face au beau. op.cit, p. 26). Percebe-se que as dimensões da beleza, do silêncio
e da morte perfazem uma interessante relação.
40
IH, p. 109.
41
IH, p. 109.
21
No acabamento da beleza, a possibilidade de morrer ou da abertura de um horizonte
de porvir é negada, encontramo-nos sempre no momento do intervalo “como se a morte não
fosse nunca bastante morte, como se paralelamente à duração dos vivos corresse a eterna
duração do intervalo – o entretempo
42
. Enquanto o conceito ainda permite a morte é
preciso ter um nome para poder morrer -, a imagem é pura captura medusante em um instante
em que ninguém habita, em que resta não mais o ser, mas apenas a sua sombra.
É importante que tenhamos em conta o que Levinas entende à esta época por morte
para que esta sua crítica à beleza tenha mais consistência. Em Le temps et l’autre, livro que
reúne palestras de Levinas contemporâneas ao artigo La réalité et son ombre, a morte é
entendida como um primeiro anúncio de alteridade, uma vez que marca a possibilidade de um
fim para o sofrimento (um dos modos de se estar preso à existência sem poder assumir-se
como existente). A morte não se dá à luz, é uma relação com algo de misterioso e inominável:
O desconhecido da morte que não se de início como nada, mas que é
correlativo de uma experiência de impossibilidade do nada, significa não que
a morte seja uma região da qual ninguém retornou e que, por conseguinte,
permanece, de fato, desconhecida; o desconhecido da morte significa que a
própria relação com a morte não pode se fazer na luz; que o sujeito está em
relação com aqui que não vem de si. Nós podemos dizer que é a relação com
o mistério.
43
Suspenso no entretempo, o sujeito também não está à luz, mas a noite em que está
jogado carece da tranqüilidade para que se durma, é uma noite carregada de imagens opacas e
por demais conhecidas não apontam para o misterioso, é o sujeito absorvido pelo êxtase
contemplativo. Diluídos no anonimato, não podemos morrer. É preciso ter assumido um
presente, erguido uma casa e aberto as janelas para ter a possibilidade de morte. O contrário
da possibilidade da morte não é a vida eterna, mas a suspensão em um instante que não se
desfaz – é estar aprisionado a um destino, é ser tal qual Sísifo em sua labuta eterna.
O agora, o presente, se pelo fato de que somos mestres do possível, mas a morte
“anuncia um evento do qual o sujeito não é o mestre, um evento através do qual o sujeito não
é mais sujeito”
44
: não vamos até a morte, ela é que nos chega e explicita nossa condição de
passividade ao tempo que insiste em enrugar nossas faces e fazer ceder nossos músculos. A
morte, portanto,
torna-se o limite da virilidade do suj∫eito, desta virilidade que pela hipóstase
foi tornada possível no seio do ser anônimo, e que é manifestada no
42
IH, p. 109.
43
TA, p. 56
44
TA, p. 57.
22
fenômeno do presente, na luz. (...) Aquilo que é importante à proximidade da
morte é que em um determinado momento nós não podemos mais poder; é
nisto justamente que o sujeito perde sua maestria de sujeito.
45
A aproximação da morte mostra que estamos em relação com algo que é
absolutamente outro, algo “cuja existência mesma é feita de alteridade”
46
. A solidão do
sujeito o é confirmada pela morte ela é quebrada pela morte. A relação com a morte é,
portanto, uma relação com algo de misterioso, completamente outro, possibilidade mesma de
sair da existência.
Levinas ainda fala de outra característica que a relação com o outro explicitada pela
morte - pode fazer pensar: é a nossa relação com o porvir. Mas o porvir autêntico, não a sua
antecipação ou a sua projeção que não passariam de um porvir no presente -, o porvir
enquanto alteridade que não pode ser apreendida: “O porvir [avenir] é o outro. A relação com
o porvir é a própria relação com o outro”
47
. De modo contrário, aquele que está fadado ao
entretempo está destituído de futuro, permanece silencioso em um instante que nunca se
desfaz
48
. A morte é o futuro que nunca chega, o porvir inacessível à representação quando
ela está, nós não estamos.
1.5. Idolatria e Forma
Recolocando a questão da beleza, Levinas afirma que ela é “o ser dissimulando sua
caricatura, recobrindo ou absorvendo sua sombra. Absorve-a completamente? (...) A
caricatura insuperável da imagem mais perfeita se manifesta na sua estupidez de ídolo”
49
.
Para entendermos esta passagem, é preciso ter em mente que, para Levinas, todo ser carrega
consigo como que uma máscara, a sua própria caricatura: “a realidade não seria somente
aquilo que ela é, aquilo que ela se desvela na verdade, mas também seu duplo, sua sombra,
45
TA, p. 62.
46
TA, p. 63.
47
TA, p. 64.
48
Impossível aqui não nos remetermos ao conto O Imortal, de Jorge Luis Borges: “A morte (ou sua alusão) torna
preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser
o último; não rosto eu não esteja por dissolver-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o
valor do irrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais, ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de
outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o
repetirão até a vertigem. Não coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode
ocorrer uma vez, nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram para os
Imortais.” (BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 603). Ou seja, fôssemos
destituídos da possibilidade de morte, o mundo perderia a sua originalidade de revelação.
49
IH, p. 118.
23
sua imagem”
50
. De forma que o ser se revelaria então em sua essência sua verdade e
também em sua sombra – a não-verdade.
A não-verdade não é aqui entendida como um resíduo do ser, é seu próprio caráter
sensível “pelo qual no mundo semelhança e imagem”
51
. O artista trabalha, portanto, na
tentativa de dissimular as sombras, de fazer a coisa parecer o máximo possível com a sua
imagem ou, mais ainda, de fazer com que a imagem da coisa se desfaça em beleza. A
semelhança é a estrutura do sensível. É por esta via que Levinas pode dizer que a “imagem
como ídolo nos leva à significação ontológica de sua irrealidade. Desta vez, a obra do próprio
ser, o próprio existir do ser se duplica em um semblante de existir”
52
.
Se atentarmos à agudeza do pensamento de Levinas com relação à não-redução do
rosto de outrem a conceitos ou imagens, então podemos entender a seguinte passagem: “Na
estátua, a matéria conhece a morte do ídolo. A proscrição das imagens é verdadeiramente o
supremo mandamento do monoteísmo, de uma doutrina que ultrapassa o destino – essa
criação e esta revelação ao revés”
53
. A arte não pertence nem à criação – não se pode falar de
criação artística -, nem à revelação pois é o mundo que se revela a cada presente. O destino
que se desenrola no aprisionamento do entretempo marca a impossibilidade de abertura
ética
54
.
O tom categórico de Levinas a respeito da proscrição das imagens é um ponto
discutível da sua reflexão. Jacques Rolland pergunta se o texto La réalité et son ombre, “do
qual não suficientemente se sublinhou a violenta rejeição da idolatria que ele contém, não
poderia ser considerado como o mais judeu
55
dos textos filosófico de Levinas. Chalier (2002)
aponta que o mandamento de não fazer imagens pode ser lido de diversas formas, sob os mais
variados graus de severidade. Inclusive é possível pensar que no fazer artístico dos homens
religiosos pode residir justamente “o desejo de aproximar este invisível [o rosto] por um olhar
sensível”
56
. A representação do rosto,
50
IH, p. 115.
51
IH, p. 117.
52
IH, p. 119.
53
IH, p. 124.
54
Por esta via, Daniel Payot afirma que, em La réalité et son ombre, a arte “fixa aquilo que seria vivo, estanca
aquilo que manifestaria um élan em direção ao porvir, faz calar aquilo que falaria, transforma em ídolos
cadavéricos os corpos animados de desejo e de liberdade. Ela não transfigura, se a transfiguração for um
elemento de elevação do sensível na direção da glória, mas ao contrário, ela desfigura [défigure], se é entendido
por isto a recondução das figuras sensíveis à uma elementar petrificação, à uma evidência imediata do inerte, do
fechado e do escravizado [asservi] (...)” (PAYOT, Daniel. «Un fond de nature inhumaine». De l’origine des
images. Revue d’Esthétique n. 36, 1999, pp. 95-106, p. 97).
55
ROLLAND, Jacques. Parcours de l'autrement: lecture d'Emmanuel Lévinas. Paris: PUF, 2000, p. 252.
56
CHALIER, Catherine. La trace de l’Infini: Levinas et la source hébraïque. Paris: Le Cerf, 2002, p. 256.
24
nesta perspectiva, não constituiria neste caso uma idolatria, mas uma
tentativa de se orientar na direção da invisibilidade e de celebrá-la. O retrato
não significaria uma submissão às armadilhas da idolatria, mas, como toda
arte religiosa, elevação da matéria na direção de um fim espiritual.
57
O receio, no final das contas, é de que se confundam as obras humanas com as obras
divinas. Ao se ler La réalité et son ombre, é importante dar-se conta da época em que o texto
foi escrito e o provável estado de espírito em que se encontrava Levinas no período pós-
Holocausto. Payot parece seguir a mesma linha de raciocínio:
É provável, pode-se em todo caso fazer a hipótese, que os julgamentos
sustentados sobre “algo de mau e de egoísta e de covarde no gozo artístico”
(...) julgamentos que parecem excessivos hoje em dia o principalmente
inspirados pela preocupação que devia ser aquela de Levinas no dia seguinte
[lendemain] imediato da Segunda Guerra Mundial de continuar a denunciar
(...) esta assustadora possibilidade, ofertada à humanidade através da própria
economia do ser, de escolher a morte contra a vida, a plasticidade muda
contra a palavra, a suspensão monumental contra o tempo que vai.
58
Uma certa atenuação pode ser lida em um artigo muito mais recente, de 1984, Interdit
de la representation et “droits de l’homme”, no qual Levinas escreve que através do interdito
da representação “coloca-se somente em questão o privilégio exclusivo que a cultura
ocidental teria conferido à consciência e à ciência que ela sustenta e que, consciência de si, se
prometeria suprema sabedoria e pensamento absoluto”
59
.
Chalier parece concordar com a atenuação do peso dado ao interdito:
A tradição hebraica não interdita a representação de um rosto, ela proíbe a
completude. Assim fazendo, ela coloca em sobreaviso [met em garde] contra
a desmesura do artista ávido por apoderar-se do invisível e por reduzi-lo a
uma imagem, no lugar de se deixar apreender e ser chamado por ele na
direção do desconhecido pressentido por Giacometti e tantos outros pintores
ou escultores habituados pela busca da luz invisível que somente
verdadeiramente ver, sem ela própria se deixar ver. O interdito da completude
se dirige também aqueles que olham as obras artísticas. Ele não manda
abster-se de admirar pinturas e esculturas, mas incita a colocar sobre elas um
olhar atento ao invisível.
60
O cuidado de Levinas é sempre o de afirmar que não se deve reduzir a unicidade do
rosto do outro homem às suas formas plásticas, que para-além da imagem algo de humano
que não se permite tematizar ou imaginar
61
. A beleza deve ser colocada sob suspeita
57
Id. Ibid.
58
PAYOT, Daniel. «Un fond de nature inhumaine», op. cit., pág. 104.
59
AT, p. 131.
60
CHALIER, Catherine. La trace de l’Infini… op. cit, p. 256.
61
Neste sentido, Ruud Welten, comentando o episódio da manifestação de Deus a Moisés, afirma: “Apreensão,
fixação e lembrança nunca poderão tornar um evento uma teofania. Uma teofania somente é possível quando
uma retirada [withdrawal].” (WELTEN, Ruud. Image and oblivion: Emmanuel Levinas’ phenomenological
25
justamente pela sua capacidade de cegar os olhos mais atentos, fazendo o admirador perder-se
na participação de um ritmo. A forma mais acabada é aquela que apazigua os ânimos, expulsa
a alteridade do mundo:
Lidamos com seres vestidos. O homem já tomou um cuidado elementar com
sua toalete. Ele se olhou no espelho e se viu. Lavou o rosto, apagou de seus
traços os vestígios da noite e as marcas de sua permanência instintiva: é
limpo e abstrato. A socialidade é decente. As relações sociais mais delicadas
cumprem-se nas formas estabelecidas; elas salvaguardam as aparências que
emprestam uma roupagem de sinceridade a todos os equívocos e os tornam
mundanos. O que é refratário às formas estabelecidas é eliminado do mundo.
O escândalo abriga-se na noite, nas casas, em casa que, no mundo, gozam
como que de uma extraterritorialidade.
62
Revestir o mundo em formas é não poder ser surpreendido pelo mundo, é a insistência
da ordem e da regulação, todas as coisas em seu devido lugar. Nada chama à
responsabilidade, nada pede de nós a nossa resposta humana. A forma alivia o peso da
existência fazendo-a desvanecer em um existir sem arestas. “A beleza, a forma perfeita, é a
forma por excelência as estátuas da Antiguidade nunca estão verdadeiramente nuas”
63
. A
relação com a nudez é a relação sem amarras no ser, é a possibilidade de uma relação em que
o caráter de utensílio das coisas é esquecido.
Por isso, a relação com a nudez é a verdadeira experiência (...) da alteridade
de outrem. A socialidade no mundo não tem esse caráter inquietante de um
ser diante de um outro ser, diante da alteridade. Ela comporta certamente
cóleras, indignações, ódios, apegos e amores dirigidos às qualidades e
substância de outrem, mas a timidez profunda da própria alteridade de
outrem, qualificada de doentia, é expulsa do mundo.
64
A timidez de outrem não descansa à luz, inquieta ao abrir um ponto de escuridão ali
onde tudo era claro, onde o mundo estava resolvido. As pessoas não se encontram
verdadeiramente face-a-face com as outras, mas são cada qual uma a mais na sociedade. As
formas estabelecidas não desafiam a imaginação: sossegam na razão tematizante. “Pelas
formas, o mundo é estável e feito de sólidos. Os objetos definem-se por sua finitude: a forma
é precisamente essa maneira de ter fim, na qual o finito é ao mesmo tempo o definido e se
oferece à apreensão”
65
.
iconoclasm. Literature & Theology n. 19/1, 2005, pp. 60-73, p. 66). Ou seja, a manifestação divina, da alteridade
absoluta, nunca poderá dar-se em um tempo sincrônico àquele do sujeito, o espaço entre o sujeito e a alteridade é
o do tempo do passado imemorial, anárquico, que nunca se fez presente.
62
EE, p. 44 (grifo nosso).
63
EE, p. 44.
64
EE, p. 45.
65
EE, p. 46.
26
Poderíamos aproximar a caricatura da forma? “Ela [a forma] é aquilo por meio de que
a coisa se mostra e permite a apreensão, o que nela está iluminado e suscetível de apreensão e
o que a sustenta. A coisa é sempre um volume cujas superfícies exteriores mantêm o fundo ao
mesmo tempo em que o fazem aparecer. A realidade é feita de elementos de alguma maneira
sólidos. Pode-se penetrar neles. Mas essa penetração não permite quebrar a forma e apenas a
aflora”
66
.
A forma se na luz do mundo. Mas a própria essência enegrecida de que Levinas
fala em 1948 também não acaba despejando-se no mundo, coagulada temporalmente no
entretempo da obra de arte? Ora, a obra de arte remete a um sem-mundo, a um mais aquém da
linguagem e do tempo, mas nem por isso é possível dizer que a obra enquanto obra esteja fora
do mundo. A forma não seria, portanto, a imagem trabalhada pelo cinzel da beleza, o contorno
que garante opacidade à caricatura?
A função elementar da arte, que se encontra em suas manifestações
primitivas, consiste em fornecer uma imagem do objeto em lugar do próprio
objeto (...). A própria fotografia cumpre essa função. Essa maneira de
interpor entre nós e a coisa uma imagem tem por efeito arrancar a coisa da
perspectiva do mundo. Uma situação pintada, um evento contado deve
primeiramente reproduzir a situação e o fato real; mas o fato de que nos
reportamos indiretamente a ele, por intermédio do quadro e da narração, lhe
traz uma modificação essencial. Esta não vem da iluminação e da
composição do quadro, da tendência e do arranjo do narrador, mas já da
relação indireta que entretemos com eles, de seu exotismo no sentido
etimológico do termo. (...) O exotismo traz uma modificação à própria
contemplação. Os “objetos” estão fora, sem que este “fora” se refira a um
“interior”, sem que eles já sejam naturalmente “possuídos”. O quadro, a
estátua, o livro são objetos de nosso mundo, mas através deles as coisas
representadas arrancam-se de nosso mundo.
67
A citação é longa, mas preciosa para o assunto que estamos abordando. Levinas marca
novamente esta idéia de que a arte estaria calcada na operação da semelhança entre a
representação e o mundo representado. Semelhança que não necessariamente apaga o mundo,
mas que oferece deste mundo uma versão noturna, as “formas e as cores do quadro não
recobrem, mas descobrem as coisas em si, precisamente porque elas lhes conservam sua
exterioridade”
68
. Estar diante de um quadro é, portanto, estar diante à opacidade imagética da
ausência da coisa representada. Novamente podemos ver aqui a questão da idolatria
69
.
66
EE, p. 52.
67
EE, p. 62.
68
EE, p. 62.
69
neste ponto, mais uma vez, uma referência possível à Estrela da Redenção, de Franz Rosenzweig: “O
místico, o plástico, o trágico; o conjunto total enclausurado fora, que, como um marco, faz que destaque de todo
o mais o ser; a relação da forma interna, que mantém unida toda a riqueza dos detalhes da obra de arte; a humana
complexidade que ao belo força lingüística: sobre estes três pilares se elevam imediatamente os arcos que,
27
1.6. Sensibilidade como participação
Como dissemos, a relação sensível com o mundo relação estética se sob a
forma de um aprisionamento à força sedutora das imagens que vêm substituir o mundo. A
realidade se mostrando, por sua vez, de modo ritmado, às escuras, desnudando-se em noite
anônima de um instante que não encontra término, sem futuro suspensão fora do tempo.
Sem iniciativa, o sujeito é jogado em uma passividade “diretamente visível na magia, do
canto, da música, da poesia”
70
. Insistamos um pouco nesta noção de ritmo, agora tendo como
pano de fundo o desenvolvimento da idéia de sensibilidade.
O ritmo, como aquilo de que não se escapa, “representa a situação única em que não se
pode falar de consentimento, de assunção
71
, de iniciativa, de liberdade porque o sujeito é
apreendido e levado”
72
. Um modo de ser “ao qual não se aplica nem a forma de consciência,
uma vez que o eu [moi] se despoja de sua prerrogativa de assunção, de seu poder; nem a
forma de inconsciente, uma vez que toda situação e todas as suas articulações, em uma
obscura claridade, estão presentes
73
. Levinas fala que é algo parecido com sonhar estando
acordando, um feitiço, um encantamento: como o automatismo do caminhar ou do dançar de
acordo com uma música.
A reflexão é formulada do seguinte modo: a iniciativa, a potência, é invertida em um
modo específico de se relacionar com a realidade; a este modo dá-se o nome de participação,
expressão inspirada pela obra de Lévy-Bruhl. A participação dá conta desta perda de si em um
ritmo, perda que se faz presente pela confusão entre o sujeito e o mundo. Lévy-Bruhl dá o
exemplo de uma tribo indígena cujos membros dizem serem araras; não que se tornarão araras
depois da morte, mas que são araras ao mesmo tempo em que são homens. Para esta
mentalidade, segundo Lévy-Bruhl,
a oposição entre o um e os demais, o mesmo e o outro, etc., não se impõe a
necessidade de afirmar um dos termos se o outro é negado, ou
reciprocamente. Ela [a necessidade] não tem adquire senão um interessa
secundário. Por vezes, ela é percebida; seguidamente, não. Seguidamente ela
é encoberta frente uma comunhão [communauté] mística de essência entre os
unindo cada vez dois deles e comunicando-os, constituem a obra de arte.” (ROSENZWEIG, Franz, La Estrella
de la Redención, op.cit., p. 193).
70
IH, p. 111.
71
Levinas explica que agir “é assumir um presente. O que não equivale a repetir que o presente é o atual, mas
que o presente é, no murmurejar anônimo da existência, a aparição de um sujeito que está em luta contra essa
existência, que está em relação com ela, que a assume. O ato é essa assunção” (EE, p. 35).
72
IH, p. 111.
73
IH, p. 111.
28
seres que, entretanto, para nosso pensamento, não poderiam ser confundidos
sem absurdidade.
74
Levinas fala da “impressão que pela participação o sujeito não via somente o outro,
mas ele era o outro”
75
. Portanto, é de uma sensibilidade ao modo de participação que fala na
relação estética. Como se uma sensação destituída de qualquer conceituação aparecesse com a
imagem. “A sensação não é um resíduo da percepção, mas uma função própria: a ascendência
[emprise] que a imagem exerce sobre nós – uma função de ritmo”
76
.
A sensibilidade se coloca então como um evento ontológico específico, como
imaginação
77
. É interessante notar que nas duas clássicas passagens em que Levinas apresenta
o Il y a, utiliza-se do verbo imaginar para convocar o leitor:
Imaginemos o retorno ao nada de todos os seres: coisas e pessoas. É
impossível colocar este retorno ao nada fora de todo acontecimento. Mas, e
este próprio nada? Alguma coisa ocorre, fossem a noite e o silêncio do nada.
A indeterminação desse “alguma coisa ocorre” não é a indeterminação do
sujeito, não se refere a um substantivo. Ela designa como que o pronome da
terceira pessoa na forma impessoal do verbo de modo algum um autor mal
conhecido da ão, mas o caráter da própria ação que, de alguma maneira,
não tem autor, é anônima. Essa “consumição impessoal, anônima, mas
inextinguível do ser, aquela que murmura no fundo do próprio nada, fixamo-
la pelo termo há [Il y a]. O , em sua recusa de tomar uma forma pessoal, é
o “ser em geral.”
78
Como iremos nos aproximar deste existir sem existente? Imaginemos o
retorno ao nada de todas as coisas, seres e pessoas. Iremos encontrar o puro
nada? Resta após esta destruição imaginária de todas as coisas, não alguma
coisa, mas o fato de que há. A ausência de todas coisas retorna como uma
presença: como um lugar onde tudo está em sombras, como uma densidade
da atmosfera, como uma plenitude do vazio ou como o murmúrio do silêncio.
Há, depois desta destruição das coisas e dos seres, o campo de forças” do
existir, impessoal. Alguma coisa não é nem sujeito, nem substantivo. O fato
de existir que se impõe, quando não há mais nada.
79
Ora, talvez por esta via se possa entender que a relação estética é a relação com este
murmúrio anônimo a que Levinas o nome de Il y a. “O objeto representado, pelo simples
fato de tornar-se imagem, se converte em não-objeto”
80
, a imagem permanece ali onde o
comércio com o mundo se através de um ritmo. Portanto, em 1948, a sensibilidade é
74
LÉVY-BRUHL, Lucien. Les Fonction Mentales dans les Sociétés Inférieures. Paris : Presses Universitaires de
France, 1951, p. 77.
75
TA, p. 22.
76
IH, p. 113.
77
Jacques Rolland comenta que “a arte em tanto que tal, apresenta o Il y a que o pensamento procuraria em uma
situação imaginária. Não é por acaso, aliás, que o capítulo no qual se encontra proposta a descrição do Il y a
esteja próximo de um outro chamado ‘O exotismo’, consagrado à arte.” (ROLLAND, Jacques. Parcours de
l'autrement…, op. cit. p. 247).
78
EE, p. 67 (primeiro grifo nosso)
79
TA, p. 26 (grifos nossos)
80
IH, p. 114.
29
entendida como um modo de relação com a realidade uma participação nesta realidade
como coisa entre coisas – que tem por efeito a produção de imagens.
Em De l’existence a l’existant, Levinas trata do efeito estético ao abordar a questão da
sensibilidade. O próprio da arte seria a movimento de “deixar a percepção para reabilitar a
sensação, (...) destacar a qualidade dessa referência ao objeto”
81
. Ao invés de apreender o
objeto, a intenção chega tão-somente à própria sensação, “e é esta perda na sensação, na
aisthésis, que produz o efeito estético”
82
. Portanto, a sensação não leva até o objeto, mas é um
obstáculo que afasta dele. Na arte, a sensação se sobressai, retornando à impessoalidade do
elemento, do Il y a. Neste sentido, a questão de a crítica ser dirigida apenas à arte
representativa ou não perde um pouco a importância: “As cores, cuja ligação com as coisas é
íntima, destacam-se sobretudo numa pintura que se sente revolucionária”
83
.
A sensação não é a qualidade ainda não-organizada, como o ensina a
psicologia kantiana. A organização ou a anarquia da sensação não concerne
sua objetividade ou sua subjetividade. (...) A maneira como, na arte, as
qualidades sensíveis que constituem o objeto ao mesmo tempo não conduzem
a nenhum objeto e estão em si, é o evento da sensação como sensação, isto é,
o evento estético. Pode-se, assim, chamá-lo de musicalidade da sensação.
84
Portanto, o efeito estético se antes de qualquer significação, antes que a palavra
tenha algum sentido ou que o som deixe de ser um barulho. A percepção é um desdobramento
do efeito estético, traz à sensação à luz: “A palavra não é separável do sentido. Mas,
primeiramente, a materialidade do som que ela preenche e que permite reconduzi-la à
sensação e à musicalidade”
85
. O efeito estético, portanto, tem lugar na noite do elemento e da
materialidade – espaço em que as coisas ainda não são utensílios -, fora do tempo, no
entretempo.
O exotismo adquire suas maiores proporções, segundo o autor, na arte moderna. Se a
arte representativa buscava ser fiel à coisa representada assemelhando-se a ela a pintura de
uma árvore, por exemplo, seria tão boa quanto fosse parecida com a árvore do mundo -, a arte
moderna, apontando para a ruína da representação, não estaria mais preocupada em fazer uma
imitação do mundo, mas sim em apresentar uma realidade incomparável, um fim em si
81
EE, p. 62.
82
EE, p. 62.
83
EE, p. 62.
84
EE, p. 63.
85
EE, p. 63.
30
mesma, sem a necessidade da referência ao mundo
86
. Poderíamos entender, deste modo, a arte
moderna como um luto pela morte da arte bela proposta por Hegel.
Levinas fala de uma interioridade da arte – a representativa, no caso -, como se a obra
tivesse uma alma: “Uma natureza morta, uma paisagem – e com mais razão ainda um retrato –
têm uma vida interior própria que seu invólucro material exprime. (...) A realidade artística é
o meio de expressão de uma alma”
87
. Porque simpatizamos com esta alma, “o exotismo da
obra é integrado em nosso mundo”
88
. A alteridade de outrem permanecendo um alter ego.
no que se refere à arte moderna, é muito relevante, entretanto, a importância que
Levinas atribui ao artista enquanto um pesquisador de novas formas de expressão, a arte como
busca de outras formas (este tema será apreciado com mais vagar na obra Autrement qu’être):
Compreendemos, assim, a pesquisa da pintura e da poesia modernas que
tentam conservar à realidade artística seu exotismo, banir dela esta alma à
qual as formas visíveis assujeitam-se, tirar dos objetos representados seu
servil destino de expressão. (...) a preocupação do puro e simples jogo de
cores e de linhas, destinado à sensação para a qual a realidade representada
vale por si mesma e não pela alma que ela envolve: a correspondência entre
objetos, entre suas faces e superfícies, alheia à coerência do mundo (...)
89
Portanto, percebe-se a despreocupação da arte moderna com a categoria de
semelhança, o fazer artístico deixa de buscar na coerência do mundo uma garantia de beleza.
A camada superficial de tinta, de palavras, de pedras, dá-se à sensibilidade como um fim em
si: é o grau máximo da opacidade da imagem, suspensão contundente do tempo, exotismo
levado às últimas conseqüências.
A arte moderna, enquanto artífice da ruína da representação, “busca arrancar da luz os
seres integrado num conjunto”
90
: “Na pintura contemporânea [arredores da década de 40], as
coisas não importam como elementos de uma ordem universal que o olhar se como uma
perspectiva. Fissuras racham de todos os lados a continuidade do universo. O particular
sobressai em sua nudez de ser”
91
. Ora, não seria esta uma tentativa de evasão, fuga do ser?
A arte não poderia agora já ser vista como um desnudamento poético do mundo?
86
Desde um interessante ponto e vista, Peter Schmiedgen escreve: “A representação artística abstrata (...) extrai
as coisas da unidade de uma subjetividade interessada e faz com que vejamos os objetos (na medida em que eles
ainda podem ser nomeados objetos) em sua independência de nossos projetos e intenções. Força-nos a confrontar
o aparentemente inútil, obstrutivo e a-típico, não como o excesso negativo a ser excluído, mas como uma parte
significativa da experiência.” (SCHMIEDGEN, Peter. Art and Idolatry: Aesthetics and Alterity in Levinas.
Contretemps n. 3, 2002, pp. 148-160, p. 150). De onde se pode entender que a arte abstrata e talvez boa parte
da arte moderna e contemporânea – retira dos objetos o seu estatuto de utensílios.
87
EE, p. 64.
88
EE, p. 65.
89
EE, p. 65.
90
EE, p. 65.
91
EE, p. 65.
31
Elementos nus, simples e absolutos, intumescência ou abcessos do ser. Nessa
queda das coisas sobre nós, os objetos afirmam seu poder de objetos
materiais e atingem como que o próprio paroxismo de sua materialidade.
Apesar da racionalidade e da luminosidade dessas formas tomadas em si
mesmas, o quadro cumpre o próprio em si de suas existências, o absoluto do
próprio fato de que alguma coisa que não é, por sua vez, um objeto, um
nome; que é inominável e só pode aparecer pela poesia.
92
Mas Levinas ainda é severo em seu julgamento, pois afirma que esta última
materialidade “é o espesso, o grosseiro, o maciço, o miserável. O que tem consistência, peso e
uma absurda, brutal, mas impassível presença; mas também humildade, nudez, feiúra”
93
.
Descobrir a materialidade do ser é estar frente a algo do informe – a materialidade é o próprio
Il y a e a relação com este elemento é o horror: “No horror, o sujeito é despojado de sua
subjetividade, de seu poder de existência privada. Ele é despersonalizado. (...) [O horror] põe
às avessas a subjetividade o sujeito, sua particularidade de ente. Ele é a participação no .”
94
.
1.7. Por uma crítica filosófica
Nas páginas finais de La réalité et son ombre Levinas ameniza um tanto o tom de sua
crítica, apontando para algo que pode ser entendido como uma forma de salvação da arte
através da crítica filosófica:
Mas tudo isso é verdade acerca da arte separada da crítica que integra a obra
inumana do artista no mundo humano. A crítica arranca de sua
irresponsabilidade abordando a sua técnica. Trata o artista como um
homem que trabalha. Buscando as influências às quais está submetido, une
a este homem desprendido e orgulhoso a história real.
95
Apresenta-se, então, uma nova perspectiva para se entender a arte. Parece que aquilo
que Levinas critica é o que chama de arte pela arte: “falsa fórmula, na medida em que situa a
arte por cima da realidade e não reconhece mestre algum; imoral, na medida em que libera o
artista de seus deveres de homem e lhe assegura uma nobreza fácil”
96
. Uma crítica da arte,
portanto, colocaria em cena o artista como aquele que trabalha a obra, detentor de um estilo.
Interpela a obra através de conceitos e emparelha-a ao mito: “Isto é dizer que a obra pode e
92
EE, p. 68.
93
EE, p. 68.
94
EE, p. 71.
95
IH, p. 126.
96
IH, p. 109.
32
deve ser tratada como um mito: esta estátua imóvel tem de ser posta em movimento e fazê-la
falar”.
97
Talvez possamos entender isto como um resgate da potência criadora da obra, a
possibilidade de tomá-la não em seu arrebatamento de beleza e acabamento, mas, mais do que
isso, fazer através da obra falar o artista enquanto alguém a quem se dirige a palavra: “fazer
intervir a perspectiva da relação com outrem sem a qual o ser não poderia ser dito em sua
realidade, ou seja, em seu tempo”
98
. Catherine Chalier, no prefácio ao livro Levinas face au
beau, de David Gritz, comenta do seguinte modo a tarefa da crítica filosófica:
(...) a sensibilidade à beleza da obra significaria então que a matéria tela,
pedra, madeira, papel, etc trabalhada pelo artista e, em particular, as
imagens que ele produz, estão habitadas por uma linguagem à espera de
libertação. O intérprete não projetaria sobre elas sua linguagem, ele
contribuiria para fazer viver as significações ainda prisioneiras da solidão
silenciosa da obra.
99
Não é como se a obra nada tivesse a dizer, ela está em estado de mutismo somente
enquanto tomada como acabada, enquanto suspensão no entretempo. De certa forma, atribuir
voz à obra é colocar-se em uma relação interpretativa com a obra, é uma exegese filosófica,
que “terá medido a distância que separa o mito do ser real, tomará consciência do próprio
acontecimento criador; acontecimento que escapa à consciência, o qual vai de ser a ser
saltando os intervalos do entretempo”
100
, tema que será abordado mais aprofundadamente por
Levinas em Autrement qu’être (1974).
Entretanto, em La réalité et son ombre Levinas aponta para uma espécie de
impossibilidade do público de manter-se na mera contemplação da obra, fato que justifica a
crítica de arte, como se a obra precisasse ser falada através daqueles que a contemplam:
Não contente em absorver-se no gozo estético, o público experimenta uma
necessidade irresistível de falar. Que haja alguma coisa a ser dita
publicamente, quando o artista se recusa a dizer da obra outra coisa que esta
própria obra que não possa contemplar em silêncio justifica a crítica.
Pode-se defini-la: o homem que ainda tem alguma coisa a dizer quando tudo
foi dito; que pode dizer da obra outra coisa que esta obra.
101
De certo modo, é como se a obra clamasse por interpretação, por ser colocada na
contemporaneidade dos que fruem dela, um pedido para que não se esgote em mero ídolo
silencioso. Mas Levinas ainda é obtuso com relação a este suposto apelo da obra não se
97
IH, p. 126.
98
IH, p. 127.
99
GRITZ, David. Levinas face au beau, op.cit., p. 29.
100
ROLLAND, Jacques. Parcours de l'autrement…, op.cit., p.252.
101
IH, p. 108.
33
trataria de uma crítica que trouxesse a obra à vida, que a acordasse para o mundo: o crítico é
aquele que diz algo quando tudo foi dito, ou seja, ele não é capaz de retirar as obra das
sombras, não é capaz de quebrar o encanto da completude. Tudo o que a crítica diz é
supérfluo e desnecessário, pois a obra em si já está acabada.
34
Capítulo 2
A inversão do rosto feminino: a beleza como suspensão do amanhã
Quero dizer que se o conhecimento de um rosto pretende ser
estético, deve recusar ser histórico.
(Jean Genet)
2.1. Considerações Iniciais
Totalité et Infini (1961), obra publicada treze anos após o artigo La réalité et son
ombre (1948), traz ainda um Levinas rigoroso com relação à questão da arte. Do mesmo
modo como a sua crítica em 1948 se dirigia a este movimento inumano da arte de suspender o
tempo do porvir, coagulando-o sob a forma de um instante que não discorre entretempo -,
em 1961 Levinas também tratará da relação da obra de arte com o futuro incerto cuja
representação máxima é a morte enquanto primeiro indício de alteridade irredutível.
As passagens sobre arte em Totalité et Infini são bastante difusas e por muitas vezes
um tanto enigmáticas. Para que não as tomemos de forma descontextualizada ou como
meras repetições de idéias de La réalite et son ombre -, é importante que nos preocupemos em
evidenciar alguns desenvolvimentos teóricos particulares a esta obra. Citações como aquela
que afirma que é “a arte que empresta às coisas como que uma fachadaé porque os objetos
não são somente vistos, mas são como os objetos que se exibem”
102
, não são de imediato
compreensíveis se não tivermos em mente aquilo que Levinas entende por conceitos como
fruição, trabalho e interioridade, para citar apenas alguns.
Por mais que o autor esteja ainda se perguntando sobre a posição da obra de arte frente
ao futuro de incertezas e aqui está o principal ponto pelo qual abordaremos, no contexto de
Totalité et Infini, a questão da temporalidade na arte -, sua concepção difere, nem que seja
pelo tom utilizado na escrita, daquela de La réalité et son ombre. Neste sentido, é muito
102
TI, p. 120.
35
importante que exploremos com vagar o conceito de sensibilidade, que assume grande
relevância para compreendermos este momento do pensamento de Levinas.
2.2. Sensibilidade
No capítulo anterior falávamos de uma sensibilidade cujo proceder se explicitava pela
produção de imagens, como uma participação no Il y a anônimo, o mundo em sua
materialidade. Em Totalité et Infini podemos ler ainda a sensibilidade como relacionada a esta
imersão no elemento, mas Levinas não se vale do mesmo tom desolador daquele utilizado
em 1948 - agora se trata de viver de..., de fruir sensivelmente do mundo; como uma tentativa
de distinguir-se do ser, é uma promessa de evasão: “A ruptura da totalidade que se realiza
pelo fruição da solidão – ou pela solidão da fruição – é radical.”
103
Para que entendamos como a sensibilidade se apresenta em Totalité et Infini é preciso
que percebamos como tal conceito está relacionado à assunção pelo sujeito de um presente
para si, de uma temporalidade que seja sua; trata-se agora de entes comprometidos no ser,
entes que “podem falar, em vez de emprestarem seus lábios a uma palavra anônima da
história”
104
.
A Seção II de Totalité et Infini é toda ela dedicada à explicação deste processo de
construção de uma morada no seio do anonimato, movimento de substantivação no ser.
Portanto, no intuito de tratarmos da sensibilidade, procuraremos explicar como o sujeito
fecha-se em uma temporalidade própria uma interioridade na própria lida com o
elemento, com a obtusa noite da impessoalidade. Estar à beira da noite é ter de trabalhar o
elemento e buscar abrigo para lidar com o Il y a, a “dimensão noturna do porvir”
105
.
Levinas utiliza-se do mito de Giges, escrito por Platão, para falar sobre a interioridade
- Glauco, no livro II da República de Platão, conta que Giges era um pastor que, após uma
violenta tempestade e um terremoto, percebeu uma fenda ali onde pastava o seu rebanho. Ao
dar-se conta do precipício criado pelo desastre natural, Giges
desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a lenda enumera,
viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-se
para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e
que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem
levar mais nada. (...) virando o engaste para dentro, tornava-se invisível; para
fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros
103
TI, p. 123.
104
TI, p. 8.
105
TI, p. 151.
36
que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou
com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.
106
Levinas sublinha que no mito de Giges o Eu e a interioridade “existem não-
reconhecidos”
107
. Está presente, portanto, a idéia de segredo: o pastor pode ver todos à sua
volta, mas por eles não pode ser visto. uma espécie de recolhimento, de um ilhamento
silencioso. O mito ainda traz em si a tessitura das imagens de escuridão a descida ao fundo
do abismo -, de solidão para não fazer cair por terra a sua farsa, o pastor deve manter-se
alheio aos vizinhos e de vazio o cavalo de bronze crivado de pequenas aberturas. Estas
figuras guiarão nosso argumento.
Antes de elaborar uma relação de compreensão e de representação com o ser, antes de
operar a fria apreensão luminosa da realidade, o eu opõe-se ao fundo da totalidade na forma
de uma resistência. É pura felicidade, ingênuo amor à vida. Antes de tomar posse do mundo,
meramente vive dele, é fruição. Mergulha no elemento como sensibilidade:
Estar-no-elemento liberta, por certo, o ser da participação cega e surda num
todo, mas é diferente de um pensamento que se dirige para fora. Aqui, pelo
contrário, o movimento vem incessantemente sobre mim como uma onda que
engole, traga e afoga. (...) Estar dentro, estar no interior de... A situação não
se reduz a uma representação, nem mesmo a uma representação balbuciante.
Trata-se da sensibilidade que é a maneira da fruição.
108
A maneira da fruição é a sensibilidade, relação anterior à doação de sentido ou à
representação do mundo. A sensibilidade não visa à constituição de um mundo, mas tão
somente o contentamento no mundo – não responde à esfera do pensamento. É o mundo como
tal que vem na direção do eu. A totalidade que colocaria o ente como parte da grande ordem
das coisas, como mero elo de uma corrente enrijecida, não basta ao homem em seu egoísmo,
no para si do mundo. O egoísmo é uma ferida aberta na apática carne do ser. Na fruição, o eu
encontra-se mergulhado afogado
109
em um elemento no qual as coisas são todas “para
mim”, são alimento.
106
PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004, p. 43.
107
TI, p. 55.
108
TI, p. 142.
109
Quando trata da fruição, Levinas utiliza-se muito de figuras que remetem à água, como, por exemplo: “Se a
insegurança do mundo plenamente aceite na fruição acaba por perturbá-la, a insegurança não poderá eliminar o
gozo fundamental da vida. Mas tal insegurança traz para o interior da fruição uma fronteira que não vem nem da
revelação de Outrem, nem de um conteúdo heterogêneo qualquer mas, de algum modo, do nada. Tem a ver
com a maneira como o elemento ou o ser separado se contenta ou se basta, vem a esse ser à espessura
mitológica que prolonga o elemento e onde o elemento se perde. A insegurança – que desenha assim uma orla de
nada em torno da vida interior, confirmando sua insularidade é vivida na altura da fruição como a preocupação
do amanhã.” (TI, p. 133). Ou ainda: “O vazio absoluto, o ‘nenhures’ onde se perde e onde surge o elemento, bate
de todos os lados a ilhota do Eu que vive interiormente”. (TI, p. 131). De onde se depreende que o eu estaria, em
37
O egoísmo é um acontecimento ontológico, uma dilaceração efetiva e não um
sonho que decorre à superfície do ser e que se poderia negligenciar como
uma sombra. O desmembramento de uma totalidade pode produzir-se pelo
estremecimento do egoísmo, nem ilusório nem subordinado no que quer que
seja à totalidade que ele rasga. O egoísmo é vida: vida de... ou fruição. (TI, p.
190)
O egoísmo é, portanto, um estremecimento na totalidade, um “viver de...”. É um
acontecimento que se dá no interior mesmo do ser – é ontológico -, é uma descida às
profundezas que não causam ainda vertigem porque aquele que cai é também a própria queda.
O egoísmo rasga a totalidade, abre uma brecha, um ainda não em que o eu possa situar-se
como uma involução sobre si mesmo. Não é ilusão ou sonho de separação, é efetivamente
uma dilaceração, um rasgo. É nesta brecha na história que o homem encontrará abrigo e
surgirá como um si-mesmo:
O surgimento do si-mesmo a partir da fruição e onde a substancialidade do eu
é percebida não como sujeito do verbo ser, mas como implicada na felicidade
não tendo a ver com a ontologia, mas com a axiologia é a exaltação do
ente, sem mais. O ente não estaria, portanto, sujeito à jurisdição da
“compreensão do ser” ou da ontologia. Tornamo-nos sujeitos do ser, não
assumindo o ser, mas gozando da felicidade, pela interiorização da fruição,
que é também uma exaltação, um “mais acima do ser”. O ente é “autônomo”
em relação ao ser. o indica uma participação no ser, mas a felicidade. O
ente por excelência é o homem.
110
Na fruição, o ente não se preocupa com o ser, basta-se com um mundo em que as
coisas são para si, apresentam-se não como objetos a serem tomados ou arrancados ao fundo
da totalidade ou do elemento. O ente, antes de existir, exalta-se. O elemento possui apenas um
lado (a face do vento, a superfície do mar, o horizonte distante do caminho); nele, as coisas
são sempre impossíveis de serem possuídas: apresentam-se na profundidade de um precipício.
O ente separa-se do ser ficando à beira do abismo. Mesmo em seu medo do abismo, o eu
ainda assim é felicidade, pois o eu frui do medo, alimenta-se dele como se alimenta do pão,
do vento e do caminho que segue. Desesperar é fruir do desespero.
A fruição, na relação com o alimento que é o outro da vida, é uma
independência sui generis, a independência da felicidade. A vida é
afetividade e sentimento. Viver é fruir da vida. Desesperar da vida tem
sentido porque a vida é, originalmente, felicidade.
111
sua interioridade, para o ser assim como a ilha está para o mar, como uma ferida de terra em sua aquosa
imensidão.
110
TI, p. 123.
111
TI, p. 118.
38
Desesperar da vida é antes de tudo estar na vida, viver da vida e do desespero. Na
fruição – mesmo que seja no desespero - o eu é soberano e despreocupado. Desinteressado. É
pela sua satisfação que a fruição mantém a sua soberania:
Na fruição paradisíaca, sem tempo nem preocupação, a distinção da atividade
e da passividade confunde-se com a satisfação. A fruição alimenta-se
inteiramente do que está fora de onde ela habita, mas a sua satisfação
manifesta a sua soberania (...).
112
O caráter da fruição é paradisíaco porque ela é nada mais do que “um vazio que se
preenche”
113
quando o eu alimenta-se do mundo que se a ele. Sem tempo, a morte ainda
não existe. Ainda distante da economia, distante da representação, o eu que frui é unicamente
oposição à totalidade, resistência à saudade da universalidade. Em sua separação, erige-se
como interioridade e como criação ex nihilo, sem dívidas para com a totalidade. É satisfeito.
Cadáver redivivo de uma vida cuja reflexão ainda está por vir. Puro vazio metaforizado pela
carcaça do ente despreocupado com o ser. É o próprio cavalo de bronze oco de que se fala no
mito de Giges.
Entretanto, a soberania da fruição, este estado paradisíaco, sofre com o risco de uma
traição, de que a alteridade que lhe assegura a vida negue-lhe a dependência que é própria da
fruição, negue o alimento. Esta insegurança será suspendida pela aquisição da morada, casa
que se faz adiamento de um futuro que não garantiria a vida. É a manutenção do ainda não.
Garantir a vida é ausentar-se dela em um segredo
114
.
O pedaço de terra que me suporta não é apenas meu objeto; suporta a minha
experiência do objeto. Os lugares pisados não me resistem, mas suportam-
me. A relação com o meu lugar por tal “sustentação” precede pensamento e
trabalho. O corpo, a posição, o fato de se manter delineamentos da relação
primeira comigo mesmo, da minha coincidência comigo – não se assemelham
de modo algum à representação idealista. Sou eu próprio, estou aqui, em
minha casa, habitação, imanência no mundo. A minha sensibilidade está aqui.
Não na minha posição o sentimento da localização, mas a localização da
minha sensibilidade.
115
Um “pedaço de terra que me suporta”
116
, suporte que não está garantido na incerteza
do futuro. Giges desce às profundezas, mas antes se coloca frente ao precipício. A terra que
antes lhe confirmava o solo e o pasto de suas ovelhas se faz cova - o solo fendeu-se e
112
TI, p. 176.
113
TI, p. 153.
114
Interessa-nos, aqui, a seguinte passagem de Totalidade e Infinito: “O real não deve determinar-se apenas na
sua objetividade histórica, mas também a partir do segredo interrompe a continuidade do tempo histórico, a
partir das intenções interiores.” (TI, p. 51). Mais sobre esta resistência à objetividade histórica, cf. adiante.
115
TI, p. 146.
116
TI, p. 146.
39
formou-se um precipício perto de onde seu rebanho pastava”
117
a descida à incerteza e ao
impreciso do amanhã travestido em morte: eis a vertigem, momento em que na
própria sensibilidade e independente de todo o pensamento, anuncia-se uma
insegurança que e em questão a antiguidade quase-eterna do elemento que
a inquietará como o outro e de que ela se apropriará recolhendo-se numa
morada.
118
Estando em sua casa, o eu reconforta-se em doçura e calor, em aconchego e em
intimidade. Produz-se um delicioso desfalecimento da ordem ontológica, uma suavidade que
“vem ao ser separado a partir de Outrem” que se revela “como o fenômeno original de sua
doçura”
119
. É a presença do rosto feminino em sua alteridade e luz própria que faz da casa um
lugar aconchegante e íntimo. Já é uma abertura diferente daquela para o não-eu, para o
elemento que se cristaliza em medo pelo amanhã e inquietação do futuro: é o acolhimento
pela alteridade da mulher.
A casa não é, entretanto, um fim da atividade humana, um recolhimento de pura
passividade e inércia: é, pelo contrário, a condição através da qual o humano poderá trabalhar
o mundo e representá-lo para si. É um lugar para o qual retirar-se, fazer-se seguro das
intempéries. O eu que anteriormente simplesmente “vivia de...”, na sincera ingenuidade da
fruição, recolhe-se na casa como condição para a vida econômica - o trabalho e a posse -,
culmina a sua separação em energia. A casa permite novas maneiras e hábitos ao homem.
Estar familiarizado com o mundo não resulta “apenas de hábitos ganhos neste mundo,
que lhe retiram as rugosidades e que medem a adaptação do ser vivo a um mundo de que frui
e do qual se alimenta”
120
; isto seria a burocratização da rotina e o acinzentamento do
cotidiano; a sensação de intimidade produz-se, sim, como “uma doçura que se espalha sobre a
face das coisas”
121
. A familiaridade não se concretiza somente por um mundo que podemos
moldar de acordo com nossas necessidades, uma natureza submissa aos nossos desígnios, mas
por uma amizade com o eu que frui e que trabalha. Recolher-se é, antes de tudo, ser acolhido.
Não ainda um acolhimento do Outro metafísico e transcendente, não na dimensão da
altura: na constituição da morada, o Outro cuja presença sinto em minha casa é pura ausência,
é o calor da intimidade. É a Mulher enquanto ausência e segredo em sua alteridade.
Para que a intimidade do recolhimento possa produzir-se na ecumenia do ser
é preciso - que a presença de Outrem não se revele apenas no rosto que
117
PLATÃO. A República, op. cit., p. 43.
118
TI, p. 145.
119
TI, p. 161, ambas as citações.
120
TI, p. 165.
121
TI, p. 165.
40
perfura a sua própria forma plástica, mas que ela se revele, simultaneamente
com esta presença, em sua retirada e sua ausência.
122
Diante do rosto feminino não se está mais no puro fruir do elemento, mas também
ainda não se chegou à possibilidade da escuta da palavra vinda da altura, dita por um vós que
se faz ensino. A alteridade que acolhe o eu em casa é o tu: “linguagem sem ensino, linguagem
silenciosa, entendimento sem palavras, expressão no segredo”
123
. É justamente devido a este
terno acolhimento que se pode pensar que existir não é simplesmente estar jogado como uma
pedra que é atirada para trás de si, mas sim é habitar, morar, é uma vinda a si que se dá como
retirada para sua própria casa, como um segredo emancipado em silêncio.
A casa não enraíza o ser separado em um terreno para deixá-lo em
comunicação vegetal com os elementos. Situa-se recuada em relação ao
anonimato da terra, do ar, da luz, da floresta, do caminho, do mar, do rio.
“Tem sua casa”, mas também o seu segredo. A partir da morada, o ser
separado rompe com a existência natural, mergulhando num meio em que a
sua fruição, sem segurança, crispada, se transforma em preocupação.
124
É justamente esta preocupação que incitará o eu ao trabalho e à propriedade. Através
do trabalho exercido sobre o elemento a natureza se descobrirá em mundo, as coisas serão
suscitadas. É a partir da morada, da possibilidade de dela sair-se e a ela retornar, que nascerá
o mundo. Eis aí outra característica da casa: ela permite a categoria da permanência. Enquanto
o “viver de...” esgotava-se em efemeridade e pura resistência, a preocupação manifestada pelo
trabalho e pela posse supõe já um lugar para o qual posso levar aquilo que arranco ao
elemento:
A posse das coisas a partir da casa, que se faz pelo trabalho, distingue-se da
relação imediata com o não-eu na fruição, da posse sem aquisição de que
goza a sensibilidade que mergulha no elemento, que possui” sem apanhar.
Na fruição, o eu não assume nada. De chofre, ele vive de... A posse pela
fruição confunde-se com a fruição. Nenhuma atividade precede a
sensibilidade. Mas, em contrapartida, possuir fruindo é também ser possuído
e ser entregue à profundidade insondável, isto é, ao inquietante futuro do
elemento.
125
O trabalho tranqüiliza o elemento ao trazê-lo para dentro das quatro paredes da
morada, ignora a sua profundidade transformando-a em superfície a ser recolhida em casa. É
uma relação ontológica, relação com as coisas, que manifesta as próprias coisas. À
profundidade do futuro inquietante o trabalho propõe um adiamento tranqüilizador.
122
TI, p. 166.
123
TI, p. 166.
124
TI, p. 167.
125
TI, p. 169.
41
É a domesticação do mal absurdo, de uma espessura opressora e sufocante, do apeíron
indefinido. O trabalho dirige-se, portanto, a uma matéria-prima que anuncia o seu anonimato
ainda não há uma especificação no elemento -, mas que, ao anunciar-se como sem nome,
renuncia a este anonimato uma vez que é função do próprio trabalho transformar esta pura
indefinição em algo para o eu.
Apesar de fazer-se dentro de uma relação ontológica, ainda não se pode entender o
trabalho como violência, pelo menos não no registro ético, que leva em conta a alteridade
absoluta. A mão que arrebata ao elemento as coisas nada tem a ver com o eu que se coloca
frente à alteridade ética do Outro. É um lavrar sobre aquilo que não tem rosto, ação no
fenômeno. “Apenas ataca a ausência de rosto dos deuses pagãos, cujo nada agora
denuncia”
126
. As coisas das quais o eu se apodera através do trabalho adquirem, então,
substância, consistência e permanência. Em outras palavras, adquirem um contorno que as
torna coisas, não se expressam por si próprias, como faria o Rosto.
A interioridade como resistência ao elemento e como morada também pode ser
entendida como a assunção que o eu realiza do seu próprio presente através do ateísmo,
através da morte dos “deuses sem rosto”
127
que povoam o Il y a. Podemos chamar ateísmo “a
esta separação tão completa que o ser separado se mantém sozinho na existência sem
participar do Ser de que está separado capaz eventualmente de a ele aderir pela crença”
128
.
A dimensão da subjetividade, do psíquico, é atéia, não preocupada com a afirmação ou
mesmo com a negação do divino. Vive fora de Deus, em pleno egoísmo. O rompimento com
a participação é a própria condição de Giges: ver sem ser visto.
A não-participação no elemento se sustenta por um movimento que não é aquele da
representação, mas da sensibilidade. O eu não busca o elemento como uma coisa para ter em
suas mãos: vive dele. Pela fruição não ocorre a transmutação do elemento em coisa.
O navegador que utiliza o mar e o vento domina estes elementos, mas nem
por isso os transforma em coisas. Eles conservam a indeterminação dos
elementos apesar da precisão das leis que os regem, que se podem conhecer e
ensinar. O elemento não tem formas que o contenham. Conteúdo sem forma.
Ou antes, tem apenas um lado: a superfície do mar e do campo, a frente do
vento, o meio sobre o qual essa face se desenha não se compõe de coisas.
Desdobra-se na sua própria dimensão: a profundidade, inconvertível em
largura ou em comprimento onde se estende a face do elemento.
129
126
TI, p. 172.
127
TI, p. 151.
128
TI, p. 52.
129
TI, p. 138.
42
Em sua imensidão de conteúdo sem forma, o elemento sem rosto tem, entretanto, uma
espessura própria. É a partir desta espessura que as coisas chegam ao eu, desde um fundo não-
possuível. A relação com o elemento não se apresenta como dominação ou subjugação, mas
sim como um modo de estar mergulhado. É pela vida interior que o homem mergulhará no
elemento, fazendo-se extraterritorialidade nele. O elemento “oferece-nos como que o avesso
da realidade, sem origem num ser, embora oferecendo-se na familiaridade da fruição
como se nos mantivéssemos nas entranhas do ser”
130
. Vem de parte nenhuma
131
, de um futuro
inquietante, de uma profundidade.
Esta inquietude que se manifesta no momento da fruição do elemento, no exagero do
instante, é recuperada pelo trabalho. A sensibilidade em sua condição de transbordamento
adquire um sentido temporal. Frente ao elemento, a interioridade, em sua sensibilidade,
apresenta-se também como fragilidade à ameaça do porvir. Aquilo que esconde a face do
elemento voltada para o eu não é algo que se sustente enquanto existência: é uma
profundidade impessoal ao extremo: “o elemento em que habito está na fronteira de uma
noite”
132
.
Abre-se a dimensão do mítico, daquilo quê, em seu murmurar anônimo, estremece o
egoísmo do eu da fruição e desestabiliza a sua segurança. É uma noite sem estrelas sob a qual
nos vemos circundados por um silêncio escuro e provocativo. Contra este céu enegrecido,
reino dos deuses profundos, o eu tem a possibilidade do trabalho e da posse.
(...) o trabalho não pode no fim das contas chamar-se violência. Aplica-se ao
que não tem rosto, à resistência do nada. Age no fenômeno. Apenas ataca a
ausência de rosto dos deuses pagãos, cujo nada agora denuncia. Prometeu
roubando o fogo do céu simboliza o trabalho industrioso na sua impiedade.
133
Em vez de violento, o trabalho é impiedoso: não ataca o brilho de um rosto, mas a
escuridão de um deus sem transcendência:
Deuses sem rosto, deuses impessoais aos quais não se fala, marcam o nada
que orla o egoísmo da fruição, no âmbito da sua familiaridade com o
elemento. Mas é assim que a fruição leva a cabo a separação. O ser separado
deve correr o risco do paganismo que atesta a sua separação e onde essa
separação se realiza, até ao momento em que a morte desses deuses o
reconduzirá ao ateísmo e à verdadeira transcendência.
134
130
TI, p. 139.
131
“O sólido da terra que me suporta, o azul do céu acima da minha cabeça, o sopro do vento, a ondulação do
mar, o brilho da luz, não se prendem a uma substância: vêm de nenhures. O fato de vir de nenhures, de ‘alguma
coisa’ que não é, de aparecer sem que nada apareça (...) delineia o futuro da sensibilidade e da fruição” (TI, p.
150).
132
TI, p. 151.
133
TI, p. 172.
134
TI, p. 151.
43
Pelo trabalho, o elemento passa a ter uma forma, passa a ser algo para mim, algo de
que posso dar conta e posso trazer para minha casa. O rosto dos deuses ganha um contorno
familiar: é a feição do meu próprio rosto – hipérbole do narcisismo. O futuro torna-se
luminoso instante. A impessoalidade e o anonimato recebem o nome do próprio eu: a face
noturna desfigura-se em espelho do Mesmo. O elemento torna-se coisa:
As coisas m uma forma, vêem-se à luz silhueta ou perfil. (...) Silhueta e
perfil, a coisa recebe a sua natureza de uma perspectiva, mantém-se relativa a
um ponto de vista – a situação da coisa constitui assim o seu ser.
135
A insegurança que delineia o futuro, que é vivida concretamente como divindade
mítica do próprio elemento como ponto de fuga sem perspectiva -, sucumbe ao domínio do
eu. Amanhece a noite dos deuses pagãos. Pela interioridade e pelo trabalho o eu separa-se
radicalmente do elemento e desacredita o seu caráter mítico. O eu passa a viver um tempo que
é só seu, fecha-se em absoluta solidão.
A solidão do eu é a marca de sua resistência à totalidade que clama pelo anonimato,
pela generalização em forma de conceito. O eu, enquanto interioridade surda à totalidade, é
um tempo que se esquece da eternidade. É um rasgo, uma abertura, uma ferida, sua verdadeira
posição “no tempo consiste em interrompê-lo, marcando-o por meio de começos”
136
. O tempo
do eu é o tempo dos começos e dos amanheceres. Em sua interioridade, o eu é resistência ao
tempo dos vencedores: “O tempo da história universal permanece como o fundo ontológico
em que as existências particulares se perdem, se contam e em que se resumem, pelo menos, as
suas essências”
137
.
À história universal o eu opõe a história do particular, do pequeno, do singular. É o
cotidiano individual fazendo frente ao grande espetáculo. A interioridade se cristaliza em
discrição na linha da sincronia temporal, emudece o murmúrio do fundo ontológico. Para o
historiador, a interioridade é um nada infinito, é o espaço do não-ser, palco da loucura. Um
esplendor desprovido de luminosidade. O nascimento e a morte do eu não pertencem à
história do ser, dão-se em plena solidão interior:
A separação indica a possibilidade para um ente de se instalar e de ter o seu
próprio destino, ou seja, de nascer e de morrer sem que o lugar desse
nascimento e dessa morte no tempo da história universal contabilize a sua
realidade.
138
135
TI, p. 149.
136
TI, p. 152.
137
TI, p. 48.
138
TI, p. 48.
44
O homem, despido da ofuscante luminosidade do ser
139
, pode assumir a vida como
sua, pode ostentar a sua temporalidade em que tudo é um durante em que se trabalha, em que
floresce a economia, o cuidado com a casa. O eu realiza completamente a ruptura com a
totalidade, é “solidão por excelência. O segredo do eu garante a discrição da totalidade.” (TI:
122). O homem vive uma história que pode manter para si, que nenhum outro poderá contar.
Ao ultrapassarem a história, os homens são chamados a responder por suas vidas, e é
justamente por isso que podem falar por si próprios e não emprestar “seus lábios a uma
palavra anônima da história”
140
.
É por sua interioridade que o homem pode buscar um nascimento e uma morte que
não se inscrevam na totalidade da história. Ao recolher-se em sua casa, instaura
uma ordem diferente do tempo histórico em que a totalidade se constitui, uma
ordem em que tudo é durante, em que se mantém sempre possível aquilo que,
historicamente, já não é possível. O nascimento de um ser separado que deve
provir do nada, o começo absoluto, e um acontecimento historicamente
absurdo. De igual modo, a atividade saída de uma vontade que, na
continuidade histórica, marca, a todo instante, a ponto de uma nova origem.
Estes paradoxos ultrapassam-se pelo psiquismo.
141
O instante do eu é sempre o momento da criação. A particular e insular história não
presta contas à maquinaria do tempo, aos grandes homens de outras épocas ou aos desígnios
dos deuses antigos.
142
Na imensidão da história universal o homem apenas se integra depois
de sua morte; vivo, erige fundamento em uma folga deixada pela vida, um adiamento: o nome
desse adiamento é interioridade. A totalização “só é levada a cabo na história – na história dos
historiógrafos – ou seja, nos sobreviventes”
143
.
Assim como Giges, evolui em uma história que não é aquela da totalidade dos seus
vizinhos. Espreita o espetáculo do mundo através de uma janela deixada semi-aberta neste
mundo. Recolhe-se em um tempo próprio, um tempo tingido pela invisibilidade e pela
discrição.
A interioridade está essencialmente ligada à primeira pessoa do eu. A
separação é radical se cada ser tiver o seu tempo, isto é, a sua
interioridade, se cada tempo não for absorvido no tempo universal. Graças à
139
“Ser, sem a espessura do ente, é a luz em que os entes se tornam inteligíveis.” (TI, p. 33).
140
TI, p. 8.
141
TI, p. 48.
142
“Uma existência dita objetiva tal como se reflete no pensamento dos outros e pela qual eu conto na
universalidade, no Estado, na história, na totalidade, não me exprime, mas antes me dissimula.” (TI, p. 194).
143
TI, p. 48.
45
dimensão da interioridade, o ser recusa-se ao conceito e resiste à
totalização.
144
O eu como que constrói um farol envolto em brumas, trabalha a história “pelas
rupturas da história em que se faz um juízo sobre ela. Quando o homem aborda
verdadeiramente Outrem, é arrancado à história”
145
. É somente quando acolhido na intimidade
e doçura da casa, vivendo em um tempo sem tempo, que o homem poderá sentir-se inquietado
pela palavra de Outrem e abrir-se para a hospitalidade.
2.3. Obra e Beleza
Como vimos acima, o homem permanência ao mundo das coisas através do
trabalho do elemento. Receoso pelo dia de amanhã, aterrorizado pela face anônima do Il y a
que lhe apresenta a morte, vê-se obrigado a erigir edificações. No final das contas, realiza
obras com o intuito de estancar o futuro, regelar o tempo na forma: “Os objetos do mundo que
para o pensamento se mantêm no vazio estendem-se para a sensibilidade ou para a vida
em um horizonte que esconde inteiramente este vazio”
146
.
Através do trabalho, portanto, o homem cria opacidades através das quais pode sentir-
se seguro, ilusoriamente protegido do futuro incerto. Substitui a alteridade da morte pelo seu
próprio rosto. Como aponta Susin, “Um mundo de obras é um mundo de espaços cultivados,
de edificações. No mundo elementar nasce este novo mundo, habitável e participante da
habitação: é o mundo onde o homem se sente em casa, seguro e com perspectivas de
futuro”
147
.
Neste sentido, é importante percebermos que a alteridade do mundo é diferente da
alteridade manifestada pelo rosto: “A alteridade total, graças à qual um ser não se relaciona à
fruição e se apresenta a partir de si, não reluz na forma das coisas pela qual elas se abrem a
nós, porque, sob a forma, as coisas se escondem”
148
.
Mas de que modo se escondem as coisas sob a forma que lhes é atribuída? Trazer
segurança ao mundo é poder ainda gozar dele, fruir, viver de..., é ser capaz de adiar o futuro
esquecendo-se da morte. A sensibilidade é um modo de estar relacionado às qualidades - frui-
144
TI, p. 50.
145
TI, p. 45.
146
TI, p. 43.
147
SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas. Porto
Alegre: EST/ Petrópolis: Vozes, 1984, p. 63.
148
TI, p. 209.
46
se das qualidades das coisas. Desta forma, assegurar o futuro seria, das obras, conservar as
‘qualidades elementares’ – os adjetivos – para poder ser ‘gozada’ e consumada”
149
.
A negação de toda coisa qualificável deixa ressurgir o impessoal que, por
detrás de toda negação, retorna intacto e indiferente ao grau da negação. O
silêncio dos espaços infinitos é assustador [effrayant]. A invasão deste há não
corresponde à qualquer representação; (...) A essência elemental do elemento,
com seu sem-rosto mítico donde vem, participa da mesma vertigem.
150
Estabelece-se uma tensão entre a substancialidade da coisa sua espessura e as suas
qualidades, impossíveis de serem objetivadas
151
. As obras humanas limitam qualitativamente
o mundo: ali uma casa de portões acinzentados, aqui a grama aparada e verde, vindo de o
aroma das flores. É um mundo que não se esgota em silêncio, um mundo do qual podemos
fruir: “Aquilo de que vivemos e fruímos não se confunde com a própria vida. Como o pão,
escuto a música, sigo o curso de minhas idéias”
152
. Estar em contato com as qualidades das
coisas é justamente “a possibilidade de esquecer o horror deste retorno interminável, deste
apeíron, (...) de abordar os objetos a partir do nada”
153
.
Tendo em mente que, para lidar com o futuro incerto, o homem trabalha o elemento
atribuindo-lhe uma forma, agora podemos reencontrar aquela citação deixada em suspenso no
início deste capítulo, sobre a capacidade da arte de atribuir uma fachada às coisas:
É a arte que empresta às coisas como que uma fachada é porque os objetos
não são somente vistos, mas são como os objetos que se exibem. (...) A noção
de fachada tirada dos edifícios nos sugere que a arquitetura é talvez a
primeira das belas artes. Mas nela constitui-se o belo cuja essência é
indiferença, frio esplendor e silêncio. Pela fachada a coisa que guarda seu
segredo expõe-se fechada em sua monumental essência e em seu mito em
que reluz como um esplendor, mas não se entrega. Ela subjuga por sua graça
como uma magia, mas não se revela.
154
O trabalho da arte seria esta sua particularidade de moldar o elemento em formas belas
que tirem as coisas de seu caráter de meras e obscuras coisas para fazê-las darem-se ao olhar:
149
TI, p. 63.
150
TI, p. 207.
151
Tensão esta que pode ser evidenciada pela ausência do autor depois de terminar a obra: “A ação não exprime.
Tem um sentido, mas conduz-nos para o agente em sua ausência. Abordar alguém a partir das suas obras é entrar
na sua interioridade, como que por arrombamento [effraction]; o outro é surpreendido na sua intimidade, onde
ele se expõe, sem dúvida, mas não se exprime, como as personagens da história. As obras significam o seu autor,
mas indiretamente, na terceira pessoa” (TI, p. 62).
Ou ainda, de La réalité et son ombre: “Interpretar Mallarmé não é trair-lo? Interpretá-lo fielmente não é suprimi-
lo? Dizer claramente aquilo que ele disse obscuramente é revelar a vaidade de seu falar obscuro” (IH, p. 108).
Ou seja, o autor, ausente da obra acabada, deixa-a às margens do Il y a. Por mais bela e acabada que seja,
perecerá à substancialidade: o bronze enferrujará, o quadro será carcomido pelos cupins o futuro não presta
contas à beleza. O destino de toda construção erigida e deixada por si própria é a ruína.
152
TI, p. 127.
153
TI, p. 208.
154
TI, p. 210.
47
os objetos se exibem, tornam-se sedutores, convocam
155
. O artista é aquele que substitui o
assombroso futuro pela forma plástica, a preocupação faz-se contemplação admirada. Em
última instância, o trabalho do artista é aquele do escultor do futuro. Toda obra de arte é,
portanto, uma suspensão do tempo.
Por mais que a crítica e os contempladores possam atribuir profundidade à obra de
arte, encontrando nela aspectos metafóricos, significações inéditas, a obra de arte enquanto tal
é, segundo Levinas, silenciosa. Reluz um esplendor frio, fecha-se em sua forma acabada, bela.
Seu silêncio, no trabalho do artista, assume a característica de superfície, a obra de arte é
superficial, é o recobrimento qualitativo da profundidade do elemento:
A superfície pode se transformar em interior: pode-se fundir o metal das
coisas para dele fazer novos objetos, utilizar-se a madeira de uma caixa para
dela fazer uma mesa, aplainando, serrando, cortando: o escondido torna-se
aberto e o aberto torna-se escondido. (...) a profundidade da coisa não pode
ter outra significação que aquela de sua matéria e a revelação da matéria é
essencialmente superficial.
156
As grandes construções humanas não estão no mundo como história, mas como
amontoados de pedras, ferros e vidros que resplandecem nas formas que lhes foram
atribuídas. Pode-se derrubar uma casa e com os tijolos construir-se um muro. A arte vira a
coisa do avesso, transformando a espessura em qualidades das quais se possa fruir. Quando o
bronze é talhado em estátua, o artista desfaz a função do bronze transfigurando-o em obra de
arte, desnuda-o:
Para uma coisa, a nudez é o excedente de seu ser sobre sua finalidade. É o
seu absurdo, sua inutilidade que aparece ela própria em relação à forma
sobre a qual ela sobressai e que ela carece. A coisa é sempre uma opacidade,
uma resistência, uma fealdade.
157
Mas o bronze não se perde, ele continua na estátua: é virado do avesso. As coisas não
se dissipam completamente na forma, elas sobressaem-se à forma: “Elas são sempre, sob
algum aspecto, como estas cidades industriais onde tudo se adapta a um objetivo de produção,
mas que, enfumaçadas, repletas de dejetos e de tristeza, existem também para elas
próprias”
158
. O para quê de algo não reduz a sua substancialidade a nada. Eis o que falávamos
sobre a tensão entre qualidade e substancialidade na obra. Aperfeiçoar a nudez das coisas
revestindo-as - é obra da beleza:
155
É interessante a aproximação possível deste ponto com aquilo que Levinas chamará de ostentação da arte. A
este respeito, cf. Cap. 4 – A arte em estado de busca: o tempo da exposição e da ostentação do ser.
156
TI, p. 210.
157
TI, p. 71.
158
TI, p. 71.
48
A beleza introduz, desde aí, uma finalidade nova uma finalidade interna
neste mundo nu. Desvelar pela ciência e pela arte é essencialmente revestir os
elementos de uma significação, ultrapassar a percepção. Desvelar uma coisa é
iluminá-la pela forma: encontrar um lugar no todo percebendo a sua função
ou sua beleza.
159
O que é belo, portanto, não necessariamente é útil
160
. Levinas insiste na crítica da arte
pela arte, a beleza por seu próprio acabamento pérfido. Como forma de assegurar-se contra o
porvir, a beleza é o adiamento da morte, a esperança de um minuto a mais. A obra de arte,
recobrindo-se em monumental beleza, coloca-se como uma tentativa de dominar o caráter
imprevisível da morte que “não se sustenta em horizonte algum. (...) Na morte, estou exposto
à violência absoluta, ao assassinato na noite”
161
. Mesmo que por vias diferentes, assim como
em La réalité et son ombre, a beleza está intimamente ligada à morte.
A beleza opera substituindo o mistério do futuro o mistério da alteridade por uma
imagem. Neste sentido, “inverte a beleza do rosto feminino”
162
, uma vez que é o rosto
feminino que traz em si o anúncio do porvir, como uma forma de alteridade. A beleza
feminina é profunda e misteriosa, esconde-se nos recônditos do dia seguinte, dia que pode ser
aquele da morte: a beleza feminina sustenta a profundidade da aurora do amanhã.
Em um tom semelhante àquele de La réalité et son ombre, Levinas diz que toda obra
de arte “é quadro e estátua, imobilizados no instante ou no retorno periódico. A poesia
substitui um ritmo à vida feminina. A beleza torna-se uma forma que recobre a matéria
indiferente e que não encerra mistério”
163
. É evidente que a preocupação de Levinas consiste
em que a arte como doação de fachada às coisas não substitua a relação com outrem, o
acolhimento do rosto, a alteridade absoluta:
O rosto (...) não resplandece como uma forma revestindo um conteúdo, como
uma imagem, mas como a nudez do princípio, por detrás do qual não há nada.
O rosto morto torna-se forma, máscara mortuária, se mostra em lugar de
deixar ver, mas precisamente assim já não aparece mais como rosto.
164
159
TI, p. 72.
160
Levinas comenta que: “As coisas somente estão nuas quando, por metáfora, elas estão sem ornamentos: os
muros nus, as paisagens nuas. Elas não têm necessidade de ornamento quando se concentram no cumprimento de
sua função para a qual elas são feitas: quando elas se subordinam de uma maneira tão radical à sua própria
finalidade que desaparecem. Desaparecem sob sua forma.” (TI, p. 71). Podemos pensar aqui no mictório que
Marcel Duchamp colocou para dentro das paredes de um museu, expondo-o: neste momento o mictório perde a
sua função usual e torna-se material de exposição, de ornamentação.
161
TI, p. 259.
162
TI, p. 295.
163
TI, p. 295.
164
TI, p. 293.
49
A formalização pela arte seria, deste modo, uma maneira de assasinar o rosto toda
obra de arte, portanto, torna-se uma máscara mortuária, um sudário, encerra o mistério da
alteridade na opacidade da imagem. Revestir o rosto de imagens é cessar a sua epifania, sua
revelação. em La réalité et son ombre anunciava-se esta preocupação: “É impertinente
denunciar a hipertrofia da arte em nossa época, na qual, para quase todos, se identifica com a
vida espitirual”
165
? Ou seja, aquilo que Levinas busca é mostrar que a arte não é, e nem
poderá ser, um substituto da religião, da ética. O artista pode ser ético por ser humano, mas
não por ser artista.
2.4. Religião e Rosto
Em La réalité et son ombre, Levinas falava que a realidade se dá poeticamente frente a
nós, como conjuntos fechados em si, como um ritmo de características encantadoras. Agora,
com o aporte do que trabalhamos acima a respeito da sensibilidade, podemos dizer que a
escansão desta realidade que se apresenta em um ritmo remete o homem ao estado paradisíaco
da fruição, do viver de... Por mais que seja um primeiro anúncio de evasão, uma vez que
movimento desinteressado, ainda a fruição não é o relação com outrem, mesmo que seja
condição necessária.
À atividade poética (...) opõe-se a linguagem, que rompe a todo instante o
encanto do ritmo e impede que a iniciativa torne-se uma função. O discurso é
ruptura e começo, ruptura do ritmo que arrebata e enleva os interlocutores
prosa.
166
Aqui Levinas faz uma distinção entre poesia e prosa. Enquanto a poesia estaria do
lado do feitiço, do encantamento, da apreensão no reino das imagens e das qualidades, a prosa
seria esta possibilidade de sair de si – de transcendência – em direção ao Outro, movimento de
abertura a outrem – Desejo
167
. “Reservamos à relação entre o ser aqui embaixo e o ser
transcendente, que não desemboca em nenhuma comunidade de conceito nem em nenhuma
165
IH, 125.
166
TI, p. 222.
167
Peter Schmidgen elucida este ponto: “Poesia e prosa são identificadas, respectivamente, por Levinas, com
trocas lingüísticas rítmicas e rompidas [ruptured]. Entretanto, a linguagem da poesia é também para Levinas a
linguagem tanto do teatro quanto da liturgia. Ser engolfado no poético ou no rítmico é interpretar um papel [to
play a role]. Isto é mais adiante relacionado com os modos pelos quais, como atores (...) dentro do mundo social
funcionalizado, nós desempenhamos nossos papéis ordenados. Desempenhar tal papel social é simplesmente
fazer o que qualquer outro faria em nossa posição. Este é o mundo social funcionalizado como um palco para o
qual nos preparamos toda manhã enquanto nos barbeamos ou nos maquiamos.” (SCHMIEDGEN, Peter. Art and
Idolatry: Aesthetics and Alterity in Levinas…, op. cit., p. 155). O autor aponta aqui para um aspecto muito
interessante, o do ritmo quotidiano, da banalidade do dia-a-dia, ritmo em que nos perdemos para podermos
seguir a vida, o “automatismo particular da caminhada ou da dança ao som da música” (IH, p. 112).
50
totalidade relação sem relação o termo de religião”
168
. A religião, portanto, é esta relação
imediata com outrem, relação entre interlocutores que de forma alguma entram em correlação.
É a possibilidade de escuta da palavra dita por outrem sob a forma de ensino, palavra que é
uma possibilidade de vencer a anarquia dos fatos e o anonimato de um mundo marcado pela
ausência de sentido”
169
.
Encontramos agora o tema da linguagem, tão importante para compreendermos como
Levinas explica a relação metafísica. O autor fala que o discurso tem esta propriedade de
quebrar o encanto da atividade poética, de fazer ruptura: mas o que entender por discurso?
Um ponto importante para responder a esta pergunta é o seguinte: enquanto com a
alteridade do mundo estamos em uma relação de desvelamento e o artista é aquele que
desvela através da beleza, revestindo as coisas através de formas belas -, não é esta operação
que sustenta a relação com outrem: não somos nós que nos direcionamos à alteridade
absoluta, é o rosto de outrem que se vira para nós e rompe nosso mundo
170
:
A maneira pela qual se apresenta o Outro, ultrapassando a idéia de Outro em
mim, nós chamamos, de fato, rosto [visage]. Esta maneira não consiste em
figurar como tema sob meu olhar, a se desdobrar como um conjunto de
qualidade formando uma imagem. O rosto de Outrem destrói a todo momento
e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa, a idéia à minha medida e à
medida de seu ideatum a idéia adequada. Ele não se manifesta pelas suas
qualidades, mas kath auto. Ele se exprime.
171
Outrem, portanto, exprime-se por si próprio, não em qualidade das quais possamos
fruir, mas kath auto, desfazendo toda e qualquer plasticidade imagética que dele é feita. Por
isso o temor de Levinas com relação à suspensão temporal que a obra de arte realiza desta
forma, o artista coagula em sua obra a impossibilidade de abertura ética.
A relação com outrem não se através de imagens ou de conceitos, ela é imediata,
face a face, sustenta-se no plano da invisibilidade, e não da opacidade: “A invisibilidade não
indica uma ausência de relações; implica relações com o que não é dado e do que não temos
idéia”
172
.
168
TI, p. 78.
169
FABRI, Marcelo. Linguagem e desmistificação em Levinas. Síntese. 28/91 (2001), pp. 245-266, p. 246.
170
“A noção de ritmo pode ser aprofundada, entretanto, relacionando-a com a distinção temporal entre diacronia
e sincronia encontrada tanto em Da existência ao existente quanto em Totalidade de Infinito. O mundo visual é
essencialmente um mundo sincrônico. Está estruturado por relações de repetição, harmonização e confirmação e
está no sentido mais geral sincronizado. Mesmo a alteridade encontrada via arte abstrata pode ser ignorada se
nós escolhermos. o força a si mesma sobre nós se não desejarmos isto. Aquilo que quebra os ritmos da
repetição e confirmação e não pode ser ignorado (o outro questionador) é diacrônico. (SCHMIEDGEN, Peter.
Art and Idolatry: Aesthetics and Alterity in Levinas…, op. cit., p. 155, p. 156).
171
TI, p. 43.
172
TI, p. 22.
51
A experiência absoluta o é desvelamento, mas revelação: coincidência do
expresso e daquele que exprime, manifestação, por isso mesmo, privilegiada
de Outrem, manifestação de um rosto para além da forma. A forma que trai
incessantemente sua manifestação fixando-se em forma plástica, uma vez
que adequada ao Mesmo, aliena a exterioridade do Outro. O rosto é uma
presença vivaz, é expressão. A vida da expressão consiste em desfazer a
forma onde o ente, expondo-se como tema, se dissimula por isso mesmo. O
rosto fala. A manifestação do rosto é já discurso.
173
Discurso, portanto, é esta manifestação do rosto de outrem, é tomar outrem não como
algo a ser desvelado, mas como o próprio interlocutor: a chegada de outrem impõe que
falemos do mundo, deste modo dissolvendo as formas e apontando para um mais além
174
.
Segundo Marcelo Fabri, em Totalité et Infini a linguagem
é uma procura, uma busca. Busca de quê? De algo de que não necessitamos,
de algo que não nos faz falta, mas que, curiosamente, desejamos. A procura
que se faz mediante a linguagem não visa o que se perder, mas àquilo que é
exterior, separado de nós, estrangeiro. A linguagem visa Outrem. Este visão
não é um atingir ou tocar, mas uma relação original com o exterior. Falar é,
assim, apresentar-se significando. A relação original com o exterior é a
própria produção de sentido.
175
A linguagem, enquanto discursoenquanto prosa -, é o que sustenta esta relação com
o Outro, uma vez que é a presença vivaz da alteridade que permite toda e qualquer
significação: “A tarefa da linguagem (...) consiste em entrar em relação com uma nudez
liberta de toda forma, mas que tem um sentido por si mesma, kath auto, significativa antes
de projetarmos luz sobre ela (...)”
176
. Tal nudez é o rosto do Outro, “um falar que desenfeitiça,
que desencanta o mundo sem começo dos fatos”
177
.
173
TI, p. 61.
174
Segundo Jacques Derrida, “o rosto não está, pois, no mundo, uma vez que abre e excede a totalidade”
(DERRIDA, Jacques. Violence et métaphysique…, op. cit., p. 154). O rosto é transbordamento, é inconcebível
dentro do mundo.
175
FABRI, Marcelo. Linguagem e desmistificação em Levinas..., op. cit., p. 250.
176
TI, p. 73.
177
FABRI, Marcelo. Linguagem e desmistificação em Levinas..., op. cit., p. 253.
52
Capítulo 3
A ausência como estilo: a obra destinada ao futuro além do horizonte
Somente uma maneira de pensar direcionada para a mudança do
mundo, que municia com informação este desejo de mudança, diz
respeito a um futuro que não é feito de constrangimento (futuro
como o espaço de surgimento inconcluso diante de nós) e a um
passado que não é feito de encantamento.
(Ernst Bloch)
3.1. Considerações Iniciais
No que se refere à questão estética, pouca atenção tem sido dada aos textos publicados
por Levinas na década de sessenta, logo após Totalité et Infini (de 1961). Por vezes tomados
como meras recolocações dos problemas apresentados na primeira grande obra do autor, este
escritos permanecem adormecidos em sua potência e nuances particulares.
Mas como desconsiderar as obras de um período em que Levinas afirma que a
“totalidade do ser, em que o ser resplandece como significação, não é uma entidade fixada
para a eternidade, mas requer o arranjo e a ação de juntar, num todo, requer o ato cultural do
homem”
178
? Ou ainda, de modo mais direto: “O ser em seu conjunto a significação reluz
nas obras dos poetas e dos artistas”
179
.
Acreditamos que uma reconsideração de alguns artigos desta época como Le trace
de l’autre (1963), Énigme et phénomène (1965), La signification et le sens (1964) e Langage
et Proximité (1967) possa permitir que o leitor perceba as sutilezas dos caminhos
percorridos por Levinas, bem como mostrar uma via pela qual se pode entender a passagem
da interpretação da arte em Totalité et Infini para aquela de Autrement qu’être (1974).
3.2. Ausência do artista
178
HH, p. 32.
179
HH, p. 32.
53
Em La signification et le sens (1964), Levinas trata, em um primeiro momento,
daquilo que podemos chamar de limites da percepção. Afirma que uma distância entre os
dados sensíveis e aquilo que deles é apreendido, como “se a experiência oferecesse
primeiramente conteúdos (...) e como se, em seguida, todos estes conteúdos se animassem de
metáforas, recebessem uma sobrecarga que os levasse para além do dado”
180
.
Este mecanismo da metáfora, por sua vez, poderia tanto indicar uma excelência de
percepção no sentido de se perceber mais do que os dados apresentados -, quanto uma
carência de percepção, como se o ato de perceber não desse conta da completude da esfera do
sensível. A este restrito quadro perceptível, Levinas o nome de “opacidade retangular e
sólida”
181
, opacidade que “só se tornaria livre ao levar meu pensamento em direção a outros
dados, ainda ou já ausentes; em direção ao autor que escreve, aos leitores que lêem, às
estantes que suportam, etc”
182
.
uma diferença importante entre o autor da obra o “autor que escreve”, neste caso
– estar ausente ou estar ainda ausente. Na primeira situação, acontece como uma irredutível
e irreversível ausência do criador ele é relegado a um passado inacessível à capacidade
rememorativa; no segundo entendimento resta uma promessa de aparecimento do autor da
obra, ele ainda não está presente, mas é passível de rememoração e re-atualização: permanece
em um passado acessível pela lembrança.
A questão que gostaríamos de colocar é a seguinte: é o autor – o artista, dada a nuance
deste nosso estudo – passível de ser recuperado através de sua obra? Ou ainda: como se pode
se isto for possível - dialogar com um artista através de suas obras? Ora, é possível dizer
que “termos [que] anunciam-se sem se darem na opacidade retangular e sólida que se
impõe à minha vista e às minhas mãos (...) conteúdos ausentes [que] conferem significação ao
dado”
183
. Outra questão, portanto: o que resta do criador, se algo resta, na obra criada? O que
de Monet em Impression: Soleil Levant ou, mais atualmente, o que resta de Duchamp em
seus ready-mades?
Levinas é sempre muito rigoroso com relação a quanto é permitido à arte a expressão
de algo do humano basta que lembremos sua incisiva crítica antiestética presente em La
réalité et son ombre e em Totalité et Infini, abordada nos capítulos anteriores. Portanto, é com
muito cuidado que se deve propor as questões acima, de forma a nunca perder de vista que,
180
HH, p. 21.
181
HH, p. 21.
182
HH, p. 21 (grifos nossos)
183
HH, p. 21.
54
para Levinas, a arte nunca será uma expressão do humano como é o encontro face-a-face: a
religião é o verdadeiro locus do ético.
Mas não são diferentes o talhar artístico do bronze e o riscar ao acaso de uma pedra na
outra? Quando uma paisagem é bela como a água de uma cachoeira que se desfaz em
espuma em sua queda -, precipitamo-nos a dizê-la uma obra de arte, deste modo
antropomorfizando a natureza. Não poderíamos, assim, supor que a arte guarda algo de
humano, mesmo que seja de viés, sem a retidão ética? em Totalité et Infini Levinas fala do
autor presente na obra enquanto ausência
184
. A respeito deste ponto, La signification et le sens
é um texto precioso, uma vez que relaciona a ausência ao tempo:
Mas a metáfora o remeter à ausência pode ser considerada como uma
excelência que releva de uma ordem totalmente diferente da receptividade
pura. A ausência para a qual a metáfora conduz não seria um outro dado, mas
ainda futuro ou passado.
185
Levinas define a metáfora, portanto, como uma remissão à ausência. Talvez possamos
admitir, deste modo, que o artista está na obra enquanto elemento metaforizado a obra de
arte metaforiza o artista. Mas a ausência do autor não é espacial, trata-se de um ausentar-se no
tempo, a ausência é lida no registro da temporalidade. A obra de arte seria, portanto e aqui
um dos temores de Levinas uma metaforização do tempo, o estancamento de sua passagem
viva: natureza morta. Uma estátua se coloca como suspensão temporal em um mundo do qual
uma historicidade é possível e, desta forma, adquire significação, fazendo perder o que de
inefável na alteridade:
(...) os poetas e os filósofos forçam, por um momento, a sua [do ser enquanto
alteridade] essência indizível - pois é ainda em termos de luz e de
obscuridade, de desvelamento e de velamento, de verdade e de não-verdade -
isto é, na prioridade do futuro - que o Ser do ente é abordado.
186
O dado não seria, desta maneira, acessível em sua pureza, em sua absurda
superficialidade: “A significação não consolaria uma percepção decepcionada, mas
tornaria a percepção possível. A receptividade pura, como um puro sensível sem
significação, não seria senão um mito ou uma abstração”
187
. Quando estamos frente a uma
tela pintada, supomos aquilo que poderíamos chamar de artificialidade; em outros termos,
184
Cf. cap. anterior.
185
HH, p. 23.
186
DEHH, p. 188.
187
HH, p. 23.
55
supomos que alguém fez aquilo, alguém implicado em seu tempo o vanguardista, mesmo
que revolucionário, ainda assim refuta o seu próprio tempo:
Dar-se à consciência, cintilar para ela, pediria que o dado, previamente, se
colocasse num horizonte aclarado, à semelhança da palavra que recebe o dom
de ser entendida, a partir de um contexto ao qual se refere. A significação
seria a própria iluminação deste horizonte. Mas este horizonte não resulta de
uma adição de dados ausentes, pois cada dado teria necessidade de um
horizonte para definir-se e dar-se. É esta noção de horizonte ou de mundo,
concebida segundo o modelo de um contexto e, finalmente, segundo o
modelo de uma linguagem e de uma cultura com tudo o que de aventura e
de “já feito” históricos comportam que é o lugar em que,
conseqüentemente, se situa a significação.
188
Não há, por esta via, arte desinteressada (no sentido levinasiano): toda obra só é
inteligível dentro de seu contexto – ou na re-atualização deste -, é um feito realizado dentro de
um mundo, de um horizonte que aclara o puro dado sensível através da linguagem. O artista
testemunha em sua obra um lugar no tempo desde onde fala, pois “a linguagem refere-se à
posição daquele que escuta e daquele que fala, quer dizer, à contingência de sua história”
189
.
Mas haveria algo de reducionista se a obra fosse simplesmente como que um espelho
da sua época, uma reprodução do Zeitgeist em que está inserida. Uma ponderação para guiar
nosso argumento: talvez a obra de arte não seja tão somente uma cópia de uma época, mas
remeta à posição singular que o seu autor ocupou no seu contexto, pois, como aponta
Armengaud, a significação “está ligada a uma atividade criadora, aquela do gesto e da
linguagem, aquela do sujeito encarnado e falante”
190
.
As obras de Julio Cortázar guardam, certamente, alguns traços aproximativos daquelas
de Gabriel García Márquez, que lhes são contemporâneas, mas não podem confundir-se:
Cortázar talvez não estivesse tão afetado pelas guerras civis latino-americanas a ponto de
escrever O amor nos tempos do cólera.
Portanto, mesmo que denunciando a particularidade de cada autor, toda obra tem
significação dentro do mundo, não é ela criadora de um mundo
191
, os “objetos tornar-se-
iam significantes a partir da linguagem e não a linguagem a partir dos objetos dados ao
pensamento e que as palavras designariam, na função de simples sinais”
192
. Então, de modo
diverso àquele de La réalité et son ombre, tratamos agora da obra de arte dentro do tempo e
188
HH, p. 23.
189
HH, p. 24.
190
ARMENGAUD, Françoise. Ethique et esthétique: De l’ombre à l’oblitération. In: CHALIER, Catherine. &
ABENSOUR, Miguel. (org.). Emmanuel Lévinas, Cahier de l’Herne. Paris: L’Herne, 1991, pp. 499-508, p. 505.
191
Para um contraste e um contraponto interessantes, cf. HEIDEGGER, Martin. Arte y Poesía. México: FCE,
2006.
192
HH, p. 26.
56
da linguagem, há uma “passagem da noção de sombra àquela de luz e da noção de desperdício
àquela de recapitulação”
193
.
Quando entendemos a essência da linguagem como “fazer luzir, para além do dado, o
ser no seu conjunto”
194
, não estamos mais falando da obra de arte como opacidade, como
suspensão no tempo do não-ser e da não-verdade, como apresentado em 1948. O processo de
compreensão do mundo, de sincronização dos dados – a totalização da totalidade
não se assemelharia a uma operação matemática. Seria uma reunião ou um
arranjo criador e imprevisível muito semelhante, por sua novidade e seus
atributos em relação à história, à intuição bergsoniana. É por esta referência
da totalidade clareadora ao gesto criador da subjetividade que se pode
caracterizar a originalidade da nova noção da significação irredutível a
integração de conteúdos intuitivamente dados, irredutíveis, também, à
totalidade hegeliana que se constitui objetivamente.
195
Levinas aponta aqui para algo muito interessante: a significação do mundo como um
gesto criador marcado pela subjetividade, pela singularidade da visão de cada observador o
mundo de cada um é um mundo original: “o olho que vê está essencialmente num corpo que é
também mão e órgão de fonação, atividade criadora pelo gesto e pela linguagem”
196
.
Percebemos aqui novamente a idéia de que a linguagem, enquanto possibilidade de
significação, denota uma posição desde onde se fala: Por si, o olhar seria relativo a uma
posição. A visão, por essência, estaria ligada ao corpo, dependeria do olho”
197
. O olho o
seria “o instrumento mais ou menos aperfeiçoado pelo qual (...) a operação ideal da visão
alcançaria seu objetivo, captando, sem sombras nem deformações, o reflexo do ser”
198
. A
visão é encarnada
199
, habita um corpo sensível ao mundo, “é o sujeito encarnado que,
reunindo o ser, vai levantar o véu. O espectador é ator. A visão não se reduz ao acolhimento
do espetáculo; simultaneamente, ela opera no seio do espetáculo que acolhe”
200
.
Toda visão, toda plastificação do mundo em um contexto, pode ser entendida, deste
modo, como um gesto criador, como uma abertura à alteridade (do mundo, não
necessariamente ética - ver, não escutar), ao imprevisível:
A reunião do ser, que clareia os objetos e os torna significantes, não é um
amontoar de objetos qualquer. Equivale à produção destes seres não naturais
de um tipo novo que são os objetos culturais quadros, poemas, melodias;
193
ARMENGAUD, Françoise. Ethique et esthétique: De l’ombre à l’oblitération… op. cit., p. 505.
194
HH, p. 27.
195
HH, p. 27.
196
HH, p. 27.
197
HH, p. 27.
198
HH, p. 27.
199
A este respeito, cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. L’•il et lEsprit. Paris : Édition Gallimard, 2006.
200
HH, p. 28.
57
equivale também ao efeito de todo gesto lingüístico ou manual da atividade
mais banal, criador através da evocação de criações culturais antigas. Estes
“objetos” culturais reúnem em totalidades a dispersão dos seres ou seu
amontoamento.
201
É importante que sejamos fiéis ao texto: Levinas não afirma que a produção de
significação seja igual à produção de objetos culturais – o que é dito é que ambos os processos
são equivalentes. Observar uma paisagem ordenando em um contexto os edifícios frios, as
árvores em outono e as ruas acinzentadas é equivalente a deitar sobre a tela em branco a tinta
avermelhada, a alaranjada e a preta no intuito de perfazer uma aurora. Podemos aqui perceber
alguma relação com a idéia de poesia sobre a qual escrevemos nos dois capítulos anteriores (e
à qual voltaremos no próximo), mas agora o olho encarnado não é mais seduzido pela não-
verdade, o rosto de medusa não é visto diretamente, mas em seus reflexos.
A função do objeto, obra ou gesto cultural é, portanto, reunir “em um conjunto, ou
exprimir, ou ainda tornar a significação possível. O sujeito aventura-se pela palavra efetiva ou
pelo gesto manual na espessura da língua e do mundo cultural preexistente (...)
202
. Enquanto
em La réalite et son ombre e em Totalité et Infini a obra de arte criava opacidades, agora ela é
um dos modos de, como possibilitadora da significação, criar espessura. O contexto é uma
forma de espessura do mundo, “espessura esta à qual a palavra e o gesto, enquanto
encarnados, desde pertencem, e que somente desta maneira sabem movê-la, reordená-la e
revelá-la ao ‘foro interno’ do pensamento”
203
.
Neste sentido, é relevante que seja feita referência à importância que assume o corpo,
uma vez que, segundo Levinas, o “corpo é o fato de que o pensamento mergulha no mundo
que pensa e que, por conseqüência, exprime este mundo ao mesmo tempo que o pensa. O
gesto corporal não é descarga nervosa, mas celebração do mundo, poesia”
204
. Ao transformar
o corpo em um fato, Levinas atribui-lhe uma faceta temporal que, no contato com a realidade,
celebra o mundo – faz poesia. Trata-se, então, de um corpo poético:
O corpo é um sensor sentido eis aí, segundo Merleau-Ponty, sua grande
maravilha. Como sentido, es ainda, contudo do lado de cá, do lado do
sujeito; mas como sensor, está do lado de lá, do lado dos objetos;
pensamento que não é mais paralítico, é movimento que não é mais cego,
mas criador de objetos culturais. Ele une a subjetividade do perceber
(intencionalidade visando ao objeto) e a objetividade do exprimir (operação
no mundo percebido que cria seres culturais linguagem, poema, quadro,
sinfonia, dança – clareando horizontes.
205
201
HH, p. 44.
202
HH, p. 29.
203
HH, p. 29.
204
HH, p. 30.
205
HH, p. 30.
58
Toda obra de arte, deste modo, começa no corpo, é um dispêndio corporal o artista
que, enlouquecido, pinta com o próprio sangue é vítima de redundância. O corpo é aquele fato
que permite a celebração do ser: “É visível, pois, em toda esta concepção, que a expressão
define a cultura, que a cultura é arte, e que a arte ou a celebração do ser constitui a essência
original da encarnação”
206
. A criação artística, ontológica por excelência, une-se à cultura
para “tornar possível a compreensão do ser”
207
, é uma “feliz errância do homem que se põe a
fazer o belo”
208
. A linguagem é poética, é criadora
209
.
3.3. Arte e Obra
O gesto poético, então, é a possibilidade de um sujeito de relacionar-se com o ser, de
celebrá-lo através de sua contemplação participativa. No que se refere à relação com a
alteridade ética, entretanto, Levinas é direto ao afirmar que “no jogo infindável da arte, o ser
exime-se de sua alteridade”
210
. Criar poeticamente um mundo, abrir significações pela cultura,
é uma forma de “recusa de engajamento no Outro”
211
. Levinas coloca da seguinte forma suas
inquietações:
Mas será preciso renunciar ao saber e às significações para reencontrar o
sentido? Será preciso uma orientação cega para que as significações culturais
tomem um sentido único e o ser reencontre uma unidade de sentido? Mas,
uma orientação cega não representará a ordem instintiva mais que a humana,
ordem aquela em que a pessoa trai sua vocação de pessoa, absorvendo-se na
lei que a situa e orienta? Não haverá possibilidade de encontrar no ser uma
orientação – um sentido – que reúna univocidade e liberdade?
212
A pergunta de fundo de Levinas parece ser a seguinte: na consumação de um sentido
único, não perderia o sujeito a sua unicidade, dissolvendo-se em uma espécie de lei,
206
HH, p. 30.
207
HH, p. 31.
208
HH, p. 31.
209
também, em La signification et le sens, uma posição de Levinas a respeito do conceito de trabalho, tão
intensamente estudado em Totalité et Infini: “Admiravelmente retas e impacientes na sua visada, as necessidades
não se concedem múltiplas possibilidades de significação senão para escolher a via única da satisfação. O
homem, portanto, confere um sentido único ao ser, não ao celebrá-lo, mas ao trabalhá-lo. Na cultura técnica e
científica, o equívoco do ser, como o equívoco da significação, seria superado. Conseqüentemente, em vez de
comprazer-se no jogo das significações culturais, seria mister, na preocupação pela verdade, subtrair a palavra à
metáfora, criando uma terminologia científica ou algorítmica; seria mister inserir o real, cintilante de mil luzes
para a percepção, na perspectiva das necessidades humanas e da ação que o Real exerce ou sofre.” (HH, p. 36).
210
HH, p. 43.
211
HH, p. 43.
212
HH, p. 44.
59
subtraindo-se? Para responder às suas indagações, Levinas afirma que, em primeiro lugar, é
preciso considerar de que tratamos quando falamos de orientação:
Esta não pode ser posta senão como um movimento que vai para fora do
idêntico, para um Outro que é absolutamente outro. Começa num idêntico,
num Mesmo, num Eu (Moi) ela não é um “sentido na história” que domina
o Eu (Moi), visto que a orientação irresistível da história torna sem sentido o
fato mesmo do movimento, o Outro estando desde já inscrito no Mesmo, o
fim do começo. Uma orientação que vai livremente do Mesmo ao Outro é
Obra.
213
Portanto, se o sentido único a que se refere Levinas estivesse inscrito no mundo, não
haveria lugar para a singularidade. Mas não é isso que escreve o autor. A orientação vai em
direção ao absolutamente outro, para fora do mundo é transcendência: a Obra pensada
radicalmente é um movimento do Mesmo que vai em direção ao Outro e que jamais retorna
ao Mesmo
214
. A Obra é uma generosidade absurda, um dar sem esperança de retorno
215
.
Dentro do contexto deste trabalho, cabe a pergunta: a obra de arte pode ser entendida
como Obra no sentido que Levinas atribui a esta palavra? Mesmo que ao final das contas esta
talvez seja uma pergunta sem resposta unívoca, resta na tensão que se sobressai uma certeza:
o artista, antes relegado à solidão e ao silêncio, ao mutismo das formas acabadas, é retirado de
sua clausura e trazido ao palco da cultura, é convidado a participar de seu tempo, a ser
contemporâneo em suas realizações. Contemporaneidade não do triunfo de suas obras o dia
em que será reconhecido e aclamado mas de uma sociedade orientada na direção de um
futuro em construção, um porvir.
O futuro, em favor do qual tal ação age, deve, de imediato, ser posto como
indiferente à minha morte. A Obra, distinta tanto do jogo como de suas
suputações, é o ser-para-além-da-minha-morte. A paciência não consiste,
para o Agente, em enganar sua generosidade, dando a si o tempo de uma
imortalidade pessoal. Renunciar a ser o contemporâneo do triunfo de sua obra
é entrever este triunfo num tempo sem mim (moi), é visar este mundo sem
mim (moi), é visar um tempo para além do horizonte do meu tempo:
escatologia sem esperança para si ou libertação em relação ao meu tempo.
(HH: 45)
A vida do autor não está na obra de arte – o artista, portanto, não é ingênuo a ponto de
acreditar em sua imortalidade. Há uma renúncia, uma entrega, em toda produção artística: um
dispêndio de algo para um futuro sobre o qual nada se sabe. Aquele porvir que em Totalité et
Infini era tomado como excluído e domesticado pela arte, agora é a própria orientação do
213
HH, p. 44.
214
HH, p. 44.
215
É interessante comparar esta noção de generosidade com aquelas de exposição, passividade e Dizer,
abordadas de modo aprofundado no próximo capítulo.
60
fazer do artista: guarda ainda algo de seu aspecto de alteridade e mistério. A tensão entre
estética e ética se faz muito presente neste ponto: pode a obra de arte ser liturgia “exercício
de um ofício não gratuito, mas que requer da parte de quem o exerce uma oferta a fundo
perdido”
216
?
Quando produz uma estátua, por exemplo, o artista não tem suposto um
interlocutor? Diz-se comumente que o artista expressa algo em suas obras, mas não se explica
de que se trata esta expressão
217
. A este respeito, Levinas pode nos auxiliar:
Não se terá esquecido (...) a direção para Outrem, que não é somente o
colaborador e o vizinho de nossa obra cultural de expressão ou o cliente de
nossa produção artística, mas o interlocutor: aquele para quem a expressão
exprime, para quem a celebração celebra, e que é, ao mesmo tempo, termo de
uma orientação e significação primeira? (...) a expressão, antes de ser
celebração do ser, é uma relação com aquele para quem eu exprimo a
expressão e cuja presença já é requerida para que meu gesto cultural de
expressão se produza.
218
Outrem é o interlocutor para quem apresentamos o nosso mundo, mas não um
interlocutor com o qual a relação “seria ainda um saber”
219
: irredutível à totalidade, outrem é
aquele que convoca as significações. É “primordialmente sentido, pois ele o confere à própria
expressão, e é por ele somente que um fenômeno como o da significação se introduz, de per
si, no ser”
220
.
Outrem é aquele que pode convidar novamente o poeta a fazer parte da polis, suspende
seu auto-exílio. Desta forma, enquanto o mundo é passível de formalização e da operação do
gesto cultural, o rosto de Outrem “é um despojamento sem nenhum ornamento cultural (...),
um desprendimento de sua forma no seio da produção da forma”
221
.
Sua manifestação é o primeiro discurso, abstração ad absurdo, irredutível visitação
olhar que sustenta todas as significações. Convocado a fazer novamente parte da sociedade, o
poeta tem Outrem como interlocutor: a obra agora é celebração, tem um endereçamento, é
dada à contemplação. “A epifania do absolutamente outro é o rosto em que o Outro me
216
HH, p. 46.
217
Com o intuito de evidenciarmos como estes textos da década de sessenta podem ser entendidos como uma
passagem a Autrement qu’être, vale a pena citarmos o seguinte trecho de Énigme et Phénomène, de 1965: “A
expressão o dizer não vem juntar-se às significações, ‘visíveis’ na claridade do fenômeno, para as modificar,
para misturá-las e para introduzir nelas enigmas ‘poéticos’, ‘literários’, ‘verbais’, as significações ditas dão lugar
ao dizer que as ‘perturba’, como escritos à espera de interpretação. Mas está a anterioridade irreversível
principal do Verbo com relação ao Ser, o atraso não-recuperável do Dito sobre o Dizer” (DEHH, p. 212).
Convidamos o leitor a examinar o próximo capítulo tendo em mente estes conceitos de Dizer, de Dito e
expressão.
218
HH, p. 49.
219
DEHH, 224.
220
HH, p. 50.
221
HH, p. 51.
61
interpela e me significa uma ordem, por sua nudez, por sua indigência. Sua presença é uma
intimação para responder”
222
.
Ao rosto de outrem, o artista apresenta um mundo trabalho como obra de arte. Talvez
aqui esteja um ponto sutil, mas muito importante. Pela liturgia, o Eu que é convocado expõe-
se como resposta, apresenta a si mesmo como Obra e exprime a sua própria expressão. O
artista, por sua vez, ao chamamento de Outrem, apresenta uma celebração do mundo, um ser
evidenciado na obra de arte. Permanece a pergunta: é este um movimento ético? Acreditamos
que a resposta de Levinas seria que “antes da Cultura e da Estética, a significação situa-se na
Ética, pressuposto de toda Cultura e de toda significação”
223
.
Nem as coisas, nem o mundo percebido, nem o mundo científico possibilitam
alcançar as normas do absoluto. Como obras culturais, são banhadas pela
história. Mas as normas da moral não são embarcadas na história e a na
cultura. Nem sequer são ilhas que daí emergem, pois elas tornam possível
toda significação, inclusive cultural, e permitem julgar as Culturas.
224
A arte, portanto, adentra o mundo da história e da cultura, presta-se ao julgamento da
moral. Se em La réalite et son ombre as obras de arte estavam fadadas ao silêncio, não
pertenciam ao mundo, em La signification et le sens elas estão no mundo, celebram o ser.
Pode-se falar da história da arte, dos movimentos e contra-movimentos culturais está no
tempo, é acessível pela memória. A arte agora é uma questão social e envolve a comunidade e
a socialidade – deixa marcas no mundo, coloca em jogo a idéia de proximidade:
A proximidade das coisas é poesia. (...) Sobre todas as coisas, a partir do
rosto e da pele humanos, se estende a ternura [ternura]; o conhecimento
retorna à proximidade. (...) A poesia do mundo não é separável da
proximidade por excelência ou da proximidade do próximo por excelência.
225
A ética é o embasamento primeiro para toda possibilidade de criação artística, de
poesia. A arte, portanto, é um movimento cujo horizonte é o rosto do outro homem, o
próximo, aquele em cuja face reluz o brilho do infinito. É a possibilidade de uma escansão
não-violenta do mundo por mais que ainda não religião, também não se faz ciência e
conhecimento-, é ternura e carícia sobre a face das coisas. Todo artista é um poeta na medida
em que ordena o ritmo do mundo em formas plásticas, celebrando o ser em um contexto.
3.4. Vestígio e Estilo
222
HH, p. 53.
223
HH, p 59.
224
HH, p. 59.
225
DEHH, p. 228.
62
Como dissemos acima, o ser reluz nas obras artísticas. Mas, como afirma Levinas,
“reluz de modo diverso nos artistas diversos da mesma cultura e se exprime diversamente nas
culturas diversas”
226
. Talvez seja por esta via que possamos abordar a idéia de estilo. Ora,
Levinas é enfático em afirmar que as interrogações éticas não se resolvem em códigos de
conduta ou cartilhas morais – cada um que é convocado por Outrem, que é eleito, responde de
uma forma, desde a sua singular posição, seu estilo, colocando o seu mundo em questão.
Abordar este ponto dentro do âmbito da arte gera alguns problemas, especialmente
porque Levinas não nos permite afirmar que a produção artística seja uma produção ética
dá-se, de fato, no âmbito ontológico, como moldagem e escansão da plasticidade do mundo.
Entretanto, parece-nos possível afirmar que responder produzindo obras de arte seja uma
modalidade de resposta ao chamado do Infinito
227
. Neste sentido, dando um passo adiante, o
que resta do artista na obra criada? Do gesto cultural, o que sobra no produto? Relembremos
aqui uma citada passagem de La réalité et son ombre, agora iluminada pelo contexto em
que estamos trabalhando:
Não contente em absorver-se no gozo estético, o público experimenta uma
necessidade irresistível de falar. Que haja alguma coisa a ser dita
publicamente, quando o artista se recusa a dizer da obra outra coisa que esta
própria obra que não possa contemplar em silêncio justifica a crítica.
Pode-se defini-la: o homem que ainda tem alguma coisa a dizer quando tudo
foi dito; que pode dizer da obra outra coisa que esta obra.
228
Em 1948, o artista, após ter criado uma obra, retirava-se da polis, exilava-se seu
trabalho silenciava-se na solidão do acabamento em beleza, era suspensão do tempo;
suspensão, portanto, de qualquer possibilidade de diálogo. Mas Levinas também falava deste
certo descontentamento do público e da crítica no mero gozo estético, de uma necessidade
irresistível de falar que sentiam. De algum modo a obra de arte teria esta particularidade de
fazer com que os fruidores e críticos se sentissem insatisfeitos, irremediados. Restava, então,
um artista inacessível à sociedade, mas que deixava uma obra como espólio de seu exílio.
Em La signification et le sens, respondendo ao convite de 1948, o artista volta a
participar da sociedade retorna à comunidade e passa mais uma vez a pertencer ao tempo
dos diálogos e das interlocuções. É um homem no seu tempo que, pacientemente, produz para
um tempo em que ele não mais estará. Poirié admira este modo de pensar de Levinas:
226
HH, p. 33.
227
Devemos esta idéia de que a obra de arte possa ser entendida como uma modalidade do outramente que ser
(cf. próximo capítulo) ao Prof. Dr. Marcelo Fabri, em comunicação pessoal.
228
IH, p. 108.
63
“Aprender a paciência na obra criança, livro é poder ser ainda, apesar da morte, ‘é um
tempo que vai existir sem mim, ser para um tempo após meu tempo’”
229
.
Em Langage et Proximité (1967), por sua vez, Levinas fala de uma intencionalidade
narrativa [intentionalité narratrice], “essencial ao pensamento enquanto que o pensamento é
tematização e identificação”
230
, responsável pelo ordenamento dos dados em uma lógica
lingüística na qual repousaria a verdade do ser. Intencionalidade narrativa como forma de
sincronizar os dados em um presente apreensível e habitável um modo de tornar o passado
contemporâneo.
Assim, ainda podemos ler Shakespeare, Dante e Ítalo Calvino, mesmo que estes
autores já estejam mortos. A morte de cada um deles não fez suas obras desaparecerem ou
tornarem-se meros utensílios: resta algo de Shakespeare em cada volume de Romeu e Julieta,
algo de Dante na Divina Comédia e algo de Calvino em Se um viajante numa noite de
inverno.
O conceito de vestígio pode nos ajudar a pensar um pouco a este respeito. Que a obra
não seja o autor, nem mesmo um reflexo de suas intenções e desejos interiores é um fato
bastante aceito. Portanto certa potência do dispêndio do ato criador que resta na obra
acabada:
O sentido do vestígio duplica o sentido do signo emitido em via da
comunicação. O signo se sustenta neste vestígio. Esta significação residiria
para uma carta, por exemplo, na escritura [écriture] e estilo desta carta, em
tudo aquilo que faz com que, quando da própria emissão da mensagem que
captamos a partir da linguagem desta carta e de sua sinceridade, alguém que
passe pura e simplesmente.
231
Ao ser algo feito com um endereçamento outrem enquanto possibilidade de toda e
qualquer significação - ao ser algo para alguém, a obra de arte é um signo: dá-se à
interpretação, convoca que se fale dela. Mas sua própria função de signo é sustentada por algo
mais fundamental, por sua peculiaridade de guardar vestígios da passagem do artista.
Quando contemplamos uma obra exposta em um museu ou quando escutamos uma
música, o artista que produziu estas obras torna-se um ele ao qual nos remetemos apenas
indiretamente
232
. Não o artista na obra, mas vestígios de seu ato criador: na obra, o artista
229
POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas : Ensaio e Entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 35.
230
DEHH, p. 218.
231
DEHH, p. 200.
232
Em franca consonância com o que será desenvolvido em Autrement q’être, Levinas afirma, em Langage et
Proximité, quando falando sobre vestígio e infinito: “Mas será isto uma ausência? (...) O infinito não pode
concretizar-se num termo, ele contesta sua própria presença. Em seu superlativo inigualável, é ausência, na
margem do nada. Sempre foge. Mas deixa o vazio, uma noite, um vestígio em que sua invisibilidade visível é
rosto do Próximo.” (DEHH, p. 230). Seria o estilo a noite do artista? Quando nos deparamos com uma obra de
64
está Ausente como eleidade, perde-se em um passado irrecuperável. Pensada desta forma, não
restaria nos vestígios presentes na obra algo da ordem do enigma?
O enigma vem a nós da eleidade. O enigma é a maneira do Ab-soluto,
estranho ao conhecimento, não porque iluminará com uma luz
desmesuradamente forte para a fraca vista do sujeito, mas porque já é
demasiado velho para o jogo do conhecimento, porque não se presta à
contemporaneidade que faz a força do tempo ligado ao presente, porque
impõe uma versão do tempo totalmente diferente.
233
Por que a face enigmática da obra pode ser demasiado velha? Ora, com certeza
podemos falar da obra e situá-la em movimentos culturais, fazê-la pertencer a determinado
grupo; em suma, é possível tornar uma obra contemporânea aos seus vizinhos. Mas o próprio
ato criador, enquanto gesto que se esvai desde a intenção até a obra, é irrecuperável
234
. O
bronze que resta na estátua e clama por diálogo é de ordem completamente diferente daquela
das gotas de suor que o artista verte ao talhar a matéria-prima:
A significância do vestígio coloca-nos em uma relação “lateral”,
inconvertível em retidão (o que é inconcebível na obra do desvelamento do
ser) e que responde a um passado irreversível. Memória alguma poderia
seguir este passado ao vestígio. É um passado imemoriável e, talvez, seja
isto, também, a eternidade cuja significância relança obstinadamente em
direção ao passado. A eternidade é a própria irreversibilidade do tempo, fonte
e refúgio do passado.
235
Através da obra de arte, chega-se ao artista de viés, fazendo-o falar coisas que não
foram por ele proferidas. A obra de arte, portanto, teria esta peculiaridade de expor a
irreversibilidade do tempo, o fato indelével de que há temporalidade, de que as rugas apontam
para a finitude de cada um de nós, de que ora ou outra o sono se transformará em morte: “O
pronome ‘Ele’ exprime sua inexprimível irreversibilidade, quer dizer, fora do alcance de toda
arte, não seríamos, a um primeiro momento, tomados pela noite que esta obra resguarda? Talvez haja aqui uma
reflexão possível que conta da relação entre La réalité et son ombre e Autrement q’être: a obra de arte é, sim,
sombra, mas não esgota-se na noite: vem à luz do dia na tematização da consciência.
233
DEHH, p. 214.
234
Mesmo remetendo a um passado imemorial, a obra de arte não é do ponto de vista de Levinas - uma via da
Ética. Provavelmente o conceito de entretempo seja aquele que de forma mais explícita apresenta a tensão entre
ética e estética na obra de Levinas. Em Énigme et Phénomène (1965), por exemplo, ele aparece na seguinte
citação, na qual se discute o caráter anacrônico do rosto: “No entretempo, o evento esperado torna-se passado
sem ser vivido sem ser igualado em presente algum. Alguma coisa se passa entre o Crepúsculo em que se
perde (ou se recolhe) a intencionalidade mais extática, mas que visa sempre demasiado perto e a Aurora em
que a consciência retorna a si, mais já tarde demais para o acontecimento que se afasta.” (DEHH, p. 211).
Percebemos, portanto, que o entretempo aqui se refere ao tempo no qual se dá a relação ética, diferentemente
de 1948, época em que este conceito referia-se à suspensão do tempo na forma de obra artística. Dez anos
adiante, em 1975, Levinas utilizará novamente este conceito ao tratar da relação com o outramente que ser. (cf.
próximo capítulo).
235
HH, p. 62.
65
revelação e de toda dissimulação (...) absolutamente não englobável ou absoluta,
transcendência num passado absoluto”
236
.
Se ao abordarmos uma obra de arte estamos frente ao autor como um ele subtraído
de sua produção, então no final das contas toda crítica de arte é uma tentativa de edificar
um mundo sobre as areias da ausência. A crítica, ao transportar a obra para o presente, ao
torná-la contemporânea, faz o movimento de tomar o vestígio como um signo, como um sinal:
é uma aposta de que a obra possa dizer algo:
O vestígio não é um sinal como qualquer outro. Mas exerce também o papel
de sinal. Pode ser tomado por um sinal. O detetive examina como sinal
revelador tudo o que ficou marcado nos lugares do crime, a obra voluntária
ou involuntária do criminoso; o caçador anda atrás do vestígio da caça; o
vestígio reflete a atividade e os passos do animal que ele quer abater; o
historiador descobre, a partir dos vestígios que sua existência deixou, as
civilizações antigas, como horizontes de nosso mundo.
237
Ou ainda, de forma a explicitar a citação acima:
(...) antes de significar como signo, ele [o vestígio] é, no rosto, o próprio
vazio de uma ausência irrecuperável. A abertura do vazio não é somente o
signo de uma ausência. O risco [trait] traçado sobre a areia não é o elemento
de uma senda [sentier], mas o próprio vazio da passagem. E aquilo que se
retirou não é evocado, não retorna à presença, mesmo que a uma presença
indicada.
238
De modo que, tal qual o historiador, o detetive e o caçador, o crítico dispõe a obra em
uma ordem, “um mundo, onde cada coisa revela outra ou se revela em função dela”
239
. As
civilizações antigas, que edificaram templos, ginásios e moradias são entendidas desde o
presente em que se coloca o arqueólogo: os aromas das ruas, os burburinhos das conversas
nas esquinas para sempre perdidos no irrecuperável abismo do tempo são convertidos em
fatos acessíveis pela memória, que podem ser desvendados no presente do pesquisador.
Desta forma, talvez o absurdo da obra de arte seja este horizonte em que se delineia a
completa ausência do autor – criar uma obra que não deva nada ao seu autor, eis o máximo da
beleza:
O vestígio autêntico (...) descompõe a ordem do mundo; vem como “em
sobre-impressão”. Sua significância original delineia-se na marca que deixa,
por exemplo, aquela que quis apagar seus vestígios, no cuidado de realizar
um crime perfeito. Aquele que deixou vestígios pelo fato de querer apagá-los,
nada quis dizer, nem fazer pelos vestígios que deixa. Ele descompôs a ordem
236
HH, p. 63.
237
HH, p. 63.
238
DEHH, p. 208.
239
HH, p. 64.
66
de forma irreparável. Pois ele passou absolutamente. Ser, na modalidade de
deixar um vestígio, é passar, partir, absolver-se.
240
A tentativa do artista de excluir-se, de ausentar-se, de sua própria obra é o que
podemos chamar estilo
241
. Estranho paradoxo: é nos restos mesmos da tentativa de não fazer-
se notar na sua obra que o crítico procurará aquilo que a caracteriza como tendo sido feita por
um artista específico - o vestígio é “o passado daquele que emitiu o sinal”
242
. Para que a tinta
vermelha descansasse sobre a tela, foi necessária a delicadeza da mão no pincel, delicadeza
perdida para sempre em um passado imemorial que o crítico tentará converter em passado
acessível ao presente, em passado sincronizável.
É o crítico bem sucedido nesta empreitada? “O vestígio é a presença daquele que,
falando propriamente, jamais esteve ali, daquele que é sempre passado”
243
. Portanto, pode-se
entender que, ao procurar falar do artista através da obra, o crítico por fim acaba por
apresentar o seu próprio mundo dizendo da obra que critica, expõe seu próprio presente ao
rosto interpelativo de Outrem.
240
HH, p. 64.
241
É instigante a diferença que Levinas faz entre vestígio e efeito: “Aquilo que em cada vestígio de uma
passagem empírica, para além do sinal que ele pode tornar-se, conserva a significância específica do vestígio, é
possível somente pela sua situação no vestígio desta transcendência. Esta posição no vestígio, que chamamos
eleidade’, não começa nas coisas, as quais, por si mesmas, não deixam vestígio; elas produzem efeitos, isto é,
permanecem no mundo. Uma pedra riscou outra. (...) Tudo nas coisas é exposto, mesmo seu desconhecido: os
vestígios que as marcam fazem parte desta plenitude de presença, sua história é sem passado. O vestígio como
vestígio não conduz somente para o passado, mas é o próprio passe para um passado mais afastado que todo
passado e todo futuro, os quais ficam dispostos ainda no meu tempo para o passado do Outro onde se esboça a
eternidade passado absoluto que reúne todos os tempos.” (HH, p. 66). Ou seja, fala-se de vestígio somente
quando o que está em jogo é algo do humano, daquele que é passível de produzir uma obra tendo como
endereçamento o rosto de Outrem – aquele que não está nunca só.
242
HH, p. 64.
243
HH, p. 65.
67
Capítulo 4
A arte em estado de busca: o tempo da exposição e da ostentação do ser
Suas estátuas parecem pertencer a uma era defunta, descoberta
depois que o tempo e a noite – que as trabalharam com inteligência –
as corroeram para lhes dar esse ar, ao mesmo tempo doce e duro, de
eternidade que passa.
(Jean Genet, sobre as obras de Giacometti)
A produção poética revigora a língua, toca com coragem nos limites
do informe. Produz, portanto, um pensar contra. Assim busca
esburacar o véu de cegueira que a racionalização e o tecnicismo
contemporâneo nos impõem.
(Edson Luiz André de Sousa)
4.1. Da Sombra à Ostentação
Enquanto em La Realité et son ombre (1948), único artigo em que Levinas toma
explicitamente a questão estética como objeto de estudo, a arte é entendida como “um cair da
noite, uma invasão de sombra”
244
, “um comércio com o obscuro”
245
- reino da não-verdade do
ser -, em Autrement qu’être ou au-delà de l’essence
246
ela é descrita como a “ostentação por
excelência”
247
, ilustração privilegiada da anfibologia do ser.
A obra de arte deixa de ser vista como um apelo à crítica filosófica que a salvaria do
silêncio da beleza e do acabamento, não se encontra mais em um espaço anterior à linguagem
e mais aquém do tempo, como em 1948: ela se situa, em 1974, na linguagem, suscita a
interpretação pela exegese
248
, cintila no tempo. Dentro deste novo contexto, conceitos como
beleza, sensibilidade, imagem e verdade – para citar apenas alguns - passam a adquirir
244
IH, p. 110.
245
IH, p. 110.
246
Para uma excelente leitura crítica acerca desta obra, cf. RICOEUR, Paul. Outramente: Leitura do Livro
Autrement qu’être ou au-delà de l’essence de Emmanuel Levinas. Trad. por. Pergentino Stefano Pivatto.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
247
AE, p. 70.
248
Sobre a exegese como apelo à interpretação, cf. COHEN-LEVINAS, Danielle. Ce qui ne peut être dit., op. cit.
e CIARAMELLI, Fabio. L’appel infini à l’interprétation: Remarque sur Levinas et l’art. Revue Philosophique de
Louvain 92 (1994) 32-52.
68
significações diferentes, mais maduras, tingidas pelas ambigüidades, oscilações e novas
problematizações que são próprias de Levinas em 1974.
O que podemos entender quando Levinas afirma que a arte é “ostentação por
excelência”
249
? É necessário que se explicite o sentido do conceito de ostentação para que
esta questão seja devidamente abordada. Como uma primeira aproximação, podemos pensar
no sentido mais evidente desta palavra: ostentar é mostrar, dar a ver, fazer alguma coisa entrar
no campo de visão. Ostentar, em outros termos, é trazer à luz:
A descoberta de todas as coisas depende de sua inserção nesta luz ou nesta
ressonância do tempo da essência. As coisas se descobrem em suas
qualidades, mas as qualidades dentro do vivido que é temporal. A ostentação
– a fenomenalidade do ser – não pode se separar do tempo.
250
Uma luz que é ressonância. Se em La Realité et son ombre o ritmo trazia consigo os
matizes do escuro, de uma espécie de essência obscurecida, agora a ressonância vibra em
uma clareira de luminosidade. O som que antes subtraía o si-mesmo, silenciando-o em uma
espécie de êxtase de ausência, agora é o responsável pelo aparecer da coisa em sua
fenomenalidade, ou seja, em sua condição de estar presente em um mundo.
A ostentação se não em um espaço iluminado, mas no próprio tempo que ressoa a
essência. As coisas se descobrem, então, no tempo, no vivido [vécu]; descobrir as coisas é
fazer com que elas vibrem as suas qualidades no tempo, é permitir que o ser leve adiante a sua
obra, a essência. uma íntima relação, portanto, entre ostentação e tempo, a própria obra do
ser, “a essência – o tempo – o lapso do tempo, é ostentação, verdade, filosofia”
251
.
A essência é o fato mesmo de haver um tema, um logos verdade. Ela se temporaliza
nos enunciados predicativos, ou seja, as próprias qualidades das coisas necessitam do
enunciado apofântico para se mostrarem, elas entram no tempo através da predicação. As
coisas e as qualidades das coisas
começam a ressoar em sua essência na proposição predicativa, não seguindo
a reflexão psicológica sobre a subjetividade e a temporalidade da sensação,
mas a partir da arte, ostentação por excelência Dito, reduzido ao puro tema,
à exposição absoluta quase ao impudor, capaz de sustentar exclusivamente
todos os olhares aos quais ela se destina – Dito reduzido ao Belo, portador da
ontologia ocidental.
252
Reencontramos, portanto, a afirmação em que Levinas sustenta que a arte é a
ostentação por excelência; é na arte que o ressoar das coisas na essência se evidencia de
249
AE, p. 70.
250
AE, p. 55.
251
AE, p. 53 (grifo nosso)
252
AE, p. 70.
69
forma mais evidente, explícita quase até o impudor. Aqui vale lembrar as reflexões de
Levinas sobre a vergonha, em seu livro De l’Evasion: “A vergonha aparece cada vez que nós
não conseguimos fazer esquecer nossa nudez”
253
, ou seja, a vergonha é aquilo que marca para
o ser a impossibilidade de sair de si mesmo, de buscar refúgio em outras terras – para-além do
ser -, impossibilidade de evadir. É a certeza de estar agrilhoado à nudez do ser em sua
pungente ostentação.
Em outros termos, a vergonha “não depende, como seríamos levados a crer, da
limitação de nosso ser, enquanto que ele é suscetível ao pecado, mas ao próprio ser do nosso
ser, de sua incapacidade de romper com si-mesmo”
254
. Sente-se envergonhado, portanto,
aquele que não consegue se furtar ao olhares que recaem sobre si na luminosidade em que a
sua nudez é exposta.
Observa-se também uma importante relação entre o belo e o despudor, ou seja, entre a
beleza e a vergonha. Se em La Realité et son ombre o belo é o próprio testemunho do
acabamento, a evidência mesma de que nenhum traço mais é aceito pela obra de arte
resignada em seu silêncio e isolamento -, aqui ele parece ser entendido como uma propriedade
daquilo que ressoa na essência do ser, ele é o “portador da ontologia ocidental”. Enquanto em
1948 a obra bela se desvanecia na sombra do não-ser, agora é na própria luminosidade do ser
que as coisas revelam-se como beleza, como Dito enquanto puro tema, pura exposição. Pode-
se dizer, portanto, que agora a nudez a impossibilidade da não-exposição na luz do ser - é
dignificada pela beleza.
Mas de que modo as coisas ressoam na essência, nas proposições predicativas ou
seja, de que modo elas são ostentadas? Levinas é muito claro neste ponto: “A sensação vivida
ser e tempo se escuta no verbo. (...) As sensações em que as qualidades sensíveis são
vividas não ressoam adverbialmente e, mais precisamente, em advérbios do verbo ser?”
255
. As
coisas ressoam em suas qualidades, e estas, como modulações adverbiais, “toda quididade se
fazendo modalidade”
256
.
(...) A é A não significa somente a inerência de A a si próprio ou ao fato de A
possuir todas as características de A. A é A se escuta também como “o som
ressoaou como “o vermelho vermelha[le rouge rougeoie]. A é A se deixa
escutar como A a-eia [a-oie].
253
DE, p. 86.
254
DE, p. 85.
255
AE, p. 86.
256
AE, p. 71.
70
Quando dizemos que o “vermelho vermelha” estamos falando do modo como o
vermelho se temporaliza: em outros termos, poderíamos afirmar que o vermelho se no
mundo como um avermelhar, ele é avermelhando-se. Levinas atenta para o fato de que a
sentença apofântica “o vermelho vermelha” não duplica o real (esta nuance será muito
importante adiante, quando tratarmos do estatuto do conceito de imagem na obra de 1974).
A predicação simplesmente permite que se possa escutar a essência do vermelho, seu
avermelhar, de modo que a essência não simplesmente se traduz no dito mas, antes disso, ela
originalmente ressoa no dito, no espaço do logos. É dizer que a “essência não se traduz
somente, ela se temporaliza no enunciado predicativo”
257
. Ou ainda: “Na proposição
predicativa – na apofânise – o ente pode (...) se fazer escutar verbalmente como um ‘modo’ da
essência, como a própria fruitio essendi, como o como [comment] como uma modalidade
desta essência ou desta temporalização”
258
.
4.2. Hipóstase e Ostentação
No momento em que nomeamos algo enquanto algo, em que a coisa coincide com a
sua identidade, esta coisa se torna opaca, como que cristaliza coagulada no mundo. Dar nome
a algo do mundo é estancar o fluir deste mundo no tempo, é exorcizar a verbalidade da
essência. A este movimento que transforma o verbo em substantivo, Levinas chama
hipóstase:
A hipóstase, a aparição do substantivo, não é somente a aparição de uma
categoria gramatical nova, ela significa a suspensão do anônimo, a
aparição de um domínio privado, de um nome. Sobre o fundo do há surge um
ente.
259
Assumir uma posição é fazer calar o murmúrio anônimo da noite, é fazer-se opacidade
na substância fluida do ser. Algo opaco é algo que pode ser tocado, manuseado, violentado.
Se o mundo se torna opaco, ele se desfaz de sua alteridade para petrificar-se em mundo
nomeado, residindo no domínio do dito. Em outros termos, pode-se dizer que o verbo, quando
é substantivado, desiste de sua vibração e recai em uma forma
260
.
257
AE, p. 69.
258
AE, p. 67.
259
EE, p. 100.
260
Étienne Feron afirma que em De l’existence à l’existant (1947) Levinas está preocupado com a questão da
linguagem que seria de modo tão mais insistente aprofundada em Autrement qu’être: “A hipóstase ou a
substantivação do verbo ser coincide com a emergência de uma subjetividade se arrancando [s’arrachant] do
anonimato do existir. Tudo se passa então como se, partindo da ‘diferença ontológica’ heideggeriana, Levinas a
situasse de início sobre o plano da linguagem enquanto que dimensão de sentido constitutiva da subjetividade
71
Devido à insistente pesquisa que a arte faz pelas formas novas, Ciaramelli propõe que
aquilo que chamamos acima de ostentação pode ser entendido como uma “operação oposta à
posição de um existente no seio do anonimato essencial do
261
. Ou seja, o movimento
próprio da arte é nem tanto a substantivação do verbo em formas no mundo, mas, antes, a
desformalização das coagulações substantivas através da possibilidade da abertura para o dito
exegético que faz vibrar a essência, a verbalidade da essência.
A discursão [discursion] da essência dissipando a opacidade assegura o
brilho de toda imagem e, por conseqüência, a própria luz da intuição,
tornando possível a ostentação dos entes e a ostentação da própria essência.
A ostentação da diástase temporal ou seja, ostentação da ostentação,
ostentação da fenomenalidade do fenômeno é verbo enunciado em uma
proposição predicativa.
262
Em Autrement qu’être podemos observar, então, uma arte cuja função é justamente a
deposição dos ídolos, a arte enquanto fissura da forma. Nunca deixar o verbo repousar em
substantivo, impedir o sono no ente, esta é a operação fundamental do discurso da exegese.
Não se trata mais, como em La Realité et son ombre, de regelar o sorriso da Mona
Lisa em seu eterno esboçar, mas sim de renovar este sorriso, fazendo-o vibrar no tempo: o
sorriso se faz um sorrir. “A obra de arte, desfazendo a substância de um conteúdo nomeável
em puro modo de essência, em pura modalidade, em puro ‘como’ [comment], arranca o objeto
do mundo”
263
.
4.3. A anfibologia do ser e do ente
Levinas não nega, portanto, a função da linguagem de atribuir nome às coisas do
mundo, ou seja, de operar este processo de substantivação do mundo, de nomear “isto
enquanto aquilo”
264
, um modo de silenciar o mundo através da coincidência de sua identidade.
Mas Levinas não se basta neste modo de ver a linguagem, uma vez que afirma que o “verbo
ser diz a fluência do tempo como se a linguagem não equivalesse sem equívoco à
denominação”
265
, ou seja, o autor aponta para esta outra função da linguagem, a de fazer
“vibrar a essência do ser”
266
.
rompendo o ser” (FERON, Étienne. La réponse à l’Autre et la question de l’un (Le paradoxe du langage chez
Levinas). Études Phénoménologiques. n° 12, 1990, pp. 67-100.p. 67).
261
CIARAMELLI, Fabio. L’appel infini à l’interprétation…, op. cit., p. 45.
262
AE, p. 72.
263
CIARAMELLI, Fabio. L’appel infini à l’interprétation…, op. cit., p. 45.
264
AE, p. 62.
265
AE, p. 61.
266
AE, p. 61.
72
A essência é a própria verbalidade do verbo. Se por um lado a linguagem regela o
tempo na forma de uma coagulação de um nome -, por outro, ao fazer-se verbo, ela é a
própria temporalização que anima as coisas do mundo, colocando-as à luz e permitindo que
elas se apresentem adverbialmente neste mundo: “A linguagem não se reduziria assim a um
sistema de signos duplicando os seres e as relações concepção que se imporia se a palavra
fosse Nome. A linguagem seria antes excrescência do verbo”
267
.
A palavra não limitada a um puro Nome é aquela que ilumina a coisa do mundo na luz
da essência, que faz o mundo vibrar na temporalidade. Não duplicação de seres e relações,
uma vez que por detrás do Dito palco das enunciações predicativas não reside essência
alguma. Neste sentido, Levinas se coloca a seguinte questão: “A sensibilidade em que as
qualidades das coisas percebidas se transformam em tempo e em consciência independente
do espaço insonoro onde elas aparentam se desenvolver em um mundo mudo - não foi
dita?”
268
. É em um dito que a palavra pode nomear algo enquanto algo toda nomeação
tem um quê de estancamento, de represamento, de congelamento da fluidez da essência. O
ente que aparece idêntico (que é identificado) a si mesmo na luz do tempo é a sua essência
neste fundo de já dito.
A anfibologia do ser pode ser entendida justamente como esta ambigüidade
comportada pela palavra que é substantivo e que também é verbo. Mesmo para que alguma
coisa permanece a mesma, é na passagem do tempo que esta identidade é mantida, a própria
mesmidade ressoa de modo adverbial na verbalidade da essência: a mesmidade mesmifica - é
como se houvesse uma insistência no tempo. Sobre esta ambigüidade, Levinas o exemplo
de Xenakis:
A música em Nomos alpha pour violoncelle seul de Xenakis, por exemplo,
reclina [infléchit] em advérbios a qualidade das notas emitidas, toda
quididade se fazendo modalidade, as cordas e a madeira se diluindo [s’en
allant] em sonoridade. (...) O violoncelo é violoncelo na sonoridade que vibra
nas cordas e na madeira, mesmo se ela já recaia em notas (...). A essência do
violoncelo – modalidade da essência – se temporaliza assim na obra.
269
Do mesmo modo, podemos dizer que a tinta verde de uma tela verdeja. As formas se
produzem como contornos que abdicam de seu vazio de forma. Assim como na música o som
ressoa, nos poemas os vocábulos “não se afastam diante daquilo que eles evocam, mas sim
cantam seus poderes evocadores e seus modos de evocar, suas etimologias”
270
. A arquitetura,
267
AE, p. 61.
268
AE, p. 61.
269
AE, p. 71.
270
AE, p. 70.
73
por sua vez, “faz cantar os edifícios”
271
. A essência e a temporalidade se fazem ressoar como
poesia, como canto, diferente do que pode ser lido em La Realité et son ombre, em que o não-
ser toma o eu através de um ritmo do qual não há como participar.
Levinas fala que a própria procura da arte por formas novas mantém em um certo
estado de vigília, em sobreaviso, os verbos a ponto de recaírem em substantivos. Na
inesgotável diversidade das obras, “no renovamento essencial da arte, cores, formas, sons,
palavras, construções a ponto de se identificar em entes, (...) recomeçam a ser
272
.
Parece que é na própria capacidade da arte de recriar-se, de colocar-se como questão, como
mistério, que reside a sua própria essência, o movimento de seu ser:
A procura da arte moderna ou talvez mais exatamente a arte em estado de
procura mas um estado jamais ultrapassado parece em toda sua estética
buscar e escutar esta ressonância ou produção da essência ao modo das obras
de arte. Como se as diferenças da altura, de registro e de timbre, de cor e de
forma, de palavras e de ritmos fossem temporalização, sonoridade e toque.
A escritura sobre a escritura seria a própria poesia.
273
A arte não seria, portanto, a coagulação da técnica em uma obra específica, ou uma
galeria cujas paredes sustentam uma infinidade de quadros, mas seria sim o próprio obrar do
artista enquanto aquilo que faz ressoar a arte. Dito de outro modo, a essência da arte é o
próprio fazer arte: a essência da pintura é o pintar, da música, o musicar. Não parece ilícito
dizer, portanto, que aquela arte que coloca em questão o próprio conceito de arte é a que faz
ressoar a essência da arte.
4.4. Exegese e o Dizer da arte
É importante dar-se conta de que a obra de arte não se expressa por si própria, não
desfaz um mundo com sua aparição: ela se no mundo sem ser deste mundo, dentro do
mundo sem pertencer-lhe, é “exótica, sem mundo, essência em disseminação”
274
. Se em La
Realité et son ombre as obras de arte são silenciosas e devem ser colocadas a falar através da
crítica filosófica, agora elas clamam pela exegese que as faça ressoar no tempo.
Desconhecer o Dito propriamente dito (qualquer que seja sua relatividade),
nas proposições predicativas que toda obra de arte plástica, sonora, poética
revela e faz ressoar a modo de exegese, é dar provas de uma surdez tão
271
AE, p. 70.
272
AE, p. 70.
273
AE, p. 71.
274
AE, p. 71.
74
profunda quando aquela que consiste em não escutar na linguagem senão
nomes.
275
Este convite à exegese é o que marca, para Levinas, o essencial da obra de arte, um
apelo ao dito verbal que a permita surgir e se apresentar. A exegese o se coloca, então,
“sobre a ressonância da essência na obra de arte a ressonância da essência vibra no interior
do dito da exegese. No verbo da apofânise que é o verbo propriamente dito verbo ser,
ressoa e se escuta a essência
276
. Em outros termos, não obra se não houver juízo
predicativo, só existe arte na linguagem, no tempo. Sem o juízo daquele que frui da obra, ela é
tão-somente camadas sobrepostas de tinta, barulhos incongruentes, sinais gráficos
adormecidos sem que alguém a escute com um olho que escuta, a obra de arte é a pura
materialidade.
Ora, se dissemos acima que a obra de arte se em um mundo ao qual não pertence,
não poderíamos afirmar que ela brilha como uma alteridade? Se o que ela tem de mais
essencial é o próprio apelo que faz por ser escutada, não seria cabível propor que ela desperta
o que chamaríamos de uma responsabilidade sob a forma de atitude estética? Pelo seu
resplandecer no mundo, a obra de arte desaloja o dito deste mundo, rompe com os
mecanismos automáticos deste.
Do modo diferente àquele proposto por Levinas em La Realite et son ombre, agora a
obra de arte não é mais acabamento e mutismo, ela passa
para o lado da expressão (...), ou seja, da forma, tão desajeitada quanto ela
seja, da palavra endereçada a, da troca trêmula com outrem. A arte está,
assim, no campo da relação, torna-se não acabamento por excelência.
277
Ou seja, a obra é agora endereçada a outrem, não é mais fixidez silenciosa, é
verbalidade, uma musicalidade do Dizer
278
. Ora, se o próprio da arte é justamente o
“renovamento”
279
, a busca por formas novas, aquele que frui da obra está diante não de uma
opacidade coagulada em nome em silêncio -, mas de uma verbalidade que dissolve esta
opacidade: a experiência estética não se resume ao quadro na galeria ou ao livro aberto sobre
275
AE, p. 71.
276
AE, p .72
277
PETITDEMANGE, Guy. L’art, ombre de l’être ou voix vers l’autre? Un regard philosophique sur l’art.
Emmanuel Levinas. Revue d’Esthétique 36, 1999, pp. 75-94, p. 90.
278
CHARLES, Daniel. Éthique et esthétique dans la pensée d'Emmanuel Levinas. Noesis [Révue Eletronique de
L’Université de Nice] n. 3, 1999. Disponível em <http://revel.unice.fr/noesis/document.html?id=12>. Acessado
em 07.10.2007, p. 5.
279
AE, p. 70.
75
a mesa ela é o vislumbrar do artista enquanto pesquisador do novo, é um convite a uma
relação no tempo. É uma visitação, como que uma presença exótica no próprio mundo.
Por este motivo, a arte permite perceber, pela sua eterna busca da outra forma, que o
mundo como tal não se resolve dentro dos juízos predicativos, não se resolve em ostentação –
ela aponta para um mais-além, para um tempo em que o mundo não se resolve em logos. Por
seu estado de sempre renovada pesquisa, a arte é diacronia. A exegese inquieta o Dito que se
entenda como resolução do mundo em ontologia.
No Dito se encontra o lugar de nascimento da ontologia. Ela se anuncia na
anfibologia do ser e do ente. A própria ontologia fundamental, que denuncia
a confusão do ser e do ente, fala do ser como um ente identificado. E a
mutação é ambivalente. Toda identidade nominável pode mudar-se [muer]
em verbo.
280
Mas a atitude estética não descansa no encantamento das formas regeladas, não se
basta em idolatria. Escutar a obra como uma fissura no logos, como uma espécie de ferida no
mundo, é “medir o peso pré-ontológico da linguagem em lugar de tomá-la unicamente por um
código (o que ela igualmente é)”
281
. Em outros termos, é fazer do instante presente o instante
da renovação.
O “interpretar o fato de que a essência expõe e se expõe, que a temporalização se
enuncia, ressoa, se diz”
282
é não atribuir prioridade do Dito sobre o Dizer. É revelar no Dito o
Dizer que é absorvido na história que o Dito impõe
283
. É o risco que se corre quando se
busca justificar uma obra de arte meramente pelo contexto em que ela está inserida, pela vida
de seu autor, pelo momento social ou cultural em que veio à luz. Isto seria reduzir a potência
interrogante da obra às amarras mundanas que a cercam. Interpretar uma obra de arte segundo
parâmetros do nosso tempo é violentar a sua alteridade.
4.5. Sensibilidade e Forma
Dissemos acima que a arte, enquanto busca pela renovação da forma, é diacrônica.
Para que entendamos isto, é necessário que mostremos o estatuto do conceito de sensibilidade
em Autrement qu’être. Em La Realité et son ombre, Levinas fala da sensibilidade como
aquele comércio primeiro com o mundo, uma relação não-conceitual - que nem chega ao nível
do conceito –, é a sensibilidade produtora de imagens, de monstruosas duplicações do ser.
280
AE, p. 74.
281
AE, p. 74.
282
AE, p. 74.
283
AE, p. 74.
76
Relação mais aquém do tempo e anterior à linguagem que se desenvolve na mais pura
imediatez, imersão na noite.
A concepção de arte em Autrement qu’être, por sua vez, solicita uma reavaliação deste
conceito. Uma vez que a obra de arte, em 1974, faz vibrar a essênciaé a própria ostentação
-, ou seja, opera na luz do ser, já está no tempo, como podemos pensar a sensibilidade? Como
ponto inicial, podemos salientar que, assim como em 1948, ainda o conceito de imagem está
intimamente ligado ao de sensibilidade.
A imagem é, por sua vez, rmino da ostentação figura que se mostra, o
imediato, o sensível – e término em que a verdade não está acabada [n’est pas
à terme], uma vez que tudo do ser aí não se mostra em si próprio, mas
somente aí se reflete.
284
Levinas nos permite pensar a diferença que entre algo ser mostrado e algo ser
refletido. É através da ostentação - do mostrar por excelência - que a arte se caracteriza agora,
como temporalização do ser, como verbalização da essência, ou seja, é uma arte que vibra no
interior do tempo. A idéia de o ser encontrar-se refletido, duplicado, redobrado, ainda guarda,
para Levinas, algo da ordem do obscuro, como um movimento que é suspenso pela metade.
A imagem impede que a verdade se consuma justamente porque cala o conceito,
substitui a palavra. Como se ali onde se buscasse encontrar a manifestação do ser se
encontrasse apenas sua aparência, seu semblante de ser. Parece que Levinas nunca deixou de
entender a imagem a imagem sem o auxílio da palavra – como trazendo consigo certo risco
de desumanização: falar a uma máscara nunca será com falar a um rosto, “o rosto é uma
imediatez anacrônica mais extensa [tendue] que aquela da imagem ofertada à equidade
[droiture] da intenção intuitiva”
285
. O reino imagético resta ainda como aquele do silêncio, do
escurecimento, das aparências.
Entretanto, é importante notar que a imagem deixa de ter tão-somente o caráter de
imitação e duplicação do ser, uma vez que ela passa a ser entendida já como uma “astúcia que
arranca do ser e de seu incômodo [pesanteur], um afastamento, um ‘desinteressamento’, ou
seja, uma maneira de indiferença a si mesma pelo outro”
286
. Em outros termos, a imagem,
pelo seu obrar mais aquém do mundo, traz consigo esta possibilidade de ausentar-se do
mundo, mesmo que sob a forma de não-ser, de sombra do ser, de caricatura. É já uma
primeira e frágil tentativa de evasão.
284
AE, p. 52.
285
AE, p. 145.
286
PETITDEMANGE, Guy. L’art, ombre de l’être ou voix vers l’autre?... op. cit., p. 90.
77
Pensando a imagem deste modo, podemos nos perguntar se Levinas não restringe, na
realidade, suas críticas às obras de arte figurativa, em que a imagem buscaria esta duplicação
do real, com o objetivo de substituir o ser pela sua imagem. Seria muito diferente, por outro
lado, pensar dentro desta perspectiva algumas obras de arte moderna e contemporânea, que
antes de trazerem uma representação, apresentam-se sob a forma de uma interrogação sobre a
própria capacidade – possibilidade – representacional, como aponta Bruns:
(...) a grande conquista [achievement] da modernidade foi não somente o
desenvolvimento da razão científica, mas também a invenção de um conceito
de arte que, quaisquer que sejam suas dificuldade filosóficas, propiciou um
espaço para especulação no qual algo como a poesia pode tornar-se (e
manter-se) uma questão para si mesma um evento que Arthur Danto,
interpretando uma famosa passagem de Hegel, caracterizou como “o fim da
arte”, ou o momento em que arte e poesia tornam-se auto-reflexivamente em
filosofia.
287
É legítimo pensar que a crítica de Levinas à sedução imagética se refira ao que ele
chama de “arte pela arte”
288
, ou seja, aquela arte que se fecha em acabamento e
atemporalidade antes de entrar na linguagem, antes da palavra. Não seria uma característica
da arte mais recente justamente esta inquietude com a forma e com o acabamento em beleza
emudecida
289
?
Mas a reavaliação que Levinas faz do estatuto da arte, apesar de não trazer muitos
pensamentos novos a respeito da imagem, passa certamente pelo aprimoramento do
entendimento do conceito de sensibilidade. Levinas não nega a significação de sensibilidade
como produção de imagens, mas agora convida o leitor a pensar em outro modo de entender a
questão:
Na medida em que a imagem é, por sua vez, o término e o inacabamento da
verdade, a sensibilidade, que é a própria imediatez, se faz imagem – a qual se
interpreta a partir do saber. Mas a sensibilidade tal é nossas tese tem uma
outra significação (...) em sua imediatez. Ela não se limita à função que
consistiria em ser a imagem do verdadeiro.
290
287
BRUNS, Gerald L. The concepts of art and poetry in Emmanuel Levinas’s writings. In: CRITCHLEY, Simon
& BERNASCONI, Robert (org). The Cambridge Companion to Levinas. Canbridge: Cambridge University
Press, 2002, pp. 206-233, p. 208.
288
IH, p. 109.
289
Sobre esta preocupação, Bruns fala de Marcel Duchamp, cujo “legado (...) é nada se não uma crítica da
estética do prazer” (BRUNS, Gerald L. The concepts of art and poetry in Emmanuel Levinas’s writings…, op.
cit., p. 219), ou seja, um colocar em questão o objetivo da arte como sendo o meramente assemelhar-se à
realidade, experiência estética sob forma de êxtase e ingênuo desalojamento de si. Para aprofundar os estudos
sobre Marcel Duchamp, conferir a magistral obra TOMKINS, Calvin. Duchamp. Uma biografia. São Paulo:
Cosac Naify, 2004.
290
AE, p. 53, nota 2.
78
Qual seria esta outra significação para a sensibilidade? Podemos perceber que esta
mudança de concepção não recai na subtração do caráter de imediatez, ou seja, a sensibilidade
ainda se sustenta como uma primeira forma de relação. No capítulo III em especial na parte
dedicada à relação entre sensibilidade e significação - de Autrement qu’être, Levinas sustenta
seu argumento fazendo uma crítica àqueles que concebem a sensibilidade dentro do campo da
intencionalidade, do logos: “Uma sensação térmica, gustativa ou olfativa, não é
primordialmente conhecimento de uma dor, de um sabor, de um perfume”
291
.
A idéia é apontar para uma significação que seja anterior ao jogo do dito e à
tematização, que seja uma significação pré-original que “signifique também a aurora de uma
manifestação”
292
. Uma significação anterior à luminosidade da essência, fundadora, que
possibilite a própria intencionalidade. Para Levinas, a vida é mais ampla que nossa capacidade
de teorizá-la: “A interpretação da significação sensível pela consciência de... (...) não dá conta
do sensível”
293
. O tempo da sensibilidade não é o presente em que tudo se sincroniza através
de juízos predicativos, mas sim o passado imemorial, resguardado da luz no mistério da
alteridade.
Na transcendência da intencionalidade “se reflete a diacronia”
294
. Como sabemos, a
questão do reflexo é aproximada, por Levinas, a uma espécie de fixidez imagética que deve
ser contornada.
Mas deste reflexo é preciso remontar à própria diacronia, que, na
proximidade é o um-pelo-outro: não tal ou tal significação, mas a própria
significância [signifiance] da significação, o um pelo outro ao modo de
sensibilidade, ou de vulnerabilidade; passividade ou suscetibilidade pura,
passiva a ponto de se fazer inspiração, ou seja, precisamente, alteridade-no-
mesmo, tropo do corpo animado pela alma, psiquismo sob espécie de uma
mão que doa o próprio pão arrancado de sua boca.
295
A tentativa de Levinas é a de apresentar uma sensibilidade que não se reduza ao
império da visão, à sincronização dos elementos. Sensibilidade como a possibilidade de toda
significação, pura passividade, exposição, vulnerabilidade: inspiração
296
, no final das contas.
Se o artista em La Realité et son ombre é alguém despossuído de si mesmo devido a um ritmo
291
AE, p. 105 (grifo nosso).
292
AE, p. 106.
293
AE, p. 109.
294
AE, p. 109.
295
AE, p. 109.
296
Ciaramelli esclarece que aquilo “que é chamado inspiração – quer seja poética ou religiosa se refere
precisamente a este atravessamento de um excesso [surplus] inesgotável de sentido sob o sentido imediato do
querer-dizer, atravessamento que constitui o próprio da linguagem, seu apelo à exegese (...).” (CIARAMELLI,
Fabio. L’appel infini à l’interprétation…, op. cit., p. 45., p. 48).
79
medusante, agora ele é aquele que leva ao cúmulo a possibilidade de abrir-se à alteridade, de
deixar-se inspirar pelo outro.
“A noção de acesso ao ser, da representação e da tematização de um Dito supõem a
sensibilidade e, desde aí, proximidade, vulnerabilidade e significância”
297
. O que é estar
vulnerável? É abdicar da potência para permitir-se a exposição, é apresentar-se como signo
para o outro, fazer-se pura receptividade, como um corpo maternal”
298
; no nível sensível,
renuncia-se à perseverança no ser. Para Levinas, a respiração, a animação, “o próprio pneuma
do psiquismo, a alteridade na identidade, é a identidade de um corpo expondo-se ao outro,
fazendo-se ‘para o outro’ [pour l’autre]: a possibilidade de dar [donner]”
299
.
É a partir do um-para-o-outro da Incarnação do mesmo que se pode
compreender a “transcendência” da intencionalidade: o para-o-outro do
psiquismo é passividade da exposição chegando à exposição da exposição, à
ex-pressão [ex-pression] ou Dizer; o Dizer se faz tematização e Dito.
300
Levinas escreve que a sensibilidade é uma “defasagem do instante”
301
, uma não-
coincidência do mesmo consigo, “passividade mais passiva que toda passividade (...) uma
passividade que não se reduz à exposição ao olhar do outro, mas vulnerabilidade e dolência se
esgotando [s’épuisant] como uma hemorragia (...) expondo sua própria exposição (...)”
302
. Ou
seja, a sensibilidade é uma exposição em que o que está exposto é a própria exposição.
Enquanto na essência a ostentação do ser, na sensibilidade o que ocorre é uma exposição
da própria exposição.
Exposição dada antes de qualquer percepção que coloque em jogo a consciência, pois
o sensível “ata o da encarnação em uma intriga na qual estou atado aos outros antes de
estar atado ao meu corpo”
303
, ou seja, no para-o-outro da sensibilidade, antes de habitar um
corpo, estou em relação de proximidade com os outros.
É porque a subjetividade é sensibilidade exposição aos outros,
vulnerabilidade e responsabilidade na proximidade dos outros, o um-para-o-
outro, ou seja, significação e que a matéria é o próprio lugar do para-o-
outro, o modo cuja significação significa antes de se mostrar como Dito no
sistema do sincronismo no sistema lingüístico que o sujeito é de carne e
sangue, homem que tem fome e que come, entranhas dentro de um pele e,
assim, suscetível de dar o pão de sua boca ou dar sua pele.
304
297
AE, p. 110.
298
AE, p. 109.
299
AE, p. 111.
300
AE, p. 112, nota 1.
301
AE, p. 116.
302
AE, p. 116.
303
AE, p. 123.
304
AE, p. 124.
80
A subjetividade, portanto, é pura doação, é ser suscitado pelo Outro antes de qualquer
iniciativa, é sentir na carne e no sangue a animação – a inspiração proveniente do chamado
do Outro, aquele que “me arranca a palavra antes de aparecer a mim”
305
, inteligibilidade fora
da luz do sincronismo, fora do Dito, para-além da essência. Inspiração vinda de um tempo
antes do tempo, tempo pré-anárquico, esquecido do esquecimento. Como escreve Ciaramelli:
Antes de ser a manifestação ou a exibição da essência do ser, antes de se fixar
em correlação symplokhé de substantivos [noms] e de verbos -, a linguagem
é o próprio gesto da abertura não-intencional do um-ao-outro, a exposição a
outrem, o evento de um significante que não significa um conteúdo prévio,
mas a proximidade do falante ao interlocutor. Significação como doação de
signo.
306
O um-para-o-outro é a própria significação, abertura para toda a significação anterior
à essência, sensibilidade enquanto diacronia, sensibilidade “de carne e de sangue, eu estou
para aquém da anfibologia do ser e do ente”
307
. A abertura de significação não é receptividade
no sentido de um mundo se fazendo tema, exercício lúdico da intencionalidade, é exposição
sob a forma de doação do pão arrancado da própria boca – é proximidade.
O próximo me atinge [me frappe] antes de me atingir como se eu o houvesse
escutado antes que ele falasse. Anacronismo que atesta uma temporalidade
diferente daquela que escande [scande] a consciência. Ela desmonta o tempo
recuperável da história e da memória em que a representação se continua.
308
Não é nem na história, nem na memória que se pode recuperar o tempo diacrônico, do
Dizer, pré-anárquico, irreconciliável com o presente. Se, como vimos anteriormente, a busca
da arte moderna e contemporânea é a pesquisa pela forma nova é o repetido desdizer do
Dito podemos pensar que também não sena história ou na memória que o artista buscará
inspiração
309
. Neste sentido, se a subjetividade é a própria afetação, escuta da palavra de
outrem, então podemos dizer que a obra de arte é uma resposta a este chamado, resposta em
proximidade
310
.
305
AE, p. 124.
306
CIARAMELLI, Fabio. L’appel infini à l’interprétation…, op. cit., p. 45., p. 41.
307
AE, p. 127.
308
AE, p. 141.
309
Aqui podemos lembrar de Pietro, personagem do filme Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini que busca, em
seu êxtase artístico, criar uma obra não endividada com qualquer forma existente, que ignorasse a tradição e a
crítica.
310
Devemos esta reflexão à Magali Mendes de Menezes, recuperada de sua comunicação O tempo da escrita:
Maurice Blanchot e Emmanuel Levinas”, apresentada no “II Seminário Internacional Levinas e Educação
Desafios dos Direitos Humanos”, realizado em Passo Fundo – RS, em outubro 2007.
81
A diacronia da sensibilidade não pode se coagular em presente, se refere “a um
passado irrecuperável (...) que não se subordina às peripécias da representação ou do saber, à
abertura sobre imagens ou a uma troca de informações”
311
. Na proximidade se escuta um
chamado vindo de um passado que transborda a capacidade da memória, que não é da mesma
matéria que a memória, que nunca foi presente, que não começou em liberdade. Segundo
Levinas, “esta maneira do próximo é rosto”
312
.
O rosto é um dos ecos que o chamado do outro deixa nas areias do mundo. Seu
desvelamento é “nudez não-forma – abandono de si, envelhecimento, morrer; mais nu que a
nudez: pobreza, pele enrugada”
313
. O fenômeno do rosto desformaliza, é avesso à plasticidade
e a acabamento. Aponta justamente para o Infinito não apreensível pela representação, pela
imagem, recanto do para-além da essência, infinito que é testemunhado, e não tematizado
314
.
O próximo, em seu modo de ser rosto, é irredutível a uma forma, inverte a plasticidade em
chamado para a responsabilidade.
4.6. Diacronia e Imagem
Levinas não afirma que o fazer artístico tenha uma resolução ética: o rosto do próximo
é sempre o rosto humano. Por mais que o artista procure desdizer a forma a todo o instante,
almeje a pura verbalidade do verbo, necessariamente a obra de arte acaba por tombar-se em
formas e em imagens, mesmo que apenas pelo tempo necessário para que estas sejam
destruídas. O aviso de cautela dado em La Realité et son ombre vigora ainda em Autrement
qu’être, ainda que agora seja evidente uma mudança na postura do autor.
Como mostra Petitdemange (1999), alguns pontos acerca da estética que Levinas
não renunciará, pois “jamais algum poema, ou quadro, ou sinfonia terá a potência prescritiva e
movente [mouvant] do rosto de outro homem. O rosto, enquanto que ele ordena, não é
imagem, e jamais a imagem terá a força do rosto.”
315
Enquanto em 1948 a função da arte parecia estar decidida, em 1974 podemos
perceber uma tensão sobre este ponto na obra de Levinas, tensão que reflete tanto a
311
AE, p. 126.
312
AE, p. 141.
313
AE, p. 141.
314
AE, p. 232.
315
PETITDEMANGE, Guy. L’art, ombre de l’être ou voix vers l’autre?... op. cit., p. 90.
82
reconsideração do conceito de sensibilidade
316
quanto a importância dada à idéia de
proximidade.
Ora, a arte ainda é entendida como uma forma de perda do si-mesmo, como se via em
La Realite et son ombre, mas o estatuto desta perda agora é reavaliado, não se reduzindo mais
apenas a um êxtase imagético ou aprisionamento a um ritmo, agora esta forma de
despossessão de si marca justamente a entrega e a exposição a doação que caracteriza a
subjetividade, “uma saída de si da clandestinidade de sua identificação e já signo feito à outro,
signo desta doação de signo, (...) desta impossibilidade se de furtar e de se fazer substituir
(...): eis-me aqui!”
317
.
Aliás, esta perda de si mesmo no para-o-outro da responsabilidade irrevogável,
responsabilidade de cada um, insubstituível, intransferível, fardo exclusivo, esta perda que se
desfaz em exposição que abre para a significação, é possibilidade mesma de toda arte, como
escreve Levinas:
Signo dado desta significação de signo, a proximidade desenha também o
tropo [trope] do lirismo: amar dizendo o amor ao amado canto de amor,
possibilidade da poesia, da arte.
318
Como mostramos anteriormente, é a exibição da própria exibição o início de toda
significação
319
. Antes de qualquer juízo predicativo, de qualquer proposição exegética que
esgote o mundo na anfibologia do ser na essência, está-se diante deste mundo sob a forma de
um corpo de sangue e carne, corpo exposto e sensível, que sente ao expor-se como signo dado
em simples passividade e doação.
No final das contas, toda obra de arte, “toda imagem, enquanto signo dado-à,
comporta e mantém aberto em seu segredo o mistério de outrem e da morte”
320
, ou seja, é uma
forma de não-profanação. O contato e a carícia – formas não violentas de relação com o outro
– são anteriores ao Dito que sincroniza as possibilidades em concretudes.
É enquanto que possuídas pelo próximo e não enquanto que revestidas de
atributos culturais – é enquanto que relíquia que, de início, as coisas obsedam
[obsèdent]. Para-além da superfície “mineral” da coisa, o contato é obsessão
316
Petitdemange também aponta para uma tensão a respeito do conceito de sensibilidade, dizendo que que
Levinas, após La Realite et son ombre, “atenuará seu julgamento [com relação à arte], mas jamais voltará atrás
totalmente, abrindo deste modo a questão quase insolúvel do que possa significar para ele o sensível, ou a
natureza.” (PETITDEMANGE, Guy. L’art, ombre de l’être ou voix vers l’autre?... op. cit., p. 90., p. 89).
317
AE, p. 227.
318
AE, 227, nota 1.
319
Cabe aqui lembrar a seguinte passagem: “Em uma prece na qual o fiel demande que sua prece seja escutada, a
prece, de alguma maneira, precede a si própria ou segue-se a si própria.” (AE 24). Exposição da exposição,
doação sob forma de signo para-o-outro, passividade.
320
PETITDEMANGE, Guy. L’art, ombre de l’être ou voix vers l’autre?... op. cit., p. 93.
83
pelo vestígio [trace] de uma pele, pelo vestígio de um rosto invisível que
sustentam as coisas e que somente a reprodução fixa em ídolo. O contato
puramente mineral é privativo. A obsessão abre caminho [tranche] sobre a
retidão da consumação e do conhecimento. Mas a carícia dormita em todo
contato e o contato em toda experiência sensível (...): o tematizado
desaparece na carícia na qual a tematização se faz proximidade. aí,
certamente, uma parte de metáfora e as coisas seriam verdadeiras ou ilusórias
antes de serem próximas. Mas a poesia do mundo não é anterior à verdade
das coisas e inseparável da proximidade por excelência, daquela do próximo
ou da proximidade do próximo por excelência.
321
A deselegância da longa citação é justificada pela relevância desta passagem para
explicitar a tensão de Levinas com relação à arte. Como primeiro ponto a se destacar,
podemos perceber esta distinção feita entre poesia e verdade. Enquanto o Dito se reduz às
proposições apofânticas, aos juízos predicativos, que colocam o mundo em ordem, que
sincronizam o Dizer em tema, que fazem vibrar o mundo em seu caráter de verdade na
essência, a poesia é de outra ordem, é a exposição mesma, faz brilhar o Dizer enquanto escuta
da palavra do outro.
Certamente, a palavra ressoa na esfera do mundo, mas ela se exprime ela
própria, como por excesso de sentido, dizendo-se a outrem. Não poderia ela,
desde aí, ser entendida como uma procura pelo outro, sob a forma de uma
incessante questão?
322
Imediatamente, em sua nudez mais nua que toda nudez, as coisas do mundo se dão de
modo poético, poesia que não se resume meramente à tematização das coisas, anterior – como
se pode ler na passagem citada ao próprio revestimento cultural que permite dizer que uma
coisa é isto enquanto aquilo. A poesia faz ressoar o Dizer sob a forma de relíquias de um
passado que jamais foi presente, anterior ao tempo sincrônico. Podemos afirmar que escutar e
responder ao chamado do outro Dizer, passividade e exposição é uma forma de escandir
as coisas do mundo. A carícia é uma escansão do pré-original diacrônico.
Outra questão importante é a passagem da tematização para a proximidade. Na sua
anfibologia, o ser é ostentado enquanto verdade, como manifestação no mundo e no tempo da
sincronia. A proximidade, condição da significação e de toda tematização, é justamente o que
coloca em questão o ser enquanto realização no Dito, expõe a subjetividade como abertura,
como pele oferecida ao envelhecimento e à morte; “a proximidade, como se ela fosse abismo,
interrompe a ilacerável essência do ser”
323
.
321
AE, p. 122, nota 1.
322
FERON, Étienne. La réponse à l’Autre et la question de l’un…, op. cit., p. 70.
323
AE, p. 143.
84
O tematizado entra no jogo do interesse e das formas. Em La Realité et son ombre,
Levinas fala da arte como sonho (estado de êxtase que adormece a iniciativa do si-mesmo) e
ilusão (tomar a imagem pela coisa), metáforas que retornam em Autrement qu’être, como
podemos ler na seguinte passagem: “(...) sonho e a ilusão é o jogo de uma consciência sair
da obsessão, tocando o outro sem estar consignado por ele. Jogo da consciência
semelhança”
324
.
Ora, mesmo a sensibilidade podendo ter esta conotação de extrema passividade, de
nudez, de exposição, de escuta na forma de Dizer poesia -, Levinas é muito cauteloso,
fazendo questão de sempre apontar para o fato de que o diacrônico, o passado imemorial,
nunca pode ser resignado em uma forma, sob o risco da idolatria:
O passado imemorial é intolerável ao pensamento. Daí a exigência de deter-
se: ananké stenai. O movimento para-além do ser torna-se ontologia e
teologia. Daí também a idolatria do belo. Em sua indiscreta exposição e em
sua detenção de estátua, em sua plasticidade, a obra de arte se substitui a
Deus. (...) Por uma subrepção [subreption] irresistível, o incomparável, o dia-
crônico, o não-contemporâneo, pelo efeito de um esquematismo enganoso e
maravilhoso, é “imitado” pela arte que é iconografia. O movimento para-
além do ser se fixa em beleza. A teologia e a arte “retêm” o passado
imemorial.
325
O não-contemporâneo é aquela dimensão que transborda qualquer tentativa de
formalização, que não pode ser contida detida - em plasticidade. O passado imemorial está
para-além da categoria de beleza
326
, é a própria colocação em questão desta categoria. Nudez
e beleza não são conciliáveis.
A crítica de Levinas e sua relutância em tomar a arte como saída ética recai sobre
esta tentativa do artista de dar conta do infinito através de formas e de plasticidade. uma
profunda preocupação de que o passado anárquico que surge no mundo através do
fenômeno do rosto - não se concretize em ontologia, teologia ou idolatria: “A proximidade
aparece como a relação com Outrem, que não pode se resolver em ‘imagens’ nem se expor em
tema (...)”
327
.
A arte é por um lado vista como tendo por característica a imitação e a semelhança e,
por outro, entretanto, o fazer artístico - enquanto busca pela forma sempre diferente -, é a
324
AE, p. 138, nota 2.
325
AE, p. 235, nota 1.
326
Se bem que, como nos mostra Petitdemange, exista ainda um outro modo de entender esta questão da beleza:
“(...) esta linguagem expressiva do belo, na forma estética, de todo modo imperfeita uma que não-discurso, se
resume em ‘canto’, o qual, atualmente, em lugar de fixar o instante em eternidade, abre à duração, a seu ritmo
que não é mais que aquele do ser, mas da comunidade sempre por vir.” (PETITDEMANGE, Guy. L’art, ombre
de l’être ou voix vers l’autre?... op. cit., p. 91)
327
AE, p. 157.
85
própria tentativa de não-estagnação na plasticidade e de não-imaginarização do infinito. Aqui
mais uma vez é possível pensarmos a diferença entre a arte representativa e a arte
contemporânea: por mais que esta última ainda precise da sustentação da forma, ela não é
mais ingênua a ponto de tomar a imagem pela coisa.
O artista não é um mais aquele de La Realité et son ombre, excluído do mundo por
detrás das imagens que produz, mas agora é também responsável, o que não implica um
engajamento, como gostaria Sartre:
É de uma maneira, completamente diferente do engajamento, que o um está
implicado no um-pelo-outro. Não se trata de uma derrelição [déréliction] em
um mundo (...). Trata-se de uma significação em que, certamente, a
instalação e a representação justificam seus sentidos; mas de uma
significação que, para aquém de todo o mundo, significa a proximidade do
Mesmo e do Outro e na qual a implicação do um pelo outro significa a
assignação do um pelo outro.
328
Esta assignação de que fala Levinas é a própria significação, a abertura para
significação. Mais-aquém do mundo porque responsabilidade anterior a qualquer contrato,
responsabilidade não inscrita na memória e no tempo sincronizável, assumida antes de a
subjetividade se cristalizar em sujeito. O artista é aquele que escuta o chamado do outro e
forma aos vestígios da passagem do Infinito, reduzindo o Rosto a uma forma plástica.
4.7. Entretempo
Em La Realité et son ombre, o entretempo é aquela dimensão temporal à qual estão
condenadas as obras de arte: é um tempo aquém do tempo, fora mesmo da sincronização do
presente – é a impossibilidade da morte, o porvir estagnado em destino. É curioso que Levinas
retome este conceito em Autrement qu’être, atribuindo-lhe um caráter bastante distinto
daquele de 1948:
O um e o outro separados pelo intervalo da diferença ou pelo entretempo
que a não-indiferença da responsabilidade não anula não estão obrigados e
reunir-se na sincronia de uma estrutura ou a comprimir-se em um “estado de
alma”.
329
O entretempo parece agora estar relacionado à idéia de separação, de santidade do
Outro. Como se o abismo que separa o mesmo do outro separação radical, absoluta - se
traduzisse sob a forma temporal do entretempo. Podemos entender que o entretempo é agora
328
AE, p. 215.
329
AE, p. 221.
86
entendido como o tempo da responsabilidade e da exposição, o próprio tempo da
sensibilidade. Aquele domínio do mais aquém, tão monstruosamente descrito por Levinas em
1948 – reino do não-ser, da semelhança, da ilusão e da imagem -, parece agora ser a dimensão
da diacronia, do fora-do-tempo sincronizável.
Levinas não dá muitos indícios para que o leitor acompanhe este itinerário que permita
um entendimento tão divergente do entretempo. É possível, entretanto, buscar alguns
elementos de reflexão no tocante à reconsideração do conceito de sensibilidade, pois esta
passa a ter, agora, não somente o sentido de movimento produtor de imagens, mas também de
uma proximidade “que não é uma confusão com outrem (...) mas significação incessante in-
quietude pelo outro”
330
, ou seja, a proximidade acaba por manter a separação entre o mesmo e
o outro. A carícia da sensibilidade afaga outrem enquanto ausência.
É no entretempo da separação que o Infinito deixa de ser tematizado para ser
testemunhado, testemunho que é “passividade sem fundo da responsabilidade e, deste modo, a
sinceridade – o sentido da linguagem antes que a linguagem se dissipe em palavras”
331
.
Testemunhar a passagem do infinito é deixar-se inspirar, perceber-se responsável
respondendo “eis-me aqui” [me voici]
332
. No registro do testemunho, podemos dizer que a
linguagem
excederia os limites do pensamento ao sugerir, deixando subentender, sem
jamais fazer entender implicação de um sentido distinto daquele que vem
ao signo da simultaneidade do sistema ou da definição lógica de um conceito.
Virtude que se coloca a nu no dito poético e na interpretação ao infinito que
este apela.
333
A linguagem, portanto, excedendo os limites da tematização ao se fazer sugestão, ou
seja, ao expor sem mostrar. A poesia, “à sincronia de uma ontologia acabada (...) substitui a
busca diacrônica do encontro com o Outro e os imprevistos do diálogo”
334
. Artifício de
tensionar a forma
335
, de esmorecer a rigidez dos limites da forma, de dizer o mundo
330
AE, p. 224.
331
AE, p. 236.
332
Cf. AE, cap. V.
333
AE, p. 236.
334
CHARLES, Daniel. Éthique et esthétique dans la pensée d'Emmanuel Levinas…, op. cit., p. 7.
335
Bruns lança algumas interessantes luzes sobre este ponto: “(...) a linguagem poética não é somente uma massa
inerte, não é meramente um vazio ou opaco ‘véu das palavras estético; antes, é um evento discursivo que
interrompe o movimento lógico ou dialético da significação e, daí por diante, abre uma dimensão de
exterioridade ou desmundanidade (worldlessness) – um mundo sem coisas, ou talvez pode-se dizer: coisas
libertas do mundo.” (BRUNS, Gerald L. The concepts of art and poetry in Emmanuel Levinas’s writings…, op.
cit., p. 210).
87
poeticamente dizer despido de dito, significação do um para o outro -, modo de dizer
outramente.
88
Conclusão
Paradoxal posição esta em que nos encontramos agora, a de apresentar uma conclusão
justamente para um trabalho que teve como assunto a discussão do pensamento estético de
Emmanuel Levinas, um autor tão pouco afeito aos pontos finais e ao aprisionamento das
idéias em frases bem acabadas. Seguiremos, portanto, a inspiração do filósofo lituano e, ao
invés de reforçarmos os pontos abordados nos capítulos anteriores, faremos uma tentativa de,
ao colocá-los em relação uns com os outros, abri-los para posteriores desenvolvimentos, com
o intuito de temporalizar este texto, buscando não relegá-lo às sombras dos assuntos
encerrados.
Como mencionamos en passant anteriormente, acreditamos que o conceito de
entretempo seja aquele que melhor permite uma espécie de ponto de apoio para percebermos
como a teorização sobre estética, em Levinas, é rica em possibilidades. Se no rígido La réalité
et son ombre, de 1948, o entretempo é aquela dimensão à qual está condenado o mundo
através de sua apreensão estética, é o reino das sombras e do não-ser, do destino
incomensurável, em Autrement qu’être, de 1974, a situação é completamente outra: o tempo
do entretempo, este tempo fora do presente da hipóstase, é o palco mesmo da possibilidade de
evasão, da saída de um mundo findado nas formas e nos conceitos. O artista, antes exilado do
mundo sério e responsável, é agora tomado em sua faceta humana, alguém que não se
contenta com a superficialidade do cotidiano, que almeja sempre a busca do novo, do
diferente. É um questionador do estado das coisas.
Outro conceito que nos parece interessante pelo seu desenvolvimento no decorrer
das obras é o de ritmo. Em La réalité et son ombre, o ritmo trazia consigo a condenação ao
exotismo, a obra de arte condenava artistas e fruidores ao limbo do mundo que não começa,
que se rende suspenso no não-ser e na ilusão. O ritmo de 1948 pode ser entendido como
aqueles repetidos rangidos das máquinas a vapor nas fábricas, um esquecimento do humano
revestido de chamado das sereias do mundo moderno. A preocupação de Levinas parecia estar
voltada a estes homens “sem coragem de terminar nem força de continuar”, como diria
Samuel Beckett
336
. Aos poucos, entretanto, o vapor das fábricas vai ficando mais rarefeito e o
336
BECKETT, S. “O Fim” [1946], in. ______. Novelas. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes,
89
ritmo passa a adquirir outras significações, como em Autrement qu’être, obra em que ele é
transmutado na musicalidade própria do movimento do ser, a essência. Em 1974, o ritmo é
aquele da verbalidade do mundo, da realidade em movimento adverbial, não esgotada na
hipóstase e no silêncio.
Apesar de nunca ter sido tematizada por Levinas sob forma conceitual, a idéia de
ausência é também uma constante importante em seu pensamento sobre estética. Em La
réalité et son ombre é como se a obra e o artista estivessem ausentes do mundo, vivendo na
solidão de um sonambulismo entretecido pela ilusão. O artista é alguém que não responde às
agruras dos tempos, que não se abala com o estampido dos tiros e que o se enoja com o
cheiro dos cadáveres. Ausente, resta insone em seu mundo de beleza e de imagens sem
palavras. Já nos artigos de En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger, por exemplo,
da década de sessenta, a ausência pode ser entendida como sendo a sustentação do estilo do
artista: depois de realizar o ato criativo, o artista ausenta-se e, desta forma, lança a obra para
longe de seu campo escópico, para que sobre ela sejam feitas críticas e comentários. A
presença da ausência do artista é o que possibilita a palavra sobre seus trabalhos. Por fim, em
Autrement qu’être, a ausência de que se fala é aquela da alteridade, ausência que se desdobra
no mundo como uma ruptura, como um suspender das certezas. É respondendo a esta
ausência que o artista se coloca como um homem que tem algo a dizer de modo responsável;
ele agora está em estado de busca pela outra forma de expor suas idéias, pela vanguarda, pelo
que há de novo e ainda não apresentado.
No fim das contas, é a consideração acerca da estética como um todo que sofre
modificações ao longo da obra de Emmanuel Levinas. Se no princípio a estética era o refúgio
da desumanidade, o calabouço da ilusão e das imagens pregnantes porém sem sentido, ao
final, nos textos derradeiros do filósofo, ela é quase como uma ante-sala da ética, talvez uma
condição para o encontro com o rosto do Outro. O brilho que coroa o Infinito pode ser
vislumbrado por olhos capazes de serem afetados, por vistas cansadas que podem ser
surpreendidas pela intensidade do resplendor do rosto. É preciso antes ter sido construído um
mundo para que depois ele venha a ser questionado em seu regelamento de forma bela, sem
arestas.
É interessante que possamos perceber na própria escrita de Levinas, na história de seus
textos, artigos e livros, esta preocupação com o não-esgotamento dos assuntos abordados,
com o cuidado em utilizar mais do ponto de interrogação e das reticências que do ponto final,
tão abrupto em sua aspiração à certeza. Os escritos do filósofo fazem-se como que ondas que
2006, p. 82.
90
vão e vem ao sabor da leitura, que revigoram as margens em seu movimento de cada vez
trazer algo novo, talvez um questionamento ou uma indecisão. É na ressaca de mar de obras
que podemos nos permitir tomar alguns dos chamados paradoxos de Levinas para propormos
uma nova leitura, um novo enfoque. Enfim, de alguma forma, escrever sobre as idéias deste
autor parece ser uma forma de responder à potência que têm suas palavras de radicalizar o
mundo em que vivemos, de apontar para um futuro envolto em segredo e enigma.
Acreditamos que este trabalho terá tido êxito se em algum momento o leitor tiver se
inquietado com algumas das idéias apresentadas, tiver sentido vontade de ler ou reler os
livros de Levinas, tiver colocado em questão algum pensamento que antes parecia decidido. O
objetivo não foi sustentar até o fim um ponto de vista, mas antes enfrentar de modo
justificável os paradoxos, contradições e chamamentos da estética do autor, acreditando que
seja nestes espaços de penumbra que brotam as mais frutíferas discussões.
91
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Humanismo do outro homem. Trad. Pergentino S. Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 1993.
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92
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[Révue Eletronique de L’Université de Nice] n. 3, 1999. Disponível em
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