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Márcio Corrêa Pereira
A educação pela poesia
Análise dos livros II, III e X da República de Platão
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia do Departamento de
Filosofia do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio como requisito parcial
para a obtenção do tulo de Mestre em
Filosofia
Orientadora. Profª. Maura Iglésias
Rio de Janeiro
Abril de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0511060/CA
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Márcio Corrêa Pereira
A educação pela poesia
Análise dos livros II, III e X da República de Platão
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo
programa de Pós-graduação em Filosofia do
Departamento de Filosofia do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Profª. Maura Iglésias
Orientadora
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Prof. Marcus Reis Pinheiro
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues
Departamento de Filosofia – UFRJ / IFCS
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 de abril de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0511060/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor, e
da orientadora.
Márcio Corrêa Pereira
Graduou-se em Filosofia na Universidade Federal do Rio de
Janeiro em 2004. É pesquisador da área de Filosofia Antiga.
Possui trabalhos publicados em sua área de atuação e diversas
participações em congressos e seminários.
Ficha Catalográfica
CDD: 100
Pereira, Márcio Corrêa
A educação pela poesia: análise dos livros II, III, e X da
República de Platão / rcio Corrêa Pereira ; orientadora:
Maura Iglésias. – 2007.
82 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Filosofia)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Filosofia – Teses. 2. Platão. 3. Educação. 4. Mito. 5.
República. 6. Filosofia antiga. I. Iglésias, Maura. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Filosofia. III. Título.
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Aos meus pais,
Ivo e Heloisa
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Agradecimentos
À Profª Maura Iglésias pela acolhida carinhosa, pela preciosa orientação deste
trabalho e pelas aulas que me ajudaram a compreender melhor questões
fundamentais da Filosofia platônica.
Ao Prof Fernando Rodrigues por abrir-me as portas e pelo apoio constante.
À Profª Irley Franco por sua contagiante paixão pela Filosofia e por suas aulas que
foram tão importantes para minha reflexão sobre as questões deste trabalho.
À Lethicia por conduzir minha alma até Platão.
Aos amigos do NUFA: Alexandre, Rômulo, Remo, e todos os demais que fazem
desse grupo um encontro precioso.
Ao Prof Marcus Reis pelas aulas muito bem humoradas de grego e pela pronta
aceitação do convite para compor a banca.
Aos meus amados irmãos e irmãs por serem meus.
À Marina pelo carinho nos momentos difíceis.
Ao CNPq e à PUC-Rio pelos auxílios concedidos para a execução deste trabalho.
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Resumo
Pereira, Márcio Corrêa; Iglésias, Maura. A educação pela poesia. Análise
dos livros II, III e X da República de Platão. Rio de Janeiro, 2007. 82 p.
Dissertação de Mestrado Departamento de Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Este trabalho consiste em uma análise do tratamento dispensado por Platão
à poesia no diálogo A República. A proposta que Platão apresenta para a poesia
tem profundas motivações éticas e políticas. A poesia (mito) é o principal
componente da primeira parte de um processo educacional que tem por principal
objetivo instruir a classe de cidadãos que será responsável pela segurança e pelo
governo da cidade idealizada no diálogo. Em suas composições, os poetas devem
obedecer a normas que são estabelecidas a partir de critérios pedagógicos. Tais
normas são necessárias para fazer com que a poesia contribua positivamente para
o desenvolvimento de um caráter belo e bom. A teoria poética tem início nos
livros II e III, mas, devido a certas noções que serão esclarecidas posteriormente a
essa primeira abordagem da poesia, sua conclusão somente pode terminar em um
segundo momento. Por isso, defenderemos que o livro X é necessário para
completar as determinações que são estabelecidas para a poesia, e que há uma
continuidade entre os argumentos defendidos no primeiro estágio com os do
segundo estágio da crítica poética. Na primeira parte desta dissertação,
analisaremos as teses defendidas nos livros II e III, onde Platão inicia a construção
do paradigma de normas poéticas. Em seguida, veremos a conclusão das
considerações sobre a poesia apresentada no livro X.
Palavras-chave
Filosofia; Platão; Educação; Mito; República; Filosofia Antiga.
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Abstract
Pereira, rcio Corrêa; Iglésias, Maura. The education by the poetry.
Analysis of the books II, III e X of the Plato’s dialogue The Republic.
Rio de Janeiro, 2007. 82 p. Dissertation – Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This dissertation consists in an analysis of the poetry in the Plato’s
dialogue The Republic. The proposal that Plato presents for the poetry has a
deeply ethical and political motivation. The poetry (myth) is the main component
of the first part of an educational process whose objective is to instruct certain
class of citizens responsible both for the security guard and the government of the
city idealized in the dialogue. In its works, the poets must follow some norms that
obey pedagogical criteria. Such norms are needed to get the poetry to contribute
positively for the development of a good and beautiful character. The poetical
theory is first approached in Books II and III, but, due to a slight knowledge later
clarified, its conclusion could only be reached in the end of the dialogue.
Therefore, this work defends that Book X is necessary to conclude the
determinations for the poetic art, and that there is a sense of continuity linking the
propositions presented in the first period to those of the second stage of the
poetical criticism. The first part of this work analyzes the arguments defended in
Books II and III, in which Plato initiates the construction of the poetical norms
paradigm. The second part analyses the conclusion of the considerations about the
poetry presented in Book X.
Keywords
Philosophy; Plato; Education; Myth; Republic; Ancient Philosophy.
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Sumário
1. Introdução 10
2. Análise dos livros II e III 13
2.1 – Análise do passo 391e10 – 392a2 13
2.1.1 – Os tuvpoi poéticos 15
2.1.2 – A duvnami" do mito 39
2.1.3 – Possibilidades reservadas aos mitos:
mmmmo caráter de utilidade e de verdade da mentira 47
2.2 – Continuação da análise do livro III 55
2.2.1 – A levxi" da poesia 55
2.2.2 – Determinações sobre a parte musical da poesia 60
3. Análise do livro X 66
4. Conclusão 76
5. Referências bibliográficas 79
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(...) y así lo ha de hacer y hace el que
quiere alcanzar nombre de prudente y sufrido,
imitando a Ulises, en cuya persona y trabajos
nos pinta Homero un retrato vivo de prudencia
y de sufrimiento, como también nos mostró
Virgilio en persona de Eneas el valor de un hijo
piadoso y la sagacidad de un valiente y entendido
capitán, no pintándolo ni descubriéndolo como
ellos fueron, sino como habían de ser, para
quedar ejemplo a los venideros hombres de sus
virtudes,”
(Miguel de Cervantes. Don Quijote de la Mancha. Capítolo XXV)
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1
Introdução
No passo 607 b5,6, no último livro da República, Sócrates diz que é antiga
a querela entre a poesia e a Filosofia
1
. Mais uma vez, a divergência entre essas
duas linguagens eclode. Dessa vez, o diferendo é considerado através de uma
análise abrangente, como nunca havia sido feita anteriormente, por um dos
maiores pensadores de todos os tempos. A poesia é o assunto central de três dos
dez livros que compõem A República, de Platão. No diálogo, o autor desenvolve
uma teoria poética que tem por objetivo estabelecer normas para orientar os
poetas na produção de suas obras. Fornecer parâmetros e regras aos poetas é
necessário, pois estes demonstraram muitas vezes em suas obras desconhecer
aquilo mesmo de que se propõem falar. Platão reconhece na poesia uma
importante ferramenta didática que deve ser utilizada desde os primeiros anos da
educação das crianças. A crítica poética dos livros II, III e X visa regulamentar a
poesia para que seja utilizada no processo educacional da classe de homens que
será responsável pela segurança e pelo governo da cidade que é descrita por
Sócrates e seus interlocutores no decorrer do diálogo. A importância da tarefa
reservada ao discurso mítico formar durante os primeiros anos da paideiva essa
classe de cidadãos – faz com que a poesia seja uma das peças centrais na
construção e na manutenção da constituição política reta (ojrqh; politeiva) da
cidade. Por isso, como observa Paul Viccaire
2
, a poesia, assim como as demais
artes, não deve ter liberdade para proceder livremente, sem obedecer a nenhuma
norma. A poesia assume a função de fornecer exemplos virtuosos aos cidadãos,
mas, para isso, é preciso assegurar que os mitos somente apresentem conteúdos
verdadeiros. Assim, pela boca de Sócrates, como em muitos outros diálogos,
Platão determina padrões de como devem ser representados os conteúdos
tradicionalmente retratados pelos poetas em suas composições e também
estabelece a forma de discurso que estas devem ter para cultivar nobres valores
nas almas dos ouvintes ou espectadores de qualquer narrativa. Platão também
1
Sobre as divergências entre a Filosofia e a Poesia, ver: CORNFORD, F. M. Principium
Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego. Tradução Maria Manuela Rocheta dos
Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1952, p. 233 – 253.
2
VICAIRE, P. Platon: critique littéraire. Paris: C. Klincksieck, 1960, p.406.
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11
regulamenta a parte musical da poesia, estabelecendo as harmonias e os ritmos
próprios para formar o caráter temperante e corajoso.
A necessidade de definir os modelos que devem ser observados pelos
poetas em suas composições tem uma forte motivação política, pois a boa
administração da cidade depende em grande parte da formação do caráter da
classe dos guardiões, e também encerra uma dimensão individual ao incutir em
suas almas modelos de conduta determinados a partir de critérios éticos. G. M. A.
Grube afirma que a preocupação de Platão na República não é com a excelência
de um trabalho artístico, mas com o valor social da arte
3
. Mas, além de a análise
da poesia ser orientada por preocupações políticas, há também a dimensão ética da
formação de um caráter virtuoso. Assim, muito mais do que poderíamos
classificar por critérios estéticos, a crítica platônica da arte é orientada por
motivações que, em última instância, visam proporcionar uma vida
eujdaimonikhv aos cidadãos e à cidade como um todo.
Devido à importância que os guardiões têm para a cidade, a poesia é
detalhadamente estudada e normatizada para exercer de forma conveniente a
função de educá-los. As considerações de Platão sobre a poesia subentendem em
todo momento uma preocupação pedagógica.
A crítica poética é feita em dois estágios. Em um primeiro momento
4
,
Sócrates percebe que a melhor educação para crianças e jovens possui duas partes,
a saber, a música
5
e a ginástica
6
. Assim, procura determinar como deve ser feita
essa educação, analisando primeiro a música e depois a ginástica. A principal
parte da educação pela música é constituida pelos muvqoi. Desde muito novas, são
contadas às crianças as narrativas das histórias sobre os deuses, os heróis e sobre
homens que viveram em tempos primórdios. Os mitos são a primeira fonte de
conhecimento transmitida às crianças. Por isso, precisam ser tratados
cuidadosamente para que não transmitam noções prejudiciais aos homens desde
3
GRUBE, G. M. A. Plato´s thought. London: Methen & CO Ltd. 1970, p.182.
4
Cf. PLATÃO, República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbbenkian,_2001._376e2,3. Utilizaremos a tradução acima em nossas citações da
República. Informaremos no caso de outra tradução.
5
Grube observa que a palavra mousikhv por vezes significa música e algo mais; em outros
momentos, inclui todas as artes que m conexão com as Musas. Quando Platão se refere à
educação pela mousikh'/, a tradução mais apropriada, segundo o autor, é ‘educação pelas artes’. Cf.
GRUBE. op. cit. p. 180.
6
A gumnastikhv não se resume apenas aos exercícios físicos, mas também engloba uma
alimentação equilibrada.
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12
cedo. Porém, Sócrates não consegue concluir toda a teoria poética nesse primeiro
estágio, pois ainda não considerou questões de caráter ontológico, epistemológico
e psicológico que somente serão analisadas depois desse primeiro momento da
crítica. Assim, torna-se necessário o retorno à questão poética depois de se obter o
conhecimento sobre tais assuntos. Então, no livro X, Sócrates tem a chance de
terminar por completo a análise poética, determinando definitivamente
legitimado pelas teses centrais do diálogo as diretrizes para a poesia. Dessa
forma, tentaremos entender os argumentos apresentados pelos três livros (II, III e
X) como um único argumento dividido em dois momentos devido à necessidade
de se esclarecerem questões sobre outros assuntos que o essenciais à conclusão
da crítica poética.
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13
2
Análise dos livros II e III
2.1
Análise do passo 391e10 – 392a2
“Motivo por que se deve pôr termo a semelhantes histórias, não
vão elas desencadear nos nossos jovens uma propensão para o
mal.”
7
Este passo que escolhemos para principiar nossa análise do tratamento
dispensado por Platão à poesia condensa boa parte do olhar platônico sobre o
tema, na República, pois nele Platão nos diz muito sobre seu projeto e sobre a
tarefa reservados ao discurso poético, sobre sua avaliação e conceitos relativos a
esta linguagem. Cabe-nos analisá-lo à luz de seu contexto, pois as partes isoladas
de um texto somente ganham real significado inseridas no todo da obra que
compõem, assim como a tessitura de uma sinfonia tem sentido no conjunto da
peça de onde foi extraída. É preciso que sejamos gradualmente nutridos pela
argumentação (lovgo") que nos é apresentada pelo diálogo, para que apreendamos
do trecho em questão algumas implicações para a determinação do que de ser
feito com a poesia na cidade que Sócrates e seus amigos (fivloi) se propõem
fundar por meio da linguagem (lovgo")
8
.
Nosso estudo da análise crítica do discurso mítico que Platão desenvolve
na República iniciar-se-á por uma leitura direcionada dividida em tópicos dos
livros II e III. Adotamos este método de análise, pois dessa forma podemos
alcançar uma maior organização dos argumentos relativos a cada assunto, que,
para a compreensão do texto, pode mostrar-se valiosa, principalmente para nós
pós-modernos, tão acostumados aos caprichos da “racionalidade”. A partir do
7
Cf. PLATÃO, República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação
Calouste
Gulbbenkian,_2001._391e10_392a2._ \Wn e{neka paustevon tou;" toiouvtou" muvqou", mh; hJmi'n
pollh;n eujcevreian || ejntivktwsi toi'" nevoi" ponhriva".
8
Cf. Ibid. 369c9. “(...) construamos pela palavra uma cidade desde o seu princípio.”(...)
tw/' lovgw/ ejx ajrch'" poiw'men povlin.” A tradução é nossa.
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passo acima, tomado como orientador da investigação, nossa busca apresentará o
seguinte desenvolvimento: perguntar-nos-emos 2.1.1) pelas características
daqueles mitos (tou;" toiou'to" muvqou") que devem ser proibidos (paustevon),
analisando a construção de dois modelos (tuvpoi) poéticos; 2.1.2) sobre o poder
(duvnami") dos mitos na alma e sobre o motivo (e{neka) que Platão apresenta para a
proibição dos mitos em questão, analisando o efeito negativo destes mitos
(eujcevreian || ejntivktwsi toi'" nevoi" ponhriva") na formação dos guardas da
cidade; e por fim, 2.1.3) sobre as possibilidades que Platão reserva ao discurso
mítico ao restringir a proibição apenas aos mitos que apresentem características
incompatíveis com o objetivo do sistema educacional da República. Com este
último tópico daremos ensejo ao prosseguimento das considerações sobre o mito
no âmbito dos livros II e III como um todo.
Estas questões, que se nos apresentaram como tal, questões, aparecem em
diversos momentos do texto platônico de forma assistemática, na medida em que
não o expostas sob a forma de todo racionalizado nos moldes de uma
argumentação teorética moderna, mas surgem imbricadas, e no decorrer do
diálogo vão se delineando e ganhando cores que nos permitam ver os caminhos
para que as compreendamos. Assim, Platão não discute em um único momento as
conseqüências dos mitos na alma humana para em seguida avaliar qual deve ser
seu teor, mas cada questão aparece de forma recorrente e intimamente conectada
uma com a outra, e, na medida em que vão sendo enriquecidas e explicitadas,
podemos notar a unidade de propósito que as une. Para bem compreendermos o
projeto de reforma da poesia proposto por Platão, é preciso que tenhamos claras
estas questões fundamentais.
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15
2.1.1
Os tuvpoi
tuvpoituvpoi
tuvpoi poéticos
Inicialmente o livro II apresenta uma questão fundamental tanto para o
âmbito ético quanto para a teoria do conhecimento da República e, como veremos,
também para as considerações platônicas a respeito das artes a área da pesquisa
filosófica que se constituiria futuramente como a estética , a saber, a relação
entre o ser e a aparência.
“Ó Sócrates, queres aparentar (dokei'n) que nos persuadiste ou
persuadir-nos, de verdade (ajlhqw'"), de que de toda a maneira é
melhor ser justo do que injusto?
9
A diferença entre o ser e a aparência será a base do discurso de Gláucon
que se inicia pelo trecho acima no princípio do livro II. Gláucon, ao questionar
Sócrates sobre a sua intenção de tê-los persuadido com o argumento sobre a
justiça desenvolvido no livro I, se pretendia com este argumento persuadi-los
verdadeiramente ou se desejava apenas parecer que o havia feito, ensejo ao
seu próprio discurso
10
apologético da injustiça. Seu argumento de que o injusto é
mais feliz do que o justo afirma a necessidade de o injusto ter de se passar como
justo
11
para que as demais pessoas dispensem a ele o tratamento e as honrarias
reservados aos homens justos. Ou seja, o injusto, para obter os benefícios que a
sociedade presta aos justos, deve cometer as maiores injustiças em seu proveito,
mas deve parecer justo aos olhos dos cidadãos. A posição de Sócrates em relação
à justiça certamente era familiar tanto a Gláucon quanto a seu irmão, Adimanto
12
,
pois ambos eram seus discípulos. A habilidade literária de Platão é marcante na
fala de Gláucon, fala que também possibilita, com seu questionamento sobre a
intenção de Sócrates ao tentar persuadi-los no livro I, um vislumbre da posição
que o próprio Sócrates tomará em seu argumento em favor da justiça. Sócrates,
9
Cf. Ibid. 357a5 - b2.
10
Salientamos que Gláucon está apenas apresentando uma posição que é defendida pela maioria
(oiJ polloiv), mas que ele mesmo não a compartilha, como deixa claro em 358c6, 7.
11
“Pois o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser.” 361a5, 6.
12
Em 367d8 - e1, Adimanto diz que Sócrates tem passado toda a sua vida a examinar somente a
questão do valor da justiça em si mesma.
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16
que deseja persuadir verdadeiramente seus interlocutores, também defenderá que
o ser justo e não o parecer justo é o melhor e, portanto, o mais desejável. Faz-se
necessário observar a presença desta questão desde já, porque relativamente ao
discurso mítico, será fundamental para sua crítica distinguir o que nele se refere
ao ser e o que constitui o âmbito da aparência, pois Platão traça uma diferença
entre dois tipos de mitos que implicará em uma classificação da qualidade e da
aceitação ou não destes, como veremos adiante. Ao chegarmos a tal ponto de
nossa investigação, ressaltaremos a unidade conceitual do diálogo presente em seu
desenvolvimento argumentativo, que torna manifesta a unidade de propósito que
encerra.
Após delinear o perfil do homem injusto, Gláucon contrapõe a ele o
paradigma do homem justo. Para ilustrar as características deste, cita uma
passagem de Ésquilo:
“Depois de imaginarmos uma pessoa destas, coloquemos agora
mentalmente junto dele um homem justo, simples e generoso, que,
segundo as palavras de Ésquilo, o quer parecer bom, mas sê-
lo.”
13
É significativo o fato de Platão escolher um trecho de um poeta trágico
para traçar o caráter do homem justo. O verso citado por Platão pertence à
tragédia Os sete contra Tebas, v.592, e narra a desventura de Anfiareu
14
, que é
reconhecido até mesmo por seu inimigo como um homem “sábio, justo, íntegro,
piedoso, profeta distinto, associado, contra a vontade, a homens presunçosos”
15
.
Não podemos crer que Platão seja displicente a ponto de não dimensionar a
importância de suas referências, e, por isso, este passo insinua a relevância e a
13
Ibid. 361b5 - 8. O grifo é nosso.
14
Anfiareu é filho de Ecleu e Hipermestra, e um poderoso adivinho protegido por Zeus e Apolo.
Era célebre por sua honestidade e valentia. Nas histórias sobre o início de seu reinado em Argos,
aparece como assassino do pai de Adrasto, Talão, e mandante da expulsão de Adrasto da pólis.
Depois, Anfiareu teria se reconciliado com Adrasto, este guardando rancores, enquanto Anfiareu
fazia-o de coração. Adrasto deu a Anfiareu a mão de sua irmã, Erífile, na condição de que brigas
futuras entre ambos seriam decididas com julgamento desta. Quando Adrasto prometeu a Polinice
ajudá-lo a recuperar o trono de Tebas, pediu que Anfiareu tomasse parte na expedição. Anfiareu,
com seus dons de adivinho, sabia da sorte do ataque. Adrasto deu à irmã o colar de Harmonia,
e Erífile, comprada pelo presente, determinou que o marido devia seguir para a guerra. Anfiareu
dirigiu-se então a Tebas, fazendo seus dois filhos prometerem que o vingariam posteriormente,
assassinando a própria mãe (...)” ÉSQUILO, Os sete contra Tebas. Tradução Donaldo Schüler.
Porto Alegre: L&PM, 2003. N. do E.
15
Cf. Ibid. v. 610 – 612.
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17
função que a poesia/mito desempenha na filosofia platônica. “... não quer parecer
bom, mas sê-lo.”. A diferença em favor do ser em detrimento da aparência
retomada por Gláucon em sua citação de Ésquilo revelar-se-á em acordo com a
defesa da justiça em si mesma que Sócrates concluirá no livro IV. Dessa forma,
Platão nos mostra a possibilidade de aquiescência entre o lovgo" da poesia e o da
filosofia. Mas voltaremos a este assunto posteriormente. Por hora devemos
retomar o passo (391e10 a 392a2) e atentarmos ao caso contrário, de quando a
poesia é passível de ser censurada pela filosofia.
Ao rmino do discurso de Gláucon, segue a fala de Adimanto, que
pretende complementar a explanação de seu irmão. Adimanto afirma que mesmo
aqueles que honram a justiça e vituperam a injustiça o fazem não pela justiça em
si mesma, mas pelas recompensas oriundas desta. Surge a primeira censura que
Platão faz aos poetas
16
, pois estes se encontram entre os que enaltecem a justiça
devido aos benefícios que advêm ao indivíduo que é justo aos olhos de seus
concidadãos e aos olhos dos deuses, e não em si mesma. Para exemplificar tal
posição, Platão cita excertos do poeta que era considerado o educador da
Grécia”, Homero, e também de Hesíodo, que junto do anterior fora um dos
principais poetas que estabeleceram as configurações do mundo dos deuses e
heróis gregos. Também critica o poeta tico Museu, discípulo de Orfeu, que faz
referência às recompensas escatológicas reservadas aos justos como sendo um
banquete onde os bem-aventurados embriagam-se eternamente
17
. Neste momento
inicia-se a especificação de características que formarão gradativamente no
decorrer do diálogo o paradigma de normas (tuvpo") que define a poesia,
conforme outros pontos forem identificados e acrescidos. Dessa forma, Platão
começa também a construir negativamente especificando como a poesia não
deve ser – um modelo para a poesia em geral que será explicitado no passo 378e8
379a9
18
onde Sócrates determina que os poetas devem observar as conclusões a
16
Cf. PLATÃO. op. cit. 363a8.
17
Cf. Ibid. 363c3 – d3.
18
“Ó Adimanto, de momento, nem eu nem tu somos poetas, mas fundadores de uma cidade. Como
fundadores, cabe-nos conhecer os moldes (tuvpou") segundo os quais os poetas devem compor
suas fábulas, e dos quais não devem desviar-se ao fazerem versos (...) quer se trate de poesia épica,
lírica ou trágica”.
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18
que chegarem sobre o modo como a poesia deve ser feita, assinalando
definitivamente o estabelecimento de um paradigma
19
.
Adimanto segue enumerando outros cinco pontos, além daquele que vimos
acima, nos quais a poesia encerra concepções sobre “o valor que homens e deuses
atribuem à virtude e ao vício” que Sócrates rejeitará em sua resposta dialogal. São
eles: A injustiça e a intemperança são coisa suave e fácil, odiosas apenas à
fama e à lei; A injustiça é mais vantajosa do que a justiça; Os maus são
felizes se forem ricos ou possuidores de outras formas de poder; Os deuses
atribuem a muitos homens de bem infelicidades e uma vida desgraçada, e aos
maus o contrário; É possível persuadir os deuses a obedecer à vontade humana,
absolvendo por meio de prazeres e festas, com sacrifícios, qualquer crime
cometido por um particular e até mesmo por seus antepassados, ou ainda
prejudicar um inimigo, quer este seja justo ou injusto, e, dessa forma, fazer dos
deuses servos dos homens. Estes seis tópicos do discurso de Adimanto, o de que
os poetas exaltam os benefícios oriundos da justiça e o a justiça em si mesma,
mais estes cinco últimos, caracterizam inicialmente o tipo de poesia que se
considerada má, que Sócrates desenvolverá inicialmente a crítica poética
contestando-os.
Após o discurso de Adimanto, Sócrates propõe que se busque a justiça
primeiramente na cidade, pois esta é maior do que o indivíduo, e, por ser maior, é
mais fácil de compreender (katamaqei'n) onde nela surgem a justiça e a
injustiça
20
. A cidade necessitadentre muitas outras coisas de uma categoria de
cidadãos de suma importância para a comunidade, que seja responsável por sua
segurança, já que cada indivíduo tem capacidade de desempenhar excelentemente
somente uma única função, aquela para a qual tem por natureza maior aptidão
21
.
A estes homens é dada, desde já, por parte de Sócrates, uma cuidadosa
atenção, que o leva a colocar a questão sobre de que forma deve-se criar e educar
19
No passo 377c7 d1 Sócrates diz que os mitos grandes ou pequenos deverão ser avaliados por
uma mesma matriz (tuvpo"). Desde então fica clara a intenção de se erigir um modelo que sirva
para toda a poesia. Porém, este tuvpo" não é ele mesmo uma poesia, mas um conjunto de regras a
serem respeitadas pelos poetas em suas composições, por isso preferimos chamá-lo de paradigma
de normas.
20
Cf. Ibid. 368e2 369b1. É interessante observar que a cidade é fundada porque é mais cil
ver onde nela se encontram a justiça e a injustiça, por se tratar de um âmbito maior do que um
único indivíduo. As considerações sobre a estrutura e o funcionamento da cidade são um recurso
para se encontrar a justiça e a injustiça na alma humana.
21
Cf. Ibid. 373d1 – 374a8. Princípio fundamental da natureza humana para Platão.
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19
esses homens. Esta pergunta inicia o processo dialético
22
em que Sócrates avalia a
poesia, seu estilo, seu conteúdo, seus autores, sua ação na alma humana e sua
função. Por hora, faremos recortes do argumento socrático nos pontos onde este
define as características dos mitos que devem ser proibidos e dos que serão
permitidos, e, em seguida, no restante desta seção, retomá-lo-emos a fim de
esclarecer os outros tópicos e de conectá-lo em sua unidade de raciocínio.
Atentemos à pergunta feita por Sócrates, é ela que orientará toda
investigação a respeito da poesia: “Mas de que maneira é que se hão-de criar e
educar estes homens?”
23
. A preocupação em estabelecer os parâmetros para a
poesia surge a partir da necessidade de educar os guardiões da cidade. É em
resposta a esta questão que se buscará estabelecer uma teoria sobre a poesia.
Assim, a crítica da poesia tem como pressuposto e será sempre feita em
observância à sua motivação, àquilo para o que se destina a poesia: a educação
dos guardas. Os mitos serão avaliados em razão de sua utilidade na formação dos
guardas, e sua beleza coincidirá com sua excelência ao direcionar as almas para o
que é belo.
A resposta que Sócrates fornece à questão feita por ele mesmo sobre a
educação dos guardas, ou melhor, à questão que se apresenta a ele como tal, uma
parte que necessariamente constitui o caminho da argumentação, é a resposta que
qualquer grego esperaria que fosse dada: a educação pela música e pela ginástica.
Platão filia-se, assim, à tradição, desenvolvendo seu projeto educacional a partir
das bases fornecidas por esta, como observa Jaeger:
“(...) antes de darmos ouvido à sua crítica, é importante deixar
claro que é sobre a paidéia da antiga Grécia (por mais reformas
que nela se introduzam) que a sua nova concepção filosófica
repousa.”
24
22
O método dialético estabelece uma hipótese, no caso: a educação dos guardas deve ser a
ginástica para o corpo e a música para a alma. Segue analisando o que supõe e o que decorre dessa
hipótese, extraindo suas implicações e verificando se a hipótese resiste ou se rui frente às
conseqüências. Em 411e5 412a2 Sócrates confirma a validade da hipótese admitindo a ginástica
e a música como as partes fundamentais da educação dos guardas, e, conseqüentemente, da própria
estrutura da cidade.
23
Cf. PLATÃO. op. cit. 376c8, 9.
24
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Arthur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. p. 767. Outro autor que também aponta uma continuidade entre a proposta
educacional platônica e a tradição é Hare: “(...) it is obvious that in the Republic, in his primary
education, Plato is consciously taking over, with modifications, the traditional Greek education in
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20
Feita esta ressalva, sigamos em nossa análise do tuvpo" do discurso
mitológico que deve ser proibido. A primeira censura apontada por Sócrates é a de
que Hesíodo, Homero e os demais poetas contam mitos que são falsos
25
, pois
apresentam erroneamente a maneira de ser de deuses e heróis
26
. Ao qualificar
determinados discursos míticos como falsos, Platão assinala a possibilidade de
mitos que sejam verdadeiros. Contudo, é necessário entendermos o sentido de
falsidade e de verdade
27
aqui envolvidos. Em Platão, fundamentalmente, os mitos
são histórias que narram mentiras (yeu'do")
28
, ou seja, representam o que,
modernamente, e, portanto, anacronicamente, classificaríamos de ficção. São
narrativas de fatos irreais sem correspondência com acontecimentos do mundo
fenomênico. Mas, mesmo sendo necessariamente falsos no sentido descrito acima,
Sócrates diz que os mitos podem conter alguma verdade. Assim, é relativo à
ausência de conexão com este nível da verdade que é feita a acusação de falsidade
aos mitos narrados por estes poetas. A mentira destes mitos é destituída de
nobreza (ouj kalov").
A crítica à forma pela qual são delineados deuses e heróis inicia a análise
do teor do mito. Platão aborda diferentes aspectos que caracterizam o conteúdo do
discurso poético da tradição. Sempre focando sua crítica nos principais ícones da
poesia, Homero e Hesíodo, e também fazendo referências frequentes a Ésquilo
29
,
ataca de forma contundente a maneira como estes retratam a região do Hades e as
ações de deuses e heróis, o seu caráter, o modo como se relacionam, os aspectos
intrínsecos à sua natureza, o tratamento entre os que são familiares, as motivações
que determinam seu comportamento, enfim, diversas caracterizações do âmbito
divino presentes nas obras destes poetas. Este primeiro componente do tuvpo" da
poesia que deve ser proibida detectado por Sócrates é definido como impiedade
‘music and gymnastic’ such as any well-born Greek boy could expect to receive (...)”. HARE, R.
M. Plato. London: Oxford University Press, 1984.
25
Cf. PLATÃO. op. cit. 377d4 – 6.
26
Cf. Ibid. 377e2, 3.
27
Trataremos do caráter de verdade do mito no item 2.1.3.
28
Ibid. 377a5, 6. “Ora, no conjunto, as fábulas são mentiras (yeu'do"), embora contenham algumas
verdades (ajlhqh').”
29
Platão retoma Ésquilo e mostra que apesar de tê-lo utilizado anteriormente como um exemplo
adequado (361b5 - 8) o poeta não escapa à exprobração, que em outras passagens sua obra
também relata de forma equivocada histórias sobre deuses e heróis.
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21
(ou[te o{sia)
30
. Porém, é preciso ressaltar que a impiedade rechaçada pela análise
socrática excede a esfera do sagrado, sendo principalmente por suas
conseqüências no âmbito político o motivo de sua desaprovação, como veremos
adiante no item “1.1.3” desta seção. A impiedade é ilustrada por diversas
passagens retiradas em sua maioria da Teogonia e da Ilíada, poemas
paradigmáticos da cultura e da paideiva gregas.
Sócrates segue a análise especificando os tuvpoi divinos que servirão de
parâmetro para a poesia. O que for estranho a esse modelo deve ser rejeitado. Essa
análise do conteúdo da poesia definirá, ao seu término, como os poetas devem
“(...) falar acerca dos deuses, das divindades, dos heróis e das coisas do Hades.”
31
.
A construção de um tuvpo" positivo para a poesia se inicia com a definição de um
aspecto da natureza divina. Deus é essencialmente bom, nada do que é bom é
prejudicial, o bem somente é causa de bens, assim, deus não é causa de tudo, mas
somente do que é bom. Logo, o se devem atribuir as desventuras humanas ao
deus. Esta é a primeira das leis (tw'n novmwn) a ser obedecida pelos poetas:
somente devem-se imputar ao deus os bens, mas nenhum mal deve ser atribuído à
divindade
32
.
Sócrates torna a enumerar outras impiedades cometidas pelos poetas.
Narrativas de querelas entre deuses, de estímulos a violações de juramentos e
quebras de tréguas entre os homens, que se somam às críticas que haviam sido
feitas às descrições de conspirações, de combates entre deuses e de inimizades e
conflitos entre aqueles que são familiares. Dentre todas estas restrições ao
conteúdo poético da tradição, Platão reafirma o primeiro item do tuvpo", o de que
a divindade jamais é causa de desgraças, mas, por ser naturalmente boa (ajgaqhv), é
fonte de bens aos homens, contrastando a tradição com sua proposta poético-
educacional. A ênfase dada a essa norma e sua proclamação como a primeira lei
(novmo") do modelo divino
33
manifestam a importância que Platão confere à
representação adequada do ser de deuses e heróis.
Três conseqüências decorrem de se qualificar a natureza divina da maneira
proposta por Sócrates: a primeira é que não mais é possível atribuir infortúnios
30
Cf. PLATÃO. op. cit. 380c2.
31
Cf. Ibid. 392a4. “(...)
peri; ga;r qew'n (...) ei[rhtai, kai; peri; daimovnwn te kai; hJrwvwn kai; tw'n ejn {Aidou.
32
Cf. Ibid. 380c9, 10.
33
Cf. Ibid. 380c7 – 10.
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22
pessoais aos deuses; a segunda é que o culpado de um delito, ao sofrer o castigo
imposto pelo deus devido ao ato que cometeu, está a expiar seu crime, e, portanto,
recebe um benefício, visto que o deus nunca é causa de males; e em terceiro,
sendo os deuses intrinsecamente bons, suas ações serão igualmente boas, e assim,
ao erigir as ações divinas como o espelho pelo qual se deve refletir a conduta
humana, modela-se o caráter dos homens na direção do bem. Platão constitui a
partir da concepção da condição divina o modelo ético pelo qual deseja que os
guardas da cidade sejam inicialmente educados
34
. Da primeira conseqüência
resulta a total responsabilidade do homem em relação a sua própria vida. Platão
exime o divino das faltas humanas e confere uma maior responsabilidade de cada
pessoa com sua vida ao delegar ao âmbito humano e às ações dos particulares a
origem dos infortúnios. Um indivíduo não pode culpar o deus pelo seu sofrimento
e nem justificar seus atos vis como insuflados por uma divindade, como fora
narrado tantas vezes pelos poetas. Da segunda, a compreensão de que nem sempre
o que se julga ser uma desgraça realmente o é, de que a punição é também uma
forma de purificação do crime, e não somente um castigo paradigmático para os
demais cidadãos e uma forma de proteger a sociedade de uma possível ameaça. A
terceira conseqüência da primeira norma da forma como a poesia deve representar
a natureza divina diz respeito ao caráter paidêutico do exemplo, tema que
abordaremos no item 2.1.3.
O segundo tuvpo" divino ataca uma prática comum entre os poetas, a de
apresentar os deuses mentindo e mudando sua forma em aparições aos homens,
fingindo ser alguém ou algo que não são para alcançar determinado objetivo, quer
seja em benefício próprio ou de outrem. Sócrates diz que o deus é de todas as
coisas o que é menos suscetível à mudança, pois é aquilo que em tudo é melhor e
não carece de qualquer parte da beleza ou da virtude. Dessa forma, para um deus
transformar-se será necessário que se torne algo pior do que era, que nada de
bom lhe faltava. Segundo Sócrates, ninguém, nem homem e nem deus, deseja
tornar-se inferior. Assim, conclui que até mesmo para um deus é impossível
transformar-se. “(...) cada uma das divindades, sendo a mais bela e melhor que é
34
Para Elizabeth Asmis, Platão não se restringe ao primeiro estágio da educação do guardas ao
estabelecer as normas poéticas, mas o mesmo tuvpo" também deve ser observado ao se fazer mitos
para os adultos. “... Plato considers poetry in the first place as a means of educating children to be
Guardians in his ideal state (...) but he soon extends his concern to adults. (Rep. 377a-b, 378d-e,
380c1, 387b4)”. ASMIS, E. Plato on poetic creativity, The Cambridge companion to Plato.
Cambridge: Cambridge university press, 1996. p. 374.
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23
possível, permanece sempre e de uma maneira com a forma que lhe é
própria.”
35
. Além da transmutação, também a mentira é completamente alheia à
natureza dos deuses. O ato de mentir é fruto de uma necessidade ou de um estado
de ignorância. Sócrates diz que se mente ou por desconhecimento da verdade ou
para a obtenção de alguma vantagem proveniente da mentira. Mas, nenhum deus
necessita de tal recurso, pois apenas é útil a quem deseja alcançar objetivos que
não conseguiria atingir através da verdade. Sócrates diz que seria ridículo supor
que um deus não tem capacidade de agir sem se valer de mentiras para se sair bem
sucedido em suas empreitadas. E ainda mais ridículo achar que os deuses mentem
por ignorarem os acontecimentos passados.
Esse segundo tuvpo" poético que os deuses o alteram sua forma e não
mentem é nitidamente estabelecido em isonomia com a própria estrutura inicial
da cidade. Os princípios sobre a natureza humana e sobre a função social de cada
cidadão, que constituem os elementos estruturais da cidade no momento de sua
fundação, a saber, que os homens possuem naturezas diferentes e que cada um
deve exercer somente uma única função de acordo com sua natureza para que o
resultado seja o melhor possível, o determinantes na composição das normas
poéticas, pois é devido a estes princípios que surge a necessidade de se reformular
o relato poético sobre a natureza divina, para adequar esse relato às necessidades
da paideiva que se fundamenta em tais princípios. Assim, não esse tuvpo" do
discurso poético, mas todos os que compõem o paradigma de normas são
estabelecidos em observância aos princípios fundadores da cidade.
“Plato, taking the view that the audience identifies itself with the
characters in the play or poem, and in this way imitates or acts the
parts of these characters, appeals at 394e to the principle of one
man one job, used in constructing the ideal state. The guardians
have the job of ruling the state, they are ‘the artificers of their
country’s freedom’. This is their sole task and they should play no
other role nor should they imitate.”
36
35
Cf. PLATÃO. op. cit. 381c8, 9.
36
CROSS, R. C. and WOOZLEY, A. D. Plato`s Republic. A Philosophical Commentary. London:
The MacMillan Press. 1980, p. 272.
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24
O princípio de que cada pessoa deve desempenhar uma função é
apresentado sob a forma de uma lei
37
e exige dos cidadãos uma constância na sua
conduta que, na concepção platônica, apenas pode ser alcançada através de uma
formação adequada do caráter (h\qo"). A noção que guia e perpassa todo esse
processo é a simplicidade (aJplovth")
38
. Após excluir a capacidade de
metamorfosear-se e de mentir dos deuses, Sócrates atribui a eles esta noção como
uma característica ontológica, bem como a verdade: (...) Deus é absolutamente
simples (aJplou'n) e verdadeiro (...)”
39
. Temos, pois, remodelado de acordo com
princípios da natureza humana e estruturais da cidade o segundo tuvpo" divino.
Dessa forma, Platão segue a construção do paradigma da figura dos deuses que
será utilizado no processo de formação do caráter dos guardas, que, segundo
Sócrates, era importantíssimo começar desde a primeira infância:
“Ora, tu sabes que, em qualquer empreendimento, o mais
trabalhoso é o começo, sobretudo para quem for novo e tenro?
Pois é sobretudo nessa altura que se é moldado (plavttetai), e se
enterra a matriz (tuvpo") que alguém queira imprimir numa
pessoa?”
40
Neste passo, ao empregar a palavra tuvpo" para referir-se a uma
determinada configuração da alma que deve ser construída inicialmente a partir
de uma educação adequada através da mousikhvde cada pessoa (eJkavstw/), Platão
aponta para a relação entre a poesia/mito com a alma humana. Tuvpo" é utilizado
no diálogo em dois sentidos: o primeiro, o que vimos analisando, utilizado para o
modelo da poesia
41
; e o segundo para especificar uma configuração indelével da
alma, formada pelos ensinamentos transmitidos pela poesia. Destacamos que os
parâmetros mitológicos são estabelecidos em conformidade com os princípios
37
Lei não deve ser compreendida no sentido de uma obrigação imposta por uma legislação ou
pelos costumes, ou seja, como coerção, quer seja externa ao indivíduo, como no caso das
instituições legais e das normas de conduta social; ou interna, como na determinação da vontade
pelo reconhecimento de uma lei moral que reprime as inclinações. Deve ser entendida como um
princípio que deriva da natureza das coisas e que coincide com a conduta do homem bem formado,
resultando em uma copertinência entre novmo" e fuvsi".
38
“Simplicity in mousikê makes for self-control as simplicity in physical culture makes for
health.” GRUBE, G. M. A. op. cit. p. 236.
39
Cf. PLATÃO. op. cit. 382e10, 11. “Komidh'/ a[ra oJ qeo;" aJplou'n kai; ajlhqe;"/ (...)”
40
PLATÃO. op. cit. 377a12 – b3.
41
Tuvpo", em relação à poesia, é empregado tanto referindo-se a um componente específico do
modelo poético, quanto para o modelo geral da poesia, o paradigma de normas, que é o conjunto
dos componentes estabelecidos pela crítica poética.
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25
fundadores da cidade, e, portanto, também a partir da natureza humana, na medida
em que o discurso mítico observa os princípios básicos que organizam a cidade, e
que por sua vez são determinados pelas características da natureza humana.
Podemos traçar a seguinte ordem de implicação: natureza humana
fundamentos estruturais da cidade tuvpo" poético tuvpo" da alma. Platão
confere enorme importância a esta estrutura de formação do indivíduo, pois
considera que neste momento as almas são moldadas por meio dos mitos
42
, e,
por isso, é necessário reformulá-los para que se adéqüem aos princípios que
constituem a forma de governo reta (ojrqh; politeiva) da cidade e formem cidadãos
de acordo com estes, que, apesar de serem princípios da própria natureza humana,
foram ignorados pelos poetas. Sempre que pensarmos sobre o tratamento dado por
Platão ao discurso poético, devemos considerá-lo como parte desta estrutura.
Ambas, poesia e alma devem ter seus tuvpoi firmemente definidos para que a
poesia possa iniciar o processo de formação de homens belos e bons, e para que a
cidade seja um reflexo das nobres qualidades incutidas desde a infância nas almas
destes homens.
“The health of the state as a whole depends upon the right
education of the guardians (…) The whole state is affected by
changes in the arts. Lawlessness in art leads to lawlessness in
general.”
43
A “educação correta”, à qual se refere Grube, tem como princípio os
parâmetros poéticos. A relação destes parâmetros com a cidade confere à poesia
função basilar na edificação da ojrqh; politeiva. Essa função torna a poesia
indispensável na construção da povli". Se em algum momento a poesia tiver que
ser removida da cidade, todo o processo inicial de formação dos guardiões tão
caro a Platão deve também ser descartado. Mas, não nos parece que Platão
esteja construindo todo um projeto educacional, em detalhes, para simplesmente
descartá-lo posteriormente. Uma possível total proibição da poesia inviabilizaria a
própria cidade reta. Mas, deixemos estas considerações para a análise do livro X.
42
Cf. Ibid. 377c3, 4. “ (...) plavttein ta;" yuca;" aujtw'n toi'" muvqoi" (...)”
43
GRUBE, G. M. A. op. cit. p. 236, 237.
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26
Devido à propriedade exemplar-formadora do caráter presente na poesia,
esta não deve apresentar os conteúdos a respeito dos deuses que foram narrados
pelos poetas. A profunda preocupação de Platão com este atributo do discurso
mitológico é novamente ressaltada por Sócrates:
“E que por sua vez as mães, convencidas pelos poetas, não
atemorizem os filhinhos, contando-lhes histórias errôneas, como
certos deuses vagueiam de noite, com aparência variada de
estrangeiros ou forasteiros, a fim de que, ao mesmo tempo, nem
blasfemem contra os deuses, nem tornem os filhos mais
medrosos.”
44
Neste passo, Platão torna manifesto seu desejo de evitar que a coragem de
um guardião possa minguar em conseqüência de histórias inadequadas que este
ouviu durante sua formação e que o modelaram covardemente. Ao contrário, o
projeto platônico para a poesia prescreve que os mitos devem apresentar os deuses
como paradigmas de excelência para que os guardas sejam nutridos desde a
infância pela virtude, para que estes formem seu caráter e realizem suas atividades
corretamente, como veremos no item 2.1.3.
Sócrates conclui a definição do segundo tuvpo" poético decretando que os
deuses não alteram sua forma e nem iludem os homens por meio de aparições ou
sinais, nem em vigília e nem em sonho. O deus é absolutamente simples e
verdadeiro, tanto em palavras como em atos, exatamente como os guardas devem
ser desde a infância. A poesia que os guardas ouvirão mesmo quando forem
adultos deverá observar estas mesmas normas
45
.
Em seguida, Sócrates exemplifica como os poetas se distanciam deste
parâmetro. Os exemplos desautorizados da tradição são retirados de Homero e de
Ésquilo
46
. Sócrates desaprova Homero por narrar na Ilíada Zeus enviando um
sonho a Agamêmnon. Analisaremos este passo mais adiante. Vejamos agora o
excerto de Ésquilo, que é o escolhido por Platão para encerrar o primeiro estágio
47
44
Cf. PLATÃO. op. cit. 381e2 – 7. O grifo é nosso.
45
Ver nota 27.
46
Segundo Maria Helena da Rocha Pereira, o fragmento provavelmente pertence à tragédia
perdida “O julgamento das armas ( {Oplwn krivsi").
47
Em 386a1 -5, Platão encerra as considerações sobre a natureza divina. “Quanto aos deuses, aqui
temos (...) aquilo que (...) devem ouvir desde a infância, e aquilo que não devem.”. Porém, depois
acrescenta mais um tuvpo" sobre os deuses. Por isso, dividimos em dois estágios a determinação
do teor teológico dos mitos.
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27
das determinações sobre o tuvpo" da natureza divina. O trecho é paradigmático,
pois vai contra as duas principais leis do tuvpo" divino, a saber, que os deuses
nunca são causa de males, e que os deuses não mentem. O poeta conta que Apolo
cantara um peã
48
nos esponsais de Tétis e Peleu, pais de Aquiles, louvando a
longevidade e a vida isenta de doenças que teria sua progênie. Porém, a Ilíada
conta que fora o próprio Apolo o assassino de Aquiles. O excerto, que é escrito
em primeira pessoa, apresenta Tétis acusando Apolo de tê-la enganado ao entoar o
hino, já que Febo
49
é o deus oracular-clarividente, conhecedor do que foi, do que é
e do que será. Tétis diz que o deus cometera um dolo para com ela.
Depois deste exemplo, Platão reafirma a função de paradigma para a
conduta humana desempenhada pela figura dos deuses, principal motor de seu
projeto de reformulação da poesia, como veremos adiante.
O segundo estágio da definição dos parâmetros mitológicos sobre as
divindades apresenta o terceiro e último tuvpo": os deuses não devem ser
representados sob o domínio de desejos (tw'n ejpiqumiw'n). Sócrates destaca quatro
formas de ejpiqumiva, o lamentar-se (ojduvromai / 388b8 - d), o riso excessivo
(ijscuro;" gevlw" / 389a4 - 8), o desejo sexual (ajfrodivsia / 390b6 – c8) e a
ganância (filocrhmativa / 390e3). Exemplifica cada um desses desejos que os
poetas atribuem aos deuses com passagens em sua maioria da Ilíada. Sócrates
reprova a representação do lamento de tis pela morte iminente de Aquiles, e de
Zeus por seu filho Sarpédon e também por Héctor. Os deuses não devem ser
descritos dessa maneira que, em sua função de paradigma de conduta para os
guardiões, somente devem ser representados praticando ações nobres. Platão
entende que, ao representar os deuses comportando-se de maneira ignóbil, a
poesia estimula tal comportamento. Se os maiores dentre os seres se entregam à
ações desmesuradas que caracterizam um estado emocional transtornado, na visão
de Platão, esta é uma brecha e até mesmo um estímulo para os indivíduos
procederem da mesma maneira. E tal coisa é tudo que Platão deseja evitar para
seus guardiões. A falta de controle dos desejos causa mudanças violentas, e a
48
Paiavn: “Canto ou hino coral de invocação, celebração, agradecimento, triunfo, louvor ou
exaltação, originalmente em honra a Apolo (no seu epíteto ou aspecto de Peão, médico dos
deuses), mas também estendido a outras divindades e a indivíduos importantes, e cantado em
ocasiões diversas como rituais, vitórias e campanhas militares, durante as libações, e em
acontecimentos públicos”. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva. 2001
49
Epíteto de Apolo.
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28
constância é um dos fundamentos da conduta na concepção platônica, que entende
que cada homem deve desempenhar apenas uma única função. O autodomínio é
outro motivo que leva Platão a recusar narrativas que apresentem deuses
sucumbindo aos desejos. Uma das ajretaiv que compõem uma alma harmoniosa
especificadas no livro IV será a swfrosuvnh
50
. Mas, mesmo no livro III esta ajrethv
aparece como uma das principais características que deve ser estimulada em
uma pessoa. Assim, o riso violento também deve ser eliminado das narrativas
teológicas, pois este também causa uma alteração brusca no indivíduo. Cenas
como a descrita na Ilíada (I. v. 599-600), na qual os deuses são representados sob
a ação de um riso inextinguível (a[sbesto" gevlw"), não serão permitidas na
poesia da ojrqh; politeiva.
O desejo sexual é representado por uma cena descrita na Ilíada, na qual
Zeus, ao ver Hera, é tomado pela volúpia e age completamente sob o domínio de
tal desejo, esquecendo-se amesmo de seus desígnios. O maior dentre os deuses
se mostra incapaz de controlar-se frente aos impulsos sexuais e revela quão pouco
é senhor de si (aujtov" a[rcwn). A tw'n ajfrodisivwn ejpiqumiva é a própria
presentificação do deus companheiro de Afrodite, Eros. Relativamente à
propriedade de Eros de turvar a capacidade de julgamento e de autodeterminação
da vontade, a descrição que Hesíodo faz na Teogonia, ao definir a natureza do
deus, não deixa sombra de dúvida da concepção poética de Eros como um deus
capaz de transtornar o equilíbrio e sobrepujar a vontade dos demais deuses e dos
homens.
“e Eros: o mais belo entre deuses imortais,
solta-membros, dos deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.”
51
Eros é um dos deuses primordiais na cosmogonia hesiódica. Um dos
princípios ontológicos do universo. Uma das principais forças que atuam sobre a
vida de todos os seres. E, se até mesmo os deuses são facilmente domados por
este deus, a vontade de um homem é que não poderá fazer frente a tal poder. O
império do desejo sexual, conforme é descrito pela tradição poética, nega a cada
50
Moderação dos desejos, autocontrole e temperança. LIDDELL & SCOTT. op. cit.
51
HESÍODO. Teogonia. Origem dos deuses. Tradução Jaa Torrano. o Paulo: Massao Ohno
Roswitha Kempf / Editores. 1981. v.120-122.
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pessoa a possibilidade de determinar racionalmente sua vontade contra a
imposição cega da vontade através do desejo. E, portanto, como toda a reforma da
poesia tem como finalidade adequar o discurso poético ao projeto educacional dos
guardiões, este tipo de relato acerca de Eros deve ser expurgado, a fim de que não
fomente nos futuros guardiões o que para Platão representa uma fraqueza do
caráter.
No livro IX, ao analisar a alma do tirano, que, segundo as palavras de
Sócrates, é o mais infeliz dos homens
52
, a natureza de Eros também é definida
como tirânica
53
. Porém, Eros possui esse caráter somente em uma pessoa que
cultive em sua alma toda espécie de prazeres, cuja vida seja repleta de desejos
desregrados:
“(...) quando os demais desejos, a zumbir em volta do amor,
repletos de incenso, de perfumes coroas e vinhos e dos prazeres
dissolutos de tais companhias, o fazem crescer e o alimentam até
atingir o máximo e colocam neste zangão o aguilhão do desejo, é
então que este protetor da alma, escoltado pela loucura, é tomado
de frenesi, e, encontrar em si algumas opiniões ou desejos
considerados honestos, mata-os e lança-os fora, para longe de si,
até varrer da alma a temperança e a encher de uma loucura
importada.”
54
Sócrates diz que Eros é um protetor da alma. Mas, se habitar uma alma sob
o império dos desejos, torna-se seu principal escravizador. Eros pode levar à
perdição uma alma já desorientada por uma “massa de desejos violentos”, sendo o
principal causador do desequilíbrio. Por essa razão a poesia deve abster-se de
narrar cenas onde Eros subjugue a temperança, para que o estimule tal
acontecimento no público.
Platão encerra a crítica aos desejos que são atribuídos pela tradição aos
deuses citando um verso de Hesíodo que diz que os deuses são convencidos por
presentes (dw'ra). Mas se se admitir tal disposição nos deuses, torna-se possível
fazer deles escravos da vontade humana, que é capaz de comprar a adesão dos
imortais através de sacrifícios e oferendas. Assim, seria possível ao homem
injusto expiar suas faltas junto às divindades graças à permissividade alcançada
52
Cf. 576c1 – 4.
53
Cf. 573b6.
54
573a5 – b4.
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30
através de uma espécie de suborno, e até mesmo prejudicar alguém justo, desde
que oferecesse presentes adequados aos deuses. Inaceitável para Platão, sem
dúvida, tal possibilidade. Os desígnios divinos jamais podem ser determinados
pela vontade dos homens como se estes fossem senhores dos deuses, pois como os
deuses apenas causam bens, agem sempre em vista do que é bom, como fora
estabelecido desde o primeiro tuvpo" divino. E ainda, se os deuses necessitassem
de algo dos homens que não pudessem conseguir por si mesmos, mas somente
através de um humano, pelo menos neste ponto os homens estariam em vantagem
relativamente aos deuses. Ora, é certo que em nada os homens eram considerados
superiores aos deuses, e, portanto, nunca poderiam efetivamente exercer nenhum
poder sobre eles. Assim, Sócrates determina que não se deve cantar (oujd` a/jstevon)
dessa forma a maneira de ser dos deuses. Este último tópico do terceiro tuvpo"
divino finaliza as considerações a respeito do que deve e do que o deve ser dito
pelos poetas a respeito dos deuses.
Outro componente dos tuvpoi poéticos é o escatológico. Ao fim da
primeira etapa da definição dos tuvpoi divinos, inicia-se uma pida consideração
a respeito do Hades (ejn {Aidou), em seu aspecto locativo, no começo do livro III.
O estabelecimento do tuvpo" escatológico tem o objetivo de fazer com que os
guardas da cidade temam a morte o menos possível, para que, em combate, sejam
corajosos (ajndrei'oi) para enfrentar os perigos, e para que prefiram a morte a
serem feitos escravos pelo inimigo. Os poetas devem louvar (ejpainei'n) o Hades, e
não descrevê-lo com adjetivos terríveis (deinav
55
), que causam temor a quem os
ouve, como fazem os diversos exemplos de Homero citados por Sócrates. A sorte
de Pátroclo, morto por Heitor na guerra, não deve ser narrada de modo que
amedronte aqueles destinados a enfrentar combates em prol da cidade. As
imagens e os símiles homéricos que descrevem o destino das almas no Hades
enfraquecem o ânimo e desestimulam atos de bravura, devido ao medo da morte
que instauram em quem os ou ouve. Trechos deste teor devem ser apagados e
substituídos por “um modelo (tuvpon) contrário a este, em conversas ou em
poemas.”
56
. Platão, mais uma vez, não deixa dúvidas sobre sua intenção de
55
Platão utiliza o epíteto de Perséfone, uma das divindades tectônicas, para qualificar os adjetivos
utilizados pelos poetas para descrever o Hades.
56
Cf. PLATÃO. op. cit. 387c10.
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reformular os mitos para utilizá-los na formação daqueles que o naturalmente
capazes de se tornar aptos a defender e governar a cidade.
Devemos observar ainda em relação ao tuvpo" escatológico que uma
diferença fulcral entre a concepção poética e a platônica, embora não seja
expressamente uma das normas estabelecidas para os poetas. No final do livro X,
Sócrates narra a história conhecida como mito de Er, que conta sobre o que sucede
às almas após a morte do corpo. Diz o mito que o guerreiro Er, morto em uma
batalha, recebe a tarefa de retornar à vida e contar aos homens o que presenciou
no além. A diferença entre a concepção homérica e a platônica se encontra no
tratamento dispensado às almas que descem ao Hades. Em Homero, todas as
almas têm o mesmo destino. Quer sejam justas ou injustas, as almas de todos os
homens têm a mesma sorte seguindo para o Hades assim que abandonam a vida.
Sem nenhum tipo de distinção entre elas, todas as almas padecem os mesmos
sofrimentos. Em Platão, há uma diferenciação no fim que as almas têm depois que
se desprendem dos corpos. De acordo com a vida que cada indivíduo levou, se
teve uma vida justa ou injusta, sua alma seguirá ora para um lugar ora pra outro.
Conta Er que todas as almas recém chegadas eram julgadas. Aqueles que tiveram
sua vida pautada pela justiça recebiam as recompensas por suas boas ações; ao
passo que os injustos sofriam os castigos necessários para expiar seus crimes.
“Fossem quais fossem as injustiças cometidas e as pessoas
prejudicadas, pagavam a pena de tudo isso sucessivamente, dez
vezes por cada uma (...); e inversamente, se tivesse praticado boas
ações e tivesse sido justo e piedoso, recebia recompensas na
mesma proporção.”
57
Platão reescreve o mito do destino das almas e altera o que considera
inadequado na história. O filósofo reforça, após defender a justiça em si mesma,
as vantagens que a acompanham. Certamente, considerava que este tipo de
narrativa funcionaria como um reforço positivo para que as pessoas adotassem um
comportamento justo.
Retomemos, agora, o passo da desaprovação da Ilíada de Homero que
deixamos para trás anteriormente. Sócrates adverte em 383a7: Ora, nós, que
57
Cf. Ibid. 615a6 – c1.
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elogiamos muita coisa em Homero, não louvaremos uma, que é o envio do sonho
por Zeus a Agamêmnon.”
58
. Esta forma de colocar a crítica sugere que, apesar dos
poemas homéricos possuírem pontos passíveis de censura, também apresentam
muitos (pollav) conteúdos que somente podem ser dignos de elogio por estarem
de acordo com os tuvpoi que estão sendo definidos. Anteriormente, vimos que
Ésquilo fora utilizado como um exemplo positivo de uma boa poesia e depois
rechaçado por enganar-se sobre as coisas divinas ao apresentá-las de maneira
inconveniente. Ou seja, nada impede que haja em uma mesma obra pontos
passíveis de censura juntamente com outros de acordo com as normas poéticas. A
partir do passo destacado acima a391c, Homero, que fora, juntamente com
Hesíodo, um dos principais alvos das críticas, será seguidamente citado de modo a
ser categoricamente desqualificado enquanto uma poesia adequada à educação de
homens que devem ser livres (ejleuvqeroi) e corajosos (ajndrei'oi). Mas não é uma
simples execração que Platão impõe a Homero. Haverá dois exemplos de sua
poesia, citados por Platão no livro III, que se encontram em conformidade com os
tuvpoi, embora possamos encontrar outros tantos em suas obras. Inicia-se a
definição do tuvpo" heróico. Platão escolhe quatro heróis: Diomedes, os dois
maiores dentre os gregos, Aquiles e Odisseu, e o rei troiano Príamo, pai de Héctor
e Páris. Quatro heróis que, com suas características individuais tomadas
conjuntamente, sintetizam as ajretaiv heróicas
59
. É perspicaz a escolha feita por
Platão destes heróis, para ilustrar o que permanece na educação dos guardas e o
que deve ser retirado, porque as características principais de cada um deles devem
estar presentes no caráter dos próprios guardas da cidade. Platão percebe que a
poesia tem o poder (duvnami") de transferir a excelência dos heróis mitológicos
para os homens.
Os primeiros itens do tuvpo" heróico o comuns a duas normas que
devem ser respeitadas pelos poetas ao narrarem a maneira de ser dos deuses, a
58
Polla; a[ra JOmhvrou ejpainou'nte" a[lla tou'to oujk ejpainesovmeqa, th;n tou' ejnupnivou pomph;n
uJpo; Dio;" tw/' JAgamevmnoni.
59
Homero estabelece a ajrethv desses heróis especificando propriedades que caracterizam cada um
deles. Odisseu: mh'ti" (argúcia); Aquiles: polu; fevrtato" ou a{risto" (o melhor); Diomedes:
boh;n ajgaqo;" (voz estentória). O canto V da Ilíada é conhecido como “A gesta de Diomedes”.
Atena lhe infunde audácia e ardor (mevno" kai; qavrso"), e Diomedes sobreexcede os demais,
ferindo dois deuses, Afrodite e Ares, colhendo glória suprema (klevo" ejsqlo;n); Príamo: mevga
(grande), simboliza a figura do soberano. Embora as tropas gregas estivessem sob o comando de
Agamêmnon, Príamo é rei único entre os troianos, ainda que houvesse outras tribos que vieram em
socorro de Tróia.
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saber, é proibido representar heróis entregues a gemidos e lamentos
(oi[ktou" kai; ojdurmou;") e também ao riso excessivo (ijscuro;" gevlw"). Dois
exemplos são escolhidos para ilustrar o primeiro caso. A cena talvez seja a mais
contundente de toda a literatura grega: Aquiles chorando desesperadamente,
lamentando a morte de Pátroclo. A outra cena é a de Príamo após assistir à morte
de Héctor e aos ultrajes de Aquiles ao cadáver de seu filho. Aquiles, transtornado
pela perda do amigo, espalha terra do chão pela cabeça, dentre diversas outras
atitudes bizarras. De Príamo, é dito que rola na imundície, completamente
entregue ao sofrimento. Novamente, o que mais incomoda Platão nessas cenas é o
descontrole das personagens, manifesto pela desmesura de suas ações. Ambos são
completamente dominados por suas emoções. Como estes heróis podem servir de
paradigma para a conduta de homens que devem ser ao máximo senhores de si
(aujtov" a[rcwn) e que devem ter comportamento comedido e simples? Esta é a
questão com a qual Platão se depara, e à qual responde: não podem. E este é o
ponto ao redor do qual giram as preocupações de Platão: estabelecer um
paradigma poético que engendre histórias “próprias para inclinar os jovens que as
ouvem à temperança”
60
e “ao domínio de si mesmo”
61
. Toda a construção dos
tuvpoi tem como objetivo atender a essa exigência. Mas não somente a meta de
formar um caráter temperante é o que orienta a reforma poética, mas também o
desenvolvimento das outras ajretaiv.
No passo 389e4 – 10, em meio a todas as críticas, Sócrates julga adequada
a bela fala (kalw'" levgesqai) de Diomedes, um dos comandantes aqueus, na
Ilíada. Diomedes ordena ao seu companheiro, Esténelo, que obedeça suas ordens.
Sócrates completa o exemplo citando a descrição do exército grego respirando
força (mevnea pneivonte") e avançando em silêncio, o que revela o temor pelos
seus chefes. Estes são exemplos a serem observados pelos futuros guardas, que
devem aprender a respeitar e obedecer seus superiores. Sócrates termina o elogio
destas passagens dizendo que devem ser permitidos todos os passos da mesma
espécie.”
62
. Ao contrário deste bom exemplo, contrapõe a fala de Aquiles ao se
dirigir a Agamêmnon, seu superior durante a guerra: “o vinho te pesa, tens cara de
cão, coração de veado”. Fica estabelecida a segunda norma do tuvpo" heróico: o
60
Cf. PLATÃO. op. cit. 390a4. “(...) ei[" ge swfrosuvnhn nevoi" ejpithvdeia ajkouvein.
61
Cf. PLATÃO. op. cit. 390b3 e 4. “(...) ejgkravteian eJautou' (...)”
62
“(...) kai; o{sa a[lla toiau'ta.” O negrito é nosso.
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respeito e a obediência pelos comandantes. Visto que o paradigma de normas visa
principalmente à formação dos futuros guardas da cidade, é necessário que tais
exemplos o sejam permitidos, para que não acabem sendo uma influência
para homens que terão de viver sob uma estrutura de ordem militar.
Em 390d1 – 5, Sócrates cita um trecho da Odisséia que, segundo ele,
deve-se ver e ouvir (qeatevon te kai; ajkoustevon). É uma recomendação vinda de
um dos legisladores da cidade tanto quanto as demais normas apresentadas contra
Homero, portanto tem a mesma importância das anteriores. Porém, poderíamos
objetar que, dentre todas as muitas restrições, estes são apenas dois exemplos. É
verdade, mas é preciso lembrarmo-nos de que Platão tem o objetivo de reformular
os mitos, para que estes se conformem ao seu propósito, por isso é mais
importante destacar onde estes mitos o se configuram de acordo com seu
objetivo de formação dos guardiões, na intenção de modificá-los. Mas, ainda que
não seja um simples descarte, na poesia que Platão normatiza não nenhum
espaço para o que o se enquadre completamente nos tuvpoi. Assim, mesmo que
haja pontos de acordo com as normas, os poemas de Homero, Hesíodo, Ésquilo e
dos demais não poderão ser permitidos na cidade construída pelo lovgo".
Retornemos ao excerto da Odisséia extraído por Platão.
batendo no peito, censurou o seu coração:
agüenta, coração, que já sofreste bem pior!.”
63
A fala narrada por Homero é de Odisseu. Após recém chegar disfarçado
em seu solar, vinte anos depois de sua partida para a guerra de Tróia, Odisseu se
enfurece por ter apanhado algumas de suas criadas flertando com os pretendentes
que invadiram sua casa na espera de que Penélope escolhesse um deles para se
casar. Estes homens estavam dissipando os bens de sua propriedade e ameaçavam
a vida de seu filho, Telêmaco. No momento em que as saindo do interior da
casa para encontrá-los, sente seu coração se agitar na ânsia de matá-las naquele
instante. Mas Odisseu exorta a si mesmo a não ceder à cólera, pois revelaria seu
disfarce e poria a perder seus ardis de eliminar os soberbos pretendentes. Assim,
mesmo raivoso e ultrajado controla-se, recordando que sofreu mal maior no dia
63
PLATÃO. op. cit. 390d4, 5. O trecho é do canto XX. 17-18.
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em que alguns de seus companheiros de regresso ao lar foram devorados pelo
ciclope, Polifemo. Odisseu rememora que a fuga da caverna do ciclope se deu
graças a sua astúcia. Dessa forma, é possível que também seja por seu engenho
que sobrepujará os pretendentes. Odisseu mostra-se prudente e sábio, pois, apesar
de contar com a ajuda da deusa Atena, os pretendentes o muitos e será preciso
uma boa estratégia para vencê-los. Contendo seu impulso inicial, age com
sensatez persuadindo “seu coração”, que, nas palavras de Homero: “(...)
descansou em profunda calma e resistiu com bravura.”. Anteriormente, um dos
pretendentes o havia ofendido e desferido nele um chute. Porém, Odisseu
suportou toda humilhação e conteve-se para não matá-lo a pancadas. Em seguida,
disse: (...) tenho um coração paciente por muitas adversidades ter sofrido nas
ondas e na guerra (...)”. A ação do herói é comedida e refletida em diversas partes
da narrativa. A conduta de Odisseu com suas servas é um exemplo a ser seguido
pelos jovens que deverão se tornar guardiões da cidade. Diz Sócrates que, quando
a poesia apresentar atos de firmeza praticados por homens ilustres
(ejllogivmwn ajndrw'n), frente a todos os perigos, quer sejam descritos ou
executados, deve-se ouvi-los e vê-los, ou seja, a poesia deve ser representada. Esta
recomendação pela poesia homérica mostra que, apesar de todas as críticas, não
há uma restrição incondicional à tradição; e que nada impede que haja na épica ou
na tragédia, como o exemplo de Ésquilo
64
, a possibilidade de narrar mitos
apropriados à educação inicial dos guardas. Mitos que moldem crianças e jovens
de tal forma que façam com que se tornem obedientes aos seus chefes e senhores
de si relativamente aos prazeres, quer sejam da bebida, de Afrodite ou da comida.
Esta é a razão que fará com que a Odisséia de Homero seja desqualificada:
estimular um caráter duplo nos jovens por não manter uma constância na conduta
do herói e criar um contraste e até mesmo uma oposição à representação comedida
que analisamos acima. Assim, passagens como na que Odisseu que Sócrates diz
ser o mais sábio (sofwvtaton) dos homens diz que a coisa mais bela
(kavlliston) no mundo é banquetear-se diante de mesas fartas de pães, carnes e
vinho; e a que seu companheiro de regresso ao lar, Euríloco, fala que o mais
lamentável é morrer de fome, mesmo que seja cumprindo o seu destino, deitam a
perder todo o poema. Essa dualidade de personalidade do herói, que hora
64
Ver p. 3 e 4.
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apresenta uma atitude sensata e em outro momento fala imprudentemente, é, aos
olhos de Platão, uma falta grave para uma poesia que deve desempenhar uma
função educacional em uma comunidade onde é exigido que cada membro exerça
apenas um único ofício, sendo o mais constante possível em sua conduta.
Homero também é censurado por representar Aquiles maldizendo e
afrontando Apolo e outros deuses, na Ilíada. Platão diz que Homero retrata
Aquiles como um espírito desordenado (tarach'"), exatamente o oposto de como
devem ser os guardiões da cidade. Por isso, Sócrates diz que não pode permitir
que os homens acreditem que Aquiles, sendo filho de uma deusa e de um homem
sensato
65
, era ímpio e ambicioso. Novamente fica clara a preocupação de Platão
com a influência do mito sobre a personalidade dos guardas. Estes não podem ser
persuadidos de que o maior dentre os gregos tinha tal disposição de caráter, sob
pena de que eles próprios assumam essas características em si mesmos. Este tipo
de mito é prejudicial a quem o ouve, pois:
“Efetivamente, cada um arranjará desculpa para a sua maldade, na
convicção de que assim procedem e procederam também ‘os
descendentes dos deuses, parentes de Zeus, a quem pertence o altar
de Zeus ancestral no Monte Ida, lá nas alturas (...)”
66
Sócrates conclui o tuvpo" heróico com o passo 391e10 – 392a2, que é o fio
condutor de nosso estudo sobre a análise que Platão faz da poesia nos livros II e
III. Os mitos que não obedecerem as normas poéticas devem ser proibidos para
que não estimulem o mal entre jovens. Este é o veredito final com que Platão
termina a parte da teoria poética que trata do conteúdo dos mitos nos livros II e
III. Porém, Sócrates se conta de que apesar de ter estabelecido junto com seus
interlocutores os tuvpoi divino, heróico e escatológico, ainda resta um assunto
sobre o qual versam os mitos que é preciso regular, a saber, o tuvpo" humano.
“– Ora pois prossegui eu que outra espécie de histórias nos
resta ainda para distinguir as que se devem das que não se devem
narrar? Com efeito, se disse como se deve falar acerca dos
65
Aquiles era filho de uma das Nereidas, Tétis e do mortal Peleu.
66
Cf. PLATÃO. op. cit. 391e7 - 10.
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deuses (qew'n), das divindades (daimovnwn)
67
, dos heróis (hJrwvwn) e
das coisas do Hades ( {Aidou). Absolutamente. Portanto o que
falta seria o que diz respeito aos homens (ajnqrwvpwn)? – É
evidente.”
68
É preciso definir o que se dirá sobre os homens, a maneira como estes
devem ser retratados pela poesia. Queremos chamar a atenção para o que se segue.
Sócrates diz em 392a10,11: Mas é impossível, meu amigo, regularmos esse
assunto nas presentes circunstâncias.”. Neste momento fica evidente que,
apesar de ser necessário estabelecer o que os poetas dirão sobre os homens,
Sócrates considera que não é possível fazê-lo nestas circunstâncias. A razão dessa
impossibilidade é que muitos poetas, provavelmente todos, relatam, em algum
momento de suas obras, pessoas injustas como sendo felizes e as justas como
desgraçadas, e, que é vantajoso ser injusto se não forem descobertas as injustiças
praticadas. A posição defendida por Sócrates em relação à justiça é contrária a
esta apresentada pelos poetas. Por isso, antes de se definir o que se deve dizer
acerca dos homens, é preciso que se saiba o que é a justiça e se esta é proveitosa a
quem a possui, independentemente da opinião das demais pessoas.
“Por conseguinte, chegaremos a acordo quanto ao que se deve
dizer acerca dos homens, quando descobrirmos que coisa é a
justiça e se, por natureza, é útil a quem possui, quer pareça sê-lo
ou não.”
69
Não é possível estabelecer neste momento como se deve narrar as coisas
relativas aos homens, mas é necessário fazê-lo para que os poetas digam o que se
deve a respeito dos homens. Em razão disso, será preciso retornar ao assunto
futuramente quando se souber o que é a justiça e se é benéfica por si mesma.
Claramente, Platão nos diz que somente saberemos o que a poesia deve dizer
sobre os homens após sabermos o que é a justiça e quais são as vantagens que esta
oferece por si mesma. Como a justiça será definida somente no livro IV,
posteriormente a estas primeiras considerações sobre a poesia nos livros II e III,
67
O tuvpo" divino engloba a forma como devem ser retratados deuses e divindades
(qew'n kai; daimovnwn).
68
Cf. Ibid. 392a3 - 9. O grifo é nosso.
69
Cf. Ibid. 392c1 - 4.
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será necessário retornar à questão poética após o livro IV, para que se possa
conhecer de maneira completa o conteúdo da poesia. É como se Sócrates dissesse:
“Retornaremos a esse assunto para concluí-lo depois que soubermos o que é a
justiça.”. Pois é exatamente isto que faPlatão no livro X, em 603d10 – e2: (...)
parece-me agora necessário analisar o que então deixamos de lado (...) o homem
comedido (ajnhvr ejpieikh;") (...)”. Podemos notar aqui que o livro X é a última e
indispensável parte da teoria sobre a poesia iniciada no livro II. O retorno à
questão poética é nitidamente planejado por Platão desde o primeiro estágio da
crítica e colocado em prática no livro X.
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39
2.1.2
A duvnami"
duvnami"duvnami"
duvnami" do mito
Por que Platão dedica grande parte da República à poesia? Se a poesia
fosse inteiramente prejudicial aos indivíduos, será que Platão teria dispensado
tamanha atenção e cuidado à questão poética? Não seria mais objetivo apresentar
os argumentos racionais que deslegitimassem a poesia e relegá-la ao
esquecimento? Seria certamente uma atitude radical devido à importância que a
poesia havia adquirido na Grécia, mas seria uma tese radical entre tantas outras
apresentadas por Sócrates no decorrer do diálogo. Cabe-nos continuar
perguntando por que o tema merece um tratamento meticuloso, uma análise
detalhada, e mais, por que após parecer haver terminado as considerações ele
retorna ao tema para sua conclusão adequada. Dos dez livros que compõem a
República, três são quase que exclusivamente dedicados à análise poética, e isto
seria muito para um assunto a ser simplesmente descartado. O interesse que Platão
demonstra ter com a poesia transcende a importância que a poesia havia adquirido
no contexto histórico de seu tempo. Sua análise da poesia da tradição e da de seu
tempo busca estabelecer os parâmetros de uma poesia em sua cidade possível. A
crítica poética o deve ser tomada isoladamente em relação às demais
considerações da República. Não devemos pensá-la aplicada à realidade histórica
sem considerar as demais mudanças necessárias à cidade. Se o fizermos,
deturparemos o objetivo de Platão e criaremos uma teoria poética nonsense, que
ao nosso olhar pode parecer simplesmente um desejo desesperado de controle
materializado em um monstro censor. Não é esse o caso. Platão vislumbra o papel
fundamental que a poesia deve desempenhar na cidade fundada e administrada
filosoficamente. O interesse de Platão pela poesia é de quem encontrou uma
ferramenta para a realização de uma obra, mas antes tem que adaptá-la para que
tenha um desempenho adequado e seja verdadeiramente útil. Mas o que a poesia
encerra que a torna tão importante na manutenção da cidade da República?
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40
“The important place given to poetry and music is no novelty, and
Plato is fully Greek in believing that they have tremendous power
in moulding character
70
Este reconhecimento do poder da poesia sobre as almas (yucav") feito por
Platão é o que assegura seu lugar na cidade. Esta característica da poesia a torna
uma ferramenta única e indispensável na formação dos guardas. Única porque
nenhuma outra forma de instrução ou transmissão de conhecimento pode exercer
o efeito atingido pela poesia no primeiro estágio da paideiva; e indispensável pois
a educação dos guardas é o pilar central de toda a estrutura da cidade. Por hora,
vejamos mais detalhadamente que tipo de poder é esse da poesia e como ele se
configura.
Platão acredita que a poesia incide diretamente na alma e sua ação
constitui em condicioná-la de acordo com as concepções veiculadas pelo poema.
Assim, se o conteúdo do poema apresenta idéias vis, é provável que o ouvinte ou
espectador que tiver contato freqüente com o poema durante os primeiros anos de
sua vida acabe desenvolvendo as mesmas idéias em si mesmo e se torne uma
pessoa má.
“– Ora, tu sabes que, em qualquer empreendimento, o mais
trabalhoso é o começo, sobretudo para quem for novo e tenro?
Pois é sobretudo nessa altura que se é moldado (plavttetai), e se
enterra a matriz (tuvpo") que alguém queira imprimir numa
pessoa?
– Absolutamente
Ora pois, havemos de consentir sem mais que as crianças
escutem fábulas (muvqo") criadas ao acaso por quem calhar, e
recolham na sua alma opiniões na sua maior parte contrárias às
que, quando crescerem, entendemos que deverão ter?
– Não consentiremos de maneira nenhuma.
_ Logo, devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e
selecionar as que forem boas, e proscrever as más. As que forem
escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a contá-las às
crianças, e moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito
mais cuidado do que os corpos com as mãos. Das que agora se
contam, a maioria deve rejeitar-se.”
71
70
GRUBE, G. M. A. op. cit. p.235. O grifo é nosso.
71
PLATÃO. op. cit. 377a10 – c5.
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41
Cross e Woozley defendem que a ação da poesia é tão poderosa para
Platão, que o autor considera que ocorre uma identificação do público com as
personagens retratadas pelos poetas
72
. Porém, a influência da poesia talvez possa
ser considerada a partir de uma perspectiva ainda mais forte, já que a identificação
com as personagens míticas o se configura como um ato da vontade, mas um
acontecimento independente de uma escolha voluntária da consciência. Platão não
defende que haja simplesmente uma imitação – no sentido moderno da palavra – a
partir de uma decisão pessoal, mas demonstra acreditar em um fenômeno de
assimilação das personagens por parte dos indivíduos que faz com que seu próprio
caráter se construa de acordo com as falas e ações que delineiam o caráter das
personagens no mito. Uma espécie de transferência do caráter das personagens
para os ouvintes do poema. Platão percebe que a identificação entre aquele que
ouve e/ou o mito com as personagens deste afeta sua conduta pessoal de tal
maneira que as ões das personagens se tornam referência de conduta para o
ouvinte ou espectador. Parece ser isto o que Platão quer dizer quando utiliza a
forma passiva do grego (plavttetai) e o infinitivo (plavttein) do verbo plavssw
(moldar) no trecho acima. Os poemas moldam as almas das crianças, pois as
estimulam a agir conforme os deuses e heróis mitológicos, e os acontecimentos
retratados incidem diretamente na formação do imaginário infantil. Em 365a9,
Platão ilustra a maneira como a poesia age nos jovens. As idéias veiculadas pelas
histórias são absorvidas pelas crianças que as reproduzem em suas próprias vidas,
pois:
“(…) ao ouvi-las, que pensamos que fazem as almas dos jovens
que forem bem dotados e capazes de, andando como que a volitar
em torno de todas, extrair delas uma noção do comportamento
que uma pessoa deve ter e da espécie de caminho por que deve
seguir, a fim de passar a existência o melhor possível?”
73
72
“Plato, taking the view that the audience identifies itself with the characters in the play or poem,
and in this way imitates or acts the parts of these characters, (…)” CROSS & WOOZLEY. op. cit.
p. 272.
73
PLATÃO. op. cit. 365a6 – b2. O grifo é nosso.
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42
R. Nettleship observa que o método de educação platônico "(...) depends
upon the theory that human soul is essentially an imitative thing, that is, that it
naturally assimilates itself to its surroundings.". Toda a estrutura desse início da
paideiva subentende essa característica psicológica da natureza humana. A
imitação é o ponto de partida para se cultivar na alma das crianças os valores que
serão indispensáveis para que sejam verdadeiras guardiãs em sua vida adulta.
Platão se conta de que graças à "maleabilidade" intrínseca à infância, ao se
cercar a criança de exemplos de uma conduta virtuosa, torna-se possível incutir
nela noções que constituirão desde cedo um caráter nobre. Mas, para que as
características de caráter apresentadas pela poesia se desenvolvam no decorrer do
tempo, é indispensável que haja um contato freqüente das crianças com os mitos.
A partir deste contato constante, as crianças criam o hábito de imitar aquelas
atitudes que são características de um caráter nobre: ser corajoso, justo, piedoso,
sábio, etc. O hábito é o ponto fundamental para converter a simples imitação
inicial em algo inerente à própria natureza do indivíduo:
“(...) as imitações, se se perseverar nelas desde a infância, se
transformam em hábito e natureza para o corpo, a voz e a
inteligência (...), partindo da imitação passam ao gozo da
realidade.”
74
Neste passo, revela-se todo o poder da poesia. O poder da “ficção” se
tornar realidade, transferindo suas características para o mundo fenomênico. É
interessante determos nossa atenção neste ponto. Platão não está sendo reticente e
nem usando meias palavras, está sendo bem objetivo: o hábito de se imitar
transforma aquilo que se imita em natureza para aquele que imita. Desenvolver
nos jovens o hábito de praticar ações elevadas, acostumá-los ao que os tornará
pessoas de alma nobre, e assim formar caracteres de virtude, essa é a tarefa que
Platão reserva à poesia. A imitação que Platão propõe na República é um meio
para o ensino de noções que têm por objetivo acostumar o jovem àquilo que de
mais elevado na natureza humana e afastá-lo de exemplos de vicissitudes que
poderiam corromper a integridade de seu caráter. Assim, a poesia deve somente
74
Ibid. 395c8 – d3. O grifo é nosso.
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43
apresentar ões insignes. Mas esta determinação conteudística não visa apenas à
poesia, mas todas as formas de arte.
“Devemos é procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza
habilitou a seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito, a
fim de que os jovens, tal como os habitantes de um lugar
saudável, tirem proveito de tudo, de onde quer que algo lhes
impressione os olhos ou os ouvidos, procedentes de obras belas,
como uma brisa salutar de regiões sadias, que logo desde a
infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a
estar em harmonia com a razão formosa.
75
Cercar os jovens com imagens do belo para que eles assimilem em si
mesmos essa idéia e tornem-se, por meio da imitação dessas imagens, belos.
Platão nos diz que essas imagens do belo estão em harmonia com a própria razão,
que é bela. Há, assim, uma conformidade entre as imagens do belo produzidas
pela arte e a bela razão.
“The first and most obvious instance of this imitative tendency is
the force with which the example of other men acts upon us;
hence the importance of accustoming the soul to think about great
men and to have a worthy conception of the gods it worships. But
the same thing is revealed in another aspect when we come to
consider the effect of art, for the soul, Plato thinks, assimilates
beauty from contemplating it; (...)”
76
Porém, neste trecho de Nettleship, vale enfatizar que o é pela
contemplação que se assimila o belo, mas através da imitação, como o próprio
autor observa no início. Assim, o processo pelo qual se a transferência do
caráter (h\qo") da personagem mítica para o indivíduo é a imitação (mivmhsi"). O
conceito de mivmhsi" extrapola o representar uma personagem em determinada
situação e se estende para uma incorporação da personagem na vida pessoal.
Devido à assimilação do caráter proporcionada pela poesia, o indivíduo passa a ter
suas ações inspiradas nas personagens e passa a agir da mesma forma que agiria a
75
Ibid. 401c4 – d2. O grifo é nosso.
76
NETTLESHIP. R. op. cit. p. 78 e 77. O grifo é nosso.
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44
personagem se se encontrasse em uma situação similar a qual o indivíduo se
encontra. Este fenômeno de transferência de caráter analisado na República é
profundamente diferente da simples representação cênica de um ator
contemporâneo. Cross e Woozley, ao considerar a tradução de mivmhsi" na
República, apresentam o comentário de Cornford que diz que “the actor does not
‘imitate’ Othello, whom he has never seen; he represents or embodies or
reproduces the character created by Shakespeare”. Como dissemos, não é com
este aspecto da mivmhsi" que Platão está lidando quando considera seu efeito
educador para a formação dos guardas. Assim, a tradução de Cornford em 595a5
para o adjetivo mimhtikhv como “the poetry of dramatic representation” pode não
ser adequada, que neste passo, no início do livro X, Platão está retomando a
conclusão de toda a teoria poética dos livros II e III, onde a mivmhsi" é analisada e
reformulada em função de sua utilização educacional. A tradução por “poesia de
representação dramática” pretere toda a questão da duvnami", a incorporação, a
assimilação, a transformação do caráter do espectador pela poesia. Neste passo,
acreditamos não estar de acordo com o texto platônico a tradução de
mivmhsi" apenas pelo seu aspecto cênico.
Mas por que razão Platão escolhe começar a educação dos guardas por
uma representação de imagens belas em harmonia com a própria bela razão e
não por uma exposição positiva da verdade através da dialética, como
posteriormente será desenvolvida nos livros VI e VII? Em sua análise do primeiro
nível do sistema educacional platônico, Nettleship diz que nele nada é dito sobre a
forma de um ensino direto
77
. Nenhum ensinamento é transmitido nos moldes de
uma educação formal. Através da poesia, inicia-se a educação mesmo antes de
uma paideiva sistemática. Sócrates diz que os mitos são contados às crianças antes
de elas freqüentarem os ginásios. Mas qual a necessidade de se valer dos mitos na
educação? Certamente, seria mais objetivo argumentar dialeticamente com as
crianças em prol da justiça, coragem, temperança, sabedoria, mas muito pouco, ou
ainda nada funcional. Platão reconhece e aponta a razão disso. Em 378a3,
Sócrates diz que não se deve contar mentiras sobre os deuses a gente nova,
ainda privada de raciocínio
78
; em 378d7,8, Sócrates diz que “quem é novo não
77
Idem.
78
“(...) prov" a[fronav" te kaiv nevou"
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é capaz de distinguir o que é alegórico do que o não é
79
; e, em 402a2, Sócrates
diz que a educação pela música torna a alma perfeita e ensina a odiar as coisas
feias desde a infância, antes de se ser capaz de raciocinar
80
. Daí a necesidade
da utilização dos mitos nos primeiros anos de paideiva; as crianças não são
capazes de compreender uma argumentação mais sofisticada, pois ainda não
desenvolveram sua racionalidade. O estágio de desenvolvimento do processo
educacional nos livros VI e VII supõe uma faculdade que ainda o se
desenvolveu nas crianças, que é o elemento da alma responsável pelo
conhecimento dialético, o entendimento. Os mitos surgem como uma alternativa
eficaz para suprir a quase ausência do aparato racional. Valendo-se de uma
linguagem simbólica, de fácil compreensão pelas crianças, a poesia explora as
principais disposições da infância, como a fantasia e a imaginação. O início da
formação dos guardas tem a tarefa de orientar a alma para o que é bom, e o faz
através de uma linguagem que cativa, estimula e envolve o interesse de crianças e
jovens, pois age sobre os sentimentos, que são o que de mais intenso nesse
estágio da vida humana. Assim, a incapacidade da infância para o aprendizado
dialético torna necessária uma forma de se educar que dispense o raciocínio, pois
é preciso, desde cedo, formar nos futuros guardiões o gosto pelo que é bom e
belo
81
. O mito assume a função de educar quando o nível mais elevado de
educação simplesmente é inadequado e ineficaz.
A poesia pode desempenhar o papel de educar graças à sua duvnami", o
poder de moldar a alma. As personagens mitológicas, como deuse e heróis, têm a
força necessária para despertar e mobilizar a atenção dos mais jovens, e, por isso,
podem incutir em suas almas o exemplo das atitudes que praticam nas histórias.
Por isso Platão toma todo o cuidado na formação dos tuvpoi, pois, se forem
adequamente estabelecidos, farão dos jovens homens de bom caráter; e se não
forem, deitarão a perder o apenas uma alma, mas toda a cidade. Assim, a
duvnami" da poesia não é boa e nem má a priori. Se for bem utilizada, os mitos são
uma ferramenta indispensável para o primeiro estágio educacional; mas se não se
79
JO ga;r nevo" oujc oi|ov" te krivnein o{ ti te uJpovnoia kai; d j mhv.
80
“(...) pri;n lovgon dunato;" ei\nai labei'n (...)”
81
Cf. PLATÃO. op. cit. 401a1 – 402a2. “(...) aquele que foi educado nela [música] (...) honraria as
coisas belas, e, acolhendo-as jubilosamente na sua alma, com elas se alimentaria e tornar-se-ia um
homem perfeito; ao passo que as coisas feias, com razão as censuararia e as odiaria desde a
infância (...)” O grifo é nosso.
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cuidar do conteúdo das histórias, considerando seu efeito na formação do caráter,
os mitos se revelam altamente prejudiciais e devem ser proibidos. A intenção de
Platão é aproveitar positivamente esse poder que o discurso mitológico tem sobre
a alma, utilizando-o como peça fundamental de seu sistema educacional.
É evidente a principal razão que Platão tem para censurar a produção
poética: os mitos quase sempre apresentam conteúdos que estimulam o que de
ruim na natureza humana. Devido à duvnami" da poesia, se não forem osbservados
os paradigmas estabelecidos por aqueles que detêm o conhecimento daquilo que é
proveitoso e do que é prejudicial, o efeito da poesia pode ser devastador. Assim,
não há possibilidade de deixar que o conteúdo das narrativas seja livremente
determinado pelos poetas, já que estes se mostram muitas vezes ignorantes sobre
o que deve e o que não deve ser representado em um poema. A duvnami" da poesia
pode exercer em diversos momentos um efeito negativo para a formação dos
jovens, fomentando em suas almas o que Platão classifica de “uma propensão para
o mal”.
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47
2.1.3
Possibilidades reservadas aos mitos: o caráter de utilidade e
de verdade da mentira
Retornemos ao final da acusação que Adimanto faz aos bios, no livro II,
que fornece os problemas essenciais do discurso poético e ensejo a toda crítica
literária desenvolvida por Sócrates.
“Meu caro amigo, de todos vós, que proclamais defensores da
justiça, começando nos heróis de antanho, cujos discursos se
conservaram, até aos contemporâneos, ninguém jamais censurou
a injustiça ou louvou a justiça por outra razão que não fosse a
reputação, honrarias, presentes, dela derivados. Quanto ao que
são cada uma em si e o efeito que produzem pela sua virtude
própria, pelo fato de se encontrarem na alma do seu possuidor,
ocultas a homens e deuses, ninguém jamais demonstrou
suficientemente, em prosa ou em verso, até que ponto uma é o
maior dos males que uma alma pode albergar, ao passo que a
outra, a justiça, é o maior dos bens. Se, portanto todos vós
falásseis assim desde o começo, e nos persuadissem desde
novos, não andaríamos a guardar-nos uns aos outros para não
praticarmos injustiças, mas cada um seria o melhor guardião de
si mesmo, com receio de coabitar com o maior dos males, se
praticasse a injustiça.”
82
Adimanto deixa claro no decorrer de sua argumentação que tais sábios são,
na verdade, os poetas. Estes eram amplamente utilizados na educação dos jovens e
suas obras foram, até certo momento, os manuais de educação do mundo helênico.
Mesmo no tempo de Platão, suas obras desfrutavam de influência e prestígio na
formação dos jovens, como comprovam os próprios escritos platônicos. Mas,
nenhum poeta foi capaz de demonstrar que a justiça é vantajosa por ela mesma, e
é por isso que todos os discursos poéticos que haviam sido escritos eram
inadequados para aquele que desejasse defender a utilidade da justiça em si
mesma. A poesia exaltava virtudes como a temperança e a justiça, mas de maneira
equivocada, que, na verdade, festejava as recompensas que recebe aquele que é
justo. Platão pretende, na República, suprir essa deficiência da poesia. Mostrar
que ser justo é imprescindível para se viver uma boa vida, independentemente das
Cf. PLATÃO. op. cit. 366e1 – 367a6. O grifo é nosso.
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48
vantagens materiais que advêm da justiça e da opinião alheia. Mas a obra de
Platão pretende ainda mais. Pretende fornecer o método pelo qual será possível
tornar as pessoas justas. E a peça central do método platônico é a educação.
Porém, a educação, como repara Adimanto, deve começar desde muito cedo,
ainda na infância, se se quiser cultivar a justiça e evitar ao máximo que a injustiça
se estabeleça na alma. Daí a primeira necessidade de se reformular o discurso
poético, pois a maneira como a poesia exalta a justiça deturpa a verdadeira razão
de se buscá-la e faz com que os jovens acreditem que é mais vantajoso parecer
justo do que ser verdadeiramente justo. Platão percebe a necessidade de fazer com
que os futuros cidadãos aprendam ainda na infância o verdadeiro significado das
ajrhtaiv através dos símbolos da linguagem mitológica. Como na infância ainda
não foram desenvolvidas as capacidades cognitivas necessárias ao aprendizado
dialético
83
, a única forma de ensiná-lo é por meio dos mitos. Por isso, a poesia
ocupa um lugar fundamental no processo educacional platônico, porque os jovens
extraem dela as primeiras “noções de comportamento que uma pessoa deve ter e a
espécie de caminho por que se deve seguir (...)”
84
. E esta é a razão pela qual é
preciso que “as primeiras histórias que ouvirem sejam compostas com a maior
nobreza possível, orientadas no sentido da virtude.”
85
. Somente é possível formar
o bom caráter nos cidadãos em seus primeiros anos de suas vidas por meio da
poesia, incutindo em suas almas as noções que serão necessárias para
desempenharem suas funções na cidade em suas vidas adultas. Mas, o discurso de
Adimanto também mostra o quanto pode ser perigosa a educação pela poesia,
exemplificando com trechos retirados dos maiores poetas gregos narrativas
inapropriadas ao cultivo da justiça, que será definida filosoficamente no livro IV.
Adimanto utiliza uma expressão um tanto curiosa para expressar o
resultado de se ensinar às crianças o quanto a justiça é por si mesma o maior dos
bens possíveis de alcançar. Adimanto diz que se os poetas retratassem isso em
suas obras “cada um seria o melhor guardião (fuvlax) de si mesmo”. O termo que
Adimanto emprega é o mesmo que será utilizado por Sócrates para especificar a
classe dos cidadãos de onde sairão os indivíduos responsáveis pela segurança e
83
Cf. Ibid. 378a3, 378d7,8 e 402a2.
84
Cf. Ibid. 365a8 – b1.
85
Cf. Ibid. 378e2 4.
“(...) poihtevon a} prw'ta ajkouousin o{ti kavllista memuqologhmevna pro;" ajreth;n ajkouvein. O
objetivo dos mitos é orientar a alma para a virtude.
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49
adiminstração da cidade, e que são os homens e mulheres para os quais, em
primeira instância, são estabelecidos com fins educacionais os princípios poéticos.
Assim, Adimanto também antecipa em sua fala um dos pilares da cidade que será
fundada por iniciativa de Sócrates para que eles possam descobrir mais facilmente
o que é a justiça e qual sua utilidade para quem a possui. Adimanto diz que se os
poetas ensinassem os reais benefícios de se cultivar a justiça as pessoas não
precisariam guardar umas às outras, mas cada homem seria o melhor fuvlax de si
mesmo. E todo o sistema educacional platônico, inclusive a parte do ensino
através da dialética, tem por objetivo formar os melhores fuvlake" possíveis.
Dessa forma, Platão registra quase de maneira “acidental” antes da fundação da
cidade a colaboração indispensável do discurso poético para a formação da
índole de um guardião, que, posteriormente, será a classe de cidadãos de onde
surgirão os filósofos, aqueles que serão os mais capacitados ao governo do
Estado.
Despretensiosamente, Adimanto faz uma observação que a mesmo
poderia passar despercebida, se o leitor não tiver a atenção necessária à leitura de
um texto como o de Platão. Adimanto diz que somente existem duas maneiras de
se escapar à injustiça: a primeira, seria devido a uma dádiva dos deuses, que faria
a pessoa ser naturalmente avessa à injustiça; a segunda, seria alcançada através de
um saber adiquirido durante a vida. “(...) a menos que alguém, por um instinto
divino, tenha aversão à injustiça ou dela se abstenha devido ao saber que
alcançou, ninguém mais é justo voluntariamente (...)”
86
. Assim, se não nascermos
com uma característica divina que nos afaste da injustiça, será apenas através de
uma educação que poderemos aprender a amar a justiça e detestar tudo aquilo que
for injusto. Como são raríssimos os privilegiados por esta dádiva, é através da
educação que é possível fazer da cidade um lugar onde prevaleça a justiça. E,
como vimos anteriormente, para que se alcancem os melhores resultados, essa
educação deve iniciar-se ainda na infância. Mas como é possível ensinar as
maiores verdades através de um discurso essencialmente falso?
“– Mas duas espécies de literatura (lovgwn), uma verdadeira,
e outra falsa? Há. E ambas serão ensinadas, mas primeiro a
falsa? Não entendo o que queres dizer. o compreendes
86
Cf. Ibid. 366c9 – d3.
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50
disse eu que primeiro ensinamos fábulas (muvqou") às crianças?
Ora, no conjunto as fábulas são mentiras, embora contenham
algumas verdades.”
87
O passo acima não deixa dúvida que Platão atribui, efetivamente, um nível
de verdade ao mito. Nele, Platão revela sua crença de que a poesia encerra uma
conexão com a verdade. Cabe-nos perguntar, que verdade é essa que Platão vê no
discurso mítico? Primordialmente, na República, o mito é considerado uma
mentira, uma história que por mais anacrônico que seja o termo é “fictícia”.
Parece ser este o sentido que Platão quer atribuir ao mito quando o considera
como essencialmente yeu'do". Mas, ainda assim o mito também é ajlhqhv". Dessa
forma, é lícito falarmos que, na República, Platão considera que uma mentira
que é verdadeira. Uma mentira que tem a característica de “acomodar o mais
possível a mentira à verdade”
88
. Ao determinar os parâmetros que os poetas
devem obedecer na composição dos mitos, os fundadores da cidade criam a
possibilidade de a poesia se ligar à verdade, pois os tuvpoi são estabelecidos por
aqueles que detêm o conhecimento a respeito do verdadeiro e do falso. Os poetas
demonstraram diversas vezes em suas composições que desconhecem a verdade
sobre os assuntos que tratam, por isso as normas se fazem necessárias para que as
poesias somente apresentem conteúdos verdadeiros. Um exemplo de como os
poetas retratam de maneira equivocada suas personagens e incorrem em erro é
observado no passo 391b d. Sócrates enumera diversas ações atribuidas aos
heróis Aquiles, Teseu e Pirítoo que não se enquadram nas normas, pois são ações
desmedidas que se caracterizam pelo descontrole emocional. Por isso, os trechos
de tais poesias são qualificados por Sócrates como falsos (literalmente: o
verdadeiro - oujk ajlhqh'). Sócrates deixa claro que a falsidade desses trechos se
encontra no fato de estarem fora dos padrões poéticos e, consequentemente, serem
prejudiciais a quem os ouve. Platão vincula a poesia à verdade ao deixar a cargo
dos fundadores da cidade a determinação do conteúdo e da forma das histórias
que farão parte da educação dos guardas. A veracidade da poesia não é uma
correspondência do relato com determinada configuração no “mundo real”. A
história contada pelo mito não pretende ser “verídica”, no sentido de fazer
87
Cf. Ibid. 376e12 – 377a6.
88
Cf. Ibid. 382d3,4. “(...) ajfomoiou'nte" tw/' ajlhqei' to; yeu'do" o{ti mavlista (..)”.
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51
referência a um acontecimento do mundo fenomênico, mas em função de sua
observação aos modelos estabelecidos para a poesia. Sócrates nota que não é
possível saber ao certo se os conteúdos dos mitos realmente aconteceram da
maneira como serão contados, que o é possível saber “a verdade
relativamente ao passado”
89
. Mas o certo é que os relatos devem ser contados de
forma que se adéqüem às normas poéticas. Dessa forma, os poetas dirão a
verdade, ainda que por meio da mentira, que seguirão os tuvpoi estabelecidos
por aqueles que conhecem a verdade. Platão faz do mito um veículo para se
representar e assimilar a verdade através da mivmhsi". Jaeger observa que Platão:
“(...) reputa à poesia um importante veículo de cultura e expressão
de uma verdade superior, o que, porém, o obriga de novo a
modificar ou a suprimir nela, com todo o vigor, tudo o que seja
incompatível com o critério filosófico.”
90
O discurso mitológico tem a possibilidade de ser verdadeiro, mas todas as
poesias analisadas na República não concretizam essa possibilidade, por isso
devem ser modificadas. As obras examinadas por Sócrates revelam que todos os
poemas não são imitações da verdade. A imitação de falsidades é um aspecto da
mivmhsi" praticada por todos os poetas, e é caracterizada pela ausência de
conhecimento destes sobre aquilo que imitam. Os poetas desconhecem aquilo de
que se propõem falar e suas obras se tornam uma mentira prejudicial àqueles que
são influenciados por elas. Por isso, a crítica abrange toda a produção poética,
para evitar que os jovens formem idéias contrárias ao que é belo e bom
(kalov" te kajgaqov")
“Ora pois, havemos de consentir sem mais que as crianças
escutem fábulas fabricadas ao acaso por quem calhar, e recolham
na sua alma opiniões na sua maior parte contrárias às que, quando
crescerem, entendemos que deverão ter?”
91
A mentira que Platão critica na poesia são as idéias equivocadas que são
apresentadas erroneamente pelos poetas e que prejudicam os indivíduos que as
89
Cf. Ibid. 382d2,3.
90
Cf. JAEGER, W. op. cit. p. 773.
91
Cf. PALTÃO op. cit. 377b4 – 8.
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cultivarem através da imitação em suas almas. A mivmhsi" sem conhecimento será
um dos principais enfoques do segundo estágio da crítica desenvolvido no livro X.
A poesia assume a função educadora que os fundadores da cidade
reservam a ela. Obedecendo os parâmetros poéticos, a poesia exerce uma função
fundamental para a estrutura da cidade, a de ser a principal ferramenta responsável
pelo primeiro nível de educação dos guardiões. Por isso, a poesia se torna
indispensável para a cidade. Ao notar que através do mito é possível acomodar a
mentira à verdade, Platão agrega uma utilidade (crh'si") à mentira – o mito – que
é contada pela poesia. Para explicitar a utilidade da mentira, utiliza um recurso
que é recorrente em toda sua obra, a analogia. Platão diz que a mentira veiculada
pela poesia pode ser útil como um remédio
(wJ" favrmakon crhvsimon givgnetai
92
). Sócrates observa que a mentira é útil para
confundir o inimigo e para socorrer os amigos quando estes se encontrarem
pertubados por algum mal e tentarem praticar ações vis. A mentira surge como
uma opção para os desviar da prática do mal. E este será o papel da poesia: afastar
os guardas do mal e direcioná-los para a virtude. A analogia com a medicina se
faz presente também em outros diálogos. Na República, a figura do médico
representa aquele que detém os conhecimentos sobre o que é proveitoso e o que é
prejudicial à saúde do corpo. Platão faz uma analogia entre os médicos e os chefes
da cidade. Estes últimos, assim como os médicos conhecem o que é melhor para o
corpo, conhecem o que é preciso para nutrir uma alma para que se torne
“saudável”. Por isso, somente a eles é lícito usar do artifício da mentira, pois
eles podem fazer um bom uso deste recurso.
“Se, de fato, dissemos bem pouco, se na realidade, a mentira é
(...) útil aos homens sob a forma de remédio, é evidente que tal
remédio se deve dar aos médicos, mas os particulares não devem
tocar-lhe.?”
93
92
Cf. Ibid. 382c11. É insteressante ressaltar que favrmakon possui dois sentidos. Tanto pode ter a
conotação de remédio como também pode significar veneno. Da mesma forma como em português
a palavra “droga” carrega essa mesma ambigüidade. Assim, Platão imprime uma dinâmica ao texto
que a noção de que se “a mentira for receitada” por aqueles que, na legislação da cidade, se
equivalem aos médicos”, então seu poder será o de cura; ao passo que se aqueles que
“prescreverem a mentira” não tiverem o conhecimento necessário à sua utilização, seu efeito será o
de um veneno para a alma.
93
Cf. Ibid. 389b3 – 7.
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53
Sócrates diz que os chefes da cidade podem mentir em benefício da
cidade, mas que a todos os outros cidadãos é proibido mentir . O discurso poético
tem o poder de um remédio. Seu lovgo" yeu'do" deve cuidar das almas fazendo-as
desde cedo se acostumar apenas com o que de melhor na natureza humana.
Sócrates determina em 398b2,3 que o poeta deve ser escolhido tendo em vista sua
utilidade (wjfeliva) para a educação dos jovens, não em função do prazer que
proporcione por meio de diversos tipos de imitações. O poeta que permanece para
educar os futuros guardiões é austero, simples e compõe suas bulas de acordo
com os tuvpoi. Seus mitos têm o poder de formar a alma sadia.
“–Devemos mas é procurar aqueles dentre os artistas cuja boa
natureza habilitou a seguir os vestígios da natureza do belo e do
perfeito (tou' kalou' te kai; eujschvmono" fuvsin), a fim de que os
jovens, tal como os habitantes de um lugar saudável, tirem
proveito (wjfelw'ntai) de tudo, de onde quer que algo lhes
impressione os olhos ou os ouvidos, procedente de obras belas,
como uma brisa salutar de regiões sadias, que logo desde a
infância, insensivelmente os tenha levado a imitar, a apreciar e a
estar de harmonia com a razão formosa (kalow/' lovgw/)? Seria
essa, de longe a melhor educação.”
94
Neste passo temos aglutinados diversos elementos e definições sobre a
poesia. Segundo Sócrates, o artista deve seguir “a natureza do belo”, mas o que é
esse belo senão a própria idéia do belo? Os chefes da cidade são os únicos a quem
é lícito mentir, pois são os que podem utilizar a mentira em benefício das pessoas
e da cidade, por conhecerem aquilo que é verdadeiro, as idéias. Vale lembrar que
os chefes da cidade, posteriormente, serão identificados com os filósofos. A
poesia se revela como mivmhsi" da idéia do belo. Platão equipara as obras dos
artistas com a própria razão, dizendo que as impressões das belas obras de arte
sobre os jovens os levam a imitar a razão. A utilização da poesia na introdução
de bons costumes através do bito (“como habitantes de um lugar saudável”) da
imitação é a base da educação que deve ser iniciada quando os guardas ainda
forem crianças. Sem dúvida, Platão acreditava que essa era “de longe a melhor
educação”.
94
Cf. Ibid. 401c4 – d3. O grifo é nosso.
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54
Encerramos neste ponto a análise da teoria poética platônica tomando
como fio condutor o passo 391e10 – 392a2. Agora, prosseguiremos com o estudo
de algumas outras considerações sobre a poesia restantes do livro III.
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55
2.2
Continuação da análise do livro III
2.2.1
A levxi"
levxi"levxi"
levxi"
da poesia (392c6 – 398b10)
Ao término das especificações do conteúdo da poesia, segue a análise da
questão do estilo (levxi") da poesia. Assim, o procedimento de avaliação e
definição das normas poéticas, em seu primeiro momento, avaliou a questão dos
temas ou assuntos que a poesia deve retratar, estabelecendo os tuvpoi; e, a partir
deste ponto – 392c6 até 398b10 –, inicia um segundo momento que é a análise da
forma adequada à poesia que educa os guardas. Por forma da poesia, Platão
entende o que modernamente chamamos de discurso direto e discurso indireto.
Sócrates enumera três formas de discurso utilizadas pelos poetas: a narrativa
simples (aJplh; dihvghsi"), a imitação (mivmesi") e a combinação destes dois estilos
(ajmfovtera)
95
.
Quando o autor de um poema reproduz a fala das personagens como se
suas palavras fossem, na verdade, as falas das próprias personagens, caracteriza-se
o discurso direto. Platão exemplifica essa construção apresentando a fala do
sacerdote Crisis, que Homero representa no canto de abertura da Ilíada. Como a
personagem fala através do autor, o autor desaparece, pois se transforma na
personagem. Por isso o discurso direto é dito ser em primeira pessoa e apresenta
enunciados em primeira e segunda pessoas. Platão chama o discurso direto de
imitação (mivmesi"). Quando o autor assume o papel de narrador da história de
uma personagem, e os diálogos são incorporados à narração, caracteriza-se o
discurso indireto. Platão reescreve toda a fala do sacerdote, originalmente escrita
em primeira pessoa, na forma de discurso indireto, na terceira pessoa. Platão
chama essa forma de discurso de narrativa simples (aJplh; dihvghsi"). A terceira
levxi" é a conjugação das duas primeiras. Uma alternância entre a forma direta do
discurso e a narração. O termo usado por Platão para esta forma de composição é
ajmfovtera (ambas).
95
Cf. PLATÃO. op. cit. 392d6, 7.
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56
Um dos princípios que vêm norteando todo o estabelecimento das normas
poéticas, a saber, o de que cada homem deve exercer somente uma única função a
fim de que possa desempenhá-la o mais perfeitamente posível, é também
fundamental para a escolha da levxi" adequada à formação dos guardiões. Assim
como um indivíduo não deve desempenhar mais de uma tarefa na comunidade,
nenhum homem deve imitar coisas variadas, mas somente aquilo que for afim à
sua natureza e que for colaborar em seu processo educacional. Por isso, Sócrates
proibe que os guardas sejam mimhtikoiv, pois a caracterísca do imitador é imitar
todas as coisas sem distinguir o que é belo do que não é. Assim, além de não se
aprimorar unicamente em um tipo de imitação, por imitar tudo o que pode,
também imita o que é vil, baixo e prejudicial a si mesmo. Mas, ao contrário do
que se poderia imaginar, Platão não proibe a imitação como um todo. O texto
platônico é bem claro no que diz respeito a esta questão.
“Por conseguinte, se conservarmos o primeiro argumento, de que
os nossos guardiões, isentos de todos os outros ofícios, devem ser
os artífices muito escrupulosos da liberdade do Estado, e de nada
mais se devem ocupar que não diga respeito a isso, não hão de
fazer ou imitar qualquer outra coisa. Se imitarem, que imitem o
que lhes convém desde a infância coragem, sensatez, pureza,
liberdade e todas as qualidades dessa espécie. (...) O homem
que julgo moderado, quando, na sua narrativa, chegar à
ocasião de contar um dito ou feito de uma pessoa de bem,
quererá exprimir-se como se fosse o próprio, e não se
envergonhará dessa imitação, sobretudo ao reproduzir atos de
firmeza e bom senso do homem de bem (...)”
96
A mivmhsi" não é proibida, mas seu excesso, sua utilização indiscriminada
que não diferencia práticas honestas de ações indignas de serem representadas.
Sócrates lista alguns exemplos das ações que não devem ser imitadas: mulheres a
lamentar-se ou a condoer-se com o parto, escravos em suas funções, homens
perversos, covardes ou loucos, qualquer tabalhador de outra profissão que não
seja a de guardião, animais e sons da natureza. Platão defende que a imitação não
pode ser a característica preponderante da poesia, mas que, apesar da forma do
discurso ser em sua maior parte narrativa, a imitação contribui para o cultivo das
virtudes nas almas dos guardas.
96
PLATÃO. op. cit. 395b9 – 396d1. O grifo é nosso.
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57
Inicialmente, a escolha a ser feita por qual levxi" seria determinada para a
poesia da cidade era entre três formas: a narrativa simples, a imitação e a
combinação entre estas duas formas. Mas, em 397d1, Sócrates desdobra a questão
de qual dos estilos participará da cidade, perguntando se devem escolher a que em
grande parte é mimética ou a que é predominantemente narrativa mas permite a
mivmhsi" das características do homem de bem. Ou ainda, se as duas participarão
separadamente ou se uma mistura (kekramevno") entre elas será a melhor escolha
para a educação dos guardiões. Adimanto revela sua preferência pela levxi" sem
mistura, que somente representa tanto em sua narrativa quanto na imitação o
caráter nobre. Mas, apesar de Sócrates reconhecer que a forma mista tem seus
atrativos e que é mais prazerosa para a maioria das pessoas, Adimanto tem razão
ao optar pela forma que é primordialmente narrativa e que imita exclusivamente
ações de virtude.
Em um primeiro momento, poderíamos pensar que a forma ou o estilo da
poesia é independente do conteúdo, que o conteúdos que são relacionados a
uma determinada levxi". Porém, Platão parece acreditar que a relação entre forma
e conteúdo não ocorre gratuitamente, mas de maneira que uma levxi" específica
favorece um certo tipo de conteúdo ou todos os tipos de conteúdo, como no caso
da poesia que é predominantemente mimética. Pois, em princípio, nada impediria
e seria perfeitamente possível uma poesia cuja levxi" fosse a imitação e que seu
tuvpo" respeitasse as normas estabelecidas. Mas, para Platão, a poesia que utiliza
principalmente a mímese é intimamente ligada a qualquer tipo de conteúdo, quer
seja nobre ou vil. Representar todo tipo de ações e fatos é uma característica
inerente ao estilo que utiliza amplamente o discurso direto. Assim, quando Platão
se refere à poesia que em sua maior parte é mimética, não está se referindo apenas
à forma direta do discurso, mas também ao conteúdo do poema. Queremos
chamar a atenção para esta questão, pois é de fundamental importância para a
compreensão de como os livros II, III e X apresentam uma mesma concepção
sobre a poesia e defendem as mesmas teses, como veremos posteriormente. A
poesia que tem predomínio da mímese não é considerada apenas relativamente ao
seu estilo, mas Platão proíbe esse tipo de poesia por ser irmã de qualquer
conteúdo. Isto se torna bem visível quando os guardas são proibidos de ser
mimhtikouv. Eles não podem ser imitadores, pois acabariam por imitar toda espécie
de coisas. É uma característica da mimhtikhv levxi" não fazer distinção entre
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58
conteúdos, representando as mais diversas situações. Um passo do livro X
demonstra tal característica:
“A poesia mimética (hj mimhtikhv), dizíamos nós, imita homens
entregues a ações forçadas ou voluntárias, e que, em consequência
de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se
ou regozijando-se em todas essas circunstâncias.”
97
Assim, o termo “poesia mimética” não diz respeito a apenas um dos
estilos, mas a uma aceitação de todo tipo de teor nas histórias. No caso da levxi"
recomendada por Sócrates, que em sua maior parte é narrativa simples e possui
poucos trechos de mivmhsi", é mais propício o conteúdo dos mitos afim às normas
poéticas, pois o discurso construido nessa levxi" é característico da maneira de se
expressar de um caráter moderado, que somente imita coisas relacionadas à sua
natureza.
Sócrates conclui as considerações sobre a levxi" decretando que o poeta
imitador (mimhtikov"), ou seja, o que utiliza predominantemente o discurso direto
e retrata toda espécie de conteúdos em suas composições, deverá ser expulso da
cidade, pois sua habilidade para imitar todas as coisas
(mimei'sqai pavnta crhvmata) não tem lugar na cidade onde cada um executa uma
tarefa. Como vimos anteriormente, na concepção platônica, o bito de se
imitar determinada coisa transforma aquilo que se imita em natureza para o corpo
e para alma, e essa é a razão para a exclusão do poeta imitador. Porém, somente a
este poeta é negado um lugar na cidade. Platão novamente não deixa dúvidas
sobre este tema:
“Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz,
devido à sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as
coisas, (...) manda-lo-íamos embora para outra cidade (...). Mas,
para nós, ficaríamos com um poeta e um contador de histórias
mais austero e menos aprazível, tendo em conta sua utilidade, a
fim de que ele imite para nós a fala do homem de bem e se
exprima segundo aqueles modelos (ejn ejkeivnoi" toi'" tuvpoi")
que de início regulamos, quando tentávamos educar os militares
(o{te tou;" stratiwvta" ejpeceirou'men paideuvein).”
98
97
Cf. Ibid. 603c5 - 8.
98
PLATÃO. op. cit. 395b9 – 396d1. O grifo é nosso.
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59
O poeta imitador, ou seja, o que representa em suas composições qualquer
tipo de conteúdo sem ter um conhecimento verdadeiro sobre as coisas que
representa, é inquestionavelmente banido, mas o autor que se exprimir de acordo
com os tuvpoi será utilizado na educação dos guardiões. Disto decorre que nem
toda poesia é uma imitação com características negativas, mas que a poesia
predominantemente imitativa é uma das formas de se fazer poesia e possui
características específicas, as que delineamos acima. Essa poesia essencialmente
imitativa é uma levxi" poética que faz amplo uso forma direta do discurso e
reproduz as mais variadas ações, quer sejam nobres ou vis. Na teoria poética
platônica, não se pode reduzir a poesia em geral à poesia que é na maior parte
mimética. Acreditar que para Platão toda poesia tem essencialmente as
características da que é quase completamente mimética, é ignorar as
características específicas dessa poesia, pois estas são muito diferentes daquelas
da poesia que é recomendada para a educação dos guardiões. A diferença mais
imediata entre a poesia essencialmente mimética e a que Sócrates determina para
formar os guardiões é que a primeira utiliza amplamente o discurso direto, ao
passo que a que participará do processo educacional tem o predomínio da
narrativa simples e apresenta poucos trechos miméticos. Mas, a principal
diferença entre a poesia que é banida da que é permitida se encontra nos
conteúdos que cada uma delas retratam. A poesia regulada pelas normas poéticas
apresenta histórias que têm uma conexão com a verdade, pois obedece a
parâmetros que foram estabelecidos pelos fundadores da cidade reta. A poesia na
qual predomina a mímese caracteriza-se por representar as coisas mais variadas.
Como para Platão não é possível conhecer verdadeiramente e nem imitar com
conhecimento muitas coisas, essa mímese é uma imitação de aparências. Talvez
uma forma de entender mais adequadamente como Platão estabelece a diferença
entre esses dois tipos de poesia seja afirmar que nem toda poesia tem as
características da poesia na qual predomina a mivmhsi" (imitação), mas que há uma
outra forma de poesia com características muito diferentes da poesia que faz
amplo uso da imitação. Trataremos mais detalhadamente desta questão em nossa
análise do livro X.
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60
2.2.2
Determinações sobre a parte musical da poesia
Após determinar o conteúdo e a forma da poesia, Sócrates põe-se a
examinar o “caráter do canto e da melodia”
99
. “Para a cultura grega, a poesia e a
música
100
são irmãs inseparáveis...”
101
. Assim, a posição platônica em relação à
música seguirá os princípios que foram estabelecidos para a “literatura” o
tuvpo" e a levxi" –, criticando-a de acordo com a maneira como direciona o caráter
da alma humana. A melodia é composta por três elementos: as palavras, a
harmonia e o ritmo.
102
Em seguida a esta enumeração das partes da melodia,
Platão observa que harmonia e ritmo devem orientar-se pelas palavras (lovgoi). A
dependência das demais partes da melodia à palavra evidencia o que dissemos a
respeito da observância da música aos princípios já determinados para a literatura.
Em virtude destes, restringe-se a música a somente dois tipos de harmonias, pois é
preciso evitar que os guardiões cultivem em suas almas harmonias lamentosas,
efeminadas, que estimulem a moleza, preguiça e embriaguez. Assim, seguindo o
princípio da simplicidade, conservam-se somente duas harmonias; uma estimulará
o homem em tempos de guerra a ser corajoso e enérgico e outra desperta o bom
senso e a moderação, tornando o homem voluntarioso. Estas harmonias são,
respectivamente, a dória
103
e a frígia.
Em seguida Platão trata do ritmo.
104
Os ritmos devem corresponder a uma
vida ordenada e corajosa (kosmivou te kai; ajndreivou), assim como as harmonias.
Platão não os determina especificamente como faz com as harmonias, mas diz que
somente serão permitidos na cidade aqueles que expressem uma vida de acordo
com o princípio de simplicidade. Ritmo e harmonia seguem o estilo (levxi") por
99
Cf. Ibid. 398c1. “(…) w/jdh'" trovpou kai melw'n (…)”.
100
Para um estudo detalhado sobre a música em Platão, ver: RIVAUD, A. Études platoniciennes.
Platon et la musique. La revue d´histoire de la philosophie. Paris: Presses Universitaire de France.
1929. e MOUTSOPOULOS, E. La Musique dans l’oeuvre de Platon. 2
ª
édition. Paris: Presses
Universitaires de France, 1989.
101
Cf. JAEGER, W. op. cit.
102
Cf. PLATÃO, loc. cit., 398d1,2. “(...) lovgou te kai; ajrmoniva" kai; rjuqmou'.”. Não abordaremos
neste trabalho as dificuldades concernentes à tradução e à comprenção da noção de ajrmoniva.
103
No Lachès é permitida uma única harmonia, a dória. Cf. PLATON. Lachès. Texte ètabli et
traduit Alfred Croiset. 7. tirage. Paris: Les belles lettres, 1994. 188d.
104
PLATÃO, loc. cit., 399e9.
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61
dependerem da palavra, e o estilo e a palavra dependem do caráter da alma.
105
A
música possui a característica de expressar o caráter do homem, sendo exatamente
por isso que deve ser simples e não variada, porque a conduta do homem deve ser
simples, restrita a sua função. A idéia de simplicidade em oposição à
complexidade orienta toda a crítica da música empreendida por Platão. Por isso,
tipos de música que envolvam muitas variações de harmonias e ritmos são
expurgados da cidade como deve ser feito com as poesias que imitem de qualquer
maneira qualquer tipo de homem. O caráter do homem educado pela música
simples cultiva a simplicidade em si mesmo e mantém uma unidade de propósito
em sua vida.
“...a educação pela música é capital, porque o ritmo e a
harmonia penetram mais fundo na alma e afectam-na mais
fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela
perfeita se se tiver sido educado (...) E porque aquele que foi
educado nela (...) honraria as coisas belas, e, acolhendo-as
jubilosamente na sua alma, com elas se alimentaria e tornar-se-ia
um homem perfeito (kalov" te kajgaqov")”
106
A educação musical desenvolve o homem e o torna apto a reconhecer as
formas da temperança, da coragem e das demais qualidades afins a estas. Depois
de ter considerado sem muito aprofundamento as partes que compõem a educação
pela música, Sócrates avalia a outra parte do processo que complementa a
educação do guardião: a ginástica.
A educação dos guardas é composta por duas partes, ambas indispensáveis
e complementares para sua formação: a música e a ginástica. A educação deve
começar pela música porque a alma bem educada será capaz de educar de forma
adequada o corpo. Assim, o é um corpo perfeito que será responsável pela
educação da alma, mas o contrário. É importante para os guardiões seguir uma
dieta saudável a fim de que seu corpo não adoeça com facilidade. A dieta é
também, por sua vez, baseada na simplicidade, e evita os excessos e a variedade
de alimentos. Após ter feito estas observações iniciais sobre a alimentação, Platão
nos diz que a melhor ginástica é irmã da música simples
107
, ou seja, seus
105
Cf. Ibid. 400d1 - 8.
106
Cf. Ibid. 401d, e.
107
Cf. Ibid. 404b4,5.
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62
fundamentos são os mesmos da música e têm a simplicidade como princípio. “...a
simplicidade na música gera a temperança na alma, e a ginástica, a saúde no
corpo...”
108
. Porém, posteriormente, Platão nota que ambas, música e ginástica,
têm por principal objetivo a educação da alma. Isto porque cada uma incide
diretamente nos elementos que compõem a alma especificados no livro III; são
eles: tov qumoeidev" e tov fulovsofon (o corajoso e o filosófico).
O equilíbrio entre a educação pela música e pela ginástica é responsável
por moldar a alma do homem temperante (swvfrwn) e corajosa (ajndreiva)
109
. A
música desperta a natureza filosófica do homem e, se bem dirigida, torna-o doce e
ordenado
110
. Mesmo a ginástica, ao educar o corpo, o faz na medida em que é
necessário desenvolvê-lo para edificar uma alma corajosa
111
. Estas duas “cordas”
(cordav") que a alma possui, uma filosófica e outra corajosa, harmonizam-se
enquanto o afinadas apropriadamente pelo processo educacional que aplica a
música e a ginástica em uma medida adequada.
112
Através da educação impõe-se a
auto-regulação destes dois aspectos da alma e o homem habilita-se a ser o músico
perfeito: “aquele que afina sua própria vida, as palavras em sinfonia com os
atos...”
113
. A consonância entre as palavras (lovgoi) e as ações (e[rgai) revelam a
boa formação do caráter (h\qo").
“Para o guerreiro ser um bom guardião dos seus, a sua alma
tem de reunir, como os bons cães, duas qualidades aparentemente
contraditórias: doçura para com os seus e agressividade contra os
estranhos”
114
Os dois elementos da alma responsáveis pela temperança e pela coragem
são o ponto de partida de uma analogia entre as partes da melodia especificadas
no livro III e as partes que compõem a alma no livro IV. Como vimos, a educação
dos elementos filosófico e irascível que fazem parte da alma no livro III, fica a
cargo, respectivamente, da música e da ginástica. As qualidades relativas a cada
um destes elementos são a temperança e a coragem. Estas são harmonizadas pelo
108
Cf. Ibid. 404e5,6.
109
Cf. Ibid. 410e10.
110
Cf. Ibid. 410e2,3.
111
Cf. Ibid. 411e5 – 412a2.
112
Cf. Ibid. 412a5.
113
Cf. Ibid.
114
Cf. JAEGER, op. cit.
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equilíbrio entre as partes que constituem o início da educação do guardião.
115
O
processo educacional platônico caracteriza-se por uma continuidade entre os
estágios de seu desenvolvimento. Estas duas qualidades, a temperança e a
coragem, aparecem mais tarde no livro IV como duas das quatro virtudes da
cidade
116
. Sendo assim, também são as mesmas presentes na alma do homem.
117
Neste momento do argumento platônico, estas duas virtudes ainda não foram
definidas como serão posteriormente
118
, mas Sócrates apresenta algumas
características que começam a delineiá-las.
Porém, a ginástica não é a parte do processo educacional exclusivamente
responsável por educar o elemento corajoso da alma. A ginástica é fundamental
para a edificação de uma alma corajosa, mas seria um tanto estranha a idéia de
que os modelos apresentados através da música às crianças não incidam também
sobre a parte corajosa da alma. Ao contrário, a música é fundamental para a
formação de um caráter corajoso. Harmonia e ritmo participam da constituição da
coragem no homem na medida em que ambos são divididos em duas partes, sendo
uma delas responsável por estimular a coragem. Retomando o que dissemos, a
harmonia se divide em duas: uma para estimular atos voluntariosos em tempos de
paz e a outra para nutrir a alma com exemplos de valentia na guerra. Esta última é
responsável por desenvolver a parte corajosa do homem. Isto também ocorre com
o ritmo, pois também devem haver dois, um para uma vida em estado de ordem e
outro para a parte da vida que necessita da coragem. Platão ainda observa que a
palavra (lovgo") também participará da educação da parte corajosa da alma:
“...é, como dissemos, uma mistura de música e de
ginástica que harmonizará essas partes (a razão e a cólera), uma,
fortalecendo-a e alimentando-a com belos discursos e ciência,
outra, abrandando-a com boas palavras, domesticando-a pela
harmonia e pelo ritmo...”
119
115
“E dessa harmonia não resulta uma alma moderada e corajosa?” Cf. PLATÃO, loc. cit., 411a.
116
Cf. Ibid. 427e.
117
“...em cada um de nós estão presentes as mesmas partes e caracteres que na cidade (...) Não é,
efetivamente, de nenhum outro lado que elas para lá vão.” Ibid. 435e.
118
A coragem é definida em 430b: “opinião reta e legítima, relativamente às coisas temíveis e às
que não o são...”; e a temperança em 432a: “...concórdia, harmonia, entre os naturalmente piores e
os naturalmente melhores, sobre a questão de saber quem deve comandar, quer na cidade quer num
indivíduo.” Ibid.
119
Cf. Ibid. 441e8, 442a3.
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64
Platão parece referir-se em ambos os casos, quer com vistas à razão
(“fortalecendo-a e alimentando-a com belos discursos e ciência”), quer em relação
à cólera (“abrandando-a com boas palavras, domesticando-a pela harmonia e pelo
ritmo”), à música, ainda que esta venha acompanhada da ginástica. A questão à
qual estamos nos referindo é que mesmo que a educação inclua a ginástica, esta é
uma parte posterior no processo de formação da parte corajosa da alma. Em
relação ao aspecto filosófico, serão aplicadas na sua constituição as outras duas
partes da harmonia e do ritmo que estimulam uma vida moderada e organizada.
Uma posição que se opõe a esta que defendemos é proposta por Adam:
“The soul has, two strings, the fulovsofon and the
qumoeidev", which make a kind of aJrmoniva when they are tuned to
the proper pitch by Music and Gymnastic. The qumoeidev" is
slackened by mousikhv, tightened or braced by gumnastikhv;
conversely, we must suppose that the fulovsofon is slackened by
gumnastikhv, and tightened by mousikhv. Music and Gymnastic are
therefore both of them necessary for each of the two strings,
although the slackening of the qumoeidev" of itself also tightens the
fulovsofon, which is likewise slackened when the tension of the
other is increased.”
120
Podemos notar que Adam, apesar de admitir que a música e a ginástica
têm reflexos sobre os dois elementos da alma, restringe a ação de cada parte da
paideiva a apenas um elemento da alma. Assim, temos somente um efeito indireto
da música em relação ao elemento irascível, e da ginástica em relação ao elemento
filosófico. Não uma ação efetiva entre a música e o elemento irascível e nem
entre a ginástica e o elemento filosófico. Eles se relacionam na medida em que
a música, ao expandir a parte filosófica, comprime a irascível, e vice-versa. A
partir desta interpretação não parece possível considerar a ação que as partes da
música exercem sobre a parte irascível da alma, pois a necessidade à qual Adam
se refere, das duas partes da educação relativamente a cada um dos dois elementos
da alma, é não mais que uma auto-regulação entre termos isolados. Nettleship
parece adotar a mesma linha interpretativa: “...both (mousikhv and gumnastikhv)
120
ADAM, J. The Republic of Plato. 2. vol. New York: Cambridge University Press, 1963.
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65
act upon the soul, but by different means and through different elements in the
soul”
121
.
No final do livro III, Sócrates conta um mito que deve ser utilizado na
formação dos guardiões, dos chefes da cidade e também do restante dos cidadãos.
O mito tem a função de aumentar a dedicação dos homens uns pelos outros e pela
cidade, e também de legitimar a estrutura de classes que constitui a cidade, que
será demonstrada no livro IV. Assim, esse mito platônico procura fazer com que
os homens sejam impelidos a cuidar do lugar de onde nasceram, defendendo-o e
considerando os demais cidadãos como irmãos, filhos da mesma terra. Sócrates
diz que os cidadãos foram moldados por um deus e criados no interior da terra. O
deus que os fez adicionou à composição de suas almas quatro tipos metais que
determinam a qual classe da cidade cada indivíduo pertence. Cada criança que
nascer deve ter a classe a que pertence identificada e deve ser encaminhada aos
homens de tal classe para ser criada por eles. Os que tiverem ouro na composição
de sua alma devem governar; os guerreiros levam a prata em suas almas; e os
artífices são formados pelo bronze e ferro. Através desse mito, Platão mostra
como o discurso mitológico pode conter noções fundamentais para a manutenção
da estrutura da cidade e para o equilíbrio da alma de cada indivíduo.
121
NETTLESHIP, op. cit.
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66
3
Análise do livro X
A República retrata a longa narrativa feita por Sócrates a um interlocutor
anônimo sobre a conversa de que participou no dia anterior, na casa de Céfalo, um
estrangeiro que conheceu a prosperidade ao se mudar para o Pireu, o porto de
Atenas. O livro X, que é a última parte da longa investigação à procura da
definição da justiça e dos benefícios que esta traz em si mesma, empreendida no
decorrer do diálogo, conclui também as questões a respeito da poesia. O livro X
encerra a República e é em grande parte dedicado ao término das considerações
sobre a poesia, e, se considerarmos que em sua parte final narra um extenso mito
sobre o destino das almas dos justos e dos injustos, ele mesmo pode ser
considerado, em certa medida, uma poesia.
Diferentemente de alguns comentários sobre a República
122
, parece-nos
fundamental para a conclusão das teses defendidas nos livros II e III o retorno à
questão da poesia no livro X; assim como também são necessários à compreensão
do livro X os pontos afixados nos dois livros que iniciam a crítica poética. O livro
X é imprescindível para finalizar a teoria poética, pois, como veremos, esta
somente pode ser completada depois do esclarecimento de algumas noções que
serão definidas após a crítica dos livros II e III. Ao contrário do que propõe Julia
Annas sobre o livro X, defenderemos que a República, no que diz respeito à
poesia, revela uma ordem argumentativa entre os três livros que tratam do tema.
Annas considera o livro X como um desenrolar “gratuito e confuso”, “impossível
de ser reconciliado com as teorias do livro III”
123
. Argumentaremos a favor de
uma tese contrária a esta, na qual o livro X revela-se planejado por Platão desde a
primeira parte da crítica poética.
Assim inicia-se o último livro da República:
122
NETTLESHIP, R. op. cit. p.340; ANNAS, J. An Introduction to Plato's Republic. Oxford:
Clarendon Press, 1981, p.336; HAVELOCK, E. Prefácio a Platão. Tradução Enid Abreu
Dobránzsky. Campinas: Papirus, 1996, p.26.
123
Cf. Ibid. P.335, 336.
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67
“Ora a verdade é que prossegui eu entre muitas razões que
tenho para pensar que estivemos a fundar uma cidade mais
perfeita do que tudo, não é das menores a nossa doutrina sobre
a poesia. (...) A de não aceitar a parte da poesia de caráter
mimético (To; mhdamh'/ paradevcesqai aujth'" o{sh mimhtikhv). A
necessidade de a recusar em absoluto é agora (nu'n), segundo me
parece, ainda mais claramente evidente, desde que definimos em
separado cada uma das partes da alma.”
124
Podemos notar que desde a abertura do livro X Platão evidencia qual será
o procedimento que utilizará a partir daquele momento: retomar a teoria sobre a
poesia desenvolvida anteriormente nos livros II e III. Platão diz que a doutrina
sobre a poesia dos livros II e III é uma das razões que fazem com que a
cidade seja “mais perfeita do que tudo”. É bastante clara a importância que
Platão confere à teoria poética. Nos termos em que Platão retoma a teoria poética,
as noções e coclusões a que a investigação sobre a poesia chegou são reafirmadas,
pois, ao vincular a estrutura da cidade às observações relativas à poesia, Platão
torna manifesta a função capital que desempenha todo o início da paideiva dos
guardiões” no processo de edificação da cidade. Platão diz que a definição das
partes da alma confere ênfase às teses dos livros II e III. Assim, ao lançar mão da
teoria da tripartição da alma, fica evidente sua intenção de reiterar as teses sobre a
poesia dos livros anteriores. Fica claro que não se trata de um retorno reformativo,
ou seja, de uma retomada que visasse à alteração de determinados pontos que
precisassem de correção, visto que também é por causa do que foi dito a respeito
da poesia que a cidade fundada é a melhor possível. A função do livro X como
explicitação, reiteração e conclusão das teses dos livros II e III é muito nítida, a
nosso ver, desde as primeiras linhas do livro X, sendo exatamente dessa forma,
como uma das conclusões dos livros II e III, que Platão coloca a questão da recusa
da parte da poesia de caráter mimético.
Não admitir de modo nenhum a poesia que for de caráter mimético é uma
das conclusões da primeira abordagem da questão poética da nossa doutrina
sobre a poesia” , o uma novidade que Sócrates está introduzindo neste ponto.
Ou seja, na primeira parte das determinações sobre a poesia, somente a levxi"
mimética havia sido proibida, e, no livro X, esta determinação é reafirmada. O
livro X começa consolidando a tese de recusar somente a poesia de caráter
124
Cf. PLATÃO op. cit. 595a1 – b2. O grifo é nosso.
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68
mimético. É interessante observar que desde Platão distingue a parte (a poesia
de caráter mimético) do todo (a poesia em geral). Retornemos à diferenciação que
apontamos no final de nossa análise do livro III
125
entre a poesia que é quase
inteiramente imitação e a poesia que em sua maior parte é narrativa simples,
embora admita também uma pequena parte mimética. Toda a poesia é imitação
de algo, um símbolo, pois representa algo, quer seja um acontecimento ou uma
personagem. Toda a arte, para Platão, é mivmhsi". Porém, nem toda poesia é
predominantemente mimética. No livro X, Platão faz amplo uso do adjetivo
mimhtikhv referindo-se a um tipo específico de poesia que utiliza em larga escala o
discurso direto, não a toda a poesia. Platão nos fornece as características da poesia
mimética no decorrer da crítica dos livros III e X. As ocorrências do adjetivo
mimhtikov", quer seja referindo-se ao poeta, quer seja em relação à poesia, estão,
na grande maioria dos casos, relacionadas à produção poética que não es de
acordo com os tuvpoi e que é prejudicial ao equilíbrio da alma. A poesia que é
quase toda mimética possui unicamente características negativas, que são
desfavoráveis à constituição de um bom caráter; são elas: a imitação de
aparências; o poeta que a compõe não tem nem uma opinião correta, nem o
conhecimento verdadeiro sobre o assunto de que se propõe falar; é agradável à
multidão ignara; apresenta predominantemente o discurso direto; imita qualquer
tipo de situações e personagens; e instaura o desequilíbrio na alma ao estimular a
pior parte desta. Tais são as características deste discurso poético. Como dissemos
durante a análise do livro III, a poesia predominantemente mimética apresenta
características muito distintas da poesia que Sócrates normatiza ao estabelecer os
tuvpoi. Assim, não é possível reduzir toda a poesia à poesia mimética. Esta é um
tipo de poesia com características específicas, que o esgotam as possibilidades
do fazer poético. A poesia que é preparada para constituir o início da educação
dos guardas tem uma natureza muito distinta da poesia que em grande parte é
mimética, por seguir parâmetros que estabelecem normas muito claras em vista do
fim para o qual é designada. No livro X, assim como nos livros II e III, toda a
poesia mimhtikhv deve ser abolida da cidade, mas não a poesia em geral. Por isso,
Grube diz que: We should be quite clear, however, that poetry as such is not
125
Cf. p. 44 - 46.
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69
excluded, but only that which is imitative.”
126
. Cross e Woozley também
compartilham dessa idéia: “(...) the object of Plato´s attack in book X is imitative
poetry. He exclude it in book III and he is now further justifying that
exclusion.”
127
.
Em 595c7, Sócrates pergunta a Gláucon: “Serás capaz de me dizer em
geral o que é a mímese?”
128
. Dessa forma, introduz um estudo à maneira socrática
perguntando sobre a definição da imitação. Nesse estudo, mostra a Gláucon que
existem três níveis de realidade, a saber, a idéia, os objetos em geral e a imagem
desses objetos. Dissemos acima que Platão considera as obras de arte uma forma
de mivmhsi", pois representam algo que elas mesmas não são. Uma pintura de uma
cama não é ela mesma uma cama, da mesma forma que as situações e personagens
de uma poesia são representações ou imitações de situações e personagens reais
ou possíveis do mundo fenomênico. Mas, mesmo as coisas do mundo fenomênico
não são uma realidade completa, pois as únicas coisas que, na ontologia platônica,
são verdadeiramente reais o as idéias. A questão da relação entre o ser e a
aparência levantada pela fala de Gláucon no livro II reaparece agora para ser
utilizada na conclusão da teoria poética. A influência do ser e da aparência sobre o
discurso poético pode ser avaliada neste momento por toda a epistemologia e a
ontologia dos livros V, VI e VII. Sócrates chama o artífice de objetos como camas
e mesas de mimhthv". Em seguida, observa que o pintor e o tragediógrafo são
também mimhtaiv, porém, imitam aquilo que é imitação, ou seja, as obras dos
artífices, ao passo que estes imitam a própria idéia.
O que torna ainda mais grave aos olhos de Platão a imitação praticada
pelos artistas é que estes reproduzem as aparência das coisas, pois não detêm
nenhum conhecimento verdadeiro a respeito das coisas que imitam. A falta de
conhecimento dos poetas sobre as coisas das quais se propõem falar revela-se um
problema pedagógico, pois, ao apresentar falsas noções, a poesia forma opiniões
equivocadas nas almas dos que freqüentemente estão em contato com ela. Por
isso, no primeiro estágio da crítica, Sócrates determina que os poetas devem
seguir os tuvpoi. Esta é a maneira de fazer com que obtenham daqueles que têm o
126
GRUBE, G. M. A. op. cit. p. 190. O autor observa que em 605a, na expressão “o poeta
imitador”, o adjetivo claramente qualifica o nome. Por isso, não necessariamente todos os poetas
estão incluídos.
127
CROSS, R. C. and WOOZLEY, A. D. op. cit. p.
128
Mivmhsin o{lw" e[coi" a[n moi eijpei'n o{ ti pot jestivn ;”
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70
conhecimento da natureza das coisas, neste caso os fundadores da cidade, os
parâmetros que precisam seguir para que suas obras apresentem conteúdos
estritamentes verdadeiros.
Os poetas não terão eles mesmos o conhecimento sobre as coisas de que
falam, mas terão uma opinião correta, pois observarão as normas poéticas. No
livro X, Platão reforça essa idéia ao analisar uma relação equivalente à que tem o
poeta com os fundadores da cidade. A relação destacada por Sócrates é a que
existe entre o fabricante de determinado utensílio e aquele que faz uso do objeto
fabricado. Sócrates diz que o homem que faz uso de determinado instrumento, por
ter experiência e saber das propridades do objeto que utiliza, deve instruir o
fabricante na execução de suas peças, para formar no fabricante uma opinião
correta (ojrqh; dovxa) a respeito do objeto que produz. O exemplo que Sócrates
fornece de uma relação desse tipo é o do flautista e o fabricante de flautas. O
flautista deve informar as características que deve ter uma boa flauta e deve dizer
ao fabricante como executá-la, e este deve atendê-lo.
“– Portanto, aquele que sabe informa sobre as qualidades e
defeitos das flautas, o outro faz fé, e executará? – Sim. – Por
conseguinte, em relação ao mesmo instrumento, o fabricante terá
uma crença exata quanto à sua excelência ou inferioridade, por
estar em contato com quem sabe e ser obrigado a escutá-lo; ao
passo que aquele que o utiliza possui a ciência (ejpisthvmhn).
Exatamente. ”
129
Mas, Sócrates observa que, ao contrário do objetivo da teoria dos tuvpoi, o
mimhthv" que compõe mitos nem adquire conhecimento sobre os objetos que
reproduz e nem obtém “(...) uma opinião correta, pelo fato de forçosamente ter de
conviver com aquele que sabe e de acatar as suas prescrições (...)”
130
. Este último
caso resume com precisão a função e a ação dos tuvpoi prescrita no decorrer da
primeira parte da teoria poética. O problema apontado por Platão é que, além de
os poetas desconhecerem os assuntos que tratam, nenhum deles segue modelos
que possam suprir essa falta de conhecimento.
129
Cf. Ibid. 601e4 – 602a3. O grifo é nosso.
130
Cf. Ibid. 602a5,6.
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71
“Por conseguinte, o imitador não saberá nem teuma opinião
certa acerca do que imita, no que toca à sua beleza ou fealdade.
(...) Contudo, fa as suas imitações à mesma, sem saber,
relativamente a cada uma, em que é que ela é ou boa; mas, ao
que parece, aquilo que parecer belo à multidão ignara, é isso
mesmo que ele imitará.”
131
Em 600e5,6, Homero e todos os poetas são definidos como imitadores da
imagem, pois somente retratam a aparência desprovida de qualquer conexão com
a verdade. Essa conexão é garantida no projeto platônico pela lei que obriga os
poetas a obedecerem em suas composições o modelo poético. Sócrates conclui
que a imitação desses poetas se encontra três pontos afastada da verdade. É
evidente a continuação da tese sobre os tuvpoi desenvolvida nos dois primeiros
livros da crítica poética com a posição apresentada pelo livro que encerra a
República a respeito de qual poesia precisa ser proibida. Jaa Torrano observa que:
“A condenação da poesia reside no lado sinistro pelo qual a
imagem se mostra como imagem da imagem. O louvor da poesia
reside no lado destro pelo qual a imagem sensível imita a forma
inteligível.”
132
Como mostra o início do livro X, a recusa da poesia de caráter mimético
havia sido determinada desde a primeira abordagem da poesia. Assim, sua
retomada neste momento do diálogo não deve causar nenhum espanto naqueles
que vêm acompanhando a discussão desde sua origem exatamente por não se
tratar de uma novidade, e, de alguma forma, a recusa no livro X tem que ser
compatível com a teoria sobre a mivmhsi" dos livros II e III, que é apresentada
como uma continuação dessa teoria.
É nesses termos que, na abertura do livro X, Sócrates reintroduz a questão
do estilo, do conteúdo e da função que a poesia deve desempenhar na cidade.
Devemos ter clara esta forma com que Platão reconduz a investigação acerca da
poesia como uma retomada das teses defendidas nos livros anteriores, pois, ao nos
darmos conta de que o livro X é introduzido em continuidade com os livros II e
131
Cf. Ibid. 602a8 – b4. O grifo é nosso.
132
Cf. TORRANO, J. Mito e verdade em Hesíodo e Platão. São Paulo: Letras Clássicas n. 2, 1998,
p. 23.
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III, o que fora afirmado nestes é pressoposto para a discussão, e, portanto,
devemos ter o cuidado de observar as conclusões que neles foram afixadas para
obtermos uma compreensão coerente do livro X. Parece-nos, assim, que
vislumbrar uma discrepância ou uma incongruência entre as teses dos livros II e
III em relação àquelas do livro X é uma postura inconsistente, ou ainda, uma
impostura, pois vai contra o próprio método com o qual Sócrates recoloca a
questão sobre a poesia participará da cidade.
O que faz necessário o retorno ao assunto no livro X são duas questões que
posteriormente às considerações iniciais sobre a educação pela poesia foram
satisfatoriamente expostas, mas que são de suma importância para o
estabelecimento dos parâmetros da paideiva platônica, e, conseqüentemente, da
poesia, a saber, as partes da alma e a definição da justiça e de seus benefícios,
ambas questões tratadas no livro IV.
Destacamos na primeira parte deste trabalho
133
a necessidade de se definir
a natureza da justiça para que se possa conhecer totalmente o conteúdo da poesia.
A definição da justiça e de seus efeitos, independentemente da reputação
alcançada por parecer, ou não, ser justo, é essencial para a determinação do último
componente do tuvpo" poético. O tuvpo" humano somente pode ser determinado
após se conhecer o que é mais proveitoso ao homem. É preciso que os poetas
observem também esse tuvpo" em suas composições, assim como o tuvpo" divino,
o heróico e o escatológico. Essa é a única maneira de garantir que os poetas
poderão transmitir em suas obras noções que formem um caráter afim àquilo que
convém aos homens. Platão reafirma o argumento desenvolvido na primeira parte
da crítica, de que as personagens míticas não devem ser representadas em
situações de descontrole emocional, pois tal narrativa estimula no ouvinte o
mesmo tipo de comportamento
134
. Mas, para que se possa determinar o efeito dos
mitos na alma, é mister conhecê-la, saber como ela se configura, e, após conhecer
sua estrutura, entender como se relacionam as partes que a compõem. Somente
assim é possível determinar como a poesia deve incidir sobre a alma e torná-la
na terminologia platônica uma “mentira útil”. Como a alma somente será
completamente conhecida depois do primeiro estágio da crítica poética, Sócrates
retoma a questão de como os poetas devem representar as ações humanas no livro
133
Cf. p. 26, 27.
134
Cf. Ibid. 605c10 – 606a7.
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73
X. O argumento de que os poetas não devem representar deuses e heróis entregues
a nenhum tipo de ejpiqumiva (desejo), desenvolvido no livro III, ganha sua
legitimação após a definição das partes da alma, e de como estas partes devem
relacionar-se entre si para constituirem uma alma justa. O argumento é estendido
ao tuvpo" humano. Os homens não devem ser retratados pela poesia nem
entregues a lamentos e nem à gargalhadas, pois tais disposições estimulam a parte
da alma que precisa ser contida pela razão para que o equilíbrio prevaleça na alma
como um todo. Mas, os poetas em geral têm o objetivo de despertar nas pessoas as
mais variadas paixões, e o poeta mais elogiado é o que provoca ao máximo tais
disposições na alma
135
. Em 602c4,5, Sócrates pergunta em que parte do homem a
poesia que é imitação de aparências exerce seu poder (duvnami"). A resposta é que
a parte da alma estimulada pela poesia é sua pior parte. Por isso, não se deve
representar as personagens sob o jugo dos desejos da parte irracional da alma,
para que a pior parte não seja alimentada por maus exemplos, pois “se o medíocre
se associa ao medíocre, a arte mimética (hJ mimhtikhv) produz
mediocridades”
136
. É preciso que a poesia represente apenas o que foi
especificado pelos tuvpoi se se quiser formar adequadamente, desde a infância, o
gosto pelo que é nobre. Ainda que a poesia tenha seu efeito sobre a pior parte da
alma, ao representar exemplos que a orientem na direção da moderação e das
demais virtudes, a poesia exerce sua função de formar na alma dos jovens noções
afins às que deverão ter futuramente em suas vidas adultas. Sócrates conclui:
“(...) quanto a poesia, somente se devem receber na cidade hinos
aos deuses e encômios aos varões honestos e nada mais. Se,
porém, acolheres a Musa aprezível na lírica ou na epopéia,
governarão na tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do
princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias,
o melhor.”
137
135
Cf. Ibid. 605d5,6.
136
Cf. Ibid. 603b5. Com modificação. Maria Helena traduz mimhtikhv por “arte de imitar”. Dessa
forma, o sentido engloba toda a mivmhsi". A nosso ver, Platão está se referindo apenas a uma
espécie de mivmhsi", aquela que se caracteriza por imitar aparências e ser prejudicial à alma
humana.
137
Cf. Ibid. 595a1 – b2. O grifo é nosso.
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74
Sócrates descobre no livro IV, analogamente às partes que compõem a
cidade, as três partes da alma
138
. Ao término da análise das partes que compõem a
cidade, Sócrates observa que estas somente se fazem presentes na cidade porque
provêem da alma humana. Dessa forma, chega à conclusão da existência das três
partes que compõem a alma. Neste momento do livro IV está devidamente
demonstrada a estrutura da alma. Porém, no livro III, podemos notar que, mesmo
antes da definição apresentada no livro IV, são conhecidas duas partes que
compõem a alma. Após ter estabelecido que a harmonia entre as duas partes do
processo educacional dos guardas, a saber, a música e a ginástica, resultam em
uma alma moderada e corajosa, Platão conclui: “Para estas duas faces da alma, a
corajosa e a filosófica, a divindade concedeu aos homens duas artes, a música e a
ginástica (...)”
139
. Platão chega a esses dois elementos
to; qumoeide;" kai; to; filovsofon por meio da análise das partes do processo
educacional. O vínculo entre a educação e a estrutura da alma torna possível a
decoberta de dois elementos que a compõem mesmo antes da definição do livro
IV. Juntamente com a definição das partes da alma no livro IV são especificadas
as virtudes relativas a cada parte
140
. A definição das virtudes, principalmente da
justiça, é uma das razões que fazem com que a definição das partes da alma
evidencie o tipo de poesia que participará da cidade, e tornam necessária a
retomada do tema no livro X. É fundamental o conhecimento da natureza das
virtudes para completar a teoria poética que determina o tipo de poesia que forma
a alma corajosa e temperante nos livros II e III. A educação pela poesia deve
estimular o crescimento das virtudes de cada parte da alma, e, para se ter certeza
de como deve exercer essa tarefa, é necessário conhecer as partes da alma e
também o que são essas virtudes. Platão estabelece os parâmetros da poesia em
função dos efeitos que esta exerce sobre os elementos que compõem a alma. Para
que se saiba de forma definitiva o que a poesia deve estimular na alma, é preciso
138
As partes que compõem a alma no livro IV são to; logistikovn, to; qumoeidev" e
to; ejpiqumhtikovn.
139
Cf. Ibid. 411e5 – 7.
140
Cf. Ibid. 442b8 – d2. “(...)denominamos um indivíduo de corajoso, julgo eu, em atenção à parte
irascível, quando essa parte preserva, em meio de penas e prazeres, as instruções fornecidas pela
razão sobre o que é temível ou não. (...) denominamo-lo de sábio, em atenção àquela parte que
governa o seu interior e fornece essas instruções, para que essa que possui, por sua vez, a ciência
do que convém a cada um e a todos em conjunto, dos três elementos da alma. (...) chamamos
temperante, devido a amizade e harmonia desses elementos, quando o governante e os dois
governados concordam em que é a razão que deve governar e não se revoltam contra ela.”
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conhecer o que deve ser estimulado, as virtudes. Por isso, somente depois do livro
IV, tendo o conhecimento das virtudes e de qual parte deve ser fomentada e qual
refreada pela paideiva, é possível concluir a teoria poética. A justiça, que é a
virtude que engloba toda a alma, condensa a idéia de como a poesia deve intervir
na formação do caráter. A definção da justiça como sendo o cumprimento de cada
uma das partes da alma de sua incumbência
141
ratifica a função da poesia: iniciar o
processo de formação de uma alma justa. Em um homem justo, cada elemento
deve exercer sua tarefa de forma a constituir uma alma temperante e
harmoniosa
142
. Como vimos durante a primeira parte da crítica, a poesia deve
estimular desde a infância a manutenção de uma conduta constantemente
moderada, que leve os jovens ao domínio de si. O livro X elucida e referenda as
determinações dos livros II e III à luz das teorias sobre a natureza humana, sobre o
conhecimento e sobre a configuração da realidade desenvolvidas no decorrer de
todo o diálogo. A poesia que participará da cidade após a crítica do livro X é a
mesma que Platão havia determinado para a educação dos guardiões na primeira
crítica.
141
Cf. Ibid. 441d11 – e2.
142
Cf. Ibid. 443c9 – 444a2.
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4
Conclusão
Julia Annas diz que, ao contrário do livro III, onde somente alguma poesia
era imitativa, no livro X, toda a poesia é considerada imitativa
143
. Mas, tal
perspectiva parece ignorar a forma pela qual Platão se expressa no momento da
rejeição da poesia que é prejudicial ao governo da cidade e ao governo interior de
cada pessoa:
“Aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a
poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta
espécie (toiauvthn).”
144
Que espécie de arte é esta? Platão responde em seguida: (...) a poesia
imitativa voltada para o prazer (...)”
145
. Pela análise que fizemos da poesia
proibida e da poesia utilizada na educação dos guardas, sabemos que a poesia que
Platão normatiza não tem a característica de ser determinada pelo prazer. A
espécie de poesia que Platão proibe de participar da cidade é a poesia que utiliza
amplamente a mímese, e não a poesia em geral. O passo acima não deixa dúvidas
a respeito disto. Pouco antes, em 607a4,5, Platão havia especificado a poesia que
deve participar da cidade. Esta, apesar de não ser tão prazerosa quanto à poesia
mimética, representará adequadamente a figura dos deuses e exaltará homens
dignos de servir de exemplo a todas as pessoas, assim como havia determinado no
livro III:
“Mas, para nós, ficaríamos com um poeta e um narrador de
histórias mais austero e menos aprazível, tendo em conta sua
utilidade, a fim de que imite para nós a fala do homem de bem e
se exprima segundo aqueles modelos que de início regulamos,
quando tentávamos educar os militares.”
146
143
Cf. ANNAS, J. op. cit. p. 336.
144
Cf. Ibid. 607b1,3.
145
(...) hJ pro;" hJdonh;n poihtikh; kai; hJ mivmhsi" (...)”
146
Cf. Ibid. 398a9 – b5. O grifo é nosso.
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77
É visível a continuidade entre o argumento defendido no livro III com o do
livro X. Julia Annas ainda defende que produções artísticas como “hino aos
deuses e encômios aos homens honestos” não são verdadeiras obras poéticas, e
que, pelo próprio Platão ter sido um artista, sabia que não eram poesias reais
147
.
Será que, neste caso, deveríamos desqualificar enquanto poesia, por exemplo, as
odes de Píndaro aos vencedores dos jogos? Pois parece ser exatamente algo do
gênero que Platão propõe ao determinar a produção de poemas de exaltação aos
homens nobres, que obedeçam os padrões estabelecidos pelos tuvpoi. A diferença
entre as obras de Píndaro e a proposta platônica é que falta a Píndaro, assim como
aos demais poetas, o conhecimento ou a opinião correta sobre os assuntos de que
se propõe falar. A poesia que não é permitida na cidade é a mesma poesia que
havia sido proibida no fim da primeira crítica poética, a poesia mimética, e não a
poesia em geral. Por isso, G. M. A. Grube conclui que:
The whole of this discussion in the tenth book, then, largely
supplements what has already been said in the third and is an
attack, somewhat enlarged, upon the same kind of art as was
there rejected, with the possible inclusion of painting. It is an
attempt to prove the condemnation of imitative art on
metaphysical and psychological grounds, and though it seems to
rejected from the ideal state the most cherished Greek poetry it
does not really introduce any new theory. To represent it, as is
commonly done, as a condemnation of art as a whole is clearly
mistaken, and definitely contradicts the commendation of good art
(…)”
148
Se, ainda assim, aceitássemos que nos livros iniciais Platão expurga
somente parte da poesia e no livro X a proibe como um todo, seria necessário
também aceitar que todo o primeiro estágio da paideiva dos guardiões” deveria
ser descartado, que todo esse nível educacional é baseado no ensino através da
poesia. A função de cultivar nos guardiões as virtudes quando ainda não é
possível fazê-lo por meio de uma educação racional teria de ser eliminada. Não
nos parece que, após analisar e determinar detalhadamente cada norma relativa ao
conteúdo, à forma e ao objetivo da poesia, Platão descarte todo esse
147
Cf. ANNAS, J. op. cit. p. 344.
148
Cf. GRUBE, G. M. A. op. cit. p.192. O grifo é nosso.
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78
procedimento. Por si só, o cuidado de Platão ao analisar e determinar os
parâmetros da poesia mostra a importância que o autor atribui ao discurso poético,
ainda mais devido à função de educar os guardas destinada à poesia. Se a poesia
for simplesmente descartada, Platão deve abrir mão do processo que incute na
alma dos guardas as noções afins à natureza do belo e do bom, quando não é
viável fazê-lo por um método que explore as habilidades ligadas à razão.
Neste trabalho, tentamos mostrar a importância da poesia no contexto da
cidade reta da República. O quanto ela é essencial para o processo educacional
platônico, e, conseqüentemente, para a estrutura da cidade. Argumentamos em
favor de uma leitura dos livros II, III e X, que entre eles uma unidade
argumentativa das teses defendidas por Platão. Outro ponto que sustentamos foi
como o livro X é imprescindível dentro da estrutura argumentativa da questão
poética. O livro X se mostra tão necessário à República, que, se não existisse,
deixaria em aberto a questão sobre como a poesia deve retratar as coisas humanas,
questão que foi anunciada inacabada por Sócrates no livro III
149
. Para se conhecer
o que a poesia deve dizer acerca dos homens, é preciso saber o que é a justiça.
Para se saber o que é a justiça, é necessário conhecer a estrutura da alma. O livro
X completa a teoria sobre a poesia que participará da cidade reta.
149
Cf. PLATÃO. op. cit. 392c1 – 4.
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