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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
VÂNIA CARDOSO DA MOTTA
DA IDEOLOGIA DO CAPITAL HUMANO À IDEOLOGIA DO CAPITAL SOCIAL: as
políticas de desenvolvimento do milênio e os novos mecanismos hegemônicos de educar para
o conformismo
RIO DE JANEIRO
2007
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Vânia Cardoso da Motta
DA IDEOLOGIA DO CAPITAL HUMANO À
IDEOLOGIA DO CAPITAL SOCIAL: as políticas de
desenvolvimento do milênio e os novos mecanismos
hegemônicos de educar para o conformismo
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Serviço Social da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Doutora em
Serviço Social (Área de Concentração Política e
Teoria Social).
Orientador: Prof. Dr. Carlos Nelson Coutinho
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro - Brasil
2007
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M921 Motta, Vânia Cardoso da.
Da ideologia do capital humano à ideologia do capital
social: as políticas de desenvolvimento do milênio e os
novos mecanismos hegemônicos de educar o conformismo
/ Vânia Cardoso da Motta. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
379f.
Orientador: Carlos Nelson Coutinho.
Tese(Doutorado em Serviço Social) Universidade
Federal do Rio de Janeiro / Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social, 2007.
1. Capital social. 2. Capital humano. 3. Questão social.
4. Banco Mundial. 5. Educação. I. Coutinho, Carlos
Nelson. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola
de Serviço Social.
CDD: 303.4
Vânia Cardoso da Motta
DA IDEOLOGIA DO CAPITAL HUMANO À
IDEOLOGIA DO CAPITAL SOCIAL: as
políticas de desenvolvimento do milênio e os
novos mecanismos hegemônicos de educar para o
conformismo
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço
Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título
de Doutora em Serviço Social (Área de Concentração
Política e Teoria Social).
Aprovada em 25/07/2007
___________________________________________________
Orientador: Prof.Dr. Carlos Nelson Coutinho, Escola de Serviço Social, UFRJ.
____________________________________________________
Prof. Dr. José Paulo Netto, Escola de Serviço Social, UFRJ.
____________________________________________________
Prof. Dr. José Maria Gómez, Escola de Serviço Social, UFRJ.
____________________________________________________
Prof. Dr. Gaudêncio Frigotto, Instituto de Políticas Públicas, IPP - UERJ.
____________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Leher, Faculdade de Educação, UFRJ.
Suplentes:
Profª Drª Yollanda Guerra
Escola de Serviço Social, UFRJ
Profª Drª Lúcia Wanderley Neves
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, FIOCRUZ
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer
individualmente descobertas “originais”; significa também, e
sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas,
“socializá-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las em
base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem
intelectual e moral.
Antonio Gramsci
AGRADECIMENTOS
Para qualquer estudante, o doutorado é um desafio, não só por exigir uma dedicação
para dar conta da literatura que demanda, mas também pelo estado de isolamento requerido
para reflexão e elaboração da tese. Tal condição só é abrandada com apoio e compreensão da
família e dos amigos. Nesse particular é preciso ressalvar e agradecer o acolhimento que tive
na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS-UFRJ).
Sempre enfatizo a Universidade Federal Fluminense (UFF) onde me graduei em
Pedagogia e obtive o título de Mestre em Educação. A Faculdade de Educação da UFF é a
minha casa. Ali mantenho uma relação apaixonada pelos colegas e professores. A opção de
fazer o doutorado na ESS-UFRJ trouxe para mim muitos desafios: outra área de estudo, outra
Universidade e, principalmente, o de fazer parte de uma Escola de nível de excelência
reconhecido nacional e internacionalmente, com Mestres de muitos Mestres. Logo em alguns
meses de convívio esses desafios se transformaram em prazer. O prazer de estar adquirindo
novos e fundamentais conhecimentos, de fazer novas amizades e de me sentir acolhida pelos
professores. Agradeço duplamente ao Prof. José Paulo Netto por ter se mostrado sempre um
amigo dedicado em amenizar as minhas dificuldades e por suas disputadíssimas aulas
magistrais; ao Prof. José Maria Gómez que em todos os encontros sempre se dispôs a me
ajudar; à Profª. Yollanda Guerra pelo seu apoio e atenção; às secretárias da pós-graduação
Ieda e Luiza que sempre me atenderam com muito carinho e atenção. E, em especial, ao meu
orientador Prof. Carlos Nelson Coutinho que, com o seu doce jeito baiano, me fez admirar
ainda mais Antonio Gramsci e me confortou em vários momentos.
Ainda de forma especial gostaria de agradecer aos professores da UFF que não me
deixaram sozinha nessa tarefa: aos Profs. Gaudêncio Frigotto e Giovanni Semeraro que
sempre estiveram presentes e transmitindo entusiasmo com o meu progresso; e à Profª. Lucia
Neves, por ter me apresentado Gramsci. E nesse conjunto de professores da área de Educação,
o meu agradecimento ao Prof. Roberto Leher que muito colaborou com meus estudos.
Finalmente aos meus filhos Caio e Thais, com muito amor; ao meu grande amigo e
companheiro Luiz; à minha mãe, Lili, sempre atenta e pronta a ajudar. Em especial à Sylvia
Moretzsohn, pois, sem o seu incentivo, não estaria aqui na Escola; e ao meu pai, Caldeira, a
quem dedico esta tese in memorian.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... p.01
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... p.03
1 A CRISE DO CAPITALISMO NOS ANOS 1990 E O PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DE NOVOS MECANISMOS HEGEMÔNICOS ............................. p.14
1.1 A crise do capitalismo nos anos 1990 ..................................................................... p.17
1.1.1 Estado neoliberal: zona de mercado ou zona de pobreza ..................................... p.23
1.1.2 Os reflexos da mundialização do capital na América Latina ................................ p.40
1.2 Propostas para a crise do capitalismo e o processo de construção de novas
ideologias ..................................................................................................................... p.55
1.2.1 Crítica (ou autocrítica) à “teoria do derrame”: “a promessa não-cumprida de
benefícios globais” ...................................................................................................... p.64
1.2.2 Proposta da “esquerda modernizante”: a “terceira via” ..................................... p.77
2 FUNÇÕES DO ESTADO E DA SOCIEDADE CIVIL NO CAPITALISMO E
“QUESTÃO SOCIAL” ...................................................................................................
p.89
2.1 Estado e sociedade civil na tradição marxista ......................................................... p.92
2.1.1 Estado e sociedade civil no contexto das políticas neoliberais ............................. p.104
2.1.2 Sociedade civil e a função de educar para o conformismo .......................... p.117
2.1.3 A sociedade civil gramsciana não se sustenta fora do Estado e nem em oposição
ao Estado ...................................................................................................................... p.127
2.2 “Questão Social” e Pobreza ...................................................................................... p.135
3 AJUSTE DA IDEOLOGIA DO CAPITAL HUMANO PARA A IDEOLOGIA DO
CAPITAL SOCIAL ......................................................................................................... p.151
3.1 Um panorama do processo de subordinação da educação à economia capitalista .... p.153
3.2 A educação no contexto do deslocamento da ideologia do desenvolvimento para a
ideologia da globalização: do capital humano ao capital social.................................. p.164
3.3 O resgate da “Teoria do Capital Social” por Putnam e Fukuyama .......................... p.190
3.3.1 Robert Putnam: resgatando a teoria do capital social .......................................... p.193
3.3.2 Francis Fukuyama: capital social e confiança ..................................................... p.209
4 O BANCO MUNDIAL E AS “POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO DO
MILÊNIO”: o processo de construção de mecanismos hegemônicos de função de
direção intelectual e moral ............................................................................................ p.225
4.1 A concepção de capital social difundida pelos organismos multilaterais ................ p.236
4.2 Sobre a mudança no pensamento e na prática de desenvolvimento ......................... p.251
4.3 O Enfoque Multidimensional de Pobreza ................................................................. p.275
4.4 Estado “ativo” e/ou Estado “inteligente” ................................................................ p.300
4.5 UNESCO e a Educação para o desenvolvimento do milênio ................................. p.316
5 CONCLUSÃO .............................................................................................................. p.326
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... p.358
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Distribuição da renda mundial (1993) ......................................................... p.52
Tabela 2: Censo dos indigentes na Inglaterra .............................................................. p.137
Tabela 3: Evolução do desemprego juvenil, 1990-2000, Brasil (18-24 anos de
idade) ............................................................................................................................
p.176
Tabela 4: Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade
Brasil - 1970-2003 ....................................................................................................... p.176
Tabela 5: Taxa de analfabetismo funcional das pessoas de 15 anos ou mais de idade
- Brasil, 1997-2003 ......................................................................................................
p.176
Tabela 6: Média de Anos de Estudos de Instrução Formal segundo Categorias
Selecionadas, Brasil – 1992/1999 ................................................................................
p.177
Tabela 7: Taxa de Escolarização Líquida segundo Nível/Modalidade de Ensino,
Brasil – 1992/1999 .......................................................................................................
p.178
Tabela 8: Taxa de Desemprego Aberto segundo Categorias Selecionadas Brasil –
1994/2001 - Setores de Atividade ................................................................................
p.179
Tabela 9: Taxa de Desemprego Aberto segundo Categorias Selecionadas
Brasil – 1994/2001 - Faixa Etária ................................................................................. p.180
Tabela 10: Índice de Desigualdade - Brasil – 1992/1999 ............................................ p.182
Tabela 11: Proporção de Pobres e Indigentes - Brasil – 1992/1999 ........................... p.182
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Regiões em desenvolvimento onde vivem pobres.......................................... p.279
Figura 2: PNB e a assistência oficial ao desenvolvimento per capita aos países do
DAC...............................................................................................................................
p.292
RESUMO
MOTTA, Vânia C. DA IDEOLOGIA DO CAPITAL HUMANO À IDEOLOGIA
DO CAPITAL SOCIAL: as políticas de desenvolvimento do milênio e os novos
mecanismos hegemônicos de educar para o conformismo. Rio de Janeiro: ESS-UFRJ
(Tese de Doutorado).
O processo de mundialização do capital deflagra uma reação antiglobalizante em
meados da década de 1990 tendo em vista o alto custo social trazido pelas políticas
neoliberais. Contradizendo as promessas de crescimento econômico e de acumulação
de riquezas advindas da grande capacidade produtiva das novas bases tecnológicas e a
afirmativa de que a riqueza acumulada derramaria até as camadas mais pobres,
constatou-se o aumento da pobreza, da miséria e do desemprego e a precarização do
trabalho. A tensão decorrente deste quadro social que se alastrou tanto nos países
dependentes como nos países centrais provocou a necessidade de as elites dominantes
desenvolverem mecanismos para aliviar tais mazelas e, com isso, impedir o risco de
ruptura da coesão social. Em vários encontros realizados a partir de então, setores
dominantes definem novos mecanismos de hegemonia que vão compor as “políticas
de desenvolvimento do milênio” elaboradas em 2000. Com as “políticas de
desenvolvimento do milênio” visam a objetivar os novos ajustes necessários à
condição de reprodução do ideário e das políticas macroeconômicas neoliberais.
“Eliminar a pobreza e a fome do planeta até 2015” é a principal meta das “políticas de
desenvolvimento do milênio”. Estas políticas são norteadas pela “teoria do capital
social” e destacam como mecanismos essenciais de implementação a educação e a
participação das organizações da sociedade civil (terceiro setor). Neste conjunto de
políticas o entendimento de Estado, de economia e de pobreza é diferenciado das
políticas dos anos iniciais da década de 1990. Com as “políticas de desenvolvimento
do milênio” espera-se construir um Estado “inteligente” e “ativo” para conduzir um
processo de desenvolvimento com estabilidade econômica, atribuindo um enfoque
econômico mais humano e ético e uma visão da pobreza na perspectiva
multidimensionada. Partindo da hipótese de que na virada para o novo milênio novos
mecanismos hegemônicos de função de direção intelectual e moral foram operados
para dar sustentação à manutenção das políticas macroeconômicas neoliberais, esta
pesquisa analisou o processo de mudança nas orientações de políticas sociais para o
novo milênio. Tomou como base documentos do Banco Mundial, considerando que
este foi e tem sido o organismo multilateral de maior influência na condução do
processo de legitimação desses novos mecanismos de hegemonia, e de outros
organismos multilaterais que buscam legitimar estas políticas, tais como o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Comissão Econômica para a América
Latina e Caribe (CEPAL) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO), incluindo teses que contribuíram para a sua
fundamentação, como a de Robert Putnam, Amartya Sen e Francis Fukuyama.
Orientador: Prof.Dr.Carlos Nelson Coutinho – ESS/UFRJ
ABSTRACT
MOTTA, Vânia C. FROM THE HUMAN CAPITAL IDEOLOGY TO THE
SOCIAL CAPITAL IDEOLOGY: the millennium development policies and the new
hegemonic mechanisms as education for conformism. Rio de Janeiro: ESS-UFRJ
(Doctorship Thesis).
Capital’s globalization process has burst into a antiglobalizing reaction in the mid of
the 1990’s because of the high social cost brought by neoliberal policies.
Contradicting the promises of economical and wealth accumulation growth resulting
from the great productive capacity of the new technological bases and the assertive
that the wealth accumulation would reach the poorest classes, there was an increase of
poverty, misery and unemployment and work precarization. This social scenario led to
a tension that spread through both the dependent countries as the central ones what
made the dominant classes develop mechanisms to alleviate troubles to prevent risks
of a rupture in social cohesion. In several meetings held since then, the dominant
sectors have defined new hegemonic mechanisms that are going to make up the
“millennium development policies” developed in 2000. With those policies they aim
at new necessary adjustments to the reproduction conditions of the neoliberal ideas
and macroeconomical policies. “To bring poverty and famine to an end in the planet
till 2015” is the main goal of the “millennium development policies”. Those policies
are guided by the “social capital theory” and emphasize Education and the
participation of the civil society organizations (third sector) as essential
implementation mechanisms. For this set of policies, the concepts of State, Economy
and Poverty are different from the ones stated in the early 1990’s policies. Based on
the “millennium development policies”, they intend to build up an “intelligent” and
“active” State in order to lead to a development process with economical stability; also
considering a more humane and ethical point of view and a multidimensional
approach of poverty. Based on the hypothesis that, in the new millennium’s turn, new
hegemonic mechanisms of intellectual and moral function were worked to give
support in order to maintain the neoliberal macroeconomical policies, this research
analyzed the process of changes in social-oriented policies for the new millennium.
We based our work on the World Bank’s documents (International Bank for
Reconstruction and Development – IBRD) – considering that this bank was and has
been one of the most influent multilateral organism in conducting the legitimating
process of those new hegemonic mechanisms – and on other multilateral organisms’
documents that try to legitimate those policies as well, such as, Inter-American
Development Bank (IDB), Comisión Económica para América Latina y el Caribe
(CEPAL/ECLAC), and the United Nations for Education, Science and Culture
Organization (UNESCO). We also included theses that contributed for this work’s
foundation, such as Robert Putnam’s, Amartya Sen’s e Francis Fukuyama’s.
Supervisor: Prof.Dr. Carlos Nelson Coutinho – ESS/UFRJ
1
APRESENTAÇÃO
O presente trabalho tem como objeto de análise os novos mecanismos de hegemonia
incorporados às “políticas de desenvolvimento do milênio” que visam a “eliminar a pobreza e
a fome até 2015” através da implementação de um processo de educação para o conformismo.
O problema fundamental que orienta a pesquisa é a “batalha das idéias”, mais especificamente
o processo pelo qual a classe dominante desenvolve mecanismos de conservação da unidade
ideológica, criando novos terrenos ideológicos em conformidade com as reformas estruturais
ou resultantes do próprio confronto com a classe dominada.
A escolha do objeto deu-se nas discussões sobre a “questão social”, ainda nas
primeiras aulas do curso de Doutorado. Pensou-se inicialmente em analisar a relação entre
educação e pobreza, apreendendo as contradições que inserem esta relação na sociedade
capitalista em seus diferentes estágios históricos. No entanto, durante o levantamento
bibliográfico, identificou-se que a crise do capitalismo nos anos 1990 deflagrou a necessidade
de a classe dominante realizar ajustes em nível superestrutural para manter a coesão social e
dar condições de reprodução à política econômica e à ideologia neoliberais. E que estes novos
ajustes estavam pautados na “teoria do capital social” e seriam objetivados através das
“políticas de desenvolvimento do milênio”. Nesse sentido, privilegiou-se a identificação dos
mecanismos de hegemonia de função de direção intelectual e moral contidos nestas políticas.
Tendo como formação básica a educação, inquietaram-me a função atribuída à
educação – da ideologia do capital humano à ideologia do capital social –, e o processo
educativo voltado para a conformação das condições (im)postas no atual estágio do
capitalismo mundializado. Nessa trajetória foi necessário apreender literaturas que fazem
2
crítica ao capitalismo mundializado e à concepção técnico-instrumental de educação e outras
que abordam criticamente a “questão social”. Mas também houve a necessidade de abarcar as
literaturas que deram suporte teórico-metodológico às definições de políticas para o novo
milênio, apreendendo-as com base nas obras de Marx, Gramsci e de outros autores marxistas.
O caminho percorrido durante a pesquisa contou com as valiosas e decisivas
contribuições dos Professores Gaudêncio Frigotto e Roberto Leher que acompanharam minha
trajetória desde a fase de qualificação. Como também foram preciosas e instigantes as
orientações dos Professores Giovanni Semeraro e Lúcia Neves em outros exames.
Entendo que somente a condição de estar fazendo o curso de doutorado na Escola de
Serviço Social da UFRJ, tendo em vista a sólida formação em Teoria Social e Política e ao
debate caloroso sobre “questão social” oferecidos pelos Professores José Paulo Netto e José
Maria Gómez permitiu a identificação de um objeto fundamental para o embate atual. As
“políticas de desenvolvimento do milênio” são pouco trabalhadas em academias que ainda
apostam numa abordagem crítica de análise da realidade.
A identificação de novos mecanismos de hegemonia de função de direção intelectual e
moral contidos nas “políticas de desenvolvimento do milênio”, a compreensão do processo de
construção dessas bases ideológicas e de suas implicações só foram possíveis com a
apreensão das categorias de Gramsci e com as discussões do meu orientador Carlos Nelson
Coutinho.
Acredito que este trabalho entra no debate sobre a relação entre educação e pobreza,
mas comprometido com a luta “para libertar-se das ideologias parciais e falazes" (Gramsci).
Considero que esse debate, longe de ser esgotado, é fundamental para dar solidez à prática de
educadores, de assistentes sociais e de pessoas comprometidas com a transformação desta
sociedade.
3
INTRODUÇÃO
O combate à pobreza é, na passagem do novo século, o principal foco de políticas
sociais das agências multilaterais para os países dependentes. Em 2000, chefes de Estado e de
governo, inclusive do Brasil, se reuniram em Nova York num encontro denominado de
“Cúpula do Milênio da Organização das Nações Unidas”, e assumiram o compromisso de
eliminar a extrema pobreza e a fome do planeta até 2015 através do que foi denominado de
“políticas de desenvolvimento do milênio”.
A partir de então, com a colaboração das principais agências multilaterais [Comissão
Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Banco Mundial (BIRD), entre outras], inclusive
do Fundo Monetário Internacional (FMI), além dos vários especialistas de diferentes
programas da ONU, os países que se comprometeram a eliminar a pobreza até 2015 definiram
os objetivos e as metas do acordo, resultando no documento “Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio (ODM)”.
No Brasil, as orientações de combate à pobreza no governo Lula pautaram-se nos
documentos do Banco Mundial (BIRD): “BRASIL – Justo – Competitivo – Sustentável –
Contribuições para Debate: Visão Geral” e “Estratégia de Assistência ao País (EAP) 2004-
2007”, e no “Relatório de Desenvolvimento Humano 2004” do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD).
O documento “BRASIL – Justo – Competitivo – Sustentável – Contribuições para
Debate: Visão Geral” foi elaborado em dezembro de 2002 e reúne, “de forma sintetizada”,
análises e sugestões de estudos anteriores, experiências do Brasil e internacionais que a
4
equipe do Banco Mundial considerou relevantes para contribuir com a discussão sobre
políticas públicas a serem formuladas, então, pelo novo governo brasileiro que seria eleito em
outubro. O outro documento do Banco Mundial, “Estratégia de Assistência ao País (EAP)
2004-2007”, foi elaborado em dezembro de 2003 já com a participação do governo eleito, e
teve como objetivo “colaborar” com as reformas políticas e com investimentos voltados ao
“combate” à pobreza. Conforme expresso neste último documento, o papel do Banco Mundial
é o de “apoiar as principais reformas de políticas e investimentos inovadores e eficientes, com
o objetivo de aumentar o bem-estar dos brasileiros, em particular dos pobres” (BIRD, 2003a,
p.11).
No âmbito desta pesquisa, entende-se que o encontro de “Cúpula do Milênio” de Nova
York teve o sentido de materializar e difundir idéias que já estavam sendo postas
anteriormente, tendo em vista a série de crises econômicas que vinha ocorrendo nos anos
finais da década de 1990, principalmente nos países dependentes, resultante das estratégias
econômicas impulsionadas pelo FMI. Os intelectuais das principais agências multilaterais,
diante de fatos da realidade, ‘descobrem’ que “as desigualdades de acesso” geram
instabilidades políticas colocando em risco a governabilidade e a coesão social nos países
dependentes, e passam a propor uma mudança nas matrizes de orientações macroeconômicas.
Esta pesquisa partiu da premissa de que as “políticas de desenvolvimento do milênio”,
definidas no processo de crise do capitalismo nos anos finais da década de 1990, representam
um novo marco de ajustes na dinâmica de hegemonia do projeto neoliberal para o novo
milênio no âmbito superestrutural. E buscou defender a tese de que tais políticas estão
voltadas para operar a naturalização das conseqüências inerentes ao atual estágio do
capitalismo globalizado – pobreza, desemprego, precarização do trabalho e desigualdade
social –, introduzindo mecanismos hegemônicos de função de direção intelectual e moral de
forma a conduzir um processo de educação para o conformismo.
5
Os ajustes propostos nas políticas de desenvolvimento para o novo milênio são
fundados na “teoria do capital social”, enfatizam a dimensão cultural e social no processo de
implementação de políticas macroeconômicas e destacam como instrumentos de
implementação o Estado (stricto), a sociedade civil e a educação.
Em relação ao Estado, nesta nova etapa de ajustes hegemônicos, é mantida a
perspectiva minimizada do ideário neoliberal, mas exige-se um melhor desempenho
institucional na condução das políticas de combate à pobreza e de estabilidade política. Para
tal, o governo deve fortalecer suas bases e atuar de forma a construir uma relação harmônica
entre o Estado, o mercado e a sociedade civil. Em relação à sociedade civil, procura-se
consolidar o sentido de sociedade civil como uma esfera dissociada do Estado e mais eficiente
no atendimento das demandas sociais, reforçando a idéia de que a sociedade civil é um espaço
da harmonia solidária e da livre associação voluntária dos indivíduos. A participação da
sociedade civil na implementação das “políticas de desenvolvimento do milênio” é a de
conduzir as atividades de combate à pobreza diretamente nas comunidades mais pobres que
devem ser operadas com estratégias que visem à atuação coletiva de forma a transmitir
valores de solidariedade e cooperatividade entre os membros como uma saída para a
supressão de seus problemas e de suas necessidades básicas. No âmbito educacional, é
mantida a função de investir no capital humano, mas direcionada somente para a camada de
trabalhadores que ainda dispõe de qualificações profissionais competitivas e necessárias ao
mercado. E uma outra função é atribuída à educação - em parceria com as organizações da
sociedade civil, para atender à camada de trabalhadores “excluída” do mercado no processo
de reestruturação produtiva neoliberal dos anos 1990 e empobrecida -, a de gerar “capital
social”. Aos trabalhadores de “elite”, exige-se a elevação do nível educacional como uma
forma de possibilitar o ingresso do país no mundo globalizado e competitivo e de extrair os
benefícios que este mundo proporciona. E às camadas mais pobres basta o acesso ao ensino
6
fundamental ou o desenvolvimento de suas “capacidades básicas de realização” produtiva
para dar condições mínimas de sobrevivência.
Este estudo trabalha com a hipótese de que novos mecanismos hegemônicos de função
de direção intelectual e moral foram operados para dar sustentabilidade à manutenção das
políticas macroeconômicas neoliberais na virada para o novo milênio, já que tais políticas
impulsionadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial foram
consideradas pelos próprios intelectuais orgânicos do capital um fracasso nos países
dependentes. No conjunto desses mecanismos de hegemonia que compõe as “políticas de
desenvolvimento do milênio” identifica-se a manutenção da base ideológica neoliberal
maquiada com um rosto mais democrático, humanizado e ético nas relações de produção, com
responsabilidade social e respeito ao meio ambiente. A função ideológica atribuída à
educação e à sociedade civil, enquanto um “terceiro setor” dissociado do Estado, foi
ampliada. À educação, de caráter economicista, não cabe somente produzir capital humano,
deve também produzir “capital social”; à “sociedade civil” não cabe somente atender as
demandas sociais, deve transmitir e operar através de valores de solidariedade, cooperação,
reunindo forças e capacitando as camadas mais pobres da população para o enfrentamento da
realidade que está posta. E como resultado dessas políticas supõe-se a intensificação do
caráter dual
1
do sistema escolar, o reforço da “apartheid educacional”
2
e fundamentalmente a
despolitização da sociedade civil.
Os objetivos definidos para a análise da problemática posta foram: buscar
compreender o atual movimento histórico de forte retomada das discussões sobre a pobreza e
sobre desenvolvimento social, num contexto em que a lógica capitalista mostrou-se mais
1
“... diferenciação da educação ou formação para as classes dirigentes e a classe trabalhadora” (Frigotto, 2000).
2
Leher, 1998.
7
claramente “predatória”, e que resultou na elaboração das “políticas de desenvolvimento do
milênio”; analisar a nova função atribuída à educação, para além de produzir capital humano,
gerar “capital social”, que insere o conjunto de documentos dos organismos multilaterais
envolvidos na tarefa de conduzir a implementação das “políticas de desenvolvimento do
milênio”; analisar os elementos e os “conceitos” contidos nesta proposta de desenvolvimento
do milênio apreendendo as contradições com base nas obras de Marx, Gramsci e de outros
autores marxistas.
Entende-se que a relevância deste estudo está na abordagem analítica empregada para
analisar as “políticas de desenvolvimento do milênio” que permite captar as contradições que
inserem as propostas de combater a pobreza no atual estágio do capitalismo globalizado e as
funções ideológicas atribuídas ao Estado, em seu sentido restrito, à sociedade civil e à
educação. Fundando-se no materialismo histórico pode-se apreender a problemática do
pauperismo enquanto uma “questão social” e identificar a relação contraditória entre
“pobreza” e educação. A relação entre educação e pobreza tornou-se, nos últimos anos,
predominante em várias instituições acadêmicas e em setores dos organismos internacionais
que são definidos com a função de orientar as definições de políticas sociais para os países
dependentes. Essas instituições de estudos e pesquisas sobre a temática têm fornecido um
volume de dados significativo; no entanto o escopo analítico da maioria dessas instituições
está voltado para a análise da pobreza enquanto uma “anomalia social”, propondo-se a
colaborar com a solução de problemas estruturais de forma imediata e restrita.
Na observação de alguns intelectuais da atualidade, a passagem do século foi marcada
por acelerados movimentos de mudanças do processo de acumulação, centralização e
concentração do capital sob a égide das grandes corporações e da hipertrofia financeira, e
pelos reajustes das funções do Estado necessários à “nova ordem global”. Tais mudanças no
âmbito econômico resultaram em desemprego estrutural crônico, precarização do trabalho
8
com as perdas dos direitos sociais, enfraquecimento das organizações sindicais e no aumento
da pobreza; no âmbito político, o resultado foi o fim das intervenções econômicas do Estado,
a redução dos gastos públicos, principalmente dos gastos sociais, e o deslocamento da
“administração da pobreza” para as organizações da sociedade civil, mais precisamente do
“terceiro setor”; no âmbito ideológico, forças sociais buscam cimentar no senso comum das
massas trabalhadoras concepções de realidade que operam a naturalização da conjuntura
política e econômica.
No entanto as crises das políticas econômicas do neoliberalismo e as críticas
enfrentadas pelos apologistas da globalização e do neoliberalismo, seja no âmbito teórico seja
no prático, não os intimidaram a promover novos ajustes das estratégias políticas neoliberais,
pelo contrário, houve um refinamento dos mecanismos de legitimação calcados em uma
suposta análise científica complexa e rigorosa. Fukuyama (2005) vai afirmar que “uma
multiplicidade de estudos forneceu documentação empírica corroborando” com este processo
(pp.39-40). De fato, é surpreendente a base de dados estatísticos e de estudos dos organismos
multilaterais em várias frentes temáticas, de cunho tanto teórico quanto empírico, que vão dar
sustentação ao processo de investigação e análise do real para as definições de políticas
disseminadas por esses organismos.
A partir da premissa de que as “políticas de desenvolvimento do milênio” representam
um marco de reajustes na dinâmica de hegemonia do projeto neoliberal para o novo milênio
configurando um mecanismo de hegemonia de função de direção intelectual e moral, buscou-
se identificar os referenciais teórico-metodológicos utilizados nestas políticas para dar
coerência e legitimidade às novas estratégias neoliberais.
Com isso, num primeiro momento da pesquisa, foi realizado o levantamento dos
documentos dos organismos multilaterais, mais especificamente do Banco Mundial (BIRD),
do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Comissão Econômica para a
9
América Latina e Caribe (CEPAL), e posteriormente da Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), tendo em vista que, no decorrer do
levantamento dos documentos que tratavam sobre a Política de Desenvolvimento do Milênio,
identificou-se que estes organismos estavam alinhados no processo de definição dessa
política. Verificou-se que o eixo teórico que sustenta as “políticas de desenvolvimento do
milênio” é baseado na “teoria do capital social”. Esta “teoria” foi revigorada nos anos recentes
com a pesquisa realizada por Robert Putnam durante vinte anos na Itália moderna. Seu foco é
institucional e defende a idéia de que grupos sociais bem-sucedidos econômica e socialmente
possuem um nível adequado de “capital social”.
Nesse momento, além de identificar o marco referencial-metodológico inserido nas
“políticas de desenvolvimento do milênio”, buscou-se compreender o processo pelo qual
foram sendo delineados os objetivos e as metas de combate à pobreza postos em outros
documentos do Banco Mundial. Objetivou-se, nesta tarefa, apreender o sentido atribuído à
questão do desenvolvimento, considerando que a “ideologia do desenvolvimento” estaria na
contramão da “ideologia da globalização” conforme a tese de Leher (1998), e também quais
seriam as funções da educação, da sociedade civil e do Estado na implementação dessas
políticas. Para isso, além dos documentos do Banco que tratavam desses temas, foi necessário
recorrer às literaturas que fundamentavam teoricamente tais definições e medidas políticas.
Identificou-se, então, que o conjunto de “políticas de desenvolvimento do milênio”
insere uma nova abordagem de pobreza, não mais restrita à questão da renda, como fora
predominante no início dos anos 1990, mas multidimensionada; introduz uma concepção de
desenvolvimento diferente da idéia de desenvolvimento hegemônica no período keynesiano,
incorporando o sentido de desenvolvimento sustentável; tem como base uma outra “matriz
econômica”, baseada na abordagem ético-econômica defendida por Amartya Sen.
10
Verificou-se, também, que as orientações econômicas impulsionadas pelo FMI e pelo
Banco Mundial junto aos países dependentes, tendo em vista os péssimos resultados da
reestruturação produtiva, receberam penosas críticas nos anos finais da década de 1990,
inclusive de intelectuais pares, tais como Joseph E. Stiglitz que presidiu o Banco Mundial no
período entre 1997-2000, Francis Fukuyama, entre outros. As críticas às orientações
macroeconômicas baseadas no Consenso de Washington favoreceram o destaque, em
princípio no meio acadêmico, da abordagem ético-econômica de Sen que foi considerada uma
abordagem que contrapunha o enfoque “ortodoxo” dos neoliberais.
Para analisar a problematicidade que subjaz às “políticas de desenvolvimento do
milênio”, no tocante às metas de combate à pobreza, buscou-se apreender a natureza
contraditória do desenvolvimento do modo de produção capitalista, baseando-se em obras de
Marx, Gramsci e de outros autores marxistas.
Nessa perspectiva analítica, entende-se que as categorias de Gramsci são fundamentais
e atuais, uma vez que sua interpretação da realidade, como método de análise concreta do real
em suas diferentes determinações, revela contradições e pauta-se na concepção de que a
realidade é constituída por mediações, processos e estruturas. Elas permitem revelar as
contradições da realidade, tendo em vista a dinâmica das relações de forças constitutivas de
uma determinada formação histórica, a processualidade e a historicidade do social e a
organicidade que existe entre o social, o político e o econômico.
Segundo Simionatto (2004):
Essa realidade é analisada pelo pensador a partir de uma multiplicidade de
significados, evidenciando que o conjunto das relações constitutivas do ser
social envolve antagonismos e contradições, apreendidos a partir de um
ponto de vista crítico que leva em conta a historicidade do social, sendo este,
segundo Gramsci, o único caminho fecundo na pesquisa científica (p.01).
11
Para Coutinho (2003a): “a atualidade de Gramsci (....) resulta do fato de que ele foi
intérprete de um mundo que, em sua essência, continua a ser o nosso mundo de hoje. (....) os
problemas que ele abordou continuam presentes, ainda que, em alguns casos, sob novas
formas” (p.01).
Entende-se que a forma pela qual Gramsci interpreta a dinâmica do capitalismo em
sua versão mais avançada e mais a sua reflexão categorial são elementos fundamentais para
apreender as contradições que inserem as políticas de combate à pobreza sob a direção das
agências multilaterais. Do ponto de vista da totalidade, sua reflexão categorial reúne conceitos
essenciais para a análise das novas determinações da realidade contemporânea. São
destacados nesse estudo os conceitos: hegemonia, bloco histórico, Estado, sociedade civil,
intelectuais, ideologia, senso comum, conformismo, consciência política coletiva, força da
vontade, reforma intelectual e moral. Tais categorias ainda permitem fazer a contraposição
com os “conceitos” vinculados à “teoria do capital social” e às orientações de políticas de
“desenvolvimento do milênio” e de “combate à pobreza”.
Nesta perspectiva, foi fundamental fazer a leitura das obras de Gramsci tomando o
conjunto de suas reflexões filosóficas e políticas, captando as imbricações entre economia e
ideologia, as funções mediadoras dessas imbricações e as contradições que inserem.
Na literatura atual, buscou-se compreender as configurações econômicas e políticas do
atual estágio do capitalismo globalizado, identificando os efeitos das novas determinações de
acumulação do capital e das articulações políticas na América Latina e no Brasil; e apreender
a problemática que insere a relação do “pauperismo” com a “questão social”, bem como a da
pobreza com a educação, entre outras questões cruciais para a análise do objeto no atual
contexto histórico.
12
A exposição deste estudo está dividida em quatro capítulos. O primeiro capítulo,
Entendendo as implicações econômicas, políticas e ideológicas do neoliberalismo nas
relações sociais”, visa a apreender o processo de mundialização do capital, as implicações
políticas e ideológicas e os reflexos deste processo nos países da América Latina. Na primeira
parte deste capítulo, discute-se a configuração econômica e, na segunda parte, abordam-se as
concepções de Estado e sociedade civil em Hegel, Marx, Engels e Gramsci buscando
elementos para analisar a problemática da idéia que vem se formando no senso comum de
sociedade civil dissociada do Estado, com a contribuição de autores recentes.
O segundo capítulo, “’Questão Social’ e Educação: elementos para análise da relação
entre educação e pobreza nas políticas de desenvolvimento do milênio”, tem como objetivo
trazer a discussão sobre a “questão social”, estabelecendo uma relação desta questão com a
educação no decorrer do processo histórico do desenvolvimento do modo de produção
capitalista. Considera-se o tema “questão social”, – embora tenha sido uma temática mais
predominante na área de Assistência Social –, um tema crucial para identificar os elementos
ideológicos que inserem os estudos e as pesquisas da atualidade sobre “educação e pobreza”.
O terceiro capítulo, “A retomada do foco na pobreza com novas alternativas políticas
e ideológicas”, é dedicado à trajetória de formulação do pensamento que resultou em uma
nova proposta de superação da crise do Estado neoliberal, a “terceira via”, e à definição das
“políticas de desenvolvimento do milênio”, enfatizando o processo de ressignificação dos
termos ‘desenvolvimento’ e ‘pobreza’ e da função do Estado.
E, finalmente, no quarto capítulo, “Sobre a ‘Teoria’ do Capital Social”, são
trabalhadas as bases epistemológicas que sustentam a idéia de gerar “capital social” como
uma saída para amenizar a crise neoliberal.
13
Do ponto inicial da pesquisa – identificando a “teoria do capital social” como uma
ideologia e as “políticas de desenvolvimento do milênio” como um conjunto de mecanismos
de hegemonia de função de direção intelectual e moral – foi possível identificar nos
documentos dos organismos multilaterais elementos que confirmam os ajustes em nível
superestrutural das políticas neoliberais a partir de 1995 e revelar a problematicidade que gera
a definição de mecanismos para combater a pobreza no seio da sociedade capitalista,
principalmente ao utilizarem-se como meios de legitimação destas políticas a participação dos
organismos da sociedade civil e a educação. Toda esta problematicidade assim como as
principais idéias e proposições extraídas a partir da pesquisa são sintetizadas na conclusão.
14
1 A CRISE DO CAPITALISMO NOS ANOS 1990 E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
DE NOVOS MECANISMOS HEGEMÔNICOS
A globalização é um totalitarismo que não
precisa nem de camisas verdes, nem de
castanhas, nem de suásticas. Com ela, os ricos
governam e os pobres vivem como podem.
Saramago
As “políticas de desenvolvimento do milênio” elaboradas em 2000 resultam da
necessidade de a elite dominante realizar alguns ajustes nos mecanismos que dão legitimidade
ao processo de abertura comercial nos países “em desenvolvimento”, visando a abrandar os
efeitos danosos desse processo, principalmente para as camadas mais pobres da população.
O processo de abertura comercial impulsionado pelo Fundo Monetário Internacional
(FMI) nos anos 1980-90 não resultou na “promessa” de benefícios globais defendida e
difundida pelos economistas que elaboraram as orientações macroeconômicas, expressas no
documento que foi denominado de Consenso Washington. Contrariando os argumentos dos
defensores da globalização neoliberal de que com o “livre mercado” as possibilidades de
acumulação da riqueza seriam ampliadas e dessa forma, “naturalmente”, esta riqueza
“derramaria” até os países e as camadas mais pobres da população - “teoria do derrame”-, o
que se constatou neste período foram: intensificação da polarização entre países e
internamente e um extraordinário aumento da pobreza, inclusive nos países centrais, e do
desemprego. Na concepção de Chossudovsky (1999), o que ocorreu foi “a globalização da
pobreza”.
15
O quadro econômico, social e político que se instalou em meados dos anos 1990 fez
com que os principais organismos multilaterais ajustassem suas políticas de “luta” contra a
pobreza, anunciando a necessidade de estipular “metas de combate à pobreza”, argumentando
que a pobreza acentuada ameaça a coesão social.
Quem ameaça quem na atual conjuntura do capitalismo mundializado?
Gramsci (2000a) coloca que uma das formas de compreender a dinâmica das relações
de forças em um determinado bloco histórico “é a de ver se as crises históricas fundamentais
são determinadas imediatamente pelas crises econômicas” (p.44), pois a questão econômica
integra os diversos momentos da dinâmica do processo de hegemonia. Na abordagem
gramsciniana, para compreender o movimento do real do ponto de vista da totalidade, as
dimensões política e social não devem ser desvinculadas da economia.
Embora Gramsci não tenha tratado as determinações econômicas do capital de forma
mais radical e tenha enfatizado mais as questões política e cultural e suas expressões no
âmbito da ordem capitalista, estas questões não foram tratadas desvinculadas da relação entre
infra-estrutura e superestrutura. Sua obra é marcada pelo estudo dos fenômenos
superestruturais, compreendendo o político e o cultural como esferas mediadoras entre a
produção material e a reprodução da vida humana. Para Simionatto (2003), Gramsci colabora,
assim, para a crítica ontológica de outras esferas do ser social que não a estritamente
econômica.
Nesta perspectiva, este primeiro capítulo tem como objetivo compreender as
implicações econômicas, políticas e ideológicas do contexto no qual o objeto em estudo está
situado. Assim, numa primeira parte serão colocadas discussões sobre a mundialização do
capital e os seus reflexos nos países latinos, destacando a forma como o Estado na concepção
neoliberal vai sendo configurado em zonas, sejam em zonas de mercado ou em zonas de
pobreza, segundo autores da atualidade. Num segundo momento, identificam-se críticas
16
realizadas pelos próprios intelectuais orgânicos do capital em relação às políticas econômicas
neoliberais conduzidas pelo FMI e preocupações com os seus resultados, gerando um
processo de construção de novas ideologias que vão compor as “políticas de desenvolvimento
do milênio”. Considerou-se importante destacar a “terceira via” como uma proposta
conservadora que emerge para abrandar a crise do capitalismo neste final dos anos 1990 como
uma “alternativa” ao neoliberalismo.
17
1.1 A crise do capitalismo nos anos 1990
Nos anos finais do século XX, o capitalismo enfrentou uma crise que se estendeu pela
economia internacional, com desequilíbrios macroeconômicos, financeiros e produtivos. As
soluções para o seu combate foram calcadas no “retorno à ortodoxia” liberal, definindo as
teses monetaristas e neoliberais que se tornaram predominantes nas políticas
macroeconômicas internacionais de boa parte do mundo a partir dos anos 1970, sob a
liderança da Inglaterra e dos Estados Unidos.
3
As conseqüências sociais destas políticas foram e ainda estão sendo problemáticas. O
mundo vem enfrentando a intensificação das desigualdades entre classes e países e da
pobreza, e o mundo do trabalho tem na história sua maior derrota. Sobre o auspício da
globalização neoliberal a classe trabalhadora das sociedades capitalistas passa a enfrentar, ano
após ano, momentos duríssimos.
É importante destacar que, segundo Anderson (2003a), “para além da crise
econômica” as idéias neoliberais ganham terreno neste momento histórico porque tinha “um
fundo político”. O autor explica que: “O ideário do neoliberalismo havia sempre incluído,
como componente central, o anticomunismo mais intransigente de todas as correntes
capitalistas do pós-guerra” (p.11).
3
Em 1979, na Inglaterra, eleito o governo Thatcher, as idéias neoliberais são colocadas em prática pela primeira
vez. Logo em seguida essa prática é introduzida nos Estados Unidos, em 1980, no governo Reagan. Em 1982, na
Alemanha; em 1983, na Dinamarca; assim, até quase todos os países do norte da Europa ocidental.
18
Hayek
4
defendia a seguinte tese: “os modelos de instituição democrática predominante
no mundo ocidental ‘conduzem necessariamente à transformação gradual da ordem
espontânea de uma sociedade livre num sistema totalitário”.
5
Seu propósito, segundo
Anderson (2003a), era “combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as
bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro” (p.10).
Para Chesnais (1996), as principais características da atual fase condizem com àquelas
colocadas por Lênin (1916, Apud, Chesnais, 1996): “‘Monopólios, oligarquias, tendências à
dominação no lugar das tendências à liberdade, exploração de um número crescente de nações
pequenas e fracas por um pequeno número de nações ricas e poderosas (...)’” (p.49). Esses
traços, para o autor, permanecem e estão ainda mais exacerbados hoje do que há oitenta anos.
A “globalização” ou melhor a “mundialização do capital”
6
, para Chesnais (1995), deve
ser entendida como parte de uma fase mais longa na evolução do modo de produção
capitalista, resultado de “dois movimentos, estreitamente interligados, mas distintos”: 1º está
relacionado à mais longa fase de acumulação ininterrupta do capital que o capitalismo
conheceu desde 1914; 2º relacionado às políticas de liberalização, de privatização, de
4
Friedrich August Von Hayek (1899-1992) foi o protagonista fundamental do “fermento intelectual do ideário
neoliberal” na Inglaterra e nos Estados Unidos. A publicação de sua obra O Caminho da Servidão (Road of
Serfdom), na Inglaterra em 1944 e posteriormente nos Estados Unidos em 1945, marcou um fato histórico
essencial na batalha de idéias. Essa obra é considerada a marca da origem da ideologia neoliberal e
compreendida como uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista. Trata-se de um
ataque “apaixonado” contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciada
como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política (Anderson, 2003a).
5
Apud ANDERSON, P. Afinidades Seletivas. São Paulo: Boitempo, 2002, p.332.
6
Chesnais (1996) introduz o termo “mundialização” em detrimento ao de “globalização” porque considera que
este último, bem como outros adjetivos atribuídos a ele, foram popularizados de forma que “cada qual pode
empregá-lo exatamente no sentido que lhe for conveniente, dar-lhes o conteúdo ideológico que quiser”, além de
introduzir com mais força a idéia e as dimensões incorporadas nesse processo, que não se refere somente às
atividades dos grupos empresariais e aos fluxos comerciais, mas inclui também a globalização financeira
(pp.24;29).
Ianni (2002) faz uma colocação interessante sobre as metáforas, expressões descritivas e interpretativas que
“circulam combinadamente pela bibliografia sobre a globalização”, fundamentadas e relevantes, “razoavelmente
originais, suscitando significados e implicações”, e que indicam problemas específicos sobre o tema, tais como:
“’economia-mundo’, ‘sistema mundo’, ‘shopping center global’, ‘Disneylândia global’, cidade global’,
‘capitalismo global’, (...) ‘desterritorialização’, (...) ‘fim da história’ e outras mais” (p.15).
19
desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas (p.34).
Este segundo momento, segundo o autor, foi acompanhado de mudanças nas relações
políticas, “agora entendidas como relações internas às burguesias imperialistas” (p.19).
Mészáros (2002) vai denominar de “imperialismo global hegemônico”, baseado na força
dominante dos Estados Unidos nesse contexto. De certa forma, vai ao encontro da colocação
de Coutinho (2006): “A atual globalização modifica as formas do imperialismo, mas conserva
e até reforça a hegemonia de algumas nações sobre outras, particularmente dos Estados
Unidos, configurando uma hierarquia de dominação e formas novas e velhas de imperialismo”
(p.124).
7
Para Ianni (2002): “O que já se anunciava nos primeiros tempos do capitalismo revela-
se claro no século XIX e mais ou menos avassalador no XX” (p.178). E que a globalização
propriamente dita vai se concretizar com o fim da guerra fria, com a desagregação do bloco
soviético e a adoção da economia de mercado por quase todas as nações do ex-mundo
soviético, quando ocorre uma verdadeira transformação quantitativa e qualitativa do
capitalismo, do modo de produção e processo civilizatório. Segundo o autor: “Aos poucos e
de maneira repentina, os princípios de mercado, produtividade, lucratividade e consumismo
passam a influenciar as mentes e os corações dos indivíduos, as coletividades e os povos”,
tornando-se concretamente global (pp.180-181;184; grifo nosso).
7
Lima (2005) observa que: “Apesar das especificidades e divergências nas obras dos vários autores da tradição
marxista sobre o conceito de imperialismo, existem dois aspectos centrais que configuram uma unidade teórico-
política: a) a internacionalização como fundamento do capitalismo, na medida em que o sistema do capital
move-se, inexoravelmente, em direção à “globalização” desde seu início, ou seja, ele não pode considerar-se
completamente realizado, a não ser como um sistema global abrangente; e, b) a internacionalização do
capitalismo como um movimento combinado de unificação - do mercado mundial - e diversificação em um
duplo sentido: a partir das relações estabelecidas entre os países centrais e a periferia do sistema e o caráter
desigual e combinado do desenvolvimento em cada país periférico” (p.30)
.
20
Boron (2004) coloca que o que vai caracterizar a economia contemporânea, disfarçada
como uma “novidad absoluta”, é o seu ingresso em uma nova e acelerada fase de crescimento
das tendências globalizantes da economia internacional, conduzido por um vertiginoso
processo de mundialização dos fluxos financeiros, bem superior a do crescimento da produção
e do comércio mundiais, com uma “cobertura geográfica sin precedentes” e operado por um
processo de homogeneização da cultura, que se torna um instrumento poderoso para a criação
de um “senso comum” neoliberal que exalta a naturalização da lógica do mercado (p.213).
Sobre a questão do trabalho, Chesnais (1996) constata que a concepção de trabalho
enquanto uma mercadoria é ampliada, o seu valor é desvalorizado pelo progresso tecnológico,
a capacidade de negociação dos trabalhadores é reduzida e os direitos conquistados,
estabelecidos “graças às grandes lutas sociais e às ameaças de revolução social”, vão sendo
desmantelados “e as ideologias neoliberais se impacientam de que ainda restem alguns cacos
delas” (p.42). Tudo e todos são submetidos às leis do mercado e do lucro – “Produtividade é
a palavra-chave” (pp.42-43).
Trata-se do que Marx (2001) discorre em sua obra Miséria da Filosofia:
Tomar apenas a quantidade de trabalho como medida de valor, sem levar em
conta a qualidade, supõe que o trabalho simples se tornou o fulcro da
indústria. Supõe que os trabalhos são eqüalizados pela subordinação do
homem à máquina ou pela divisão extrema do trabalho; supõe que os
homens se apagam diante do trabalho; supõe que o movimento do pêndulo
tornou-se a exata medida da atividade relativa de dois operários, da mesma
maneira que o da velocidade de duas locomotivas. Então, não há por que
dizer que uma hora de um homem equivale a uma hora de outro homem;
deve-se dizer que o homem de uma hora vale tanto quanto outro homem de
uma hora. O tempo é tudo, o homem não é nada – quando muito, é a carcaça
do tempo. Não se discute a qualidade. A quantidade decide tudo: hora por
hora, jornada por jornada (pp.112-126)
E tudo isso junto vai universalizando mais do que nunca o modo capitalista de
produção e o capitalismo como processo civilizatório.
21
Marx e Engels (1997) já tinham identificado no Manifesto Comunista (1848) que a
internacionalização é um fundamento básico da lógica expansionista do capitalismo, e já
tinham apontado elementos originais de uma teoria da crise do sistema. As crises de
superprodução e a formação de um mercado mundial são dois componentes estruturais do
capitalismo. As crises são inevitáveis no capitalismo, constituindo uma contradição que faz
parte da gênese deste sistema e que é gerada na medida em que a competição entre os vários
setores capitalistas provoca uma superprodução de mercadorias no mercado, que leva ao
subconsumo e, conseqüentemente, a queda da taxa de lucros. Neste processo de acumulação
do capital, o deslocamento intra e inter países e regiões caracteriza-se como uma estratégia
burguesa para enfrentar essas flutuações da taxa de lucros.
A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar
incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as
relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. (...) Essa
subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema
social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a
época burguesa de todas as precedentes. (...)
Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais,
nascem novas necessidades, que reclamam para a sua satisfação os produtos
das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo
isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se
um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto
se refere tanto à produção material como à produção intelectual (Marx e
Engels, 1997, pp.24-25; grifo nosso).
8
Expõe Boron (2000) que: “Graças ao vertiginoso desenvolvimento dos meios de
comunicação, a burguesia consegue atrair irreversivelmente todas as nações, mesmo as mais
atrasadas, para seu modelo de civilização” (p.22) triunfando ideológico e culturalmente.
9
8
In: Textos. Volume 3. São Paulo/ SP: Edições Sociais, 1977.
9
O processo de dominação do capital que se dá inclusive ou reciprocamente no âmbito superestrutural é mais
bem compreendido à luz das categorias de Gramsci, que vai ser abordado mais adiante.
22
A base cultural desta etapa do capitalismo funda-se na idéia de saturamento ou
cristalização ou esgotamento dos grandes ideais iluministas, na “Pós-Modernidade”.
10
Para
Coutinho (2006), a pós-modernidade é a expressão cultural do neoliberalismo. Ele expõe que
a classe operária e os trabalhadores têm sofrido muitas derrotas significativas nas últimas
décadas. O intenso processo de contra-reforma empreendido pelo capital criou condições mais
favoráveis a sua reprodução com a fragmentação da consciência operária. Em suas palavras:
“A pós-modernidade é a superestrutura da contra-reforma neoliberal” (p.113). Fazendo
referência ao pensamento de Gramsci, é preciso ressaltar que a cultura é um momento
constitutivo das relações de hegemonia. Uma classe obtém hegemonia na medida em que sua
cultura e seus valores tornam-se, ou se pretendem, universais.
Conforme colocação de Marx & Engels no Manifesto Comunista (1848): “Sob pena de
morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrangendo-
as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra,
cria um mundo à sua imagem e semelhança” (Marx e Engels, 1977, p.25).
10
A concepção de “pós-modernidade” abarca diferentes significados e se manifesta também de forma
diferenciada nos planos epistemológico e político, o que vai dificultar extrair das diversas literaturas sobre o
tema uma única definição. Para Jameson (2006a), “o próprio nome – pós-modernismo – aglutinou um grande
número de fenômenos até então independentes, e estes, ao serem assim denominados, comprovam que
continham, de forma embrionária, a própria tendência e se apresentam, agora, para documentar fartamente a
sua genealogia múltipla” (p.17). No geral, o pós-modernismo vai configurar a “crise da Razão”, um produto de
ruptura com os valores da sociedade moderna. Segundo Chauí (apud Frigotto, 1998), o pós-modernismo é a
negação de que haja uma esfera da objetividade (...); negação de que a razão possa propor uma continuidade
temporal e captar o sentido da história (...); negação de que a razão possa captar núcleos de universalidade no
real (...); negação de que o poder se realize à distância do social, através de instituições que lhe são próprias e
fundadas tanto na lógica da dominação quanto na busca da liberdade...” (p.34). Jameson (2006a) coloca que “a
tarefa ideológica fundamental do novo conceito (...) deve continuar a ser a de coordenar as novas formas de
práticas e de hábitos sociais e mentais (...) e as novas formas de organização e de produção econômica que vêm
com a modificação do capitalismo – a nova divisão global do trabalho – nos últimos anos” (p.18).
23
1.1.1 Estado neoliberal: zona de mercado ou zona de pobreza
Chesnais (1996) revela que a propagação indiscriminada e ideológica do termo
“globalização” acaba por ocultar uma das características essenciais da mundialização, que é
um duplo movimento de polarização”: a polarização interna a cada país, pelos efeitos do
desemprego e do distanciamento dos rendimentos salariais, tendo em vista a “ascensão do
capital monetário e da destruição das relações salariais estabelecidas (sobretudo nos países
capitalistas avançados) entre 1950 e 1970”; e a polarização internacional, “aprofundando
abruptamente a distância entre os países situados no âmago do oligopólio mundial e os países
da periferia” (Chesnais, 1996, p.37).
Explica o autor que por várias décadas prevaleceu a idéia de que o modelo ocidental
capitalista de desenvolvimento poderia ser conquistado por todos os países e regiões, uma vez
que superassem as “etapas” necessárias para tal, como “degraus de uma escada que todo país
podia galgar”.
11
Os fluxos dos investimentos externos diretos (IEDs) no período entre 1955-
1975 e a ajuda de organismos multilaterais, embora não desinteressados, pareciam indicar
essa possibilidade. Com as transformações tecnológicas, econômica e política, a hipótese de
um “fordismo periférico” não só não é mais desejável, como também vai de encontro aos
“limites ecológicos incontornáveis” (Chesnais, 1996, p.313).
Assim discorre o autor:
Após o formidável salto de produtividade do trabalho na indústria, que
acompanhou a difusão das tecnologias de informática, do estabelecimento de
novas formas toyotistas de organização da produção industrial e da
intensificação da concorrência entre as companhias e os países da Tríade
12
,
estes passaram a se interessar unicamente por relações seletivas, que
abrangem apenas um número limitado de países do Terceiro Mundo. Certos
11
Chesnais cita W.W.Rostow como o teórico mais conhecido dessa abordagem, desenvolvida em seu livro “As
etapas do crescimento”, e chama a atenção para o subtítulo “revelador”da obra “Manifesto não-comunista
(p.312).
12
Estados Unidos, União Européia e Japão.
24
países ainda podem ser requeridos como fontes de matérias-primas (porém
cada vez menos, observa o autor). Outros são procurados, sobretudo pelo
capital comercial concentrado, como bases de terceirização deslocalizada a
custos salariais muito baixos. Mais uns poucos países, por fim, são atrativos
devido a seu enorme mercado interno potenciais (...). Mas, fora esses casos,
as companhias da tríade precisam de mercados e, sobretudo, não precisam de
concorrentes industriais de primeira linha (Chesnais, 1996, p.313).
Cabe um parêntese para observar que essa última tendência pode ser identificada, hoje,
através do que vem sendo denominado de BRIC. BRIC é o nome dado ao conjunto dos países
“emergentes” – Brasil, Rússia, Índia e China – que apresentam um mercado interno potencial
tendo em vista o enorme contingente populacional. Neles vivem 2,7 bilhões de habitantes, o
equivalente a 40% da humanidade, que resultaria em 800 milhões de novos consumidores.
Oliveira (2003) coloca que “essa capacidade de levar o consumo até os setores mais pobres da
sociedade é ela mesma o mais poderoso narcótico social” (p.144; grifo nosso).
13
Muito recentemente, em março de 2007, foi veiculada nas principais mídias impressas
uma reportagem referente ao relatório elaborado pelo Banco Mundial em parceria com o
Instituto Mundial de Recursos (IMR) denominado “Os Próximos Quatro Bilhões”. Este
relatório, segundo a reportagem veiculada pelo Jornal O Globo, revela que “no mundo todo
existem quatro bilhões de pessoas que ganham menos de US$3 mil por ano, formando um
vigoroso mercado de US$5 trilhões”. No Jornal Monitor Econômico, esta notícia foi
13
Segundo reportagem da Revista Exame, de 2 de agosto de 2006, “o alvo é a baixa renda, a geografia do
consumo mudou”. Para prosperar as empresas terão de adaptar-se a ele, criando marcas alternativas, populares e
mais baratas e produtos de baixo consumo, ampliando ou estendendo a distribuição dos produtos em locais de
difícil acesso, entre outras estratégias de consumo. E mostra algumas empresas que já vêm fazendo este tipo de
adaptação, tais como a mexicana Mabe, associada à GE, que vai lançar no mercado uma máquina de lavar semi-
automática que economiza água e sabão em pó, além de custar menos que uma convencional; a Eletrolux
desenvolveu para o mercado indiano, que convive com a instabilidade no fornecimento de energia, um
refrigerador que mantém a temperatura de congelamento mesmo após seis horas desligado; a Colgate-Palmolive,
que preparou uma frota de vans para percorrer as aldeias remotas da Índia para “educar o consumidor” sobre os
benefícios da pasta de dentes e distribuir amostras grátis; a Philips, que lançou no Brasil uma segunda marca de
eletroeletrônicos, a Magnavox, com preços inferiores; entre outras. Ainda segundo a reportagem, o BRIC deve
configurar como a mais importante transformação na ordem econômica mundial nesta primeira metade do século
XXI. Reportagem de José Robert Caetano e Nelson Blecher.
25
veiculada com o título: “O PIB dos Pobres”. Segundo a reportagem d’O Globo, o relatório
aponta que a América Latina é o segundo maior mercado no mundo para as empresas que
oferecem produtos e serviços para os pobres, atrás apenas da Ásia, mas representa um
mercado de mais fácil acesso; “é mais urbanizada, inclusive no segmento de baixa renda,
moradores da favela” (declaração de Allen Hanemond, vice-presidente do Programa de
Empreendimento, Projetos Especiais e Inovação Sustentável do IMR). O PIB dos pobres foi
calculado em US$ 5 trilhões. Segundo o relatório, a Ásia possui 2,8 bilhões de pessoas, cerca
de 83%, na base da pirâmide de consumo, com uma renda total de US$3,47 trilhões; a
América Latina tem na base da pirâmide 360 milhões de pessoas, 70% do total, e um poder de
consumo de US$509 bilhões por ano; o Leste Europeu e a África vêm em seguida neste
ranking da base da pirâmide com pessoas com um poder de compra de US$458 bilhões e
US$429 bilhões respectivamente. Ainda segundo a reportagem, outras áreas não atendidas
pelo setor público, como saúde e educação, oferecem boas oportunidades para empresas, a
exemplo das farmácias e clínicas que prosperam em bairros pobres mexicanos através do
sistema de franquia. No Brasil, este “empreendimento” empresarial pode ser comparado às
farmácias populares subsidiadas pelo governo. Em relação ao Brasil, o relatório com base nos
dados do IBGE afirma que os 70,7% mais pobres representam um mercado de US$181
bilhões. A renda média dos brasileiros situados na base da pirâmide econômica é de US$3,35
por dia, à frente da China (US$2,11) e da Índia (US$1,56).
Parafraseando Oliveira, essa capacidade de vislumbrar capital nos parcos rendimentos
dos pobres é o mais poderoso narcótico da ganância.
Chesnais (1996) coloca que nessa conjuntura alguns países da periferia não são apenas
países subordinados ou reservas de matérias-primas sofrendo os efeitos conjuntos da
dominação política e do intercâmbio desigual, como na época clássica do imperialismo:
26
(....)são países que não mais apresentam interesse nem econômico, nem
estratégico (fim da guerra fria), para os países e companhias que estão no
centro do oligopólio. São pesos mortos pura e simplesmente. Não são mais
países destinados ao ‘desenvolvimento’, e sim áreas de ‘pobreza’ (palavra
que invadiu o linguajar do Banco Mundial), cujos emigrantes ameaçam os
‘países democráticos’ (Chesnais, 1996, pp.37-38; grifo nosso).
Foi mais ou menos com essa lógica apontada por Chesnais que ocorreu um
“estancamento do IED (Investimento Estrangeiro Direto) para muitos países, e que o tema da
administração da pobreza foi assumindo espaço cada vez maior nos relatórios do Banco
Mundial, enquanto o tema do desenvolvimento foi colocado em surdina” (Chesnais, 1996,
p.313).
14
Chossudovsky (1999) sintetizou da seguinte forma o atual contexto do capitalismo
mundializado: “essa nova ordem financeira internacional é nutrida pela pobreza humana e
pela destruição do meio ambiente (que leva) a uma globalização da pobreza” (p.37).
Frente ao que foi exposto, aos países periféricos e aos que estabelecem uma relação de
dependência com os países centrais só lhes restam duas opções – ou se submetem às
condições exigidas pelas transnacionais e pelas políticas econômicas internacionais ou
procuram, de alguma forma, administrar a pobreza crescente.
Nessa perspectiva conjuntural, o Estado, sob a condição de pena de morte, como
colocara Marx e Engels no Manifesto Comunista (1848), passa a ser sinônimo de mercado e
duas alternativas se apresentam ou são impostas aos países dependentes. Uma seria reverter a
“gigante reserva” de trabalhadores em atrativo de mercado para inserir-se no quadro das
“relações seletivas”, apresentando-se como um mercado interno potencial, seja para a
14
Leher (1998) também vai comprovar que as políticas sociais focadas no combate à pobreza, implementadas
pelo Banco Mundial nos anos 1980-90, tinham de fundo a convicção de que a “ideologia do desenvolvimento”
não era mais viável. Nesse sentido, para o autor, a ênfase atribuída à educação neste conjunto de políticas sociais
terá o caráter de “aliviar a pobreza” (mais adiante).
27
“superexploração da força de trabalho” seja enquanto mercado de consumo popular. E a
outra, aceitar o destino de ser um “peso morto” e administrar a pobreza, seguindo as
orientações dos organismos multilaterais e conforme as parcas doações dos países ricos. Não
são mais nações, mas zonas de mercado ou zonas de pobrezas.
Explica Limoeiro-Cardoso (2000) que a idéia de “zonas de pobreza” é associada à
situação de exclusão de segmentos sociais da expansão do capital. E que compreender a
pobreza a partir da “análise do empírico imediato” e da “descrição mais espacial do que
temporal”, desviando “a atenção para os chocantes ‘dados’ da miséria e da indigência”, acaba
por ocultar o processo histórico que insere essa temática. Nessa perspectiva, para a autora:
(...) a temática do ‘desenvolvimento’ tenderia mais a evidenciar essa
exclusão, o que poderia demandar algum entendimento do processo que a
cria. Assim, este tema privilegiaria a análise do processo histórico, até
porque está em pauta uma mudança de rota – da inclusão
desenvolvimentista para a exclusão produzida pelo capital rentista
(p.113; grifo nosso).
A abordagem de “zona de pobreza” é reforçada com a concepção de Estado-nação
como sinônimo de mercado, sem fronteiras, “desterritorizado” e com o reaparecimento da
pobreza em segmentos sociais dos países mais ricos e desenvolvidos, de forma mais
intensificada a partir dos anos 1980. E dá a idéia de se estar configurando um novo mapa
múndi econômico, onde se podem localizar pontos de pobreza, sejam em países centrais ou de
periferia sejam em regiões inteiras. Com isso, cria-se uma tendência de focar a pobreza de
forma subjetiva, não mais entre nações e nem na problemática em si, mas nos indivíduos ou
grupos de indivíduos pobres. A temática pobreza não é problematizada enquanto uma
“questão social”, isto é, em sua historicidade, e passa a ser compreendida como uma “nova
28
pobreza” que emerge no contexto do capital globalizado.
15
Esse tipo de abordagem analítica sobre a pobreza encobre uma situação que, na visão
de Amin (2003), seria a incapacidade de a mundialização passar os países “potencialmente
‘competitivos’” para o “estatuto” de “novos” países centrais, “plenamente desenvolvidos no
sentido capitalista do termo”, por que “as periferias contêm sempre gigantescas ‘reservas’”.
Amim (2003) explica que:
Entenda-se por isso que proporções muito importantes de sua força de
trabalho são empregadas (quando são) em atividades de fraca produtividade.
A razão disso é que as políticas de modernização – isto é, as tentativas de
‘recuperação’ – impõem escolhas tecnológicas elas próprias modernas (para
serem eficazes, ou seja, competitivas), as quais são extremamente custosas
em termos de utilização de recursos raros (capitais e mão de obra
qualificada). Essa distorção sistemática é ainda agravada toda vez que a
modernização em questão é combinada com uma desigualdade crescente na
distribuição de renda.
Nessas condições, é impossível que a expansão das atividades produtivas
modernizadas possa absorver as gigantescas reservas alojadas nas atividades
de fraca produtividade. As periferias dinâmicas continuarão, portanto, sendo
periferias, isto é, sociedades atravessadas por todas as maiores contradições
produzidas pela justaposição de enclaves modernizados (....), cercadas por
um oceano pouco modernizado, contradições que favorecem sua manutenção
em posição subalterna, submetidas aos cinco monopólios centrais (p.298).
Deve-se atentar para o fato de que as “periferias” além de conter gigantes reservas de
trabalhadores de baixa produtividade, elas possuem também, no geral, grandes reservas de
recursos naturais. A questão de recursos naturais vai indicar um outro aspecto da falácia do
desenvolvimento no sentido de que com desenvolvimento é possível que os países periféricos
alcancem níveis de competitividade, de produção e de consumo nos padrões semelhantes aos
países centrais. Anderson (1992) coloca que embora alguns países e regiões tenham alcançado
níveis de desenvolvimento econômico satisfatórios, a retórica de que países em processo de
desenvolvimento podem atingir níveis de desenvolvimento nos moldes dos países centrais é
15
As limitações desse tipo de abordagem serão discutidas posteriormente.
29
uma “falácia”. Para o autor:
O estilo de vida de que hoje desfruta a maioria dos cidadãos das nações
capitalistas ricas (...) depende de sua restrição a uma minoria. Se todas as
pessoas da Terra possuíssem o mesmo número de geladeiras e automóveis
que as da América do Norte e da Europa Ocidental, o planeta ficaria
inabitável. Hoje, a ecologia global de capital, o privilégio de uns poucos,
requer a miséria de muitos, para ser sustentável (Anderson, 1992, p.110).
Para sustentar sua tese, Anderson (1992) retoma os dados que comprovam a
intensificação da polarização interna e internacional e o aumento da pobreza e da fome no
mundo ocorridos nas últimas décadas do século XX. E continua:
Se todos os seres humanos tivessem simplesmente um quinhão igual de
alimento, numa dieta com menos de metade do consumo norte-americano de
calorias de base animal (....) o globo não poderia sustentar a sua atual
população; se o consumo alimentar dos Estados Unidos fosse generalizado,
metade da espécie humana teria que tornar-se extinta – a Terra não poderia
sustentar mais de 2,5 bilhões de habitantes (p.110).
16
Anderson (1992) chama a atenção para o fato de que, mesmo no atual quadro de
desigualdade crescente, o planeta já enfrenta as conseqüências da depredação do meio
ambiente e da escassez dos recursos naturais: “a camada de ozônio está sendo rapidamente
depauperada, as temperaturas estão subindo de forma acentuada, o lixo nuclear está se
acumulando, as florestas estão sendo dizimadas, milhares de espécies estão sendo varridas”
(p.111).
Enfim, o padrão de vida da média da população dos países mais ricos não pode ser
reproduzido nos países pobres sem conseqüências ecológicas comuns. Tal situação cria uma
tensão, que já se observa nos Estados Unidos e na Europa, advinda de um contingente cada
16
Conforme observa o autor, a população mundial hoje é de 5 bilhões; dobrou em cinqüenta anos e é suscetível
de se aproximar dos 10 bilhões no final do próximo século. Sendo que 90% desse aumento dar-se-ão nos países
pobres.
30
vez maior de imigrantes que busca usufruir dessas condições de consumo. Nesse sentido,
explica o autor, na ótica dos países mais ricos, algumas medidas são necessárias, tais como:
salvaguardar o fornecimento de petróleo; filtrar a imigração; bloquear, quando necessário, o
acesso às tecnologias mais avançadas, e em especial, mas não exclusivamente, as tecnologias
bélicas, entre outras.
Na concepção de Chesnais (1996), o processo de mundialização do capital e a
“pretensão do capital financeiro de dominar o movimento do capital em sua totalidade”
acentuam os fatores de hierarquização entre os países. “O abismo que separa os países
participantes, mesmo que marginalmente, da dominação econômica e política do capital
monetário rentista, daqueles que sofrem essa dominação, alargou-se ainda mais” (p.18), mas
não apagam a existência dos Estados nacionais.
Nesse aspecto é importante retomar a concepção neoliberal de Estado e a forma como
essa idéia foi se objetivando na dinâmica da mundialização. A ideologia do livre mercado,
tomando como base as idéias de Hayek, é contra qualquer limitação dos mecanismos de
mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade, não somente
econômica, mas também política. Segundo Anderson (2003a), Hayek propõe o
desmantelamento de todas as legislaturas conhecidas para formar dois novos corpos com
competências e eleitorados diferenciados – o mercado e o Estado de Direito. Contra a lógica
da soberania popular e os perigos da democracia, propõe o fim do poder intervencionista das
assembléias e com essa medida visa a assegurar limites de intervenção do governo, que deve
basear-se somente ao rigor da lei. Seu foco estava localizado no poder dos sindicatos, do
movimento operário, que para ele havia “corroído as bases de acumulação capitalista com
suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado
aumentasse cada vez mais os gastos sociais” (p.09).
31
Para Hayek (1985), não é problema o Estado garantir uma proteção contra privações
sob a forma de renda mínima. Esse tipo de garantia ou seguro não restringe a liberdade dos
indivíduos e nem atinge o Estado de Direito. O que não pode ocorrer é a intervenção do
governo nos mecanismos impessoais do mercado. Para o autor, o modo como os benefícios e
ônus são distribuídos pelo mecanismo de mercado poderiam ser considerados injustos se
resultassem de uma decisão deliberada a pessoas especificas – mas não é o caso. Via mercado,
as cotas de “vantagens” resultam de um processo cujo efeito não foi pretendido nem previsto
por ninguém.
Assim, Anderson (2003a) conclui: “o remédio (...) era claro: manter um Estado forte
(...) em sua capacidade de romper com o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas
parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas”(p.11).
O Estado, em seu sentido stricto, deve ser forte para assegurar os interesses
econômicos mais amplos e administrar os infortúnios sociais que podem ser causados pela
impessoalidade do mercado. Mas deve ser fraco, em seu sentido amplo, restringindo as
reivindicações dos grupos sociais ao âmbito das necessidades imediatas e locais, no domínio
das “comunidades organizadas”.
Na observação de Gramsci (2000b):
...afirma-se que a atividade econômica é própria da sociedade civil e que o
Estado não deve intervir em sua regulamentação. Mas, dado que a sociedade
civil e Estado se identificam na realidade dos fatos, deve-se estabelecer que
também o liberismo é uma ‘regulamentação’ de caráter estatal, introduzida e
mantida por via legislativa e coercitiva: é um fato de vontade consciente dos
próprios fins, e não a expressão espontânea, automática, do fato econômico.
Portanto, o liberismo é um programa político, destinado a modificar, quando
triunfa, os dirigentes de um Estado e o programa econômico do próprio
Estado, isto é, modificar a distribuição da renda nacional (CC.V.3. C.13,
p.47).
32
O pressuposto de Estado-mínimo que insere o pensamento neoliberal revelou-se, na
concretude, uma falácia. O Estado é ainda necessário para articular o processo de socialização
do poder, agora em escala mundial. O caráter minimizado do Estado, que é visto em sua
dimensão institucional, pondo de lado sua configuração como expressão das relações de poder
no conjunto da sociedade (Sader, 2000, p.129), está presente na deterioração das políticas
sociais e na precarização do trabalho.
Ianni (2002) observa que nesse “processo de internacionalização do capital” a
existência do Estado-nação não se apaga, mas o seu significado é “alterado drasticamente”.
Tomando como base a interpretação sistêmica das relações internacionais, que é, segundo ele,
a mais comum entre as utilizadas pelos ‘atores’ ou pelas ‘elites’ dominantes, explica que essa
abordagem reconhece que “aos sistemas nacionais, tomados um a um, e aos regionais,
combinando duas ou mais nações, superpõe-se o sistema mundial”. O sistema mundial, nessa
ótica, contempla economia e política, blocos econômicos e geopolíticos, soberania e
hegemonias, além de empresas, corporações e conglomerados transnacionais, e tende a
predominar estabelecendo “poderosas injunções a uns e outros, nações e nacionalidades,
corporações e organizações, atores e elites”, institucionalizados em agências multilaterais
(p.75).
Nessa perspectiva da abordagem de “sistema mundial”, os Estados nacionais
permanecem como “atores privilegiados”, ainda que permanentemente desafiados pelas
corporações, empresas ou conglomerados, pois “polarizam muitas das relações,
reivindicações, negociações, associações, tensões e integrações que articulam o sistema
mundial” (Ianni, 2002, p.79). Daí a “tese da interdependência das nações”.
A tese da interdependência das nações, segundo Ianni (2002), é uma elaboração
sistêmica de como se desenvolve a problemática das relações internacionais, geopolíticas e
geoeconômicas no contexto das novas realidades da globalização, mas “reafirmando a
33
continuidade, vigência ou preeminência do Estado-nação”. Tal abordagem, “tende a ver o
mundo como um todo que se volta para a interdependência negociada, administrada, pacífica”
(Ianni, 2002, pp.80-81).
Ianni (2002) coloca que existe uma “dose de idealização” nessa abordagem, pois os
atores são diversos e desiguais quanto a sua força social.
O Grupo das 7 nações dominantes, (....) inegavelmente dispõe de meios e
modos de influenciar diretrizes não só de Estados dependentes, periféricos,
do sul ou do Terceiro Mundo, como também as organizações bi e
multilaterais, compreendendo a ONU, o FMI, a OIT, a AIEA, entre outras
(p.85).
Chossudovsky (1999) vai chamar essa nova forma de dominação econômica e política
de “colonialismo de mercado”, uma forma ‘moderna’ de subordinar “o povo e os governos
por meio da interação aparentemente ‘neutra’ das forças do mercado”, aos interesses políticos
e financeiros dos Clubes de Londres e de Paris, o G-7 (p.29). Segundo o autor: “a
internacionalização da política macroeconômica transforma países em territórios econômicos
abertos e economias nacionais em ‘reservas’ de mão-de-obra barata e de recursos naturais”
(Idem, p.30), que ainda, acrescenta-se, “sob pena de morte” (Marx), devem apresentar-se com
um mercado consumidor interno potencial (Chesnais).
Para Ianni (2002), duas problemáticas despontam nessa etapa da globalização do
mundo, a de hegemonia, no sentido de as nações dominantes não só centralizar e dirigir mas
também orientar, definir, implementar e impor diretrizes de modernização aos países
tradicionais, e a do princípio de soberania do Estado-nação.
É claro que a soberania do Estado-nação periférico ou do sul é em geral
muito limitada, quando não é simplesmente nula. Se é provável que alguns
destes estados nacionais alcançaram a soberania em momentos passados, é
muito mais provável que eles pouco ou nada desfrutam de soberania na
época da globalização do mundo (p.85).
[Uma vez que]
34
As condições e as possibilidades de soberania, projeto nacional,
emancipação nacional, reforma institucional, liberalização das políticas
econômicas ou revolução social, entre outras mudanças mais ou menos
substantivas em âmbito nacional, passam a estar determinadas por
exigências de instituições, organizações e corporações multilaterais,
transnacionais ou propriamente mundiais, que pairam acima das nações
(Ianni, 2002, p.59).
No entanto, na concepção de Ianni (2002), todo esse domínio nos âmbitos econômico,
político e ideológico não anula o caráter de interdependência e imperialismo. A
interdependência e o imperialismo “são duas dimensões da realidade histórica e geográfica do
capitalismo que se reproduzem e se recriam com maior força ainda” (pp.184-185).
O ponto de vista de Ianni provoca que se faça uma incursão na análise de Francisco de
Oliveira sobre o processo de expansão socioeconômica do capitalismo no Brasil. Oliveira
(2003) vai colocar que a teoria da dependência de Cardoso e de Faletto, que dispõe sobre a
forma pela qual os interesses internos se articulam com os interesses do restante do sistema
capitalista, avança a concepção cepalina no sentido de ver nas relações externas apenas
oposição a supostos interesses nacionais globais. No entanto a concepção de “dependência”
não dá o devido peso à possibilidade de expansão do capitalismo periférico, “ainda quando
seja desfavorável a divisão internacional do trabalho do sistema capitalista como um todo”
(p.33). E afirma: “antes de oposição entre nações, o desenvolvimento ou o crescimento é um
problema que diz respeito à oposição entre classes sociais internas” (Idem; grifo nosso).
O que se pode concluir nesse debate é que no atual processo de “internacionalização
do capitalismo” o caráter de interdependência e imperialismo é recriado com mais
intensidade, mas os Estados nacionais “permanecem como atores privilegiados”. E que as
condições e determinações impostas pelos organismos e organizações multilaterais aos países
periféricos estão atravessadas pelas disputas internas das classes sociais. Não é por outra
razão que o caráter minimizado do Estado neoliberal vai se configurar em uma ofensiva à
classe trabalhadora.
35
É o que revela Boron (2000): a vitória do neoliberalismo funda-se na derrota epocal
das forças populares e das tendências mais profundas da reestruturação capitalista, posta em
quatro dimensões:
a) A avassaladora tendência à mercantilização de direitos e prerrogativas
conquistados (...), convertido agora em ‘bens’ ou ‘serviços’ adquiridos no
mercado;
b) O deslocamento do equilíbrio entre mercado e Estado, um fenômeno objetivo
que foi reforçado por uma impressionante ofensiva no terreno ideológico que
‘satanizou’ o Estado ao passo que as virtudes dos mercados eram exaltadas,
(...) potentes definições culturais solidamente arraigadas na população que
associam o estatal com o mau e o ineficiente e os mercados com o bom e o
eficiente;
c) A criação de um ‘senso comum’ neoliberal, de uma nova sensibilidade e de
uma nova mentalidade que penetraram muito profundamente no chão das
crenças populares;
d) Finalmente, o neoliberalismo colheu uma importante vitória no terreno da
cultura e da ideologia ao convencer amplíssimos setores das sociedades
capitalistas – e a quase totalidade de suas elites políticas – de que não existe
outra alternativa (pp. 9-11).
Gramsci enfatiza a existência de uma relação orgânica e recíproca estabelecida entre o
estrutural e o superestrutural, que adquire características específicas em cada formação
histórica. Trata-se da relação entre o econômico-social e o ético-político ou forças materiais e
ideologias que compõe um determinado “bloco-histórico”.
O conceito de “bloco-histórico” em Gramsci (2000b) expressa a organicidade que
imprimem as relações de produção, sociais e de poder em uma determinada formação social e
histórica, enquanto “unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade
dos contrários e dos distintos” (CC.V.3.C.13, p.26), e permite a visualização, no conjunto das
relações sociais de força, do movimento histórico que insere uma determinada formação
histórica.
Gramsci indica como elementos fundamentais da dinâmica de conservação ou
transformação de um “bloco histórico”, isto é, da organicidade entre a estrutura e a
superestrutura de uma determinada formação histórico-social, o “Estado”, a “sociedade civil”
36
e o “intelectual”,
17
enquanto mecanismos de direção intelectual e moral, implicados nas
formas e nos níveis como se dão as correlações de forças sociais. E que ao analisar o quadro
de um determinado bloco histórico ou as forças sociais
18
que atuam em uma determinada
formação histórico-social, é necessário distinguir os movimentos orgânicos (relativamente
permanentes) dos movimentos de conjuntura (ocasionais, imediatos, quase acidentais). Ele
aponta que:
O erro em que se incorre freqüentemente nas análises histórico-políticas
consiste em não saber encontrar a justa relação entre o que é orgânico e o
que é ocasional: chega-se assim ou a expor como imediatamente atuantes
causas que, ao contrário, atuam mediatamente, ou a afirmar que as causas
imediatas são as únicas causas eficientes. Num caso, tem-se excesso de
“economicismo” ou de doutrinarismo pedante; no outro, excesso de
“ideologismo”. Num caso, superestimam-se as causas mecânicas; no outro,
exalta-se o elemento voluntarista e individual (Gramsci, 2000b, p.37).
Essa distinção deve ser feita independentemente da situação em que se encontra tal
formação histórico-social. Em suas palavras: “A distinção entre ‘movimentos’ e fatos
orgânicos e movimentos e fatos de ‘conjuntura’ ou ocasionais deve ser aplicada a todos os
tipos de situação”, nos momentos de crise, de prosperidade e de estagnação das forças
produtivas (Idem, p.37). E que ainda é necessário identificar os diversos momentos ou graus
na relação social de forças: as forças de produção, as forças políticas e as forças militares.
17
As expressões Estado, sociedade civil e intelectual estão entre aspas porque o autor discorre seu pensamento e
sua análise sobre o Estado moderno introduzindo estes elementos sob uma nova ótica, que será colocada mais
adiante.
18
Ao analisar as relações de forças que compõem um determinado “bloco social”, e ele o faz analisando
concretamente alguns contextos históricos como a Revolução Francesa, o Renascimento, o Ressurgimento e o
fascismo italiano, Gramsci expõe a dinâmica que insere as relações de poder ou relações de hegemonia,
explicitando os mecanismos de dominação e de direção intelectual e moral que uma classe social utiliza sobre
toda a sociedade e enfatiza a função do “intelectual” neste processo como elemento fundamental para se obter e
conservar a “hegemonia”.
37
As forças de produção estão diretamente relacionadas à estrutura objetiva e permitem
identificar as condições necessárias para uma transformação social, tomando como base o
“grau de desenvolvimento das forças materiais de produção”. As forças políticas referem-se
ao “grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários
grupos sociais”, e correspondem aos momentos da consciência política coletiva. Nestes
momentos de consciência política coletiva o autor identifica três estágios:
O primeiro mais elementar é o econômico-corporativo; (...) sente-se a
unidade homogênea do grupo profissional e o dever de organizá-la, mas não
ainda a unidade do grupo social mais amplo. (....) segundo momento é aquele
em que se atinge a consciência da solidariedade de interesses entre todos os
membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econômico. Já se
põe neste momento a questão do Estado, mas apenas na obtenção de uma
igualdade político-jurídica com os grupos dominantes, já que se reivindica o
direito de participar da legislação e da administração e mesmo de modificá-
las, de reformá-las, mas nos quadros fundamentais existentes. Um terceiro
momento é aquele em que se adquire a consciência de que os próprios
interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o
círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem
tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais
estritamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura para a
esfera das superestruturas complexas (Gramsci, 2000b, pp.40-41).
O terceiro momento fundamental para analisar as relações de forças de uma
determinada formação histórica, apontado pelo autor, refere-se à relação das forças militares.
Gramsci distingue dois graus nesta relação de forças: o militar, no sentido técnico-militar, das
capacidades tecnológicas bélicas e organizativas, e o político-militar, no sentido da
articulação política das forças militares e policiais com o Estado.
19
19
Gramsci apresenta como um “exemplo típico” para identificar este grau das forças militares, o “político-
militar”, a “opressão militar de um Estado sobre uma nação que procura alcançar sua independência estatal”, as
forças militares atuam coercitivamente para defender o projeto societário garantido pelo Estado (Gramsci,
2000b, p.43).
38
Outra questão que o pensador coloca como fundamental na análise das forças que
atuam em uma determinada formação social (em um determinado período histórico) e na
definição da relação que se estabelece entre essas forças (de produção, políticas e militares) “é
a de ver se as crises históricas fundamentais são determinadas imediatamente pelas crises
econômicas” (Gramsci, 2000b, p.44).
Tal questão, conforme o próprio pensador italiano coloca, não é exatamente uma outra
questão, mas uma forma de compreender a dinâmica das relações de forças em um
determinado bloco histórico sob outro encaminhamento, já que a questão econômica integra
os diversos momentos das relações de forças. Nesta perspectiva Gramsci exclui a
possibilidade de que as crises econômicas, por si mesmas, produzam “eventos fundamentais.
Segundo ele:
(as crises econômicas) podem apenas criar um terreno mais favorável à
difusão de determinados modos de pensar, de pôr e de resolver as questões
que envolvem todo o curso subseqüente da vida estatal. (...) A questão
particular do mal-estar ou do bem-estar econômicos como causa de novas
realidades históricas é um aspecto parcial da questão das relações de força
em seus vários graus (Gramsci, 2000b, p.44-45).
Gramsci observa que, historicamente, situações de bem-estar ou mal-estar econômicos
podem “produzir novidades”, mas não a “ruptura do equilíbrio entre as forças”. Não se trata
de uma relação de causa mecânica e imediata. As crises econômicas “são a manifestação
concreta das flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, em cujo
terreno verifica-se a transformação destas relações em relações políticas de força, para
culminar na relação militar decisiva” (Idem, p.45; grifo nosso).
E continua:
Se não se verifica este processo de desenvolvimento de um momento a outro
– e trata-se essencialmente de um processo que tem como atores os homens e
a vontade e capacidade dos homens -, a situação se mantém inoperante e
podem ocorrer desfechos contraditórios: a velha sociedade resiste e garante
para si um período de ‘tomada de fôlego’, exterminando fisicamente a elite
39
adversária e aterrorizando as massas de reserva; ou, então, verifica-se a
destruição recíproca das forças em conflito com a instauração da paz dos
cemitérios, talvez sob a vigilância de um sentinela estrangeiro (Gramsci,
2000b, p.45).
Percebe-se nas colocações de Gramsci (2000b) a relação que ele estabelece entre a
análise concreta das relações de forças e o processo de “ruptura do equilíbrio” de uma
formação histórica e social. Para ele, tais análises:
...só adquirem um significado se servem para justificar uma atividade
prática, uma iniciativa da vontade, (pois) elas mostram quais são os pontos
de menos resistência, nos quais a força da vontade pode ser aplicada de
modo mais frutífero(...). O elemento decisivo de cada situação é a força
permanentemente organizada e há muito tempo preparada, que se pode fazer
avançar quando se julga que uma situação é favorável (e só é favorável na
medida em que esta força exista e seja dotada de ardor combativo). Por isso,
a tarefa essencial consiste em dedicar-se de modo sistemático e paciente
a formar esta força, desenvolvê-la, torná-la cada vez mais homogênea,
compacta e consciente de si (p.46; grifos nosso).
Calcado na “filosofia da práxis” e no ideal da “consciência ético-política” que visa ao
universal, à totalidade, Gramsci compreende que os indivíduos são condicionados às
estruturas existentes, mas que também podem dissolvê-las e gerar novas estruturas, desde
que organizados e com um grau elevado de consciência ético-política. Isto é: “homens com
vontade e capacidade de construir – de modo sistemático e paciente – uma força
permanentemente organizada e preparada para avançar em situações favoráveis” (Idem,
pp.45-46).
Nessa perspectiva analítica torna-se fundamental analisar a dinâmica das relações de
hegemonia no contexto da mundialização do capital e dos imperativos dos princípios
neoliberais e as implicações na América Latina.
40
1.1.2 Os reflexos da mundialização do capital na América Latina
O processo de “mundialização do capital” nos países da América Latina vai se dar
associado à crise da dívida externa dos anos 1980, resultando em um modelo neoliberal de
ajuste estrutural que consiste em um conjunto de regras centradas na desregulamentação dos
mercados, na abertura comercial e financeira, na privatização do setor público e na redução do
Estado, definidos pelo FMI, Banco Mundial e o governo norte-americano, chamado Consenso
de Washington.
20
Esse conjunto de medidas para a estabilização econômica dos países devedores,
condicionado aos empréstimos adquiridos através do FMI - “empréstimos para ajustes
estruturais”- vai configurar uma especificidade dos países latino-americanos no processo de
mundialização do capital.
21
O ajuste estrutural apresenta duas fases distintas: estabilização
econômica (implicando desvalorização da moeda, liberação de preços e austeridade
orçamentária) e reformas estruturais mais fundamentais e “ditas necessárias” (Chossudovsky,
1999, p.47).
A “crise da dívida” resulta de um processo encadeado de pedidos de moratórias nos
anos finais da década de 1970, que em princípio era visto como “fruto de corrupção” e
incompetência desses governos. Com a crise do México em 1982 identificou-se que a crise
“era generalizada e particularmente dramática na América Latina e África” (Leher, 1998,
p.131), mas que também poderia resultar numa sucessão de quebra de bancos, “exigindo
20
Em 1989, um grupo de economistas – do International Institute for Economy – reuniu-se em Washington para
discutir e buscar soluções para a crise econômica da América Latina relacionada com a estagnação, inflação e
dívida externa. Um conjunto de propostas de políticas e reformas foi elaborado e denominado de “Consenso de
Washington”. Esse conjunto de propostas para os países da América Latina foi utilizado pelo FMI e pelo Banco
Mundial, como condição para a renegociação da dívida externa.
21
Outros tipos de empréstimos foram implementados nos países dependentes, tais como: Enhanced Structural
Adjustment Facility (ESAF) – empréstimo de reforço para ajuste estrutural (ERAE) e Systemic Transformation
Facility (STF) – crédito para transformação de sistema (CTS). Pelo Banco Mundial existem os empréstimos de
ajuste estrutural (EAE) e de ajuste setorial (EAS).
41
intervenções no mercado financeiro, quando não (como no caso Chileno) a estatização
bancária” (Soares, 2001, p.30).
Explica Leher (1998) que:
Na década de 1970, os bancos multilaterais, em busca de maiores lucros para
o capital excedente, emprestaram vultuosos recursos aos países latino-
americanos a taxas inicialmente fixa, mas logo redefinidas em taxas de juros
flutuantes (...). Quando a taxa de juros aumentou nos anos 1980, as contas
dos países tomadores se deterioraram fortemente; os bancos, preocupados
com a fragilidade econômica demonstrada, reduziram drasticamente os seus
fluxos para a América Latina, até o ponto de se tornarem negativos no
período 1982-1984, impulsionando a Crise. Os países latino-americanos
tiveram que recorrer aos fundos privados (...) por não disporem de fontes
alternativas de recursos (p.129).
A “crise da dívida” gerou uma instabilidade no mercado internacional de capital.
Nesse contexto, o FMI e o Banco Mundial vão exercer um papel fundamental na
administração da crise, impondo “condicionalidades ao reescalonamento das dívidas,
‘ajustando’ os países em desenvolvimento às suas orientações político-econômicas e, por
outro lado, assumindo a função de ‘coordenação’ das ações das instituições financeiras
internacionais” (Leher, 1998, p.128). No entanto, Leher frisa bem que a função dessas
instituições de Bretton Woods de administrar “crise da dívida” é “em nome da estabilidade do
mercado internacional e não apenas para ‘salvar’ os países em desenvolvimento” (Idem), o
que vai determinar a liderança do Banco Mundial na difusão da ideologia neoliberal, já
recomendada no Consenso de Washington (pacote de estabilização econômica).
O FMI e o Banco Mundial convencidos de que os mecanismos do “livre mercado”
iriam solucionar grande parte dos problemas enfrentados pelos países endividados (“inflação,
desemprego, subinvestimentos, burocracias públicas ineficientes, etc.”) exigem: “reduzir os
gastos públicos (com ênfase na área social), colocar um fim nas restrições comerciais,
remover subsídios e criar mecanismos legais e financeiros para a economia de mercado livre”
(Leher, 1998, p.135).
42
Na concepção de Chossudovsky (1999):
O pacote de estabilização econômica destrói a possibilidade de um ‘processo
de desenvolvimento econômico nacional endógeno’ controlado por
estrategistas políticos nacionais. As reformas do FMI - Banco Mundial
desmantelam brutalmente os setores sociais dos países em desenvolvimento,
anulando os esforços e as lutas do período pós-colonial e revertendo com
uma ‘canetada’ o progresso já conseguido. (....) As medidas de austeridade
levam à desintegração do Estado, remodela-se a economia nacional, a
produção para o mercado doméstico é destruída devido ao achatamento dos
salários reais e redireciona-se a produção nacional para o mercado mundial.
Essas medidas implicam muito mais que a gradual eliminação das indústrias
de substituição de importações: elas destroem todo o tecido da economia
doméstica (p.60).
Desde o fim dos anos 1980, o Banco Mundial monitora de perto a estrutura das
despesas públicas dos países devedores por meio da chamada Revisão dos Gastos Públicos
(RGP), com a finalidade de reduzir a pobreza de modo eficaz e eficiente em matéria de custos
(Idem, p.51). A meta de reduzir a pobreza passa a ser uma condicionalidade dos acordos de
empréstimos pelo Banco Mundial. Esses empréstimos - Fundo Social de Emergência - são
subjacentes às orientações de ajuste estrutural do FMI, que implica, como foi visto, em cortes
nos orçamentos do setor social e o redirecionamento das despesas em “favor dos pobres”.
Conforme sintetiza Chossudovsky (1999): “O Fundo Social de Emergência (FSE),
estabelecido segundo o modelo Bolívia-Gana, oferece supostamente um mecanismo flexível
para ‘administrar a pobreza’, enquanto, ao mesmo tempo, desmantela as finanças públicas do
Estado” (p.58).
Os países devedores forçados a acordar com as condicionalidades dos “empréstimos
para ajustamento estrutural” continuaram a pagar juros elevados e tornaram-se extremamente
dependentes dos empréstimos e das obrigações impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial.
Conforme explica Leher (1998), a condição de dependência se dá,
43
...não tanto pela importância de seus recursos (...) mas, sobretudo, porque o
aval dessas instituições é condição necessária para a negociação com os
investidores privados. A condicionalidade que antes se restringia aos
indicadores macroeconômicos, como o balanço de pagamentos, é ampliada
com a exigência do ‘ajuste estrutural’ (Leher, 1998, p.136; grifos nosso).
Assim, os países devedores da América Latina vão enfrentar o processo de
mundialização do capital “reféns” das condições impostas pelo FMI e Banco Mundial, ditadas
com base nas regras definidas no Consenso de Washington. As implicações do Consenso
estão imbricadas nos efeitos da mundialização nos países dependentes.
Analisando os efeitos das novas determinações do processo de acumulação do capital
globalizado nos países da América Latina, Carcanholo (2005) coloca que a forma associada à
condição de dependência do capitalismo central para elevar a produção de valor é a
superexploração da força de trabalho. Tal forma implica na elevação da taxa de mais-valia
por arrocho salarial e/ou extensão da jornada de trabalho, associado ao aumento da
intensidade do trabalho. Como conseqüência, tem-se uma regressão na distribuição da renda e
da riqueza e o aprofundamento das mazelas sociais. Conforme observa o autor: “nas
economias subdesenvolvidas, os ganhos de produtividade foram obtidos principalmente
através do aumento nas taxas de desemprego, da jornada de trabalho e da precarização dos
trabalhadores” (p.69).
No contexto de hipertrofia do capital financeiro, isto é, em que o capital financeiro é
maior que a taxa de lucro do capital produtivo, há o incentivo de os capitais individuais se
transferirem e operarem segundo a “lógica do capital fictício”. Com isso, expõe Carcanholo
(2005), “deprime ainda mais a taxa de lucro do capital produtivo, uma vez que se tem menor
produção de excedente, definindo um círculo vicioso de acumulação de capital travada”
(p.71).
44
Nos poucos períodos em que o capital fictício foi funcional à acumulação do
capital, acelerando sua rotação e financiando investimentos produtivos, as
economias apresentaram um leve crescimento. Entretanto, durante a maior
parte do período, a região apresentou uma dinâmica de acumulação de
capital travada, de forma que a elevação da taxa de mais-valia por
intermédio da superexploração da força de trabalho não se transformou em
maior ritmo de acumulação de capital, porque a apropriação financeira pelo
capital fictício reduziu as taxas de lucro do capital produtivo, principal
incentivo para a acumulação de capital (Carcanholo, 2005, p.72).
Nessa perspectiva, conclui o autor que “desenvolvimento capitalista associado” e
neoliberalismo são termos distintos para a mesma proposta.
22
A combinação entre “superexploração da força de trabalho” e “acumulação de capital
travada” aprofunda, ainda mais, as seqüelas advindas da política de associação com o centro
capitalista: superexploração (com arrocho salarial, aumento nas taxas de desemprego, da
jornada de trabalho e da precarização dos trabalhadores), concentração de renda e riqueza,
problemas sociais e violência.
O impacto social da desvalorização da moeda sob responsabilidade do FMI é
brutal e imediato: os preços domésticos de artigos de primeira necessidade,
medicamentos essenciais, combustível e serviços públicos aumentam da
noite para o dia. Enquanto a desvalorização da moeda deflagra
invariavelmente a inflação e a ‘dolarização’ dos preços domésticos, o FMI
obriga o governo (como parte do pacote econômico) a adotar o chamado
‘programa antiinflacionário’. Este tem pouco que ver com as causas reais da
inflação (isto é, da desvalorização da moeda). Depende da ‘contração da
demanda’, exigindo a demissão de servidores públicos, drásticos cortes nos
programas sociais e a desindexação dos salários (Chossudovsky, 1999, p.48).
22
A expressão “desenvolvimento capitalista associado”, segundo o autor, está inserida na abordagem da
interdependência de F.H.Cardoso, quando defende a possibilidade de um desenvolvimento capitalista periférico,
associado aos governos da social-democracia que amenizem os efeitos da dependência, gerando políticas sociais
compensatórias, e propiciando a elevação do emprego nas fases de crescimento do ciclo mundial. Nessa
abordagem, “os inimigos do desenvolvimento periférico seriam as forças internas que impedem a economia
periférica de aproveitar as oportunidades de associação com o ciclo econômico do centro sistêmico, a saber, o
populismo e o corporativismo” (p.73). Para Carcanholo (2005), as características das economias periféricas
possuem um caráter estrutural, determinado pela própria condição de dependência, que não são passíveis de
superação pelo “mero manejo ‘adequado’ do instrumental de política econômica”. Para o autor, a condição de
dependência relaciona-se à subordinação externa, mas é permeada por “arranjos social, político e ideológico
no âmbito interior” (pp.73-74).
45
Nessa conjuntura, coloca Chossudovsky (1999): “A pobreza global é um item
introduzido no rol da oferta; o sistema econômico global alimenta-se da mão-de-obra
barata” (p.65; grifo nosso).
Com base na concepção de Chesnais (1996), de que as operações com finalidades
lucrativas no atual contexto do mercado internacional são seletivas, pode-se concluir que a
superexploração da força de trabalho está relacionada à manutenção de um mercado atrativo
ao investimento externo, para continuar fazendo parte das “relações seletivas”. Relembrando
a discussão do autor:
Não é todo o planeta que interessa ao capital (....), graças ao seu
fortalecimento (capital), e às políticas de liberalização que ganhou de
presente em 1979-1981 e cuja imposição foi depois continuamente ampliada,
o capital recuperou a possibilidade de voltar a escolher, em total liberdade
quais os países e camadas sociais que têm interesse para ele (p.17-18; grifo
nosso).
Soares (2001) coloca que embora as políticas de “ajuste estrutural” na América Latina
tenham sido implementadas em intensidades e ritmos diferenciados em cada país, é
importante identificar que para os países latino-americanos seus efeitos são agravados pelo
“peso do passado”, ou melhor, pela “heterogeneidade estrutural”.
23
A autora vai aplicar esse conceito para indicar que existem traços dominantes na
formação histórica das sociedades latino-americanas contemporâneas, em que coexistem
estruturas de produção, das relações sociais e institucionais diferenciadas. No âmbito da
estrutura produtiva coexistem diferentes processos técnicos, com produtividade física do
trabalho, escala operacional dos estabelecimentos e a divisão, especialização e hierarquização
de funções produtivas algumas bem avançadas e outras ainda primárias técnica e
23
Trata-se de um conceito desenvolvido por Aníbal Pinto de Santa Cruz, que para Oliveira (2003) é um
“cepalino tardio”, que contribui com o pensamento cepalino ao “acentuar a heterogeneidade estrutural como
marca específica do subdesenvolvimento” (p.150).
46
tecnologicamente. Nas relações sociais coexistem modalidades que estabelecem diferenças
de relações de trabalhos, alguns com vínculo trabalhista fundados em procedimentos jurídicos
claros e outros setores com trabalhos precários. No âmbito político, verifica-se,
institucionalmente, a consagração e a garantia da manutenção dessas diferentes modalidades.
Tal quadro nos remete a análise de Oliveira (2003) em relação às especificidades das
condições brasileiras neste contexto, que o autor as denomina de “ornitorrinco”.
24
Nas
palavras do próprio autor:
Como é o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e
população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário,
um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial
completo, avançando, tatibitate, pela terceira Revolução, a molecular-digital
ou informática. Uma estrutura de serviços muito diversificada numa ponta,
quando ligada aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente
perdulários que sofisticados; noutra, extremamente primitiva, ligada
exatamente ao consumo de estratos pobres. Um sistema financeiro ainda
atrofiado, mas que, justamente pela financeirização e elevação da dívida
interna, acapara uma alta parte do PIB (...). Em termos da PEA ocupada,
fraca e declinante participação da PEA rural, força de trabalho industrial que
chegou ao auge na década de 1970, mas decrescente também, e explosão
continuada do emprego nos serviços (pp.132-133).
Cabe um parêntese para esclarecer que, no seio desse debate, está o processo histórico
de modernização do Brasil baseado na teoria do subdesenvolvimento ou “modernização
conservadora”. Segundo Oliveira (2003), a influência da visão evolucionista marxista,
predominante na Terceira Internacional, - na qual se considerava que os países da América
Latina seriam uma “sociedade semicolonial e semifeudal, carente assim de uma revolução
democrático-burguesa ou de libertação nacional” (Coutinho, 2006, p.142) -, levou por muito
tempo à condução de estratégias políticas equivocadas ao considerar tal teoria “’reformista’,
aliada do imperialismo norte-americano” e que truncava a evolução dessas sociedades.
24
Em relação ao conceito de “heterogeneidade estrutural” de Aníbal Pinto, Oliveira (2003) coloca que o
ornitorrinco pode ser “uma exacerbação da heterogeneidade estrutural” (p.150).
47
Na concepção de Oliveira (2003), os setores atrasados não são impeditivos à
modernização, mas fazem parte do rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho;
a agricultura atrasada financia a agricultura moderna e a indústria, ajudando a baixar o custo
da reprodução da força de trabalho. Assim como o “exército de reserva” nas cidades, os
marginalizados, os ocupados em atividades informais não são apenas consumidores de
excedentes ou lúmpen, fazem “parte também dos expedientes de rebaixamento do custo de
reprodução da força de trabalho urbano” (p.130). O “conjunto de imbricações entre
agricultura de subsistência, sistema bancário, financiamento da acumulação industrial e
barateamento da reprodução da força de trabalho nas cidades constituía o fulcro do processo
de expansão capitalista” (Idem).
Na superação desse tipo de enfoque evolucionista de desenvolvimento, o autor cita as
interpretações gerais dos marxistas Carlos Nelson Coutinho e Luis Jorge Werneck Vianna,
que vêem o subdesenvolvimento como um caso de “revolução passiva”.
Na concepção de Coutinho (2006), o Brasil, e podem-se incluir nessa análise outros
países latino-americanos, “se modernizou ‘pelo alto’, prussianamente, passivamente, gerando
com isso formas extremamente perversas de desigualdade social, tremendos déficits de
cidadania” (p.148). No entanto, continua o autor: “mas o fato é que, malgrado isso, nosso país
se modernizou, tornou-se o que Gramsci chamaria de uma ‘sociedade ocidental’” (idem).
Nessa perspectiva, para Coutinho, os últimos quadros políticos brasileiros, “dos governos de
um ex-intelectual de esquerda e de um ex-líder sindical”, impõem novas reflexões e desafios
teóricos para dar conta das, cada vez mais sofisticadas, formas de dominação burguesa
(p.148).
48
Retomando a análise de Oliveira (2003), a teoria do subdesenvolvimento do passado
deve ser compreendida:
Como singularidade e não elo na cadeia do desenvolvimento, e pela
‘consciência’, o subdesenvolvimento não era, exatamente, uma evolução
truncada, mas uma produção da dependência pela conjunção de lugar na
divisão internacional do trabalho capitalista e articulação dos interesses
internos. Por isso mesmo, havia uma abertura a partir da luta interna das
classes, articulada com uma mudança na decisão internacional do trabalho
capitalista ... (p.127).
No entanto, observa Oliveira (2003):
Avassalada pela Terceira Revolução Industrial (....), em combinação com o
movimento da mundialização do capital, a produtividade do trabalho dá um
salto mortal em direção à plenitude do trabalho abstrato. Em sua dupla
constituição, as formas concretas e a ‘essência’ abstrata, o consumo das
forças de trabalho vivas encontrava obstáculos, a porosidade entre o tempo
de trabalho total e o tempo de trabalho da produção. Todo o crescimento da
produtividade do trabalho é a luta do capital para encurtar a distância entre
essas duas grandezas. Teoricamente, trata-se de transformar todo o tempo de
trabalho em trabalho não-pago; parece coisa de feitiçaria, e é o fetiche em
sua máxima expressão. Aqui fundem-se mais-valia absoluta e relativa”
(p.135).
Oliveira (2003) coloca que o efeito da revolução molecular como forma técnica
principal da acumulação de capital e o aumento da produtividade tem sido devastador na
periferia. Houve a expansão do trabalho “informal” e o estancamento da formalização das
relações salariais, a partir da década de 1980, num processo de desconstrução da relação
salarial ou “desfiliação”, conforme denominou Castel (2003). Aproveita-se a enorme reserva
criada pela indústria para o trabalho “informal”, sem precisar “desfazer drasticamente as
formas concreto-abstratas do trabalho, senão em reduzidos nichos fordistas” (Oliveira, 2003,
p.142), realizando a extração da mais-valia sem nenhuma resistência. “As determinações mais
evidentes dessa contradição residem na combinação do estatuto de rebaixamento da força de
trabalho com dependência externa” (Idem, p.143). E, em conseqüência da reestruturação
produtiva e do “trabalho abstrato-virtual”, as forças de trabalho perdem ‘força’ social e
49
política que, “nas específicas condições brasileiras, tal perda tem um enorme significado: não
está à vista a ruptura com a longa ‘via passiva’ brasileira, mas já não é mais o
subdesenvolvimento” (Oliveira, 2003, p.146).
Para Oliveira (2003):
O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como
subdesenvolvido e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial
propiciava; não há possibilidade de avançar, no sentido da acumulação
digital-molecular: as bases internas de acumulação são insuficientes, estão
aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as
‘acumulações primitivas’, tais como as privatizações propiciaram: mas agora
com o domínio do capital financeiro, elas são apenas transferências de
patrimônio, não são, propriamente falando, ‘acumulação’. O ornitorrinco
está condenado a submeter tudo à voragem da financeirização, uma espécie
de ‘buraco negro’(...). O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada
e uma sociedade desigualitária sem remissão (....). (p.150).
Sem aprofundar as diferentes situações e propostas de ajuste nas especificidades dos
países latino-americanos, Soares (2001) destaca a situação social latino-americana nos anos
1980-1990, mostrando que o quadro de crise apresentado nos anos 1980 aprofundou-se nos
anos 1990 com as medidas de “ajuste estrutural” impostas pelo FMI. A autora aponta as
seguintes características marcadas durante os anos 1980:
A região retrocedeu em seu desenvolvimento ao transferir mão de obra de
atividades de maior produtividade para outras de produtividade e renda mais
baixa;
Acentuou-se a heterogeneidade produtiva e a desigualdade distributiva da
renda ao coexistirem setores modernos de cobertura mais limitada com a
expansão de atividades de baixa produtividade.
Durante a crise, os países que apresentaram maiores aumentos no
desemprego aberto viram reduzida a importância relativa do trabalho
assalariado industrial e público (com exceção do Brasil, pois o emprego
público desempenhou um importante papel nesse período), o que nem sempre
foi acompanhado por um aumento do emprego por conta própria de baixa
qualificação.
A baixa renda na atividade produtiva repartiu-se de forma mais desigual:
reduziram-se drasticamente os salários e a renda dos autoempregados não
qualificados, enquanto que os lucros dos empregadores se viram menos
afetados e em alguns casos aumentaram.
50
Distribuiu-se menos eqüitativamente uma renda per capita que foi menor na
maioria dos países da região.
Na maioria dos casos, os 5% mais ricos viram manter-se ou aumentar seus
ingressos, enquanto que 75% mais pobres viram-se diante da redução dos
seus ingressos, agudizando-se o contraste entre bem-estar e pobreza.
Aumentou o percentual da população em extrema pobreza revertendo-se a
tendência das três décadas do pós-guerra.
Atualmente os pobres urbanos na América Latina são mais numerosos que os
pobres rurais.
Uma proporção importante dos estratos médios urbanos é agora mais
vulnerável aos efeitos das novas políticas de estabilização ou ajuste (Soares,
2001, pp.31-32).
Em relação à educação, Soares (2001) coloca que apesar da “crise da dívida”, o nível
educacional da população continuou aumentando. No Brasil houve um aumento proporcional
do analfabetismo. No entanto, observa a autora, que mesmo com a expansão educativa, a
América Latina não conseguiu que uma importante fatia de sua população alcançasse “os
níveis educacionais requeridos por aquelas ocupações que geram níveis aceitáveis de
produtividade” (p.32). Os avanços em educação não foram acompanhados por ganhos
equivalentes com relação à renda, e a origem socioeconômica das pessoas continuou operando
como um importante fator de determinação de seus ganhos. Outras características são
observadas pela autora:
Os jovens que não estudam nem trabalham constituem atualmente uma
proporção maior que ao princípio da década. Esta situação, que afeta
principalmente àqueles pertencentes a famílias de baixa renda, é um
indicador de risco de marginalidade e de reprodução de famílias com elevada
vulnerabilidade econômica e social.
No mundo do trabalho, as mulheres se mantiveram em clara desvantagem
frente aos homens.
Ao agravamento verificado durante a crise da situação dos estratos de renda
mais baixa se acrescentou, como fenômeno digno de destaque, uma
deteriorização da qualidade de vida dos estratos médios urbanos (Soares,
2001, p.32).
51
No decorrer dos anos 1990, algumas dessas características apontadas pela autora
tiveram uma recuperação insignificante ou houve o aprofundamento de determinadas
situações. No campo do trabalho permanecem as altas taxas de desemprego. Segundo Soares
(2001):
Alguns avanços nesse campo, registrados em alguns países ao final da
década passada, não foram suficientes (...) para reduzir de forma
significativa o percentual de população em situação de pobreza, nem para
diminuir as desigualdades na distribuição de renda. A rigor, neste último
aspecto, no início da década de 1990 a maioria dos países latino-
americanos exibia níveis de concentração da renda familiar mais altos
dos que os já muito elevados índices do final dos anos setenta (p.33).
No âmbito educacional, observa-se um estancamento e até um retrocesso no nível
educacional dos jovens e “amplia-se um ‘desajuste’ crescente entre suas remunerações e seus
níveis educacionais”, e “os níveis educacionais da população rural continuam sendo baixos e
notavelmente inferiores aos urbanos” (Soares, 2001, p.33). A participação das mulheres na
atividade econômica continua a aumentar, por exigência de sobrevivência, implicando no
aumento da carga de trabalho doméstico, sem avanços nos serviços de apoio infantil e com a
persistente discriminação salarial. E a “conjunção desses fatores influiu negativamente na
evolução da pobreza na região, cuja incidência e severidade continuam aumentando na
segunda metade do último decênio” (Idem).
O que se verifica é que o modelo neoliberal de ajuste estrutural imposto nos anos
1980-90 aos países da América Latina, centrado na “liberdade econômica”, na inserção no
mercado internacional e na “promessa” de crescimento econômico, não surtiu o efeito
difundido pelo FMI e pelo Banco Mundial, e continua nos anos seguintes.
Seu triunfo, enfatizando a observação de Boron (2000), “foi mais ideológico e cultural
do que econômico” (p.9).
52
Seu êxito neste campo foi completo: não só impôs o seu programa, mas
também, inclusive mudou para proveito seu sentido das palavras. O
vocábulo ‘reforma’, por exemplo, que antes da era neoliberal tinha uma
conotação positiva e progressiva – e que, fiel a uma concepção iluminista,
remetia a transformações sociais e econômicas orientadas para uma
sociedade mais igualitária, democrática e humana – foi apropriado e
‘reconvertido’ pelos ideólogos do neoliberalismo num significante que alude
a processos e transformações sociais de claro sinal involutivo e
antidemocrático. As ‘reformas econômicas’ postas em prática nos anos
recentes na América Latina são, na realidade, ‘contra-reformas’ orientadas
para aumentar a desigualdade econômica e social e para esvaziar de todo
conteúdo as instituições democráticas (Boron, 2000, p.11; grifo nosso).
Já nos anos finais da década de 1990, os próprios organismos multilaterais também
observam o “fracasso” dessas políticas macroeconômicas. Este era o quadro da distribuição da
renda mundial em 1993 conforme relatório de 1995 do Banco Mundial (tabela 1), apontado
por Chossudovsky (1999, p.31):
Tabela 1
Distribuição da renda mundial (1993)
População
(em milhões)
meados de 1993
Divisão da
população
mundial
Renda
per capita
(em US$)
Renda total
(em US$bilhões)
Divisão da
renda
mundial
Total países
pobres (*)
4.689,
85,2
1.095
5.133,7
21,5
Total países
ricos
812,4
14,8
23.090
18.758,3
78,5
Total mundial
5.501,5
100,0
4.343,0
23.892,0
100,0
Fonte: Estimativa com base nos dados do Banco Mundial, World Development Report, Washington DC, 1995,
p.162-163.
(*) Excluídos os países de baixa renda da ex-União Soviética. O total dos países pobres é a soma do total do
Terceiro Mundo, do Leste Europeu e da ex-União Soviética.
Segundo o Relatório da ONU – The Inequality predicament (2000), os dados e os fatos
indicam a amplitude e a profundidade da pobreza, que vem se tornando cada dia mais
insustentável, indicando que as contradições do capital se agravam. “O abismo entre as
53
nações”
25
, em 40 anos (1960-1962 / 2000-2002), é revelado nos seguintes dados: nos 20
países mais pobres do mundo há um avanço de 25,94% na renda per capita média, em dólar
(valores 1995); e de 183,25% nos 20 países mais ricos (o triplo).
A China é situada neste relatório como uma exceção, pois reduziu a pobreza em
termos absoluto – de 876 milhões de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia, em 1981,
reduziu para 594 milhões em 2001. Tendo em vista ao gigantismo de sua população,
estatisticamente a China levou a uma redução proporcional do número de pobres no mundo
(de 40% para 21%).
26
Ainda segundo o relatório da ONU, na América Latina a pobreza ficou estagnada e a
desigualdade aumentou, deduzindo que “a equação crescimento econômico e redução da
pobreza não teve como resultado o alívio da desigualdade”. Aponta que no início dos anos 90,
os 10% mais ricos dos países detinham até 45% da renda nacional. No início deste milênio,
essa diferença subiu em oito nações, e o Brasil detém o recorde da região; os 10% mais
abastados têm renda equivalente a 32 vezes o que ganham os 40% mais pobres. E perdeu
espaço no mundo. Em 1980, a AL e Caribe tinham renda per capita média de 18% dos
rendimentos dos países mais ricos do mundo. Em 2001, os ganhos eram só de 12,8%.
27
25
Título utilizado em um dos quadros do relatório da ONU – A encruzilhada da desigualdade - que analisa sobre
o aumento da disparidade entre países e pessoas em contraposição ao crescimento da economia no mundo. A
síntese deste relatório foi veiculada no Jornal O Globo, de 26 de agosto de 2005, na coluna Economia, com o
título Mais rico e mais desigual: economia cresce no mundo, mas ONU diz que aumenta disparidade entre
países e pessoas”, na primeira parte, e com o título: “Acordos bilaterais podem prejudicar nações emergente
- ONU: abertura de mercado aumenta a distância entre países ricos e pobres: estudo diz que globalização deu
prioridade a interesses dos mais desenvolvidos”, na segunda parte. Essa mesma reportagem foi veiculada na
Folha de São Paulo, de 27 de agosto de 2005.
26
A China é apontada pelo Banco Mundial como um exemplo de crescimento econômico, no entanto não leva
em consideração que o país não implementou na sua totalidade a “cartilha neoliberal”. O crescimento dos “tigres
asiáticos” criou uma polêmica também em relação à teoria da dependência. Segundo Amin (2003): “Os países
do Leste da Ásia registraram sucesso precisamente e na medida em que submeteram efetivamente suas relações
exteriores à exigências de seu desenvolvimento interno, isto é, na medida em que se recusaram a ‘ajustar-se’ às
tendências dominantes em escala mundial” (p.299).
27
Cabe esclarecer que existem algumas críticas em relação à metodologia utilizada pelo Banco Mundial e pela
ONU no levantamento de dados sobre a pobreza. Para Pochmann (2004), a metodologia do Banco Mundial
54
Com base nesses dados, os organismos multilaterais concluem que são necessários
novos ajustes às orientações macroeconômicas para que se cumpra a “promessa” de
crescimento econômico. Instaura-se um movimento de “autocrítica” dos principais
organismos multilaterais e de “crítica” à governabilidade
28
dos países dependentes que não
lograram êxito, e novas estratégias são impulsionadas para o “desenvolvimento do milênio”.
Assim como nas origens da teoria do desenvolvimento, quando se concebia que o
subdesenvolvimento era um estágio para a modernidade e que a culpa pela situação
subdesenvolvida seria dos setores atrasados, o que se tenta difundir nos anos finais da década
de 1990 é que a condição de atraso é de responsabilidade única e exclusiva de ‘escolhas’
políticas erradas dos governantes dos países dependentes.
A exacerbação da pobreza e do individualismo, o aumento do desemprego e a
precarização do trabalho, a intensificação da polarização interna e externa nos países
capitalistas ameaçando a coesão social provocou, nos anos finais da década de 1990, a
necessidade de a classe dominante buscar saídas para abrandar as conseqüências das políticas
macroeconômicas do atual estágio do capitalismo globalizado. Outras “vias” ou novas
políticas de desenvolvimento deveriam ser construídas para manter as condições favoráveis à
reprodução do capital na virada para o novo milênio.
insere uma tendência a reduzir os índices de pobreza nos países que desenvolveram políticas do “livre mercado”.
Já Mestrum (2003) observa que nas pesquisas elaboradas tanto pela ONU como pelo Banco Mundial a pobreza é
apresentada como um problema multidimensional, isto é, relacionado “à educação, saúde, à autonomia e ao
poder social – como causa e como conseqüência da pobreza monetária”, o que traz algumas implicações. Sobre
esse problema trataremos mais adiante.
28
Uma questão que será tratada mais adiante.
55
1.2 Propostas para a crise do capitalismo e o processo de construção de novas ideologias
Chega-se ao final do século XX e as perspectivas de crescimento e riqueza frente às
fabulosas possibilidades produtivas e comerciais parecem, com o advento das novas bases
tecnológicas e do “mercado livre e global”, se afundar num abismo de desigualdades e
pobreza que foi se formando não só entre nações, mas também entre regiões. Na virada do
século o aprofundamento da pobreza rouba a cena e torna-se o principal foco de políticas
sociais das agências multilaterais.
Hoje em dia, tudo parece levar no seu seio a sua própria contradição. Vemos
que as máquinas, dotadas da propriedade maravilhosa de reduzir e tornar
mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome e o esgotamento do
trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertas se convertem, por artes
de um estranho malefício, em fontes de privações (Karl Marx).
29
Se os anos finais da década de 1980 foram marcados pelo amadurecimento e expansão
mundial do capital sob as bases da ideologia neoliberal, a década de 1990 revela que a
ideologia do livre mercado está em crise e o que se expande são as críticas (ou autocríticas) de
um modelo econômico que não cumpriu sua “promessa” de benefícios globais (Stiglitz,
2003). Nesse contexto, é difundida a idéia da necessidade de se construir novas alternativas
políticas de bases ideológicas diferenciadas para conter o aprofundamento da pobreza e das
desigualdades sociais resultantes das orientações de políticas macroeconômicas neoliberais.
Em 1995, realizou-se a “primeira cúpula mundial sobre o desenvolvimento social”, em
um encontro denominado “Cúpula Mundial de Copenhague”. Nesse encontro reuniram-se
vários chefes de Estado e representantes de agências multilaterais que, segundo documento
29
Karl Marx, “Discurso pronunciado na festa de aniversário do ‘People’s Paper’”, no dia 14 de abril de 1856;
jornal cartista que se publicava em Londres, entre 1852 e 1858. In: Marx e Engels, Textos, vol.3, São
Paulo:SP:Edições Sociais, 1977 (pp.298-299).
56
base deste encontro, estavam ‘preocupados’ com as possíveis conseqüências do aumento da
pobreza mundial e decidiram discutir possibilidades de novas soluções para o
desenvolvimento dos países periféricos (In: Kliksberg, 2002a). Os alvos do programa de ação
determinados pelos países membros foram: a pobreza, o emprego e a integração social
(Mestrum, 2003, p.242).
Na visão de Kliksberg (2002a),
30
a pobreza acentuada e as altas polarizações sociais
prejudicam o desenvolvimento sustentável e produzem uma “perda de credibilidade nos
governos democráticos que solapam suas bases de governabilidade” (p.18). E é nessa
perspectiva que, segundo ele, retomou-se a discussão sobre desenvolvimento. Porém
pretende-se que seja sob outras matrizes que não as orientações macroeconômicas
“convencionais” que foram impulsionadas pelo FMI, uma vez que estas não concebem como
fatores determinantes para o desenvolvimento de uma sociedade: as políticas e as instituições.
Em suas palavras:
(...) la estabilidad financiera no es posible sin estabilidad política. Ella, a
su vez, está muy ligada a los grados de equidad y justicia social. (....). Es
necesario atacar, al mismo tiempo, los problemas económicos y financieros
y los sociales, y avanzar en las transformaciones institucionales (Kliksberg,
2000, p.27; grifo nosso).
30
Bernardo Kliksberg foi coordenador do Instituto Interamericano para o Desenvolvimento Social (INDES) do
BID e Diretor do Projeto da ONU para a América Latina de Modernização do Estado e Gerência Social. É
assessor de diversos organismos internacionais, entre eles a OIT, OEA e Unesco. Tendo em vista sua atuação
nos programas de várias agências multilaterais e sua produção intelectual na área de gerenciamento social e
especificamente relacionada à América Latina, pode-se deduzir que as idéias de Kliksberg têm uma forte
influência nos fundamentos das políticas sociais dessas agências. A obra vista como referência sobre o assunto é
KLIKSBERG, Bernardo & TOMASSINI, Luciano (Comp). Capital Social y cultura: claves estrategias para
el desarrollo. Washington:BID:Buenos Aires:FCE, 2000. Outras obras do autor: Repensando o Estado para o
Desenvolvimento Social: superando dogmas e convencionalismos. 2ª ed. São Paulo/SP:Cortez, 2002a (Coleção
Questões de Nossa Época: v.64); Desigualdade na América Latina: o debate adiado. 3ª ed. São
Paulo/SP:Cortez. Brasília/DF: UNESCO, 2002b; Falácias e Mitos do desenvolvimento social. 2ª ed. São
Paulo/SP:Cortez. Brasília/DF: UNESCO, 2003.
57
Na época desse encontro em Copenhague, o encontro da “primeira cúpula mundial
sobre o desenvolvimento social”, o tema pobreza já vinha fazendo parte da agenda dos G7 e
do Fórum Econômico Mundial em Davos. Na mesma ocasião o FMI substituiu a proposta
denominada de “Facilidade de Ajuste Estrutural” (FAE) que era oferecida aos países
dependentes nos anos finais de 1980 e início dos anos 1990 por uma outra chamada de
Facilidade para o Crescimento e Redução da Pobreza” (FCRP). Nesta, os países
interessados em tais empréstimos e “facilidades” oferecidas na proposta deveriam se
comprometer em desenvolver políticas de redução da dívida e apresentar um “Plano
Estratégico de Luta contra a Pobreza”. Nesse mesmo contexto, a ONU lançou, em 1997, uma
série de campanhas na luta contra a pobreza, inserida num programa que foi denominado de
Primeira Década das Nações Unidas para a eliminação da pobreza” (Mestrum, 2003,
pp.242-243).
Cabe observar, ainda, que a Unicef já tinha lançado nos anos 1980 “uma ofensiva
contra as conseqüências sociais negativas dos programas de ajuste estrutural” impulsionada
pelas organizações financeiras internacionais, denunciando as restrições impostas aos países
pobres que acarretaram na redução das despesas sociais, e pregando a idéia de um “ajuste com
feições humanas” (Idem, pp.242-243).
Kliksberg (2002a) analisa e cita alguns trechos das palestras proferidas e registradas
no documento de base sobre o encontro em Copenhague (1995). Partes de suas citações
reproduzidas em seguida: Jaime Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, considerou que
“a distribuição dos benefícios do crescimento representa um dos maiores desafios para a
estabilidade do mundo, (pois) as injustiças sociais podem destruir os avanços econômicos e
políticos” (p.17); Robert Solow (Prêmio Nobel de Economia de 1987, criou o modelo
neoclássico de crescimento econômico com ênfase no progresso tecnológico, é do Instituto de
Tecnologia de Massachusetts-MIT) enfatizou que, “esperar compromissos da população com
58
as políticas de desenvolvimento ‘exige-se uma percepção de justiça de todos os grupos
sociais, no sentido de que cada um receba uma parte justa do progresso econômico’”
(Kliksberg, 2002a, p.18); Patrício Aylwin (ex-presidente do Chile): “Os pobres, em geral, não
são os responsáveis por sua situação. Muito deles são pessoas esforçadas, que conseguiriam
superar essa condição se contassem com um mínimo de apoio ou se as condições gerais do
país fossem melhoradas” (Idem, p.19); Frederico Mayor (UNESCO): “Enquanto se realizam
progressos no âmbito conceitual, sobretudo na definição do que deva ser o desenvolvimento
humano duradouro na prática, os objetivos econômicos, a curto prazo, continuaram
prevalecendo, seja qual fosse o preço social e ecológico dessa miopia” (Ibidem, p.20).
É possível identificar nos discursos dos participantes deste encontro que a
‘preocupação’ com a “distribuição dos benefícios do crescimento econômico” e com a difusão
da idéia da necessidade de se construir uma nova alternativa de desenvolvimento econômico
para os países “em desenvolvimento” expressa, de fundo, o receio pelos riscos da perda das
“bases de governabilidade” nesses países. Por isso, segundo a colocação de Gustave Speth
(Administrador do PNUD) neste mesmo encontro, “enfrentá-lo (o problema da desigualdade)
nas próximas décadas é algo crucial e inadiável” (Ibidem, pp.17-18).
É possível perceber também nesses discursos que prevalece uma visão de pobreza
subjetivada, isto é, o foco de discussão não está na pobreza das nações, mas nos indivíduos ou
grupos de indivíduos pobres. Trata-se de um tipo de abordagem conjuntural sobre a “nova”
pobreza que emerge no final do século XX e de desenvolvimento, que tende a ser mantida nas
orientações de políticas sociais dos principais organismos multilaterais.
59
Deve-se atentar para o fato de que a difusão da idéia de se buscar alternativas políticas
(por tanto também ideológicas)
31
de “distribuição dos benefícios do crescimento econômico”
e de conter as mazelas sociais advindas de orientações macroeconômicas de matriz
“convencional”
32
é difundida pelos principais organismos multilaterais no mesmo momento
em que se inicia uma onda de protestos contra as políticas de globalização, tendo se
expandido e se fortalecido mundialmente no decorrer dos anos.
Joseph E. Stiglitz (2003), que foi um alto funcionário do Banco Mundial nessa
ocasião
33
, analisa da seguinte forma esse quadro:
Esses problemas não são novos, mas a reação cada vez mais veemente no
mundo contra as políticas que impulsionam a globalização é uma mudança
significativa. Durante décadas, os brados das populações miseráveis da
África e dos países em desenvolvimento em outras partes do mundo foram
quase totalmente ignorados pelo Ocidente. Os indivíduos que trabalhavam
nas nações em desenvolvimento sabiam que algo estava errado quando viam
as crises financeiras tornando-se mais comuns e o número de pobres
aumentando cada vez mais. Mas eles não tinham como mudar as regras ou
influenciar as instituições financeiras internacionais que as elaboravam.
Aqueles que valorizavam os processos democráticos viram como a
‘condicionalidade’ – condições que as instituições financeiras internacionais
impõem em troca de sua ajuda – corroía a soberania nacional. Entretanto, até
surgirem os manifestantes, havia pouca esperança de mudanças e nenhum
meio para dar vazão às reclamações. (....) foram os sindicatos trabalhistas,
os estudantes, os ambientalistas, as donas de casa – cidadãos comuns -,
marchando nas ruas de Praga, Seattle, Washington e Gênova, que mostraram
a necessidade de uma reforma na pauta do mundo desenvolvido (pp.35-36).
31
Na concepção de Gramsci (1999): “é ideologia toda concepção particular dos grupos internos da classe que
se propõem ajudar a resolver problemas imediatos e restritos”. CC.V.1, CC.10, 1999.
32
No geral, o pensamento econômico neoliberal é chamado pelos intelectuais dos organismos multilaterais de
“ciência econômica convencional”.
33
Joseph E. Stiglitz foi Prêmio Nobel de Economia de 2001, trabalhou no Conselho de Consultores Econômicos
durante o governo Clinton e atuou no Banco Mundial, no período entre 1997-2000, como economista-chefe e
vice-presidente sênior, sob a Presidência de James D. Wolfensohn (1995-2005). No sumário de sua obra –
A
globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais (2003) – declara que essa
experiência profissional fez mudar “radicalmente sua opinião tanto a respeito da globalização quanto a respeito
de desenvolvimento”. Segundo o economista: “durante o tempo em que estive no Banco Mundial, pude ver com
meus próprios olhos o efeito devastador que a globalização pode ter sobre os países em desenvolvimento, em
especial sobre as populações pobres desses países” (p.10). Stiglitz tornou-se um crítico ferrenho, não da
globalização, mas do FMI. Para o economista, as estratégias econômicas ditadas pela equipe do FMI aos países
dependentes não consideram as especificidades histórico-sociais e culturais de cada país, forçando políticas
econômicas únicas, sem oportunizar que esses países se preparem para abrir os seus mercados e para impulsionar
as regras impostas.
60
Observa Stiglitz (2003) que essas manifestações e protestos contra as políticas e as
ações das instituições que representam a globalização não são recentes, mas “o que é novo é a
onda de protestos que está acontecendo nos países desenvolvidos” (p.29). Relembra o
“choque” que provocou as manifestações ocorridas durante a reunião da Organização Mundial
do Comércio (OMC) em Seattle, em 1999, e a morte de um manifestante na cidade de Gênova
em 2001, que, na sua concepção, “foi apenas o começo de muitas outras perdas que poderão
vir a ocorrer na guerra contra a globalização” (Idem, p.29).
As manifestações durante a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em
Seattle, em 1999, estão relacionadas à discussão sobre a introdução de uma nova cláusula nos
tratados comerciais – a “cláusula social”. Cabe abrir um parêntese para explicar melhor.
A Organização Mundial do Comércio foi criada em janeiro de 1995 (como um
processo de evolução do GATT - Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio -, que fora
constituído no pós-Segunda Guerra), com base no princípio de liberalização progressiva dos
mercados mundiais. Considerava-se que a abertura crescente dos mercados era
fundamentalmente benéfica ao desenvolvimento econômico. Este sentido geral não era
questionável, mas pensava-se que deveria cuidar para ser “graduado” conforme sensibilidades
políticas e comerciais e tamanho das economias envolvidas no processo de negociação no
comércio internacional (atualmente são 148 países membros).
Junto com o FMI e o Banco Mundial, os três organismos formam um sistema
internacional “regulador” da economia mundial. Outras funções exercidas pela OMC são:
administrar os acordos assinados, supervisionar políticas de comércio, fornecer assistência
técnica e solucionar as controvérsias comerciais surgidas entre países.
Desde a sua criação foram realizadas seis conferências: Cingapura, 1996; Genebra,
1998; Seattle, 1999 (Rodada do Milênio); Doha, 2001 (Rodada do Desenvolvimento);
Cancun, 2003; Hong Kong, 2005. A conferência em Seattle ficou marcada pela massiva
61
manifestação popular de insatisfação com o modelo de globalização econômica representado
e defendido pela OMC. A conferência foi considerada um fracasso. Os consecutivos protestos
contribuíram para que se formasse uma abordagem de reunião denominada de “reunião
ministerial” formada por apenas alguns países convidados a participar. Os consensos
alcançados nas reuniões são levados aos demais membros.
Na I Conferência da OMC, os países mais ricos liderados pelos EUA levantam pela
primeira vez (no âmbito da OMC) a necessidade de se elaborar umacláusula social”.
Argumentava-se, num tom de “resgate ético”, que era uma tentativa de abrandar os efeitos do
selvagerismo advindo da alta competitividade do sistema de “livre mercado”, impondo, na
forma de sanções e punições, o respeito a direitos e condições básicas do trabalhador que, de
outro modo, estariam entregues a uma incontrolável exploração. Assim, por meio da cláusula
social, inserir-se-ia em tratados comerciais a imposição de padrões trabalhistas em níveis
internacionais assegurando uma existência minimamente digna ao trabalhador. Para os EUA,
deveria ser criado um grupo de trabalho que examinasse os padrões trabalhistas fundamentais,
baseados nas cláusulas da Organização Internacional do Trabalho (OIT): liberdade de
organização sindical, direito de negociação coletiva, proibição do trabalho forçado, infantil e
da discriminação de gênero e raça no mercado de trabalho.
Durante as discussões sobre a “cláusula social” que tiveram a resistência dos países
mais pobres e das empresas transnacionais, ficou claro que os países mais ricos estavam
preocupados com a existência de oferta de trabalhadores com rendimentos mais baixos,
inclusive com o uso do trabalho infantil para baratear os custos da produção, pois tal
formação de trabalho causaria o desemprego dos trabalhadores menos qualificados dos países
ricos. A mão-de-obra barata era vista como uma vantagem dos países menos desenvolvidos na
competição dos mercados internacionais que deveria ser corrigida. Neste contexto, a
superexploração passa a ser uma ameaça de redução dos lucros.
62
Aos poucos, esse ponto de vista foi sendo dissolvido em quatro questões, ou em
“quatro nós” (Mineiro, 2006)
34
que não se consegue desatar: 1) a melhoria do acesso a
mercados para produtos agrícolas; 2) a questão dos apoios internos à produção agrícola; 3) as
definições referentes a produtos especiais e salvaguardas especiais em produtos agrícolas; 4)
questões relativas ao acesso ao mercado/rebaixamento de tarifas em produtos industriais. As
questões 1 e 2 estão relacionadas a União Européia resistindo a abrir ainda mais seus
mercados e aos EUA resistindo à redução de seus apoios internos, aos produtos agrícolas. A
questão 3 está relacionada a resistência e dúvidas dos países líderes do G 20 e G 33,
preocupados com os efeitos da liberalização sobre os pequenos agricultores. A questão 4 está
relacionada à resistência dos países dependentes às “barganhas” exigidas pelos países
hegemônicos para fazer concessões em agricultura (Grupo de NAMA 11, Non-agriculture
Market Access, acesso a mercados não-agrícolas), preocupados com a sobrevivência de seus
parques industriais.
Atualmente, questiona-se a existência da OMC, tendo em vista o “fracasso” do
principal objetivo de sua criação, a liberalização progressiva dos mercados mundiais e as
conseqüentes etapas: desenvolvimento econômico, redução da pobreza e da desigualdade.
Joseph E. Stiglitz é um exemplo emblemático de um “intelectual orgânico do
capital”
35
que percebe, nesse contexto de economia globalizada, a existência de uma tensão
em conseqüência da abertura dos mercados e das estratégias econômicas ditadas pelo FMI aos
países dependentes, objetivadas de forma “entrelaçada”, principalmente, com as atividades do
Banco Mundial. Com isso, conforme declara em sua obra, durante sua participação no Banco
Mundial (1997-2000), buscou mostrar aos seus “companheiros” os “malefícios” da
34
Adhemar Mineiro (economista do DIEESE), “Crise na OMC: uma pausa para reflexão”. Jornal dos
Economistas, setembro de 2006.
35
Fazendo uso da base de pensamento de Gramsci.
63
globalização, mais diretamente nos aspectos econômicos, com a idéia de liberalização de
mercado de capitais imposta pelo FMI aos países dependentes na forma de uma receita única,
com o consenso do próprio Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio.
Stiglitz (2003) se opõe ao tipo de gestão de William Clausen e de sua economista-
chefe Anne Krueger e ao “novo fervor ideológico” dos anos 1980 (p.40).
36
Segundo o
economista: “...Krueger via o governo como o problema. Os livres mercados eram a solução
dos problemas dos países em desenvolvimento” (Idem, p.40). E no interior do principal
agente formulador de políticas sociais, o Banco Mundial, retoma-se a preocupação com a
questão da pobreza nos países dependentes e difunde-se que se tenha prudência com as
medidas econômicas que insere um determinado modelo de crescimento econômico.
37
No contexto de hegemonia neoliberal dos anos 1980-90, a preocupação que os
principais organismos multilaterais têm com a pobreza está diretamente relacionada com a
“nova” pobreza que desponta nos anos finais do século XX, resultante de uma visão, segundo
os próprios organismos, “economicista e restrita” de políticas macroeconômicas
impulsionadas pelo FMI, que desencadeou o aumento do desemprego e a degradação da
qualidade dos empregos disponíveis, o aumento das desigualdades entre segmentos sociais,
países e regiões, efetivando o alargamento do “fosso entre os países ricos e pobres”
(Hobsbawm, 1977, pp.396; 413). A tensão que decorre do quadro de aumento da pobreza e de
altos níveis de desigualdade nesse final de século é relacionada à governabilidade. Na
concepção desses organismos tal quadro afeta duramente a “tão almejada governabilidade”
36
William Clausen ocupa a Presidência do Banco Mundial no período entre 1981-1985 e Anne Kueger assume a
Vice-Presidente de Economia e Pesquisa do Banco em 1982.
37
A preocupação com a pobreza enquanto elemento de tensão nas relações internacionais já fez parte da agenda
do Banco Mundial nas definições de políticas para os países dependentes, na gestão de Robert McNamara (1971-
1980). Sua gestão enfatizava a segurança internacional focada na pobreza, e pedia prudência em relação às
definições de políticas econômicas, pois a pobreza podia “infectar e erodir todo o tecido social”, conforme será
visto adiante.
64
das sociedades democráticas, colocando em risco a coesão social.
Nesse contexto de correlações de forças e de tensões, emergem críticas e
“autocríticas” ao modelo econômico predominante e surgem propostas alternativas do tipo
reformista para “combater” a pobreza mundial, particularmente a pobreza dos países
periféricos. Mas quais “críticas” foram feitas ao modelo econômico predominante e quais as
bases conceituais e estratégicas das propostas reformistas que surgem nesse contexto?
1.2.1 Crítica (ou autocrítica) à “teoria do derrame”: “a promessa não-cumprida de
benefícios globais”.
No fim do século da barbárie, o rei está nu”. Frase elaborada por Schwartz (2002)
ironizando o movimento de “autocrítica” dos intelectuais dos principais organismos
multilaterais sobre os “fracassos” de suas orientações de políticas macroeconômicas para os
países dependentes.
Diante de uma realidade que contradiz a promessa de crescimento econômico e
benefícios globais, intelectuais defensores do “livre mercado” criticam a forma ampliada de
implementação da estratégia de acumulação do capital e buscam concretizar novas propostas
de superação da crise do capital sob a égide do neoliberalismo. Após uma década de difusão
e de implementação da ideologia neoliberal, na “fé” pela “Liberdade Econômica”,
38
constatam que as orientações macroeconômicas “convencionais” não obtiveram os resultados
“prometidos”, pelo contrário, “a liberalização (dos mercados) não é, em geral, acompanhada
do crescimento prometido, mas de mais miséria ainda” (Stiglitz, 2003, p.44).
38
Fundação Heritage e Wall Street Journal: Índice de Liberdade Econômica.
65
Explica Hobsbawm (2003) que:
No fim do Breve Século XX, os países do mundo capitalista desenvolvido
se achavam, tomados como um todo, mais ricos e mais produtivos do que no
início da década de 1970, e a economia global da qual ainda formavam o
elemento central estava imensamente mais dinâmica.
Por outro lado, a situação em regiões particulares do globo era
consideravelmente menos cor-de-rosa. Na África, na Ásia ocidental e na
América Latina cessou o crescimento do PIB per capita. A maioria das
pessoas na verdade se tornou mais pobre na década de 1980, e a produção
caiu durante a maior parte dos anos da década nas duas primeiras regiões, e
por alguns anos na última (...). Ninguém duvidou seriamente de que, para
essas partes do mundo, a década de 1980 foi de severa depressão (...).
Quanto à pobreza e miséria, na década de 1980 muitos dos países mais ricos
e desenvolvidos se viram outra vez acostumando-se com a visão diária de
mendigos nas ruas, e mesmo com o espetáculo mais chocante de
desabrigados protegendo-se em vãos de portas e caixas de papelão, quando
não eram recolhidos pela polícia. (....) O reaparecimento de miseráveis sem
teto era parte do impressionante aumento da desigualdade social e
econômica na nova era (p.395).
O fosso entre as camadas mais pobres e ricas da população das nações mais pobres,
entre países ricos e pobres e entre regiões aumentou; a pobreza reaparece em segmentos
sociais dos países mais ricos e desenvolvidos, de forma mais intensificada a partir dos anos
1980. Foi sendo configurado um novo mapa-múndi econômico, onde se pode localizar “zonas
de pobreza”, seja em países centrais ou de periferia seja em regiões inteiras.
Diante desse quadro, os principais organismos multilaterais concluem que essa “nova”
pobreza deve ser ‘combatida’ e as orientações macroeconômicas para o desenvolvimento de
matrizes “ortodoxas” devem ser suplantadas e uma outra matriz de orientação econômica,
“mais humana”, deve ser difundida.
66
Uma boa síntese da lógica que insere as idéias de combate a essa “nova” pobreza,
segundo intelectuais dos principais organismos multilaterais, pode ser encontrada nas obras de
Bernardo Kliksberg
39
, de Stiglitz (2003) e Sachs (2005).
40
Kliksberg (2002a), enquanto especialista em gerenciamento social, observa que no
cenário mundial do final do século XX, constatam-se, de um lado, os enormes progressos
alcançados no campo do conhecimento “gerando modelos conceituais renovados para se
compreender os fenômenos”; avanços nos campos das telecomunicações, na microeletrônica e
na biotecnologia, nas ciências dos materiais (máquinas-ferramentas), na informática e na
robótica, entre outros, que estão “transformando as matrizes produtivas básicas” e criando
possibilidades de expansão e multiplicação rápida de produção de bens e serviços; a expansão
de “sistemas de base democráticas onde a população pode escolher seus representantes” e a
constituição de “formas novas e mais ativas de organização da sociedade civil”, que passa a
exigir uma participação mais ampla da população “nos esquemas de tomada de decisões”.
Por outro lado, constata-se também o “aumento acentuado do número de pobres”; “extensos
processos de aumento do desemprego e de degradação da qualidade dos empregos
disponíveis” (pp.11-13).
Buscando compreender tal contradição, o autor conclui que o atual quadro de aumento
da pobreza, do desemprego e da desigualdade é resultado das políticas macroeconômicas
predominantes desde os anos 70 e que tal fato indica que o pensamento econômico
convencional atravessa uma crise. Segundo o autor, há nesse movimento o questionamento
39
Obras indicadas anteriormente (ver nota 80).
40
Jeffrey Sachs é economista, diretor do Instituto da Terra da Universidade de Columbia e assessor especial do
secretário-geral da ONU Kofi Annan para as Metas de Desenvolvimento do Milênio. Em sua obra “O fim da
pobreza: como acabar com a miséria mundial nos próximos 20 anos”, Sachs relata uma vasta experiência de
campo, principalmente na África, e se auto-intitula um “clínico econômico generalista em dimensão planetária”.
Trata-se de “uma nova especialidade” sistematizada por ele, a qual estabelece uma junção das atividades
médicas – do diagnóstico ao tratamento e deste ao acompanhamento da doença - com a economia como uma
saída para a cura da doença pobreza.
67
em relação à visão de que se alcançando as metas das políticas macroeconômicas de “livre
mercado” e de equilíbrios econômicos e financeiros, “haverá progresso econômico e,
finalmente, este se ‘derramará’ para o conjunto da população e chegará aos setores mais
pobres” – “teoria do derrame” (Kliksberg, 2000a, p.21).
O “mecanismo do derrame” supunha que, com o tempo, os benefícios do crescimento
chegariam aos setores desfavorecidos e os tiraria da pobreza. Conforme colocação de Stiglitz
(2003), a “promessa” de benefícios globais não foi cumprida.
Kliksberg (2002a) aponta uma problemática que insere a “ciência econômica
convencional”, a de que “a desigualdade constitui um traço característico dos processos de
modernização e crescimento”, e que, em algumas de suas versões, “a desigualdade impulsiona
e favorece o crescimento econômico” e são funcionais para o desenvolvimento, logo
tenderiam a corrigir-se (p.17). Para o mais significativo preceptor do neoliberalismo, Hayek,
a desigualdade é um valor positivo e imprescindível.
Hobsbawm (2000) coloca que o pressuposto da ideologia neoliberal - de que o “livre
mercado” otimiza o crescimento e a riqueza no mundo - pode ser até possível, mas dizer que
este mecanismo leva à melhor distribuição da riqueza ele tem suas dúvidas. Para o autor, “o
argumento de que os recursos são distribuídos de uma maneira ótima pelo máximo
crescimento capitalista nunca foram convincentes. Mesmo Adam Smith acreditava que havia
coisas que o mercado não poderia ou não deveria regular” (p.79). Nesse sentido, ele concorda
que a ideologia neoliberal está em crise. Esse sistema, segundo o autor, entrou em colapso não
só por ter provocado um desequilíbrio na distribuição da riqueza, mas “sobretudo pela
inexistência de controles sobre as formas de investimentos e os fluxos de recursos
internacionais” (Idem, p.81). A partir de então se difunde a rejeição pelo “fundamentalismo
neoliberal”.
68
Em certos aspectos, ela (a rejeição) foi dramatizada não só, e não
especialmente, pela crise no Extremo Oriente, e sim pelo desastre russo. Os
capitalistas mais inteligentes começaram a perceber esse fato bem cedo.
Soros vem elaborando sua crítica do livre mercado desde o início de 1996,
antes que o crescimento desse lugar ao colapso em metade do mundo, e
levasse até mesmo a economia americana à beira do desastre (Hobsbawm,
2000, p.81).
Para George Soros, “economista e financista norte-americano que tanto lucrou no
mercado financeiro, agora um filantropo” (Schwartzman, 2004, p.126), o FMI, ao determinar
que os países “em desenvolvimento” abrissem seus mercados e ao provê-los de recursos para
resolver suas crises de curto prazo, “torna-se parte do problema, mais do que sua solução”
(Idem, p.127).
Já para Stiglitz (2003), esse modelo
41
nunca foi muito mais que uma simples crença,
um artigo de fé” (p.113). Segundo ele:
Embora seja verdade que reduções contínuas dos índices de pobreza não
podem ser alcançadas sem um robusto crescimento econômico, o inverso
não é verdadeiro: o crescimento econômico nem sempre beneficia todos.
Não é verdade que a ‘maré cheia levanta todos os barcos’. Às vezes, quando
a maré sobe muito rápido, principalmente quando acompanhada de uma
tempestade, os barcos mais fracos são arremessados contra a praia, partindo
em mil pedaços (p.114).
Essa mesma ‘descoberta’, de que o crescimento econômico pode ocorrer com
desemprego, exclusão e deteriorização do meio ambiente, foi feita pela ONU e está expressa
no documento “PNUD: Desenvolvimento Humano – 1996” (In: Kliksberg, 2002b, pp.22-23).
A crítica que Stiglitz faz ao modelo está na forma generalizada, rápida e
descontextualizada de aplicação nos países dependentes que fora impulsionado pelo FMI. As
políticas traçadas pelo FMI não consideraram as diferenças entre culturas e nem inseriram a
41
O economista o denomina de “economia de cascata”.
69
participação dos governos nas decisões das medidas ‘ideais’ para a ‘solução’ do problema do
país, e nem se o país teria condições estruturais de suportar uma abertura de mercado.
As privatizações, uma meta importante na concepção do economista, foram em sua
maioria empreendidas apressadamente, a abertura dos mercados, também importante, destruiu
pequenas empresas locais, gerando desemprego e desordem social, e a combinação
estabilização econômica com a abertura internacional levou muitos sistemas bancários latinos
à falência ou a reestruturações caras e dramáticas (Schwartzman, 2004, pp.118-119).
Segundo Stiglitz (2003):
Muitas dessas políticas se tornaram fins em si mesmas, em vez de serem os
meios para alcançar um crescimento mais imparcial e sustentável. Com isso,
tais políticas eram postas em prática em excesso e depressa demais (...).
O Fundo Monetário Internacional buscava a privatização e a liberalização de
maneira contundente, e o fazia a uma velocidade e de tal forma que, via de
regra, impunha custos muito altos a países que não estavam suficientemente
bem estruturados para suportá-los (pp.85-86).
Para o economista, tal mecanismo surge como um “mantra”, o “mantra do livre
mercado”, que foi introduzido nos países latino-americanos a partir do Consenso de
Washington,
42
com medidas para a solução dos problemas de controle do orçamento e da
inflação pelos governos – liberalização do comércio acompanhada de altas taxas de juros, a
liberalização do mercado financeiro, a privatização e a austeridade fiscal.
43
42
Para Stiglitz (2003), trata-se de um “Consenso entre o Banco Mundial, FMI e o Departamento do Tesouro dos
Estados Unidos em relação às políticas ‘certas’ para os países em desenvolvimento” (p.43).
43
Ugá (2004) cita dez propostas contidas no “Consenso de Washington”, destacadas por Williamson (1993), um
dos formuladores: (1) disciplina fiscal, ou seja, redução dos gastos públicos, na tentativa de manter um superávit
orçamentário; (2) prioridades de gasto público – reduzir o papel do Estado na economia, redirecionando o gasto
para as áreas desinteressantes para o investimento privado – geralmente, bens públicos; (3) reforma tributária,
tornando a tributação menos progressiva; (4) liberalização financeira cujo objetivo máximo é deixar que a taxa
de juros seja determinada pelo mercado; (5) manutenção da estabilidade da taxa de câmbio; (6) liberalização
comercial; (7) abolição das barreiras à entrada de investimentos externos diretos no país; (8) privatização das
empresas estatais; (9) abolição das regras que impedem a entrada de novas firmas do setor e (10) o sistema legal
deve assegurar direitos de propriedade (p. 132).
70
Dois aspectos vão incomodar Stiglitz (2003). O primeiro é que os formuladores de tais
políticas acabaram por considerar essas medidas também aplicáveis a diversos outros países
do mundo – “O FMI tinha as respostas (basicamente, as mesmas para todos os países)
(p.41)– ‘receita única para todos os males’. Numa abordagem “patológica da economia”,
Sachs (2005) entende que a pobreza possui especificidade própria e exige “tratamento
diferenciado” para a sua superação. A pobreza é uma “manifestação teratológica
44
de
economias disfuncionais”. E faz a seguinte observação sobre o desempenho generalizante do
FMI:
...os economistas, tal como os clínicos médicos, precisam aprender a arte do
diagnóstico diferencial. Os manuais de patologia médica costumam ter agora
2 mil páginas e, mesmo assim, talvez cubram somente um dos sistemas
físicos fundamentais. (...) o FMI concentrou-se numa faixa muito estreita de
questões, tais como corrupção, barreiras às empresas privadas, déficits
orçamentários e propriedade estatal dos meios de produção. Ele também
presumiu que cada episódio de febre é exatamente como os outros e
apresentou conselhos padronizados para cortar orçamentos, liberalizar o
comércio e privatizar empresas, quase sem levar em conta o contexto
específico. O FMI negligenciou problemas urgentes que envolviam
armadilhas da pobreza, agronomia, clima, doenças, transporte, gênero e
várias outras patologias que prejudicam o desenvolvimento econômico
(Sachs, 2005, pp.109-110).
O segundo aspecto que incomoda Stiglitz (2003) é que a forma como o FMI e o Banco
Mundial abordaram essas questões inseria “uma obtusa perspectiva ideológica”, pois para os
países que realizavam a transição do comunismo para o mercado, por exemplo, a privatização
das estatais tinha de ser feita rapidamente e sob a pressão de scorecards (boletins de
pontuação) (p.86).
44
Relativo à teratologia: uma especialidade médica que se dedica ao estudo das anomalias e malformações
ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal; etimologicamente está relacionado a
narração de fatos espantosos, relato de coisas monstruosas, estudo de monstruosidades (Houaiss).
71
Para o economista:
A aplicação de teorias econômicas equivocadas não representaria um
problema se o final, primeiro do colonialismo e depois do comunismo, não
tivesse propiciado ao FMI e ao Banco Mundial a oportunidade de eles
ampliarem e muito suas respectivas autoridades originais, dilatando, assim,
seu raio de alcance. Atualmente, essas instituições tornaram-se participantes
dominantes da economia mundial. Não só os países que buscam sua ajuda,
mas também aqueles que buscam um ‘selo de aprovação’ para poderem
acessar melhor os mercados internacionais de capitais, devem obedecer às
suas diretrizes de mercado (Stiglitz, 2003, pp.44-45).
Stanley Fischer
45
, diretor executivo do Fundo Monetário Internacional, no período
entre 1994 e 2001, aceita muitas críticas de Stiglitz, principalmente em relação à melhoria de
desempenho através de uma condicionalidade mais focada e de assegurar que os países
assumam maior responsabilidade pelos “programas de reformas”.
Como um verdadeiro economista liberal, Fischer acredita que, no longo
prazo, o capital deveria ser livre para correr mundo à procura do melhor
retorno possível; no curto prazo, entretanto, ele concorda que talvez seja
necessário colocar alguns limites a esse fluxo, como o Chile fez com sucesso
por um período. Mas, acima de tudo, é necessário tornar as condições
financeiras dos países mais transparentes e certificar-se de que as condições
macroeconômicas gerais estejam no rumo certo – déficits públicos
reduzidos, inflação baixa e taxas de juros adequadas (Schwartzman, 2004,
p.124).
Para Fischer, as políticas do futuro não podem ser diferentes das políticas do passado.
Deve-se continuar a seguir o Consenso de Washington, mas dando ênfase à questão da
pobreza, estabelecendo redes de proteção social para situações de extrema pobreza e reforma
institucional, seguindo, dessa forma, a ideologia de Hayek. E ainda, acabar com as barreiras
comerciais contra os países pobres e aumentar a ajuda internacional; desenvolver mecanismos
para assegurar que o sistema financeiro internacional torne menos suscetível a crise;
45
Fischer, Stanley. “Globalization and Its Challenges”. The American Economic Review 93, n.3, pp.1-30,
2003.
72
promover melhores políticas de migração internacional; e aperfeiçoar a governança de
maneira geral.
As regras criadas pelos economistas do Consenso de Washington para as crises
econômicas dos países dependentes nos anos 1990, imposta pelo FMI - que para Soros se
tornou mais “um problema” do que uma “solução” - tomaram um rumo de destaque após 11
de setembro.
Na concepção de Sachs (2005):
Em um mundo em que a distância não determina mais quem é seu vizinho,
pagar o preço da igualdade não é apenas ser sensível, é ser inteligente.
Os destinos dos que não têm estão intrinsecamente ligados aos destinos dos
que não têm nada. Se ainda não sabíamos disso, a verdade ficou clara
demais no dia 11 de setembro de 2001. Os perpetradores do ataque podem
ter sido sauditas ricos, mas foi num Estado em colapso e acometido pela
pobreza como o Afeganistão que eles encontraram ajuda e abrigo. A África
não está na linha de frente da guerra contra o terror, mas poderá estar em
breve.
A guerra contra o terror está vinculada à guerra contra a pobreza’.
Quem disse isto? Não fui eu. Nem um grupo pacifista hippie. Foi o
secretário de Estado americano, Colin Powell ...(p.381; grifo nosso).
Fukuyama, em 2004, elaborou uma obra,
46
que vai ser citada e discutida mais adiante,
em que ele também estabelece um vínculo entre a pobreza e o terrorismo, mas no âmbito da
polarização entre países. Para ele, a pobreza, no sentido individualizado, não é a causa
imediata do terrorismo, mas a incapacidade de os países “em desenvolvimento” promoverem
a modernização de suas instituições sociais. Segundo o autor (Fukuyama, 2005): “o mundo
moderno oferece um pacote muito atraente, que combina a prosperidade material das
economias de mercado e a liberdade política e cultural da democracia liberal” (p.16). Trata-se
46
Construção de Estados: governo e organização no século XXI, publicada no Brasil pela Editora Rocco, em
2005.
73
de “um pacote” que é desejado por muitos, constatado pelo fluxo de imigrantes e refugiados
de países menos desenvolvidos para os países mais desenvolvidos. E esse fenômeno, a
incapacidade de alguns países dependentes incorporarem modelos institucionais e os valores
liberais, ficou evidenciado depois de 11 de setembro. “O que está em questão é se as
instituições e valores do ocidente liberal são de fato universais” (Fukuyama, 2005, p.16). Para
o autor: “o fato de os governos e agências multilaterais de desenvolvimento não terem sido
capazes de proporcionar muitos conselhos úteis ou ajuda aos países em desenvolvimento
prejudica os fins mais elevados que eles procuram promover” (Idem, pp.16-17).
Diante desta constatação e questão, Fukuyama aborda na obra supracitada: “como
lidar com Estados fracassados ou em processo de fracasso?”.
Já Kliksberg (2003) considera que a pobreza, o desemprego, a desintegração da
instituição familiar, entre outros problemas, bem como “álibis’ destinados a atenuar ou a
ignorar os conflitos éticos existentes” (p.151) constituem uma afronta aos valores éticos “da
civilização judaico-cristão”. Para ele, são os valores éticos que deveriam orientar as
definições de políticas e a ação para o desenvolvimento.
Na concepção do autor:
Enfrentar os problemas éticos e abrir o debate evitado por falsos álibis
provavelmente levará ao resgate de valores que deveriam orientar os
esforços pelo desenvolvimento. Dentre outros, destacam-se os seguintes:
A pobreza é intolerável. A voz profética assinala na Bíblia: ‘Não haverá
pobres entre vós’ (...).
Somos todos responsáveis uns pelos outros. A falta de solidariedade é
contrária à dignidade humana. ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo’,
proclamava Jesus de Nazaré. (...)
(...) Precisa de uma solidariedade que respeite profundamente a cultura dos
pobres, seus valores, que abra espaços ao fortalecimento de suas próprias
organizações e ao crescimento de sua auto-estima.
A pobreza deve ser considerada como um tema de direitos humanos
violados. Ataca os direitos mais elementares das pessoas. Foi o que
proclamaram recentemente as Nações Unidas.
A constituição de sociedades democráticas estáveis e ativas requer a
construção da cidadania. Um dos componentes centrais é a restituição dos
74
direitos a oportunidades produtivas e de desenvolvimento que são negados
pela pobreza.
Será ilusório pretender que valores como esses possam influir nas políticas?
Em primeiro lugar, eles estão na essência da identidade humana. Por outro
lado, parece haver nas democracias um amplo clamor para que sejam
levados em conta. Em resposta a esse clamor, começou-se a fazer
questionamentos éticos e buscar soluções para eles em temas econômicos
chaves. (...)
Como dizia João Paulo II (1999): ‘A pobreza é algo urgente, que não pode
esperar’ (Kliksberg, 2003, pp.153-154; 156).
E segue Kliksberg (2003) toda a sua argumentação sobre a exigência de se instaurar
uma economia ética citando trechos bíblicos. Além do Papa João Paulo II, o autor também
cita Maimônides.
47
Para Stiglitz (2003), o problema não está na globalização, em seu sentido mais amplo,
mas nas instituições econômicas internacionais que ajudam a estabelecer as “regras do jogo”
e:
(...) com freqüência, acabam servindo aos interesses dos países
industrializados mais avançados – e a interesses particulares de alguns
indivíduos nesses países – em detrimento dos interesses do mundo em
desenvolvimento. (E) muitas vezes, abordam a globalização a partir de
mentalidades especialmente estreitas, moldadas por um ponto de vista
particular acerca da economia e da sociedade (p.263).
A questão do Estado também faz parte desse processo de ‘autocrítica’ ou crítica dos
intelectuais orgânicos do capital sobre a forma dogmática pela qual o FMI e o Banco Mundial
impuseram a ideologia do livre mercado aos países dependentes.
47
Pensador judeu da Idade Média (1135-1204), considerado pela tradição rabínica o único membro do povo
judeu a alcançar a mesma envergadura do profeta Moisés (www.estacaoliberdade.com.br, resenha da obra
Maimônides, de Gerard Haddad, editado pela Siciliano; www.wikipedia.org
; acessos 30 de março de 2007).
75
Stiglitz (2003) constata que os países que mais se beneficiaram das estratégias de
“livre mercado” foram aqueles que assumiram o controle de seus próprios destinos e
“reconheceram o papel a ser desempenhado pelo governo no desenvolvimento, em vez de
permanecerem na dependência de uma idéia de mercado auto-regulador capaz de solucionar
os próprios problemas” (p.299).
O “fracasso” da distribuição de benefícios globais resultante das estratégias
econômicas determinadas pelos organismos multilaterais aos países dependentes, e o padrão
diversificado de ajustes estruturais desses países são “refletidos” pelos principais organismos
multilaterais que passam a esboçar o ideal de Estado para esse momento de crise do
capitalismo neoliberal.
Stiglitz (2003), sem um compromisso institucional, esboça em sua obra as seguintes
propostas: “A ideologia de livre mercado deve ser substituída por análises baseadas na ciência
econômica com uma visão mais equilibrada do papel do governo, abstraída de uma
compreensão das falhas tanto de mercado quanto de governo” (pp.301-302). E que as “nações
em desenvolvimento” devem assumir suas responsabilidades em relação ao desenvolvimento
de seu próprio bem-estar, o que insere políticas de desenvolvimento sustentável, eqüitativo e
democrático.
A crítica de Stiglitz (2003) está diretamente relacionada à forma “imperialista”
48
de
como o FMI (entrelaçado com as atividades do Banco Mundial e da Organização Mundial do
Comércio) conduziu os programas de ajustes estruturais nos países dependentes, além dos
erros metodológicos que tem cometido em todas as áreas em que esteve diretamente
envolvido (“desenvolvimento, gestão de crises e em países que fazem a transição do
48
Assim por ele denominado, mas referindo-se à forma autoritária, impositiva, condicionada em que o FMI
impulsionava as políticas e estratégias do “livre mercado” nos países dependentes. É uma ironia em se tratando
da categoria marxista de imperialismo.
76
comunismo para o capitalismo”) cujos resultados, indica o economista, foram o aumento da
“pobreza e, para muitos países, o caos político e social” (Stiglitz, 2003, p.45).
Na concepção de Schwartz (2002):
Depois de muitos erros (quantos milhões de vidas foram sacrificadas em seu
nome? Quantas democracias foram fragilizadas ou destruídas?), os
defensores do liberalismo econômico ensaiam, no máximo, tímidas
autocríticas. O FMI e o Banco Mundial não se entendem. Alguns prêmios
Nobel são conferidos a economistas que estudaram instituições ou ‘ética’.
Célebres think thanks e organismos multilaterais se debruçam sobre
fenômenos e rankings de corrupção, de ‘desenvolvimento humano’ (há
outro, que não o seja, fora do ranking?) ou de miséria (p.7).
49
A “crítica” do ‘Nobel em Economia’ Joseph E. Stiglitz ao modelo de orientações
macroeconômicas é, sem nenhuma surpresa, restrita à metodologia aplicada pelos organismos
econômicos internacionais, mais especificamente, em sua forma “imperialista” e generalizada.
E assume, em sua crítica ao modelo, a existência de um jogo de interesses e de uma
perspectiva ideológica no processo de abertura internacional dos mercados que não é
novidade para os críticos mais radicais da “nova ordem mundial”. Contudo sua obra revela
um movimento estratégico que emerge no interior das agências multilaterais nos anos finais
da década de 1990, apontando que o mecanismo exacerbado de acumulação e centralização
do capital que “impera” nesse período requer a reelaboração de estratégias que abrandam as
conseqüências dessa “ordem mundial” de globalização dos mercados, principalmente em
relação aos “pobres” países dependentes. Seu argumento de que novos ajustes nas orientações
econômicas para o desenvolvimento dos países dependentes são necessários ecoa e inspira
muitas propostas, inclusive uma brasileira.
50
49
Prefácio de Gilson Schwartz para a obra de Pierre Salama, 2002, p.7.
50
A proposta de um “novo-desenvolvimentismo” difundido por Bresser-Pereira, que será citada adiante.
77
Seja com ênfase institucional, ético-religiosa ou política novos ajustes na política
macroeconômica são aclamados por intelectuais que representam os principais organismos
multilaterais com a finalidade de assegurar a redução das tensões que o aumento da pobreza
deflagra na virada do milênio.
Diante desse quadro conjuntural, pode-se identificar que para os ‘intelectuais
orgânicos do capital’ o problema está posto e uma solução deve ser encontrada. Para a crise
do capital nos anos 30, buscou-se a via keynesiana. Para a crise dos anos 70, a via neoliberal.
Para a crise atual do capitalismo, quais são as novas bases ideológicas ou as “novas
expressões” que serão difundidas para dar continuidade de acumulação do capital?
1.2.2 Proposta da “esquerda modernizante”: a terceira via
A preocupação de colocar em risco as bases de governabilidade e a convicção da
necessidade de se buscar novas alternativas políticas, reformistas para o desenvolvimento do
novo século são também partilhadas pelas lideranças trabalhistas. Como propôs o primeiro-
ministro inglês Tony Blair, em 1998, é necessário “criar um consenso internacional de centro-
esquerda para o século XXI” (Apud, Giddens, 2001, p.11).
Para o líder dos trabalhadores ingleses: “A velha esquerda resistiu a essa mudança (da
nova ordem global). A nova direita não a quis administrar. Temos de administrar essa
mudança para produzir solidariedade e prosperidade sociais” (Idem). E é a partir dessa
colocação de Blair que renasce a “terceira via”.
51
51
Giddens (2001) explica que a expressão “terceira via”, sem nenhum significado especial, foi utilizada várias
vezes na história da social-democracia e, também, por escritores e políticos de convicções diferentes. Em sua
obra - A Terceira Via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia -, o autor faz
uso da expressão para fazer referência à renovação social-democrática. A expressão “terceira via” passou a ser
associada à política de Tony Blair e ao Novo Trabalhismo (New Labor) na Grã-Bretanha. E seu estilo de política
foi comparado a dos novos democratas americanos.
78
Tomando como referência o discurso de Blair, Giddens (2005) desenvolve um corpo
teórico para dar sustentação a uma prática política alternativa que emerge com o Novo
Trabalhismo, que o próprio vai denominar de “terceira via”. Segundo o autor, a “terceira via”
é uma proposta para a sobrevivência da social-democracia
52
no pós “consenso de welfare”. Na
concepção do autor:
(...) a teoria está em atraso em relação à prática. Despojados das velhas
certezas, governos que proclamam representar a esquerda estão criando
política sem pensar no que estão fazendo. É preciso pôr carne teórica no
esqueleto de sua prática política – não apenas para endossar o que estão
fazendo, mas para fornecer aos políticos maior senso de direção e propósito.
Pois a esquerda, é claro, sempre esteve ligada ao socialismo e, pelo menos
como um sistema de administração econômica, o socialismo não existe mais
(p.12).
Entre a social-democracia “do velho estilo” keynesiano que compreende o capitalismo
de “livre mercado” dotado de “qualidades irracionais” porém possíveis de serem controladas
pelo Estado, e o neoliberalismo que, ao contrário, defende o Estado-mínimo e concebe o
mercado com qualidades superiores, a “terceira via” pretende criar um projeto político
“modernizado” para a “social-democracia” administrar a crise do sistema, aprofundar a
democracia e promover maior igualdade de oportunidades -“redistribuição de possibilidades”.
Segundo Giddens (2005), para a social-democracia “do velho estilo”, no geral, o
Estado deve intervir na dinâmica do mercado, fornecer os bens públicos que os mercados não
podiam suprir, proteger as famílias em necessidade e os indivíduos que não ‘sejam capazes
de se defenderem por si mesmos das “qualidades irracionais” do mercado. O poder público
Lima e Martins (In: Neves, 2005) explicam em nota de rodapé, com base na exposição de Chauí (“A fantasia da
terceira via”. Folha de São Paulo. São Paulo (SP), 19 dez. Mais!, p.1), que a expressão “terceira via” foi
empregada “pelo fascismo para indicar um projeto político que se pretendia eqüidistante do liberalismo e do
socialismo”, nos anos de 1940 para legitimar o peronismo e “outrora, como agora, tem a pretensão de se colocar
além da direita liberal e da esquerda socialista” (p.44).
52
Compreendida por ele como grupos e partidos da esquerda reformista, incluindo o Partido Trabalhista
britânico.
79
representa a vontade coletiva, nesse sentido, a tomada de decisão deve envolver governo,
empresariado e sindicatos, isto é, deve ser coletiva. Seus objetivos principais: “criar uma
sociedade mais igual, mas também proteger os indivíduos ao longo do ciclo da vida
(Giddens, 2005, p.20). Entretanto:
Sua ênfase corporativista, sua orientação para o pleno emprego e a
importância esmagadora que conferia ao welfare state tornava-a mal
adaptada para enfrentar questões ecológicas de uma maneira sistemática.
Também na prática ela não tinha uma forte perspectiva global. A social-
democracia era internacionalista em sua orientação, mais inclinada a criar
solidariedade entre partidos políticos de idéias assemelhadas que a enfrentar
problemas globais como esses. Apesar disso, estava inextricavelmente ligada
ao mundo bipolar – situado entre o minimalismo do welfare dos EUA e as
economias de comando do comunismo (Idem, p.21).
Já o neoliberalismo, prossegue, em suas premissas básicas, defende o Estado mínimo
com base na visão de sociedade civil “como um mecanismo auto-gerador de solidariedade
social” e das qualidades superiores dos mercados. Contrapondo as premissas da social-
democracia, o neoliberalismo não pretende uma sociedade mais igual. Ao contrário, rechaça
políticas igualitárias, porque “criam uma sociedade de uniformidade enfadonha, e só podem
ser implementadas mediante o uso do poder despótico”. A igualdade de oportunidades é, para
alguns liberais, até desejável e necessária (Ibidem, p.23).
Na concepção de Giddens (2005), o neoliberalismo triunfou, mas está em apuros,
tendo em vista a tensão entre o fundamentalismo de mercado e o conservadorismo:
A devoção ao livre mercado por um lado, e à família tradicional por outro, é
uma contradição. Espera-se que o individualismo e o direito à escolha se
detenham abruptamente na soleira da família e da identidade nacional, onde
a tradição deve permanecer intacta. Mas nada destrói mais a tradição que a
‘revolução permanente’ das forças do mercado. O dinamismo das sociedades
de mercado solapa as estruturas tradicionais de autoridade e fratura as
comunidades locais; o neoliberalismo cria novos riscos e incertezas e pede
aos cidadãos que simplesmente os ignorem (p.25).
80
Em Kliksberg (2002a), observa-se essa mesma preocupação. Para o autor: “As fortes
tensões sociais acumuladas em todas as áreas referidas, além de outras que a elas se podem
acrescentar, constituem um espaço favorável para o processo de enfraquecimento do tecido
social, como a desintegração da família e o aumento da criminalidade” (Kliksberg, 2002a,
p.15). A família, coloca o autor, é a instituição central de grande parte das sociedades. Ela é a
“fornecedora de normas morais, educação básica, saúde preventiva, afeições básicas, modelos
de referência” e vem sendo “seriamente deteriorada pelos problemas sociais...” (Idem).
Para Giddens (2005), o grande desafio é a “governação” da contradição entre a
expansão do individualismo e o conservadorismo filosófico de valores como família e
democracia. Segundo o autor:
Numa sociedade em que a tradição e o costume estão perdendo seu domínio,
a única rota para o estabelecimento da autoridade é a via democrática. O
novo individualismo não corrói inevitavelmente a autoridade, mas exige
que ela seja remodelada de forma ativa ou participatória (p.76; grifo
nosso).
A proposta da “terceira via” é “ajudar aos cidadãos a abrir seu caminho através das
mais importantes revoluções de nosso tempo: globalização, transformações na vida pessoal e
nosso relacionamento com a natureza”. Para tal, disserta Giddens (2005), “a terceira via
deveria adotar uma atitude positiva em relação à globalização”, mas com uma concepção de
globalização ampliada, isto é, não restritamente relacionada ao “mercado global”.
Giddens (2005) identifica os efeitos destrutivos da globalização econômica e a ameaça
desses efeitos à “integridade nacional e aos valores tradicionais”, mas não é favorável ao
protecionismo, pois pode “criar um mundo de blocos egoístas e provavelmente hostis”. Ele
admite que o “livre mercado” pode ser “um motor de desenvolvimento econômico”, mas,
segundo o autor, “dado o poder social e culturalmente destrutivo dos mercados, suas
conseqüências mais amplas precisam ser examinadas com cuidado”. Nessa perspectiva, o
81
elaborador teórico da política da “terceira via” sugere como preceitos para a nova política:
“não há direitos sem responsabilidades” e “não há autoridade sem democracia” (Giddens,
2005, pp.74-75).
A questão que ele coloca é: “como deveríamos viver após o declínio da tradição e do
costume, como deveríamos recriar a solidariedade social e reagir a problemas ecológicos”
(Giddens, 2005, p.76). Para tais desafios ele propõe um “programa modernizante de
democratização”, um “mix” de conservadorismo moral para remontar a solidariedade social
corroída pelo individualismo exacerbado, e de desenvolvimento de atitudes ecologicamente
modernas para reconhecer o dualismo dos avanços tecnológicos. Segundo o autor, “um
programa capaz de controlar adequadamente as forças que a globalização e a mudança
tecnológica desencadearam” (Idem, p.79). Para tal, é preciso “combinar solidariedade social
com uma economia dinâmica” (Giddens, 2001, p.15).
Há na proposta da “terceira via” a intenção de se consolidar uma ‘esquerda moderna’
que visa a governar um tipo de capitalismo “competente e justo”. Competente no sentido de
governar nos moldes de uma gerência empresarial, participativa e transparente, e que divide a
administração dos riscos dos negócios com os empregados. E justo ao governar de forma a
aprofundar a democracia e promover uma maior igualdade de oportunidades. Dessa forma,
coloca o autor, se pode vislumbrar melhores taxas de desenvolvimento econômico.
O sentido de democracia está relacionado à descentralização do governo, com o
envolvimento de comunidades locais na “governação” do país e na “renovação social e
material de bairros, pequenas cidades e áreas locais mais amplas” (Giddens, 2005, p.89).
Giddens (2005) considera que nas camadas sociais desfavorecidas pelos “ventos da
mudança social e econômica” o envolvimento cívico é menos desenvolvido. Nesse sentido:
“A renovação das comunidades locais carentes presume o incentivo dos empreendimentos
econômicos como meio de gerar uma recuperação cívica mais ampla” (p.92). Para o autor, é
82
“particularmente em comunidades mais pobres, que o incentivo à iniciativa e ao envolvimento
locais podem gerar o maior retorno” tanto econômico como cívico (Giddens, 2005, p.90).
Programas convencionais de socorro à pobreza devem ser substituídos por
abordagens centradas na comunidade, que permitem uma participação mais
democrática além de serem mais eficazes. A formação de comunidades
enfatiza as redes de apoio, o espírito de iniciativa e o cultivo do capital
social como meio de gerar renovação econômica em bairros de baixa renda.
O combate à pobreza requer uma injeção de recursos econômicos, mas
aplicados para apoiar a iniciativa local (Idem, p.120; grifo nosso).
Na proposta da “terceira via” de Giddens (2005), a competitividade e a geração de
riquezas são enfatizadas tendo em vista a natureza do mercado. No entanto, sendo qualidades
do mercado, ele considera que essas qualidades não poderão ser desenvolvidas pelos
indivíduos sem o apoio do governo, isto é, elas “não serão desenvolvidas (...) se os indivíduos
forem abandonados para nadar ou afundar num redemoinho econômico”. Assim, “o governo
tem um papel essencial a desempenhar investindo nos recursos humanos e na infra-estrutura
necessária para o desenvolvimento de uma cultura empresarial” (p.109).
No entanto, esclarece Giddens (2005), o declínio cívico não é restrito à dimensão
econômica. Ele está diretamente relacionado, também, ao enfraquecimento do senso de
solidariedade, ao aumento da criminalidade e à dissolução da família. Nesse aspecto, a
parceria entre o Estado e a sociedade civil é fundamental para a sua superação.
Defende o autor que o governo, junto com a sociedade civil, desempenha um papel
fundamental no processo de “renovação da cultura cívica”. O governo pode alterar o quadro
de declínio cívico que vem se configurando no final de século, desde que atue diretamente em
pequenos grupos, principalmente nos grupos mais pobres, estimulando o sentimento
comunitário, no sentido de serem solidários com aqueles que têm preocupações semelhantes e
que se juntam para empreender uma “jornada pela vida”.
83
Para desempenhar eficazmente este papel, a política da terceira via defende: uma
“nova economia mista”, que busca uma “nova sinergia” entre os setores públicos e privados
(Giddens, 2005, p.109); “parceria entre Estado e sociedade civil”, principalmente no processo
de superação do declínio cívico (Idem, p.89) e no controle da criminalidade; “o cultivo do
potencial humano”, como substituto da “redistribuição a posteriori” (Ibidem, p.111) e da
“educação” como uma base essencial da “redistribuição de possibilidades” (Ibidem, p.119).
O sentido de “cultivo do potencial humano” e a função atribuída à educação na
proposta da terceira via, a de “redistribuição de possibilidades”, incorporam idéias que se
inserem na teoria do “capital humano”. Na concepção da “terceira via”, o trabalhador, frente
aos riscos da sociedade globalizada e altamente tecnológica, precisa estar permanentemente
inserido no processo educacional, adquirindo habilidades específicas necessárias às transições
entre empregos e desenvolvimento de competências cognitivas e emocionais, isto é, estar “ao
longo de toda a vida” (Giddens, 2005, p.135) ‘investindo na pessoa’ ou ‘cultivando o seu
potencial humano’ para manter-se ou incluir-se no mercado. “Em vez de assentar em
benefícios incondicionais, as políticas deveriam ser orientadas para incentivar a poupança, o
uso de recursos educacionais e outras oportunidades de investimento pessoal” (Idem).
Na concepção de Giddens (2005):
A diretriz é o investimento em capital humano sempre que possível, em vez
de fornecimento direto de sustento econômico. No lugar do welfare state
deveríamos considerar o Estado do investimento, operando no contexto de
uma sociedade de welfare positivo.(...)
O welfare positivo substituiria cada uma das negativas de Beveridge por uma
positiva: em lugar de Carência, autonomia; não Doença, mas saúde ativa; ao
invés de Ignorância, educação como parte permanente da vida; em lugar de
Sordidez, bem-estar; ao invés de Ociosidade, iniciativa (pp. 127-128;139).
84
A “terceira via” é, segundo o próprio teórico da proposta, “uma adaptação bem-
sucedida da social-democracia às novas condições sociais e econômicas” (Giddens, 2005,
p.133). Uma proposta de enfrentamento “competente e justa” dos riscos que encerra a
economia do “livre mercado” em nível global e local. A função do Estado é administrar esses
riscos de forma “responsável” e “transparente”, utilizando-se de metodologias empresariais e
em parceria com o privado e com a sociedade civil.
A trilogia público-privado-sociedade civil que configura um “Estado sem inimigo”
forma uma frente para o desenvolvimento econômico e cívico, principalmente, das
comunidades “desfavorecidas” dos benefícios do processo de globalização. A formação desta
trilogia tem como objetivos: potencializar as competências cognitivas dos trabalhadores que
ainda se apresentam capacitados a ingressar e a se manter num tipo de mercado em constante
transformação e instituir competências emocionais e morais naqueles que já não se
enquadram nessas condições específicas do trabalho globalizado, desenvolvendo o espírito de
iniciativa e o cultivo do capital social como meio de gerar renovação econômica.
O que está de fundo nessa proposta “bem-sucedida” de adaptação às novas condições
econômicas e sociais é a questão da “governação” das desigualdades. Giddens (2005)
considera que a social-democracia não deve admitir que níveis elevados de desigualdades são
funcionais ao crescimento econômico ou que são inevitáveis. A desigualdade para o autor é
mais complexa e não está atrelada à igualdade de oportunidades, mas à “redistribuição de
possibilidades”. Explica o autor que a questão da igualdade de oportunidades, tese neoliberal
que implica princípios meritocráticos, não deva ser desconsiderada, mas não pode adquirir o
status definidor de igualdade. A igualdade, em sua concepção, integra os aspectos econômicos
(“oportunidade”) e cívicos (“envolvimento”). Nesse sentido, a “igualdade como inclusão” e a
“desigualdade como exclusão” carreia um sentido mais amplo na proposta teórica da “terceira
via”.
85
Giddens (2005) inclui no debate sobre a “exclusão social” a “marginalização” das
camadas mais favorecidas economicamente nas questões públicas, no sentido “de cidadania,
direitos e obrigações civis e políticos que todos os membros de uma sociedade deveriam ter”
(p.112), observando o isolamento social desta camada mais favorecida ao criarem sua própria
rede privada de educação, saúde e segurança. Nesse sentido o autor coloca que:
Duas formas de exclusão estão se acentuando nas sociedades
contemporâneas. Uma é a exclusão dos que estão em baixo, excluídos do
fluxo principal de oportunidades que a sociedade tem a oferecer. No topo há
a exclusão voluntária, a ‘revolta das elites’: um afastamento das instituições
públicas por parte dos grupos mais afluentes, que optam por viver em
separado do resto da sociedade (Idem, p.113).
Esse tipo de exclusão, no topo, é, para o autor, tão ameaçador para a esfera pública
quanto a exclusão na base. Daí, a importância de se construir um “Estado sem inimigo”,
estabelecendo uma relação de “confiança” entre as esferas pública e privada e a sociedade
civil, voltada para o desenvolvimento da “consciente cívica” e “solidária”, a fim de se
adaptar e enfrentar os riscos que as mudanças econômicas e sociais do final de século estão
impondo.
Coutinho (2006) citando um anúncio de Rochefoucauld, “o grande moralista francês
do século XVII”, de que “a hipocrisia é homenagem que o vício presta à virtude” (p.112), faz
a seguinte crítica à terceira via:
Os defensores da ‘terceira via’ são pessoas que aplicam uma política
neoliberal (...), mas que têm ou tiveram no passado um certo compromisso
com valores de esquerda e tentam propor, como se isso fosse possível, um
neoliberalismo com rosto humano (...).
A ‘terceira via’ é isso: uma manifestação hipócrita do neoliberalismo, que
sabe muito bem que a virtude está com outro tipo de política (p.112).
86
Além desse aspecto - que aponta a incapacidade de tornar o neoliberalismo
espontaneamente mais sensível e complacente com a “questão social” e do caráter ideológico
da “terceira via”, tendo em vista que procura encobrir políticas que continuam sendo
neoliberais – Coutinho (2006) identifica um outro fator fundamental para a compreensão do
sentido que subjaz às “políticas de desenvolvimento do milênio”. Trata-se de sua concepção
da “terceira via” como um sintoma “indicativo de que aquela hegemonia pura e simples
do neoliberalismo, aberta e escancarada, já começou a sofrer abalos” (p.112; grifo nosso).
Nessa perspectiva pode-se concluir que tanto a proposta de se instaurar uma “terceira
via” como solução para a crise dos anos 1990 como a proposta de se implementar novas
“políticas de desenvolvimento do milênio” buscam introduzir novos mecanismos de
hegemonia de função de direção intelectual e moral para abrandar os efeitos das políticas
neoliberais e dar condições de reprodução do capital na virada do milênio.
Tendo em vista que os princípios e estratégias políticas da proposta da ‘terceira via’ se
aliam com os princípios e as estratégias das “políticas de desenvolvimento do milênio”, que
serão apresentadas mais adiante, optou-se em não realizar uma análise mais profunda desta
proposta de “sobrevivência da social-democracia”, como colocara Giddens, mas por enfatizar
sua representação enquanto revelação dos limites do neoliberalismo. Este aspecto é
fundamental para identificar as “políticas de desenvolvimento do milênio” como um conjunto
de mecanismos necessários à reprodução desta ideologia.
Nesta perspectiva, considera-se fundamental atentar para o fato de que para os
intelectuais orgânicos do capital o aumento da pobreza, do desemprego e da desigualdade
social no contexto do neoliberalismo dos anos 1980-90 deu-se pelo “fracasso” das medidas
econômicas implementadas pelo FMI ou foram resultantes de métodos inadequados de gestão
ou produto da crise do “Estado Providência”. As tensões provocadas por forças sociais
antiglobalizantes, mesmo que fragmentadas, e a possibilidade de se instaurar um quadro de
87
instabilidade política nos países dependentes, que poderia ter reflexo na economia dos países
centrais, vai provocar a necessidade de se realizar novos ajustes nos mecanismos de
conservação da condição de reprodução do capital e nas definições de políticas sociais.
Ainda, o quadro que se instaurou nos últimos anos na América Latina e
especificamente no Brasil revela que houve uma perda significativa da força política da massa
dos trabalhadores e, com ela, ampliou-se a distância de se objetivar um momento ético-
político pensado por Gramsci (CC.V.3.C.13, 2000b, pp.40-41). No entanto não se deve
desprezar a dinâmica do processo histórico ou corre-se o risco de confirmar a idéia de que é o
“fim da história”. Nessa perspectiva, deve-se questionar: por que o principal tema das
discussões e orientações do Banco Mundial continua sendo a pobreza? Por que, diante do
quadro de “paralisia da sociedade civil” e da impotência dos países diante “dos interesses e
estruturas transnacionais” (Fiori, 2003) e dos detentores do mercado internacional, os
organismos multilaterais ainda defendem a necessidade de atenuar as mazelas sociais
resultantes do atual processo de acumulação?
Considerando que o conceito de hegemonia de Gramsci prioriza a “vontade geral” –
interesse comum -, em relação à vontade particular – o interesse privado -, deve-se considerar
que o Estado burguês, no decorrer de seu processo histórico, expandiu sua esfera de domínio
desenvolvendo capacidades estratégicas, cada vez mais refinadas, de impor a adesão à sua
forma particular de ver o mundo. Isto é, enquanto Estado educador, o Estado burguês
aprimorou os mecanismos de hegemonia. E, compreendendo a “questão social” como
constitutiva do Estado capitalista e resultante da dinâmica das contradições que a insere, cabe
questionar, frente “à impotência diante dos interesses e estruturas transnacionalizados”, se a
sociedade civil brasileira, de fato, perdeu seu espaço de disputa e luta pela hegemonia e segue
o seu processo histórico “replicando o superestrutural”.
88
Numa perspectiva de análise das relações de forças que compõem um determinado
bloco histórico, torna-se fundamental compreender que há uma unidade entre as dimensões
filosófica, política e econômica, que é dada através do desenvolvimento dialético das
contradições entre o homem e as forças materiais de produção. Gramsci (1999) entende que:
Na economia, o centro unitário é o valor, ou seja, a relação entre o trabalho e
as forças industriais de produção (os que negam a teoria do valor caem no
crasso materialismo vulgar, colocando as máquinas em si – como capital
constante e técnico – como produtora de valor, independentemente do
homem que as manipula). Na filosofia, é a práxis, isto é a relação entre a
vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica. Na política, é a
relação entre o Estado e a sociedade civil, isto é, intervenção do Estado
(vontade centralizada) para educar o educador, o ambiente social em geral
(CC.V.1.C.7, p.237).
53
É compreendendo a unidade entre relação do trabalho e forças produtivas (economia),
entre estrutura econômica e “vontade humana” (filosofia), entre Estado e sociedade civil
(política) e a natureza contraditória do Estado capitalista, com isso, a dinâmica das
correlações de forças no processo de conquista da hegemonia, que o pensamento de Gramsci
se mostra atual e fundamental para analisar as forças sociais de um determinado contexto
histórico-social.
53
Gramsci, nessa Nota 18, conclui, colocando entre parênteses, que tais observações devem ser aprofundadas e
colocadas em termos mais exatos. No entanto, as relações que ele estabelece entre economia e valor, filosofia e
práxis e, na política, a relação entre Estado e sociedade civil, no âmbito desta nota, entende-se que exprimem a
síntese de seu pensamento sobre a análise do real.
89
2 FUNÇÕES DO ESTADO E DA SOCIEDADE CIVIL NO CAPITALISMO E
“QUESTÃO SOCIAL”
...as ideologias (...) são fatos históricos reais, que devem
ser combatidos e revelados em sua natureza de
instrumentos de domínio, não por razões de moralidade,
etc., mas precisamente por razões de luta política.
Antonio Gramsci
No final do século XX, com a ampliação da mundialização do mercado, a soberania
dos Estados-nação encontra-se fragilizada diante das relações econômicas internacionais; o
sentido público se dissolve nas atitudes particulares, ao mesmo tempo em que se intensifica o
surgimento de novos sujeitos coletivos e de movimentos sociais de todo tipo, expande-se a
cultura democrática liberal e amplia-se a participação política; avança-se nas produções do
conhecimento e da tecnologia; mas, contudo, não se observa avanços na melhoria das
condições de vida, pelo contrário, vivem-se tempos cruéis, onde uma parcela significativa da
população mundial vive em estado sub-humano e a barbaridade não possui fronteiras – o
lucro a qualquer preço.
As mudanças nas bases produtivas exigem, para sua manutenção e legitimação, uma
“reforma” no Estado – “estrutura totalizante de comando político do capital”. As relações
Estado-sociedade são reestruturadas e novas competências e funções são atribuídas ao Estado
e à sociedade civil. Difunde-se a concepção de sociedade civil como uma terceira esfera, entre
o Estado e o mercado, com o sentido de “público”, porém “não-estatal”. Uma concepção de
sociedade civil que “serve tanto para imaginar a autonomia dos cidadãos, quanto para
90
viabilizar programas de ajuste fiscal e desestatização, nos quais se convoca a sociedade civil
para compartilhar encargos até então eminentemente estatais” (Nogueira, 2003, p.215). Num
processo conjunto de adaptação aos novos tempos, já que ‘outras alternativas não estão
postas’, Estado e sociedade civil “combatem”, em parceria e a partir de critérios de eficácia
gerencial definidos pelos organismos multilaterais, as seqüelas sociais.
Diante desse quadro de final de século, Fiori (2003) considera que o atual processo de
acumulação do capital intensifica o “estado de apatia das massas” e a “paralisia da sociedade
civil”, que se vê impotente diante dos interesses e estruturas transnacionais. Para o autor:
As relações Estado-sociedade, constituídas no século XIX e na primeira
metade do século XX e reestruturadas depois da Segunda Guerra Mundial,
aparecem, na virada do século XXI, desafiadas pelas grandes corporações e
estruturas internacionalizadas do poder (associadas) a um estado de apatia
das massas.
(...) A substituição do indivíduo-cidadão pelas corporações, da vontade
coletiva pela decisão tecnocrática e da competição dos interesses – nos
âmbitos do mercado e da sociedade civil – nas disputas no interior das
instâncias executivas estatais passaram a ser o traço dominante dessa nova
realidade.
(...) E, tanto do ponto de vista de suas relações internas quanto das relações
com outros Estados nacionais, a crise do Estado capitalista e das
democracias sociais é estreitamente associada à paralisia da sociedade civil e
à impotência diante dos interesses e estruturas transnacionalizados (pp.21-
22).
Trata-se de novas determinações que insere essa etapa do capitalismo “mundializado”,
que confundem e têm implicado, nas últimas décadas, na construção de múltiplos
entendimentos sobre a categoria sociedade civil e sua função social. Justamente essa
categoria, que na concepção de Gramsci apresenta uma característica específica e relevante na
tradição marxista, que está inserida, hoje, nos discursos de qualquer concepção política (seja
de esquerda, centro ou de direita) e no imaginário das sociedades contemporâneas, tanto para
a construção de um Estado radicalmente democrático como para atacá-lo. “Certamente, a
referência nem sempre é Gramsci, mas Gramsci está presente sempre, é sempre lembrado e
91
muitas vezes ele é apresentado como parâmetro principal” (Nogueira, 2003, p.216).
Considera-se que, mais que o problema das diferentes interpretações das categorias de
Gramsci, o que não se deve perder de vista é a penetração no senso comum de um sentido de
sociedade civil dissociado do Estado. Na abordagem gramsciana, fazer política insere uma
luta dentro e a partir da sociedade civil, mas também, dentro e a partir do Estado, pois para
Gramsci, assim como para Marx, o Estado é a expressão da sociedade civil.
Tentar compreender qualquer fenômeno político-social ou identificar tendências no
atual estágio do capitalismo global, de hegemonia neoliberal, torna-se uma tarefa difícil pela
complexidade que hoje insere a dinâmica dos movimentos históricos, seja em nível nacional –
considerando-se o Estado em seu sentido estrito ou em seu sentido amplo - ou em nível
internacional - considerando-se as correlações de forças entre esses dois níveis.
Nessa perspectiva, entende-se que, antes de qualquer tentativa de compreender a
realidade hoje e identificar as estratégias de reprodução social a fim de resistir e formular
políticas que avancem na construção de uma sociedade radicalmente democrática, torna-se
fundamental que se tenha clareza sobre a definição crítica de Estado e de sociedade civil e das
implicações sobre a concepção de pobreza.
Assim, neste capítulo buscar-se-á fundamentos teóricos para a análise dos novos
mecanismos de hegemonia de função de direção intelectual e moral introduzidos pelas
“políticas de desenvolvimento do milênio”, abordando as concepções de Estado e sociedade
civil em Hegel, Marx, Engels e Gramsci, aprofundando a concepção de sociedade civil em
Gramsci, para num segundo momento introduzir uma discussão crítica sobre “pobreza” e
“questão social”.
92
2.1 Estado e sociedade civil na tradição marxista
54
No âmbito desse estudo, pretende-se fazer algumas aproximações das concepções de
Estado e Sociedade Civil em Hegel, Marx, Engels e Gramsci, pontuando os diferentes
contextos históricos ou diferentes estágios do capitalismo vivenciados por esses pensadores, a
fim de extrair elementos para pensar a questão do Estado no processo de estudo das novas
determinações que se apresentam na realidade de hoje, de domínio do capitalismo
mundializado, e colocar em debate a problemática da idéia que vem se formando no senso
comum de sociedade civil dissociada do Estado.
Para o entendimento das diferentes concepções de Estado na tradição marxista optou-
se por destacar quatro pensadores: Hegel, com sua concepção de Estado como Estado ético,
uma vez que Marx constrói sua teoria de Estado tomando como base de reflexão a escola
hegeliana; Marx e Engels e a concepção de Estado de classe; Gramsci com sua idéia de
Estado “amplo”, enfatizando a relação de seu pensamento com a teoria de Estado de Marx e
Engels e com as novas determinações que o desenvolvimento do capitalismo demanda.
Para Hegel Estado é a totalidade do “Espírito objetivo”, isto é, o conjunto das
instituições criadas pelo “Espírito subjetivo” – conjunto das formas subjetivas de perceber a
realidade - para chegar ao “telos” – a liberdade. O Estado Moderno é a etapa em que o
Espírito afirmou seu objetivo que é a liberdade de todos. O Homem só é livre no Estado. A
sociedade civil – “arena do particularismo”, do privado – teria seu conjunto de valores
54
Não se pretende discutir as diferentes concepções, mas indicar, de forma sintética e simplificada, as diferenças
da concepção e da natureza da função do Estado e da sociedade civil em Hegel, Marx, Engels e Gramsci, a fim
de buscar subsídios para compreender o atual estágio do capitalismo global. Acredita-se que a retomada das
discussões sobre as teorias clássicas de Estado na tradição marxista, partindo do contexto histórico de cada
pensador, é fundamental para as reflexões e a compreensão de como se configuram, hoje, as estratégias de
reprodução social do capitalismo global.
93
coletivos fundados no Estado. Ao Estado caberia a função de dar organicidade universal à
sociedade civil, através da racionalidade universalizadora, objetivando superar o “reino da
miséria física e moral”.
É importante observar que Hegel desenvolve sua teoria de Estado situado no
nascimento da Revolução Francesa, no “terror jacobino”, nas guerras napoleônicas, no
sentimento nacionalista alemão e na modernização dos Estados alemães; no desenvolvimento
do capitalismo inglês e em seu sistema representativo; enfim, num contexto de efervescência
intelectual e de modernização política.
Hegel se confronta com as imbricações entre a reflexão sobre os princípios da nova
época, baseados na libertação política, e as condições de sua realização na realidade presente
na Alemanha. Na lógica de Hegel a Alemanha não tinha a condição de formar sua soberania,
seja ela interna ou externa, pois não tinha uma força militar unificada e era carente de
instituições financeiras baseadas no direito público.
A ação unificadora e centralizadora do Estado é identificada por Hegel como uma
ação política, no seu sentido de ação pública. O Estado, como realidade moral, implica que as
obrigações do indivíduo para com a realidade sejam também a sua liberdade particular. No
Estado direito e dever se encontram numa mesma relação.
Hegel percebe que a era moderna caracteriza-se pela emergência de uma nova esfera
social – a sociedade civil, que seria para ele o “verdadeiro reino da particularidade”
(Coutinho, 1999, p.235). Com isso, Hegel procura conciliar a liberdade do particular com a
prioridade do público sobre o privado. Sua filosofia política caminha para a conciliação entre
a liberdade particular com a “ética” pública – priorizar o público sobre o privado, criando
“instâncias universalizadoras que superem dialeticamente (ou seja, que conservem, eliminem
e elevem a nível superior) essa esfera da particularidade, sobretudo a sociedade civil” (Idem,
p.236). Nas palavras de Hegel (1997):
94
A especulação concreta, a idéia mostra como o momento da particularidade
é também essencial e como é, portanto necessária a sua satisfação. (...) Na
verdade, não deve o interesse particular ser menosprezado e suprimido, mas,
sim, conservado em harmonia com o interesse geral para que, assim, um e
outro sejam assegurados (Hegel, 1997, p.213).
Não se trata de subordinar a liberdade particular (sociedade civil) ao Estado, mas trata-
se de superar as vontades particulares na vontade universal (Estado). Trata-se da “eticidade” –
dimensão concreta da noção de “vontade geral”.
Explica Coutinho (1999):
Porque vivem em comunidade, os homens constroem determinados valores,
determinadas normas de conduta, que regulam e organizam sua ação
interativa, emprestando um conteúdo concreto às suas escolhas individuais
(as quais, na esfera da moralidade, são ainda formais e abstratas).
Manifestando-se de modo natural na família e de forma inconsciente e
apenas embrionária na sociedade civil, a eticidade encontra no Estado – e no
Estado entendido não apenas enquanto esfera particular entre outras, não
apenas enquanto “governo”, mas sim como a totalidade orgânica das várias
esferas da vida social, com a manifestação concreta do “espírito objetivo” –
a sua figura efetivamente adequada (p.237-238).
Hegel via na família uma comunidade que amalgama naturalmente seus membros. Na
sociedade civil (burguesa) esses indivíduos são atomizados, pulverizados, colocados uns
contra os outros, tornam-se autônomos, danificando o caráter comunitário existente na família
– por isso, reino da particularidade. E é no Estado que esses indivíduos vão se reintegrar,
“voluntariamente, numa opção madura e refletida, como cidadão: a liberdade, guiada pela
razão, os leva a reconhecer e assumir a necessidade” (Konder, 1991, p.63).
Para Hegel a sociedade civil burguesa confunde o universal com o particular. É no
âmbito do Estado que ele pode superar essa confusão e se elevar à razão. Por isso, o Estado
para Hegel é o nível superior desse movimento; “é a ‘efetividade da idéia ética’, a unidade da
consciência objetiva” (Idem).
95
Ser cidadão é, para o filósofo alemão, o ápice do Estado-ético. Para Hegel (1997):
Estas instituições integram a Constituição, isto é, a razão desenvolvida e
realizada no particular, e são, portanto, a base segura do Estado bem como
da confiança dos sentimentos cívicos dos indivíduos; são os pilares da
liberdade pública, uma vez que, por elas, é racional e real a liberdade
particular e nelas se encontram reunidas a liberdade e a necessidade. (...) O
despotismo é caracterizado por aquela ausência de lei em que a vontade
particular enquanto tal – seja a de um monarca, seja a de um povo – vale
como lei, ou melhor, vale em vez da lei (pp.213-233).
Conforme interpretação de Konder (1991): “Tornando-se cidadão de um Estado
provido de boas leis, o sujeito seria livre como indivíduo e, ao mesmo tempo, serviria à
comunidade, contribuindo ativamente não só para preservar as leis boas como para
aperfeiçoá-las” (p.62).
A formação do cidadão resulta do desenvolvimento do próprio “Espírito”, da história
da humanidade que, através da razão (consciência) superou o estágio egoísta ou
corporativista, no nível da própria sociedade civil (esfera da particularidade) e chega à
liberdade, que vai se efetivar no Estado.
Como cidadão deste Estado, os indivíduos são pessoas privadas que têm
como fim o seu próprio interesse. Como este só é obtido por meio universal,
que assim aparece como um meio, aquele fim só poderá ser alcançado
quando os indivíduos determinarem o seu saber, a sua vontade e a sua ação
de conformidade com um modo universal e se transformarem em elos da
cadeia que constitui o conjunto (Konder, 1991, p.171).
Trata-se de um Estado que resulta da superação dialética de suas esferas sociais
(indivíduo, família, corporações e sociedade civil), que seria a “efetividade da idéia ética”.
Um Estado que se orienta pela totalidade, mas que, conforme muitos estudiosos, nada tem de
totalitário, uma vez que é uma totalidade concreta, diferenciada. “O Estado hegeliano é
necessariamente um Estado pluralista” (Coutinho, 1999, p. 239).
96
Segundo Konder (1991), quando Hegel fala do Estado na Filosofia do Direito, ele
discorre filosoficamente, mas não deixa de observar as enormes dificuldades para o Estado
(real) corresponder ao seu conceito, pois, ao mesmo tempo, o Estado como resultante de
processos históricos particulares, ele sofre cerceamentos em direção à universalização. O
Estado “possui uma alma que lhe dá vida e que é justamente a subjetividade (...). O Estado é
um ‘hieróglifo da razão’: os sujeitos humanos devem aprender a decifrá-lo pra nele poderem
realizar objetivamente sua liberdade objetiva” (p.64).
Para Gramsci (2000b):
A concepção de Hegel é própria de um período em que o desenvolvimento
extensivo da burguesia podia aparecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou
universalidade desta classe podia ser afirmada: todo o gênero humano será
burguês. Mas, na realidade, só o grupo social que propõe o fim do Estado e
de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético,
tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a criar um
organismo social unitário técnico-moral (CC.V.3.C.8, p.284).
Ao contrário de Hegel, Marx entende que o Estado é a expressão da sociedade civil;
como Hegel, ele compreende que é preciso encontrar uma instância universalizadora da
sociedade civil, mas considera que a universalidade introduzida pela racionalidade estatal é
um falso universal. O Estado, “...é um Estado de classe: não é a encarnação da Razão
universal, mas sim uma entidade particular que, em nome de um suposto interesse geral,
defende os interesses comuns de uma classe particular” (Coutinho, 1996, p.23).
A gênese do Estado reside na divisão da sociedade em classes e sua função é
conservar e reproduzir essa divisão, de forma a garantir que interesses particulares da classe
dominante sejam impostos como interesse geral da sociedade. O Estado de classe se realiza na
despolitização da sociedade e na apropriação de “modo monopolista de todas as decisões
atinentes ao que é comum (ou universal)” (Idem, p.25), e faz isso através de seu conjunto de
“aparatos repressivos”, que é o modo principal de dominação de classe.
97
Para Coutinho (2006):
A grande descoberta de Marx no campo da teoria política foi a afirmação do
caráter de classe de todo fenômeno estatal; com isso, ele deixava claro que o
Estado – cuja universalidade havia sido tão enfaticamente afirmada por
Hegel – tem sua gênese e explicação nas contradições inerentes à sociedade
como um todo. Em Marx, o Estado é visto a partir da sociedade civil,
enquanto em Hegel esta última é apresentada como um momento particular
do Estado. A gênese do Estado, para Marx, reside na divisão da sociedade
em classes: o Estado só existe quando e enquanto existir esta divisão, a qual
provém, por sua vez, do modo como se apresentam as relações sociais de
produção; e a função do Estado é precisamente a de conservar e reproduzir
esta divisão em classes, assegurando que os interesses particulares de uma
classe se imponham como se fossem os interesses universais da sociedade.
Além de examinar a gênese e a função do Estado, Marx examinou também a
sua estrutura: apontou na coerção o principal recurso pelo qual o poder
estatal faz valer a sua natureza de classe (p.32).
Marx e Engels (2002c), se opondo à concepção de Hegel de que ao Estado caberia a
função de dar organicidade universal à sociedade civil, através da racionalidade
universalizadora, apontam na obra A Ideologia Alemã que:
Sendo o Estado, portanto, a forma pela qual os indivíduos de uma classe
dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a
sociedade civil de uma época, conclui-se que todas as instituições comuns
passam pela mediação do Estado e recebem uma forma política. Daí a ilusão
de que a lei repousa na vontade, e, mais ainda, em uma vontade livre,
destacada da sua base concreta. Da mesma maneira, o direito por sua vez
reduz-se à lei (p.74).
Marx compreende o modo como a política da burguesia dependia do fator econômico,
designadamente das relações de propriedade, com isso, percebeu a incapacidade de a
revolução burguesa assegurar a verdadeira igualdade, que não é a igualdade formal de todos
perante a lei, mas a mudança radical das relações de propriedade.
No item em que fazem referência à produção da consciência, na obra A Ideologia
Alemã, Marx e Engels (2002c) discorrem sobre a força misteriosa do “mercado mundial”:
(...) essa força, tão misteriosa para os teóricos alemães, será superada com a
derrubada do atual estado social, pela revolução comunista (...) e pela
abolição da propriedade privada, que lhe é inerente; então a libertação de
98
cada indivíduo em particular se realizará exatamente na medida em que a
história se transformar completamente em história mundial. (....) está claro
que a verdadeira riqueza intelectual do indivíduo depende inteiramente da
riqueza de suas relações reais. E só desta maneira que cada indivíduo em
particular será libertado das diversas limitações nacionais e locais que
encontra... (Marx e Engels, 2002c, p.34).
A partir da análise da formação social das ideologias, Marx e Engels rompem com o
pensamento hegeliano de “Estado Universal” (ou “esfera da universalização” ou “totalidade
do Espírito objetivo” ou “encarnação da Razão Universal) e a define como uma entidade
particular que, em nome de um suposto interesse geral, defende os interesses de uma classe
particular” (Coutinho, 1996, p.19) - trata-se de um Estado de classe.
Nessa perspectiva, não é o Estado que cria a sociedade civil, ao contrário, é a
sociedade civil que cria o Estado. A sociedade civil, “esfera das necessidades materiais dos
indivíduos, a esfera em que os indivíduos cuidam dos interesses particulares (...), reino das
relações econômicas (...) – palco de toda a história” (Marx e Engels, 2002c, p.33) – e a
história é a história das lutas de classes.
Esta concepção da história, (...), tem por base o desenvolvimento do
processo real da produção, e isso partindo da produção material da vida
imediata; ela concebe a forma dos intercâmbios humanos ligada a esse modo
de produção e por ele engendrada, isto é, a sociedade civil em seus diferentes
estágios como sendo o fundamento de toda a história, o que significa
representá-la em sua ação enquanto Estado, bem como em explicar por ela o
conjunto das diversas produções teóricas e das formas de consciência,
religião, filosofia, moral, etc., e a seguir sua gênese a partir dessas
produções, o que permite então naturalmente representar a coisa na sua
totalidade (e examinar também a ação recíproca de seus diferentes aspectos).
Ela não é obrigada, como ocorre com a concepção idealista da história, a
procurar uma categoria em cada período, mas permanece constantemente no
terreno real da história: ela não explica a prática segundo a idéia, explica a
formação das idéias segundo a prática material; chega por conseguinte ao
resultado de que todas as formas e produtos da consciência podem ser
resolvidos não por meio da crítica (espiritual) intelectual, pela redução à
‘consciência de si’ ou pela metamorfose em ‘almas do outro mundo’, em
‘fantasmas’, em ‘obsessões’, etc., mas unicamente pela derrubada efetiva das
relações sociais concretas de onde surgiram essas baboseiras idealistas. A
revolução, e não a crítica, é a verdadeira força motriz da história, da religião,
da filosofia e de qualquer outra teoria (pp.35-36).
99
Konder (1991) observa que Marx identificou um certo formalismo lógico nas análises
de Hegel, acarretando distorções na concepção hegeliana de sujeito, que foram causados pela
abstratividade presente na concepção do homem. “Se os homens que fazem a história são os
seres pensantes, aqueles que dispõem de antenas privilegiadas para captar os sinais emitidos
pelo ‘espírito do tempo’”, que elevam seus espíritos, que atingem a “consciência crítica” – “o
desprezo elitista e preconceituoso pelas massas populares aparece como uma conseqüência
‘lógica’ das condições em que os homens desenvolvem sua atividade” (p.94). A concepção
histórica de Hegel não o permite assimilar a riqueza da significação dos movimentos
populares “(como não consegue se ‘abrir’ para a assimilação da riqueza inesgotável da
diversidade das culturas dos diferentes povos)” (Idem, p.95).
Para Konder (1991), essas falhas na concepção hegeliana do homem e da história são
devidas a uma abordagem estreita da atividade humana e por uma concepção limitada do
processo histórico, tendo em vista que “cabia-lhe enfrentar simultaneamente o desafio de
pensar o tumulto abrindo caminho para o novo no interior da ordem constituída” (p.96).
Segundo o autor, sua tarefa era reconhecer as contradições e encaminhar a superação, em
seguida reconhecer as novas contradições emergentes, que precisariam, depois, ser superadas.
Tomar como ponto de partida a análise da realidade concreta e não as premissas
abstratas – a “lógica das coisas” e não a “coisa da lógica”, conforme suas críticas ao idealismo
hegeliano e à crítica de Feuerbach, fez com que Marx avançasse no materialismo e percebesse
que a chave para o entendimento do processo de desenvolvimento histórico da humanidade
estaria na sociedade civil.
Mas foi no período pós 1844 que Marx percebeu que o caminho para compreender a
dinâmica da sociedade civil burguesa estava na “crítica da economia política”. E é na obra “A
Ideologia Alemã” (1845-46) que Marx e Engels (2002c), pela primeira vez, explicitam a sua
concepção de história, sociedade e cultura, que junto com “Teses sobre Feuerbach”,
100
formalizam sua concepção materialista: “Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu
para a terra, aqui é da terra que se sobe para o céu” (Marx e Engels, 2002c, p.19).
É na obra Manifesto do Partido Comunista (1848) que se encontra, claramente, a nova
concepção de Estado relacionada com a teoria da revolução socialista: “o poder político do
Estado moderno nada mais é do que um comitê para gerir os negócios comuns de toda a
burguesia; o poder político é poder organizado de uma classe para a opressão de outra” (p.26),
considerada como uma concepção “restrita de Estado”.
Cabe observar que, alguns cientistas políticos da atualidade concebem como um erro
considerar que a concepção de Estado de Marx é restrita, pois na obra “Dezoito Brumário e
Luis Bonaparte” (1852) já se pode observar que sua teoria de Estado foi “ampliada”. Coutinho
(1996) aponta uma nova formulação na introdução que Engels faz à obra de Marx “As lutas
de classe na França” (1895).
Para ele o processo de evolução do conceito de Estado de Marx corresponde a
exatamente ao processo histórico de alargamento da participação política; não só à existência
efetiva de um Estado “restrito”, mas também de uma esfera pública “restrita”.
Coutinho (2002) destaca um trecho dos Cadernos do Cárcere onde Gramsci, ao
analisar a “doutrina de Hegel sobre os partidos e as associações como ‘trama’ privada do
Estado”, faz observações sobre as bases históricas das análises de Hegel e Marx:
Sua concepção de associação [de Hegel] só pode ser ainda vaga e primitiva,
situada entre o político e o econômico, de acordo com a experiência da
época, que era muito restrita e fornecia um único exemplo completo de
organização, a organização ‘corporativa’ (política inserida na economia).
Marx não podia ter experiências históricas superiores às de Hegel (pelo
menos muito superiores). (...) O conceito de organização em Marx
permanece ainda preso aos seguintes elementos: organizações profissionais,
clubes jacobinos, conspirações secretas de pequenos grupos, organização
jornalística (Apud,Coutinho, 2002, p.125).
101
Gramsci viveu uma época em que se intensificam os processos de socialização da
participação política e surgem novos sujeitos políticos coletivos de massa – os grandes
sindicatos, os partidos políticos operários e populares, os parlamentos eleitos por sufrágio
universal, a expansão da mídia crítica.
Esse movimento histórico de sua época o permitiu perceber com mais clareza que a
sociedade civil vai se tornando uma esfera dotada de relativa autonomia frente à esfera
econômica e aos aparatos repressivos do Estado. A percepção dessa socialização política
permite a Gramsci elaborar uma teoria “ampliada” de Estado, introduzindo novos elementos,
sem, no entanto, eliminar o caráter de classe e repressivo da concepção de Estado de Marx.
Gramsci (1999) percebe que o Estado burguês, com seus aparelhos coercitivos e
ideológicos, já não consegue impedir a formação voluntária de organismos de participação
política (organismos “privados” – “aparelhos privados de hegemonia”). E que no próprio
interior dos aparelhos coercitivos e ideológicos do Estado – sistemas escolares e judiciários –
existem disputas pela hegemonia - “...o Estado, ainda que os governantes digam o contrário,
não tem uma concepção unitária e homogênea” (CC.V.1.C.11, p.112).
Nas palavras de Coutinho (1999):
O Estado já não se impõe coercitivamente uma religião
55
; e até mesmo o
sistema escolar, controlado agora em parte pelo Estado, passa a admitir cada
vez mais uma disputa ideológica em seu próprio interior. (...) As ideologias,
ainda que obviamente não sejam indiferentes ao Estado, tornam-se algo
‘privado’ em relação a ele: a adesão às ideologias em disputa tornaria um ato
voluntário (ou relativamente voluntário), e não mais algo imposto
coercitivamente (p.133).
55
Coutinho entende que “religião” para Gramsci tem o sentido de um tipo de pensamento incorporado no senso
comum que não mais se questiona, pois se trata de fé, de crença em uma determinada idéia.
No caderno 11, nota IV, ao tratar sobre senso comum, religião e ideologia, Gramsci, de fato, dá um sentido à
religião distinta de ideologia e política.
102
Na sociedade capitalista avançada a concepção de Estado se amplia, porque traz novas
determinações que se concentram na sociedade civil e, dessa forma, a sociedade civil
capitalista avançada se torna “relativamente” autônoma frente à sociedade política – ao
Estado “restrito”. A sociedade civil passa a ter sua materialidade social própria, através de
organismos “privados” - com concepções antagônicas de mundo – que disputam e lutam pela
hegemonia. Os resultados dessas disputas e lutas por espaços de direção (política, intelectual
e moral), os “avanços e retrocessos”, vão se objetivar na sociedade política, nos aparatos
legais, isto é, no interior do próprio Estado-coerção.
E é essa independência material – ao mesmo tempo base e resultado da
autonomia relativa assumida agora pela figura social de hegemonia – que
funda ontologicamente a sociedade civil como uma esfera própria, dotada de
legalidade própria, e que funciona como mediação necessária entre a
estrutura econômica e o Estado-coerção (Coutinho, 1999, p.129).
O Estado, para Gramsci, compreende o conjunto dos órgãos por meio do qual a
hegemonia e a coerção da classe dominante são exercidas sobre as classes dominadas da
sociedade. A hegemonia e a coerção, os dois aspectos da dominação, são asseguradas pelo
exercício das duas funções do Estado: função de domínio e função hegemônica. A função de
domínio é desempenhada na sociedade política e envolve a coerção, em seus aspectos legais e
mesmo policial-militar. A função hegemônica é desempenhada pela sociedade civil que tem a
função de obter o consenso e a adesão das classes subalternas, formando um bloco que integra
as diversas forças sociais, fomentando a unificação ideológica e cultural da nação (bloco
histórico).
Para Gramsci (2000b): “(...) por ‘Estado’ deve-se entender, além do aparelho de
governo, também o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil” (CC.V.3.C.6, p.254).
Assim, o sentido para Gramsci de sociedade civil não é o mesmo sentido atribuído por Hegel,
Marx e Engels. Sociedade Civil para Gramsci é o “conjunto das instituições responsáveis pela
103
representação dos interesses de diferentes grupos sociais (e) pela elaboração e/ou difusão de
valores simbólicos e de ideologias” (Coutinho, 1996, p.54), em processo constante de disputa
– uma esfera do Estado (amplo).
É no âmbito da sociedade civil que as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja,
elas buscam ganhar aliados para a conquista da direção política e obter o consenso da classe
dominada. E por meio da sociedade política, o Estado (restrito), ao contrário, exerce uma
dominação fundada na coerção. Assim, a sociedade civil composta pelo conjunto dos
“aparelhos privados de hegemonia” vai exercer a função de mediação entre estrutura
econômica e o Estado (restrito, Estado-coerção).
E é justamente na relação entre estrutura e superestrutura que Gramsci conduzirá suas
análises. Toda a sua reflexão tomou como base as determinações concretas, históricas de sua
época. Traça seu pensamento percorrendo três dimensões: filosófica, política e econômica.
Ele percebeu que a burguesia não poderia desenvolver suas forças produtivas sem o Estado e
nesse sentido, os aspectos históricos e culturais e os movimentos políticos da sociedade civil
terão uma função decisiva na constituição de uma nova hegemonia; na “luta pela unificação
cultural do gênero humano” (Gramsci, 2000b, p.134).
E essa luta é travada no interior da sociedade civil, espaço, do Estado, “dedicado a
promover a articulação e a unificação de interesses, a politizar ações e consciências e a
superar tendências corporativas ou concorrenciais” (Nogueira, 2003, p.223) com fins de
construção de projetos globais de sociedade e de articulação ético-política. Enfim, a sociedade
civil é essencialmente o espaço da política (em seu sentido amplo), de disputa de poder e da
dominação (direção política, intelectual e moral).
Conforme posto anteriormente, da concepção de Estado de Hegel até Gramsci,
passados 166 anos, observam-se mudanças nas formas de compreender a natureza do Estado,
resultante de diferentes contextos históricos. No entanto, de Marx a Gramsci essa mudança na
104
forma de compreender o Estado não altera a concepção da natureza de classe e de sua função
reprodutora.
Hegel vê o Estado moderno como uma instância universalizadora cuja função é elevar
em nível superior a esfera da particularidade – sociedade civil-, fortalecendo, dessa forma, a
ética pública.
Marx percebe as contradições desse Estado e desfaz a idéia de Estado como uma
instância universalizadora, pois para ele o Estado é uma entidade particular, “comitê
executivo” de uma classe particular. O Estado é um Estado de classe. No caso específico do
Estado burguês, Marx compreende que sua força reside nas relações de propriedade, nesse
sentido seria derrubado pela revolução comunista e pela abolição da propriedade privada – “a
derrubada efetiva das relações sociais concretas” e que a chave para compreender o processo
de desenvolvimento histórico do homem está na sociedade civil, nas relações econômicas,
conseqüentemente na “crítica da economia política”.
Gramsci já apresenta uma compreensão mais “ampla” de Estado, pois vive uma
sociedade capitalista mais avançada que a época de Marx e Engels e, com isso, insere, em
suas análises conjunturais, as dimensões filosófica, política e cultural. Ele não abandona a
dimensão econômica, mantém a concepção sobre a natureza de classe do poder estatal, mas
amplia a concepção de Estado ao analisar a dinâmica contraditória existente entre estrutura e
superestrutura.
2.1.1 Estado e sociedade civil no contexto das políticas neoliberais
A passagem do século foi marcada por acelerados movimentos de mudanças do
processo de acumulação, centralização e concentração do capital e pela necessidade de ajustes
nas funções do Estado, tanto para obtenção de resultados favoráveis às atividades econômicas
105
com a liberalização do mercado, como para criar políticas de ajuste, adaptação e controle
sociais necessários à “nova ordem global”, tais como: a eliminação do Estado como agente
econômico, a redução do seu tamanho através de privatizações e da redução de seus gastos em
políticas sociais. Tais mudanças são legitimadas através da exaltação das virtudes do
mercado em detrimento da ineficiência de um Estado burocrático, e passam a ser
determinadas pelas grandes empresas transnacionais e pelos organismos multilaterais.
A virada radical para a financeirização “envolveu muitos custos internos, como a
desindustrialização, (...) fases de rápida inflação seguida pelo esmagamento do crédito e o
desemprego estrutural crônico” (Harvey, 2004, p.150). O custo social resultou em aumento da
pobreza, precarização do trabalho com as perdas dos direitos sociais, enfraquecimento das
organizações sindicais, “exclusão, desigualdade e polarização social e regional, atingindo não
apenas aos trabalhadores e a uma vasta massa de ‘subproletariado’ descartável, mas tamm
camadas médias urbanas e setores da burguesia vinculados ao mercado interno” (Gómez,
2004).
A classe média, observa Harvey (2004), para proteger-se dos efeitos do “capital
predatório”, cria movimentos “antiglobalização” e ataca as forças do capital financeiro e suas
instituições de base - Banco Mundial e FMI. No encontro em Davos (1996), as elites
corporativas e financeiras expressam preocupação em relação a esses movimentos e à
possibilidade de uma crescente onda “antiglobalização” que poderiam produzir impactos
destrutivos nas atividades econômicas e na estabilidade social de muitos países.
No decorrer dos anos, continua o autor, os movimentos de oposição às políticas
neoliberais se organizam, mas desprezam as forças das formas tradicionais de organização
(sindicatos e partidos políticos, por exemplo) e passam a se organizar sob formas autônomas,
de caráter diversificado e fragmentado. O resultado
desse embate foi a pulverização de
organizações não-governamentais, de objetivos diversos e até antagônicos, visando ao
106
controle desses movimentos sociais e à redefinição para “canais particulares”, tanto de cunho
revolucionário como conservador. Conforme coloca Harvey (2004), foi como “um fermento
de movimentos sociais locais, dispersos e profundamente distintos entre si que lutavam fosse
para enfrentar fosse para adiar a instalação de práticas neoliberais imperialistas orquestradas
pelo capital financeiro e pelos Estados neoliberais” (pp.150-153).
No Brasil, conforme coloca Coutinho (2006), os movimentos sociais típicos de uma
sociedade civil moderna se destacam com o “novo sindicalismo operário” do ABC paulista,
região mais industrializada do país, no final dos anos 1970, período em que começa a se dar o
processo de corrosão da ditadura militar implantada em 1964. A idéia de sociedade civil como
“portadora material da figura social da hegemonia” é ampliada nos anos 1980-90, refletindo
uma nova realidade brasileira. A sociedade civil brasileira supera a condição de “oriental”,
subordinada ao Estado, ou melhor, a condição de que o “Estado é tudo e a sociedade civil é
primitiva e gelatinosa” (Gramsci, Apud Coutinho, 2006) e assume uma “justa relação entre
Estado e sociedade civil”, se “ocidentaliza” (Idem). No entanto, seu destino, conforme coloca
o autor, é curioso:
No contexto da luta contra a ditadura, sociedade civil tornou-se sinônimo de
tudo aquilo que se contrapunha ao Estado ditatorial. Essa identificação foi
facilitada não só porque, na linguagem corrente, ‘civil’ significa o contrário
de ‘militar’, mas, sobretudo porque, no período final da ditadura, até mesmo
os organismos ligados à grande burguesia (que sempre foi a principal
beneficiária da ditadura) começaram progressivamente – ao perceberem o
seu inexorável declínio, a sua crescente perda de qualquer legitimidade, em
decorrência sobretudo da crise econômica iniciada em meados dos anos
1970 – a se desligarem do regime militar, adotando uma postura de oposição
moderada. Disso resultou, já então, uma primeira leitura problemática do
conceito de que estamos tratando: o par conceitual civil/Estado – que forma
em Gramsci, como vimos, uma unidade na diversidade – assumiu os traços
de uma dicotomia radical, marcada ademais por uma ênfase maniqueísta (...).
Mas as coisas se complicaram ainda mais quando, a partir do final dos anos
1980, a ideologia neoliberal em ascensão apropriou-se (desta) dicotomia
maniqueísta entre Estado e sociedade civil para demonizar de vez tudo o que
provém do Estado (...) e para fazer apologia acrítica de uma ‘sociedade civil’
despolitizada, ou seja, convertida naquele mítico ‘terceiro setor’ homogêneo,
falsamente situado para além do Estado e do mercado (pp.46-48).
107
A ideologia neoliberal ascende nos anos 1980-90 no Brasil, conferindo à sociedade
civil o estatuto de uma “terceira esfera”, ao lado do Estado (esfera político-administrativa) e
do mercado (esfera econômica), como um “terceiro setor” - “organizações e/ou ações da
‘sociedade civil’ (não-estatais e não-mercantis)” (Montaño, 2002, p.182).
Montaño (2002) vai explicar que com a crise fiscal dos anos 1970-80 o crescimento do
“terceiro setor” se dá pelas teses “da escassez” de recursos, do “paternalismo” do Estado,
“acusado de promover uma relação de excessiva proteção ao necessitado”, que gera
dependência e acomodação”, e de seu caráter “burocrático”, por conta de “sua monstruosa
estrutura, sua dinâmica lenta, a corrupção interna (....) sua política patrimonialista e
clientelista”. No seu conjunto, essas teses fizeram surgir a idéia de “crise de governança” e da
“passagem” e “compensação”, isto é, a idéia de que “a diminuição da intervenção estatal nas
seqüelas da ‘questão social’ teria sido ‘compensada’ pelo crescimento da intervenção da
sociedade civil” (pp. 219-222).
Estas teses vão se objetivar a partir dos anos finais da década de 1980, quando o
Banco Mundial implementa o Fundo Social de Emergência (FSE). O FSE, dentro de uma
abordagem da “engenharia social”, desenvolveu um programa chamado de “programa com
metas estabelecidas”, no qual combinava a “recuperação do custo” e a “privatização” dos
serviços de saúde e educação. Os programas que estavam sob a jurisdição dos governos
federais passam a ser executados por organizações da sociedade civil, com o patrocínio do
FSE. Chossudovsky (1999) vai identificar que o FSE “também financia, sob o auspício da
‘rede de seguridade social’, o pagamento de indenização por demissão e/ou projetos de
‘mínimo emprego’ destinados aos funcionários públicos demitidos em conseqüência do
programa de ajuste” (p.58).
108
Dessa forma, expõe o autor:
O FSE sanciona oficialmente a retirada do Estado dos setores sociais e a
‘administração da pobreza’ (no âmbito microssocial) por meio de estruturas
organizacionais separadas e paralelas. Várias organizações não-
governamentais (ONGs) financiadas por ‘programas de ajuda’ internacionais
têm absorvido gradualmente muitas das funções do governo de cada país.
Produção em pequena escala e projetos de produção artesanal,
subcontratação por firmas de exportação, treinamento com base comunitária
e programas de emprego, etc. são organizados sob os auspícios da ‘rede de
seguridade social’. Assegura-se, desse modo, uma precária sobrevivência
para as comunidades locais, ao mesmo tempo em que se diminui a
sublevação social (Chossudovsky, 1999, pp.58-59).
Montaño (2002), ao analisar “O que está por trás do chamado ‘terceiro setor’: ‘setor’ ou
função social?”, aponta que a conceituação predominante de “terceiro setor” não é um “acidente
teórico”, pois insere um caráter “inteiramente ideológico e inadequado ao real”. Para o autor, a
predominância do termo “terceiro setor” induz ao entendimento deste fenômeno associado às
organizações da sociedade civil, o que acaba por conduzir a “uma desarticulação do real”, propiciando
uma maior aceitação do fenômeno em questão: “em lugar das organizações do Estado (burocrático e
ineficiente) ou do mercado (lucrativo) para responder às demandas sociais, as organizações da
sociedade civil assumem essa tarefa” (pp.184-185).
A título de ilustração, pode-se identificar que desde os anos 1990, no Brasil, houve um
aumento significativo do número de organizações não-governamentais (Ongs)
56
e de
empresas ditas “cidadãs” ou “responsáveis socialmente”, que investem ou atuam em
atividades educativas informais, visando ao combate à violência infantil urbana e rural, ao
problema dos meninos de rua e do trabalho e de prostituição infantis; na educação de jovens e
adultos da periferia urbana e favelas patrocinando programas profissionalizantes de inclusão
digital; na educação infantil, através da criação de creches, etc., além de apoiarem programas
56
Mais recentemente surgiram outras modalidades de organização deste tipo, denominadas de Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
109
e ações governamentais.
Uma pesquisa realizada pela Fundação Dom Cabral, “Balanço Social: Comunicando a
responsabilidade Social Corporativa” (2002) revela que em 1998, apenas três empresas
apresentaram balanço social e que, em 2002, este número subiu para 286. E segundo a
pesquisa “Ação Social das Empresas” do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
são cerca de 470 mil empresas brasileiras as que dão contribuições sociais. Dessas, 59%
desenvolvem ações em benefício da comunidade; 76% declararam “realizar atividades sociais
por razões humanitárias e elegem as áreas de assistência social (54%) e de alimentação (41%)
como prioritárias, sendo que a maioria (62%) se volta para o grupo infantil”. Já a pesquisa
Investimento Social na Comunidade 2004” realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento
do Investimento Social (IDIS) aponta que: “a área que recebe mais investimento (das
empresas) é a educação (82%), seguida de meio ambiente (69%), cultura (53%) e saúde
(47%)”.
Observa-se o foco nas camadas mais pobres da população e uma significativa e
crescente presença do “terceiro-setor” na educação.
Fiori (2001) vai identificar que, quando os governos latino-americanos foram
transferindo a “capacidade de decisão” para as agências internacionais (enquanto uma
condição para se obter empréstimo com o FMI e o Banco Mundial), a questão da
“governabilidade” emerge, isto é, a questão da ineficiência do Estado (pp.30-31).
57
Para o
autor, a expressão “governabilidade” não se trata de um conceito, mas de “uma categoria
estratégica cujos objetivos imediatos podem variar segundo o tempo e o lugar, mas que será
sempre e irremediavelmente situacionista” (Fiori, 1998, p.39).
57
Para Fiori (2001), o Brasil se transformou “na primeira cobaia internacional de um experimento que combina,
num ‘mercado emergente’, a aceitação contratual e compulsiva das regras e prescrições do Acordo Multilateral
de Investimentos” (AMI) mais as regras da Organização Mundial do Comércio (p.31).
110
Leher (1998) vai indicar que, ciente das “conseqüências desestabilizadoras da
exclusão estrutural de vastas regiões mundiais”, o Banco Mundial dá um lugar de destaque à
educação em suas orientações e políticas sociais (p.247) e também enfatiza a necessidade de
administrar a pobreza (Chesnais, 1995), realizando uma “boa governança”.
Milani e Solinís (2002) explicam que:
No final dos anos 80, o vocábulo governance ressurgiu no seio do Banco
Mundial. O que estava em jogo era de monta para os economistas neoliberais
do Banco que, no início dos anos 80, tinham nitidamente suplantado os
economistas keynesianos. Tratava-se de responsabilizar a incompetência
institucional dos Estados em desenvolvimento pelos fracassos constatados na
implementação dos programas de ajuste estrutural (PAS), ou seja, um
conjunto de reformas macroeconômicas e setoriais julgadas indispensáveis
para a abertura generalizada dos mercados. O conjunto seria legitimado pelo
objetivo renovado da luta contra a pobreza (...). Assim, o apelo a um
vocábulo dado como novo seria explicado pela necessidade de intervir no
campo político, mas de fazê-lo por intermédio de uma excessiva
‘tecnicização dos modelos’ e pelo caráter imperioso e uniforme da reforma
do Estado. Segundo a interpretação presente, por exemplo, no relatório do
Banco Mundial de 1994, a razão dos diversos fracassos dos PAS, sobretudo
em suas dimensões sociopolíticas, estaria assim ligada não à natureza das
relações entre as agências do sistema de Bretton Woods e as administrações
dos países do Sul, ou à maneira como se desenvolvem as liberalizações do
comércio e das finanças em escala mundial, mas sobretudo a ‘má
governança’ reinante nos países em vias de desenvolvimento. Esse foi o
discurso da cooperação internacional em geral. Na prática, as administrações
dos países do Sul deveriam ser reformadas para melhor responder às
exigências da eficácia e da rentabilidade economicistas inerentes aos PAS.
Foi assim que toda uma série de programas nacionais de reforma do Estado
(programas nacionais de "boa governança") surgiu na África, na Ásia e na
América Latina. Esses programas foram (e são) freqüentemente
acompanhados de políticas de descentralização e de formação às técnicas do
"New Public Management" (pp.163-164).
Para os autores, a “boa governança” ou a capacidade de governabilidade, no contexto
neoliberal, tem o sentido de redução dos gastos públicos, sobretudo, na área social, de
desregulamentação dos mercados, de redução e de flexibilização dos custos do trabalho com
reformas na legislação trabalhista e previdenciária, entre outras. Ela substitui políticas de
integração, de cunho universalista e redistributivo, por políticas de inserção, de caráter
residual e focalizada. Centrada exclusivamente em princípios de eficácia econômica
111
(rentabilidade, transparência, "accountability"), a “boa governança” reveste-se de um caráter
ideológico.
Já a literatura acadêmica sobre a governança (continuam Milani e Solinís,
2002) define-a grosso modo como um processo complexo de tomada de
decisão que antecipa e ultrapassa o governo. Os aspectos freqüentemente
evidenciados nessa literatura sobre a governança (...) estão relacionados: à
legitimidade do espaço público em constituição; à repartição do poder entre
aqueles que governam e aqueles que são governados; aos processos de
negociação entre os atores sociais (os procedimentos e as práticas, a gestão
das interações e das interdependências que desembocam ou não em sistemas
alternativos de regulação, o estabelecimento de redes e os mecanismos de
coordenação); e à descentralização da autoridade e das funções ligadas ao
ato de governar (Milane e Solinis, 2002, pp.164-165).
Enfim, trata-se de uma estratégia de legitimação do ideário neoliberal, que busca
esvaziar o caráter político e ideológico imprimindo uma idéia de eficientismo administrativo,
que desloca a ideologia do bem-estar, dos direitos sociais, para as idéias de eficiência e
qualidade, no que se refere aos serviços públicos; reforça uma idéia de democracia como
instrumento de controle das políticas públicas e de estratégia administrativo-organizacional, e
de solidariedade focada na ação particular, suprimindo a concepção de solidariedade universal
como forma privilegiada de enfrentamento da “questão social”.
Assim, no âmbito político, cabe ao Estado facilitar e garantir o bom funcionamento
dos mercados e exercer uma “boa governança”, que, conforme concepção do Banco Mundial,
além de instaurar um ambiente de participação e solidariedade, inclui:
Criar um regime regulatório que atue juntamente com os mercados para
promover a competição; criar um ambiente macro-econômico estável para a
ação dos mercados, ou seja, criação de enabling environment, que gere
certezas à iniciativa privada; eliminar a corrupção, que poderia subverter os
objetivos das políticas, deslegitimando as instituições públicas que dão apoio
aos mercados e, ainda, assegurar os direitos de propriedade, (e) deve
complementar os mercados naqueles setores da produção de bens e serviços
em que ao setor privado não interessa entrar. Por exemplo: na produção de
bens públicos; em mercados que apresentam falhas ou, ainda, em prestação
de serviços sociais àqueles que não conseguem pagar por eles (Ugá, 2004,
112
p.60).
58
A idéia da “boa governança”, revestida de maior eficácia na atuação do Estado, no
“desenvolvimento sustentável” e na “administração da pobreza”
59
, ampliada com a
participação da sociedade civil atribuindo um caráter democrático e transparente na gestão,
vai sendo disseminada e construída em um cenário de aparente harmonia e solidariedade que,
para Chossudovsky (1999), reveste-se de uma “contra-ideologia” inofensiva às prescrições da
política neoliberal.
Esse dogma neoliberal ‘oficial’ também cria seu próprio ‘contra-paradigma’,
incorporando um discurso altamente moral e ético, que se concentra no
‘desenvolvimento sustentável’ e na diminuição da pobreza. (....) Essa
‘contra-ideologia’ raramente desafia as prescrições da política neoliberal. Ela
se desenvolve paralelamente e em harmonia com o dogma neoliberal oficial,
e não em oposição a ele (p.34).
Entende-se que as idéias de “administrar a pobreza” e de “desenvolvimento
sustentável” contidas nas orientações de políticas do Banco Mundial não poderiam de fato
desafiar as prescrições da política neoliberal. Considera-se que a função do Banco Mundial é
a de objetivar tais prescrições, mas “cuidando” de seu impacto e conseqüências políticas e
sociais. Nesse sentido, entende-se que não se trata somente de um “discurso moral e ético”
inofensivo, mas trata-se de estratégias minuciosamente articuladas com as prescrições
econômicas do FMI: reduzir os gastos públicos dos países dependentes, principalmente os
gastos sociais, direcionando a administração da pobreza para as organizações da sociedade
civil (não-governamentais, “de interesse público”, “responsável socialmente”...), pautando-se
58 UG
Á
, Vivian Dominguez. “A Categoria ‘Pobreza’ nas Formulações de Política Social do Banco Mundial”. Revista de Sociologia e Política, nº 23: 55-62 Nov. 2004.
A
autora faz referência ao documento:WORLD BANK, World Development Report. Building Institutions for
Markets. Washington, D.C.: The World Bank Group.2002, p. 99.
59
Sobre as idéias de “boa governança” e “desenvolvimento sustentável” serão aprofundadas mais adiante,
tomando como base os documentos das principais agências multilaterais.
113
na ideologia da “boa governança”. A “boa governança” implica implementar políticas sociais
de baixo custo, utilizando-se de mão-de-obra voluntária e de recursos doados pela população.
As políticas sociais são definidas a partir de pesquisas quantitativas que vão dar um caráter de
cientificidade e neutralidade a essas políticas.
Tomando como fundamento a concepção de sociedade civil em Gramsci, pode-se
afirmar que a atual conjuntura, onde predomina a concepção de sociedade civil à parte do
Estado e do mercado, isto é, como “terceiro setor”, configura-se em um processo hegemônico
no qual, para além de garantir o consenso da classe subalterna para a implementação das
novas determinações do capitalismo mundializado, busca-se instaurar o “conformismo
social
60
, sedimentar a “vontade do conformismo” no seio da própria sociedade civil. Ao
penetrar no senso comum a idéia de que as organizações da sociedade civil, de certo tipo, são
mais eficazes, uma vez que não têm a ineficiência burocrática do público e nem o caráter
lucrativo do privado, promove-se a despolitização da sociedade civil. A sociedade civil deixa
de ser o espaço de conflito e luta para ser o espaço do “conformismo”. E é neste sentido que
se torna fundamental compreender a categoria “sociedade civil” na sua totalidade.
Retomando alguns pontos anteriores, viu-se que para Gramsci, a sociedade civil não é
uma esfera à parte do Estado; a sociedade civil é Estado, uma vez que é um território de
disputas e de definições de poder. Nas palavras de Semeraro (2001), a sociedade civil é “o
campo onde se lançam premissas concretas, capilares e abrangentes dum projeto global de
sociedade; (...) torna-se o território dos embates e da busca de formas concretamente
convincentes para a expansão das forças que lutam para fazer prevalecer os interesses da
60
A categoria “conformismo social” é tratada por Gramsci no Caderno 13, parágrafo 7: “Questão do ‘homem
coletivo’ ou do ‘conformismo social’: Tarefa educativa e formativa do Estado, cujo fim é sempre o de criar
novos e mais elevados tipos de civilização, de adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas massas
populares às necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de produção e, portanto, de
elaborar também fisicamente tipos novos de humanidade (CC.V.3.C.13, 2000b, p.23).
114
maioria da população” (Semeraro, 2001, p.258).
Ao analisar o Estado moderno e o modo de produção capitalista em estágio mais
avançado, pontuando a unidade e reciprocidade entre o estrutural e o superestrutural, Gramsci
amplia o conceito de Estado marxiano introduzindo uma nova dimensão de análise das forças
sociais articulada à noção de hegemonia – a sociedade civil.
Segundo Gramsci (2000b):
A revolução provocada pela classe burguesa (...) na função do Estado
consiste especialmente na vontade de conformismo (...). As classes
dominantes precedentes eram essencialmente conservadoras, no sentido de
que não tendiam a assimilar organicamente as outras classes: a concepção de
castas fechadas. A classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo
em contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a
a seu nível cultural e econômico; toda a função do Estado é transformada: o
Estado torna-se ‘educador’... (CC.V.3.CC.8, p.271; grifo nosso).
Este pensamento de Gramsci nos remete à tese de Marx e Engels (2002c):
Os pensamentos da classe dominante são, também, em todas as épocas, os
pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder
material dominante numa determinada sociedade é também o poder
espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios da produção material
dispõe também dos meios da produção intelectual, de tal modo que o
pensamento daqueles aos quais são negados os meios de produção
intelectual está submetido também à classe dominante; eles são essas
relações materiais dominantes consideradas sob forma de idéias, portanto a
expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; em
outras palavras, são as idéias de sua dominação (p.48).
Compondo o Estado moderno em sua concepção mais ampla, estão: a sociedade
política, em sua função coercitiva, e a sociedade civil, na função de buscar o consenso. E o
exercício de poder incide através da relação orgânica e recíproca destas funções, coerção-
consenso, domínio-direção intelectual e moral. No estágio mais avançado do Estado
capitalista o consenso, e não somente a força ou coerção, é fundamental para que uma classe
mantenha ou conquiste a hegemonia (não havendo consenso não há hegemonia).
115
Nas sociedades em que o estágio de produção do capital encontra-se mais avançado,
onde houve a ampliação dos espaços de participação política, como resultado das lutas dos
trabalhadores por conquistas sociais e políticas, e a formulação da opinião pública é
fundamental para a conquista e a conservação da hegemonia, as relações de poder são
exercidas, recíproca e organicamente, através da sociedade política e da sociedade civil.
A sociedade civil composta pelo conjunto dos “aparelhos privados de hegemonia” é
um termo de mediação entre a estrutura econômica e o Estado (restrito). “Sua força reside
menos na coerção que no fato de que suas grades são tanto mais eficazes quanto menos
visíveis se tornam” (Coutinho, 1989, pp.75-76). Mas a função e a materialidade da
“autonomia relativa” das esferas da superestrutura ou da sociedade civil, composta por
organismos sociais coletivos de participação política voluntária, são mediações condicionadas
historicamente.
A disputa por uma nova hegemonia é travada no interior da sociedade civil, “uma
arena privilegiada da luta de classes” (Coutinho, 2000, p.25), com fins de construção de
projetos globais de sociedade, de articulação ético-político, enfim, essencialmente espaço da
política (em seu sentido amplo), de disputa de poder e da dominação.
Nesta perspectiva, compreende-se que a concepção de sociedade civil como uma
“terceira esfera” ou “terceiro setor” imprime os pressupostos organizativos e institucionais do
projeto neoliberal, que procura obter o consenso e a legitimidade para tornar-se hegemônico
em relação a atual conjuntura do capital, estimulando a auto-organização da sociedade - em
defesa de interesses corporativos, de resultados imediatos, regidos por uma lógica solidária e
cívica -, e a participação política dos organismos, limitada à execução e ao controle de tal
projeto societário.
116
Conforme observa Coutinho (2000): “Do ponto de vista ideológico, essa postura se
manifesta, entre outras coisas, precisamente na tentativa teórico-prática de ‘despolitizar’ a
sociedade civil” (p.21), e com ela, desmobilizar qualquer tentativa de construção de uma
contra-hegemonia.
A preocupação em relação às dissonâncias conceituais refere-se não a um embate
teórico-acadêmico, mas aos riscos práticos, políticos, de se compreender a sociedade civil
como uma esfera dissociada do Estado e, com ela, reforçar a fragmentação política, a
reprodução do conformismo e a passividade. Sendo a sociedade civil uma “arena privilegiada
da luta de classe”, espaço “dedicado a promover a articulação e a unificação de interesses, a
politizar ações e consciências e a superar tendências corporativas ou concorrenciais”, tal
compreensão pode levar a enfraquecer os embates e as correlações de forças, impedindo o
desenvolvimento de estratégias objetivas de poder e de contra-hegemonia.
Ao supor que o conceito de hegemonia de Gramsci expressa a prioridade de “vontade
geral” – interesse comum -, sobre a vontade particular – o interesse privado -, pode-se
entender que o capital, no decorrer de seu processo histórico, expandiu sua esfera de domínio
ao desenvolver capacidades estratégicas refinadas de impor a adesão à sua forma particular de
ver o mundo e o homem. E, com isso, naturalizam-se as formas mais cruéis de reprodução
social com certa tranqüilidade e conformismo. “Em vez da ‘libertação’ propõe-se a ‘inserção
ou a ‘integração’, e, em vez da luta social, a ‘solidariedade’ humanitária ou empresarial”
(Casanova, 2001, p.46).
No conjunto político, considera-se que tais propostas, orientações e políticas inserem
“princípios pedagógicos” para a formação de um tipo de homem (solidário e conformado) e
de um tipo de sociedade (colaboradora e não conflitiva) que os Estados, principalmente os
Estados dependentes, devem construir como único caminho possível para gerar crescimento
econômico e social e, “naturalmente”, suscitar o bem-estar social.
117
Tomando a concepção de Gramsci de Estado ampliado e de Estado educador, pode-se
concluir que a sociedade civil enquanto “protagonista” dessa nova estratégia conservadora,
mais que promover a despolitização e a enfraquecer os embates em seu interior, ela exerce
uma “função educadora” junto às massas ao disseminar a idéia de se criar um clima ameno,
sem confrontos, solidário e coeso para “combater” as mazelas sociais; de criar uma “vontade
de conformismo”. Trata-se de um tipo de educação para o “conformismo” que encontra
terreno fértil na atual conjuntura, na qual se tenta instaurar a “paralisia da sociedade civil” e a
impotência dos Estados diante “dos interesses e estruturas transnacionais” (Fiori, 2003, p.21-
22), dos detentores do mercado internacional e das intervenções “orientadoras” dos
organismos multilaterais.
A classe subalterna, refém da crueldade que insere a racionalidade do capital, tende a
aderir e colaborar com as estratégias de redução das tensões e das mazelas sociais através do
engajamento voluntário nos projetos educativo-sociais desenvolvidos pelos novos organismos
coletivos não-governamentais, “de interesse público” e empresariais.
2.1.2 Sociedade civil e a função de educar para o conformismo
Como foi visto anteriormente, Gramsci (2000b) coloca que “o Estado deve ser
concebido como ‘educador’ na medida em que tende precisamente a criar um novo tipo ou
nível de civilização” (CC.V.3.C.13, p.28), exercendo a função educadora, que é a de dirigir e
organizar a sociedade para uma determinada vontade política.
Enquanto um Estado “educador”, o Estado burguês, no decorrer de seu
desenvolvimento histórico e impulsionado pela sua própria essência contraditória, necessita,
cada vez mais, aprimorar os mecanismos de hegemonia, principalmente aqueles mecanismos
que possuem a função hegemônica de direção intelectual e moral da sociedade
118
(superestrutural). Nesse sentido, os mecanismos de hegemonia utilizados pela classe
dominante apresentam-se em formas cada vez mais sutis, conduzindo, como se pode verificar,
até hoje, no atual estágio do capitalismo mundializado, à naturalização da realidade vivida e a
uma aparente concepção de mundo coesa e unitária.
Na observação de Coutinho (1996):
A necessidade de conquistar o consenso como condição sine qua non da
dominação impõe a criação e/ou renovação de determinadas instituições
sociais, que passam a funcionar como portadores materiais específicos (com
estrutura e legalidade próprias) das relações sociais de hegemonia (p.55).
Os mecanismos de hegemonia que possuem a função de direção intelectual e moral da
sociedade são exercidos, como foi abordado, pelo conjunto de organismos - “aparelhos
privados de hegemonia” - que compõe a sociedade civil (enquanto espaço de articulação e
unificação de interesses, de politização das ações, de construção da consciência política
coletiva).
Os “aparelhos privados de hegemonia” representam a sociedade em suas diferentes,
até antagônicas, concepções de mundo, e possuem uma relativa autonomia em relação à
sociedade política. Eles exercem as funções de elaborar e divulgar ideologias, no sentido de
um determinado entendimento da realidade ou visão de mundo, viabilizando a formação e
conservação de consensos na sociedade.
Observa Gramsci (2000b) que:
A escola como função educativa positiva e os tribunais como função
educativa repressiva e negativa são as atividades estatais mais importantes
neste sentido: mas, na realidade, para este fim tem uma multiplicidade de
outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da
hegemonia política e cultural das classes dominantes (CC.V.3.C.8, p.284).
119
A igreja e a escola, por exemplo, são “aparelhos privados de hegemonia”, mas que,
para Gramsci, são do tipo “tradicional”, porque são aparelhos oriundos da “velha” sociedade
feudal e que permaneceram no Estado moderno, “renovados”. Os partidos, os sindicatos, a
mídia de massa, entre outros, são “aparelhos privados de hegemonia” do tipo novo, isto é,
nascem com o Estado burguês.
Os meios de comunicação, por exemplo, desempenham a tarefa de formar a opinião
pública, seja buscando o consenso em relação a determinadas propostas e ações, seja para
“cimentar” uma determinada concepção de mundo. Já os partidos políticos são enfatizados
por Gramsci (2000b) por exercerem a função educadora, isto é, a função de conduzir ou
dirigir politicamente uma determinada vontade política de forma mais efetiva, orgânica. Em
suas palavras:
O partido político, para todos os grupos, é precisamente o mecanismo que
realiza na sociedade civil a mesma função desempenhada pelo Estado. (...)
Aliás, pode-se dizer que, no seu âmbito, o partido político desempenha sua
função muito mais completa e organicamente do que, num âmbito mais
vasto, o Estado desempenha a sua: um intelectual que passa a fazer parte do
partido político de um determinado grupo social confunde-se com os
intelectuais orgânicos do próprio grupo, liga-se estreitamente ao grupo, o
que, através da participação na vida estatal, ocorre apenas mediocremente ou
mesmo nunca (CC.V.2.C.12, p.24).
O Estado, para o pensador italiano, embora exerça a função educativa através de
efetivas ações políticas, não tem em seu interior uma concepção unitária, coerente e
homogênea. Já o partido, tendo em vista a aliança voluntária de seus membros, que se dá pela
identificação de interesses, possui uma organicidade em seu interior.
61
61
Deve-se ter o cuidado de não confundir a concepção de partido político em Gramsci com as atuais
configurações “espetaculares” e “mesquinhas” de partido.
120
Nesta perspectiva, cabem as afirmações de Gramsci (2000b) de que “todos os homens
são intelectuais, mas nem todos os homens exercem a função intelectual” (CC.V.2.C.12,
p.24), que é a de influir na concepção de uma determinada visão de mundo, e de que todos os
membros de um partido político são intelectuais, uma vez que exercem a função diretiva e
organizativa de uma vontade política que é educativa, que é intelectual.
E é nesse sentido que enfatiza o vínculo do intelectual com a massa. Para Gramsci esta
relação é imprescindível enquanto estratégia de poder, uma vez que as grandes massas
necessitam do partido político e dos intelectuais, dos organizadores da hegemonia, dos
elaboradores e dos divulgadores de ideologias, dos educadores e dos dirigentes, para
promoverem a sua “elevação cultural” e as converterem em poder real.
Elevar culturalmente as massas tem para Gramsci (1999) o sentido de conquistar uma
consciência superior, consciência crítica do mundo, da própria historicidade, de que faz parte
de uma força social (consciência política).
A compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta
de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da
ética, depois no campo da política, atingindo, finalmente, uma elaboração
superior da própria concepção do real. A consciência de fazer parte de uma
determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira
fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática
finalmente se unificam.(...)
Autoconsciência crítica significa, histórica e politicamente, criação de uma
elite de intelectuais: uma massa humana não se ‘distingue’ e não se torna
independente ‘para si’ sem organizar-se (em sentido lato); e não existe
organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, ou seja,
sem que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente
em um estrato de pessoas ‘especializadas’ na elaboração conceitual e
filosófica (CC.V.1.C.11, pp.103-104).
É nessa perspectiva que, para Gramsci, no processo de hegemonização, enquanto
correlação de forças sociais para a conservação ou implementação de novas relações
hegemônicas, a atuação dos intelectuais no partido passa a ser fundamental. Ela é
imprescindível para a classe dominante, porque cria as bases de sustentação e legitimação da
121
ordem social instituída. E é fundamental para as classes dominadas pela necessidade histórica
de superar a divisão de classes e unir as forças populares para lutar por uma nova ordem
social.
O desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa, para além do
progresso político-prático, um grande progresso filosófico, já que implica e supõe
necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do real que
superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites mais restritos da
conjuntura.
A função do intelectual se põe nesta direção (dialética intelectual-massa), vinculado às
lutas da classe subalterna. Mas não se trata apenas do indivíduo intelectual, trata-se do “grupo
de intelectuais” como estratégia de poder a favor da classe que busca emancipar-se. Esta luta,
que seria em sua concepção pela “objetividade”
62
e pela “unificação cultural”, como foi visto,
é travada no interior da sociedade civil.
Nas palavras de Gramsci (1999):
Há, portanto, uma luta pela objetividade (para libertar-se das ideologias
parciais e falazes
63
) e esta luta é a própria luta pela unificação cultural do
gênero humano. O que os idealistas chamam de ‘espírito’ não é um ponto de
partida
64
, mas de chegada: o conjunto das superestruturas em devir rumo à
62
Coloca Gramsci que: “A questão da ‘objetividade’ do conhecimento segundo a filosofia da práxis pode ser
elaborada a partir da proposição (contida no prefácio à Crítica da economia política) de que ‘os homens tornam-
se conscientes (do conflito entre as forças materiais de produção) no terreno ideológico’ das formas jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas, filoficas” (CC.V1.C11, 1999, p.209).
63
Explica Gramsci que: “O senso comum afirma a objetividade do real na medida em que a realidade, o mundo,
foi criado por Deus independentemente do homem, antes do homem; ela é, portanto, expressão da concepção
mitológica do mundo; o senso comum, ademais, ao descrever esta objetividade, incide nos erros mais grosseiros;
em grande parte, ele ainda permanece na fase da astronomia ptolomaica, não sabe estabelecer os nexos reais de
causa e efeito, etc., isto é, afirma ser ‘objetiva’ uma certa ‘subjetividade’ anacrônica, já que nem sequer sabe
conceber a possibilidade de existência de uma concepção subjetiva do mundo e o que isso queira ou possa
significar” (CC.V.1.C.11, 1999, p.174).
64
Neste momento Gramsci está fazendo referência à Hegel, que vê o Estado moderno como uma instância
universalizadora, cuja função é elevar em nível superior a esfera da particularidade – sociedade civil-,
fortalecendo, dessa forma, a ética pública.
Marx percebe as contradições desse Estado e desfaz a idéia de Estado como uma instância universalizadora, pois
para ele o Estado é uma entidade particular, “comitê executivo” de uma classe particular. O Estado é um Estado
122
unificação concreta e objetivamente universal, e não um pressuposto unitário
(Gramsci, 1999, p.134).
E é nesse sentido que, na forma como Gramsci problematiza a cultura, - como esfera
constitutiva do ser social, diretamente imbricada no plano superestrutural, vinculada à
economia e à política, como “crítica da ordem das coisas”, de conquista de uma consciência
superior para a transformação da realidade -, que encontramos elementos que possibilitam a
construção de uma nova hegemonia.
Aponta Gramsci que a filosofia que se transformou em movimento cultural, assim
como toda concepção de mundo que penetrou no senso comum e produziu normas de
condutas, “forma uma unidade ideológica, cimentada e unificada” em todo o “bloco
histórico”. Esta filosofia ou concepção de mundo, manifestada nas artes, no direito, nas
atividades econômicas, “em todas as manifestações de vida individuais e coletivas” que
apresenta uma unidade de pensamento e ação coerente e unitária – uma “unidade ideológica”
-, seria, para Gramsci, uma “ideologia”.
Ideologia para Gramsci tem, neste contexto, o sentido de uma determinada concepção
de mundo arraigada no senso comum; é uma realidade prática que não é posta em questão. É
configurada por elementos absorvidos historicamente sem análise crítica, “cimentados” e
“unificados” no modo de pensar, de sentir e de agir no mundo resultante do acúmulo
histórico-social de um determinado grupo. De caráter “conformista”, ideologia é uma questão
de classe. No caso específico do Estado burguês, Marx compreende que sua força reside nas relações de
propriedade, nesse sentido, seria derrubado pela revolução comunista e pela abolição da propriedade privada – “a
derrubada efetiva das relações sociais concretas”- e que a chave para compreender o processo de
desenvolvimento histórico do homem está na sociedade civil, nas relações econômicas, conseqüentemente na
“crítica da economia política”.
123
de “fé”.
65
Nesse sentido, para Gramsci (1999), tendo em vista a filosofia da práxis:
...as ideologias não são de modo algum arbitrárias; são fatos históricos reais,
que devem ser combatidos e revelados em sua natureza de instrumentos de
domínio, não por razões de moralidade, etc., mas precisamente por razões de
luta política: para tornar os governados intelectualmente independentes dos
governantes, para destruir uma hegemonia e criar outra, como momento
necessário à subversão da práxis (CC.V1.C.10, p.387).
Gramsci (1999) trabalha no sentido de apontar que há uma unidade entre a filosofia e a
ação, entre a forma como se compreende o mundo e se age sobre ele. A filosofia “superior”
apresenta um caráter de elaboração individual do pensamento, racional e coerente, já o senso
comum apresenta um pensamento genérico, com características difusas e dispersas, que pode
ser renovado, transformar-se em “bom senso”, com a coerência e o vigor das filosofias
individuais. A filosofia, numa perspectiva mais elevada, é a crítica e a superação da “filosofia
espontânea” ou do senso comum e da “religião”,
66
isto é, um “convite à reflexão, à tomada de
consciência de que aquilo que acontece é, no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado,
concentrando as próprias forças racionais e não deixando levar por impulsos instintivos e
violentos” (CC.V.1.C.11, p.96).
65
A exemplo desta dinâmica, Gramsci aponta a forma como a religião e, principalmente, a Igreja Católica
conduziu um processo de manter uma unidade de pensamento (unidade de fé) e de conduta moral, frente às
mudanças histórico-sociais. A Igreja desenvolveu estratégias, no decorrer da história, para manter a unidade de
pensamento religioso entre as diferentes camadas sociais, para não se estabelecer divisões entre os intelectuais e
os simples, e entre o desenvolvimento científico e social do Ocidente e a doutrina religiosa. Neste sentido, para o
pensador: “Dado que todas as religiões ensinaram e ensinam que o mundo, a natureza, o universo, foi criado por
Deus antes da criação do homem e, portanto, que o homem já encontrou o mundo pronto e acabado, catalogado e
definido uma vez por todas, esta crença tornou-se um dado férreo do ‘senso comum’, vivendo com a mesma
solidez ainda quando o sentimento religioso está apagado e adormecido” (CC.V.1. C.11, 1999, p.130).
66
No sentido “de unidade de fé entre uma concepção do mundo e uma norma de conduta adequada a ela”
(Gramsci, 1999, CC.V.1.CC.11, p.96).
124
Para Gramsci (1999),
Uma filosofia da práxis só pode apresentar, inicialmente, em atitude
polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do
pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E, portanto,
antes de tudo, como crítica do ‘senso comum’ (e isto após basear-se no senso
comum para demonstrar que ‘todos’ são filósofos e que não se trata de
introduzir ex novo uma ciência na vida individual de ‘todos’, mas de inovar e
tornar ‘crítica’ uma atividade já existente); e, posteriormente, como crítica
da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que,
enquanto individual (e de fato ela se desenvolve essencialmente na atividade
de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada
como ‘culminâncias de progresso do senso comum, pelo menos do senso
comum popular (p.101).
Para “libertar-se das ideologias parciais e falazes” há a necessidade de substituir a
concepção de mundo “desagregada e ocasional”, de superar a “filosofia espontânea” por uma
outra calcada na ciência e na filosofia. Para tal, deve-se polemizar e criticar a “filosofia
espontânea”, isto é, o “conjunto de noções e de conceitos determinados” que estão contidos na
linguagem
67
, no senso comum e no bom senso, em “todo o sistema de crenças, superstições,
opiniões, modos de ver e de agir”; superar uma determinada concepção de mundo, “’imposta’
mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos nos quais todos
estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente” que é expressa
nas formas como o homem compreende e sente sua realidade e age sobre ela, ainda que seja
uma concepção de mundo “desagregada e ocasional” (Gramsci, 1999, pp.93-94).
Na sua perspectiva, uma concepção de mundo desagregada e ocasional, compartilhada
em um mesmo modo de pensar e de agir, significa conformismo, isto é, que “somos
conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos”
(Ibidem, p.94). Assim, é fundamental que se realize o “momento da crítica e da consciência”
partindo da crítica da própria visão de mundo, “...um ‘conhece-te a ti mesmo’ como produto
67
Para Gramsci (1999), “toda linguagem contém elementos de uma concepção de mundo e de cultura”
(CC.V.1.C.11, p.95).
125
do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços
acolhidos sem análise crítica” (Idem), para elaborar a própria concepção de mundo, “coerente
e unitária”. Daí, Gramsci afirmar a necessidade de resgatar a história do ponto de vista das
classes dominadas para construir as bases de uma contra-hegemonia.
Construir uma concepção de mundo crítica e coerente é para o pensador italiano ter
consciência da própria historicidade, o que provoca uma compreensão dinâmica do processo
histórico e insere uma perspectiva de mudança; é identificar as determinações do momento
histórico vivido, o que implica em superá-las, se for o caso; é compreender que tal concepção
de mundo construída crítica e coerentemente vai colidir com outras concepções, o que vai
levar a identificar as forças sociais que compõem a dinâmica do processo histórico.
Em suas palavras:
Não se pode separar a filosofia da história da filosofia, nem a cultura da
história. No sentido mais imediato e determinado, não se pode ser filósofo –
isto é, ter uma concepção do mundo criticamente coerente – sem a
consciência da própria historicidade, da fase de desenvolvimento por ela
representada e do fato de que ela está em contradição com outras concepções
ou com elementos de outras concepções (Gramsci, 1999,CC.V.1.C.11.Nota
II, p.94).
A superação da “condição de homem-massa” insere, neste sentido, criar uma nova
cultura. E criar uma nova cultura para Gramsci não tem o sentido de realizar, individualmente,
descobertas originais, “criar uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos
grupos de intelectuais”, mas “também, e sobretudo,” tem o sentido de difundir, socializar,
verdades já descobertas e “transformá-las em base de ações vitais, elemento de coordenação e
de ordem intelectual e moral” para os homens.
68
68
Ação, para Gramsci, é sempre uma ação política.
126
Como foi colocado anteriormente, o processo de criação de uma nova cultura se dá em
contradição com outras concepções de mundo e com elementos arraigados da concepção de
mundo de uma determinada classe hegemônica. Nesse sentido, para desenvolver um processo
de construção de uma nova cultura deve-se considerar que na formação dos Estados modernos
o exercício da hegemonia foi fundamental para a conquista da direção política e cultural da
sociedade e que nas sociedades capitalistas avançadas a força do Estado reside cada vez
menos na coerção, pois foi desenvolvendo mecanismos de hegemonia cada vez mais
refinados.
O que se verifica na atual conjuntura do capitalismo mundializado, tendo em vista as
novas determinações e as complexas articulações da formação econômico-social, é que a
capacidade estratégica de impor a adesão à sua forma particular de ver o mundo atingiu um
patamar muito elevado.
O quadro político-social de hoje, tendo em vista que se apresenta com uma certa
unificação de interesses na luta pela pobreza, acaba por favorecer a disseminação da
necessidade de se instalar um clima de solidariedade e de coesão na sociedade para o seu
combate. Além da multiplicidade de outras iniciativas e atividades “privadas” desenvolvidas
pelos aparelhos de hegemonia política e cultural das classes dominantes, verifica-se o
desenvolvimento de mecanismos hegemônicos para envolver forças sociais antagônicas, que
historicamente se organizaram a partir de embates e lutas sociais, em projetos e atividades
sociais conservadores. Nesta perspectiva, observam-se várias instituições (e intelectuais) deste
tipo co-participando de atividades sociais que reforçam as ideologias neoliberais.
A formação de consensos em relação à democratização da educação escolar e à
erradicação da pobreza, por exemplo, encobre em seu “conteúdo” a “forma” ideológica que a
configura. Assim, as “formas” pelas quais se compreendem os fenômenos da pauperização e
da educação, e as “formas” pelas quais serão conduzidas as ações políticas para erradicar a
127
pobreza ou democratizar o ensino estão diretamente relacionadas com a concepção de mundo
construída ou concebida historicamente.
Gramsci (1999) vai dizer que “é ideologia toda concepção particular dos grupos
internos da classe que se propõem ajudar a resolver problemas imediatos e restritos”
(CC.V.1.C.10, p.140). Nessa ótica, entende-se que propor resolver problemas estruturais de
forma imediata e restrita é, também, ideologia. Pobreza e desemprego são expressões das
relações de produção imanentes ao modo de produção capitalista. Tentar resolver esses
“problemas” concebendo-os como “anomalias” efêmeras, é ideologia.
Ideologia em Gramsci está situada na “batalha pela hegemonia”, mais do que no
sentido gnosiológico de “falsa consciência” se opondo à “consciência verdadeira” (Coutinho,
1999, p.113). Ela é analisada como força material, como realidade prática; “a ideologia –
enquanto concepção de mundo articulada com uma ética correspondente – é algo que
transcende o conhecimento e se liga diretamente com a ação voltada para influir no
comportamento dos homens” (Idem, p.112).
2.1.3 A sociedade civil gramsciana não se sustenta fora do Estado e nem em oposição ao
Estado.
É importante ressaltar, tendo em vista o caráter metodológico, que a noção de Estado
como “comitê executivo da classe dominante”, organismo que despolitiza a sociedade civil e
se vale da coerção para exercer suas funções, foi superada nas obras tardias de Marx e Engels.
Engels formula uma nova concepção de processo revolucionário – “longo e perseverante” –
apoiada numa nova formulação do conceito de Estado – como fruto de um contrato.
128
Expõe Coutinho (1996) que, embora Marx e Engels tenham vivido num período
histórico de escassa participação política, nos anos das obras tardias já foi possível observar
uma certa organicidade na classe operária. Já era possível identificar uma nova tendência na
dinâmica de disputas de poder – a força política dos sujeitos sociais coletivos. Com isso, há
um processo de avanço do pensamento marxiano.
No entanto trata-se de uma interpretação que não é compartilhada por todos os
pensadores marxistas contemporâneos. Segundo Coutinho (1996), há uma dualidade de
abordagens: uma da chamada “escola derivacionista” (“que ‘deriva’ o Estado e suas funções
diretamente da lógica da acumulação capitalista”) e outra baseada na abordagem gramsciana
(“que sempre elaboram o conceito de Estado tendo em vista as complexas articulações da
formação econômico-social”). Esta dualidade de abordagem vai resultar em diferentes
avaliações do papel da dualidade de poderes na transição do socialismo. Isto é, dependendo da
forma como o Estado é compreendido resulta em formas diferentes de atuação política, ou
seja, “diferentes paradigmas de revolução socialista, (...) ‘explosivo’ e ‘processual’” (p.13).
Se, conforme expõe Coutinho, a dualidade de abordagem em relação à definição da
natureza do Estado, dentro do pensamento marxista contemporâneo, resulta em diferentes
compreensões quanto a forma de atuação política revolucionária – “explosivo” ou
“processual” -, pode-se concluir que dissonâncias no interior de cada uma dessas concepções
também resultarão em estratégias diferenciadas. Seria o caso da observação que o próprio
autor faz em relação aos pensadores contemporâneos que atuam suas linhas de pensamento
em Gramsci (paradigma de revolução socialista processual), mas que apresentam diferentes
abordagens sobre a dualidade de poderes.
Dado às dissonâncias no pensamento marxista contemporâneo, cientistas políticos da
atualidade apresentam uma certa preocupação em relação à expansão da idéia de sociedade
civil dissociada do Estado que atualmente penetra no senso comum das massas e que tem tido
129
uma certa aceitação por parte de alguns pensadores marxistas, uma vez que tal quadro tem
implicações objetivas.
Nos últimos anos, como foi visto, o uso do termo “sociedade civil” explodiu e tem
sido uma expressão central na disputa política. Seja pelo pensamento político de esquerda,
seja pelo pensamento político de direita, “sociedade civil” é apresentada como solução para
todos os problemas. A “sociedade civil” foi difundida como um espaço livre de coerção e
restrições; um espaço de liberdade para o pensamento e para a ação; uma força para contrapor
o Estado autoritário. Na América Latina, no período das ditaduras militares, o termo
“sociedade civil” foi mencionado pelos grupos progressistas e revolucionários como uma
nova força social, capaz de reduzir a força repressiva do Estado, como também, exigir deste
maior responsabilidade social. Mas a “sociedade civil” também foi apontada como solução
para a crise do Estado de bem-estar social; uma esfera entre o Estado (mínimo) e o mercado,
que precisava ser fortalecida tendo em vista a busca de solução para o enfrentamento das
necessidades do indivíduo ou do grupo, sem a ingerência burocrática do Estado.
O que se quer ressaltar é que, seja de direita ou de esquerda, a forma pela qual se
concebeu o termo “sociedade civil” nos anos 1970-90 fortaleceu a dicotomia Estado-
sociedade civil.
Conforme expõe Nogueira (2003), intensifica-se nas últimas décadas um tipo de
associativismo, sob novas formas e bases, “desvinculado de partidos, regras institucionais e
compromissos formais, terra da liberdade, do ativismo e da generosidade social (...), uma
esfera pública não integrada ao estatal (não estatal) e assentada no livre associativismo dos
cidadãos” (p.219).
Justamente essa categoria de Gramsci, “um conceito, complexo e sofisticado, com o
qual se pode entender a realidade contemporânea (....) um projeto político, abrangente e
igualmente sofisticado, com o qual se pode transformar a realidade” (Idem, p.219) que
130
expande sob outras óticas, pretensamente “desinteressadas”.
Nessa obra, Nogueira levanta a seguinte questão para reflexão: o conceito de
sociedade civil de Gramsci tem valor conceitual hoje, num contexto em que predominam
diferentes visões e formas práticas de sociedade civil?
Sua preocupação é bastante pertinente. No âmbito teórico, as complexas e
contraditórias transformações societais das últimas décadas criam dissonâncias conceituais no
pensamento marxista contemporâneo, em geral, e no pensamento gramsciano, em particular,
que põem riscos de reforçar a fragmentação política e com ela reproduzir o conformismo e a
passividade, enfraquecer os embates e as correlações de forças. No âmbito prático (político),
o entendimento de sociedade civil dissociado do Estado, apresentando-se como uma esfera
ideal para o ativismo democrático, generosa socialmente, mas descompromissada
institucionalmente, impede o desenvolvimento de estratégias objetivas de poder e de
hegemonia.
De fundo, o problema que se coloca é: frente ao novo cenário político social do mundo
ocidental, e particularmente no Brasil, a questão do Estado deve ser abandonada?
Na obra, supra citada, em que Coutinho (1996) narra a evolução da concepção da
natureza do Estado e sua articulação com o processo revolucionário, uma de suas
contribuições foi mostrar que uma teoria embora nasça em seu tempo, sua gênese é mantida
com a inserção de novas determinações dos novos estágios desse tempo. Com isso, mesmo
com dissonâncias interpretativas, não podemos cair nas armadilhas das complexas
articulações econômico-sociais do capitalismo em sua atual fase mundializada.
O próprio Gramsci (2000b) faz uma observação nesse sentido:
É o problema das relações de forças entre estrutura e superestrutura que deve
ser posto com exatidão e resolvido para que se possa chegar a uma justa
análise das forças que atuam na história de um determinado período e
determinar a relação entre elas (e cita trecho do Prefácio à Crítica da
131
Economia Política).
(...) Da reflexão sobre estes dois cânones pode-se chegar ao desenvolvimento
de toda uma série de outros princípios de metodologia histórica. Todavia, no
estudo da estrutura, devem-se distinguir os movimentos orgânicos
(relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de
conjuntura (e que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase
acidentais). Também os fenômenos de conjuntura dependem, certamente, de
movimentos orgânicos, mas seu significado não tem um amplo alcance
histórico: eles dão lugar a uma crítica política miúda, do dia-a-dia, que
envolve os pequenos grupos dirigentes e as personalidades imediatamente
responsáveis pelo poder. Os fenômenos orgânicos dão lugar à crítica
histórico-social, que envolve os grandes agrupamentos, para além das
pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal dirigente.
(...) O erro em que se incorre freqüentemente nas análises histórico-políticas
consiste em não saber encontrar a justa relação entre o que é orgânico e o
que é ocasional. (...) Num caso, tem-se excesso de ‘economicismo’ ou de
doutrinarismo pedante; no outro, excesso de ‘ideologismo’. Num caso,
superestimam-se as causas mecânicas; no outro, exalta-se o elemento
voluntarista e individual (Gramsci, 2000b, CC.V.3 C.13, p. 36).
De certo, mudanças ocorrem no interior do modo de produção capitalista, nos
mecanismos de regulação e de controle social e político. O capitalismo, agora mundializado,
proclama sua vitória – “fim da história” e das ideologias; fim dos “grandes sujeitos sociais”;
fim dos sonhos revolucionários e da utopia. Intensifica-se a passividade frente às
transformações societais e a sociedade civil integra o contexto da vida pública numa
reciprocidade entre o Estado e o mercado.
Para Simionatto (2003): “Seus pilares fundamentais centram-se nos ajustes
econômicos, materializados na apologia da privatização e da supremacia do mercado, na
cultura antiestado, na valorização exacerbada da sociedade civil e das classes subalternizadas,
desqualificando a política e a democracia” (p.277).
Mas como colocara Boron (2003) e Ianni (2000), seu triunfo é ideológico. Há nessas
novas determinações econômicas e políticas do capitalismo um componente central, como
colocara Anderson (2003a), “o anticomunismo mais intransigente de todas as correntes
capitalistas do pós-guerra” (p.12). Trata-se de fortalecer o controle político, social e cultural,
132
impondo uma “nova” racionalidade capitalista, no sentido de naturalização da conjuntura,
promovendo a adesão da classe subalterna no próprio processo de ajustes das condições
necessárias a sua reprodução, de forma a instaurar um “consenso ativo” – consolidar uma
participação efetiva da sociedade civil como um todo na amenização das conseqüências anti-
sociais do mercado.
Essa dinâmica revela sua vivacidade e sua força. Revela que o processo de reprodução
social do capitalismo não se restringe à produção e acumulação de riquezas, estendem-se à
produção da vida social e pública, num movimento de sobreposição das esferas econômica,
política e cultural, de unificação para a obtenção da “hegemonia” político-social. Mas o
esforço de se apresentar universalizador, de ser um “Estado ético” no sentido hegeliano, não
esconde seu caráter particular e sua função de conservar e reproduzir a divisão de classes.
Retomando a concepção de hegemonia em Gramsci, como uma relação hegemônica
que expressa a prioridade de “vontade geral” – interesse comum -, sobre a vontade particular
– o interesse privado -, observa-se que o Estado burguês expandiu sua esfera de domínio,
desenvolvendo mecanismos de hegemonia cada vez mais refinados. Entende-se que o
movimento de expansão e consolidação do neoliberalismo, na sua atual forma imperialista,
além de expandir a adesão à sua forma particular de ver o mundo e o homem, tem suscitado a
naturalização das formas mais cruéis de reprodução social com certa tranqüilidade. A classe
subalterna, refém da crueldade que insere a racionalidade do capital e das condições dadas,
termina por aderir “passiva” ou “ativamente” ao conjunto de políticas sociais impulsionado
pelos organismos multilaterais, através do engajamento voluntário aos novos organismos
coletivos “públicos, porém não-estatais”, colaborando com a implementação das estratégias
que visam à redução das tensões e das mazelas sociais resultantes das políticas
macroeconômicas. Isto é, conduzindo, dirigindo e participando efetivamente das ações
políticas implementadas pelos organismos internacionais.
133
Em relação às políticas sociais, Netto (2001) vai apontar que a política social no
Estado capitalista na fase monopolista ampliou e tornou mais complexa a estrutura e o
significado da ação estatal, mas conferiu-lhe o substrato individualista da tradição liberal.
Segundo o autor:
(...) o redimensionamento do Estado burguês no capitalismo monopolista em
face da ‘questão social’ simultaneamente corta e recupera o ideário liberal –
corta-o, intervindo através de políticas sociais; recupera-o, debitando a
continuidade das suas seqüelas aos indivíduos por elas afetados. (...)
Tais práticas e tal legitimação aparecem, pois, com uma dupla determinação:
tanto são parâmetros para intervir empiricamente sobre as refrações da
‘questão social’ quanto são funcionais para vulnerabilizar as projeções
societárias que apontam para a ruptura da ordem burguesa (pp.36-37).
Para o mais expressivo preceptor do neo-liberalismo – Hayek e seu grupo -, a
tendência desse “novo igualitarismo” promovido pelo Estado de bem-estar seria a destruição
da liberdade dos cidadãos e da vitalidade e a prosperidade que a concorrência do “livre
mercado” proporciona, uma vez que, ao contrário das “mentes imaturas” de sua época, a
desigualdade era um valor positivo e imprescindível.
O clima ideológico neoliberal instalado a partir da grande crise do modelo econômico
pós-guerra no mundo capitalista avançado dos anos 1970 enfraquece as propostas de
“soberania nacional” em favor da “globalização”; enfatiza os direitos individuais contrapondo
aos direitos políticos e sociais; coloca em questão a “justiça social”.
69
Hoje, mais concreta e claramente observáveis na sociedade brasileira, as mazelas
sociais se expressam no ícone da violência, seja ela urbana ou rural, que ao mesmo tempo
realimenta o processo de acumulação e reprodução social do capitalismo. Nesse sentido,
intensifica-se a intervenção do privado nas “questões sociais”, principalmente na função
69
Para Hayek (1985), “os consagrados direitos civis e os novos direitos sociais e econômicos não podem ser
conquistados ao mesmo tempo, sendo, na realidade, incompatíveis” (p.125).
134
educadora, revestida do discurso da urgente necessidade de se construir uma sociedade civil
solidária para reduzir os índices de violência. As empresas absorvem a “responsabilidade
social” financiando projetos educativos e culturais, ao mesmo tempo em que aumentam seus
lucros através do marketing social e reduzem seus impostos.
O sistema de ensino público da educação básica passa a receber um reforço
“educativo” das organizações da sociedade civil (Terceiro Setor), sustentado pela idéia de que
este sistema fracassou em sua função civilizadora da grande massa, sendo visto como
responsável pela intensificação dos “problemas sociais”.
Mais que a afirmação da atualidade do pensamento de Gramsci e a afirmação de que
com sua teoria de Estado e seu conceito de sociedade civil é possível entender com mais
clareza a realidade hoje, reafirma-se, também, que as reflexões sobre Estado não podem ser
abandonadas, pois “tudo é política”.
70
E a capacidade de fazer política não pode perder de
vista o objetivo central que é desenvolver capacidades para “promover transformações de
estrutura que ponham fim à formação econômico social capitalista” (Coutinho, 1999, p.155).
Nessa perspectiva a concepção de sociedade civil em Gramsci toma um caráter, em si,
de resistência, uma vez que:
(...) a sociedade civil gramsciana não se sustenta fora do campo do Estado e
muito menos em oposição dicotômica ao Estado. Ela é uma figura do Estado
(...), se articula dialeticamente no Estado e com o Estado, seja este entendido
como ‘expressão jurídica de uma comunidade politicamente organizada’,
como ‘condensação política das lutas de classe’ ou como aparato de governo
e intervenção (Nogueira, 2003, pp.222-223).
70
“Tudo é política” – expressão que poderia sintetizar o pensamento de Gramsci. Em seu sentido amplo essa
expressão pode ser compreendida como em todas as esferas sociais é possível o momento da liberdade, da
universalização.
135
2.2 “Questão Social” e Pobreza
Sabe-se que a pobreza e a desigualdade entre camadas sociais são fenômenos sociais
antigos. As figuras do pobre e do rico já estavam presentes nas sociedades anteriores à
sociedade burguesa. No entanto há um certo consenso entre os estudiosos da área do Serviço
Social
71
que o pauperismo iniciado no final do século XVIII, sob o impacto do processo de
industrialização (primeiramente na Inglaterra), foi tratado por observadores sociais da época
como um novo fenômeno, uma “nova pobreza”, tendo em vista que a pauperização da massa
de trabalhadores estava diretamente relacionada à grande capacidade de produção da nascente
sociedade industrial.
Castel (2003), pesquisador francês, objetivando ilustrar as observações sociais dos
pensadores europeus da época sobre a “nova pobreza” que emerge na nova divisão do
trabalho, destaca, entre outros, Villeneuve-Bargemont, Buret e Luís Napoleão Bonaparte.
Em Villeneuve-Bargemont (1834), Castel (2003) destaca a idéia de que existia uma
indigência que não se relacionava com a falta de trabalho, mas sim com a “nova organização
do trabalho, (....) o trabalho ‘liberado’” (p.284).
Essa indigência que ‘sob o nome novo e tristemente enérgico de pauperismo
invade classes inteiras da população’, (...), tende a aumentar
progressivamente em razão mesmo da produção industrial’. Não é mais um
acidente, mas, sim, a condição forçada de uma grande parte dos membros da
sociedade (Idem).
71
A discussão sobre “questão social” é central na formação do Assistente Social brasileiro, conforme expresso
nas Diretrizes gerais para o Curso de Serviço Social: “O Serviço Social se particulariza nas relações sociais de
produção e reprodução da vida social como uma profissão interventiva no âmbito da questão social expressa
pelas contradições do desenvolvimento do capitalismo monopolista” (In: Netto, 2004, p.41).
136
Em seguida, o autor destaca um trecho do programa de extinção do pauperismo
proposto por Luís Napoleão Bonaparte (1848), que descreve sua observação sobre essa nova
ordem:
A indústria, esta fonte de riquezas, não tem hoje nem regra, nem
organização, nem objetivo. É uma máquina que funciona sem regulador;
pouco lhe importa a força motriz que emprega. Triturando em suas
engrenagens tanto os homens como a matéria, despovoa os campos,
concentra a população em espaços sem ar, enfraquece o espírito e o corpo e,
em seguida, joga na rua, quando não sabe mais o que fazer com eles, os
homens que, para enriquecê-la, sacrificaram sua força, sua juventude, sua
existência. Verdadeiro Saturno do trabalho, a indústria devora seus filhos e
não vive senão sua morte (Apud, Castel, 2003, p.285).
Marx (2002b) na obra O Capital definiu “proletariado” como “o assalariado que
produz e expande o capital e é lançado à rua logo que se torna supérfluo às necessidades de
expansão do ‘monsieur capital’” (p.717).
72
Ele analisa, com base em dados estatísticos da época, as condições de trabalho e de
existência da classe trabalhadora que emerge na sociedade industrial inglesa do século XIX,
uma massa “miseravelmente paga” que podia ser identificada nas péssimas condições de
moradia e de alimentação, e identifica nessa massa de trabalhadores uma crescente e oscilante
população de “indigentes” – parte da classe trabalhadora que perdeu a condição de vender sua
força de trabalho e “vegeta” na base da caridade pública (Marx).
Com base no censo dos indigentes na Inglaterra, Marx (2002b) analisa os seguintes
números (p.758; tabela 2):
72
O Capital: Crítica da Economia Política, Livro 1, volume 2, XXIII A lei geral da acumulação do capital
(2002b).
137
Tabela 2
Censo dos indigentes na Inglaterra
Ano Nº de indigentes
1855 851.369
1856 877.767
1863 1.079.382
1864 1.079.978
1865 971.433
E observa que entre 1863 e 1864 o número da população indigente aumentou com a
crise algodoeira, logo reduzida com a passagem da crise. Esses dados expressam a
característica do processo de crescimento e de oscilação da indigência conforme o ciclo de
produção de uma determinada atividade econômica. Assim, o pauperismo que emerge sob o
auspício da nova sociedade industrial não está relacionado à escassez material, mas à riqueza.
É a capacidade produtiva e o não-emprego da força de trabalho que vão definir a condição de
pobreza do trabalhador.
Segundo Castel (2003), os pensadores da época que tentaram fazer uma análise mais
precisa desse “novo fenômeno” apontaram os efeitos diretos da nova organização do trabalho:
a permanente insegurança social, a instabilidade do trabalho, a ausência de qualificação, as
alternâncias de emprego e de não-emprego caracterizam a condição geral desses operários
nascentes. E destaca um trecho da obra de Eugène Buret (De la misere desclasses laborienses
en france et en Angleterre, Paris, 1840, Apud, Castel, 2003):
Essas populações de trabalhadores, cada vez mais sugadas, não têm sequer a
segurança de que sempre estarão empregadas. A indústria, que as convocou,
só as faz virem quando tem necessidade e, tão logo pode prescindir delas,
abandona-as sem a menor preocupação (p.285).
138
A “profunda degradação moral” é uma outra característica do pauperismo apontada
pelos observadores sociais da época. Segundo Buret, as formas de vida das famílias operárias
amontoadas nos subúrbios das cidades industriais, onde a promiscuidade dos sexos e das
idades e a total ausência de higiene constituem o que poderia chamar de “uma nova etiologia
da depravação dos costumes” (Idem, p.287). Castel (2003) cita Laurent (Le pauperisme et lês
instituions de prévoyance, Paris, 1865) para traduzir “o sentimento de se estar diante de uma
situação histórica inédita”:
A miséria e a subversão da inteligência, a pobreza e o aviltamento da alma, o
enfraquecimento e a decomposição da vontade e da energia, o torpor da
consciência e da personalidade, o elemento moral em uma palavra,
sensivelmente e mesmo com freqüência, mortalmente atingido. Eis o caráter
essencial, fundamental e absolutamente novo do pauperismo (p.287).
As observações de Buret e de Laurent nos remetem a idéia de Marx sobre a Lei Geral
da Acumulação do Capital e a formação da “superpopulação relativa” ou “exército industrial
de reserva”. Para Marx (2002b):
A acumulação do capital sempre produz, e na proporção de sua energia e de
sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é,
que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando-se,
desse modo, excedente. (.....)
A população trabalhadora, ao produzir a acumulação do capital, produz, em
proporções crescentes, os meios que fazem dela, relativamente, uma
população supérflua. (....)
Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao
capital de maneira tão absoluta como se fosse criado e mantido por ele. Ela
proporciona o material humano a serviço das necessidades variáveis de
expansão do capital e sempre pronto para ser explorado (pp.733-735).
Marx coloca que todo o trabalhador faz parte da “superpopulação relativa” ou do
“exército industrial de reserva” durante o período em que se encontra desempregado ou
“parcialmente empregado”. Essa condição se apresenta nas formas: aguda, quando nos
momentos de crise do capital, e crônica, “nos períodos de paralisação”, que são reproduzidas
139
periodicamente. Mas além dessas formas, Marx vai definir as formas flutuantes - que seriam
os segmentos dos trabalhadores “intermitentes”, sujeitos às oscilações cíclicas e eventuais,
absorção e repulsa do trabalhador nos centros urbanos (Iamamoto, 2004, p.15); latentes – que
seria a “superpopulação latente na agricultura, fruto da redução da demanda da força de
trabalho decorrente do seu processo de industrialização, não acompanhada de igual
capacidade de absorção dos trabalhadores nos pólos urbano-industriais” (Idem); estagnada
“trabalhadores ativos com ocupações irregulares e eventuais” (Ibidem).
O pauperismo, sedimento da superpopulação relativa que “vegeta no inferno da
indigência” ou o “rebotalho do proletariado”, consiste em três categorias: “os aptos para o
trabalho”, “os órfãos e filhos de indigentes”, “os degradados, desmoralizados, incapazes de
trabalhar” (Marx, 2002b, p.747).
Definindo a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista, Marx (2002b) disserta:
O pauperismo constitui o asilo dos inválidos do exército ativo dos
trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva. Sua produção
e sua necessidade se compreendem na produção e na necessidade da
superpopulação relativa, e ambos constituem condição de existência da
produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza (pp.747-748).
A condição de existência do modo de produção capitalista e da produção de riqueza
está relacionada com a constituição de uma superpopulação de reserva de trabalhador e com a
pobreza. A lei geral, absoluta, da acumulação capitalista de Marx (2002b) define que:
Quanto maiores a riqueza social, o capital em função, a dimensão e energia
de seu crescimento e, conseqüentemente, a magnitude absoluta do
proletariado e da força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército
industrial de reserva. A força de trabalho disponível é ampliada pelas
mesmas causas que aumentam a força expansiva do capital. A magnitude
relativa do exército industrial de reserva cresce, portanto, com as potências
da riqueza, mas, quanto maior esse exército de reserva em relação ao
exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação consolidada, cuja
miséria está em razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda, quanto
maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial
de reserva, tanto maior, (...), o pauperismo (p.748).
140
Em síntese, podem-se destacar as seguintes frases de Marx (2002b): “Acumulação de
riqueza num pólo e, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de
escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral, no pólo oposto, constituído pela
classe cujo produto vira capital” ou “nas mesmas condições em que se produz a riqueza,
produz-se também a miséria” (p.749; grifo nosso). Marx ainda observa que: “O pauperismo
faz parte das despesas extras da produção capitalista, mas o capital arranja sempre um meio
de transferi-las para a classe trabalhadora e para a classe média inferior” (Idem).
Coloca Castel (2003) que o pauperismo originado do desenvolvimento industrial
capitalista representa “uma espécie de imoralidade que se faz natureza a partir da degradação
completa dos modos de vida dos operários e de suas famílias” (p.287), mas também é vista
como uma ameaça à ordem política social: “Classes laboriosas, classe perigosa”.
73
Segundo o autor, a luta de classes é anunciada no início dos anos 1830, também, por
conservadores e moderados que viram na degradação social dos trabalhadores um risco
iminente, “porque os trabalhadores da indústria formam ‘uma nação na nação que começa a
ser designada por um nome novo: o proletariado industrial’” (Castel, 2003, p.291).
O pauperismo industrial, então, enquanto uma ameaça à ordem capitalista, é referido
como uma “questão social”.
A “questão social”, segundo o autor, foi explicitada pela primeira vez no século XIX,
por volta de 1830, quando se observa a:
(...) ameaça de fratura representada pelos proletários das primeiras
concentrações industriais que, como dizia Augusto Comte, acampam na
sociedade industrial sem estarem nela encaixados, integrados. São essas
populações flutuantes, miseráveis, não socializadas, cortadas de seus
vínculos rurais e que ameaçam a ordem social, seja pela violência
revolucionária, seja como uma gangrena (...), uma espécie de contaminação
73
Exemplo de expressão de um tipo de “racismo anti-operário”, que, segundo Castel (2003, p.288), foi uma
concepção amplamente difundida entre a burguesia do século XIX.
141
da miséria, da desgraça que infectaria progressivamente todo o corpo social
(Castel, 2003, p.239).
O processo de urbanização na Europa com as novas concentrações industriais, a
imigração em massa de trabalhadores rurais “dissocializados”,
74
as novas formas de
organização do trabalho e a degradação das condições de vida dos trabalhadores, enfim, a
pauperização suscita a “nova questão social”.
A “questão social” surge, então, a partir da preocupação de um determinado setor da
sociedade que via na pobreza acentuada e generalizada – no pauperismo - advinda do
processo de industrialização, da “nova organização do trabalho”, o risco ou a “ameaça de
fratura” das instituições sociais existentes, tendo em vista o ingresso da classe operária no
cenário político. E é tratada sob o ângulo do poder (Iamamoto, 2004, p.11).
As evidências da pauperização massiva da população de trabalhadores relacionada às
pressões e manifestos dos movimentos trabalhistas europeus em processo de organização que
colocam em questão a relação de produção e se posicionam como força política junto ao
Estado e aos capitalistas é a expressão da “questão social”. Foi a partir da perspectiva
efetiva de uma eversão da ordem burguesa que o pauperismo designou-se como ‘questão
social’” (Netto, 2004a, p.43).
Nas palavras de Iamamoto (2003), a expressão “questão social” surge, na “tensão entre
a produção da desigualdade e produção da rebeldia e da resistência” (p.28).
75
Para a autora:
74
Populações flutuantes que saturam os antigos bairros pobres e povoam os arredores das cidades industriais
(Chevalier, L. Classes laborieuses et classes dangeuses à Paris pendant la première moitié du XIXème siècle, 2ª
ed., Paris, Hachette, 1984, Apud Castel, 2003, p.289, nota).
75
“Curiosamente, a expressão ‘questão social’ emerge praticamente ao mesmo tempo em que surge, no léxico
político, a palavra socialismo” (Netto, 2001, p.152).
142
(...) a questão social não é senão as expressões do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da
contradição entre o proletariado e a burguesia (Iamamoto, 2003, p.77).
Castel (2000), analisando a atual conjuntura, vai colocar que a “questão social” hoje
não é a mesma da primeira metade do século XIX. Trata-se de uma outra “nova questão
social”, pois a ameaça de fratura social foi afastada, uma vez que esse “primeiro proletariado
miserável e subversivo passou a ser uma classe operária relativamente integrada” (p.239).
Com isso, o caráter problematizador da “questão social”, de construção de uma contra-
hegemonia, é esvaziado.
Na visão do autor, a “questão social” hoje está relacionada à desmontagem do sistema
de proteções e garantias trabalhistas e à “desestabilização” na ordem do trabalho com
repercussões em diferentes setores da vida social, isto é, ao desmantelamento da sociedade do
“pleno emprego”. Na sua concepção, houve uma ruptura entre trabalho e proteção (sociedade
salarial), instalando-se um tipo de sociedade inteiramente regida pelas leis do mercado
(sociedade do mercado) e, nesse sentido, essa outra “nova questão social” seria o
questionamento desta “função integradora” do trabalho na sociedade (Castel, 2000, p.245).
Castel aponta ainda que a perda da condição salarial da massa trabalhadora na atual
conjuntura política e econômica insere a perda da possibilidade desse trabalhador controlar o
futuro. Ao perder a possibilidade de controlar o futuro, à massa trabalhadora só lhe resta o
ajuste e a adaptação à atual condição de precariedade do trabalho, pois perdeu força política.
Esta concepção de Castel - de que na atual conjuntura emerge uma “nova questão
social”, tendo em vista que com a perda da força política da classe de trabalhadores não existe
mais ameaça de fratura das instituições sociais e que com a hegemonia do mercado o
questionamento da classe trabalhadora é restrita à sua integração ou inserção nesta sociedade
143
de mercado - é polemizada por alguns estudiosos.
Para os especialistas da área, nas análises de Marx sobre a sociedade burguesa, a
“questão social” é central, uma vez que nessa perspectiva analítica compreende-se que “o
regime capitalista de produção é tanto um processo de produção das condições materiais da
vida humana, quanto um processo que se desenvolve sob relações sociais – histórico-
econômicas – de produção específicas” (Iamamoto, 2004, p.10). O modo de produção
capitalista assume uma dupla dimensão: a da produção material, a existência material das
condições de trabalho, e a das relações sociais, forma social pela qual se realiza as condições
de existência.
Considerando que essa dupla dimensão – da produção material e das relações sociais -
é constitutiva do modo de produção capitalista, a “questão social” deve ser compreendida
como uma problemática inerente do desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, ela
provoca tensões e conflitos entre classes antagônicas e gera demandas políticas. Com isso, a
“questão social” implica: “questões de integração e inserção, reformas sociais ou revolução,
e correntes de idéias as mais diversas que buscam diagnosticar, explicar, solucionar ou
eliminar as suas manifestações” (Wanderley, 2000, p.61).
Nesta perspectiva, pode-se identificar no pessimismo das análises de Castel o caráter
ideológico contido na naturalização da condição da precariedade do trabalho, pois à massa
trabalhadora só lhe resta o ajuste e a adaptação. O que resta, segundo o autor, é torcer pelo
não-agravamento e apodrecimento da situação (Castel, 2003, p.259).
Netto (2001) faz a seguinte observação sobre a concepção de Castel:
....inexiste qualquer ‘nova questão social’. O que devemos investigar é, para
além da permanência de manifestações ‘tradicionais’ da ‘questão social’, a
emergência de novas expressões da ‘questão social’ que é insuprimível sem
a supressão da ordem do capital (p.160; grifo nosso).
144
Para o autor, o entendimento de que aquela pobreza observada na sociedade pré-
industrial tratava-se de um novo tipo de pobreza se dá porque: “Pela primeira vez na história
registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de
produzir riquezas”. Assim, o pauperismo não deve ser entendido como herança do antigo
regime ou “traços invariáveis da sociedade humana” (Netto, 2001, pp.153;157-158).
Nesta perspectiva teórico-analítica, a pobreza gerada pelo modo de produção
capitalista é decorrente da contradição entre: “as forças produtivas (crescentemente
socializadas) e as relações de produção (que garantem a apropriação privada do excedente e a
decisão privada de sua destinação)” (Idem, p.158) e não da escassez material decorrente do
baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas.
Netto (2001) indica que “a análise de conjunto que Marx oferece nO Capital revela,
luminosamente, que a ‘questão social’ está elementarmente determinada pelo traço próprio e
peculiar da relação capital/trabalho – a exploração”. Nesse sentido, continua o autor:
(...) o que é distintivo desse regime, entre outros traços, é que a exploração
se efetiva num marco de contradições e antagonismos que a tornam, pela
primeira vez na história registrada, suprimível sem a supressão das
condições nas quais se cria exponencialmente a riqueza social. Ou seja: a
supressão da exploração do trabalho pelo capital, constituída a ordem
burguesa e altamente desenvolvidas as forças produtivas, não implica – bem
ao contrário! – redução da produção de riquezas (pp.157-158).
Pode-se identificar que, sendo expressão do processo de formação e desenvolvimento
da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade burguesa e constitutiva
do modo de produção capitalista, a “questão social” apresentar-se-á, no processo de
desenvolvimento do capitalismo, com múltiplas expressões e diferentes manifestações –
diferentes estágios capitalistas produzem diferentes manifestações da ‘questão social’”
(Idem, p.157).
145
Nesse sentido, não há, “nas atuais modalidades imperantes de exploração” (Netto,
2001, p.160), uma “nova questão social”, como sustenta Castel, mas novas manifestações ou
expressões da “questão social”, como sustenta Netto (2001).
O problema teórico consiste em determinar concretamente a relação entre as
expressões emergentes e as modalidades imperantes de exploração. (...)
Precisa levar em conta a complexa totalidade dos sistemas de mediações em
que ela se realiza. (....) Envolve, ainda, a pesquisa das diferencialidades
histórico-culturais (que entrelaçam elementos de relações de classe,
geracionais, de gênero e de etnia constituídos em formações sociais
específicas)
76
que se cruzam e tensionam na efetividade social (p.161).
Wanderley (2000),
77
citando Fleury, destaca que “a emergência de uma questão
pressupõe (...) uma nova correlação de forças, a criação de um tecido social em torno de sua
problemática, com capacidade de inserí-la no debate político” (p.60). Para Pastorini (2004) o
fundamental é a compreensão de como uma necessidade social se transforma em demanda
política.
Para Pastorini (2004), neste processo de transformação de uma necessidade social em
demanda política, “é de máxima importância não esquecer um outro elemento: os sujeitos
envolvidos nesse processo, aqueles que colocam a questão na cena política”. Para a autora,
esse é um elemento fundamental, mas que não se encontra presente nos estudos que se
referem à “questão social” como uma “nova questão social”, principalmente em autores como
Castel e Rosanvallon (Apud. Pastorini, 2004, p.98).
Refletindo sobre o significado da expressão “questão social” no marco das
transformações econômicas e políticas contemporâneas, Pereira (2004) distingue o termo
“questão” que incorpora o sentido político de disputa de classes da expressão “questão
76
Como exemplo, pode-se citar a tese de Wanderley (2000) em que a “questão social” na América Latina se
desdobra e se problematiza em outras temáticas no decorrer do desenvolvimento capitalista.
77
In: Castel; Wanderley; Belfiori- Wanderley, 2000.
146
social”. Para a autora:
“...a justeza do termo ‘questão’ para designar problemas e necessidades
atuais, que, apesar de dramáticos e globais, e de produzirem efeitos nefastos
sobre a humanidade, se impõem sem problematização de peso e, portanto,
sem enfrentamentos à altura por parte de forças sociais estratégicas. (...)
por falta de forças sociais com efetivo poder de pressão para fazer incorporar
na agenda pública problemas sociais ingentes, com vista ao decisivo
enfrentamento, (...) temos pela frente não propriamente uma ‘questão social’
explícita, mas uma incômoda e complicada ‘questão social’ latente, cuja
explicitação acaba por tornar-se o principal desafio das forças sociais
progressista (Pereira, 2004, pp.51-52).
Pereira (2004) compartilha com o ceticismo de Castel em relação à perda da força
política da massa dos trabalhadores e à “questão social”, como também enfatiza a importância
posta por Pastorini de compreender como a “necessidade social transforma-se em demanda
política”, ou melhor, como transformar “problemas em questão”. A autora entende que os
“problemas sociais” atuais podem ser um “ponto de partida ou pré-condições constituintes da
explicitação da ‘questão social’, explicitação essa que iria desnudar as contradições
fundamentais do sistema capitalista” (p.57). Segundo ela, esta seria uma importante tarefa dos
setores progressistas, incluindo os profissionais da área do Serviço Social inserido num
processo de conscientização das massas.
Iamamoto (2003), confirmando a concepção de Netto e retomando a teoria social
crítica, mais especificamente à dinâmica que expressa a lei da acumulação capitalista de
Marx, vai destacar as implicações das diferentes concepções sobre a “questão social” nas
definições de políticas, traçando as seguintes considerações:
Essa contradição fundamental da sociedade capitalista – entre o trabalho
coletivo e a apropriação privada da atividade, das condições e frutos do
trabalho – está na origem do fato de que o desenvolvimento nesta sociedade
redunda, de um lado, em uma enorme possibilidade de o homem ter acesso à
natureza, à cultura, à ciência, enfim, desenvolver as forças produtivas do
trabalho social; porém, de outro lado e na sua contraface, faz crescer a
distância entre a concentração/ acumulação de capital e a produção crescente
da miséria, da pauperização que atinge a maioria da população nos vários
países, inclusive naqueles considerados ‘primeiro mundo’ (p.27).
147
Nesse sentido, para a autora, é importante pontuar que a “questão social” coloca “em
causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal” e envolve a
luta pela cidadania. Segundo Iamamoto (2004):
Foram as lutas sociais que romperam o domínio privado nas relações entre
capital e trabalho, extrapolando a questão social para a esfera pública,
exigindo a interferência do Estado para o reconhecimento e a legalização de
direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos (p.17).
Assim, continua, sendo a análise da “questão social” indissociável das configurações
assumidas pelo trabalho e situada em uma arena de disputas entre projetos societários, ela vai
resultar em distintas concepções e propostas nas orientações das políticas econômicas e
sociais.
Na perspectiva do capital, a “questão social” - produzida e reproduzida, perene e
amplamente - vai ser compreendida como uma “disfunção social” e como uma “ameaça” à
ordem e à coesão social. Enquanto uma “disfunção social” dissolve-se o caráter político da
“questão social” em fragmentados fatores – pobreza, fome, desemprego – que devem ser
tratados pontualmente, com políticas compensatórias. Esta fragmentação da “questão social”
oculta o caráter antagônico e conflituoso da relação capital-trabalho. Enquanto uma ameaça à
ordem e à coesão social provoca ações políticas mais intransigentes, como pontuou Anderson
em relação ao neoliberalismo.
No atual estágio do capitalismo globalizado, que se configura com o intensivo e
extensivo aumento da pobreza, do desemprego e com a precarização do trabalho, a “questão
social” na versão de “nova questão social” vai ser compreendida segundo Iamamoto (2004),
como resultante da “’inadaptação dos antigos métodos de gestão do social’ e produto da crise
do ‘Estado Providência’”.
148
Assim, observa a autora:
Freqüentemente a programática para fazer frente à mesma tende a ser
reduzida a uma gestão mais humanizada e eficaz dos problemas sociais, na
órbita da ordem instituída nos marcos da mundialização do capital sob a
égide do grande capital financeiro e das políticas neoliberais. Dessa maneira,
as respostas à questão social passam a ser canalizadas para os mecanismos
reguladores do mercado e para as organizações privadas, as quais partilham
com o Estado a implementação de programas focalizados e descentralizados
de ‘combate à pobreza e à exclusão social’ (...) ou em expressões da
violência dos pobres, cuja resposta é a segurança e a repressão oficiais
(Iamamoto, 2004, pp.10;17).
Para Netto (2001):
Do ponto de vista teórico, (essa caricatural descoberta – nova questão social)
não apresenta uma só determinação que resista ao exame rigoroso na esteira
da crítica da economia política marxiana; do ponto de vista sócio-político,
retrocede ao nível das utopias conservadoras do século XIX, proponentes de
novos contratos sociais que restabeleçam vínculos de solidariedade no
marco de comunidades ilusórias e residuais – uma solidariedade
naturalmente transclassista e comunidades pensadas com inteira abstração
dos (novos) dispositivos de exploração (p.160).
Sob outro ângulo, continua Iamamoto (2004), dentro de uma perspectiva de análise
distinta, a “questão social” “enquanto parte constitutiva das relações sociais capitalistas, é
apreendida como expressão ampliada das desigualdades sociais: o anverso do
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social” (p.10). Apreende-se que a
produção e reprodução da “questão social” assumem na contemporaneidade expressões
historicamente particulares. Para a autora, o enfrentamento dessas novas expressões da
“questão social” requer:
A prevalência das necessidades da coletividade dos trabalhadores, o
chamamento à responsabilidade do Estado e a afirmação de políticas sociais
de caráter universal, voltadas aos interesses das grandes maiorias,
condensando um processo histórico de lutas pela democratização da
economia, da política, da cultura na construção da esfera pública (pp.10-11).
149
Concluindo, o que se observa é que, entre os pesquisadores brasileiros citados,
identifica-se um consenso de que inexiste uma “nova questão social”, colocada por Castel,
78
mas novas expressões da “questão social”, uma vez que a “questão social” é constitutiva do
desenvolvimento do capitalismo. No entanto, o debate não se limita à “pertinência do
adjetivo” como pode pensar alguns pesquisadores (Pereira, 2004, p.51), trata-se de um tema
complexo, que expressa divergências e antagonismos nas abordagens analíticas e nas formas
de enfrentamento das novas expressões da “questão social”: via gestão humanizada,
conscientização, ampliação da democracia ou revolução. O que indica a necessidade de
aprofundar e avançar no debate para não cair na armadilha de realizar uma análise
“desconectada” da gênese da expressão “questão social” ou “aprisionada” em discursos
genéricos, conforme advertência de Iamamoto (2004, p.18), pois se trata de um campo de
disputa por hegemonia.
Nesta perspectiva, torna-se fundamental retomar o pensamento de Gramsci (2000b) de
que na formação dos Estados modernos a conquista da direção política e cultural da sociedade
para o exercício da hegemonia é fundamental. Assim,
É o problema das relações de forças entre estrutura e superestrutura que deve
ser posto com exatidão e resolvido para que se possa chegar a uma justa
análise das forças que atuam na história de um determinado período e
determinar a relação entre elas.
(...) O erro em que se incorre freqüentemente nas análises histórico-políticas
consiste em não saber encontrar a justa relação entre o que é orgânico e o
que é ocasional (Gramsci, 2000b, CC.V.3 C.13, p.36).
O pensamento de Gramsci enfatiza a processualidade histórica das relações sociais,
que no modo de produção capitalista se caracteriza por uma necessidade constante de
revolucionar seus instrumentos de produção (seja material ou intelectual) e com isso objetivar
78
Netto (2001) chama a atenção para o fato de que esta expressão já tinha sido utilizada por Rosanvallon e foi
divulgada no Brasil também pelo Partido da Social Democracia Brasileira (nota de rodapé, p.160).
150
os novos elementos que inserem os ajustes necessários ao processo de acumulação de riqueza.
Sendo a gênese do Estado capitalista um Estado de classe que já não mais impõe
coercitivamente sua “religião”, mas que educa, dirige e organiza a sociedade para uma
determinada vontade política, este deve cada vez mais aprimorar os mecanismos de
hegemonia, principalmente aqueles mecanismos que possuem a função hegemônica de
direção intelectual e moral da sociedade (superestrutural). Dialeticamente, este processo de
renovação e ajustes permanentes será permeado pela disputa constante pela hegemonia,
impulsionado pela sua própria essência contraditória.
Neste processo de disputa de direção intelectual e moral as funções de elaborar e
divulgar ideologias, que são próprias dos aparelhos privados de hegemonia, são primordiais
para viabilizar a formação e conservação de consensos na sociedade. Assim, considera-se
fundamental compreender como se dá a relação entre processo educativo e “questão social
no processo de desenvolvimento histórico das sociedades capitalistas.
Parte-se da premissa de que a relação entre “educação e pobreza” não é um dado novo
de políticas sociais na sociedade burguesa, ela se dá desde a sua formação, o que vai indicar
que se trata de um tipo de relação que vai se estabelecendo nas contradições e nas lutas de
classes. “Educação e pobreza” são conceitos situados em uma arena de disputas entre projetos
societários antagônicos, resultando em distintas concepções de educação e de pobreza e
distintas propostas de políticas sociais e de educação. Nesse sentido, a educação sempre se
constituiu uma área problemática na definição de sua natureza e função social – educação é
uma questão social.
Nessa perspectiva, é importante averiguar, no plano histórico, como a educação
enquanto atividade social centrada no homem e em suas necessidades vai se tornando
subordinada à produção e reprodução do capital, e como vai se estabelecendo esse processo
de subordinação da educação em relação à pobreza, na ótica do capital.
151
3 AJUSTE DA IDEOLOGIA DO CAPITAL HUMANO PARA A IDEOLOGIA DO
CAPITAL SOCIAL
Para onde quer que vá o capitalismo,seu
aparato ilusório, seus fetichismos e o seu
sistema de espelhos não demoram a
acompanhá-lo
David Harvey
Nos encontros e nas produções literárias de intelectuais orgânicos do capital que
indicavam certa preocupação com as conseqüências políticas e sociais das medidas
econômicas imposta pelo FMI aos governos dos países dependentes nos anos 1990 apontou-
se, no geral, a necessidade urgente de reduzir a pobreza e as desigualdades sociais.
O aumento da pobreza no mundo e a intensificação da polarização entre países e entre
classes ameaçavam à coesão social. Nessa ótica, fortaleceu-se a idéia de “administrar a
pobreza” sob outras bases “conceituais” que não seriam restritamente economicistas, mas
enfatizando os âmbitos social, cultural e institucional como variáveis fundamentais ao
processo de crescimento econômico no contexto de “livre mercado”. Há um forte
entendimento de que a educação é o meio mais eficaz para capacitar as camadas mais pobres
da população a participarem dos benefícios da globalização. E que cabe ao Estado, em
parceria com as organizações da sociedade civil, gerenciar, de forma “inteligente”, as
condições necessárias para que o pobre aumente a sua capacidade produtiva e seja inserido no
mercado.
152
Forma-se um consenso entre os intelectuais orgânicos do capital de que para manter as
condições hiperfavoráveis de acumulação de riqueza (advindas dos avanços tecnológicos e da
globalização – com o “mercado livre das amarras do Estado”) sustentadas por uma miséria
crescente é necessário promover ajustes políticos. E, nesse consenso, a educação seja para
reprodução da força de trabalho seja para obtenção do consenso da massa de trabalhadores
continua sendo o meio privilegiado da burguesia para manter as condições de reprodução do
capital.
O Estado burguês é, na concepção de Gramsci, um Estado educador. E esta função
educadora do Estado burguês pode ser identificada ao longo do processo de desenvolvimento
histórico do modo de produção capitalista - seja para civilizar e disciplinar aquela massa de
trabalhadores livres ainda em formação, libertando-os das tradições acríticas do Ancien
Règime e formando-os pelos valores da laboriosidade burguesa, seja para modernizar ou
aumentar a sua produtividade -, conforme será posto na primeira parte deste capítulo.
Opera-se a partir de meados da década de 1990 um conjunto de mecanismos de
hegemonia de função de direção intelectual e moral ajustando, pela terceira vez, a “teoria do
capital humano”, ideologia predominante desde os anos 1960. Na segunda parte será
identificado que para as “políticas de desenvolvimento do milênio” incorpora-se à ideologia
do capital humano elementos da “teoria do capital social”, reforçando a fragmentação da
classe trabalhadora e operando um processo de educação para o conformismo.
A “teoria do capital social” é resgata por Robert Putnam e a categoria “confiança” é
reforçada por Francis Fukuyama conforme será exposto na terceira parte deste capítulo.
153
3.1 Um panorama do processo de subordinação da educação à economia capitalista
A centralidade que é atribuída à educação nas políticas sociais para o novo milênio nos
remete à origem da educação burguesa, que já indicava na sua formação a concepção de
educação como “chave-mestra da vida social”: “à educação é delegada a função de homologar
classes e grupos sociais, de construir em cada homem a consciência do cidadão, de promover
uma emancipação (sobretudo intelectual) que tende a tornar-se universal (libertando os
homens de preconceitos, tradições acríticas, fés impostas, crenças irracionais)” (Cambi, 1999,
p.326), enfim, promover uma “reforma intelectual e moral”, a partir dos ideais iluministas e
burgueses.
No período de desenvolvimento da sociedade industrial, a educação - “centro da vida
social burguesa” – era compreendida como o meio mais apropriado e eficaz para “dar vida a
um sujeito humano socializado e civilizado, ativo e responsável, habitante da ‘cidade’ e capaz
de assimilar e também renovar as leis do Estado que manifestam o conteúdo ético da sua vida
de homem-cidadão” (Cambi, 1999, p.326).
A educação escolar do século XVIII vai se redesenhando e sendo configurada no
século XIX com a estatização
79
e a laicização da escola – pública
80
, estatal e civil -,
enfatizando o perfil técnico-profissional
81
e a difusão da cultura como processo de
crescimento democrático coletivo.
79
A estatização da escola teve o sentido de controle de toda a instrução por parte do Estado e gestão direta do
setor público mais importante.
80
Escola pública está associada ao princípio da gratuidade. A gratuidade, segundo Cambi (1999), foi um
princípio que colocou a escola a serviço de “todos” e a “tornou socialmente decisiva para operar um despertar
das massas populares e uma verdadeira participação na vida econômica e política” (p.399).
81
Fundam-se escolas especializadas, distantes da tradição humanista confessional, orientadas para formar o
perfil profissional e técnico instrucional de uma sociedade em que a divisão do trabalho vai se sofisticando.
154
...os retrocessos da escola do Ancien Régime são decididamente
ultrapassados, para ir em direção a uma escola mais uniforme, mais
conformadora (sob todos os aspectos), mais rígida nas estruturas e nos
comportamentos, mais programada e mais laica: uma escola mais racional,
por um lado, e mais democrática, mais aberta às várias classes sociais, por
outro (Cambi, 1999, p.493).
Em toda a Europa foi sendo delineado um sistema escolar destinado a “todo o povo” -
ou melhor, “também ao povo”, pois os avanços na instrução popular tiveram a lentidão de
quase todo o século. No início do século XIX, a instrução popular ainda era assegurada pelas
“escolas (privadas) de ensino mútuo”.
82
Na Inglaterra, por exemplo, só na segunda metade do
século, com a regulamentação do trabalho infantil e a fixação da idade mínima para trabalhar
(nove anos), em 1833, é que se difunde a instrução popular, visando a alfabetização de massa.
E, somente em 1870, é que se configura um sistema de instrução nacional que se tornou
obrigatório dez anos depois.
Nos anos de “triunfo da burguesia” européia do século XIX, com a afirmação do
industrialismo e da sociedade de massa, não só a escola mas também os intelectuais e a
imprensa exercem uma função educadora. Opera-se uma verdadeira difusão cultural e de
idéias políticas mais avançadas que coloca em foco a instrução do povo. A função educativa é
ampliada com a forte influência dos intelectuais e da imprensa nos movimentos sociais
83
, e
vai se delineando como resultante das contradições do modo de produção capitalista e dos
conflitos sociais que insere a própria dinâmica do capital.
82
Essas escolas, provavelmente, eram similares às atuais escolas multisseriadas, comuns nas zonas rurais, em
vários países, inclusive no Brasil.
83
A exemplo do movimento Cartista em 1840, na Inglaterra, considerado por historiadores como o primeiro
movimento nacional trabalhista que nasceu do protesto contra as injustiças sociais da nova ordem industrial na
Inglaterra; das Revoluções de 1848.
155
No entanto, na fase de formação da sociedade industrial em que não havia ainda um
predomínio econômico e cultural-urbano, os intelectuais já se mostravam perplexos com a
“profunda degradação moral”
84
dos trabalhadores da, então em formação, organização do
trabalho “liberado”. Para eles, a “nova pobreza”, isto é, a pobreza advinda da formação
industrial, contrastava com o otimismo liberal do século XVIII, segundo o qual “um homem
não é pobre porque nada tem, mas é pobre porque não trabalha”
85
e desafiava a modernidade
enquanto “efeito direto da nova organização do trabalho, fator permanente de insegurança
social”.
86
Como foi visto anteriormente, nas observações de sua época, Buret (1840, Apud,
Castel, 2003) aponta três fatores característicos da nova ordem: a instabilidade no emprego, a
ausência de qualificação para o exercício da atividade e a “degradação moral”. Conforme
retrata o observador: “A maioria das funções industriais não constitui profissões, mas somente
serviços passageiros que o primeiro que chega pode executar; isto é tão verdadeiro, que uma
criança de seis anos é remunerada pelo emprego de seu corpo desde sua entrada na
manufatura” (p.262).
Na perspectiva da intelectualidade burguesa da época há, segundo Cambi (1999), um
tipo de reconhecimento de que o povo está “fora da história” – uma massa de trabalhadores
rurais dissocializados, “populações flutuantes que saturam os antigos bairros pobres e povoam
os arredores”
87
- e, com isso, “reclama-se para ele educação/instrução que o liberte das
condições de atraso e marginalidade psicológica e cognitiva e que o recoloque como
elemento produtivo no âmbito da sociedade atual” (p.329).
84
Augusto Comte (por volta de 1830) Apud Castel (2003).
85
Montesquieu Apud Castel (2003).
86
Buret (1840) Apud Castel (2003).
87
Chevalier, L. Apud Castell (2003).
156
A condição de pobreza moral e intelectual dos, ainda em formação, proletariados do
início do século XIX, (o pauperismo originado do desenvolvimento industrial e constitutivo
do modo de produção capitalista), compreendida como um risco iminente de fratura social,
provoca a necessidade de reforçar as políticas de instrução popular. Conforme Chevalier
(Apud, Castel, 2003): “O povo deve ser educado para evitar desordens sociais, formando-se
pelos valores burgueses da laboriosidade, da poupança, do sacrifício” (p.288).
A função educativa das escolas públicas e laicas do Estado Moderno que foi delineada
a partir da necessidade de superar a cultura do Ancien Régime e construir a “consciência
cidadã” com ênfase na formação para o trabalho técnico para a massa toma o caráter de
controle da ordem.
No entanto, observa Hobsbawm (1977):
O maior avanço ocorreu nas escolas primárias
88
cujo objetivo era não apenas
o de transmitir rudimentos da língua ou aritmética, mas, talvez mais do que
isso, impor os valores da sociedade (moral, patriotismo) a seus alunos. Este
era o setor da educação que havia sido previamente negligenciado pelo
Estado laico, e seu crescimento estava inteiramente ligado com o avanço das
massas na política, como testemunham a instalação do sistema de educação
primária do Estado na Inglaterra, três anos depois do Reform Act de 1867, e
a vasta expansão do sistema na primeira década da Terceira República na
França (p.114).
Na formação do Estado burguês, a relação entre educação e pauperismo já se faz
presente. E esta relação se estabelece a partir da ameaça de fratura social cuja estratégia,
pensada pelos governos e intelectuais da burguesia, foi educar para disciplinar e disseminar
os valores burgueses, no justo momento em que há a ampliação do espaço de participação
política das massas.
88
Segundo o autor, entre 1840 e 1880, a população européia cresceu em cerca de 33% e o número de matrículas
em escolas cresceu em 145%.
157
Nas tensões do início do século XX, não é a condição de pobreza moral e intelectual
dos trabalhadores que ameaça de fratura social, mas o avanço do fascismo e da ideologia
comunista no contexto de uma classe operária organizada. Pode-se dizer que o avanço do
fascismo e do comunismo acabou por colaborar com a conquista de direitos políticos e sociais
reivindicados pelos trabalhadores europeus. Segundo Hobsbawm (2003):
Por diversos motivos, os políticos, autoridades e mesmo muitos homens de
negócios do Ocidente do pós-guerra se achavam convencidos de que um
retorno ao laissez-faire e ao livre mercado original estava fora de questão.
Alguns objetivos políticos – pleno emprego, contenção do comunismo,
modernização de economias atrasadas, ou em declínio, ou em ruínas –
tinham absoluta prioridade e justificavam a presença mais forte do governo
(p.267).
No pós II Guerra Mundial, sob a hegemonia dos EUA, ascendem políticas de
segurança que extrapolam as fronteiras do Estado, nascendo uma proposta de se criar um
“sistema mundial de segurança e uma cruzada pela democracia” (Roosevelt e Churchil), que
gerou os organismos multilaterais. E um conjunto de esforços visando a segurança e a
reconstrução dos países europeus resultou na criação da Organização das Nações Unidas
(Leher, 1998). Assim,
El nombre de "Naciones Unidas", acuñado por el Presidente de los Estados
Unidos Franklin D. Roosevelt, se utilizó por primera vez el 1° de enero de
1942, en plena segunda guerra mundial, cuando representantes de 26
naciones aprobaron la "Declaración de las Naciones Unidas", en virtud de la
cual sus respectivos gobiernos se comprometían a seguir luchando juntos
contra las Potencias del Eje.
(...)El precursor de las Naciones Unidas fue la Sociedad de las Naciones,
organización concebida en similares circunstancias durante la primera guerra
mundial y establecida en 1919, de conformidad con el Tratado de Versalles,
para promover la cooperación internacional y conseguir la paz y la
seguridad’. También en el marco del Tratado de Versalles se creó la
Organización Internacional del Trabajo como organismo afiliado a la
Sociedad de las Naciones. La Sociedad de las Naciones cesó su actividad al
no haber conseguido evitar la segunda guerra mundial (Site da ONU).
158
No pós-guerra, a prioridade dada aos países europeus na reconstrução dos seus
sistemas de ensino, dentre outras motivações, “a guerra fria, a ‘cruzada’ dos EUA em favor da
segurança e do estilo de vida americano” (Leher, 1998), motivaram a criação da Unesco, em
1945. Ela foi criada na Conferência de Londres, representada por 44 países, inclusive o Brasil.
A premissa de sua constituição é: “Se a guerra nasce na mente dos homens, é na mente dos
homens que devem ser construídas as defesas de paz” (site da Unesco). Sua função: “elaborar
programas de ajuda ao ensino nas regiões liberadas, fomentar o desenvolvimento científico,
bem como para repatriar objetos culturais, entre outras”, tendo em vista a manutenção da paz
e da segurança (Leher, 1998). Uma função, segundo a Unesco, “ética”, de “cooperação
intelectual, para a produção e partilha de conhecimentos” (site da Unesco).
O Banco Mundial, já criado em 1944, colaborou no processo de reconstrução da
Europa pós II Guerra financiando projetos de infra-estrutura. No entanto, no contexto da
Guerra Fria, da descolonização, dos movimentos de libertação na África, Ásia e América
Latina, apontou-se a necessidade de mudar o foco da direção dos organismos multilaterais.
Leher (1998) destaca as análises de Archibald
89
para retratar as idéias que permeavam este
contexto:
Os principais conselheiros de Kennedy como McGeorge Bundy e
W.W.Rostow adotavam como idéia central que ‘a pobreza é a mãe do
comunismo que destrói as liberdades e a democracia e, por isso, é preciso
que os EUA participem muito ativamente no combate à miséria para
melhorar o futuro dos pobres e favorecer o estabelecimento de regimes
próximos do seu’ (...). Esta orientação teve reflexos na Unesco que foi
incitada a participar do ‘Decênio do Desenvolvimento da ONU’. Como
desdobramento, na Conferência de Paris, 1962, a educação foi
ressignificada como ‘educação dos recursos humanos enquanto fator de
desenvolvimento econômico e social equilibrado’ (p.132; grifo nosso).
89
A análise de Archibald refere-se à relação entre os EUA e a Unesco no período entre 1944-63 [Lês États-Unis
et l’Unesco. Paris: Publications de la Sorbonne (serie Internationale: 44), 1993].
159
O Banco Mundial, segundo o autor, chega aos anos 1960 como uma “sólida instituição
econômica, tendo se firmado como o principal centro de pensamento a propósito do novo
campo do desenvolvimento” – o, até então, Terceiro Mundo (Idem, p.113). E McNamara
inaugura um novo tipo de gestão, de caráter “estrategista internacional”, que supera a
mentalidade de banqueiro dos gestores precedentes, imprimindo uma outra orientação ao
Banco – pautada na segurança e na pobreza absoluta,
90
principalmente dos países
dependentes.
91
Explica Leher (1998) que “McNamara era então um dos mais importantes
formuladores da política externa dos EUA, tendo sido Secretário de Defesa dos Presidentes
Kennedy e Johnson, anticomunista obstinado e estudioso do problema da segurança e da
estabilidade do poder dos EUA e de seus aliados”. Como Secretário da Defesa (1961-1968),
McNamara “conheceu de perto o significado que os movimentos de libertação poderiam ter
para o capitalismo”. No entanto, “desde o início do governo Kennedy, McNamara afirma ter
divergido da ênfase na alternativa militar presente no relatório Taylor – Rostow” (pp.114-
120).
A fim de demonstrar a lógica gestora diferenciada de McNamara pautada na segurança
internacional mas focada na pobreza, Leher (1998) cita trechos do discurso que o então
Presidente do Banco Mundial realizara na Associação Americana de Editores de Jornais, em
1966:
(...) há entre nós... uma tendência a pensar o nosso problema de segurança
como um problema exclusivamente militar(...), uma nação pode alcançar o
ponto em que ela não pode mais comprar segurança para si própria
simplesmente comprando equipamento militar(....) o já existente gap que
90
Na concepção da agência, a “pobreza absoluta” refere-se à definição de um tipo de pobreza que dá enfoque ao
teor nutricional, e o termo “pobreza relativa” foca as necessidades básicas do indivíduo (saúde, educação,
moradia...).
91
A gestão McNamara foi no período entre 1971-1980.
160
separa as nações ricas e pobres permanece crescente e a pobreza produz
tensões sociais e políticas que freqüentemente se desdobram em conflitos
entre países (Leher, 1998, p.116).
E no discurso da XXXII Assembléia Anual de Governadores, 1977, McNamara define
que ajudar aos governos pobres a superarem as necessidades humanas básicas, “que são
sempre críticas”, não é “questão de filantropia”, mas de prudência. E aponta como uma
“péssima economia” aquela que permite cultivar e difundir a pobreza “a tal ponto que comece
a infectar e erodir todo o tecido social. A pobreza (....) é como um vírus que contagia a
amargura, o cinismo, a frustração e o desespero” (Apud, Leher, 1998; grifo nosso).
92
Fonseca (1996) discorre sobre as diferentes fases do Banco Mundial destacando que,
na primeira fase da cooperação técnica, ela se deu através de acordos bilaterais. No Brasil, a
cooperação técnica do Banco Mundial realiza-se nos acordos econômicos entre o governo
brasileiro e o norte-americano, nos anos 1950, através do “Acordo para a Assistência ao
Comércio Agrícola” que imprime o caráter de integração aos ideais democráticos dos EUA. A
partir de 1961, os fundos destinados à assistência técnica foram administrados pela USAID
(Agência para o Desenvolvimento Internacional, do Departamento de Estado Norte-
americano) criada no quadro da “Aliança para o Progresso”. Nesta segunda fase, imprime-se
um caráter mais econômico aos acordos, “a espontaneidade da primeira fase da cooperação
técnica será substituída pelo formalismo que caracteriza os acordos econômicos e seus
corolários de inflexibilidade financeira e de condicionalidades políticas e econômicas”
(p.230).
92
Deve-se lembrar que a década de 70 é marcada pela crise do petróleo (1973) que enfraqueceu o domínio
internacional dos EUA, e a Guerra do Vietnã que levou à desmoralização e ao isolamento dos EUA (ver
Hobsbawm, “Era dos Extremos: o breve século XX”, referente ao capítulo da “Guerra Fria”).
161
A autora coloca que, até os anos 1960, o projeto de desenvolvimento do Banco
Mundial pautava-se pelas metas de crescimento econômico. Já, a partir do final dos anos 60, o
Banco modifica sua concepção de desenvolvimento (gestão McNamara) e o entendimento de
“crescimento econômico será considerado como condição necessária, mas não suficiente para
garantir distribuição mais justa da riqueza”. Considerava-se que o foco no investimento na
modernização da infra-estrutura dos países em crescimento acaba por beneficiar um
determinado setor sem favorecer “as populações marginalizadas economicamente”. A partir
de 1970, as políticas de financiamento do Banco para o então Terceiro Mundo voltam-se para
o incremento da produtividade, “especialmente no setor agrícola, considerado como um dos
fatores para conter o crescimento da pobreza. O setor social, incluindo a educação, que até
então não era privilegiado no projeto de financiamento do Banco, passa a ter acesso aos
créditos dessa agência” (Fonseca, 1996, p.231).
Leher (1998) aponta que “o Banco nunca havia antes associado conceitualmente a
‘tarefa de desenvolvimento’ como algo relacionado com a ‘pobreza de homens e mulheres
desprovidos de condições mais elementares de vida” (p.118). E que a gestão de McNamara é
marcada pela redefinição dos financiamentos que não são mais pautados nos requerimentos
dos governos, mas através de programas setoriais definidos pelo próprio Banco, privilegiando
os setores agrícolas e sociais.
O conjunto de políticas educacionais que fundamentaram a concessão de
financiamento do Banco Mundial indicou duas tendências: “integrar os objetivos dos projetos
educacionais à política de desenvolvimento do Banco para a comunidade internacional” e
atribuir “à educação caráter compensatório, entendido como meio de alívio à situação de
pobreza no Terceiro Mundo” (Fonseca, 1996, pp.231-232; grifo nosso).
162
Assim, sintetiza Fonseca (1996):
No início dos anos 70, a Educação foi considerada, no projeto de
desenvolvimento do Banco, como fator direto de crescimento econômico, ou
seja, como meio para o provimento de técnicos para o setor produtivo,
especial no nível de 2º grau (hoje, ensino médio). Esta diretriz explica a
ênfase conferida ao ensino profissionalizante no interior dos projetos
desenvolvidos à época pelo Banco junto ao ensino brasileiro (p.233).
No final da década de 1970, o interesse do Banco direcionou-se para a educação
primária (hoje, as quatro primeiras séries do ensino fundamental), doravante considerada
como a mais apropriada para assegurar às massas um ensino mínimo e de baixo custo para a
consecução das novas diretrizes de estabilização econômica que o Banco irá intensificar no
decorrer da década de 1980. As políticas de democratização do ensino, nesse período,
estavam voltadas, enquanto medida de caráter compensatório, para “proteger ou aliviar os
pobres” durante períodos de ajustamento, e num segundo plano, como fator de controle do
crescimento demográfico e de aumento da produtividade das populações mais carentes
(Fonseca, 1996, p.232).
A condição de se manter a estabilidade econômica nos países dependentes, evitando
pressões inflacionárias nos países centrais, na concepção dos gestores do Banco, estava
diretamente relacionada ao controle demográfico, possível gerador de pressões sociais por
alimentos; “reduzir a pobreza aumentando a produtividade do pobre, reduzindo a
fertilidade e promovendo a saúde” (Leher, 1998, p.228; grifo nosso).
Assim, a estratégia de ação do Banco Mundial junto aos países “em desenvolvimento”
durante esse período foi apoiar investimentos que estimulassem o crescimento econômico e o
desenvolvimento social num contexto de estabilidade macroeconômica. As orientações do
Banco para a Educação tinham como objetivos ampliar a produtividade do trabalhador e
influenciar em sua conduta sociopolítica (planejamento familiar, saúde e consciência cívica).
“A educação é tida como uma das variáveis do desenvolvimento e um instrumento
163
privilegiado para a mobilidade social, sendo um meio capaz de produzir a ‘eqüidade’”
(Leher,
1998, pp.202-203), no sentido de ampliar as oportunidades, em síntese, pautada na Teoria do
Capital Humano (investimento em pessoas).
93
A “crise da dívida de 1982”
94
e o fim da gestão McNamara (1981) inauguram uma
nova etapa de orientações aos países dependentes. As condições setoriais impostas
anteriormente passaram para o ajuste estrutural, isto é, as orientações não são mais dirigidas à
construção de instalações, com ênfase no ensino profissionalizante, não são mais localizadas
na zona rural, “mas para outros ‘inputs’ que vão diretamente ao âmago da educação”, sob as
bases do “novo consenso latino-americano”, o Consenso de Washington. E o Banco torna-se o
“principal centro de formulações de políticas educacionais”.
95
Os encaminhamentos da política educacional brasileira na década de 1990 assumem
novos conteúdos e novas funções hegemônicas que são perfeitamente coerentes com as
orientações de estabilização econômica e de reestruturação produtiva que marcam o
“deslocamento da ideologia do desenvolvimento para a da globalização” (Leher, 1998).
93
A ser discutida em seguida.
94
Resultante da “crise do padrão de desenvolvimento dos últimos 50 anos, calcado na dilatação do fundo público
e por essa via a uma tendência de desmercantilização da força de trabalho” (Oliveira, 2003) que, para Frigotto
(2000), “não se trata de uma alternativa para a crise, mas a busca de recomposição dos mecanismos de
reprodução do capital pela exacerbação da exclusão social” (p.81).
95
Conforme explica Leher (1998), o fortalecimento do Banco Mundial enquanto principal formulador de
políticas educacionais para os países dependentes, tendo em vista a ampliação de seu quadro de especialistas na
área, é percebido pela Unesco, que acaba por criar um clima de confrontos estratégicos que resulta na saída do
Banco.
164
3.2 A educação no contexto do deslocamento da ideologia do desenvolvimento para a
ideologia da globalização: do capital humano ao capital social.
No contexto da “guerra fria”, o argumento das políticas do Banco Mundial residia na
ameaça das idéias comunistas – “a pobreza é a mãe do comunismo que destrói as liberdades
e a democracia” - e a educação foi identificada como um importante mecanismo na
“cruzada” pela disseminação do modelo democrático americano. No momento seguinte,
acomodadas as polaridades ideológicas e num contexto de intensificação do avanço
tecnológico, os argumentos passam a residir no aumento da competitividade para o ingresso
no mercado livre e mundializado e na ameaça da desestabilização da economia internacional.
As estratégias defendidas são investir em pessoas, no capital humano, para ampliar o nível
de escolaridade da população, melhorar a qualificação do trabalhador e “reduzir a pobreza
aumentando a produtividade do pobre” para o crescimento econômico e o desenvolvimento
social.
Conforme estudo realizado por Torres (1998), na ótica do BIRD:
96
A educação é a pedra angular do crescimento econômico e do
desenvolvimento social e um dos principais meios para melhorar o bem-estar
dos indivíduos. Ela aumenta a capacidade produtiva das sociedades e suas
instituições políticas, econômicas e científicas e contribui para reduzir a
pobreza… (p.131).
A concepção de educação como “capital humano” é uma abordagem da “teoria do
capital humano”, muito difundida no início da década de 1960. Essa “teoria” demonstra o
“valor econômico da educação” e a entende como algo decisivo no desenvolvimento da
economia e da sociedade. Defende a idéia de que investir em pessoas, em força de trabalho
96
A autora toma como referência o documento: Banco Mundial (1995), Priorities and strategies for education: a
World Bank sector review. Washington D.C. (mimeo).
165
mais competitiva, oportuniza a melhoria das condições de trabalho e o aumento da
produtividade, de forma a capacitar as pessoas a produzirem bem-estar para si próprias e para
suas famílias.
A concepção do capital humano (....) postula que a educação e o treinamento
potenciam trabalho e, enquanto tal, constitui-se num investimento social ou
individual igual ou superior ao capital físico. Um acréscimo marginal na
produtividade do indivíduo. Do investimento em educação redundariam
taxas de retorno sociais e individuais. Há, nessa concepção, um vínculo
direto entre educação e produção (Frigotto, 1986, p.136).
No contexto das idéias desenvolvimentistas e tomando como base a “teoria do capital
humano”, a educação escolar, em seus diferentes níveis e tipos de formação, é compreendida
como um instrumento de modernização e competitividade, pois promove a modernização dos
fatores de produção, especialmente pela qualificação da mão-de-obra, e um instrumento de
equalização entre países e regiões, bem como entre classes, pois é um recurso básico de
mobilidade e equalização social e de justiça social.
Nessa perspectiva, desenvolveu-se a crença de que a desigualdade social seja ela entre
classes, países ou regiões não é uma questão orgânica do sistema capitalista em seu conjunto,
isto é, não é vista como uma questão estrutural, mas algo conjuntural que pode ser corrigido
mediante a alteração de fatores tais como a qualificação de trabalhadores e modernização da
produção.
A idéia veiculada nesse período era a de que a passagem do “subdesenvolvimento” ao
“desenvolvimento” fosse uma questão de tempo e de adequação de fatores, e de que o
progresso técnico, além de gerar emprego, exigiria uma qualificação cada vez mais específica
e permanente por parte do trabalhador, isto é, exigiria que ele investisse naquilo de que é
proprietário, o capital humano (Frigotto, 1986). Investir no “capital humano”, via
escolarização ou treinamento e através de acesso aos graus mais elevados de ensino, constitui-
se em garantia de ascensão a um trabalho qualificado e, conseqüentemente, a garantia de
166
níveis de renda cada vez mais elevados. Qualificado para o mercado e ascendendo
profissionalmente, o indivíduo garante o seu bem-estar social e econômico e de seus
familiares.
Segundo Frigotto (1986):
Do ponto de vista da desigualdade social, a teoria do capital humano vai
permitir aos formuladores e executores do modelo concentrador de
desenvolvimento justificar o processo de concentração do capital mediante o
desenvolvimento da crença de que há dupla forma de ser ‘proprietário’:
proprietário dos meios e instrumentos de produção ou proprietário do
‘capital humano’(pp.128-129; grifo nosso).
As orientações de políticas educacionais dos anos 1970 para os países dependentes vão
enfatizar a democratização do acesso à escola, mas priorizando o nível elementar, e introduzir
a necessidade de se ter uma intervenção do Estado, de caráter técnico, no sentido de elaborar
o planejamento dos sistemas educacionais formais e dos processos educativos embutidos em
planos específicos de desenvolvimento regional. Nesse sentido:
O que se discute é apenas se esse vínculo (econômico) se dá mais ao nível do
aprendizado de habilidades, do desenvolvimento de ‘atitudes’ funcionais ao
processo produtivo. A partir dessa concepção linear deriva-se (....) a
ideologia burguesa do papel econômico da educação. A educação e a
qualificação aparecem como panacéia para superar as desigualdades entre
nações, regiões ou indivíduos. O problema da desigualdade tende a reduzir-
se a um problema de não-qualificação (Frigotto, 1986, p.136).
No âmbito ideológico, acortina-se o antagonismo de classe, definido pelos interesses
do capital de expropriar o trabalhador e pelos interesses dos trabalhadores de se apropriar do
conhecimento historicamente acumulado, e busca-se cimentar a idéia de que a mobilidade
social depende exclusivamente do esforço e mérito individual em promover o investimento no
bem educacional.
167
O mascaramento fundamental decorre da visão burguesa de que cada indivíduo é, de
uma forma ou de outra, proprietário e, enquanto tal, depende dele – e não das relações sociais,
das relações de poder e dominação – o seu modo de produção da existência (Frigotto, 1986,
p.135).
Ao longo de décadas de disseminação da “teoria do capital humano”, o que se
averigua é que, “ao contrário da distribuição de renda, a concentração se acentuou; ao
contrário de mais empregos para egressos de ensino superior, tem-se cada vez mais um
exército de ‘ilustrados’ desempregados ou subempregados” (Ibidem, p.127). Hoje, pode-se
questionar se esse exército é de reserva ou um exército de “ilustrados” que jamais serão
“inseridos” ou “incluídos” ou “integrados” no mercado formal.
97
E, ainda, de que tipo de
“ilustração” este “exército” vem se apropriando, considerando a ênfase na necessidade
imediata e flutuante do mercado, o fortalecimento da cultura individualista que estimula a
competitividade, o consumismo, o utilitarismo, isto é, uma cultura pragmática e produtivista
que se alarga em diferentes esferas da vida social.
No Brasil, a “teoria do capital humano” teve forte influência na política educacional da
década de 1970, exatamente na fase mais aguda da internacionalização da economia brasileira
– quando se fortalece um modelo de desenvolvimento amplamente concentrador associado de
forma exacerbada ao movimento do capital internacional. Esta teoria está expressa na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/1971, com ênfase na formação técnico-
profissional.
97
Oliveira (2003) identifica que a “tendência à formalização das relações sociais estancou nos anos 1980, e
expandiu-se (...) o trabalho informal”, o que leva ao “não mais emprego”, mas “ocupação” ou “trabalho abstrato
virtual” (pp.142-143).
168
Para Frigotto (1986):
Essa crença vai justificar as políticas que aceleram o processo de
acumulação, concentração e centralização do capital na medida em que passa
a situar a democratização das oportunidades educacionais, substituto do
processo de negociação entre patrões e assalariados, entre as classes.
A divulgação dessa crença sai do interior do próprio aparelho estatal,
guardião e gestor maior desse processo. É neste sentido que é comum
encontrar, nos planos de governo, no âmbito econômico ou nas justificativas
ministeriais deste âmbito, após a segunda metade da década de 60, defesas
enfáticas da ‘democratização’ educacional como forma de distribuição de
renda (pp.128-129).
Nos anos 1980-90, com o novo processo de acumulação do capital, baseado no “livre
mercado” e na hipertrofia do capital financeiro, e com os avanços tecnológicos, novos ajustes
são necessários na esfera educacional (no caso do Brasil e de outros países latino-americanos,
esse contexto está condicionado aos princípios e regras estipuladas no Consenso de
Washington). Esses novos ajustes constituem-se em adequações políticas necessárias ao
“processo de deslocamento da ideologia do desenvolvimento para a ideologia da
globalização” (Leher, 1998).
Na concepção de Gentili (2002), com o desmoronamento das condições econômicas e
políticas que sustentavam as argumentações tecnocráticas e desenvolvimentistas da teoria do
capital humano, processa-se uma alteração em seu “corpus teórico”, que vai conduzir a “uma
radicalização das premissas individualistas e meritocráticas que sustentam a teoria (....) e a
perda definitiva do seu substrato liberal-democrático” (p.48). Essa alteração na teoria do
capital humano promove o deslocamento da, em tese, função econômica integradora
atribuída à escola, enfatizada no contexto do “pleno emprego” ou do “desenvolvimentismo”,
para a função econômica de inserção no contexto da mundialização.
169
Observa o autor que a “teoria do capital humano” é resultante da força e da maturidade
que adquiriu a função integradora econômica da escola no contexto das políticas keynesianas
de bem-estar social (e acredita-se no contexto das políticas desenvolvimentistas) e no
reconhecimento do pleno emprego como requisito de uma política de desenvolvimento
duradoura. Nesta “teoria”: “A escola e as políticas educacionais podiam e deviam ser um
mecanismo de integração dos indivíduos à vida produtiva” (Gentili, 2002, p.53). A ênfase que
é dada à função econômica da escola não é dissociada das demais funções integradoras: civil,
política, social e cultural. Estabelece-se um vínculo “quase linear nas possibilidades
integradoras do aparato escolar”, de forma a conceber que o bom desempenho da escola em
sua função de integrar os indivíduos à vida produtiva é um requisito fundamental para o
desempenho eficiente das funções de integração cultural, política e social promovidas pelo
sistema educacional (Idem, p.53). Defendia-se a idéia de que a não eficácia do desempenho na
função de integração econômica iria comprometer o desenvolvimento efetivo dos indivíduos e
das nações, isto é, iria impedir o pleno desenvolvimento das capacidades produtivas, o
crescimento econômico, o desenvolvimento social do país e, conseqüentemente, a melhoria
do bem-estar dos indivíduos.
É nesse sentido que a teoria do capital humano, no contexto da “ideologia do
desenvolvimento”, vai atribuir ao Estado um papel fundamental no planejamento e execução
das políticas educacionais e atribuir um estreito vínculo entre o desenvolvimento do capital
humano individual e o capital humano social.
Nos anos 1980-90, no contexto da “ideologia da globalização”, esse vínculo entre o
capital humano individual e o capital humano social é rompido. A escola continua sendo vista
como um importante investimento para o desenvolvimento do capital humano individual,
mas, agora, como potencial de inserção no mercado. Um mercado mais competitivo e
restrito, que exige a “posse de um conjunto de saberes, competências e credenciais que o
170
habilitam para a competição pelos empregos disponíveis” (Gentili, 2002, p.53). Nessa
perspectiva, expõe Gentili (2002):
.... a educação não é, em tal sentido, um investimento em capital humano
social. As economias podem crescer e conviver com uma elevada taxa de
desemprego e com imensos setores da população fora dos benefícios do
crescimento econômico.... (pp.53-54)
A promessa integradora da escola no contexto da “ideologia do desenvolvimento” e do
“pleno emprego” é “desintegrada” no âmbito econômico e substituída por uma outra
promessa, “de caráter estritamente privado: - a promessa da empregabilidade” (Idem, p.51).
Explica o autor que:
...a desintegração da promessa integradora não tem suposto a negação da
contribuição econômica da escolaridade, mas sim uma transformação
significativa de sentido. Passou-se de uma lógica da integração em
função de necessidades e demandas de caráter coletivo (a economia
nacional, a competitividade das empresas, a riqueza social, etc.) para uma
lógica econômica estritamente privada e guiada pela ênfase nas
capacidades e competências que cada uma pessoa deve adquirir no
mercado educacional para atingir uma melhor posição no mercado de
trabalho.
Morta definitivamente a promessa do pleno emprego, restará ao indivíduo (e
não ao Estado, às instâncias de planejamento ou às empresas) definir suas
próprias opções, suas próprias escolas que permitam (ou não) conquistar
uma posição mais competitiva no mercado de trabalho (Ibidem, p.51; grifo
nosso).
Enfatiza Gentili (1998) que, na alteração que se realiza na “teoria do capital humano”,
no contexto da mundialização, o indivíduo passa a ser um consumidor de conhecimentos para
o desenvolvimento de suas competências que o vão habilitar a uma competição produtiva e
eficiente no mercado de trabalho, que vão lhe dar a possibilidade de obter uma inserção
efetiva no mercado. “A garantia do emprego como direito social (...) desmanchou-se diante da
nova promessa de empregabilidade como capacidade individual para disputar as limitadas
possibilidades de inserção que o mercado oferece” (p.89). E observa:
171
Educar para o emprego levou ao reconhecimento (trágico para alguns,
natural para outros) de que se devia formar também para o desemprego,
numa lógica de desenvolvimento que transformava a dupla
‘trabalho/ausência de trabalho’ num matrimônio inseparável (Gentili, 1998,
p.89; grifo nosso).
Assim, o termo “empregabilidade” é posto dissociado do direito à educação e vai
articular e dar coerência a um conjunto de políticas apresentado como fundamental na
superação da crise do desemprego dos anos 1980-1990, pregando a necessidade de dinamizar
o mercado, através da redução dos encargos patronais, da flexibilização trabalhista e da
formação profissional permanente.
Explica Frigotto (2000) que, “dentro desta ‘nova ordem’”, um “novo” conjunto de
orientação técnica do quadro de especialistas do Banco Mundial vai resultar em ações efetivas
no campo da educação:
...os mesmos organismos internacionais (FMI, BIRD, BID, UNESCO, OIT,
UNICEF, USAID), organismos regionais (CEPAL, CINTERFOR
*
,
OREALC
**
), técnicos dos Ministérios da Educação e de instituições ligadas
à formação técnica, empresários e mesmo pesquisadores seguiam, desde o
final da década de 40, o receituário do CBAI
***
para estabelecer os fatores
responsáveis pela eficiência de formação para o trabalho, a partir da década
de 60, passam a obedecer o receituário do economicismo e tecnicismo
veiculados pela teoria do capital humano que submetem o conjunto dos
processos educativos escolares ao imediatismo da formação técnico-
profissional restrita. Porém, nos anos 80, surgem com novos conceitos e
categorias que, aparentemente, não apenas superam aquelas perspectivas,
como lhes são opostas. Trata-se, na verdade de uma metamorfose de
conceitos sem, todavia, alterar-se fundamentalmente as relações sociais que
mascaram (p.55).
*
Centro Interamericano de Pesquisa e Documentação sobre Formação Profissional.
**
Oficina Regional de Educación para América Latina y Caribe.
***
Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial.
172
O termo de empregabilidade vai legitimar a concepção de educação enquanto uma
mercadoria que deve ser consumida permanentemente e, como foi colocado anteriormente, de
forma que o indivíduo invista naquilo de que é proprietário – o capital humano -, para
competir pela sua inserção no mercado.
Para Frigotto (2002), “a nova vulgata da pedagogia das competências e a promessa da
empregabilidade” podem ser sintetizadas com o texto de Moraes (1998)
98
onde este coloca
que o “conceito” de empregabilidade é “mais rico do que a simples busca ou mesmo a certeza
do emprego”:
Ela é o conjunto de competências que você comprovadamente possui ou
pode desenvolver – dentro ou fora da empresa. É a condição de sentir-se
vivo, capaz, produtivo. Ela diz respeito a você como indivíduo e não mais à
situação, boa ou ruim da empresa – ou do país. É o oposto ao antigo sonho
da relação vitalícia com a empresa. Hoje a única relação vitalícia deve ser
com o conteúdo do que você sabe e pode fazer (Idem, p.72).
Essa concepção vai se fortalecer com o anúncio de que se estaria vivendo em uma
nova sociedade, a “sociedade do conhecimento”, e com outros “conceitos” que vão construir
um novo senso comum sobre trabalho, educação, emprego e “sobre a própria individualidade”
(Gentili, 2002, p.52). Tudo isso vai processar uma naturalização da superexploração da força
de trabalho e da precarização do trabalho, e aprofundar a competição e a polarização
intraclasses.
Essa segunda etapa de orientações do Banco Mundial (anos 1980-90) trata-se, para
Frigotto (2000), de um “rejuvenescimento” da teoria do capital humano cujo conjunto de
idéias que a compõe, agora, está envolto em uma nova casca de “conceitos” renovados que
reforçam a disseminação de ideologias como “fim do trabalho”, “perda da centralidade do
98
Moraes, C. “Emprego e empregabilidade”. Revista Ícaro do Brasil, n.171, pp.53-57.
173
trabalho como categoria sociológica fundamental para entender a vida social”, “o fim da
sociedade do trabalho” ou o “fim da história”.
99
Globalização, flexibilidade, competitividade, qualidade total, participação são alguns
dos novos termos disseminados pelos “grandes mentores” (BIRD, BID, UNESCO, OIT e seus
“ecoadores” regionais e nacionais) e pelos “homens de negócio” no processo de incorporação
do novo padrão tecnológico de acumulação. Dissemina-se a idéia de “valorização humana do
trabalhador”, que insere a defesa de uma sólida educação básica geral para a formação do
cidadão e do novo tipo de trabalhador (“cognitariado”
100
, polivalente, participativo, flexível e
com uma elevada capacidade de abstração e decisão) integrado à “sociedade do
conhecimento”. Prioriza-se a educação básica “de qualidade” e a qualificação tecnológica do
trabalhador.
Esses conceitos e idéias vão exercer influência direta no plano da formação humana,
da educação, com a pedagogia da qualidade, policognição, polivalência e formação abstrata,
configurando-se em um crescente consenso em defesa da educação básica de qualidade. No
Brasil esses conceitos e idéias estão expressos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei
9394/1996.
Frigotto (2000) coloca que a demanda real de ampliação do conhecimento e de
qualificação do trabalhador “mais cultura geral se confronta com os limites imediatos da
produção, da estreiteza do mercado e da lógica do lucro”. E continua:
99
Claus Offe; Adam Schaff; Robert Kurtz; Francis Fukuyama.
100
Um novo tipo de trabalhador que se ocupa mais com a cabeça do que com os braços e força muscular
(Toffler).
174
No caso brasileiro, o atraso de um século, pelo menos, na universalização da
escola básica
101
é um dos indicadores do perfil anacrônico e opaco das
nossas elites e um elemento cultural que potencia o descompasso do discurso
da ‘modernidade’ e defesa da educação básica de qualidade, da ação efetiva
destas elites (Frigotto, 2000, p.158).
De fato, conforme observa Antunes (2002): “Ontologicamente prisioneira do solo
material estruturado pelo capital, o saber científico e o saber laborativo mesclam-se mais
diretamente no mundo contemporâneo” (p.41).
Considerando que a concepção de “sociedade do conhecimento” está diretamente
relacionada ao contexto da globalização da economia e a um tipo de produtividade, e que em
sua base estão as tecnologias e as pesquisas científicas, verifica-se que há também uma
enorme distância em relação às “oportunidades” tecnológicas entre países centrais e
periféricos. Conforme dados do Informe do Banco Mundial do PNUD –1999, os gastos ou
investimentos em pesquisa estão concentrados nos países ricos. Em 1993, 84% do gasto
mundial em pesquisa e desenvolvimento era realizado em apenas 10 países que, com isso,
eram os principais orientadores de prioridades e das agendas de pesquisa; 95% das patentes
eram controladas por esses países; 80% das patentes outorgadas em países “em
desenvolvimento” foram dadas a residentes de países industrializados (In: Kliksberg, 2002a,
pp.76-78).
Esses dados mostram a forte exclusão dos países mais pobres ao acesso a pesquisa
(geração, processamento, transmissão e apropriação do conhecimento e das informações
necessárias a esse conhecimento) e à condição de influir nas linhas de pesquisa que atentam as
suas necessidades básicas.
101
Mais adiante vai ser verificado que embora se tenha atingido quase que totalmente a universalização do
ensino fundamental no Brasil nos anos subseqüentes, este descompasso com o discurso da “modernidade”
permanece, assim como o descompasso com os discursos da competitividade no mercado internacional e da
empregabilidade.
175
Sobre o acesso à Internet e a apropriação de redes telefônicas - duas ferramentas
tecnológicas mais difundidas e popularizadas no planeta - o Informe do Banco Mundial do
PNUD –1999 divulga os seguintes dados: os 20% mais ricos da população mundial possuem
93,3% dos acessos à Internet, os 20% mais pobres, apenas 0,2%, e os 60% intermediários,
apenas 6,5%; 20% da população mundial que vivem nos países mais ricos possuem 74% das
linhas telefônicas do mundo, enquanto os 20% mais pobres têm apenas 1,5%.
No Informe do Banco Mundial do PNUD – 1998, identifica-se a profunda disparidade
existente entre os avanços tecnológicos e as condições de vida da maioria da humanidade:
quase 1,3 bilhão de pessoas ganham menos de um dólar por dia, vivendo na pobreza extrema;
3 bilhões de pessoas, metade da população mundial, recebe uma renda que não excede os dois
dólares diários, encontrando-se em situação de pobreza; 3 bilhões de pessoas não possuem
serviços de saneamento básico; 2 bilhões carecem de eletricidade; 1,4 bilhão de pessoas não
têm água potável (Kliksberg, 2002a, pp.72-73).
Em relação à educação e trabalho, verifica-se que, nos países dependentes, durante os
anos 1990, ao mesmo tempo em que há a expansão do acesso à educação escolar há o
aumento da taxa de desemprego e o alargamento da informalidade. Especificamente no Brasil,
a taxa de desemprego nas principais regiões metropolitanas, de acordo com a Pesquisa Mensal
de Emprego (PME), metodologia antiga do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), subiu de uma média próxima a 5,5% no período 1991-1997 para uma média superior
a 7% entre 1998-2000. O desemprego mostra-se significativo entre os jovens. A taxa de
desemprego para a faixa etária de 15 a 24 anos, cerca do dobro da média nacional, elevou-se
de 9,1% em 1991 para 14,7% em 2000 (tabela 3).
176
Tabela 3
Evolução do desemprego juvenil 1990-2000
Brasil (18-24 anos de idade)
Ano 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
%
- 9,1 11,2 10,3 9,5 9,3 10,5 11,8 14,3 14,5 14,7
Fonte: OIT. Oficina Regional America Latina y Caribe. Panorama Laborial: Evolucion del desempleo juvenil,
1999, 2000 e 2001.
Verifica-se que, nesse mesmo período, o índice de analfabetismo foi reduzido e
aumentou a freqüência de crianças e jovens nas escolas (tabelas 4 e 5).
Tabela 4
Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade
Brasil 1970-2003
Ano 1970 1980 1990 2000 2003
%
32,94 25,41 20,07 13,63 11,4
Fonte: IBGE. Síntese de Indicadores Sociais, 2004.
Tabela 5
Taxa de analfabetismo funcional* das pessoas de 15 anos ou mais de idade
Brasil 1997-2003
Ano 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003
%
32,04 30,04 29,40 - 27,30 26,00 24,80
Fonte: IBGE. Síntese de Indicadores Sociais, 2004. (*) pessoas que não dominam as
habilidades de leitura, escrita, cálculos e ciência, correspondente a uma escolaridade mínima
de quatro séries completas.
177
Enquanto caiu o porcentual de analfabetos, aumentou a fatia das pessoas com maior
escolarização. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD-IBGE) -2004,
o porcentual de pessoas com 11 anos ou mais de estudo (que concluíram pelo menos o ensino
médio), na população acima de 10 anos de idade, subiu de 15,5% em 1995 para 27,6% em
2005. Concluindo-se que o aumento da escolarização das crianças e adolescentes vem
contribuindo para a redução do analfabetismo e elevação do nível de instrução da população
(tabelas 6 e 7).
Tabela 6
Média de Anos de Estudos de Instrução Formal segundo Categorias Selecionadas
Brasil – 1992-1999
F
AIXA ETÁRIA 1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999
10 anos ou mais
4,9 5,0 5,2 5,3 5,4 5,6 5,7
10 a 14 anos
2,9 3,0 3,2 2,0 2,0 2,1 2,2
15 a 24 anos
5,8 5,9 6,1 3,6 3,7 3,8 4,0
25 a 39 anos
6,3 6,4 6,5 6,3 6,5 6,8 7,0
40 anos +
3,8 3,9 4,2 6,7 6,7 6,8 7,0
Fonte: IBGE/Microdados Pnad; Ipea, Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise -
Anexo Estatístico, nº5, agosto de 2002. A Pnad não foi realizada em 1994.
178
Tabela 7
Taxa de Escolarização Líquida segundo Nível/Modalidade de Ensino
Brasil 1992-1999
Nível /modalidade de ensino
1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999
Educação Infantil (0 a 6 anos)
13,8 14,8 25,1 25,1 26,6 27,8 28,2
Ensino Fundamental (7 a 14 anos)
81,3 82,9 85,4 86,5 88,5 90,0 92,3
Ensino Médio (15 a 17 anos)
18,2 18,9 22,1 24,1 26,6 29,9 32,7
Ensino Superior (18 a 24 anos)
4,6 4,8 5,8 5,8 6,2 6,8 7,4
Fonte: IBGE/Microdados Pnad; Ipea, Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise - Anexo
Estatístico, nº5, agosto de 2002. A Pnad não foi realizada em 1994.
Ainda segundo o IBGE, a taxa de freqüência escolar líquida entre as crianças de 7-14
anos, no ensino primário e fundamental, no Brasil, entre 1992/2002 foi de: ensino primário
(idade 7 a 10 anos), 1992 – 78,0%, 2002 – 90,0%; ensino fundamental (idade 7 a 14 anos),
1992 – 81,4%, 2002 – 93,8%. O porcentual de pessoas de 7 anos a 14 anos de idade que não
freqüentavam escola caiu de 9,8% em 1995 para 2,6% em 2005. No caso do grupo de pessoas
de 15 a 17 anos, o porcentual recuou de 33,4% para 18,0% no período, mas manteve-se em
patamar elevado.
Houve também uma taxa de crescimento relevante no ensino superior. Segundo
Divonzir A. Gusso,
102
entre 1985/1990, as instituições de ensino superior (IES) públicas
tiveram uma taxa de crescimento de 0,8% ao ano e as IES privadas, de 3,5% ao ano; entre
1995/2000, as IES públicas cresceram 4,8% ao ano, enquanto as IES privadas, 11,3% ao ano.
102
Economista do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: Diretoria de Planejamento e Políticas
Públicas. Palestra: “Contextos e Desafios: Pistas para perscrutar as possibilidades no futuro próximo”, realizada
na Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior – ABMES, em abril de 2002 (mimeo).
179
No geral, o que se constata é que, contraditoriamente, no Brasil, nos anos 1990, há
uma melhoria nos índices da educação escolar, mas esta melhoria não foi suficiente para gerar
as oportunidades de emprego, conforme ideologia disseminada nesse período. O que se
verifica é que a taxa de “desemprego aberto” (trabalhadores que procuram emprego e não
acham) aumentou significativamente em todos os setores de atividades, indústria, comércio e
serviços (tabela 8), atingindo de forma mais significativa os jovens com idade entre 18 e 29
anos (tabela 9).
Tabela 8
Taxa de Desemprego Aberto* segundo Categorias Selecionadas
Brasil 1994-2001 Setores de Atividade
Categorias Médias Anuais
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
TOTAL
5,1 4,7 5,4 5,7 7,6 7,5 7,1 6,2
Setor de Atividade
Ind. Transformação
6,3 5,8 6,9 7,0 9,1 8,3 7,6 6,8
Construção Civil
6,0 5,5 5,9 6,2 8,9 9,3 8,6 7,7
Comércio
5,4 5,0 6,0 6,4 8,0 8,1 7,4 6,6
Serviços
5,1 4,6 5,5 5,8 7,7 7,8 7,4 6,3
Outros
0,8 0,8 0,8 0,9 1,1 1,2 1,2 -
Fonte: Ipea, Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise - Anexo Estatístico, nº5, agosto de 2002.
180
Tabela 9
Taxa de Desemprego Aberto* segundo Categorias Selecionadas
Brasil 1994-2001 - Faixa Etária
Categorias Médias Anuais
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
FAIXA ETÁRIA (ano)
18-24
9,7 9,2 10,5 10,9 14,0 14,5 14,0 12,5
25-29
6,2 5,4 6,2 6,7 8,7 8,4 8,1 7,2
30-39
3,8 3,6 4,3 4,5 6,1 6,0 5,6 5,0
40-49
2,4 2,1 2,8 3,0 4,3 4,5 4,3 3,6
50-59
1,6 1,6 1,9 2,2 3,3 3,5 3,1 2,9
60-64
0,9 1,3 1,3 1,2 2,4 2,6 1,8 1,9
65 anos ou mais
0,8 0,9 1,2 1,2 1,3 1,8 1,8 1,1
Fonte: Ipea, Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise - Anexo Estatístico, nº5, agosto de 2002.
(*) trabalhadores que procuram emprego e não acham.
Segundo os dados da Organização Internacional do trabalho (OIT), nos anos 1990, na
América Latina e Caribe, o setor de serviços aumentou 75%. Em média 90 de cada 100 novos
empregos gerados correspondiam a atividades de serviços. O efeito do processo de abertura
comercial e globalização sobre a estrutura ocupacional desses países tem sido o debilitamento
da participação dos setores modernos na geração de empregos. Com o moderado crescimento
econômico, com a instabilidade econômica e a redução dos gastos públicos na maioria dos
países latino-americanos, a expansão do emprego se deu nas atividades informais que
incluem: trabalhadores por conta própria, familiares não-remunerados, ocupados em micro-
empresas e serviços domésticos. Só 20 de cada 100 novas ocupações foram geradas pelo setor
moderno. No conjunto dos países latino-americanos analisados pela equipe da OIT, a
informalidade aumentou em torno de 85%; a participação do setor de serviços em novos
empregos é significativamente superior às atividades produtivas.
181
Camargo e Néri (1999) compreendem que a redução do emprego industrial é resultado
do processo de abertura comercial e aumento da concorrência desencadeado por essa abertura,
o que demandou, para a sobrevivência do setor industrial, a introdução de novas tecnologias e
novas formas de organização do trabalho que constituem em maior produtividade com menor
custo, isto é, redução do quadro de trabalhadores, redução dos rendimentos e de outros custos
trabalhistas. No entanto, para os autores, a redução do emprego no setor industrial que
resultou no aumento da proporção dos trabalhadores em atividades informais fora
compensado ou equilibrado com o aumento do nível de emprego nos setores comerciais e de
serviços. Não é isso exatamente o que demonstram as tabelas 8 e 9.
No relatório da OIT constata-se que, nos anos 1990, os trabalhadores dos estratos mais
altos e aqueles situados nos estratos mais baixos foram os mais beneficiados com a geração
das novas ocupações nos setores comerciais e de serviços, sufocando os trabalhadores do
estrato médio. Nessa constatação é possível vislumbrar a tendência de polarização intraclasses
que a globalização provoca, não só no âmbito do emprego, da “ocupação”
103
, mas também no
âmbito da escolarização, uma vez que para as atividades dos setores modernos exige-se um
nível de escolarização que não é universal, pelo contrário, é bem seleto; enquanto que para
atividades dos setores informais e de baixa produtividade, não é exigido um nível de
escolarização mais elevado.
Entre 1992 e 1999, o índice de desigualdade entre classes no Brasil aumentou, assim
como a proporção de pobres e indigentes (tabelas 10 e 11).
103
Nas pesquisas recentes sobre “emprego e renda” o termo emprego está associado à relação trabalhista na qual
uma das partes é o empregado e a outra é o empregador. No caso de trabalhadores por conta própria considera-se
que o termo “emprego” não é apropriado e que deva ser substituído por “ocupação” (IPEA, 2002, p.65).
182
Tabela 10
Índice de Desigualdade - Brasil 1992-1999
Índice (total) 1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999
Gini (a)
0,6 0,6 0,6 0,6 0,6 0,6 0,6
Theil T (b)
0,7 0,8 0,7 07 0,7 0,7 0,7
Razão 10/40 (c)
21,4 24,1 23,7 24,3 24,2 23,6 22,7
Razão 20/20 (d)
26,0 28,2 27,2 29,4 28,7 27,5 26,2
Fonte: IBGE/Microdados Pnad; Ipea, Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise - Anexo Estatístico, nº5, agosto de
2002. A Pnad não foi realizada em 1994 (a) O índice de Gini da desigualdade de uma distribuição é definido como o
dobro da área entre a Curva de Lorenz e a Reta da Igualdade Perfeita. Isso constitui um índice de desigualdade que vale
zero quando todos têm rigorosamente a mesma renda e 1 quando uma fração infinitesimal de uma população detém toda
a renda; b) O índice de Theil T mede a entropia da distribuição de renda e constitui um índice com valor zero se todos
têm rigorosamente a mesma renda e é mais alto quanto mais concentrada for a distribuição. O índice Theil T não admite
rendas negativas e, portanto, não tem valor máximo, mas tem um teto cujo valor é In(n), onde n é o tamanho da
população. Na prática, assume valores entre zero e um; c) Razão 10/40 é simplesmente a razão entre o rendimento
médio dos 10% mais ricos e o rendimento médio dos 40% mais pobres. Tem valor mínimo de 1, mas não tem limite
superior; d) Razão 20/20 é a razão do rendimento médio dos 20% mais ricos e o rendimento médio dos 20% mais
pobres).
Tabela 11
Proporção de Pobres e Indigentes - Brasil 1992-1999
Índice 1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999
Pobres (a)
40,8 41,7 33,9 33,5 33,9 32,7 34,0
Indigentes (b)
19,3 19,5 14,6 15,0 14,8 13,9 14,3
Fonte: IBGE/Microdados Pnad; Ipea, Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise - Anexo Estatístico, nº5, agosto de
2002. A Pnad não foi realizada em 1994 (a) A linha de pobreza é calculada como múltiplo da linha de indigência,
considerando-se os gastos com alimentação e uma parte dos gastos totais mínimos, referentes, entre outros, a vestuário,
habitação e transporte. A linha de pobreza corresponde ao valor da renda domiciliar per capita que, em cada ano, assegura
o nível mínimo necessário para satisfazer as necessidades básicas do indivíduo. A linha de pobreza apresenta, portanto, um
parâmetro que permite considerar como pobres todos os indivíduos que se encontrem abaixo do seu valor; b) A linha de
indigência, endogenamente construída, refere-se somente à estrutura de custos de uma cesta alimentar, regionalmente
definida, que contemple as necessidades de consumo calórico mínimo de um indivíduo (a linha de indigência é construída
a partir das informações regionalizadas das cestas de consumo e dos preços médios por grupos de alimentos).
183
Esse quadro socioeconômico brasileiro reforça a colocação de Frigotto e de Gentili,
entre outros críticos, em relação ao ideário excludente que permeia o discurso da “sociedade
do conhecimento” e da “empregabilidade”.
Enfim, a “ideologia do desenvolvimento”, durante o período 1950-70, legitimou
pensamentos e políticas voltados para o desenvolvimento econômico e social da nação, diante
das possibilidades de expansão e de universalização dos direitos econômicos e sociais, o que
resultou na elaboração da “teoria do capital humano”. Esta “teoria” vai enfatizar a dimensão
econômica da escola e a necessidade de planejar as políticas educacionais, tendo em vista as
demandas progressivas do mercado por recursos humanos e a formação crescente de um
contingente de força de trabalho que se incorporaria gradativamente ao mercado (era uma
questão de tempo).
A “teoria do capital humano”, nesse contexto, embora tenha dado mais ênfase à
dimensão econômica, manteve o sentido integrador da escola junto às demais dimensões,
formando, em tese, um todo coerente. Ela não rompeu com a concepção integradora da escola
já consolidada no senso comum, e fortaleceu a concepção de que a escola é um fator
determinante de integração econômica da sociedade e das pessoas, fator de desenvolvimento e
de acumulação de riquezas para a nação e de ascensão social dos indivíduos.
A “ideologia da globalização” disseminada no final dos anos 1970 busca legitimar o
“livre mercado” como mecanismo de superação da crise do Estado de bem-estar social e de
crescimento econômico. Nesse contexto, a “teoria do capital humano” “rejuvenesceu” e
incorporou novos conceitos, renovando sua base de fundamentação teórica pautada na
“empregabilidade” e na “sociedade do conhecimento”. Ela rompe com a concepção
integradora da escola e passa a legitimar a concepção de inserção, particularmente, no
mercado de trabalho. A dimensão econômica da escola na ótica da “inserção” (ou da
“inclusão”) vai construir a concepção de educação escolar como uma mercadoria que deve ser
184
consumida visando a adquirir capacidades competitivas e a desenvolver habilidades
demandadas pelo mercado.
Não há mais a idéia de desenvolvimento econômico e social da nação, esse sentido é
alterado com a “ditadura das transnacionais” e o conseqüente enfraquecimento da soberania
dos países; não existem mais países, mas mercados potenciais; não existe mais educação, mas
mercadorias de todo tipo de qualidade, conforme o “bolso” do consumidor.
Diante dos dados da realidade, que mostram os resultados das políticas de “livre
mercado” e da globalização das economias, sob as determinações e condicionalidades do
Consenso de Washington (aumento exacerbado da pobreza, acirramento das desigualdades
socioeconômicas no mundo, precarização do trabalho, que se dá nas perdas dos direitos
sociais conquistados, aumento da massa de subempregados e desempregados estruturais) e
diante da pressão dos movimentos sociais antiglobalizantes, os principais agentes
formuladores de políticas buscam saídas para a crise, para o “fracasso” da “teoria do
derrame”, que foi amplamente disseminada pelos defensores do “livre mercado” como
condição de crescimento econômico e prosperidade.
No final dos anos 1990, constata-se que a promessa de inserção no mercado via
investimento no capital humano não foi cumprida provocando novas tensões que colocavam
em risco a coesão social, ou melhor, as condições hiperfavoráveis de acumulação de riqueza.
Deflagra-se uma terceira etapa de orientações políticas coordenada pelos principais
organismos multilaterais, constitutiva das políticas de “desenvolvimento para o novo
milênio”. Esta etapa é compreendida no âmbito desse estudo como “re-rejuvenescimento” da
ideologia do capital humano. Esse “re-rejuvenescimento” da ideologia do capital humano se
dá na incorporação das propostas de desenvolvimento do “capital social”, compondo as
estratégias de políticas de estabilização econômica para os países dependentes, mas ampliadas
com estratégias de estabilização política e com a idéia de desenvolvimento sustentável.
185
Conforme será visto no capítulo seguinte, os “objetivos do milênio” que tem como
meta principal erradicar a pobreza até 2015 constituem-se em novos ajustes políticos ainda
necessários ao processo de “deslocamento da ideologia do desenvolvimento para a ideologia
da globalização” (Leher, 1998), que entra em crise em meados de 1990. Novos mecanismos
de hegemonia foram construídos, estão sendo formalizados e sendo consolidados através das
políticas de desenvolvimento sustentável para o novo milênio.
Mantendo a mesma base da ideologia do capital humano, uma outra função é atribuída
à educação nas “políticas de desenvolvimento do milênio”, aumentar a produtividade das
camadas mais pobres da população através da ampliação do acesso aos bens sociais, isto é,
gerando “capital social”.
Esse “novo paradigma”
104
que vem sendo introduzido pelas principais agências
multilaterais (BIRD, BID, CEPAL) como alternativa de superação da “crise do Estado” – o
“capital social” -, visa a superar a pobreza através da colaboração e da cooperação dos
cidadãos no processo de alargamento do acesso dos mais pobres aos benefícios econômicos e
bens socioemocionais já disponíveis na sociedade, buscando um novo equilíbrio entre
mercado e interesse público, disseminando valores de “solidariedade”, de sentimento de
“prosperidade”, de “forma a possibilitar a construção de uma “sociedade solidária”.
Nesse contexto, a educação exerce um papel fundamental, pois na concepção do
Banco Mundial: “Os investimentos em educação podem transmitir mensagens culturais e
construir a coesão social” (BIRD, 2002a, p.38; grifo nosso).
104
Que incorpora as teses de Robert Putnam sobre desenvolvimento social através daconsciência cívica”,
“cooperação”, “redes solidárias”, mais a de Francis Fukuyama sobre a idéia de se fortalecer “laços de
confiança” para a superação da pobreza, associada à visão de “pobreza como deficiência cultural” e a de
Amartya Sen como “privação de capacidades”, entre outras obras e estudos desencadeados a partir desses
autores.
186
A relação que se estabelece entre a “teoria do capital humano” e a “teoria do capital
social” está na concepção de que investir em pessoas, na capacitação da força de trabalho
mais competitiva, reflete na melhoria das condições de trabalho e no aumento da
produtividade que, conseqüentemente, vai refletir na melhoria da qualidade de vida do
indivíduo e de sua família, reduzindo os “problemas sociais”, uma vez que se desenvolve a
capacidade de controlar os “ativos” sociais ou de gerar “capital social”.
Para a equipe do Banco Mundial, o indivíduo investindo na qualificação de sua força
de trabalho (da qual é proprietário e nesse sentido deve esforçar-se para manter a “qualidade”
de seu patrimônio) conquistará, além de uma qualidade de vida melhor resultante de um bom
emprego ou de uma “ocupação” rentável (Oliveira, 2003), uma sociedade solidária e
harmônica, uma vez que através da educação o indivíduo desenvolve, também, sua
capacidade de “participar das redes, serviços e benefícios sociais” (Mazza, 2004), de controle
da gestão pública e dos ativos mantendo, dessa forma, a coesão social, isto é, reduzindo
possibilidades de conflitos.
É no contexto da mundialização do capitalismo e no processo de intensificação das
mazelas sociais que a função social da educação é re-colocada no centro das políticas de
combate à pobreza e de “desenvolvimento”, tendo como protagonista a “sociedade civil”.
Nessa perspectiva, as orientações do Banco Mundial respaldadas por outros órgãos
multilaterais mantêm a centralidade na educação com a “tese” de gerar capital humano, ainda
na perspectiva da contra-reforma do Estado: flexibilidade, desregulamentação e
descentralização. Mas, na virada do século, à educação é somada uma outra função, a de gerar
capital social para a consolidação de uma sociedade solidária às camadas mais pobres da
população, compondo as orientações de estabilização política para o desenvolvimento
sustentável.
187
Retomando a problemática da mundialização do capitalismo, Iamamoto (2004) destaca
quatro aspectos centrais que conferem novas mediações históricas à produção da “questão
social” neste contexto: 1- a lógica financeira ou o favorecimento dos investimentos
especulativos em detrimento da produção, “o que se encontra na raiz da redução dos níveis de
emprego, do agravamento da “questão social” e da regressão das políticas sociais públicas”;
2- o padrão “flexível” na esfera da produção, “afetando os processos de trabalho, as formas de
gestão da força de trabalho, o mercado de trabalho e os direitos sociais e trabalhistas, os
padrões de consumo, etc.”, gerando a redução dos postos de trabalho, a precarização das
condições de trabalho e a ampliação da competitividade entre os trabalhadores; 3- mudanças
radicais nas relações Estado-sociedade civil, reduzindo a ação do Estado frente à “questão
social”, através da restrição de gastos sociais e programas assistenciais focalizados de
“combate à pobreza” e de segurança; 4- e nas formas de sociabilidade com a invasão da lógica
pragmática e produtivista em diferentes esferas da vida social. “Ao lado da naturalização da
sociedade – ‘é assim mesmo, não há como mudar’ -, ativam-se os apelos morais à
solidariedade, na contraface da crescente degradação das condições de vida das grandes
maiorias” (Iamamoto, 2004, pp.18-20).
Em sua tese, Leher destaca nas orientações de políticas educacionais do Banco
Mundial, na “Era do Mercado”, para os países “periféricos”, a conexão que é estabelecida
entre segurança, aliviamento da pobreza e função de hegemonia. Tanto Leher como Frigotto
chamam a atenção pelo caráter hegemônico e ideológico de tais políticas.
Para Leher (1998):
As transformações do mundo do trabalho não implicam um transtorno
revolucionário do MPC (modo de produção capitalista) e, portanto, não
podem ser adotadas como uma espécie de ponto de inflexão capaz de
engendrar novas formas de qualificação ou competências. O deslocamento
da ideologia do desenvolvimento para a globalização, longe de possuir como
chave explicativa uma pretensa era pós-fordista-taylorista, é melhor
explicado pela tendência de polarização mundial(...). O Banco Mundial,
enquanto arquiteto e artífice das reformas estruturais neoliberais, está ciente
188
do aprofundamento da polarização (....) e das possíveis conseqüências
desestabilizadoras da exclusão estrutural de vastas regiões mundiais. (...) a
educação tem um lugar de destaque (Leher, 1998, pp.246-247).
A elaboração de novas políticas para o “desenvolvimento do milênio” dentro do
contexto da ideologia da globalização, inserindo elementos da “teoria do capital social”, visa a
conter as “possíveis conseqüências desestabilizadoras da exclusão estrutural”, promovendo
ações de alívio à pobreza de uma parcela significativa da classe trabalhadora que teve sua
demanda da força de trabalho reduzida e depreciada.
Frigotto (2000) adverte que não se trata de negar os avanços tecnológicos e do
conhecimento ocorridos nos últimos tempos ou fixar-se na resistência, nem de considerar as
posturas dos homens de negócios em relação à educação como atitudes maquiavélicas ou que
efetivamente instaurou-se uma preocupação humanitária neste grupo. Trata-se de disputar
concretamente a hegemonia desses avanços e conduzi-los submetendo-os à esfera pública e ao
controle democrático para “potenciar a satisfação das necessidades humanas”. O eixo, coloca
o autor, “não é a supervalorização da competitividade, da liberdade, da qualidade e da
eficiência para poucos e a exclusão das maiorias, mas a solidariedade, da igualdade e da
democracia” (p.139; grifo nosso).
A disputa pela hegemonia não é um processo simples, mesmo numa conjuntura de
crise econômica. Conforme foi colocado, Gramsci (2000b) exclui a possibilidade de que as
crises econômicas, por si mesmas, produzam “eventos fundamentais”; historicamente,
situações de bem-estar ou mal-estar econômicos podem “produzir novidades”, mas não a
“ruptura do equilíbrio entre as forças”. Para o pensador italiano, não se trata de uma relação
de causa mecânica e imediata. As crises econômicas “são a manifestação concreta das
flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, em cujo terreno verifica-se
a transformação destas relações em relações políticas de força, para culminar na relação
189
militar decisiva”. Elas “podem apenas criar um terreno mais favorável à difusão de
determinados modos de pensar, de pôr e de resolver as questões que envolvem todo o curso
subseqüente da vida estatal” (Gramsci, 2000b, CC.V.3.C.13, pp.44-45).
E neste terreno de disputas ideológicas, enquanto concepção de mundo, enfrenta-se,
ainda, o desafio de identificar a polissemia dos conceitos. Solidariedade, igualdade e
democracia, por exemplo, são conceitos que estão cada vez mais presentes e fortalecidos nas
retóricas e nos argumentos de políticas dos “intelectuais orgânicos do capital” – as agências
multilaterais.
O aperfeiçoamento das estratégias do sistema de controle do capital pode ser
observado não somente nas formas cada vez mais eficazes de extração do trabalho excedente,
mas também nos mecanismos de legitimação da ordem capitalista em sua totalidade e nas
formas cada vez mais sutis e eficazes de ressignificar demandas dos setores populares e dos
movimentos de esquerda.
Nesta perspectiva considerou-se fundamental identificar as bases ideológicas que
sustentam a “teoria do capital social” que é resgatada para ser incorporada como mecanismos
de hegemonia operados através das “políticas de desenvolvimento do milênio”.
190
3.3 O resgate da “Teoria do Capital Social” por Putnam e Fukuyama
O tema “capital social”, segundo o técnico da CEPAL Sunkel (2003),
105
entrou no
debate acadêmico promovido pelas agências internacionais, tendo em vista o reconhecimento
do potencial do “capital social” em relação às possibilidades trazidas por este “novo
paradigma” de habilitar setores pobres a participarem e beneficiar-se do processo de
desenvolvimento.
D’Araújo (2003)
106
coloca que o termo “capital social” não é novo. Ele ganha, na
contemporaneidade, notoriedade e uma roupagem nova a partir da obra de Robert Putnam.
107
“É uma nova roupagem para preocupações antigas que inquietam grande parte da população”
(p.8). E estabelece que o sentido geral que vem sendo atribuído ao termo expressa,
basicamente, “a capacidade de uma sociedade estabelecer laços de confiança interpessoal e
redes de cooperação com vistas à produção de bens coletivos” (D’Araújo, 2003, p.10).
108
105
Sunkel, Guillermo. “La pobreza en la ciudad: capital social y políticas públicas”. In: ATRIA, Raúl; SILES,
Marcelo; ARRIAGADA, Irma; ROBINSON, Lindon J. & WHITERFORD, Scott (comps.), 2003. Capital social
y reducción de la pobreza en América Latina y el Caribe: en busca de un nuevo paradigma. Santiago do
Chile: Comisión Econômica para América Latina y el Caribe-University of Michigan Press. Enero/2003. Livro
nº 71.
106
Independentemente de se concordar ou não com o ponto de vista da autora, Maria Celina D’Araújo elaborou
uma obra, tipo guia inicial, para quem tem interesse em aprofundar o tema “Capital Social”, o que é interessante
no que toca ao mapeamento dos usos da expressão histórico e epistemologicamente. A autora aponta Putnam e
Fukuyama como os principais autores citados nas obras recentes sobre o tema.
107
Obra: Comunidade e Democracia: o Desenvolvimento da Itália Moderna (1993). Robert Putnam é
americano, professor da Universidade de Harvard. Sua pesquisa sobre o desempenho institucional dos governos
regionais da Itália moderna foi publicada nos Estados Unidos em 1993, pela Princeton University Press, com o
título: Marking democracy work: civic traditions in modern Italy, e no Brasil foi publicada pela Fundação
Getúlio Vargas, em 1996, com o título “Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna” (em 2002
estava na 3ª edição).
108
Conceitos que apresentam aproximações com o pensamento de Durkheim.
191
Tarso Nuñez
109
, que cita Putnam como um clássico na área da “teoria do capital
social”. O “capital social” para o autor é um tipo de visão, ou melhor:
(...) é uma coisa que não existia há 20, 30 anos, na época do milagre
brasileiro, quando se pensava que o importante era fazer o bolo crescer para
depois dividir. O que se descobriu – e o conceito de capital social vai nesse
sentido – é que, quanto maior a distribuição, mais o bolo cresce.
110
E acrescenta que, ao “trabalhar essa idéia de capital social, você consegue incorporar a
dimensão humana no processo econômico” (grifo nosso).
111
Putnam elabora sua definição de “capital social”, em complemento à concepção de
James Coleman, enumerando vários exemplos dos atributos do “capital social”, que englobam
tanto variáveis “estruturais” quanto “atitudinais”. Não existe uma definição exata do termo,
no entanto, sua obra é a referência principal em todos os estudos sobre o tema. Mas existe um
volume enorme de estudos e pesquisas sobre o tema, alguns se dedicando aos aspectos
conceituais e outros a estudos empíricos. Tendo em vista o número de pesquisadores e
estudiosos do tema, destacou-se neste estudo, além dos já mencionados Amartya Sen e Robert
Putnam, uma obra específica de Francis Fukuyama a respeito do assunto, uma vez que estes
109
Tarso Nuñez é historiador e especialista em sociologia. Em entrevista para o site www.setor3.com.br /senac,
foi apresentado, também, como: “assessor parlamentar, faz parte da Ong (...) Usina – Instituto de Políticas
Públicas de Gestão Local, Porto Alegre, que trabalha com uma série de pessoas do antigo governo do Estado e
da Prefeitura (governo Tarso Genro), e que hoje vem trabalhando para formular políticas públicas voltadas para
o desenvolvimento sustentável”.
110
www.setor3.com.br/senac. “Historiador fala sobre o conceito que busca compreender as desigualdades
sociais”. Entrevista realizada por Laura Giannecchini para o site, em 31 de janeiro de 2005. Acesso em março de
2005.
111
Como se fosse possível introduzir uma dimensão mais humana na lógica do capitalismo, que prioriza o capital
na relação de produção; onde as atividades e produtos humanos se convertem em mercadoria, não para satisfazer
as necessidades mais elementares da população, mas para criar necessidades ampliadas de consumo. A lógica
que permeia este modo de produção da existência é o incessante e insaciável movimento de valorização do
capital, de ganho operado pelos capitalistas; tudo vira mercadoria; tudo é vendável. Como colocou Polanyi
(2000), a economia capitalista, mais do que uma economia de mercado, é uma economia para o mercado. Marx
esclareceu que o capitalismo só pode existir em expansão contínua, impulsionado pela competição, pelo lucro
sempre ampliado; num processo de mercantilização crescente de todas as atividades e produtos humanos. Neste
processo, condiciona com suas regras as várias esferas da vida social; com a superexploração do trabalho. “Nas
mesmas condições em que se produz a riqueza, produz-se também a miséria” (Marx, 2002b, p.749).
192
autores são referências em muitos desses estudos sobre “capital social”.
Em um do documento da CEPAL - “Capital social y reducciòn de la pobreza en
América Latina y el Caribe: en busca de um nuevo paradigma”-,
112
os autores apontam os
conflitos existentes em relação às diversas definições e abordagens de “capital social” e
relacionam as seguintes diferenças:
Lo que algunos denominan capital social, es lo que otros consideran
manifestaciones o productos del capital social.
Hay quienes estiman que el capital social es un concepto micro. Otros
piensan que se trata de un concepto macro.
Algunos equiparan el capital social a conceptos como las instituciones, las
normas y las redes, mientras que otros prefieren identificar estos conceptos
en forma separada, como elementos del paradigma del capital social.
En sus definiciones del capital social, hay quienes lo ubican en unidades
tales como la sociedad civil, las comunidades y las familias. Otros sostienen
que no corresponde hacer referencia a esa ubicación en la definición del
capital social.
Nosotros definimos el capital social como los sentimientos de
solidariedad de una persona o un grupo por otra persona o grupo. Esos
sentimientos pueden abarcar la admiración, el interés, la preocupación, la
empatía, la consideración, el respeto, el sentido de obligación, o la confianza
respecto de otra persona o grupo (Robison, Siles & Schmid, 2003, p.57;
grifo nosso).
Contudo identifica-se que há um consenso entre os organismos multilaterais de que o
desenvolvimento de “capital social” é uma saída à crise que está posta nos anos finais da
década de 1990, de forma a aliviar a pobreza que se amplia principalmente nos países mais
pobres. A “teoria do capital social” passa a ser a base ideológica das “políticas de
desenvolvimento do milênio” e, nesse sentido, promovem-se debates e financiam-se projetos
focalizados para a produção do “capital social” em comunidades pobres. Antes de identificar
as idéias incorporadas pelos organismos multilaterais, principalmente pelo Banco Mundial,
112
ATRIA, Raúl; SILES, Marcelo; ARRIAGADA, Irma; ROBINSON, Lindon J. & WHITERFORD, Scott
(comps.), Capital social y reducción de la pobreza en América Latina y el Caribe: en busca de un nuevo
paradigma. Santiago del Chile: Comisión Económica para América Latina y el Caribe-University of Michigan
Press. Enero/2003. Livro nº 71.
193
em relação ao “capital social”, tratar-se-á das idéias contidas nas obras de Putnam e
Fukuyama, que são referências do assunto.
3.3.1 Robert Putnam: resgatando a teoria do capital social
Na obra do Banco Mundial, Do Confronto à Colaboração Relações entre a
Sociedade Civil, o Governo e o Banco Mundial no Brasil (2000c), John W. Garrison faz a
seguinte observação sobre o autor: “Mais recentemente Robert Putnam ajudou a popularizar a
expressão ‘capital social’ quando analisou a importância das tradições cívicas na consolidação
da democracia na Itália e Estados Unidos” (p.86).
O estudo de Putnam sobre o desempenho institucional dos governos regionais da Itália
moderna, assim como a metodologia empregada,
113
tornou-se referência para outras
pesquisas, em outros países, e nos estudos e debates sobre “capital social” e “poder local”, e é
uma categoria-chave nos documentos dos principais organismos internacionais. O próprio
Putnam faz referência a algumas pesquisas realizadas em países “em desenvolvimento”, que
chegam à mesma conclusão: as associações locais têm um papel crucial nas estratégias de
desenvolvimento e de combate à pobreza. E os organismos internacionais, além da obra de
Putnam, apontam trabalhos de outros autores, tais como, James Coleman (Apud, Putnam,
2002)
114
, Bernardo Kliksberg e Luciano Tomassini
115
e Francis Fukuyama,
116
como sendo
113
Na metodologia empregada para averiguar o desempenho institucional desses governos descentralizados,
Putnam tomou as instituições como “variável independente”, num momento, para averiguar “como a mudança
institucional influencia a identidade, o poder e a estratégia dos atores políticos”, e como “variável dependente”,
para examinar o desempenho da instituição em relação à história da região. Entre as duas etapas ele ainda
averiguou se o desempenho prático das instituições é moldado pelo contexto social em que atuam. Para tal,
realizou entrevistas pessoais com líderes comunitários e conselheiros regionais, analisou as legislações
produzidas nesses anos, fez sondagens ao eleitorado, etc.
114
Coleman, J. (1990). Foundations of social theory. Havard University Press. Ele é citado pelo próprio Putnam
quando em sua definição sobre capital social.
115
Kliksberg, B & Tomassini, Luciano (2003). Capital Social y Cultura: claves estratégicas para el desarrollo.
3ª edição. BID. Basicamente em quase todas as obras produzidas pelo BID sobre o assunto, as definições de
194
obras fundamentais para a compreensão do termo e para definir estratégicas de
desenvolvimento, além de vários outros estudos, até de caráter mais prático, geralmente
financiados pelo Banco Mundial, que procuram demonstrar a importância do “capital social”
no desempenho econômico e político dos países.
No tocante à referência de Robert Putnam sobre a teoria do “capital social”,
considerou-se importante esboçar o caminho que percorreu sua pesquisa e as conclusões a que
chegou.
117
Com a questão: “Por que alguns governos democráticos têm bom desempenho e outros
não?”, Putnam analisou, durante quase 20 anos (de 1970-1989), o processo de
descentralização administrativa do governo italiano, avaliando o desempenho institucional e
os resultados dos recém-criados governos regionais, entre o Norte e o Sul da Itália (20
governos regionais na totalidade). Ele estava empenhado em examinar o potencial da reforma
institucional como estratégia para a mudança política e também as restrições que o contexto
social impõe ao desempenho institucional. Para Putnam (2002):
A experiência regional italiana oferece(u) uma oportunidade única para
responder a essa questão. É (foi) uma rara oportunidade para estudarmos
sistematicamente o nascimento e o desenvolvimento de uma nova
instituição. (...)
Assim, como o botânico pode estudar o desenvolvimento das plantas
medindo o crescimento de sementes geneticamente idênticas em terrenos
diferentes, também o estudioso do desempenho governamental pode
examinar a evolução dessas novas organizações, formalmente idênticas, em
seus diversos ambientes sociais, econômicos, culturais e políticos (pp.22-
23).
capital social e as estratégias de desenvolvimento são pautadas nesta obra.
116
Mais exatamente em sua obra Confiança: Valores Sociais & Criação de Prosperidade (1996).
117
Uma nota explicativa. Nessa parte do capítulo será enfatizada a obra de Putnam, considerando que sua
pesquisa é a base de fundamentação que levou outros autores a aprofundar a temática, já no marco do contexto
em que se construía a idéia da necessidade de se buscar uma saída para a crise que se constituiu com as reformas
estruturais do FMI. Os estudos dos demais autores, que geralmente são citados como essenciais na formulação
de políticas de desenvolvimento do capital social para o combate à pobreza e a desigualdade, estão sendo
inseridos neste estudo ao longo da exposição sobre a lógica que se constrói no final dos anos 1990 para a
superação da crise (Amartya Sen, Francis Fukuyama, Bernardo Kliksberg, entre outros).
195
Putnam (2002) partiu dos debates teóricos dos republicanos, que enfatizam a
comunidade e as obrigações dos cidadãos, e dos liberais, que ressaltam o individualismo e os
direitos individuais, com uma crítica em relação à falta de uma sustentação empírica
sistemática nesses debates, que permitam identificar variáveis por meio das quais se possa
indicar procedimentos efetivos de mudanças sociais. Nesse sentido, foi investigar,
empiricamente, “se o êxito de um governo democrático depende de quão próximo seu meio se
acha do ideal de uma ‘comunidade cívica’” (p.101). Definiu que, em termos práticos, uma
“comunidade cívica”, que tem o mesmo sentido de “capital social”, incorpora os princípios
de: participação cívica; igualdade política; sentimentos de solidariedade, confiança e
tolerância; estruturas sociais de cooperação (associações).
A participação em organizações cívicas desenvolve o espírito de cooperação
e o senso de responsabilidade comum para os empreendimentos coletivos.
Além disso, quando os indivíduos pertencem a grupos heterogêneos com
diferentes tipos de objetivos e membros, suas atitudes se tornam mais
moderadas em virtude da interação grupal e das múltiplas pressões.(...)
No âmbito externo, a ‘articulação de interesses’ e a ‘agregação de
interesses’, (...) são intensificadas por uma densa rede de associações
secundárias.
(...) uma densa rede de associações secundárias ao mesmo tempo incorpora e
promove a colaboração social. Assim, contradizendo o receio de sectarismo
manifestado por pensadores como Jean-Jacques Rousseau, numa
comunidade cívica as associações de indivíduos que pensam da mesma
forma contribuem para um governo democrático eficaz (Idem, p.104).
Explica o autor que a idéia de desempenho institucional empregada na pesquisa
baseia-se num modelo simples de governança: “demandas sociais interação política
governo opção de política implementação”, que, segundo ele, difere de certos teóricos
que compreendem o desempenho institucional como “‘as regras do jogo’, as normas que
regem a tomada de decisões coletiva, o palco onde os conflitos se manifestam e (às vezes)
resolvem”. Trata-se, segundo ele, de uma noção até “pertinente, mas não esgota o papel das
instituições na vida pública”. Explica que para este tipo de compreensão de desempenho
196
institucional, que no geral baseia-se no Congresso norte-americano, “ter ‘êxito’ (...) significa
capacitar os atores a resolver suas divergências da maneira mais eficiente possível,
considerando suas diferentes preferências” (Putnam, 2002, p.24), estabelecendo acordos. Na
sua concepção:
As instituições são mecanismos para alcançar propósitos, não apenas para
alcançar acordo. Queremos que o governo faça coisas, não apenas decida
coisas – educar as crianças, pagar os aposentados, coibir o crime, gerar
empregos, conter a alta dos preços, incutirem valores familiais e assim por
diante. (....)
Para ter um bom desempenho, uma instituição democrática tem que ser ao
mesmo tempo sensível e eficaz: sensível às demandas de seu eleitorado e
eficaz na utilização de recursos limitados para atender a essas demandas
(pp.24-25).
Em sua pesquisa na Itália, Putnam (2002) concluiu que a consciência cívica é
fundamental para a democratização e o desenvolvimento econômico. Diz ele: “Tocqueville
tinha razão: diante de uma sociedade civil vigorosa, o governo democrático se fortalece em
vez de enfraquecer” (p.191).
118
Ele identificou que o processo histórico da formação das instituições político-sociais
interfere no “êxito” ou “fracasso” delas: “o debate do tipo ‘o ovo ou a galinha’ sobre a cultura
versus estrutura é essencialmente infrutífero. Mais importante é entender por que a história
facilita certas trajetórias e obstrui outras” (Idem, p.190). Citando Douglass North destaca o
seguinte trecho de sua obra: “A subordinação à trajetória significa que a história realmente
importa. É impossível compreender as opções de hoje (e precisá-las na modelagem do
desempenho econômico) sem investigar a evolução incremental das instituições” (Ibidem). O
processo histórico a que se refere está relacionado às diferenças na forma como
118
Alexis de Tocqueville (1805-1859). Da democracia na América (1835) é considerado um clássico da
sociologia política moderna.
197
historicamente se estruturaram as relações políticas e sociais do Norte e Sul da Itália, no
âmbito institucional e sociocultural, sem relevar as relações de poder e dominação estruturais
e superestruturais.
Na concepção de relação política e social restritamente administrativa de Putnam, o
Norte, historicamente, estabeleceu uma relação mais horizontal com o governo, por apresentar
uma forte tendência à organização e à formação de forças sociais – formação de associações.
No Sul houve o predomínio de uma relação vertical, de dependência do governo central.
No Norte, as regras de reciprocidade e os sistemas de participação cívica
corporificaram-se em confrarias, guildas, sociedades de mútua assistência
(...). Esses vínculos cívicos horizontais propiciaram níveis de desempenho
econômico e institucional muito mais elevados do que no Sul, onde as
relações políticas e sociais estruturaram-se verticalmente (Putnam, 2002,
p.191).
O resultado de sua pesquisa sobre o desempenho institucional dos governos regionais
na Itália moderna leva-o à seguinte conclusão: “Praticamente sem exceção, quanto mais
cívico o contexto, melhor o governo.(...) Eis a lição a ser tirada de nossa pesquisa: o contexto
social e a história condicionam profundamente o desempenho das instituições” (Putnam,
2002, pp.190-191). Isto é, existe uma “forte correlação entre associações cívicas e instituições
públicas eficazes” (Idem, p.186).
Enfim, para Tocqueville e também para Putnam o associativismo dos americanos é
capaz de criar relações políticas locais que se estendem para a toda a organização do país, e
este é um dos principais aspectos, que explica a “bem-sucedida” democracia americana. Na
concepção de Putnam (2002), dois fatores são essenciais na relação entre as associações
cívicas e as instituições públicas para resultar em melhores desempenhos produtivos e sociais
198
e promover o crescimento econômico: a “consciência cívica”
119
e as intervenções voluntárias
de indivíduos associados, na cobrança por melhor desempenho das instituições políticas. E
estas instituições para serem eficazes devem ter sensibilidade no atendimento das demandas
da comunidade e saber gerenciar essas demandas com pouco recurso. Para Putnam (2002)
foram esses dois fatores que contribuíram para o desenvolvimento do Norte da Itália e foi a
inexistência deles que fizeram com que o Sul permanecesse atrasado. O Sul não “herdou” um
bom estoque de “capital social” (p.177).
Gramsci, segundo Coutinho (1999), analisando a formação histórico-social da Itália
moderna observa que a “reprodução global do capital” na formação econômico-social da
Itália vai passar necessariamente pela “questão meridional”. A “questão meridional” é
resultado do movimento de unificação da Itália em meados do século XIX – Risorgimento -
“dirigido pela burguesia liberal moderada, em aliança com os grandes latifundiários e sob a
égide da monarquia piemontesa”, que gerou um “processo de modernização conservadora”.
Ela “expressa, sobretudo, na não-integração do mundo camponês sulista aos processos de
modernização econômica e política” (p.67).
120
A Itália dos anos iniciais do século XX
“conserva os resíduos feudais do Sul” sob o domínio dos latifundiários em aliança com a
burguesia liberal moderada que se desenvolve no Norte. “O Sul, atrasado e semifeudal,
funcionou objetivamente como um território colonial explorado pela burguesia industrial do
Norte” (Idem). A região Sul da Itália era, sobretudo, “um fornecedor de força-de-trabalho
barata para a indústria do Norte”, isto é, faz parte do rebaixamento do custo da reprodução da
força de trabalho, favorecendo tanto a “burguesia nortista”, como “também os grandes
119
E não a “consciência crítica”.
120
Na análise sobre o Risorgimento, Gramsci introduz o termo “revolução-restauração” (ou “revolução passiva”)
para indicar que no processo de desenvolvimento das forças produtivas conservam-se elementos atrasados das
relações sociais. Trata-se de uma categoria de Gramsci que muito contribuiu, e ainda contribui, nas análises e
estudos sobre o processo de desenvolvimento das forças produtivas em países nos quais a formação do
capitalismo foi tardia.
199
latifundiários do Sul, que eram protegidos pelo Estado contra transformações radicais no
estatuto da propriedade rural” (Coutinho, 1999, pp.66-67).
Ainda segundo Coutinho (1999):
Mais que isso: as grandes margens de lucro desfrutadas pela burguesia
nortista, graças ao protecionismo e ao volumoso exército industrial de
reserva, favoreciam as tentativas de ‘cooptação’ transformista de alguns
setores operários, que se expressavam politicamente no reformismo. Com
isso, um setor privilegiado da classe operária – uma ‘aristocracia operária’ –
terminava por contribuir para consolidar o bloco industrial-agrário que
dominava o país e era responsável direto pelas miserabilíssimas condições
de vida do campesinato do Sul (p.67).
Sem considerar as contradições na formação econômico-social da Itália moderna,
Putnam identifica dois tipos de atuação do Estado que vão interferir de modo positivo ou
negativo no desempenho das instituições públicas, não só da Itália, mas de qualquer formação
histórico-social: uma que ele denomina de “círculo vicioso autoritário” e outra, em oposição,
o “círculo virtuoso democrático”. Na primeira, o Estado garante a ordem de maneira
coercitiva, por meio do medo, da repressão e da dependência, inibindo a construção de
comportamentos mais cooperativos no interior da população, dificultando o estabelecimento
de “laços horizontais” de “confiança mútua”. Na segunda há o investimento em formular
regras e normas “impessoais” de “solução de disputas”, que devem ser seguidas por todos,
independentemente das condições social e econômica.
Segundo o autor: “As regras de reciprocidade generalizada e os sistemas de
participação cívica estimulam a cooperação e a confiança social porque reduzem os incentivos
de transgredir, diminuem a incerteza e fornecem modelos de cooperação futura” (p.186). Os
“círculos virtuosos” resultam em equilíbrios sociais, com níveis de cooperação, confiança,
reciprocidade, civismo e bem-estar coletivo elevados, o que caracteriza a definição de
“comunidade cívica” de Putnam.
200
Para Putnam (2002):
...o contrato social que sustenta essa colaboração na comunidade cívica
não é de cunho legal, e sim moral. A sanção para quem transgride não é
penal, mas a exclusão da rede de solidariedade e cooperação. (...)
A consciência que cada um tem de seu papel e de seus deveres como
cidadão, aliada ao compromisso com a igualdade política, constitui o
cimento cultural da comunidade cívica (p.192; grifo nosso).
A comunidade cívica de Putnam não se refere a uma questão política mais ampla,
ético-política, de desenvolver a capacidade organizativa dos trabalhadores para estabelecer
uma “aliança operário-camponesa” voltada para a formação de uma classe nacional, “capaz
(...) de exercer sua própria hegemonia sobre a maioria dos trabalhadores”, como fora sugerido
por Gramsci (Coutinho, 1999, p.68), mas de uma questão moral, que responde por seus atos
tendo em vista sua própria consciência individual.
A transformação dessa realidade vai se estabelecer através da solidariedade e da
colaboração entre os membros de uma comunidade. Não há lutas de classes, conflitos, ao
contrário, estes devem ser evitados; não considera a complexa articulação entre objetividade e
subjetividade, entre Natureza e História (Idem, p.16). O problema da diferença de
desenvolvimento econômico e social entre o Sul e o Norte da Itália, como também de outras
formações histórico-sociais, na concepção de Putnam (2002), pode ser superado pondo no
centro a questão da “cultura cívica”.
A “cultura cívica”, ou seja, o civismo, a cultura política, as tradições republicanas, a
capacidade de a sociedade desenvolver maior participação política e de organização social, de
estabelecer uma relação humana menos hierarquizada, tem a “função controladora” dos bens
socioemocionais ou dos estoques pessoais de ativos, que é exercida pela sociedade civil
organizada. Não tem o sentido de uma reforma intelectual e moral para a supressão, não só da
condição econômica, mas ideológica, conforme defende Gramsci, que leve o trabalhador a
201
“exercer sua direção político-cultural sobre o conjunto das forças sociais que, por essa ou
aquela razão, desse ou daquele modo, se opõe ao capitalismo” (Coutinho, 1999, p.65).
Sua base de análise sociocultural é a teoria da governança democrática de Tocqueville.
Tocqueville ressalta a conexão entre os costumes de uma sociedade e suas práticas políticas.
São as associações cívicas que vão reforçar os “hábitos do coração”, essenciais para se ter
instituições democráticas estáveis e eficazes. Nessa ótica, Putnam (2002) sugere que se
desenvolva a “cultura cívica”, a “virtude cívica” para a formação de uma comunidade cívica,
que implica em direitos e deveres iguais para todos, e insere cidadãos solidários, tolerantes e
estabelecendo laços de confiança mútua. Putnam destaca o seguinte trecho da teoria de
Tocqueville: “A confiança mútua é talvez o preceito moral que mais necessita ser difundido
entre as pessoas, caso se pretenda manter a sociedade republicana” (p.103; grifo nosso).
A propensão de uma comunidade a formar associações cívicas é fundamental para a
eficácia e a estabilidade de um governo democrático, pois estas incutem nos membros os
hábitos de cooperação, solidariedade e espírito público, isto é, traduz-se em “capital social”.
Sociedades ou regiões com estruturas mais democráticas seriam mais capazes de avançar no
crescimento econômico e social, pois podem empreender uma dimensão comunitária do
desenvolvimento e, dessa forma, superar a “questão social” através da cooperação.
Nessa perspectiva, o “capital social”, que “diz respeito às características da
organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a
eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas” (Putnam, 2002, p.177), é mais
importante para o equilíbrio social, para a estabilidade política, para a “boa governança” e
para o desenvolvimento econômico, do que o capital físico ou humano (Idem, p.192) – é um
potencial moral que garante a coesão social.
202
A definição de “coesão social”, segundo Levitas (Apud Shiroma, 2001), articula tanto
a integração econômica quanto moral, “advogando que uma sociedade coesa é aquela que
oferece oportunidades para todos os membros; remete a valores comuns; pressupõe e requer
que todos os cidadãos compartilhem um bem-estar mínimo, um sentimento de pertencimento,
orgulho cívico e participem em questões de natureza pública” (Levitas Apud Shiroma, 2001,
p.31). Nessa perspectiva, considera-se que as idéias e a metodologia de Putnam, em sua
essência, incorporam elementos da sociologia de Durkheim.
Para Durkheim, a função da sociologia é a de detectar e buscar soluções para os
problemas sociais, restaurando a normalidade social e converter em uma técnica de controle
social e de manutenção do poder vigente. Os “fatos sociais” que “desviam” da normalidade
são vistos como uma “patologia”, isto é, uma “anomia”, desajustes entre as funções sociais
que podem comprometer a solidariedade ou a coesão social. O problema fundamental da vida
social é um problema moral - só a potência moral pode cessar as paixões humanas.
Para Lowy (1991), fazendo uma crítica ao “Funcionalismo”, o âmago do problema é a
“própria concepção de método”.
O Funcionalismo, ao analisar qualquer elemento de um sistema social,
procura saber de que maneira este elemento se relaciona com outros
elementos do mesmo sistema social e com o sistema social como um todo,
para daí tirar as conseqüências que interferem no sistema, provocando sua
disfunção, ou, por outro lado, contribuem para a sua manutenção, sendo,
portando, funcionais (p.41).
Dois conceitos de Durkheim parecem perpassar a obra de Putnam: “solidariedade
mecânica” e “solidariedade orgânica”. A “solidariedade mecânica” é um tipo de coesão social
que se dá por “similitude”, característico nas sociedades menos complexas, típico das
sociedades pré-capitalistas, onde os indivíduos se identificam através da família, da religião,
da tradição, dos costumes. É uma sociedade que tem coerência porque os indivíduos ainda
não se diferenciaram; reconhecem os mesmos valores, sentimentos, objetos sagrados, porque
203
pertencem a uma coletividade. Já a “solidariedade orgânica” é característica das sociedades
capitalistas, ou melhor, a divisão social do trabalho, que tem como base a organização social,
a forma como a sociedade se organiza. A sociedade é mais complexa e predomina a
consciência individual. Há uma redução da consciência coletiva, pois os indivíduos são
diferenciados. No entanto, quanto maior a “diferenciação” maior a “interdependência” entre
os indivíduos e, com isso, maior coesão social. Nesse sentido, sendo a divisão social do
trabalho uma estrutura de coesão social, o efeito mais importante da divisão não é o aumento
da produtividade, mas a solidariedade que gera entre os homens.
Nas sociedades complexas os indivíduos não se “assemelham”, são diferentes e
necessários, estabelece uma relação funcional. Os indivíduos tornam-se interdependentes,
garantindo a “união social”, não mais pelos costumes ou tradições, mas através de normas,
regras e leis estabelecidas. Com isso, é o Estado que vai exercer a “função unificadora”; vai
representar a “consciência coletiva”, através do sistema judiciário e da educação. Em Putnam,
para o Estado exercer tal função, isto é, realizar uma “boa governança”, é fundamental
fortalecer as instituições políticas através das associações civis locais, isto é, através da
“cultura cívica”.
A concepção de cidadania de Putnam, que enfatiza a importância da confiança e a
participação ativa dos cidadãos para o funcionamento eficaz das instituições democráticas,
tem sido uma abordagem predominante atualmente. Esse tipo de concepção toma como base a
mudança de atitude dos cidadãos nas últimas décadas diante das instituições públicas, que
originou ou aprofundou o fenômeno da desconfiança política em várias partes do mundo e um
deslocamento da discussão sobre o processo de democratização para o terreno da
consolidação da cidadania. Provavelmente, isso se deu com o aumento das demandas sociais,
frente à exacerbação do individualismo, das desigualdades e da pobreza no contexto do
capitalismo globalizado, e o fortalecimento dos debates sobre a exclusão social de grupos
204
discriminados.
Para Moisés (2005),
121
a crise da “governança” que se estabeleceu no pós-Welfare
acarretou essa mudança no comportamento dos cidadãos em relação aos mecanismos básicos
da democracia representativa como partidos e eleições. O autor, calcado no ponto de vista do
historiador José Murilo de Carvalho,
122
considera que no Brasil, a reconquista da liberdade e a
ampliação de direitos sociais e da participação política (no pós-ditadura) não impediram que
ocorresse “um certo desencanto político e um déficit de confiança dos cidadãos nas
instituições democráticas”, associado com as dificuldades de os governos solucionarem os
problemas sociais e econômicos do país. E indica uma extensa literatura sobre a temática, a
partir dos anos 1980, que aponta a complexidade e a variação do fenômeno.
Segundo Moisés (2005):
Nas democracias consolidadas em meados do século XX, como Itália, Japão
e, em menor grau, Alemanha, o cinismo e o desconforto com o
funcionamento das instituições públicas generalizaram-se a partir das
experiências continuadas de corrupção, engessamento do sistema de partido
políticos, e outros déficits de desempenho institucional. Aonde as
instituições respondem melhor à sua missão original, como na Holanda,
Noruega, Finlândia e Dinamarca, a confiança dos cidadãos é mais alta, mas
também oscila. A variação realmente dramática ocorreu nas democracias
mais antigas como Estados Unidos, Inglaterra, França, Suécia e Canadá,
onde pesquisas realizadas por mais de quatro décadas mostraram que a
confiança em autoridades e em instituições públicas caiu
sistematicamente, nos últimos 30 anos, invertendo a tendência de
prosperidade econômica associada à tranqüilidade política dominante entre o
fim da II Guerra Mundial e os anos 60 (pp.73-74; grifo nosso).
Nesse contexto, ganha força o debate em torno do conceito de cidadania, que se
polariza em duas vertentes conservadoras: a “comunitarista”, que busca resgatar a noção
cívico-republicana do tema, e a “liberal clássica”, de cunho essencialmente jurídico e
121
José Álvaro Moisés é professor do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP).
122
Carvalho, J.M. Cidadania no Brasil – O longo caminho. Rio de Janeiro/RJ:Paz e Terra, 2002.
205
administrativo formal. Para os comunitaristas, conforme expressa Moisés (2005), “a tradição
liberal relegou as preocupações normativas da política ao campo da moralidade privada”
(p.78). Nesse sentido:
...a política teria sido destituída do seu componente ético – associado na
concepção cívico-republicana com o desenvolvimento das virtudes
requeridas pela participação na pólis e na república – para assumir uma
concepção essencialmente instrumental, voltada apenas para a realização de
interesses privados definidos independentemente da discussão pública. Isso
teria esvaziado a noção de cidadania baseada na propensão natural dos
cidadãos de juntar-se com os seus iguais para definir a ação coletiva
necessária à realização do bem almejado pela comunidade política, e teria
dado origem a uma noção descomprometida do ser político, empobrecedora
da cidadania como comunidade constitutiva, cujo processo de definir
objetivos comuns seria o fundamento da identidade política dos indivíduos
(Moisés, 2005, p.78).
Para a vertente “comunitarista”, a concepção liberal é restrita à “comunidade
instrumental”, na qual os indivíduos participam de interesses e identidades previamente
constituídos, sem vínculo ou raiz social, o que leva a minimizar a “importância da esfera
pública para o desenvolvimento das virtudes cívicas necessárias ao funcionamento do bom
governo” (Moisés, 2005, p.79). Na concepção comunitarista, o valor fundamental da atividade
política é a busca do bem comum, sobrepondo aos interesses privados, que seriam alcançáveis
através da participação direta e ativa dos cidadãos no processo de tomada de decisões
coletivas, e não pela representação. É a partir da participação dos cidadãos que se desenvolve
a “comunidade cívica” necessária ao advento de um governo virtuoso e a liberdade é a
condição de seu compromisso com o bem público, entendido como expressão dos interesses
de todos.
Para Semeraro (2001):
Aos comunitaristas não faltam boas razões para desvendar a perversidade do
liberalismo e a fragilidade dos seus argumentos. O individualismo
ontológico e o universalismo abstrato e formal, de fato, encontram sérias
dificuldades para explicar não apenas a coesão social, mas também a própria
constituição do indivíduo e sua pretensa autonomia. É pura ilusão pensar que
206
há só indivíduos, individualidades diferentes. As próprias e ambiciosas
argumentações elaboradas por Rawls na Teoria da justiça
123
só encontram
suas justificativas reconhecendo os indivíduos como parte duma trama
cultural e social. A teoria da justiça remete necessariamente a uma teoria da
comunidade (Semeraro, 2001, p.260).
Semeraro (2001) vai colocar que a vertente “comunitarista” busca superar a concepção
fragmentária e formalista da vertente liberal, mas tende a idealizar modelos sociais da
Antiguidade e a reativar “elementos culturais, raízes religiosas e étnicas com o objetivo de
resgatar ‘virtudes’ republicanas e vínculos com tradições e costumes que assegurem
identidades culturais, regionais e nacionais” (p.261). E adverte que é importante que se tenha
clareza de que as idéias dos “neo-comunitaristas” não surgiram na atualidade para se
contrapor ao liberalismo, mas foram fortalecidas com a real e a atual necessidade de se
estabelecer uma maior solidariedade nas relações intersubjetivas e de “valorização das
pessoas” em um mundo em que predomina o anonimato e o desinteresse pelo outro, resultante
do aprofundamento das contradições fundamentais da sociedade capitalista.
Trata-se, na verdade, da busca de horizonte ético nas ações humanas e de
maior vinculação a um núcleo familiar e social reivindicadas por amplos
estratos da população, que se sentem ameaçados pela desintegração
crescente da sociedade atual. Ora, não se deve ignorar que em tempos de
surtos de nacionalismos, de racismo, de desemprego, de exclusão, de
estigmas contra os ‘extracomunitários’, o discurso sedutor do comunitarismo
e do solidarismo, se por um lado pode ajudar a salvaguardar grupos
discriminados e a fortalecer o valor da pessoa humana, a insistência nessa
direção, por outro lado, pode vir a se transformar em arma poderosa nas
mãos de forças conservadoras e integralistas com o intuito de
retradicionalizar e homogeneizar valores e culturas, ressuscitando
nacionalismos, fundamentalismos, formas arcaicas de vida e projetos de
‘moral cívica’ que assegurem seus interesses econômicos e políticos (pp.
261-262).
123
Segundo Semeraro (2001), a corrente “comunitarista” foi desencadeada nos Estados Unidos, contrapondo o
“projeto de renovação do liberalismo dos anos 70”, e teve início com as reflexões de J.Rawls, na obra A Theory
of Justice, Harvard University Press, 1971. Mais tarde, outros autores buscam revitalizar os paradigmas mais
radicais do liberalismo e, com base na tradição liberal do contratualismo, procuram “justificar teoricamente as
instituições sociais e políticas do estado constitucional democrático” (p.259).
207
De fato, diante das transformações provocadas pela mundialização, as últimas décadas
foram marcadas pelo o aumento da pobreza e da desigualdade, o aumento do desemprego e a
precarização do trabalho, principalmente no que se refere aos direitos sociais, ausência de
proteção trabalhista e enfraquecimento da representatividade sindical, além do aumento do
índice de violência, urbana e rural; pelo gradual movimento antiglobalizante e de grupos
social e culturalmente “excluídos”, tais como os povos indígenas e os afro-descendentes e a
“exclusão” resultante de discriminação de gênero, sexual, inclusive portadores de deficiência
física; pela redução do papel do Estado na “questão social”, associada à idéia de que para
implementar suas políticas, tem de se apoiar na cooperação social, entre outros fatores que
formam um terreno fértil para a disseminação das idéias comunitaristas.
Por outro lado, é importante atentar também para o fato de que no atual contexto de
superexploração do trabalho, forças conservadoras, expressas pelos organismos multilaterais,
buscam reforçar a coesão social, articulando tanto a integração econômica quanto moral, na
defesa de que uma sociedade coesa é aquela que oferece oportunidades para todos os
membros, aonde os direitos conduzem a responsabilidades e possibilita oportunidades de o
indivíduo realizar seu potencial. Nesse sentido, as teorias comunitaristas vão ao encontro das
preocupações com a “crise de governabilidade” que se instaura no fim do século.
Os teóricos comunitaristas, a exemplo de Putnam, ocultam a natureza conflitual de
classes, mais do que isso, considera que o conflito é improdutivo no processo de
desenvolvimento de um bem-estar material e social para o coletivo, e exalta a “cultura cívica”
ou a construção de uma “comunidade cívica” solidária, harmônica, com fortes laços de
confiança intersubjetivos e institucionais, compreendendo que esta tende a prevalecer aos
interesses do mercado e políticos. Nessa perspectiva é uma “arma poderosa nas mãos de
forças conservadoras”, como bem colocou Semeraro, mas não só por ocultar o caráter de
conflito de classe, mas fundamentalmente por instaurar o conformismo.
208
Enfim, como pode ser observado, Putnam estabelece uma dicotomia entre Estado e
sociedade civil. Estado e sociedade civil são duas esferas de natureza diferenciada, que, em
um nível ideal, utópico, se relacionam entre si através da reciprocidade e da cooperação. Sua
concepção de Estado é instrumental. Trata-se de um conjunto de instituições de caráter
público e coercitivo; o poder é a capacidade repressiva do Estado e a política refere-se ao
conjunto de atividades realizadas para obter ou manter o controle do Estado. Sociedade Civil,
para Putnam, é um espaço não politizado, marcado pelo livre associativismo, com o objetivo
de atingir as metas de interesse específico de um grupo, ou do coletivo associado, alheia aos
interesses de classe. A associação civil é vista em contraposição às formas de associação
político-partidária, sem qualquer vínculo ideológico. A função atribuída à sociedade civil,
enquanto uma esfera social de livre associação voluntária dos indivíduos, é a de guardiã do
Estado. O Estado, na condição de instituição criada para atender de forma eficiente as
demandas sociais, deve ser controlado, não só para que cumpra o atendimento das demandas
sociais, mas principalmente para que seja impulsionado a exigir o bom desempenho das
instituições públicas. É o grau de desenvolvimento do “capital social” de uma determinada
sociedade que vai permitir o sucesso dessa relação entre a esfera estatal e a sociedade civil.
O termo “capital social” trabalhado por Putnam vai enfatizar o grau de confiança
existente entre os membros de uma sociedade, as normas de comportamento cívico praticadas
e o nível de associatividade que caracteriza a sociedade, e vai ampliá-lo com a definição de
James Coleman, que desenvolve os atributos do “capital social” no plano individual,
conforme grau de integração social do indivíduo e sua rede de contatos sociais, e no plano
coletivo. Nessa ótica, a capacidade de um indivíduo ou grupo ou até mesmo de uma
comunidade estabelecer laços de confiança e de desenvolver comportamentos de cooperação
e reciprocidade, vai interferir na condução de políticas públicas voltadas para o bem-estar da
coletividade.
209
3.3.2 Francis Fukuyama: capital social e confiança
Fukuyama (1996), analisando “a situação humana no fim da história”, observa que à
medida que a humanidade se aproxima do século XXI, há uma convergência “notável” de
instituições políticas de democracias liberais e econômicas de mercado integrando-se em nível
global. Este movimento de final de século vai caracterizar, para o autor, o “fim da história, no
sentido de história enquanto vasta evolução das sociedades humanas em direcção a um
objectivo final” (p.15),
124
isto é, p processo histórico da humanidade culminou numa ordem
universal capitalista e “democrática”.
No entanto, alerta o autor, esse movimento de convergência de instituições em torno
do modelo de capitalismo democrático, não significa o “fim das ameaças à sociedade” (p.16),
pois no interior de uma mesma estrutura encontrar-se-ão sociedades ricas e pobres. Esta
polarização entre ricos e pobres é uma ameaça à coesão social. Para usar a terminologia de
Fukuyama, o “mundo histórico” ameaça o “mundo pós-histórico”, ou ainda, a “barbárie”
ameaça a “civilização”. A saída apontada, nesse contexto do “capitalismo democrático
globalizado”, não seria o retorno ao keynesianismo nem a via da “engenharia social”, mas a
implementação de políticas macroeconômicas que não sejam “perturbadoras”, que possibilite
assegurar a liquidez monetária estável e o controle dos déficits orçamentários.
Nesse sentido, mais que a implementação de políticas macroeconômicas
“confortadoras” (ou “conformadoras”, no sentido de não serem “perturbadoras”) para afastar
as ameaças advindas da polarização entre ricos e pobres e, sobretudo, para manter a
124
Esta tese é defendida em sua polêmica obra: “O Fim da História e o Último Homem”, também editado pela
Gradiva, Lisboa, em 1992, que lhe rendeu muitas críticas, mas também o tornou conhecido mundialmente. Trata-
se de uma investida da ideologia burguesa-imperialista, que não se restringe às propostas neoliberais nos âmbitos
econômico e político, mas fundamentalmente no âmbito ideológico, visando à conquista dos “corações e
mentes” em escala mundial. Já a sua obra –
CONFIANÇA Valores Sociais & Criação de Prosperidade (1996) –
tem um reconhecimento por parte daqueles que estudam e desenvolvem pesquisas em torno do tema “capital
social”. Foi nessa perspectiva que se optou somente por esta obra para a discussão sobre capital social. Trata-se
de uma obra que teve a colaboração, entre outros, de Robert Putnam e é referência nos documentos dos
organismos multilaterais, embora pouco citado.
210
“vitalidade” das instituições políticas e econômicas liberais, ele aponta a necessidade de se
constituir uma sociedade civil forte e dinâmica, com estruturas familiares fortes e estáveis e
instituições sociais perduráveis (Fukuyama, 1996, p.16). Isto é, que se fortaleça o “capital
social” tomando como base uma forte relação de confiança entre os membros de uma dada
sociedade.
125
A sociedade civil para Fukuyama (1996), entendida como umturbilhão de
instituições intermediárias, englobando áreas empresariais, associações voluntárias,
instituições educacionais, clubes, sindicatos, meios de comunicação social, associações de
caridade, igrejas e outras similares”, é fundamental no processo de desenvolvimento
econômico, tendo em vista que suas instituições geram “no seio da família o instrumento
primordial que possibilita a socialização das pessoas no âmago da sua cultura e providencia as
capacidades que permitem que elas vivam numa sociedade mais alargada e o meio através do
qual são transmitidos de uma geração para outra os valores e os conhecimentos da sociedade
em causa” (p.16).
Para o autor, a sociedade civil ou o “turbilhão de instituições”, além de fazer a
intermediação entre o político e o econômico, exerce um papel fundamental na transmissão de
hábitos, costumes e valores. Estes fatores, que constituem o sentido de cultura na obra em
referência, vão influenciar diretamente no bem-estar da sociedade e na ordem internacional,
isto é, na economia.
125
A conclusão a que Fukuyama chega na obra citada é a de que a “força” continuará a ser a razão final nas
relações entre esses dois mundos, ou seja, entre “democracias e não-democracias”. É com essa perspectiva que o
autor investe no tema “capital social” e numa proposta culturalista, já que, para ele, a questão central não está
diretamente relacionada à política ou à economia.
211
Fukuyama (1996) critica os “discursos” econômicos contemporâneos que concebem a
economia como uma “faceta da vida com leis próprias, independente do resto da sociedade”,
como um “reino em que os indivíduos se juntam apenas para satisfazerem as suas
necessidades e desejos egoístas”. Para ele:
....a economia constitui, em qualquer das sociedades modernas, um dos
palcos mais importantes e dinâmicos da sociedade humana. Não deverá
haver qualquer forma de actividade económica (.....) que não requeira a
colaboração social de seres humanos. (....)
A actividade económica assume, assim, um papel determinante na vida
social e está ligada a uma vasta diversidade de normas, regras, obrigações
morais e outros hábitos que, em conjunto, dão forma à sociedade (pp.18-19).
Daí a sua conclusão de que uma sociedade civil “saudável”, “forte”, dinâmica e
constituída de instituições perduráveis torna-se um fator relevante na condução de políticas
macroeconômicas. No entanto, esclarece o autor, a formação de uma sociedade civil saudável
e dinâmica não se dá “por decretos”, mas através de uma ação política consciente, que dê
atenção e que respeite a cultura da sociedade. A “saúde” das relações sociais de uma
determinada sociedade está diretamente condicionada ao grau de confiança mútua entre os
indivíduos e entre estes e as instituições sociais.
Segundo Fukuyama (1996):
...uma das lições mais importantes que podemos extrair de uma observação
da vida econômica é a de que o bem-estar de uma nação, bem como a sua
capacidade de competir, são condicionados por uma única e subtil
característica cultural: o nível de confiança inerente à sociedade em causa
(p.19; grifo nosso).
Nesta ótica, a abordagem de economia de Fukuyama vai ao encontro à de Amartya
Sen. Uma abordagem que integra a dimensão cultural com a dinâmica econômica. Esta sua
obra diz respeito ao impacto da cultura na vida econômica e na sociedade. Fundado na
concepção de que a cultura interfere na dinâmica da vida econômica, Fukuyama se opõe,
212
segundo o próprio, tanto às conclusões “abstratas e universalistas” das “ortodoxias de direita e
de esquerda” como às dos “neomercantilistas” e “neoclássicos”.
Na obra, o autor analisa aspectos culturais de algumas formações sociais para
identificar que não foram as políticas industriais, mas as características culturais que
determinaram o sucesso ou o fracasso econômico ao longo do desenvolvimento do
capitalismo. E os fatores culturais mais relevantes nesse processo foram: o grau de confiança
e o nível de “capital social” das sociedades modernas.
Segundo Fukuyama (1996):
A confiança é a expectativa que emerge de uma comunidade, em que os seus
membros se caracterizam por um comportamento estável e honesto e por
regras comumente partilhadas. Tais normas poderão respeitar a questões de
‘valor’ profundo, como a natureza de Deus ou da justiça, mas podem
também referir-se a normas seculares, como os códigos deontológicos e os
de etiqueta. (...)
O capital social, por seu turno, é uma capacidade social cuja emergência se
deve à prevalência do factor ‘confiança’ numa dada sociedade ou em parte
dela. Pode corporizar-se no grupo social mais pequeno e mais básico, como
a família, ou nos grupos mais latos, como a nação, bem como em todos os
grupos intermédios (pp.36-37).
Ele considera que o “capital social” vai se diferenciar de outros tipos de capital
humano porque ele é criado e transmitido através de mecanismos culturais, como a religião, a
tradição ou o hábito historicamente transmitido. Isto é, trata-se de um tipo de capital que não
pode ser adquirido através de atividades imediatas, tal qual o capital humano, que pode ser
adquirido através de treinamentos ou cursos de qualificação, por exemplo. O “capital social”
vai ser adquirido ao longo da processualidade histórico-cultural da sociedade à qual pertence e
vai penetrar no senso comum do indivíduo. A confiança, que emerge da prática de
comportamentos de valor, se torna presente ou ausente numa sociedade conforme os hábitos,
costumes e atitudes morais, enfim, conforme a cultura desta sociedade.
213
Não se trata de um tipo de formação social de cooperação que funciona em favor de
interesses próprios e é organizada com base em mecanismos legais. Este tipo de formação não
depende do fator cultural e, pelo contrário, se estabelece pela desconfiança, daí a formulação
de contratos. No entanto, esclarece o autor, se a motivação por interesses próprios e o aspecto
formal e legal são importantes fontes de associação, as organizações mais efetivas são
baseadas em comunidades de valores éticos partilhados. Nesse sentido, a formação da
“comunidade moral”, ou a aquisição do “capital social”, “requer a habituação às normas
morais de uma dada comunidade (antes de a confiança se tornar um fator generalizado entre
os seus membros) e, nesse contexto, a assunção de virtudes como a lealdade, a honestidade e a
interligação ao grupo”, o que vai revelar que, por um lado a “aptidão para a sociabilidade é
(....) muito mais difícil de adquirir” e por outro, como é baseada em “hábitos éticos”, ela vai
se revelar também resistente às mudanças ou à destruição (Fukuyama, 1996, p.37).
Fukuyama (1996) utiliza o termo “sociabilidade espontânea” para designar um tipo de
associação que, para ele, vai constituir um “subconjunto do capital social”, e que conceitual e
genericamente integra à chamada “sociedade orgânica” de Durkheim. O tipo de grupo que
designa a “sociabilidade espontânea” de Fukuyama é aquele que apesar de diversificado por
conta da complexa divisão do trabalho das sociedades industrializadas, ele é baseado mais em
valores partilhados do que em esquemas contratuais.
No entanto, esclarece o autor que, nas sociedades modernas, como existe uma
dinâmica na qual as organizações estão permanentemente por ser criadas, destruídas e
modificadas, “o tipo de capital social mais útil” já não é aquele que tem a propensão de
trabalhar a autoridade de uma comunidade ou grupo tradicional, mas aquele que possui a
capacidade de formar permanentemente novas associações e de cooperar dentro dos
parâmetros por elas estabelecidos.
214
Nesta sua obra, Fukuyama realiza uma pesquisa comparativa entre um grupo de países
bem-sucedidos economicamente, partindo de um aspecto específico da relação entre cultura e
vida econômica, que é a capacidade de criação de novas organizações associativas. Ele
defende a idéia de que existe uma correlação entre as sociedades de elevado grau de
confiança, plenas de “capital social”, e a capacidade de criação de vastas organizações
empresariais privadas de grande porte. Ele aponta a economia da Alemanha, dos Estados
Unidos e do Japão como exemplo de sociedades com alto nível de confiança e de “capital
social”, povoadas de empresas de larga escala, em contraposição com as economias de
Taiwan, Hong-Kong, França ou Itália que possuem fraco grau de confiança relativa,
tradicionalmente constituída de empresas familiares, geridas também familiarmente. Segundo
Fukuyama, nessas sociedades de baixo nível de confiabilidade, a relutância em confiar nas
pessoas não aparentadas atrasou e, em alguns casos, impediu a formação de organizações
empresariais modernas e profissionalmente geridas.
Para o autor, se uma “sociedade familiarista”, de fraco grau de confiança, quiser criar
empresas de larga escala terá de contar com a ajuda do Estado, que intervirá através de
subsídios, de linhas orientadoras, ou em alguns casos assumindo mesmo o estatuto de
proprietário. Esta situação conduz ao aparecimento de um grande número de pequenas firmas
familiares e um pequeno número de empresas estatais, sem um significativo quadro de
empresas de médio porte. Foi uma prática adotada, por exemplo, pela França, que permitiu
aos países criarem setores industriais de larga escala de capital intensivo, mas com alguns
custos, pois “as companhias estatais são inevitavelmente menos eficientes e mais mal geridas
do que as suas correspondentes do sector privado” (Fukuyama, 1996, p.41).
Fukuyama (1996) observa que a China, a França e a Itália do Sul e outras sociedades
de fraco nível de confiança e com formação empresarial do tipo “familiarista” teve em sua
formação histórico-social períodos de forte centralização política. Diferente de outras
215
sociedades de elevado nível de confiança e que não houve um prolongamento do poder
estatal, como foram os casos do Japão, Alemanha e Estados Unidos que, em face dessa
característica, foi possível o florescimento, sem qualquer interferência, de uma profusão de
organizações sociais que acabariam por tornar-se a base da cooperação econômica
(Fukuyama, 1996, p.320).
É claro que a emergência de grandes companhias profissionalmente geridas
é o resultado de um conjunto de factores tecnológicos e de dimensão de
mercado, na medida em que produtores e distribuidores procuram a
optimização das eficiências de escala. Mas o desenvolvimento dessas
organizações, aptas para explorar tais eficiências, foi enormemente facilitado
pela prévia existência de uma cultura virada para a organização social de
caráter espontâneo (Idem, p.321).
Contudo, esclarece o autor, a dimensão e a escala das empresas não são impedimentos
ao crescimento e à prosperidade da sociedade na fase inicial do desenvolvimento econômico
se as pequenas empresas apresentarem-se criativas e flexíveis para se adaptarem mais
rapidamente às mudanças do mercado. Foi o caso da Itália, “no seio da Comunidade
Européia”, e Taiwan e Hong-Kong, na Ásia, que apresentam maior número percentual de
pequenas empresas e cresceram rapidamente nos últimos anos. De modo geral, a conclusão
que Fukuyama chega é a de que será o grau de confiança social e o nível de “capital social”
que determinará tal possibilidade de crescimento econômico. Segundo o autor:
A predominância do fator ‘confiança’ não facilita apenas o crescimento de
organizações de larga escala. Se, utilizando a moderna informação
tecnológica, os grandes sistemas hierárquicos forem capazes de evoluir para
sistemas interligados de pequenas empresas, o factor ‘confiança’ ajudará
também nessa transição. À medida que a tecnologia e os mercados vão
mudando, as sociedades bem munidas de capital social estarão mais
rapidamente preparadas do que as outras para adoptarem as novas formas
organizacionais (Fukuyama, 1996, p.41).
216
Como acontece atualmente na China, e aconteceu em outros países, Fukuyama
observa que é possível que uma economia capitalista coexista com um sistema político
autoritário. No entanto, no decorrer do próprio processo de industrialização exigir-se-á uma
população com níveis mais elevados de educação e uma divisão de trabalho mais complexa,
fatores que vão contribuir para a emergência de instituições políticas democráticas. Explica
que embora o mercado impunha uma “disciplina de socialização”, esta socialização não se dá
de forma espontânea sempre que há a redução da interferência do Estado. A capacidade para a
cooperação a nível social depende da existência prévia de hábitos, tradições e normas, que
constituem fatores estruturantes do mercado. Em sua concepção, uma economia de mercado
bem-sucedida, mais do que gerar uma democracia estável, ela é determinada pelo “capital
social” previamente existente. Se o “capital social” for abundante, “então, sim, tanto o
mercado como a democracia política se desenvolverão e o mercado poderá, assim,
desempenhar de facto o seu papel de escola de sociabilidade, contribuindo para o reforço das
instituições democráticas” (Fukuyama, 1996, p.338).
O conceito de capital social permite clarificar a estreita relação entre
capitalismo e democracia. (....) uma economia capitalista saudável é aquela
em que existe um nível de capital social suficiente para permitir a auto-
organização das empresas, dos grupos econômicos, das redes empresariais e
de outras instituições similares. Na ausência desta capacidade de auto-
organização, o Estado poderá intervir na promoção de empresas e de
sectores considerados essenciais, mas os mercados funcionam quase sempre
de modo mais eficiente quando são os agentes privados a tomarem as
decisões.
Mas, ao mesmo tempo, tal propensão para a auto-organização é
precisamente o que é necessário para o bom funcionamento das instituições
políticas democráticas. É a lei, baseada na soberania popular, que transforma
um sistema de liberdade num outro de liberdade ordenada. (....) Em qualquer
democracia que se preze os interesses e anseios dos diferentes membros da
sociedade têm de ser articulados e representados através de partidos políticos
e de outros tipos de grupos políticos organizados (Idem, pp.338-339)
217
Nesse sentido, tomando como base a teoria clássica liberal, a qual proclama que a
divisão global do trabalho é determinada pela “vantagem comparativa” - dotações relativas de
cada nação em termos de capital, mão-de-obra e recursos naturais -, Fukuyama (1996)
defende a idéia de que se deva incluir na concepção de “vantagem comparativa” o nível de
“capital social” da nação.
A lição a retirar é a de que o capitalismo moderno, informado pela
tecnologia, não obriga a formas únicas de organização industrial que todos
devam seguir. Em termos de organização das suas empresas, os gestores
detêm um grau de liberdade muito maior do que aquilo que os levaram a crer
quanto à possibilidade de terem em conta o lado sociável da personalidade
humana. Por outras palavras, não há necessariamente dicotomia entre
comunidade e eficiência; os mais atentos à comunidade podem tornar-se, de
facto, os mais eficientes de entre todos (p.42).
Não só a capacidade tecnológica restritamente relacionada aos maquinários, mas
principalmente a inovação organizativa desempenha um papel fundamental no processo de
crescimento econômico. Assim coloca Fukuyama (1996): “Os grupos empresariais estão a
descobrir que podem produzir os mesmos bens com menos trabalhadores, não tanto através de
alterações tecnológicas, como sobretudo mudando a maneira de trabalhar em conjunto dos
próprios trabalhadores” (p.55).
O que se entende é que para Fukuyama, no âmbito da “revolução tecnológica”, o
termo tecnologia não deve ser aplicado somente aos maquinários e ferramentas digitais, mas
também às tecnologias organizativas, e, nesse sentido, deve-se concluir também que no
âmbito da reestruturação produtiva dos anos 1980-90 é fundamental considerar esse sentido
mais amplo de tecnologia para identificar as causas do aumento das taxas de desemprego, da
pobreza e da desigualdade social.
Sua tese: “O capital social, cadinho da confiança, é essencial à riqueza de uma
economia e cresce a partir das raízes culturais” (Idem, p.43; grifo nosso).
218
Fukuyama (1996) não faz uma distinção entre cultura e estrutura social, uma vez que
em sua concepção, os valores e as idéias modelam as relações sociais concretas, e vice-versa.
A cultura, compreendida como um costume ético herdado das regras sociais de uma
sociedade, é transmitida através de um processo educativo mais amplo – na vida familiar, na
relação com amigos e vizinhos e na escola – que se transforma em um hábito. O mesmo
ocorre com qualquer atitude racional. O que começou como uma escolha racional, como um
ato político e ideológico, por exemplo, tornar-se um produto cultural no decorrer do tempo
por ser incorporado no indivíduo tornando-se um hábito. Nessa perspectiva, ele coloca que
um de seus argumentos centrais acaba por se aproximar de Weber: “há hábitos éticos, como a
capacidade de associação espontânea, que são fundamentais à inovação organizativa e,
portanto, à criação de riqueza. Tipos diferentes de hábitos éticos levam a formas alternativas
de organização econômica e provocam grandes variações na estrutura econômica”
(Fukuyama, 1996, p.47).
Para Fukuyama (1996), Max Weber “pôs Karl Marx com os pés no chão” quando em
sua obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, uma referência sobre o impacto
da cultura na vida econômica, afirmou que:
...não eram as forças económicas profundas que criavam produtos culturais,
como a religião e a ideologia, mas antes a cultura que produzia certas formas
de comportamento económico. O capitalismo não surgiu na Europa quando
as condições tecnológicas foram propícias; houve um ‘espírito’, ou uma
determinada condição espiritual, que permitiu a eclosão da mudança
tecnológica. Esse espírito era um produto do puritanismo ou do
fundamentalismo protestante, com a sua santificação da actividade terrena e
a sua ênfase na possibilidade de salvação individual sem a mediatização de
hierarquias tradicionais, como a da Igreja católica (p.51).
126
126
Sem entrar no mérito do embate teórico entre Marx e Weber, considerou-se importante relembrar um trecho
de Marx no qual ele expõe que “a história de todas as sociedades que existiram é a história de uma luta de
classes”.
219
Como bem coloca Fukuyama (1996), ao contrário do tema extensivamente trabalhado
sobre a ética do trabalho e virtudes individuais que lhes são associadas, “as virtudes sociais
que encorajam a sociabilidade espontânea e a inovação organizativa” e o impacto destas na
vida econômica têm sido menos estudadas sistematicamente. No entanto afirma:
...com alguma determinação, que as virtudes sociais são pré-requisitos ao
desenvolvimento de virtudes individuais, como a ética do trabalho, uma vez
que as últimas podem desabrochar mais rapidamente no seio de grupos
coesos – famílias, escolas, locais de trabalho-, mais prolíferos em sociedades
com elevado grau de solidariedade social (pp.55-56).
Para Fukuyama (1996), as sociedades asiáticas não poderiam obter um
desenvolvimento econômico sem incorporar em seus sistemas culturais elementos
determinantes do liberalismo econômico. Foi o confronto com os avanços tecnológicos que,
segundo ele, forçou as sociedades asiáticas a abandonarem muitos aspectos essenciais de suas
culturas tradicionais. “O modelo de sociedade liberal constitui (...) uma forma de libertação
dos constrangimentos de uma cultura tradicional inibidora do espírito empresarial e de uma
acumulação ilimitada de riqueza material” (p.332). Daí sua conclusão de que as primeiras
sociedades chinesas que se industrializaram e “prosperaram” – Hong-Kong, Singapura e
Taiwan – estiveram submetidas a influências de potências ocidentais como a Grã-Bretanha e
os Estados Unidos.
Nesse sentido, o autor retoma a discussão sobre o liberalismo político de Hobbes e
Locke, apontando a falta de sustentação dessa teoria quando se apresenta limitada à
racionalidade política, e coloca a necessidade do apoio de determinados fatores da cultura
tradicional não gerados pelo liberalismo. A otimização racional do interesse individual não é
suficiente para explicar a prosperidade econômica. Se “os indivíduos formarem comunidades
apenas na base do interesse próprio, racional e a longo prazo, pouco espaço haverá para o
espírito público, o auto-sacrifício, o orgulho, a caridade ou qualquer uma das outras virtudes
220
que dão vida às comunidades” (Fukuyama, 1996, p.333).
Assim, disserta Fukuyama (1996):
Tal como a democracia liberal funciona melhor quando o seu individualismo
é moderado pelo espírito público, o capitalismo encontra menos obstáculo
quando o seu individualismo é contrabalançado por uma aptidão para o
espírito associativo.
Se a democracia e o capitalismo funcionam melhor quando fermentados por
tradições culturais que nascem de outras fontes, que não as liberais, tudo
indica então que modernidade e tradição podem coexistir, em equilíbrio
estável, durante largos períodos de tempo (p.333).
Com isso, contra-argumentando o que ele considera a visão histórica marxista-
hegeliana, entende que o processo de racionalização econômica e de desenvolvimento é
constituído de uma força social extremamente poderosa que leva as sociedades a
modernizarem-se seguindo alguns padrões uniformes: “como algo que tende a homogeneizar
culturas diversificadas, empurrando-as em direcção à ‘modernidade’” (Fukuyama, 1996,
p.333). No entanto, não tendo “limites à eficácia dos contratos e da racionalidade econômica,
a essência de tal modernidade nunca será totalmente uniforme” (Idem), ela vai se diversificar
conforme o grau de “confiança” que insere cada formação social. E esta confiança, na
concepção do autor, não parte do cálculo racional, mas “nasce de fontes religiosas ou éticas
que nada têm a ver com a modernidade” (Ibidem). Segundo ele:
A recessão mundial dos anos 90 submeteu as companhias japonesas e alemãs
a uma grande pressão no sentido de reverem as suas políticas laborais,
paternalistas e culturalmente emblemáticas, a favor de um modelo mais
claramente liberal. A revolução moderna das comunicações estimula esta
convergência ao facilitar a globalização económica e ao propagar as ideias a
enorme velocidade.
Mas nos tempos que correm, e apesar das tendências para a homogeneização
em diversos domínios, existem ainda pressões significativas para uma
diferenciação de caráter cultural. As modernas instituições liberais,
políticas e económicas, não só coexistem com o fenômeno religioso e com
outros fenômenos de índole cultural, como, de facto, funcionam melhor
em conjunção com eles (Ibidem, p.335; grifo nosso).
221
Fukuyama compreende que a democracia liberal e o capitalismo permanecendo como
modelos únicos e essenciais para a organização política e econômica das sociedades
modernas, os muitos problemas sociais que persistem, assim como as diferenças entre as
sociedades, são mais de natureza cultural do que políticas, ideológicas ou institucionais. A
pobreza tem o sentido de deficiência cultural. Daí a importância de se criar novos hábitos que
visem a cooperação entre os membros de uma dada sociedade, principalmente as sociedades
com poucos hábitos de associação por causa de uma formação histórico-social marcada por
uma forte presença do Estado. Há que se criar o hábito de ter confiança em seus membros e
em suas instituições sociais, formando um tipo de “capital social” que não vislumbre uma
consciência coletiva e pública, mas que possibilite formar um elo entre os indivíduos e as
associações de forma a rapidamente se adaptar e enfrentar os desafios econômicos.
Para o autor, somente desta forma, conforme observou empiricamente o grupo de
países que conseguiram ter um bom desempenho econômico com a abertura do mercado,
apesar da diversidade cultural de sua formação, os países que ainda não receberam as
benesses do processo civilizatório do capitalismo globalizado poderão conquistá-las. Nesse
sentido, deve haver uma investida no campo cultural. Não se trata somente de se conformar
com o fim da história proclamado pelo autor, mas incorporar no senso comum da massa um
modo de pensar, agir e sentir que vá ao encontro às premissas da democracia liberal.
Trata-se, nesse sentido, de uma “batalha cultural”. Conforme expressa Coutinho
(1999) fazendo referência ao jovem Gramsci: “A cultura lhe aparece, (....) como um meio
privilegiado de superar o individualismo, de despertar nos homens sua consciência universal”
(p.19).
Assim como Fukuyama, para Gramsci inexiste um determinismo econômico e a
cultura é um meio privilegiado no processo de realização de mudanças sociais. No entanto, ao
contrário de Fukuyama, a distinção social vai se constituir conforme o resultado da luta de
222
classes. Conforme coloca Coutinho (1999): “De acordo com o método dialético, Gramsci vê o
movimento social como um campo de alternativas, como uma luta de tendências, cujo
desenlace não está assegurado por nenhum ‘determinismo econômico’ de sentido unívoco,
mas depende do resultado da luta entre vontades coletivas organizadas” (p.43). É o partido
político que vai congregar esta “vontade coletiva”. Estes sujeitos coletivos, na concepção de
Gramsci, são movidos por uma vontade cada vez mais universal, superando dessa forma os
interesses meramente “econômico-corporativos”, e se dirigem para uma consciência “ético-
política”, visando a tornarem-se classe dirigente.
Para o trabalhador tornar-se “classe dirigente” ele não pode se limitar ao controle da
produção econômica e ficar restrito aos interesses “econômico-corporativos”, ele deve exercer
sua direção político-cultural sobre o conjunto das forças sociais. Deve buscar o máximo de
homogeneidade de ideologia para se ter uma unidade de direção prática. Tornar-se dirigente é
tornar o seu modo de agir, pensar e sentir hegemônico. Nessa ótica, a batalha das idéias
assume uma importância decisiva na luta pela hegemonia (Coutinho, 1999, p.74). É na
perspectiva de se obter a hegemonia que a obra de Fukuyama vai expressar que ela se trata
de uma “batalha cultural”.
Enfim, nas últimas orientações de políticas sociais de combate à pobreza, definidas
pelas principais agências multilaterais para os países dependentes, seguindo as metas do
encontro da “Cúpula do Milênio da Organização das Nações Unidas”, observa-se que a
função atribuída à educação é ampliada. Para além da educação como fator determinante de
crescimento econômico e de aumento da produtividade, ideologia difundida nas etapas
iniciais de implementação do neoliberalismo cuja expressão encontrava-se na “teoria do
capital humano”, a função educativa incorpora a tarefa de transmitir valores culturais de
solidariedade e civismo, como uma estratégia fundamental para a redução das desigualdades
sociais e da pobreza e na construção de uma sociedade coesa e harmoniosa, expressão da
223
“teoria do capital social”.
A partir da perspectiva da “teoria do capital social”, para combater a pobreza e a fome
do planeta até 2015, principal meta das políticas públicas de “desenvolvimento do milênio”, o
papel da educação é enfatizado em duas dimensões:
Econômica: proporcionando o aumento da capacidade produtiva e o potencial
competitivo de parcela da classe trabalhadora que ainda se encontra em condições
de ser inserida no mercado; investindo no capital humano - através da melhoria da
“qualidade” na educação, da ampliação dos níveis educacionais da população e da
qualificação do trabalhador - necessário ao ingresso do país no mercado
internacional e para promover o crescimento econômico;
Social: transmitindo valores culturais de solidariedade, prosperidade e de coesão
social; estimulando o “cidadão” a participar da construção de uma sociedade mais
solidária, harmoniosa, não-conflitiva, sem violência, estabelecendo “laços de
confiança” entre eles, rompendo as barreiras entre classes, etnias, gênero; unindo
forças para o enfrentamento das novas expressões da “questão social”.
O ajuste operado no âmbito educacional, já consolidado pela ideologia do capital
humano, com a incorporação e ênfase no “capital social” aprofunda a fragmentação intra
classe trabalhadora. Identifica-se que a idéia difundida e operada pelos organismos
multilaterais de produção de capital social é importante para a parte da classe trabalhadora –
empobrecida - que amarga a redução da demanda da força de trabalho decorrente do processo
de reestruturação produtiva, mas que ainda apresenta condições mínimas de produzir. Na
perspectiva desses organismos, para aliviar a “nova” condição de pobreza desta camada
específica de trabalhadores excluídos estruturalmente é preciso fortalecer os laços de
confiança entre os membros e instituições e de forma solidária as organizações da sociedade
224
civil devem colaborar oferecendo capacitação produtiva aos pobres ou à comunidade pobre.
Para os trabalhadores que perderam a condição de vender sua força de trabalho a saída é
“vegetar” na base da caridade público-privada.
Para a compreensão do processo de construção dos novos mecanismos de hegemonia
de função de direção intelectual e moral para o “desenvolvimento do milênio”, tratar-se-á no
próximo capítulo sobre: a concepção de capital social incorporada pelos organismos
multilaterais; como se processou o retorno da expressão “desenvolvimento” no seio da
ideologia da globalização; as alterações nas concepções de Estado e de pobreza incorporadas
nas “políticas de desenvolvimento do milênio”.
225
4 O BANCO MUNDIAL E AS “POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO DO
MILÊNIO”: o processo de construção de mecanismos hegemônicos de função de direção
intelectual e moral
A filosofia da práxis não tem necessidade de
sustentáculos heterogêneos; ela mesma é tão robusta e
fecunda de novas verdades que o velho mundo a ela
recorre para alimentar o seu arsenal com armas mais
modernas e mais eficazes.
Antonio Gramsci
Diante da persistência e do agravamento das condições sociais resultantes das
políticas macroeconômicas impostas pelo FMI aos países dependentes, das tensões e pressões
provocadas pelas correlações de forças entre “nações” e pelas forças populares, ocorre em
meados de 1990 uma série de encontros e debates envolvendo governantes e organismos
internacionais para traçar e definir alternativas à crise do capitalismo mundializado.
Assim sintetiza Enrique V. Iglesias, Presidente do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID):
En la década pasada los países de América Latina y el Caribe han hecho
esfuerzos importantes para lograr la estabilidad macroeconómica e
implementar reformas estructurales claves para mejorar la competitividad y
las condiciones sociales. Estos esfuerzos han brindado importantes frutos,
tales como la reducción de la inflación, aumentos en los volúmenes de
comercio e inversión, aceleración del crecimiento durante la primera mitad
de la década de los noventa y mejoras sustanciales en indicadores sociales
promedio, tales como el Índice de Desarrollo Humano de Naciones Unidas.
Sin embargo, a pesar de estos esfuerzos y logros, la desigualdad y la
exclusión social no han disminuido, constituyéndose en factores de freno al
crecimiento económico, la reducción de la pobreza y el progreso social y
político en la región (BID,2004, p.v).
226
Entre 1995 – com o primeiro encontro de “Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Social”, em Copenhague, marcado por uma preocupação generalizada com a condição de
“governabilidade”, principalmente, dos países dependentes diante das sucessivas crises
econômicas e do agravamento do desemprego, da pobreza e da desigualdade – e 2000 – com
o encontro de “Cúpula do Milênio da Organização das Nações Unidas”, em Nova York,
marco do “combate à pobreza” -, construiu-se um consenso em torno da necessidade de se
realizar novos ajustes na função do Estado para a consolidação da governabilidade
democrática e maior eficácia dos mercados nos países dependentes.
A saída apresentada pelos organismos multilaterais para “superar as sucessivas
crises e a persistência da pobreza” e de outros fatores de exclusão estrutural nos países
dependentes foi a implementação de programas de reforma e “modernização” do Estado e de
“fortalecimento” da sociedade civil.
Com isso, novas orientações de políticas foram elaboradas para o novo milênio,
novas ações foram traçadas e velhos conceitos foram ressignificados. As concepções de
“desenvolvimento” e “pobreza” foram ampliadas atribuindo-se uma dose de complexidade,
pragmatismo e eticidade conforme declara a equipe do Banco Mundial. Na perspectiva do
Banco o Estado não deve ser nem mínimo nem máximo, mas “ativo”. E a sociedade civil,
mantendo o status de uma terceira esfera entre o Estado e o mercado, deve fortalecer a ética
nas relações sociais transmitindo valores de solidariedade e exercer a função educadora junto
à camada mais pobre da classe trabalhadora para formar uma “consciência cívica” necessária
à sua participação nos processos decisórios locais, visando à aplicação do potencial produtivo
que ainda dispõe.
Se por um lado, conforme colocou Stiglitz, o “fim do comunismo” propiciou que o
FMI e o Banco Mundial ampliassem seus raios de atuação e expandissem as equivocadas
teorias econômicas, por outro, segundo o Banco Mundial, este fato possibilitou avanços
227
“conceituais” que permitiram uma maior compreensão do processo de desenvolvimento e,
com isso, a implementação de estratégias mais eficazes.
Os organismos internacionais, mais efetivamente o Banco Mundial e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) pelo caráter investidor, a partir de então, voltam-se
para uma “intensa actividad de investigación y estudio” para definir o marco de referência
conceitual de atuação nas metas de desenvolvimento do milênio (BID, 2000).
127
Mais tarde Fukuyama (2005) faz a seguinte observação sobre essas novas bases de
desenvolvimento:
... a comunidade de políticas de desenvolvimento está em uma situação irônica. A
era pós-Guerra Fria começou sob o donio intelectual dos economistas, que
defenderam fortemente a liberalização e um Estado menor. Dez anos depois,
muitos economistas concluíram que algumas das variáveis mais importantes
que afetam o desenvolvimento não eram econômicas, mas estavam ligadas a
instituições e políticas. Havia toda uma dimensão de estaticidade que precisava
ser explorada – a da construção do Estado -, um aspecto do desenvolvimento que
havia sido ignorado pelo foco concentrado no escopo do Estado. Muitos
economistas se viram tirando a poeira de livros de cinqüenta anos de idade sobre
administração pública, ou então reinventando a roda para desenvolver estratégias
contra a corrupção.
Hoje o pensamento dominante afirma que as instituições são a
variável crítica no desenvolvimento e, ao longo dos últimos anos, uma
multiplicidade de estudos forneceu documentação empírica corroborando
isto (pp.39-40; grifo nosso).
128
127
No caso específico do BID, existem documentos que abordam mudanças estruturais que foram realizadas na
instituição para cumprir o novo “Marco de referencia para la acción del Banco en los programas de
modernización del Estado y fortalecimiento de la Sociedad Civil”- Com este título, existe um documento que
foi elaborado em março de 2000 e outro, com o título “Modernización del Estado: documento de estrategia”,
elaborado em julho de 2003, ambos fazem referência ao comprimento da “Octava Reposición de Capital”,
reunião realizada em 1996, em que é estabelecido que o BID passaria a trabalhar com um enfoque mais
integrado de desenvolvimento. A estrutura do BID atualmente é formada por 5 “dimensões” de políticas:
1)Recursos Humanos e Desenvolvimento Social (que abrange a Divisão de Desenvolvimento Social; Unidade de
Pobreza e Desigualdade; Unidade de Educação; Unidade de Igualdade de Gênero e Desenvolvimento; Povos
Indígenas e Desenvolvimento Comunitário); 2) Meio Ambiente e Recursos Naturais; 3)Infraestrutura, Mercados
Financeiros e Empresa Privada (com as Divisões de Infraestrutura e Mercado Financeiro e de Micro, pequena e
média empresa); 4) Estado, Governalibidade e Sociedade Civil; 5)Tecnologia da Informação para o
Desenvolvimento.
128
A obra referida de Francis Fukuyama foi publicada originalmente em 2004 com o título: STATE BUILDING:
Governance and World Order in the 21 st Century.
228
Com base nesses estudos sobre “desenvolvimento” o Banco Mundial compõe com os
demais organismos multilaterais as “políticas de desenvolvimento do novo milênio”,
incorporando uma outra ótica de desenvolvimento e de pobreza e um novo referencial
conceitual nos programas de reforma do Estado. É nessa perspectiva que se considera o
Encontro de Cúpula do Milênio realizado em setembro de 2000 em Nova York um marco de
ajustes ideológicos nas orientações de políticas econômicas e sociais dos principais
organismos multilaterais.
No encontro de Cúpula do Milênio promovido pela Organização das Nações Unidas
cento e oitenta e nove países firmaram um acordo e dele elaborou-se um documento
denominado Declaração do Milênio, no qual foi estabelecido como prioridade de
desenvolvimento para o novo milênio eliminar a pobreza e a fome do planeta até 2015. A
definição e a elaboração dos objetivos e metas do acordo – “Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio” – desenvolvidas pelas nações acordadas tiveram a participação das principais
agências multilaterais (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL),
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Banco
Mundial (BIRD), entre outras), inclusive o Fundo Monetário Internacional (FMI), além dos
vários especialistas de diferentes programas da ONU.
129
129
Outros participantes: Secretariado das Nações Unidas (ONU), Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE), Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL),
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), Organização Internacional do
Trabalho (OIT), Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OMS/OPAS), Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), União Internacional de Telecomunicações (UIT),
Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS), Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), Programa das
Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UN-HABITAT), Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM) e Escritório das Nações
Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC).
229
Segundo o Banco Mundial, a Declaração do Milênio reuniu compromissos assumidos
em diferentes conferências internacionais durante a década de 1990 sobre assuntos específicos
que não foram cumpridos e que incluem a redução da pobreza e da “privação humana” em
várias dimensões.
Foram (e são) oito os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” (ODM)
estabelecidos e dezoito metas correspondentes aos objetivos.
130
São eles:
1) Erradicar a extrema pobreza e a fome; metas: reduzir pela metade a proporção da
população com renda inferior a 1 dólar PPC
131
por dia e a proporção da população
que sofre de fome;
2) Atingir o ensino primário universal; meta: garantir, até 2015, que todas as
crianças, de ambos os sexos, terminem um ciclo completo de ensino;
3) Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; meta: eliminar
a disparidade entre os sexos em todos os níveis de ensino;
4) Reduzir a mortalidade infantil; meta: reduzir em dois terços a mortalidade de
crianças menores de 5 anos de idade;
5) Melhorar a saúde materna; meta: reduzir em três quartos a taxa de mortalidade
materna;
6) Combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças; metas: deter a propagação e
130
O oitavo item foi inserido mais tarde. No “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001: Luta
Contra a Pobreza” do Banco Mundial elaborado em setembro de 2000, constam sete itens: Quadro 2, Um mundo
melhor para todos: metas de desenvolvimento internacional: “1-Reduzir pela metade a proporção de pessoas que
vivem em extrema pobreza entre 1990 e 2015; 2- matricular todas as crianças na escola primária até 2015; 3-
obter maior igualdade e habilitar as mulheres, eliminando as desigualdades por sexo na educação primária e
secundária até 2015; 4- reduzir em dois terços a mortalidade infantil entre 1990-2015; 5- reduzir em três quartos
a mortalidade materna entre 1990-2015; 6- proporcionar acesso a todos que precisam de serviços de saúde
reprodutiva até 2015; 7-implantar estratégias nacionais de desenvolvimento sustentável até 2005 para reverter a
perda de recursos ambientais até 2015” (p.05).
131
Paridade do Poder Aquisitivo.
230
inverter a tendência atual dessas enfermidades;
7) Garantir a sustentabilidade do meio ambiente; metas: integrar os princípios de
desenvolvimento sustentável às políticas e programas nacionais e reverter a perda
de recursos ambientais; reduzir pela metade a proporção da população sem acesso
permanente e sustentável à água potável e esgotamento sanitário; produzir uma
melhora significativa na vida de pelo menos 100 milhões de habitantes de
assentamentos precários;
8) Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento; metas: avançar no
desenvolvimento de um sistema comercial e financeiro aberto, baseado em regras,
previsível e não-discriminatório; atender às necessidades especiais dos países
menos desenvolvidos; atender as necessidades especiais dos países sem acesso ao
mar e dos pequenos Estados insulares em desenvolvimento; tratar globalmente o
problema da dívida dos países em desenvolvimento, mediante medidas nacionais e
internacionais de modo a tornar a sua dívida sustentável a longo prazo; em
cooperação com os países em desenvolvimento, formular e executar estratégias
que permitam aos jovens obter um trabalho digno e produtivo; em cooperação com
as empresas farmacêuticas, proporcionar acesso a medicamentos essenciais a
preços acessíveis nos países em vias de desenvolvimento; em cooperação com o
setor privado, tornar acessíveis os benefícios das novas tecnologias, em especial
das tecnologias de informação e de comunicações.
Parte desses objetivos e metas passou a compor os programas estabelecidos pelo
Banco Mundial para cada um dos países tomadores de empréstimos, regidos pelo documento
Estratégias de Assistência ao País - EAP (Country Assistance Strategies - CAS).
231
A EAP é um documento estratégico de implementação do plano geral de atividades e
das operações de empréstimo do Grupo do Banco Mundial para os países tomadores de
empréstimo. Nele estão descritas as estratégias de assistência do Banco com base em uma
avaliação das prioridades no país e é indicado o nível e a composição da assistência a ser
proporcionada conforme a carteira do país e o desempenho econômico. Essa avaliação é
composta por um diagnóstico que insere: exame do desempenho econômico do país,
especialmente dos avanços conseguidos nas reformas estruturais prescritas pelo Banco
Mundial; avaliação de toda a gama de prioridades orçamentárias e de eficiências nas despesas
do país; análise de um conjunto de atividades com potencial de desenvolvimento; avaliação
do desempenho do país no que diz respeito à redução da pobreza; identificação e avaliação
das oportunidades de crescimento do setor privado e barreiras a esse crescimento;
identificação dos problemas ambientais mais prementes do país e a capacidade de enfrentá-
los.
132
Além desses elementos básicos, faz-se também uma Revisão da Assistência ao País
(CAR) ou uma avaliação da EAP anterior. As conclusões e recomendações constantes da
CAR são usadas como novas bases para a elaboração do novo documento de EAP. O EAP é
elaborado a cada 1, 2 ou 3 anos, para cada tomador de empréstimos do Banco Mundial.
No Brasil o último EAP, elaborado em 2003, é relacionado ao período entre 2004-
2007. Este documento já foi elaborado com a participação do atual governo.
133
Conforme
expresso no documento, o papel do Banco Mundial é o de “apoiar as principais reformas de
políticas e investimentos inovadores e eficientes, com o objetivo de aumentar o bem-estar dos
132
Site do Grupo Banco Mundial (acesso: janeiro, 2005).
133
Em nota no EAP para 2004-2007 é observado que ela foi preparada a partir de consultas realizadas junto “aos
governos federal e estaduais, à sociedade civil, ao setor privado e à comunidade internacional”, tomando como
base o Plano Plurianual 2003 (PPA) do governo federal, as Notas sobre Políticas do BIRD, o Relatório de
Conclusão da EAP 2000-2003, a Avaliação de Assistência ao País (AAP) do Departamento de Avaliação e
Operações do BIRD e a Revisão de Implementação do País (RIP) do Grupo de Avaliação do País do BIRD.
232
brasileiros, em particular dos pobres” (BIRD, 2003a, p.11).
No ano anterior (em dezembro de 2002), o Banco Mundial tinha elaborado o
documento “BRASIL – Justo – Competitivo – Sustentável – Contribuições para Debate:
Visão Geral”. Este documento reúne “de forma sintetizada” análises e sugestões de estudos
anteriores, experiências do Brasil e internacionais que a equipe considerou relevantes para
contribuir com a discussão sobre políticas públicas a serem formuladas pelos novos governos
(eleitos em outubro daquele ano).
134
Neste documento são definidos três objetivos de políticas públicas: justiça social (“um
Brasil justo”), competitividade (“um Brasil competitivo”) e sustentabilidade (“um Brasil
sustentável”). E são apontadas “cinco maneiras de avançar” nesses objetivos: “investimento
humano”; “crescimento mediante aumento de produtividade”; “estabilização da economia”;
“oferta de serviços para todos”; “gestão de recursos naturais”.
134
É interessante observar que, embora tal documento tenha sido prefaciado em conjunto pelo Vice-Presidente
da Região da América Latina e do Caribe, David de Ferranti, pelo Diretor do Departamento do Brasil, Vinod
Thomas e pelo Economista Principal do Departamento do Brasil, Joachim von Amsberg, na lombada está escrito
que: “O Banco Mundial não garante a precisão das informações contidas nesta publicação e não assume
responsabilidade sobre as conseqüências de seu uso”, mas informa que tal publicação está protegida por direito
autoral; “encoraja a disseminação do trabalho e geralmente dará permissão para sua reprodução parcial
prontamente” e que permite que o documento seja fotocopiado para “uso interno ou pessoal de clientes
específicos, ou para uso em salas de aula, por motivos educacionais”. E nos “Agradecimentos” coloca que “a
preparação dos textos sobre políticas públicas setoriais foi um esforço colaborativo do time do Banco Mundial
que trabalha com assuntos relacionados ao Brasil, sob a orientação geral de Vinod Thomas, diretor”, e que
“Joachim von Amsberg, economista principal, liderou a tarefa, com a colaboração de Leila Ollaik”, além de
listar autores principais, os colaboradores na produção dos estudos e nos debates em encontros realizados no Rio
de Janeiro (dias 18 e 19 de março de 2002) e em Washington – DC (em 1º de julho de 2002), mas ratifica que a
obra não é de responsabilidade do Banco Mundial quando expõe que ela “reflete as visões dos autores (que
fazem parte do “time” do Banco Mundial) e não necessariamente as visões do Banco Mundial, seu Conselho de
Diretores Executivos ou seus países-membros, tampouco os pontos de vista do governo brasileiro ou daqueles
consultados durante o processo de elaboração dos textos”.
Enfim, parte desse trabalho foi elaborado tomando como base um documento de uma instituição internacional de
caráter multilateral, mas que, segundo a própria instituição, não é confiável,
pois “não garante a precisão das
informações contidas nesta publicação” e não se responsabiliza pelo tipo de abordagem do conteúdo, uma vez
que “não necessariamente (reflete) as visões do Banco Mundial”, ao mesmo tempo em que estimula a
divulgação do documento. E ainda provavelmente, um segundo erro pode-se estar cometendo ao tomar como
base de estudo esse documento, já que só é permitido para “uso interno ou pessoal de clientes específicos, ou
para uso em salas de aula”. No decorrer do trabalho far-se-á referência ao documento com a sigla BIRD.
233
O Banco Mundial sugere, neste documento, que se dê prioridade e “um maior impulso
à educação fundamental e, em particular, ao ensino médio; ao sistema de transferências
sociais, para reduzir a desigualdade (de oportunidades) e aumentar a produtividade”
(“distribuir possibilidades”) (BIRD, 2002c, p.17). Segundo expresso no documento, essas
prioridades implicam algumas medidas:
Atribuir mais poder ao povo, em vez de adotar práticas de favorecimento;
direcionar os gastos sociais para os mais pobres, e não para grupos cujos
interesses são melhor representados; gerar crescimento mediante o aumento
da produtividade do setor privado, e não de recursos do setor público; e
utilizar recursos naturais de modo sustentável (BIRD, 2002c, pp.17-18).
Para a equipe do Banco Mundial (2002c), “a participação popular nas decisões faz
com que melhor representem suas necessidades, além de criar um consenso para as políticas.
O Brasil pode acelerar ainda mais as reformas para melhorar a governabilidade” (p.25). A
idéia de “atribuir mais poder ao povo”, de forma a ampliar a participação popular nas decisões
de políticas sociais, está baseada em uma pesquisa realizada pelo próprio Banco Mundial em
vários países pobres nos anos finais de 1990 denominada Voices of the Poor (Vozes dos
Pobres),
135
segundo a qual “os pobres citam repetidamente como um de seus maiores
problemas a falta de participação nas decisões e de poderes para resolver suas próprias
questões” (pp.89-90).
É possível identificar que, embora o Banco Mundial e o FMI tenham participado e
acordado com objetivos definidos no encontro de Cúpula do Milênio, num fórum de
significativa representatividade e aparente consenso entre o que foi acordado na reunião e as
135
No Brasil essa pesquisa foi realizada em maio de 2000. “Vozes dos Pobres: Brasil – Relatório Nacional
(Relatório participativo sobre a pobreza, preparado para o Poverty Reduction and Economic Management
Network), Banco Mundial (2000a). E é a base das análises contidas no Relatório sobre o Desenvolvimento
Mundial 2000/2001.
234
condicionalidades impostas pelo Banco Mundial para os países-membros adquirirem seus
empréstimos existem algumas distorções e variações de metas. Provavelmente, em uma
análise voltada para averiguar as relações entre os organismos multilaterais seria comprovado
que existem correlações de forças entre esses organismos por conta dos interesses
representados por cada entidade que, de fundo, não são diferenciados, mas são disputados
privadamente.
No âmbito deste estudo o que se destaca para análise é a forma e o conteúdo pelos
quais se buscam saídas para o enfrentamento da crise do capitalismo mundializado através de
um “pacto global”, e quais os mecanismos utilizados para que essas soluções encontrem
legitimidade junto às populações.
Nessa perspectiva, o Banco Mundial que exerce suas atividades entrelaçadas com o
FMI, - diante da “crise de paradigma” do modelo econômico implementado nos anos 1990 e
nas condições históricas que permitiram o fortalecimento e a ampliação de sua atuação, com o
“fim do comunismo” ou da ameaça ideológica - vai incorporar em suas orientações e
condições de empréstimos algumas mudanças “conceituais” que outros organismos já vinham
incorporando, tais como o Programa das Nações Unidas (PNUD), a Comissão Econômica
para América Latina e Caribe (CEPAL) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID).
No geral, o que se observa nessas mudanças de orientação de política social para o
“desenvolvimento do novo milênio” é: o foco nas camadas mais pobres; a idéia de
desenvolvimento econômico agregado ao desenvolvimento social local; a idéia de
governabilidade revestida de maior eficácia na atuação do Estado, ampliada com o
envolvimento da sociedade civil e a participação dos próprios pobres, voltada para o
“desenvolvimento sustentável” e para a “administração da pobreza”.
235
O lema difundido pelos organismos é de “unir esforços”. Todos os membros e setores
da sociedade devem consensualmente colaborar com a estabilidade política visando ao
crescimento econômico, porém, em sua forma sustentável, sem desperdício de recursos
materiais e/ou humanos. Devem apoiar a necessidade de conceder uma “proteção social”
(mínima) à parte da classe trabalhadora que “vegeta” na miséria, colaborando solidariamente
para aliviar tal condição pobreza; cooperar com programas educativo-culturais que visem a
aumentar a capacidade produtiva e a oportunizar a inserção no mercado da parcela da classe
trabalhadora empobrecida com a redução da demanda de sua força de trabalho conseqüente da
reestruturação produtiva.
Para compreender os novos mecanismos de hegemonia que compõem as “políticas de
desenvolvimento do milênio” num primeiro momento será exposto como os principais
organismos multilaterais incorporaram elementos da “teoria do capital social” em suas teses
de “combate à pobreza” e de superação da crise dos anos finais da década de 1990.
Considerou-se importante expor o processo pelo qual o Banco Mundial vai construindo as
bases ideológicas das “políticas de desenvolvimento do milênio” e definindo a concepção de
desenvolvimento para o milênio e de pobreza, bem como as funções do Estado. Encerra-se
este capítulo descrevendo o processo educativo articulado pela Unesco para a implementação
das “políticas de desenvolvimento do milênio”, que culminou no Documento Final Plano
Internacional de Implementação da Década das Nações Unidas da Educação para o
Desenvolvimento Sustentável, 2005-2014 (DEDS).
236
4.1 A concepção de capital social difundida pelos organismos multilaterais
Para Putnam (2002), a cooperação voluntária, a atitude cívica, a confiança entre os
membros sociais são elementos decisivos para a instauração de um círculo virtuoso
democrático. Este, por sua vez, é fundamental para que se tenha um bom desempenho
institucional que, conseqüentemente, vai resultar em benefícios coletivos de bem-estar e no
desenvolvimento econômico e social do grupo.
Em sua obra não há uma definição clara de “capital social”. Ela é introduzida através
da enumeração de vários atributos relacionados a uma comunidade cívica, com variáveis
“estruturais” e “atitudinais”, que levam a formação de redes de cooperação visando à
produção de bens coletivos e à capacidade de estabelecer laços de confiança interpessoal. O
“capital social” é um elemento facilitador da cooperação voluntária. Conforme expressa o
autor: “A cooperação voluntária é mais fácil numa comunidade que tenha herdado um bom
estoque de capital social sob a forma de regras de reciprocidade e sistemas de participação
cívica” (Putnam, 2002, p.177).
A concepção de “capital social”, no geral, sugere que aumentando a capacidade
associativa de um grupo ou de uma comunidade ou de uma “rede de participantes” reduzem-
se as disparidades de acesso aos benefícios sociais, o que permite maior igualdade de
oportunidades para seus membros. Ampliando as possibilidades de igualdade de
oportunidades, através do acesso aos bens socioemocionais ou dos ativos sociais, a pobreza é
reduzida.
237
Tonella (2003),
136
resenhando a obra da CEPAL, Capital social y reducciòn de la
pobreza en América Latina y el Caribe: en busca de um nuevo paradigma, observa que a
tentativa de os atores definirem o termo, bem como tentar quantificá-lo, resultou em “uma
infinidade de ‘tipos’ de capital social” (p.187). Ao averiguar a observação da autora, foram
encontrados os seguintes “tipos” de “capital social” na obra citada: individual, grupal e
comunitário; “de puente” (alianças horizontais no território), “de escalera” (reciprocidade
com controle) e “societal”; formal e informal; restrito e ampliado; de união, de vinculação e
de aproximação.
Ocampo (2003), Secretário Executivo da CEPAL
137
, introduz a obra definindo “capital
social” como:
(...) el conjunto de relaciones sociales caracterizadas por actitudes de
confianza y comportamientos de cooperación y reciprocidad. (...) un recurso
de las personas, los grupos y las colectividades en sus relaciones sociales
(que) está desigualmente distribuido en la sociedad (p.26).
Contudo, isto é, com todo o esforço da intelectualidade cepalina para definir o
“conceito” de “capital social” e/ou os tipos, no geral da obra pode-se concluir que o termo se
baseia em relações de solidariedade, entre pessoas ou grupos, que compreende o próprio
“capital social”, as redes, os bens socioemocionais, os valores afetivos, as instituições e o
poder, para produzir benefícios econômicos e bens socioemocionais que levem ao bem-estar
socioeconômico.
136
Capital social e redução da pobreza: o ponto de vista da CEPAL”, resenha da obra ATRIA, Raúl; SILES,
Marcelo; ARRIAGADA, Irmã; ROBINSON, Lindon J. & WHITERFORD, Scott (comps.), 2003. Capital social
y reducción de la pobreza en América Latina y el Caribe: en busca de un nuevo paradigma. Santiago del
Chile: Comisión Econômica para América Latina y el Caribe-University of Michigan Press., elaborada pela
autora na Revista de Sociologia Política, Curitiba, 21, p.187-190, nov.2003.
137
Que também contribuiu com a obra do BID, com um artigo intitulado de “Desenvolvimento econômico e
inclusão social” (pp.33-40).
238
Os cepalinos acreditam que na medida em que aumenta o “capital social” de uma
pessoa aumenta o seu interesse pelos demais membros, isto é, aumenta o sentimento de
solidariedade e, com isso, ampliam-se as oportunidades de adquirir benefícios econômicos e
bens socioemocionais já disponíveis na sociedade. São os seguintes os bens socioemocionais
relacionados: educação, vigilância do cumprimento da lei, alguns serviços de saúde e
transporte, saneamento, higiene dos alimentos, defesa e proteção ambiental (Robison, Siles &
Schmid, 2003). Estes bens socioemocionais são denominados pelo Banco Mundial de
“estoques pessoais de ativos”.
Conforme observa Robison, Siles & Schmid (2003):
Los esfuerzos de reducción de la pobreza ejercen una influencia positiva en
el capital social de un país, porque disminuyen la segregación. Además, las
iniciativas de inversión en capital social, que conectan a personas
anteriormente desvinculadas, tienden a aminorar la desigualdad de ingresos
y la pobreza que contribuyen a esa segregación (p.55).
Nesta perspectiva que o papel “ativo” da sociedade civil, da comunidade e dos grupos
é fundamental no processo de redução das desigualdades sociais e na inserção social dos
pobres, pois a ampliação deste recurso social (confiança, cooperação, reciprocidade) requer
mudanças culturais, ou como colocara Fukuyama (2005), exige certos “hábitos mentais” (p.9).
Segundo Ocampo (2003), o atual debate sobre a agenda do desenvolvimento tende a
ordenar-se em torno de dois eixos principais e complementares:
(...) por una parte, la búsqueda de un nuevo equilibrio entre el mercado y
el interés público y, por otra, la concepción de las políticas públicas como
formas de acción en favor de objetivos de interés común, que no se
limitan a las acciones estatales. De esta manera, se pone de relieve la
necesidad de abrir nuevas oportunidades para la participación de la sociedad
civil y superar, por ese camino, ala crisis del Estado que repercute por igual
en los mundos desarrollado y en desarrollo (p.26; grifo nosso).
239
D’Araújo (2003), observa que nas últimas décadas muitas análises apontavam que era
possível desenvolver a capacidade de mudança cultural através de políticas públicas, o que
resultou em várias experiências práticas de projetos de desenvolvimento. E que, diante disso,
o Banco Mundial, a partir dos anos 90, começou a direcionar e a financiar projetos com essa
abordagem mais prática (no sentido de funcional ou instrumental).
138
Para Robison, Siles & Schmid (2003), por exemplo, uma das formas em que os pobres
podem adquirir o “capital social” é dando-lhes oportunidade de serem ouvidos e fazer valer
suas opiniões.
139
No entanto, esclarecem os autores, tal condição requer capacitação. Nesta
perspectiva, eles recomendam desenvolver políticas que promovam a formação de
dirigentes, com a colaboração de organizações da sociedade civil, dando orientações
sobre a forma de gerar capital (financeiro e físico) e capital social, incluindo, também,
políticas de acesso e melhoria do ensino público. Explicam que um “sólido programa de
ensino público” também é fundamental: “Esos programas no solamente generan capital
humano, sino que además pueden ser fundamentales para la creación de capital social
(p.109).
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) vai incorporar as idéias de
desenvolvimento do “capital social” nos programas de redução da pobreza e de promoção da
“eqüidade social” na América Latina e no Caribe, enfatizando os “grupos social e
138
Robison, Siles & Schmid (2003), relacionam alguns exemplos de formas como se tem utilizado o capital
social e estudos que estabelecem vínculos entre o capital social e a situação dos pobres dos seguintes autores:
Coleman, 1990; Fukuyama, 1995; Putnam, Leonardi y Nanetti, 1993; Robison e Siles, 1999; Perry e Robison,
2001; Knack e Keefer, 1997; Fafchamps e Minten, 1998; Robison, Siles e Ower, 2002. Exemplos práticos: “El
éxito de las maquiladoras de Yucatán (México) depende de sur capital social”, Biles, Robison e Siles, 2001; “La
formación de capital social trajo aparejada una mejora en el mantenimiento de un sistema de riego y uso
compartido del agua”, Uphoff, 2000; “Se han organizado con éxito asociaciones de ahorro e inversión mediante
el uso de capital social”, Adams e Fitchett, 1992; “La adopción de tecnoloas depende de los lazos sociales”,
Isham, 1999.
139
O que coincide com a visão do Banco Mundial em relação ao relatório “Vozes dos Pobres: Brasil – Relatório
Nacional”, elaborado em 2000 no Brasil.
240
culturalmente excluídos” da América Latina, inclusive portadores de deficiência física. Nesse
sentido, fazem parte de uma das “dimensões” de políticas do Banco para o combate à pobreza
as temáticas: Inclusão Social, Governabilidade e Capital Social.
140
Conforme expressa o Presidente do BID, Enrique V.Iglesias:
En la búsqueda de los medios más eficaces para enfrentar la pobreza, el
Banco continúa definiendo más claramente el objetivo de su financiamiento.
A mediados de los años setenta, la agricultura y el desarrollo urbano fueron
los principales sectores a los que se dirigió este esfuerzo, en los años
ochenta el Banco contribuyó a cerrar la brecha de financiación creada por la
crisis de la deuda; y a principios de los noventa ha asumido el liderazgo en
cuanto al respaldo a los programas de reforma económica encarados por los
países miembros. En la actualidad el Banco está prestando más atención a
la reducción de la pobreza que en cualquier otro momento de su historia. Los
préstamos para los sectores sociales han alcanzado niveles sin precedentes;
la diversidad de iniciativas para reducir la pobreza es cada vez mayor, y en
sus operaciones crediticias, el Banco cuenta ahora con mecanismos
internos para promover los intereses de las mujeres, los niños, los
grupos indígenas y otras minorías. Estos esfuerzos aún se encuentran en
plena evolución, como lo muestra este documento (BID, 1998a; grifo
nosso).
141
Para a equipe do BID (2001): “Se pueden señalar dos grandes vías de acercamiento al
tema capital social en los últimos años en el BID: las contribuciones conceptuales sobre los
vínculos entre capital social, valores éticos y cultura; y el fortalecimento de la participación”
(p.09). E aponta a obra de Kliksberg e Tomassini (2000), “Capital Social y cultura: claves
estratégicas para el desarrollo”, como a mais importante contribuição sobre o tema e,
principalmente, as reflexões sobre o papel dos aspectos valorativo e cultural do “capital
social” para o desenvolvimento social.
140
Ver a estrutura de funcionamento do Banco na nota 102.
141
Na apresentação da obra: Para salir de la pobreza: el enfoque del Banco Interamericano de Desarrollo
para reduccir la pobreza. Washington, USA:BID, 1998a.
241
O “capital social”, para a equipe do BID, é um elemento facilitador para a inclusão
social desses grupos “marginalizados” e para o “combate” à pobreza e à desigualdade social.
A “exclusão social” é definida pela equipe do BID (2004a) como: “a incapacidade de um
indivíduo de participar do funcionamento básico político, econômico e social da sociedade em
que vive” ou “a negação do acesso igualitário a oportunidades impostas por alguns grupos da
sociedade a outros” (p.5). Essa “incapacidade” de participação, ou de ter “voz e poder na
sociedade”, é resultante de processos sociais e culturais, que “privou socialmente” o indivíduo
a realizar seus desejos e impor suas escolhas, e o condenou a condição de pobreza durante
gerações. Nessa perspectiva, a cultura, enquanto “valores que inspiran la estructura y
comportamiento de una sociedad y de sus distintos miembros, (....) es un factor decisivo de
cohesión social. En ella, las personas pueden retoñecerse mutuamente, cultivarse, crecer en
conjunto y desarrollar la autoestima colectiva” (BID, 2001, p.9).
Nesse sentido, coloca a equipe do BID (2004a):
Para combater essa natureza permanente da exclusão, a proteção social e
outras medidas de curto prazo desenvolvidas para ajudar os pobres a
enfrentar eventos adversos devem ser complementadas por políticas mais
abrangentes, que ampliem o acesso a oportunidades. A característica de
transmissão da falta de oportunidade de uma geração a outra também destaca
a importância da comunidade e da família na formulação de políticas
destinadas a interromper essa transmissão (p.6).
Para o BID (2004a), o processo de globalização da economia, que “recompensa o
trabalho altamente qualificado em detrimento do trabalho pouco qualificado”, intensificou as
desigualdades salariais na América Latina, tornando-as mais visíveis. E, com o fortalecimento
da democracia, aumentou os processos participativos e as demandas sociais dos cidadãos:
“Mulheres, povos indígenas, portadores de deficiência e, mais recentemente, grupos de afro-
descendentes, levantaram suas vozes no processo de formulação de políticas” (p.4). Explica
que nesse contexto histórico, em que há a intensificação das desigualdades e o aumento de
242
demandas sociais, os organismos multilaterais decidiram voltar-se para a questão da pobreza e
da desigualdade. Assim, expressa:
...a percepção amplamente compartilhada de que os atuais paradigmas de
desenvolvimento não são capazes de atender às preocupações sociais
prementes e às desigualdades históricas, (...) organismos internacionais de
desenvolvimento decidiram abraçar a meta de inclusão social e apoiar não
apenas pesquisas sobre as causas da pobreza e da desigualdade, mas também
as medidas necessárias para combatê-la (BID, 2004a, p.4).
No caso específico do BID, pautado no “consenso geral” de que as principais
características e indicadores básicos da exclusão social desses grupos estão relacionados com
a pobreza e com a desigualdade, vai se dedicar à promoção de políticas que venham a
“corrigir os constrangimentos sofridos pelas populações excluídas”, através de “ações
afirmativas”. Conforme expresso no documento do BID (2004a):
Embora a insuficiência de renda seja um fator fundamental, há consenso no
sentido de que a exclusão social se refere a um conjunto de circunstâncias
mais abrangentes do que a pobreza. A exclusão social está estreitamente
relacionada ao conceito de pobreza relativa do que à pobreza absoluta e,
portanto, está inextricavelmente vinculada à desigualdade. A exclusão social
se refere não apenas à distribuição de renda e ativos (como as análises da
pobreza), mas também à privação social e à ausência de voz e poder na
sociedade (p.5).
142
Nessa perspectiva, o BID vai voltar-se para intervenções políticas de inclusão social,
“combatendo” a exclusão racial e étnica e a discriminação das minorias. Para a equipe, as
populações excluídas apresentam as seguintes características: “invisibilidade” nas estatísticas
oficiais, compartilham com a pobreza, com a falta de oportunidades e com a discriminação e
142
Observa-se que tais colocações do BID têm forte influência dos trabalhos de Amartya Sen, assim como,
incorporam o ponto de vista do Banco Mundial em relação “Vozes do Pobre” e a ênfase no plano valorativo e
cultural do capital social atribuído por Kliksberg , Tomassini e Fukuyama.
243
sofrem de carências cumulativas. E são as seguintes as “opções de política” definidas pelo
grupo: 1- tornar o invisível visível nas estatísticas; 2- romper a transmissão da falta de
oportunidades de uma geração a outra; 3- ampliar o acesso ao trabalho, à terra e ao mercado
de capitais; 4- implementar projetos locais de desenvolvimento integrado; 5- combater o
estigma e a discriminação, com leis e políticas preferenciais; 6- afirmar o poder dos grupos
excluídos.
Los beneficios de promover políticas de inclusión son muchos. Un estudio
contratado por el BID en el 2001 estimó las ganancias en el Producto Interno
Bruto (PIB) si se elimina la discriminación de indígenas y personas de
ascendencia africana en los mercados laborales. Los resultados son
dramáticos: la economía de Bolivia, crecería un 36.7%; la de Brasil, un
12,8%; la economía de Guatemala un 13,6%; y la de Perú, un 4,2%. Estas
estimaciones no tienen en cuenta las mejoras en términos de cohesión social,
integración comunitaria, desarrollo educativo, entre otras, que también
resultan de una mayor inclusión. Los organismos multilaterales como el BID
buscan trabajar con los países para lograr desarrollo económico, social e
individual en la región a través de promover políticas de inclusión social
(BID, 2004a, p.7).
Já para a equipe do Banco Mundial a concepção de “capital social” enfatiza as
relações interinstitucionais com a comunidade, “refere-se às instituições
143
, relações e normas
sociais que dão qualidade às relações interpessoais em uma dada sociedade. A coesão social é
a argamassa que mantém as instituições em contato entre si e as vincula ao cidadão visando à
produção do bem comum” (BIRD, 2002, p.10).
Na visão do Banco Mundial (2000a), a formação de boas instituições públicas também
é essencial para assegurar o desenvolvimento e reduzir os possíveis conflitos:
A formação de instituições públicas de alta qualidade é essencial para
assegurar que a disparidade de identidades venha a ser um ativo para o
desenvolvimento, e não uma fonte de divisão política e violência. Isso é
143
“por instituições sociais entendem-se os sistemas de parentesco, as organizações locais e as redes dos pobres”
(BIRD, 2000a, p.134)
244
especialmente importante em países com recursos naturais abundantes, tais
como petróleo, diamantes e minérios. Nos casos em que há pouca
responsabilização e transparência institucional, as rendas econômicas
exorbitantes desses recursos se transformam numa fonte primária de
competição entre facções governantes (BIRD, 2000a, p.133).
E são as organizações da sociedade civil e o Estado que podem lançar os alicerces
institucionais para que haja cooperação entre os grupos visando ao bem comum. Segundo o
Banco: “Uma visão integradora do capital social reconhece que as micro, meso e macro
instituições coexistem e podem se complementar entre si” (BIRD, 2000a).
A concepção de “capital social” expressa pela equipe do Banco Mundial tem funções
unificadora, conectiva e vinculadora. Significa a capacidade de a sociedade civil se associar
para cumprir compromissos e controlar os “estoques pessoais de ativos” - saúde, educação,
treinamento, capacidade inata do indivíduo e também a capacidade de controlar a
criminalidade -, necessários ao desenvolvimento social. Para o Banco Mundial (2002) o
“capital social” produz estoques pessoais de ativos, que são incorporados individualmente, e
que vão refletir “na melhoria das condições de trabalho, no aumento da produtividade e,
conseqüentemente, na capacidade das pessoas de produzirem bem-estar para si próprio e para
suas famílias” (p.37).
O aumento da participação dos pobres no desenvolvimento e a redução de
barreiras sociais são complementos importantes da criação de um contexto
no qual eles tenham maiores oportunidades e segurança. Essa emancipação é
promovida pelo fortalecimento das instituições sociais, aumentando a
capacidade dos pobres e dos socialmente desfavorecidos para fazer frente à
estrutura de poder da sociedade e expor seus interesses e aspirações (BIRD,
2000a, p. 136).
No entanto, alerta a equipe do Banco Mundial que esses “estoques pessoais de ativos”
podem esgotar-se quando o indivíduo ou uma família enfrenta, permanentemente, riscos
econômicos, tais como instabilidade de renda, e ser desperdiçado quando indivíduos
245
qualificados para um emprego são rejeitados por discriminação racial. Nesse sentido, a
redução da vulnerabilidade a crises econômicas, entre outros, é essencial, especialmente para
os pobres, que podem ter o seu capital humano irreversivelmente afetado (BIRD, 2000a). A
prática discriminatória cria barreiras à mobilidade ascensional e limita a capacidade de
participar das oportunidades econômicas (BIRD, 2000a, p.136). Nessa perspectiva, para não
haver “esgotamento dos ativos dos indivíduos” a estabilidade econômica é fundamental. E
para que esses “ativos” não sejam “desperdiçados” as políticas de cotas para negros e índios
na educação superior, por exemplo, são bem-vindas (BIRD, 2002, p.37), enquanto uma “ação
afirmativa”.
Segundo o Banco Mundial (2000a):
Em sociedades profundamente estratificadas é preciso suplementar esses
esforços com programas de ação afirmativa, para compensar as
incapacidades resultantes de uma prolongada discriminação. Para competir
na arena política e econômica, as vítimas da discriminação precisam de
assistência especial na aquisição de educação, informação e autoconfiança.
(...)
Destacam-se na ação afirmativa os esforços para reduzir as desvantagens
cumulativas de um acesso mais restrito à educação e ao emprego. Via de
regra, isso requer ajuda aos membros de grupos discriminados para adquirir
aptidões e acesso a oportunidades, mediante apoio financeiro para educação,
admissão preferencial ao ensino superior e quotas de empregos (p.130).
Na concepção de “capital social” do Banco Mundial, estabelece-se uma relação de
reciprocidade entre a “teoria do capital humano” e a “teoria do capital social”. Investir em
pessoas, na capacitação da força de trabalho mais competitiva, reflete na melhoria das
condições de trabalho e no aumento da produtividade que, conseqüentemente, vai refletir na
melhoria da qualidade de vida do indivíduo e de sua família, reduzindo os “problemas
sociais”, uma vez que se desenvolve a capacidade de controlar os “ativos” sociais, ou de gerar
“capital social”. Assim como o desenvolvimento da capacidade de controlar os “ativos”
sociais, de associação, de participação e formação de redes solidárias ampliam as
246
oportunidades das camadas mais pobres se inserirem no mercado, pois estimula e oportuniza
o investimento no capital humano e as incita a participar do mercado, “agarrando” as
oportunidades oferecidas “de usar a sua reserva mais abundante: a mão-de-obra” (estratégia
sugerida no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1990, In: BIRD, 2000a, p.31), dando
voz e poder de decisão sobre a definição de suas necessidades, de forma a promover a
liberdade de escolha sobre a sua capacidade produtiva.
Em outras palavras, para a equipe do Banco Mundial (e para os defensores da “teoria
do capital humano”) o indivíduo investindo na qualificação de sua força de trabalho (da qual é
proprietário e nesse sentido deve esforçar-se para manter a “qualidade” de seu patrimônio),
conquistará uma qualidade de vida melhor resultante de um bom emprego ou de uma
“ocupação” rentável (Oliveira, 2003). Esta capacidade associada ao desenvolvimento do
“capital social”, resultará na formação de uma sociedade solidária e harmônica, uma vez que
através da educação o indivíduo desenvolve, também, sua capacidade de “participar das redes,
serviços e benefícios sociais” (Mazza, 2004), de controle da gestão pública e dos ativos
sociais.
Fazendo uma retrospectiva sobre as políticas macroeconômicas dos anos pós-Segunda
Guerra Mundial, na qual se compreendia que o processo de desenvolvimento seria mais bem
conduzido através do Estado, e as políticas dos anos 1970-90, mais especificamente ao
Consenso de Washington, na qual defendia uma posição contrária, a interferência do Estado
na economia impedia o desenvolvimento, o Banco Mundial faz a seguinte observação:
(...) tornou-se evidente que as estratégias simples de desenvolvimento e
redução da pobreza eram ilusórias. Embora os mercados sejam instrumentos
poderosos para a redução da pobreza, também é importante contar com
instituições para assegurar que os mercados sejam eficientes e
beneficiem os pobres (BIRD, 2000a, p.200; grifo nosso).
247
Na ótica do Banco Mundial os países dependentes devem fortalecer suas instituições
de forma a viabilizar um mercado competitivo e capacitar as camadas mais pobres da classe
trabalhadora a participarem dos benefícios oferecidos pelo mercado. O mecanismo de redução
da pobreza é um mercado forte e competitivo. Cabe aos pobres tirarem proveito deste
benefício.
Como colocara Putnam, o contrato social que sustenta uma rede de colaboração entre
os indivíduos e entre instituições em uma “comunidade cívica” não é de cunho legal, e sim
moral. Trata-se da construção de uma “cultura cívica”, que requer um processo educativo
mais amplo, envolvendo toda a sociedade civil. E no caso específico das camadas mais pobres
a construção de “capital social” exige a elevação de seu nível de instrução (básico) e o
desenvolvimento de programas que visem a capacitá-las a participarem das decisões
comunitárias, sobre as formas de gerar capital financeiro e físico, como sugerem os cepalinos
com a “formação de dirigentes”, ou a de formar redes associativas para o controle dos ativos
sociais, como aponta a equipe do Banco Mundial.
Contudo, seja em nível de desenvolvimento individual ou em nível institucional ou
associativo, é a questão moral e cultural que atravessa a concepção de produzir o “capital
social”, como um instrumento de superação da “questão social”, que no contexto da
globalização é intensificada e deflagrada com novas determinações.
Mesmo com diferentes abordagens e aplicabilidades em diversos campos de
conhecimento, a teoria do “capital social” defende a idéia de que, na atual conjuntura, o
enfrentamento da “questão social” e a superação da “crise do Estado” para o desenvolvimento
econômico e social de um país, só são possíveis considerando a necessidade de se desenvolver
um tipo de comportamento social de cooperação e confiança entre os indivíduos, as
comunidades e as instituições. Esta mudança comportamental dos membros da sociedade se
daria através da disseminação de valores de solidariedade, de sentimento de prosperidade e de
248
coesão social, da “cultura cívica”, visando à ampliação das oportunidades de gerar capital,
integrando capital financeiro e material com o “capital social”, tornando a dimensão
econômica mais humana.
A saída para a solução das mazelas sociais advindas do capitalismo mundializado
apontada pelos organismos internacionais é formar forças sociais beneficentes (indivíduos
associados conscientes civicamente) que articuladas com o Estado na implementação das
metas estabelecidas pelo governo facilitem “ações coordenadas”. Para tal torna-se necessário
construir, em conjunto com as organizações da sociedade civil e com seus membros
civicamente participativos, um Estado “inteligente” ou “ativo”, no sentido de promover a
harmonia entre o Estado, o mercado e a sociedade civil, com instituições descentralizadas,
fortes, sensíveis às demandas da comunidade e eficaz na administração do precário recurso
disponível.
Esse modelo idealizado de “sociedade solidária” deve evitar o conflito, educando
para a tolerância com o outro e para a confiança mútua. Deve criar esforços conjuntos
para superar os infortúnios causados pelo aumento da pobreza, da desigualdade e do
desemprego, identificando o problema e a possível superação, baseado na “vocação
produtiva” de cada grupo, comunidade ou zona de pobreza localizada, promovendo a
oportunidade de cada um desenvolver suas capacidades produtivas, ou aliviando o problema
com políticas de ação afirmativa e compensatória. No âmbito das políticas macroeconômicas,
o país pobre deve mostrar-se atraente ao mercado internacional, através de sua capacidade de
produção e de investimento estável, além de sua capacidade enquanto mercado consumidor.
Os organismos multilaterais, em parcerias com as organizações da sociedade civil, devem
atuar diretamente nas esferas microssociais e individual, visando a uma reforma intelectual e
moral para o enfrentamento da “questão social”.
249
É nessa perspectiva que para o Banco Mundial o investimento em educação é
primordial, pois podem transmitir mensagens culturais e valorativas que venha a solidificar a
coesão social (BIRD, 2002). Enfim, investindo em um tipo de educação (ou treinamento) que
dissemine, ou melhor, transmita “mensagens culturais” que reforcem a ideologia burguesa,
não mais só de competitividade, individualidade e empregabilidade como fora nos anos 1980-
90, mas também de solidariedade, cooperação, autonomia produtiva, de bem-estar coletivo;
que permita construir um consenso em relação à necessidade de se manter a “coesão social”
para o enfrentamento dos riscos que impõe a economia globalizada, com estabilidade
econômica e política; de que somente através de uma sociedade harmônica, não-conflitiva,
que colabore solidariamente com o desenvolvimento comunitário, os países dependentes
podem reduzir suas zonas de pobreza e se desenvolverem econômica e socialmente.
O foco de política no “combate à pobreza” para o “desenvolvimento do milênio”
introduz mecanismos que embora estejam revestidos de aspectos associativo, cooperativo e
solidário são mecanismos que reforçam os valores burgueses de individualidade e
competitividade. O “combate à pobreza” é direcionado ao indivíduo pobre, ou às zonas de
pobreza, que deve tornar-se capaz produtiva e competitivamente para superar sua condição
miserável.
Por outro lado, a possibilidade de operar o aumento da produtividade das camadas
mais pobres da classe trabalhadora, via vocação produtiva da comunidade, como mecanismo
de “combate à pobreza” recai na problemática da escassez dos recursos naturais. Ciente deste
problema os organismos multilaterais incorporam nas políticas definidas para o novo milênio
a concepção de desenvolvimento econômico “sustentável”, isto é, sem desperdício de recursos
materiais e de recursos humanos. Enfim, propõe-se um tipo de desenvolvimento que protege o
meio ambiente sem desperdiçar a força produtiva de significativa parcela da classe
trabalhadora que se encontra “desocupada” e que ainda dispõe de força produtiva
250
aproveitável.
Quando Boron e Ianni chamam a atenção para o fato de que a ideologia neoliberal
penetrou nas mentes e nos corações dos sujeitos, eles estão apontando as formas pelas quais
os intelectuais orgânicos do capital criam as bases de sustentação e legitimação da ordem
social instituída, introduzindo elementos de seu projeto de sociedade no senso comum das
massas, para que se efetive a hegemonia de seu projeto civilizatório.
Ao primeiro sinal de crise do capitalismo os intelectuais orgânicos do capital
prontamente constroem as novas bases ideológicas que darão sustentação às mudanças
necessárias à sua reprodução e elaboram instrumentos de difusão dessas ideologias. É nessa
perspectiva que para o “desenvolvimento do milênio” novos mecanismos de hegemonia foram
introduzidos para que se efetive a nova ordem: desenvolver sustentavelmente. Para tal,
segundo esses intelectuais é preciso construir um Estado “ativo” e apreender uma nova
concepção de pobreza conforme será visto em seguida.
251
4.2 Sobre a mudança no pensamento e na prática de desenvolvimento.
Segundo o Banco Mundial (2004), “as lições dos programas de ajuste da década de
1980”, com a “promessa” que não foi cumprida, e o fim da Guerra Fria removeram “as
vendas dos olhos dos países doadores (Estados Unidos e seus aliados), que eles próprios
haviam colocado” para evitar investigações sobre os “fracassos de governança”. Sem uma
ameaça ideológica houve a possibilidade de as teorias econômicas, políticas e sociais
impulsionarem o pensamento sobre desenvolvimento, ao “vincular as noções de crescimento
econômico, distribuição e redução da pobreza” (pp.3-15).
A compreensão de desenvolvimento toma um caráter mais “pragmático”, segundo a
equipe do Banco Mundial, “conduzida não por dogmas, mas pelas realidades dos países”,
superando “dogmas antigos (....), pacotes de políticas padronizados, soluções milagrosas
receitadas (...) para todos os países” (Idem, p.4).
Segue um trecho do relatório:
Os últimos 10 anos presenciaram uma mudança radical no pensamento e na
prática do desenvolvimento. Compreendemos melhor o conceito de pobreza
e a dinâmica da redução da pobreza. E nossa compreensão tornou-se mais
pragmática, conduzida não por dogmas, mas pelas realidades dos países.
Essa mudança no pensamento do desenvolvimento mudou os
mecanismos de ajuda do Banco Mundial e do FMI e da comunidade de
doadores como um todo (BIRD, 2004, p.15; grifo nosso).
Nessa perspectiva analítica e interventiva, em que incluem as orientações de políticas
do Banco Mundial nos anos finais da década de 1990, as instituições e a governança
assumem papel central, segundo o documento, por quatro motivos:
Primeiro, o fracasso dos programas de ajuste estrutural para desencadear o
crescimento em muitos países de baixa renda na década de 1980 (...).
Segundo, e talvez o mais importante, o fim da Guerra Fria (....). Até o início
da década de 1990, os Estados Unidos e seus aliados haviam evitado
252
investigar os fracassos de governança dos Estados intermediários por medo
de prejudicar o que consideravam baluartes contra a expansão comunista
(...). Terceiro, a transição das economias do Leste Europeu e da antiga União
Soviética no início e em meados da década de 1990 (...) enfatizou a grande
importância das bases institucionais para os mercados e para a boa política.
Quarto, a crise financeira no Leste da Ásia em 1997-98 demonstrou que
mesmo onde as políticas haviam apoiado o crescimento rápido e a redução
da pobreza, a fragilidade das bases institucionais e da governança pode
afetar toda a estrutura do progresso do desenvolvimento (BIRD, 2004, pp.5-
6; grifo nosso).
O foco de atenção nos programas de “reforma e modernização do Estado” está nas
instituições públicas e nas organizações da sociedade civil. A precariedade das instituições
públicas, na concepção dos organismos internacionais, acaba por colaborar com a persistência
da pobreza e da exclusão social e econômica que põe em risco a estabilidade política,
conseqüentemente, a coesão social. É nesse sentido que na nova abordagem de
desenvolvimento a eqüidade passa a ser, também, um fator fundamental.
Assim, os intelectuais orgânicos do capital concluem que não só crescimento e
estabilidade econômica são importantes para se obter melhores níveis de desenvolvimento e
eqüidade, é necessário também que se obtenha estabilidade política. Argumenta-se que um
ambiente institucional fraco, ineficaz, impede que amplos setores da população sejam
beneficiados pelo crescimento econômico. Conforme expresso no documento do BID (2000):
“La modernización del Estado (....) implica, a su vez, un proceso complementario y recíproco
de fortalecimiento de la sociedad civil. No hay Estado eficiente con una sociedad civil débil”
(p.iv).
Nesse sentido, defendem que é necessário melhorar a qualidade institucional para
garantir a estabilidade política e econômica, garantir os direitos de propriedade e contrato,
fornecer suficientemente bens públicos e limitar a predação e a corrupção dos governos. E
isso exige que se estabeleça uma boa governança no sentido de implementar ações públicas
253
descentralizadas, participativas e, fundamentalmente, sensíveis às necessidades dos pobres.
Para o BID (2000):
El proceso de reformas económicas a la vez que ha ayudado a recuperar la
estabilidad y el crecimiento económico después de la aguda crisis de los
años 80, ha modificado de manera substancial las pautas tradicionales de
integración social y cohesión política. Se plantea, por tanto, el desafío de
alcanzar nuevas formas de organización y gestión política y social que sean
funcionales con la nueva estrategia de desarrollo. Este debe ser,
precisamente, el objetivo de los programas de reforma y modernización del
Estado y de fortalecimiento de la sociedad civil (p.i).
Voltado para os fenômenos que afligem a maioria dos paises da América Latina,
aumento da taxa de desemprego, do emprego informal, da pobreza e da desigualdade entre
classes e nações, Kliksberg (2002b) observa que: “....as sociedades que tendem a fortalecer a
eqüidade e a melhorá-la têm melhores resultados econômicos, sociais e políticos a longo
prazo” (p.24).
Essa observação expressa um argumento que se torna predominante nos estudos e
análise de alguns economistas, em meados da década de 1990: de que no contexto do
capitalismo globalizado a relação entre o econômico e o social é mais complexa, afirmando a
convicção de que existe uma “inter-relação básica entre elas”, entre as dimensões econômica,
social e política. Essa concepção “multidimensional” de Economia, enquanto uma área de
conhecimento aplicado, baseia-se nos estudos e pesquisas desenvolvidos por Amartya Sen
(2001).
144
144
Sen foi Prêmio Nobel de Economia em 1998 e criador do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) -
taxonomia de indicadores sociais e econômicos, atualmente utilizado pelos organismos multilaterais para o
diagnóstico de determinado grupo social.
254
Sen, em 1992, realizou um estudo comparativo entre dois grupos de países com baixa
taxa de produto nacional bruto, estabelecendo uma comparação entre eles em relação à
pobreza e a desigualdade. O primeiro grupo de países era formado pelo Estado de Kerala, na
Índia, China e Siri Lanka e o segundo grupo era formado pela África do Sul, Brasil e Gabão,
países que tinham um produto nacional bruto cinco a quinze vezes maior que os países do
primeiro grupo. Sen (2001) buscou analisar a expectativa de vida da população desses países
em relação ao produto nacional bruto. Verificou que a expectativa de vida da população do
primeiro grupo era maior que a do segundo grupo, concluindo que o crescimento econômico
sozinho não é o fator determinante em um dos indicadores mais fundamentais para se
identificar se uma sociedade está avançando nos indicadores mais básicos, a expectativa de
vida da população. As variáveis que intervêm nesse resultado, segundo Sen (2001), são as
políticas públicas que garantem à população dos países do primeiro grupo um acesso mais
amplo aos insumos fundamentais para a saúde, tais como, água potável, instalações sanitárias,
eletricidade e assistência médica; educação, apresentando melhores possibilidades de acesso;
e o que ele considerou como um aspecto central, a melhor distribuição da renda. Sen
constata que os países do primeiro grupo conseguiram reduzir de forma rápida as taxas de
mortalidade e melhoraram as condições de vida da população sem obter um crescimento
econômico significativo.
Sen (2001), ao contrário de Becker (Nobel de 1992) que defendeu um método único
na economia, estabelece uma relação entre economia e ética e introduz a idéia de pluralismo
metodológico neste campo. Segundo Kerstenetzky (2000):
Se a análise econômica, na sugestão de Becker, promove o que poderíamos
chamar de interdisciplinaridade à força, já que se trata da superimposição de
uma visão de mundo a diferentes configurações do mundo, o feito de Sen
sugere uma versão relativa de interdisciplinaridade em que se reconhece a
pertinência de cada plano discursivo e se indica as relações de fertilização
recíproca possíveis (p.114).
255
A concepção de Economia de Sen (2001) vai “iluminar” o “apelo” de superar os
enfoques reducionistas do pensamento econômico convencional que foi se generalizando
entre os intelectuais coletivos do capital, inclusive o Banco Mundial, em meados dos anos
1990. A Economia nesta perspectiva vai buscar responder e propor soluções para os
problemas da pobreza e das desigualdades sociais através do que eles denominam de
“perspectivas integradoras de variáveis múltiplas, que capta a complexidade da realidade.
Na concepção da equipe do Banco Mundial esse tipo de abordagem econômica
baseada nas “perspectivas integradoras de variáveis múltiplas” acaba por fortalecer, também,
a abordagem de “economia do desenvolvimento micro”. Esta abordagem de desenvolvimento
busca compreender que instituições podem surgir no micronível social para enfrentar os
“fracassos” econômicos e estruturar políticas para reduzir os impactos.
Conforme é colocado pela equipe do Banco Mundial (2004):
A nova onda neoliberal que dominou a década de 1980 subestimou a
distribuição e a pobreza e insistiu no restabelecimento de mecanismos
de mercado para promover o crescimento econômico (....).
145
Na década
de 1990 a economia do desenvolvimento apartou-se das explicações
macroeconômicas de Keynes ou de Harrod e Domar para ressaltar os
fundamentos micros de questões do desenvolvimento. Os economistas e
formuladores de política do desenvolvimento tornaram-se mais
preocupados com decisões no micronível, compreendendo seu papel
crucial no crescimento da economia (pp.3-4; grifo nosso).
E continua: “a comunidade de desenvolvimento tem ampliado a noção do sentido e
dos objetivos do desenvolvimento, destacando-se a influência especial de Amartya Sen ao
persuadir a comunidade de desenvolvimento a assumir uma visão tão ampla” (Idem, p.04).
145
Sem comentários.
256
Essa mudança de “paradigma” baseada numa abordagem de Economia “mais ampla”,
segundo a equipe do Banco Mundial, proporcionou um progresso significativo dos aspectos
instrumentais do pensamento do desenvolvimento. “Na segunda metade da década de 1990
surgia um consenso sobre análises sólidas, contextos específicos e abordagens
multidisciplinares”, o que permitiu saber “o que realmente funciona para alcançar as metas
de desenvolvimento e por que” (BIRD, 2004, p.04-05; grifo nosso).
Tendo em vista essa mudança na abordagem econômica, observa Kliksberg (2000) que
nos últimos anos o debate sobre o desenvolvimento foi reaberto em nível internacional sem
seguir, porém, as orientações tradicionais. Para o autor, os supostos consensos ou
“pensamento único” ou o imperativo do método único não tem resistido ao confronto com os
fatos concretos. A crise das economias do Sudeste Asiático e a persistência e tendência de
agravamento dos problemas sociais da América Latina colocaram em questão a validade
efetiva desses consensos, os quais são contestados atualmente a partir de múltiplas direções.
Segundo a equipe do Banco, a crise dos anos 1990 revelou “a importância de gestão
macroeconômica prudente, quer no controle de expansões rápidas ou na redução de
vulnerabilidades” (p.8).
Argumenta Kliksberg (2000) que, no quadro de conjunto, - onde as dificuldades da
realidade têm impulsionado uma crise e um processo de reenfoque profundo do pensamento
econômico -, inserem-se diversos componentes não visíveis ao funcionamento cotidiano de
uma sociedade que tem a ver com a situação de seu tecido social básico que incidem
silenciosamente nas possibilidades de crescimento e desenvolvimento. Nesse sentido, o novo
foco do pensamento econômico deve trazer a “lógica das inter-relações” ou o encadeamento
recíproco das múltiplas dimensões: econômica, política e social (p.25-27).
257
O autor enfatiza que o pensamento econômico convencional exclui as políticas e as
instituições de suas análises e regras de desenvolvimento econômico e não as concebe como
variáveis determinantes; ao contrário, vê a política e as instituições como “intrusos
indesejáveis”. Na sua concepção, a política econômica é o resultado de lutas políticas dentro
de estruturas institucionais.
Una primera característica de la crisis en curso es el llamado, cada vez más
amplio, a respetar la complejidad de la realidad. Se previene contra la
‘soberbia epistemológica’ con que el pensamiento económico convencional
trabajó múltiples problemas, pretendiendo capturarlos y resolverlos a partir
de marcos de referencia basados en grupos de variables limitadas, de índole
casi exclusivamente económica, que no dejaban espacio a variables de otras
procedencias (Kliksberg, 2000, p.22).
Citando Touraine (1997), Kliksberg enfatiza a idéia de que “el principio central de
una nueva política social: en vez de compensar los efectos de la lógica económica, ésta
debe conceberse como condición indispensable del desarrollo económico” (Touraine,
Apud, Kliksberg, 2000, p.27; grifo nosso). Nessa perspectiva analítica, o desenvolvimento
social é vital para que ocorra o desenvolvimento econômico sustentado.
A abordagem do desenvolvimento sustentável defende a idéia de que o crescimento
econômico de um país deve estar reciprocamente atrelado ao desenvolvimento social, a fim de
obter taxas de crescimento mais altas (crescimento econômico + eqüidade = altas taxas de
crescimento econômico). A proposta de desenvolvimento sustentável tem sido a saída
defendida pelos principais órgãos multilaterais para reduzir as mazelas sociais resultantes do
“modelo de derrame” e vai ser apresentado como uma alternativa de substituição deste
modelo.
É importante ressaltar que o conceito de desenvolvimento sustentável surgiu em
meados dos anos 1980 em resposta à necessidade de equilibrar progresso econômico e social
com a preservação do meio ambiente e de administrar os recursos naturais. No decorrer das
258
discussões sobre desenvolvimento este conceito sofre alterações ou ampliações, segundo
organismos multilaterais. Para a UNESCO (2005), a idéia de desenvolvimento sustentável
ganhou força com a publicação da obra Our Common Future (Nosso Futuro Comum), em
1987, pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente, no qual se estabelece a seguinte
definição de desenvolvimento sustentável: “desenvolvimento que satisfaz as necessidades do
presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfazer suas próprias
necessidades” (p.35). Em 1991, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(Pnuma), o Fundo Mundial pela Natureza (WWF) e a União Mundial de Conservação
publicam a obra Proteger a Terra: Estratégia para uma Vida Sustentável, na qual a definição
de desenvolvimento sustentável é vista como complementar à definição atribuída na obra
Nosso Futuro Comum: “melhorar a qualidade da vida humana respeitando a capacidade do
ecossistema” (Idem, p.36). O Capítulo 36 da Agenda 21
146
enfatiza a educação como um meio
fundamental para promover o desenvolvimento sustentável e melhorar a capacidade das
pessoas de entender os problemas do meio ambiente e do desenvolvimento. Mais tarde, sua
concepção de desenvolvimento sustentável é ampliada e são priorizadas outras ações
relacionadas com os temas “inclusão social”, “ética política” e “cultura do desperdício” entre
outras questões.
147
E no Documento Final Plano Internacional de Implementação da Década
146
Conforme dissertado na Wikipedia: “Agenda 21 foi um dos principais resultados da conferência Eco-92,
ocorrida no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992. É um documento que estabeleceu a importância de cada país se
comprometer a refletir, global e localmente, sobre a forma pela qual governos, empresas, organizações não-
governamentais, todos os setores da sociedade poderiam cooperar no estudo de soluções para os problemas
sócio-ambientais. Cada país desenvolve a sua Agenda 21 e no Brasil as discussões são coordenadas pela
Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional (CPDS). A Agenda 21 se
constitui num poderoso instrumento de reconversão da sociedade industrial rumo a um novo paradigma, que
exige a reinterpretação do conceito de progresso, contemplando maior harmonia e equilíbrio holístico entre o
todo e as partes, promovendo a qualidade, não apenas a quantidade do crescimento” (Wikipedia, a enciclopédia
livre, acesso: janeiro/2007).
147
Com a Agenda 21 criou-se um instrumento aprovado internacionalmente que tornou possível repensar o
planejamento. Abriu-se o caminho capaz de ajudar a construir politicamente as bases de um plano de ação e de
um planejamento participativo em nível global, nacional e local, de forma gradual e negociada, tendo como meta
um novo paradigma econômico e civilizatório.
As ações prioritárias da Agenda 21 brasileira são os programas de inclusão social (com o acesso de toda a
259
das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável 2005 –2014 (2005) o
termo sustentabilidade é definido da seguinte forma:
Sustentabilidade refere-se às maneiras de se pensar o mundo e as formas de
prática pessoal e social que levam a: indivíduos com valores éticos,
autônomos e realizados; comunidades construídas em torno de
compromissos coletivos, tolerância e igualdade; sistemas sociais e
instituições participativas, transparentes e justas; e práticas ambientais que
valorizam e sustentam a biodiversidade e os processos ecológicos
(UNESCO, 2005, p.30).
O movimento para o desenvolvimento sustentável cresceu a partir de preocupações em
relação aos padrões de produção e consumo das sociedades industrializadas que ameaçam o
meio ambiente e os recursos naturais. Com o crescimento da economia, intensificam-se as
pressões em torno dos recursos naturais e do equilíbrio do ecossistema. Conforme expõe o
relatório da UNESCO (2005):
(...) de 1950 até 1997: - o uso da madeira para a construção triplicou; - o uso
do papel cresceu seis vezes mais; - a pescaria quase quintuplicou; - o
consumo de grãos quase triplicou; - o combustível fóssil quase quadruplicou;
e – os poluentes do ar e da água multiplicaram-se várias vezes. A triste
realidade é que a economia continua a crescer, mas o ecossistema do qual o
crescimento econômico depende não se expande, criando cada vez mais uma
relação sempre mais tensa (p.29).
Segundo o relatório, os processos de desenvolvimento não-sustentáveis pressionam os
recursos naturais enquanto padrões não-sustentáveis de produção e consumo, especialmente
nos países desenvolvidos, ameaçando a fragilidade do meio ambiente natural e intensificando
população à educação, saúde e distribuição de renda), a sustentabilidade urbana e rural, a preservação dos
recursos naturais e minerais e a ética política para o planejamento rumo ao desenvolvimento sustentável. Mas o
mais importante ponto dessas ações prioritárias, segundo este estudo, é o planejamento de sistemas de
produção e consumo sustentáveis contra a cultura do desperdício (grifo nosso). A Agenda 21 é um plano de
ação para ser adotado global, nacional e localmente, por organizações do sistema das Nações Unidas, governos e
pela sociedade civil, em todas as áreas em que a ação humana impacta o meio ambiente” (Wikipedia, a
enciclopédia livre, acesso: janeiro/2007).
260
a pobreza em outros países. No entanto, nesta concepção, o problema do “superconsumo” e
“superdesenvolvimento” exige uma dupla resposta que deve ser dada tanto pelos países
industrializados quanto pelos países “em desenvolvimento”: “padrões responsáveis de
produção e consumo e uma administração proativa de todos os tipos de recursos” (UNESCO,
2005, p.29).
Ainda segundo o relatório:
Desenvolvimento sustentável está estreitamente vinculado ao processo de
globalização. Os problemas e desafios aos quais a promoção do
desenvolvimento sustentável se refere são de alcance mundial – na verdade,
estão relacionados com a sobrevivência do planeta como morada da
sociedade humana (p.31).
O que se observa é que, na virada do século e já integrada às “políticas de
desenvolvimento do milênio”, a idéia de desenvolvimento sustentável não enfatiza mais as
questões estritamente ambientais, como fora difundida nos anos 1980. A idéia que foi sendo
configurada em torno da concepção de desenvolvimento sustentável para o novo milênio
enfatiza o desperdício de potenciais produtivos não só material, mas também o desperdício de
recursos humanos – representados pela massa de trabalhadores excluídos do processo
produtivo; de recursos materiais – as matérias-primas consumidas de forma avassaladora; de
recursos naturais – principalmente aqueles que produzem energia. No entanto a preocupação
não gira em torno somente do desperdício de recursos em si, mas também da possibilidade de
se gerar conflito social por causa dele.
Identifica-se a existência de uma tensão no contexto do capitalismo mundializado, no
qual as possibilidades produtivas foram significativamente ampliadas com os avanços das
tecnologias; mas essas possibilidades são combinadas com a polarização entre classes e
nações e com a impossibilidade cada vez mais ampliada de se estabelecer um padrão global
de consumo e de desenvolvimento nos padrões dos países mais ricos.
261
Nessa perspectiva, o que está em foco não é somente estabelecer estratégias de
desenvolvimento econômico, mas, sobretudo, de desenvolvimento social para amenizar os
riscos e as seqüelas advindas de uma economia liberada. Conforme expressa a equipe do
Banco Mundial (2004): “a exclusão de grandes segmentos da sociedade desperdiça
recursos potencialmente produtivos e gera conflito social” (p.5; grifo nosso).
É posto também que associar desenvolvimento econômico com desenvolvimento
social exige mudanças na condução interventiva. Já não cabem “paradigmas” generalizados,
unidimensionais e centralizados. A implementação de políticas voltadas para o
desenvolvimento sustentável não pode se dar através de planos simples e universais, deve ser
de acordo com as prioridades nacionais e realidades locais, enfim, com a cultura do país.
Na visão de Kliksberg (2000), essa mudança de concepção sobre desenvolvimento
expressa o esforço das sociedades contemporâneas de adequarem-se às mudanças de valores
frente a um horizonte concebido como um mundo de possibilidades, impulsionando a recusa
por modelos generalizados de estratégias econômicas, preferindo alternativas que incorporem
as diversidades nas formações sociais. Nesse sentido, as forças culturais das sociedades vão
formatar seus próprios modelos de desenvolvimento, conforme defende Amartya Sen.
Tanto Kliksberg como Tomassini apontam que hoje coexistem vários tipos de
economia de mercado: anglo-saxônica, asiática, européia, e que as diferenças entre umas e
outras se devem à tradição, às atitudes, aos valores. Nessa perspectiva concluem que a
organização econômica e social de cada sociedade, assim como seu estilo de
desenvolvimento, são conseqüências de sua cultura: “...en lugar de conceber que la cultura es
parte del desarrollo, la verdad es que este ultimo depende de la visión cultural
predominante” (Kliksberg & Tomassini, 2000, p.12). Nesse sentido os autores afirmam que:
262
La sensibilidad actual descree de la eficacia de los grandes modelos,
paradigmas o proyectos políticos, generalmente operados por el Estado, para
plasmar las sociedades. Cree más bien que, a través de nuestra interacción
con los demás agentes, somos nosotros los que construimos nuestra sociedad
y nuestra vida (Kliksberg & Tomassini, 2000, pp.12-13).
Valladao (In: Kliksberg & Tomassini, 2000), autor que integra a mesma obra de
Kliksberg & Tomassini, em sintonia com os organizadores da obra, admite que a cultura
148
das diferentes sociedades tem um impacto na forma com que a coletividade se organiza e
adota ou não uma lógica de crescimento econômico ou de mudança social.
Para Valladao:
La ‘cultura’, con todas las ambigüedades que encierra este término,
constituye en la actualidad el centro de los debates sobre el desarrollo. El
fracaso relativo de las políticas de ayuda desde hace ya tres décadas y la
intensificación de las dinámicas de exclusión social relacionadas con el
proceso de globalización hicieron surgir la necesidad de tomar en cuenta los
factores culturales como ‘nodos’ esenciales de todo proyecto de desarrollo
(Valladao, In: Kliksberg & Tomassini, 2000, p.151).
Ao analisar a relação entre desenvolvimento e cultura ele adverte sobre determinadas
concepções “um tanto românticas” e parte de duas concepções extremas ou duas posições
opostas em relação à cultura e ao desenvolvimento.
Para a primeira posição, o que vai constituir um fator de pobreza e de exclusão são as
próprias orientações de desenvolvimento realizadas pelos organismos internacionais.
Considera-se que a idéia de desenvolvimento é uma simples “crença”, uma ideologia
ocidental, cujo avanço impetuoso acaba por destruir todas as demais alternativas
socioculturais que não se baseiam nas leis do crescimento e do mercado. E que a concepção
148
Definida pelo autor como o conjunto de símbolos, laços sociais e práticas que caracterizam o funcionamento
de uma determinada comunidade.
263
de desenvolvimento de mercado, baseado na competência entre os indivíduos e os grupos,
provoca uma desorganização catastrófica da confiança e dos laços sociais. Segundo Valladao
(In: Kliksberg & Tomassini, 2000), a alternativa mais extrema apresentada por essa posição
seria a de promover novos modelos de organização social, o mais desligados possível do
mercado mundial e baseados mais na cooperação que na competência. Para o autor, é possível
perceber “entre linhas” que esta posição em relação à cultura e ao desenvolvimento “ el sueño
de una especie de ‘secesión de la plebe’ mundial que acabaría por quebrar la tiranía del
mercado y del crecimiento” (Idem, p.152).
A outra visão, segundo Valladao, é defendida por um número significativo de
especialistas que pertencem às grandes agências internacionais de desenvolvimento. Toma-se
a cultura como uma simples variável instrumental e os “fracassos” da ajuda ao
desenvolvimento dos países são analisados como conseqüência de políticas marcadamente
mecânicas e economicistas que não levam em conta o meio ambiente cultural das sociedades
as quais estão dirigidas. Por isso haveria de potencializar essa variável considerada como um
“capital social” que teria de ser valorizado para que os benefícios do desenvolvimento
cheguem às sociedades, comunidades ou grupos sociais mais necessitados. Para o autor, esta
perspectiva expressa o sonho de um “desenvolvimento democrático” demarcado pelo
pensamento das ciências econômicas cujos autores seriam os especialistas internacionais.
Valladao (In: Kliksberg & Tomassini, 2000) conclui que as duas visões de
desenvolvimento enfrentam uma mesma limitação: “su concepción ‘culturalista’ del
problema” (p.153), mas no sentido de que essas visões incorporam uma compreensão de
cultura dentro de um enfoque homogêneo, fechado e coerente sem admitir possibilidades de
conflitos entre culturas. Para ele, qualquer intento voluntarista exógeno de intervenção em
uma comunidade deve levar imediatamente a desequilíbrios de poder, uma vez que esse tipo
de intervenção favorece alguns grupos e, com isso, ameaça outros.
264
(....) la interdependencia de todas las sociedades del planeta y la
globalización de los procesos de producción y de decisión son fenómenos
difícilmente reversibles, con crisis financieras o si ella. Integrarse en el
proceso de globalización como actor, aunque sea modesto, constituye por lo
tanto el problema central de esta ecuación (Valladao, In: Kliksberg &
Tomassini, 2000, p.159).
Valladao (2000) sugere, então, investir em “desmultiplicadores sociais”, pessoas
situadas em qualquer nível hierárquico ou institucional que assumam, de fato, o papel de
gestores de seu próprio capital social comunitário com uma perspectiva de luta contra a
pobreza e a exclusão, sem uma concepção culturalista de intervenção. Para o autor, os
organismos internacionais de desenvolvimento deveriam prover-se rapidamente de
instrumentos para pensar e analisar as diferentes configurações sociopolíticas das
comunidades ou das sociedades em que intervêm.
En suma: no puede haber un proyecto de desarrollo participativo a gran
séala, sin una cooperación entre los ‘portadores del cambio’ locales y
nacionales y sin su participación (...) en los debates y tomas de decisión de
los grandes organismos internacionales (p.162).
Valladao cumprindo sua função de criar e difundir ideologias conservadoras contribui
com as definições de políticas sociais para o desenvolvimento do milênio voltadas para os
países dependentes e orquestradas pelos organismos multilaterais. Como será posto mais
adiante, o Banco Mundial bem como outros organismos multilaterais incorporam essas
estratégias em seus relatórios. E é nessa perspectiva que ocorreu a revalorização do ‘capital
humano’ e do ‘capital social’ e a retomada das relações entre eqüidade e crescimento
econômico. Conforme colocado pela equipe do Banco Mundial: “Sem participação ampla,
sem mais capital humano e capital social, é improvável que o desenvolvimento seja
rápido e sustentável” (BIRD, 2004, p.05; grifo nosso).
265
Esse modelo de desenvolvimento para o milênio fortalecido com a abordagem de
Economia de Amartya Sen (2001), segundo a equipe do Banco Mundial (2004), possibilitou
quebrar “os dogmas antigos sobre desenvolvimento, os pacotes de políticas padronizados,
soluções milagrosas receitadas regularmente para todos os países” (p.5). E, com isso,
enriqueceu os instrumentos de intervenção através de uma estratégia analítica que aborda o
fenômeno em sua especificidade no âmbito microssocial e de forma multidimensional, isto é,
integrando as dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais. “Es necesario atacar, al
mismo tiempo, los problemas económicos y financieros y los sociales, y avanzar en las
transformaciones institucionales” – defende Kliksberg (2000, p.27).
No Brasil a idéia de “desenvolvimento sustentável” difundida pelos organismos
multilaterais vem ganhando “corpo teórico”. Um grupo de economistas publicou muito
recentemente uma obra
149
editada pela Fundação Konrad Adenauer
150
com a proposta de
definir as linhas gerais de um projeto nacional de desenvolvimento com eqüidade social
considerado pelos autores como um projeto novo-desenvolvimentista. Tal denominação teve
como inspiração um artigo de Bresser-Pereira publicado na Folha de São Paulo em 19 de
setembro de 2004 com o mesmo título. Neste artigo Bresser-Pereira relaciona a idéia de
“novo-desenvolvimentismo” com uma estratégia nacional de desenvolvimento, que deve
conter os seguintes elementos estratégicos: aumento da abertura de conta comercial, de forma
negociada e recíproca; um novo papel do Estado, com planejamento mais estratégico;
estabilidade econômica, incluindo estabilidade de preços, equilíbrio na balança de pagamento
149
SICSÚ, João; DE PAULA, Luiz Fernando & MICHEL, Renaut (Orgs). Novo-desenvolvimentismo: um
projeto nacional de crescimento com eqüidade. Barueri (SP): Manole; Rio de Janeiro (RJ): Fundação Konrad
Adenauer, 2005.
150
É uma fundação de origem alemã, de ideologia democrato-cristã, com filiais em vários países. Através do
modelo de Economia Social de Mercado o grupo objetiva divulgar um modelo integrado de políticas públicas
com o objetivo de defender o ideal de justiça social, de igualdade de oportunidades para todos os cidadãos e de
solidariedade (site:www.adenauer.org.br; acesso: janeiro de 2007).
266
e busca do pleno emprego; uma “nova” política econômica que vise a “inverter a equação de
juros elevados e câmbio apreciado”; negação da estratégia de crescimento com poupança
externa, visando à alternativa de desenvolvimento com recursos próprios.
Bresser-Pereira é um dos autores da obra citada que, conforme é posto na introdução,
além de conter algumas questões macroeconômicas adicionais, a obra explora outras questões
fundamentais em um projeto “novo-desenvolvimentista”, tais como: “a relação entre as
esferas público-privada, econômico-social e nacional-internacional” (p.xxxiv). Conforme
colocado na introdução:
O Novo-desenvolvimentismo tem diversas origens, entre as quais a visão de
Keynes e de economistas keynesianos contemporâneos (tais como: Paul
Davidson e Joseph Stiglitz) de complementaridade entre Estado e mercado
(...) e a visão cepalina neo-estruturalista que, tomando como ponto de partida
que a industrialização latino-americana não foi suficiente para resolver os
problemas de desigualdades sociais na região, defende a adoção de uma
estratégia de ‘transformação produtiva com eqüidade social’ que permita
compatibilizar um crescimento econômico sustentável com uma melhor
distribuição de renda (Sicsú, De Paula & Michel, 2005, p.xxxiv).
A proposta dos autores desta obra é “estimular o debate em torno da constituição de
um programa alternativo ao projeto monetarista neoliberal”. Um programa
desenvolvimentista que, segundo os autores, difere da proposta desenvolvimentista dos anos
1950 em que a industrialização foi incrementada com base em um modelo de substituição de
importações baseado em um protecionismo generalizado do mercado interno com intervenção
estatal e empresas estatais atuando em setores de infra-estrutura e de produção de consumo
básicos. Para os “novos-desenvolvimentistas”, no contexto de uma economia globalizada já
não tem mais sentido este tipo de Estado. Deve-se constituir um Estado forte, mas que
estimule a emergência de um mercado forte. São as seguintes as teses apresentadas:
1) não haverá mercado forte sem um Estado forte; 2) não haverá crescimento
sustentado a taxas elevadas sem o fortalecimento dessas duas instituições
(Estado e mercado) e sem a implementação de políticas macroeconômicas
267
adequadas; 3) mercado e Estado fortes somente serão construídos por um
projeto nacional de desenvolvimento que compatibilize crescimento
econômico sustentado com eqüidade social; e 4) não é possível atingir o
objetivo da redução da desigualdade social sem crescimento a taxas elevadas
e continuadas (Sicsú, De Paula & Michel, 2005, p.xxxiv).
Em linhas gerais, percebe-se que esta proposta “Novo-desenvolvimentista” vai ao
encontro da proposta de desenvolvimento sustentável disseminada pelos principais
organismos multilaterais. E novamente o Brasil tem na figura de Bresser-Pereira, o intelectual
orgânico do capital que vai impulsionar o debate em torno dos ajustes necessários à
manutenção das condições de reprodução do grande capital.
Ainda no Brasil, é importante destacar uma outra proposta que vem sendo
desenvolvida ao longo das últimas décadas, que se apresentou também como uma alternativa
à globalização neoliberal, mas que ganha corpo mais prático, inclusive em nível
governamental: a economia solidária.
151
Frente ao paradoxo que se instaura na virada do século, “as condições técnicas para
cumprir as promessas da modernidade ocidental, como a promessa da liberdade, da igualdade,
da solidariedade e da paz”, jamais reunidas na história da sociedade moderna ocidental, e a
evidência de que essas promessas “nunca estiveram tão longe de ser cumpridas”, Santos
(2002) considera que está em causa a própria “reinvenção da emancipação social”.
151
Os movimentos sociais que incorporaram a proposta da “economia solidária” foram alvos do projeto de
pesquisa de Boaventura Souza dos Santos, em conjunto com 69 pesquisadores, denominado “Reinventar a
emancipação social: para novos manifestos”. Neste projeto foram analisadas iniciativas e movimentos
populares considerados de resistência e como formuladores de alternativas à globalização neoliberal. A pesquisa
foi realizada em seis países: Brasil, África do Sul, Portugal, Moçambique, Colômbia e Índia e resultou em sete
obras: 1- “Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa”; 2- “Produzir para viver: os
caminhos da produção não capitalista”; 3- “Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo
multicultural”; 4-“Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais”; 5-
“Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário”; 6- “As vozes do mundo”; 7-
“Reinventar a emancipação social”.
268
Aponta Santos (2002) que as lutas políticas modernas se concentraram na
emancipação social, patrimônio matricial das promessas da modernidade, ou como forma de
realizá-la ou como forma de impedi-la, resultando em divisões ideológicas, tais como:
capitalistas e socialistas, liberais e marxistas, reformistas e revolucionários, nacionalistas e
internacionalistas. No entanto, coloca o autor: “Por razões diferentes (pelo menos,
aparentemente), estas divisões parecem hoje anacrônicas ou incapazes de dar conta das
clivagens que atravessam o mundo” (p.13).
Para o autor, ao considerar que o neoliberalismo não é uma nova forma de liberalismo,
mas uma nova forma conservadora, deve-se admitir que tanto o liberalismo como o marxismo
estão em crise profunda, assim como os antagonismos ideológicos: “a idéia de revolução
social parece ter saído da agenda política” e “o reformismo, ou seja, a idéia de uma melhoria
gradual e legal dos padrões de sociabilidade, foi substituído pelos conceitos de governo e
governação”; as idéias de “nacionalistas e internacionalistas parecem ter deixado de ter
sentido numa época que se autodesigna como época da globalização” (Santos, 2002, p.14).
Estas transformações são ou parecem tão profundas, que é possível
caracterizar o nosso tempo com um tempo de problemas modernos (as
promessas por cumprir da modernidade ocidental) para os quais não há
soluções modernas (Idem, p.14).
Aceitando a globalização como um fato irreversível, Santos (2002) considera que a
globalização neoliberal é hegemônica, porém não é a única alternativa. Este tipo de
globalização tem sido confrontado por um outro tipo, “uma globalização alternativa, contra-
hegemônica”, constituída por um conjunto de iniciativas, movimentos e organizações, com
vínculos entre si, através de redes e alianças locais/globais, que lutam por um mundo melhor.
Em sua opinião: “é nesta globalização alternativa e no seu embate com a globalização
neoliberal que estão sendo tecidos os novos caminhos da emancipação social” (p.15). Daí a
escolha desses seis países “semiperiféricos” para realizar a pesquisa, considerando que “neles
269
o potencial e os limites da reinvenção da emancipação social mais claramente se revelam”
(Santos, 2002, p.15).
A economia solidária não é uma proposta nova. Singer (2002), um dos entusiastas da
proposta, explica que:
A economia solidária foi inventada por operários, nos primórdios do
capitalismo industrial, como resposta à pobreza e ao desemprego resultantes
da difusão ‘desregulamentada’ das máquinas-ferramenta e do motor a vapor
no início do século XIX. As cooperativas eram tentativas por parte dos
trabalhadores de recuperar trabalho e autonomia econômica, aproveitando as
novas forças produtivas. Sua estruturação obedecia aos valores básicos do
movimento operário de igualdade e democracia, sintetizados na ideologia do
socialismo (p.83).
Sendo a proposta da economia solidária uma reação da classe operária à crise do
trabalho – à pobreza e ao desemprego -, conforme apresentação de Santos (2002), Singer
(2002) coloca em questão se a economia solidária é “apenas uma resposta à crise do trabalho
ou projeta uma transformação sistêmica em direção ao socialismo” (p.16).
Analisando as experiências de cooperativas e empresas solidárias no Brasil que
surgem “provavelmente” como resposta à grande crise de 1981-83, Singer (2002) relata o
processo de formação de cooperativas, identificando algumas dificuldades na implementação
e na efetivação dessa forma de produção no contexto da globalização neoliberal.
Muitas cooperativas provavelmente passaram por períodos que eram
empresas solidárias e outras que se assemelhavam mais a empresas
capitalistas. Estas oscilações devem-se à inserção econômica e social de cada
cooperativa – muitas surgem a partir de lutas operárias ou camponesas – e ao
‘espírito da época’, que impregna os cooperados ora de valores solidários
democráticos, ora de individualismo e culto à competição (p.86).
No processo histórico da formação da economia solidária, Singer relata as trajetórias
que resultaram na criação da Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de
Autogestão (Anteag) e da União e Solidariedade das Cooperativas Empreendimentos de
270
Economia Social (Unisol), e expõe as experiências de autogestão no Movimento dos Sem
Terra (MST) a partir da reforma agrária.
A Anteag, criada em 1994 com a finalidade de ajudar na luta dos trabalhadores na
preservação dos postos de trabalho e para pôr fim à subordinação ao capital, cresce na função
de assessoramento das novas empresas solidárias. Segundo Singer (2002), tendo em vista o
seu êxito, a partir de 2000 a Anteag também é contratada por governos que decidiram
priorizar a economia solidária.
152
A história da Anteag expressa a intervenção de sindicatos no
momento de transformação das empresas falidas em cooperativas como uma forma de tentar
assegurar os postos de trabalho, mas com a esperança de se consolidar uma forma alternativa
de produção solidária e democrática.
No mesmo caminho foi formada a Unisol em 1999. Segundo Singer (2002), “a Unisol
conta com uma Incubadora de Cooperativas Populares apoiada pela Prefeitura de Santo André
e ligada à Fundação Santo André (instituição municipal de ensino superior)” que se expande
pelos mesmos fatores: “desemprego em massa, intensificação da concorrência que leva as
empresas antigas e de envergadura à crise e eventualmente à falência” (p.94).
O MST procura aderir gradualmente à idéia de cooperativismo, a partir de 1988, tendo
em vista a baixa produtividade da agricultura de subsistência que não levava à melhoria do
padrão de vida dos camponeses. No entanto a forma cooperativada de produção não teve
muito êxito nos assentamentos do MST. Segundo Singer (2002), “O I Censo de Reforma
Agrária – 1997 mostra o predomínio nos assentamentos da produção individual: 93,96%
contra apenas 1,21% de produção coletiva e 4,82% de forma mista” (p.115). E segue o autor
relatando outras experiências, tais como a da Cáritas Brasileira, a da Ação da Cidadania
Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, entre outras.
152
A exemplo do governo do Rio Grande do Sul de Olívio Dutra.
271
Singer (2002) vai apontar, também, que as cooperativas autogestionárias formadas por
ex-assalariados vão sofrer resistência de sindicalistas que identificaram neste tipo de
cooperativa uma forma de terceirização da mão-de-obra. Seriam as “pseudo-cooperativas”,
isto é, que eram criadas com a “única finalidade de roubar dos trabalhadores os seus direitos
trabalhistas” (p.124). O autor vai considerar esta identificação um “absurdo” e dizer que “se
baseia na ignorância do que é a economia solidária”, uma vez que as cooperativas de trabalho
e de produção têm uma ligação orgânica com o movimento operário, estando essa
organicidade claramente posta em sua denominação “worker cooperatives” (sic). O autor
expõe que esse balanço por ele realizado já nasceu desatualizado, tendo em vista o rápido
desenvolvimento da economia solidária no Brasil, que já firmou sua identidade. Para o autor:
O que impele a economia solidária a se difundir com força cada vez maior já
não é mais a demanda das vítimas da crise, mas a expansão do conhecimento
do que é e a tecnologia social, econômica e jurídica de implementação da
economia solidária (Singer, 2002, pp.126-127; grifo nosso).
Provavelmente o desenvolvimento destas tecnologias social, econômica e jurídica
colocada por Singer será bem-vindo na proposta de desenvolvimento sustentável que compõe
a “políticas de desenvolvimento do milênio”, assim como foram as “pseudo-cooperativas”
para os empresários que, até hoje, usufruem dos benefícios desta prática. Para o Banco
Mundial reunir a massa de trabalhadores “vítimas da crise” do capitalismo em torno de uma
proposta de sobrevivência coletiva é um mecanismo ideal de redução de conflitos e de
conformação. Conforme expõe a equipe do Banco (2004) as instituições podem oferecer
oportunidades que neutralizam os efeitos colaterais de sociedades polarizadas.
Contudo a esperança de se efetivar um modo de produção alternativo ao capitalismo a
partir de cooperativas de trabalho, de produção e comercialização no seio da globalização
neoliberal ainda é viva no autor.
272
Segundo Singer (2002):
A construção de um modo de produção alternativo ao capitalismo no Brasil
ainda está no começo, mas passos cruciais já foram dados, etapas vitais
forma vencidas. Suas dimensões ainda são modestas diante do tamanho do
país e de sua população. Mesmo assim, não há como olvidar que dezenas de
milhares já se libertaram pela solidariedade. O resgate da dignidade humana,
do respeito próprio e da cidadania destas mulheres e destes homens já
justifica todo o esforço investido na economia solidária. É por isso que ela
desperta entusiasmo (p.127).
Considera-se que a questão colocada pelo autor permanece. Sem condescender com o
entusiasmo que, segundo o autor, a economia solidária desperta, entende-se que, num
contexto em que prevalecem os interesses das grandes empresas transnacionais e em que o
crescimento da economia dá-se através da superexploração do trabalho, a questão da
economia solidária ser “apenas uma resposta à crise do trabalho ou projetar uma
transformação sistêmica em direção ao socialismo” não foi e nem poderá ser respondida pelo
autor. Muito provavelmente isso se deva à “ignorância” na compreensão do significado de
“economia solidária”, como o autor considerou a crítica dos sindicalistas, e ainda à
dificuldade de apreender a organicidade desta proposta com o movimento operário, através do
nome “worker cooperatives”.
Deixando de lado a “ignorância” e a falta de entusiasmo em acreditar na possibilidade
de se consolidar um “socialismo utópico ornitorrinco”, o que se pretende destacar nessas
propostas de novo-desenvolvimentismo e da economia solidária é o crescente movimento de
se buscar uma saída para a crise do capitalismo sob a égide do neoliberalismo, ou excluindo o
Estado desse processo ou exigindo reformas em suas funções.
O argumento oficial que sustentou a contra-reforma dos anos 1990 - retirando o
Estado do controle econômico, de esferas estratégicas da produção e da comercialização, além
da “desresponsabilização” do Estado em relação às expressões da “questão social” - foi a
273
ineficácia estatal de caráter burocrático e corrupto. “O Estado, de agente de desenvolvimento,
se transforma em obstáculo” (Montaño, 2002, p.221). Agora, clama-se o retorno do Estado
como agente de desenvolvimento, intervindo na esfera econômica, mas na forma de conduzir
os mecanismos que garantam a estabilidade política para a construção de um mercado forte.
Como observa Montaño (2002):
O processo de retirada do Estado do trato universal/não contratualista da
‘questão social’, a precarização/focalização/descentralização da atividade
estatal e a paralela ampliação da atividade social privada (filantrópica ou
mercantil), acaba por aprofundar e ampliar as desigualdades sociais – da
qual o Brasil tem o demérito de estar nos primeiros lugares (Montaño, 2002,
p.194).
Enfim, no decorrer das discussões de definição políticas para o novo milênio a saída
encontrada para refratar a “questão social” e administrar a imanente crise do capital es
configurada na idéia de desenvolvimento sustentável - expansão do comércio internacional +
desenvolvimento social. Nesse sentido, o Estado idealizado pelo grande capital para o
desenvolvimento do milênio deve ser forte para garantir as condições de reprodução e
acumulação do capital.
Assim argumenta Fukuyama (2005):
O fortalecimento desses Estados (fracos) por várias formas de construção de
nações é uma tarefa que se tornou vital para a segurança internacional (...).
Embora não desejemos retornar a um mundo de grandes potências em
choque, precisamos estar atentos para a necessidade de poder. Aquilo
que somente os Estados são capazes de fazer é agregar e distribuir poder
legítimo. Este poder é necessário, em termos nacionais, para fazer com
que as leis sejam cumpridas e, no plano internacional, para preservar a
ordem mundial. (...) não temos escolha a não ser retornar ao Estado-
nação soberano e tentar mais uma vez aprender como torná-lo forte e
eficaz (pp.156-157; grifo nosso).
274
Relata a equipe do Banco Mundial (2000c) que:
Embora os desafios atuais e futuros sejam intimidantes, começamos o novo
milênio com uma melhor compreensão do desenvolvimento. Aprendemos
que os elementos tradicionais das estratégias para promover o crescimento
(estabilidade macroeconômica e reformas segundo as leis do mercado) são
essenciais para reduzir a pobreza. Mas agora também reconhecemos a
necessidade de atribuir muito mais ênfase às bases institucionais e sociais
para o processo de desenvolvimento, ao controle da vulnerabilidade e à
promoção da participação para assegurar um crescimento inclusivo
(Prefácio.vi).
A idéia de desenvolvimento sustentável provocou, também, a “ampliação” do conceito
de pobreza. A idéia de pobreza não é mais restrita à questão da renda, ela passa a incorporar
outras dimensões sociais, ela incorpora o caráter absoluto e relativo da medida de pobreza. A
pobreza, nessa perspectiva analítica sob a influência direta dos conceitos desenvolvidos por
Sen, é vista como “privação de capacidades”. É neste sentido que o Estado deve exercer
uma função mais ativa, estabelecendo um mecanismo de cooperação entre governo, força
trabalhista e empresários, objetivando estabelecer uma ação conjunta para oportunizar a
redução dessas privações. Eqüidade, o papel das instituições e a governança tornaram-se
temas centrais.
275
4.3 O Enfoque Multidimensional de Pobreza
Nesse marco de referência conceitual, a noção de pobreza também foi ampliada e
multidimensionada. A compreensão de pobreza não é mais limitada à renda e ao consumo, ela
passa a englobar as “privações” nos acessos aos “ativos sociais”: educação, saúde,
participação social e política, segurança, entre outros (BID, 2000, p.03).
153
Em 2000, o Banco Mundial elabora o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial
2000/2001: Luta contra a Pobreza (2000a), cujos objetivos são: “ampliar o conhecimento
sobre a pobreza e suas causas e estabelecer ações para criar um mundo sem pobreza em todas
as suas dimensões” (p.19). Há, segundo o Banco Mundial (2000a), o reconhecimento de que
a pobreza é mais que renda ou desenvolvimento humano inadequado; é também
vulnerabilidade e falta de voz, poder e representação”. Nesse sentido sua equipe afirma:
“Esta visão multidimensional da pobreza aumenta a complexidade das estratégias de redução
da pobreza, porque é preciso levar em conta outros aspectos, como fatores sociais e as forças
culturais” (BIRD, 2000a, p.12).
Para o Banco, “os pobres vivem sem liberdade fundamental de ação e escolha que os
que estão em melhor situação dão por certo” (Idem). Esta frase expressa a idéia de Amartya
Sen sobre pobreza, ampliada por outras dimensões que a equipe do Banco incorpora a este
conceito de pobreza com base na pesquisa que realizou em vários países pobres nos anos
finais da década de 1990, denominada Vozes dos Pobres (2000b).
153
Mestrum (2003) constata que os organismos multilaterais não partilham de um saber comum sobre a pobreza,
mas que apesar de diferentes perspectivas foi possível identificar características comuns.
276
O relatório aceita a visão estabelecida da pobreza, que engloba não só a
renda e consumos baixos, mas também níveis baixos de educação, saúde,
nutrição e outras áreas de desenvolvimento humano. Com base no que a
pobreza significa para a maioria das pessoas, amplia essa definição para
incluir a falta de poder e voz e a vulnerabilidade ao medo (BIRD, 2000a,
p.19).
Os pobres, para Sen (2001), são “privados” de condições básicas e/ou adequadas de
alimentação, habitação, educação e saúde. Estas privações o impedem de levar um tipo de
vida que é valorizada pela sociedade e restringem o que ele denomina de “capacidades
inerentes às pessoas”, ou seja, as liberdades substantivas de que desfruta para levar a vida que
ele prefere.
O bem-estar de uma pessoa pode ser concebido em termos da qualidade (...)
do ‘estado’ da pessoa (...). Viver pode ser visto como consistindo num
conjunto de ‘funcionamentos’ inter-relacionados, que compreendem estados
e ações. (...) Os funcionamentos relevantes podem variar desde coisas
elementares (...) até realizações mais complexas.(...)
A capacidade é, portanto, um conjunto de vetores de funcionamentos,
refletindo a liberdade da pessoa para levar um tipo de vida ou outro (pp.79-
80).
A “capacidade” em Sen (2001) não tem o sentido restrito de vocação, de dizer que
uma pessoa tem capacidade de fazer algo, mas quando se diz que uma pessoa é capaz de
realizar algo, tem condições de realização. Privação das capacidades é privar a pessoa, família
ou comunidade de realizar algo. A pobreza é a privação de capacidades básicas de realizar. “A
privação relativa no espaço de rendas pode produzir privação absoluta no espaço de
capacidades” (p.179). No entanto, esclarece o autor:
Se queremos identificar a pobreza em termos de renda, não pode ser
adequado considerar apenas as rendas (quer dizer, se a renda é
genericamente baixa ou alta), independentemente da capacidade para realizar
funcionamentos deriváveis dessas rendas. A adequação da renda para evitar
a pobreza varia parametricamente com as características pessoais e as
circunstâncias.
(...) Ter uma renda inadequada não é uma questão de ter um nível de renda
277
abaixo de uma linha de pobreza fixada externamente, mas de ter uma renda
abaixo do que é adequado para gerar os níveis especificados de capacidades
para a pessoa em questão (Sen, 2001, p.174).
As capacidades refletem “liberdades substantivas” de ter liberdade de escolha para
desenvolver aquilo de que é capaz ou não. “Recursos são importantes para a liberdade, e a
renda é crucial para evitar a pobreza. Mas se nosso interesse diz respeito, em última instância,
à liberdade, não podemos – dada a diversidade humana – tratar os recursos e a liberdade como
sendo a mesma coisa”, explica Sen (2001, p.175). Em sua concepção, as privações são
intrínsecas e não apenas instrumentais; é o indivíduo que vai determinar do que ele está sendo
privado. Assim, a capacidade é variável entre comunidades, famílias e indivíduos, e o impacto
da renda sobre as capacidades é contingente e condicional.
Segundo Sen (2001):
Os seres humanos diferem uns dos outros de muitos modos distintos.
Diferimos quanto a características externas e circunstanciais. Começamos a
vida com diferentes dotações de riqueza e responsabilidade herdadas.
Vivemos em ambientes naturais diferentes – alguns mais hostis outros não.
As sociedades e comunidades às quais pertencemos oferecem oportunidades
bastante diferentes quanto ao que podemos ou não podemos fazer. Os fatores
epidemiológicos da região em que vivemos podem afetar profundamente
nossa saúde e bem-estar.
Mas além dessas diferenças nos ambientes natural e social e nas
características externas, também diferimos em nossas características pessoais
(....). E estas são importantes para avaliar a desigualdade. (....) Portanto, a
desigualdade em termo de uma variável (p.ex., renda) pode nos conduzir no
sentido, bem oposto, da igualdade no espaço de outra variável (p.ex. o
potencial para realizar funcionamentos ou o bem-estar) (pp.50-51).
Enfim, a pobreza está diretamente relacionada à incapacidade, ou melhor, à
“deficiência para usar a renda na geração de capacidade” (Idem, p.177).
278
O Banco Mundial incorpora o conceito de pobreza de Sen, mas amplia introduzindo
outras duas dimensões: participação e segurança. Para isso toma como base a observação de
que geralmente os pobres são mais vulneráveis a doenças, crises econômicas e catástrofes
naturais, não são bem tratados nas instituições públicas e da sociedade, e não lhes é dada a
oportunidade de influenciarem nas decisões que afetam suas vidas. Dessa forma, a pobreza
não é mais compreendida de forma restrita à questão da renda, mas insere estas outras
dimensões: educação, moradia adequada, saúde, segurança, participação política, isto é, a
concepção de que os pobres sofrem de “privações múltiplas”.
Partindo desse conceito multidimensional de pobreza a equipe do Banco observa que
essas dimensões de pobreza ou as “privações múltiplas” interagem entre si, o que exige que as
intervenções devam também interagir. Nesse sentido, conclui que “o resultado das políticas é
maior que a sua soma”, isto é: “A melhoria dos resultados em saúde não só promove o bem-
estar, como também aumenta o potencial de geração de renda. O incremento da educação não
só melhora o bem-estar, como também produz melhores resultados de saúde e aumento da
renda” (BIRD, 2000a, p.15).
É esta concepção de pobreza que passa a integrar às “políticas de desenvolvimento do
milênio” e é incorporada às atividades do Banco Mundial.
Para a equipe do Banco (2000a):
Pobreza em meio à abundância é o maior desafio que o mundo enfrenta. O
Banco Mundial assumiu a missão de combater a pobreza com paixão e
profissionalismo, colocando essa luta no centro de todas as suas atividades,
pois reconhecemos que o desenvolvimento bem-sucedido requer um
mandato amplo, múltiplo e adequadamente integrado (p.19).
No Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001: Luta contra a Pobreza
(2000a), ao analisar o quadro de pobreza no mundo, a equipe do Banco Mundial levanta os
seguintes dados:
279
Dos 6 bilhões de habitantes, 2,8 bilhões [quase a metade] vivem com menos
de 2 dólares por dia e 1,2 bilhões (um quinto) com menos de 1 dólar por dia,
sendo que 44% vivem no sul da Ásia (melhor dizendo, 4 bilhões ou 2/3 da
população mundial é pobre). Nos países ricos, menos de uma criança em 100
não completa cinco anos, mas nos países mais pobres um quinto das crianças
morrem antes disso.Enquanto nos países ricos menos de 5% de todas as
crianças abaixo de cinco anos são desnutridas, nos países pobres a proporção
chega a 50% (BIRD, 2000a, p.03).
Demonstrado na seguinte figura:
Figura 1
Regiões em desenvolvimento onde vivem pobres
Distribuição da população que vive com menos
de 1 dolár por dia em 1998 (1,2 bilhões)
América Latina
e Caribe
7%
Leste da
Á
sia e
Pacífico
23%
África
Subsaariana
24%
Oriente Médio
e Norte da
África
1%
Sul da
Á
sia
43%
Europa e
Á
sia
Central
2%
Fonte: Banco Mundial 2000a (apud BIRD, 2000c)
A equipe do Banco Mundial observa que tal situação de pobreza e desigualdade
persiste. “No início de um novo século, a pobreza continua sendo um problema global de
enormes proporções”, embora as condições humanas tenham melhorado nos últimos 100
anos, atualmente constata-se um aumento da pobreza nunca registrado na história: “a riqueza
global, as conexões mundiais e a capacidade tecnológica nunca foram maiores. Mas a
distribuição desses ganhos globais é extraordinariamente desigual (....), uma diferença que
duplicou nos últimos 40 anos”, no contexto da economia de mercado (BIRD, 2000a, p.03).
280
E analisa no segundo capítulo do Relatório (2000a) “As Causas da Pobreza” e
determina um “Esquema de Ação”. A análise parte do Relatório sobre o Desenvolvimento
Mundial 1990, em que sugeria como “ataque à pobreza” um padrão de crescimento por meio
do uso eficiente e intensivo de mão-de-obra; investir no “capital humano” dos pobres; ampla
prestação de serviços sociais. Este “esquema de ação” determinado pelo Banco nos anos 1990
estava pautado no conceito de pobreza disseminado nos anos 1970-80 definido como baixo
consumo e baixo aproveitamento em educação e saúde. A definição de pobreza consistia na
“incapacidade de atingir um padrão de vida mínimo” (BIRD, 2000a, p.27). O padrão mínimo
deveria ser avaliado pelo consumo - a despesa necessária para que se adquira um padrão
mínimo de nutrição e outras necessidades básicas - e, ainda, por uma quantia que permitiria a
participação da pessoa na vida cotidiana. Assim, com mais renda o indivíduo seria capaz de
superar a pobreza, ultrapassar as ‘fronteiras’ da pobreza, e ser considerado um ‘não-pobre’
(Ugá, 2004, p.58). Nesse sentido, as políticas sociais devem estimular a criação de novas
oportunidades econômicas para que os pobres possam ingressar no mercado, obter
rendimentos, e aumentar o “capital humano”.
No relatório 1990, portanto, percebe-se que o indivíduo integrado ao
mercado define-se pelo fato de possuir ‘capital humano’ (....). Aqueles que
não são munidos desse tipo de capital são incapazes de atuar no mercado, ou
seja, não conseguem ser autônomos para competir com os outros. Esses
indivíduos configurariam a definição de ‘pobres’, com os quais o Estado
deve preocupar-se, compensando-os com suas políticas sociais focalizadas
de aumento do capital humano (Idem, p.59).
Nesse período, explica a equipe do Banco (2000a), “o desenvolvimento econômico
(gerado, em essência, pela liberalização do comércio e dos mercados, pelo investimento em
infra-estrutura e pela prestação de serviços sociais básicos aos pobres, a fim de aumentar o
seu capital social) era tido como fundamental para reduzir a pobreza” (p.31). No entanto, tais
esquemas de intervenção não apresentaram resultados significativos, em alguns países a
281
pobreza reduziu menos do que o esperado e em outros países e regiões a pobreza até
aumentou, o que levou a equipe do Banco à seguinte conclusão:
É certo que as reformas de mercado podem promover o crescimento e ajudar
os pobres, mas também podem ser uma fonte de desajuste. Os efeitos das
reformas de mercado são complexos e guardam uma profunda relação com
as instituições e estruturas sociais. A experiência com a transição,
especialmente nos países da ex-União Soviética, é um vivo exemplo de que,
na ausência de instituições internas eficientes, é possível que as reformas de
mercado não consigam gerar crescimento e redução da pobreza. Além disso,
evidencia-se que a mudança tecnológica da última década favoreceu em
escala crescente a especialização. Portanto, ao contrário do que era preciso e
esperado, o padrão de crescimento nos países em desenvolvimento não
consiste necessariamente em fazer uso intensivo de mão-de-obra não
qualificada (BIRD, 2000a, p.32).
A equipe do Banco Mundial considera que em um contexto de mercado liberado, com
alto nível de competitividade por conta dos avanços tecnológicos, investir no “capital
humano” dos pobres e promover o uso intensivo da mão-de-obra abundante, porém
desqualificada, não foram fatores nem de crescimento econômico e nem de redução da
pobreza como se previa. Sugere como uma das causas do “fracasso” nas políticas de redução
da pobreza a ênfase atribuída aos serviços sociais para a formação de “capital humano”, com
um excesso de otimismo “em relação às realidades institucionais, sociais e políticas da ação
pública”. Segundo a equipe: “A experiência e a pesquisa demonstram que a eficiência da
prestação de serviços depende em grande escala da capacidade institucional, da estrutura do
mercado e dos padrões de influência política locais” (BIRD, 2000a, pp.32-33).
Assim, os focos das “políticas de desenvolvimento do milênio” implementadas pelo
Banco Mundial serão as instituições e a governança, fatores que levaram ao “fracasso” as
políticas dos anos 1990.
282
Outros fatores que são apontados como causadores do “fracasso” na redução da
pobreza foram: a vulnerabilidade em situações de choques econômicos, pessoais e de saúde,
como as crises financeiras dos anos 1990, mas também a vulnerabilidade em relação às
catástrofes naturais; a discriminação étnica, racial e entre os sexos; bem como o fluxo de
capital privado, “marginalizando ou punindo países em precárias condições econômicas”
(BIRD, 2000a, p.33).
Com base nesses dados e considerando o conceito mais amplo de pobreza e de
desenvolvimento, a equipe conclui que: “embora não reneguem estratégias anteriores” como
as do Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1990, os novos dados e o conceito mais
amplo “mostram que é necessário ampliar a agenda. O ataque à pobreza requer ações que vão
além do terreno econômico. E a ação pública deve fazer mais do que investir em serviços
sociais e eliminar a parte prejudicial aos trabalhadores das intervenções do governo na
economia” (BIRD, 2000a), uma vez que:
A pobreza é mais do que o resultado de processos econômicos. É uma
conseqüência de processos econômicos, políticos e sociais que interagem
e se reforçam entre si, podendo tanto agravar como aliviar as privações
cotidianas dos pobres (Idem, p.37; grifo nosso).
Reconhecendo a necessidade de uma agenda mais ampla para impulsionar o
crescimento e reduzir a pobreza, isto é, um tipo de intervenção com orientações de políticas
não mais restritas ao âmbito econômico, mas fundamentalmente social e cultural, o Banco
Mundial propõe no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001 (2000a) um
“plano geral de ação” para combater a pobreza “em três áreas de igual importância”:
oportunidade, autonomia e segurança. E as estratégias de ação sugeridas devem integrar os
âmbitos local, nacional e internacional.
283
O ataque à pobreza requer a promoção de oportunidades, plena
participação e a melhoria da segurança por meio de ações nos âmbitos
mundial, nacional e local. O progresso nessas três frentes pode gerar a
dinâmica para uma redução da pobreza em termos sustentáveis (BIRD,
2000a, pp.37-38; grifo nosso).
Enfim, nas “políticas de desenvolvimento do milênio” do Banco Mundial, a pobreza,
além do enfoque monetário, da capacidade de ter uma renda mínima para suprir suas
necessidades básicas, é considerada como “privação de capacidades” básicas de realizar seus
objetivos de vida, acompanhada da vulnerabilidade do indivíduo e de sua exposição ao risco.
A proposta de promover oportunidades se daria através da expansão das
oportunidades econômicas para os pobres mediante o estímulo do crescimento geral, a
acumulação de bens e melhoria dos rendimentos sobre esses recursos, mediante uma
combinação de ações vinculadas e não vinculadas ao mercado. As ações estratégicas
sugeridas para promover as oportunidades aos pobres são:
Incentivar investimentos privados eficazes, pois entende que a inovação
tecnológica e o investimento são os principais mecanismos para criar empregos e
aumentar a renda do trabalho. Para promover o investimento privado é preciso
reduzir os riscos para os investidores, mediante políticas fiscais e monetárias
estáveis, regimes de investimentos estáveis, sistemas financeiros sólidos e um
contexto empresarial claro e transparente; é preciso assegurar “o império da lei e
tomar medidas para combater a corrupção” e ainda adotar medidas especiais para
as empresas pequenas facilitando o acesso ao crédito e reduzindo os custos de
transação (BIRD, 2000a, p.8).
Expansão para os mercados internacionais, pois aponta que todos os países que
conseguiram reduzir a pobreza recorreram ao comércio internacional. No entanto
284
adverte que a abertura comercial também pode prejudicar alguns grupos que não
contam com uma infra-estrutura e instituições fortes. Nesse sentido, sugere que “a
abertura deve ser bem planejada, com atenção especial às características de cada
país e às deficiências institucionais e outros problema” (BIRD, 2000a, p.8).
Criar um patrimônio para os pobres, concentrando os gastos públicos nos pobres,
ampliando as ofertas de serviços sociais e econômicos básicos, e reduzindo as
restrições sobre a demanda, como, por exemplo, bolsas de estudos; assegurando a
prestação de serviços de boa qualidade “mediante ações institucionais que
envolvam uma boa administração pública e o uso de mercados e múltiplos
agentes”, podendo implicar reforma dos serviços públicos ou uma privatização que
assegure a expansão dos serviços aos pobres; assegurando a participação das
comunidades e das famílias pobres “na escolha e implantação dos serviços e sua
monitoração para que os provedores assumam sua responsabilidade” (Idem).
Abordar as desigualdades baseadas no sexo, etnia, raça ou posição social
(Ibidem).
Infra-estrutura e informação para as áreas rurais e urbanas pobres – infra-
estrutura básica (transporte, telecomunicação, escolas, serviços de saúde e
eletricidade) para reduzir as perspectivas materiais dos pobres e acesso à
informação para que os pobres possam participar dos mercados e monitorar o
governo local (Ibidem, p.9).
A proposta de facilitar a autonomia seria através da melhoria da capacidade de
resposta e da sensibilidade das instituições estatais em relação aos pobres, fortalecendo a
participação dos pobres nos processos políticos e decisórios locais. “Os governos devem
influenciar o debate público para aumentar a conscientização acerca dos benefícios sociais da
285
ação pública em prol dos pobres e promover apoio político para essa ação” (BIRD, 2000a,
p.8). São as seguintes as ações estratégicas sugeridas:
Lançar as bases políticas e jurídicas para um desenvolvimento inclusivo. Isso
significa dispor de instituições transparentes com mecanismos democráticos e
participativos para tomar decisões e monitorar sua implantação sustentadas por um
sistema jurídico que promova o crescimento econômico e a eqüidade;
Criar administrações que promovam o crescimento e a eqüidade. Isso significa
uma administração pública eficaz e sem corrupção que melhore “a provisão de
serviços públicos e facilite o crescimento do setor privado”;
Promover a descentralização e o desenvolvimento comunitário, pois a
descentralização pode aproximar instituições das comunidades e populações
pobres, aumentando o controle dos serviços. Para isso é preciso fortalecer a
capacidade local e transferir recursos financeiros;
Promover a igualdade entre os sexos e eliminar as barreiras sociais. A
discriminação é um obstáculo à mobilidade ascendente dos pobres e um
desperdício de recursos potenciais;
Reforçar o capital social dos pobres, pois as normas e redes sociais são formas
importantes de capital que as pessoas podem usar para sair da pobreza. Nesse
sentido, “é importante colaborar com os grupos que representam os pobres e
aumentar seu potencial, vinculando-os com organizações intermediárias, mercados
mais amplos e instituições públicas”, e com outras organizações mais amplas;
A proposta de melhorar a segurança se daria pela redução da vulnerabilidade dos
pobres a doenças, aos choques econômicos, aos desajustes provocados por políticas, desastres
naturais e violência, e pela ajuda a enfrentar choques adversos quando estes ocorram. São as
286
seguintes as ações estratégicas sugeridas para a redução dos riscos e para ajuda aos pobres a
enfrentar os choques adversos:
Formular uma estratégia modular que ajude os pobres a controlar os riscos no
âmbito da economia, tais como a implementação de programas de micro-seguro e
microcréditos, de transferência de alimentos e fundos sociais (BIRD, 2000a, p.10).
Elaborar programas nacionais de prevenção, alerta e resposta a choques
financeiros e naturais (Idem).
Criar sistemas nacionais de controle do risco social que sejam pró-crescimento,
com programas que não prejudiquem a competitividade (Ibidem).
Prevenir os conflitos civis, pois estes são “devastadores para os pobres”. Para tal é
necessário “promover a interação dos diversos grupos mediante instituições
políticas mais inclusivas e participativas e através de instituições civis” (Ibidem,
p.11).
Enfrentar a epidemia de HIV/AIDS (Ibidem).
Para a equipe do Banco Mundial (2000a) oportunidade, autonomia e segurança têm
valor intrínseco para os pobres, são abrangentes e complementares. Nesse sentido, todas as
ações devem ser empreendidas nas três áreas reciprocamente. “As prioridades e as ações
devem ser definidas no contexto econômico, sociopolítico, estrutural e cultural de cada país
(na verdade, de cada comunidade)”, dependendo das condições locais (p.38). Nessa
perspectiva de atuação considera-se que pensar em uma estratégia efetiva de redução da
pobreza “exigirá que o governo, a sociedade civil, o setor privado e os próprios pobres
empreendam ações nessas três frentes” (Idem). Ainda observa que:
287
Para compreender os fatores determinantes da pobreza em suas múltiplas
dimensões, o melhor é raciocinar em termos de recursos, dos seus
rendimentos (ou da sua produtividade) e da volatilidade dos rendimentos.
Esses recursos são de diversos tipos: recursos humanos, como a capacidade
de trabalho básico, as aptidões e a boa saúde; recursos naturais, como a
terra; recursos físicos, como o acesso à infra-estrutura; recursos financeiros,
como a poupança e o acesso a crédito; recursos sociais, como as redes de
contatos e obrigações recíprocas a que se possa recorrer em tempos de
necessidade, e influência política sobre os recursos (BIRD, 2000a, p.34).
A equipe do Banco entende que os rendimentos gerados por esses recursos vão
depender do acesso aos mercados e das influências de políticas globais, nacionais e locais. E
que os rendimentos não dependem apenas do comportamento dos mercados, mas também do
desempenho das instituições estatais e sociais, isto é, não dependem somente das forças
econômicas, mas efetivamente de forças políticas e sociais fundamentais. Nesse sentido, “o
acesso a recursos depende de uma estrutura jurídica que define e aplica direitos de
propriedade privada ou usos e costumes que definem os recursos de propriedade comum”
(BIRD, 2000a, p.34). No entanto observa que este acesso pode ser afetado “por
discriminações implícitas ou explícitas de sexo, etnia, raça ou status social” e que “tanto o
acesso a recursos como os seus rendimentos são afetados pelas políticas públicas e as
intervenções do Estado, que são moldadas pela influência política de diferentes grupos”
(Idem). A volatilidade dos rendimentos resultante das flutuações de mercado, das condições
meteorológicas e das turbulências políticas, também, é importante, pois afeta “não apenas os
rendimentos como também o valor dos recursos, já que os choques abalam a saúde, destróem
recursos naturais e físicos ou exaurem a poupança” (Ibidem).
Assim como a pobreza de renda declina com o aumento das rendas médias, a
pobreza de saúde e educação também diminui. Tal como no caso da pobreza
de renda, existem desvios significativos em torno dessas relações gerais:
países e regiões com renda per capita similares também podem mostrar
resultados muito diferentes em termos dos aspectos da pobreza que não se
referem à renda. E, tal como no caso da pobreza de renda, esses desvios
refletem um amplo conjunto de forças, que inclui a desigualdade inicial, a
eficácia das intervenções públicas e o nível de desenvolvimento. Em
288
contraste, existem fortes indícios de que melhores resultados em saúde e
educação contribuem para um crescimento econômico mais rápido (BIRD,
2004, p.58).
Kliksberg (2003) faz a seguinte observação:
Os pobres apresentam carências pronunciadas nas dimensões essenciais para
gerá-lo (o capital humano): nutrição, saúde e educação. Sua propensão
marginal a consumir bens desta ordem é muito alta, visto que são decisivos
para a existência e percebidos como tais. O aumento de sua participação na
renda significará uma flexibilidade ainda maior em termos de gastos para
manter uma alimentação adequada e atenção à saúde. Ele fortalecerá as
bases mínimas do capital humano e favorecerá ainda sua possibilidade
prática de investir na educação de seus filhos. A poupança financeira não é a
única forma de poupança possível. Através destes investimentos seria
possível acumular capital humano, considerado hoje fundamental na
produtividade e competitividade das nações (p.52).
Os estudos financiados pelo Banco Mundial e que servem de referências às suas
análises apontam que: as reformas dos anos 1980/90 registraram, a longo prazo, um
crescimento maior do que os países onde essas políticas não existiram; os países que
implementaram “reformas imediatas e enérgicas (e aproveitaram as condições favoráveis)
alcançaram um crescimento mais dinâmico que outros, onde a reforma se atrasou” (BIRD,
2004), registrando crescimento mais rápido, melhoria na educação e nos serviços primários de
saúde, em relação aos outros países que, embora tardios na implementação das reformas,
alguns resultados foram alcançados; onde ocorreu o crescimento houve redução da pobreza e
onde não ocorreu a pobreza estagnou (Idem).
No entanto ressalva-se nestes estudos que isso não ocorreu nos países “em
desenvolvimento”, observando que “reformas mal implementadas podem provocar súbitas
reversões nos fluxos de capital ou outras perturbações macroeconômicas, também reduzindo o
crescimento” (Ibidem, p.50). Segundo expresso no Relatório (2004): “De fato, o crescimento
no mundo em desenvolvimento tem sido desapontador: o país típico registra crescimento
289
insignificante”, pois “muitos países em desenvolvimento foram castigados por grandes
choques externos” (BIRD, 2004, p.64). A dívida externa é enquadrada na categoria de
“choque externo”.
Segundo o relatório, as taxas de juros mundiais aumentaram agudamente o ônus das
obrigações do serviço da dívida, reduzindo o ritmo do crescimento e anulando os efeitos ou
“benefícios das reformas que vinham sendo implementadas simultaneamente” nos países em
desenvolvimento (Ibidem). O que leva à conclusão de que o “fracasso” da reforma estrutural
dos anos 1980-90 nos países “em desenvolvimento” não está relacionado às reformas de
“primeira geração” (“estabilização dos preços, a moderação de déficits orçamentários
crônicos e a remoção de barreiras comerciais mais flagrantes”). Pelo contrário, estabilidade
econômica e abertura comercial geram crescimento e são forças poderosas no combate à
pobreza. Os “fracassos” na implementação da reforma estão relacionados às reformas de
“segunda geração”, isto é, às instituições e à governabilidade.
Os fatores institucionais são importantes para o crescimento. O primado da lei e a
ausência de corrupção, segundo o relatório, contribuem para o crescimento, “ao
proporcionarem um ambiente justo e ordenado em que firmas e famílias possam investir
e crescer” (BIRD, 2004, p.50).
Freqüentemente, a consolidação dos resultados obtidos com essas reformas
requer fortalecimento institucional em áreas muito difíceis, como o
desenvolvimento de um poder judiciário independente, a criação de órgãos
reguladores independentes e efetivos e a instilação de profissionalismo no
setor público. Não só essas reformas de ‘segunda geração’ são muito mais
complexas e demandam muito mais tempo, como também é provável que
elas sejam combatidas por interesses poderosos e arraigados (p.66).
Segundo evidenciado nas pesquisas realizadas pela equipe do Banco: “Está
demonstrado que as instituições que garantem os direitos de minorias e oferecem
oportunidades para a solução de conflitos neutralizam os efeitos colaterais de sociedades
290
polarizadas” (BIRD, 2004, p.52; grifo nosso).
Nesse sentido, sugere a equipe do Banco Mundial (2004): deve-se tornar os mercados
mais favoráveis aos pobres. Os mercados são importantes para os pobres, pois mercados
em bom funcionamento são importantes para gerar crescimento e expandir oportunidades para
os pobres. “E é por isso que os doadores internacionais e governos de países em
desenvolvimento, em especial os democraticamente eleitos, têm promovido reformas que
favorecem o mercado” (p.60; grifo nosso).
E ainda adverte que: “E mesmo que os mercados funcionem bem, devem as
sociedades ajudar os pobres a superar os obstáculos que os impedem de participar livre e
eqüitativamente nos mesmos” (Idem, p.61), através do apoio institucional, investimento em
infra-estrutura e reformas complementares no nível microeconômico, tais como: aliviando o
“grande peso” da regulamentação, principalmente o que incide nas pequenas empresas;
154
promovendo normas básicas de trabalho, por meio de informação, assistência técnica,
formação de capacidade e incentivos complementares;
155
promovendo o acesso aos
microfinanciamentos.
156
154
Entende-se que as pequenas empresas, provavelmente oriundas dos trabalhadores de rendimentos médios,
desempregados ou que entraram no programa de demissão voluntária absorvem um número significativo de
pobres na maioria dentro da informalidade.
155
Esse item insere a polêmica trazida pela OMC com base na Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais
no trabalho.
156
Muhammad Yunus, Prêmio Nobel de Economia 2006, é um indiano conhecido como “O Banqueiro dos
Pobres”, por conta de criar um Banco – Banco Grameen -, em Bangladesh, para emprestar dinheiro aos pobres
da Índia, preferencialmente às mulheres, desde a década de 1970. Ele editou sua autobiografia na obra
Muhammad Yunus com Alan Jolis. O Banqueiro dos Pobres: a revolução do microcrédito que ajudou os
pobres de dezenas de países”. São Paulo/SP:Ática, 2000. Sua experiência tem servido de modelo para diversos
países, inclusive o Brasil. A Caixa Econômica Federal, em convênio com o Banco do Povo, assinou em
novembro de 2006, o primeiro contrato de Microcrédito Orientado do Brasil. A previsão de investimento em
operações de microcrédito será em torno de R$2 milhões, que será viabilizado aos “empreendedores populares”,
de acordo com as regras do Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (JB online, 28 de
novembro de 2006, reportagem da Gazeta Mercantil).
O microcrédito, junto com as medidas de desregulamentação e das “normas básicas de trabalho”, facilita (o que
o Banco Mundial tem denominado de medidas inovadoras ou soluções alternativas) a formação de cooperativas e
291
Enfim, as políticas e instituições no âmbito nacional e local são, para a equipe do
Banco, “as chaves para aumentar a oportunidade, autonomia e segurança dos pobres” (BIRD,
2004, p.187), mas as ações em âmbito global são consideradas um complemento essencial da
ação nacional. Observa a equipe do Banco Mundial que, devido à importância cada vez maior
das forças globais, as ações no nível local não são suficientes. Segundo a equipe: “O avanço
econômico global, o acesso a mercados internacionais, a estabilidade financeira global e os
avanços tecnológicos em saúde, agricultura e comunicações são fatores cruciais para a
redução da pobreza” (Idem, p.41). Para a equipe do Banco, a cooperação internacional é
necessária para reduzir o protecionismo industrial dos países e evitar a volatilidade financeira
global, para aliviar a dívida das nações mais pobres, para cooperar com as pesquisas na área
de saúde e agrícola, para ampliar a “voz dos pobres” nos foros internacionais. Enfim, “as
ações envolvem toda a gama de agentes da sociedade: os pobres, o governo, o setor privado e
as organizações da sociedade civil no âmbito local, nacional e global” (Ibidem, p.42).
Cabe observar que, mesmo com os acordos e compromissos assumidos nos dois
principais encontros de cúpulas, - Conferência Mundial sobre Desenvolvimento Social, em
Copenhague, em 1995, e a Cúpula do Milênio da Organização das Nações Unidas, em Nova
York, 2000, nos quais tinham como marco o “combate à pobreza” -, a comunidade
internacional e os países doadores que fazem parte do Comitê de Assistência para o
Desenvolvimento (DAC) da OCDE vêm progressivamente reduzindo a “assistência oficial do
desenvolvimento”.
arranjos produtivos como forma de gerar oportunidade de trabalho aos pobres, partindo da “vocação produtiva
da comunidade”.
292
Para o Banco Mundial (2000a):
Isso aconteceu apesar da visão otimista no início dos anos 90 de que, com o
fim da guerra fria, a cooperação para o desenvolvimento aumentaria devido
aos cortes nos gastos militares. Na verdade, após registrar seu nível mais alto
em 1993 (em termos reais), a assistência oficial ao desenvolvimento
diminuiu consistentemente durante a década, apesar de um robusto
crescimento econômico nos países do DAC (p.197).
O Relatório (2000a, p.197) apresenta os seguintes dados estatísticos:
Figura 2
293
As condições favoráveis de acumulação de riqueza não tocaram os corações dos países
doadores como idealizado pelos organismos financeiros em conformidade ao “modelo do
derrame”. Pelo contrário, as “doações” foram reduzidas.
A análise do Banco Mundial é de que apesar de os doadores citarem seus déficits
fiscais como grande parte do problema, mesmo quando esses déficits diminuíram no período
entre 1993-1997 (de 4,3% do PIB para 1,3%), a assistência oficial ao desenvolvimento
continuou encolhendo, caindo 14% de 1996 a 1997. A explicação levantada pelo Banco
Mundial é que provavelmente “por continuarem encarando a cooperação para o
desenvolvimento do ponto de vista estratégico, os doadores consideram outras aplicações
mais importantes”. E chega a “inédita” conclusão de que: “Historicamente, assistência foi
determinada mais por interesses políticos e estratégicos do que por metas de redução da
pobreza” (BIRD, 2000a, p.198).
O Banco observa ainda que a preeminência dos interesses geopolíticos não é uma
novidade, a “novidade é o declínio no apoio dos defensores da assistência ao
desenvolvimento por motivos humanitários”. Segundo o Banco Mundial: “Muitos se
cansaram de prestar assistência e passaram a defendê-la com menos entusiasmo nos anos
1990” pela falta de crença de que a assistência chegava às populações que de fato
necessitavam por causa da corrupção e do desperdício nos governos (Idem).
Em 1998, o Banco Mundial publicou um estudo denominado “Avaliando a Ajuda: o
que funciona, o que não funciona e por quê?” (Apud, BIRD, 2004), no qual desenvolveu a
lógica de que a ajuda estrangeira aos países pobres teria um impacto maior na redução da
pobreza se fosse focada nos países que apresentassem instituições e políticas econômicas
fortes, - isto é, como foi visto anteriormente, aos países que garantissem os direitos de
propriedade e contratos, um suficiente fornecimento de bens públicos que limitassem a
294
predação e a corrupção dos governos. Concluiu-se que os efeitos da ajuda dependiam em
grande parte do “ambiente” ou da atuação das instituições, e de uma economia política
propícia ao desenvolvimento que significa “um programa de gasto público mais amplo (...)
em conformidade com os objetivos do desenvolvimento” (BIRD, 2004, p.10), isto é,
incorporando medidas de governança determinadas pelo Banco.
Em 1999, o então Presidente do Banco Mundial, James D.Wolfensohn,
157
divulgou o
Quadro de Desenvolvimento Abrangente” (Apud, BIRD, 2004) em que promove quatro
princípios que tratam de corrigir as falhas identificadas nos programas de assistência ao
desenvolvimento:
Em primeiro lugar, os esforços de desenvolvimento devem fundamentar-se
em uma visão de longo prazo e holística das necessidades de um país, não
apenas macroeconômicas, mas também sociais e estruturais. Segundo, deve
focar os resultados e não as contribuições. Terceiro, deve basear-se em
estratégias conduzidas pelo país. E quarto, os participantes do
desenvolvimento devem promover parcerias para ajudar a estratégia
conduzida pelo país (p.11).
E foi criado, também, um quadro de medidas visando a identificar “quais componentes
importam em quais ambientes” que passou a orientar as “decisões operacionais” dos países
doadores. Como exemplo é citado o índice de classificação de cada país - “Índice de
Avaliação das Políticas dos Países e Instituições” (CPIA)
158
-utilizado pelo Banco Mundial
para conceder os empréstimos.
157
Wolfensohn presidiu o Banco Mundial no período entre 1995-2005. Antes de assumir a presidência do Banco
Mundial, ele atuava como banqueiro de investimentos internacionais e assessorava grandes corporações
internacionais em sua própria empresa - James D. Wolfensohn Inc. Segundo site do Banco Mundial: Wolfensohn
“abriu mão de seus interesses na firma ao ingressar no Banco Mundial”. Wolfensohn também é membro do
Conselho de Relações Externas em Nova York.
158
Essas classificações não são divulgadas publicamente.
295
Esses princípios e índices de classificações foram incorporados no programa
“Estratégia de Redução da Pobreza” e adotados pelo Banco Mundial e pelo FMI em 2001. A
incorporação deste programa passou a ser um trampolim para os países de baixa renda ter
acesso a outros dois tipos de financiamento, através da Associação Internacional de
Desenvolvimento (AID) e do Mecanismo de Redução da Pobreza e Crescimento (PRGF).
Segundo a equipe do Banco Mundial, esse contexto “marcou um avanço nos mecanismos
anteriores de fornecimento de ajuda em vários aspectos fundamentais”, pois sendo voltado aos
países com instituições e políticas relativamente saudáveis, houve a possibilidade de reduzir a
“tensão inerente entre uma declaração de prioridades voluntária e definida pelo país e uma
avaliação obrigatória e conduzida externamente sobre sua qualidade e sua viabilidade. (....) o
governo ‘é dono’ de sua estratégia e os doadores ‘são donos’ de suas avaliações
independentes da estratégia e das conseqüentes alocações de ajuda” (BIRD, 2004, p.12).
Graças à disponibilidade das classificações CPIA, a qualidade da assistência
ao desenvolvimento para os países beneficiários da AID atualmente depende
mais da qualidade da governança e das instituições subjacentes do que
simplesmente dos compromissos políticos assumidos pelo governo
beneficiário (Idem, p.13).
Com a “seletividade da ajuda”, isto é, com uma maior assistência concentrada em
países com boa governança e boas instituições, segundo a equipe do Banco, houve a
necessidade também de “compreender como ajudar pessoas de baixa renda em ‘países de
desempenho frágil’ – países com gestão econômica deficiente, corrupção arraigada e
governos que não prestam serviços básicos a suas populações” (Ibidem, p.13).
Em 2002, o Banco Mundial desenvolveu um programa para os países “de baixa renda
em situação de estresse” em parceria com outros doadores que atua em “reformas simples e
explorando mecanismos inovadores para a prestação de serviços sociais” por meio da
296
“promoção de demanda interna e capacidade para a mudança” (Ibidem). Como exemplo é
citado o documento que expõe sobre os “compromissos da Nova Parceria para o
Desenvolvimento da África (NEPAD)”.
É nesse contexto em que foi considerada a necessidade de rever os mecanismos
tradicionais de assistência e em que são propostos os seguintes passos para os doadores:
...prestar mais atenção às condições locais e à identificação do país com o
programa; proporcionar ajuda de maneira a interferir menos nas funções do
governo (concentrando-se mais nas políticas e gastos gerais), incluindo
maior uso de enfoques setoriais (focadas em áreas mais eficazes para reduzir
a pobreza) e abandono das antigas formas de condicionalidades (que tiveram
resultados desapontadores); proporcionar apoio sustentado a políticas e
instituições que promovam a redução da pobreza, de preferência àquelas que
não o fazem (BIRD, 2000c, pp.199-200).
E prossegue indicando que as relações entre doadores e ONGs devem ser mantidas,
pois elas são um “canal eficaz de cooperação” (Idem, p.208).
As instituições financeiras internacionais e outras organizações
internacionais devem continuar seus esforços no sentido de assegurar total
transparência em suas estratégias e ações, além de manter um diálogo aberto
com organizações da sociedade civil, particularmente as que representam os
pobres (BIRD, 2004, p.12).
No geral, o enfoque multidimensional de pobreza procura evidenciar a relação entre
pobreza, educação, saúde, autonomia e poder local. Nesta perspectiva, o nível e o tempo de
escolaridade ou a qualificação profissional, a desnutrição e outras doenças, bem como a pouca
participação política dos pobres, etc. não são causados somente pela pobreza monetária. A
questão da renda se apresenta como uma variável estatística para identificar o pobre e
desaparece enquanto solução para o problema da pobreza. Mestrum (2003) questiona se seria
possível, numa economia de mercado, suprir as necessidades essenciais sem renda – “a
realidade dos países pobres é tal que uma boa saúde e uma formação adequada não dão,
297
necessariamente, acesso a um emprego e a um salário decente” (p.248).
Na abordagem multidimensional da pobreza aplicada pelo Banco Mundial, como foi
visto, vão ser incorporadas mais duas dimensões – a participação dos pobres nas estratégias de
intervenção, dando-lhes mais “autonomia”, e a redução da vulnerabilidade dos pobres frente
aos choques adversos. Neste enfoque, os pobres são vítimas de programas de ajustes mal
implementados, de políticas sociais ineficazes, de instituições fracas e corruptas, de
discriminações, etc. Nesse sentido, é preciso estabelecer políticas que possibilitem a
“autonomia” dos pobres para que, por conta própria, “agarrem” as “oportunidades”
oferecidas pelo mercado. “A melhor política em favor dos pobres não é a que os protege do
mercado, mas a que os incita a dele participar. Sair da pobreza é uma responsabilidade dos
próprios pobres” (Mestrum, 2003, p.249) que devem acumular “capital humano” e social para
serem inseridos no mercado e sair da linha de pobreza. A autonomia a que se refere o Banco
Mundial é restrita à participação nos processos políticos e decisórios locais e no âmbito
produtivo, isto é, autonomia ou liberdade de escolher o que e como produzir.
O tema pobreza sempre esteve presente nas orientações de políticas das organizações
internacionais, mas com diferentes enfoques conceituais e estratégicos. Na concepção
multidimensional da pobreza que está inserida nas “políticas do desenvolvimento do milênio”,
identifica-se a pobreza como fonte potencial de desenvolvimento, necessitando apenas de
oportunidades para deslanchar seus talentos e habilidades. Mas tamm o pauperismo
passa a ser apresentado como “o pivô de uma série de outros problemas que reforçam a
interdependência de todos os países e de todos os seres humanos” (Idem, p.248), tais como a
Aids, as migrações, o crescimento demográfico, a degradação do meio ambiente e o
terrorismo, como identificara Fukuyama (2005). Com isso, a pobreza ganha o status de
ameaça em nível mundial.
298
Sendo uma ameaça internacional, propostas de “luta contra a pobreza” deixa de ser da
competência exclusiva dos governos nacionais e passa a ser uma missão das organizações
internacionais. Todos os aspectos da política interna dos países pobres, por apresentarem
instituições e governança fracas, passam pelo controle das organizações de Bretton Woods.
159
A ideologia do “desenvolvimento do milênio” reforça a ruptura em relação à idéia de
desenvolvimento da nação subjacente ao pacto social do pós-guerra – welfare state nos países
ricos e desenvolvimentismo nos países pobres. Sai da esfera exclusiva dos Estados nacionais e
vai para a esfera global sob o comando dos organismos internacionais. A implementação de
serviços sociais básicos para os setores mais pobres é confiada ao setor privado, às Igrejas, às
associações locais e/ou aos próprios pobres, subsidiada pelo governo, com a tese de que é no
plano micro e com políticas focadas que se terão resultados favoráveis no “combate à
pobreza”.
Conforme disserta o cepalino da atualidade Figueiras (2003):
160
En un mundo globalizado, en el que los pobres se encuentran desconectados
de las principales redes de oportunidades, estas organizaciones intermedias
(Tercer Sector, Ongd, iglesias, universidade e partidos políticos) o puentes
adquieren una importancia inusitada. Finalmente, esta la conexión con el
mercado y el sector privado, que aunque com frecuencia es conflictiva,
tambén representa uma considerable fuente de recursos para enriquecer la
accción colectiva y transformarla en procesos de desarollo (p.258).
159
Em 2005 Paul Wolfowitz assume a Presidência do Banco Mundial. Wolfowitz foi Vice Secretário de Defesa
na administração do presidente George W. Bush em 2001-2005, assumindo atribuições que incluíam o controle
do orçamento e o desenvolvimento de políticas para responder aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Segundo apresentação no site do Banco Mundial, Wolfowitz escreveu extensivamente sobre questões
internacionais, diplomacia e segurança nacional, e foi conselheiro editorial da revista Foreign Affairs.
160
Capital Social y reducción de la pobreza: en busca de un nuevo paradigma”. In: Capítulo VIII. Livro nº 71,
CEPAL (pp.247-357).
299
Essas instituições atuam de forma interventiva local, diretamente nas comunidades, ou
melhor, nas “zonas de pobreza”, substituindo no mundo inteiro “as nações subdesenvolvidas
(...) por indivíduos subdesenvolvidos” (Mestrum, 2003, p.250).
As instituições e a condição de governança dos países tomadores de empréstimos são
centrais nas políticas de combate à pobreza como fatores que vão garantir o resultado das
“políticas de desenvolvimento do milênio” no que concerne ao fortalecimento da sociedade
civil e do mercado e em promover a estabilidade política.
300
4.4 Estado “ativo” e/ou Estado “inteligente”
A nova abordagem sobre desenvolvimento, como foi apontado anteriormente, tem
como idéias centrais as questões das instituições, governança e eqüidade. O que se defende é
que num contexto de liberalização comercial e de muita competitividade, não só a
estabilidade econômica é importante nesse processo de desenvolvimento, mas também (ou
fundamentalmente) a estabilidade política. Assim, as políticas de crescimento econômico e de
desenvolvimento efetivo devem se implementadas integrando as dimensões econômicas,
políticas, sociais e culturais.
Nessa perspectiva, junto com as políticas de crescimento econômico deve-se ter
políticas de desenvolvimento social de forma a ampliar o acesso das camadas sociais mais
pobres à educação, saúde, água potável, saneamento básico, energia elétrica, proteção da
família, e melhorar a eqüidade no sentido de ampliar as possibilidades ou oportunidades de
acesso aos bens coletivos e ao mercado, reduzindo, dessa forma, os possíveis conflitos. Para
isso torna-se fundamental ter-se instituições fortes e uma “boa governança”.
O que a equipe do Banco Mundial vai observar é que as atuais economias ricas
desenvolveram-se sob vários regimes políticos, “desde relativamente liberais (Taiwan, China
e Estados Unidos) até razoavelmente estatizados (Japão, Suécia)” (sic),
161
mas que todas essas
citadas atingiram um determinado patamar de qualidade institucional que garantiu a
estabilidade política e econômica. Nelas se pode observar uma “razoável competência” do
Estado que se faz através do “cumprimento dos direitos de propriedade e contratos, suficiente
fornecimento de bens públicos e limites para a depredação e corrupção dos governos” (BIRD,
161
Provavelmente houve um erro qualitativo entre a China, que apresenta uma economia fortemente estatizada, e
o Japão, com uma economia liberal.
301
2004, p.6). Já os países que possuem “instituições precárias e governança deficiente” são
prejudicados em seu desenvolvimento. Esses países “são prejudicados por políticas mal
planejadas e mal implementadas, infra-estrutura e serviços públicos de baixa qualidade e
abuso do Estado a cidadãos e empresas” (idem).
Para Fukuyama (2005), o “fracasso” da reforma econômica liberalizante nos países
dependentes não foi por causa das medidas do Consenso de Washington, mas por causa das
fracas bases institucionais desses países. Segundo ele, a ênfase na redução da atividade estatal
foi compreendida como corte generalizado na capacidade do Estado. O problema foi que,
embora os Estados devessem ser reduzidos em determinadas áreas, as outras áreas que
precisavam ser fortalecidas não foram. No processo de redução do escopo do Estado, muitos
países reduziram a sua força, enquanto que o caminho ideal para a reforma teria sido reduzir o
escopo e aumentar a força.
162
Os países tomadores de empréstimos não compreenderam
corretamente as medidas impostas pelo FMI. Conforme observa o autor:
De fato, em alguns países, a ausência de uma estrutura institucional
adequada os deixou em situação pior depois da liberalização do que se esta
não tivesse ocorrido. O problema está na incapacidade conceitual básica de
decifrar as diferentes dimensões de estaticidade e compreender como tais
dimensões se relacionam com o desenvolvimento econômico (p.20).
Elabora, então, um quadro analítico das “múltiplas dimensões de estaticidade
(stateness)” em relação às funções, competências e bases para a legitimidade dos governos,
tomando como base os indicadores de governança e a definição das funções do Estado
definidos pelo Banco Mundial,
163
para explicar o motivo pelo qual na maioria dos países “em
162
As definições de escopo das funções do Estado e força são definidas pelo autor mais adiante.
163
Segundo o autor, disponíveis no site do Banco Mundial.
302
desenvolvimento” o Estado é “demasiadamente fraco”.
164
Na sua compreensão, não foram somente os países dependentes que erraram. Para o
autor, os criadores do Consenso de Washington não alertaram sobre os perigos da
liberalização na ausência de instituições apropriadas. “Hoje, fica claro que, naquelas
circunstâncias, uma pequena liberalização pode ser mais perigosa do que nenhuma
liberalização” (Fukuyama, 2005, p.35), a exemplo da Coréia do Sul, no período entre 1996-
97. E novamente o autor chama a atenção pela “assimetria de informação” (Idem).
É claro que a privatização de empresas estatais é uma meta apropriada de
reforma econômica, mas ela requer um alto grau de capacidade institucional
para ser corretamente implantada. A privatização cria inevitavelmente
enormes assimetrias de informação, e é tarefa dos governos corrigirem-nas
(Ibidem, p.36).
Em discurso na Reunião Anual do Banco Mundial e FMI, em 1996, o então,
Presidente do Banco Mundial, James D.Wolfensohn, destacou a corrupção como um sério
obstáculo para o desenvolvimento. Segundo ele:
(...) a comunidade do desenvolvimento em geral vem tentando criar uma
perícia e um conhecimento consideráveis nessa área. (....) existe hoje maior
reconhecimento de que a responsabilidade democrática, a voz e a
transparência são importantes para o desenvolvimento, tanto como fins
quanto como meios. Existe também uma melhor compreensão dos efeitos da
corrupção e da governança precária sobre o clima de investimento (BIRD,
164
Esse quadro analítico é dividido em dois eixos (X e Y), combinando as duas dimensões de escopo e força,
criando uma matriz dividida em quadrantes que teriam conseqüências diferentes para o crescimento econômico.
Por escopo o autor compreende as funções do Estado, que são divididas em três categorias: funções mínimas,
funções intermediárias e funções ativistas. São as seguintes as funções mínimas: corrigir falhas do mercado;
prover bens públicos puros; defesa, lei e ordem; direitos de propriedade; gerenciamento macroeconômico e
saúde pública; melhorar eqüidade; proteger os pobres. Funções intermediárias: cuidar de fatores externos;
educação, meio ambiente; regulamentar monopólios; superar educação imperfeita; seguros, regulamentação
financeira; seguro social. Funções ativistas: política industrial; redistribuição de riqueza (p.25). Por força o autor
define “a capacidade de formular e executar políticas e decretar leis; de administrar com eficiência e com um
mínimo de burocracia; de controlar a politicagem, a corrupção e o suborno; de manter um alto nível de
transparência e responsabilidade nas instituições governamentais; e, mais importante, de fazer cumprir as leis
(Fukuyama, 2005, p.23). Nesses quadrantes o autor situa os países conforme perfil de escopo e força. É
importante destacar que a defesa de Fukuyama ao retorno do Estado-nação, conforme exposto nesta obra, é
realizada “pós 11 de setembro”.
303
2004, p.13).
É o seguinte o perfil de um país com instituições “frágeis” e “governança
insuficiente”, segundo o Banco Mundial (2004):
Os sistemas jurídicos não são eficazes nem previsíveis. Os contratos são
cumpridos apenas de forma precária. O crime é freqüente. A polícia extorque
dinheiro daqueles cidadãos que deveria proteger. Funcionários públicos
roubam os cofres da nação em vez de oferecerem bens públicos. Eles
distribuem contratos, licenças e empregos para seus amigos e aliados
políticos – ou simplesmente os vendem. Exigem propinas por serviços
negando-os aos mais necessitados (p.6).
As instituições frágeis, nessa ótica, não são somente um ônus injusto para os cidadãos,
mas também para o desenvolvimento econômico, pois “agem como um freio para o
crescimento econômico, minando os incentivos do setor privado” (Idem, p.6). Com base no
relatório do Banco Mundial elaborado em conjunto com a Corporação Financeira
Internacional (IFC) – Doing Business -, no qual são quantificados os obstáculos para o
desenvolvimento, a equipe do Banco relata que estima-se que as empresas dos países pobres
enfrentem muito mais encargos regulatórios do que as empresas dos países ricos. Segundo
este relatório: “Elas enfrentam o triplo dos custos administrativos, quase o dobro de
procedimentos burocráticos e atrasos maiores. E têm menos da metade das proteções de
direitos de propriedade dos países ricos” (BIRD, 2004, p.6).
Os resultados são mercados disfuncionais, pressões competitivas débeis e
setores privados dependentes de favorecimentos do governo e da corrupção.
Os incentivos estão desalinhados de modo que indivíduos empreendedores
‘investem’ seu tempo e seus recursos competindo por subsídios do sistema
político. As normas sociais formam-se em torno do clientelismo, captação de
renda e competição partidária em vez de coesão social e progresso (Idem,
p.7).
304
O resultado desse relatório do Banco Mundial (2004) em conjunto com a Corporação
Financeira Internacional (IFC) fundamenta a idéia da equipe do Banco de que “o colapso na
governança, o desgaste das instituições e a decomposição da coesão social estão geralmente
associados à queda radical dos padrões de vida”. Nesse sentido conclui: “A forte
regulamentação e os frágeis direitos de propriedade impedem os pobres de fazer
negócios” (p.7).
O que se deve fazer, segundo a nova abordagem do desenvolvimento, é identificar nas
especificidades de cada país as restrições que mais comprometem o desenvolvimento e os
melhores mecanismos de política para superá-las. Estas restrições não são inerentes somente
ao âmbito econômico e institucional, mas também ao âmbito social. Esta abordagem entende
que “o contexto de um país ultrapassa as circunstâncias econômicas e institucionais”, nesse
sentido, para o Banco Mundial, deve-se reconhecer o valor instrumental do contexto
social.
As políticas e os projetos devem levar em conta as normas formais e
informais de uma sociedade, valorizar sistemas e instituições – ou correr o
risco de fracassar no tratamento dos principais determinantes da pobreza. As
análises que servem de base às políticas e projetos devem fugir dos limites
disciplinares tradicionais e levar em conta as interações das circunstâncias
sociais, políticas e econômicas (BIRD, 2004, p.08).
Na concepção de Kliksberg (2000), os objetivos finais do desenvolvimento estão
relacionados com a ampliação de oportunidades reais para os seres humanos desenvolverem
suas potencialidades: “Una sociedad progresa efectivamente cuando avanzan los indicadores
clave, como cantidad de años que vive la gente, calidad de sua vida y desarrollo de su
potencial” (p.22). Nesse sentido, nas discussões sobre desenvolvimento, foi enfatizada a
necessidade de não confundir os meios com os fins nas definições dos objetivos finais do
desenvolvimento – “desvío en el que se sugiere que se há caído com frecuencia” (p.21).
305
Nessa perspectiva, os meios definidos em uma política econômica para o
desenvolvimento devem estar entrelaçados com os fins que seriam “fortalecer a eqüidade”
entre as camadas sociais, oportunizando o acesso aos bens sociais, educação e saúde,
principalmente, para manter uma estabilidade política.
Assim, para o autor, a exacerbada insegurança no âmbito do trabalho e as tensões
provenientes dos resultados sociais que produz o capitalismo mundializado põem em risco a
governabilidade, limitam a capacidade de legitimação das políticas governamentais e de
obtenção do consenso em medidas inovadoras; afastam as possibilidades de investimento
exterior pelo risco de instabilidade política.
A sensação de ‘exclusão forçada’ que transmite a amplos setores da
sociedade gera neles uma baixa de credibilidade nos setores governantes.
Assim, perdem legitimidade as principais instituições representativas:
presidência, congresso, partidos políticos, grupos de poder relevantes. A
desconfiança em relação a tais instituições, com uma sensação de que há um
‘jogo sujo’ com poucos ganhadores e muitos perdedores, sob regras
duvidosas, reduz seriamente as margens de governabilidade efetiva.
Numa realidade do final de século, em que os cenários da economia
internacional se modificam continuamente, exigindo respostas adequadas
dos governos em termos de políticas inovadoras, é limitada a possibilidade
de os governos de sociedades desiguais poderem introduzi-las com o
respaldo social necessário. Sua margem de manobra para a inovação está
fixada por sua escassa credibilidade e capacidade de cooptação. Por outro
lado, os elevados graus de tensão latentes em sociedades com alta
desigualdade criam permanentes tendências à instabilidade política e à
incerteza, com efeitos negativos em diversos níveis, como o investimento
(Kliksberg, 2002b, p.24; grifo nosso).
Com isso, para Tomassini (In: Kliksberg & Tomassini, 2000), a questão da
“governabilidade” passou a ser o centro das preocupações de muitos países. Segundo o autor:
Las crisis de gobernabilidad han pasado a ser una amenaza permanente de
los sistemas democráticos. (....) La gobernabilidad de la democracia pasa por
un reequilibrio entre el mercado, la sociedad y el Estado, el gran desafío
del futuro. Es por eso que en lugar de la definición que los organismos
financieros internacionales proporcionaban acerca de la gobernabilidad en la
época del Consenso de Washington, como la capacidad de los gobiernos
para asegurar los equilibrios macroeconómicos, la sanidad fiscal y el control
de la inflación, personalmente ya desde esa época yo consideraba que dicho
306
fenómeno consistía en la capacidad de los gobiernos para atender en
forma equilibrada las demandas por el crecimiento económico, la
equidad social y la participación democrática formuladas por la
sociedad civil y la ciudadanía (Tomassini, In: Kliksberg & Tomassini,
2000, p.97; grifo nosso).
A tendência de os países dependentes entrarem em uma “crise de governabilidade”
levou os intelectuais orgânicos do capital a discutirem a mudança na conceituação de
“governança” e a pensarem em novas estratégias de intervenção do governo.
165
Em
contraposição à noção até então dominante, centrada exclusivamente em princípios de
eficácia econômica, sugere-se a participação de outros “atores” além das instituições estatais.
A idéia de governança sustentada pelos organismos multilaterais nos anos 1970-1990, focada
na gestão da estabilidade econômica, passa a vincular o desenvolvimento social e a
participação democrática de todos os envolvidos nas decisões, visando à estabilidade política.
Durante o Primeiro Fórum Social Mundial em 2001, a UNESCO promoveu um debate
em torno da idéia de “governança democrática”, enfatizando a inclusão dos princípios da
democracia, do respeito aos direitos humanos e às culturas locais, da participação dos atores
da sociedade civil no processo de negociações, da distribuição do poder e da descentralização
da gestão, como dimensões essenciais de uma governança democrática. Segundo Oliveira (In:
Milani, Arturi e Solinís, 2002), as discussões no seminário “Democracia e Governança
Mundial”, “sob inspiração dos imperativos éticos da UNESCO, (....) debateu a necessidade de
dar um conteúdo mais substantivo à noção de governança, tradicionalmente equiparada à boa
gestão sobre o processo de tomada de decisões e à eficácia na gestão de políticas (‘boa
governança’), incorporando no processo outros atores além das instituições estatais” (Oliveira
165
Já para Fiori (1998), a expressão “governabilidade” não se trata de um conceito, mas de “uma categoria
estratégica cujos objetivos imediatos podem variar segundo o tempo e o lugar, mas que será sempre e
irremediavelmente situacionista” (p.39).
307
(In: Milani, Arturi e Solinís, 2002, p.7).
166
No âmbito da literatura acadêmica a expressão governança é definida, “grosso modo”,
como “um processo complexo de tomada de decisão que antecipa e ultrapassa o governo”. Os
aspectos mais evidenciados neste processo de tomada de decisão estão relacionados:
...à legitimidade do espaço público em constituição; à repartição do poder entre
aqueles que governam e aqueles que são governados; aos processos de
negociação entre os atores sociais (os procedimentos e as práticas, a gestão das
interações e das interdependências que desembocam ou não em sistemas
alternativos de regulação, o estabelecimento de redes e os mecanismos de
coordenação); e à descentralização da autoridade e das funções ligadas ao ato
de governar (Milani & Solinís, 2002, pp.163-164).
Na concepção de um “desenvolvimento sustentável”, a boa governança incorpora as
idéias de democracia participativa e insere a busca de um equilíbrio entre um Estado
“planejador” e um Estado “mínimo”.
Kliksberg (2002a) explica que durante algumas décadas o “pêndulo” esteve situado na
idéia de um Estado planificador e executor do desenvolvimento nacional, mas que na prática
este Estado não obteve êxitos.
Na prática, esta visão mostrou graves dificuldades em sua própria
concepção, subestimando ou marginalizando a sociedade civil em suas
múltiplas expressões, e na implementação efetiva, cuja máquina revelou
sérias ineficiências, além do caráter centralizado da gestão que se
demonstrou um fator crucial de rigidez e muito distante das exigências da
realidade (p.39).
166
Introdução da obra Milani, Arturi & Solinís (Orgs). “Democracia e Governança Mundial: que regulações
para o século XXI?”. Porto Alegre/RS: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.
308
Depois, continua o autor, o “pêndulo girou na direção oposta, para aquela que
postulava a necessidade de um ‘Estado mínimo’”, mas também sem apresentar resultados
favoráveis ao desenvolvimento.
Afirma-se que suas funções deveriam ser totalmente mínimas e que se
deveria deixar o desenvolvimento entregue ao mercado e à ‘mão invisível’.
O Estado foi sentido como um estorvo para a dinâmica a ser impulsionada.
Enfatizou-se a existência de uma antinomia entre Estado e mercado.
Finalizou-se um ativo processo de ‘demolição’ do estado nos países em
desenvolvimento (...) Tratou-se, em muitas ocasiões, de privatizar e eliminar
funções, no mais curto prazo (...). Também, como no caso anterior, este
enfoque apresenta de forma implícita uma subestimação a outras expressões
da sociedade civil, que não fossem nem o Estado e nem o mercado como a
amplíssima gama de estruturas criadas pela comunidade para cumprir
funções essenciais para ela (Kliksberg, 2002a, pp.39-43).
Concluindo, então, o autor coloca que a experiência histórica demonstrou que os dois
pólos não levaram às soluções que se buscava. E queveremos um período de reconstrução centrado
numa cabal concepção de Estado, na correta classe de cooperação entre o governo, a força trabalhista e
o empresariado”. E continua:
O mercado não facilita uma distribuição da renda que seja socialmente
aceitável. A intervenção do Estado, portanto, é legítima, quando se trata
de equilibrar a distribuição de renda produzida pelo mercado (...). A
igualdade de oportunidades e, em certa medida, de resultados, constitui
não apenas um preceito ético, mas também uma necessidade imperiosa,
porque cada vez são maiores as evidências de que a excessiva desigualdade
provoca o conflito social... (Idem, p.43; grifo nosso).
O “conceito” de “Estado inteligente” é definido na obra de Kliksberg & Tomassini
(2000) e difundido em outras obras de Kliksberg. Este “conceito” reside, segundo os autores,
em evidências históricas recentes de sociedades que conseguiram “avanços mais consistentes
nas últimas décadas” ao superar “a falsa antinomia Estado versus mercado”, através do
desenvolvimento de “um esquema de cooperação entre os principais atores sociais, e
(integrando) ativamente neste esquema as importantes forças latentes na sociedade civil, que
309
ambos os pólos tendiam a marginalizar” (Kliksberg & Tomassini, 2000, p.44).
Para Kliksberg (2000b), um “Estado inteligente”:
Não é mínimo, nem ausente, nem de ações pontuais de base assistencial, mas
um Estado com uma ‘política de Estado’, não de partidos, e sim de
educação, saúde, nutrição, cultura, orientado para superar as graves
iniqüidades, capaz de impulsionar a harmonia entre o econômico e o social,
promotor da sociedade civil, com um papel sinergizante permanente (p.48).
Segundo o autor (2002a):
Nestes esquemas identifica-se que, entre Estado e mercado, existe uma
ampla gama de organizações, que inclui, entre outras, os ‘espaços de
interesse público’, entidades que cumprem fins de utilidade coletiva, mas
que não fazem parte do Estado nem do mercado (....). Trata-se, na nova
concepção, de se ‘somar’ as funções-chave (...). Nesta perspectiva, é
imprescindível levar a cabo o esforço de reconstruir um Estado que venha
a cumprir com as novas demandas que se apresentam, que possa
combinar-se harmoniosamente com as forças produtivas privadas para
obter o melhor resultado para o país, e que seja um fator promotor e
facilitador de desenvolvimento de uma sociedade civil cada vez mais
articulada, forte e ativa (pp.44-45; grifo nosso).
Para Tomassini (In: Kliksberg & Tomassini, 2000), o tema sobre o Estado nos últimos
anos tem-se convertido em “el símbolo y a piedra de toque de un falso debate ideológico
(p.96) entre aqueles que atribuem aos outros uma nostalgia do Estado de bem-estar,
desenvolvimentista e grande, e que acusa os neoliberais comprometidos com o fim ou
desaparecimento do Estado.
Para ele o Estado de bem-estar respondeu às circunstâncias históricas daquela época.
Hoje este Estado já não responde às novas realidades. Essas novas realidades exigem:
Un Estado más pequeño, pero también más estratégico, asociativo, abierto al
mercado y a la sociedad civil, y defensor de la equidad social y la igualdad
de oportunidades. Esto exige no solo un Estado más eficiente, sino un Estado
inteligente y desburocratizado, que traspase las fronteras que históricamente
lo han separado de la sociedad civil y la ciudadanía, capaz de insertar su
acción dentro del mercado, que ejerza bien sus funciones privatizadoras y
reguladoras, y promueva activamente la igualdad de oportunidades en
310
estrecha asociación con las organizaciones sociales y con la ciudadanía
(Tomassini, In: Kliksberg & Tomassini, 2000, p.96).
Kliksberg expressa bem a concepção de Estado que foi sendo difundida a partir de
meados da década de 1990. Frente aos “fracassos” das concepções de um “Estado de bem-
estar” e de um “Estado-mínimo” torna-se fundamental repensar o papel do Estado e formular
políticas que propiciem a formação, do que ele denominou, de um “Estado Inteligente”.
Fukuyama (2005), em consonância com esta tendência conceitual, defende que os países
dependentes, ou melhor, “em desenvolvimento” devem construir um Estado “menor, porém
mais forte”. Para o autor: “Eles não necessitam de Estados extensos, mas sim de Estados
fortes e eficazes, com escopo limitado às funções necessárias” (p.156), sem definir quais
seriam ou a quem serviria.
Essa concepção de Estado foi incorporada pelo Banco Mundial, como também pelos
demais organismos multilaterais, e introduzida nas orientações de políticas para o
desenvolvimento do milênio, mas denominada pela equipe do Banco de “Estado ativo”. Na
concepção da equipe do Banco Mundial (2004), um “Estado ativo”, que significa “eficiente e
competente”, vai atuar como um agente complementar das atividades e necessidades dos
mercados, isto é, ajudando aos “mercados funcionarem de forma eficiente” e cobrindo os
“hiatos” deixados por eles e tratando dos fatores externos.
Estado e mercados são realmente complementares. A iniciativa privada
operando por meio do mercado é o principal motor do crescimento
econômico sustentado. Mas manter esse motor funcionando e garantir que
ele impulsione a redução da pobreza exige um Estado ativo em duas áreas-
chave.
Primeiramente, o governo precisa garantir que o clima de investimento seja
propício ao crescimento (....).
Segundo, o governo precisa investir nas pessoas e empoderá-las,
especialmente as de baixa renda (BIRD, 2004, p.05).
311
A tarefa do Estado não deve ser mais a de promover diretamente o desenvolvimento.
Essa tarefa agora cabe ao mercado. Ao Estado cabe ser o facilitador do desenvolvimento em
parceria com o mercado, administrando os riscos e a pobreza.
Na ótica do Banco Mundial (2004) essa complementaridade entre o Estado e o
mercado deve se dar com o Estado oferecendo um “ambiente adequado” para o mercado
“explorar as energias produtivas”, o que implica: “garantia de direitos de propriedade e de
contratos, manutenção da estabilidade política e macroeconômica, fornecimento de bens
públicos e o uso (eficiente) de regulamentação e serviços públicos” (p.05). Enfim, criar um
regime regulatório que atue juntamente com os mercados para promover a competição, em
um ambiente macroeconômico estável, que gere certeza para a ação dos investidores
provados. Segundo o Banco, se o Estado não oferecer este “ambiente” adequado para o
mercado produtivo, corre-se o risco de tornar a iniciativa privada fragilizada e, com isso,
desviar-se para a captação de rendas ou outras atividades socialmente improdutivas.
A “comunidade do desenvolvimento”, segundo o Banco Mundial, reconheceu que o
desenvolvimento exige Estados eficazes e competentes, não para possuir e operar fábricas,
mas para ajudar os mercados a funcionarem de forma eficiente. Um mercado eficiente
conforme nos indica a equipe do Banco é aquele que encontra um ambiente “eficiente” e
“adequado” à exploração, que mesmo sendo dentro de um patamar de superexploração, como
tem ocorrido, ele vai encontrar neste ambiente um Estado “eficiente”, ou melhor, “ativo” ou
“inteligente”, que vai encobrir seus “hiatos” (ou isso ou nada).
Nessa ótica, a função do Estado, além de propiciar um ambiente eficiente para a
exploração e encobrir os hiatos deixados pelo mercado, é propiciar o aumento das
capacidades dos pobres, de forma a possibilitar que eles participem das oportunidades geradas
pelo mercado, isto é, não sejam “excluídos” dos benefícios e possibilidades produzidos e
gerados pelo mercado. Para isso o Estado deve propiciar e incentivar a participação dos
312
pobres nas políticas de acesso à educação, saúde e proteção social, não como garantia de seus
direitos sociais, mas para que não haja desperdícios de “recursos potencialmente produtivos”.
Nessa concepção, a “exclusão” social, política e econômica, que pode ser de várias naturezas
(relacionadas, não somente à pobreza, mas também às práticas discriminatórias – sexo, etnia,
raça, religião ou status social), além de geradora de conflitos, desperdiça “recursos
potencialmente produtivos”.
No entanto o mercado, para o Banco Mundial (2000c), pode ter suas falhas. E quando
isso ocorre e, principalmente, atinge os pobres, as conseqüências dessas falhas devem ser
abrandadas em colaboração com a sociedade civil, até a normalização do “equívoco”,
conforme expresso em seguida:
Mercados que funcionam bem geram oportunidades para que os pobres
escapem da pobreza. Porém, estabelecer esses mercados onde eles não
existem, fazer com que operem melhor e assegurar um acesso livre e justo
para os pobres são tarefas difíceis e demoradas. Às vezes, as reformas de
mercado fracassam inteiramente ou têm conseqüências imprevistas para os
pobres (gerando) ganhadores e perdedores. E quando estes últimos incluem
os pobres, cabe às sociedades a obrigação de ajudá-los a atravessar a
transição (p.77).
Nessa perspectiva, a sociedade civil, isto é, as organizações da sociedade civil –
“participativas”, “idôneas” e “responsáveis”, - em parceria com o Estado, devem ajudar aos
pobres lançando “os alicerces institucionais para que os grupos cooperem com vistas ao bem
comum” (BIRD, 2000c, 77). O Estado, com o poder de aumentar a receita e aplicá-la como
instrumento de redistribuição, desempenha um papel central na prestação de serviços básicos
e na infra-estrutura, e este pode ser complementado “por mecanismos de mercado, pela
sociedade civil e pelo setor privado (...). E, em relação à prestação de serviços locais, a
mobilização dos pobres e das comunidades pode exercer poderoso impacto sobre a eficiência”
(Idem, p.39).
313
O aumento da participação dos pobres no desenvolvimento e a redução de
barreiras sociais são complementos importantes da criação de um contexto
no qual eles tenham maiores oportunidades e segurança. Essa emancipação é
promovida pelo fortalecimento das instituições sociais, aumentando a
capacidade dos pobres e dos socialmente desfavorecidos para fazer frente à
estrutura de poder da sociedade e expor seus interesses e aspirações (BIRD,
2000a, p.136).
A mobilização dos pobres e das comunidades, através do fortalecimento de suas
instituições sociais,
167
com a ajuda do setor privado e das organizações da sociedade civil,
propicia a exposição de seus interesses e aspirações, aumenta sua capacidade de participar das
oportunidades geradas pelo desenvolvimento produtivo e tecnológico. Dessa forma, os pobres
podem ingressar no mercado de forma autônoma, com liberdade de ação e de escolha sobre o
que e como produzir. Conforme expresso no Relatório 2000/2001 (2000a):
As normas e redes sociais são formas importantes de capital que as pessoas
podem usar para sair da pobreza. Assim, é importante colaborar com os
grupos que representam os pobres e aumentar seu potencial, vinculando-os
com organizações intermediárias, mercados mais amplos e instituições
públicas (p.10).
A modernização do Estado explícita na idéia de desenvolvimento do milênio, no
contexto de hegemonia do capitalismo globalizado, não altera a concepção de Estado-mínimo
neoliberal dos anos 1970-90, nem as políticas de descentralização e de participação das
organizações da sociedade civil, muito menos as políticas econômicas.
A “novidade” está na idéia de fortalecer e estreitar o vínculo entre as esferas política,
econômica e social em prol de uma ação estratégica conjunta de enfrentamento dos
inevitáveis “problemas sociais” conseqüentes dos efeitos da globalização, principalmente nos
167
“Por instituições sociais entendem-se os sistemas de parentesco, as organizações locais e as redes dos pobres”
(BIRD, 2000c, p.134).
314
países que possuem fraca base institucional. Conclama-se um Estado forte para os países que
apresentam instituições fracas, com governança competente, transparente e participativa. A
“boa governança” é difundida como ampliação e fortalecimento da democracia, uma forma de
promover a “autonomia” das camadas mais pobres, dando voz e poder de decisão sobre a
definição de suas necessidades. Isto é, promovendo a “liberdade de escolha” e ampliando as
possibilidades de “igualdade de oportunidade” (de inserção no mercado) das camadas
desfavorecidas de “capital humano” desenvolve-se capacidade produtiva e alivia-se a
condição de pobreza.
Trata-se de dividir com a classe de trabalhadores os riscos da governança num mundo
altamente competitivo e desigual.
A “construção” de Estados (Fukuyama) “inteligentes” (Giddens) ou “ativos” (Banco
Mundial) incorpora teses da “teoria do capital social” com suas abordagens institucional e
educadora de Estado. Enquanto gerador de prosperidade, de bem-estar social e agente de
promoção da elevação da consciência cívica de seus cidadãos, o Estado deve impulsionar
políticas que visem a: estabelecer estabilidade política, reduzir conflitos, instaurar uma
harmonia solidária entre as esferas econômica, política e social, instituir um tipo de economia
de mercado mais humanizado. A eficácia da implementação de tais políticas, nesta ótica,
requer uma sociedade civil “forte”, “organizada” e “participativa”, com as organizações da
sociedade civil atuando mais direta e efetivamente no âmbito microssocial, disseminando
valores de solidariedade e de cooperação entre os indivíduos e as classes sociais.
Nessa perspectiva, para combater a pobreza no contexto do capitalismo globalizado do
novo milênio é fundamental “reforçar o capital social dos pobres”. O “capital social” vai se
apresentar como um mecanismo indispensável ao desenvolvimento sustentável. Nesta
concepção de desenvolvimento difundida pelos principais organismos multilaterais, o
investimento em “capital humano” deve estar associado ao investimento em “capital social”
315
para não ser desperdiçado os recursos humanos de baixo grau de competitividade.
O sentido de “capital social” que insere as “políticas de desenvolvimento do milênio”
está relacionado aos valores e normas culturais característicos de uma organização social
cívica. Nessa ótica, a coesão social e a confiança entre seus membros e suas instituições vão
contribuir para aumentar a eficiência e os resultados das políticas sociais de combate à
pobreza, pois nesta concepção “os laços de confiança interpessoal” e as “redes de
cooperação” facilitam a efetivação de ações coordenadas entre os níveis locais, nacionais e
globais, para que o pobre seja capacitado a superar, por si mesmo (ou de forma “autônoma”),
sua condição de pobreza.
A tese é a de que investindo no capital social é possível aumentar a produtividade e de
alguma forma inserir as camadas mais pobres da população no mercado e reduzir sua
condição de pobreza. Enfim, é possível manter a superexploração da parcela mais pobre da
classe trabalhadora e ainda torná-la um grupo de consumidor atraente para o mercado externo
e interno.
316
4.5 UNESCO e a Educação para o desenvolvimento do milênio
A enorme mudança no mundo que propiciou ao capitalismo e à democracia liberal
uma forma mais concretamente global, com o colapso do bloco soviético, fortaleceu a tese de
Francis Fukuyama de que chegamos ao “fim da história”, de que não há outra alternativa
econômica viável para o “mercado livre”, conforme observa Anderson (1992). A
superioridade no desempenho produtivo e econômico e a fartura de consumo do Ocidente
arrastaram “governantes e governados (...) para o seu campo de força” (p.109). Mas a questão
colocada pelo autor é: “que espécie de níveis de consumo [essas pessoas] podem esperar
da mudança?”.
A UNESCO (2005) considera que a ênfase dada ao vínculo entre pobreza e
desenvolvimento mostrou à comunidade internacional que para acabar com as “privações e a
impotência” das camadas mais pobres a proteção do meio ambiente é central para o futuro do
mundo. E que: “O equilíbrio desta equação (reduzir a pobreza e proteger o meio ambiente) é o
principal desafio do desenvolvimento sustentável” (p.39).
Trata-se da questão colocada por Anderson (1992) sobre a falácia de que países em
processo de desenvolvimento podem atingir níveis de desenvolvimento nos moldes dos países
centrais. Os níveis satisfatórios de desenvolvimento econômico alcançados por alguns países
e regiões provocam uma tensão em relação à preservação ambiental. E, por outro lado, a
polarização entre as nações também tensiona as relações internacionais, já observável em
alguns países centrais, com o contingente cada vez maior de imigrantes que busca usufruir
dessas condições de consumo.
Considerando o largo distanciamento das condições realmente propícias de as nações
mais pobres atingirem um patamar de desenvolvimento de “primeiro mundo”, não só pela
impossibilidade de sustentabilidade de recursos naturais e do meio ambiente, sobretudo, pelas
317
condições de dependência econômica e tecnológica, a condição de pobreza de um
significativo contingente populacional é, de fato, uma ameaça em nível mundial.
Assim, alguns ajustes são necessários para conter as tensões que emergem com o
aprofundamento da polarização entre as nações, tais como, aliviar a condição de pobreza que,
frente às condições naturais postas pelo autor e ao caráter contraditório que constitui o modo
de produção capitalista, na sociedade capitalista é perene.
Em meio à pobreza, que é inacabável no contexto das sociedades capitalistas, e a
escassez de matéria prima, para equilibrar a equação – redução da pobreza + proteção
ambiental -, que é um grande desafio, segundo a UNESCO, a educação torna-se um fator
essencial. Nesse sentido, em dezembro de 2002, a Assembléia Geral das Nações Unidas,
proclama a Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável,
2005-2014, através da Resolução nº57/254. E a UNESCO é incumbida de traçar as diretrizes
da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS), em consonância com os marcos
referenciais que fundamentam os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”. Em 2005 é
publicado no Brasil o Plano Internacional de Implementação da EDS como um instrumento
de mobilização, difusão e informação para estimular mudanças de atitudes e comportamentos
na sociedade mundial para se viver sustentavelmente.
Conforme expresso no documento:
O objetivo global da Década é integrar os valores inerentes ao
desenvolvimento sustentável em todos os aspectos da aprendizagem com o
intuito de fomentar mudanças de comportamento que permitam criar uma
sociedade sustentável e mais justa para todos (UNESCO, 2005, p.17).
A educação é concebida não só como prioritária, mas indispensável no enfrentamento
dos desafios que são postos, tais como: pobreza, consumo desordenado, degradação
ambiental, decadência urbana, crescimento populacional, desigualdades de gênero e raça,
318
conflitos e violação de direitos humanos. E sua função é prover valores, atitudes, capacidades
e comportamentos essenciais para confrontar esses desafios, em suas várias dimensões,
aplicados a todas as pessoas e envolvendo todos os “atores” que fazem parte do governo, de
organizações da sociedade civil, não-governamentais e de setores privados, com o apoio da
mídia e das agências publicitárias.
O programa da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS) é dedicado a
“todas as partes do mundo, nos países em desenvolvimento e industrializados e na mesma
medida”, pois a preocupação com o consumo excessivo e o desperdício que caracterizam
alguns modos de vida é uma “preocupação global”, igualmente aplicáveis e urgentes
(UNESCO, 2005, p.66).
São definidos os seguintes “papéis-chave para a educação”:
A educação deve inspirar a crença que cada um de nós tem o poder e a
responsabilidade de introduzir mudanças positivas em escala global.
A educação é o principal agente de transformação para o
desenvolvimento sustentável, aumentando a capacidade das pessoas de
transformarem sua visão de sociedade em realidade.
A educação incentiva os valores, comportamentos e estilos de vida
necessários para um futuro sustentável.
A educação para o desenvolvimento sustentável é um processo em que
se aprende a tomar decisões que levem em consideração o futuro em
longo prazo de igualdade, economia e ecologia de todas as
comunidades.
A educação fortalece a capacidade de reflexão orientada para o futuro
(pp.43-44).
319
O documento enfatiza os três pilares do desenvolvimento sustentável ratificados na
Cúpula de Joanesburgo, em 2002
168
, sociedade, meio ambiente e economia, que vão dar
forma e conteúdo ao aprendizado sustentável. Estes pilares são concebidos como áreas
interdependentes, fundamentados na dimensão cultural. “A cultura, que consiste no modo de
ser, de se relacionar, de se comportar, de acreditar a agir, que diferem de acordo com o
contexto, a história e a tradição, no âmbito da qual o ser humano vive sua vida” (UNESCO,
2005, p.39).
169
São assim definidos os pilares do desenvolvimento sustentável:
Sociedade: a compreensão das instituições sociais e do papel que
desempenham na mudança e no desenvolvimento, assim como nos
sistemas democráticos e participativos que dão a oportunidade de
expressar opiniões, eleger governos, criar consensos e resolver
controvérsias.
170
Meio ambiente: consciência dos recursos e da fragilidade do meio
ambiente físico e dos efeitos das atividades e decisões humanas sobre o
meio ambiente, com o compromisso de incluir as questões ambientais
na elaboração das políticas sociais e econômicas.
Economia: consciência em relação aos limites e ao potencial do
crescimento econômico e seus impactos na sociedade e no meio
ambiente, com o compromisso de reduzir os níveis de consumo
individual e coletivo, em relação à preocupação com o meio ambiente
e a justiça social (Idem, pp.38-39).
168
A Cúpula de Joanesburgo, em 2002, ampliou o conceito de desenvolvimento sustentável e ratificou as metas
educacionais, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e do Plano de Ação do Fórum Mundial sobre
Educação para o Desenvolvimento Sustentável, e a Assembléia Geral das Nações Unidas, na sua 57ª Sessão,
realizada em dezembro de 2002, proclamou o período de 2005-2014.
169
O documento esclarece que “questões culturais estão também vinculadas ao desenvolvimento econômico por
meio da renda que as manifestações culturais podem gerar, da arte, da música, da dança, assim com o do
turismo”, tomando cuidado para que tais manifestações culturais comercializadas não virem “simples objeto de
curiosidade para turistas” (p.40).
170
Para Fukuyama (2005), a democracia, além de seu valor legitimador, também tem um papel funcional na
governança: “boa governança e democracia não são separadas com tanta facilidade. Uma boa instituição estatal é
aquela que, de forma transparente e eficiente, atende às necessidades dos seus clientes – os cidadãos do Estado”
(p.45). No entanto, o autor adverte que em áreas como política monetária deve ser protegida de “pressões
políticas democráticas de curto prazo”, a exemplo dos bancos centrais (idem). A “boa” democracia pensada por
Fukuyama deve ser aquela restrita a criação de consensos, que possibilite legitimar e a proteger, neutralizando
politicamente, as medidas políticas econômicas.
320
Na perspectiva econômica, coloca-se que a questão da pobreza é um ponto central do
elemento econômico, mas que não pode ser entendida sem relacionar as outras dimensões:
social, ambiental e cultural, pois a economia de mercado, na forma como se apresenta
atualmente, “não protege o meio ambiente e não beneficia metade da população mundial”
(UNESCO, 2005, p.56). Daí que: “Um desafio básico é a criação de sistemas globais de
governança que harmonizem o mercado mais efetivamente com a proteção ambiental e os
objetivos de igualdade” (Idem).
As ações dos “sistemas globais de governança”, ainda na perspectiva econômica,
consiste em avançar no desenvolvimento de tecnologias que aumente a eficiência da energia
com o uso de fontes de energias renováveis; estimular programas de reciclagem de matérias-
primas e de redução do consumo e do desperdício; estimular a tomada de consciência
equilibrada das forças econômicas e financeiras através de programas de responsabilidade
social, entre outras. Mas é a ação educativa como parte do sistema econômico “mais amplo”
e influenciada pelos padrões de oferta e demanda do mercado que vai regular o meio
ambiente e influenciar as normas e o funcionamento do mercado.
A Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS), segundo o documento da
UNESCO (2005), capacita “o aprendiz a adotar práticas e comportamentos que incentivem o
desenvolvimento sustentável tanto individual como coletivamente” (p.56), habilitando-o “a
exigir que as empresas adotem práticas comerciais transparentes e mais responsáveis” (p.55).
Embora a EDS exija que seja reexaminada a política educacional, “no sentido de
reorientar a educação desde o jardim de infância até a universidade e o aprendizado
permanente na vida adulta para que se esteja claramente enfocado na aquisição de
conhecimentos, competências, perspectivas e valores relacionados com a sustentabilidade”;
que se faça uma revisão dos objetivos e conteúdos dos currículos, “para desenvolver uma
compreensão interdisciplinar da sustentabilidade, social, econômica, ambiental e cultural”,
321
assim como metodologias; seu foco não está somente nos sistemas de ensino.
Argumenta-se que se deve “fomentar as competências necessárias” para o
desenvolvimento sustentável que inclui “habilidades relacionadas ao pensamento crítico e
criativo, à comunicação oral e escrita, à colaboração e cooperação, à gestão de conflitos, à
tomada de decisões, às soluções de problemas e planejamento, ao uso apropriado das TICs
(tecnologias de informação e comunicação) e à cidadania prática” (UNESCO, 2005, p.57),
através da “aprendizagem durante toda a vida”.
171
O enfoque na “aprendizagem durante toda a vida” ou na “educação permanente”,
segundo a UNESCO (2005), oferece meios de trazer oportunidades educacionais para um
maior número de “aprendizes, desde mulheres da área rural até adolescentes não-
escolarizados, desempregados e aposentados” (p.59). Há a compreensão de que, no geral, este
tipo de aprendizagem, seja organizado pelo Estado, pelas organizações não-governamentais,
pelas comunidades seja pelos próprios “aprendizes”, tem um enfoque mais prático e
funcional, reporta-se às questões de relevância local, aspectos que “encaixam facilmente” com
as preocupações relativas ao meio ambiente.
Os espaços de educação para o desenvolvimento sustentável, além do setor da
educação formal e do setor não-informal que envolvem as organizações comunitárias,
sociedade civil local e o próprio local de trabalho, também devem incorporar as organizações
sociais, econômicas e ambientais, lucrativas ou beneficentes, “para que o desenvolvimento
sustentável se torne a base para padrões de trabalho diários e comportamentais das
organizações”, ou será perdida quando as pessoas entrarem no mundo do trabalho (UNESCO,
171
Conforme o documento da EDS: “O conceito de aprendizagem por toda a vida considera a aprendizagem
formal, não-formal e informal como um processo contínuo e interativo, afastado da noção de que o
estabelecimento escolar é o local onde a criança aprende, o que supõe que o processo de aprendizagem cesse
quando a criança sai da escola” (p.58).
322
2005, p.61).
Segundo o documento da UNESCO (2005), a proclamação da Década vai dar
oportunidade aos países “em desenvolvimento” de definirem um tipo de desenvolvimento
diferenciado dos modelos procedentes dos países industrializados que “não são nem
adequados nem desejados” na atual conjuntura.
Conforme expresso no documento: “Fundamentando-se na firme adesão aos
valores da comunidade e na solidariedade, os países em desenvolvimento têm a
possibilidade de conceber – e de modelar – enfoques alternativos viáveis para o
desenvolvimento sustentável” (Idem, p.67; grifo nosso).
Esta benesse proclamada pelas agências multilaterais de dar oportunidade aos países
“em desenvolvimento” de modelar um enfoque alternativo de desenvolvimento, remete-nos
aos impasses e as correlações de forças em torno do Protocolo de Kyoto.
172
Até o momento
não se conseguiu que a totalidade dos países industrializados acordasse com o Protocolo. Os
Estados Unidos que respondem por 42,6% das emissões dos gases, o maior índice entre os
países industrializados contra, por exemplo, 1% emitido pelo Brasil, são os mais resistente ao
172
O documento da UNESCO não deixa de lembrar que em 1992 alguns países aderiram à Convenção Marco
das Nações Unidas sobre Mudança Climática, com a finalidade de reduzir o efeito do aquecimento global e
enfrentar o aumento inevitável da temperatura. Em 1997, houve um adendo a esse tratado, que inclui medidas
restritivas de caráter jurídico, denominada de Protocolo de Kyoto.
O Protocolo de Kyoto foi concluído em 11 de dezembro de 1997, em Kyoto, no Japão. O documento impõe a
redução das emissões de seis gases causadores de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento do planeta: CO2
(dióxido de carbono ou gás carbônico), CH4 (metano), protóxido de nitrogênio (N20) e três gases flúor (HFC,
PFC e SF6). As reduções variam segundo as emissões dos países industrializados: -6% para Japão e Canadá, 0%
para Rússia, -8% para 15 países da União Européia, -21% para Alemanha, - 12,5% para Grã-Bretanha, -6,5%
para Itália, 0% para França, +15% para a Espanha. Estas reduções, que não serão simples, devem ser calculadas
sobre a média 2008-2012 em comparação com os níveis de 1990. Os países do sul têm obrigação apenas de fazer
um inventário. O tratado determina a diminuição do uso de energias fósseis, como carvão, petróleo e gás, que
representam 80% destas emissões. O consumo destes combustíveis aumenta com o crescimento econômico.
(fonte:cetest.com.br). O custo do processo de redução desses gases é elevado. Uma solução para este problema
foi a criação do comércio de Créditos de Carbono. São títulos pagos por empresas, órgãos multilaterais ou
governos que estariam autorizados a substituir, em determinadas proporções, suas próprias obrigações por
reduções realizadas em outros países. Trata-se de um mercado em expansão, que vem ganhando em
complexidade e amplitude, gerando novos títulos, inclusive futuros.
323
Protocolo. O presidente americano, George W. Bush retirou-se das negociações sobre o
protocolo em 2001, alegando que a sua implementação prejudicaria a economia do país.
173
No
entanto, muito recentemente, o Presidente Bush se pronunciou em relação ao Protocolo de
Kyoto e vem propagando preocupação em relação às mudanças climáticas nocivas.
174
Enfim, a UNESCO integra, junto com outros organismos multilaterais, os Objetivos do
Desenvolvimento do Milênio com a função de implementar o processo educativo para o
desenvolvimento do milênio. Seguindo os marcos referenciais, o programa EDS visa ao
envolvimento de todos os níveis da comunidade neste processo educativo: local, nacional,
regional e global de forma entrelaçada com as áreas relacionadas ao desenvolvimento
sustentável – sociedade, meio ambiente, economia e cultura. Defende que a EDS deve estar
enraizada no nível local – com o objetivo de se dirigir à realidade das pessoas comuns – e
deve fornecer ao contexto global os meios de se lidar com estes fenômenos”. Assim, expõe o
documento, “as maiores tensões da globalização, visíveis e articuladas mundialmente,
encontrarão ecos nos problemas que as pessoas enfrentam e nas soluções que elas podem
encontrar” (UNESCO, 2005, p.83; grifo nosso). Considera-se que a efetividade do programa
será julgada pelo grau de mudança na atitude e comportamento na vida das comunidades e
dos indivíduos no nível local. Isto é, no quanto de soluções que os indivíduos conseguiram
encontrar para os seus problemas.
Definidos o papel de cada “ator”, do nível local ao global, o destaque é para as
empresas e organizações da mídia, incluindo as organizações da sociedade civil e as
organizações não-governamentais que, na concepção da Unesco, constituem uma “força
173
Segundo documento da Cetest-rio: O governo Bush considera o tratado "fatalmente fracassado". Um dos
argumentos é que não há exigência sobre os países “em desenvolvimento” para reduzirem as suas emissões.
Bush disse ser a favor de reduções por meio de medidas voluntárias e novas tecnologias no campo energético.
174
Notícias veiculadas nas principais mídias brasileiras em janeiro/fevereiro de 2007. Acredita-se que no centro
desta preocupação está o intenso crescimento econômico da China.
324
potente na educação das comunidades” (UNESCO, 2005, p.90). Segundo o documento, as
empresas e organizações da mídia devem ser trazidas ainda na fase do planejamento da EDS
em nível nacional para ajudar, “com sua experiência e competência, a formular as principais
mensagens do desenvolvimento sustentável” (Idem). Tais propagandas devem envolver
personalidades públicas nas campanhas publicitárias, a fim de assegurar um consenso global
em torno do desenvolvimento sustentável.
Assumindo a função de direção intelectual e moral das “políticas de desenvolvimento
do milênio” a Unesco implementa várias estratégias para “educar o consenso” (Neves, 2005).
Para legitimar o discurso de crescimento e desenvolvimento econômico e social nos
países dependentes diante do impasse criado pelo aumento da “pobreza em meio à
abundância”, como colocara o Banco Mundial, mas não da abundância de matéria prima,
como adverte Anderson, mas da abundância na capacidade produtiva foi necessário construir
novos mecanismos de hegemonia. Sobre o manto da solidariedade, da ética e da consciência
cívica global proclama-se a “Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável” com
a “retórica” de oportunizar aos países dependentes um novo tipo de desenvolvimento
diferenciado dos modelos dos países industrializados, uma vez que estes modelos “não são
nem adequados nem desejados” na atual conjuntura.
Conforme observaram Marx e Engels, o capitalismo constituído de uma necessidade
incessante de revolucionar seus instrumentos de produção (seja material ou intelectual) para
manter as relações de produção cria uma dinâmica nas relações sociais, de constante
necessidade de objetivar os novos elementos que inserem os ajustes necessários ao processo
de acumulação de riquezas. Trata-se, na concepção de Gramsci, da tarefa educativa e
formativa do Estado – Estado Educador – com a finalidade de criar permanentemente novos
tipos de civilização e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades do
contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de produção. Esta adequação da civilização
325
configura um processo de “conformismo social” – educar para o conformismo.
Sendo a gênese do Estado capitalista um Estado de classe, mas que já não mais impõe
coercitivamente sua “religião”, dialeticamente a este processo permanente de renovação e de
ajustes necessários à acumulação do capital se dao as lutas para as massas se libertarem “das
ideologias parciais e falazes” e a disputa constante pela hegemonia.
Compreendendo que no processo de luta pela hegemonia, a classe dominante procura
permanentemente formar uma “unidade ideológica”, cimentando e unificando um
determinado modo de pensar, de sentir e de agir no mundo em todo o bloco histórico - “Os
pensamentos da classe dominante são, também, em todas as épocas, os pensamentos
dominantes”, Marx -, entende-se que os processos de definição e de implantação das
“políticas de desenvolvimento do milênio” estão diretamente vinculados ao plano
superestrutural, o que torna essencial para o entendimento de seu conteúdo enquanto
mecanismo de despolitização e de conformismo, isto é, enquanto um processo educativo para
o conformismo.
326
5 CONCLUSÃO
A utopia está no horizonte...
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe jamais alcançarei.
Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.
Eduardo Galeano
O processo de globalização revelou-se, no limiar da virada para o novo milênio,
imanentemente problemático pelas conseqüências sociais que deflagra. O padrão de
desenvolvimento econômico introduzido nos anos 1970 que combina crescimento e uma taxa
extraordinária de desemprego provocou mudanças substanciais nos níveis de emprego e de
remuneração, na organização do capital e do trabalho, resultando na precarização do trabalho,
no aumento da pobreza, do desemprego e do subemprego. O quadro de tensões que se
constituiu nos últimos anos da década de 1990 provocado pelo elevado custo social
conseqüente da reestruturação produtiva neoliberal já não era mais exclusivo dos países
periféricos. Cresceram também nos países ricos movimentos sociais anti-globalizantes.
Assim, para que a nova divisão internacional do trabalho se realize com êxito,
demandam-se mecanismos de intervenção extra-econômicos que exigem ajustes no
redimensionamento da função do Estado, em seu sentido amplo. E é nesta perspectiva de
introduzir outros mecanismos para ajustar as condições necessárias à produção e à reprodução
do capital que se instauram as “políticas de desenvolvimento do milênio” com novas bases
ideológicas.
327
Nas “políticas de desenvolvimento do milênio” outros aspectos são considerados como
variáveis críticas no processo de desenvolvimento econômico: o político e o institucional. As
bases da reestruturação produtiva - globalização e “livre mercado” - são mantidas e
concebidas como irreversíveis, mas o papel do Estado sofre, novamente, outros ajustes. Os
intelectuais orgânicos do capital, sob a direção dos principais organismos multilaterais,
chegam à conclusão de que o “fracasso” das medidas econômicas neoliberais dos anos 1990
foi provocado pelas fracas bases institucionais dos países pobres e não pelas orientações
contidas no Consenso de Washington. A concepção de Estado-mínimo difundida pela
ideologia neoliberal, agora, é concebida como falta de capacidade institucional dos países,
principalmente os mais pobres, em administrar a “questão social”, ou melhor, no ponto de
vista do capital, os “problemas sociais”. Esta falta de capacidade administrativa que gera
pobreza e instabilidade política tornou-se não só uma questão nacional de competitividade no
mercado globalizado, mas principalmente uma questão internacional de primeira ordem. A
pobreza passa a ser uma ameaça mundial.
Foi este o cenário político-social identificado no decorrer desta pesquisa. Se por um
lado contatou-se o triunfo ideológico e político do neoliberalismo, por outro foi possível
identificar que novas expressões da “questão social” provocaram a necessidade de as classes
dominantes renovarem seus mecanismos de hegemonia de função de direção intelectual e
moral.
Voltando ao que foi colocado por Chesnais, a difusão ideológica do termo
globalização carregada de um otimismo apaixonado pelas enormes possibilidades de
acumulação da riqueza que as novas tecnologias e um mercado livre podiam proporcionar,
livre das amarras de um Estado centralizador, burocrático e ineficiente, ocultou, mas não por
muito tempo, o duplo movimento de polarização: uma polarização interna - provocada pelos
efeitos do desemprego e do distanciamento dos rendimentos salariais, tendo em vista a
328
ascensão do capital monetário e da destruição das relações salariais estabelecidas; e uma
polarização internacional - provocada pela distância entre os países situados no âmago do
oligopólio mundial e os países da periferia.
Não que os mentores e os implementadores das políticas macroeconômicas neoliberais
não tivessem conhecimento de tal possibilidade de polarização. Tanto tinham conhecimento
que é a partir dessa perspectiva que o tema “administração da pobreza” entra em cena (Leher,
1998; Chesnais, 1995).
A tarefa de administrar a pobreza, nesse contexto, se põe como um desafio. Ela não
está mais vinculada às idéias de um Estado de bem-estar social e nem desenvolvimentista. A
concepção evolucionista que insere a idéia de desenvolvimento não podia ser mais sustentada
no contexto da ideologia da globalização. Tinha-se, também, a clareza da incapacidade de os
países periféricos, mesmo aqueles potencialmente competitivos, passarem para o estágio de
plenamente desenvolvidos na acepção do capital, nos moldes dos países centrais capitalistas.
A ideologia da globalização na forma pela qual foi difundida inicialmente encobre a
problemática em torno da idéia de desenvolvimento nacional. Assim, o desafio posto para as
elites dominantes foi administrar a pobreza evitando possíveis conflitos frente às enormes
possibilidades de acumular riqueza.
Conforme colocara Amin (2003), os países periféricos possuem uma gigantesca
reserva de trabalhadores desqualificados e empregados em atividades de fraca produtividade
que é combinada com uma crescente desigualdade na distribuição de renda. Com isso, seria
impossível expandir as atividades produtivas modernizadas absorvendo esta gigantesca
reserva de trabalhadores, o que impede um pleno desenvolvimento econômico nesses países.
Esta colocação de Amim estaria próxima da visão de Oliveira (2003): “As determinações mais
evidentes dessa contradição residem na combinação do estatuto de rebaixamento da força de
trabalho com dependência externa” (p.143).
329
Sob outro ângulo, Anderson (1992) vai apontar que a incapacidade de os países
periféricos atingirem o padrão de “desenvolvimento” da população que vive nos países mais
desenvolvidos está condicionada às conseqüências ecológicas. Para o autor, não existem
recursos suficientes no planeta para dar sustentabilidade às necessidades de consumo da
população mundial, principalmente se estas necessidades se pautarem nos padrões de
crescimento e consumo dos países desenvolvidos. Nesse sentido, afirma o autor: “o privilégio
de uns poucos, requer a miséria de muitos, para ser sustentável” (p.110).
A mundialização transformou países em territórios econômicos abertos; economias
nacionais em reservas de mão-de-obra barata e de recursos naturais; propiciou a
superexploração da gigantesca reserva de força de trabalho nos países periféricos, já
acumulada historicamente e agora ampliada com a elevação nas taxas de desemprego, da
jornada de trabalho e da precarização dos trabalhadores. Retomando o ponto de vista de
Carcanholo (2005), a superexploração do trabalho foi (e tem sido) a única forma de os países
dependentes obterem produtividade.
No contexto de implementação da ideologia neoliberal, o Estado é eliminado enquanto
agente econômico e reduzido através das privatizações e dos cortes nos gastos em políticas
sociais, e passa a se configurar em zonas, seja em zonas de pobreza seja de mercado conforme
a capacidade de governabilidade de cada país.
Como observado, foi através do Fundo Social de Emergência (FSE) implementado
pelo Banco Mundial nos anos 1980 que a retirada do Estado dos setores sociais foi sancionada
“oficialmente” e a tarefa de “administrar a pobreza” passou a ser executada pelas
organizações da sociedade civil com o patrocínio deste Fundo (Chossudovsky, 1999). Para
legitimar tal ação propagam-se a ineficiência e o risco de se manter um Estado centralizador e
interventor, sob a ameaça da liberdade econômica e da democracia; dissemina-se a idéia de
que a sociedade civil representada pelas organizações não-governamentais ou “terceiro setor”
330
é que deveria assumir a tarefa de responder às demandas sociais no lugar das organizações do
Estado (burocrático e ineficiente) ou do mercado, enquanto uma esfera “pública”, porém
“não-estatal”, situada entre o Estado e o mercado.
A retirada da responsabilidade do Estado em responder a “questão social” foi
compensada com a ampliação do sistema privado mercantil nas áreas da previdência social,
da saúde e da educação e filantrópico-voluntário (terceiro setor),
175
atuando junto às camadas
mais pobres através de programas de investimento no capital humano e de aumento da
produtividade de forma a amenizar os riscos inerentes à dinâmica do mercado.
Deve-se ressaltar que a pobreza dos anos 1980-1990 já não era mais vista como uma
ameaça à propagação do comunismo e não estava mais condicionada ao desenvolvimento da
nação. Com isso, as políticas de “administrar a pobreza”, definidas nesse período pelo grupo
do Banco Mundial para os países dependentes, não estavam mais voltadas ao investimento em
infra-estrutura, mas para políticas compensatórias focalizadas nas camadas mais pobres da
população e direcionadas para estabelecer a eqüidade no sentido de igualdade de
oportunidades para a inserção no mercado.
Compreendia-se que a existência e a persistência da pobreza pautavam-se na
desigualdade de acesso às necessidades básicas e na incapacidade de o indivíduo atingir um
padrão de vida mínimo, de consumo e de renda, em conseqüência de fatores culturais. O
Estado deveria intervir para que todos tivessem acesso à educação, nutrição e saúde de forma
a que todos estivessem na mesma linha de partida cujo resultado iria depender do mérito e do
esforço de cada um. Conforme o “Esquema de Ação de Combate à Pobreza” do Relatório de
1990 do Banco Mundial, as políticas sociais de “alívio” à pobreza devem ser voltadas para o
investimento no capital humano dos pobres; para a ampliação da prestação de serviços
175
Montaño (2002).
331
sociais, seja público, privado seja público-privado; além de constituir um padrão de
crescimento por meio do uso eficiente e intensivo dessa mão-de-obra (desqualificada).
No entanto, o que se verificou no decorrer da difusão e implementação das políticas
sociais e macroeconômicas neoliberais dos anos 1970-90 foi que: a “luta contra a pobreza”
conduzida pelo Banco Mundial implicou o desmantelamento das proteções sociais
conquistadas; o investimento no capital humano dos pobres e o uso intensivo da mão-de-obra
abundante, porém desqualificada, não foram fatores nem de crescimento nem de redução da
pobreza, conforme defendia sua equipe.
Contrariamente ao que fora difundido, eqüidade, igualdade de oportunidades e
desenvolvimento de capital humano como mecanismos de redução da pobreza, o que se
constatou foi um intenso e extenso aumento da desigualdade e da pobreza formando, tanto nos
países periféricos como nos países centrais, o que Limoeiro-Cardoso denominou de “zonas de
pobreza”. O cenário posto pela globalização foi bem definido por Hobsbawm (2003) quando
ele observa que muitos países ricos se viram obrigados a se acostumarem com a visão diária
de mendigos e desabrigados nas ruas. “O reaparecimento de miseráveis sem teto era parte do
impressionante aumento da desigualdade social e econômica na nova era” (p.395).
Como fora observado, todo esse quadro político e econômico que resultou no aumento
da pobreza e da desigualdade e na precarização do trabalho suscitou uma reação
antiglobalizante e provocou algumas tensões políticas. No encontro em Davos em 1996, as
elites corporativas e financeiras expressaram preocupação em relação à possibilidade de uma
crescente onda antiglobalização que poderia produzir impactos destrutivos nas atividades
econômicas e na estabilidade social de muitos países. Antes desse encontro em Davos, chefes
de Estado e representantes de agências multilaterais já tinham manifestado preocupações em
relação ao aumento da pobreza no mundo, da taxa de desemprego e de uma possível
desintegração social, o que pode ser verificado no encontro da “Cúpula Mundial de
332
Copenhague” em 1995, mas também em outros encontros e nas pautas e documentos das
agências multilaterais.
Nos anos finais da década de 1990, a pobreza acentuada e as altas polarizações entre
países e entre classes são vistas como um risco à coesão social, pois prejudicam o crescimento
econômico e produzem uma “perda de credibilidade nos governos democráticos”, causando
instabilidade política. As tensões relativas à contradição inerente ao processo de globalização
passaram a fazer parte permanentemente das pautas de reuniões das elites corporativas e
financeiras, dos governos integrantes da ONU e das agências multilaterais. Na virada para o
novo milênio, o mundo se apresenta como um mundo livre e aberto às possibilidades
produtivas e à acumulação de riquezas, sustentado por uma miséria crescente e pela
degradação do meio ambiente num ritmo acelerado e devastador.
A promessa de que com ummercado livre” e respaldado nos avanços tecnológicos a
extraordinária possibilidade de acumulação de riquezas se “derramaria” para o conjunto da
população, chegando aos setores mais pobres e trazendo benefícios globais, não se realizou.
Ao contrário, além de não concretizar o crescimento global prometido, ela veio acompanhada
de mais miséria ainda. Muitos intelectuais orgânicos do capital chegam à conclusão de que a
determinação do FMI para os países dependentes de abertura de seus mercados condicionada
com recursos para sanar as crises de curto prazo tornou-se mais um problema do que uma
solução.
Cresce nessa ocasião um movimento de crítica e autocrítica em relação às orientações
de políticas macroeconômicas implementadas pelo FMI e atreladas aos financiamentos do
Banco Mundial para os países dependentes (no caso específico dos países da América Latina
a base dessas políticas constava no Consenso de Washington). As autocríticas são restritas à
forma pela qual o FMI conduziu as políticas econômicas neoliberais de modo impositivo (ou
até mesmo imperialista, como colocou Stiglitz), sem considerar as especificidades políticas,
333
institucionais e culturais dos países tomadores de empréstimos. Nesse momento buscam-se
saídas para os problemas postos em conseqüência dessas políticas.
Eclode uma série de estudos sobre a problemática e uma seqüência de reuniões com
representantes de governos e organismos internacionais visando a definir mecanismos que
poderiam amenizar os efeitos negativos do processo de reestruturação produtiva. A partir de
então, fortalecem-se as idéias de que no contexto do capitalismo globalizado a relação entre o
econômico e social é muito mais complexa, coexistindo uma “inter-relação básica” entre as
dimensões econômica, social e política.
E é nessa perspectiva de mudanças estratégicas de intervenção que a discussão sobre
desenvolvimento é retomada. No entanto pretende-se que a concepção de desenvolvimento
esteja em outras matrizes que não nas orientações macroeconômicas “convencionais”, uma
vez que estas não concebem as políticas e as instituições como fatores determinantes para o
desenvolvimento de uma sociedade. Mas que também não caberia no atual estágio do
capitalismo um modelo de desenvolvimento nos moldes realizados no contexto do welfare
state ou do desenvolvimentismo. Conforme foi colocado pela equipe do Banco Mundial, com
a derrocada do bloco socialista é possível fazer uma análise crítica dos erros cometidos nos
anos 1980-90 e aprofundar o entendimento sobre processo de desenvolvimento, considerando
outras dimensões políticas, institucionais e culturais no processo de abertura comercial dos
países dependentes.
A retomada da “teoria do desenvolvimento” no contexto da globalização como uma
estratégia de reajuste estrutural acaba por incorporar novos elementos, a ressignificar e a até
ampliar velhos conceitos. A idéia de desenvolvimento sustentável que passa a ser a expressão
dessa nova “ideologia do desenvolvimento globalizado” não se restringe ao formato produtivo
que busca reduzir o impacto da produção no meio ambiente, como fora difundida nos anos
1980. Para além das questões ambientais no âmbito da preservação da natureza, o processo de
334
desenvolvimento sustentável é compreendido, segundo o Banco Mundial, numa perspectiva
mais ampla e complexa, enfatizando-se a existência de uma relação recíproca e entrelaçada
entre os diversos campos.
Assim que a concepção de desenvolvimento sustentável na perspectiva
multidimensionada tomou corpo teórico e político, as “críticas” que foram feitas ao modelo
economicista incorporado no processo de abertura dos mercados nos países dependentes e à
forma “imperialista” pela qual o FMI conduziu a implantação dessas políticas tornaram-se
irrelevantes. E com isso, constrói-se o pensamento de que a estagnação do crescimento
econômico e o aumento da pobreza e da desigualdade nesses países, registrados no período
entre 1980-2000, não foram causados pelas orientações contidas no Consenso de Washington,
entre outras orientações, e nem pela forma “imperialista” de conduzir a abertura do mercado
nesses países. Tais medidas e procedimentos não estavam incorretos. O “fracasso” das
medidas econômicas neoliberais dos anos 1990 deu-se pela ineficiente governança desses
países que são constituídos de fracas bases institucionais, e que ainda se equivocaram no
processo de abertura do mercado, nos anos 1980-90, em relação à concepção de Estado-
mínimo (Fukuyama, 2005). Nesse sentido, os intelectuais orgânicos do capital chegam à
conclusão de que o reajuste estrutural necessário para o desenvolvimento do milênio deve ser
conduzido de forma a fortalecer as bases institucionais e modernizar o Estado.
A falta de capacidade institucional em “administrar a pobreza” se tornou uma questão
internacional de primeira ordem e a pobreza ganha status de ameaça em nível mundial. Nessa
ótica, Estados fracos ou ‘fracassados’ ou ‘incompetentes’, além de não conseguirem instituir
um mercado atraente, seguro, representam uma ameaça à ordem e à segurança mundial por
constituírem fontes de muitos problemas graves, tais como a pobreza, as drogas, a AIDS, etc.
Pós 11 de setembro a pobreza não só ameaça a estabilidade econômica dos países centrais
como também a estabilidade política. Conforme adverte Fukuyama (2005), a pobreza é um
335
campo fértil para a procriação do terrorismo.
Tendo em vista este quadro ameaçador, torna-se urgente assegurar a coesão social
introduzindo novas estratégias de ajuste estrutural e superestrutural. Esta mudança estratégica
é vista de forma irônica por Fukuyama (2005), pois abala o domínio intelectual dos
economistas, “que se viram tirando a poeira de livros de cinqüenta anos de idade sobre
administração pública” (p.40). Mas também faz com que o ideólogo do “fim da história”
conclame o retorno do Estado-forte.
Na nova concepção de desenvolvimento que atravessa o século e integra as metas e
objetivos de desenvolvimento do milênio, Estado, sociedade civil e mercado devem atuar em
parceria e em prol de um crescimento econômico com desenvolvimento social local. Ao
desafio que é posto diante das contradições que se estabelecem entre as novas expressões da
“questão social” e a intensa capacidade produtiva e tecnológica do atual estágio do
capitalismo, propõe-se que seja estabelecida uma relação social “sem inimigos” (Giddens),
sem conflitos de classes, ou “inteligente” (Kliksberg), cooperativo, superando a “falsa
antinomia: Estado - mercado”.
O Estado deve ser “forte” e “ativo” (Banco Mundial). Forte no sentido de dar
sustentabilidade política e legal ao processo de abertura comercial, tornando-se atraente para o
investimento externo, ampliando a margem de produtividade e competitividade através da
redução dos custos da produção, e conduzindo políticas que venham a fortalecer o mercado e
a garantir suas operações. Ativo no sentido de coordenar ações em parceria com o privado
visando a amenizar os custos sociais resultantes desse processo, com políticas focadas nas
camadas mais pobres da população, sejam elas compensatórias ou voltadas para promover a
capacitação produtiva desta camada. Conforme visto anteriormente nas pesquisas realizadas
pelo Banco Mundial (2000c) foi evidenciado que “as instituições que garantem os direitos de
minorias e oferecem oportunidades para a solução de conflitos neutralizam os efeitos
336
colaterais de sociedades polarizadas” (BIRD, 2000c, p.52).
Nessa nova abordagem de desenvolvimento, a concepção de pobreza restritamente
pautada na renda que era predominante nos anos 1980-90 é superada e passa a ser
compreendida, também, nos moldes da multidimensionalidade. O pobre não é pobre somente
porque não possui uma renda que permita um padrão mínimo de consumo, mas, sobretudo,
porque possui educação, saúde, participação cívica, meio ambiente e segurança pobres,
conforme colocara o Banco Mundial. A renda é uma variável estatística para identificar o
nível e situação de pobreza – relativa/ absoluta ou pobre/indigente ou miserável -, mas já não
é mais o único indicador de sua superação.
Tem, nesta abordagem, uma forte influência de Amartya Sen em sua concepção de
desenvolvimento como um “processo de expansão das liberdades fundamentais”. Para Sen, o
desenvolvimento exige a eliminação das principais fontes de “privação da liberdade”, como
pode ser a pobreza, a discriminação de todo tipo, as restritas liberdades públicas ou políticas.
É a partir das liberdades que se consegue gerar desenvolvimento. O processo de
desenvolvimento econômico deve ser concebido como a expansão das capacidades da pessoa
em superar as restrições e carências, que nem sempre ou necessariamente são de cunho
material. A questão da renda deve ser associada à capacidade da pessoa em usar a renda.
Segundo o autor, superando as restrições e carências ampliam-se as oportunidades de vida e
com elas a liberdade de escolha.
Daí o argumento de modernizar o Estado, tornando-o mais cooperativo aos mercados.
O mercado, nesta concepção, é uma esfera importante para os pobres, pois gera crescimento
econômico e com ele possibilita a expansão de oportunidades, não só (ou não mais) de
inserção no mercado através de um emprego, mas fundamentalmente a expansão de
“oportunidade de vida” para esta camada social, mas de vida produtiva, de sobrevivência.
337
No entanto, segundo esta nova concepção de desenvolvimento, para gerar
oportunidades para os pobres é preciso gerar “desenvolvimento humano” e isso não pode ser
tarefa somente de um mercado em bom funcionamento. Segundo o Banco, a sociedade (não
só a local ou nacional, mas também a sociedade global) deve ajudar ao pobre a superar os
obstáculos que impedem sua participação no mercado de forma livre e eqüitativa, e a
promover o desenvolvimento social. O obstáculo, nessa concepção, é cultural. Nesse sentido,
a sociedade civil como um todo deve, de forma solidária e civicamente consciente, estimular a
participação dos pobres nos ativos sociais disponíveis na sociedade, necessários ao
“desenvolvimento humano”, e capacitá-los ao ingresso no mercado, tornando-os produtivos.
Assim, para combater a pobreza no contexto da globalização não basta investir em capital
humano, mas fundamentalmente em capital social.
As idéias geradas em torno da concepção de capital social, como foram vistas, se
baseiam em relações de solidariedade, entre pessoas ou grupos, e se referem tanto ao âmbito
institucional e de poder como ao âmbito socioemocional. Nos campos institucional e de poder
a produção de capital social está relacionada ao nível de qualidade da governança de uma
determinada sociedade, que envolve: o grau de confiança que a população e os diferentes
setores têm nas instituições sociais em geral (pública, privada, público-privado), a sua
capacidade de formar associações (de cunho corporativo, religioso ou de parentesco; formais
e informais) e o grau de consciência e participação cívica de seus membros. No âmbito
socioemocional, a produção do capital social está relacionada ao nível de qualidade dos bens
socioemocionais e sua disponibilidade para a população em geral, que são relativos aos
“estoques pessoais de ativos” - educação, saúde, saneamento básico, meio ambiente, entre
outros, e à capacidade de formação de redes solidárias e de construção de um ambiente social
harmonioso e confiável.
338
O investimento em capital social, na esfera das políticas macroeconômicas, segundo
os vários estudos que fundamentaram esse ponto de vista nas “políticas de desenvolvimento
do milênio”, propicia a constituição de uma base institucional e cultural adequada ao
enfrentamento das condições econômicas e sociais dadas na atual etapa do capitalismo
globalizado, de forma que os países mais pobres possam se beneficiar das possibilidades de
acumulação de riquezas que este mundo propicia. E no âmbito das políticas focalizadas, é
preciso proporcionar o acesso das camadas mais pobres da população à educação e à saúde de
“qualidade”; dar espaço para que eles tenham voz junto às instituições públicas, para que os
benefícios das políticas de combate à pobreza cheguem, de fato, aos pobres e atendam as suas
reais necessidades; proporcionar a inserção no mercado, aumentando a capacidade produtiva
da comunidade na qual está inserido, conforme vocação produtiva do grupo. É preciso superar
as condições que privam os pobres de empreender suas capacidades (“privação de
capacidade”, Sen ou “distribuição de possibilidades”, Giddens).
Partindo da concepção de produzir capital social, o Banco Mundial define três frentes
para combater a pobreza: promover oportunidade de ingresso no mercado, plena participação
nos processos políticos e decisórios locais, gerando “autonomia” para os pobres aumentarem a
produtividade e melhorar a segurança – oportunidade, autonomia e segurança.
Isso exige, na explicação do Banco, que o governo, a sociedade civil, o setor privado e
os próprios pobres empreendam ações nessas três frentes. Para tanto, tornar-se necessário
compreender os fatores determinantes da pobreza. Para esse entendimento, o Banco sugere
que se raciocine em termos de recursos (recursos humanos, naturais, físicos, financeiros e
sociais), dos seus rendimentos ou de sua produtividade e da volatilidade dos rendimentos.
Para sua equipe, deve-se ter clareza de que os rendimentos não dependem somente do
comportamento do mercado, mas também do desempenho das instituições estatais e sociais,
das forças políticas e sociais.
339
Enfim, a pobreza não só impede o crescimento e o desenvolvimento do país, mas
fundamentalmente, torna-se uma ameaça aos países mais ricos. É nesta perspectiva que para
o Banco Mundial a “pobreza em meio à abundância é o maior desafio que o mundo enfrenta”
e declara ter assumido a missão de combater a pobreza “com paixão e profissionalismo,
colocando essa luta no centro de todas as suas atividades” (BID, 2003, p.19). Frente aos
desafios sociais deflagrados pela globalização neoliberal, os intelectuais orgânicos do capital
concluem que a produção de capital social, com a reciprocidade dos enfoques institucional e
socioemocional, é um mecanismo central na geração de benefícios econômicos.
Sintetizando as orientações dos principais organismos multilaterais, para um país
atingir um nível ideal de capital social e, dessa forma, beneficiar-se das vantagens econômicas
propiciadas pela globalização é necessário tomar as seguintes medidas:
Fortalecer as bases governamentais, de forma a gerar uma gestão transparente e
mais eficiente, no sentido de garantir os direitos de propriedade e assegurar o
cumprimento dos contratos de negócios; fortalecer os laços de confiança entre os
vários setores; reduzir a corrupção, propiciando uma estrutura mais atraente para
os investidores e confiável para os doadores; reduzir o desperdício dos gastos
públicos com a descentralização das políticas sociais, principalmente aquelas
focadas no combate à pobreza;
Reduzir a distância entre as camadas sociais propiciando um ambiente social mais
solidário, não-conflitivo, de forma a envolver todos os cidadãos no controle dos
ativos sociais e na formação de redes solidárias voltadas para o aumento das
oportunidades produtivas do pobre e para a sua inserção no mercado, através da
formação de cooperativas produtivas, do acesso a mini-créditos, entre outras.
340
Fortalecer as instituições sociais (sistemas de parentesco, organizações locais e
redes dos pobres), visando à emancipação dos pobres, no sentido de propiciar o
aumento da capacidade de expor seus interesses e aspirações frente à estrutura de
poder da sociedade – “dar voz” - e reduzir barreiras sociais. Considera-se que a
relação entre as associações cívicas e as instituições públicas resulta em melhores
desempenhos produtivos e sociais e promove o crescimento econômico.
Superar as deficiências culturais, historicamente herdadas e reproduzidas por
gerações, através do acesso à educação básica, à saúde, enfim, aos ativos sociais,
dando condições ao pobre de desenvolver sua capacidade de participar de forma
ativa do desenvolvimento humano e social e dos benefícios gerados pelo
desenvolvimento econômico.
Construir um ambiente social coeso e harmonioso, fundado nos princípios de
participação cívica, igualdade política, sentimentos de solidariedade, confiança e
tolerância, formando estruturas sociais de cooperação em vários níveis: local,
nacional, regional e global.
O que se constata é que a “teoria do capital social”, bem como outras “teses” que a
integram, introduz novos mecanismos de hegemonia com a função de direção intelectual e
moral da sociedade, visando a dar sustentabilidade ideológica à continuidade das políticas
econômicas neoliberais no novo milênio. A objetivação da tentativa de recuperar a
hegemonia neoliberal encontra-se nas “políticas de desenvolvimento para o novo milênio”.
Para consolidar as novas bases superestruturais da ideologia neoliberal foram desenvolvidos
mecanismos de legitimação nos âmbitos local, nacional e global, implicando em novos ajustes
políticos e institucionais.
341
Esses mecanismos de legitimação serão destacados em seguida, com relação às
mudanças “conceituais” e interventiva; à formão de uma rede de ação global para educar o
pobre aos novos tempos, através da formação de estruturas sociais de cooperação em nível
internacional, nacional e local.
1) Mudanças “conceituais” e interventivas:
O enfrentamento de uma realidade onde os postos de trabalho foram reduzidos
significativamente mais o triunfo ideológico e político neoliberal fizeram com que alguns
elementos fossem cimentados no senso comum dos trabalhadores, do tipo: não há trabalho.
Nesse contexto, forma-se uma atmosfera que colabora com a naturalização do quadro de
precarização do trabalho e que favorece a implementação de um conjunto de políticas ditas
necessárias para dinamizar e fortalecer o mercado visando à superação da crise. Com isso,
uma parte dos trabalhadores aceita a condição de que não tem emprego nos padrões
anteriores: carteira assinada, fundo de garantia, previdência, etc.; os mais jovens já não
buscam este tipo de trabalho, porque acreditam que há possibilidade de se obter maiores
rendimentos atuando de forma autônoma, a serviço de várias empresas; outros ainda buscam
desenvolver habilidades e competências que os possibilitem disputar os poucos empregos
disponíveis; alguns tantos aceitam qualquer ocupação, seja na forma terceirizada ou
cooperativada; outros engrossam as fileiras dos concursos públicos, na esperança de
conquistar uma estabilidade empregatícia, mesmo na condição de salários menores. Como
coloca Gentili (2002): “alguns sobreviverão, outros não” (p.54).
Como fora constatado por Boron e Ianni, a ideologia neoliberal penetrou no senso
comum da massa de trabalhadores. No entanto, identificou-se que nos anos finais da década
de 1990 alguns conceitos chaves remanescentes do processo de difusão do neoliberalismo já
não estavam mais oferecendo a coerência necessária à reprodução de suas políticas. O
conceito de empregabilidade, por exemplo, que foi utilizado nos anos 1990 para dar coerência
342
aos elementos que permitiam superar a crise do desemprego, “com a redução dos encargos
patronais, a flexibilização trabalhista e a formação profissional permanente” (Gentili, 2002,
p.52), mediante o aumento das taxas de desemprego e da pobreza, do subemprego e da
precarização do trabalho perdeu sua função. O mesmo ocorreu com a “tese” de investimento
no capital humano.
No caso brasileiro, as teses difundidas pelos intelectuais orgânicos do capital de
“investimento em capital humano” e da “empregabilidade” dinamizaram o mercado
educacional nesse período e favoreceram a implementação de políticas de democratização do
ensino básico. Constatam-se, nesse período, a expansão, principalmente no setor privado, de
cursos em nível superior, de cursos de qualificação e especialização, a ampliação da demanda
educacional em níveis sempre mais elevados e o crescimento do nível educacional da
população, concomitante com as maiores taxas de desemprego nos grupos sociais com mais
instrução e mais jovens.
Nesse período, como se pode verificar, a educação escolar brasileira apresentou um
quadro de melhora. A taxa de analfabetismo, bem como a taxa de analfabetismo funcional,
caiu progressivamente nos últimos anos, chegando em 2003 a 11,4% e 24,8%
respectivamente. A Taxa Bruta de Freqüência Escolar – entre 7 e 14 anos de idade, segundo
o Censo Escolar do INEP/2005, chegou a 97% em 2004; entre 15 e 17 anos de idade atingiu
82%, sendo que 44,4% de estudantes nesta faixa estão no Ensino Médio. Nos dados
fornecidos pelo IBGE, o porcentual de pessoas de 7 a 14 anos de idade que não freqüentava a
escola caiu de 9,8% em 1995 para 2,6% em 2005. No caso do grupo de pessoas de 15 a 17
anos, o porcentual recuou de 33,4% para 18,0% no período, mas manteve-se em patamar
elevado. A década de 1990 também foi marcada com um crescimento significativo do ensino
superior, principalmente no setor privado.
343
Contraditoriamente ao que fora disseminado nos anos 1990, a melhoria na educação
escolar não se revelou um “motor de desenvolvimento” e de crescimento econômico no
Brasil. O que se constatou foi o aumento da taxa de desemprego entre os trabalhadores mais
instruídos e mais jovens. A taxa de desemprego no Brasil, nas principais regiões
metropolitanas, subiu de uma média próxima a 5,5% no período 1991-1997, para uma média
superior a 7% entre 1998-2000, ainda segundo o IBGE. A Taxa de Desemprego Aberto
aumentou em todos os setores de atividades, indústria, comércio e serviços, no período entre
1994/2001, segundo o IPEA, atingindo de forma mais significativa os jovens com idade entre
18 e 29 anos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) levantou que o desemprego
juvenil (entre 18 e 24 anos de idade) pulou de 9,1% em 1991 para 14,7% em 2000. E a Taxa
de Desocupação aumentou com a escolaridade, isto é, encontravam-se desempregados ou
desocupados trabalhadores com maiores níveis de escolaridade. Em 2004, para a população
de menor nível de escolaridade (até 4 anos completos de estudo) a taxa de desocupação foi de
5,5%, enquanto para os grupos mais escolarizados (12 anos ou mais de estudo) a taxa foi de
21,4%.
Fazendo uma relação entre educação e trabalho, pode-se constatar que no Brasil, ao
mesmo tempo em que houve a expansão do acesso à educação escolar e o aumento do nível
de escolaridade dos brasileiros, deu-se o aumento da taxa de desemprego. Mais grave ainda, o
aumento do desemprego afetou e vem afetando de forma mais significativa os jovens
trabalhadores, e ainda, os jovens trabalhadores com nível de instrução elevada. O que se
constata é que o nível de escolaridade do brasileiro cresceu nos últimos anos na razão direta
em que aumentou o desemprego. Esta contradição não é um fenômeno típico da formação
social brasileira, ela pode ser verificada em outros países dependentes, como também nas
zonas periféricas de alguns países centrais.
344
Diante das tensões deflagradas pela contradição entre educação e trabalho o conceito
de empregabilidade e a “tese” de investimento no capital humano, em si, já não mais estavam
dando sustentação às políticas neoliberais. Nesse sentido, a “teoria do capital social” e os
“conceitos” que a corporificam vão compor os novos elementos que darão a sustentabilidade
ao novo senso comum sobre trabalho, educação e pobreza.
A “teoria do capital humano” não deu conta dessa realidade tão complexa, diria a
lógica conservadora. Frente à realidade, que se apresenta mais complexa do que imaginavam
os economistas do FMI, demanda-se a necessidade de buscar outros elementos “teóricos” e
metodológicos para o enfrentamento dos fatos. Para além das questões meramente
econômicas, outras dimensões interligam o processo de desenvolvimento, concluem. Não
basta que o indivíduo invista naquilo que é proprietário, no “capital humano”, é necessário
também que ele invista em “capital social” de sua família, de sua comunidade, de sua
sociedade.
As políticas definidas para o desenvolvimento do milênio introduziram ou
reintroduziram conceitos, mantendo ou alterando seus significados, tais como: solidariedade,
cooperação, autonomia, rede de associados, democracia participativa, consciência cívica,
confiança. Alguns desses conceitos não tinham força ideológica na ocasião da implantação
das políticas neoliberais, mas na virada do milênio eles vão dar sustentação “teórica” e
política às novas estratégias de combate à pobreza e de redução da desigualdade social nos
países pobres e vão dar coerência à proposta de desenvolvimento do milênio de forma a
legitimar o projeto de desenvolvimento sustentável.
É importante destacar que as “políticas de desenvolvimento do milênio” não
incorporam o otimismo disseminado nos anos 1970-1990, em relação às infindáveis
possibilidades produtivas do mundo globalizado e, com elas, de acumulação de riqueza, bem
como a possibilidade desta riqueza se derramar nas camadas mais pobres. Os fatos concretos,
345
bem como os dados estatísticos levantados pelas próprias agências multilaterais,
comprovaram que as possibilidades produtivas são restritas e a riqueza acumulada não é
derramada naturalmente, colocando um problema que deveria ser resolvido considerando o
risco de ruptura da coesão social. Nesta ótica, é preciso que todos colaborem no
enfrentamento das novas manifestações da questão social – organizações governamentais e
não-governamentais, setor privado, inclusive o pobre e o desempregado ou desocupado. Isto
é, diante do inevitável domínio do mercado internacionalizado, é necessário que se construa
política e culturalmente uma sociedade coesa e harmônica, com um Estado moderno, ativo e
inteligente, para amenizar as conseqüências dos riscos impostos pelo mercado.
O diferencial estratégico fundado nas “teorias” de desenvolvimento do “capital social”
e da economia multidimensionada enfatiza os âmbitos institucional e cultural, como
“variáveis críticas” no processo de desenvolvimento econômico e social sustentável. Nesta
perspectiva, a pobreza (não mais compreendida no âmbito restrito da renda, mas na forma
multidimensional) é uma séria barreira à participação social e as instituições fracas
corroboram com a manutenção dessa condição. Com isso é preciso, então, desenvolver a
capacidade produtiva da camada mais pobre da população, elevar culturalmente a massa de
trabalhadores para que participe ativamente e se beneficie das vantagens econômicas e sociais
que a globalização propicia, oportunizar eqüitativamente o acesso aos benefícios sociais
disponíveis, modernizar o Estado e educar uma ampla parcela da sociedade dentro dos
princípios do desenvolvimento sustentável.
Na virada para o novo milênio, não se trata mais de “educar para o desemprego”, mas
educar para a sobrevivência”.
Todos os agentes da sociedade devem estar envolvidos nas ações de alívio à pobreza,
os próprios pobres, o governo, o setor privado e as organizações da sociedade civil, e essas
ações devem se dar em vários âmbitos: local, nacional e global. Este é o sentido de uma boa
346
governança determinado pelo Banco: o Estado operando como um “administrador dos ciclos
de crise” do capital e como Estado-educador, aprimorando os mecanismos de hegemonia,
promovendo a despolitização e enfraquecendo os embates no interior da sociedade civil ao
disseminar a idéia de se criar um clima ameno, sem confrontos, solidário e coeso para
“combater” as mazelas sociais.
Não se trata só de “educar para a sobrevivência”, mas “educar para o conformismo”.
2) Formando uma rede solidária de ação global para educar o pobre aos novos
tempos
Como foi verificada, a concepção de pobreza que insere a política de desenvolvimento
do milênio passa a ter um caráter multidimensional, isto é, não se trata só de renda, mas
também e reciprocamente, de educação, saúde, meio ambiente; em síntese, de uma cultura
pobre.
Neste sentido, as políticas de combate à pobreza devem focar esses outros ativos
sociais para suprir as deficiências culturais herdadas e reproduzidas de geração a geração, isto
é, propiciar o desenvolvimento das capacidades de participação no desenvolvimento de sua
comunidade e sociedade. É necessário elevar culturalmente os pobres de forma que possam se
beneficiar das enormes possibilidades produtivas que a globalização e as tecnologias
proporcionam, aumentando a capacidade de esta camada tornar-se produtivamente
“autônoma”.
Na perspectiva do investimento em “capital social”, a deficiência cultural dos pobres
pode ser superada através da formação de uma rede solidária global, nacional e local, que
estimule o investimento, também, no “capital humano”. Em nível global estariam as doações
e empréstimos de entidades internacionais e países ricos, bem como medidas políticas
tomadas no âmbito das organizações mundiais, empenhados em dar um caráter mais
347
humanitário à dinâmica de acumulação de capital; em nível nacional, os programas e as
políticas de combate à pobreza e de desenvolvimento social implementados pelos governos,
em acordo com as definições de políticas globais; em nível local, estariam as associações e
cooperativas comunitárias, cuja formação é vista como fundamental para que os benefícios
cheguem diretamente aos indivíduos que fazem parte da população mais pobre, de forma a
reduzir possibilidades corruptivas e a atender mais eficientemente as necessidades postas pelo
pobre, permitindo um espaço para que este tenha voz.
Na concepção dos intelectuais dos principais organismos multilaterais, a formação de
uma “rede solidária global”, que insere um determinado nível de consciência cívica da
sociedade civil como um todo, possibilita estimular uma reação da população diante da
intensificação do quadro de aumento da pobreza e do desemprego, buscando de forma coesa e
harmônica soluções para amenizar o impacto social desse quadro. Tal “rede solidária e
cooperativa” deve cuidar, principalmente, daqueles que, “temporariamente”, não estão
inseridos no mercado e na sociedade. As camadas mais pobres devem superar suas condições
motivadas pela possibilidade de participarem da busca de soluções de seus problemas e de se
mostrarem capazes de produzir, de que podem ser produtivos e que podem possuir uma
“vocação produtiva”. Nessa concepção, a instalação de um “clima de solidariedade e
tolerância” entre as classes, gêneros, raças e etnias, ou melhor, entre os associados, em níveis
nacionais e internacionais, permite a superação de conflitos e a formação de um mundo
melhor.
2.1) A formação de estruturas sociais de cooperação no nível internacional:
Voltando à pesquisa realizada pelo Banco Mundial (2000c), viu-se que fora
identificado uma redução progressiva das doações dos países ricos para os países dependentes
nos anos 1990. Segundo a pesquisa, essa redução se deu pela falta de crença dos doadores de
que a assistência chegava às populações que de fato necessitavam, por causa da corrupção e
348
do desperdício nos governos. Mas que também foi identificado que na relação entre doadores
e receptores sempre estiveram embutidos interesses econômicos. Sem considerar a questão do
interesse econômico que envolve tal ação “solidária”, a equipe do Banco, pautada na
“insegurança” dos países doadores, reviu os mecanismos tradicionais de assistência e propôs
alguns passos para a “seletividade da ajuda”, tais como: averiguar as condições locais e se o
país se identifica com o programa de ajuda; ajudar, com pouca interferência, nas funções do
governo; concentrar-se nas políticas focadas em áreas mais eficazes para reduzir a pobreza,
apoiando, de forma sustentável, as políticas e instituições que promovam a redução da
pobreza. E, ainda, elaborou o “Índice de Avaliação das Políticas dos Países e Instituições”
(CPIA)
,
como instrumento de avaliação de concessão de empréstimos, que fora incorporado
no programa “Estratégia de Redução da Pobreza”, adotado pelo Banco Mundial e pelo FMI,
em 2001, e que passou a ser uma forma de acesso para outros tipos de financiamento.
A “seletividade da ajuda” realizada pelos países doadores e a concessão de
financiamentos oferecidos pelos organismos internacionais passaram a ser condicionados
pelos índices de classificação estabelecidos por estes instrumentos, que se concentram em
países com boa governança e boas instituições. Enfim, países que não se enquadram no perfil
de “boa governança” e de “boas instituições” estabelecidos pelo Banco Mundial e pelo FMI,
não terão acesso aos empréstimos oferecidos por eles; países que não apresentarem as
“condições locais” adequadas, não se identificarem com os programas de ajuda dos países
doadores, não estipularem políticas focadas de redução à pobreza nos moldes definidos pelas
agências internacionais, não serão beneficiados com as doações “solidariamente” concedidas
pelos países mais ricos.
Objetivamente os países mais pobres para serem beneficiados pelas “doações” dos
países mais ricos e pelos empréstimos das agências internacionais devem realizar mudanças
institucionais baseadas na “boa governança”, isto é, na formação de um ambiente solidário e
349
de cooperação em vários níveis: local, nacional, regional e global, principalmente no tocante
às políticas sociais de combate à pobreza focalizadas e descentralizadas.
O “espírito” de uma sociedade global, coesa pela consciência solidária e pelos valores
humanitários, difundida como uma estratégia de combate à pobreza e a desigualdade nos
países mais pobres, objetivado em tal instrumento que classifica e seleciona os países que
devem ser “ajudados”, ou melhor, que condiciona a “relação solidária” entre os países
doadores e os países receptores, não só não oculta a questão do interesse que a permeia,
como também revela o seu caráter coercitivo, ao exigir que os países receptores se enquadrem
naquilo que organismos multilaterais definem de “boa governança”.
No âmbito das políticas sociais, as condicionalidades impostas aos países dependentes
para receberem ajuda e empréstimos configuram-se mecanismos de legitimação das “políticas
de desenvolvimento do milênio”, pois estas não se restringem, como antes, aos indicadores
macroeconômicos para a estabilidade econômica, elas são ampliadas com a exigência de
realizar novos ajustes estruturais e políticos, relacionados à consolidação da estabilidade
política. Tais manejos políticos acabam por aprofundar a condição de dependência dos países
mais pobres, nas esferas econômica, política e ideológica.
A função minimizada do Estado, agora restrita à dimensão institucional, oculta a sua
configuração como expressão das relações de poder no conjunto da sociedade. Extrai o caráter
ético-político que constitui o Estado em seu sentido amplo, e dissemina uma concepção de
desenvolvimento multidimensionada - econômico, político, social e cultural – também de
forma minimizada. Essa concepção minimizada das múltiplas dimensões está presente quando
atribui um caráter técnico e neutro às políticas macroeconômicas, quando dá um caráter
institucional ao âmbito político, quando deteriora as políticas sociais reduzindo os gastos
públicos, quando precariza o trabalho com a perda dos direitos conquistados e quando
fragmenta a “questão social” em fatores distintos, gerados pela deficiência cultural, o que
350
requer ações focadas e “psicologizadas”.
Nesta perspectiva, entende-se que o debate em torno da “questão social” não pode ser
dissociado da dinâmica de poder que insere a nova divisão internacional do trabalho.
Conforme colocou Ianni (2002), no sistema mundial atual predominam poderosas injunções
entre nações e nacionalidades, blocos econômicos e geopolíticos, além de empresas,
organizações e conglomerados transnacionais, institucionalizadas pelas agências multilaterais.
Sem desconsiderar as especificidades de cada formação histórica para identificar os
efeitos das problemáticas das relações internacionais, geoeconômicas e geopolíticas, a
“questão social” não pode ser vista afastada das orientações e definições de políticas de
internacionalização macroeconômicas e do papel que desempenha o Estado nesta relação de
forças. Nesse sentido, considera-se que a luta contra a condição de dependência não pode ser
dissociada da luta pela democratização do Estado.
2.2) A formação de estruturas sociais de cooperação no nível nacional e local:
As organizações da sociedade civil, ou o “terceiro setor”, exercem um papel
fundamental na implementação das políticas de combate à pobreza e de desenvolvimento
sustentável. Como, no geral, as organizações não-governamentais ou de interesse público ou
do terceiro setor atuam diretamente nas comunidades, para o Banco Mundial isso possibilita a
efetivação de várias ações determinantes no processo de consolidação das “políticas de
desenvolvimento do milênio”, tais como: realizar o diagnóstico da vocação produtiva da
comunidade; atuar na formação de redes e de cooperativas para aumentar a produtividade dos
pobres; representar as “vozes” dos pobres junto às instituições públicas e privadas, em busca
de financiamentos e doações para atender as demandas do grupo e/ou estabelecer arranjos
produtivos; e, principalmente, transmitir valores e culturas de solidariedade e de participação,
isto é, desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento de capacidades associativas
das comunidades, no processo de “renovação da cultura cívica” e no aumento da capacidade
351
produtiva.
A responsabilidade atribuída às organizações da sociedade civil, de atender as
demandas sociais das comunidades mais pobres, foi sendo incorporada com o mote da
necessidade de se empreender uma “jornada pela vida”, juntando “forças” com aqueles que
têm preocupações semelhantes, de forma a sobreviver, produtivamente, das seqüelas de um
mercado livre. Não só a atuação mais direta das organizações da sociedade civil, mas também
da liderança comunitária são destacadas como fundamentais para a formação da consciência
cívica e solidária para o desenvolvimento humano e social da comunidade, o que vai justificar
o financiamento oferecido pelo Banco Mundial aos programas que visem à formação de
multiplicadores sociais - “agentes de desenvolvimento comunitário”.
É importante destacar também que a concepção de sociedade civil incorporada nas
“políticas de desenvolvimento do milênio” insere todas as organizações da sociedade civil que
não apresentam fins lucrativos ou governamentais. De forma imediata, poderiam ser
enquadradas nesta concepção de sociedade civil as organizações não-governamentais (Ongs),
as organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips), os institutos, fundações ou
associações vinculadas aos setores empresariais, braço do programa de responsabilidade
social, uma vez que são as organizações que, no geral, têm se vinculado aos programas
governamentais e dos organismos multilaterais. No entanto, são também indicadas como
meios eficazes para a transmissão de uma cultura solidária e cívica as instituições familiares,
corporativas, escolares, recreativas e religiosas, e principalmente a mídia.
De fato, o que se pretende é que todos estejam envolvidos no processo de educação
para o desenvolvimento sustentável e na produção do “capital social”, ou melhor, na
construção de uma sociedade solidária, participativa em relação à busca de solução de seus
problemas, civicamente consciente da necessidade de se consolidar um Estado gerencialmente
ativo e inteligente para administrar de forma descentralizada e cooperada a “questão social”.
352
Tais políticas, que se apresentam com novas bases epistemológicas de enfrentamento
da “questão social”, imbuídas de um ar mais democrático e solidário, recuperam o ideário
liberal quando mantêm políticas sociais compensatórias e focalizadas e quando atribui ao
indivíduo a persistência das condições de pobreza e desemprego, justificada pela deficiência
cultural ou pela inabilidade em fazer uso da renda na geração de capacidades. Elas revelam a
dinâmica do processo de hegemonia quando substituem alguns mecanismos que não
encontram mais coerência no atual contexto por outros que não escondem a barbárie do
movimento do capital, mas ajudam a naturalizá-la e a legitimar as novas ações necessárias à
manutenção das condições de reprodução do capital.
Historicamente, o enfrentamento da “questão social” na ordem burguesa sempre se
deu em áreas específicas e campos que reclamam a intervenção política, convertendo a
“questão social” em “problemas sociais”. Nas políticas de combate aos “problemas sociais” o
processo educativo, seja na função civilizatória ou como potencializadora do aumento da
produtividade, sempre exerceu um papel considerado primordial.
No âmbito das “políticas de desenvolvimento do milênio”, o papel da educação no
enfrentamento da “questão social” é enfatizado em três dimensões: econômica – colaborando
com os mecanismos necessários para promover o crescimento econômico e a competitividade
do país para o ingresso no mercado internacional, através da melhoria da qualidade na
educação, da ampliação dos níveis educacionais da população e da qualificação da parcela da
classe trabalhadora que ainda mantêm as condições necessárias para competir com os parcos
postos de trabalho disponíveis no mercado; social - potencializando o desenvolvimento
humano e social na perspectiva do desenvolvimento sustentável e da produção de capital
social da parcela da classe trabalhadora empobrecida que amarga a redução da demanda de
sua força de trabalho, mas que ainda se encontra em condições de produzir; cultural -
transmitindo valores culturais de solidariedade, prosperidade e de coesão social, de forma a
353
estimular o cidadão a participar da construção de uma sociedade mais solidária, harmoniosa,
não-conflitiva, sem violência, estabelecendo “laços de confiança” entre eles, rompendo as
barreiras entre classes, etnias, gênero... Amplia-se o caráter economicista ou produtivista da
educação, inserindo uma abordagem mais humanizada, ética e moralmente voltada para a
conformação da vontade.
Enfim, o elevado custo social resultante das políticas neoliberais, principalmente nos
países dependentes, embora os países centrais não tenham saído ilesos das conseqüências
desta política, revelou, de forma mais clara, o caráter antagônico da produção capitalista. A
grande capacidade produtiva efetivada pelo avanço tecnológico e pela ciência deu-se na
proporção direta em que aumentou a pobreza, a miséria, a desigualdade social, o trabalho
precário, “a ignorância, a brutalização e a degradação moral” (Marx, 2002b, p.749).
Sob os riscos de romper a coesão social em tal cenário bárbaro e de se perderem as
condições hiper-favoráveis de acumulação do capital, os intelectuais orgânicos do capital
prontamente reagiram e buscaram desenvolver mecanismos que pudessem abrandar as
conseqüências advindas dessas mazelas sociais. Estes novos mecanismos definidos para
suavizar os efeitos das orientações econômicas da ortodoxia neoliberal impulsionadas pelo
FMI e que compõem o conjunto de políticas definidas para o “desenvolvimento do milênio”
procuram difundir uma abordagem econômica de cunho mais social e democrática, mais que
aprofunda as contradições, reforça os valores burgueses e reforça o processo de despolitização
das sociedades.
O marco referencial para o desenvolvimento do milênio – gerar “capital social” - é, na
concepção dos principais organismos multilaterais, a chave que garante o acesso aos
benefícios de um mundo globalizado, altamente produtivo e competitivo e tecnologicamente
avançado. Produzir “capital social” é a chave mestra que propicia a condição necessária à
subida no degrau da evolução do processo do desenvolvimento, da redução da polarização
354
entre países ricos e pobres, ou desenvolvidos e “em desenvolvimento”, mas sem comprometer
a sustentabilidade dos recursos naturais e do meio ambiente.
Neste conjunto de idéias o Estado e a sociedade civil exercem um papel fundamental.
Para abrandar as tensões e suavizar o custo social resultantes das contradições que insere a
relação capital-trabalho, a saída encontrada foi voltar a fortalecer o papel do “Estado-Nação”,
tornando-o mais soberano na função de garantir a coesão social, articulando a integração
econômica e moral, e no seu papel educador. O Estado, em seu sentido restrito, deve
fortalecer suas instituições para garantir o processo educativo necessário à conformação das
novas bases ideológicas de conservação e de desenvolvimento de acumulação do capital. O
exercício da função educativa para a construção de uma moralidade, também essencial para a
conservação e o desenvolvimento do capital, deve ser conduzido pelos aparelhos privados de
hegemonia que compõem a sociedade civil, isto é, pelo Estado em seu sentido amplo. A
sociedade civil, compreendida como um terceiro setor entre o Estado e o mercado e como um
espaço de associação voluntária dos indivíduos (associativismo), passa a ser a única saída
para as camadas mais pobres enfrentarem a hostilidade dos poderes econômico e político.
Neste sentido, a idéia de sociedade civil inserida na concepção de “capital social”, bem como
a própria idéia de capital social, são ideologias.
A quimera de os países mais pobres investirem no “capital social” como condição de
sair da pobreza não é sustentável na perspectiva metodológica do materialismo histórico. Esta
idéia é uma concepção particular, de grupos sociais orgânicos da classe dominante, que se
propõe ajudar a resolver problemas estruturais de forma imediata e restrita, ocultando o
caráter contraditório constitutivo do modo de produção capitalista e a configuração do Estado
como expressão das relações de poder no conjunto da sociedade. Na concepção de Gramsci
(1999), trata-se de ideologia. E o mecanismo utilizado para implementar o desenvolvimento
do “capital social”, através de um processo educativo alargado (em sua extensão) e ampliado
355
(em suas funções), isto é, utilizando-se de todos os aparelhos privados de hegemonia que
compõem a sociedade civil: escola, igreja, sindicatos, empresas, organizações não
governamentais, entre outros, vai configurar a dinâmica que insere o processo de hegemonia
em sua função educadora.
Enfatiza-se o social, clamam-se pelo fortalecimento da democracia e pela
modernização do Estado. Não se trata de uma manifestação hipócrita do neoliberalismo, como
colocara Coutinho (2006) em relação à proposta da terceira via. Aliás, para o autor, esta já
nasceu morta. As propostas de desenvolvimento do milênio difundidas e implementadas pelos
organismos multilaterais são ético-político e epistemologicamente neoliberais, apenas lhes
imputando um rosto mais humano.
Conclui-se que o quadro social e econômico que se instalou nos anos finais da década
de 1990 com a crise do capitalismo mundializado representou para os intelectuais orgânicos
do capital uma ameaça à hegemonia da ideologia e das políticas neoliberais e revelou o
caráter educador que insere as “políticas de desenvolvimento do milênio”. Mesmo com as
políticas macroeconômicas neoliberais apresentando sinais de “abalos” e “revelando seus
limites” com as tensões provocadas por algumas forças políticas e sociais, os intelectuais
orgânicos do capital, favorecidos pela ampla expansão da economia de mercado, pelo triunfo
ideológico-cultural das propostas neoliberais e pela inexistência concreta de um projeto
societário alternativo, viram-se na virada do século XXI, em condições de conduzir um amplo
consenso na difusão e implementação desses novos mecanismos conservadores.
O conjunto de mecanismos que compõe as “políticas de desenvolvimento do milênio”
conduz, de fato, um processo pedagógico para o conformismo. As “políticas de
desenvolvimento do milênio” são despolitizadoras pois não só encobrem o caráter
contraditório do movimento do capital e, com isso, o caráter conflitivo que insere as relações
sociais na sociedade capitalista, como também procuram naturalizar o atual contexto político-
356
econômico e cimentar no senso comum da classe trabalhadora que não há outra saída senão
reunir esforços para sobreviver, instaurando um processo de desconstrução das possibilidades
de luta e de correlação de forças que, na concepção de Gramsci, insere a dinâmica da
sociedade civil.
As “políticas de desenvolvimento do milênio” e suas idéias de boa governança
(administração da pobreza e dos possíveis conflitos; estabilidade política, garantia de
propriedade e ambiente seguro para investimentos), desenvolvimento do capital social
(capacidade de associação, cooperatividade e solidariedade; reforço dos laços de confiança
entre os membros e os setores) e desenvolvimento sustentável (aumento da produtividade com
responsabilidade social e ambiental, diferenciado dos modelos precedentes) são muito
recentes para avaliar se estão conquistando êxitos político e ideológico.
Passados mais de dez anos em que as elites dominantes manifestaram preocupação
com os movimentos sociais “antiglobalizantes” e com a possibilidade de instabilidade no
mercado internacional e passados sete anos de implementação das “políticas de
desenvolvimento do milênio”, o cenário tenso e conflitivo permanece (principalmente pós-11
de setembro com a revelação clara da função coercitiva do Estado e do imperialismo). Ainda
hoje é possível perceber que, em meio às notícias das principais mídias impressas e televisivas
sobre as possibilidades de crescimento econômico dos países dependentes no mundo
globalizado, gerando um clima de esperança, veiculam-se o agravamento das condições
sociais e econômicas da maioria da população mundial e o aumento da violência em seus
vários aspectos. Um quadro que indica “a brutalização e a degradação moral” da classe
trabalhadora como fenômenos inerentes ao modo de produção capitalista, conforme colocara
Marx, e a violência da própria lógica do capital e sua economia, não “de mercado”, mas “para
o mercado”, segundo Polanyi (2000). Mas também a mídia anuncia, mesmo de forma
distorcida, que na América Latina forças políticas e sociais contra-hegemônicas vêm se
357
fortalecendo.
Nesse sentido, deve-se ter clareza de que o avanço desta perspectiva neoliberal de
desenvolvimento do milênio está condicionado ao movimento das correlações de forças
externas e internas, o que demanda um processo contra-hegemônico por parte das forças
sociais comprometidas com a transformação social e a construção de um projeto societário
nacional-popular. É fundamental a defesa intransigente do sentido gramsciano de sociedade
civil, como um terreno de lutas e conflitos, superando as noções genéricas que associam a
sociedade civil ao terreno da solidariedade e da harmonia. É preciso “libertar-se das
ideologias parciais e falazes” e lutar rumo à “unificação cultural do gênero humano”, como
colocara Gramsci.
As condições atuais não se põem favoráveis à construção de um projeto de sociedade
democrática de massa. Contudo, novamente à luz de Gramsci, é preciso combinar o
pessimismo da inteligência com o otimismo da vontade.
358
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