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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Maristela Barenco Corrêa de Mello
Da morte do General à busca rizomática:
o ato de escrever como possibilidade de emancipação
- Agenciamentos entre Cora Coralina,
Gilles Deleuze e Félix Guattari -
Rio de Janeiro, R.J.
2005
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Maristela Barenco Corrêa de Mello
Da morte do General
1
à busca rizomática:
o ato de escrever como possibilidade
de emancipação
- Agenciamentos entre Cora Coralina,
Gilles Deleuze e Félix Guattari -
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, como requisito
parcial para obtenção do grau de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Cavalieri Bazílio
Rio de Janeiro, R.J.
2005
1 Deleuze e Guattari utilizam a categoria General para evidenciar o sistema hierarquizado,
considerado arborescente, centrado e ditatorial do inconsciente, fundado sobre o poder
tamm ditatorial da Psicanálise, que sempre encontra um chefe e um general, o pai, enfim,
o uno. Cfr. DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs:
Capitalismo e Esquizofrenia, v. 1. São Paulo: Editora 34,1995, p. 28 (Coleção Trans).
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Maristela Barenco Corrêa de Mello
Da morte do General à busca rizomática:
o ato de escrever como possibilidade
de emancipação
- Agenciamentos entre Cora Coralina,
Gilles Deleuze e Félix Guattari
Banca examinadora:
Luiz Cavalieri Bazílio
Orientador
Walter Omar Kohan
Leonardo Boff
Em busca da velocidade que se adquire no meio...
Um rizoma não começa nem conclui,
ele se encontra sempre no meio,
entre as coisas, inter-ser, intermezzo .
A árvore é filiação,
mas o rizoma é aliança, unicamente aliança.
A árvore impõe o verbo
A
ser,
mas o rizoma tem como t
ecido a conjunção
A
e...e...e...
@
Há nesta conjunção força suficiente
para sacudir e desenraizar o verbo ser
2
.
2 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, v. 1. São Paulo: Editora 34,1995, p. 37 (Colão Trans).
Eu não conseguiria falar de ciência, filosofia e poesia, se não estendesse tal
reflexão ao processo cotidiano da vida e de suas inter-relações. Não consigo pensar
em uma ciência ou teoria que não esteja a serviço de um projeto potico de ser
humano, de relações e de humanidade. Nada de positivismo! Mas não posso abrir mão
da teologia e da psicologia como ótica e como olhar, herdados na minha formação.
Sem pensar o cotidiano da vida e de suas múltiplas inter-relações não consigo pensar a
ciência. E assumo isso tranquilamente.
Pois bem... fico pensando... Se é tão difícil entender, teoricamente, a lógica
do rizoma, por outro lado, o que de mais rizomático do que a vida de cada pessoa?
Bastávamos reconhecer esse dado. E talvez a humanidade sofresse menos, porque se
conhecesse mais... no exato sentido de um desconhecimento diante das inúmeras
possibilidades de uma multiplicidade.
A árvore que existe em nossa >cabeça=, como lógica, e que determinou e
ainda determina a forma como devemos conceber o conhecimento e a realidade, ilude-
nos em relação à dinâmica estática da vida que nos apresenta. A partir dela,
aprendemos que a vida é linearidade; que os encontros preexistem; que a realidade é
previvel; que dispomos de modelos prontos e categorizados à nossa disposição; que
relações de origem que determinam o que vi e será; que rupturas
incontornáveis; que crises se >aprofundam=; que um dentro, pura interioridade,
separado de um fora; que há um ponto de sda e um objetivo a ser alcançado; que o
sentido é determinado apenas pelo dentro; que a salvação vem do >alto= e de fora; que
salvação; que um cronos determinando aquilo que somos; que os espaços e
lugares não são mutáveis; que não entradas e nem saídas e que o percurso é
inexorável...
A lógica do rizoma está para evidenciar que há crises extremamente
promissoras. Desterritorializar-se, a partir dessa lógica, é muito desconfortável. Mas
talvez se aproxime do desconforto mais confortante pelo qual poderíamos ter a
oportunidade de passar.
A lógica do rizoma não é oposta à da árvore. É apenas um antimodelo. O
rizoma nos lembra que a vida não é estrutura, totalidade determinada, não é linear e
preexistente, mas fluxo de agenciamentos com um fora. Pensemos na imobilidade e
realidade estática de uma estrutura, com seus pontos. Agora, coloquemos muita
velocidade nesse quadro imaginado. A estrutura se desfaz. Os pontos convertem-se
em linhas: de articulação, segmentaridade, estratificação, fuga, desterritorialização...
Um rizoma é atravessado por essas múltiplas linhas e agenciamentos. Por eles, as
realidades se ampliam e mudam de natureza por se conectarem a outras. Existem
terririos, como momentos de apropriação e subjetivação, mas que são sobretudo
mapas, conectáveis de todas as maneiras, com múltiplas entradas e saídas. Um
terririo se define por um fora. E há os devires, fluxos de desejos, que nos
movimentam em um intempestivo...
Não somos árvores. Somos rizomas, tubérculos. Pura potência! Espírito
nômade. Podemos, pois, relaxar: não há modelos a serem imitados, não percursos
predeterminados, não estamos presos em nenhum ponto de saída e não há ponto de
chegada. sempre muitas possibilidades acontecendo... exatamente no meio! O meio
é a gênese e é o >lugar= onde a realidade adquire velocidade.
E aqui, nessa constatação, uma ironia. Na velocidade, os aparentes opostos
se conectam. Embora a lógica rizomática caminhe na contramão de um >Uno= e de
>transcendência=, a lógica do rizoma aproxima-se de um viés de espiritualidade, ainda
que de forma imanente. E diamos até de um viés de religiosidade, no sentido de um
>religare= (ainda que hajam rupturas a-significantes em um rizoma, uma ruptura
reconhece uma ligação). Sobretudo a lógica da espiritualidade oriental, budista e
hindu, trabalha bastante a idéia de um aqui e agora que, mais do que cronológico,
aponta para um intempestivo, a-temporal. O místico é aquele que se liberta da
nostalgia do passado e da ansiedade em relação ao futuro e está desperto, aqui, para
as múltiplas relações da vida, literais. Presente como iluminação, como sinapse, como
religação, como rizoma... Sem modelos, sem objetivos. Apenas permissão, para
desterritorializar-se e reterritorializar-se permanentemente. E uma abertura para se
experimentar uma infinidade de devires meditativos. O desejo é questionado, cada vez
que ele se transforma na ilusão da árvore...
O rizoma tamm é muito próximo de uma abordagem ecológica. Ecologia
o como temática ambiental, mas como paradigma das intro-retro-relações. Como
ciência, a Ecologia está mais próxima da lógica do rizoma do que qualquer outra,
exatamente por constituir-se a partir de novos paradigmas. Guattari parece ter
reconhecido isso quando se aproximou dos movimentos ecológicos.
A esperança imanente que uma lógica rizomática possibilita é mais vibrante e
intensa do que a desesperança, a insegurança e o medo que sentimos a cada vez que
ousamos deixar o território e o sedentarismo da árvore... Sem a referência de uma
totalidade e linearidade históricas sentimo-nos um tanto perdidos. É fato. Mas o
rizoma não é labirinto. É potência, possibilidade. E a proposta não é eliminar as
árvores. Mas perceber que a mesma terra - que abriga a raiz que desponta, vivel, na
verticalidade de uma árvore - também abriga o rizoma, tubérculo radiciforme, que se
conecta com a diversidade que o cerca, na horizontalidade subterrânea, que não se vê.
Precisamos deixar de enxergar a vida a partir da árvore. É preciso devir-terra!
Na perspectiva da árvore, uma mudança de lógica exige esforço e trabalho.
Mas talvez a mudança tenha outro significado na lógica do rizoma. Há uma história,
de inspiração oriental, que nos possibilita nos aproximar do que vem a ser um
intempestivo. Que ela fale por si mesma!
Vou contar a você uma antiga parábola hindu.
Um grande santo, Narada, estava indo ao Paraíso. Ele costumava viajar
entre o Paraíso e a Terra. Funcionava como uma espécie de mensageiro entre o outro
mundo e este mundo, ele fazia a ponte entre os dois.
Encontrou um velho sábio, muito velho, sentado sob uma árvore repetindo
seu mantra. Ele estivera repetindo aquele mantra durante muitos anos, muitas vidas.
Narada perguntou a ele: AVocê gostaria de fazer alguma pergunta? Gostaria de enviar
alguma mensagem ao Senhor?@ O velho abriu seus olhos e disse: AApenas uma
pergunta: quanto tempo mais eu tenho que esperar? Quanto tempo? Diga a ele que já
estou cansado. Durante muitas vidas estive repetindo esse mantra, por quanto tempo
ele espera que eu continue fazendo isso? Estou cansado disso, estou cheio disso.@
Ao lado do velho sábio havia um jovem com uma ektara, um instrumento
de uma só corda, e ele estava cantando e dançando. Narada perguntou a ele,
brincando: AVocê também quer perguntar quanto tempo i demorar aque você seja
iluminado?@ Mas o jovem nem mesmo respondeu, apenas continuou a dançar. Narada
perguntou de novo: AEstou indo falar com o Senhor. Você não tem nada a dizer?@
Mas o jovem apenas sorriu e continuou a dançar.
Quando Narada voltou, alguns dias depois, ele disse ao velho: ADeus disse
que você terá que esperar pelo menos mais três vidas.@ O velho ficou tão furioso que
jogou no chão seu colar de oração. Estava prestes a bater em Narada. Disse: AIsso não
faz o menor sentido! Tenho esperado durante muito tempo e tenho sido
absolutamente austero, tenho recitado os mantras, jejuado, cumprido todos os rituais.
Já cumpri todos os requisitos. Três vidas! Isso é injusto!@.
O jovem continuava a dançar alegremente sob a outra árvore. Narada ficou
receoso, mas ainda assim foi até e disse a ele: AApesar de você não ter perguntado
nada, fiquei curioso e fiz eu mesmo a pergunta. Quando o Senhor disse que esse
velho homem teria que esperar mais três vidas, perguntei sobre o jovem que daava
ao seu lado, tocando a ektara. E ele disse: >Esse jovem terá que esperar tantas vidas
quanto forem as folhas da árvore sob a qual ele está dançando.=@
E o jovem começou a dançar ainda mais rápido e respondeu: ATantas
folhas quanto houver nesta árvore? Então está próximo, então euestou lá. Pense
em quantas árvores há na terra e compare! Então está muito próximo. Muito
obrigado, senhor, por ter perguntado.@ E continuou a dançar. E a história diz que o
jovem atingiu a iluminação imediatamente, naquele instante.
3
3 OSHO, Uma Parábola sobre a Ambição e a Pressa. In: IDEM, O Livro da Transformação:
Histórias e parábolas das grandes tradições espirituais para iluminar sua vida. Rio de Janeiro:
Sextante, 1999, p. 24.
Dedico esta dissertação
À Clara, minha filha,
luz nas minhas travessias.
E à Cora Coralina,
pela afinidade de territórios e almas,
pelo grande encontro.
Cora passou em meu território
com a intensidade devastadora
do Rio Vermelho,
em época de cheia:
não provocou apenas desterritorializações.
Destruiu um território
e tem me reterritorializado nômade.
Agradecimentos
Numa perspectiva rizomática, são inconveis os encontros, as conexões, os
agenciamentos, as linhas de fuga, os graus de desterritorialização e reterritorialização
B
movimento da Vida - que atravessaram o terririo-mapa de minha vida aaqui... Sendo
inumeráveis, o todos axiais, inclusive aqueles que me aproximaram de uma
heterogeneidade e que provocaram rupturas. o são hierarquiveis. E sou grata a todos.
Mas gostaria de agradecer especialmente a algumas pessoas.
Ao meu rizoma-família, sobretudo as mulheres, pela criatividade e a potência
nômade, cuja herança persiste para além da mundança de terririos.
Aos meus companheiros e companheiras do CDDH
B
Petpolis, pelos
agenciamentos cotidianos e duradouros, pela convivência amiga e alegre, pela partilha de
territórios e busca das novas reterritorializações, pelo sonho em comum de territórios mais
includentes e justos. Em especial, agradeço à Eliete, parceira de coordenação, que assumiu
as minhas ausências sem pesar, e ao Fernando Barenco, que me ajudou a criar as imagens
rizomáticas deste trabalho.
A todos os parceiros-beneficiários do CDDH que se inserem em nossos Projetos:
constituem o
>
fora
=
que alimenta e reanima o meu mapa. Em especial, agradeço ao André,
jovem que nos chega diariamente ao Projeto Pão & Beleza, por ser incansável mestre a nos
alertar que a lógica da árvore não é a lógica da vida. Sem essa relação-desafio, teria sido
mais difícil compreender o rizoma...
Às pessoas que promoveram agenciamentos cognitivos e intelectuais importantes
em minha vida: Leonardo Boff, Márcia Miranda, Celiomar, Juninho, Marisol e Ronaldo.
Com eles despertei para o gosto de uma intelectualidade e aprendi que intelectualidade,
sensibilidade e justiça fazem rizoma. Com o Leonardo, aprendi a importância dos devires
minoritários. Tais agenciamentos me constituem enquanto terririo.
Aos amigos Pedro Paulo Monteiro e Kênia. Em tempos de desterritorialização
absoluta, constitram-se territórios solirios vitais.
Aos Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em especial, Luiz
Cavalieri Bazílio, meu orientador, e ao Walter O. Kohan,
>
mapas
=
de pura inclusividade.
Considero-os
A
terras novas, virgens de Édipo
@
no terririo da Academia. Ainda na Uerj,
recordo com carinho dos funciorios do estacionamento
B
administradores de um
>
território
sem vagas
=
-, e da Jorgete, da Secretaria: fazem da Uerj terras de acolhimento, ainda que
sem o reconhecimento.
À Ana Paula, minha secretária, estabilidade do meu terririo, que cuida daquilo
que temos e somos, e que me permite tantas desterritorializações e viagens...
Ao Ronaldo Fiuza Lima, amigo 21 anos, interlocução permanente dessa
dissertação, pela presença constante. Tal reencontro inspira-me uma intensa
reterritorialização.
À Capes, pelo fundamental financiamento de nosso curso.
Sumário
RESUMO 1
ABSTRACT 3
NOTA 5
PARTE I - Prefácio: >Chaves de leitura= para uma travessia... 6
1.1. Sobre os Agenciamentos 15
1.2. A perspectiva da Literatura 17
1.3. A perspectiva Arizomática@ de Cora Coralina 21
1.4. O encontro com as lógicas arborescente e rizomática 32
1.5. Em busca de uma escrita made e rizomorfa 34
1.6. Limites que nos acompanham 37
PARTE II - Platôs: Uma leitura de Cora
à luz de Gilles Deleuze e Félix Guattari 40
Gravura 1
Conceito Multiplicidade e Rizoma 2
Gravura 5
A escrita rizomática de Cora Coralina 6
Gravura 1
Conceito Devir 2
Gravura 10
Cora Coralina: Uma explosão de devires 11
Gravura 1
Conceito Literalidade 2
Gravura 6
Literalidade em Cora Coralina: a experiência dos Becos de Goiás
como Arizomas@ de uma Cidade 7
Gravura 1
Conceito - Linhas de Fuga, Desterritorialização e Reterritorialização 2
Gravura 5
Linhas de Fuga, Desterritorialização e Reterritorialização
em Cora Coralina 6
Gravura 1
A Literatura em Gilles Deleuze, Félix Guattari e Cora Coralina: possibilidade de
emancipação 2
CONSIDERAÇÕES 1
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 5
1
Resumo
A presente dissertação, ensaio monográfico de cunho filofico-literário-
poético, insere-se na Linha de Pesquisa Infância, Juventude e Educação, do Programa
de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
Tem como proposta promover agenciamentos entre os filósofos Gilles
Deleuze, Félix Guattari e a escritora Cora Coralina. Empreendemos uma releitura da
obra completa de Cora Coralina B que ênfase à Infância, à Escola e à Escrita -,
inspirados em alguns conceitos filosóficos de Deleuze e Guattari, tais como
multiplicidade, rizoma, devir, platô, literalidade, linha de fuga, desterritorialização e
reterritorialização B que postulam a realidade como multiplicidade e uma lógica,
denominada rizomática, como alternativa à lógica clássica do pensamento e da
ciência, considerada arborescente.
A partir desses agenciamentos B não prévios B procuramos sistematizar essa
releitura de Cora Coralina, buscando escrever em forma de platôs, zonas de
intensidade contínua, que constituem um método, plano de composição das
multiplicidades. A característica fundamental de um platô, que o difere de um capítulo,
é que pode ser lido em qualquer posição e relacionado com outro.
2
Deleuze e Guattari postulam percursos inéditos em relação à atividade
literária, permitindo-nos inserir a escrita em um horizonte possível de emancipação,
entendida aqui como desterritorialização e reterritorialização e não como
demarcação e fixação em um território. A escrita de Cora Coralina evidencia esse
modo de emancipação.
3
Abstract
The present dissertation, a monographic rehearsal of philosophical-literary-
poetic creation, introduces itself into the Line of Infancy, Youth and Education
Research of the Postgraduate Program in Education within the Faculty of Education
at the State University of Rio de Janeiro.
It has as its proposal the promotion of agencements among the philosophers
Gilles Deleuze, Félix Guattari and the writer Cora Coralina. We undertake a rereading
of the complete work of Cora Coralina C that gives emphasis to Infancy, to School
and to Writing C, inspired upon some of the philosophical concepts of Deleuze and
Guattari, such as multiplicity, rhizome, becoming, plateau, literacy, lines of escape,
disterritorialization and reterritorialization C that postulate a reality as multiplicity and
a logic, denominated rhizomatic, as an alternative to the classical logic of thought and
of science, considered arborescent.
From these agencements C not prior C we strive to systematize this
rereading of Cora Coralina, seeking to write in the form of plateaux, zones of
continual intensity, that constitute a method, a plan of composition of the
4
multiplicities. The fundamental characteristic of a plateau, that makes it different from
a chapter, is that it can be read in any position and related to another.
Deleuze and Guattari postulate unprecedented ways to relate to literary
activity, allowing us to insert the writing within a possible emancipation horizon,
understood here as disterritorialization and reterritorialization and not as demarcation
and fixation within a territory. The way Cora Coralina writes makes this mode of
emancipation evident.
5
Nota
A presente dissertação é um ensaio escrito na forma de plas. Com exceção
da parte intitulada PARTE I - Prefácio: >
>>
>Chaves de leitura=
==
= para uma
travessia..., onde explicaremos melhor a metodologia do trabalho, a outra
parte poderá ser lida de forma independente, em cada subtítulo, na ordem
desejada pelo leitor. Daí a numeração recomeçar em cada uma dessas partes.
Ainda sugerimos que as Considerações sejam lidas apenas no final.
6
PARTE I
Prefácio:
>
>>
>Chaves de leitura=
==
=
4
para uma travessia...
Multiplicidades e rizomas suprimem premissas! Logo, não devemos partir
de muitas premissas... a não ser desta, que nos legitima e nos libera de qualquer
outra...
Importante, contudo, é dizer, não como icio, mas em todo o meio da
dissertação, que a proposta que ora se apresenta constitui uma desterritorialização
5
em relação ao território das dissertações. E uma reterritorialização
6
a partir da
perspectiva teórica do filósofo Gilles Deleuze e do Psicanalista Félix Guattari. Ao nos
referenciarmos nesses autores, tal perspectiva torna-se fundamental.
4 Entendo pelo termo Achaves de leitura@ enunciados que nos permitem Adecifrar@, de uma maneira
inusitada, algumas questões referentes a uma determinada temática, além de sugerir a possibilidade de se
encontrar outras questões, dentro e fora do temática-texto postulada, favorecendo múltiplas leituras de
mundo.
5 Desterritorialização, neologismo surgido e consolidado a partir da Obra Anti-Édipo, é um conceito-
chave do pensamento filosófico de Deleuze e Guattari, que emerge numa concepção cartográfica, que
privilegia planos, mapas, estratos, linhas de fuga, segmentos. Território tamm é compreendido de forma
existencial. Tal conceito tem a ver com outros três: território, terra e reterritorialização. O território é
sinônimo de apropriação e de subjetivação fechada sobre si mesmo. Desterritorializar-se significa
implicar-se em linhas de fuga. O território cria um agenciamento e se define por um fora.
6 É o estado que sucede a toda desterritorizalização, entendida aqui não como espaço geográfico, mas
existencial. Através da desterritorizalização, deixa-se um território e busca-se outro, ainda que este seja
o território de um permanente nomadismo. Implica na experiência de novos territórios, resultado de
agenciamentos com um Afora@, a partir de traçados de linhas de fuga.
7
Deleuze e Guattari são, sobretudo, pensadores e criadores de conceitos.
Repensam e buscam desconstruir o que é instituído, modelo, clichê e reprodução, já
que nada pode preexistir ao múltiplo e rizomático. Por isso, também, evitam
glossários. A classificação e a totalização de conceitos sugerem o fechamento em
territórios, o que equivale caminhar na contramão da proposta em questão. A riqueza
de seus conceitos não se esgota e se clarifica em apenas um livro-texto. Muito pelo
contrário, para que se apreenda minimamente a riqueza de um desses conceitos,
grande parte das vezes é importante que possamos conhecê-los em muitos textos-
contextos distintos. François Zourabichvili adverte-nos sobre o risco de tomarmos
esses conceitos como familiares e compreenveis, quando não o são:
Ainda não conhecemos o pensamento de Deleuze. Com muita freqüência, hostis ou
admiradores, agimos como esses conceitos nos fossem familiares, como se bastasse
que eles nos tocassem para que estimássemos compreendê-los por meias palavras, ou
como se já tivéssemos percorrido suas promessas (...).
7
E, em seguida, atribui tal dificuldade à falta de monografias que exponham
os conceitos Deleuzianos:
Eis por que não dispomos de um excesso de monografias sobre Deleuze; ao contrio,
falta-nos monografias consistentes, isto é, livros que exponham seus conceitos (...).
8
7 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze. Trad. A. Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2004, p. 10.
8 IDEM, Ibidem, p. 10.
8
Eis o primeiro grande desafio. Como inserir o leitor num horizonte de
novos conceitos, sem cair na armadilha de montar um glossário? Buscamos responder
esse desafio da seguinte maneira: na primeira parte, todos os conceitos de Gilles
Deleuze e Félix Guattari aparecerão, no texto, em modo itálico. E de forma bastante
superficial, haverá, no rodapé, uma breve Achave de leitura@ para compreensão desse
conceito.
Na segunda parte, buscamos experimentar escrever na forma de platôs
9
,
plano de composição das multiplicidades. Tal decisão implica num método
conseqüente: o escrever em forma de capítulos; evitar partir de apenas um ponto;
permitir-se repetir textos e idéias, em platôs diferentes, sem a preocupação de uma
linearidade irreversível das idéias; e o maior exercício de abstinência para a razão
moderna: escapar à lógica de desenvolver pontos culminantes, de elaborar conclusões
e enunciar descobertas iditas... ainda que tenhamos a ilusão de uma aproximação
desse porte.
Sendo assim, nesta segunda parte, assumiremos um duplo desafio. Na forma
de platôs, pretendemos aprofundar os conceitos deleuzo-guattarianos, já que um dos
objetivos acadêmicos em questão é promover um diálogo através dos conceitos
filoficos desses autores; e pretendemos também entrar nos textos e na inspiração da
9 Os platôs são considerados o plano de composição das multiplicidades e entendidos como zonas de
intensidade contínua, já que numa perspectiva cartográfica, as realidades-mapas apenas se ampliam
numa perspectiva contínua de horizontalidade. Multiplicidades conectáveis que estendem rizomas são
platôs. Para Deleuze [Cfr. DELEUZE, G., Entrevista sobre Mille Plateaux. In: IDEM, Conversações:
1972-1990. São Paulo: Editora 34,2004, 4. reimpr., (Coleção Trans), p. 37], platôs são anéis quebrados,
interconectáveis.
9
escritora e poetisa Cora Coralina, já que outro objetivo é apresentar uma releitura de
Cora (a partir de tais conceitos) e pensar sobre a atividade literária. Não queremos
instrumentalizar os textos de Cora, como exemplificações dos conceitos deleuzo-
guattarianos. Queremos que Cora constitua uma linha de fuga
10
e uma
desterritorialização em relação ao terririo conceitual apresentado. Neste momento,
faremos uma apropriação dos conceitos deleuzo-guattarianos, de tal forma, que nem
mesmo os apresentaremos mais em modo itálico.
Se à primeira vista poderemos ser questionados, no sentido de sermos
considerados sem a competência devida em relação ao modelo acadêmico clássico,
temos consciência de que o desafio, apresentado aqui, não é menor. Afinal, não
abandonamos o modelo. Abrimos mão de um modelo e nos colocamos aprendizes de
outro, que nos desafia, sobretudo, em termos de lógica. O rizoma é um
Aantimétodo@.
11
10 O termo aparece em uma perspectiva cartográfica e rizomática, em que a realidade, como
multiplicidade, é formada por linhas de articulação ou segmentaridade, estratos e territorialidades, mas
também linhas de fuga e graus de desterritorialização e desestratificação. Uma linha de fuga é um vetor
que faz abrir um território, através de agenciamentos com um fora, implicando em um movimento de
desterritorialização, possibilitando às multiplicidades mudarem de natureza ao se conectarem a outras.
11 ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Trad. A. Telles. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2004, p. 98.
10
Pretendemos dar forma, registrar - em um ensaio-experimentação B a busca
e a aproximação do que Gilles Deleuze e Félix Guattari nomearam velocidade que se
adquire no meio, característica de uma escrita nômade e rizomórfica:
(...) Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões
inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir de zero, buscar um começo, ou um
fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metódico,
pedagógico, iniciático, simbólico...). (...) É que o meio não é uma média; ao contrário,
é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma
correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção
perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem
início e nem fim, que rói suas margens e adquire velocidade no meio.
12
.
Propusemo-nos a promover um encontro e a pensar os conceitos de Deleuze
e Guattari, através das poesias da escritora goiana Cora Coralina, repletas de
inspiração rizomática. Buscar a velocidade que se adquire no meio, neste sentido,
significa fundamentalmente promover agenciamentos não prévios entre este três
autores, Cora Coralina, Gilles Deleuze e Félix Guattari, promovendo múltiplas
relações-devires.
13
12 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs, p. 37.
13 Devir é um termo relacionado à economia do desejo. É o modo específico de como se dão as relações
na perspectiva das multiplicidades. Não significa deixar um lugar e ou estado para se assumir outros, mas
transitar continuamente nas zonas de intensidade contínua, nos entre territórios da realidade, da
existência, do pensamento. Mais especificamente em relação ao tema proposto por essa dissertação,
escrever é uma forma de devir.
11
Os platôs são sempre esse meio
, que se interage, mas não se mistura.
Deleuze e Guattari não olvidam a dificuldade que isso implica e apontam a rao desta
dificuldade:
Por que é tão difícil? É desde logo uma questão de semiótica perceptiva. Não é fácil
perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da esquerda para a direita ou
inversamente: tentem e verão que tudo muda.
14
A presente dissertação, intitulada DA MORTE DO GENERAL À BUSCA
RIZOMÁTICA: a escrita como possibilidade de emancipação B
BB
B Agenciamentos
entre Cora Coralina, Gilles Deleuze e Félix Guattari, busca refletir a importância e
singularidade de uma perspectiva de produção escrita, como forma específica de se
colocar no mundo: a escrita que não é expressão de uma memória e que não se tece a
partir de lembranças pessoais; a escrita que não é expressão e exteriorização da
história e subjetividade de uma pessoa; a escrita, que não é propriedade do espaço
formal da Escola e da Academia; a escrita, que não é especialidade e habilidade
literária de uns poucos. Trazemos aqui a reflexão sobre uma escrita que é devir; uma
escrita que é agenciamento coletivo de enunciação
15
; uma escrita que é possibilidade
de reinvenção B de um mundo, de um povo
B
renegados em suas traições!
16
; enfim,
14 IDEM, Ibidem, pp. 34-35.
15 Para Deleuze e Guattari, os sujeitos não preexistem a enunciados. Os enunciados são expressões de
significações dominantes. Portanto, ainda que por um agenciamento enunciativo, um indivíduo se
constitua em termos de expressão, todo enunciado é coletivo, não sendo produzido Apor@, mas Apara@ uma
coletividade. Em um agenciamento coletivo, não mais a tripartição entre campo de realidade,
representação e sujeito (Cfr. Mil Platôs, p. 34). Um agenciamento coletivo de enunciação reúne ao
mesmo tempo sujeito, objeto e expressão.
16 DELEUZE, G., A literatura e a vida. In: IDEM, Crítica e Clínica. São Paulo, Editora 34, 1997, p. 14.
12
uma escrita que significa testemunhar em favor da vida
17
. É aqui que essa escrita
emerge como possibilidade de produção de um tipo de subjetividade e emancipação.
A presente dissertação, pois, não pretende apresentar um estudo
historiográfico, biográfico, cronológico e/ou psicanalítico da escritora goiana Cora
Coralina. Tais perspectivas não têm lugar na filosofia de Deleuze e Guattari.
Tampouco analisar a sua escrita e o seu processo de subjetivação, mas trazer a
inspiração rizomática presente nos textos de Cora, como uma forma intuitivamente
deleuzo-guattariana de fazer literatura; assim como o tem a pretensão de apresentar
o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari; não pretende definir o que vem a ser
o ato de escrever; não tem como objetivo ensinar como alguém pode tornar-se um
escritor; por fim, o pretende nem mesmo evidenciar a competência acadêmica de
alguém que se proe a agenciar essas realidades acima descritas, aqui, relações -
devires.
O projeto de Deleuze e Guattari, que nos inspira como referencial teórico,
apresenta-se no prefácio do Volume I da Obra AMil Platôs@
@@
@:
A
(...) O projeto é
>
construtivista
=
. É uma teoria das multiplicidades por elas mesmas, no ponto em que
o múltiplo passa ao estado de substantivo (...)
@
18
. Em poucas palavras, a clareza do
que se proe: uma teoria das multiplicidades por elas mesmas, cujo modelo de
(Coleção Trans).
17 DELEUZE, G., L
=
Abécedáire de Gilles Deleuze. E - Enfance. Paris: Editions Montparnasse, 1997.
Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação. ATV Escola@, 2001.
18 IDEM, Ibidem, p. 8.
13
realização é o do rizoma, por oposição à árvore
19
. Pensar o múltiplo em estado puro,
significa:
deixar de fazer dele o fragmento numérico de uma Unidade ou Totalidade perdidas,
ou, ao contrário, o elemento orgânico de uma unidade ou totalidade por vir B e,
sobretudo, para distinguir tipos de multiplicidade
20
.
Trabalhar a partir deste referencial trico é empreender um desafio, de fato,
construtivista. Assumimos esse desafio. Deleuze e Guattari postulam uma filosofia que
se ocupa principalmente da criação de conceitos, que muitas vezes poderiam sugerir
metáforas, mas que, adiante, veremos que não o são. E o desafio é ainda maior.
Implica em um projeto nômade, que é mais errância do que andança, um outro tipo de
nomadismo, o nomadismo daqueles que nem se mexem, e que não imitam nada, mas
que somente agenciam
21
. Um autor é um agenciador. Um livro é um agenciamento.
Falaremos disso.
19 Para Deleuze e Guattari, a árvore-raiz é um decalque do mundo, cuja gica é sempre binária e
biunívoca, sempre partindo de um Uno, referindo-se a um sujeito, a um objeto, a uma totalidade. Já o
rizoma, tubérculo e bulbo, é uma multiplicidade, aberta, conectável, a-centrada e a-significante, é um
mapa, uma antigenealogia.
20 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., 1914 B Um só ou vários lobos? In: IDEM, Mil Platôs, p. 46.
21 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs, p. 35.
14
Embora estejamos comprometidos com uma lógica rizomática, de múltiplas
entradas e saídas, a-centrada e a-significante, que é, sobretudo antigenealogia
22
, que
nos coloca em um nomadismo imprevivel, ainda assim temos alguns objetivos, não
hierarquizados, permeados por limites, que queremos aprofundar e esclarecer.
Faremos isso da seguinte forma: cada um desses objetivos virá expresso em forma de
parágrafo, relativamente autônomo a seguir.
22 Podemos dizer que a abordagem de Deleuze e Guattari são antigenealógicas, no sentido de uma lógica
arborescente, da busca de um Uno, de fundamentos, princípios, linearidade e pontos. As multiplicidades
apontam para uma lógica cartográfica, da horizontalidade e dos rizomas.
15
1.1.
Sobre os Agenciamentos
Um objetivo da presente dissertação é pensarmos as características de uma
lógica rizomática, de uma escrita nômade e rizomórfica. Tal atividade literária e
escrita constituem, pois, agenciamentos:
Num livro, como em qualquer coisa, linhas de articulação ou segmentaridade,
estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de
desterritorialização e desestratificação. As velocidades comparadas de escoamento,
conforme estas linhas, acarretam fenômenos de retardamento relativo, de viscosidade
ou, ao contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo isto, as linhas e as velocidades
mensuráveis, constitui um >agenciamento=.
23
Um agenciamento significa uma relação com um Afora@, um crescimento de
dimensões em uma multiplicidade, uma relação com outros agenciamentos, com o
heterogêneo, com o a-significante, com outros mundos, uma ampliação de platôs,
que implica na superação da reprodução do mundo, de seu decalque. Implica na
capacidade de nos colocarmos em uma velocidade e intensidade dos fluxos: Um
agenciamento em sua multiplicidade trabalha forçosamente, ao mesmo tempo, sobre
fluxos semióticos, fluxos materiais e fluxos sociais.
24
23 IDEM, Ibidem, pp. 11-12.
24 IDEM, Ibidem, p. 34.
16
Colocar-se no fluxo dos agenciamentos, perseguir uma velocidade que se
adquire no meio parece significar um nomadismo, a superação do eixo entre
polaridades, que evita o lugar do sujeito, do objeto e até mesmo da possibilidade
dialética de ambos, mas que busca o entre as coisas (que não é lugar), perpendicular e
transversal, como característica do que é múltiplo:
Não se tem mais a tripartição entre um campo de realidade, o mundo, um campo de
representação, o livro, e um campo de subjetividade, o autor. Mas um agenciamento
põe em conexão certas multiplicidades tomadas em cada uma dessas ordens, de tal
maneira que um livro não tem sua continuação no livro seguinte, nem seu objeto no
mundo, nem seu sujeito em um ou em vários autores. Resumindo, parece-nos que a
escrita nunca se fará suficiente em nome de um fora. O fora não tem imagem, nem
significação, nem subjetividade. O livro, agenciamento com o fora contra o livro-
imagem do mundo. Um livro rizoma, e não mais dicotômico, pivotante ou
fasciculado. Nunca fazer raiz, nem plantar (...)
25
Dito de outra forma, a presente dissertação quer ser uma sistematização e
registro - através de uma >singularidade-coletiva= B de relações-devires entre o ato de
escrever, Cora Coralina, Gilles Deleuze, Félix Guattari.
25 IDEM, Ibidem, p. 34.
17
1. 2.
A perspectiva da Literatura
A Psicanálise e a Lingüística têm estudado, ao longo dos anos, a importância
da linguagem oral e do discurso nos processos de emancipação, constituição da
identidade, autonomia e cidadania, buscando superar uma tendência simplista e
ingênua, que compreende a linguagem como veículo e instrumento particular e natural
de expressão do ser humano, para compreender a sua determinação nos processos de
produção, reprodução e transformação social. Norman Fairclough chama-nos a
atenção para o que denomina
A
tendência de considerar a linguagem transparente:
enquanto dados lingüísticos, como entrevistas, são amplamente usados, uma
tendência em acreditar que o conteúdo social de tais dados pode ser lido sem
atenção à própria linguagem
@
26
.
26 FAIRCLOUGH, N., Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora UNB, 2001, p. 20.
Mas importante é percebermos, aqui, que a importância da linguagem oral e
do discurso têm tido, no decorrer da história, primazia em relação à escrita e aos
processos de autoria, enquanto possibilidade de produção e emancipação. Por um
lado, a escrita parece ter sido historicamente confinada a uma perspectiva formal de
comunicação, talvez por implicar numa forma de materialização e o registro
documental de uma produção (pensamento, reflexão), permitindo ao que escreve não
apenas fazer e fazer-se história, mas socializar o seu processo, através da perpetuação
da produção. Para algo se tornar documental, é preciso que esteja escrito, já que a
palavra pronunciada oralmente há muito perdeu o seu lastro. Para algo valer,
18
costuma-se dizer que queremos ver a Aletra no papel@. E isso se tornou tão legítimo,
que não é qualquer palavra que pôde e pode ser escrita. Se as palavras pronunciadas
esvaem-se ao vento, o registro da escrita parece perpetuar a Aalma@ da palavra,
resgatável a qualquer momento. Daí a força e o caráter subversivo do ato de escrever.
Daí a necessidade de um controle sobre a palavra escrita, desde os processos
inquisitórios, passando pela figura dos censores, dos copidesquistas e cticos até as
amarras ortográficas e gramaticais.
Por outro lado, a escrita também foi confinada historicamente ao espaço da
Escola e da Academia, que se apropriaram dos processos de letramento e de um
estatuto de cientificidade. Daí a tendência à excessiva didatização do ato de escrever,
de seu aprisionamento nas estreitas amarras gramaticais e ortográficas, da
padronização de uma forma, um estilo, um esquema e o mais importante: do seu
desenvolvimento a partir de uma lógica. A tendência à instrumentalização tem gerado
a morte de muitos processos criativos de produção. A produção literária tem se
tornado, cada vez mais, uma especialidade de poucas pessoas beis e talentosas,
tendência esta reforçada por um novo tipo de escrita que desponta no espaço virtual,
que ameaça o modo clássico de produção.
Assim, a paixão pelo processo literário parece sucumbir concomitante ao seu
processo de emergência (alfabetização), pela contradição dos princípios opostos que
se conjugam: a inspiração que produz o processo literário está subjugada a um
aprisionamento gramatical e ortográfico. E mais tarde, tal morte ainda vai sendo
19
efetivada, simultaneamente, com o desinteresse pela leitura, que sofre o mesmo
processo da escrita.
Nesse contexto, Deleuze, sobretudo, resgata a importância e o significado de
uma escrita e Literatura, não como expressão de um universo particular e do pronome
possessivo Ameu@ B para ele aspectos insignificantes e de natureza desagradável, que
evidenciam uma literatura barata, dos best-sellers -, mas como forma de mostrar a
vida, testemunhar em favor da vida
27
, inventar um povo renegado, acessar uma
dimensão que é comum à uma coletividade, mergulhar na extrema riqueza dos artigos
indefinidos, expressão das multiplicidades, levar a linguagem até o ponto em que se
gagueja
B
o que não é fácil, pois não basta gaguejar assim (...
28
).
Para Deleuze, a Literatura foi algo muito marcante, juntamente com a
Filosofia: Eu fui transformado, absolutamente transformado
29
diz, referindo-se às
suas primeiras descobertas literárias. Mas não é esse o motivo que o faz escrever,
pois, para ele, não se escreve com as próprias lembranças.
27 DELEUZE, G., L
=
Abécedáire de Gilles Deleuze. E - Enfance. Paris: Editions Montparnasse, 1997.
Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação. ATV Escola@, 2001.
28 IDEM, Ibidem.
29 IDEM, Ibidem.
20
Os escritores autênticos são visionários e criadores; produzem textos e criam
personagens que nos fazem pensar: (...) os grandes personagens da Literatura são
grandes pensadores
30
. Deleuze postula que a grande literatura e a grande filosofia
têm em comum o fato de ambas testemunharem em favor da vida: filósofos e
literatos estão no mesmo ponto. Há coisas que se conseguem ver e das quais não se
consegue voltar. Ambos viram alguma coisa grande demais para eles. Eram
visionários. Viram algo grande demais e não foram capazes de supor-lo. Deixou-os
arrasados. Por isso existem literatas com saúde fraca
31
.
Nessa presente dissertação, é sobre essa perspectiva de escrita literária e
inspiração que queremos pensar: aquelas que, como cunhas, abrem brechas preciosas
e acessam um >lugar=, grande e intenso demais, quase insuportável, experiência-devir,
da qual não se pode mais voltar. Aqui se vislumbra uma emancipação: o Uno fez-se
Multiplicidades.
30 DELEUZE, G., L
=
Abécedáire de Gilles Deleuze. L - Littérature. Paris: Editions Montparnasse, 1997.
Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação. ATV Escola@, 2001.
31 IDEM, Ibidem.
21
1. 3.
A perspectiva A
AA
Arizomática@
@@
@ de Cora Coralina
Ao falarmos de uma escrita rizomática e de emancipação, um outro
objetivo desta dissertação é trazer a escrita emblemática da escritora e poetisa Cora
Coralina. Sua escrita, de inspiração rizomática, sugere a possibilidade de podemos
pensar em uma atividade literária emancipadora.
Como já dissemos, não pretendemos apresentar um estudo historiográfico,
biográfico, cronológico e/ou psicanalítico da escritora goiana Cora Coralina, nem
promover uma análise da sua escrita e do seu processo de subjetivação. Pretendemos
dar vazão à inspiração rizomática presente nos textos de Cora, que agenciam, em
forma de poesia, escrita e literatura, alguns conceitos postulados por Deleuze e
Guattari.
Cora Coralina não escreve apenas com as suas lembranças pessoais, mas sua
escrita retrata uma coletividade
: a infância de um povo; a escola de um povo; a família
de um povo; a realidade de um povo; o sentir de um povo, cujo lugar afetivo, familiar
e social sugere ser o da negação e marginalidade.
Ao nos depararmos com os seus textos, o seu jeito próprio de escrever,
como leitores, sentimo-nos conduzidos a experimentar lugares densos demais, onde
vemos e ouvimos coisas que nos fazem retornar, como diria Deleuze, com os olhos
22
vermelhos, com os tímpanos perfurados. (...)
32
Cora também parece ter acessado esse
>lugar= sem retorno, onde pôde ver, no pequeno e marginal, coisas grandes demais,
que a transformaram em visionária de um tempo e testemunha em favor da vida.
Cora parece colocar-se em um >lugar=, intermezzo, em cujo fluxo parece atravessar
toda a humanidade em suas mais diversas dimensões, em seus encontros e conexões
mais significativos.
Certamente Cora teve a Asua@ infância, marcada B mais por escassez do que
por abundância -, em diversos aspectos. Isso é um fato legítimo. Deleuze também o
reconhece:
(...) A infância, a infância... Como tudo, é preciso saber separar a infância ruim da
boa. O que é interessante? A relação com o pai, com a mãe e as lembranças da
infância não me parecem interessantes. É interessante e rico para si próprio, mas não
para escrever
33
.
Mas o que pode motivar, de forma autêntica, a atividade literária, segundo
Deleuze, é exatamente a saída e ruptura de um >caso particular=, de uma primeira
pessoa do pronome pessoal, de um enunciado considerado individual, de um território
próprio... tendo em vista um devir. Não se escreve nem por um apelo pessoal e nem
mesmo pelo desejo de se escrever:
32 DELEUZE, G., A literatura e a vida. In: IDEM, Crítica e Clínica, p. 14.
33 DELEUZE, G., L
=
Abécedáire de Gilles Deleuze. E - Enfance. Paris: Editions Montparnasse, 1997.
Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação. ATV Escola@, 2001.
23
Acho que a atividade de escrever não tem nada a ver com o que lhe é pessoal. (...) A
Literatura e o ato de escrever têm a ver com a vida. Mas a vida é algo mais do que
pessoal. Na Literatura, tudo o que traz algo da vida pessoal do escritor é por natureza
desagradável. É lamentável, pois o impede de ver, sempre o remete para o seu
pequeno caso particular. (...) Acho que escrever é devir alguma coisa. Mas também
não se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida
passa em nós. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos
alguma coisa. Escrever é devir. É devir o que bem entender, menos escritor. É fazer
tudo o que quiser, menos arquivo.
34
Embora a escrita de Cora nasça inspirada em um contexto histórico
determinado, ela faz prescindir tal aspecto, sugerindo-nos uma travessia, cujos elos
traduzem-se por experiências sensíveis em comum. Alguns autores parecem
>encharcados= dessa habilidade, de tocar na alma humana, naquilo que ela tem em
comum com toda a humanidade.
Nessa perspectiva, a escrita de Cora é mais cartografia do que sentido. Cora
o está em busca de sua infância. Muito ao contrário. Na perspectiva memorialista,
Cora talvez quisesse esquecer a sua infância, que lhe colocou na condição de um >não-
lugar=. A escrita de Cora sugere ser um devir-infância, que o significa tornar-se
criança, nem no discurso, nem na memória. Não é a sua infância particular e dramática
que a faz ser escritora. Como diz Deleuze,
34 IDEM, Ibidem.
24
(...) um devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não
é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. (...) A tarefa é outra:
tornar-se criança através do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo e
restaurar esta infância. Eis as tarefas da Literatura
35
.
Walter Kohan postula que devir-criaa
É uma força que extrai, da idade que se tem, do corpo que se é, os fluxos e as
parculas que o lugar a uma
A
involução criadora
@
(...) a uma força que não se
espera, que irrompe, sem ser convidada ou antecipada
36
.
Assim, entendemos que Cora faz-se testemunha de um tempo e inventora de
um povo. Não um povo qualquer, mas o povo >maldito= de seu tempo, a começar pela
realidade da infância, profundamente maldita e maltratada.
Sua escrita testemunha um contexto escolar severo, marcado por castigos e
humilhações, expresso em dois textos:
(...) Muito me valeu a escola. Um dia, certo dia, a mestra se impacientou. Gaguejava
a lição, truncava tudo. Não dava mesmo. A mestra se alterou de todo, perdeu a
paciência. E mandou enérgica: estende a mão. Ela se fez gigante no meu medo maior,
sem tamanho. Mandou de novo: estende a mão. Eu de medo encolhia o braço.
Estende a mão! Mão de Aninha, tão pequena! A meninada, pensando nalguns avulsos
para eles, nem respirava, intimidada. Tensa, expectante, repassada. Era sempre assim
na hora dos bolos em mãos alheias. Aninha, estende a mão. Mão de Aninha, tão
pequena. A palmatória cresceu no meu medo, seu rodelo se fez maior, o cabo se fez
cabo de machado, a mestra se fez gigante e o bolo estralou na pequena mão
35 IDEM, ibidem.
36 KOHAN, W. O., A Infância da Educação: O conceito Devir-Criança. In:__ (org.) Lugares da
Filosofia: Inncia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 9.
25
obediente. Meu berro! E a mijada incontinente, irreprimida. ? Não. O coro do
banco dos meninos, a vaia impiedosa. B Mijou de medo... Mijou de medo... Mijou de
medo... A mestra bateu a régua na mesa, enfiou a palmatória na gaveta, e, receosa de
piores conseências, me mandou pra casa, toda mijada, sofrida, humilhada,
soluçando, a mão em fogo.
37
A partir da sua experiência de infância, Cora Coralina denuncia a Infância de
seu tempo. A criança ainda não era considerada sujeito de direitos e uma pessoa em
condições especiais de desenvolvimento. A criaa era um ser preterido, não ouvido,
o importante e triste. Seus relatos denunciam essa Infância sofrida...
Entre os adultos, antigamente, a criança não passava de um pequeno joguete. Não
chegava a ser incômoda, porque nem mesmo tinha o valor de incomodar. Mas
chegava aos quatro, cinco anos, tinha qualquer servicinho esperando(...)
38
Cora testemunha a insensibilidade dos adultos diante das crianças e seus
diversos devires:
Aquela gente antiga era sábia
E sagaz, dominante.
>Criançada, para dentro=,
Quando agente queria era brincar.
Isto no melhor do pique.
37 CORALINA, C., Mestra Silvina. In: DENÓFRIO, D. F. Cora Coralina. São Paulo: Global Editora,
2004, pp.117-118. (Coleção >Melhores Poemas=).
38 CORALINA, Cora. Criança. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha. 5. ed. São
Paulo: Global Editora, 1991, p. 106.
26
>Já falei que o sereno da boca da noite faz mal...=
Como sabiam com tanta segurança
e autoridade? (...)
39
(...) Era assim antigamente.
Criança não valia mesmo nada.
Entendia por acaso dessas normas de Educação?
Nada era natural
E os menores não tinham direitos.
E olha lá, que num passado que não foi meu,
Tinha sido pior.
Contavam os antigos (...)
40
E testemunha também uma perversidade e hipocrisia, para além da falta de
sensibilidade:
Os adultos, todos poderosos, solidários,
Co-autores, corregedores.
Juízes de suas justiças.
Altaneiros em lições altissonantes, humilhantes
Para que todos soubessem se exemplar.
A criança faltosa, inconsciente, apanhada, destruída.
Ré... ré... ré... de crimes sem perdão.
E eles, enormes, gigantescos, poderosos,
Donos de todas as varas, aplaudidos.
Esta senhora, sim, sabe criar família...
Isto quando corria a notícia de uma tunda das boas,
e mais castigos humilhantes.
Ao choro, respondia a casa, os ilesos, saciados,
39 CORALINA, C., Aquela Gente Antiga - I. In: DENÓFRIO, D. F., Cora Coralina, p. 144.
40 CORALINA, C., Normas de Educação. In: DENÓFRIO, D. F., Cora Coralina, pp. 151-157.
27
regozijantes B
>bem feito, perdidas as que foram no chão=.
O sadismo, o masoquismo, o requinte:
a menina errada, agarrada,
sujigada entre pernas adultas,
virando seu traseiro,
levantado seu vestido, saiote,
descida sua calcinha em chineladas cruéis
no traseiro desnudado, na pele sensível.
A reação incontida da criança,
a mijada inconsciente,
a ânsia nervosa, o vômito, o intestino solto.
Acrescido o castigo: sentada no canto,
A carta de ABC na mão, a lição sabida.
41
No texto abaixo, isso se torna mais evidente:
(...) Todo o ranço do passado era presente. A brutalidade, a incompreensão, a
ignorância, o carracismo. Os castigos corporais. Nas casas. Nas escolas. Nos quartéis
e nas roças. A criança não tinha vez, os adultos eram sádicos, aplicavam castigos
humilhantes (...)
42
Sua escrita testemunha igualmente a pobreza que assolava a realidade escolar
daquela sociedade e o próprio lugar social que a Escola ocupava:
41 CORALINA, C., Ontem. In: DENÓFRIO, D. F., Cora Coralina, pp. 161-162.
42 CORALINA, C., Cora Coralina, quem é você? In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo:
Global Editora, 1986, pp. 73-76.
28
(...) Ofereço estas páginas à minha escola primária, a única escola da minha vida,
minha única mestra, sozinha na sua sala de aula, sozinha no seu ministério, o pobre
que eu quisera exaltar em letras de diamantes. (...) Lugar de honra para a minha
mestra e para todas as esquecidas Mestras do passado. Mestra Silvina B beijo suas
mãos cansadas, suas vestes remendadas.
43
Em outra passagem, ela testemunha, sobretudo, o lugar afetivo e sócio-
econômico daquelas que se ocupavam com a Infância:
O bequinho da escola lembra Mestra Lili. Lembra Mestra Inhola. Esquecidas mestras
de Goiás. Elas todas B donzelas, sem as emoções da juventude. Passavam a mocidade
esquecidas de casamento, atarefadas com crianças. Ensinando o >be-a-bá= às
gerações.
44
Sua escrita testemunha a mentalidade de um tipo de Escola:
(...) Tive uma velha mestra quehavia ensinado uma geração antes da minha. Os
métodos de ensino eram antiquados e aprendi as letras em livros superados de que
ninguém mais fala.
45
Em dois diferentes textos, percebemos que a sua escrita testemunha um
contexto escolar de dificuldades de aprendizagem:
Foi pela didática paciente da velha mestra que Aninha, a menina boba da casa,
obtusa, do banco das mais atrasadas se desencantou em Cora Coralina.
46
43 CORALINA, C., Cântico Excelso. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p. 41.
44 CORALINA, C., O Beco da Escola. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. 18. ed.
São Paulo: Global Editora, 1985, p. 118.
45 CORALINA, C., Cora Coralina, quem é você? In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p. 74.
46 CORALINA, C., Cântico Excelso. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p. 41.
29
Eu era menina do banco das mais atrasadas. Minha escola primária... Eu era um
casulo feio, informe, inexpressivo. E ela me refez, me desencantou. (...) Queira ou
não, vejo-me tão pequena, no banco das atrasadas. E volta a ser Aninha, aquela em
que ninguém acreditava.
47
Sua escrita testemunha ainda um contexto marcado por preconceitos
familiares e sociais:
Nunca recebi estímulos familiares para ser literata. Sempre houve na família, senão
uma hostilidade, pelo menos uma reserva determinada a essa minha tendência inata.
(...) Sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compreensão dos rígidos
preconceitos do passado. Preconceitos de classe. Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos. Férreos preconceitos sociais. (...)
48
.
Enfim, sua escrita testemunha um contexto de busca determinada na
superação de todas essas dificuldades:
(...) A escola da vida me suplementou as deficiências da escola primária que outras o
destino não me deu. Foi assim que cheguei a este livro, sem referências a mencionar.
Nenhum primeiro prêmio. Nenhum segundo lugar. Nem Menção Honrosa. Nenhuma
Láurea. Apenas a autenticidade da minha poesia arrancada aos pedaços do fundo da
minha sensibilidade. (...) Quem sentirá a Vida destas páginas... Gerações que o de
vir de gerações que vão nascer.
49
47 CORALINA, C., Mestra Silvina. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, pp. 123-
124.
48 CORALINA, C., Cora Coralina, quem é você? In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 73-76.
49 IDEM, Ibidem, pp. 73-76.
30
Talvez pela sua própria experiência de dificuldade escolar, Cora tenha ficado
imune à instrumentalização da escrita, podendo superar, pela vida afora, seus limites,
até tornar-se escritora e autora reconhecida, a partir dos 75 anos de idade.
A escrita de Cora não parece ser rizomórfica, em um sentido deleuzo-
guattariano. Mas o olhar e a inspiração de Cora certamente sugerem uma perspectiva
rizomática, naquilo que um rizoma tem de mais característico: a capacidade de se
desterritorializar na conjunção e...e...e.
Pretendemos dar direito e espaço para que Cora Coralina possa expressar
sua escrita. Seus textos não figuram na dissertação como exemplificações e ilustrações
do que se postula, mediação de algo, mas como o meio
, por excelência, onde a
velocidade acontece, e na literalidade
50
postulada pelos autores. Seus escritos não
são territórios precisos, mas são expressão de um entre: não são expressão de Cora-
sujeito e nem se referem a um objeto. Não têm nem mesmo uma cronologia. São
expressão de relações-devires, são trânsito, são vôos-possibilidade:
(...) Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente
formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um
sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridade de suas
correlações. (...)
51
50 Literalidade é um conceito deleuziano que postula a singularidade de uma experiência, não
preexistente, por isso não podendo ser compreendida como metáfora (um redobramento do real).
51 IDEM, Ibidem, p. 11.
31
Reconhecemos aqui a constatação de Deleuze e Guattari, ao se referirem à
elaboração do texto intitulado >Antidipo=: Como cada um de nós era vários, era
muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais
distante
52
. Temos consciência de que essas relações-devires também promovem o
encontro entre os vários de cada um. Porém, mais desafiante do que >coordenar= essas
várias pessoas que, segundo Deleuze, são a condição de uma saúde literária - em
função da coletividade que se faz presente -, somos provocados a superarmos o
sedentarismo paradigmático, de uma lógica arborescente, da árvore como filiação,
cujas rzes nos remontam a uma perspectiva genealógica, geracional, estrutural, de
unidade, totalidade, fixação de pontos, de uma ordem e linearidade da realidade.
Colocamo-nos na busca de uma nomadologia, que segundo Deleuze e
Guattari, é o contrário da história, e que nos falta. A escrita de Cora parece ser o
testemunho dos nômades e Asem-lugar@ de seu tempo. Cora não assume o ponto de
vista nem dos sedentários, nem dos incluídos, mas dos que se desterritorializam e
reterritorializam continuamente no fluxo dos becos malditos de sua cidade. Sua
escrita é a experiência de um devir permanente.
52 IDEM, Ibidem, p. 11.
32
1. 4.
O encontro com as lógicas arborescente e rizomática
Ainda um outro objetivo dessa dissertação é permitirmo-nos ser
provocados a colocar a lógica arborescente em questionamento e sermos
sensibilizados a pensar a realidade como multiplicidade, cujo modelo de realização é o
do rizoma, sistema a-centrado, não hierárquico e não significante
53
. Um rizoma -
diferentemente de um eixo genealógico, que é repleto de pontos que remetem a uma
unidade -, pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma
segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas.
54
Segundo os autores,
a importância mais marcante de um rizoma seja talvez o fato dele possuir múltiplas
entradas
55
.
53 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs: Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 33.
54 IDEM, Ibidem, p. 18.
55 IDEM, Ibidem, p. 22.
Refletir sobre lógica, sobre a matriz do próprio pensamento, implica refletir
sobre o lugar epistemológico que se ocupa, o que parece constituir uma contradição
sica. Como ocupar dois lugares ao mesmo tempo, o da experiência e o da
observação? Constitui uma tarefa muito mais desafiante do que refletir sobre tudo o
que nos cerca, sobre os saberes que vão se constituindo, sobre novas tendências de
pensamento, sobre informações disponíveis. Implica um pensar crítico para dentro de
33
si mesmo, no sentido de colocar em questão as condições de constituição e realização
do próprio pensamento, as premissas e >percursos= filosóficos até então
experimentados e buscar conhecer as crenças pessoais e coletivas que determinam
aquilo que chamamos de >olhar=, >modo de ver=, >ótica para o real=, e que caracteriza a
nossa lógica.
Buscamos nos abrir diante de uma nova lógica, que nos convida a
experimentar percursos muitas vezes inusitados. Todo rizoma secreta percursos
inusitados. Mas o temos a pretensão de superarmos uma lógica arborescente, que
parece ser a matriz do nosso pensamento. Sem esse reconhecimento-constatação,
nossas lógicas chegarão, ao máximo, a pseudomultiplicidades arborescentes,
denunciadas pelos autores como outra coisa, bem diferente, das autênticas
multiplicidades rizomáticas
56
.
56 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 16.
34
1.5.
Em busca de uma escrita nômade e rizomorfa
Tal lógica rizomática expressa-se na forma como Deleuze e Guattari
compreendem, trabalham e elaboram seus textos: Não há diferença entre aquilo de
que um livro fala e a maneira como é feito
57
. A lógica rizomática postula um
prinpio cartográfico, do mapa,
que é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um
grupo e uma formação social.(...)
58
Este é ainda um objetivo dessa dissertação: possibilitar que a sua forma
seja expressão mínima de seu postulado teórico, que possamos ser minimamente
deleuzo-guattarianos ao registrarmos tais agenciamentos.
Deleuze e Guattari têm uma pretensão ao nos apresentem a lógica do
rizoma. Admitem que invocam um dualismo entre duas lógicas B a arborescente e a
rizomática B para recusar a lógica de um modelo. Mas colocam-se de forma crítica
diante desse dualismo >necessário=. Reconhecem que existem nós de arborescência
nos rizomas, empuxos rizomáticos nas raízes
59
, mas não oem os dois modelos:
57 IDEM, Ibidem, p. 12.
58 IDEM, Ibidem, p. 22.
59 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 31.
35
O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos:
um age como modelo e decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias
fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa,
mesmo que constitua sua próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal
despótico. (...)
60
.
E embora postule-se a superação de um modelo, não nos vemos livre de um,
ainda que este escape a qualquer estrutura, genealogia e decalque, e desponte como
mapa. Para os autores há uma escrita nômade e rizomática
61
, cujo plano de
composição são os platôs, zonas de intensidade contínuas, que se encontram sempre
no meio, nem início nem fim
62
. Rizomas e multiplicidades são feitas de platôs:
Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as
suas dimensões: falar-se-á então de um >plano de consistência= das multiplicidades, se
bem que este >plano= seja de dimensões crescentes segundo o número de conexões que
se estabelecem nele.
63
A existência de um platô implica em um abrir mão da tentação de se
estabelecer pontos culminantes de orientação e de referências exteriores e
transcendentes. Um platô é um plano de imanência
64
, cujo valor reside numa vibração
60 IDEM, Ibidem, pp. 31-32.
61 IDEM, Ibidem, p. 35.
62 IDEM, Ibidem, p. 33.
63 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 17.
64 Denominado plano de consistência e composição, por oposição ao de organização e desenvolvimento,
o plano de imanência é imanente em relação a si mesmo, ou seja, Deleuze e Guattari postulam que não se
remete a uma unidade superior e nem a um sujeito; que não é um conceito pensável, mas é a imagem do
próprio pensamento. conhece as longitudes e latitudes e em vão cresce em dimensões (segue os
devires), sendo que não comporta nenhuma dimensão suplementar ( Cfr. ZOURABICHVILI, F., O
Vocabulário de Deleuze, pp. 74-75).
36
sobre si mesmo. Para os autores, cada platô pode ser lido em qualquer posição e
posto em relação com qualquer outro.
65
Portanto, falar de rizoma parece implicar em ser rizomorfo e nômade: Para
o múltiplo, é necessário um método que o faça efetivamente; nenhuma astúcia
tipográfica, nenhuma habilidade lexical, mistura ou criação de palavras, nenhuma
audácia sintática podem substituí-lo
66
. Logo no icio da obra A
AA
AMil Platôs@
@@
@, os
autores já postulam:
Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma
habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É
preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao
contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões que
se dispõe, sempre n B 1 assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre
subtraído dele).
67
Não temos a pretensão de produzirmos uma escrita nômade e rizomórfica
nesta dissertação, que se proe a debruçar sobre a própria escrita e a possibilidade de
uma escrita rizomática, emancipadora. Mas procuraremos escrever em forma de
platôs, usando ao máximo a conjunção e...e...e....
65 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 33.
66 IDEM, Ibidem, p. 33.
67 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 14.
37
1.6.
Limites que nos acompanham
Finalmente, se objetivos a serem alcançados, reconhecemos que estes
m permeados por limites:
Um limite diz respeito a uma despretensão totalizante. Deleuze e Guattari
são nômades, são rios, são vastíssimos, são sempre os mesmos e sempre diferentes,
e, por vezes, muito diceis de serem acessados. Por isso, na parte I, priorizamos
alguns conceitos de ambos, tendo como referência o Volume I da Obra AMil Platôs.
Capitalismo e Esquizofrenia@
@@
@, sobretudo porque esta é a obra mais didática no
sentido conceitual e fala especificamente sobre o Rizoma. Iremos nos referir a outras
obras, com menor ênfase.
Um outro limite diz respeito à ênfase cartográfica de um Aentrelugar@, que
se quer velocidade. Assim temos a clareza que esse trabalho expressa um lugar
cartográfico, uma possibilidade-devir em relação à temática da Escrita. várias
outras cartografias possíveis em relação à Deleuze e Guattari e à própria questão da
escrita.
Ainda outro limite, mais desafiante, tem a ver com uma experiência que,
o contextualizada, pode denotar apenas pretensão: a presente dissertação é um
ensaio-experimentação de uma lógica rizomática, através de uma lógica ainda
bastante arborescente ou, no ximo, pseudomúltipla e pseudorizomorfa. um
anseio de nomadismo lógico, insistente e obstinado, mas que se encontra a todo
38
tempo com o sedentarismo, que retorna, que resiste, que repete e muitas vezes nem se
conta da dualidade, e que não quer se defender em relação aos seus recuos. Os
próprios Deleuze e Guattari reconhecem que
A
as árvores têm linhas rizomáticas, mas
o rizoma tem pontos de arborescência
@
68
. Não se trata, pois, de enfatizar o dualismo
entre o Uno e o Múltiplo. Contudo há o desejo e os incios são de saúde. Segundo
Deleuze:
Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens de
vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido,
colmatado. A doença não é processo, mas parada do processo (...) A literatura
aparece, então, como empreendimento de saúde (...).
69
Certamente haverá muita desterritorialização e reterritorialização
acontecendo e por acontecer nesse processo. Haverão devires, pontos de fuga,
agenciamentos diversos a serem empreendidos. Mas
ser rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou, melhor ainda,
que se conectam com elas, penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e
estranhos usos. Estamos cansados da árvore.
70
68 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., 1914 B Um ou vários lobos? In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 48.
69 DELEUZE, G., A literatura e a vida. In: IDEM, Crítica e Clínica, p. 14.
70 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 25.
39
Este cansaço, compartilhado também por nós, é ponto de fuga que, num
processo de desterritorialização, faz emergir uma potência nômade. Aqui começam
emergir os incios de uma velocidade...
40
PARTE II
Platôs: Uma leitura de Cora à luz de Gilles Deleuze e Félix Guattari
Nesta segunda parte do texto, buscaremos experimentar o desafio de
escrever na forma de platôs. Se os platôs são de per si um desafio, mais desafiante
ainda é escrever na e para a Academia: a escrita que tem por finalidade ser avaliada
por um modelo, representa a crítica do próprio modelo. Assumiremos o duplo desafio
de aprofundar alguns conceitos deleuzo-guattarianos (ntese dos muitos constructos
idealizados pelos autores em diferentes textos), e trazer os textos e a inspiração da
escritora e poetisa Cora Coralina.
Em relação aos conceitos, trazemos ao texto quatro platôs, sendo que o
primeiro, que aborda a questão das multiplicidades e rizoma, são mais axiais em
relação aos outros: devir, literalidade, ponto de fuga, desterritorialização e terririo.
A lógica rizomática inspira três desconstruções de grande importância em uma lógica
arborescente: o devir, como desconstrução da ordem da temporalidade; a literalidade,
como desconstrução da ordem da linguagem; e o ponto de fuga, desterritorialização e
reterritorialização como desconstrução da ordem de uma espacialidade (ainda que
existencial). Através dessas três desconstruções, somos convidados a enxergar novos
horizontes e caminhar por novas sendas de pensamento.
41
Insistimos que os textos de Cora não são introduzidos numa perspectiva
instrumentalizadora: eles não são apenas exemplificações. Queremos apresentar Cora
Coralina em sua literalidade, conceito que será detalhado em breve.
Os textos de Cora são encantadores e emocionantes por si. São universos
desterritorializadores e reterritorializadores, de quem os lê e da própria escrita de
Cora.
Na forma de platôs, buscaremos trazer Cora, para dentro do terririo
conceitual de Deleuze e Guattari, como um ponto de fuga, desterritorializante. Neste
momento, faremos uma apropriação dos conceitos deleuzo-guattarianos, de tal forma,
que nem mesmo os apresentaremos mais em modo itálico.
Desejamos que a escrita de Cora goze de um protagonismo nos platôs.
Queremos que o caráter poético assuma a direção do texto produzido, como ponto de
fuga, desterritorializante. Cada parte inaugurará uma nova paginação, pois não há uma
ordem de leitura a ser seguida.
Queremos esclarecer que poderíamos ter ido em busca de muitos outros
autores, que pensam Deleuze, Guattari e Cora Coralina, com o objetivo de enriquecer
e diversificar a bibliografia em questão. Poderíamos ter elaborado uma dissertação
mais clássica do que a que apresentamos. No entanto, queremos ser coerentes com a
42
afirmação de que o rizoma é um antimétodo
71
. Certamente muitos textos que falam
de Cora Coralina e sua escrita. E outros tantos que falam de Gilles Deleuze e Félix
Guattari. Mas o objetivo da presente dissertação o foi apresentar um estudo dos
autores e de seus conceitos. Um importante objetivo foi o de promover agenciamentos
(Avelocidade que se adquire no meio@), como já dissemos. O meio é a nese. Mas não
gênese prevista. Por isso, a opção de nos concentrarmos na atualidade deste
agenciamento. Queremos promover um agenciamento rizomático, literal, não prévio,
preexistente entre esses autores. Esse agenciamento, essa relação-devir entre todos,
ainda que seja geral, no sentido de ser um delírio histórico-mundial e não familiar,
como preconizaram Deleuze e Guattari
72
, é, por outro lado, de extrema singularidade,
porque nunca se deu antes. E se houvesse se dado, em outra pesquisa, ainda assim não
deveria constar nesse texto. Da mesma forma que temos a consciência de que os
agenciamentos aqui promovidos são apenas alguns, possíveis, no horizonte de outros
tantos.
71 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, p. 98.
72 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 7.
Reconhecer a lógica rizomática, supõe acolher uma metodologia diferente.
Significa admitir que entre as muitas bifurcações de uma estrutura rizomática, um
encontro-devir nunca deve ser previsto, previvel, planejado.
43
Ainda assim, queremos estar atentos, para não cairmos no risco evidenciado
por Zourabichvili, no que se refere a uma perspectiva rizomática:
Não nos iludiremos com o jogo aparentemente gratuito ao qual convida o método do
rizoma, como se se tratasse de praticar cegamente qualquer colagem para obter arte
ou filosofia, ou como se toda diferença fosse a priori, fecunda, segundo uma doxa
difundida. (...) Mas o rizoma é tão benevolente quanto seletivo: ele tem a crueldade
do real, e só cresce onde efeitos determinados têm lugar.
73
Queremos promover uma experiência possível. Acreditamos que não nos
parece haver relação-devir mais promissora do que pensar o processo da escrita
através da vida e da escrita de Cora Coralina. Da mesma forma, não parece haver
relação-devir mais promissora e desafiante do que pensar Cora Coralina à luz dos
geniais e controvertidos Deleuze e Guattari. Queremos promover esse agenciamento.
73 IDEM, Ibidem, p. 100.
O projeto implica numa quase Ajustiça literária@, se é que isso possa ser dito:
é trazer à luz uma Cora e uma escrita iditas, que existiram e existem, mas ainda o
haviam sido paridas. E o nos referimos aqui a um parto, na forma idealizada e
romântica como é descrito por aqueles que os assiste. Falamos de um parto, na
perspectiva agonizante, asfixiante e mesmo dolorosa, daqueles que estão nascendo
para a vida.
nesses autores, como em Cora, o processo da metamorfose. Cora
Coralina fala da experiência de alfabetização como metamorfose: a escola a retirou do
44
casulo informe. Deleuze e Guattari falam que todo livro metamorfoseia em tantos
outros agenciamentos... Ora, não há passagem no casulo e não há metamorfose sem
crise e ousadia.
Assim são Deleuze e Guattari em sua filosofia: postulam muito mais do que
o inverso da trama, mas a trama em sua multiplicidade; postulam a metamorfose do
olhar condicionado linearmente na direção de um Uno, para a multiplicidade, que é a
realidade.
Deleuze e Guattari têm em comum com Cora o jeito próprio e irreverente
que os fez, todos, extravasar as concepções de um tempo. Cora, que foi reconhecida
como escritora no entardecer da vida, após a publicação de seu primeiro livro, diz que
sua escrita é um jeito diferente de contar velhas histórias. Poderíamos atribuir, a
Deleuze e Guattari, um jeito diferente de pensar a filosofia, a psicanálise e o
conceito. Eles são inspiradores, como referencial teórico, sobretudo porque
possibilitam pensar, em forma de agenciamentos, algumas intuições bastante
interessantes acerca do ato de escrever, e seguir percursos e promover encontros
rizomáticos sobre essa temática, pouco pensados até então. Daí assumirmos, com
alegria e prazer, esse desafio.
1
2
Conceito Multiplicidade e Rizoma
Em Mil Platôs, já no Prefácio, a questão da Multiplicidade está colocada,
quando Deleuze e Guattari a postulam em estado substantivo, como a própria
realidade, liberta de três >jugos=: a unidade, a totalidade e o sujeito que, quando
aparecem, são expressões de processos que se produzem e aparecem nas
multiplicidades
1
.
Numa multiplicidade prinpios específicos: >singularidades= equivalem a
elementos; >devires= equivalem a relações; >hecceidades= (individuações sem sujeito)
equivalem a acontecimentos; >espaços e tempos livres= equivalem a espaços-tempos; a
>rizoma=, enquanto modelo de composição, equivale à >árvore=; seu plano de
composição são >platôs=, atravessados por vetores que territorializam e
reterritorializam
2
.
Uma multiplicidade implica numa diferença de dois aspectos básicos: abrir
mão de uma dimensão superior e a subtração do uno, de tal forma que significa
escrever sempre n - 1
3
. Uma multiplicidade se aproxima de um rizoma, tubérculo,
bulbo, diferentemente de raiz e radícula
4
, que tem características
5
claras, segundo
1 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 8.
2 IDEM, Ibidem, p. 8.
3 IDEM, Ibidem, p. 9.
4 IDEM, Ibidem, p. 9.
5 IDEM, Ibidem, pp. 15-32.
3
Deleuze e Guattari, como: princípios de conexão e heterogeneidade B qualquer
ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo; princípio de
multiplicidade B como estado substantivo, a multiplicidade perde a sua relão com o
uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como
imagem e mundo. Uma multiplicidade é plana, formada por linhas e tem somente
determinações, grandezas, dimensões que não pode crescer sem que mude de
natureza; perde-se a visão da estrutura, com seus pontos e posições. Um rizoma não
tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda
6
,
seguindo a forma de platôs. Uma multiplicidade se define por um fora, por seu
universo de conexões; princípio de ruptura a-significante B rompendo com a
significâncias das estruturas, um rizoma pode ser rompido, quebrado em qualquer
lugar, cada vez que um segmento explode numa linha de fuga que, ao mesmo tempo
que faz fugir, pode reestratificar o conjunto. Nesse sentido, um rizoma é uma
antigenealogia; princípio de cartografia e decalcomania B uma distinção básica
entre o decalque-reprodução e o mapa-construção. O decalque refere-se a um modelo
estrutural ou gerativo, eixo genético como unidade pivotante objetiva sobre a qual se
organizam estados sucessivos, que supõe um retorno ao mesmo. Um rizoma é um
mapa, aberto, com múltiplas entradas, reversível, mutável, em permanente construção.
Não é objeto de reprodução. É uma memória curta ou uma antimemória
7
. Podemos
projetar o decalque sobre o mapa, mas o inverso gera engessamento, já que o rizoma é
o percurso do desejo e >arborificá-lo= significa fechá-lo, bloqueando esse percurso. O
6 IDEM, Ibidem, p. 32.
7 IDEM, Ibidem, p. 32.
4
rizoma é a produção do inconsciente
8
. O rizoma é um sistema a-centrado não
hierárquico e não significante, sem General (...) unicamente definido por uma
circulação de estados (...), todo tipo de devires
9
.
8 IDEM, Ibidem, p. 28.
9 IDEM, Ibidem, p. 33.
5
6
A escrita rizomática de Cora Coralina
Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias. Renitentes. Indomáveis.
Cortadas. Maltratadas.Pisadas.
E renascendo.
10
Cora Coralina, em seus escritos, forma à realidade rizomática. Sua escrita
inaugura percursos e encontros (devires minoritários) inusitados, que geram vida, a
partir de um modo singular de Aacasalar@ palavra, realidade e sentimento, permitindo
que o leitor/co-autor experimente um universo de multiplicidade.
10 CORALINA, C., Minha Cidade. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. 18. ed. o
Paulo: Global Editora, 1985, p. 48.
Sua escrita, ainda que não se constitua rizomórfica (no sentido deleuzo-
guattariano) é expressão de um olhar rizomático e de uma realidade que se encontra
na forma de platôs. Assim, sua palavra encontra, na Cidade de Goiás, um percurso
diferente e muitas possibilidades que vão sempre se ampliando: velhos muros, sem
prumo e aprumos, mas que nunca estão s; avencas que nascem nas frinchas das
pedras desses muros, que por sua vez estão ali porque foram plantadas pelo tempo; os
jasmineiros que se derramam sobre esses muros, perfumando e ornamentando, de
forma contrastante, tal paisagem feia e suja; casebres que também se debruçam; di
Cora que, cansados pelo tempo, eles vivem a cochichar; uma colcha de retalhos,
7
furada, descansando sobre um lajedo e o pedido sincero de remendos para ela; becos
tristes, úmidos, andrajosos e sombrios, enlixarados e pobres de sua Cidade, mas que
são tocados, ao meio-dia, por um pincel dourado da luz solar; o Rio Vermelho que
corre embaixo de suas janelas, juntamente com as lavadeiras pobres e sofredoras que
nele batem suas roupas e não entoam cantigas; os filhos abandonados dessas
lavadeiras que nem mesmo no Rio Vermelho estão; essa infância, sofrida, mal-amada,
o compreendida, seja dos lenheiros, que não são crianças e nem adultos, seja das
crianças que vagam, famintas, às ruas, sonhando com uma fruta ou um bife bem
grande, seja de todas que o castigadas e que morreram por castigos cruéis; as
ramadas das árvores abandonadas,
sem nome e sem valia, sem flores e sem frutos,
onde descansam os pássaros vadios e a gente cansada; o sol que, descendo sobre os
monturos de lixo, Acalça@ de ouro a sandália velha, depositada nos becos, onde passam
>gentinhas= descalças; todas as mulheres, a operária, a lavadeira, a cabocla velha, a
cozinheira, a mulher do povo, a mulher roceira, a mulher da vida; um tanto de objetos
e coisas: relógio, berços, flores, muletas, velho sobrado, milho, enxada, vizinhos,
cidades por onde passou.
Em tudo há encontro, devir, contato, conexão, a conjunção Ae@,
agenciamento em função de um fora, um crescimento de dimensões que se ampliam
em conexões. Mesmo as dificuldades advindas de sua realidade (pobreza, abandono,
muletas) transformam-se nessas zonas de intensidade contínua, possibilitando uma
escrita-devir que arrasta e é arrastada por pontos de fuga para outros territórios.
8
Cora escreve sobre sua pobreza, seu sentimento de feiúra, seu complexo de
inferioridade, seu desejo vago de analfabetismo, sua pobreza vestida de cabelos
brancos, suas mãos laboriosas, sua solidão, suas muletas, as traves de seu velho
casario que despencam diante da indiferença dos passantes, as tábuas remontadas do
chão de seu quarto, a sua cama pobre. Mas a cada vez que fala de si, fala de um povo
inteiro, de experiências coletivas, de individuações inatribuíveis. Por isso sua escrita
encontra tantas realidades marginais e segue percursos dos desejos de tantas pessoas.
Cora, em sua escrita, desenterra infâncias, escolas, famílias, paisagens,
pessoas e o que de mais renegado em Goiás de um tempo. Sua escrita é rizomática,
porque expressão da conjunção >e...e...e=. Poderíamos dizer que Cora são,
simultaneamente, tantas coisas.
Cora são a Aninha feia da Lapa...
Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa de tuas ruas estreitas,
curtas, indecisas, entrando, saindo uma das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Eu sou aquela mulher que ficou velha, esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando esrias, fazendo advinhação.
Cantando teu passado. Cantando teu futuro.
Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados e telhados e paredes.
9
Eu sou aquele teu velho muro verde de avencas
onde se debruça um antigo jasmineiro, cheiroso
na ruinha pobre e suja.
Eu sou estas casas encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam a gente cansada e os pássaros vadios.
Eu sou o caule dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias. Renitentes. Indomáveis. Cortadas. Maltratadas. Pisadas. E renascendo.
Eu sou a dureza desses morros,
revestidos, enflorados, lascados a machado,
lenhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
Pastados. Calcinados e renascidos.
Minha vida, meus sentidos, minha estética,
Todas as vibrações de minha sensibilidade de mulher,
Têm, aqui, suas raízes.
Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
11
Mas juntamente com a >Aninha feia da Lapa=, que são tantas coisas, coexiste
a >velha mais bonita de Goiás=:
11 CORALINA, C., Minha Cidade. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 47-49.
10
Eu sou a velha
mais bonita de Goiás.
Namoro a lua.
Namoro as estrelas.
Me dou bem
com o rio Vermelho.
Tenho segredo
com os morros
que não é de adivinhá.
Sou do beco do Mingu,
sou do larguinho
do Rintintin.
Tenho um amor
que me espera
na rua da Machorra,
outro no campo da Forca.
Gosto dessa rua
desde o tempo do bioco
e do batuque.
Já andei no Chupa Osso.
Saí lá doMole.
Procuro enterro de ouro.
Vou subir o Canta Galo
com dez roteiros na mão.
Se você quiser, moço,
vem comigo:
vamos caçar esse ouro,
vamos fazer água B loucos
no Poço da Carioca, sair debaixo das pontes,
11
dar que falar
às bocas de Goiás.
Já bebi água do rio
na concha da minha mão.
Fui velha quando era moça.
Tenho a idade de meus versos.
Acho que assim fica bem.
Sou velha namoradeira.
Lancei a rede na lua,
ando catando as estrelas.
12
Cora são todas as mulheres marginalizadas do seu tempo: a cabocla velha e a
cozinheira e a mulher roceira e a mulher proletária e a mulher da vida e a velha
esquecida e a lavadeira abandonada, carregada de necessidades, do Rio Vermelho:
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
12 CORALINA, C., Não conte pra ninguém. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 90-91.
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
12
d=água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua cora verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitude bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
13
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida B
a vida mera das obscuras.
13
Cora são também os muitos filhos largados pelo mundo dessas lavadeiras:
Sombra da mata
sobre as águas quietas
onde as iaras
vêm dançar à noite...
13 CORALINA, C., Todas as Vidas. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 45-46.
Não. Mentira.
Façamos versos sem mentir.
- Onde batem roupa
as lavadeiras pobres.
Sombra verde dos morros
no poço fundo
da Carioca
14
onde as mulheres sem marido
carregadas de necessidades,
mães de muitos filhos
largados pelo mundo
batem roupa nas pedras
lavando a pobreza
sem cantiga, sem toada, sem alegria.
Quero escrever versos verdadeiros.
Por que será, Senhor
que a mentira se insinua nos meus versos?
Onde vive você, poeta, meu irmão
que faz versos sem mentir?
14
E as necessidades e desejos desses filhos largados pelo mundo:
(...) Eu tinha fome.
Sonhava com um bife bem grande.
Um pastel enorme, uma fruta.
Um doce sem tamanho. (...)
15
E que muitas vezes não têm infância:
14 CORALINA, C., Vida das Lavadeiras. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p. 59.
15 CORALINA, C., Oração do Pequeno Delinqüente. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Esrias
Mais, p. 233.
(...) E aquele menino, lenheiro ele, salvo seja.
Sem infância, sem idade.
Franzino, maltrapilho,
pequeno para ser homem,
15
forte para ser criança.
Ser indefeso, indefinido, que só se vê na minha cidade.(...)
16
Cora são a sua cidade e os becos malditos, sujos e enlixarados de Goiás e os
muros sem prumo desses becos e as avencas que nascem na frincha das pedras desses
muros, plantadas pelo tempo e o caule dessas trepadeiras...
Muitas vezes fala a partir de sua experiência pessoal, mas ainda assim, a
partir disso, reinventa uma coletividade. É o caso de seu Ode às Muletas. Tudo
começa com um tombo, imprevisto, que interrompe um certo nomadismo:
(...) Andarilha que fui
de boas tíbias e justo fêmur,
jamais reumáticos.
Um dia o inesperado trambolhão,
escada abaixo. (...).
17
16 CORALINA, C., Becos de Goiás. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 103-
104.
17 CORALINA, C., Ode às Muletas. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 193.
16
A seguir surge a necessidade de muletas, A(...) depois de ter vencido longo
tempo e ter dado voltas ao mundo sem deixar a sua casa.(...)@
18
. Mas as muletas
parecem constituir pontos de fuga: uma transversalidade que garante graus de
desterritorialização. E são muito bem-vindas:
(...) Muletas utilíssimas!...
Pudesse a velha musa
vos cantar melhor!...
Eu as venero em humilde gratidão.
Leves e verticais. Jamais sofisticadas.
Seguras nos seus calços
de borracha escura.
Nenhum enfeite ou sortilégio.
Fidelíssimas na sua magnânima
utilidade de ajudar a novos passos.(...)
19
.
Sua muleta é uma coletividade. Seu delírio é histórico-mundial, e não apenas
familiar. Através do seu Ode às Muletas, o resgate de um mundo renegado, às
vezes devir-minoritário, sendo reinventado:
(...) Foi bastão primeiro do indigente,
desvalido, encanecido, peregrino
em distantes romarias.
Varapau do serrano em agrestes serranias.
Bordão de frade penitente, mendicante.
Menestrel em tempos idos
18 IDEM, Ibidem, p. 193.
19 IDEM, Ibidem, p. 105.
17
tateando incertos passos.
Rapsodos descantando
romanças e baladas
pelos burgos, castelos,castelanias.
Cajado patriarcal de pastores,
santos e profetas.
Vara simbólica de autoridades
em remotas eras.
Subiu a dignidade eclesiástica
e foi o báculo episcopal.
Entrou no convívio social.
Bengala moderna, urbana, requinte
e complemento da juventude.
Estética e estilística dos moços.
Bengalão respeitável dos velhos,
encastoado em prata e ouro,
iniciais gravadas,
acrescentava algo ao ancião B respeito, veneração
aos seus passos tardos.
Bengala de estoque...
Arma traiçoeira de malandro
e do sicário.
Bengalas de junco, de prata,
de marfim e de unicórnio...
encastoadas em ouro e pedras finas.
Subiu e galgou. Uso e desuso.
Modificada, acertada à necessidade humana
reaparece, amparo e proteção.
Transformação técnica,
- muletas ortopédicas. (...)
18
(...) Mais do que as muletas
que nos dão apoio,
eu me curvo reverente ante
a bengala branca do cego
que é a própria luz de seus olhos mortos
em meio à multidão
vidente.
20
Mas, nessa perspectiva, um de seus textos mais clássicos é a Oração do
Milho. Milho que é devir-minoritário, diferentemente do trigo. O devir-milho inaugura
muitos outros devires. Milho-coletividade. Milho-reinvenção de um povo. Milho-
poesia.
Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão de Vida, nem lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra, onde o vinga o
trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais de jugo.
20 IDEM, Ibidem, pp. 196-197.
19
Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.
Fui o angu pesado e constante do escravo
na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam
a vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta de seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.
21
21 CORALINA, C., Oração do milho, In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 163-
164.
A escrita de Cora Coralina é sempre conjuntiva, aditiva, centfuga,
rizomática, múltipla. O universo de Cora é vastíssimo. Sua escrita nos introduz
sempre na iminência de infinitos mundos, entroncamentos, perspectivas, infinitas. Cora
20
Asão@. um singular para Cora: Cora é multiplicidades. Cora é rizoma. E a
característica de ambos, segundo Deleuze e Guattari é exatamente a de não Aserem@
nada, a não ser um Aentre@ (que não é lugar). É dessa escrita, que não nasce a partir de
uma estrutura formal, que é a-cronológica, mas que é devir e que transita entre
diversos lugares, que estamos em busca. É dessa Cora que se encontra exatamente nos
pontos de fuga que estamos em busca.
Importante é que possamos dizer que temos a pretensão de buscar, mas
nunca de encontrar, de chegar. Esta dissertação B pretende-se potência nômade: é
apenas travessia entre essas muitas paisagens, externas e internas, e um pensar, não
prévio nem preexistente, entre algumas dessas paragens.
1
2
Conceito Devir
ADevir@ é um dos conceitos-chave mais complexos dos autores, que nos
possibilita situarmo-nos em uma perspectiva Acartográfica@ (distinta da Aarqueológica,
monumental, memorial@), e compreendermos o sentido de uma Avelocidade que se
adquire no meio@. Tem a ver com a economia do desejo.
1
Numa concepção
Arizomática@, das Amultiplicidades@, as potencialidades têm a ver com tudo que faz
fugir a forma e o modelo. Pelo Adevir@ há a possibilidade de um nomadismo, de
Aagenciamentos com um fora@, de ampliação do Amapa@. Muitas são as considerações
acerca do conceito:
1) ADevir@ não é deixar de ser algo para tornar-se outra coisa. O devir não produz
outra coisa que a si mesmo.
2) ADevir@ não significa mudar, já que não desemboca em um término ou um fim.
3) ADevir@ não significa imitar, identificar-se, assimilar e conformar-se a nada.
Deleuze, em distintos textos, tece essas considerações, apontando outros
significados:
Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça
ou de verdade. Não um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual
se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta >o que você
devém?= é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo
1 NEGRI, T.; GUATTARI, F.; Las verdades nômadas: Por nuevos espacios de libertad. Donostia:
Tercera Prensa-Hirugarren Prentsa S.L., 1996, p. 214 (Gak@a Liburuak, 28).
3
em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômeno
de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de
núpcias entre dois reinos.
2
Como podemos entender o conceito de Adevir@? Devir é um rizoma, algo da
ordem da aliança
3
. Deleuze postula que o
(...) devir é um encontro entre duas pessoas, acontecimentos, movimentos, idéias,
entidades, multiplicidades, que provoca uma terceira coisa entre ambas, algo sem
passado, presente ou futuro; algo sem temporalidade cronológica, mas com geografia,
intensidade e direção próprias
4
.
2 DELEUZE, G., Devir. In: IDEM, Dialogues, com Claire Parnet. Paris: Flammarion, 1997; reed.
aumentada, Champs, 1996, citado por Zourabichvili, François. O Vocabulário de Deleuze. Tradução
André Telles. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004, p. 48.
3 NEGRI, T.; GUATTARI, F., Las verdades nômadas. Por nuevos espacios de libertad, p. 215.
4 Deleuze, Gilles. Parnet, Claire. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998, pp. 10-15, citado por KOHAN, W.
O., A Infância da Educação: O conceito Devir-Criança. In:__ (org.) Lugares da Filosofia: Inncia. Rio
de Janeiro: DP&A, 2004, p. 9.
Para Deleuze e Guattari, o Adevir@ segue uma determinada lógica. Os Adevires@
dão-se sempre na linha de um Aminoritário@, Amolecular@, em contraposição a um
Amajoritário@ e Amolar@. Não tem a ver com Atamanho@, mas com fluxo e
potencialidade centrípeta e centfuga: enquanto o Adevir majoritário@ atrai para um
centro - que é Uno, modelar, reproduzível -, o Aminoritário@ desvia desse centro, faz
fugir, possibilita novos icios. François Zourabichvili postula que o desejo (cujo
4
conteúdo é o Adevir@) tende a investir nos domínios de uma Aanimalidade, infância,
feminilidade, imperceptível@, mais do que quaisquer outros domínios. Tais domínios
Aminoritários@, por não terem um modelo, encontram-se sempre em processo, num
constante nomadismo. Mas Zourabichvili dirá que a força do Aminoritário@ não reside
apenas nisso, pois eles não se apresentam como modelos alternativos, como formas
ou códigos de substituição ao modelo considerado Amajoritário@. A força de tais
domínios decorre de seu
coeficiente de alteridade ou de desterritorialização absoluta (grifo do autor), abrindo a
um para-além da forma que não é o caos, mas uma consistência dita Amolecular@: então
a percepção capta variações intensivas (composições de velocidade entre elementos
informais) e não um recorte de formas (conjuntos Amolares@), ao passo que a
afectividade se emancipa de seus bordões e impasses habituais
5
.
Deleuze postula que os Adevires@ nunca se dão na perspectiva inversa de um
Aminoritário@: O devir não se no sentido inverso, e não entramos em um devir-
Homem, uma vez que o homem se apresenta como uma forma de expressão
dominante que pretende impor-se a toda matéria, ao passo que mulher, animal ou
molécula têm sempre um componente de fuga que se furta à sua própria
formalização
6
.
5 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, pp. 49-50.
6 DELEUZE, G., A Literatura e a Vida. In: IDEM, Crítica e Clínica, p. 11.
5
Walter Kohan postula que os devires-minoritários constituem-se intensidades
criadoras, disruptoras, revolucionárias, que podem surgir da abertura do espaço,
no encontro entre o novo e o velho, que podem interromper o que está dado e
propiciar novos inícios
7
. Zourabichvili dique no Adevir@, uma outra forma de viver
e de sentir assombra ou se envolve com a nossa e a
A
faz fugir
@
8
). no devir um
processo marcadamente revolucionário. Os Adevires minoritários@ evidenciam a lógica
subversiva do desejo, que sempre escapa e transita (já que o se sedentariza) nas
periferias dos domínios e termos, em um permanente processo e que representa
descontinuidade.
Sobre esse >trânsito=, >marginal=, que o tem a ver com um lugar, Deleuze diz
que o
A
devir está sempre
A
entre
@
ou
A
no meio
@
: mulher entre as mulheres, ou animal
no meio de outros
@
9
. Também dirá:
Não é atingir uma forma (identificação, imitação, mimese), mas encontrar a zona de
vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que não seja possível
distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem
gerais, mas imprevistos, não preexistentes, tanto menos determinados numa forma
quanto se singularizam numa população
10
.
7 KOHAN, W. O., A Infância da Educação: O conceito Devir-Criança. In:__ (org.) Lugares da Filosofia:
Infância. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 11.
8 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, p. 48.
9 DELEUZE, G., A Literatura e a Vida. In: IDEM, Crítica e Clínica, p. 12.
10 IDEM, ibidem, p. 11.
6
Aqui percebemos dois elementos importantes: a chamada Azona de vizinhança,
de indiscernibilidade ou de indiferenciação@, por um lado, e a afirmação do artigo
indefinido e de uma suposta Ageneralidade@ (negada por Deleuze), como autêntica
potênciaEm relação ao primeiro elemento, a chamada Azona de vizinhança, de
indiscernibilidade ou de indiferenciação@ de um Adevir@ evidencia-se a impossibilidade
de compreendermos tal conceito como um lugar que se ocupa
, um estado que se
assume ou algo que se torna. No Adevir@ não há dois termos intercambiantes, mas a
formação de um
A
bloco
@
, em outras palavras, o encontro ou a relação de dois termos
heterogêneos que se
A
desterritorializam mutuamente
@
, onde o termo encontrado pode
ser Aarrastado num devir-expressivo@ correlato ao termo que o encontra (devir-
minoritário), ou seja através de um processo Aonde o termo encontrado seja por sua
vez aquele que encontra@ (Aco-evolução o paralela@, Anúpcias entre dois reinos@
11
).
Em AMil Platôs@, Deleuze e Guattari descrevem o processo de Aco-evolução não
paralela@ do Adevir@:
A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem. Um decalque de vespa; mas a
vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto,
tornando ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela
reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma
em sua heterogeneidade. (...) Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente
diferente: não mais imitação, mas captura do código, mais-valia do código, aumento de
valência, verdadeiro devir, devir-vespa da orquídea, devir-orquídea da vespa, cada um
destes devires assegurando a desterritorialização de um dos termos e a
11 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, pp. 48-49.
7
reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando segundo uma
circulação de intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais longe
12
.
Em relação ao segundo elemento, uma suposta Ageneralidade@ (negada por
Deleuze), como autêntica potência, podemos entender que tudo o que Adevém@
precisa ser despojado das características formais, instituídas na forma do artigo
definido Ao, a@. Na perspectiva da Amultiplicidade@, do Arizoma@, não sentido o
artigo definido, que sugere modelos Amajoritários@, herméticos, modelares,
conformadores. Deleuze insiste na extrema riqueza do artigo indefinido:
Mas a literatura segue a via inversa, e só se instala descobrindo sob as aparentes
pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma
singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma
criança...
13
.
O Adevir@ é, pois, a emergência de uma coletividade e de um Apovo@ numa
experiência extremamente singular e única.
Finalmente, Deleuze ainda postula, que o Adevir@ inaugura outro categoria de
tempo, não cronológica. No devir não passado, presente e nem futuro. Não
mesmo história, como sucessão de acontecimentos. o intempestivo, a
12 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, pp. 18-20.
13 DELEUZE, G., A Literatura e a Vida. In: IDEM, Crítica e Clínica, p. 13.
8
descontinuidade. É uma experiência de Ainvolução@, que não significa Aregredir@ nem
Aprogredir@, mas despontar em outra lógica:
Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples, tornar-se cada vez mais
deserto e, assim, mais povoado. É isso que é difícil de explicar: a que ponto involuir é,
evidentemente, o contrário de evoluir, mas também o contrário de regredir, retornar à
infância ou a um mundo primitivo. Involuir é ter um andar cada vez mais simples,
econômico, sóbrio
14
.
Talvez Deleuze esteja dizendo do desafio que é estar vazio para a experiência
de cada encontro, sem que este seja interpretado à luz das bagagens modelares
herdadas numa lógica Aarborescente@.
De qualquer maneira, a partir dessa perspectiva, Deleuze fala da importância
do escritor experimentar um Adevir-infância@, que não é a infância de ninguém, muito
menos a dele, mas a Ainfância do mundo@: A tarefa é outra: tornar-se criança através
do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo e restaurar essa infância
15
. O
devir-infância é real, sem que seja real a infância que se devém. Walter usa uma
imagem muito bonita para descrever a experiência de um devir-criança:
14 DELEUZE, G.; PARNET, C., Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998, p. 39. In: citado por KOHAN, W.
O., A Infância da Educação: O conceito Devir-Criança. In:__ (org.) Lugares da Filosofia: Infância. Rio
de Janeiro: DP&A, 2004, p. 6.
15 DELEUZE, G., L
=
Abécedáire de Gilles Deleuze. E - Enfance. Paris: Editions Montparnasse, 1997.
Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação. ATV Escola@, 2001.
9
Devir-criança é, assim, uma força que extrai, da idade que se tem, do corpo que se é, os
fluxos e as partículas que dão lugar a uma Ainvolução criadora@, a núpcias Aanti-
natureza@, a uma força que não se espera, que irrompe, sem ser convidada ou
antecipada
16
.
O conceito de Adevir@ apresenta-se, pois, como conceito Apotência@, no
pensamento de Deleuze e Guattari. É através da experiência do Adevir@, que se escapa
à lógica Aarborescente@ do pensamento e do conhecimento, e se inaugura a
possibilidade de experimentar o múltiplo, em sua diversidade imprevivel e
rizomática. Para o pensamento, nada de mais original: o Adevir@ é um Aencontro@
sempre Amarginal@ que permite à subjetividade escapar ao clic e a encontrar
Arelações desconcertantes@, experimentar a Aexterioridade de domínios@, enfim,
experimentar aquilo que Deleuze chama de Anovas sendas de inteligibilidade@.
16 KOHAN, W. O., A Infância da Educação: O conceito Devir-Criança. In:__ (org.) Lugares da
Filosofia: Inncia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 9.
10
11
Cora Coralina: Uma explosão de devires
O universo de Cora é marcadamente relacional. Entrando em contato com a
sua escrita podemos sugerir uma explosão de devires. Sua escrita-devir investe nos
domínios de uma animalidade, de uma feminilidade, de uma infância, de uma
imperceptibilidade, >locais= marginais de inspiração e de potência, crião, reinvenção.
Em Cora Coralina tais devires minoritários são marcantes na sua inspiração.
Ela tamm experimenta algo grande demais na vida, do qual não retorna ilesa: a
partir daí, a sua vida se debruça sobre esses devires minoritários, como as avencas e
jasmineiros sobre os muros, como os casebres envelhecidos. Em suas confissões, di:
Alguma coisa, coisas que me entulhavam, me engasgavam e precisavam sair
17
. Sua
escrita e seu desejo transitam nesse universo extremamente comum, molecular,
insignificante, quase um não-lugar de inspiração. Cora é testemunha. Como diz Carlos
Drummond de Andrade, Cora possui um coração inumerável.
18
Em Recados de Aninha
B
I, Cora expressa a consciência dessa lugar, que é
quase opção, de onde não se consegue mais sair:
17 CORALINA, C., Este livro, meias confissões de Aninha. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias
Confissões de Aninha, p. 43.
18 ANDRADE, C. D. de, Cora Coralina, de Goiás. In: CORALINA, C., Vintém de Cobre. Meias
Confissões de Aninha, p. 22.
12
Meu jovem, a vida é boa, e você cantando o cântico da mocidade
pode fazê-la melhor. E o melhor da vida é o trabalho.
No trabalho está a poesia e o ideal, assim possa sentir o poeta.
Só o trabalhador sabe do mistério
de uma semente germinando na terra.
Só o cavador pode ver a cor verde se tornar azul.
Ele, na flor, já viu o fruto e no fruto prevê a semente.
E sabe que uma cana de milho, uma braçada de folhas e palhas
na terra é vida que se renova.
Que sabe você, jovem poeta, da fala das sementes?
Um poeta parnasiano do passado, conversava com as estrelas,
oi coisa linda no tempo.
Converse, você, poeta destes tempos novos,
converse com as sementes e as folhas caídas
que pisa distraído.
Você vai sobre rodas
e caminha sobre vidas que o asfalto recobriu.
Quem fala essa mensagem é uma mulher muito antiga
que entende a fala e a vida de um monte de lixo
que vê da janela da Casa Velha da Ponte, lá do outro lado do rio,
nos reinos da minha cidade.(...)
19
.
Uma mulher muito antiga, que entende a fala e a vida de um monte de lixo...
Essa é Cora Coralina! O que de mais minoritário do que o lixo? Mas a escrita de
Cora afirma que nele há vida e fala. E Cora o entende.
Em um outro texto, Cora também fala da realidade solitária desse olhar:
19 CORALINA, C., Recados de Aninha B I. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha,
p. 152.
13
Na haste hierática e vertical pompeia.
Sobe para a luz e para o alto a flor...
Ainda não.
Veio de longe.
Muda viajeira dentro de um plástico esquecida.
Nem cuidados dei à grande e rude matriz fecundada.
Apanhada num monte de entulho de lixeira.
ACebola brava@ na botânica sapiente de Seu Vicente.
Oitenta e alguns avos de enxada e terra.
Sabedoria agra.
Afilhado do Padim Cícero.
Menosprezo pelas Af=lores@:
ADe que val=isso?@
Displicente, exato, irredutível.
E eu, meu Deus, extasiada, vendo, sentindo e acompanhando,
fremente, aquela inesperada gestação.
_ Um bulbo, tubérculo, célula de vida rejeitada,
levada na hora certa à maternidade terra.
A Flor...
Ainda não.
Espátula. Botão
hígido, encerrado, hermético,
inviolado no seu mistério.
Tenro vegetal, túmido de seiva.
Promessa, encantamento.
Folhas longas, espalmadas.
Espadins verdes montando guarda.
Da Flor...
14
A expectativa, o medo.
Aquele caule frágil
ser quebrado no escuro da noite.
O vento, a chuva, o granizo.
A irreverência gosmenta de um verme rastejante.
O imprevisto atentado de alheia mão
Consciente ou não.
Alerta. Insone.
Madrugadora.
Na manhã mal nascida,
toda em rendas cor-de-rosa,
túrgida de luz,
ao sol rascante do meio-dia.
No silêncio serenado da noite
eu, partejando o nascer da flor,
que ali vem na clausura
uterina de um botão.
Rombóide.
Para a Flor...
Chamei a tantos...
Indiferentes, alheios,
ninguém sentiu comigo
o mistério daquela liturgia floral.
Encerrada na custódia do botão,
ela se enfeita para os esponsais do sol.
Ela se penteia, se veste nupcial
para o esplendor de sua efêmera vida vegetal.
Na minha aflita vigília pergunto:
C De que cor será a flor?
15
Chamo e conclamo de alheias distâncias
alheias sensibilidades.
Ninguém responde.
Ninguém sente comigo.
aquele mistério oculto
Aquele sortilégio a se quebrar.
Afinal a Flor...
Do conúbio místico da terra e do sol
- a eclosão. Quatro lírios semi-abertos,
apontando os pontos cardeais no ápice da haste.
Vara florida de castidade santa.
Cetro heráldico. Emblema litúrgico
de algum príncipe profeta bíblico
egresso das páginas sagradas
do ALivro dos Reis@ ou do AHabacuco@.
E foi assim que eu vi a flor.
20
Tal texto sugere uma sensibilidade que coloca em relão os grandes escritores
e pensadores. Ambos acessam mundos muito densos e embora possam reinventar um
povo, experimentam a dureza de um parto solitário. Ambos são tocados por uma
sensibilidade de extrema sutileza.
20 CORALINA, C., A Flor. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 19-22.
Embora, na maioria das vezes, Cora escreva a partir de tais realidades, outras
tantas vezes ela é aquilo de que fala. Na sua escrita, tais realidades tornam-se
potência. E ela consegue mergulhar no chamado romance histórico-mundial, bem
diferente, do drama familiar, circunscrito, particular. Assim, a escrita de Cora
16
testemunha a infância do mundo, a feminilidade marginal do mundo, a animalidade do
mundo, a insignificância do mundo e a sensibilidade do mundo, esta quase não falada,
manifestada, socializada, aterrada sobre o devir majoritário da razão.
No poema Todas as Vidas, como já vimos, Cora fala das mulheres
minoritárias, Aa vida mera das obscuras@, que vive dentro de sua vida. Na poesia Becos
de Goiás, retomará o tema, mas dedicar-se-á às Amulheres da vida@, Arenegadas,
confinadas@, Ahumilhadas@, Acastigada@ e doentes.
O Rio Vermelho que corre por debaixo de suas janelas a conduziu até as
mulheres lavadeiras, por quem tem muito apreço. A escrita de Cora confere-lhes um
lugar, dá-lhes uma legitimidade. São mulheres, mães de muitos filhos, abandonadas.
São carregadas de roupas e necessidades. Lavam roupas e a pobreza. Não toada e
nem alegria. A sua dura realidade torna-se imperativo ético, que interpela a criação
poética:
Quero escrever versos verdadeiros. Por que será, Senhor, que a mentira se insinua
nos meus versos? Onde vive você, poeta, meu irmão, que faz versos sem mentir?
21
21 CORALINA, C., Vida das Lavadeiras. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p. 59.
Seu devir mais expressivo é o devir-terra. Cora se identifica muito com a terra,
com o plantio, com o trabalho do lavrador, com o movimento da semente, com o
poder da enxada, com a abundância e generosidade da natureza, com o milagre da
vida que desponta da terra. Através da intensidade devir-terra, que a transfigura,
17
uma infinidade de outros devires emergentes. Talvez esse seja um dos textos mais
intensos de Cora:
Sinto que sou a abelha no seu artesanato.
Meus versos tem cheiro dos matos, dos bois e dos currais.
Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.
Amo a terra de um místico amor consagrado, num esponsal sublimado, procriador e
fecundo.
Sinto seus trabalhadores rudes e obscuros,
suas aspirações inalcançadas, apreensões e desenganos.
Plantei e colhi pelas suas mãos calosas
e tal mal remuneradas.
Participamos receosos do sol e da chuva em desencontro,
nas lavouras carecidas.
Acompanhamos atentos, trovões longínquos e o riscar
de relâmpagos no escuro da noite, irmanados no regozijo
das formações escuras e pejadas no espaço
e o refrigério da chuva nas roças plantadas,
nos pastos maduros, e nas cabeceiras das aguadas.
Minha identificação profunda e amorosa
com a terra e com os que nela trabalham.
A gleba me transfigura. Dentro da gleba,
ouvindo o mugido da vacada, o mééé dos bezerros,
o roncar e focinhar dos porcos, o cantar dos galos,
o cacarejar das poedeiras, o latir dos cães,
eu me identifico.
Sou árvores, sou tronco, sou raiz, sou folha,
sou graveto, sou mato, sou paiol
e sou a velha tulha de barro.
Pela minha voz cantam todos os pássaros, piam as cobras
e coaxam as rãs,
Mugem todas as boiadas que vão pelas estradas.
Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando,
é o arado milenário que sulca.
18
Meu versos têm relance de enxada,
Gume de foice e peso de machado.
Cheiro de currais e gosto de terra. (...)
A gleba está dentro de mim. Eu sou a terra.
Identificada com seus homens rudes e obscuros,
enxadeiros, machadeiros e boiadeiros, peões e moradores.
Seus trabalhos rotineiros, suas limitadas aspirações.
Partilhei com eles de esperança e desenganos. (...)
Plantei pelas suas enxadas e suas mãos calosas.
Colhi pelo seu esforço e constância.
Minha identificação com a gleba e com a sua gente.
Mulher da roça eu o sou. Mulher operária, doceira,
abelha no seu artesanato, boa cozinheira, boa lavadeira.
A gleba me transfigura, sou semente, sou pedra.
Pela minha voz cantam todos os pássaros do mundo.
Sou a cigarra cantadeira de um longo estio que se chama Vida.
Sou a formiga incansável, diligente, compondo seus abastos.
Em mim a planta renasce e floresce, sementeia e sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retornam à terra.
Minha pena é a enxada do plantador, é o arado que vai sulcando
para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios.
Eu sou a mulher mais antiga do mundo,
plantada e fecundada no ventre escuro da terra.
22
22 CORALINA, C., A Gleba me transfigura. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha,
pp. 108-110.
um devir-infância muito forte na escrita de Cora. Em meio a tantas
convenções, opressões, repressões, crueldade e insensibilidade, Cora experimenta (e
19
liberta!) como ninguém, os desejos, anseios e sonhos da inncia de um tempo, de
forma simples, poética e emocionante:
(...) Ter nos meus braços
aquela boneca de loiça
vinda de Paris,
de chapeuzinho, enfeite,
sua flor minúscula, azul, lá da França.
Sapatinhos e meias,
loira, olhos azuis e que dormia...
e que nunca foi minha.
Eu vivia aquela boneca,
sonhava, e ela sempre ali,
inacessível,
na estática da vitrine envidraçada
da loja de ASeu@ Cincinato.
23
Ou ainda:
Tinha sido o aniversário daquela senhora.
Uma sua amiga tinha lhe mandado,
à moda do tempo, bandeja de doces.
Doces em calda: figo e caju.
A mãe separou as compoteiras
e franqueou para as filhas os perecíveis.
Ávidas, insaciáveis, logo deram conta da parte franqueada.
Passaram a goderar o reservado que ficara esquecido
por inapetência, por descuido.
Certo foi que a mais espevitada e audaciosa pediu
23 CORALINA, C., Moinho do Tempo. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p. 55.
20
se podia comer aqueles de reserva.
A mãe levantou-se num impulso frenético,
tomou as compoteiras,
desceu a escada
e despejou o conteúdo na lama do terreiro
onde as galinhas ciscavam vermes.
As meninas, olhando abobadas, sem entender a lição.
A dona sumiu-se lá para dentro a retomar suas leituras infindáveis,
enquanto as crianças baixavam no lameiro e passavam a catar
e comer os doces, antes que chegassem as galinhas.
Era assim antigamente.
Criança não valia mesmo nada. Entendia por acaso dessas normas de Educação?
Nada era natural e os menores não tinham direitos.
E olha lá, que num passado que não foi meu, tinha sido bem pior.
Contavam os antigos.
Tudo de melhor para os adultos
para as crianças, prato feito, regrado, medido.
Coisas boas, guardadas, defendidas no alto dos armários,
fechados a chave e estas penduradas
no cós da saia das que mandavam. (...)
Lembro da minha satisfação com o que me davam
em racionamento constante: chocolate.
Coisa mais gostosa do meu mundo,
feito com tabletes de chocolate Beringh
raspado e batido com gema e açúcar,
até perder o cheiro característico de ovo.
Faziam nas casas pela manhã, me davam uma tigelinha minúscula,
tigela grande, tigelona enorme para os adultos.
Eu ali goderando sem mais.
Meu desejo de criança,
escondido, reservado, dissimulado, de crescer
virar gente grande e me fartar de chocolate com cacau Beringh
21
e gema batida. Cheiro de ovo, nas coisas boas que se faziam,
era defeito capital, censurado, castigado. (...)
Graças a Deus que os armários e gavetas tiveram seus fechos arrebentados
e toda gente anda farta nestes tempos de carestia,
arrotando alto, poderia dizer.
Não existe mais o arroto constante do passado nem o mau hálito,
nem crianças comendo de ração,
nem percevejo nas camas,
nem disputa na mesa pelo osso do frango,
nem briga entre irmãs pelos restos que os velhos deixavam nos pratos...(...)
24
Em Antiguidades, Cora expressa com detalhes esse desejo e a insensibilidade
dos adultos:
Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana,
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal muito que ruim).
Eu era menina em crescimento.
24 CORALINA, C., Normas de Educação. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p.
120.
22
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível (...).
Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação (...).
Aquela gente antiga,
23
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
B Valha-me Deus!...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas! (...)
D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só ia quando o galo cantava (...).
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quanto este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grande bolos
ao meu alcance.
De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim B
via com tristeza,
24
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo
e um cheiro enjoado de rapé.
25
tantos devires-imperceptíveis, quase inumeráveis, para além dos aqui já
vistos. Cora testemunha cada um com sua escrita, também devir, o que a torna, nas
palavras de Drummond, Apatrimônio de todos nós@, evidenciando que Aninha não
mais Ase pertence@
26
. Com Cora podemos aprender a importância de,
permanentemente, mudarmos o rumo do olhar, e a direção de nossos pés. À cada
nova senda do caminho, muitos mundos marginais interagindo com os nossos,
como pontos de fuga. Importante é ter consciência de que não modelos
preexistentes. E que em cada encontro a ser realizado, muitas serão as possibilidades
de - o empreendermos novos e outros caminhos, mas, sobretudo, de nos
refazermos em nosso nomadismo.
25 CORALINA, C., Antiguidades. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 53-57.
26 CORALINA, C., Carta de Drummond. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p.
23.
1
2
Conceito Literalidade
A questão da Aliteralidade@ é central e controvertida sobretudo em Deleuze,
filósofo do conceito. Isto porque os seus conceitos mais significativos, como
Arizoma@, Aárvore@, Adesterritorialização@, Adevir@, Alinha de fuga@, que têm aspecto de
metáforas, não o são. E Deleuze sempre retorna, como um Aritornelo@, à consideração
de que seus conceitos não são metáforas
1
.
Embora ele não tenha se ocupado propriamente desta questão da Aliteralidade@,
segundo François Zourabichvili, ela vai se manifestar em seu fazer filosófico,
constituindo uma vida de acesso privilegiada ao autor
2
. Para Deleuze, a Aliteralidade@
introduz em uma enunciação relações desconcertantes, para além dos clichês, que
abrem novos horizontes para a inteligibilidade.
A sua Aliteralidade@ o significa tomar as palavras em sentido próprio, de
referente usual como sentido >dado=, mas em um universo relacional a ser constrdo.
3
A Aliteralidade@ faz da enunciação um Acomplexo@, no sentido etimológico de >algo
que se tece junto=. O verbo Aser@ que liga um sujeito a um predicado em um
enunciado, para Deleuze é a conjunção Ae@, numa perspectiva de horizontalidade, já
que não há sentido prévio nos termos, mas relações significantes, ou seja, os termos
1 ZOURABICHVILI, F., Deleuze e a questão da literalidade. In: Educação & Sociedade, v.26, 2005, no
prelo, p. 4.
2 IDEM, Ibidem, pp. 2-3.
3 IDEM, Ibidem, pp. 4-5.
3
adquirem sentido na relação, de tal forma, que se constrói uma dualidade atual-virtual,
compreendida como primitiva e irredutível
4
. A esse Adesdobramento@, que permite que
o significado esteja numa relação necessária entre um termo dado e outro não dado,
Deleuze chamou de Aliteralidade@, diferente da metáfora, considerada Aredobramento@,
cuja dualidade subordina o pensamento à ordem da Amímesis@.
Deleuze o é contra a metáfora, mas não se contenta com ela
5
. Ele
problematiza a metáfora através da dualidade do seu conceito, pois o
possibilidade na utilização de um conceito Adentro@ e Afora@ de domínios próprios,
gerando sentidos próprios e figurados, separados e aparentados (segundo Aristóteles),
onde uma coisa significa outra
6
. Para Deleuze não significados prévios e todos o,
de certa forma, Acontaminados@
7
. A relação emoldura significados Aliterais@.
Vejamos um exemplo. Na enunciação deleuziana
A
o cérebro é uma erva
@
, os
termos Acérebro@ e Aerva@ não estão sendo utilizados em um AredobramentoA
metafórico
8
, Adentro@ e Afora@ de domínios próprios. A relação entre os dois termos é
de tal forma Aliteral@ e atual, que o enunciado adquire sentido único e inaugura um
modo de compreender o Acérebro@, distinto de todos os outros. Nesse enunciado
acima, o Acérebro@ o é entendido de forma prévia. Da mesma forma, o cérebro não é
4 IDEM, Ibidem, pp. 9-10.
5 IDEM, Ibidem, p. 4.
6 IDEM, Ibidem, pp. 5-6.
7 IDEM, Ibidem, p. 6.
8 IDEM, Ibidem, p. 9.
4
entendido como
uma Aerva@, visto não poder ser classificado como um vegetal. O
termo Aerva@ também não é um termo Afigurado@. O Acérebro-erva@ inaugura uma
compreensão muito diferente do Acérebro-árvore@, embora o cérebro sozinho, como
objeto indeterminado, não é nem árvore nem erva (...)
9
. François Zourabichvili irá
dizer: é duvidoso que eu tenha uma idéia de cérebro
>
antes
=
desse tipo de encontro
estranho
10
.
Deleuze nos convida a Acrer@ nessa Aliteralidade@
11
, não como adesão ou ato de
fé, mas nos convida a Afazer@ o que ele faz. O que é próprio de sua filosofia não é o
objeto, mas a prática (imanência)
12
. Por isso, sua filosofia da imanência é a prática da
linguagem como escrita Aliteral@
13
.
Para Deleuze, não existe sentido ou experiência a não ser na base de uma
>
relação
=
, que é Adevir@. A experiência, ainda que >cambiante=, é desde sempre
Acristalina@, no sentido de escapar ao clichê, ao termo próprio e prévio, ao sem
9 IDEM, Ibidem, p. 7.
10 IDEM, Ibidem, p. 7.
11 IDEM, Ibidem, p. 2.
12 IDEM, Ibidem, p. 11.
5
significação. A Aliteralidade@ é a possibilidade de resgate dessa Acristalinidade@, que
supõe a construção e a condução de enunciados a relações desconcertantes, à
exterioridade de domínios, à não interpretação (que afirma sentidos >escondidos=),
enfim, a novas sendas de inteligibilidade
14
.
13 IDEM, Ibidem, p. 4.
14 IDEM, Ibidem, pp. 7-10.
6
7
Literalidade em Cora Coralina: a experiência dos Becos de Goiás como
A
AA
Arizomas@
@@
@ de uma Cidade
Beco da minha terra...
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia,
e semeia polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha,
jogada no teu monturo.
Amo a prantina silenciosa do teu fio de água,
descendo de quintais escusos
sem pressa,
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.
Amo a avenca delicada que renasce
na frincha de teus muros empenados,
e a plantinha desvalida, de caule mole
que se defende, viceja e floresce
no agasalho de tua sombra úmida e calada.
Amo esses burros-de-lenha
que passam pelos becos antigos. Burrinhos dos morros,
secos, lanzudos, malzelados, cansados, pisados.
Arrochados na sua carga, sabidos, procurando sombra,
No range-range das cangalhas.
E aquele menino, lenheiro ele, salvo seja.
Sem infância, sem idade.
Franzino, maltrapilho,
pequeno para ser homem,
forte para ser criança.
8
Amo e canto com ternura
Todo o errado da minha terra.
Becos da minha terra,
Discriminados e humildes,
Lembrando passadas eras...
Beco do Cisco.
Beco do Cotovelo .
Beco do Annio Gomes.
Beco das Taquaras.
Beco do Seminário.
Bequinho da Escola.
Beco do Ouro Fino.
Beco da Cachoeira Grande.
Beco da Calabrote.
Beco do Mingu.
Beco da Vila Rica...
Conto a estória dos becos,
Dos becos da minha terra,
Suspeitos... mal afamados
Onde família de conceito não passava.
ALugar de gentinha@ B diziam, virando a cara.
De gente do pote d=água.
De gente de pé no chão.
Becos de mulher perdida.
Becos de mulheres da vida.
Renegadas, confinadas
Na sombra triste do beco.
Quarto de porta e janela.
9
Prostituta anemiada,
Solitária, hética, engalicada,
Tossindo, escarrando sangue
Na umidade suja do beco.
Becos mal assombrados.
Becos de assombração...
Altas horas, >mortas horas=...
Capitão-mor B alma penada,
terror dos soldados, castigado nas armas.
Capitão-mor, alma penada,
num cavalo ferrado,
chispando fogo,
descendo e subindo o beco,
comandando o quadrado B feixe de varas...
Arrastando espada, tinindo esporas...
Mulher-dama. Mulheres da vida,
perdidas,
começavam em boas casas, depois,
baixavam para o beco.
Queriam alegria. Faziam bailaricos.
- Baile Sifilítico B era ele assim chamado.
O delegado chefe de Polícia B brabeza B
dava em cima...
Mandavam sem dó, na peia.
No dia seguinte, coitadas,
cabeça raspada a navalha,
obrigadas a capinar o Largo do Chafariz,
na frente da cadeia.
Becos da minha terra...
Becos de assombração.
Românticos, pecaminosos...
Têm poesia e têm drama.
10
O drama da mulher da vida, antiga,
humilhada, malsinada.
Meretriz venérea,
desprezada, mesentérica, exangue.
Cabeça raspada a navalha,
castigada a palmatória,
capinando o largo,
chorando. Golfando sangue. (...)
15
São muitos os becos-devires. Os becos da Cidade de Goiás constituem uma
imagem muito forte, presente e determinante na literatura de Cora Coralina. Não
apenas porque fazem parte da paisagem urbastica daquela Cidade e porque sejam
inúmeros - todos nomeados -, mas porque, para a escritora, parecem constituir um
lugar de inspiração, lugar privilegiado, a partir de onde é possível se inventar um
povo, renegado e fazer a experiência do intermezzo, que não designa uma correlação
localizável, mas uma direção perpendicular, onde as coisas adquirem velocidade.
15 CORALINA, C., Becos de Goiás. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 103-
106.
Ao postular que os becos de Goiás equivalem a rizomas, estamos buscando ser
deleuzianos, no sentido de sua literalidade. As imagens literárias, tecidas em forma da
conjunção Ae@, são experiências de encontros despontadas na dinâmica dos becos, que
são pobres e revestidos de ouro, dramáticos e poéticos, pecaminosos e românticos,
abandonados e atraentes, enlixarados e generosos, sombrios e iluminados, mal-
assombrados e acolhedores, úmidos e calorosos, tristes e alegres, feios e floridos.
11
Os becos de Goiás o parecem ser determinantes em função da ligação-
passagem entre duas extremidades localizáveis e reconhecidas, mas por estarem
libertos do eixo entre dois lugares que são polaridades, por poderem constituir-se
apenas meio, intermezzo: o que acontece neles não pode ser presumido. E é
exatamente ali que acontece a vida. Os becos são lugares de agenciamentos, são o
fora, são pura desterritorialização e reterritorialização em relação ao território da
Cidade, modelo de um tempo, a ser reproduzido. Os becos são pontos de fuga que
sugerem disrupturas. Os becos são, também, lugares conjuntivos e rizomáticos, de
fluxo e intensidade, que desestruturam o esquema arborescente daquela sociedade,
com sua lógica genealógica, monumental, arqueológica.
Por isso, embora os becos fossem considerados suspeitos... mal afamados,
onde família de conceito não passava, lugar de gentinha, também são o lugar
daqueles que queriam alegria, da mulher-dama, das mulheres da vida, que
começavam em boas casas, depois, baixavam para o beco. Lugar de contradição.
Lugar de vida.
Assim, diz a autora: Becos da minha terra... Válvulas coronárias da minha
velha cidade.
16
Aqui também parece haver a literalidade, que não é metáfora. Os
Becos o são como >válvulas cororias=, e nem estas aparecem no texto em um
sentido figurado. Não há experiência prévia dos becos. Os >becos - válvulas
16 CORALINA, C., Do Beco da Vila Rica. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, p.
111.
12
coronárias=
==
= podem ser entendidos no horizonte dessa relação-devir, experiência
esta cristalina, no sentido de escapar a qualquer clichê: os becos são mecanismos vitais
de Goiás, lugares de nomadismo, que provocam desterritorializações e
reterritorializações, pontos de fuga em relação à elite hegemônica daquela sociedade.
Entre os becos, um, por demais, especial, talvez por sua insignificância
potente: O Beco da Escola
17
: Um corricho de passagem, um dos muitos vasos
comunicantes onde circula a vida humilde da cidade. É um bequinho pequeno, uma
transição, um lapso urbanístico, um bequinho de brinquedo, miudinho, com uma
braça de largura, mal medida. Cinqüenta metros de comprido... avaliado, um
bequinho que brinca de esconder. Este bequinho acolhe a Escola, Acasulo@ que
possibilita Ametamorfoses@, sobretudo através da escrita futura.
17 CORALINA, C., O Beco da Escola. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 117-
120.
Os becos autorizam e possibilitam o trânsito de muitas coisas, como lugar-
velocidade: burros-de-lenha malzelados e cansados entre galinhas mortas, sempre
encontradas, ontem, hoje, amanhã, no século que vem, no milênio que vai chegar...;
lenheiros, que não são homens e nem crianças; mulheres, que são desejadas em uma
noite e castigadas e desprezadas à luz do sol; gente de no chão, que caminha entre
sandálias e sapatos velhos e carcomidos que demoram muito tempo para se deteriorar
sobre os monturos de lixo; escuridão, lodo negro, ar sombrio e luz dourada no ângulo
do meio-dia; avencas delicadas que despontam das frinchas dos muros sem regra, sem
13
prumo e sem aprumo; gente de pote d=água entre fumaça ardida exalada dos monturos
pobres de lixo; casinhas tristes de degraus, portões vestidos de velhice...
Através dos becos, os textos de Cora tamm concretizam a possibilidade de
se fazer Literatura com as lembranças, desde que delas se desenterre um povo
renegado, ainda por vir, ou se escreva >em intenção= de um povo, sem ter a pretensão
de ocupar o seu lugar. AInventa-se um povo@ sob todos os ângulos, dimensões,
perspectivas. Tira-se o véu dos preconceitos, das negações, dos aprisionamentos.
Possibilita-se um irromper no seio de outras relações, conexões, agenciamentos.
Talvez, por serem lugar de gentinha, malditos, onde família de conceito não
passava, possibilitem a invenção desse povo, enterrado em suas traições e renegões.
A vida pode acontecer como expressão de uma multiplicidade, com uma força capaz
de gerar velocidade. A velocidade que só se adquire no meio.
Daí serem os >becos-válvulas cororias=, lugar da resistência vegetal, onde,
em sua velhice, o tempo pode planta avencas, que sempre renascem, porque são
bravias e renitentes; onde abundam ervinhas anônimas, rasteirinhas, sem valia e
vigorosas; lugar da resistência social, onde as gentinhas podem transitar, viver e se
alegrar; lugar da generosidade, onde se deposita tudo o que não se quer e onde até
os monturos de lixo são generosos às crianças pobres. Lugar privilegiado, pincelado
de ouro, pela luz diária do Sol.
14
A experiência dos becos é potencialmente literária, já que a escrita é devir.
Nos becos há uma explosão de devires, todos minoritários. A escrita de Cora é
expressão de nomadismo nesses becos. Pela escrita, a autora faz a experiência do
devir, como encontrar zonas de vizinhança, de indiscernibilidade e de indiferenciação
entre pessoas e coisas que despontam nesses becos. Assim, experimenta-se um devir
avenca, lodo, monturo de lixo, portão abandonado, fumaça ardida, galinha morta,
mulher-meretriz, lenheiro, burro malzelado. Mas cada uma dessas realidades se
debruça e se constitui na marginalidade minoritária da outra. As delicadas avencas
são bravias e renitentes ao renascerem na frincha dos muros empenados sob
condições do tempo, já que é este que planta avencas sobre a velhice dos muros. As
avencas vingam graças ao ar sombrio dos becos, à sua velha umidade andrajosa, ao
seu lodo negro, esverdeado, escorregadio. Por sua vez, tal umidade vinga graças à
prantina silenciosa do fio de água, que desce de quintais escusos, sem pressa... E
assim, em platôs que se ampliam e se complexificam cada vez mais por um fora, a vida
acontece nesses intermezzos rizomáticos.
A experiência dos >becos-válvulas coronárias= sugere uma inspiração literária
rizomática. A escrita da autora é a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia, e
semeia polmes dourados no lixo pobres desses becos... A escrita de Cora emancipa os
becos. A escrita da autora é a avenca delicada, bravia e renitente, que desponta nas
frinchas dos muros sem aprumo desses becos... E a experiência-devir da autora com
esses becos revela torna-os >lugares= de potência, de encontros e conexões, de
agenciamentos imprevisíveis: ouro-potência, prenunciado ao meio-dia; vida-potência,
enunciada nas madrugadas.
15
1
2
Conceito - Linhas de Fuga, Desterritorialização e Reterritorialização
Numa concepção cartográfica, o conceito de desterritorializão, neologismo
surgido no Anti-Édipo, deve ser referido a três outros: território, terra e
reterritorialização
1
.
O sentido de território, embora inspirado, deve ser compreendido de forma
mais ampla do que a etologia e etnologia, já que envolve um componente geográfico,
mas sobretudo existencial, do >ter um chão= e >encontrar um lugar=; tem a ver com o
Acampo familiar@
2
: marca as distâncias em relação a outrem e protege do caos. A
delimitação de um território é sinônimo de apropriação, de momento subjetivante. Um
terririo é feito de fragmentos descodificados de todo tipo, extraído dos meios, mas
que a partir desse momento adquirem o valor de propriedade.
Toda multiplicidade, em seus platôs, é atravessada por vetores, os territórios, e
também por graus de desterritorialização
3
. Tais vetores de desorganização ou de
>
desterritorialização
=
são precisamente designados como
>
linhas de fuga
=
4
. Uma
multiplicidade se define pelos agenciamentos com um fora. O território cria um
agenciamento; define-se por um fora.
1 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, p. 45.
2 IDEM, Ibidem, p. 46.
3 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 37.
3
Desterritorializar-se significa abrir-se, implicar-se em linhas de fuga ou
destruir-se. Segundo Zourabichvili, uma linha de fuga não significa fugir para fora
de, mas de fazer fugir
5
. As linhas de fuga fazem parte de uma realidade rizoma, mas é
através delas que um rizoma se rompe e se amplia, de acordo com o número de
conexões, mudando de natureza
6
. Entretanto, toda linha de fuga aponta para o risco
de uma reestratificação do conjunto, no sentido de que ela carrega os padrões do
próprio rizoma. Nesse sentido, os autores postulam que o bom o mau são somente o
produto de uma seleção ativa e temporária a ser recomeçada
7
.
dois tipos de desterritorializações. Uma relativa, que implica na mudança
de um território, mas na reterritorialização; e outra, absoluta, que implica em estar
permanentemente numa linha abstrata ou de fuga
8
.
4 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, p. 59.
5 IDEM, Ibidem, p. 61.
6 DELEUZE, G.;GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 18.
7 IDEM, Ibidem, p. 18.
8 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, p. 45.
4
Em Mil Platôs, a questão da reterritorialização aparece como correspondente
a qualquer desterritorialização, no sentido de que, mesmo quando absoluta, dá-se em
terra não delimitada e não em terririo propriamente dito: numa perspectiva nômade,
uma reterritorialização sobre uma permanente desterritorialização e nomadismo
9
.
A compreensão de tais conceitos precisa ser redimensionada
permanentemente, já que se trata aqui de uma lógica rizomática, cujos princípios são
uma cartografia e nomadologia, que se contrapõe à estrutura e à história.
9 IDEM, Ibidem, p. 46.
5
6
Linhas de Fuga, Desterritorialização e Reterritorialização em Cora Coralina
Cora Coralina foi uma mulher extraordinária, do culo retrasado, que estudou
muito pouco, trabalhou muito e que, aos 75 anos de idade, publicou o seu primeiro
livro, publicação esta que a consagrou como uma das escritoras mais queridas:
poetisa, contista e cronista de tempos passados e presentes, além de jornalista e
redatora crítica de acontecimentos.
10
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas. Esse é o seu registro original. Mas,
determinada em sobrepujar as margens de um tempo em que a escrita não era coisa
para mulheres, e para se distinguir das tantas Anas de sua terra, desponta, aos 15
anos, como Cora Coralina, >coração vermelho=. Ana se desterritorializa. Em Cora, Ana
se reterritorializa. Por sua vez, Cora, através da escrita, alcançamuitos devires que
lhe permitirão, pela vida afora, desterritorializar-se e reterritorializar-se, em um
nomadismo constante. Isto se por agenciamentos com paisagens internas e externas
muito marcantes: o Rio Vermelho, que flui debaixo de suas janelas e que ancora a
Casa Velha da Ponte, onde passou sua inncia e juventude; a Bica localizada no
porão de sua casa; os Becos de sua Cidade. Tais paisagens evocam fluxo, movimento,
10 TAHAN, A. M., Aventureira e Libertária. In: Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 2002, Caderno Idéias,
p. 2.
7
velocidade do meio, >intermezzos=, vida. Cora Coralina testemunha que sua poesia
Acresceu entre pedras@
11
.
11 CORALINA, C., Das Pedras. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p. 13.
O Rio Vermelho é testemunhado em muitos de seus escritos:
I
Tenho um rio que fala em murmúrios.
Tenho um rio poluído.
Tenho um rio debaixo das janelas
da Casa Velha da Ponte.
Meu Rio Vermelho.
II
Águas da minha sede...
Meus longos anos de ausência
identificados no retorno:
Rio Vermelho B Aninha.
Meus sapos cantantes...
Eróticos, chamando, apelando,
cobrindo suas gias.
Seus girinos B pretinhos, pequeninos,
inquietos no tempo do amor,
sinfonia, coral, cantoria.
Meu Rio Vermelho.
III
Debaixo das janelas tenho um rio
correndo desde quando?...
Lavando pedras, levando areias.
Aninha nascia, crescia, sonhava.
8
IV
Água B pedra.
Eternidades irmanadas.
Tumulto B torrente.
Estática B silenciosa.
o paciente deslizar,
o chorinho a lacrimejar
sútil, dúctil
na pedra, na terra.
Duas perenidades B
sobreviventes no tempo.
Lado a lado B
conviventes,
diferentes, juntas, separadas.
Coniventes.
Meu Rio Vermelho.
V
Meu Rio Vermelho é longínqua
manhã de agosto.
Rio de uma infância mal-amada.
Meus barquinhos de papel
onde navegavam meus sonhos;
sonhos navegantes de um barco:
pescadora, sonhadora
do peixe-homem.
VI
Um dia caiu na rede
meu peixe-homem...
todo de escamas luzidias,
todo feito de espinhos e espinhas.
9
VII
Rio Vermelho, líquido amniótico
onde cresceu da minha poesia, o feto,
feita de pedras e cascalhos.
Água lustral
que batizou de novo
meus cabelos brancos.
12
Neste texto Cora mostra um Rio que, atravessando a Cidade, marca a
passagem do tempo B Rio da contagem das eras, ou mesmo, já bebi água do rio na
concha da minha mão
13
. E este Rio não apenas traz um >mundo= que atravessa o seu B
o peixe-homem -, mas é também o seu >mundo= B líquido amniótico de suas poesias.
Em seu próprio nome B Coralina B está engendrado o nome Rio Vermelho. Mas o Rio
Vermelho é ponto de fuga. Cora se desterritorializa no Rio Vermelho. O Rio
Vermelho também se reterritorializa em Cora Coralina. Nesse encontro, ambos o
são mais os mesmos.
Longe do Rio Vermelho.
Fora da Serra Dourada.
Distante desta cidade,
não sou nada, minha gente.
Sem rebuço, falo sim.
Publico para quem quiser.
Arrogante digo a todos.
Sou Paranaíba pra cá.
E isto chega para mim.
12 CORALINA, C., Rio Vermelho. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 44-46.
13 CORALINA, C., Não conte pra ninguém. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p.91.
10
Rio Vermelho das janelas da casa velha da Ponte...
Rio que se afunda debaixo das pontes.
Que se reparte nas pedras.
Que se alarga nos remansos.
Esteira de lambaris.
Peixe cascudo nas locas.
Rio, vidraça do céu.
Das nuvens e das estrelas.
Tira retrato da Lua.
Da Lua quarto-crescente
que mora detrás do morro.
Lua que veste a cidade de branco
e tece rendado de marafunda
na sombra das cajazeiras.
Rio de águas velhas.
Roladas das enxurradas.
Crescidas das grandes chuvas.
Chovendo nas cabeceiras.
Rio do princípio do mundo.
Rio da contagem das eras.
Rio B mestre de Química.
Na retorta das corredeiras,
corrige canos, esgotos, bueiros,
das casas, das ruas, dos becos
da minha terra.
Rio, santo milagroso.
Padroeiro que guarda e zela
a saúde de minha gente,
da minha antiga cidade largada.
Rio de lavadeiras lavando roupa.
11
De meninos lavando o corpo.
De potes se enchendo d=água.
E quem já ficou doente da água do rio?
Quem já teve ferida braba, febre malina
pereba, sarna ou coceira?
Rio, meu pobre ...
Cumprindo sua dura sina.
Raspando sua lazeira
nos cacos dos seus monturos.
Rio, Jó que se alimpa,
pela graça de Deus, Virgem Santa Maria,
nas cheias de suas enchentes
que carregam seus monturos.
Ponte da Lapa da minha infância...
Da escola da mestra Silvina,
do tempo em que eu era Aninha...
Ponte do Carmo, querida,
dos namorados de longe.
Por onde passava enterro,
dos anjinhos de Goiás,
que iam pro cemitério,
pintadinhos de carmim.
Caixãozinho descoberto.
E a música tocando atrás
A Valsa da Despedida.
Ponte nova do Mercado
- foi pinguela do Antônio Manuel,
banheiro da meninada.
Ponte do Padre Pio dos potes d=água.
Carioca de nós todos.
Pinguelona dos destemidos,
12
contando a esria de um sino.
Sino grande, imprensado,
nas locas da cachoeira.
Sino da Igreja da Lapa,
que rodou na grande enchente
tocando pro rio abaixo.
Até que parou imprensado
nas pedras da Pinguelona.
Gente que passa ali perto
conta estória do sino:
Inda toca à meia-noite
quando a cidade se aquieta,
e as águas ficam dormindo.
Tange, pedindo uma graça:
Que algum cristão caridoso,
o salve daquele poço,
o tire debaixo d=água.
Pois seu destino de sino
é no alto de uma torre
abençoando a cidade.
Dando aviso para o povo
- louvar a Deus poderoso.
Poço da Mandobeira...
Poço do Bispo...
Poço da Carioca...
Sombras de velhos banhistas de velhos tempos.
Sabão do Reino no bolso.
Toalha passada ao ombro.
Cigarro de palha no bico.
A vitamina do banho.
Banho da Carioca.
13
Águas vitaminadas...
Rio Vermelho B meu rio.
Rio que atravessei um dia
(Altas horas. Mortas horas.)
há cem anos...
Em busca do meu destino.
Da janela da casa velha
todo dia, de manhã,
tomo a bênção do rio:
- >Rio Vermelho, meu avozinho,
dá sua bença pra mim...=
14
Neste outro texto sobre o Rio Vermelho, Cora explicita essa relação de
intimidade, que não é exclusivista. múltiplas desterritorializações e
reterritorializações entre o Rio Vermelho e toda a realidade circundante. Em alguns
textos, Cora fala de como o Rio Vermelho reage, raivoso, nas enchentes catastróficas
que provoca de tempos em vez. Mais especificamente, fala da relação do Rio com a
Casa Velha da Ponte:
(...) Ancorada na ponte, não quiseste partir rio abaixo, agarrada às pedras. Nem mesmo
o rio pôde te arrastar, raivoso, transbordante, lavando tuas raízes profundas a cada
cheia bravia (...)
15
.
Estas relações são descritas por imagens muito românticas e belas, juntamente
com outras, de despedida, dor e morte. Mas lugar legítimo para todas: expressão
da vida-multiplicidade!
14 CORALINA, C., Rio Vermelho. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, pp. 91-94.
15 CORALINA, C., Casa Velha da Ponte. In: IDEM, Estórias da Casa Velha da Ponte, p. 11.
14
Como dissemos, também a Biquinha do porão de sua casa constitui como um
ponto de fuga importante. Sobre ela, Cora diz:
Ainda vive e pulsa aqui teu coração imortal, testemunha vigilante do passado. Humilde,
pequenina e ofertante, a biquinha d=água, generosa, indiferente à decadência, a biquinha
anciã de águas puras de ignota mina. Cantante e fria, correndo sempre menina na sua
calha de aroeira. Biquinha, és refrigério, copo de água cristalina e azul para a sede de
quem fez longa caminhada às vertentes do passado e volta vazia às origens de sua
própria vida.
16
A Bica é coração imortal que vive e pulsa dentro do corpo patinado pelo
tempo, da Casa, marcado das escaras da velhice, que aparecem sem que se possa
precisar o seu surgimento. Não somente Cora, com sua escrita, testemunha em favor
da vida, lembrando Deleuze. A própria vitalidade da biquinha é testemunha vigilante.
É uma Bica anciã e menina, que sempre corre, vitalizando a Casa, barco centenário
encalhado no Rio Vermelho
17
A Bica-movimento contrasta com a Casa-estática. Pela
Bica e pelo Rio, escapa-se ao território da Casa. Ambos possibilitam agenciamentos
com um fora.
16 IDEM, Ibidem, p. 11.
17 IDEM, Ibidem, p. 11.
15
E ainda os Becos... pontos de fuga... territórios desterritorializantes... Os
Becos de Goiás Velho são rizomas, no sentido de múltiplas entradas e saídas, muitas
possibilidades, rupturas a-significantes. O Beco não é um lugar, mas, como a Autora
diz, lapso urbanístico, corricho, de passagem, vaso comunicante, uma transição
18
.
Entre os Becos de Goiás, Cora se também se desterritorializa e se reterritorializa.
Cora expressa essa realidade da desterritorialização por trás da palavra
extravasar. Ela extravasa um tanto de realidades, a começar pelas convenções de um
tempo. E irá extravasar a Casa Velha da Ponte, cujo ponto de fuga parece ter sido
seus anseios. Seus anseios são o conteúdo de seus devires:
(...) Meus anseios extravasaram
a velha casa.
Arrombaram portas e janelas,
e eu me fiz ao largo da vida.
Andei por mundos ignotos
e cavalguei o corcel branco do sonho. (...)
19
Em outro texto, fala da contraposição entre os seus sonhos e os limites que lhe
eram impostos:
Um dia, houve.
Eu era jovem, cheia de sonhos.
Rica de imensa pobreza que me limitava
entre oito mulheres que me governavam.
18 CORALINA, C., O Beco da Escola. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, p. 118.
19 CORALINA, C., Casa Velha da Ponte. In: IDEM, Estórias da Casa Velha da Ponte, p. 11.
16
E eu parti em busca do meu destino.
Ninguém me estendeu a mão.
Ninguém me ajudou e todos me jogaram pedras.
Despojada. Apedrejada.
Sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida.
E fui caminhando... caminhando... (...).
20
Cora sai mundo afora, por 45 anos, passando por muitas cidades e trabalhos
diferentes, num processo de desterritorialização peramanente, de se reterritorializar
num constante nomadismo, interno e externo, que marcará toda a sua vida e a sua
escrita.
Mas há sobretudo quatro reterritorializações marcantes que a escrita de Cora
Coralina evidencia: a transformação de Ana em Cora Coralina, possibilitando-lhe um
lugar novo cio-cultural, legitimador de um lugar literário; o prosito de um
nomadismo e busca de terririos a serem construídos (condição de um nomadismo
que se reterritorializa continuamente sobre desterritorialização); o retorno à Goiás e à
Casa Velha da Ponte, de onde assume nunca ter saído, embora tenha dado muitas
voltas ao mundo; e a experiência de sua morte e sepultamento, idealizados em versos
e concretamente: Cora comprou sua sepultura e escreveu nela o seu epitáfio B devir-
reterritorialização -, ainda em vida.
20 CORALINA, C., Semente e Fruto. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p. 84.
17
Cora descreve o tortuoso caminho de volta... depois de 45 anos, para Goiás e
para a Casa Velha da Ponte:
A estrada está deserta. Vou caminhando sozinha. Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz. A velha candeia de azeite de muito se apagou. Tudo deserto.
A longa caminhada. A longa noite escura. Ninguém me estende a mão. E as mãos
atiram pedras. Sozinha... Errada a estrada. No frio, no abandono. Tateio em volta e
procuro a luz. Meus olhos estão fechados. Meus olhos estão cegos. Vêm do passado.
Num bramido de dor. Num espasmo de agonia ouço um vagido de criança. É meu filho
que acaba de nascer. Sozinha... Na estrada deserta, sempre a procurar o perdido tempo
que ficou para trás. Do perdido tempo. Do passado tempo escuto a voz das pedras:
Volta... Volta... Volta... E os morros abriam para mim imensos braços vegetais. E os
sinos das igrejas que ouvia na distância diziam: Vem... Vem... Vem... E as rolinhas
fogo-pagou das velhas cumeeiras: Porque não voltou... Porque não voltou... E a água do
rio que corria chamava... chamava... Vestida de cabelos brancos voltei sozinha à velha
casa, deserta.
21
Em outros textos, ela fala desse retorno:
Voltei. Ninguém me conhecia. Nem eu reconhecia alguém. Quarenta e cinco anos
decorridos. Procurava o passado no presente (...)
22
E ainda:
(...) Fiz a caminhada de retorno às raízes ancestrais. Voltei às origens da minha vida,
escrevi o ACântico da Volta@. Assim devia ser. Fiz um nome bonito de doceira, glória
maior. E nas pedras rudes do meu berço gravei poemas.
23
21 CORALINA, C., O Chamado das Pedras. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 84-85.
22 CORALINA, C., Voltei. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p. 127.
23 CORALINA, C., Semente e Fruto. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, pp.
18
84-85.
No poema em que fala do Rio Vermelho, Cora ainda evidencia a importância
dessa reterritorialização, que equivale a um batismo:
(...) Rio Vermelho, líquido amniótico
onde cresceu da minha poesia, o feto,
feita de pedras e cascalhos.
19
Água lustral que batizou de novo meus cabelos brancos.
24
O processo de retorno, de Cora, não se dá de forma tranqüila. Outras tantas
desterritorializações. É neste contexto que Cora escreve suas Ameias confissões@. Ela
fala de suas dificuldades. Mas ainda assim, Cora parece fazer-se testemunha a favor da
vida. E fala daquilo que a engasga e que é comum a muitos:
Este livro, meias confissões de Aninha,
é um livro tumultuado, aberrante, da rotina de se fazer e ordenar um livro.
Tumultuado, como foi a vida daquela que o escreveu.
Conseqüente. Vai à publicidade sem nenhuma pretensão.
Alguma coisa, coisas que me entulhavam, me engasgavam
e precisavam sair.
É um livro das conseências.
De conseqüências.
De uma estou certa, muitas dirão: estas coisas também
se passaram comigo.
Este livro foi escrito no tarde da vida,
procurei recriar e poetizar. Caminhos ásperos
de uma dura caminhada.
Nos reinos da Cidade de Goiás, onde todos somos amigos do Rei.
(Parodiando M. Bandeira).
25
E nesse retorno parece haver uma decisão. Apesar da extrema pobreza, da
solidão, do processo de resgate da Casa Velha da Ponte, do despencar da Casa, da
24 CORALINA, C., Rio Vermelho. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p. 46.
25 CORALINA, C., Este livro, meias confissões de Aninha. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias
Confissões de Aninha, p. 43.
20
falta de recursos e até das muletas, da dificuldade em publicar seus livros, Cora
reterritorializa-se na
A
velha mais bonita de Goiás
@
. A
A
Aninha feia da Lapa@,
finalmente, descobre-se emancipada.
Sua morte inaugura a plena reterritorialização. Em seu epitáfio, encontram-se
as suas palavras:
Morta... serei árvore
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.
Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.
Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de meus versos.
26
Aspirando o Aser árvore@, ainda aqui Cora sugere uma lógica mais rizomática
que arborescente, no sentido de buscar agenciar-se como parte de uma natureza muito
mais ampla que sua identidade pessoal. Mas ainda assim ela permanece made:
Quando eu morrer, não morrerei de tudo. Estarei sempre nas páginas deste livro
(...).
27
26 CORALINA, C., Meu Epitáfio. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p. 95.
27 CORALINA, C., Meu vintém perdido. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p.
21
Hoje, o contato com a sua escrita promove muitas desterritorializações. E
cada leitura e releitura de Cora, como disseram Deleuze e Guattari, Afazem subir à
superfície novos planos@
28
, promovendo novas reterritorializações de sua escrita.
A presente dissertação ensaia algumas relações-devir, buscando
desterritorializar e reterritorializar realidades. Mas que ela possa ser apenas mais um
ponto de fuga para uma infinidade de territórios a serem construídos.
68.
28 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs: capitalismo e
Esquizofrenia, p. 7.
1
2
A Literatura em Gilles Deleuze, Félix Guattari
e Cora Coralina:
possibilidade de emancipação
Deleuze e Guattari inauguram idéias bastante inéditas e provocadoras acerca
da Atividade Literária. E são conseqüentes em relação à escrita: o processo de
produção da obra Mil Platôs revela já uma postura diferente em relação ao processo
de autoria. Tal obra foi produzida em forma de platôs, a quatro os. Eles comentam
o processo:
Escrevemos este livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma
forma circular, mas isto foi feito para rir. Cada manlevantávamos e cada um de nós
se perguntava que platôs ele ia pegar, escrevendo cinco linhas aqui, dez linhas alhures.
Tivemos experiências alucinatórias, vimos linhas, como fileiras de formiguinhas,
abandonar um platô para ir a um outro. Fizemos círculos de convergência.(...)
1
O que chamamos de inédito nestes autores têm a ver, sobretudo, com a
cartografia de uma autoria, com a cartografia do processo de produção da escrita e
com a sua finalidade.
Uma das idéias que tais autores desconstroem é a de que um livro seja um
todo orgânico, pleno de significados, expressão de uma subjetividade (atribuível a um
1 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 33.
3
indiduo), referente a um objeto, pia e imagem do mundo
2
. Dirão Deleuze e
Guattari que
A
(...) as multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma
unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito
@
.
3
Ao
contrário, o ato de escrever é sempre um agenciamento com um fora, é saída de
terririo, é devir, é um ponto de fuga que permite uma desterritorialização:
A
Escrever
nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam
regiões ainda por vir
@
4
.
A
Um livro existe apenas pelo fora e no fora
@
5
. Como agenciamento, está em
conexão com outros agenciamentos. Em um rizoma, as realidades perdem o estatuto
de totalidades. As realidades valem por seus percursos e fluxos, pelas suas relações
(devires), pela sua literalidade e imanência, pelos seus graus de desterritorialização,
pela intensidade que adquirem, e que nunca ocorrem de forma prévia, linear e de
acordo como modelos preestabelecidos. Segundo Deleuze e Guattari,
Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se
buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em
conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se
introduz e metamorfoseia a sua (...).
6
2 Cfr. DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 13.
3 IDEM, Ibidem, p. 8.
4 IDEM, Ibidem, p. 13.
5 IDEM, Ibidem, p.12.
6 IDEM, Ibidem, p. 12.
4
Em outra passagem, dizem os autores:
A
Mas a única questão, quando se
escreve, é saber com que outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e
deve ser ligada, para funcionar
7
@
.
Por ser um agenciamento, um livro é sempre inatribuível, dizem Deleuze e
Guattari
8
. Aqui se encontra outra idéia importante. Dizendo de outra maneira, toda
autoria é múltipla. Um autor, apenas agenciador, é sempre Amuitos@: Para os autores,
as subjetivações são Aprocessos que se produzem e aparecem nas multiplicidades
@
.
9
Um livro o pertence a quem o escreve, até porque dentro de um livro
existem vários autores, inúmeros agenciamentos, conexões infinitas de platôs, grande
parte das vezes >convertidos= - a ferro e fogo, e a longos anos de prática >ortopédica= -,
para uma lógica arborescente, genealógica. E um livro também não é de quem o,
mas é de todos os que o lêem e o relêem, singularidades múltiplas. Como dizem
Deleuze e Guattari, um livro se define por um Afora@. É um Aagenciamento@ de
conexões impreviveis:
7 IDEM, Ibidem, p. 12.
8 IDEM, Ibidem, p. 12.
9 IDEM, Ibidem, p. 8.
5
Com o passar dos anos os livros envelhecem, ou, ao contrário, recebem uma segunda
juventude. Ora eles engordam e incham, ora modificam seus traços, acentuam suas
arestas, fazem subir à superfície novos planos. Não cabe aos autores determinar um tal
destino objetivo. Mas cabe a eles refletir sobre o lugar que tal livro ocupou, com o
tempo, na conjuntura de seu projeto (destino subjetivo), ao passo que ele ocupava todo
o projeto no momento em que foi escrito.
10
Aqui podemos buscar e evidenciar muitos paralelos entre Deleuze, Guattari
e Cora Coralina.
Cora, em um de seus livros, manifesta o seu desejo em relação ao destino de
seu livro:
Este livro (...)
Que o saiba sempre em brochura, ao alcance de crianças, jovens e adultos, que mãos
operárias repassem estas páginas e sintam-se presentes, juntos à mulher operia que as
elaborou.
Que possa ultrapassar as cidades e alcançar a alma sertaneja, levando minha presença-
terra aos enxadeiros e boiadeiros que tanto me ensinaram.
Que entre em casas de mulheres marcadas de luz vermelha e leve a elas esta Mensagem
do Evangelho:
Disse-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes entrarão na vossa
frente no reino de Deus.
Possa ser lido nas prisões e levar ao presidiário a última página deste livro num apelo
de regeneração e na minha oferta de fraternidade humana.
Tenha ele sempre uma apresentação simples e sugestiva e, por muito tempo, possa
viver fora das encadernações de luxo entre lombadas hieráticas e dourados bonitos.
10 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 7.
6
Possa valer pelo seu conteúdo, sempre encontrado em bancas populares em balcões de
livrarias - seu preço ao alcance de um leitor modesto.
Com o tempo, lido, relido e trelido, rabiscado, amassado, arrancadas suas folhas, seja,
num dia de faxina geral, num auto de arrumação e limpeza, lançado numa fogueira e
calcinado no holocausto das chamas.
Vai, meu pequeno livro. Que possa sobreviver à autora e ter a glória de ser lido por
gerações que hão de vir de gerações que hão de nascer.
11
Mas, tal texto sugere que a preocupação autêntica de Cora é a democratização
e a garantia de acesso popular à sua escrita, por não ser uma escrita apenas expressão
de um universo particular e pessoal, mas uma escrita que fala da vida, que diz respeito
a muitos, a começar por todos os minoritários. Daí a importância de ser um livro
simples e acessível.
Quando imagina, inclusive, que seu livro possa ser rabiscado, amassado,
arrancado as suas folhas e calcinado, Cora não apenas evidencia a relativização de
qualquer escrita, que é sempre possibilidade, mas supõe a co-autoria como processo
permanente, para além do momento da inspiração >inicial= de uma subjetividade (que já
é >meio= em relação a tantas inspirações). Cada vez que se lê, relê, rabisca, interage,
dá-se continuidade ao processo de co-criação. Por trás dessa concepção, mais
socializadora e relativista, percebemos, em Cora, a consciência sobre o que vem a ser
um processo de autoria.
11 CORALINA, C., Este Livro. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, p. 37.
7
Em dois textos, de extrema riqueza, Cora manifesta o quanto, de fato, o ato de
escrever é um agenciamento e, como tal, inatribvel. No primeiro, denota que
escrever é, de fato, agenciar algo e agenciar com um >fora=:
Alguns perguntam pela minha vida, pelo embrião primário, de como veio e se encontrou
comigo a minha poesia, a presença primeira do meu primeiro verso; eu respondo: Ela
cascateia milênios. Minha Poesia... era viva e eu, sequer nascida. Veio escorrendo
num veio longínquo de cascalho. De pedra foi o meu berço. De pedras têm sido meus
caminhos. Meus versos: pedras quebradas no rolar e bater de tantas pedras.
12
Entre as pedras, de seu berço e de seus caminhos, há um fluxo-cascata que
corre. Cora consegue percebê-la. Em outro texto, Cora também reconhece que sua
escrita é uma atividade coletiva que não lhe pertence. Sua atividade literária é
instrumento que interfere na realidade e que mobiliza e pertence a futuras gerações.
Há um destino maior que o meramente pessoal:
(...) Minha pena é a enxada do plantador,
é o arado que vai sulcando
para a colheita das gerações.
13
12 CORALINA, C., Mãe Didi. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 93-94.
13 CORALINA, C., A Gleba me transfigura. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha,
pp. 108-110.
8
Sua escrita, enquanto agenciamento, nasce em um contexto muito adverso: um
tempo em que escrita não era atividade destinada a mulheres, e numa família que não
valorizava essa atividade. Cora descreve tal contexto:
(...) Sendo eu mais doméstica do que intelectual, não escrevo jamais de forma
consciente e raciocinada, e sim impelida por um impulso incontrolável. Sendo assim,
tenho a consciência de ser autêntica.
Nasci para escrever, mas, o meio, o tempo, as criaturas e fatores outros,
contramarcaram minha vida.
Sou mais doceira e cozinheira do que escritora, sendo a culinária a mais nobre de todas
as Artes: objetiva, concreta, jamais abstrata, a que está ligada à vida e à saúde humana.
Nunca recebi estímulos familiares para ser literata. Sempre houve na família, senão
uma hostilidade, pelo menos uma reserva determinada a essa minha tendência inata. (...)
Sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compreensão dos rígidos preconceitos
do passado. Preconceitos de classe. Preconceitos de cor e de família. Preconceitos
econômicos. Férreos preconceitos sociais.
A escola da vida me suplementou as deficiências da escola primária que outras o
destino não me deu. Foi assim que cheguei a este livro, sem referências a mencionar.
Nenhum primeiro prêmio. Nenhum segundo lugar. Nem Menção Honrosa. Nenhuma
Láurea. Apenas a autenticidade da minha poesia arrancada aos pedaços do fundo da
minha sensibilidade (...).
Quem sentirá a Vida destas páginas... Gerações que hão de vir de gerações que vão
nascer.
14
Nesse contexto, Cora também tem consciência do quanto o seu processo de
aprendizagem se deu em meio a muitas limitações:
14 CORALINA, C., Cora Coralina, quem é você? In: IDEM, Cora Coralina. Meu Livro de Cordel, pp.
73-76.
9
(...) Minha escola primária, fostes meu ponto de partida, dei voltas ao mundo. Criei
meus mundos... Minha escola primária. Minha memória reverencia minha velha Mestra.
Nas minhas festivas noites de autógrafos, minhas colunas de jornais e livros, está
sempre presente minha escola primária.
Eu era menina do banco das mais atrasadas.
Minha escola primária... eu era um casulo feio, informe, inexpressivo. E ela me refez,
me desencantou. Abriu pela paciência e didática da velha mestra, cinquentanos mais do
que eu, o meu entendimento ocluso (...).
(...) Queira ou não, vejo-me tão pequena, no banco das atrasadas. E volta a ser Aninha,
aquela em que ninguém acreditava.
15
Ainda que postulemos a superação de uma visão historiográfica e genealógica
determinantes, Cora evidencia, pois, um lugarcio-afetivo de agenciamento, que é
rizoma, importante no percurso de seus devires, de suas desterritorializações e
reterritorializações, no percurso de sua própria inspiração e estilo literário. Um olhar e
uma inspiração para um minoritário parece ser uma opção, nascida numa experiência
de exclusão, de rejeição, de preconceito e de dificuldades. Sobre isso, diz Walter
Kohan
(...) o que libera o devir é um certo modo de ocupar o espaço e sair do lugar, de fugir do
controle, a capacidade de resistência, de encontrar uma linha de fuga, de se des-
territorializar e se re-territorializar
16
.
15 CORALINA, C., Mestra Silvina. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, pp. 123-
124.
16 KOHAN, W. O., A Infância da Educação: O conceito Devir-Criança. In:__ (org.) Lugares da
Filosofia: Inncia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 7.
10
Tal observação é de grande importância e apontam, em Cora, duas evidências
que perpassam sua vida e atividade literária: ao descrever o lugar de agenciamento e
produção da sua escrita evidenciará um relação-devir, incontrolável, que supõe uma
disruptura com tantos territórios que lhe foram dados. Por outro lado, tal
reconhecimento também se manifestará em um profundo respeito pela língua e pela
escrita de cada um, em seus contextos rizomáticos, sobretudo pelos que vivem nos
interiores e que trabalham com a terra.
O imaginário de Cora é bastante agrário. O seu devir-terra expressa-se de
forma intensa, gerando textos belíssimos, de grande literaridade, que expressam a sua
relação com a escrita. São as passagens que mais falam sobre sua atividade literária:
Sinto que sou a abelha no seu artesanato. Meus versos tem cheiro dos matos, dos bois e
dos currais. (...) Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando, é o arado
milenário que sulca. Meu versos têm relance de enxada, gume de foice e peso de
machado. Cheiro de currais e gosto de terra. (...)
17
Daí seu profundo respeito e admiração pelos povos que trabalham e se
debruçam continuamente sobre a terra e que agenciam a vida, ainda que não através
da escrita, mas através de outras produções.
17 CORALINA, C., A Gleba me transfigura. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha,
pp. 108-110.
11
Diante desse universo agrário, a escrita de Cora se metamorfoseia no APac...
Pac...Pac...@, da enxada que canta
18
; no Amééé dos bezerros@
19
; no grito selvagem A...
uirerê!... uirerê!... uirerê!@
20
; na fala de Seu Vicente: ADe que val=isso?@
21
; na resposta
do toque da corneta, do corneteiro e do toque de silêncio ao sininho da cadeia: Aé
bem bão... cá é bem bão... cá é bem bão@
22
; nas rolinhas >fogo-pagou= que, no retorno
de Cora, cantavam Aporque não voltou... porque não voltou...@, e nos sinos das igrejas
que diziam AVem... Vem... Vem...@ e na água do rio que corria Achamava...
chamava...@
23
.
18 CORALINA, C., Poema do Milho. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, p. 169.
19 CORALINA, C., A Gleba me transfigura. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha,
pp. 108-110.
20 CORALINA, C., O Palácio dos Arcos. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, p.
132.
21 CORALINA, C., A Flor. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p. 19.
22 CORALINA, C., O quartel da polícia de Goiás. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de
Aninha, p. 186.
23 CORALINA, C., O chamado das pedras In: IDEM, Meu Livro de Cordel, p. 85.
12
Em um de seus escritos, nunca monotemáticos, mas sempre diversificados
(seus textos são rizomas), há uma passagem em que Cora fala da dificuldade que
significa ser simples e escrever, e do carinho que tem pela linguagem alheia:
(...) Detesto os que escrevem mal e publicam livros.
A linguagem escrita, simples e correta, deve dar a impressão
de alguém que sabe escrever.
A maior dificuldade para mim sempre foi escrever bem.
A minha maior angústia foi superar a minha ignorância.
Confesso com humildade essas verdades simples e grandes.
Sou mulher operária e essa segurança me engrandece,
É o meu apoio e uma legitimação do que sou realmente.
A linguagem errada dos humildes tem para mim um gosto de terra
e chão molhado e lenha partida.
Jamais procurei corrigi-los como jamais tolerei o bem falante, exibido.
Já o nordestino, mesmo analfabeto, tem uma linguagem corrente,
fácil e floreada, encenada nos arcaísmos do idioma.
Tive uma empregada que só dizia Ameicado@.
Outra que teimou sempre em me dizer ADona Coria@.
Não criei obstáculos nem propus conserto. No fim,
quando me dirigia à primeira eu dizia: vai ao Ameicado@,
com medo de que ela se corrigisse. Achava aquilo saboroso,
como saborosa me pareceu sempre a linguagem dos simples.
Tão fácil, espontânea e pitoresca nos seus errados.
24
Uma outra idéia inédita e provocadora de Deleuze e Guattari, sobre a
atividade literária, já expressa no prefácio, é que escrever implica em um ato de saúde.
A escrita é um exercício de saúde. Não se escreve com patologias e nem com
24 CORALINA, C., Meu vintém perdido. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p.
69.
13
neuroses. As patologias são, ao contrário, interrupção ao processo e ao fluxo da
escrita. A patologia é estagnação do processo criativo. A escrita é Aempreendimento
de saúde@,
(...) que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes
demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma
gorda saúde dominante tornaria impossíveis.(...)
25
.
Escreve-se porque se viu, se encontrou e se descobriu algo grande demais.
Não algo referente apenas à própria vida, à própria história pessoal e familiar, mas
referente à vida de uma coletividade. E porque não se consegue voltar ileso, pensa-se,
cria-se personagens, precisa-se testemunhar em favor. Por conta disso, escreve-se. E
ao se escrever, recria-se, reinventa-se um mundo, uma coletividade, um povo, uma
nação... renegados em suas tradições.
26
A escrita de Cora é emblemática. Cora resgata Goiás. Cora reinventa um
povo. Reinventa um lugar, cujo percurso são os Becos de sua Cidade. Cora, ao trazer
a sua infância, a sua escola, as suas necessidades e desejos, fala de uma coletividade
sem voz e sem expressão. Conta a história de um mundo minoritário, paralelo,
maldito, desprezível, esquecido. E faz isso com poesia.
E é nesse processo de se abrir-se a um fora, de agenciar-se com a vida, de se
desterritorializar continuamente é que encontramos uma possibilidade, a partir do
25 DELEUZE, G., A literatura e a vida. In: IDEM, Crítica e Clínica, p. 14.
14
inédito e provocador desencadeado pelos autores, que diz respeito ao ato de escrever
como possibilidade de emancipação.
Deleuze e Guattari postulam um conceito denominado agenciamento coletivo
de enunciação:
26 IDEM, Ibidem, p. 14 e Abecedário, p. 29.
15
Não reconhecemos nem cientificidade nem ideologia, somente agenciamentos. O que
existe são os agenciamentos maquínicos de desejo assim como os agenciamentos
coletivos de enunciação. Sem significância e sem subjetivação: escrever a n (toda
enunciação individuada permanece prisioneira das significações dominantes, todo
desejo significante remete a sujeitos dominados)
27
.
Os agenciamentos, como crescimento de dimensões numa multiplicidade (que,
de acordo com conexões, muda a sua natureza), de natureza horizontal, referem-se,
pois, a dois segmentos: ao maquínico, de conteúdo e afetações, e ao coletivo de
enunciação, que tem a ver com a expressão dos enunciados. Zourabichvili observa,
entretanto, que estaremos diante de um agenciamento todas as vezes que pudermos
identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações materiais e de um
regime de signos correspondentes
28
.
27 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 34.
28 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, p. 20.
16
Mas os agenciamentos, para Deleuze e Guattari, são, juntamente com o
acontecimento, anteriores e provocadores da subjetividade. Walter Kohan ressalta
que, na ontologia deleuziana, a subjetividade é derivada, posterior, efeito, de algo a-
subjetivo
29
. Nessa perspectiva, agenciamentos e acontecimentos permitem um modo
de subjetivação. As subjetivações são processos que se produzem e aparecem nas
multiplicidades.
30
E a dimensão subjetivante de um agenciamento constitui um
terririo
31
.
Ainda que o indiduo se constitua através dos agenciamentos, toda
enunciação individuada, como disseram Deleuze e Guattari, acima citado, permanece
prisioneira das significações dominantes. Não sujeitos preexistentes a enunciados.
Portanto, os dois segmentos de agenciamentos são coletivos. Zourabichvili i
ressaltar sua evidência coletiva:
29 KOHAN, W. O., A Infância da Educação: O conceito Devir-Criança. In:__ (org.) Lugares da
Filosofia: Inncia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 9.
30 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 8.
31 ZOURABICHVILI, F., O Vocabulário de Deleuze, p. 47.
17
Não nos iludiremos, portanto, quanto ao caráter coletivo do >agenciamento de
enunciação= que corresponde a um >agenciamento maquínico=: ele não é produzido >por=,
mas >por= natureza é para uma coletividade
32
.
Deleuze e Guattari entendem, por >hecceidades=, modos de individuação sem
sujeito.
32 IDEM, Ibidem, p. 22.
Ao postularmos a temática da emancipação, o queremos nos opor a essa
visão coletiva dos enunciados e dos aprisionamentos dominantes em cujo cruzamento
nos inserimos. E nem mesmo queremos questionar o fato de que uma escrita seja
sempre inatribuível. Entendemos que, ainda que uma autoria seja de natureza
coletiva, vislumbramos traços possíveis B exatamente por isso! -, de que ela seja
emancipadora. Não nos referimos à emancipação em uma perspectiva clássica, de
fortalecimento de uma individualidade, de um ego e um sujeito, que se afirmam em
contraposição a outros sujeitos e/ou objetos. Essa perspectiva, a clássica, foi-nos dada
a conhecer como modelo histórico, reforçada no último culo pela Psicologia.
Segundo a física e filósofa Danah Zohar,
18
o cerne conceitual da visão de Freud é que o mundo consiste em seres e objetos, cada
qual estranho ao outro em virtude de uma diferenciação essencial. (...) Toda a
psicologia freudiana é uma psicologia do individual e suas >relações com o objeto=.
33
33 ZOHAR, D., O Ser Qntico. Uma visão revolucionária da natureza humana e da consciência,
baseada na nova física. São Paulo: Editora Best Seller, 1990, p. 190.
Na perspectiva de Deleuze e Guattari, uma emancipação não pode ser um fim,
nem um estado a ser adquirido, nem um lugar de estabilidade. Uma emancipação se
evidencia nos devires e nos agenciamentos e se expressa em cada desterritorialização e
reterritorialização que a escrita parece possibilitar. A emancipação parece se dar à
medida que nos permitimos, como rizomas e mapas, estarmos atentos às múltiplas
entradas... estarmos atentos à importância de nos descentrarmos de uma lógica
arborescente... Parece se dar... à medida que experimentamos a escrita como devir,
que nos remete à zonas de vizinhança a-centradas e a-significantes... Parece se dar... à
medida que nos transformamos em linhas de fuga... e mais do que preocupados em
nos encontrarmos, tenhamos a coragem de abandonar o território, continuamente,
fugindo e fazendo-nos fugir... Parece se dar... à medida que assumimos o nomadismo
agenciador que busca velocidades que são adquiridas no meio... Parece se dar... à
medida que assumimos uma potência nômade que nos possibilita reterritorializarmos
num movimento permanente de desterritorialização ... Parece se dar... à medida que
tenhamos a coragem de nos tornar órfãos e críticos de um Édipo, rompendo com o
>General=, com o Uno, com o Pai, com a genealogia...
19
À medida que tudo isso vai se dando, através da escrita, parece acontecer um
processo de emancipação. Emancipação como saída de si e não chegada.
Emancipação-reterritorialização, que supõe desterri-torialização. Emancipação do
Amodelo@ que temos de nós mesmos. Emancipação do
A
espelho psicológico para o
qual olhamos quando queremos saber quem somos e como devemos nos
comportar
@
34
. Emancipação como superação da árvore.
A
Estamos cansados da
árvore
@
35
, podemos repetir com os autores.
34 IDEM, Ibidem, p. 190.
35 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 37.
20
Cora parece ter empreendido esse movimento. Cada vez que voltou à infância,
o dobrou-se sobre si mesma e sua história, mas desterritorializou-se na infância do
mundo. E reinventou esse mundo. E resgatou o desejo, já que ele se move e se produz
por rizoma.
36
Desse lugar, experimentou potência e não sedentarismo. Cora suplantou
a árvore. Fez-se rizoma, multiplicidade. E por isso renasceu como a Avelha mais bonita
de Goiás@.
Em sua poesia A Flor, Cora confessa o desafio que é fazer-se rizoma em um
parto, aparentemente solitário. Enquanto diante de uma matriz fecundada, em plástico
preto, apanhada num monte de entulho de lixeira, Cora Aparteja@ aquele bulbo e
rizoma, como possibilidades, Seu Vicente o classifica, já o desclassificando, por ser
algo meramente comum. E todos os outros, indiferentes e alheios:
A(...) Cebola brava@ na botânica sapiente de Seu Vicente.
Oitenta e alguns avos de enxada e terra.
Sabedoria agra.
Afilhado do Padim Cícero.
Menosprezo pelas Af=lores@:
ADe que val=isso?@
Displicente, exato, irredutível.
E eu, meu Deus, extasiada, vendo, sentindo e acompanhando,
fremente, aquela inesperada gestação.
_ Um bulbo, tubérculo, célula de vida rejeitada,
levada na hora certa à maternidade terra. (...)
Chamei a tantos...
36 IDEM, Ibidem, p. 23.
21
Indiferentes, alheios,
ninguém sentiu comigo
o mistério daquela liturgia floral.
Encerrada na custódia do botão,
ela se enfeita para os esponsais do sol.
Ela se penteia, se veste nupcial
para o esplendor de sua efêmera vida vegetal.
E foi assim que eu vi a flor.
37
Alcançar devires minoritários, entender a fala e a vida de um monte de lixo,
transitar nos Becos de Goiás, escrever sobre mulheres B caboclas, operárias,
lavradores, lavadeiras, meretrizes -, sobre urubus e rolinhas fogo-pagou, e sobre
crianças... custou-lhe um preço:
Tudo o que criei e defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma
Por quê?
Quando menina,
ouvia dizer sem entender
quando coisa boa ou ruim
acontecia a alguém:
Fulano nasceu antes do tempo.
Guardei.
Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
37 CORALINA, C., A Flor. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 19-22.
22
A moda de consolo:
Nasci antes do tempo.
Alguém me retrucou.
Você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.
38
A sensação de Anascer antes do tempo@ não deixa de ser, muitas vezes,
sentimento de solidão, de inadequação, de exclusão. Em duas passagens, Cora escreve
como, na circularidade dos platôs da vida, entre desterritorializações e
reterritorializações, a passagem das vidas na temporalidade faz impingir marcas,
evidenciando-nos multiplicidades:
(...) Daí, no fim da vida, esta cinza que me cobre... Este desejo obscuro, amargo,
anárquico de me esconder, mudar o ser, não ser, sumir, desaparecer, e reaparecer, numa
anônima criatura sem compromisso de classe, de família. (...) E nunca realizei nada na
vida. Sempre a inferioridade me tolheu. E foi assim, sem luta, que me acomodei na
mediocridade do meu destino.
39
(...) Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus reservatórios secretos,
um vago desejo de analfabetismo.
38 CORALINA, C., Nasci Antes do Tempo. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha,
p. 57.
39 CORALINA, C., Minha Infância (Freudiana). In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias
Mais, pp. 176-177.
23
Sobrevivi, me recompondo aos bocados,
À dura compreensão dos rígidos preconceitos do passado.
40
40 CORALINA, C., Cora Coralina, quem é você? In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 73-76.
Como expressão de multiplicidade, Cora permanece nômade, errante,
incansável, testemunhando em favor da vida. Assim, aconselha às futuras gerações.
Para aqueles que desejam se tornar escritores, dá alguns conselhos. E ainda ressalta,
aqui, um outro devir minoritário: a palavra pobre e o seu direito de figurar no verso:
Poeta, poetisa teu caminho.
Pega, segura com os dedos
da velha musa
o que resta de poesia
na transição da hora que passa.
Cuida bem da inspiração
que se despede por inútil.
Cuidado com o adjetivo:
traiçoeiro, corriqueiro,
se insinua libidinoso,
nu, esfarrapado, sem pudor.
Olha a rima indigente, forçada,
forçando tropeçante.
O verso desvalido, maltrapilho.
A palavra truncada.
O palavrão da moda. O jargão.
A frase feita.
O advérbio desgastado
pedindo esquecimento e
posterior recuperação.
24
Atenção, muita atenção!
Sem ser chamada - a palavra vulgar,
esmolambada, sabereta
vem, e vem para ficar.
A palavra pobre...
(Coitadinha da palavra pobre!)
Também tem o seu direito
de figurar no verso.
Tudo isso, mais um
conteúdo miúdo que seja
e serás Poeta.
41
Em outro texto evidencia que por trás da palavra, inspirada e pronunciada,
precisa haver vida, experiência, rizomas:
(...) Alguns vêm a mim.
Querem a palavra, o incentivo, a apreciação.
Que dizer a um jovem ansioso na sede precoce de lançar um livro...
Tão pobre ainda a sua bagagem cultural,
tão restrito o seu vocabulário,
enxugando lágrimas que não chorou,
dores que não sentiu,
sofrimentos imaginários que não experimentou.
Falam exaltados de fome e saudades, tão desgastadas
de tantos já passados.
Primário nos rudimentos de sua escrita
e aquela pressa moça de subir.
41 CORALINA, C., Oferta B aos novos que poetizam. In: IDEM, Meu Livro de Cordel, pp. 97-98.
25
Alcançar estatura de poeta, publicar um livro.
Oriento para a leitura, reescrever,
processar seus dados concretos.
Não fechar o caminho, não negar possibilidades.
É a linguagem deles, seus sonhos.
A escola não os ajudou, inculpados, eles.(...)
42
42 CORALINA, C., O poeta e a poesia. In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de Aninha, p.
191-192.
Para os desanimados, também tem uma palavra de conselho, extraída do meio
de seus rizomas. Neste conselho, Cora evidencia que poemas o se fazem com a
escrita. É possível fazer da vida um poema. Para isso, é preciso recriá-la sempre e
sempre:
Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
E construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens
E na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
E não entraves seu uso
26
Aos que têm sede.
43
43 CORALINA, C., Aninha e suas pedras (1981). In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de
Aninha, p. 139.
Cora Coralina, Gilles Deleuze e Félix Guattari... autores diferentes, de tempos,
épocas, lógicas e culturas diferentes. Cora Coralina escreve: uma escrita que nasce de
um contexto e um olhar diferentes. Gilles Deleuze e Félix Guattari pensam a escrita a
partir de um contexto e de olhares diferentes. Que possibilidades emergiram, emergem
e emergirão desse encontro? Que velocidade pode emergir desse meio? Tais perguntas
permanecem animando muitas travessias...
1
Considerações...
Promover agenciamentos B com enfoque filosófico-literário-poético - entre
Gilles Deleuze, Félix Guattari e Cora Coralina e experimentar tais percursos - não
preexistentes - foi uma tarefa desafiadora, mas extremamente prazerosa.
Proporcionou-me muitos encontros e muitas possibilidades.
Sobre a aproximação com Deleuze e Guattari eu poderia dizer que tal
agenciamento inaugurou um imenso encontro-devir. Eles são muitos e sempre
vastíssimos. Às vezes diferentes. E sempre difíceis à minha lógica. Mas penso que seus
conceitos e mais B seu jeito >sóbrio= de se colocarem diante do pensamento e de
conceitos -, inauguraram uma perspectiva inédita. Para falar da densidade desse
encontro, tomo emprestado, de Cora, as suas palavras em relação aos versos. Seus
conceitos Atêm relance de enxada, gume de foice e peso de machado@. Causaram dor,
desconforto e desestabilização, mas admito que tais conceitos abriram tantas clareiras
e sendas nos percursos meus pensamentos, que deixei o antigo território quase sem
perceber e me encontro em busca de outros. Depois de tantas desterritorializações, já
o sou mais a mesma.
E nesse >deserto=, caminhar ao lado de Cora Coralina foi uma experiência
totalmente reterritorializante B até mesmo porque Cora é minha companheira de
outras travessias escuras... Embora, de certa forma, eu já me sentisse próxima de Cora
Coralina, tenho a consciência de que encontrei uma Cora e uma escrita totalmente
inéditas, motivadas pelos conceitos de Deleuze e Guattari. Como disse, uma quase
2
>justiça literária=: dar à luz a uma Cora Coralina que já existia, mas que ainda não havia
sido parida. Tal encontro foi mais promissor que todos os outros. Encontrei uma Cora
multiplicidade! E fico pensando nas palavras do meu orientador: não seria interessante
buscarmos outros escritores e poetas para promovermos agenciamentos com Deleuze
e Guattari? Tal proposta parece tentadora...
Porque tinha a consciência da importância de deixar-me atravessar pelo
método >antitodo= do rizoma, e estava disposta a permitir-me desocupar um lugar
de saber, para tatear outro, desconhecido, não me deixei levar pelo a priori de que
uma dissertação é uma tarefa muito pesada. No fundo, pesada ou leve, na visão de
Deleuze e Guattari, uma dissertação o passa de um agenciamento entre tantas
outros. E tal processo acabou sendo extremamente prazeroso. Rizoma de ramificações
infindas.
AVelocidade que se adquire no meio@: foi exatamente o que experimentei
promovendo esses agenciamentos e buscando escrever em forma de platôs. Até o
último momento de elaboração, os platôs interagiram, mudaram de lugar, mesclaram-
se uns aos outros, deram lugar a outros, surgiram repentinamente... e... continuam
interagindo, em cada releitura. Escrevi-os simultaneamente, sem me sentir
minimamente confusa. Descobri que é possível experimentar outras lógicas com
seriedade.
Atravessamos um tempo de muitas crises: política, econômica, étnica,
religiosa, social, de gênero e ecológica. No meio de todas, encontra-se uma crise de
3
paradigmas, que denuncia um modelo civilizatório e relacional. A lógica arborescente
e genealógica B quase >convencional B não tem oferecido respostas que ultrapassem
um convencional, no sentido da criação de novos modelos.
A presente dissertação pretendeu ser um ensaio-experiência de se trabalhar
com a lógica do rizoma, escrevendo em platôs. Mais aproximação que chegada.
Tenho a consciência de que os agenciamentos propostos não são os únicos e são
faltantes. Mas quis dar um passo para fora dos terririos historicamente
sedimentados, evidenciando linhas de fuga e iniciando movimentos de
desterritorialização. O pensamento tem direito à liberdade! Temos direito de
conceder ao pensamento deixar o território da árvore, para enxergar outros
horizontes, outros percursos e outros territórios, ainda que precisemos reaprender
tudo.
Nesse horizonte, pensadores como Deleuze e Guattari, desconstroem os
terririos de nossas convencionais certezas e nos convidam a experimentar devires
minoritários B sobretudo um devir-infância -, que nos conduzam para outros
terririos, a serem constrdos, terras desconhecidas, virgens de Édipo, que o Anti-
Édipo tinha apenas visto de longe sem nelas penetrar
44
.
44 DELEUZE, G.; GUATARRI, F., Introdução: Rizoma. In: IDEM, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia, p. 7.
A perspectiva que apresentamos é, sobretudo, dialógica. Convidamos a
muitos para que possam dialogar conosco e ensaiar outras experiências,
4
complementares e menos faltantes, proporcionando, ao pensamento, a possibilidade de
transitar entre outras lógicas, mais inclusivas, relacionais e solidárias, menos formais e
lineares.
Um devir-infância que nos possibilite renovar o nosso olhar e os nossos pés
entre os terririos da vida, em busca de novas terras: essa foi a maior aquisição desse
agenciamento entre Deleuze, Guattari e Cora. A eles sou muito grata!
Certamente permanece um >desconforto=, herança de uma lógica
proeminentemente arbórea: uma sensação de que se concluiu pouco, de que falta um
>essencial=, como ápice, de que evidências deveriam ter sido mais enfatizadas. Ainda
nesse caso, nas palavras de Cora Coralina encontro >conforto=:
Tanto papel escrito, tanta coisa inútil.
Se tudo já foi dito, o que ficou para mim?
A palavra nova...
Como será?
Mesmo nova será nascida de um arcaísmo.
Neste livro, o que terá valor?
O que ficou sem escrever.
45
45 CORALINA, C., Meu Amigo (In memoriam). In: IDEM, Vintém de Cobre. Meias Confissões de
Aninha, p. 187.
5
Referências Bibliográficas
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A Gleba me transfigura. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5.
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Mestra Silvina. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5. ed. São
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Meu vintém perdido. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5. ed.
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Moinho do Tempo. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5. ed.
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Nasci Antes do Tempo. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5.
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Normas de Educação. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5.
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O poeta e a poesia. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5. ed.
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6
O quartel da polícia de Goiás. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de
Aninha. 5. ed. São Paulo: Global Editora, 1995, pp. 185-186.
Recados de Aninha B
BB
B I. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5.
ed. São Paulo: Global Editora, 1995, pp. 152-153.
Semente e Fruto. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5. ed. São
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Voltei. In: IDEM, Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. 5. ed. São Paulo:
Global Editora, 1995, p. 127.
A Flor. In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo: Global Editora, 1986, pp.
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Cora Coralina, quem é você? In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo:
Global Editora, pp. 73-76.
Das Pedras. In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo: Global Editora, p. 13.
Mãe Didi. In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo: Global Editora, pp. 93-
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Meu Epitáfio. In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo: Global Editora, p.
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Não conte pra ninguém.In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo: Global
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O Chamado das Pedras. In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo: Global
Editora, pp. 84-85.
Oferta B
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B aos novos que poetizam. In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo:
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Rio Vermelho. In: IDEM, Meu Livro de Cordel. 6. ed. São Paulo: Global Editora, pp.
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Vida das Lavadeiras. In: IDEM, Meu Livro de Cordel. São Paulo: Global Editora, p.
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Antiguidades. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. 18. ed. São
Paulo: Global Editora, 1985, pp. 53-57.
Becos de Goiás. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. 18. ed. São
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Do Beco da Vila Rica. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. 18.
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7
Poema do Milho. In: IDEM, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. 18. ed. São
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