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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
PROGRAMA DE MESTRADO
Marília Denardin Budó
DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA CRIMINALIDADE À REPRODUÇÃO
DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL: OS CONFLITOS AGRÁRIOS NO
JORNAL
Florianópolis
2008
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MARÍLIA DENARDIN BUDÓ
DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA CRIMINALIDADE À REPRODUÇÃO
DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL: OS CONFLITOS AGRÁRIOS NO
JORNAL
Dissertação submetida ao Curso de Pós-
graduação em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina para a obtenção
do título de Mestre em Direito.
Orientadora: Professora Doutora Vera
Regina Pereira de Andrade
Florianópolis
2008
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MARÍLIA DENARDIN BUDÓ
DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA CRIMINALIDADE À REPRODUÇÃO
DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL: OS CONFLITOS AGRÁRIOS NO
JORNAL
Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de Mestre em Direito
e aprovada em sua forma final pela Coordenação do Curso de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área Direito, Estado e
Sociedade.
Banca examinadora:
___________________________________________________________________
Presidente: Professora Doutora Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC)
___________________________________________________________________
Membro: Professora Doutora Katie Silene Cáceres Argüello (UFPR)
___________________________________________________________________
Membro: Professor Doutor Eduardo Barreto Vianna Meditsch (UFSC)
___________________________________________________________________
Suplente: Professor Doutor Arno Dal Ri Jr. (UFSC)
___________________________________________________________________
Coordenador: Professor Doutor Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)
Florianópolis, março de 2008.
Dedico este trabalho à minha avó,
Maria Ribas Denardin.
Agradecimentos
À CAPES, instituição que financiou os estudos de mestrado em
Florianópolis;
À minha orientadora, Profª Drª. Vera Regina Pereira de Andrade, pela
transformação e amadurecimento que provocou em mim a partir das
discussões em aula e nas orientações;
Aos demais professores e colegas do CPGD, pelo aprendizado que
me propiciaram com as discussões em aula, e, claro, pelos
momentos de descontração;
À amiga Clarissa Dri, pelo apoio e companheirismo nesses dois anos
em Florianópolis.
À minha mãe, pelo auxílio na revisão do projeto e da dissertação,
bem como, pelas lindas trocas de novas experiências nesse período
de mestrado, como aluna para mim, e como professora e
coordenadora para ela.
Ao meu pai, pela sustentação psicológica e espiritual nos momentos
difíceis, e pelas piadas de descontração nos momentos mais leves.
Ao Lourenço, pelo carinho e companheirismo que me acompanham
onde quer que eu esteja.
Ao Rafael, por me propiciar o amor mais profundo e puro que jamais
imaginei sentir.
“[...] Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de
séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros,
somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros
somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a
crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida
que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de
escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada
e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida pra
doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres,
sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.
A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz
de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.
Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a
torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém,
provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os
possessos e criar aqui uma sociedade solidária”.
O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro.
RESUMO
Os meios de comunicação de massa e as agências do sistema penal têm em
comum a característica de fazerem parte do controle social geral. Suas relações,
porém, se estreitam quando se percebe os apelos que o crime carrega para o
sensacionalismo do jornal e o interesse do sistema penal pela legitimação discursiva
de seus atos. Essa dissertação de mestrado tem por objetivo investigar a forma
como o jornal auxilia, em conjunto com as demais instâncias de controle social, na
construção social da criminalidade. O trabalho tem por teoria de base o paradigma
da reação social, do qual partem a Teoria do etiquetamento e a Criminologia crítica,
possibilitando uma perspectiva construcionista sobre a criminalidade, bem como
uma visão materialista do desvio, a partir do método dialético. Como delimitação do
objeto de estudo, busca analisar a construção social dos conflitos agrários. A
dissertação divide-se em dois capítulos. O primeiro analisa a interação entre controle
formal e informal na construção social da realidade, com ênfase no jornalismo. O
segundo transmite a teoria do primeiro capítulo para a especificidade dos conflitos
agrários, buscando compreender de que forma sistema penal e jornalismo
constroem a imagem dos mesmos, tendo como principal foco as ocupações de
terras pelo MST. Esta seção traz, ainda, a análise de discurso crítica de edições do
jornal Zero Hora acerca da questão agrária. Tendo em vista a representação
excessiva das fontes oficiais nos jornais, nota-se que os mesmos reproduzem
cotidianamente o discurso do sistema penal, tanto nas notícias sobre crimes
comuns, quanto nas notícias sobre “desordens” provocadas por manifestações dos
movimentos sociais de luta pela terra. Apesar da deslegitimação teórica e fática do
sistema penal, que demonstra a sua característica de reproduzir as desigualdades e
opressões, ao operar de forma seletiva e estigmatizante segundo o status social do
desviante, seus discursos são reproduzidos nos jornais. Sendo assim, controle
social informal e formal interagem na construção e social da criminalidade. Além
disso, a relegitimação do sistema penal operada por movimentos eficientistas de
política criminal encontra amparo no jornalismo, em função da relação com o
sensacionalismo e incitação ao aumento da repressão. Aplicada ao caso dos
conflitos agrários, a análise permite concluir que, ao despolitizar e resumir a
violência no campo à violência individual, e, os conflitos, aos atos dos sem terra, a
partir da sobre-representação dos depoimentos da polícia, do judiciário e dos
ruralistas, oculta-se a violência estrutural originada da concentração das terras e da
exclusão social. Essa redução permite também a delimitação de um inimigo para o
Estado e para a sociedade, buscando criminalizar as suas ações, despolitizar os
seus argumentos e ocultar suas reais propostas. Dessa maneira, opera-se a
reprodução dessa violência estrutural provocada pela desigualdade, concentração
de terras e exclusão social, transfigurando, também, os conceitos de cidadania e
democracia.
Palavras-chave: Sistema penal; jornalismo; conflitos agrários, construcionismo,
criminologia crítica.
ABSTRACT
The mass media and the agencies of the penal system have in common the fact of
being a part of the general social control. Their relations, however, get closer when
we observe the appeals that a crime brings about for the sensationalism of the
newspaper and the interest of the penal system in the discursive legitimacy of their
acts. This Master Dissertation has the objective of investigating the way the
newspaper helps, together with other areas of the social control, in the social building
of criminality. The paper has as a theoretical foundation the paradigm of social
reaction, from which the Theory of Labeling and Critical Criminology start, making it
possible from the dialectical method to have a constructive perspective about
criminality and to have a materialistic view of the embezzlement as well. As
delimitation of the object of study the social construction of agrarian conflicts is
analyzed. The dissertation is divided in two chapters. The first analyzes the
interaction between the formal and the informal control in the social construction of
reality, giving emphasis to journalism. The second one conveys the theory of the first
chapter to the specificity of the agrarian conflicts, trying to understand in which way
the penal system and journalism their image, having as the main focus the land
occupation by MST. This section also carries the analysis of the critical discourse of
editions of the Zero Hora newspaper concerning the agrarian issue. Having in mind
the excessive reproduction of the official sources by the newspapers it is observed
that they reproduce the discourse of the penal system everyday either in the news
about ordinary crimes or in the news about “disorders” provoked by the
manifestations of the social movements in the fight for the land. Despite the factual
and theoretical delegitimization of the legal system which demonstrates its feature of
reproducing the inequalities and oppressions when operating in a stigmatizing and
selective way according to the social status of the devious one, the discourses are
reproduced in the newspapers in general. So, formal and informal social control
interact in the social building of criminality, Besides, the relegitimization of the penal
system operated by the law and order movements of criminal policy finds support in
journalism, due to the relation with the sensationalism and incitement to the increase
of repression. Applied to the case of agrarian conflicts the analysis allows us to
conclude that when depoliticizing and summarizing the violence in the countryside to
the individual violence and the conflicts to the acts of the landless starting from the
over representation of the testimonies of the police, of the judiciary, and of the
ruralists, the structural violence originated from concentration of lands and social
exclusion conceals. This reduction also permits the delimitation of an enemy for the
state and for the society, searching for the criminalization of their actions,
depoliticizing their arguments and concealing their real proposals. This way, the
reproduction of that structural violence provoked by inequality, the concentration of
lands and social exclusion is operated, transforming the concepts of citizenship and
democracy as well.
Key words: penal system, journalism, agrarian conflicts, constructivism, critical
criminology
RESÚMEN
Los medios de comunicación de masas y las agencias del sistema penal tienen en
común características que forman parte del control social general. Sin embargo, sus
relaciones se estrechan cuando se perciben las apelaciones sensacionalistas del
periodismo en relación a la violencia y el interés del sistema penal por la legitimación
discursiva de sus actos. Esta disertación de maestría tiene el objetivo de investigar
la manera en que el periodismo auxilia, en conjunto con las demás instancias de
control social, en la construcción social de la criminalidad. El trabajo tiene como
teoría de base el paradigma de reacción social, del que parten la Teoría del
etiquetamiento y la Criminología crítica, posibilitando una perspectiva
construccionista sobre la criminalidad, acomo una visión materialista del desvío, a
partir del método dialéctico. Como delimitación del objeto de estudio, busca analizar
la construcción social de los conflictos agrarios. La disertación se divide en dos
capítulos. El primero analiza la interacción entre el control formal e informal en la
construcción social de la realidad, con énfasis en el periodismo. El segundo
transmite la teoría del primer capítulo para la especificidad de los conflictos agrarios,
buscando comprender de qué forma el sistema penal y el periodismo construyen la
imagen de los mismos, teniendo como principal foco las ocupaciones de tierras por
parte del MST. Esta sección trae, además, el análisis de discurso crítico de
ediciones de Zero Hora acerca de cuestiones agrarias. Teniendo en cuenta la
representación excesiva de las fuentes oficiales en los periódicos, se nota que éstos
reproducen cotidianamente el discurso del sistema penal, tanto en las noticias sobre
crímenes comunes, como en las noticias sobre “desordenes” provocados por
manifestaciones de los movimientos sociales de lucha por la tierra. A pesar de la
deslegitimación teórica y fáctica del sistema penal, que demuestra su característica
de reproducir las desigualdades y opresiones, al operar de forma selectiva y
estigmatizada según el status social del desviante, sus discursos son reproducidos
en los periódicos. Siendo así, el control social formal y el informal interactúan en la
construcción social de la criminalidad. Además, la religitimización del sistema penal
operada por movimientos eficientistas de política criminal encuentra amparo en el
periodismo, en función de la relación con el sensacionalismo y la incitación al
aumento de la represión. Aplicado al caso de los conflictos agrarios, el análisis
permite concluir que, al despolitizar y resumir la violencia en el campo a la violencia
individual, y, los conflictos, a los actos de los sin tierra, a partir de la
sobrerepresentación de las declaraciones de la Policía, del judiciario y de los
ruralistas, se oculta la violencia estructural originaria de la concentración de tierras y
de la exclusión social. Esa reducción permite también la delimitación de un enemigo
para el Estado y para la sociedad, buscando criminalizar sus acciones, despolitizar
sus argumentos y ocultar sus reales propuestas. De esa manera, se opera la
reproducción de esa violencia estructural provocada por la desigualad,
concentración de tierras y exclusión social, transfigurando, también, los conceptos
de ciudadanía y democracia.
Palabras clave: Sistema penal; periodismo; conflictos agrarios, construccionismo,
criminología crítica.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 10
1 A CRIMINALIDADE COMO REALIDADE SOCIALMENTE CONSTRUÍDA..
15
1.1 Da construção social da criminalidade à reprodução social das
desigualdades...................................................................................................
15
1.1.1 A sociologia interpretativa e a teoria do etiquetamento ............................
18
1.1.2 A interação entre controle social formal e informal na construção social
da criminalidade .................................................................................................
27
1.1.3 A reprodução das desigualdades pelo sistema penal: resultados da
criminologia crítica .............................................................................................
38
1.1.4 O sistema penal diante da globalização ................................................... 49
1.2 O crime no jornal: entre credibilidade e sensacionalismo..................... 63
1.2.1 A pesquisa em comunicação e a problemática dos efeitos da mídia........ 63
1.2.2 As notícias como construção social ..........................................................
73
1.2.3 O sistema penal nas notícias: controle social e legitimação..................... 88
1.2.4 O discurso da emergência e a relegitimação do sistema penal ............... 94
2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS CONFLITOS AGRÁRIOS NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO..........................................................................................
104
2.1 Concentração da terra e relações sociais no campo: os moinhos de
gastar gente no século XXI .............................................................................
105
2.1.1 A concentração de terra e a promessa de reforma agrária no Brasil: o
surgimento dos grupos organizados de luta pela terra ......................................
107
2.1.2 A reforma agrária no período pós-ditadura: a permanência da
concentração da terra e das violências no campo ............................................
120
2.1.3 A luta contra a violência e a violência da reação à luta ............................
138
2.1.4 Da violência estrutural à violência institucional. Ou: para os amigos, a
lei; para os inimigos, o arbítrio ...........................................................................
150
2.2 Os conflitos agrários nas páginas do jornal: o medo da luta, o medo
do outro ............................................................................................................
165
2.2.1 O discurso do jornal sobre os conflitos agrários: método de análise........ 166
2.2.2 Desordem, tensão e insegurança: para qual direção se voltam os
binóculos? ..........................................................................................................
180
2.2.3 Do medo à repressão: o sistema penal no discurso do jornal sobre
conflitos agrários ................................................................................................
200
2.2.4 Da invisibilidade à satanização .................................................................
214
CONCLUSÃO ....................................................................................................
228
REFERÊNCIAS .................................................................................................
234
10
INTRODUÇÃO
Sistema penal
1
e mídia
2
são assuntos que freqüentemente se cruzam, tendo
em vista o interesse desta pelos apelos que o crime carrega, além do próprio papel
que suas abordagens desempenham na construção da imagem do que vem a ser o
crime, quem são os criminosos, e, por conseqüência, qual deve ser a esfera de
atuação do próprio sistema penal. Porém, essa relação vai muito além do que se
costuma enfatizar, podendo-se afirmar que ambos são instâncias do controle social
geral, caracterizando-se a mídia como mecanismo de controle social informal, e o
sistema penal como controle social formal. Partindo-se da percepção da
criminalidade como realidade construída socialmente, é importante verificar que
tanto a mídia como o sistema penal atuam nessa construção, assim como as demais
instâncias de controle social.
Sendo assim, pesquisar o papel da mídia como mecanismo de controle social
informal na construção social da criminalidade é extremamente relevante. No
contexto atual de globalização e mundialização da informação, a mídia exerce um
papel central nos diferentes aspectos da vida humana.
Especificamente, o jornalismo, nos diferentes meios de comunicação de
massa, declara-se a parcela de narração factual dos acontecimentos, competindo ao
jornal levar em conta a verdade e a objetividade. Porém, ao se analisar a notícia
como sendo ela própria uma construção social, percebe-se que, ao selecionar os
fatos importantes e os ângulos interessantes de toda a gama de acontecimentos
diários, utiliza-se algum tipo de critério que, simultaneamente ao processo de sua
exposição, oculta outros tantos. Assim, estudar o jornalismo significa estudar uma
forma de produzir uma construção seletiva da realidade.
Por outro lado, o estudo a respeito da construção social da criminalidade
1
Sistema penal, neste trabalho, refere-se aos órgãos de controle penal que realizam a criminalização,
seja a partir da edição de textos legais (criminalização primária), seja a partir da perseguição e
processo penal (criminalização secundária), seja no momento do cumprimento da pena, em especial
na prisão (criminalização terciária). O processo de criminalização é estudado na primeira parte do
trabalho.
2
A palavra “Mídia” vem de media, mediação. Refere-se nesse trabalho ao conjunto dos meios de
comunicação de massa, que realizam a mediação da mensagem para o público. Inclui-se, portanto,
televisão, rádio, internet, cinema, jornais e outros materiais impressos em grande escala. A expressão
independe do gênero de que se trata, ou seja, se é ficção, entretenimento, jornalismo, etc. o termo
jornalismo, distingue-se por se tratar de uma parte específica do conteúdo da mídia, que se propõe a
trabalhar com fatos verídicos e atuais, e comunicá-los ao público.
11
reveste-se de uma atualidade permanente, mas tem um sentido especial no que
tange a uma propagação crescente de sentimentos de medo e insegurança na
sociedade. Principalmente nos últimos dez anos, a maior parte dos países
ocidentais, a pretexto de conter a violência
3
, vem buscando resolver o problema
através da edição constante de normas penais e da adoção de políticas criminais
cada vez mais repressivas. Entretanto, o que se percebe é a perseguição aos
excluídos do sistema, que abarrotam cada vez mais as prisões, e o aumento das
violências estrutural e institucional.
Na atualidade brasileira, apesar de as violências urbanas serem mais
constantemente objeto de análise de estudiosos, bem como o palco dos
acontecimentos publicados na mídia, as violências no campo vêm se agravando a
cada dia.
Nesse contexto se insere a luta pela terra. Revoltas populares cuja reação
resultou em derramamento de sangue ocorreram durante toda a história do país,
tendo como vítimas os indígenas, quilombolas, posseiros, colonos, trabalhadores
rurais sem terra. Porém, a atualidade desses conflitos permanece, sendo que outros
interesses puderam se mostrar mais fortes em relação às antigas promessas de
reforma agrária. O panorama nesse sentido é preocupante, pois apesar de haver
algumas desapropriações de terras, e alguns assentamentos, nenhuma das medidas
tímidas tomadas contemporaneamente consegue diminuir as terríveis proporções a
que chega a desigualdade social e o aumento da miséria no campo.
A partir da década de cinqüenta do século passado, novas formas de
reivindicação de terras tomaram conta do cenário rural brasileiro. Trata-se da
organização dos trabalhadores rurais destituídos de terra para plantar, em função de
várias motivos, como a expulsão, o desemprego, a expropriação, reivindicando a
reforma agrária. A década de oitenta, com a abertura política e com a constituinte,
trouxe uma efervescência participativa nesse sentido. Foi a década da formação do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
3
O termo aqui diz respeito à violência individual, sinônimo de agressão física. No decorrer do texto,
outras formas de violência são destacadas e sua distinção conceitual vem explicada nos tópicos 2.1.3
e 2.1.4. Parte-se nesse trabalho de uma visão materialista acerca da violência, não a reduzindo à
violência individual, mas considerando uma violência estrutural, subjacente às demais, decorrente da
repressão das necessidades humanas fundamentais. BARATTA, Alessandro. Derechos humanos:
entre violencia estructural y violencia penal. Por la pacificación de los conflictos violentos. In:
ELBERT, Carlos Alberto. Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. p. 334-356.
Montevideo/Buenos Aires: B de F, 2004. p. 338.
12
Nos anos noventa, consolidaram-se as lutas pela reforma agrária, diante de
um contexto político desfavorável, mas de muita organização. Foi também a década
das maiores atrocidades contemporâneas no que se refere à repressão e violência
no campo.
4
A violência estrutural como pano de fundo para a repressão policial, os
assassinatos, os despejos, continuam caracterizando as relações sociais no campo
na atualidade, sendo que, em 2006, o número de mortes por conflitos no campo
dobrou em relação a 2005 segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A partir desses dados, a pesquisa versa sobre a forma como sistema penal e
mídia se relacionam no discurso do jornal, de forma a compreender o papel do
controle social formal e informal na construção social da criminalidade. Diante desse
tema, delimitou-se o objeto, de forma a que o problema de pesquisa ficasse
estabelecido como: de que maneira o jornalismo contribui, em conjunto com as
demais instâncias de controle social, formal e informal na construção social da
criminalidade dos conflitos agrários?
Da mesma maneira, verificar qual é a função de se criminalizar o MST e não
propor qualquer debate sério sobre a reforma agrária e as condições de vida da
população é uma forma de se propor mudanças, de se desocultar o que está por
detrás do discurso da objetividade jornalística, bem como da ideologia penal
dominante. A relevância da pesquisa reside na análise crítica à abordagem
jornalística sobre questões sociais, ao mesmo tempo em que traz à tona as suas
funções junto à manutenção do status quo dos sistemas penal e social.
Tendo em vista a amplitude do tema, algumas questões acerca dos objetivos
do trabalho devem ser esclarecidas. Em primeiro lugar, não se busca analisar
exaustivamente o discurso do jornalismo sobre os conflitos agrários, mas sim na
medida em que isso contribui para a solução do problema proposto.
Da mesma maneira, apesar de se reconhecer a importância das abordagens
macroestruturais acerca do patriarcalismo e do racismo, esse trabalho busca
analisar a questão apenas segundo um enfoque de classe. É uma opção acadêmica,
que não expressa, de forma alguma, um reducionismo de análise, mas apenas uma
delimitação.
4
A expressão violência no campo” é utilizada pela maior parte dos autores com o significado de
agressão física, espancamentos, assassinatos, torturas, etc. Por ser um termo consolidado na
literatura manter-se-á este significado, mesmo que provenha da violência individual, de grupo ou
institucional. Porém, a diferença terminológica aparecerá através do uso do plural, violências no
campo, significando a violência na sua forma geral, que abarca as demais.
13
Além disso, não foi objeto de análise exaustiva a questão dos movimentos
sociais. Apesar de considerá-la de suma importância, inclusive para o trabalho, não
se buscou atingir tal objetivo, em função da necessidade de delimitar, de criar um
foco de análise. Quanto aos diversos movimentos de luta pela terra, também se
optou por enfocar apenas o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
tendo em vista a sua organização e representatividade.
Levando-se em consideração a necessária percepção dinâmica da
construção da realidade social, a utilização do método dialético parece apropriado
ao trabalho. Como afirma Konder, na acepção moderna, a dialética “é o modo de
pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade
como essencialmente contraditória e em permanente transformação”.
5
Dentre suas
categorias básicas, parte-se do pressuposto de que “toda formação social é
suficientemente contraditória, para ser historicamente superável”.
6
Na opinião de Demo, a dialética é “a metodologia mais conveniente para a
realidade social”
7
, em contraponto às metodologias que buscam trabalhar a
realidade natural.
Busca-se, com esse todo, compreender o fenômeno da construção dos
conflitos sociais como criminais em sua totalidade, e, principalmente, analisar as
contradições que envolvem tanto o sistema penal, quanto a mídia e o jornalismo.
A contradição que se coloca no objeto é central para a análise do tema, já que
ela é “a origem do movimento e do desenvolvimento”.
8
Principalmente, o contexto
em que figuram os discursos e práticas do sistema penal deve ser compreendido em
sua complexidade, permitindo desocultar sua relação com a criminalização dos
conflitos sociais.
Da mesma maneira, a mídia ocupa um papel central em todos os âmbitos, a
começar pela própria construção de uma realidade que interfere nas atitudes e
decisões econômicas, políticas, sociais, individuais, etc. Para compreendê-la
também se faz necessária a análise de seu contexto e de sua totalidade, das
contradições que a permeiam, dos discursos que a legitimam, e daqueles que a
questionam.
5
KONDER, Leandro. O que é dialética. 28 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 8.
6
DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1989. p. 89-90.
7
ibid. p. 88.
8
TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: A pesquisa qualitativa em
educação. São Paulo: Atlas, 1987. p. 54.
14
Assim, é importante ter em conta que a própria teoria de base se utiliza do
método dialético. Parte-se da dinâmica da realidade social, no sentido de que é o
homem que constrói a realidade em sociedade e que a mesma realidade passa a
moldá-lo. Em função disso, o método dialético parece ser o mais adequado, de
maneira a não formalizar e engessar a análise.
A partir do método adotado, a estrutura da dissertação buscou não ceder às
divisões naturais que o tema impõe. Esse é o objetivo da opção pelo plano francês.
Ao orientar a estrutura para um plano dicotômico, ou seja, dividido e subdividido em
duas seções e subseções, o plano francês condiciona à reflexão sobre o tema, à
elaboração de uma estrutura segundo as idéias, de forma não linear.
Em função disso, o trabalho está dividido em duas grandes seções, cada uma
com duas subseções. A primeira delas tem por objetivo estudar a percepção sobre a
criminalidade como uma realidade socialmente construída, a partir da interação
entre controle social formal e controle social informal. Por isso, essa seção está
subdividida de tal forma que abarque o papel do controle penal (1.1), relacionando-
se, ao mesmo tempo, com o papel do jornalismo (1.2), na construção social da
criminalidade.
A segunda seção segue a mesma lógica, buscando, primeiramente, analisar
as violências no campo, em especial em sua interação com o sistema penal (2.1),
para, posteriormente, relacioná-los ao papel do jornalismo, agora não apenas na
construção social da realidade, mas especificamente, na construção social dos
conflitos agrários (2.2). Ao final do segundo capítulo realiza-se ainda uma análise de
edições do jornal Zero Hora a respeito da questão agrária.
15
1 A CRIMINALIDADE COMO REALIDADE SOCIALMENTE CONSTRUÍDA
O surgimento e desenvolvimento do jornal sempre estiveram relacionados aos
acontecimentos negativos, em especial aos crimes que provocavam rupturas no seio
da sociedade. Assim foi desde os panfletos existentes ainda no antigo regime na
Europa.
9
No período atual, quando o jornalismo se converte ao espetáculo oferecido
pela televisão, as suas relações com o sistema penal tornam-se um importante
objeto de estudo.
O objetivo desta seção é analisar, no marco da teoria da construção social da
realidade, ambos os campos através de sua interação no controle social geral. A
primeira subseção busca analisar o papel das agências de controle social formal na
construção social da criminalidade (1.1). A partir daí, parte-se para o estudo das
teorias acerca dos meios de comunicação de massa, de maneira a verificar, através
da construção social das notícias, a maneira como opera o controle social informal a
partir do jornalismo, e suas relações com o controle social formal (1.2). A finalidade
desse percurso é verificar de que maneira a interação entre as duas formas de
controle social auxilia na construção social da criminalidade.
1.1 Da construção social da criminalidade à reprodução social das
desigualdades
O Direito Penal liberal tem origem com o surgimento do Estado Moderno. Os
primeiros pensadores desse marco tinham suas idéias arraigadas ao contratualismo,
formando a Escola Clássica. Enquanto a unidade metodológica desses teóricos
implicava a utilização do todo racional-dedutivo, em voga na época, a sua
unidade ideológica tratou principalmente do problema dos limites do poder de punir
do Estado em contraponto à liberdade dos indivíduos.
10
Isso porque a tradição pré-
moderna trazia um sistema inquisitório de processo, quando as mais simples
9
BARATA, Francesc. Los mass media y el pensamiento criminológico. In: BERGALLI, Roberto
(coord.). Sistema penal y problemas sociales. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003.
10
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à
violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 47. A unificação de
vários teóricos em uma mesma escola não significa a sua homogeneidade. Segundo Andrade, a
Escola Clássica “não constitui um bloco monolítico de concepções, caracterizando-se por uma grande
variedade de tendências divergentes e em alguns aspectos opostos”. ibid. p. 45. O que possibilita a
sua reunião é a unidade ideológica e metodológica, como frisado acima.
16
garantias de defesa do acusado eram inexistentes, o que tornava a acusação
completamente obscura ao indivíduo, atentando contra a certeza do Direito e a
segurança jurídica. Nesse sentido, costuma-se identificar como marco da elaboração
clássica do Direito Penal a obra do italiano Beccaria, de 1764, “Dos delitos e das
penas”, onde é exposta a origem contratual do Estado civil e a necessidade de
respeito à liberdade individual em função de que apenas um mínimo de liberdade de
cada cidadão teria sido depositado no Estado quando da constituição do contrato
social.
11
Assim, são expostos diversos princípios que constituem uma promessa de
segurança do indivíduo.
12
É importante destacar, na esteira de Aniyar de Castro, que essa escola “é
ela mesma uma criminologia administrativa e legal, uma forma de controle social
fundante da nova ordem estabelecida pela via da dominação legal”.
13
Assim,
exerceu ela também uma função política, buscando assegurar a “previsibilidade
necessária para o livre mercado, interesse central da classe em ascensão, que
antes estava em posição subordinada e que deveria garantir agora seu direito ao
poder em face dos resíduos ideológicos do sistema feudal”.
14
Em função de mudanças nos contextos social, econômico e político, o século
XIX trouxe teorias sobre o crime bastante diversas. É o auge da Escola Positiva,
cujo paradigma de ciência o é mais o da filosofia jusracionalista, e sim o do
evolucionismo, sendo o método característico do período o empírico-experimental,
ou seja, indutivo. Ao invés de justificar a liberdade do indivíduo a partir de uma
ordem natural universal, e então limitar o poder de punir do Estado, a Escola
Positiva desloca o foco de atenção para o homem criminoso, buscando nele as
causas do crime. Assim, de limite ao poder de punir do Estado, o indivíduo
criminoso, visto como um “anormal”, biológica, antropológica e sociologicamente
determinado a cometer crimes, passa a ser o objeto de intervenção do Estado na
busca pelo seu tratamento e reinserção no pólo “normal” da sociedade.
15
A Escola
Positiva exerceu um papel essencial nas associações entre “o pobre, o feio, o
anormal e o perigoso”, da mesma forma como entre “o rico, o belo, o inofensivo”, a
11
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
12
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. op. cit. passim.
13
ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2005. p. 69.
14
ibid. p. 70.
15
CID MOLINÉ, José; LARRAURI PIJOAN, Elena. Teorias criminológicas. Explicación y prevención
de la delincuencia. Barcelona: Bosch, 2001. p. 57-62.
17
partir de estudos experimentais sobre a população penitenciária.
16
Apesar de em grande parte os postulados da Escola Positiva terem sido
deixados de lado
17
com o surgimento da Escola tecnicista, a qual buscava a
exclusão de todo e qualquer elemento jusnaturalista, biológico, sociológico, ou
psicológico do Direito Penal, pode-se dizer que Escola Clássica e Escola Positiva
acabaram se complementando nas legislações do século XX. Também se
complementaram no desenvolvimento de uma ideologia, que permeia o senso
comum e todos os sistemas penais criados nesses moldes.
Muito embora o Direito Penal tenha se fechado no estudo das normas penais,
dentro de uma perspectiva de dominação da Dogmática, vista como ciência do
direito por excelência, a sociologia seguiu os estudos relativos ao crime e à
sociedade na Europa e nos Estados Unidos. Essas teorias sociológicas o
apresentadas na obra clássica de Alessandro Baratta. Após identificar os princípios
que compõem a ideologia da defesa social, ou seja, a ideologia penal dominante, o
autor faz uso das teorias sociológicas com o objetivo de contrapô-los um a um.
Sendo essa ideologia o que legitima o sistema penal, a sua crítica põe a nu a sua
deslegitimação, com a conseqüência de se buscar alternativas político-criminais ao
sistema penal.
18
Para o desenvolvimento deste trabalho, destaca-se, dentre essas teorias, o
labelling approach ou teoria do etiquetamento, uma vez que ela faz a ruptura
epistemológica da criminologia, ao retirar o foco das causas do crime no crime e no
criminoso para visualizar o fenômeno da criminalização.
Este subcapítulo pretende explorar essa teoria para compreender a idéia de
construção social da criminalidade (1.1.1) e o papel dos órgãos de controle social
formal e informal nessa construção (1.1.2). Além disso, busca expor os resultados a
16
ANIYAR DE CASTRO, Lola. op. cit. p. 74.
17
É possível afirmar que muito embora a criminologia atual tenha abandonado a pretensão de que
exista o delinqüente nato, algumas teorias ainda o desenvolvidas no marco positivista. Algumas
continuam relacionando a delinqüência com a constituição física; outras com a inteligência, com a
personalidade e outros fatores biológicos. CID MOLINÉ, José; LARRAURI PIJOAN, Elena. op. cit. p.
68-77.
18
A ideologia da defesa social é especificada por Baratta, como sendo a ideologia que une tanto
Escola Clássica como Escola Positiva, sendo constituída por alguns princípios, negados por algumas
teorias: princípio da legitimidade, negado pelas teorias psicanalíticas; o princípio do bem e do mal,
negado pela teoria das subculturas criminais; o princípio do interesse social e do delito natural,
negado pela teoria estrutural-funcionalista; o princípio da igualdade, negado pelo labelling approach;
o princípio da culpabilidade, negado pela sociologia do conflito e o princípio da finalidade ou da
prevenção negado pela recepção alemã do labelling approach. BARATTA, Alessandro. Criminologia
crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. p. 42.
18
que chegou a criminologia crítica, ao transferir os resultados da teoria do
etiquetamento a um enfoque macrossociológico (1.1.3), chegando ao processo de
globalização e às mudanças vividas pelos Estados ocidentais diante do
neoliberalismo (1.1.4).
1.1.1 A sociologia interpretativa e a teoria do etiquetamento
As raízes da teoria do etiquetamento remontam à década de 1960, dentro de
um contexto de influência de duas principais correntes da sociologia norte-
americana, que surgem no contraponto à sociologia funcionalista, o interacionismo
simbólico, inspirado principalmente na obra de George Mead, e a etnometodologia,
inspirada em Alfred Schütz.
19
Tanto uma quanto outra corrente percebem a
realidade social não como um dado objetivo a ser simplesmente conhecido. Para o
interacionismo simbólico, a realidade social é “constituída por uma infinidade de
interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere
significado que se afasta das situações concretas e continua a estender-se através
da linguagem”.
20
Coulon observa que a interação é “uma ordem negociada,
temporária, frágil, que deve ser permanentemente reconstruída a fim de interpretar o
mundo”.
21
O papel da linguagem nos processos de tipificação e, portanto, de objetivação
da realidade social é importante também no enfoque da etnometodologia, onde se
percebe que “a linguagem comum diz a realidade social, descreve-a e ao mesmo
tempo a constitui”.
22
Dessa forma, compreendendo a realidade como construída
socialmente, a etnometodologia se diferencia das abordagens sociológicas
anteriores porque, ao invés de procurar saber como os indivíduos agem em
situações dadas, ela “vai tentar compreender como é que os indivíduos vêem,
descrevem e propõem em conjunto uma definição da situação”.
23
A realidade é, portanto, uma construção social, operada através de processos
19
ibid. p. 87. Segundo Coulon, “a etnometodologia é a pesquisa empírica dos métodos que os
indivíduos utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo realizar as suas ações de todos os dias:
comunicar-se, tomar decisões, raciocinar”. COULON, Alain. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes,
1995. p. 30.
20
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 87.
21
COULON, Alain. op. cit. p. 16.
22
ibid. p. 8.
23
ibid. p. 20.
19
de definição e de tipificação.
24
Através desses esquemas tipificadores os outros são
apreendidos. São estabelecidos através desses esquemas “os modos como
‘lidamos’ com eles nos encontros face a face”.
25
A relação com o outro se dá sempre
através de uma tipificação, estando já estabelecida. “Assim, na maior parte do
tempo, meus encontros com os outros na vida cotidiana são típicos em duplo
sentido, apreendo o outro como um tipo, e interatuo com ele numa situação que é
por si mesma típica”.
26
Construção social da realidade é a denominação utilizada por Berger e
Luckmann para a sua obra de sociologia do conhecimento que tem essa matriz
teórica. É essencial nesse marco a compreensão dialética da vida social, onde o
homem em coletividade produz o mundo social, transforma a realidade em uma
realidade objetiva e, dialeticamente, essa mesma realidade social o produz.
27
Acima
de tudo, compreende-se que a “ordem social existe unicamente como produto da
atividade humana. Não é possível atribuir-lhe qualquer outro status ontológico sem
ofuscar irremissivelmente suas manifestações empíricas”.
28
Estudar os processos de tipificação e de definição utilizados na interação
social, e que levam à construção de uma realidade de maneira intersubjetiva é
essencial para compreendê-la.
A partir dessas matrizes teóricas, a teoria do etiquetamento chega à
percepção do desvio como sendo também uma construção social, a partir de
interações ocorridas na sociedade, fazendo com que em algumas situações se
definam pessoas como desviantes. Assim, o labelling approach rompe com a
criminologia tradicional ao perceber que o crime e o criminoso também não o
dados ontológicos, pré-constituídos à experiência, mas uma construção resultante
de interações sociais.
A teoria do etiquetamento também é conhecida por criminologia da reação
social, por identificar na reação da sociedade ao desvio um fundamental elemento
para que o comportamento seja assim rotulado. Seus principais objetos de estudo
foram a formação da identidade desviante, que acarreta o chamado desvio
24
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 87.
25
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes,
2002. p. 49.
26
ibid. p. 50.
27
ibid. p. 87.
28
ibid. p. 76.
20
secundário e o estudo das agências do controle social, que detêm o poder de
definição na sociedade.
29
A importância da reação social na definição de um fato como criminoso é
demonstrada por Lemert através do quociente de tolerância, através do qual é
possível manipular o desvio e a reação social através de uma fração matemática,
medida com uma quantidade de condutas desaprovadas em uma localidade no
numerador e no denominador o grau de tolerância para o comportamento em
questão.
30
Assim, se em duas cidades diferentes, mas de tamanho comparável, uma
tem um alto índice de ocorrência de determinado comportamento desviante, e outra
tem um baixo índice, caso na primeira a tolerância seja maior e na segunda menor,
ou seja, na segunda haja maior reação social, o resultado seo mesmo.
31
Isso
demonstra que, para que um comportamento seja desviante ou criminoso, não basta
que esteja assim definido em lei, mas que haja uma reação social frente à sua
prática.
Essa é também a conclusão de Becker. Considerado o fundador da teoria do
etiquetamento, o autor é a maior referência no estudo da reação social e dos efeitos
da estigmatização do etiquetamento na formação do status social de desviante.
32
Para Becker, “o desvio não é uma qualidade que se encontre na própria conduta,
mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aqueles que reagem ao
mesmo”.
33
Isso significa que todas as vezes em que ocorre um fato definido
legalmente como crime e não reação social a pessoa que o cometeu não será
rotulada e terá preservada a sua identidade.
O desvio é, assim, construído socialmente, que “(...) os grupos sociais
29
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 89. É relevante
observar que as correntes da sociologia norte-americana que começaram a estudar a criminalidade
sob esse enfoque deixaram de utilizar o termo crime, criminoso, criminalidade, passando a adotar as
palavras desvio e desviante. Segundo Pavarini, isso se deveu ao fato de que a idéia de “criminoso” e
de “delinqüente” têm uma paternidade jurídico-penal, e já vinha carregada de sentidos, dentre eles o
fato de a violação ser a uma norma penal. O termo desvio foi adotado para ter os atributos de uma
pelo menos aparente neutralidade. De fato, passa-se a compreender que o desvio é o gênero,
enquanto a criminalidade é a espécie: “a criminalidade não é senão a forma de desvio que foi
criminalizada”. PAVARINI, Massimo. Control y dominación: Teorías criminológicas burguesas y
proyecto hegemónico. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002. p. 64.
30
LEMERT, Edwin M. Social pathology: A systematic approach to the theory of sociopathic behavior.
New York: McGraw-Hill Book Company, 1951. p. 57.
31
ibid. p. 58.
32
BECKER, Howard. Outsiders: Studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press,
1996.
33
ibid. p. 14. Tradução livre do original em inglês: “Deviance is not a quality that lies in behavior itself,
but in the interaction between the person who commits an act and those who respond to it”.
21
criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio, e por aplicar ditas
regras a certas pessoas em particular e qualificá-las como outsiders”.
34
O processo de criminalização se inicia com a seleção das condutas
desviadas, através da definição das normas pelo legislador, o que se denominou
criminalização primária. A definição do desvio através das leis interage com um
processo de definição no senso comum do que é o comportamento “normal”, sendo
que “a normalidade é representada por um comportamento predeterminado pelas
próprias estruturas, segundo certos modelos de comportamento, e correspondente
ao papel e à posição de quem atua”.
35
Ao atribuir a etiqueta de desviante a algumas
pessoas, em função do descumprimento a tais normas, realiza-se a criminalização
secundária. “O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito aquela
etiqueta; o comportamento desviante é o comportamento assim etiquetado pelas
pessoas”.
36
Por conseqüência do etiquetamento podem se dar modificações na identidade
do indivíduo. A criação da identidade desviante é um dos focos de pesquisa do
labelling approach, principalmente no sentido de que o estigma criado em função
dessa definição faz com que o indivíduo tenha uma tendência a permanecer no
papel social a si atribuído pela reação social.
37
É o que Lemert chamou de desvio
secundário, teorizado pela primeira vez em 1951 na obra Social Pathology, de sua
autoria, conceito desenvolvido após na obra Human deviance, social problems and
social control.
38
De qualquer modo, ser descoberto e marcado como desviante tem
importantes conseqüências para a participação social posterior de alguém e
para a sua auto-imagem. A conseqüência mais importante é uma mudança
drástica na identidade pública do indivíduo. O haver cometido um ato
34
ibid. p. 9. Tradução livre do original em inglês: “[...] social groups create deviance by making the
rules whose infraction constitutes deviance, and by applying those rules to particular people and
labelling them as outsiders. From this point of view, deviance is not a quality of the act the person
commits, but rather a consequence of the application by others of rules and sanctions to an “offender”.
The deviant is one to whom that label has successfully been applied; deviant behavior is behavior that
people so label”.
35
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 95.
36
BECKER, Howard. op. cit. p. 9. Tradução livre do original em inglês: “[...] social groups create
deviance by making the rules whose infraction constitutes deviance, and by applying those rules to
particular people and labelling them as outsiders. From this point of view, deviance is not a quality of
the act the person commits, but rather a consequence of the application by others of rules and
sanctions to an “offender”. The deviant is one to whom that label has successfully been applied;
deviant behavior is behavior that people so label”.
37
LEMERT, Edwin M. op. cit.
38
ibid. p. 318-319.
22
proibido e o haver sido publicamente descoberto colocam-no em um novo
status.
39
A partir da interação social, determinadas pessoas são identificadas com
determinados papéis, sendo que a etiqueta decorrente dos atos praticados não
indica apenas esses atos específicos, mas tudo o que pode se esperar de alguém
que porte aquela etiqueta. Uma pessoa que atua segundo determinado papel será
conhecida a partir dele, vinculando as interações com outros indivíduos.
40
Assim, no
caso do desvio, a etiqueta “evoca um conjunto de imagens características. Sugere a
alguém que se comporte como aquelas pessoas que pertencem ao grupo
relacionado à etiqueta”.
41
Sendo assim, quando as pessoas tratam outras como desviantes, produzem o
efeito de uma profecia que se auto-realiza. Isso porque “põe em movimento uma
série de mecanismos que conspiram para conformar a pessoa à imagem que as
pessoas têm dela”.
42
Isolando o desviante dos seus grupos sociais originais,
tratando-o como alguém de quem se espera uma conduta contrária às regras, ainda
que diversa daquela que efetivamente cometeu, se induz a adoção de uma
identidade desviante e a atuação em conformidade com essa etiqueta.
O princípio da seletividade
É também conseqüência das teorias da reação social a percepção de que
dentro de um quadro geral de delitos ocorridos diariamente, apenas a alguns a
39
BECKER, Howard. op. cit. p. 31-32. Tradução livre do original em inglês: “In any case, being caught
and branded as deviant has important consequences for one’s further social participation and self-
image. The most important consequence is a drastic change in the individual’s public identity.
Commiting the improper act and being publicy caught at it place him in a new status”. Quanto à
estigmatização decorrente do etiquetamento, é interessante analisar a obra de Goffman, nessa
mesma linha. Ele utiliza o termo estigma em referência a atributos indesejáveis incongruentes com o
estereótipo criado para um determinado tipo de indivíduo, funcionando também no caso de
desviantes sociais, membros de minorias e pessoas de classe baixa, que passam pela situação de
insegurança diante da recepção que os espera na interação face-a-face. GOFFMAN, Erving.
Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 1988. p. 157.
40
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. op. cit. p. 106.
41
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência
criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998. p. 184.
42
BECKER, Howard. op. cit. p. 34. Tradução livre do original em inglês: “It sets in motion several
mechanisms which conspire to shape the person inthe image people have of him”.
23
sociedade e o sistema penal
43
reagem, demonstrando a existência de uma
seletividade. Essa seletividade é encontrada tanto na definição do ato desviante
(criminalização primária) quanto na atribuição do rótulo de desviante a alguém
(criminalização secundária). Sendo a criminalidade uma realidade social construída
tanto pelas instâncias oficiais quanto pelas informais de controle, percebe-se que a
distribuição do status de criminoso se de forma desigual na sociedade, apesar de
a lei, em tese, atingir a todos.
Em relação à seletividade dos bens a serem protegidos pelo direito penal na
criminalização primária, é interessante notar que quem faz as leis são pessoas
pertencentes a determinados estratos sociais, que não representam a maioria, nem
contemplam outros estratos. Sendo assim, é também interessante a abordagem das
teorias conflituais da criminalidade, as quais percebem que os interesses protegidos
são os daqueles grupos que têm o poder de influir sobre os processos de
criminalização. É o que os teóricos desta corrente chamam de poder de definição, a
partir do qual determinados comportamentos, que podem ser práticas usuais de
algumas comunidades, são definidos como criminosos pelo grupo que possui esse
poder, num contexto de conflito social entre os diferentes grupos.
44
Para Becker, a possibilidade de imposição das normas com sucesso se deve
a uma questão de poder econômico e político. Assim, as pessoas estão sempre
forçando os outros a cumprirem as suas regras, aplicando-as mais ou menos contra
a sua vontade, e sem o seu consentimento.
45
Um exemplo disso é que os jovens
criam as normas para as pessoas idosas, assim como os adultos legislam para
crianças e adolescentes. “Aqueles grupos cuja posição social lhes armas e poder
têm melhores possibilidades de reforçar as suas regras”.
46
A seletividade da criminalização secundária é bem demonstrada em relação
aos crimes de colarinho branco. Quem se importou primeiramente com a questão foi
Sutherland, em 1940, quando fez frente à conseqüência das teorias funcionalistas
43
Neste trabalho, o termo sistema penal e sistema de controle penal são compreendidos pelas
instituições que operacionalizam o controle penal (Parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça,
Prisão), ou seja, as agências de controle social formal.
44
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit.
45
BECKER, Howard. op. cit. p. 17. Tradução livre do original em ingles: “[…]people are in fact always
forcing their rules on others, applying them more or less against the will and without the consent of
those others”.
46
ibid. p. 18. Tradução livre do original em inglês: “Those groups whose social position gives them
weapons and power are best able to enforce their rules”.
24
de que a criminalidade viria das classes mais baixas em função da ausência de
condições legítimas para chegarem aos fins culturalmente desejados, bem como de
condições psicopatológicas ou sociopatológicas.
47
Porém, no contexto de sua teoria
não estudou a questão da seletividade, mas as causas pelas quais as pessoas de
classes altas praticavam crimes. Assim, como hoje, naquela época a criminalidade
de colarinho branco dificilmente era perseguida e rotulada dessa forma, apesar de
definida em lei, o que o fez questionar se tais atos efetivamente podiam ser
considerados criminosos.
48
A seletividade deve ser percebida também a partir da existência de muitos
fatos definidos como crimes que ocorrem diariamente, mas de que sequer se tem
notícia, ao que autores posteriores deram o nome de cifra negra da criminalidade. A
conseqüência dessa percepção é de que, como nota Zaffaroni, se o sistema penal
processasse e punisse todos os fatos tipificados como crimes, toda a população
teria sido criminalizada várias vezes.
Diante da absurda suposição não desejada por ninguém de criminalizar
reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está
estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e,
sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade
seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis.
49
Em conseqüência disso, passa-se a perceber que as estatísticas criminais
não dizem respeito à criminalidade, e sim à criminalização, tendo em vista que elas
são feitas com base apenas nos casos registrados. “O que as estatísticas refletem
são as contingências organizativas que condicionam a aplicação de determinadas
leis a determinada conduta por meio da interpretação, decisões e atuações do
pessoal encarregado de aplicar a lei”.
50
E essas contingências organizativas dizem respeito a uma certa orientação
contra alguns tipos de crimes e algumas pessoas. Essa questão traz à tona a
existência de um senso comum a distinguir quem o as pessoas consideradas
criminosas, o que se traduz em estereótipos. Tendo em vista que o direito penal é
abstrato e não é aplicado automaticamente sempre que fatos tipificados ocorrem no
meio social, conclui-se que “entre a seleção abstrata, potencial e provisória operada
47
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit.
48
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. op. cit. p. 261.
49
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema
penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 125.
50
KITSUSE; CICOUREL apud CID MOLINÉ, José; LARRAURI PIJOAN, Elena. op. cit. p. 210.
25
pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de
criminalização secundária, medeia um complexo e dinâmico processo de refração”.
51
Os estereótipos, tanto de autores como de vítimas, estão ligados ao senso
comum, criados através da interação social. São eles “sistemas de representações
que orientam a vida quotidiana”,
52
e se constituem em mecanismos de seleção na
medida em que permitem a definição da desconformidade como desvio, sendo
ligada a um certo número de sinais exteriores.
53
Tendo em vista que os estereótipos constituem um mecanismo de seleção
formal, explica-se porque a clientela da prisão é uniforme. “O estereótipo alimenta-se
das características gerais dos setores majoritários mais despossuídos e, embora a
seleção seja preparada desde cedo na vida do sujeito, é ela mais ou menos
arbitrária”.
54
Isso demonstra que os estereótipos se constituem não somente em um
mecanismo de seleção, mas de reprodução, tendo em vista que possui “um efeito de
feed-back sobre a realidade, racionalizando e potenciando as ‘razões’ que geram os
estereótipos e as diferenças e oportunidades que eles exprimem”.
55
Através dessa percepção, demonstra-se que as pessoas que atuam nos
órgãos de controle penal, também inseridas em sociedade, agem de acordo com os
estereótipos, esperando determinadas condutas de determinadas pessoas e não de
outras. “Na reação não-institucional encontramos em ação, além disso, definições e
‘teorias de todos os dias’ da criminalidade, que apóiam os processos de distribuição
da criminalidade postos em ação pelas instâncias oficiais”.
56
Isso significa que pessoas que praticam atos tipificados criminalmente e
não são vistas pela sociedade como criminosas. Por outro lado, há pessoas que não
cometeram quaisquer crimes e, em função de carregarem o estereótipo de
criminosos, são tidos por “delinqüentes” nas interações sociais.
Um exemplo muito claro disso é a imagem que se carrega sobre os delitos
sexuais. O estereótipo do criminoso é sempre o de uma pessoa estranha à vítima,
51
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. op. cit. p. 260.
52
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinqüente e a
sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1997. p. 389.
53
“A cor da pele, a origem étnica, o corte de cabelo ou de barba, o estilo do vestuário, os locais
freqüentados e as horas de freqüência; bem como a toda uma série de atitudes simbólicas ‘próprias’
de um delinqüente, de um louco, de um drogado ou de um ébrio, de um homossexual, de uma
prostituta”. ibid.
54
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 134.
55
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit. p. 389.
56
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 180.
26
sendo que a ideologia tradicional do crime traz a idéia de que são pobres, homens
de grupos minoritários, sem educação e/ou psicóticos. Em função disso, “os
esposos, os noivos, os pais, os companheiros de trabalho, que são mais prováveis
de vitimizar as mulheres, não encaixam na imagem do protótipo de criminoso,
porque não são estranhos”.
57
Como se pode perceber, a visão trazida pela teoria do etiquetamento ao
fenômeno da criminalidade inverte o seu conceito e auxilia na compreensão da
atuação da sociedade na própria constituição do crime. Porém, apesar de ter sido
essencial na ruptura com o paradigma etiológico da criminologia tradicional, há
várias críticas dirigidas ao labelling approach, ressalvando, porém, a irreversibilidade
dos seus resultados. Uma delas se relaciona à não explicação sobre o que leva à
delinqüência primária, que seria independente do rótulo. Outra crítica diz respeito ao
fato de que, ao tratar sobre o desvio secundário, ingressou em uma abordagem
bastante determinista, prevendo desde que a pessoa etiquetada está determinada
a cometer crimes novamente. A terceira crítica é a de que pessoas que
delinqüem sem terem sido objeto de reação social e em outros casos pessoas
etiquetadas que não voltam a delinqüir, e caso voltem, não como saber se foi em
função da etiqueta realmente.
58
Além dessas críticas, há um outro grupo de questionamentos que se refere ao
fato de o labelling approach ter se mantido em um enfoque microssociológico, ou
seja, como se os mecanismos políticos sobre o poder de definição fossem
independentes da estrutura econômica das relações de produção e distribuição.
57
MADRIZ, Esther. Miedo común y precauciones normales: mujeres, seguridad y control social.
Delito y sociedad: Revista de Ciencias Sociales. Buenos Aires, año 7, n. 11/12, p. 87-104, 1998. p.
94. Tradução livre do original em espanhol: “Los esposos, los novios, los padres, los compañeros de
trabajo, que son los más probables para victimizar a las mujeres, no encajan en la imagen del
‘prototipo de criminal’, porque ellos no son extraños”. Sobre o assunto cf. ANDRADE, Vera Regina
Pereira de. Sistema penal e violência sexual contra a mulher: proteção ou duplicação da vitimação
feminina. In: ______. Sistema penal máximo versus cidadania mínima. p. 81-108. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003.
58
CID MOLINÉ, José; LARRAURI PIJOAN, Elena. op. cit. p. 218. Outras críticas ainda podem ser
encontradas em TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. La nueva criminología: contribución
a una teoría social de la conducta desviada. Buenos Aires: Amorrortu, 1990. p. 156-161.
27
Daí resulta uma teoria capaz de descrever mecanismos de criminalização e
de estigmatização, de referir estes mecanismos ao poder de definição e à
esfera política em que ele se insere, sem poder explicitar,
independentemente do exercício deste poder, a realidade social e o
significado do desvio, de comportamentos socialmente negativos e da
criminalização.
59
Tais déficits, porém, não significam o abandono da teoria do etiquetamento,
ao contrário, trata-se de desenvolvê-la a partir dos pressupostos necessários. A
Criminologia Crítica, surgida na década de setenta busca fazê-lo, através da
construção de uma teoria materialista do desvio.
1.1.2 A interação entre controle social formal e informal na construção social da
criminalidade
Quando os diversos teóricos do labelling approach deslocam a atenção da
ação humana do desvio desconsiderando o contexto social, para a reação social aos
atos como fundantes desse conceito, o estudo das instâncias de controle passam a
ser o objeto da criminologia.
60
Aniyar de Castro entende o controle como
[...] o conjunto de sistemas normativos (religião, ética, costumes, usos,
terapêutica e direito [...]) cujos portadores, através de processos seletivos
(estereotipia e criminalização) e estratégias de socialização (primária e
secundária ou substantiva), estabelecem uma rede de contenções que
garantem a fidelidade [...] das massas aos valores do sistema de
dominação; o que, por motivos inerentes aos potenciais tipos de conduta
dissonante, se faz sobre destinatários sociais diferencialmente controlados
segundo a classe a que pertencem.
61
O controle social não se dá, portanto, exclusivamente pelas agências de
controle penal, podendo-se dividir esse sistema em controle social formal e controle
social informal. Com efeito, controle formal e controle informal são subsistemas de
um sistema maior de controle social global. “O sistema penal não realiza o processo
de criminalização e estigmatização à margem ou inclusive contra os processos
gerais de etiquetamento que têm lugar no seio do controle social informal”.
62
59
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 116.
60
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit. p. 365.
61
ANIYAR DE CASTRO, Lola. op. cit. p. 54-55.
62
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima. digos da
violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 43. Como observa
Muñoz Conde, não haveria sentido se pensar em um sistema de controle penal desconectado das
demais instâncias de controle social. “A norma penal, o sistema jurídico-penal, o direito penal como
um todo, tem sentido se considerado como continuação de um conjunto de instituições públicas e
privadas (família, escola, formação profissional, etc.), cuja tarefa consiste igualmente em socializar e
28
O controle social informal é levado a cabo por diversas organizações sociais,
como a família, a escola, a religião e os meios de comunicação social. É importante
ter em conta que o controle social não se dá a despeito da classe social dos
indivíduos, e por isso a perspectiva materialista deve estar conectada a tal análise.
Em uma perspectiva marxista, o controle social informal tem por função a adaptação
dos indivíduos em um mundo capitalista, em que a disciplina para a produção é
essencial à manutenção do sistema.
63
Da mesma forma, é necessário se ter um
enfoque de gênero, a partir da análise da estrutura patriarcal, diante da qual se pode
perceber vários mecanismos que cooperam no maior controle social das mulheres,
partindo desde os espaços destinados a elas (espaço doméstico) e aos homens
(espaço público).
64
Nesse sentido, valores culturais expressam-se como se fossem
determinações biológicas, “e as pessoas do sexo feminino como membros de um
gênero subordinado, na medida em que determinadas qualidades, bem como o
acesso a certos papéis e esferas [...] o percebidos naturalmente ligados a um
sexo biológico e não ao outro”.
65
O objetivo é, portanto, o de interiorização das
normas sociais, que ocorre através da socialização.
Por isso, é possível afirmar que o controle social possui uma unidade
funcional, “dada por um princípio binário e maniqueísta de seleção: a função do
controle social, informal e formal, é selecionar entre os bons e os maus, os incluídos
e os excluídos; quem fica dentro, quem fica fora do universo em questão, e sobre
quais recai o peso da estigmatização”.
66
Essas normas sociais também foram construídas através da interação
humana. Porém, na medida em que se afastam do momento de sua construção
tendem a ser institucionalizadas, transformadas em hábitos inquestionáveis. Em um
momento essas rotinas tornam-se instituições, ou seja, repetições sobre as quais
não se reflete, apenas se age. Assim, as instituições implicam em controle da
conduta humana, “estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a
educar para convivência entre os indivíduos através da aprendizagem de determinadas pautas de
comportamento”. MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Rio de Janeiro:
Forense, 2005. p. 23.
63
MIRALLES, Teresa. El Estado y el individuo: la disciplina social. p. 37-41. In: BERGALLI, R. et. al.
(orgs.). El pensamiento criminológico II: Estado y control. Bogotá: Temis, 1983. p. 38.
64
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: O sistema de justiça crimina no
tratamento da violência sexual contra a mulher. Seqüência, ano XXV, n.50, jul. de 2005, p. 71-102.
Florianópolis: Boiteux.
65
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal... op. cit. p. 85.
66
ibid. p. 77.
29
canalizam em uma direção por oposição às muitas outras direções que seriam
teoricamente possíveis”.
67
Isso demonstra que as instituições não necessitam estar
ligadas a sanções legais para que possam controlar a conduta dos indivíduos. “Dizer
que um segmento da atividade humana foi institucionalizado é dizer que este
segmento da atividade humana foi submetido ao controle social”,
68
sendo que novas
formas de controle, relacionadas a sanções, apenas são necessárias quando os
processos de institucionalização falham.
Cada instituição possui uma lógica de funcionamento, assegurada através da
linguagem, e “[...] um corpo de conhecimento transmitido como receita, isto é,
conhecimento que fornece as regras de conduta institucionalmente adequadas”.
69
A
partir das regras do comportamento adequado também é possível verificar as
atitudes que serão definidas como desviantes, encaradas como “depravação moral,
doença mental ou simplesmente ignorância crassa”.
70
Na medida em que uma ordem institucional é objetivada, ou seja, passa por
um processo em que os produtos exteriorizados da atividade humana adquirem o
caráter de objetividade, ela corre o risco de ser reificada. Dessa maneira, quando o
homem desaparece da autoria do mundo, os seus significados são entendidos como
produto “natureza das coisas”. “Através da reificação, o mundo das instituições
parece fundir-se com o mundo da natureza. Torna-se necessidade e destino, sendo
vivido como tal, feliz ou infelizmente, conforme o caso”.
71
Apesar de essa realidade objetivada, e por vezes reificada, ser transmitida no
curso da socialização primária, a ordem social não está livre das tentativas de
redefinição. Em função de queem em xeque uma realidade social tida como dada
e certa, os dissidentes precisam, primeiramente, ser tratados para se manterem
dentro do mesmo universo simbólico que questionaram. É a forma de controle social
que consiste no aconselhamento por parte da família, da igreja, ou mesmo da
terapia psiquiátrica, propiciada por uma teoria do desvio. Outro mecanismo de
manutenção do universo simbólico citado por Berger e Luckmann é a aniquilação
conceitual, realizada através da atribuição de um status ontológico inferior a todas as
67
BERGER; Peter; LUCKMANN, Thomas. op. cit. p. 80.
68
ibid. p. 80.
69
ibid. p. 93.
70
ibid. p. 93.
71
ibid. p. 125.
30
definições existentes fora do universo simbólico.
72
Porém, nem sempre o controle social informal atinge êxito para alguns
indivíduos, diferentes respostas ao condicionamento, podendo gerar dissidências
ao sistema e a não adaptação ao papel social atribuído. Assim, quando as instâncias
informais falham, as instâncias formais entram em ação de modo coercitivo e
legitimadas a partir da lei.
Uma vez que o indivíduo ultrapassa o limite marcado entre as instâncias
informais e formais, os castigos deixam de ser de tipo social mais ou menos
difuso para entrar no âmbito jurisdicional. E a partir da presença da
instância policial o indivíduo se encontra revestido de um novo status social:
o de desviado, inadaptado, anti-social, delinqüente ou perigoso.
73
Nesse sentido, um aspecto a não se deixar de lado é que controle social
formal e controle social informal caminham juntos, interagem no sentido de legitimar
a realidade social, que na situação atual é de desigualdade. Como nota Baratta, “a
função natural do sistema penal é reproduzir a realidade social existente”.
74
Por isso,
as instâncias de controle social informal são o primeiro passo de um caminho que
leva ou à liberdade ou à prisão.
A escola é um dos agentes informais de controle social de grande
importância, que age em um período de formação, na infância e na adolescência
de maneira quantitativa e qualitativamente constante. É a escola “o verdadeiro lugar
onde se iniciam os processos de exclusão e de distribuição da chamada conduta
desviante”.
75
Portanto, assim como é o local privilegiado para que seja exercido o
controle social informal, ou seja, para que se processe a adaptação do indivíduo, é
onde se detectam desde cedo as falhas do mesmo controle informal, e onde se
inicia a estigmatização e o etiquetamento. Também é a forma como se o ensino
que provavelmente determina o papel social que o indivíduo ocupará na idade
adulta, havendo uma clara diferenciação entre as escolas das massas e as escolas
72
ibid. p. 155.
73
MIRALLES, Teresa. op. cit. p. 41. Tradução livre do original em espanhol: “Una vez que el individuo
traspasa el límite marcado entre las instancias informales y formales, los castigos dejan de ser de tipo
social más o menos difuso para entrar en el ámbito jurisdiccional. Y a partir de la presencia de la
instancia policial el individuo se encuentra revestido de un nuevo status social: el de desviado,
inadaptado, antisocial, delincuente o peligroso”.
74
BARATTA, Alessandro. Criminología y ciencias penales: Enfoque crítico del sistema penal y la
criminología en Europa. In: ELBERT, Carlos Alberto; BELLOQUI, Laura (orgs.). Criminología y
sistema penal: Compilación in memorian. p. 89-109. Buenos Aires: Julio César Faira, 2004. p. 107.
Tradução livre do original em espanhol: “la función natural del sistema penal es conservar y
reproducir la realidad social existente”.
75
ANIYAR DE CASTRO, Lola. op. cit. p. 160.
31
das elites. Sendo a escolaridade a principal forma de ascensão social, percebe-se
que a organização do ensino acaba reproduzindo as desigualdades. “A
marginalidade, as carências intelectuais e a estigmatização são, portanto, círculos
concêntricos que se protegem reciprocamente, mas com uma forte potencialidade
centrífuga que desloca o indivíduo da escola para a prisão”.
76
Como se percebe, todas as instâncias de controle social, formais ou informais
são convergentes, uma completando a outra na tarefa de manutenção do status quo.
A homogeneidade do sistema escolar e do sistema penal corresponde ao
fato de que realizam, essencialmente, a mesma função de reprodução das
relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da sociedade,
criando, em particular, eficazes contra-estímulos à integração dos setores
mais baixos e marginalizados do proletariado, ou colocando diretamente em
ação processos marginalizadores.
77
O controle social formal é operado pelas agências do sistema penal, tais
como a policial, a judiciária e a penitenciária. Diferencia-se do controle social
informal por várias características, das quais se ressalta o fato de que opera apenas
com sanções negativas. Todas elas atuam com um alto grau de discricionariedade,
ao contrário do que pretende a dogmática penal ao justificar o direito penal e com
ele o princípio da legalidade.
O controle social formal
Dentre as agências de controle formal, a função policial é particularmente
importante. Efetivamente, o policial na maior parte das vezes exerce o papel de
decisor ao determinar quem é suspeito, quais são as condutas a serem perseguidas
e também qual é a distribuição das imunidades. O peso dos estereótipos e dos
preconceitos fica claro nesse processo, que a vigilância policial se volta
justamente contra os excluídos. Um exemplo é o das batidas policiais que ocorrem
freqüentemente em função da cor da pele, da forma de vestir, etc.
78
“Em resumo,
76
ibid. p. 160. Dentro das agências informais, é de essencial importância o estudo dos meios de
comunicação de massa, o que se buscará realizar, em especial sobre o jornalismo, no tópico 1.2.
77
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 175
78
Um caso ilustrativo é o citado por Galeano ocorrido em 1997, quando o Secretário de Justiça do
governo de São Paulo e mais dois funcionários negros trafegavam em um veículo oficial novo e caro
e foram parados por um policial, que os fez sair do carro, e os manteve por uma hora de mãos para
cima buscando saber a origem criminosa do veículo. GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: A
escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999. p. 59.
32
cada polícia e a polícia em geral assinalam (e têm espaço de jogo necessário para
isso) quem e o quê vai contra a ordem”.
79
Zaffaroni denomina “agências executivas” do sistema penal seus segmentos
institucionalizados não judiciais, e aponta, dentre elas, o protagonismo das agências
policiais, em razão de seu alto poder configurador
80
, poder este ignorado pelo
discurso jurídico-penal. O autor ressalta que as polícias na América Latina são
normalmente militarizadas e que os policiais passam por um processo de
deterioração da identidade, o qual chama de policização.
O pessoal policizado, além de ser selecionado na mesma faixa etária
masculina dos criminalizados, de acordo também com um estereótipo, é
introduzido em uma prática corrupta, em razão do poder incontrolado da
agência da qual passa a fazer parte e é treinado em um discurso externo
moralizante e com uma prática interna corrupta.
81
Após a seleção pela agência policial do sistema penal, de o inquérito ter sido
concluído com o indiciamento, a decisão sobre os processos que serão objetos de
pedido de arquivamento ou de oferecimento de denúncia fica a cargo do Ministério
Público. Nesse processo, novamente a seletividade opera, estando presentes os
mesmos mecanismos a respeito dos estereótipos. Decidindo processar o indiciado,
entra em ação a agência judicial do sistema penal.
A atuação da agência judicial também é caracterizada por um importante grau
de discricionariedade, tendo em vista que a norma penal é abstrata, aberta e repleta
de lacunas, as quais são preenchidas através dessa atividade. Para tanto, os
julgadores se servem de um second code, um código social que regula a aplicação
das normas abstratas, e determinam a distribuição desigual das definições criminais
na realidade social.
82
Para além disso, Andrade refere que a discricionariedade se
não somente em função do preenchimento de lacunas jurídicas, mas sim na
79
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. La instancia policial. In: BERGALLI, R. et. al. (orgs.). El pensamiento
criminológico II: Estado y control. p. 63-73. Bogotá: Temis, 1983. p. 71. Tradução livre do original em
espanhol: “En resumen, cada policía y la policía en general señalan (y tienen el espacio de juego
necesario para ello) quién y qué va contra el orden”.
80
O poder configurador é o verdadeiro e real poder do sistema penal, para Zaffaroni, sendo
secundário o poder repressor. É exercido sem a função garantidora dos tipos penais e da intervenção
dos órgãos judiciais, sendo operado através de um controle social militarizado e verticalizado, de uso
cotidiano, exercido sobre a grande maioria da população, que se estende além do alcance
meramente repressivo, por ser substancialmente configurador da vida social”. Esse poder é exercido
sobre os setores mais carentes da população e se trata do disciplinamento, da introjeção de uma
vigilância disciplinar. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p. 23
81
ibid. p. 138. Grifos no original.
82
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 179.
33
fixação da verdade processual dos fatos. Assim, “o second code judicial tem uma
eficácia seletiva conformadora, reelaboradora e recriadora dos próprios fatos a
processar e a sancionar como crimes”.
83
Fora isso, a subjetividade do juiz pode interferir nos motivos da sentença sem,
porém, isso ser percebido no seu resultado. Também é importante referir que as
qualidades do réu interferem muito, tanto legalmente (reincidência, periculosidade),
quanto informalmente, através da incidência dos estereótipos. Julga-se a aparência
e a biografia do indivíduo, e não o fato ocorrido. Assim,
[...] fazendo uso do poder para definir que supõem as decisões judiciais, é
possível atribuir ao controle jurídico-penal e, em particular, ao que exercem
os juízes, uma vasta competência na estigmatização daqueles que resultam
selecionados mediante a ação destes processos de aplicação do direito.
84
São os juízes que atribuem efetivamente a qualidade de criminoso ao
indivíduo, com conseqüências jurídicas e sociais.
O sistema penal produz uma construção da realidade ao enfocar um
incidente, restritamente definido no tempo e no espaço, e congela ali,
observando-o em relação a uma pessoa, a um indivíduo, a quem a
instrumentalidade (a causalidade) e a responsabilidade podem ser
atribuídas.
85
A distância entre os juízes e a realidade social pode ser demonstrada por
estudos que concluem que a justiça é uma justiça de classe. A sua atuação costuma
se dar fazendo valer preconceitos e estereótipos, tendo sido pesquisada a diferença
de atitude dos juízes em face de indivíduos de classes diferentes, podendo-se
afirmar que “existe uma tendência por parte dos juízes de esperar um
comportamento conforme à lei dos indivíduos pertencentes aos estratos médios e
superiores; o inverso ocorre com os indivíduos provenientes dos estratos
83
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica... op. cit. p. 272. Grifo no
original.
84
BERGALLI, Roberto. La instancia judicial. In: BERGALLI, R. et. al. (orgs.). El pensamiento
criminológico II: Estado y control. p. 73-94. Bogotá: Temis, 1983. p. 79. Tradução livre do original em
espanhol: “[...] haciendo uso del poder para definir que suponen las decisiones judiciales, es posible
atribuir al control jurídico-penal y, en particular, al que ejercen los jueces, una vasta competencia en
la estigmatización de quienes resultan seleccionados mediante la acción de estos procesos de
aplicación del derecho”. Grifo no original.
85
HULSMAN, Louk. El enfoque abolicionista: Politicas criminales alternativas. In: RODENAS,
Alejandra; FONT, Enrique A.; SAGARDUY, Ramiro (orgs). Criminologia crítica y control social. El
poder punitivo del Estado. p. 73-102. Rosario: Juris, 2000. p. 76. Tradução livre do original em
espanhol: “El sistema penal produce una construcción de la realidad al enfocar un incidente,
restringidamente definido en tiempo y espacio, y congelar allí, observándolo en relación a una
persona, a un individuo, a quien la instrumentalidad (la causalidad) y la responsabilidad le pueden ser
atribuidas”.
34
inferiores”.
86
Seja pelo fato de que a proveniência dos juízes costuma ser da mesma classe
social, seja em função de condicionamentos que os pressionam a atuarem
favorecendo a classe da qual provêm, esses estudos acabam demonstrando, o
sem críticas, a atuação classista.
87
Em função disso, ao desconhecer o mundo do
acusado, suas decisões acabam sendo desfavoráveis aos indivíduos provenientes
dos estratos sociais inferiores, em função dos estereótipos, mas também pela ação
“exercida por uma série das chamadas ‘teorias de todos os dias’, que o juiz tende a
aplicar na reconstrução da verdade judicial”.
88
Um aspecto interessante elaborado por Zaffaroni a respeito da agência
judicial diz respeito ao processo de deterioração da identidade pelo qual os juízes
latino americanos passam, tal qual o do policial e o do preso, que pode se iniciar
ainda na universidade. Seu processo de treinamento “realiza-se mediante uma
paciente internalização de sinais de falso poder: solenidades, tratamentos
monárquicos, placas especiais ou automóveis com insígnias, saudações
militarizadas do pessoal de tropa de outras agências, etc”.
89
Após o processo de
treinamento burocratizante, o indivíduo deve responder às exigências do papel
que lhe for atribuído, segundo as características de
[...] assepsia ideológica, certa neutralidade valorativa, sobriedade em tudo,
suficiência e segurança de resposta e, em geral, um certo modelo de
‘executivo sênior’ com discurso moralizante e paternalista ou uma imagem
de que, na devida idade, responderá a este modelo.
90
Sendo assim, as características da agência judicial apontam mais uma vez
para a reprodução do sistema, em especial no que se refere à alienação em relação
às realidades diversas e ainda quanto à importância da sua atividade na construção
da própria realidade social.
Além da polícia e do judiciário, a instância penitenciária tem também um
importante papel no controle social formal. O encarceramento é, na atualidade, a
principal forma de punição utilizada nos países ocidentais. Justificada por diferentes
teorias sobre suas funções, o certo é que as correcionalistas (prevenção especial
86
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 178.
87
BERGALLI, Roberto. op. cit. p. 82-85.
88
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 177.
89
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p. 133.
90
ibid. p. 141.
35
positiva) são as mais propagadas, além da retribuição e da prevenção geral (positiva
e negativa). Mas vários estudos demonstram que nenhuma dessas funções é
efetivamente cumprida pela prisão.
Algumas críticas à prisão, que de fato demonstraram a existência de um
abismo entre as suas funções declaradas e as suas funções reais, o as que
vincularam o surgimento e desenvolvimento da prisão com o sistema capitalista.
91
A
partir desse marco, passou-se a verificar que as necessidades do mercado de
trabalho condicionam a forma como se dá o cumprimento das penas. Ou seja,
[...] a transformão em sistemas penais não pode ser explicada somente
pelas mudanças das demandas das lutas contra o crime, embora esta luta
faça parte do jogo. Todo sistema de produção tende a descobrir formas
punitivas que correspondem às suas relações de produção.
92
Essa afirmação é feita com base na observação de que a prisão até o século
XVII não era vista como um fim em si mesma, e sim de forma cautelar, ficando
encarcerados os condenados a outras penas, como a de morte antes da execução.
Também eram destinadas às infrações civis.
93
Em um contexto de escassez de mão-de-obra com o desenvolvimento do
mercantilismo, os suplícios físicos utilizados como pena exemplar em períodos
anteriores passaram a ser substituídos por penas mais “humanas” como os
trabalhos forçados nas galés e, posteriormente nas casas de correção. A primeira
forma de prisão como pena estava ligada às casas de correção manufatureiras, no
século XVII. “De todas as motivações da nova ênfase no encarceramento como
método de punição, a mais importante era o lucro, tanto no sentido restrito de fazer
produtiva a própria instituição quanto no sentido amplo de tornar todo o sistema
penal parte do programa mercantilista do Estado”.
94
Porém, é o Iluminismo que traz
91
As principais referências na crítica historiográfica à prisão são: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER,
Otto. Punição e estrutura social. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan/ ICC, 2004. FOUCAULT, Michel.
Vigiar e punir: História da violência nas prisões. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. MELOSSI, Dario;
PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário. Rio de Janeiro:
Revan/ICC, 2006.
92
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. op. cit. p. 20. Para exemplificar, os autores referem que: “É
evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista, que a
prisão com trabalho forçado é impossível sem a manufatura ou a indústria, que fianças para todas as
classes da sociedade são impossíveis sem uma economia monetária. De outro lado, o
desaparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente fique
inaplicável”. ibid. p. 20-21.
93
MIRALLES, Teresa. La cárcel. In: BERGALLI, Roberto et. al. (orgs.). El pensamiento
criminológico II: Estado y control. p. 95-120. Bogotá: Temis, 1983. p. 96.
94
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. op. cit. p. 103.
36
efetivamente a elaboração teórica para promover a prisão.
O poder arbitrário do juiz no sistema inquisitorial foi um dos motivos pelos
quais os reformadores buscaram os limites do poder de punir do Estado perante o
indivíduo, através da formalização do direito material e do direito processual. A
industrialização, porém, levou à decadência as casas de correção, notando-se a
agora excedente mão-de-obra.
Partindo dessa análise, Foucault observa a passagem dos suplícios para a
pena “humanizada”, a passagem da aflição do corpo para a aflição da mente, dentro
de uma mecânica de poder, respondendo também à mudança nas próprias práticas
ilegais.
Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma
criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde
figuram o desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma
valorização jurídica e moral maior das relações de propriedade, métodos de
vigilância mais rigorosos, um policiamento mais estreito da população,
técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informação: o
deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um
afinamento das práticas punitivas.
95
As características da pena de prisão a partir do século XIX são
completamente diferentes. A disciplina passa a ser o elemento principal para o
controle, se baseando “no trabalho duro, tosco, às vezes totalmente improdutivo, no
silêncio obediente e na moral religiosa”.
96
Através da disciplina, tornou-se possível
criar uma utilidade para a pena. “A disciplina fabrica assim corpos submissos e
exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos
econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência)”.
97
A obediência produzida teria como objetivo a cura, a reeducação, a
partir do tratamento médico-psicológico, da aprendizagem de trabalho, da
medicalização e da disciplina.
98
O controle social nesse âmbito possui vários nuances, sendo que a disciplina
também se relaciona com as sanções negativas à desobediência. A forma de
cumprimento da pena pode ser modificada no curso da sua execução, conforme o
95
FOUCAULT, Michel. op. cit. p. 72.
96
MIRALLES, Teresa. La cárcel... op. cit. p. 100. Tradução livre do original em espanhol: El régimen
disciplinario de la prisión como castigo se basa justamente en el trabajo duro, tosco y a veces
totalmente improductivo, en el silencio obediente y en la moral religiosa”.
97
FOUCAULT, Michel. op. cit. 127.
98
MIRALLES, Teresa. La cárcel... op. cit.
37
comportamento do preso e da discricionariedade de profissionais inseridos no
sistema penal, como profissionais da saúde, psicólogos, pedagogos, etc.
Além das críticas revisionistas à prisão, que demonstram o cumprimento de
funções reais diversas das declaradas, o labelling approach foi uma das teorias que
possibilitaram a demonstração dessa deslegitimação. Um dos motivos pelos quais
demonstra ser equivocada a concepção ressocializadora da pena é o fato de que, ao
ser encarcerado, o indivíduo tem a sua identidade modificada por vários fatores,
sendo um deles a prisionização. O fenômeno da prisionização é percebido como
uma aculturação que ocorre quando o indivíduo adentra a prisão, sendo que neste
local existe uma cultura interna diversa da sociedade. É um fenômeno resultante da
deterioração ocorrida no indivíduo em função de sua inserção na instituição total.
Sua principal característica é a regressão, o preso é privado de tudo o que um adulto
pode fazer normalmente. Também a perda da privacidade, da auto-estima, do seu
espaço, além de outras características que se sobrepõem na América Latina, como
a “superpopulação, a alimentação paupérrima, a falta de higiene e de assistência
sanitária, etc”.
99
Nesse sentido, a prisão é uma máquina de deterioração, ao
provocar o desenrolar do processo de prisionização.
Quando voltar à vida em sociedade, esse processo será carregado, onde o
ex-presidiário será visto como alguém em quem nunca se deve confiar.
100
Dessa
maneira, “a mais reação social negativa corresponde um aumento da concepção
desviada do ‘si mesmo’, que termina por traduzir-se em uma aceitação pelo sujeito
de seu status social de desviado”,
101
contribuindo, assim, para o desvio secundário e
para a constituição de uma carreira criminosa. Da mesma forma, alguém que foi
etiquetado uma vez, além de ter possibilidades de se comportar novamente de
forma desviante, também tem grandes chances de ser novamente criminalizado.
Dessa forma, o labelling demonstra “como o processo de reação à delinqüência
acaba por funcionar como uma profecia-que-a-si-mesma-cumpre”.
102
Apesar disso, a instituição da prisão vem sendo expandida na maioria dos
99
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p. 125-126.
100
LEMERT, Edwin M. op. cit. p. 324.
101
BERGALLI, Roberto. Perspectiva sociológica: estructura social. In: BERGALLI, Roberto et. al.
(orgs.). El pensamiento criminológico I: Un análisis crítico. p. 133-158. Bogotá: Temis, 1983. p 150.
Tradução livre do original em espanhol: A más reacción social negativa corresponde un aumento de
la concepción desviada del ‘sí mismo’, que termina por traducirse en una aceptación por el sujeto de
su status social de desviado”
102
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit. p. 352.
38
países ocidentais, e, principalmente, a busca pelo isolamento total do indivíduo
através das prisões de segurança máxima se reproduz. Isso mostra de forma mais
aberta a desistência em relação ao projeto ressocializador (apesar de ser mantido
no discurso) e demonstra a utilização de um projeto que busca apenas a
neutralização de sua clientela (prevenção especial negativa), neutralização que na
América Latina pode ser tomada no sentido literal do termo.
Assim, na medida em que reagem contra apenas alguns crimes e algumas
pessoas, o controle social informal e o sistema penal constroem e reproduzem
seletivamente a criminalidade. Da mesma maneira, o controle social informal cria a
idéia da normalidade e do desvio, etiqueta determinadas pessoas como desviantes,
às quais o sistema penal vai se encarregar de perseguir. É, sem dúvida, um
processo dialético.
1.1.3 A reprodução das desigualdades pelo sistema penal: resultados da
criminologia crítica
Fazendo frente às teorias criminológicas anteriores, na década de 1970 foram
desenvolvidos estudos que buscaram justamente introduzir o enfoque
macroestrutrural à discussão criminológica, Trata-se do que se chamou de nova
criminologia ou criminologia radical. Enquanto aquela se desenvolveu na Inglaterra,
especialmente a partir da obra The new criminology, de Taylor, Walton e Young, a
criminologia radical teve sua origem nos Estados Unidos, no curso do
desenvolvimento das teorias sociológicas da década de sessenta.
Essa nova criminologia, em especial a obra citada, parte principalmente do
contraponto às teorias criminológicas anteriores, faltando um programa
sistematizado de estudos nessa linha. Larrauri infere, entretanto, de suas críticas
quatro pontos principais a serem considerados em estudos da nova criminologia:
“aplicar um método materialista histórico ao estudo do desvio”; “analisar a função
que cumpre o Estado, as leis e instituições legais na manutenção de um sistema de
produção capitalista”; “estudar o desvio no contexto mais amplo de luta de classes
sociais com interesses enfrentados”; “vincular a teoria à prática”.
103
103
LARRAURI, Elena. La herencia de la criminología crítica. 2 ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 1992. p.
112-113.
39
Cirino dos Santos esclarece que a Criminologia radical, por sua vez, estuda
[…] o papel do Direito como matriz de controle social dos processos de
trabalho e das práticas criminosas, empregando as categorias fundamentais
da teoria marxista, que o definem como instituição superestrutural de
reprodução das relações de produção, promovendo ou embaraçando o
desenvolvimento das forças produtivas.
104
Resta claro que a influência das reflexões marxistas esteve presente no
desenvolvimento desse pensamento. Porém, é necessário observar que nem Marx e
Engels, nem os grandes pensadores marxistas se dedicaram especificamente à
questão do crime.
105
Para o desenvolvimento dessa teoria foi necessário destacar,
dentro do pensamento marxista, algumas indicações teóricas e metodológicas. Na
opinião de Pavarini,
[…] é possível afirmar que com o termo nova criminologia se pode
compreender uma pluralidade de iniciativas político-culturais e um conjunto
de obras científicas que a partir dos anos setenta nos Estados Unidos, e
posteriormente na Inglaterra e em outros países da Europa ocidental,
desenvolveram um pouco depois as indicações metodológicas dos teóricos
da reação social e do conflito até o ponto de superar criticamente estes
enfoques. E na revisão crítica dos resultados aos quais se havia chegado,
alguns se orientaram para uma interpretação marxista certamente não
ortodoxa dos processos de criminalização nos países de capitalismo
avançado: estes últimos são reconhecidos ou mais comumente
reconhecem-se – como criminólogos críticos.
106
Assim, a Criminologia crítica é um estado avançado dessas primeiras
reflexões, fruto da revisão de seus resultados e adoção de uma perspectiva
materialista do desvio. Na opinião de Pavarini, se a Nova criminologia não podia ser
considerada um movimento científico, a criminologia crítica o pode ainda menos.
“Com este termo se quer somente indicar alguns autores, que, no intento de
examinar criticamente a própria experiência político-cultural dos ‘novos
criminólogos’, terminaram por aderir, ainda que seja a níveis distintos, a um enfoque
104
SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 28.
105
PAVARINI, Massimo. Control y dominación p. 149.
106
ibid. p. 155-156. Grifos no original. Tradução livre do original em espanhol: “se puede afirmar que
con el término nueva criminología se pueden comprender una pluralidad de iniciativas político-
culturales y un conjunto de obras científicas que a partir de los años sesenta en los EU, y
posteriormente en Inglaterra y en los otros países de Europa occidental, han desarrollado un poco
después las indicaciones metodológicas de los teóricos de la reacción social y del conflicto hasta el
punto de superar críticamente estos enfoques. Y en la revisión crítica de los resultados a los que se
había llegado, algunos se han orientado hacia una interpretación marxista ciertamente no ortodoxa
de los procesos de criminalización en los países de capitalismo avanzado: estos últimos son
reconocidos – o más comúnmente les gusta reconocerse – como criminólogos críticos”.
40
materialista da questão criminal”.
107
A passagem da criminologia liberal
108
à criminologia crítica ocorre com a
busca pela “construção de uma teoria materialista, ou seja, econômico-política, do
desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização, um trabalho
que leva em conta instrumentos conceituais e hipóteses elaboradas no âmbito do
marxismo”.
109
O questionamento em relação à sobre-representação da população mais
pobre nas prisões, nos diferentes países, leva, nesse marco, a algumas pistas.
[...] se partimos de um ponto de vista mais geral, e observamos a seleção
da população criminosa dentro da perspectiva macrossociológica da
interação e das relações de poder entre os grupos sociais, reencontramos,
por detrás do fenômeno, os mesmos mecanismos de interação, de
antagonismo e de poder que dão conta, em uma dada estrutura social, da
desigual distribuição de bens e oportunidades entre os indivíduos.
110
Sendo assim, em um sistema de classes, enquanto alguns são contemplados
com bens positivos como patrimônio, renda e privilégio, a criminalidade é um bem
negativo atribuído a algumas pessoas, através de mecanismos análogos.
111
A criminologia crítica recupera, portanto, a análise das condições objetivas,
estruturais e funcionais que originam, na sociedade capitalista, os
fenômenos de desvio, interpretando-os separadamente conforme se tratem
de condutas das classes subalternas ou condutas das classes
dominantes.
112
Os resultados a que chega a criminologia crítica são justamente a
demonstração de que o princípio da seletividade, formulado pela teoria do
etiquetamento, está orientado conforme a desigualdade social, sendo que as classes
107
ibid. p. 164. Tradução livre do original em espanhol: “Con este término se quiere sólo indicar a
algunos autores, que, en el intento de examinar críticamente la propia experiencia político-cultural de
los ‘nuevos criminólogos’, han terminado por adherirse, aunque sea a distintos niveles, a un enfoque
materialista de la cuestión criminal”.
108
Criminologia liberal é o termo empregado por Baratta para qualificar várias teorias sociais
criminológicas contemporâneas que vieram substituir a dimensão biopsicológica do fenômeno
criminal. São essas teorias a estrutural funcionalista; a teoria das subculturas criminais; a teoria
psicanalítica da sociedade punitiva; a teoria do labeling e teorias conflituais da criminalidade. Porém,
observa que o termo é “uma etiqueta sob a qual se reúnem diversas teorias não integráveis em
sistema, cada uma das quais, tomada em si mesma, representa uma alternativa somente parcial à
ideologia da defesa social”. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal...
op. cit. p. 151. A criminologia crítica, por seu turno, colhe os resultados da questão criminal e os situa
“no quadro de uma estrutura social determinada”, buscando desmistificar efetivamente a ideologia da
defesa social. ibid.
109
ibid. p. 159.
110
ibid. p. 106.
111
ibid. p. 108.
112
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica... op. cit. p. 217.
41
inferiores o as efetivamente perseguidas. Assim, “[...] o sistema punitivo se
apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica
(legitimação) do sistema social global, isto é, das relações de poder e de
propriedade existentes”.
113
Baratta resume em quatro proposições os resultados da crítica do direito
penal possibilitada pela criminologia crítica:
a) o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos
quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as
ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo
fragmentário;
b) a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de
modo desigual entre os indivíduos;
c) o grau efetivo de tutela e a distribuição social das ões do status de
criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade
das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável
principal da reação criminalizante e da sua intensidade”.
114
Diante disso, o sistema penal deixa de ser percebido como um mero sistema
abstrato e estático de normas, adquirindo o caráter de um sistema dinâmico de
funções.
115
Os resultados do labelling e da criminologia crítica de crítica ao sistema penal
somaram-se à crítica historiográfica e demonstraram a sua total deslegitimação,
tendo em vista o descumprimento de suas funções declaradas, e mais, o
cumprimento de funções latentes, ocultas, que mostram ser suas reais funções.
116
Em relação à prisão, sua função latente, segundo Foucault, ao fabricar a
delinqüência para propiciar a vigilância da sociedade, possibilita a imunidade das
ilegalidades dos grupos dominantes. Nisso reside o sucesso real da prisão, a
despeito de seu fracasso, ao produzir uma “ilegalidade fechada, separada e útil”.
117
A
prisão contribui, assim, no sentido de que “desenha, isola e sublinha uma forma de
ilegalidade que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar”.
118
113
BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo. In: ELBERT, Carlos Alberto;
BELLOQUI, Laura (orgs.). Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. p. 299-333.
Buenos Aires: Julio César Faira, 2004. p. 301. Tradução livre do original em espanhol: “[...] el sistema
punitivo se presenta como un subsistema funcional de la producción material e ideológica
(legitimación) del sistema social global, es decir, de las relaciones de poder y de propiedad
existentes, más que como instrumento de tutela de intereses y derechos particulares de los
individuos”.
114
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit. p. 162.
115
ibid. p. 161.
116
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica... op. cit.
117
FOUCAULT, Michel. op. cit. p. 244.
118
ibid.
42
Assim, o conceito de delinqüência se transforma: “ela é antes um efeito da
penalidade (e da penalidade de detenção) que permite diferenciar, arrumar e
controlar as ilegalidades”.
119
A imunidade dos delitos praticados pelos poderosos é, portanto, o exato
correlato da criminalização das ilegalidades praticadas pelas parcelas mais pobres
da população.
Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a
classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão:
pobres, os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de
trabalhos forçados; e os forçados, se fossem bem nascidos, tomariam
assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça.
120
Ao conseguirem impor ao sistema a impunidade às próprias ações criminais,
os grupos poderosos da sociedade determinam a perseguição punitiva às infrações
praticadas pela parcela mais frágil da população. Assim, os crimes mais graves,
aqueles que causam danos em grande proporção, como os delitos econômicos e
ambientais dificilmente são criminalizados.
121
Isso demonstra, em primeiro lugar, que
a seletividade do sistema inicia na criminalização primária, quando o definidos no
Legislativo os bens jurídicos que deverão ser protegidos. Daí serem os crimes contra
o patrimônio os mais comuns nos ordenamentos jurídicos de países capitalistas, e
também de serem pobres os principais clientes do sistema penal.
A criminalização secundária, ou seja, aquela que decorre da atuação das
agências executiva e judiciária do sistema penal (polícia, justiça), é ainda mais
seletiva. Mesmo quando previstos na lei crimes típicos das classes dominantes, ou
mesmo quando praticam delitos comuns, dificilmente pessoas que delas fazem parte
são criminalizadas. Assim, o sistema penal age conforme um estereótipo do crime e
do criminoso, que faz parte das classes mais frágeis da população, reproduzindo-se
as desigualdades sociais existentes. Em razão disso, “deve admitir-se que seu
exercício de poder dirige-se à contenção de grupos bem determinados e não à
‘repressão do delito’”.
122
Além de a clientela do sistema penal ser constituída de
pobres e excluídos em geral, as pessoas que reivindicam mudanças do status quo
são freqüentemente identificadas como desviantes.
119
ibid. p. 243-244.
120
ibid. p. 254.
121
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit.
122
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p. 40.
43
A imunidade dos crimes mais graves é cada vez mais elevada à medida em
que cresce a violência estrutural e a prepotência das minorias privilegiadas
que pretendem satisfazer as suas necessidades em detrimento das
necessidades dos demais e reprimir com violência física as exigências de
progresso e justiça, assim como as pessoas, os grupos sociais e
movimentos que são seus intérpretes.
123
Em conseqüência disso, pode-se perceber que o poder relativo dos sujeitos
potenciais do processo formal de controle e os estereótipos são os principais
mecanismos de seleção do sistema penal.
124
Conforme Dias e Andrade, através
desses mecanismos é possível compreender “as regularidades da presença
desproporcionada de membros dos estratos mais desfavorecidos nas estatísticas
oficiais da delinqüência, ou [...] entre os clientes das instâncias formais de
controle”.
125
O poder relativo dos sujeitos refere-se à própria participação em grupos
que manipulam o conteúdo da lei penal. Além disso, quando processados,
determinados sujeitos têm possibilidades de impor resistências, valendo-se da
“distribuição diferencial da imunidade”. “A capacidade de influência depende
sobremaneira do estatuto econômico social do interessado”.
126
A constatação da seletividade segundo a desigualdade de classe traz
diversas conseqüências. A principal delas é o descrédito em um dos principais
princípios propostos pelos iluministas, qual seja, o de igualdade perante a lei.
Conforme conclui Andrade, ao invés de assegurar a igualdade e a generalização no
exercício da função punitiva, a dogmática penal trouxe para o sistema penal a
reprodução da seletividade e da desigualdade percebida na sociedade.
127
A potencialidade deste desenvolvimento contraditório está, todavia, inscrito
nas bases fundacionais do próprio sistema, expressando a tensão entre um
projeto jurídico-penal tendencialmente igualitário e um sistema social
fundado na desigualdade real de acesso à riqueza e ao poder [...].
128
Nesse sentido é a tese de Andrade, quando conclui que a promessa de
igualdade perante a lei e de segurança jurídica vem invertida na prática, sendo que a
regra é a seletividade decisória, assim como as demais garantias penais são
freqüentemente violadas. O déficit de proteção aos direitos humanos e o excesso de
123
BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a violência estrutural e a violência penal.
Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre, vol. 6, n. 2, p. 44-61, abril-junho, 1993. p. 152.
124
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit. p. 387.
125
ibid.
126
ibid. p. 388.
127
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica... op. cit. p. 311.
128
ibid.
44
arbítrio punitivo são as características principais do que se transformou o sistema
penal na atualidade.
129
Se a conduta criminal majoritária e ubíqua, e a clientela do sistema penal é
composta regularmente e em todos os lugares do mundo por pessoas
pertencentes aos baixos estratos sociais, isto indica que um processo de
seleção de pessoas às quais se qualifica como delinqüentes e não, como se
pretende, um mero processo de seleção de condutas qualificadas como
tais. O sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais
que contra certas ações legalmente definidas como crime.
130
Isto leva à conclusão de que “as chances e os riscos do etiquetamento
criminal o dependem tanto da conduta executada como da posição do indivíduo
na pirâmide social (status social)”.
131
A idéia de que o sistema penal deveria
significar segurança jurídica, tanto no sentido de que o indivíduo deve ser protegido
do poder de punir do Estado, como em relação ao atributo do Estado moderno de
monopólio da coerção física, de forma a evitar a luta de todos contra todos, fica
completamente distorcida diante dessa realidade. Isso porque, ao realizar tal
seleção entre as pessoas criminalizáveis, mostra-se um excesso de arbítrio, afora o
fato de que as garantias penais tanto tempo previstas, são diariamente
violadas pelas agências do sistema penal.
Promessas vitais descumpridas, excessivas desigualdades, injustiças e
mortes não prometidas. Mais do que uma trajetória de ineficácia, o que
acaba por se desenhar é uma trajetória de eficácia invertida, na qual se
inscreve não apenas o fracasso do projeto penal declarado mas, por dentro
dele, o êxito do não-projetado; do projeto penal latente da modernidade.
132
Assim, além de ser ilegítimo o exercício de poder dos sistemas penais, é ele
ilegal, o que se demonstra pela distância entre o programado e o efetivado.
133
De tal
maneira que a sua capacidade para reagir contra todos os fatos definidos
129
ibid.
130
ibid. p. 267.
131
ibid. p. 277. Dentre as demonstrações de deslegitimação do sistema penal, cumpre destacar os
resultados da criminologia feminista, desenvolvida na década de 1980, a partir da introdução no
enfoque macrossociológico do campo criminológico “as categorias de patriarcalismo (ao lado de
capitalismo) e relações de gênero (ao lado de luta de classe) e as formas de dominação masculinas
(sexistas) sobre a mulher (ao lado da dominação capitalista)”. ANDRADE, Vera Regina Pereira de.
Sistema penal máximo x cidadania mínima. p. 93. Sobre o assunto, cf. ANDRADE, Vera Regina
Pereira de. A soberania patriarcal. op. cit.; ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal
máximo x cidadania mínimaop. cit. p. 81-124; LARRAURI, Elena (Comp.). Control formal y el
derecho penal de las mujeres. Madrid: Siglo Veintiuno, 1994. Resultado disso é que o sistema
penal não reproduz apenas as desigualdades econômicas, fruto do sistema capitalista, mas também
as relações de gênero dominadas pelo patriarcalismo e ainda a discriminação racial.
132
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica... op. cit. p. 293.
133
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit.
45
legalmente como crimes cometidos na sociedade é ínfima. Fora isso, deve-se notar
o desrespeito às normas processuais penais, já que as prisões sem condenação são
cada vez mais comuns. “O sistema penal está estruturalmente montado para que a
legalidade processual não opere e, sim, que exerça seu poder com altíssimo grau de
arbitrariedade seletiva dirigida aos setores vulneráveis”.
134
Diante disso, pode-se concluir que existe, na América Latina, um sistema
penal subterrâneo. Três observações básicas, tecidas por Aniyar de Castro,
confirmam essa afirmação: a de que a desigualdade social e a falta de efetividade
das leis sociais levam à impossibilidade de que o direito penal seja voltado para
iguais, de que os procedimentos são estigmatizantes apenas para uma parcela dos
acusados, e a relação desses pontos com a atuação da polícia.
135
Esse sistema
penal subterrâneo “opera tanto nos mecanismos de controle formal como nos de
controle informal”.
136
Esses fatos traduzem uma deslegitimação do sistema penal ainda mais
gravosa do que aquela decorrente das teorias criminológicas. O excesso de arbítrio
das agências do sistema penal e a quantidade excessiva de mortes que envolvem o
mesmo se mostram sobressalentes em relação à violência que busca, em tese,
conter. Ou seja, o sistema penal se encontra deslegitimado pelos próprios fatos.
137
O desenvolvimento das mencionadas teorias criminológicas desemboca em
dois pontos principais. O primeiro, decorrente das pesquisas do labelling approach
demonstra que a criminalidade é uma construção social. O segundo, decorrente da
abordagem materialista da criminologia crítica conclui que essa construção social
põe em jogo “um papel importante no mecanismo geral de reprodução das relações
sociais de desigualdade”.
138
Então, o sistema de controle penal constrói a
criminalidade e, através dessa construção, reproduz a desigualdade de classe.
134
ibid. p. 27.
135
ANIYAR DE CASTRO, Lola. op. cit. p. 128.
136
ibid.
137
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p. 125.
138
BARATTA, Alessandro. Problemas sociales y percepción de la criminalidad. In: ELBERT, Carlos
Alberto; BELLOQUI, Laura (orgs.). Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. p. 274-
297. Buenos Aires: Julio César Faira, 2004. p. 291-292. Tradução livre do original em espanhol: “la
construcción social de la criminalidad juega un papel importante en el mecanismo general de
reproducción de las relaciones sociales de desigualdad”.
46
Políticas criminais alternativas
Algumas respostas na forma de políticas criminais alternativas ganharam
corpo com o advento das críticas desestruturadoras do sistema penal. Os
abolicionismos e os minimalismos são exemplos de alternativas que buscam conter
o sistema penal e/ou superá-lo.
É necessário observar, primeiramente, que ambas as correntes têm aspectos
teóricos e práticos, e dentro da perspectiva teórica aparecem algumas variantes.
139
Em função disso, não é possível falar em um minimalismo e um abolicionismo, mas
em vários deles.
140
Os minimalismos têm uma distinção em especial segundo se trate da
concepção de que há uma crise estrutural de legitimidade do sistema penal, ou
apenas conjuntural.
141
Enquanto estes se direcionam para uma relegitimação do
sistema penal (e por isso são chamados de reformadores), aqueles têm como foco a
abolição do mesmo, e por isso são considerados minimalismos como meio.
142
Em comum entre as diferentes vertentes está a busca pela contração máxima
do sistema penal, de forma a garantir a dignidade das pessoas envolvidas com o
mesmo. Porém, os pressupostos teóricos e as conseqüências do desenvolvimento
das teorias caminham para lados distintos.
Os trabalhos de Zaffaroni e Baratta convergem no sentido de que percebem a
crise estrutural de legitimidade do sistema penal, proporcionando uma busca pela
sua contração, tendo como foco, porém, a sua abolição.
De antemão, não se deve excluir a possibilidade do modelo de sociedade
que implícita ou explicitamente corresponda a uma intervenção penal
mínima, e encontrar, finalmente, a forma de resolver os conflitos suprimindo,
inclusive, este direito penal mínimo. Deste ângulo, o direito penal mínimo
apresentar-se-ia como um momento do caminho abolicionista.
143
Em curto prazo, essa perspectiva tem em vista a redução da violência
proporcionada pela operacionalidade do sistema penal, erigindo os direitos humanos
139
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal
entre a deslegitimação e a expansão. Seqüência, Florianópolis, ano XXVI, v. 52, p. 163-182, 2006.
140
ibid.
141
ibid.
142
ibid.
143
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p. 125.
47
ao posto de objeto e limite da lei penal.
144
“Os direitos humanos nos proporcionam a
estratégia em direção a qual devemos orientar as táticas que o saber transformador
nos faça disponíveis”.
145
O respeito aos direitos humanos é um dos requisitos, portanto, para a adoção
de um modelo de mínima intervenção penal, e, ao mesmo tempo, “para a articulação
programática no quadro de uma política alternativa do controle social”.
146
Para criar
esse programa, Baratta elencou e desenvolveu na forma de princípios alguns
requisitos mínimos de respeito dos direitos humanos na lei penal.
147
A necessidade de respeito aos direitos humanos como base para a lei penal é
um dos pontos de convergência do minimalismo como meio com o minimalismo
como fim. A diferença é tanto em relação ao marco teórico, que no caso de Ferrajoli
é racionalista e crê que o direito penal foi criado no sentido de limitar o poder de
punir do Estado, garantindo ao indivíduo um processo justo, quanto às
conseqüências disso. Se a finalidade do direito e do processo penal é a de garantia,
o fato de isso não ocorrer na prática decorre de falhas, que podem ser superadas.
Por isso, apesar de reconhecer a deslegitimação do sistema penal e o excesso de
violência vinculado à sua operacionalidade, admite a possibilidade de sua
relegitimação a partir do cumprimento de suas finalidades.
Além disso,
[...] enquanto o abolicionismo põe em relevo os custos do sistema penal, o
Direito Penal mínimo de Ferrajoli centra-se nos custos potenciais de uma
anarquia punitiva, sustentando que o Direito penal mínimo estaria legitimado
pela necessidade de proteger, a umtempo, as garantias dos ”desviantes”
e “não desviantes”.
148
A resposta a esse tipo de argumento, desferida por Hulsman, é a de que
quando se examinam estudos percebe-se que menos de 1% de todos os eventos
que poderiam ser criminalizados são, de fato, efetivamente criminalizados.
149
Mesmo
144
BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo... op. cit.
145
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derechos humanos y sistemas penales em América Latina. In:
Criminología crítica y control social. El poder punitivo del Estado. p. 61-72. Rosário: Júris, 1993. p.
71. Tradução livre do original em espanhol: “Los derechos humanos nos proporcionan la estrategia
hacia la cual debemos orientar las tácticas que el saber transformador nos haga disponibles”.
146
BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo... op. cit. p. 304. Tradução livre do
original em espanhol: “para su articulación programática en el cuadro de uma política alternativa del
control social”.
147
ibid.
148
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos... op. cit. p. 176.
149
HULSMAN, Louk. op. cit.
48
que esse número seja diferente, de acordo com o contexto, não chegaria a tanto, ao
ponto de negar que “as alternativas ao sistema penal são a regra, e o a
exceção”.
150
É o mesmo raciocínio exposto por Zaffaroni, ou seja, sabe-se que o
sistema penal atua sobre um número muito reduzido de casos, sendo que a imensa
maioria não é fisgada pelo sistema penal, e nem por isso os episódios de vingança
massiva e de caos profetizados chegam a se realizar.
151
Os abolicionismos, por sua vez, nasceram comunicando teoria e práxis, e, em
sua vertente teórica possuem as variantes: marxista, representada por Thomas
Mathiesen, fenomenológica, de Louk Hulsman, estruturalista de Michel Foucault e
fenomenológica historicista de Nils Christie.
152
O objeto da abolição é um dos pontos controvertidos dentre as vertentes
abolicionistas. Porém, é possível afirmar que estão de acordo que a
[...] abolição não significa pura e simplesmente abolir as instituições formais
de controle, mas abolir a cultura punitiva, superar a organização ‘cultural’ e
ideológica do sistema penal, a começar pela própria linguagem e pelo
conteúdo das categorias estereotipadoras e estigmatizantes (crime, autor,
vítima, criminoso, criminalidade, gravidade, periculosidade, política criminal,
etc.), que tecem cotidianamente, o fio desta organização (pois tem plena
consciência de que de nada adianta criar novas instituições ou travestir
novas categorias cognitivas com conteúdos punitivos).
153
Assim, é claro que não se pretende renunciar à solução de conflitos, mas
propor “uma reconstrução de vínculos solidários de simpatia horizontais ou
comunitários, que permitam a solução desses conflitos sem a necessidade de apelar
para o modelo punitivo formalizado”.
154
Por isso, ao contrário do que os críticos costumam fazer parecer, não se
150
ibid. p. 88. Tradução livre do original em espanhol: “las alternativas al sistema penal son la regla
más que la excepción”.
151
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema
penal... op. cit. p. 106.
152
ibid. p. 98-103. Esse trabalho não objetiva analisar detalhadamente cada uma dessas vertentes.
Para tanto, cf. FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentación metodológica del enfoque abolicionista
del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In:
Abolicionismo penal. p. 57-86. Buenos Aires: Ediar, 1989.
153
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal
entre a deslegitimação e a expansão... op. cit. p. 172. A operacionalização do abolicionismo é
exeplificada pela autora, citando Hulsman: “Os abolicionistas validam muitas táticas, intra e
extrasistêmicas, desde processos de descriminalização legal, judicial, ministerial, despenalização,
transferência de conflitos para outros campos do Direito, como civil e administrativo, modelos
conciliatórios (mediação penal de conflitos, conciliação cara a cara), terapêuticos, indenizatórios,
pedagógicos [...]”. ibid.
154
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema
penal... op. cit. p. 104.
49
prega com o abolicionismo a idéia de se abolir o sistema penal “da noite para dia”,
sendo que “podemos exercer práticas abolicionistas cotidianamente, às vezes a
sem o saber sempre que levamos a sério a ultrapassagem do modelo punitivo e esta
via, de certa maneira, co-responsabiliza a todos nós”.
155
Isso demonstra que as ações abolicionistas necessitam de situações
concretas, e por isso são sempre locais.
156
Diante das idéias arraigadas de delito e pena, o desenvolvimento do
abolicionismo pressupõe uma mudança de tratamento diante de fatos individuais
concebidos hoje como delitos, para conflitos, problemas como quaisquer outros, que
devem ser tratados sem proceder à exclusão social, buscando reinserir a vítima na
busca pela sua solução.
157
O enfoque abolicionista de Hulsman traz, ainda, um conceito diferente de
sistema penal. Para ele, além das agências formais de controle, como a polícia, o
Ministério publico, a Justiça, o Legislativo, a Prisão, etc., o sistema penal é formado
também pelas instâncias informais de controle. Isso significa que a ideologia punitiva
está presente nos grupos sociais, e é funcionalizada segundo a mesma lógica do
sistema de justiça criminal. Apesar de não adotar esse conceito de Hulsman, certo é
que controle social formal e controle social informal desempenham papéis
complementares.
Mesmo diante dessas alternativas político-criminais teorizadas e praticadas
para fazer frente ao sistema penal deslegitimado, o contexto atual traz um paradoxo:
o surgimento das políticas criminais eficientistas que apostam no aumento da
repressão penal como resposta aos problemas da segurança pública.
1.1.4 O sistema penal diante da globalização
Apesar de a década de 1970 haver indicado que o futuro seria de retração do
155
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal
entre a deslegitimação e a expansão... op. cit. p. 174. Hulsman observa que existem formas mais
positivas e mais negativas de exercer controle social: Positivas: “Provendo formas e meios;
resolvendo, reparando, compensando, recompensando, ajudando, apelando ao dever e à
solidariedade”. Negativos: Levantando barreiras; castigando, reprimindo, separando”. HULSMAN,
Louk El enfoque abolicionista: Politicas criminales alternativas... op. cit. p. 83. Segundo a proposta
abolicionista, as formas positivas são sempre preferíveis.
156
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema
penal... op. cit. p. 104.
157
STEINERT, Heinz. Mas allá del delito e de la pena. In: Abolicionismo Penal. p. 35-56. Buenos
Aires: Ediar, 1989. p. 49.
50
sistema penal, em função das teorias que provocaram o que Cohen chamou de
“impulso desestruturador”,
158
a partir da década de 1980 a tendência se modificou
novamente. Os contextos sociais propiciaram um novo endurecimento nas leis
penais e nas políticas de segurança pública das grandes cidades, provocando o
paradoxo de se apostar em um órgão de reprodução da violência para contê-la.
A realidade da globalização acentuou esse paradoxo, fazendo que, com a
ascensão de grupos neoconservadores de direita, tanto estes como os progressistas
passassem a exigir a ação do direito penal, com finalidades diferentes. A adoção de
determinadas políticas econômicas sustentadas pela ideologia neoliberal nesse
contexto condicionam a realidade de um novo aprisionamento em massa, bem como
a adoção de teorias biologicistas sobre o crime para justificá-lo.
Objeto das mais diversificadas análises, desde entusiastas a as mais
destrutivas, hoje é raro verificar algum autor que não se posicione em relação à
globalização. No que tange aos autores mais críticos e realistas, a globalização tem
uma máscara que busca ser utilizada como quebra de fronteiras e diminuição de
distâncias entre os mais diversos povos, quando, na realidade, as fronteiras cada
vez mais se fecham e a solidariedade ínsita à idéia de intercâmbio está cada vez
mais longe no plano da geopolítica.
159
Neoliberalismo é a palavra para o equivalente
ideológico desse processo, apresentando o capitalismo e o livre mercado como
únicas alternativas para todas as economias do mundo. Entre as suas
características, tem-se a dominação dos organismos financeiros no plano
internacional, que realizam empréstimos aos países em troca da adoção de políticas
de redução do Estado.
Enquanto o Estado providência se relacionava com a sociedade através do
paradigma da segurança, ou seja, pretendia ser um garante do bem estar das
158
COHEN, Stanley. Visiones del control social: Delitos, castigos y clasificaciones. Barcelona: PPU,
1988. O autor concebe o “impulso desestruturador” como sendo o conjunto de ataques ao sistema de
controle penal, sendo que a partir de 1960 havia quase “um consenso ideológico em favor de inverter
a direção que o sistema havia adotado em finais do século XVIII”. p. 56. Estão neste grupo quatro
grupos de ideologias ou movimentos desestruturadores: opostos ao Estado; opostos ao perito;
opostos à instituição e opostos à mente. ibid. p. 56-57.
159
Por outro lado, autores como Octavio Ianni percebem a possibilidade de desenvolvimento de uma
sociedade global, não sem observar a complexidade de tal projeto. “A sociedade global é o cenário
histórico em que as condições de integração e antagonismo, alienação e emancipação, desenvolvem-
se em escala ampla, acelerada, influenciando indivíduos, grupos, classes, etnias, minorias,
sociedades e continentes”. IANNI, Octavio. A sociedade global. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997. p. 178.
51
pessoas, e ao mesmo tempo redutor de incertezas,
160
a sua decadência com a
ascensão de um neoconservadorismo significou o oposto.
O Consenso de Washington
161
foi o marco onde se buscou trazer soluções ao
impasse latino-americano, tendo como eixo central o combate ao poder dos
sindicatos e a redução do papel do Estado na economia. Nesse processo, as
políticas neoliberais foram postas à mesa, afetando, sobretudo, o mundo do trabalho
e as políticas sociais de um modo geral. Passou-se a impor a flexibilização das
relações trabalhistas, com a desregulamentação dos direitos e a precarização das
condições de trabalho. O sistema previdenciário também foi e é um dos alvos, além
das empresas estatais, muitas das quais já foram privatizadas na década de 1990.
Na área jurídica as políticas neoliberais implicam no autodenominado
Estado Mínimo, que na Europa tem significado uma tentativa de dilapidação
do Estado Social, e na América Latina coloca de forma radical a questão do
dilema democrático, na medida em que a modernização neoliberal não
enfrenta os óbices que o as conquistas jurídicas da cidadania logrados
nas lutas históricas dos trabalhadores.
162
O modelo neoliberal trouxe uma nova divisão internacional do trabalho,
provocando a flexibilização dos processos produtivos, com as inovações
tecnológicas que serviram para aumentar a produtividade, poupar o-de-obra,
aumentar os lucros sem aumentar os salários.
163
A conseqüência imediata no Brasil
da implantação do modelo neoliberal e a entrada do país no processo de
160
PEGORARO, Juan S. Las relaciones sociedad-Estado y el paradigma de la inseguridad. Delito y
sociedad: Revista de Ciencias Sociales, Buenos Aires, año 6, n. 9/10, p. 51-63, 1997. p. 53.
161
Reunidos na capital americana em novembro de 1989 no International Institute for Economy,
funcionários do governo dos EUA, dos organismos internacionais e economistas latino-americanos
discutiam um conjunto de reformas essenciais para que a América Latina superasse a crise
econômica e retomasse o caminho do crescimento. O diagnóstico era tenebroso: dívida externa
elevada, estagnação econômica, inflação crescente, recessão e desemprego. As conclusões desse
encontro passaram a ser denominadas informalmente como o Consenso de Washington, expressão
atribuída ao economista inglês John Williamson. OLIVEIRA, Odete Maria de. Teorias globais:
fragmentações do mundo. v. III. Ijuí: Unijuí, 2005. p. 207-211.
162
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Neoliberalismo, Reforma do Estado e Modernidade. In:
Direito e século XXI: Conflito e ordem na onda neoliberal pós-moderna. p. 71-90. Rio de Janeiro:
Luam, 1997. p. 80.
163
DEMO, Pedro. Globalização da exclusão social: Contradições teóricas e metodológicas do
discurso neoliberal acerca do enfrentamento da pobreza. Revista Rastros, ano III, n. 3, dez. 2001.
Disponível em: <http://redebonja.cbj.g12.br/ielusc/necom/rastros/rastros03/rastros0301.html> Acesso
em: 31 out. 2006. O que deve ser reiterado, portanto, é que o processo de transformação do mundo
do trabalho em face da globalização diz respeito não somente à mundialização do capital, mas
também ao impacto das novas tecnologias. “A destruição de postos de trabalho, muito superior à
criação de novos empregos, não é só uma espécie de fatalidade atribuída à ‘tecnologia’ em si
mesma. Ela resulta, pelo menos em igual medida, da mobilidade de ação quase total que o capital
industrial recuperou, para investir e desinvestir à vontade, ‘em casa’ ou no estrangeiro, bem como da
liberalização do comércio internacional”. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São
Paulo: Xamã, 1996. p. 301.
52
globalização foi a precarização das relações de trabalho levando milhares de
trabalhadores ao desemprego e ao subemprego.
164
“Assim, múltiplos elementos
articulados pela ofensiva do capital, vinculam-se ao desemprego estrutural e crônico,
à extensão e aprofundamento do exército industrial de reserva em nosso país”.
165
A
ideologia neoliberal tem por pressuposto a liberdade do mercado, que, segundo
seus ideólogos, é a única forma capaz de promover o crescimento e a riqueza do
mundo.
Coincide com a decadência do Estado providência, nos países ricos, a
implantação das políticas neoliberais, que o Welfare State representava
exatamente a perspectiva contrária.
[...] Todo o processo de integração econômica mundial que chamamos
“globalização” bem pode ser entendido como um vazio de Direito público
produto da ausência de limites, regras e controles frente à força, tanto dos
Estados com maior potencial militar como dos grandes poderes econômicos
privados.
166
Diante de uma total insegurança a respeito dos efeitos que a circulação do
capital pode ter de um dia para o outro no mundo inteiro, incerteza talvez seja a
palavra que mais reflete a atualidade. “O mercado prospera na incerteza (chamada
alternativamente de competitividade, desregulamentação, flexibilidade etc.) e a
reproduz em quantidade crescente como seu principal alimento”.
167
Em função disso, o número de excluídos do sistema é crescente. Como nota
Bauman, priva-se uma parcela cada vez maior da população de todo o trabalho
reconhecido como útil, “de modo que essas camadas populacionais se tornam
econômica e socialmente supérfluas”.
168
De outro lado, os ricos acumulam cada vez
164
BUDÓ, José S. Dorneles; BUDÓ, Marília Denardin. Direitos sociais e neoliberalismo: Uma reflexão
sobre os direitos dos trabalhadores em tempos de flexibilização. Revista do Congresso
Internacional de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. p. 51-62. Santa Maria, 2005. p. 57.
É interessante a observação de Bourdieu ao notar que o sucesso da insegurança, sofrimento e
estresse que caracterizam a adoção de políticas neoliberais e o privilégio do indivíduo em face da
coletividade nas próprias empresas conta com a cumplicidade de trabalhadores “a braços com
condições precárias de vida produzidas pela insegurança bem como pela existência em todos os
níveis da hierarquia, e até nos mais elevados, sobretudo entre os executivos de um exército de
reserva de mão de obra docilizada pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego”.p.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998. p. 140. Grifos no original.
165
SOUZA, Renildo. A Flexibilização das relações de trabalho no Brasil. In: GOMES, Álvaro (org.). O
trabalho no século XXI. p. 49-77.São Paulo: Anita Garibaldi, 2001.
166
FERRAJOLI, Luigi. Pasado e futuro del Estado de Derecho. In: CARBONELL, Miguel (Ed.).
Neoconstitucionalismo(s). p. 13-30. Madrid: Trotta, 2003. p. 22.
167
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 38.
168
ibid. p. 177.
53
mais riqueza, de forma que o abismo entre ricos e pobres, até mesmo em países
desenvolvidos, só cresce.
Na América Latina, o fenômeno é ainda mais profundo, pois os países
possuíam uma desigualdade estrutural jamais diminuída por um Estado providência
forte. Grande parte do pouco que havia, como as atividades estatais que garantiam
os serviços essenciais, foram privatizadas na década de 1990. Por essa razão, o
número de excluídos do sistema e a sensação de insegurança repercutem de forma
diversa na estrutura social.
O fenômeno tende a criar nos países latino-americanos uma massa de
excluídos que não responde à dialética explorador/explorado, senão a uma
não relação entre excluído/incluído. O explorado contava, era tido em conta
e estava dentro do sistema; o excluído não conta, está sobrando, é um
descartável que não serve, atrapalha. A lógica deste esquema, se não
interrompido, é o genocídio.
169
O papel do legislador nesse processo, que seria o de buscar a melhora de
vida da população através de políticas sociais se mostra essencial. Porém, a lógica
é outra, e o resultado do processo legislativo é cada vez menos um fim, e cada vez
mais um meio para garantir votos. Em função disso, a preocupação do legislador é a
de propor normas que garantam as próximas eleições, transformando-se a política
em um espetáculo. Para agradar possíveis eleitores, necessária se faz a
promulgação de leis que satisfaçam as suas ansiedades, e nada melhor para atingir
essa finalidade do que a edição de leis de repressão penal.
As leis penais são um dos meios preferidos do Estado-espetáculo e de seus
operadores ‘showmen, em razão de serem baratas, de fácil propaganda e
pela facilidade e freqüência com que enganam a opinião pública sobre sua
eficácia. Trata-se de um recurso que obtém alto crédito político com baixo
custo. Daí a reprodução de leis penais, a decodificação, a irracionalidade
legislativa e, sobretudo, a condenação de todos os que duvidem da sua
eficácia.
170
Como acentua Bauman, “reformular as irremediáveis preocupações com a
segurança individual, plasmando-as em ânsia de combate ao crime efetivo ou
potencial e, assim, de defesa da segurança pública é um eficiente estratagema
político que pode dar belos frutos eleitorais”.
171
Ocorre, então, a tradução do
169
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalização e sistema penal na América Latina: Da segurança
nacional à urbana. Discursos Sediciosos: Crime, direito, sociedade, Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, p.
25-36, julho-dezembro 1997. p. 32.
170
ibid.
171
BAUMAN, Zygmunt. op. cit. p. 59. Grifos no original.
54
significado da palavra segurança para o poder de polícia do Estado. Nesse contexto,
segurança não quer mais dizer garantia da satisfação dos direitos sociais.
Compensar a insegurança social com a mobilização contra o diferente, o desviante,
é adotar “o velho mecanismo do bode expiatório, que consente de descarregar sobre
o pequeno delinqüente as inseguranças, as frustrações e as tensões sociais mal
resolvidas”.
172
Isso demonstra que “a ideologia do Estado mínimo não se dirige
contra o Estado, mas contra o consenso democrático trabalhista social do pós-
guerra”.
173
Quanto ao controle social, foi adotada a forma de bifurcação onde de
todos os lados cresce o papel repressivo do Estado. “O lado duro se endurece (neo-
classicismo, castigo severo, aumento de vigilância, tecnologia), enquanto que o lado
suave (ainda que sob controle estatal direto ou indireto) retém algo de sua bagagem
humanista e ideológica [...] e também segue expandindo-se”.
174
A transformação semântica da palavra segurança nada tem de inofensiva. Ela
representa, de fato, uma transição do Estado social máximo para o Estado social
mínimo, e do Estado penal mínimo ao Estado penal máximo. Nos anos sessenta,
quando as políticas sociais do pós-guerra adquiriam o seu ápice, jamais se poderia
imaginar que duas décadas após se apresentaria a tendência ao fenômeno oposto.
“Se os lemas da social democracia do pós-guerra haviam sido controle econômico e
emancipação social, a nova política dos fins dos anos oitenta impulsionou um marco
bastante diferente de liberdade econômica e controle social”.
175
Essas tendências, reveladas em mudanças na legislação em favor do
aumento da repressão penal, buscam atingir o cerne do Estado de Direito, ou seja, a
172
FERRAJOLI, Luigi. Criminalità e globalizzazione. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo, ano 11, n. 42, p. 79-89, janeiro-março 2003. p. 86. Tradução livre do original em italiano: “E’ il
Vecchio meccanismo del capro espiatorio, che consente di scaricare sul piccolo delinquente le
insicurezze, le frustazioni e le tensioni sociali irrisolte”.
173
COHEN, Stanley. op. cit. p. 200. Tradução livre do original em espanhol: “contra el consenso
democrático laborista social de la post guerra”.
174
ibid. p. 207. Tradução livre do original em espanhol: “[...] El lado duro se endurece (neo-clasicismo,
castigo severo, aumento de vigilancia, tecnología), en tanto que el lado blando (aún bajo control
estatal directo o indirecto) retiene algo de su bagaje humanista e ideológico [...] y también sigue
expandiéndose”.
175
GARLAND, David. La cultura del control: Crimen y orden social en la sociedad contemporánea.
Barcelona: Gedisa, 2005. p. 174. Grifos no original. Tradução livre do original em espanhol: “Si las
consignas de la socialdemocracia de posguerra habían sido control económico y liberación social, la
nueva política de los años ochenta impulso un marco bastante diferente de libertad económica y
control social”. Garland parte da idéia de que, ainda que as estruturas de controle tenham se
modificado, a mudança mais importante se deu na cultura do controle do delito, a qual se forou em
torno de três elementos centrais: 1. um welfarismo penal modificado; 2. uma criminologia do controle;
3. uma forma econômica de raciocínio. ibid. p. 287.
55
proteção dos direitos fundamentais. A Europa vem sentindo o peso das
legislações de emergência, as quais acabam legitimando um poder arbitrário do
Estado, especialmente contra a imigração e os crimes de rua. A emergência permite
que se admita um recorte nos direitos e garantias fundamentais.
176
Assim, os excluídos passam a ser vistos como ameaças, e, no intuito de
proteger os interesses de uma parcela da população, retira-se ao máximo os direitos
da outra. “As pessoas vulneráveis e sem nenhum poder social que sofrem lesões de
seus direitos econômicos e sociais [...], por parte do Estado ou da sociedade, se
convertem de tal modo em potenciais agressores dos direitos fortes (integridade,
direito de propriedade) dos sujeitos socialmente mais protegidos”.
177
Isso significa
que a política se desloca da proteção aos mais fracos para a proteção aos mais
fortes contra aqueles mesmos mais fracos, tendo-se neles uma ameaça.
Porém, é necessário esclarecer que os fenômenos que vêm ocorrendo na
Europa e nos Estados Unidos não podem ser diretamente transferidos para os
países latino americanos. Como sustenta Zaffaroni, nossos fenômenos “são
qualitativa e quantitativamente diferentes dos que procuram explicar os marcos
teóricos ordenadores dos países centrais”.
178
Relacionando-se essas questões anteriormente apontadas à situação da
América Latina, é possível notar que as conseqüências são ainda mais nefastas, e
suas elaborações teóricas decorrem dos fatos, das tragédias que se reproduzem
cotidianamente.
179
A explicação de Zaffaroni acerca do genocídio em marcha que
vem ocorrendo nessa região, parte de uma visão histórica e dialética de tal
realidade. De forma a sustentar esse argumento, o autor relaciona as duas
revoluções tecnológicas ocorridas na Europa, a mercantil e a industrial, com as
176
BERGALLI, Roberto. La construcción del delito y de los problemas sociales. In: BERGALLI,
Roberto (coord.). Sistema penal y problemas sociales. p. 25-82. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003.
177
BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la constitución: Nuevas
reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, ano 8, n. 29, p. 27-52, janeiro-março 2000. p. 32. Tradução livre do original em
espanhol: “Para proteger las personas ‘respetables’ (y no para tutelar aquellas que no pueden
disfrutar de sus derechos civiles, económicos y sociales), la política criminal se transforma, en la
terminología de la nueva prevención, en ‘prevención social’ (de la criminalidad). Las personas
vulnerables y sin ningún poder social que sufren lesiones de sus derechos económicos y sociales
(derechos ‘débiles’, como señala la teoría de los derechos fundamentales), por parte del Estado o de
la sociedad, se convierten de tal modo en potenciales agresores de los derechos fuertes (integridad,
derecho de propiedad) de los sujetos socialmente más protegidos”.
178
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: Aproximación desde un márgen. Bogotá: Temis, 1993.
p. 02.
179
ibid.
56
práticas aplicadas à época à localidade marginal: o colonialismo e o
neocolonialismo. “O colonialismo e o neocolonialismo foram dois momentos
diferentes mas igualmente cruéis de genocídio e etnocídio”.
180
Com ideologias
justificadoras hoje conhecidas, no primeiro, a inferioridade dos viventes do novo
mundo em função do paganismo, e, no segundo, a inferioridade por não possuir o
mesmo grau de civilização ou por ser biologicamente inferior (marco científico
positivista), o sistema penal teve um papel essencial no extermínio. A relação com a
atualidade é dada através da constatação de que a revolução tecnocientífica
ocorrida no mundo desenvolvido traz conseqüências imprevisíveis. Isso porque, no
período atual, a violência do sistema penal “recai sobre os setores mais vulneráveis
da população e, particularmente, sobre os habitantes das ‘vilas-misérias’, ‘favelas’,
‘cidades novas’, etc. Não acreditamos na necessidade de continuar a enumeração
para percebermos que estamos diante de um genocídio em andamento”.
181
A globalização é o marco histórico desse modo de controle social típico do
tecnocolonialismo, porém, com a utilização dos mesmos meios das etapas
anteriores “[a tortura sistemática, o homicídio e o desaparecimento forçado]”, e “seus
instrumentos executivos são as agências policiais (ou as militares na função
exclusivamente policial)”.
182
Enquanto as classes perigosas do culo XIX eram o foco do controle social
penal, apesar de não abandonar sua clientela tradicional, hoje ele se volta muito
para “os ‘excluídos’, para essa legião de pessoas humanas que se defrontaram com
as grades intransponíveis que a racionalidade do mercado construiu ao redor do
alegre condomínio no qual residem as novas acumulações de riqueza”.
183
Toda essa repressão interna criada, que se desenvolve a partir de processos
de criminalização primária (criação de leis repressivas) e secundária
(operacionalidade seletiva e estigmatizante do sistema penal), traz a ilusão de que
se investe na melhoria da segurança. Porém, a insegurança é que resta agravada,
quando se percebe o aumento de poderes ao Estado (apesar da redução de suas
funções - Estado Mínimo) com a respectiva vulneração aos direitos fundamentais.
Dessa forma, o próprio Estado de direito se desestabilizado, refém da política do
180
idem. Em busca das penas perdidas... op. cit. p. 118.
181
ibid. Grifos no original.
182
idem. Globalização e sistema penal... op. cit. p. 32.
183
BATISTA, Nilo. A violência do estado e os aparelhos policiais. Discursos Sediciosos: Crime,
direito, sociedade, Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, p. 145-154, julho-dezembro 1997. p. 147.
57
espetáculo e da cultura do medo alimentada pela mídia.
É de se notar porém, que o avanço desse fervor punitivo significa cada vez
mais a adoção de um direito penal do inimigo. Zaffaroni, ao analisar essa teoria,
criada por Jakobs, busca demonstrar que o avanço do Estado de polícia sobre o
Estado de direito permite a criação de categorias diferentes de pessoas dentro do
mesmo Estado. Enquanto umas são consideradas iguais, e para elas todo o
arcabouço de direitos e garantias fundamentais funciona, para outros (e na nossa
região marginal, a maioria) esses direitos são inexistentes.
184
É assim que cerca de
¾ dos presos na América Latina são provisórios, ou seja, sequer possuem uma
condenação, além de terem quotidianamente os mais importantes direitos, como a
própria integridade física e a vida, vulnerados. Porém, no momento em que se
admite a existência do inimigo, não se pode mais falar em Estado de direito, e, é
claro, a limitação dos poderes do Estado tem seus dias contados.
185
A demonização
do outro é a característica dessa sociedade excludente, permitindo “que os
problemas da sociedade sejam colocados nos ombros dos ‘outros’, em geral
percebidos como situados na ‘margem’ da sociedade”.
186
A tendência de hipertrofia do sistema de controle penal e redução das
garantias é um exemplo do que pode acarretar o discurso do medo. Na esteira do
paradigma etiológico da criminologia, esses discursos procuram legitimar a ideologia
da defesa social, em especial o princípio do bem e do mal. Como nota Andrade,
[...] a reivindicação de sua [do sistema penal] redução e abandono convive
com a de sua expansão; e se aquela primeira se faz acompanhar de um
fortalecimento das garantias inexistentes, esta preconiza o próprio
abandono de seu reconhecimento formal. Enquanto está demonstrada a
debilidade dos potenciais garantidores do Direito Penal, continua se
apostando neles.
187
Do lado oposto aos teóricos que demonstram a deslegitimação do sistema
penal e apontam alternativas a ele, estão movimentos de política criminal que
buscam a sua relegitimação. Identificando na criminalidade de rua e nas desordens
decorrentes de insatisfações com o estado atual, os movimentos de relegitimação
buscam a criminalização de tudo, buscando a transformação do Estado em
184
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
185
ibid.
186
YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na
modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. p. 165.
187
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica... op. cit. p. 296.
58
verdadeiro Estado penal.
O conceito de inimigo interno sobreviveria à ditadura, sendo recuperado em
documentos militares, já em pleno processo de redemocratização,
deslocado da criminalidade política para a criminalidade comum, para a
compreensão da violência urbana.
188
Segundo essas idéias, os grandes inimigos do Estado e da sociedade
estariam identificados nos crimes praticados pelos miseráveis. “É no criminoso de
rua, no pequeno delinqüente, que passa a se encontrar o principal protagonista da
mais nova transfiguração do crimen lesa maiestatis.
189
Política criminal e movimentos neoconservadores
Cabe ressaltar que o aumento da repressão penal como forma de acalmar a
opinião pública e de se garantir mais votos não se resume a isso. Faz parte de um
movimento maior, ou de vários movimentos de política criminal que alimentam esses
desejos de punição.
O Movimento de Lei e Ordem é freqüentemente apontado como um deles.
Como afirma Franco, tal movimento, originado nos Estados Unidos, teve influência
direta na elaboração de leis penais da década de 1990, e até mesmo funcionou
como fundamento político-criminal do art. 5º, inc. XLIII da Constituição Federal
190
. O
mesmo autor explica que o Movimento de Lei e Ordem “compreende o crime como o
lado patológico do convívio social, a criminalidade como uma doença infecciosa e o
criminoso como um ser daninho”.
191
Como se vê, ressuscita-se as posturas do
positivismo biologicista do século XIX, sendo que, para se resolver os problemas dos
delitos na sociedade, deve-se incapacitar os criminosos, reduzindo o perigo que
envolve a sua liberdade.
192
Nesse sentido, “cada infrator tem uma qualidade
188
BATISTA, Nilo. op. cit. p. 151.
189
DAL RI JR, Arno. O Estado e seus inimigos: A repressão política na história do direito penal. Rio
de Janeiro: Revan, 2006. p. 356.
190
Art. 5º, XLIII A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática
de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes
hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se
omitirem”. BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo
Penal. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
191
FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 78.
192
PEGORARO, Juan. Derecha criminológica, neoliberalismo y política penal. Delito y sociedad:
Revista de Ciências Sociales, Buenos Aires, año 10, n. 15/16, p. 141-160, 2001.
59
negativa que o marca como um estigma: é o outro que merece escarmento e que
não pode permanecer entre as pessoas honestas”.
193
Em função de tal discurso, a
criação de novos tipos penais, assim como os aumentos de penas de tipos já
existentes são justificados perante a sociedade, gerando uma verdadeira
necessidade de repressão penal para acalmar o alarde público.
A ofensiva neoliberal organiza um modelo que impõe uma reengenharia
social impulsionada por um ajuste estrutural com base em uma política de
austeridade dos gastos públicos sociais, e que tem por resultado a
marginalização e a exclusão, obrigando a aplicação de políticas de
contenção e de controle social com base na apartação social e no
“darwinismo social”.
194
a doutrina de “Tolerância Zero”, adotada em Nova Iorque pelo prefeito
Rudolph Giuliani, fez com que a cidade se tornasse uma vitrine em torno de tal
política para o mundo, segundo Wacqüant, “ao passar às forças da ordem um
cheque em branco para perseguir agressivamente a pequena delinqüência e reprimir
os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados”.
195
Também foi em Manhattan
que se vulgarizou a teoria “da vidraça quebrada”, a qual sustenta que “é lutando
passo a passo contra os pequenos distúrbios cotidianos que se faz recuar as
grandes patologias criminais”.
196
Com o pretexto de controlar uma criminalidade
crescente e acalmar os setores médios da população, a função real de tal doutrina é
a de administrar a pobreza. “A ‘tolerância zero’ apresenta portanto duas fisionomias
diametralmente opostas, segundo se é o alvo (negro) ou o beneficiário (branco)”.
197
193
ibid. p. 82.
194
DORNELLES, João Ricardo. Ofensiva neoliberal , globalização da violência e controle social.
Discursos Sediciosos: Crime, direito, sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n. 12, p. 119-137, julho-
dezembro 2002. p. 120.
195
WACQÜANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 25.
196
ibid. A revista Delito y sociedad trouxe um dossiê em 2001 sobre a direita criminológica, sendo que
dois artigos são propriamente dos teóricos da teoria do broken windows. Um deles traz uma relação
de dezoito atitudes que devem ser tomadas para lutar contra o crime. São elas: 1. resgatar os jovens
da barbárie; 2. salvar os bebês da droga”; 3. controlar os terroristas juvenis; 4. reduzir os crimes
graves restaurando a ordem; 5. simplesmente, tirar as armas dos criminosos; 6. pôr mais armas nos
bolsos das pessoas obedientes à lei; 7. Ir às pessoas; 8. salvar a pena de morte do simbolismo; 7.
fechar a brecha do habeas corpus; 8. estreitar radicalmente a regra de exclusão; 9. … ou nos
desfazemos dela por completo; 12. abrir os jurados; 13. contratar policiais e construir cárceres pagos;
14. Não há alternativa à construção de mais prisões; 15. gerir as prisões de maneira diferente; 16.
usar exames de consumo de drogas para reducir o uso de estupefacientes; 17. controlar, seguir e
encerrar os deliquentes sexuais; contra-ataque. Pessoalmente. DI IULIO JR., John et. al. Soluciones
al crimen. 18 cosas que podemos hacer para luchar contra él. Delito y sociedad: Revista de Ciencias
Sociales, Buenos Aires, año 10, n. 15/16, p. 141, 160, 2001.
197
WACQÜANT, Loïc. As prisões da miséria... op. cit. p. 37. “Olvidémonos de la rehabilitación, lãs
cárceles son para castigar. Necesitamos ajustarnos más estrictamente a lãs condenas originalmente
impuestas por los tribunales a los reos y hacer que nuestros castigos sean inflexibles. También
60
Desde a sua elaboração teórica e sua aplicação na prefeitura de Nova Iorque, tal
doutrina passou a fazer parte dos discursos de políticos de várias partes de todo o
mundo.
Wacqüant observa, quanto à situação do declínio do estado caritativo nos
EUA e a ascensão do estado penal, que a clientela do sistema prisional é recrutada
prioritariamente nos setores mais deserdados da classe operária. E mostra que,
“reelaborando sua missão histórica, o encarceramento serve bem antes à regulação
da miséria, quiçá à sua perpetuação, e ao armazenamento dos refugos do
mercado”.
198
O projeto disciplinar da modernidade, despido na análise de Foucault, parece
ter sido deslocado com a mudança do contexto. Essas políticas eficientistas se
situam em um contexto em que as pessoas são vistas como excedentes
populacionais, sendo que o seu confinamento não implica em desperdício de mão-
de-obra.
Pobres, desempregados, mendigos, nômades e migrantes representam
certamente as novas classes perigosas, “os condenados da metrópole”,
contra quem se mobilizam os dispositivos de controle, mas agora são
empregadas estratégias diferentes nesse confronto. [...] Trata-se, pois de
neutralizar a “periculosidade” das classes perigosas através de técnicas de
prevenção do risco, que se articulam principalmente sob as formas de
vigilância, segregação urbana e contenção carcerária.
199
Assim sendo, a prisão passa a ter o único intuito de neutralização, de
depósito do lixo, como nota Bauman, diante do desinteresse e impossibilidade de
reciclá-lo.
200
Um novo momento de internamento, diverso daquele do século XIX
parece estar ocorrendo, na tentativa de “definir um espaço de contenção, de traçar
um perímetro material ou imaterial em torno das populações que são ‘excedentes’
[...] em relação ao sistema de produção vigente”.
201
Isso ocorre também na mesma medida em que cresce a indústria do controle
do crime, sendo que a prisão passa a representar a solução de alguns problemas
necesitamos construir más prisiones. Para conseguir más barrotes por cada uno de nuestros dólares
deberíamos permitir que nuestras prisiones sean administradas privadamente”. LOGAN, Charles. DI
IULIO JR., John et. al. op. cit. p. 110.
198
idem. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2 ed. Rio de Janeiro:
Revan/ICC, 2003. p. 33.
199
GIORGI, Alessandro di. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro:
Revan/ICC, 2006. p. 28.
200
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 106.
201
GIORGI, Alessandro di. op. cit. p. 28.
61
dos países altamente industrializados, que cria novas funções para a indústria, ao
mesmo tempo em que ocupa a parcela desempregada da população.
202
Ou seja, os
presos tornam-se “matéria-prima para o controle do crime ou, se quiserem,
consumidores cativos dos serviços da indústria do controle”.
203
Ao mesmo tempo, o
encarceramento contribui para a redução dos índices de desemprego, na medida em
que para esse índice os encarcerados não o computados como desempregados,
mesmo que o fossem antes da prisão.
204
Nos países latino americanos, apesar de a indústria do controle do crime ter
avançado muito nos últimos anos, as economias não suportam tal investimento. Daí
verificar-se que, longe de significarem consumidores na prisão, os presos se tornam
seres sobrantes. E a resposta a isso vem nos constantes massacres, descaso em
relação à higiene, à segurança e demais direitos dos presos.
Isso significa que, apesar de terem ingressado na tendência de
criminalização, esses países não possuem a estrutura necessária para fazer disso
um negócio, e a resposta ao aumento no encarceramento é o agravamento da
situação nos presídios, culminando com a morte em massa. Assim, aproveitando-se
dos dramas do dia-a-dia, a política alia-se ao poder da mídia, propagando através do
espetáculo e do drama alheio, a necessidade de aumento da repressão penal.
Simbolicamente, a edição de leis penais e a adoção de políticas de tolerância zero
permitem uma compensação do déficit da tutela real dos bens jurídicos, criando-se,
junto ao público, “uma ilusão se segurança e um sentimento de confiança no
ordenamento e nas instituições que tem uma base real cada vez mais fragilizada”.
205
Esse uso simbólico, cujo exemplo é a legislação de emergência, contribui
justamente no fomento a sentimentos de medo. O problema é que “os temores reais
ou construídos nunca foram bons aliados das liberdades”.
206
Com as mudanças
operadas na realidade social da globalização, as novas contradições do capitalismo
202
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: A caminho dos GULAGs em estilo ocidental.
Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 121.
203
ibid. p. 122.
204
WESTERN, Bruce; BECKETT, Katherine; HARDING, David. Sistema penal e mercado de trabalho
nos Estados Unidos. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 7, n. 11,
1º semestre de 2002, p. 43-54.
205
BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma
teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 2, n. 5, p. 05-24,
janeiro-março 1994. p. 22.
206
BARATA, Francesc. El drama del delito en los mass media, Delito y sociedad: Revista de
Ciencias Sociales, Buenos Aires, año 7, n. 11/12, p. 59-68, 1998. p. 60. Tradução livre do original em
espanhol: “los temores reales o construídos nunca fueron buenos aliados de las libertades”.
62
não permitem que o controle social ocorra principalmente através da disciplina, e
então passam a exigir também novas formas de controle social. Na opinião de
Bergalli, esse é o papel da difusão do terror. Acima de tudo, o sistema penal está
orientado para punir, “Mas não só punir exemplarmente cada violação da nova
ordem, mas também deve chegar ao ponto de criar alarma social para converter-se
em fonte de consenso em torno às instituições, prevenindo assim qualquer eventual
dissentimento político”.
207
Através do medo do crime se legitima a utilização de medidas pelo poder
público impensáveis em qualquer Estado Democrático de Direito.
208
As execuções
sumárias são um problema gravíssimo no país,
209
e que são propagadas pela mídia
como sendo atos no estrito cumprimento do dever legal, estando os mesmos
desculpados, em especial no caso de a pessoa morta carregar consigo
antecedentes criminais ou uma suspeição qualquer.
Como nota Zaffaroni, o processo de criminalização na América Latina se
orienta pelo condicionamento, a estigmatização e a morte.
210
O condicionamento se
refere aos processos de deterioração da identidade que ocorre na interiorização de
normas sociais específicas, como a prisionização, a policização e a burocratização.
A estigmatização diz respeito a um dos efeitos da criminalização ao sujeito
etiquetado, e a morte é o resultado final da operacionalidade do sistema penal,
concluindo-se que o mesmo causa mais mortes e violência do que os atos
207
BERGALLI, Roberto. Relaciones entre control social y globalización: Fordismo y disciplina. Post-
fordismo y control punitivo. Sociologías, Porto Alegre, n. 13, 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/cielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222005000100008&lng=pt&nrm=iso>
Acesso em: 10 abr. 2007. sp. Tradução livre do original em espanhol: “pero no solo punir
ejemplarmente cada violación del nuevo orden, sino que incluso ha de llegar hasta el punto de crear
alarma social para convertirse en fuente de consenso en torno a las instituciones, previniendo así
cualquier eventual disentimiento político”.
208
Como mecanismo de controle social, é necessário analisar de que forma o medo se distribui
socialmente, de acordo com um enfoque de classe, raça e gênero. Em relação ao enfoque de gênero,
deve-se observar o argumento de Madriz, o qual aponta a existência de um paradoxo do medo”, em
que as mulheres possuem níveis superiores de medo apesar de seus baixos níveis de vitimização.
Isso indica que “o medo do crime é um elemento importante no controle social das mulheres.
Contribui à perpetuação das desigualdades de gênero em nossa sociedade, à manutenção de
relações patriarcais e a minar o poder das mulheres, seus direitos e suas conquistas”. MADRIZ,
Esther. op. cit. p. 87. Tradução livre do original em espanhol: “el miedo al crimen es un elemento
importante en el control social de las mujeres. Contribuye a la perpetuación de las desigualdades de
gênero en niestra sociedad, al mantenimiento de relaciones patriarcales y a minar el poder de las
mujeres, sus derechos y sus logros”.
209
Sobre as execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais no Brasil, cf. LIMA JR., Jayme
Benvenuto (org.). Execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais. Uma aproximação da
realidade brasileira. Recife, 2001.
210
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit. p. 133.
63
praticados por indivíduos.
Diante disso, cabe verificar o papel do jornalismo diante da criminalização no
contexto da globalização e de todas essas mudanças pelas quais passam o Estado
e a sociedade.
1.2 O crime no jornal: entre credibilidade e sensacionalismo
Na atualidade, a comunicação se caracteriza pela onipresença, proporcionada
em especial pelo acelerado progresso tecnológico. Não lugar, em termos gerais,
em que se possa fugir da quantidade de dados despejados na sociedade através
dos mais diversos meios. Os meios de comunicação de massa (MCM) são os
protagonistas da era da informação, e, em função disso, possuem um papel central
como órgão de controle social informal. Para analisá-los, é necessário estudar as
teorias da comunicação desenvolvidas a partir do século XIX, de forma a verificar a
ruptura decorrente da influência do interacionismo simbólico e da etnometodologia
no campo. A partir da mesma teoria de base com a qual foi analisada a questão da
criminalidade, busca-se verificar a interação entre MCM e sistema penal, em
especial sobre o jornalismo.
211
A problemática original da pesquisa em comunicação, sobre os efeitos da
mídia em relação aos receptores deverá ser abordada em um primeiro momento
(1.2.1), para chegar ao contexto de mudança de paradigma da pesquisa em
comunicação, com a introdução do estudo da notícia como construção social (1.2.2).
Diante disso, o jornalismo como mecanismo de controle social informal deve ser
analisado sobre o prisma da construção seletiva e estigmatizante da criminalidade e
da legitimação do sistema penal (1.2.3). Na última parte é analisada a utilização do
crime pelo jornalismo e a indução de sentimentos de medo e insegurança no
contexto de aumento da repressão penal, e movimentos de relegitimação do sistema
penal (1.2.4).
211
A opção pelo jornalismo como objeto de análise, em detrimento dos demais gêneros inseridos na
comunicação de massa, teve um critério teórico e outro metodológico. O critério teórico foi o que
buscou aproximar a teoria de base da construção social da realidade para a construção social das
notícias, de forma a negar a ideologia do jornalismo consagrada como objetividade jornalística. Ao
mesmo tempo, a opção metodológica teve o objetivo de delimitação do objeto, para proporcionar uma
análise mais específica (mesmo que ainda genérica) e mais consistente.
64
1.2.1 A pesquisa em comunicação e a problemática dos efeitos da mídia
A mudança no caráter do jornalismo quando passa à fase comercial surge
concomitantemente à construção da sua ideologia, a da objetividade jornalística.
Porém, essa ideologia, apesar de ser bastante difundida, tem várias críticas,
elaboradas a partir da mudança de paradigma nas pesquisas em comunicação.
A construção da objetividade jornalística e a teoria do espelho
Segundo Habermas, essa concepção de jornalismo vinculada à objetividade,
ao sensacionalismo e ao lucro o foi sempre dominante, mas teria sucedido outras
fases.
212
Enquanto na sua primeira etapa tinha o objetivo de angariar lucros na
prática de um jornalismo artesanal característico da fase inicial do capitalismo, na
segunda fase a profissão passou a ter a bandeira de buscar a conscientização das
questões políticas e sociais de sua época, e apenas em segundo plano a intenção
de obter lucros econômicos.
Assim, defendendo o interesse público contra o poder do Estado, é possível
dizer que
[...] [a imprensa] se desenvolvia a partir da politização do público e cuja
discussão ela apenas prolongava continuou a ser por inteiro uma instituição
deste mesmo público: ativa como uma espécie de mediador e potenciador,
não mais apenas um mero órgão de transporte de informações e ainda não
um instrumento da cultura consumista.
213
A partir do culo XIX, a lógica do jornalismo passa a ser outra. Busca-se
separar radicalmente a opinião da notícia. Mas sua característica principal é a busca
pelo lucro e a influência da propaganda. “A imprensa, que até então fora instituição
de pessoas privadas enquanto público, torna-se instituição de determinados
membros do público enquanto pessoas privadas ou seja, pórtico de entrada de
privilegiados interesses privados na esfera pública”.
214
Nesse momento, vêm à tona noções dominantes na prática jornalística atual,
como a visão do papel do jornalista como transmissor dos fatos tais como
212
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1984.
213
ibid. p. 215/216.
214
ibid. p. 217/218.
65
aconteceram, sendo esta idéia designada por objetividade jornalística. Por outro
lado, sabe-se que os meios de comunicação são dominados por empresas, que
visam ao lucro, e passam a tratar a informação como forma de ganhar dinheiro
através da publicidade. Torna-se necessário que se aumentem os índices de
audiência, levando o jornalismo a tomar “emprestadas” algumas noções e
características provindas da publicidade, de forma a tornar também a informação
mais atraente para um público-alvo, não mais composto de cidadãos, mas sim de
consumidores.
Nos Estados Unidos, os jornais políticos e literários deram lugar a jornais
baratos, chamados penny press,
215
e muitas modificações foram inauguradas na
forma de relatar acontecimentos. Em primeiro lugar, os jornais baratos entraram em
um contexto de busca pelo lucro, emergindo a noção da notícia como mercadoria e,
portanto, sujeita às leis do mercado. Em segundo lugar, a independência política
conseguida em função do financiamento da publicidade teve de ser reafirmada
através do destaque da notícia em detrimento da opinião, ou seja, dos fatos em
relação à interpretação.
Percebendo, porém, que a subjetividade dos jornalistas estava sempre
presente, “os jornais introduziram colunas assinadas, identificadas como análise de
notícias, distinguindo com insistência entre suas interpretações construídas e a
faticidade das notícias gerais”.
216
É o período do século XIX em que a idéia de
neutralidade científica veio auxiliar na transformação da prática jornalística,
principalmente no que concerne à busca por todos para se reunir os fatos
noticiados.
É no século XIX, em que o positivismo é reinante, que todo o esforço
intelectual tanto na ciência como na filosofia como ainda, mais tarde, na
sociologia e outras disciplinas, ambiciona atingir a perfeição de um novo
invento, invento esse que parecia ser o espelho muito desejado, cujas
imagens eram reproduzíveis, cuja autoridade era incontestável a máquina
fotográfica.
217
215
Penny press é a forma como eram chamados os jornais populares nos Estados Unidos do século
XIX. Penny porque custavam em média um penny, ou seja, um centavo. GABLER, Neal. Vida O
Filme. Como o entretenimento conquistou a realidade. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p. 61.
216
TUCHMAN, Gaye. La producción de la noticia. Estudio sobre la construcción de la realidad.
Barcelona: G. Gili., 1983. p. 174. Tradução livre do original em espanhol: “Los periódicos introdujeron
columnas firmadas identificadas como análisis de noticias distinguieron con insistencia entre sus
interpretaciones construidas y la facticidad de las noticias generales”.
217
TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: Por que as notícias são como são. vol. I.
Florianópolis: Insular, 2004. p. 51.
66
Mas a idéia de objetividade dentre os mitos do jornalismo surgiu nos anos 20
e 30 do século XX, nos Estados Unidos, redefinindo também o papel do jornalista. A
notícia passa a ser vista como informação, antes que como panfleto de posições
políticas. “Ao ‘jornalista/intelectual orgânico’, sucede um jornalista investido no
estatuto de agente moderador e divulgador. À identificação com uma classe, sucede
a identificação desideologizada com a sociedade no seu todo”.
218
A idéia da objetividade surgida contemporaneamente à teoria do espelho
significa que a notícia representa a imagem da realidade refletida no espelho, e, por
isso, traz consigo a idéia de um observador desinteressado. Essa teoria parte de
alguns pressupostos. O principal é a confirmação de um modelo objetivista, o qual
no acontecimento um fato isolado e previamente caracterizado, bastando apenas
o jornalista, como agente cognitivo, absorvê-lo. Ao ter contato com o fato, produzir a
notícia é apenas reproduzir o que percebeu, propiciando a divulgação do reflexo do
espelho. Dessa maneira, acaba por ter em vista a realidade destituída de
construção, com status ontológico, bastando apenas aceitá-la e descrevê-la tal como
é.
A teoria do espelho traz a ideologia dominante da prática jornalística, e é o
seu principal mito. “É a teoria mais antiga e responde que as notícias são como são
porque a realidade assim as determina”.
219
O referente do jornalismo deve ser sempre a realidade, o que o distingue da
ficção. Por outro lado, somente os fatos interessam, e não a interpretação sobre
eles. Qualquer tipo de opinião torna-se um tabu nas notícias, acentuando-se a
separação entre fato e interpretação, através da introdução de colunas assinadas,
entre outros artifícios.
Atualmente, na maior parte dos guias de ética profissional das redações,
tratar a notícia com objetividade significa relatar os fatos do modo mais imparcial e
equilibrado possível, não se contrapondo à subjetividade, o que seria impossível.
Porém, nas teorias mais recentes desenvolvidas sobre o jornalismo, a
objetividade passa a ser vista através de óticas diferentes.
A mudança de paradigma na pesquisa em comunicação: do gatekeeper ao
218
REBELO, José. O discurso do jornal. 2 ed. Lisboa: Notícias, 2002. p. 15.
219
TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XXI. São Leopoldo: Unisinos, 2001. p.
65.
67
newsmaking
À medida que a comunicação de massa passou a ter grande importância na
sociedade, a pesquisa também começou a ser uma constante na academia, tendo
sido criadas, principalmente a partir do século XIX, diversas teorias da comunicação,
ligadas principalmente às investigações sociológicas. As principais teses são do
século XX, o que demonstra o caráter ainda novo dessa atividade. Demonstra
também o quanto, gradativamente, a mídia vai ocupando um maior espaço na
sociedade.
A onipotência dos MCM, sob a rmula “estímulo resposta”, ou seja, a total
influência da mensagem no indivíduo receptor era o pressuposto de que partiram as
primeiras teorias, no contexto social do entre guerras. Com o passar do tempo e o
desenvolvimento de novas teorias, a communication research, nascida na década de
1940 nos Estados Unidos seguiu uma tendência de relativização dos efeitos dos
MCM. Dá-se início ao que se convencionou chamar de pesquisa administrativa,
trazendo os pressupostos da sociologia funcionalista reinantes no período. Assim,
passa-se a perceber a influência do meio social na apreensão das mensagens
transmitidas pelos meios, as funções por eles desempenhadas no meio social, além
de outras variáveis que intervêm na mensagem antes que se possa afirmar a
influência sobre o receptor. Porém, permaneceu-se na busca pelo estudo dos efeitos
das mensagens na vida das pessoas, a curto prazo, através de pesquisas empíricas
e quantitativas.
Na mesma época, mas do outro lado do oceano, vinham se desenvolvendo as
pesquisas da teoria crítica, sob um enfoque bastante diverso. Fundada em 1923, a
chamada Escola de Frankfurt, na Alemanha, de onde se originou a teoria crítica,
teve de ser fechada em função da perseguição nazista. Entretanto, os estudos
continuaram nos Estados Unidos, sendo que, em meados de 1940 foi criado o termo
indústria cultural. Horkheimer e Adorno foram os principais expoentes dessa escola,
no que tange ao estudo dos MCM.
Partindo da tendência de crítica dialética da economia política, questionaram
as ciências sociais que se reduzem a técnicas de pesquisa, e a classificação de
dados, que não penetram na objetivação dos fatos nem na estrutura ou nas
68
implicações do seu fundamento histórico, setorializando-a.
220
Segundo a teoria
crítica, a pesquisa deve considerar a sociedade como um todo, analisando-se a
função global dos meios de comunicação de massa no sistema social. Isso porque
detectam nos meios de comunicação de massa o cumprimento de um importante
papel na reprodução da dominação através da indústria cultural. Dentro dos
mecanismos da indústria cultural, o indivíduo é levado a consumir de maneira
manipulada, havendo uma continuidade entre o trabalho e o lazer que apenas
reproduz o trabalho. “[...] Na época actual, a indústria cultural e uma estrutura social
cada vez mais hierárquica e autoritária transformam a mensagem de uma
obediência irreflexiva em valor dominante e avassalador”.
221
A indústria cultural possui, assim, uma estratégia de domínio com algumas
táticas. Uma delas é a estereotipização, útil na organização e antecipação das
experiências da realidade social que o sujeito leva a efeito.
222
Quanto mais
incompreensível é a realidade, mais ocorre o apego a clichês e estereótipos que
facilitam a ordenação do mundo, mas que enfraquecem a experiência da vida.
Percebendo os efeitos de dominação nos indivíduos decorrentes dos meios de
comunicação de massa, a teoria crítica, apesar de suas importantes contribuições
quanto às análises sócio-econômicas, aproximou-se das teorias mais rudimentares
que detectavam a onipotência dos meios, desconsiderando a autonomia do público
e todos os fatores que podem implicar no consumo das mensagens.
De volta aos Estados Unidos, a década de 1950 trouxe pesquisas com
enfoque diverso, afastando-se da idéia de efeitos a curto prazo sobre os receptores,
dando início ao estudo da sociologia dos emissores.
Com a nova perspectiva, que se contrapõe à sociologia funcionalista,
modifica-se a idéia de tipos de efeitos ocasionados pelos MCM a curto prazo para a
percepção de que os MCM podem causar “um efeito cognitivo sobre os sistemas de
conhecimento que o indivíduo assume e estrutura de uma forma estável”.
223
Nesse
sentido, tais efeitos são cumulativos, sedimentados no tempo, e o de curta
duração, evidenciando-se, além disso, a importância de outros fatores que
influenciam nas atitudes do público. Essa vertente da pesquisa em comunicação
220
WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Lisboa: Presença, 1994. p. 72-80.
221
ibid. p. 75.
222
ibid. p. 79.
223
ibid. p. 124.
69
trabalha, portanto, com efeitos a longo prazo, tendo por base teórica a sociologia do
conhecimento, e se centra “na importância e no papel dos processos simbólicos e
comunicativos como pressupostos da sociabilidade”.
224
Uma questão importante a ser ressaltada nisso é o fato de que a
intencionalidade que caracteriza os efeitos dos meios de comunicação de massa na
pesquisa administrativa lugar a efeitos latentes, que intervêm no conhecimento
que os destinatários têm da realidade. Sendo assim, o papel dos MCM passa a ser o
de influenciar no processo de significação do mundo, ou seja, na construção social
da realidade, juntamente com os processos de interação social.
Actualmente, no centro da problemática dos efeitos, coloca-se, portanto, a
relação entre a acção constante dos mass media e o conjunto de
conhecimentos acerca da realidade social, que dá forma a uma determinada
cultura e que sobre ela age, dinamicamente.
225
Uma primeira visão dentro desse enfoque é a hipótese do agenda-setting.
Parte do pressuposto de que os MCM não conseguem produzir efeitos diretos no
sentido de determinar como as pessoas irão pensar e agir, mas sim os assuntos
sobre os quais elas o farão. “As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos
seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu
próprio conteúdo”.
226
Esse processo diz respeito também à forma como os temas
serão conhecidos, dentro de quadros ou frames, ou seja, categorias, esquemas de
conhecimentos, quadros interpretativos aplicados a partir dos processos de
produção da informação para dar sentido ao que se informa. Sendo assim, “não se
trata tanto de ser persuadido pelo que dizem os meios quanto de crer que aquele
assunto tem a importância que se lhes atribui”.
227
Ainda é de observar o fato de que várias das experiências com as quais as
pessoas têm contato se dão através dos MCM e não diretamente através das
interações sociais, sendo, portanto, que parte da realidade de vida dos indivíduos só
é possível em função da atuação dos MCM. Assim, os impactos sobre os
destinatários da informação se em dois níveis como mostra Wolf, “a. a ‘ordem do
224
ibid. p. 125.
225
ibid.p. 127.
226
SHAW, E. apud WOLF, Mauro. op. cit. p. 128.
227
GOMIS, Lorenzo. Teoría del periodismo: Cómo se forma el presente. Barcelona/Buenos
Aires/México: Paidós, 1997. p. 157. Tradução livre do original em espanhol: “no se trata tanto de ser
persuadido por lo que dicen los medios cuanto de creer que aquel asunto tiene la importancia que se
le atribuye”
70
dia’ dos temas, assuntos e problemas presentes na agenda dos mass media; b. a
hierarquia de importância e de prioridade segundo a qual esses elementos estão
dispostos na ‘ordem do dia’”.
228
As fases seguidas para a construção da agenda
seriam a focalização, quando os MCM dão relevo a determinado acontecimento; o
framing, quando é dado enquadramento ao acontecimento, a partir do problema que
simboliza; uma terceira fase onde o acontecimento é relacionado a um sistema
simbólico para que torne parte de um panorama reconhecido; e a fase de
personificação do tema por porta-vozes.
Essa abordagem diversa sobre o papel dos meios de comunicação de massa
se deu, sobretudo, nos estudos sobre o jornalismo e a organização jornalística, mas
aplica-se também a outros gêneros midiáticos, como as novelas, filmes, etc.
Outra vertente de pesquisas é a dos estudos sobre os emissores da
informação e sobre os processos produtivos no jornalismo. Segundo Wolf, as duas
principais abordagens realizadas segundo a perspectiva dos estudos dos emissores
foram uma ligada à sociologia das profissões, que estuda fatores exteriores que
influenciam os processos produtivos, e a outra “constituída pelos estudos que
analisam a gica dos processos pelos quais a comunicação de massa é produzida e
o tipo de organização do trabalho dentro da qual se efectua a ‘construção’ das
mensagens”.
229
Estudar esses processos é importante pelo fato de que a série de
decisões tomadas determinam o produto acabado.
O primeiro ramo de pesquisas nesse sentido foi a dos gatekeepers ou teoria
da ação pessoal
230
. Gatekeepers é o termo difundido por David Maning White, em
1950, utilizado para designar os selecionadores dos fatos a serem cobertos e
divulgados pelo jornal, partindo dos termos gate”, que significa “porta”, e “keeper”,
que significa “guardião”, “zelador”. Podem desempenhar esse papel desde o redator
que decide que aspectos de um acontecimento serão incluídos em seu texto até o
diretor que escolhe uma notícia de capa.
231
Trata-se, na verdade, da transmissão da
notícia de um gatekeeper a outro na cadeia de comunicação, procedendo, cada um,
228
WOLF, Mauro. op. cit. p. 130.
229
ibid. p. 159.
230
TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo... op. cit.
231
GOMIS, Lorenzo. op. cit. p. 86.
71
uma nova seleção.
232
Tendo em vista que, diariamente, ocorre um número imenso de fatos no
mundo inteiro, surge o interesse em saber por que apenas alguns poucos se tornam
notícia em um jornal e outras não. Nos estudos sobre o gatekeeper, várias questões
são levantadas, como por exemplo, de que forma a subjetividade do indivíduo que
tem esse papel influencia na tomada de decisões, quem e que regras o selecionador
tem em vista quando faz o seu trabalho, como é realizada essa filtragem. Rebelo
observa que a função do gatekeeper é mais do que um mero selecionador dos
acontecimentos, “é o gestor do processo de adaptação das noticias às reacções
suscitadas pela respectiva difusão. É o agente regulador dos media”.
233
Podendo
incluir a participação de acionistas ou financiadores da empresa de comunicação, a
função de gatekeeper acaba exprimindo uma característica de retroação.
O produto fabricado pela empresa jornalística, enquanto sistema, vai
contribuir para a modelação do sistema que lhe é exterior, isto é, o sistema
envolvente. Do sistema-envolvente, ou sistema-ambiente, partem, no
entanto, sinais que, uma vez absorvidos pela instância de regulação, são,
por esta, acrescentados aos sinais que a mesma instância de regulação
recolhe no interior da própria empresa jornalística. O conjunto de sinais
provenientes do interior e do exterior actuando sobre os pressupostos
doutrinários do jornal originam a decisão da instância de regulação que se
repercute nos subsistemas do jornal: concepção, fabrico, difusão, gestão e
manutenção.
234
Porém, várias pesquisas realizadas entre selecionadores mostraram que “as
referências implícitas ao grupo de colegas e ao sistema das fontes, predominam
sobre as referências implícitas ao próprio público”.
235
Assim, o jornalista pouco sabe
sobre o público, mas tem as normas da organização jornalística bem claras, sendo
que estudos sobre o controle social nas redações e os motivos e as formas
através das quais é incutida a conformidade à orientação do jornal.
236
232
WHITE, David Mannig White. O gatekeeper: Uma análise de caso na selecção de notícias. In:
TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: Questões, teorias e “estórias”. p. 142-151. Lisboa: Veja,
1993.
233
REBELO, José. op. cit. p. 36.
234
ibid. p. 38.
235
WOLF, Mauro. op. cit. p. 161.
236
Em 1955 foi publicado o importante estudo de Warren Breed sobre o controle social nas redações,
buscando investigar de que forma uma política de informação é mantida em uma redação. As
conclusões se dão no sentido de que o jornalista quando ingressa na redação não é escolhido por
suas ideologias e não está diretamente adaptado à rotina. Porém, aos poucos percebe que para
ascender na profissão e ser valorizado precisa reunir um conjunto de qualidades, sendo uma delas a
conformidade com as normas de trabalho, que não são formais e ensinadas, mas interiorizadas
através da socialização. Essas normas não são expostas abertamente por razões éticas, que
72
Na cada de 1960, o período bastante conturbado politicamente na maioria
dos países ocidentais estimulou o desenvolvimento de pesquisas sobre ideologia, as
implicações políticas do jornalismo. As teorias da ação política se caracterizam pela
visão instrumentalista dos jornais, percebendo a utilização dos mesmos em prol de
interesses políticos. Traquina identifica uma versão de direita, que percebe os
jornais como instrumentos que põem em causa o capitalismo, e uma versão de
esquerda, onde os jornais são vistos como instrumentos que ajudam a manter o
sistema capitalista.
237
A versão de esquerda, desenvolvida até os dias atuais por
Herman e Chomski, argumenta que as notícias são determinadas ao nível
macroeconômico, identificando cinco fatores que explicam a submissão do
jornalismo aos interesses do sistema capitalista:
1) a estrutura de propriedade dos media; 2) a sua natureza capitalista, isto
é, a procura pelo lucro e a importância da publicidade; 3) a dependência dos
jornalistas nas fontes governamentais e das fontes do mundo empresarial;
4) as ações punitivas dos poderosos; e 5) a ideologia anti-comunista
dominante entre a comunidade jornalística norte-americana.
238
Essa corrente é bastante criticada por ignorar qualquer tipo de autonomia do
jornalista, apesar de trazer em suas conclusões questões importantes, trabalhadas
também por outras teorias, a da dependência das fontes oficiais e a manutenção do
status quo.
A problemática da parcialidade, vista pela teoria da ação política como sendo
a adequação dos jornalistas a determinada posição, é questionada por Hackett, ao
analisar casos da imprensa britânica. Esse autor conclui que mesmo quando os
jornalistas seguem critérios de objetividade podem acabar assumindo
inconscientemente uma posição política. É o que ocorre através da ideologia. Para o
autor, é necessário que a parcialidade deixe de ser o objeto das reflexões, para dar
lugar ao estudo da ideologia. E propõe três concepções de ideologia para os
estudos dos media: “os ‘enquadramentos’ ou conjunto de pressuposições sociais
fomentadas na notícia, a ‘naturalização’ das relações sociais e a interpelação do
impediriam mandar os subordinados a seguir determinada política informativa. BREED, Warren.
Controlo social na redacção: Uma análise funcional. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo:
Questões, teorias e estórias”. Lisboa: Veja, 1993. Como nota Traquina, o trabalho de Breed está
inserido na teoria organizacional do jornalismo. TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo... op. cit.
p. 152.
237
ibid. p. 161-168.
238
ibid. p. 165-166.
73
público”.
239
Tem em vista, portanto, o fato de que os enquadramentos realizados,
que acabam levando ao privilégio de uns pontos de vista em detrimento de outros
(traz o exemplo da sobreposição do enfoque do empresário em detrimento dos
trabalhadores numa situação de greve) pode ser o resultado da “absorção
inconsciente de pressuposições acerca do mundo social no qual a notícia tem de ser
embutida de modo a ser inteligível para o seu público pretendido”, e em função da
gravidade disso para o problema da objetividade, deve ser uma questão
estudada.
240
1.2.2 A notícia como construção social
Nos anos 1970, uma segunda vertente de pesquisas dos emissores retirou o
foco do selecionador como construtor do conteúdo dos jornais, passando a estudar a
organização e a produção rotineira dos aparelhos jornalísticos relacionando com a
imagem da realidade social fornecida pelos mass media.
241
Dessa forma, deixa-se
de lado a idéia das distorções ocorridas como forma de manipulação aberta com
objetivos escusos, para verificar a ocorrência de distorções involuntárias que
ocorrem no quotidiano da produção dos jornais em função de valores partilhados
pelos profissionais sobre como deve se desenvolver a tarefa de informar.
242
Aqui, a
sociologia do conhecimento aparece não somente ao perceber a importância do
jornalismo como instância cognitiva, mas também em função do processo de
socialização que se dentro da redação, com normas organizativas próprias, bem
como controles sociais próprios que acabam condicionando o produto, a notícia. O
estudo da produção quotidiana da informação passa a se denominar newsmaking.
Ao distinguir as duas perspectivas sociológicas que podem dar origem a
teorias sobre o jornalismo, Tuchman demonstra que pela sociologia tradicional as
notícias seriam um espelho da realidade, no sentido de que seriam determinadas
pela estrutura social. Porém, pela segunda perspectiva, a de que não somente a
estrutura social determina os indivíduos, mas eles a constroem, a notícia é
239
HACKETT, Robert A. Declínio de um paradigma? A parcialidade e a objectividade nos estudos dos
media noticiosos. In: Nelson Traquina (org.). Jornalismo: questões, teorias e estórias”. p. 101-130.
Lisboa: Veja, 1993. p. 128
240
ibid. p. 121.
241
WOLF, Mauro. op. cit. p. 162.
242
ibid. p. 163.
74
determinada por uma série de escolhas e seleções feitas com base em normas
organizacionais, enfoque ao qual a autora se filia. Nesse sentido, “a notícia o
espelha a realidade, ajuda a construí-la como fenômeno social compartilhado, posto
que no processo de descrever um acontecimento a notícia define e forma a esse
acontecimento”.
243
Metodologicamente, esse ramo de pesquisa tem como principal procedimento
a etnografia, de forma a observar as informações sobre as rotinas produtivas dos
MCM. “Essa abordagem articula-se, principalmente, dentro de dois limites: a cultura
profissional dos jornalistas e a organização do trabalho e dos processos
produtivos”.
244
Segundo Traquina, duas teorias, a estruturalista e a interacionista, partilham o
paradigma das notícias como construção social. “Para ambas as teorias, as notícias
são o resultado de processos complexos de interação social entre agentes sociais:
os jornalistas e as fontes de informação; os jornalistas e a sociedade; os membros
da comunidade profissional dentro e fora da organização”.
245
A teoria estruturalista é uma teoria macrossociológica que evidencia o papel
da mídia na reprodução da ideologia dominante, reconhecendo, porém, uma certa
autonomia dos jornalistas em relação ao poder econômico.
246
Ressalta, portanto, a
importância das práticas organizativas, dos critérios de noticiabilidade e das fontes
institucionais, como condicionantes da prática jornalística.
Essa teoria confere ênfase ao papel da cultura no momento da construção da
notícia, estando ligada aos estudos culturais desenvolvidos na Inglaterra.
Diferentemente das vertentes anteriores, surge com o objetivo de “definir o estudo
da cultura própria da sociedade contemporânea como um campo de análise
conceitualmente relevante, pertinente e teoricamente fundado”.
247
Inclui-se no
conceito de cultura os significados, valores e práticas através das quais se
exprimem, pondo em destaque a contínua dialética entre sistema cultural, conflito e
controle social.
243
TUCHMAN, Gaye. op. cit. p. 197-198. Tradução livre do original em espanhol: “la noticia no espeja
la realidad. Ayuda a constituirla como fenómeno social compartido, puesto que en el proceso de
describir un suceso la noticia define y da forma a ese suceso”.
244
WOLF, Mauro. op. cit. p. 167.
245
TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo... op. cit. p. 173
246
ibid. p. 175
247
WOLF, Mauro. op. cit. p. 94.
75
A teoria estruturalista também sublinha o papel ideológico dos media mas
critica a posição de que os media transmitem a ideologia da ‘classe
dirigente’ de uma forma conspiratória devido à estrutura de propriedade
capitalista, porque reconhece a ‘autonomia relativa’ dos jornalistas em
relação a um controle sistêmico direto.
248
a teoria interacionista, que também é identificada por suas raízes
etnometodológicas, caracteriza-se pelo estudo sobre como os processos produtivos
influenciam na definição das notícias. A partir da análise dos pressupostos de que se
parte para definir a noticiabilidade e os processos que intervêm na construção da
notícia, percebe que o jornalismo é parte dos processos cognitivos da realidade e
auxilia na sua construção, juntamente com as interações sociais e o papel das
instituições.
Na perspectiva do paradigma construtivista, embora sendo índice do “real”,
as notícias registram as formas literárias e as narrativas utilizadas para
enquadrar o acontecimento. A pirâmide invertida, a ênfase dada à resposta
às perguntas aparentemente simples: quem? o que? onde? quando?, a
necessidade de selecionar, excluir, acentuar diferentes aspectos do
acontecimento processo orientado pelo enquadramento escolhido são
alguns exemplos de como a notícia, dando vida ao acontecimento, constrói
o acontecimento e constrói a realidade.
249
O pressuposto de que essas teorias partem é o mesmo apresentado
anteriormente acerca das teorias de base da teoria do etiquetamento, ou seja, de
que a realidade não possui status ontológico anterior à interação social, mas é
construída através dos processos sociais. E ao mesmo tempo em que o homem
constrói a realidade social, essa mesma realidade, ao ser objetivada, constrói a
maneira como o homem percebe o mundo, de maneira dialética.
Ao mesmo tempo em que a notícia é um produto da realidade social, ao
registrá-la, a notícia também a produz, através da seleção operada e dos
enquadramentos realizados. As noções de definição e de tipificação da
etnometodologia, o conceito de enquadramento de Goffman e a percepção da
construção social da realidade de Berger e Luckmann são essenciais para esta
teoria.
Em primeiro lugar, para lidar com a quantidade excessiva de fatos captados
pela rede de informações na construção do jornal, existe um conjunto de
conhecimentos na atividade jornalística identificados na prática, através do hábito,
248
TRAQUINA, Nelson. Introdução. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e
“estórias”. Lisboa: Veja, 1993. p. 139.
249
idem. Teorias do jornalismo... op. cit. p. 174.
76
que classificam os acontecimentos como notícias. Em função disso são tipificações.
O uso da tipificação conota uma intenção de colocar as classificações dos
informantes em seu contexto cotidiano, pois as tipificações estão embutidas
nos cenários nos quais o utilizadas e nas ocasiões que impulsionam sua
utilização, e tomam sua significação desses cenários e essas ocasiões.
250
É interessante perceber a conseqüência das tipificações, ou seja, “os
informadores usam tipificações para transformar os acontecimentos idiossincráticos
do mundo cotidiano em matérias-primas que possam ser submetidas a um
processamento de rotina e a sua disseminação”.
251
Essas tipificações, na análise da
autora baseada em Berger e Luckmann, fazem parte de um acervo social do
conhecimento dos jornalistas, é uma objetivação, ou seja, passa a estar fora da
esfera de alcance do sujeito a resposta de por que as coisas são feitas dessa
maneira. E isso pode ter conseqüências problemáticas para uma atividade como a
jornalística.
Pois a objetivação do conhecimento pode dar por resultado erros, de modo
similar a como aplicar estereótipos de uma “aparência criminosa” pode dar
por resultado classificar alguém incorretamente como criminoso ou não
digno de confiança. E em alguns casos, os erros profissionais influem na
avaliação da noticiabilidade de um relato.
252
a noção de enquadramento é essencial não na definição do que será
notícia, mas à forma como os acontecimentos serão abordados e transmitidos.
Enquadramento é uma “idéia organizadora central para dar sentido a
acontecimentos relevantes e sugerir o que é um tema”.
253
Assim, além de dar
repercussão pública a acontecimentos privados, os relatos informativos ajudam a
conferir forma a uma definição pública do que o mesmo é e do que significa. A
definição do marco a partir do qual um fato será relatado pode ser, porém, anterior
250
TUCHMAN, Gaye. op. cit. p. 63. Tradução livre do original em espanhol: “El uso de la ‘tipificación’
connota un intento de colocar las clasificaciones de los informantes en su contexto cotidiano, pues las
tipificaciones están empotradas en los escenarios en los que son utilizadas y en las ocasiones que
impulsan su utilización, y toman su significación de esos escenarios y esas ocasiones”.
251
ibid. p. 71. Tradução livre do original em espanhol: “los informadores usan tipificaciones para
transformar los sucesos idiosincrásicos del mundo cotidiano en materias primas que puedan ser
sometidas a un procesamiento de rutina y a su diseminación”.
252
ibid. p. 72. Tradução livre do original em espanhol: Pues la objetivación del conocimiento puede
dar por resultado errores, de modo similar a como aplicar estereotipos acerca de una ‘apariencia
criminal’ puede dar por resultado clasificar incorrectamente a alguien como criminal o no digno de
confianza. Y en algunos casos, los errores profesionales influyen en la evaluación de la noticiabilidad
de un relato”.
253
GOFFMAN apud TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: A tribo jornalística uma
comunidade interpretativa transnacional. v. II. Florianópolis: Insular, 2005. p. 16.
77
ao seu próprio acontecimento. “O fato se insere muitas vezes em um marco
previsto e preparado para ele e como conseqüência se interpreta com as
explicações mais à mão, que às vezes são as do preconceito. Tende-se a ver então
em um fato o que se esperava ou se temia ver”.
254
É o mesmo raciocínio sobre os estereótipos, que foi tratado no ponto 1.1,
ou seja, trata-se do fato de que “imaginamos a maior parte das coisas antes de
experimentá-las e, a menos que a educação nos consciência disso, esses
conceitos antecipados governam profundamente todo o resto de nossa
percepção”.
255
A utilização de estereótipos parece ser um procedimento de rotina na
produção da notícia, tendo em vista a necessidade de que o leitor consiga
compreender a história. Para atrair a atenção do leitor, é necessário permitir que ele
participe da notícia, de forma que encontre um ponto de apoio familiar, o que é
possível através dos estereótipos. “Estes lhe dizem que, se uma associação de
encanadores é qualificada de ‘conluio’, presta-se a gerar-lhe a hostilidade;
denominada de grupo de importantes homens de negócios’, destina-se a provocar-
lhe a reação favorável”.
256
As práticas profissionais dos jornalistas se dão, portanto, dentro de uma
organização em que normas organizacionais condicionam a produção, existindo, em
função também da hierarquia em que estas organizações se formam, alguns
conflitos. Porém, Tuchman expõe a opinião de que as práticas profissionais, ao
contrário de serem a demonstração da existência de um conflito dos jornalistas com
a organização, servem aos interesses da própria organização.
Ambas, por sua vez, servem para legitimar o status quo, complementando-
se mutuamente na tarefa de reforçar as regras sociais contemporâneas,
mesmo quando ocasionalmente compitam pelo controle dos processos de
trabalho e pelo direito a identificar-se com as liberdades de imprensa e de
expressão.
257
254
GOMIS, Lorenzo. op. cit. p. 69. Tradução livre do original em espanhol: El hecho se inserta a
menudo en un marco ya previsto y preparado para él y como consecuencia se interpreta con las
claves más a mano, que a veces son las del prejuicio. Se tiende a ver entonces en un hecho lo que
se esperaba o se temía ver”.
255
ibid. p. 70. Tradução livre do original em espanhol: “imaginamos la mayor parte de las cosas antes
experimentarlas y, a menos que la educación nos conciencia de ello, esos conceptos anticipados
gobiernan profundamente todo el resto de nuestra percepción”.
256
LIPPMANN, Walter. A natureza da notícia. In: STEINBERG, Charles (Org). Meios de
Comunicação de Massa. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 197.
257
TUCHMAN, Gaye. op. cit. p. 17. Tradução livre do original em espanhol: “Ambas, a su vez, sirven
para legitimar el status quo, complementándose mutuamente en la tarea de reforzar los arreglos
78
Essencial para a percepção da forma como se a seleção das notícias e,
portanto, de como as informações o construídas e difundidas através do jornal é o
estudo da rede de informações, dos valores-notícia e do papel das fontes, em
especial, das fontes institucionais.
A rede de informações e os valores-notícia
Tendo em vista a impossibilidade de cancelamento de um jornal comercial
pela ausência de fatos a serem noticiados, a alternativa encontrada pelas
organizações jornalísticas para manterem sempre a sua produção em
funcionamento foi a constituição de uma rede de informações.
258
Essa rede se
constitui através da dispersão dos jornalistas a diferentes locais estratégicos de
onde partirão acontecimentos noticiáveis, tudo facilitado pelo progresso tecnológico.
Porém, o primeiro questionamento sobre essa rede, identificado por
Tuchman, foi de que o próprio posicionamento dos jornalistas nos locais estratégicos
parte da pressuposição de que esses locais possivelmente gerarão notícias, a
despeito de outros que acabam tendo muito menor probabilidade de serem
noticiados. Os locais onde esses profissionais estarão posicionados também
determinarão quais serão os fatos a serem noticiados, sendo que esses lugares são
muito comumente institucionais. “A rede informativa impõe uma ordem ao mundo
social porque faz possível que os acontecimentos informativos ocorram em algumas
zonas, mas não em outras”.
259
Essa rede, segundo Tuchman, segue três critérios ou métodos, baseados no
que imaginam ser os interesses do leitor, para o posicionamento de jornalistas. O
primeiro seria a territorialidade geográfica, partindo do pressuposto de que os
leitores estão interessados em acontecimentos que ocorrem em lugares específicos.
A capital do país, bem como cidades importantes econômica e politicamente,
sociales contemporáneos, aun cuando ocasionalmente compitan por el control de los procesos del
trabajo y por el derecho a identificarse con las libertades de prensa y de expresión”.
258
ibid.
259
ibid. p. 36. Tradução livre do original em espanhol: La red informativa impone un orden al mundo
social porque hace posible que los acontecimientos informativos ocurran en algunas zonas pero no
en otras”.
79
dependendo da abrangência do jornal, costumam possuir escritórios de jornais de
outras localidades.
Outro critério parte do pressuposto de que os leitores se importam com
atividades específicas, o que leva a posicionar repórteres em instituições
centralizadas que geram notícias. Assim, jornalistas responsáveis por cobrir a
polícia, o executivo do município, do estado, o legislativo, etc.
O terceiro método para constituir a rede é o da especialização tópica, onde se
estabelecem departamentos independentes dentro da organização jornalística, com
seus próprios pressupostos, de tal maneira que por vezes pode haver conflito de
interesses entre os chefes de diferentes editorias. Em função disso, é necessária a
presença de um chefe superior que centralize a tarefa de edição, o qual irá escolher
propriamente dentre os casos cobertos pelas diferentes editorias quais são
efetivamente notícias importantes para integrar as páginas mais nobres do jornal.
É interessante observar, porém, que a dispersão estratégica dos jornalistas
espacialmente para que cubram um maior número de acontecimentos também se
refere ao tempo. Ou seja, o trabalho matutino dos jornalistas se dará após a abertura
das instituições que possivelmente serão fontes para notícias, assim como terminará
quando as mesmas estiverem fechadas. Dessa maneira, o número de jornalistas
disponíveis para relatar acontecimentos fora desses horários é muito pequeno, o
que também pode afetar a questão da avaliação dos eventos como acontecimentos
informativos potenciais.
260
Em função da dispersão da rede informativa, tendo em conta ainda o papel
das agências de notícias, nacionais e internacionais, além dos serviços de
assessoria de imprensa de todas as instituições que procuram os jornalistas,
costuma-se dizer que hoje dificilmente é o jornalista que sai à caça de informações,
as próprias pautas batem à sua porta. O seu papel se constitui principalmente em
selecionar os fatos a serem noticiados e cobri-los.
261
Para tanto, parte de alguns critérios para definir a noticiabilidade dos
acontecimentos. Porém, esses critérios não são escritos, nem transmitidos através
de um curso aos profissionais. Faz parte do processo de socialização do jornalista,
de um senso comum organizacional, de um conhecimento objetivado.
260
ibid. p. 55.
261
GOMIS, Lorenzo. op. cit. p. 76.
80
Nas pesquisas sobre a noticiabilidade, desenvolvidas por estudiosos do
newsmaking, buscou-se determinar quais as condições os acontecimentos devem
satisfazer para se tornarem notícias.
262
A essas condições, obtidas a partir de
valores culturais partilhados pelos jornalistas e usados automaticamente, atribuiu-se
o título de valores-notícia. Os valores-notícia buscam responder aos critérios de
relevância, interesse e pertinência de acontecimentos para que se transformem em
notícias. Como observa Wolf, a utilização dos valores-notícia, além de se dar através
da combinação de vários deles em um acontecimento para a sua definição como
notícia, também são identificados ao longo de todo o processo de produção das
notícias, e não apenas no momento da seleção do acontecimento.
263
Os valores-
notícia servem como uma forma de rotinizar um trabalho que por si é sempre
inteiramente novo, que os acontecimentos noticiáveis mudam diariamente. Em
função disso, esses critérios de seleção devem ser fáceis de utilizar rapidamente,
tendo em vista a agilidade do trabalho nas redações, e, é claro, devem fazer parte
de um consenso.
Os critérios de noticiabilidade não são estanques, sendo que determinados
acontecimentos podem em um momento não serem considerados notícia e em outro
virem a ser, que o contexto pode ter mudado. É o exemplo de movimentos que
vêm da sociedade e que com o tempo se solidificam, criam fatos para se tornarem
notícias e passam a ser significativos nas páginas dos jornais.
264
Wolf, com base nos estudos dos principais autores do newsmaking procura
classificar os valores-notícia de acordo com o seu conteúdo, a disponibilidade de
material e critérios relativos ao produto informativo, ao público e à concorrência.
265
Quanto ao conteúdo das notícias, a importância e o interesse são os
principais fatores a ter em conta. A importância é determinada por quatro variáveis:
1. Grau e nível hierárquico dos indivíduos envolvidos no acontecimento noticiável,
tanto no que diz respeito às pessoas de elite quanto aos países de elite; 2. Impacto
sobre a nação e sobre o interesse nacional, tendo em vista, então a significância do
acontecimento, bem como à proximidade; 3. Quantidade de pessoas que o
262
GALTUNG, Johan; RUGE, Mari Holmboe. A estrutura do noticiário estrangeiro: A apresentação
das crises do Congo, Cuba e Chipre em quatro jornais estrangeiros. In: TRAQUINA, Nelson (org.).
Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. p. 61-73. Lisboa: Veja, 1993. p. 71.
263
WOLF, Mauro. op. cit. p. 173.
264
ibid. p. 176.
265
ibid. p. 177.
81
acontecimento envolve, considerando-se em conjunto a notoriedade das pessoas e
a proximidade, ou seja, quanto mais próximos e mais elitizados, maior será a
noticiabilidade do acontecimento. 4. Relevância e significatividade do acontecimento
quanto à evolução futura de uma determinada situação.
266
Por outro lado, o interesse da história está ligado à sua capacidade de
entretenimento. “São interessantes as notícias que procuram dar uma interpretação
de um acontecimento baseada no aspecto do ‘interesse humano’, do ponto de vista
insólito, das pequenas curiosidades que atraem a atenção”.
267
O interesse é critério
essencial para os MCM privados, tendo em vista que com isso se busca garantir a
atenção do público.
os valores-notícia que se referem à notícia como produto, a disponibilidade
de materiais para a produção e as características do produto informativo são os
aspectos principais. Em relação às características do produto informativo, a
atualidade e a brevidade são elementos importantes, que fatos antigos não são
notícias e o espaço é limitado. Identifica-se nesse aspecto também uma ideologia da
notícia. A ideologia da notícia é o “pressuposto segundo o qual são noticiáveis, em
primeiro lugar, os acontecimentos que constituem e representam uma infracção, um
desvio, uma ruptura do uso normal das coisas. Constitui notícia aquilo que altera a
rotina, as aparências normais”.
268
Dessa maneira, as notícias negativas atingem o topo dos requisitos da
noticiabilidade, provocando interesse do público. As notícias negativas serão mais
facilmente consensuais e inequívocas no sentido de que haverá acordo acerca da
interpretação do acontecimento como negativo”.
269
Deve-se salientar que os valores-notícia são instrumentalizados
simultaneamente, sendo que é muito pouco provável que um fato noticiável
contenha apenas um dos critérios. Esses valores adquirem significado dentro das
rotinas produtivas, que, segundo Wolf, se dão em três fases, a coleta, a seleção e a
apresentação das notícias.
266
Em um manual de jornalismo, Pery Cotta deixa bem clara a resposta à pergunta “quem provoca,
gera ou cria a notícia?”: Geram notícias ou podem virar notícias fatos referentes a: personalidades,
celebridades, pessoas famosas; mulheres bonitas; crianças; animais; natureza”. COTTA, Pery.
Jornalismo: Teoria e prática. Rio de Janeiro: Rubio, 2005. p. 77.
267
WOLF, Mauro. op. cit. p. 182.
268
ibid. p. 183.
269
GALTUNG, Johan; RUGE, Mari Holmboe. op. cit. p. 69.
82
Tendo em vista a cultura profissional, a organização do trabalho jornalístico,
entre outros condicionamentos que influenciam na definição da noticiabilidade, nota-
se a importância da definição do próprio jornalista sobre o que é notícia, e de que
forma o acontecimento deve ser publicizado, mas de uma forma controlada, que
as tipificações inerentes à sua socialização também condicionam a sua atuação.
Além disso, não se pode deixar de lado a importância do perfil editorial do jornal e do
público ao qual o mesmo se volta, que boa parte das decisões vai depender da
imagem que o jornal e o jornalista possuem do destinatário da notícia. Verificando
que a seletividade vai se voltar para alguns acontecimentos e enquadramentos
deixando ocultos tantos outros, torna-se imprescindível analisar como os silêncios
dos jornais também podem ser significativos.
As fontes: o enquadramento pelos definidores primários institucionais e a
manutenção do status quo
Pelo fato de os acontecimentos não poderem ser noticiados em toda a sua
complexidade e grandeza, opera-se, necessariamente, um enquadramento, ou seja,
é extraído um fragmento da totalidade, é como uma moldura, que opera, ao mesmo
tempo um corte e uma focalização: “um corte porque separa um campo e aquilo que
o envolve; uma focalização porque, interditando a hemorragia do sentido para além
da moldura, intensifica as relações entre os objetos e os indivíduos que estão
compreendidos dentro do campo e os reverbera para um centro”.
270
A definição dessa moldura é justamente operada pelos critérios
organizacionais vistos anteriormente. Porém, dentro desse processo produtivo
ocupam um lugar central as fontes da notícia. Essas são partes essenciais da coleta
de informações, tendo em vista que na maior parte das vezes o jornalista não está
presente no momento dos acontecimentos, além de não ter conhecimento suficiente
para tratar das especificidades inerentes aos diferentes assuntos abarcados pela
notícia. Constituem fontes aquelas pessoas ou instituições que fornecem
informações ao jornalista.
Dentro dos moldes a que as tipificações o vinculam, o jornalista tem certa
270
MOUILLAUD, Maurice. A crítica do acontecimento ou o fato em questão. In: MOUILLAUD,
Maurice; ORTO, Sérgio Dayrell (org). O jornal: da forma ao sentido. p. 49-84. Brasília: UNB, 2002. p.
61.
83
flexibilidade em relação à organização jornalística para cobrir os fatos, tendo em
vista que seu trabalho se em campo, sem uma supervisão direta. Assim, a forma
como encontrar as fontes, a sua relação com as mesmas, bem como as informações
que conseguirá coletar a partir do encontro com elas e o relato que fará é flexível e
condiciona o resultado do trabalho. O desenvolvimento do trabalho do repórter está
impregnado, entretanto, pelo profissionalismo, ou seja, o que o faz saber como
conseguir um relato que satisfaça as necessidades e as pautas da organização.
271
Esse profissionalismo tem a ver também com o zelo pela imagem da
organização. Sendo assim, a credibilidade do jornal sempre deve ser tida em conta
na construção dos relatos de acontecimentos. Enquanto normalmente os fatos são
verificáveis através de outros fatos, situações em que isso não é possível, e os
acontecimentos relatados não podem ser verificados.
Nesse caso, fato e fonte se mesclam na narrativa. Fontes credíveis são
aspectos importantes para que a notícia seja tida como verdadeira e o jornal
reafirme a sua seriedade. Assim, quando os fatos não podem ser comprovados, mas
precisam ser tidos como verdades, os jornalistas utilizam algumas estratégias.
Tuchman traz o exemplo de quando o jornalista possui uma declaração de uma
fonte e, para não se comprometer politicamente apresentando apenas um lado,
busca outra fonte que apresente o lado oposto. Dessa maneira, o jornalista evita
narrar um fato potencialmente falso como verdadeiro e de se comprometer
politicamente ao apoiar apenas um lado do caso, permitindo ao leitor que decida
qual o lado está correto.
272
Tais fontes geralmente são fontes institucionais, ou seja, ligadas às
instituições formais da sociedade, principalmente as ligadas ao poder político e
econômico. As fontes institucionais normalmente gozam de uma credibilidade
inerente à sua posição.
Em definitivo, o uso de fontes graduadas que possam ser citadas como
pretensões de verdade passa a converter-se em um recurso técnico
desenhado para distanciar o repórter dos fenômenos identificados como
fatos. As citações de opiniões de outras pessoas são apresentadas para
criar uma trama de fatos que mutuamente se validam a si mesmos.
273
271
TUCHMAN, Gaye. op. cit. p. 78.
272
ibid. p. 103.
273
ibid. p. 108. Tradução livre do original em espanhol: “En definitiva, el uso de fuentes graduadas
que puedan ser citadas como pretensiones de verdad que se ofrecen pasa a convertirse en un
recurso técnico diseñado para distanciar al reportero de los fenómenos identificados como hechos.
84
Dessa maneira, a definição pública dos acontecimentos é realizada em
grande parte das vezes pelas fontes institucionais, ou seja, os representantes de
grupos, autoridades, os peritos de suas atividades.
274
A utilização de aspas é uma
forma de o jornalista se distanciar do texto, fazendo com que outros afirmem o que
ele deseja, assegurando a separação entre fato e opinião.
Na percepção de Tuchman, o uso de aspas é um atributo formal do ritual
estratégico utilizados pelos jornalistas, de forma a transmitir uma sensação de
objetividade, defendendo-se dos ataques violentos da crítica. Nesse sentido, a
constante explicitação do que as fontes oficiais têm a dizer, com a utilização de
aspas, demonstra que “os jornalistas vêem as citações de outras pessoas como uma
forma de prova suplementar. Ao inserir a opinião de alguém, eles acham que deixam
de participar e deixam os factos falar”.
275
A regularidade na utilização de determinadas fontes deve-se ao fato de elas
preencherem alguns requisitos importantes para a constância da atividade
jornalística. Em primeiro lugar, as fontes que têm informações contínuas suprem a
necessidade de dispor de notícias. Da mesma maneira, a produtividade das fontes,
a sua proximidade física, a credibilidade de que dispõem, a garantia das
informações que repassam e a sua respeitabilidade são os fatores que determinam
a permanência de determinadas fontes nas páginas dos jornais.
276
Em função disso,
também fontes, principalmente as não-oficiais que são sub-representadas nas
páginas dos jornais, o que demonstra mais uma seletividade.
[...] a rede de fontes que os órgãos de informação estabelecem como
instrumento essencial para o seu funcionamento, reflecte, por um lado, a
estructura social e de poder existente e, por outro, organiza-se a partir das
exigências dos procedimentos produtivos. As fontes que se situam à
margem destas duas determinações, muito dificilmente podem influir, de
Las citas de opiniones de otras personas son presentadas para crear una trama de hechos que
mutuamente se validan a sí mismos”.
274
Além da credibilidade, as fontes institucionais ainda facilitam o trabalho do jornalista, tendo em
vista que se sabe onde encontrá-las. Pena observa, porém, que, na atualidade com a internet, grande
parte das informações que seriam ofertadas por fontes institucionais o são por páginas da internet,
blogs, portais, etc., que propiciam uma facilidade ainda maior na sua obtenção. O problema nesse
caso, é o déficit de credibilidade. PENA, Felipe. 2 ed. Teoria do jornalismo: São Paulo: Contexto,
2006. p. 62.
275
TUCHMAN, Gaye. A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de
objectividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. p.
74-90. Lisboa: Veja, 1993. p. 81.
276
WOLF, Mauro. op. cit. p. 199.
85
forma eficaz, na cobertura informativa.
277
Na percepção estruturalista a que Hall et. al. se vinculam, a utilização de
fontes oficiais é considerada como o exercício de um papel de definição primária. Os
jornalistas estão sempre pressionados pelo tempo e necessitando de algo que
confira objetividade ao seu texto, e dando origem à prática “de assegurar que as
afirmações dos media sejam, onde quer que seja, fundamentadas em afirmações
objectivas e autorizadas de fontes ‘dignas de crédito’”.
278
Para o autor, essa busca incessante por fontes dignas de crédito acaba por
figurar em exagerado acesso por parte dos que detêm posições institucionalizadas
privilegiadas, criando “a hierarquia da credibilidade”. Esta preferência da mídia os
transforma em “definidores primários” de tópicos.
A definição primária estabelece o limite de todas as discussões
subseqüentes através do seu enquadramento do problema. Este
enquadramento inicial fornece então critérios segundo os quais todas as
contribuições subseqüentes serão rotuladas de relevantes para o debate, ou
irrelevantes.
279
O problema que surge daí é o fato de, por privilegiar o aparecimento das
fontes oficiais na notícia, toda a definição da forma como deve ser abordado o fato
será segundo a ordem dominante, sem a permissão de rupturas ou contra-
definições. Por vezes o o que questionar quanto à imparcialidade e fidelidade
do texto, porém, deve-se reconhecer a tendência à reprodução simbólica da
estrutura de poder existente na ordem institucional da sociedade. Nesse sentido se
coloca o papel do jornalismo na manutenção do status quo. “Os filtros do poder nas
notícias do delito penetram de forma direta através das fontes que facilitam as
informações que depois serão transformadas em notícias”.
280
Assim, é a partir das
rotinas de produção das notícias que o jornalismo reproduz as definições dos
277
ibid. p. 198. Grifos no original.
278
HALL, Stuart et. al.. The social production of news: mugfging in the media. In: COHEN, Stanley;
YOUNG, Jock. The manufacture or news: Deviance, social problems & mass media. p. 335-367.
London: SAGE, 1981. p. 341. Tradução do original em inglês: “More importantly, here, these
professional rules give rise to the practice of ensuring that media statements are, wherever possible,
grounded in ‘objective’ and ‘authoritative’ statements from ‘accredited’ sources”.
279
ibid. p. 342. Tradução do original em inglês: “[...] the primary definition sets the limit for all
subsequent discussion by framing what the problem is. This is initial framework then provides the
criteria by which all subsequent contributions are labelled as ‘relevant’ to the debate, or ‘irrelevant’.”
280
BARATA, Francesc. El drama del delito en los mass media… p. 66. Tradução livre do original em
espanhol: “Las filtraciones del poder en las noticias del delito penetran de forma directa a través de
las fuentes que facilitan las informaciones que después serán transformadas en noticias”.
86
poderosos, sem estarem, de uma forma simplista, necessariamente a seu serviço.
Além da utilização de fontes dignas de crédito, outra forma de reproduzir
essas definições é a cobertura excessiva de acontecimentos pré-agendados, o que
torna a atividade mais fácil e barata, porém, leva os jornalistas à dependência da
instituição promotora.
281
Além disso, Hall et. al. buscam demonstrar que o processo de produção das
notícias pressupõe a sociedade como um consenso e, assim, auxilia na construção
desse consenso. Ao recorrer a suposições sobre o funcionamento e as crenças da
sociedade, ignora-se que, a despeito de dividirem a mesma cultura, as pessoas o
vivem de forma consensual. “Os pontos de vista ‘consensuais’ da sociedade
representam-na como se não existissem importantes rupturas culturais ou
econômicas, nem importantes conflitos de interesses entre classes e grupos”.
282
Os
enquadramentos tendem, portanto, a reforçar pontos de vista que se pensa serem
consensuais. Dentro de uma sociedade consensual, o papel da mídia é, entretanto,
apresentar os fatos que rompem com esse consenso, os acontecimentos
problemáticos, não sem antes definirem de que forma os mesmos devem ser
interpretados.
Dessa maneira, é possível afirmar que a dispersão da rede informativa, as
tipificações que orientam sua prática, a questão do profissionalismo, mediante todos
esses fenômenos objetivados, a notícia resultante termina por desempenhar o papel
de legitimar as relações de classe e poder existentes.
A objetividade continua sendo a ideologia do jornalismo, pertencente ao
profissionalismo jornalístico, e tem como uma de suas funções o controle nas áreas
discricionárias de atuação do jornalista.
283
Além disso, a objetividade garante duas
281
HALL, Stuart et. al. op. cit. p. 342. Segundo Traquina, a percepção sobre o papel das fontes
institucionais na notícia é o que traz a principal diferença entre as teorias estruturalista e interacionista
das notícias. Ambas as teorias concordam que é concedido espaço excessivo às fontes oficiais e isso
tende a legitimar o status quo. Porém, na teoria estruturalista, ressalta-se que as fontes oficiais detêm
um papel dominante em relação aos próprios jornalistas, reproduzindo a ideologia dominante, sendo
criticada pelo seu determinismo. A teoria interacionista, por outro lado, concorda com o papel
predominantemente conservador do jornalismo, no entanto, percebe uma relativa autonomia dos
jornalistas, atribuindo a ele a realização, por vezes, de práticas de contra-poder. TRAQUINA, Nelson.
Teorias do jornalismo: Por que as notícias são como são... op. cit. p. 180-201.
282
HALL, Stuart et. al. op. cit. p. 338. Tradução do original em inglês: “’Consensual’ views of society
represent society as if there are no major cultural or economic breaks, no major conflicts of interests
between clses and groups”.
283
SOLOSKI, John. O jornalismo e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho
jornalístico. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: Questões, teorias e estórias”. p. 91-100.
Lisboa: Veja, 1993. p. 96.
87
proteções às organizações, a de ao relatarem os fatos de forma objetiva, os
jornalistas não expressarem interpretações ou opiniões, ficando isso a cargo das
fontes, além da própria narração sobre o acontecimento, dada pelas fontes. Sendo
assim, o jornalista não é responsável pelas declarações, e sim as fontes citadas.
Outra proteção é quanto à sua manutenção no monopólio do mercado, dificultando a
concorrência no sentido de que não haverá um embate entre pontos de vista
político-ideológicos diversos, não dando margem ao sucesso do ponto de vista
contrário.
284
Acerca das fontes, entretanto, é necessário destacar que o jornal confere o
efeito que convém às fontes citadas. Ou seja, não será o discurso de todas as fontes
assumido como verdade, sendo que algumas delas irão inclusive incorporar o
discurso do próprio jornal, e outras tenderão a ficar relegadas como citações, as
quais o jornalista é obrigado a reproduzir por uma questão de defesa de sua
“imparcialidade”.
É necessário destacar, contra qualquer reducionismo que possa ser
compreendido acerca da adoção dessa teoria de base, que essas características
não significam que o jornal automaticamente irá definir a forma como a sociedade
compreenderá os fenômenos. Ele apenas trabalhará sob alguns pontos de vista que
vão adentrar na realidade social, mas serão objeto de recomposições em função
das interações sociais. Como nota Mouillad, pelo fato de o jornal não estar face a
face ao caos do mundo, e estar situado no fim de uma cadeia de transformações
que lhe “entregam um real já domesticado”,
285
ele apenas é um operador entre tantos
outros,
[...] porque o sentido que leva aos leitores, estes, por sua vez, também
remanejam-no a partir de seu próprio campo mental e recolocam-no em
circulação no ambiente cultural. Se, na origem, o acontecimento não existe
como um dado de 'fato', também não tem solução final. A informação não é
o transporte de um fato, é um ciclo ininterrupto de transformações.
286
Compreender assim a informação permite que se retire a exclusividade do
jornalismo na construção social da realidade. É necessário se ter em conta a
complexidade das interações sociais que levam, diariamente, a essas definições que
constituem a realidade social.
284
ibid.
285
MOUILLAUD, Maurice. op. cit.
286
ibid. p. 51.
88
1.2.3 O sistema penal nas notícias: controle social e legitimação
Os acontecimentos negativos costumam ter um grau de noticiabilidade
incomparável. Isso depende da existência ou não de outros valores-notícia, como
envolver países ou pessoas de elite, mas, de qualquer forma, o jornal sempre tem
espaço para as agressões e mortes. Os crimes, dentre os acontecimentos
negativos, possuem características ainda mais interessantes. Propiciam a busca por
um culpado, contra quem a sociedade possa se voltar, ao mesmo tempo em que
geram uma trama por vezes digna da ficção, com direito a novos capítulos a cada
dia. Violência e crime costumam estar, portanto, no topo de todos os valores notícia.
A construção que envolve as notícias sobre crimes, assim como todas as
outras, passa pela dispersão estratégica dos jornalistas, pelos valores-notícia e pela
utilização das fontes que tragam credibilidade. Apesar de romperem com a
normalidade dos acontecimentos diários, as notícias sobre crimes são também
aquelas em que a rotinização do trabalho que lhes dá origem é extrema.
A própria rede informativa se encontra formada de tal maneira que
normalmente há um repórter responsável por verificar os informes da polícia, as
operações realizadas pela mesma, assim como os flagrantes, as prisões e objetos
apreendidos. Isso significa que a própria pauta das notícias sobre crimes parte
desde de agências de controle social formal. Por si isso “provoca de entrada
um processo de seleção a respeito da realidade [...]”.
287
Após a determinação da pauta, os jornalistas saem a campo para cobrir os
acontecimentos. Como foi visto, nesta fase de recolha do material, as fontes
principais são novamente as oficiais, em alguns momentos intercalando-se com a
voz da vítima e de seus familiares. Dificilmente vai existir uma outra fonte que fale de
forma contrária, como por exemplo, o próprio sujeito rotulado como criminoso. “Em
geral, o criminoso, pela sua conduta, é tido como ter sido privado, juntamente com
outros direitos de cidadania, do seu ‘direito de resposta’ até ter pagado a sua dívida
287
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Los medios de comunicación de masas. In: BERGALLI, R. et. al.
(orgs.). El pensamiento criminológico II: Estado y control. p. 50-62. Bogotá: Temis, 1983. p. 58.
Tradução livre do original em espanhol: “provoca de entrada un proceso de selección respecto de la
realidad [...]”.
89
para com a sociedade”.
288
Assim, a principal característica das notícias sobre crimes é a quase total
dependência do papel dos definidores primários.
289
As agências de controle social
formal constituem o quase monopólio das fontes de notícias de crimes, normalmente
juntando-se em um coro solidário à vítima e contrário ao etiquetado como
“bandido”. “Isso significa que, onde parece haver um largo consenso e as
contradefinições quase o existam, as definições dominantes dirigem o campo de
significação de uma forma relativamente incontestada”.
290
Dentre essas agências, destaca-se a polícia, que sua atuação se nas
ruas, em contato direto com os acontecimentos. É a primeira agência por onde
passa o caso, o suspeito, a vítima, as testemunhas. É a fonte oficial do momento do
escândalo. “Estes serão os primeiros sinais do discurso do poder nos meios de
comunicação e sua presença marcará para sempre a notícia sobre o delito”.
291
O recurso às fontes oficiais acaba legitimando a sua atuação, tendo em vista
que são elas interessadas na reafirmação de seu papel.
Conseqüentemente, uma das áreas onde os media têm mais probabilidades
de ser bem sucedidos na mobilização da opinião pública dentro da estrutura
dominante de idéias é em questões relacionadas com o crime e a sua
ameaça à sociedade. Isto torna a via do crime unidimensional e
transparente no que diz respeito aos mass media e à opinião pública – onde
os assuntos são simples, incontroversos e claros. Por este motivo, o crime e
o desvio oferecem duas das principais fontes de imagens de poluição e
estigma na retórica do público.
292
Como visto, a característica principal da atuação dos órgãos formais do
288
HALL, Stuart et. al. op. cit. p. 355. Tradução do original em inglês: “By and large, the criminal, by
his actions, is assumed to have forfeited, along with other citizenship rights, his ‘right of reply’ until he
has repaid his debt to society”.
289
ibid. p. 354. Tradução do original em ingles: “In the area of crime new, the media appear to be
more heavily dependent on the institutions of crime control for their news stories than in practically any
other area”.
290
ibid. p. 355. Tradução do original em inglês: “What this amounts to, where there seems to be a very
wide consensus, and counter-definitions are almost absent, is that dominant definitions command the
field of signification relatively unchallenged”.
291
BARATA, Francesc. El drama del delito en los mass media… p. 67. Tradução livre do original em
espanhol: “Estas serán las primeras huellas del discurso del poder en los médios de comunicación y
su presencia marcará para siempre la noticia sobre el delito”.
292
HALL, Stuart et. al. op. cit. p. 356. Tradução do original em inglês: “Consequently, one of areas
where the media are most likely to be sucessful in mobilising public opinion within the dominant
framework of ideas is on issues about crime and its threat to society. This makes the avenue of crime
a peculiarly one-dimensional and transparent one so far as the mass media and public opinion are
concerned: one where issues are simple, uncontroversial and clear cut. For this reason, too, crime
and deviance provide two of the main sources for images of pollution and stigma in the public
rhetoric”.
90
sistema penal, em especial a polícia, é a seletividade. A partir de estereótipos e das
“teorias de todos os dias”, a polícia costuma procurar a criminalidade onde espera
encontrá-la, deixando imunes os fatos contrários à lei que estão de fora dessas
definições.
Então, ao reproduzirem o discurso das agências de controle penal sobre a
criminalidade, as notícias incidem no mesmo problema: também se voltarão contra
uma parcela da sociedade, bem como contra uma parcela de atos cometidos, os
crimes de rua.
293
“Essas representações de protótipos de criminosos e de protótipos
de vítimas o componentes essenciais das idéias falsas sobre o crime, na
moldação de nossas apreensões e na alimentação de nossas ansiedades”.
294
Ao mesmo tempo, é necessário que se tenha em conta que a utilização de
estereótipos acerca do desviante faz parte do próprio processo de produção das
notícias. “O estereótipo ligado aos desviantes pela mídia é um caminho de
simplificação da realidade. Isso não é uma distorção calculada do mundo real nem
uma cuidadosa reflexão dos eventos reais, mas antes é uma tradução da realidade
dentro dos estereótipos”.
295
Da mesma forma, a violência, ponto tão caro a se somar na configuração dos
valores que conferem a noticiabilidade ao fato, é reduzida a violência individual,
sendo sinônimo de criminalidade e de insegurança dos cidadãos. A violência
estrutural, e a violência institucional que é provocada pelo próprio sistema penal não
são vistas como violências, e têm baixíssima pontuação no quadro dos valores-
notícia.
Nesse aspecto, mostra-se o círculo vicioso que se forma: as notícias acabam
realimentando os estereótipos e o senso comum sobre o crime e os criminosos, e
posteriormente, ao construir novos relatos, se realimentarão, reproduzindo os
estigmas. É a dialética que move a construção social da realidade, na qual os meios
293
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. op. cit.
294
MADRIZ, Esther. op. cit. p. 94. Tradução livre do original em espanhol: “Estas representaciones de
‘prototipos criminalesy de ‘prototipos de víctimasson componentes esenciales de las ideas falsas
sobre el crimen, en el moldeado de nuestras aprehensiones y en la alimentación de nuestras
ansiedades”.
295
COHEN, Stanley; YOUNG, Jock. The process of selection. In: The manufacture of news:
Deviance, social problems, & mass media. p. 15-33. London: Sage, 1981. p. 18. Tradução livre do
original em inglês: “The stereotype carried of deviants by the media is a way of simplifying reality. This
is neither a calculated distortion of the real world nor an accurate reflection of real events but rather a
translation of reality into stereotypes”.
91
de comunicação ocupam um papel importantíssimo.
As conseqüências dessa estigmatização seletiva também têm lugar na
atuação dos jornalistas, tendo em vista que a propagação da imagem da pessoa
etiquetada como criminosa, em nível local, regional, nacional ou internacional, tem o
dom de criar um rótulo muito mais aferrado à pessoa do que a simples interação
social. Através desse raciocínio, as teorias sobre o desvio secundário e a construção
de carreiras criminosas são elevadas ao seu grau máximo.
Nos casos de notícias sobre crimes, o termo story ou ‘estória’, utilizados pelos
jornalistas ingleses e portugueses para mostrar que a notícia não é o próprio fato,
mas uma construção sobre ele, fica bastante evidente.
296
Normalmente busca-se a
vítima e o bandido, o lado do bem e o lado do mal, para que todos possam se
posicionar. É um discurso de conto de fadas, como aduz Bustos Ramírez, mas com
aparência de objetividade, autoridade e o máximo de credibilidade, “e isso
aumentado pelo profissionalismo tanto do jornalista como da fonte, a polícia”.
297
As notícias sobre crimes, então, normalmente legitimam a atuação das
agências oficiais de controle social. Mais importante que isso, o fazem através da
reiteração de algumas definições difundidas no senso comum a respeito do crime e
da criminalidade. Essas definições partem da ideologia penal dominante,
representada através de alguns princípios, definidos por Baratta, todos eles
contrapostos por teorias criminológicas desenvolvidas ao longo do século XX.
298
De
uma maneira geral, o discurso da mídia sobre o crime faz referência a pressupostos
clássicos da criminologia positivista, como a idéia de “tendência a cometer crimes”, a
separação entre bandidos e cidadãos que pagam impostos, a questão da
periculosidade, entre outros.
Isso ocorre não em função do enquadramento da notícia, mas também por
causa de uma questão anterior: a seleção dos fatos que serão objeto de notícias. Os
fatos criminosos mais propensos a serem noticiados são aqueles em que a vítima é
de classe média, branca e mulher, ou seja, o estereótipo perfeito de vítima, ao
mesmo tempo em que o agressor deve ser jovem, negro e pobre, ou seja, o
estereótipo perfeito do criminoso. Essas imagens refletem claramente a hierarquia
296
TUCHMAN, Gaye. Contando ‘estórias’. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: Questões,
teorias e “estórias”. p. 258-262. Lisboa: Veja, 1993.
297
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. op. cit. p. 59. Tradução livre do original em espanhol: “y ello aumentado
por la profesionalidad tanto del periodista como de la fuente, la policía”.
298
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal... op. cit.
92
de classe, raça e gênero, e, através delas, “uma complexa rede de idéias, conceitos
e códigos se depositam em nosso inconsciente”.
299
Como percebe Andrade, apesar de a criminologia positivista ter sido
abandonada no meio acadêmico, ganhou as ruas, o que se explica pelo
cumprimento de outras funções diferentes das prometidas. A mídia, por sua vez,
[...] passa a colonizar, com imensas vantagens, a função legitimadora
historicamente desempenhada pela Criminologia positivista e o conjunto
das ciências criminais operando com o mesmo senso comum,
criminologicamente modelado, na dimensão do ‘espetáculo’ de amplíssimo
alcance.
300
A forma de expor uma separação maniqueísta entre o bem e o mal, entre as
pessoas naturalmente criminosas e aquelas de bem, que anteriormente era
justificada pela criminologia positivista, é sustentada na atualidade pela mídia. “As
produções dramáticas tradicionais e parte da mídia tendem a perpetuar a idéia
simples e simplista – de que há os bons de um lado e os maus de outro”.
301
Dessa
maneira pode-se reafirmar o consenso, “para determinar quem está dentro e quem
está fora, em definitivo, para reafirmar o status quo”.
302
A utilização excessiva das fontes institucionais nas notícias sobre crimes tem
um significado ainda mais problemático do que em outras editorias. Isso porque
reafirmar o status quo traz a conseqüência de legitimar a violência do controle penal,
caracterizada, nos países latino americanos, pelo genocídio em marcha.
303
Além disso, diante da constatação de que a forma como a notícia é construída
propicia uma legitimação do status quo, em especial no recurso às fontes
institucionais, pode-se concluir que a mesma é um importante mecanismo de
controle social. Como explicitado, o controle social informal, em coro com o controle
social formal propiciam a fidelidade das pessoas aos valores do sistema. Ou seja, os
processos de estigmatização e etiquetamento dos desviantes ao sistema começam
através dos órgãos de controle social informal, como a família, a escola, a religião,
299
MADRIZ, Ester. op. cit. p. 97. Tradução livre do original em espanhol: “[...] una compleja red de
ideas, conceptos y códigos se depositan en nuestro inconsciente”.
300
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima... op. cit. p. 61.
301
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. 2
ed. Niterói: Luam, 1997. p. 56.
302
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. op. cit. p. 59. Tradução livre do original em espanhol: “Esta forma de
entregar la noticia criminal sirve, pues, para la reafirmación del consenso, para determinar quiénes
están dentro y quiénes están fuera, en definitiva para reafirmar el statu quo”.
303
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas... op. cit.
93
etc. E, diante disso,
Se alguma coisa ficou demonstrada, foi que a interação dos órgãos de
controle é quase perfeita. São quase inexistentes as contradições entre o
que transmite essa unidade essencialíssima da educação que é a família,
ou a Igreja, ou a televisão, ou a literatura infantil, etc., e as instituições de
tratamento.
304
A mudança de paradigma nas pesquisas em comunicação, ao perceber a
notícia como construção social, opõe-se à visão de que através dos MCM se
manipula a massa. Passa-se a considerá-los “como veículos de uma ideologia de
controle, dentro das características próprias de um sistema de mercado e de
consumo”.
305
Controle este que se reflete nas relações sociais, gerando o medo e a
insegurança apenas em relação a uma parcela da população.
Quanto mais se difunde o medo, maior é o controle social contra aqueles em
direção aos quais se orienta o temor. Dessa maneira, não é difícil perceber o papel
legitimador dos meios de comunicação de massa em relação à adoção de políticas
criminais autoritárias.
Se a isso acrescentarmos que a comunicação geralmente é um reforço de
outros meios de controle social informal (família, religião, educação), não
apenas porque, visando ao lucro, os meios de comunicação transmitem
justamente o que corresponde aos valores e expectativas existentes,
devemos concluir que a notícia, como a totalidade dos meios, é uma forma
de controle social.
306
Com efeito, se a teoria do labbeling approach demonstrou que o crime não
tem status ontológico, anterior à definição pelos órgãos de controle social, e é,
portanto, uma construção social, a mídia opera de forma decisiva nesse processo.
Os MCM, portanto, auxiliam as demais instâncias de controle social na construção
social da delinqüência “ao fundamentar sobre apenas um tipo de delinqüência a
informação de ‘tragédias’”, e na construção social do delinqüente “ao conformar o
estereótipo diferencial de delinqüente através da edição da notícia, seu lugar na
página, os caracteres utilizados, as fotos e o vocabulário particular para referir-se a
ele”.
307
Como mecanismo que traduz a continuidade entre controle social formal e
304
ANIYAR DE CASTRO, Lola. op. cit. p. 155.
305
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. op. cit. p. 58. Tradução livre do original em espanhol: “como vehículo
de una ideología de control, dentro de las características propias de un sistema de mercado y de
consumo”.
306
ANIYAR DE CASTRO, Lola. op. cit. p. 218.
307
ibid. p. 234.
94
controle social informal, a linguagem instrumentalizada pelos MCM produz uma
legitimação quotidiana do sistema penal. Com isso, a atuação de seus órgãos
encontra respaldo na “aniquilação conceitual”
308
dos desviantes produzida
diariamente pelos meios de comunicação, em especial pelas notícias. “E não é
apenas coincidente que a linguagem utilizada para justificar a acção contra qualquer
potencial grupo de perturbadores desenvolva, como um dos seus indicadores
críticos de fronteiras, o imaginário da criminalidade e da ilegalidade [...]”.
309
Dessa maneira, é contra o grupo dos que estão fora que as notícias vão se
voltar, e não apenas contra o provável agressor.
Os crimes tradicionais” se inscrevem no interior do estereótipo da
criminalidade do “senso comum”, e dominam as campanhas alarmistas
sobre eles. A opinião pública e os meios de comunicação de massas,
representam geralmente estes delitos adotando um esquema de repartição
dos papéis da vítima e do agressor que corresponde normalmente, em
grande medida, à relação entre grupos sociais privilegiados e “respeitáveis”
de uma parte, e grupos marginais e “perigosos” da outra (estrangeiros,
jovens, tóxico-dependentes, pobres, sem família, desempregados ou sem
qualificação profissional).
310
A partir dessas constatações, percebe-se que o papel da dia não é
somente o de auxiliar na legitimação do sistema penal e na manutenção do status
quo. Contextualmente, as campanhas midiáticas em torno do medo da violência
coincidem com movimentos de política criminal que reivindicam o aumento da
repressão penal, abordados no tópico 1.1.4.
1.2.4 O discurso da emergência e a relegitimação do sistema penal
A despeito de todas as descobertas teóricas sobre as suas funções reais e o
descompasso disso com suas promessas, convive-se na atualidade com a busca
por uma relegitimação do sistema penal. E, além da legitimação quotidiana do
308
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. op. cit.
309
HALL, Stuart et. al. op. cit. p. 356. Tradução do original em inglês: “It is not merely coincidental that
the language used to justify action against any potential group of trouble-makers deploys, as one of its
critical boundary markers, the imagery of criminality and illegality […]”.
310
BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la constitución... op. cit. p. 31.
Tradução livre do original em espanhol: “Los crímenes ‘tradicionales’ se inscriben al interior del
estereotipo de la criminalidad del ‘sentido común’, y dominan las campañas alarmistas sobre ellos. La
opinión pública y los medios de comunicación de masas, representan generalmente estos delitos
adoptando un esquema de repartición de los roles de la víctima y del agresor que corresponde
normalmente, en gran medida, a la relación entre grupos sociales privilegiados y ‘respetables’ de una
parte, y grupos marginales y ‘peligrosos’ de la otra (extranjeros, jóvenes, tóxico-dependientes, pobres,
sin familia, desempleados o sin calificación profesional)”.
95
sistema penal operada pelos discursos dos MCM, nota-se que a atualidade é fértil
em exemplos onde os mesmos, mais do que operarem essa legitimação auxiliam na
relegitimação.
Essa tendência encontra respaldo em outras características marcantes das
notícias, o sensacionalismo e a espetacularização. Essas características permeiam
todas as editorias dos jornais, porém, é no crime que atingem sua máxima
significação.
É importante ter em conta que a notícia é uma mercadoria, quando se
considera que são produtos de empresas como quaisquer outras. Dessa maneira, é
necessário criar uma aparência de valor de uso no jornalismo, o que o leva “a
sensacionalizar a vida política, econômica e social de determinada formação
histórica”.
311
De qualquer forma, pode-se afirmar que o conceito de notícia é
orientado pelo singular, ou seja, pelo diferente, fora do comum. O problema é que o
excesso de singularização, como ocorre nos chamados jornais sensacionalistas leva
que o seu conteúdo seja conservador. “[...] Os jornais sensacionalistas geralmente
produzem um discurso de reforço dos valores, como meio para excitar não apenas
as sensações como também os preconceitos morais do público”.
312
O sensacionalismo garante os lucros necessários à manutenção das
empresas de comunicação. “O combate ao crime, como o próprio crime e
particularmente o crime contra os corpos e a propriedade privada, dá um excelente e
excitante espetáculo, eminentemente assistível”.
313
Diante disso, o sensacionalismo
é uma forma de transformar o acontecimento de tal forma que ele se torne mais
atrativo ao consumidor.
[...] os comunicadores tentam ganhar expectação e diversão pintando a
criminalidade como algo inaudito, enigmático, sinistro, extraordinário e
misterioso. O acontecimento criminal é grotesco; suscita um agradável
estremecimento de horror, faz possíveis a complacência e a altivez
moralizantes do não criminal, que pode destacar-se do autor do fato
punível.
314
311
MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia: Jornalismo como produção de segunda
natureza. 2 ed. São Paulo: Ática, 1989. p.30.
312
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: Para uma teoria marxista da notícia. Porto
Alegre: Ortiz, 1997. p. 198.
313
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999. p. 126.
314
CERVINI, Raúl. Incidencia de las “mass media” en la expansion del control penal em
latinoamerica. Revista brasileira de ciências criminais, São Paulo, ano 2, n.5, p. 37-54, janeiro-
março 1994. p. 46.
96
Ao mesmo tempo em que o crime é informação, também é entretenimento, o
que pode ser exemplificado através de programas pseudojornalísticos como Linha
Direta e Brasil Urgente. Nesse contexto, deve-se ressaltar que a espetacularização é
uma das características que, em contraponto à busca pela credibilidade, acaba por
tomar conta das notícias sobre crimes.
A espetacularização da realidade pela mídia foi exposta e criticada por
Debord, em 1967, em um texto polêmico sobre a sociedade francesa de sua época.
Expõe que a vida das sociedades onde as condições de produção modernas se
sobrepõem é uma acumulação de espetáculos, no sentido de que tudo passou a ser
vivido a partir de representações, não mais diretamente.
315
Explica ele que “a
realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a
essência e a base da sociedade existente”.
316
A despeito da radicalidade de suas
afirmações, a idéia de que a imagem se sobrepõe à realidade tem respaldos em
outras teorias.
Um exemplo claro disso é a forma como se dá a política na atualidade.
Constata-se que a dimensão do espetáculo em volta da questão da segurança
pública busca ocultar o fato de que o sistema penal não cumpre e nem tem o
objetivo de cumprir com a sua função declarada. O sistema penal exerce, na
verdade, uma função simbólica diante da opinião pública e “o déficit da tutela real
dos bens jurídicos é compensado pela criação, junto ao público, de uma ilusão se
segurança e de um sentimento de confiança no ordenamento e nas instituições que
tem uma base real cada vez mais fragilizada”.
317
Assim, confirmando a lógica do espetáculo, pode-se afirmar que a crise da
função instrumental da justiça penal demonstra queo é ela que serve para
resolver conflitos,
[...] são determinados problemas e conflitos que ao atingirem um certo grau
de interesse e de alarme social no público se convertem num pretexto para
uma ação política destinada a obter não tanto funções instrumentais
específicas, mas sim uma outra função de caráter geral: a obtenção do
consenso buscado pelos políticos na chamada “opinião pública”.
318
Os conflitos que legitimam a adoção de posturas repressoras são justamente
315
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
316
ibid. p.15.
317
BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal... op. cit. p. 22.
318
ibid. p. 23.
97
propagados pelo sensacionalismo da mídia. Os sentimentos de medo e insegurança
também são dessa forma reproduzidos. Apesar de o sentimento de insegurança
possivelmente vir a se originar em situações estruturais, como é o caso do
desemprego, da instabilidade que caracterizam o período atual, o medo não se
dirige diretamente contra ele, sendo canalizado contra o crime. A luta contra essa
insegurança é canalizada na adoção de medidas contra uma criminalidade
construída socialmente como a pior ameaça à sociedade.
Cohen explica que a natureza da informação recebida sobre os
comportamentos obtidos como desviantes são uma crucial dimensão para entender
a reação a ela. Sendo essas informações transmitidas pelos meios de comunicação
de massa e, portanto, em segunda mão, sabe-se que a informação foi
processada, e, para isso, poderia ter tido definições alternativas, dependendo da
forma de coleta e apresentação. Além disso, as escolhas realizadas para o
processamento da informação são condicionadas por constrangimentos comerciais
e políticos. Essas escolhas refletem também o fato de que a mídia por muito tempo
operou-se como agente de indignação moral, e a partir da transmissão das notícias
pode gerar inquietações, ansiedade, indignação ou pânico.
319
Essa sensação de
pânico pode levar ao sentimento de que os valores precisam ser protegidos,
gerando assim as pré-condições para a criação de novas regras ou definição de
problemas sociais.
320
A partir dessas informações processadas também se modifica a forma de
controle social, sendo que “a galeria de tipos folclóricos – heróis e santos, tanto bons
como bobos, vilões e demônios é publicizada não exatamente na tradição oral e
no contato face a face, mas para audiências muito extensas e com recursos
dramáticos muito grandes”.
321
Assim, dizer que as informações são expostas em
segunda o para a sociedade significa que isso ocorre de forma que “a ação ou
atores interessados sejam descritos de forma altamente estereotipada”.
322
Esse estereótipo se refere à construção social da delinqüência e do
delinqüente, concluindo-se que os dois grandes princípios tipicamente seguidos nas
informações sobre delitos são o princípio da dicotomia entre bons e maus e o
319
COHEN, Stanley. Folk devils and moral panics. 3 ed. London and New York: Routledge, 2002.
320
ibid.
321
ibid. p. 8.
322
ibid.
98
princípio do suspense.
323
Vemos, assim, passo a passo, como a construção social da notícia,
mediatizada pelo poder econômico e político, vai gerando atitudes e valores,
isto é, elementos de juízo, para que se crie um sentimento de insegurança
que é absolutamente seletivo. Esse processo indica o que é que se deve
temer, deixando na sombra situações e condutas abertamente danosas
que, entretanto, não causam temor.
324
Diante disso, apenas a parcela mais frágil da população é responsabilizada
pelo problema da criminalidade, sendo o sentimento de insegurança voltado contra
ela. Cria-se uma rejeição a essa parcela da população, o que origina discursos
reacionários, “canalizando-se contra ela a agressividade coletiva, e não contra os
detentores do poder”.
325
Para atender à aclamada demanda por segurança pública, o aumento da
repressão penal toma o lugar dos investimentos sociais, implementando-se não
somente medidas jurídicas autoritárias com a edição de leis, mas da modificação da
atuação até mesmo da polícia nas abordagens que faz nos bairros pobres, e na
própria execução penal. A delinqüência é entendida, portanto, como “um problema
de ordem pública” e não como problema social.
326
A produção do medo irreal frente à criminalidade e as atividades de índole
política criminal, que provocam uma punitividade injustificada são os dois planos de
efeitos relacionados por Hügel para o excesso de cobertura de fatos violentos pela
mídia.
327
Pelo fato de que o alarde de crimes violentos é muito grande, causa-se a
impressão perante o público de que eles acontecem de forma tão corriqueira quanto
os pequenos crimes de rua.
Para Zaffaroni, a atuação dos meios de comunicação de massa diante dos
sistemas penais latino americanos justifica o trabalho de suas agências pelo simples
fato de que eles são os seus aparelhos de propaganda. Assim, o poder
“configurador, disciplinar, normalizador ou verticalizante” do sistema penal latino
americano se justifica através de seu aparato de propaganda, especialmente quando
323
ANIYAR DE CASTRO, Lola. op. cit.
324
ibid. p. 216.
325
ibid. p. 217.
326
ibid. p. 234.
327
HÜGEL, Carlos. La patología de la comunicación o el discurso sobre criminalidad en los medios
masivos. In: FONT, Enrique A.; GANÓN, Gabriel E. H.; SAGARDUY, Ramiro (orgs). Criminología
crítica y control social. Orden o justicia. p. 39-49. Rosario: Juris, 2000. p. 40.
99
se percebe o grande espaço destinado à violência na mídia.
328
“Eles são as fábricas
de realidade, que induzem os medos que legitimam e desencadeiam as campanhas
de lei e ordem quando o poder das agências encontra-se ameaçado”.
329
Desse
ponto de vista, os meios de comunicação acabam assumindo importantes funções,
como a fabricação seletiva dos estereótipos do criminoso, chegando a afirmar que
“nossos sistemas reproduzem sua clientela por um processo de seleção e
condicionamento criminalizante que se orienta por estereótipos proporcionados
pelos meios de comunicação de massa”.
330
Considera que os meios de
comunicação de massa “são hoje elementos indispensáveis para o exercício de
poder de todo o sistema penal”.
331
No contexto brasileiro, a indução de medos também sempre ocorreu com o
objetivo de adoção legitimada de estratégias de neutralização e disciplinamento do
povo. A partir dessa observação insere-se a tese de Malaguti Batista, “de que a
hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a difusão do medo
como mecanismo indutor e justificante de políticas autoritárias de controle social”.
332
A autora analisa situações em que na atualidade essa difusão do medo, com a
contribuição decisiva dos meios de comunicação de massa, auxiliou na adoção de
práticas que geraram muitas mortes e conflitos, como a ocupação militar das favelas
cariocas na década de 1990. Diante disso, mostra que “o medo é a porta de entrada
para políticas genocidas de controle social”.
333
Em função da noticiabilidade dos crimes graves e da difusão de estereótipos
do criminoso e da vítima, que não correspondem à realidade, tendo em vista que o
crime está distribuído em todas as parcelas da população, o jornalismo também
contribui com a difusão de medos contra as mesmas pessoas. Delimita-se dessa
maneira o inimigo da sociedade, hoje representado perfeitamente no Brasil pelo
pobre favelado.
Assim, “a implantação de um sistema penal que tem tradição genocida,
seletiva e hierarquizadora”, encontra reforço na aliança entre a estrutura social
328
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalização e sistema penal na América Latina... op. cit. p. 63.
329
idem. Em busca das penas perdidas... op. cit. p. 129.
330
ibid. 133.
331
ibid. p. 127.
332
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história.
2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 23.
333
idem. Medo, genocídio e o lugar da ciência. Discursos sediciosos: crime, direito, sociedade, Rio
de Janeiro, nº 7 e 8, 1º e 2º semestres de 1999, p. 135-141. p. 135.
100
brasileira, onde ainda permanece a herança escravocrata, aliada aos fenômenos
inerentes ao capitalismo tardio. O medo permite esse reforço, e o papel da mídia
nesse sentido é essencial, garantindo, através de um necessário discurso moral
sobre o crime, a perpetuação de “um sistema penal de extermínio”.
334
No jornal
residem os discursos a partir dos quais se exige a adoção de medidas, que,
segundo Malaguti Batista, possuem muitas vezes a característica de discursos
higiênicos. No Rio de Janeiro é comum a utilização de expressões como “operações
de limpeza”, nos jornais, para designar atuações da polícia em incursões nas
favelas, com o resultado de exterminar as pessoas que constituem a sujeira.
335
Tendo em vista que se constrói a idéia de que a favela é o caos e a sujeira, a ordem
e a limpeza podem ser conseguidas através da eliminação. “O discurso que
animaliza o mal recorre a duas figuras: extermínio ou limpeza, mas tanto uma
quanto a outra têm o mesmo sentido, eliminação. Os discursos higiênicos conduzem
ao extermínio”.
336
Isso demonstra que a reprodução dos discursos de emergência no jornalismo
pode contribuir com o genocídio quotidiano das nossas regiões marginais,
demonstrando que resta pouco do ideal liberal e democrático que envolveu
historicamente a imprensa. Através desse meio, os discursos mais conservadores e
autoritários se reproduzem, legitimando a tortura e a morte, características de um
Estado ditatorial.
Alguns programas de televisão que envolvem a questão do crime foram
objeto de análise por autores, e os resultados dessas pesquisas esclareceram a
chave do papel da mídia no sistema penal.
Um exemplo disso é o estudo de Kleber Mendonça sobre o programa Linha
Direta, ao verificar que a construção da verdade jornalística não diz mais respeito à
objetividade. Diz respeito, isto sim, à
[...] capacidade de uma produção de sentido específica, construída a partir
da imagem como vetor consensual que, ao produzir o efeito de realidade,
constrói também a certeza da incompetência do poder blico, o nico
social fruto da sensação de catástrofe iminente e o conseqüente desejo de
vingança, que será canalizado para a efetivação da denúncia.
337
334
idem. O medo na cidade do Rio de Janeiro... op. cit. p. 106.
335
ibid. p. 116-121.
336
ibid. p. 116.
337
MENDONÇA, Kleber. A punição pela audiência: um estudo do Linha Direta. Rio de Janeiro:
Quartet, 2002. p. 52-53.
101
Com isso, o programa auxilia na construção de uma realidade, que leva,
diretamente, à prisão de pessoas que certamente ficariam mais tempo foragidas.
Passa a mídia a ser, portanto, mecanismo o apenas de controle social informal,
mas na medida em que se insere como órgão receptor de denúncias, repassando-as
à polícia, e acompanhando a prisão com as câmeras em punho, um mecanismo de
controle social formal. Além dos direitos afrontados pelo programa pela própria
exposição pública dos foragidos, por vezes sequer condenados (inviolabilidade da
imagem, honra, as garantias da presunção de inocência, e mesmo do princípio da
dignidade da pessoa humana), o programa ainda é investido de um “poder de
polícia” que provocou e provoca fatos terríveis, como linchamentos e mortes quando
do reconhecimento dos foragidos.
338
Nesse sentido, Nilo Batista demonstra que no capitalismo tardio, não mais
como identificar a mídia apenas como agência de comunicação social do sistema
penal, com uma função comunicativa. A mídia vem assumindo nesse contexto um
papel de agência executiva do sistema penal, ao influenciar diretamente no curso
das investigações policiais ou mesmo do processo.
339
A questão é que a proposta de verdade exposta na mídia por vezes se
contrapõe à verdade jurídica, e diante dela consegue prevalecer.
340
A partir da
análise do programa Linha Direta, somada a análises de Deleuze sobre a sociedade
de controle, Mendonça elabora uma hipótese inspirada na análise foucaultiana do
sistema punitivo das sociedades de soberania e disciplinar. Para ele, as novas
relações de poder advindas na época das transmissões em tempo real,
diferentemente da soberania e da disciplina, implicam a importância da imagem, e
não do controle sobre o corpo ou sobre o tempo produtivo.
341
Diante dessa percepção, a sociedade atual parece começar a incluir uma
nova modalidade de execução de penas, qual seja “a execução pública de uma
imagem respeitável, condenação decretada a partir de verdades instauradas não
somente pela Justiça, mas também por um veículo mediático com autoridade
338
ibid. p. 114.
339
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos sediciosos: crime, direito
e sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n. 12, p. 271-288, 2º semestre de 2002.
340
ibid. p. 125.
341
ibid. p. 128.
102
reconhecida pela sociedade”.
342
Sendo assim, os meios de comunicação de massa executam tarefas
inerentes às atividades das agências do sistema penal. Produzem um inquérito por
vezes com direito a gravações de imagens e voz, acusa, condena e ainda executa a
pena. A começar pela difusão de discursos que legitimam atitudes arbitrárias por
parte das agências executivas, dentro da idéia de que “bandido deve sofrer”, e de
que os direitos fundamentais significam “tolerância à bandidagem”,
343
os meios de
comunicação de massa possuem ainda a tarefa de executar a pena de execração
pública do “criminoso”, que pode inclusive sequer ter sido acusado formalmente.
Desta forma retomou-se nos nossos dias a antiga função infamante de
intervenção penal que caracterizou o direito penal pré-moderno, onde a
pena era pública e o processo penal corria em segredo. Apenas que a
berlinda e o colar de ferro hoje foram substituídos pela exibição pública do
acusado nas primeiras páginas dos jornais ou na televisão, e isto não após
a sua condenação mas após a sua incriminação, ainda quando o imputado
é presumido inocente.
344
As violações à pessoa realizadas pelos próprios meios de comunicação de
massa podem ser vistas no abuso em relação à utilização da imagem dos acusados,
bem como a divulgação de sua identidade e o mais grave: a afirmação de sua culpa
antes que haja sentença transitada em julgado. A pena instituída pelos meios de
comunicação é a execração pública do suspeito ou acusado, a violação de sua
imagem, honra, estado de inocência, sua estigmatização, de forma irrecuperável.
Mesmo partindo da idéia de que os meios de comunicação são apenas uma
das instâncias de controle social informal e que, inclusive, as informações
divulgadas por meio deles passa por um complexo processo de transformação a
partir das interações sociais, é possível afirmar que os mesmos ocupam um lugar
central. A começar pelo seu papel no controle social informal, na legitimação do
sistema, na sua relegitimação através das campanhas de lei e ordem, e terminando
na sua atuação periódica como uma agência mesmo do controle social formal.
A partir dessa base teórica, o próximo capítulo buscará enfocar o estudo da
construção social da criminalidade nos conflitos agrários. Além da delimitação do
objeto, busca-se com essa análise ressaltar o fenômeno especificamente nesse
342
ibid. p. 129.
343
WACQÜANT, Loïc. As prisões da miséria... op. cit. p. 10.
344
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 588.
103
âmbito, o que é também tarefa complexa, pois as relações sociais no campo têm
arraigadas a história da concentração da terra do Brasil, e a luta contra essa
concentração tem um efeito simbólico a ser analisado.
104
2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS CONFLITOS AGRÁRIOS NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
A partir dos pressupostos teóricos analisados no capítulo anterior, em
especial a convicção de que a realidade é socialmente construída, é necessário
discutir a forma como ocorre a construção social dos conflitos agrários, em especial
da parte das agências de controle social, formal e informal. O objetivo é o de
verificar de que maneira esses conflitos são delimitados, diante da percepção de que
as relações sociais se caracterizam, desde o princípio, pela conflitualidade.
345
Assim, a primeira parte (2.1) fará um percurso histórico na realidade agrária
brasileira, perpassando as diversas violências que sempre estiveram presentes no
campo. Essa subseção se justifica pela compreensão de que os conflitos sociais têm
uma historicidade, de forma a dar ênfase, como observa Tavares dos Santos, “às
práticas sociais dinamizadoras dos processos históricos e sociais, em uma visão da
História como movimento de lutas sociais em um campo de resultados históricos
possíveis e não determinados”.
346
Nessa análise, serão identificados os problemas que caracterizam a própria
questão agrária, destacando-se a presença da violência estrutural como pano de
fundo da conflitualidade no campo. É importante destacar aqui que, a despeito de se
conhecer a problemática das desigualdades e opressões de raça e gênero, esse
capítulo deverá privilegiar a abordagem de classe.
na história recente, buscar-se-á analisar o surgimento dos movimentos
populares de luta pela terra, considerando essa luta como uma nascente de novos
conflitos, porém, como uma resposta à conflitualidade presente no campo. A
resposta a isso, ao chamado “dilaceramento da cidadania” por Tavares dos
Santos,
347
deverá ser analisada no marco da cidadania coletiva, em contraponto à
345
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial.
Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (NERA). Artigo do mês, jul.-ago.
2006. Disponível em: <http://www2.prudente.unesp.br/dgeo/nera/PDF/Desenvolvimento%20
territorial.pdf> Acesso em: 10 jul. 2007. p. 38.
346
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Por uma sociologia da conflitualidade no tempo da
globalização. In: TAVARES DOS SANTOS, José Vicente (org.). Violências no tempo da
globalização. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 12
347
idem. A cidadania dilacerada: Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 37, p. 131-148,
junho de 1993. p. 134.
105
cidadania liberal.
348
Será estudado em particular o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), por se constituir no movimento de maior organização no país e com o
maior número de adeptos. Em função disso, a sua principal forma de reivindicação,
as ocupações de terras, serão abordadas.
Ainda no primeiro subcapítulo, busca-se resgatar a abordagem do primeiro
capítulo a respeito da construção social da realidade, para identificar a forma como
se constrói socialmente os conflitos agrários pelas agências de controle social formal
e informal. Assim, se intentará verificar de que forma essas agências de controle
delimitam, dentre toda a conflitualidade existente historicamente no campo, aqueles
conflitos que são relevantes para o sistema de controle penal. Ou seja, diante de
toda a conflitualidade e diferentes manifestações de violência no campo, quais são
os conflitos percebidos pelo sistema penal. Parte-se da percepção de que em uma
sociedade punitiva, baseada em pressupostos absolutamente maniqueístas, a
despeito da complexidade dos conflitos, normalmente se busca delimitar quem é o
inimigo contra quem o sistema penal e a opinião púbica devem se voltar.
o segundo subcapítulo (2.2) estará voltado à construção social dos
conflitos agrários pelos meios de comunicação de massa, em especial, pelo
jornalismo. O objetivo é o de verificar de que maneira isso ocorre, buscando
relacionar com a abordagem teórica realizada no primeiro capítulo. Parte-se de um
estudo do jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul, dos meses de novembro de 2006
a abril de 2007, para chegar às análises sobre o assunto e, posteriormente, trazer
uma visão mais ampla sobre a relação entre conflitos agrários, sistema penal e
mídia na reprodução da violência estrutural no campo.
2.1 Concentração da terra e relações sociais no campo: os moinhos de gastar
gente no século XXI
Se for possível afirmar que existe no Brasil um sistema penal subterrâneo,
349
que nega a existência de um Estado Democrático de Direito, constituindo-se em
ações que desconhecem os direitos humanos, inclusive da parte de membros do
348
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania: Do direito aos direitos humanos. São Paulo:
Acadêmica, 1993. p. 129.
349
ANIYAR DE CASTRO, Lola. op. cit. p. 128. cf. 1.1.3 supra.
106
poder público, ele se faz ainda mais presente no campo.
A despeito dos muitos avanços em matéria de direitos fundamentais que as
constituições e leis ao longo dos tempos foram propiciando ao Estado de Direito
brasileiro, no campo essa história muito pouco tempo chegou. O poder dos
coronéis, um poder sobre toda a vida que se desenvolve em seu território, em
alguns locais ainda se mantém.
Por isso, para se tratar sobre a conflitualidade e as violências no campo, é
importante verificar, de que maneira as políticas que mexeram no estatuto da
propriedade da terra, da produção agrícola, bem como da mão-de-obra e as
relações sociais, formaram-se e desenvolveram-se ao longo dos anos, até meados
do século XX.
Diante de tantos enfoques que poderiam ser relevantes nessa parte histórica,
optou-se por trabalhar especialmente com a questão da propriedade da terra, com
ênfase na formação e manutenção dos latifúndios, e na escravidão negra,
principalmente a forma como se deu a sua proibição e o surgimento das novas
relações sociais no campo a partir daí. Sua relevância e correlação para a questão
agrária e o controle social no campo nos dias atuais fica evidente na afirmação de
Martins: “É inócuo discutir a questão agrária sem situá-la como incontornável
questão residual da solução que, no passado, a sociedade brasileira deu à questão
do escravismo”.
350
O subcapítulo é dividido em quatro partes. Na primeira, busca-se estudar as
origens da questão agrária no Brasil (2.1.1). Na segunda, discute-se a questão
agrária no período pós-ditadura, com foco político e jurídico (2.1.2). A terceira parte
analisa a questão das violências no campo (2.1.3), abordando-se principalmente o
surgimento dos movimentos sociais e a reação à violência estrutural. Concluindo-se,
na quarta parte, com uma abordagem sobre a relação entre violência no campo e a
atuação do sistema penal na sua reprodução (2.1.4).
350
MARTINS, José de Souza. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: EDUSP, 2000. p.
12.
107
2.1.1 A concentração de terra e a promessa de reforma agrária no Brasil: o
surgimento dos grupos organizados de luta pela terra
A divisão da terra encontrada pelos colonizadores portugueses em enormes
sesmarias foi o início do sério problema dos latifúndios concentrados nas mãos de
alguns poucos proprietários abastados no Brasil. Constata-se que a própria forma de
colonização do país condicionou essa situação. Isso porque “a obra política e
comercial da colonização tinha como ponto de apoio a distribuição de terras”.
351
Para realizar essa distribuição, foi adaptado o instituto das sesmarias, o qual era
utilizado em Portugal à época da colonização brasileira, mas desvirtuando-o.
352
O sistema de sesmarias era um empreendimento de alto custo e, portanto,
exigia que os donatários tivessem elevado poder econômico. Tal sistema era
[...] marcado pela monocultura extrativista e predatória, com a valorização
do detentor de grandes extensões de terra ainda que improdutivas, da
formação de uma cultura latifundiária, onde se cultua o senhor, o
proprietário, que nunca poderia trabalhar manualmente e se discrimina o
trabalho, paga-se pouco por ele, às vezes nada.
353
Diferentemente do objetivo pelo qual era utilizada em Portugal, “[...] a
sesmaria, meio jurídico para apegar a terra à capacidade de cultivo, serviu para
consagrar as extensões latifundiárias”.
354
Interessante de se notar que logo nos
primeiros anos de colonização, a produção para a exportação ganhou o primeiro
plano no Brasil.
355
“Entra-se, com o desvirtuamento do sentido do sistema sesmarial,
no reino do açúcar, com a monocultura e o escravo africano”.
356
A escravidão foi um dos traços que caracterizaram a formação social, política
e econômica do meio rural no Brasil, iniciada primeiramente com a tentativa de
351
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 11 ed. São
Paulo: Globo, 1997. p. 123.
352
ibid. p. 124. ‘Sesmarias’ na linguagem das Ordenações ‘são propriamente as datas de terras,
casais ou pardieiros, que foram ou são de alguns senhores e que, em outro tempo, foram lavradas
e aproveitadas e agora não o o”. [...] “A distribuição de terras com o fim de agricultar os campos,
cobrindo-os de cereais, cede lugar à concessão de florestas para povoar. O cultivo viria por outro
meio: pelo índio escravo e pelas plantações financiadas para o açúcar”. ibid. p. 125.
353
VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária: o direito face aos novos
conflitos sociais. Leme: de Direito, 1998. p. 65.
354
FAORO, Raymundo. op. cit. p. 126.
355
ibid. p. 125.
356
ibid. p. 127.
108
utilização do trabalho indígena.
357
Porém, tendo sido proibida em 1750, foi
substituída por braços de negros que eram traficados do continente Africano. Os
africanos começaram a ser importados na segunda metade do culo XVI,
mantendo-se até 1850.
358
Apesar de na sua maior parte os escravos negros trabalharem nos latifúndios
de produção de monoculturas, como a cana de açúcar, sua força de trabalho
também era utilizada nas cidades. “A escravidão penetrava em todas as classes, em
todos os lugares, em todos os desvãos da sociedade: a sociedade colonial era
escravista de alto a baixo”.
359
Os escravos não eram tratados como seres humanos,
inclusive no que se refere à legislação. Eram coisas, sendo que sua vida e
integridade física ficavam completamente a cargo de seus senhores.
O uso da violência física por parte dos senhores era regra nessa relação,
sendo que diariamente castigos privados, físicos e cruéis, comumente seguidos de
morte, eram infligidos aos escravos. Além disso, nem é necessário mencionar a
violência cotidiana, representada pelos grilhões presos aos seus membros para que
não fugissem à noite, às ssimas condições de vida, saúde e alimentação. Essa
ação punitiva cruel por parte dos senhores de escravos contra os negros foi
significativa. “A predominância de um poder punitivo doméstico, exercido
desregulamentadamente por senhores contra seus escravos, é facilmente
demonstrável, e constituirá remarcável vinheta nas práticas penais brasileiras, que
sobreviverá à própria abolição da escravatura”.
360
Com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, e, posteriormente, com a
Declaração de Independência, em 1822, o sistema de sesmarias deu lugar ao
regime de posses, ou seja, “a ocupação da terra por aquele que a explora, ergue
357
Para uma abordagem aprofundada sobre o papel dos indígenas, portugueses e negros na
formação social brasileira, bem como as suas relações sociais, cf. FREIRE, Gilberto. Casa grande e
senzala. 51 ed. São Paulo: Global, 2006.
358
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001. p. 19. Ao falar sobre a gestação étnica do povo brasileiro, Ribeiro traz em um de
seus tópicos os processos violentos que levaram a sua constituição, através do subtítulo “Moinhos de
gastar gente”. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
359
CARVALHO, José Murilo de. ibid. p. 20.
360
ZAFFARONI; E. Raúl ; BATISTA, Nilo ; et. al. Direito penal brasileiro. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2003. p. 414. Como nota Ribeiro, “Aí está a racionalidade do escravismo, tão oposta à
condição humana que uma vez instituído se mantém através de uma vigilância perpétua e da
violência atroz da punição preventiva”. RIBEIRO, Darcy. op. cit. p. 119.
109
benfeitorias, geralmente utilizando-se tão só da força de trabalho familiar”.
361
A partir
de então, possibilitou-se o surgimento de pequenas propriedades. Em relação ao
trabalho escravo, entretanto, a Constituição de 1824 sequer o mencionou,
mantendo-se as relações sociais que caracterizaram o Brasil colônia. Com a
diferença de que, nesse período, o controle sobre a população negra, e de sua
movimentação, fez-se sentir em função do medo que as pequenas revoltas dos
escravos causavam após a rebelião no Haiti.
A sociedade imperial escravocrata brasileira, rígida e hierarquizada como a
colonial, precisava também de um medo desproporcional à realidade para
manter violentas políticas de controle sobre aqueles setores que estavam
potencialmente a ponto de rebelar-se e implantar a “desordem e o caos”,
tamanha a escala de opressão em que se encontravam.
362
Dessa maneira, possibilitou-se maior opressão aos negros, não mais vistos
apenas como coisas ou como animais, e sim como potenciais inimigos a se
combater. Algumas revoltas, como a dos malês, na Bahia, intensificaram essa visão,
sendo que o próprio discurso da época, início do positivismo criminológico, criava
as provas científicas necessárias para justificá-la.
363
Mas não há como negar, tenha ou não tenha havido maior movimentação
escrava, que, na percepção da elite, ela estava presente e despertava
receios tanto no que se referia à segurança externa como à interna.
Percebia-se a fraqueza sica de um país que não podia contar com boa
parte de sua população para lutar e que tinha enorme retaguarda a proteger
contra um inimigo interno.
364
Além disso, apesar de a Constituição de 1824 ser caracterizada pelo cunho
361
ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O acesso à terra no Estado Democrático de Direito.
Frederico Westphalen: da URI, 1998. p. 72.
362
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro... op. cit. p. 30.
363
Zaffaroni observa que o século XIX foi o período de consolidação do saber criminológico racista-
colonialista na América Latina, notando que, para cada região, o discurso racista se adaptou de
acordo com os interesses do poder hegemônico correspondente. No Brasil, o interesse foi em atestar
a inferioridade moral do mulato, principalmente no nordeste. no Cone sul, “quando chegou a
imigração e surgiu um incipiente proletariado europeu latino, foi necessário explicar como a
‘degeneração também abarcava alguns imigrantes e, em geral, às maiorias populares que se
aproximavam do poder”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología p. 146-147. Tradução livre.
“Nenhuma perspicácia extraordinária é necessária para aperceber-se de que as oligarquias
latinoamericanas instrumentalizaram estas ideologias racistas para justificar suas hegemonias
primeiro e para estigmatizar qualquer protagonismo popular depois. A pejoração com disfarce
científico de todos os movimentos populares latinoamericanos foi o berço no qual se acalentou a
nossa ‘criminologia latinoamericana’. Nenhum movimento nem nenhum líder popular latinoamericano
deixaram de ser vítimas estigmatizadas por essa ‘ciência racista’ que não podia perdoar o
protagonismo político de nossos povos mestiços, mulatos e imigrados ‘degenerados’, que superavam
numericamente aos homens brancos e sãos de suas ‘raças superiores e fortes’”. ibid. p. 154.
364
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro... op. cit.
110
liberal, baseado nos ideais da Revolução Francesa, o código criminal do Império, de
1930, previa a pena de açoites aos escravos “limitados a 50 por dia”,
365
além de
outras previsões e costumes completamente antiliberais.
A escravidão no Brasil se manteve ainda por muitos anos, tendo sido um dos
últimos países a abolirem-na na América. Os fazendeiros eram os principais
interessados, que sua produção para exportação era totalmente dependente da
mão-de-obra escrava. Sendo assim, foram os proprietários das grandes lavouras
que mais reagiram às tentativas de extinguir a escravidão.
366
Entretanto, a pressão inglesa fez com que o ano de 1850 ficasse marcado
pela aprovação e efetivação da lei que proibiu o tráfico negreiro, com a punição
daqueles que o praticassem.
367
Quanto à questão da propriedade da terra, também foi nesse ano que o
regime de posses foi regularizado pela Lei de Terras (Lei 601).
368
Porém, consta que
a Lei de Terras, no que tinha de mais positivo, ou seja, a busca pela regularização
da propriedade das terras, não foi efetivada. Carvalho observa que isso se deveu a
vários motivos, desde a falta de recursos humanos para as tarefas de demarcação e
medição das propriedades, até o desinteresse dos proprietários.
369
Na verdade, diferentemente do problema do tráfico negreiro e da escravidão,
que se impuseram em função das pressões internacionais, a questão da terra nunca
se colocou de maneira tão urgente.
O problema da terra chegou a área decisória por sua vinculação com o
problema mais sério do suprimento de mão-de-obra para a grande
propriedade. [...] A percepção da elite de como andava o problema da
escravidão e da imigração estrangeira é que determinava o interesse no
estatuto da propriedade rural.
370
Por isso, a Lei de Terras também se preocupava com a questão da mão-de-
obra, trazendo a previsão da vinda de colonos de outros países para trabalharem
365
ZAFFARONI; E. Raúl ; BATISTA, Nilo; et. al. op. cit. p. 425.
366
CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras: A política imperial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 293.
367
Em 1831 foi aprovada uma lei que proibia o tráfico. Porém, foi a chamada “lei para inglês ver”,
tendo em vista que o foi posta em prática. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o
longo caminho... op. cit.
368
Para uma abordagem acerca dos interesses que envolveram as discussões e as modificações no
projeto que deu origem à Lei de Terras, cf. CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras... op.
cit. p. 329-354.
369
CARVALHO, José Murilo de. Teatro de sombras... op. cit. p. 346.
370
ibid. p. 347.
111
nas lavouras brasileiras como mão-de-obra livre, à custa do tesouro nacional.
371
A
segunda metade do culo XIX no Brasil foi marcada pelo estímulo à imigração
européia, tendo em vista os altos custos de que se revestiu a manutenção da o-
de-obra escrava após a proibição do tráfico.
Mas a principal mudança que a Lei de Terras trouxe foi a possibilidade de
aquisição livre de terras. Porém, ela somente era possível através “da compra, em
dinheiro, e à vista”.
372
Como nota Martins, aboliram-se as interdições étnicas e
raciais, instituindo-se, porém, interdições econômicas no acesso à terra.
373
Ao
dificultar o acesso à terra aos que não eram proprietários, obrigou-se os colonos
imigrantes ao trabalho assalariado nas grandes fazendas, criando-se o chamado
regime de colonato
374
e, em algumas situações, ao trabalho nas terras do coronel
para solver dívidas impagáveis.
375
Apesar da proibição do tráfico negreiro e da abundante o-de-obra
imigrante, a escravidão foi muito lentamente abolida no país. Somente vinte anos
após a proibição do tráfico foi promulgada a Lei do Ventre Livre, que previu a
liberdade para os bebês filhos de escravas nascidos a partir de então. Em 1885,
promulgou-se a Lei dos Sexagenários, prevendo a concessão de carta de alforria
aos escravos com mais de sessenta anos, e, finalmente, em 1888 a escravidão foi
371
BRASIL. Lei 601 de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm> Acesso em: 10 ago. 2007.
372
ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. op. cit. p. 74.
373
MARTINS, José de Souza. O sujeito oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto
Alegre: UFRGS, 2003. p. 203
374
Apesar de grande parte dos historiadores tratarem o trabalho dos imigrantes como sendo
assalariado, ou seja, pertencente a uma relação capitalista de produção, que se mencionar a
observação realizada, com razão, por Martins, no seguinte sentido: “A crise do escravismo no final do
século XIX deu lugar a um regime de trabalho singular, que ficou conhecido como regime de colonato
e que abrangeu tanto a cultura de café quanto a de cana-de-açúcar. Ele não pode ser definido como
um regime de trabalho assalariado, já que o salário em dinheiro é, no processo capitalista de
produção, a única forma de remuneração da força de trabalho. Isso porque o colonato se caracterizou
[...] pela combinação de três elementos: um pagamento fixo pelo trato do cafezal, um pagamento
proporcional pela quantidade de café colhido e produção direta de alimentos como meios de vida e
como excedentes comercializáveis pelo próprio trabalhador”. MARTINS, José de Souza. O cativeiro
da terra: São Paulo: Hucitec, 1986. p. 11-12.
375
Além do fato de os imigrantes que vinham ao Brasil serem despossuídos agravar a dificuldade de
obterem terras, outro problema foi o fato de que eram os fazendeiros, em um primeiro momento, que
deviam recrutar os imigrantes, pagando o seu transporte e sua alimentação “até o ponto em que o
trabalhador pudesse sobreviver e sua família por seus próprios meios. Antes disso, deveria pagar ao
fazendeiro o transporte desde o país de origem, a alimentação e outros adiantamentos. De fato, esse
era o meio de criar um novo tipo de dependência pessoal. O colono, o imigrante, tornando-se
obrigado ao fazendeiro, ficava encerrado na fazenda, sem liberdade para deixá-la, a menos que
recebesse permissão expressa do fazendeiro”. MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra... op.
cit. p. 123.
112
abolida.
376
É importante ressaltar que o fator decisivo para tanto foi o encarecimento do
trabalho escravo em relação ao trabalho livre, o que levou a questão inevitavelmente
à pauta das elites. Porém, a abolição da escravidão não significou a liberdade e o
respeito aos ex-escravos.
A abolição deixou para trás uma multidão de negros e índios, e de mestiços
de todos os matizes, presos à sujeição de formas arcaicas de exploração do
trabalho. Formas servis ou semi-servis que persistem até nossos dias de
muitos modos e que alcançaram até mesmo pessoas de outras origens. A
abolição abriu caminho para o trabalho livre, mas não necessariamente para
a modernidade do trabalho assalariado. Gerou formas intermediárias de
sujeição do trabalho ao capital que lentamente foram sendo dissolvidas e
substituídas, à custa de pesado ônus de suas vítimas.
377
O desenvolvimento das relações capitalistas, junto às transformações sociais
que se seguiram trouxe benefícios apenas à parcela branca da população.
378
Além
disso, o medo que motivou o aumento do controle social sobre os negros no período
escravista se recrudesceu após a abolição da escravidão, com a diminuição das
possibilidades legais de contenção e de castigo privado.
À abolição da escravidão sucedeu a proclamação da República, em 1889,
mas, da mesma forma, não significou o fim dos desmandos das oligarquias, nem do
controle social e penal sobre os negros. “Esse medo branco que aumenta com o fim
da escravidão e da monarquia produz uma República excludente, intolerante e
truculenta com um projeto político autoritário”.
379
Ao mesmo tempo em que o fim da escravidão recrudesceu o controle penal
sobre os negros, tendo em vista toda a legitimação racista para tanto, também os
imigrantes latinos que vieram trabalhar no Brasil foram muito perseguidos. Isso
porque junto dos colonos trabalhadores, vieram a reboque ideais sindicalistas e
anarquistas, que os tornaram perigosos, provocando da mesma maneira teorizações
que os rotulassem como criminosos.
376
CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras... op. cit. p. 314.
377
MARTINS, José de Souza. Reforma Agrária... op. cit. p. 12-13.
378
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: DIFEL, 1972. “Tudo se
passou, historicamente, como se existissem dois mundos humanos contínuos, mas estanques e com
distintos opostos. O mundo dos brancos foi profundamente alterado pelo surto econômico e pelo
desenvolvimento social, ligados à produção e à exportação do café, no início, e à urbanização
acelerada e à industrialização, em seguida. O mundo dos negros ficou praticamente à margem
desses processos sócio-econômicos, como se ele estivesse dentro dos muros da cidade mas não
participassem coletivamente de sua vida econômica, social e política”. ibid. p. 85.
379
MALAGUTI BATISTA. O medo na cidade do Rio de Janeiro... op. cit. p. 37.
113
Anarquistas e militantes operários, vadios, ladrões, gatunos, vigaristas,
jogadores, ébrios, mendigos e cáftens compunham o grupo dos
indesejáveis, categoria consagrada pelos idos de 1919 para caracterizar
aqueles que, por palavras ou atos, contestavam a ordem estabelecida.
Estes eram vistos pelo discurso oficial, com o respaldo do discurso científico
da época, como hóspedes perigosos, vírus contaminadores do tecido social,
responsáveis principais pela desordem urbana. Dentre todos, os
anarquistas mereceram uma atenção especial, considerados como
indivíduos de extrema periculosidade, por se definirem como corruptores de
nações inteiras.
380
A Constituição de 1891, em seu cunho federalista, transferia as terras
devolutas aos Estados-membros, fazendo com que elas se tornassem “moeda de
troca no mercado político da dominação oligárquica”.
381
Nesse período, as
oligarquias rurais puderam exercer mais livremente os seus desmandos,
principalmente no que se refere ao coronelismo.
382
Com essa descentralização, o
coronel possuía uma esfera de poder considerável, tendo em vista que exercia “uma
ampla jurisdição sobre seus dependentes”. Além disso, mesmo funções policiais
podiam ser por ele exercidas, através do auxílio de seus empregados. A sua
ascendência sobre a população que vivia sobre seu território decorria justamente de
sua qualidade de proprietário rural. Porém, a “[...] massa humana que tira a
subsistência das suas terras vive no mais lamentável estado de pobreza, ignorância
e abandono”.
383
O final do século XIX e o início do século XX foi um período conturbado. A
insatisfação com a realidade brasileira por parte dos baixos estratos sociais se fez
sentir em manifestações, como as revoltas de Canudos e Contestado, e a criação de
grupos armados, como os cangaceiros, no nordeste brasileiro.
384
Apesar de
380
MENEZES, Lená Medeiros de. O medo do outro: violência, imigração e expulsão. Discursos
sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 5, nº 9 e 10, 1º e 2º semestre de 2000, p. 293-297, Rio de
Janeiro, p. 295. No mesmo sentido, Malaguti Batista observa que “essa é uma outra história: estórias
republicanas em que as elites, para salvar-se dos africanos, criam outros medos, os medos dos
socialistas, anarquistas e sindicalistas. O trabalhador livre iria acarretar outros perigos e novas ondas
de criminalização. Cousas futuras”. ibid. p. 202.
381
MARTINS, José de Souza. O sujeito oculto... op. cit. p. 201.
382
“[...] O coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público,
progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos
senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura
agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no
interior do Brasil”. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime
representativo no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 40.
383
ibid. p. 42-43.
384
ibid. p. 81. A revolta de Canudos ocorreu no sertão da Bahia, no nordeste brasileiro, entre
novembro de 1896 e outubro de 1897 em função das precárias condições de vida da população rural
114
significativos, suas possibilidades de resistência eram ínfimas em relação ao poder
central, que, em conjunto com as milícias dos coronéis, abafava-os sempre que
necessário, perpetrando massacres.
A posse da terra permaneceu por cadas como instrumento de poder: “os
presidentes da República foram geralmente sustentados no poder central na medida
em que reconheciam a independência e o poder local e regional dos chefes
políticos, dos ‘coronéis’ da política”.
385
Porém, após a ascensão de Getúlio Vargas, a década de 1930 foi marcada
pela queda do poder dos coronéis.
386
A possibilidade emergente de luta política por
parte dos trabalhadores, em especial os urbanos, também chegou ao campo, dando
margem ao surgimento das ligas camponesas e sindicatos rurais. Apesar da
interrupção pela ascensão de um autoritarismo exacerbado com a ditadura de
Getúlio Vargas e as prisões e mortes em função de perseguições políticas no
período chamado de Estado Novo (1937-1945), a efervescência política que marcou
seus primeiros anos de governo voltou a se manifestar na década de 1940 com o
ressurgimento da democracia.
387
na região, e tinha como líder Antônio Conselheiro. A revolta terminou com o massacre dos revoltosos,
em outubro de 1897 após a intervenção da República, que o governo da Bahia não havia
conseguido contê-los por si só. Já a Guerra do Contestado ocorreu entre 1912 e 1915, em Santa
Catarina e teve origem em conflitos sociais decorrentes da expulsão de uma população local de suas
terras para a construção de uma estrada de ferro, além da situação precária de vida da população
local, somada à religiosa. Os conflitos envolveram o exército, a polícia e ainda homens a serviço
dos coronéis da região, tendo esmagado os revoltosos na última batalha, em 1915. ibid.
385
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1985. p. 21.
386
Para Martins, mesmo o governo de Vargas o passou de uma sucessão de pactos políticos com
os coronéis. Ao não regulamentar as relações de trabalho rural firmou um pacto tácito com os
coronéis sertanejos. “Com isso, manteve nas zonas rurais e nas cidades interioranas do País uma
enorme força eleitoral conservadora, que se tornou o fiel da balança da política brasileira”. MARTINS,
José de Souza. O poder do atraso: Ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec,
1994. p. 32. “Tributária de uma forte tradição escravista e profundamente marcada pelas posturas
oligárquicas, a dinâmica política brasileira caracterizou-se por uma conjugação de práticas de
cooptação. Repressão e exclusão, as primeiras reservadas principalmente às relações que se
estabeleceram no interior das elites, mas que incluíram também formas de incorporação subalterna
de membros e setores das massas populares, e as últimas reservadas principalmente às relações do
Estado com amplas parcelas da população”. CÉSAR, Benedito Tadeu. Reflexões acerca da violência
político-institucional no Brasil contemporâneo. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n.
57/58, p. 117-145, junho/novembro 2000. p. 123.
387
É interessante observar que a ditadura de Vargas teve como uma de suas características a
perseguição aos estrangeiros, partindo do pressuposto de que os imigrantes europeus atuantes nas
empresas, nos sindicatos e nas estruturas políticas brasileiras poderiam servindo de elo de ligação
entre a oposição brasileira e os revolucionários socialistas e comunistas europeus representar um
potencial perigo ao Estado autoritário”. Dessa forma, foram criados decretos-leis com o intuito de
controlá-los. DAL RI JR., Arno. op. cit. p. 273. “Neste primeiro período do Estado Novo, que
antecedeu o envolvimento brasileiro no conflito mundial, o governo de Vargas identificava no
115
Assim como várias causas sociais, a luta pela terra passou a ter um espaço
importante, com o surgimento das Ligas Camponesas. “As Ligas foram uma forma
de organização política de camponeses proprietários, parceiros e meeiros que
resistiram à expropriação, à expulsão da terra e ao assalariamento”.
388
Elas foram
criadas em quase todos os estados do país, tendo o apoio do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). “A atuação das Ligas era definida na luta pela reforma agrária
radical, para acabar com o monopólio de classe sobre a terra”.
389
Na cada de 1950, importantes conflitos no campo tiveram lugar no país,
tendo sido criadas organizações agrárias, como a União dos Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) e o Movimento dos Agricultores Sem
Terra (MASTER). Em 1962, foi criada a Central Geral dos Trabalhadores, reunindo
trabalhadores dos meios urbano e rural (CGT) e, em 1963, foi criada a
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).
390
Neste ano
também foi promulgada a Lei 4.214, pelo Presidente João Goulart, que previu o
Estatuto do Trabalhador Rural. Até então as relações de trabalho no campo
encontravam-se desregulamentadas, e os trabalhadores à margem das conquistas
dos trabalhadores urbanos.
Com a organização dos camponeses e a pressão exercida, o governo João
Goulart deu início a um processo de reforma agrária, tendo sido esse um dos
motivos do golpe que o retirou do poder em 1964.
391
Como observa Martins, a
própria Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
392
que pedia a intervenção das
anarquista, preferencialmente italiano, a figura do inimigo externo, portador de uma mensagem
subversiva que se infiltrava nos sindicatos e se escondia sob o manto protetor das comunidades de
cunho cultural e de ‘mútuo socorro’. Juntamente com os comunistas (na sua grande maioria
nacionais), os anarquistas italianos eram apresentados ao imaginário popular como baderneiros
exaltados, provocadores de greves e de tumultos, desafiadores da ordem e do progresso nacional.
Por esta razão eram perseguidos e punidos com rigor não somente pela polícia comum, mas também
pela polícia política”. ibid. p. 276.
388
FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 33.
389
ibid.
390
Para conhecer a história completa dos movimentos sociais no campo a partir de 1945, cf.
MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro:
FASE, 1989.
391
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos
sociais, conflitos e Reforma Agrária. Estudos avançados, São Paulo, v. 15, n. 43, 2001. Disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142001000300015&lng=en&nrm
=iso>. Acesso: em 16 jan. 2007. sp.
392
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi o nome comum de uma série de manifestações
públicas organizadas em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964,
durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Congregou
segmentos da classe média, temerosos do "perigo comunista" e favoráveis à deposição do presidente
116
forças armadas no processo político, em 19 de março de 1964, demonstrava o
quanto uma parcela da população estava alarmada “com o avanço das pressões
populares em favor das reformas de base, que incluíam uma reforma cujo combate
as motivava de modo especial: a reforma agrária. É que a Marcha aglutinava os
grandes e tradicionais fazendeiros paulistas...”.
393
Ainda assim, o governo Castelo Branco sancionou o Estatuto de Terra, o
instrumento legal da Reforma Agrária no Brasil.
394
Apesar disso, o Estatuto não foi
posto em prática.
395
“Elaborado com uma visão progressista com a proposta de
mexer na estrutura fundiária do país, ele jamais foi implantado e se configurou como
um instrumento estratégico para controlar as lutas sociais e desarticular os conflitos
por terra”.
396
Durante a ditadura militar, as poucas desapropriações efetivadas tinham o
intuito de diminuir os conflitos e principalmente de realizar projetos de colonização,
em especial na região amazônica. De 1965 a 1981, foram realizadas oito
desapropriações em média, por ano, apesar de terem ocorrido pelo menos setenta
conflitos por terra anualmente.
397
Isso porque o modelo de desenvolvimento implantado não tinha por base a
distribuição de terras, e sim o ingresso do capital estrangeiro e monopolista no
campo, de forma a legitimar a concentração das terras, ao aumentando a sua
produtividade. Ao contrário, portanto, do modelo clássico, em que a grande
da República. A primeira dessas manifestações ocorreu em São Paulo, a 19 de março, no dia de São
José, padroeiro da família.
393
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil... op. cit. p. 28.
394
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. op. cit.
395
Para Martins, o Estatuto da Terra não tinha a função redistribuir a terra realmente. “O Estatuto
revela assim a sua verdadeira função: é um instrumento de controle das tensões sociais e dos
conflitos gerados por esse processo de expropriação e concentração da propriedade e do capital. É
um instrumento de cerco e desativação dos conflitos, de modo a garantir o desenvolvimento
econômico baseado nos incentivos à progressiva e ampla penetração do grande capital na
agropecuária. É uma válvula de escape que opera quando as tensões sociais chegam ao ponto em
que podem transformar-se em tensões políticas. O Estatuto esno centro da estratégia do governo
para o campo e se combina com outras medidas de cerco e desativação dos conflitos, das
reivindicações e das lutas sociais”. MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária
no Brasil... op. cit. p. 35.
396
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Quem somos. Disponível em:
<http://www.mst.org.br/historico/sumario.html> Acesso em: 17 set. 2006. sp. Buscando explicar a
aparente contradição da aprovação do Estatuto da terra em um Congresso onde as oliigarquias e os
grandes proprietários de terras estavam sobre representados, Martins aduz que a questão, portanto,
não é a de aprovar leis avançadas, mas assegurar que elas não serão executadas, ou não serão
executadas contra os interesses dos que as aprovaram”. MARTINS, José de Souza. O poder do
atraso... op. cit. p. 68.
397
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Quem somos... op. cit. sp.
117
propriedade rural se torna um empecilho ao avanço do capitalismo, o Brasil “reforçou
politicamente a irracionalidade da propriedade fundiária no desenvolvimento
capitalista, reforçando, conseqüentemente, o sistema oligárquico nela apoiado”.
398
Isso sobretudo em função de que esse empecilho foi removido por incentivos ficais,
que facilitavam a aquisição de terras e a produção.
Contra essa forma de desenvolvimento agrário os camponeses buscaram
concentrar suas lutas, apesar de que em função das perseguições, assassinatos e
torturas aos membros das organizações, sua força tenha restado diminuída. Porém,
ainda que muito lentamente, durante os mais de vinte anos de ditadura os
trabalhadores rurais fizeram eclodir lutas por todo o país, sendo que entre 1960 e
1970 triplicaram-se os conflitos fundiários.
399
De 1970 a 1985, houve uma
intensificação da concentração de terras, sendo que “48,4 milhões de hectares de
terras públicas foram transformadas em latifúndios, quase duas vezes a área total do
Estado de São Paulo”.
400
A industrialização intensa e as grandes migrações
ocorridas acirraram o problema da exclusão, sendo que a política dos militares e o
estímulo à mecanização do campo levaram à expulsão dos camponeses das terras.
Adquirindo força, as organizações realizaram as primeiras ocupações de terra
ainda durante a ditadura, porém, não de forma organizada, mas sob influência
principal da ala progressista da Igreja Católica, que resistia à ditadura. Nesse
contexto surgiu a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975. O papel da Igreja
nesse processo é fundamental, em especial as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs), surgidas no início dos anos sessenta, na organização dos trabalhadores
rurais. Elas “foram os lugares sociais onde se constituíram os espaços de reflexão
acerca da realidade e onde se desenvolveram experiências para a organização dos
trabalhadores rurais contra a política agrária em questão”.
401
A gestação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
evoluiu justamente no enfrentamento à política de desenvolvimento agrário imposta
que gerava maior concentração de terras, bem como à expulsão dos camponeses e
expropriação gerada pelo desenvolvimento do capitalismo durante o regime militar.
De 1979 a 1984 foram realizadas as primeiras ocupações de terras organizadas no
398
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso... op. cit. p. 80. Grifos no original.
399
FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil... op. cit. p. 43.
400
idem. MST: Formação e territorialização. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 41.
401
ibid. p. 56.
118
Rio Grande do Sul.
402
1984 é o ano oficial da criação do MST, ocorrida no
Encontro Nacional dos Sem Terra em Cascavel, no Paraná.
403
Buscando questionar a estrutura agrária brasileira e se contrapondo à secular
e acirrada violência que se configurava no campo, em 1985, em meio ao clima da
campanha "Diretas Já", o MST realizou seu primeiro Congresso Nacional, em
Curitiba, no Paraná, cuja palavra de ordem era: "Ocupação é a única solução".
404
As motivações e objetivos no surgimento da organização dos trabalhadores
sem-terra se deram de forma diversa nas diferentes regiões do país. Enquanto na
maioria delas a luta se baseou na disputa de terras devolutas ou desocupadas, no
sul e no sudeste a luta esteve baseada
no questionamento do uso da terra, da
manutenção de extensos latifúndios, inexplorados ou apenas parcialmente
utilizados.
É que esses trabalhadores não estão resistindo propriamente ao trabalho
assalariado, mas ao subemprego e ao desemprego. Para eles, claramente,
ao contrário do modelo clássico, invocado por alguns partidos políticos para
questioná-los ou não apoiá-los, a expropriação, a expulsão da terra, não
conduz à condição de operário, mas à condição de sobrante, de população
sobrante, de desemprego ou de assalariamento temporário como bóia-fria.
É uma visão menos teórica e mais realista da situação brasileira.
405
Assim, as circunstâncias históricas do Brasil nesse período tiveram como
características econômicas a concentração da propriedade da terra, a expansão da
mecanização da lavoura e o estímulo à monocultura de exploração, a partir da
402
Para uma análise detalhada das primeiras ocupações, bem como da territorialização do MST em
cada unidade da federação, cf. FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil...
op. cit.
403
Segundo Fernandes, as referências históricas da origem do MST são “as ocupações das fazendas
Macali e Brilhante, em Ronda Alta-RS, em 1979; a ocupação da fazenda Burro branco, no município
de Campo Erê SC, em 1980, ainda nesse ano, no Paraná, o conflito entre mais de dez mil famílias
e o estado que, com a construção da barragem de Itaipu, tiveram suas terras inundadas e o estado
propôs apenas a indenização em dinheiro; em São Paulo a luta dos posseiros da fazenda Primavera
nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência; no Mato Grosso do Sul, nos
municípios de Naviraí e Glória de Dourados, [...]. Outras lutas também aconteciam nos estados da
Bahia, Rio de Janeiro e Goiás”. FERNANDES, Bernardo Mançano. MST: Formação e
territorialização... op. cit. p. 76.
404
Como nota Comparato, é necessário lembrar que existem atualmente vários outros movimentos de
luta pela reforma agrária, sendo o MST responsável por um terço das ocupações desde 1996. Dentre
tais movimentos, destacam-se o “MAST (Movimento dos Agricultores Sem Terra), ligado à Social
Democracia Sindical, o MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra), ligado a segmentos de
esquerda, e o MUST (Movimento Unido dos Sem Terra), ligado à Força Sindical”. COMPARATO,
Bruno Konder. A ão política do MST. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 4, 2001.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000400012
&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 jan. 2007. sp.
405
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil... op. cit. p. 101-102.
Grifos no original.
119
década de 1970, o que levou à expulsão dos trabalhadores da terra.
406
Esses fatores
econômicos levaram, juntamente a fatores sociais e políticos ao surgimento do MST.
Görgen e Stédile apontam como fatores sociais o fracasso da colonização da
Amazônia e a saturação do mercado de trabalho nas cidades, e, como fatores
políticos, a influência da Igreja Católica e do sindicalismo urbano na conscientização
dos camponeses para a sua organização, além do fato da abertura política.
407
Na cada de 1980, coube ao governo de Jo Sarney implementar o
Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Tal plano, porém, também
[...] deu início à movimentação contrária dos setores ruralistas que faziam
parte do governo da Nova República visando a impedir sua implantação. A
violência no campo cresceu brutalmente, com a reação latifundiária
emergindo liderada por Ronaldo Caiado. Para proceder a leilões de gado foi
criada a UDR, que praticamente "militarizou" os latifundiários visando frear a
implantação do plano.
408
E realmente o plano não atingiu, nem de longe, seus objetivos. “No final do
governo Sarney, os resultados do PNRA foram os seguintes: apenas 8% das
terras previstas foram desapropriadas, e 10% das famílias assentadas”.
409
Pouco
mais de 140 mil famílias foram assentadas nesse período, sendo que, segundo as
metas do PNRA para o governo Sarney era de 1 milhão e 400 mil famílias
assentadas.
410
De fato, ao longo desses anos posteriores à abolição da escravidão, as
relações sociais no campo sofreram modificações, apesar de as agressões e mortes
permanecerem como fatos corriqueiros. O poder do proprietário da terra sobre a vida
e a morte das pessoas que viviam sobre a sua propriedade fez com que se
mantivessem elementos arcaicos e desumanos. O cativeiro provocado pelo
endividamento dos camponeses para com o proprietário da terra, os
desaparecimentos, mortes e torturas daqueles que se revoltaram contra essa
situação, tudo revela uma situação de permanente conflitualidade, contra a qual
406
GÖRGEN, Frei Sérgio; STÉDILE, João Pedro. A luta pela terra. São Paulo: Scritta , 1993. p. 32-
33.
407
ibid.
408
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. op. cit. sp.
409
ibid.
410
SILVA, José Graziano. Para entender o Plano Nacional de Reforma Agrária. São Paulo:
Brasiliense, 1985. p. 82. Para uma análise detalhada da elaboração e do jogo de forças políticas que
envolveram a derrocada do 1ºPNRA, cf. SILVA, José Gomes da. Caindo por terra: crises da reforma
agrária na ‘Nova República’. São Paulo: Busca Vida, 1987.
120
também os sem terra na década de 1980 conseguiram se unir de forma efetiva.
411
2.1.2 A reforma agrária no período pós-ditadura: a permanência da concentração da
terra e das violências no campo
O fim da ditadura militar trouxe a necessidade de uma Assembléia Nacional
Constituinte, que realizou os seus trabalhos em 1987. Ela representou uma
promessa de democratização e avanços no sistema político brasileiro, considerando-
se os direitos humanos de maneira particular. Escrevendo em 1986, Martins retrata
a esperança de que a Assembléia Constituinte pudesse renovar o país, e trazer as
reformas sociais necessárias.
A Constituinte decidirá sobre o direito de propriedade, podendo alterá-lo
substancialmente se os trabalhadores participarem dela e se unirem em
torno de determinados objetivos, como esse. Da Constituinte poderá sair um
Brasil renovado, uma ordem política democrática avançada, que quebre de
vez o pacto tenebroso da terra com o capital e que tem sido responsável
pela marginalização política dos trabalhadores do campo e da cidade.
412
Ao mesmo tempo, pondera suas perspectivas em função de que as classes
dominantes estavam demonstrando muita força e capacidade política, o que
provavelmente obstruiria mudanças radicais. E, além disso, observa que os
trabalhadores tanto do campo como da cidade encontravam-se enfraquecidos
naquele momento.
413
Com efeito, os trabalhadores sem terra, organizados sob a sigla MST,
viram nascer uma reação por parte dos setores de grandes proprietários de terra,
articulando-se a criação da União Democrática Ruralista (UDR), instituição de
importante peso político e econômico, que em torno de 200 constituintes eram
ligados à grande propriedade da terra. Assim, apesar da grande participação popular
que envolveu a questão agrária na constituinte,
414
o resultado não se mostrou
animador.
411
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra... op. cit.
412
MARTINS, José de Souza. A reforma agrária e os limites da democracia na “Nova
República”. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 31.
413
ibid. p. 32.
414
Duas emendas populares somado 1.188.465 assinaturas, além de outras 3 propostas. Da mesma
forma, os setores ruralistas também participaram com uma proposta de 43.275 assinaturas.
COELHO, João Gilberto Lucas. Prefácio. In: SILVA, José Gomes da. Buraco negro: a reforma
agrária na constituinte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 10.
121
Em relação à definição de função social da propriedade, manteve-se
praticamente a do Estatuto da Terra, o que gerou o comentário de que “é preciso
convir que é muito pouco manter um texto de 23 anos de velhice para uma CF que
se propõe a orientar a vida jurídica da nação por mais de meio século à frente”.
415
A
novidade, porém, foi a inclusão do princípio juntamente com o direito de
propriedade, dentre os direitos e garantias individuais
416
. “A função social, ao
constituir o fundamento do regime de propriedade, coloca a propriedade em
submissão ao interesse de toda a coletividade, para o alcance da justiça social
(caput do Art. 170 da C. F.). A propriedade passa, então, a ser vista como um
elemento de transformação social”.
417
Muito embora tenha sido permitido esse pequeno avanço, a bancada ruralista
conseguiu introduzir, no artigo 185 da Constituição Federal, o inciso II, onde são
limitadas as desapropriações para a reforma agrária a propriedades improdutivas.
Na verdade, tal inciso levou a que a Constituição ficasse mais conservadora do que
o próprio Estatuto da Terra (ET), de 1964, já que neste fica claro que a produtividade
é apenas um dos requisitos para que a propriedade cumpra com a função social.
418
Apesar de a previsão da função social da propriedade ser essencial, ela
estava presente, sob outra redação, na Constituição de 1946
419
, na Constituição de
1967
420
e na Emenda Constitucional 1 de 1969.
421
A inovação refere-se, porém,
415
ibid. p. 147.
416
Art. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e a à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII é garantido o direito de
propriedade; XXIII a propriedade atenderá a sua função social. BRASIL. Constituição (1988)... op.
cit. p. 23.
417
ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. A função social da propriedade agrária. In: LEAL, Rogério
Gesta. (org.) Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. p. 11-34. Santa Cruz
do Sul: EDUNISC, 2003. p. 26.
418
Segundo o Estatuto da Terra (art. 2º, § 1º), a propriedade da terra desempenha, integralmente a
sua função social, quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de
produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais
que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam. BRASIL. Estatuto
da Terra. 13 ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 2.
419
Art 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com
observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos. BRASIL. Constituição (1946). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm> Acesso em: 16 set. 2007. sp.
420
Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes
princípios: [...] III – função social da propriedade. BRASIL. Constituição (1967). Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm> Acesso em: 16 set.
2007. sp.
122
ao fato de haver a previsão do princípio dentro do rol de direitos fundamentais, que
são cláusulas pétreas e determinam o valor a ser seguido por todo o ordenamento
jurídico.
Outro retrocesso foi o estabelecimento de um “procedimento sumário sem
sumarização” na desapropriação.
Quer dizer: cortava-se do procedimento adequado às desapropriações para
Reforma Agrária o mecanismo da imissão (entrada) na posse da área no
início do processo. Em suma, o ato judiciário que autorizava de plano o
assentamento definitivo, a partir da nova lei, seria possível após a
demorada discussão processual. Além disso, o rito sumário ficou submisso,
por dispositivo constitucional expresso, ao tratamento especial de lei
complementar.
422
Além dos retrocessos e dos poucos avanços, a maior parte da
regulamentação sobre a propriedade rural permaneceu como estava. Não se
conseguiu avançar também na limitação do tamanho máximo da propriedade rural,
sendo que havia a proposta da Comissão Nacional pela Reforma Agrária de constar
o dispositivo:
[...] ninguém poderá ser proprietário, direta ou indiretamente, de imóvel
rural, de área contínua ou descontínua, superior a sessenta (60) módulos
regionais de exploração agrícola, ficando o excedente, mesmo que
corresponda à sua obrigação social, sujeito à desapropriação por interesse
social para fins de reforma agrária.
423
Com efeito, o que era para ser o grande avanço de toda a legislação
brasileira, começando pela sua norma mais nobre, a Constituição, foi objeto de jogos
políticos que conseguiram impor os interesses dos setores ruralistas. Ao manter o
inciso que impede a propriedade produtiva de ser desapropriada, “a ANC retrocedeu
aos idos de 1946, renunciou às conquistas da EC 10 de novembro de 1964 e do
ET e desdourou-se quando comparada à Carta outorgada pelos três ministros
militares em 17 de outubro de 1969”.
424
Além da previsão do direito individual de propriedade estar limitado na
421
Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça
social, com base nos seguintes princípios [...] III função social da propriedade. BRASIL.
Constituição (1967). Emenda constitucional no 1. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br
/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm> Acesso em: 16 set. 2007. sp.
422
BALDEZ, Miguel Lanzellotti. A terra no campo: a questão agrária. In: MOLINA, Mônica Castagna
et. al. (Orgs.) O direito achado na rua - Introdução crítica ao direito agrário. v. 3. p. 95-106. Brasília:
Universidade de Brasília, 2001. p. 100.
423
SILVA, José Gomes da. op. cit.
424
ibid. p. 199-200.
123
Constituição Federal pelo direito coletivo ao cumprimento de sua função social
dentre os direitos fundamentais, a sua delimitação dentro da questão agrária vem
positivada no Título VII, “Da ordem econômica e financeira”, da Constituição Federal.
O Capítulo I corresponde aos princípios gerais da atividade econômica, aplicando-se
a todos os demais capítulos desse Título. O artigo 170 prevê que
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...] II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
[...] VI defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento
diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de
seus processos de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
425
Segundo o artigo 184, compete à União desapropriar por interesse social o
imóvel rural que não esteja cumprindo a sua função social, mediante prévia e justa
indenização. Tal dispositivo limita, portanto, a possibilidade de desapropriações,
sendo que não faz menção a uma quantidade máxima de terras passíveis de serem
de propriedade de apenas uma pessoa. Além dessa limitação, o artigo seguinte
(185), prevê que são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária a
pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que o proprietário
não possua outra (I), e a propriedade produtiva (II).
Quanto ao inciso II, tal restrição traz uma evidente inconsistência para a sua
interpretação. Isso porque o artigo 186, que traz os requisitos necessários para que
uma propriedade cumpra com sua função social não se limita a estabelecer que seja
produtiva a área, mas sim que:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores.
426
425
ibid.
426
Em 1993 foi promulgada a Lei 8629, que expôs, nos parágrafos de seu artigo 9º, o significado de
cada um dos requisitos para que seja atendida a função social da propriedade: § Considera-se
racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na
exploração especificados nos §§ a do art. 6º desta lei. § Considera-se adequada a utilização
dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra,
124
Dessa maneira, uma propriedade que atenda ao requisito do inciso I, quer
dizer, que seja produtiva, mas que não atenda aos demais, desenvolvendo no
imóvel atividades que depredam o meio ambiente, relações escravistas de
produção, etc., deve ser desapropriada.
Após 1988, a questão fundiária passou a ser tratada por algumas leis
ordinárias. A Lei 8171 de 17 de janeiro de 1991 dispôs sobre Política Agrícola,
distinta da Política Agrária, que foi regulamentada em 1993.
427
Aquela “fixa os
fundamentos, define os objetivos e as competências institucionais, prevê os recursos
e estabelece as ações e instrumentos da política agrícola, relativamente às
atividades agropecuárias, agroindustriais e de planejamento das atividades
pesqueira e florestal”.
428
Essa lei teve uma tramitação célere e com poucas
discussões que é o Executivo que assume o caráter aplicador das políticas.
429
A
Política Agrícola atinge a questão da segurança alimentar, que visa a garantir ao
produtor rural os seus ganhos, tendo em vista os riscos nos quais a sua produção
está inserida. É uma política de Estado, que reflete a adoção de um modelo em que
realmente se tutela o produtor rural, bem como as condições de segurança alimentar
do país, ou de um modelo filiado às políticas neoliberais que intencionam deixar o
Estado fora disso, devendo os produtores buscar financiamentos em Bancos.
430
de modo a manter o potencial produtivo da propriedade. § Considera-se preservação do meio
ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos
ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e
qualidade de vida das comunidades vizinhas. § 4º A observância das disposições que regulam as
relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho,
como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais. § A
exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o
atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança
do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel. BRASIL. Lei no 8.629, de 25 de
fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à
reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /Leis/L8629.htm>. Acesso em: 17 set. 2007. sp.
427
Para distinguir questão agrícola de questão agrária, pode-se salientar que “na primeira, a
preocupação é saber se a produção é suficiente para o abastecimento da demanda da população,
bem como se o preço é condizente com os custos. na segunda, a questão é bem mais complexa,
pois se refere ao modo como se distribuem os estabelecimentos agropecuários (pequenas, médias e
grandes propriedades), como se a ocupação da mão-de-obra e, em conseqüência, qual o nível de
produtividade, a renda dos trabalhadores, enfim, referem-se mais especificamente à estrutura da
malha fundiária”. ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O acesso à terra no Estado democrático de
direito... op. cit. p. 154.
428
BRASIL. Lei no 8.171 de 17 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política agrícola. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8171.htm>. Acesso em: 17 set. 2007. sp.
429
ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O acesso à terra no Estado democrático de direito... op. cit.
p. 160.
430
ibid. p. 171.
125
A Lei Agrária (Lei nº 8629, de 25 de fevereiro de 1993) veio regulamentar os
dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III,
Título VII, da Constituição Federal. Apesar de as propostas de lei do MST e da
CONTAG terem sido subscritas por um deputado e um senador, respectivamente,
em 1989, somente quatro anos após é que se aprovou e promulgou a Lei para
regulamentar os dispositivos referentes à Reforma Agrária na Constituição. Isso
reflete a vontade em relação ao tema. Ainda assim, só foi aprovada em função
de que os setores conservadores estavam preocupadas com os acontecimentos
referentes ao impeachment de Collor, além do escândalo da CPI do PC Farias, e por
isso sua união política foi fracionada, fortalecendo os setores progressistas.
431
Aprovada pelo Congresso Nacional sob o signo do impeachment do
Presidente da República Collor de Mello, a Lei Agrária transpôs os limites
de simples negociação política e se beneficiou de microfundamentos do
complexo jogo de poder que resultaram no impedimento do chefe do
Executivo.
432
Tal lei enfatiza que a propriedade rural que não cumprir sua função social é
passível de desapropriação. Ela esmiúça o significado dos requisitos para que seja
cumprida a função social e determina as competências para a desapropriação e
indenização. Mesmo tendo sido uma vitória a promulgação de tal lei, de se referir
que sua redação final contou com o veto de dez dispositivos pelo presidente Itamar
Franco, dentre os quais o que permitiria o confisco de imóveis onde se verificasse o
trabalho escravo. Além disso, o artigo 7º, que permaneceu na redação final,
incentiva a indústria do projeto frio, como nota Abramovay, citado por Fernandes,
pelo fato de que impossibilita a desapropriação da propriedade improdutiva que
tenha um projeto técnico sendo instalado.
433
A Lei Complementar 76, de 06 de julho de 1993, regulamenta o
procedimento para as desapropriações de imóveis rurais para fins de reforma
agrária, conforme o disposto no parágrafo terceiro do artigo 184 da CF.
434
Tal Lei
buscou estabelecer um rito sumário para as desapropriações, facilitando o acesso à
terra aos assentados, porém, muitas críticas em função de que na prática, “os
431
OLIVEIRA, Edélcio Vigna. Uma janela histórica: regulamentação da Reforma Agrária. In: MOLINA,
Mônica Castagna Et. al. (Orgs.) O direito achado na rua - Introdução crítica ao direito agrário. v.
3. p. 165-175. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. p. 173.
432
ibid. p. 167.
433
FERNANDES, Bernardo Mançano. MST... op. cit. p. 62.
434
Para uma análise esmiuçada do procedimento exposto na Lei, cf. ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso
de. O acesso à terra no Estado democrático de direito... op. cit. p. 133-143.
126
proprietários expropriados, ao fazerem uso de expedientes recursais, seja mandado
de segurança ou de liminares, conseguem retardar consideravelmente a ocupação
das áreas desapropriadas, inclusive, impedindo a imissão de posse por parte do
Estado”.
435
Por último, o digo Civil de 2002 também prevê o princípio da função social
da propriedade como limite ao direito individual de propriedade, em consonância
com a Constituição Federal, nos seguintes termos:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa,
e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha.
§ 1
o
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as
suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados,
de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as
belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico,
bem como evitada a poluição do ar e das águas.
[...] § 3
o
O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de
desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social,
bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
436
O maior problema, entretanto, não reside na própria legislação em si, que é
avançada. A questão é a sua efetivação, além dos princípios que motivam sua
aplicação. Nota-se que, diante da existência da lei e de sua não aplicação, da
mesma forma como na promulgação do Estatuto da Terra, o objetivo da norma é o
de criar uma eficácia simbólica, e não instrumental. O resultado da promulgação
dessas leis deve ser observado na sucessão de governos a partir de 1994, em um
contexto de distanciamento em relação à constituinte.
A reforma agrária nos governos FHC e Lula
Após um período político conturbado, com o impeachment do primeiro
presidente da república eleito democraticamente desde a ditadura militar, e a
atuação do presidente Itamar Franco até 1994, em 1995 assumiu a Presidência da
República o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, do Partido Social Democrata
Brasileiro (PSDB).
Em seu plano de governo estava incluída a reforma agrária, sendo que o
mesmo, quando senador, foi quem subscreveu a proposta da CONTAG para a Lei
435
ibid. p. 138.
436
BRASIL. Código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
127
Agrária, em 1989, atuando em conformidade com os progressistas. Porém, durante
o seu governo, os conflitos no campo foram intensos, a reforma agrária não foi
efetivada, e alguns acontecimentos históricos em relação à luta pela terra ficaram
marcados.
Em um período de grande turbulência no campo, o governo adotou uma
postura ostensiva em relação às ocupações de terras, com a utilização das polícias
militares e, se necessário, do exército. Ao mesmo tempo em que buscou dispersar
os movimentos através da repressão, também trouxe leis no intuito de conter as
pressões sociais, como a criação do Ministério Extraordinário da Questão Fundiária
e a promulgação de duas leis:
a) Lei Complementar nº 88 (23.12.1996), que alterou dispositivo da Lei
Complementar nº 76 (6.7.1993), com a finalidade de tornar mais ágil o
procedimento de imissão na posse dos imóveis expropriados; b) Lei nº 9393
(19.12.1996), que lhe permitirá, se tanto, estimular a produtividade da terra,
colhendo as sobras improdutivas para a Reforma Agrária; ou, com mais
propriedade, para complementar o seu projeto agrário.
437
A Lei Complementar 88/1996 veio superar o atraso representado pela Lei
Complementar 76/1993, alterando a redação de alguns de seus artigos. Com
essas alterações, possibilita-se a imediata imissão de posse, além de que se institui
uma audiência de conciliação buscando uma maior celeridade nos processos de
desapropriação de terras por interesse social.
Ainda a Lei 9393 de 19 de dezembro de 1996 toca na questão da reforma
agrária na medida em que dispõe sobre o Imposto Territorial Rural (ITR) taxando
com alíquotas altíssimas as grandes propriedades improdutivas, a ponto de em
poucos anos seus proprietários terem de pagar mais do que o preço do próprio
imóvel a título de tributo.
Uma atitude adotada pelo governo FHC, dentro de sua política de repressão
às práticas crescentes de ocupação de terras improdutivas e de prédios públicos
pelo MST, foi a 38ª reedição com alterações da Medida Provisória 1.577, de 11 de
junho de 1997. Essa reedição, que ficou com o número 2.027-38, de 4 de maio de
2000, traz alterações ao artigo da Lei 8.629/1993. Esse artigo passa a dispor, em
clara referência às ocupações de terras praticadas pelo MST, no parágrafo 6º, que
437
BALDEZ, Miguel Lanzellotti. op. cit. p. 104. O autor utiliza aqui os mecanismos de
socialização/integração, trivialização/neutralização e repressão/exclusão, de Boaventura de Souza
Santos, a respeito da dialética negativa do Estado Capitalista no conjunto articulado e de suas
contradições com as classes populares.
128
“o imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito
agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à
desocupação do imóvel”. No parágrafo 7º, prevê que “na hipótese de reincidência da
invasão, computar-se-á em dobro o prazo a que se refere o parágrafo anterior”.
Além disso, sanciona as entidades envolvidas com as ocupações, nos parágrafos
e 9º.
438
Sua 51ª reedição, contando com o número 2109-52, de 24 de maio de 2001,
trouxe mais alterações, reiterando a impossibilidade de vistoria a terras
recentemente ocupadas, mas estendendo-a à avaliação e desapropriação 6º).
Mais ostensiva foi a redação dada ao parágrafo do artigo 2º, determinando o não
assentamento das famílias que participassem das ocupações de terra.
439
Os
parágrafos 8º e 9º foram mantidos como na MP 2027-38.
Essa medida provisória demonstra o perfil repressivo da atuação de Fernando
Henrique Cardoso em relação às práticas das ocupações visando às
desapropriações. Deve-se salientar, porém, que 90% dos assentamentos realizados
durante o seu governo resultaram de ocupações de terra.
440
Na verdade, é fato que
438
“Art. - A Lei n
o
8.629, de 25 de fevereiro de 1993, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 2
o
[...] § 8
o
A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato
que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou
participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de
caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos. § 9
o
Se, na hipótese do parágrafo
anterior, a transferência ou repasse dos recursos públicos já tiverem sido autorizados, assistirá ao
Poder Público o direito de retenção, bem assim o de rescisão do contrato, convênio ou instrumento
similar”. BRASIL. Medida provisória no 2.027-38, de 4 de maio de 2000. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/ Antigas/2027-38.htm> Acesso em: 24 set. 2007. sp.
439
“Art. - A Lei n
o
8.629, de 25 de fevereiro de 1993, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 2
o
[...] § 6
o
O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou
invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou
desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de
reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com
qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações. § 7
o
Será
excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, estando beneficiado com
lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em
processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado
como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de
imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou
avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de
desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem assim quem for
efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça,
seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de
quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações. BRASIL. Medida
provisória no 2.109-52, de 24 de maio de 2001. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_
03/MPV/Antigas_2001/2109-52.htm> Acesso em: 24 set. 2007. sp.
440
FERNANDES, Bernardo Mançano. Vinte anos do MST e a perspectiva da reforma agrária no
governo Lula. In: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs.). O
129
“no seu segundo mandato, quando criminalizou as ocupações e os movimentos
camponeses entraram em refluxo e, por conseqüência, diminuíram as ocupações de
terra, também diminuiu o número de assentamentos implantados”.
441
Em 2000, o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) ingressaram com Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI/2213) contra essa MP. Em 2002, o STF indeferiu por
unanimidade a liminar da ADIn, em função de vício formal. Até dezembro de 2007 a
referida ADIn não havia sido julgada pelo STF.
A última reedição da medida provisória, sem alterações em relação aos
parágrafos citados, se deu em 24 de agosto de 2001, com o número 2.183-56, e
continua em tramitação.
442
Ocorre que, em função do artigo da Emenda
Constitucional 32, de 11 de setembro de 2001, as medidas provisórias editadas
em data anterior à sua publicação continuam em vigor aque medida provisória
ulterior as revogue explicitamente ou a deliberação definitiva do Congresso
Nacional.
443
O STF tem o entendimento de que a referida MP não pode ser aplicada como
uma forma além das previstas na Constituição para afastar a possibilidade de
desapropriação para fins de reforma agrária.
444
Porém, várias decisões em que
as ocupações de terras podem representar força maior, assim como a seca, para
justificar os baixos índices de produtividade da fazenda vistoriada pelo Incra.
445
campo no culo XXI: Território de vida, luta e de construção da justiça social. p. 273-294. São
Paulo: Casa Amarela e Paz e Terra, 2004. p. 285.
441
ibid.
442
BRASIL. Medida provisória no 2.183-56, de 24 de agosto de 2001. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2183-56.htm> Acesso em: 24 set. 2007. sp.
443
BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional 32, de 11 de setembro de 2001.
Constituição Federal, digo Penal, Código de Processo Penal. 5 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005. p. 237.
444
“Constitucional. Mandado de Segurança. Reforma Agrária. Desapropriação. Imóvel invadido.
Movimento dos Sem-Terra. Afastada a incidência da Medida Provisória n.2.183, porquanto
instituidora de uma outra modalidade impeditiva de desapropriação, além das hipóteses previstas na
Constituição Federal de 1988. Ademais, a invasão de parte mínima da gleba rural por integrantes do
Movimento dos Sem-Terra não induz, por si só, ao reconhecimento da perda de produtividade do
imóvel em sua totalidade.” (MS 24.133, Rel. p/ o ac. Min. Carlos Britto, julgamento em 20-8-03, DJ de
6-8-04). BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Desapropriação para a reforma agrária. Brasília:
Secretaria de Documentação, Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência, 2007. Disponível em:
<http://www.
stf.gov.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoTematica/anexo/Desapropriacao131107.pdf> Acesso em
20 nov. 2007. p. 14.
445
“Sucessivas invasões do imóvel por integrantes do ‘Movimento dos Sem Terra’. Configuração de
motivo de força maior ou de caso fortuito, capaz de impedir a adequada avaliação da produtividade
do imóvel. Lei 8629/93, artigo 6º, § 7º. Segurança concedida.” (MS 23.563, Rel. p/ o ac. Min. Maurício
130
As políticas de assentamento do governo FHC também foram problemáticas,
que a política de crédito para a reforma agrária foi destruída, além da política de
assistência técnica, “prejudicando centenas de milhares de famílias assentadas,
intensificando o empobrecimento”.
446
Nesse sentido, pode-se afirmar que não se tem
realizado reforma agrária no Brasil, mas sim, “uma política de distribuição de terras
com pouca preocupação quanto ao futuro do assentado na terra, ou seja, com as
condições necessárias para o mesmo produzir de forma viável, bem como se
reproduzir socialmente permanecendo no campo com qualidade de vida”.
447
Panini critica esse método de reforma agrária que restringe o campo de ação
dos movimentos de luta pela terra. O Estado, na sua opinião, “apropria-se das
reivindicações dos camponeses e propõe o assentamento dos sem-terra nas terras
públicas e a reforma agrária nas terras ociosas, como forma de resolver os conflitos
sociais no campo”.
448
A maior crítica destinada ao governo FHC foi, além da grande repressão
exercida sobre os movimentos sociais de luta pela terra, a forma como se deram os
assentamentos que foram efetivados. Aduz-se que políticas neoliberais foram
adotadas, como o projeto piloto Cédula da Terra e o Banco da Terra, na pretensão
de que o mercado realizasse sua Reforma Agrária através dos mecanismos de
oferta e procura de compra e venda de terras.
449
“Também o INCRA terminou
esvaziado, com a redução drástica de seu quadro de funcionários. A tentativa
Corrêa, julgamento em 17-5-00, DJ de 27-2-04). BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Desapropriação para a reforma agrária... op. cit. p. 7. No mesmo sentido, os julgados MS 23.737,
Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em 19-9-02, DJ de 20-6-03; MS 23.241, Rel. Min. Carlos Velloso,
julgamento em 12-9-02, DJ de 12-9-03, MS 22.328, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 27-6-96,
DJ de 22-8-97.
446
FERNANDES, Bernardo Mançano. Vinte anos do MST e a perspectiva da reforma agrária no
governo Lula... op. cit. p. 284-285. Embora FHC tenha propagandeado que realizou a maior reforma
agrária da história do Brasil, essa realidade produziu pelo menos dois resultados lamentáveis: o
represamento, com o crescimento do número de famílias acampadas, que em 2003 chegou a 120 mil
famílias, e a precarização dos assentamentos implantados, resultantes que foram de projetos
incompletos, que, além de não terem infra-estrutura básica, a maior parte também não recebeu
crédito agrícola e de investimento”. ibid. p. 285.
447
MIRALHA, Wagner. Questão agrária brasileira: origem, necessidade e perspectivas de reforma
hoje. Revista NERA, ano 9, n. 8, p. 151-172, Presidente Prudente, Jan./Jun. 2006. Disponível em:
<http://www2.prudente.unesp.br/dgeo/nera/Revista/arq_8/Revista%20Nera%20n.%208%20Miralha.P
DF> Acesso em: 25 fev. 2007. sp.
448
PANINI, Carmela. Reforma agrária dentro e fora da lei: 500 anos de história inacabada. o
Paulo: Paulinas, 1990. p. 196.
449
Sobre o Banco da Terra e as reações à reforma agrária de mercado implementada pelo governo
FHC cf. MEDEIROS, Leonilde Sérvolo. Movimentos sociais, disputas políticas e reforma agrária
de mercado no Brasil. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ/UNRISD, 2002. p. 70-112.
131
consistiu em jogar o processo de Reforma Agrária para Estados e Municípios”.
450
Fernandes observa que a chamada “Reforma Agrária de Mercado”
correspondente a esse período, veio para combater as ocupações de terra. Para o
autor, as políticas de crédito criadas pela política do agronegócio são “uma tentativa
de tirar a luta popular do campo da política e jogá-la no território do mercado, que
está sob o controle do agronegócio”.
451
A manipulação dos dados referentes ao número de assentamentos ocorridos,
chegando-se a afirmar que houve a maior reforma agrária no Brasil também foi outro
ponto de crítica.
452
Após os oito anos de governo de FHC, em função de sua reeleição em 1998,
em 2002, foi eleito presidente o ex-metalúrgico do Partido dos Trabalhadores (PT),
Luis Inácio Lula da Silva. Miguel Rosseto ocupou primeiramente o Ministério do
Desenvolvimento Agrário, pasta criada em 2000, ainda no governo FHC, sendo que,
atualmente, quem o ocupa é Guilherme Cassel. Seu II Plano Nacional de Reforma
Agrária previa o acesso à terra a 530 mil famílias até o final de 2006.
453
Seriam 400
mil famílias assentadas pelo programa da reforma agrária e outras 130 mil a
receberem terra por meio do Programa Nacional de Crédito Fundiário que atinge
áreas abaixo de 15 módulos fiscais e não podem ser desapropriadas. Além de
buscar garantir terra a 530 mil famílias, o governo federal previu a regularização
fundiária de outras 500 mil famílias até o final de 2006, a fim de conceder a elas o
título definitivo da terra. Com isso, seria elevado para 1.030.000 o número total de
450
CANUTO, Antônio; BALDUÍNO, Dom Tomás. Reforma agrária: ontem e hoje. Comissão Pastoral
da Terra. Disponível em: <http://www.cptnac.com.br/?system=news&action=read&id=1176&eid=3>
Acesso em: 20 set. 2006. sp.
451
FERNANDES, Bernardo Mançano. Agronegócio e reforma agrária. Núcleo de Estudos,
Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária. Presidente Prudente: Unesp, 2006. Disponível em:
<http://www2.prudente.unesp.br/dgeo/nera/Produção%20NERA/Agron
egócio%20e%20Reforma%20AgráriA_Bernardo.pdf> Acesso em: 25 nov. 2006. sp.
452
idem. Vinte anos do MST e a perspectiva da reforma agrária no governo Lula... op. cit. sp.
453
ONZE METAS do II PNRA - 2003/2006: META 1 - 400.000 novas famílias assentadas; META 2 -
500.000 famílias com posses regularizadas; META 3 - 150.000 famílias beneficiadas pelo Crédito
Fundiário; META 4 - Recuperar a capacidade produtiva e a viabilidade econômica dos atuais
assentamentos; META 5 - Criar 2.075.000 novos postos permanentes de trabalho no setor reformado;
META 6 - Implementar cadastramento georreferenciado do território nacional e regularização de 2,2
milhões de imóveis rurais; META 7 - Reconhecer, demarcar e titular áreas de comunidades
quilombolas; META 8 - Garantir o reassentamento dos ocupantes não índios de áreas indígenas;
META 9 - Promover a igualdade de gênero na Reforma Agrária; META 10 - Garantir assistência
técnica e extensão rural, capacitação, crédito e políticas de comercialização a todas as famílias das
áreas reformadas; META 11 - Universalizar o direito à educação, à cultura e à seguridade social nas
áreas reformadas”. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. II Plano Nacional de Reforma
Agrária (II PNRA). Disponível em: <http://www.mda.gov.br/arquivos/PNRA_2004. pdf> Acesso em 22
out.2006.
132
famílias beneficiadas pelo II PNRA em quatro anos.
454
O II PNRA deixa claro que as famílias acampadas e mobilizadas deverão ter
prioridade nos assentamentos, o que parece ser um rumo diferente do tomado pelo
presidente anterior, que penalizou aqueles que realizaram as ocupações de
propriedades.
455
Além disso, o instrumento da desapropriação para fins de reforma
agrária dos latifúndios improdutivos constitui a centralidade do PNRA e “deverá se
combinar com outros instrumentos disponíveis, como é caso da arrecadação de
terras públicas e devolutas, da aquisição por meio do Decreto 433/1992, da
regularização fundiária e do crédito fundiário”.
456
Em dezembro de 2005, o governo, através de seu Ministro do
Desenvolvimento Agrário, anunciou o número de 127.506 novas famílias
assentadas, desempenho 10,9% acima da meta de assentamentos do ano de 2005.
Com o balanço de 2005, os assentamentos realizados - nos três anos de
gestão do atual governo - somam 245.061 famílias, o que corresponde a
94,3% da meta fixada para o período pelo II Plano Nacional de Reforma
Agrária (PNRA). Este volume, segundo o ministro, equivale à cerca de 30%
do total de famílias assentadas em 35 anos de história do Incra.
457
Porém, esses dados foram bastante questionados, sendo que o MST enviou,
em janeiro de 2006, uma nota à imprensa e à sociedade, buscando demonstrar o
descumprimento por parte do governo tanto das metas do II PNRA quanto o seu
descaso com os compromissos firmados com a organização na marcha de Brasília
no ano anterior.
458
Os dados apresentados pelo INCRA são analisados minuciosamente por
Oliveira, corroborando com os argumentos do MST. Em 2003, o governo anunciou
ter assentado 36.301 famílias. Entretanto, “foram efetivamente assentadas em
projetos implantados pelo novo governo 9.233 famílias”. O descompasso dos dados
454
ibid.
455
ibid. p. 17.
456
ibid. p. 19.
457
PARA Incra, meta de assentamentos em 2005 foi superada em 11%. Centro de documentação
Eloy Ferreira da Silva. Disponível em: <http://www.cedefes.org.br/new/index.php?conteudo
=materias/index&secao=2&tema=27&materia=1943> Acesso em: 25 set. 2006. sp.
458
“Lula se comprometeu, em um documento assinado pelo governo dia 18 de maio a: publicar a
portaria de novos índices produtividade; priorizar o assentamento das famílias acampadas; a preparar
um novo crédito especial para os assentados, já que o PRONAF não é adequado à realidade dos
sem-terra e garantir uma nova linha de agroindústria para as famílias assentadas”. ROTTA, Vera.
MST questiona números divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Agência Carta
Maior. 24 jan. 2006. Disponível em: <http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.
cfm?materia_id=9749> Acesso em: 25 set. 2006. sp.
133
leva à conclusão de que o lculo do governo soma os “assentamentos de reforma
agrária, de regularização fundiária e de reordenamento dos assentamentos
existentes, onde na maioria dos casos reconhecia-se a situação existente de
substituição de antigos assentados”.
459
Nos três anos consecutivos (2003, 2004 e 2005), segundo Oliveira, o
Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA fizeram de fato menos de um
terço da reforma agrária prevista no PNRA.
460
Isto quer dizer que o MDA/INCRA assentou referente à Meta 1 do II PNRA,
apenas e tão somente 89.927 famílias, ou 34,2% das metas estabelecidas
para os três primeiros anos de governo. Pode-se concluir, portanto, que a
teoria do um terço das metas se manteve constante, e com ele a tese da
não reforma agrária.
461
O que ocorreu, portanto, foi que o MDA/INCRA divulgaram os dados em 2005
agregando os números relacionados às diferentes metas, mas referindo-se somente
à Meta 1 - Novas famílias assentadas.
462
Isso tudo demonstra o acerto da afirmação de Martins, de que “quando o
Movimento do Sem Terra exige reforma agrária, exige uma coisa. Quando os
governos dizem que estão fazendo reforma agrária, estão fazendo outra coisa”.
463
Portanto, seguindo a tradição concernente aos séculos que nos separam da
origem da concentração das terras no Brasil, o próprio governo que seria de origem
popular acabou contribuindo para a concentração de terras, ao invés de adotar uma
postura de redistribuição das mesmas. O resultado disso foi o incremento nos
números referentes aos conflitos no campo, gerando uma quantidade enorme de
“vidas desperdiçadas”.
464
O setor ruralista segue ganhando força, seja por meio da bancada cativa nas
casas legislativas, seja através da União Democrática Ruralista. A lógica do
agronegócio se mantém em confronto com os camponeses. As ocupações de terra
459
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A não reforma agráriado MDA/INCRA no governo lula. Land
Research Action Network. Disponível em: <http://www.landaction.org/gallery/ANaoReformaAgraria
NoGovernoLULA.pdf#search=%22%22assentamentos%20em%202005%22%22> Acesso em: 25 set.
2006. sp.
460
Em 2003, 30,8%; em 2004, 29,7%, contabilizando, em 2005, 34,2% das metas estabelecidas para
os três primeiros anos de governo. ibid.
461
ibid. Grifos no original.
462
ibid.
463
MARTINS, José de Souza. A questão agrária brasileira e o papel do MST. In: STÉDILE, José
Pedro (Org.). A reforma agrária e a luta do MST. p. 11-76. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 51.
464
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas... op. cit.
134
ferem profundamente essa lógica, “e por essa razão o agronegócio investe
ferozmente na criminalização da luta pela terra, pressionando o Estado para impedir
a espacialização desta prática de luta popular”.
465
A manutenção da concentração da terra: questão agrária e violência estrutural
Como visto, a implantação de uma política efetiva de distribuição de terras
esbarra em interesses bastante poderosos, a ponto de, mesmo após séculos
haverem passado desde a primeira divisão do território em sesmarias pelos
colonizadores, a concentração da terra permanecer na mão de pouquíssimos
setores da população.
Depois da modernização que levou à associação entre o grande capital e a
grande propriedade rural, os bancos, as empresas multinacionais, os grandes
grupos econômicos, todos têm interesse na propriedade da terra. “Propor uma
reforma agrária significa desafiar seus interesses ou, então, indenizá-los a preços
que incluem a especulação imobiliária, o que significa não fazer reforma agrária”.
466
Assim, ao contrário do que imaginavam os que lutaram nas décadas de
setenta e oitenta pela reforma agrária, a década de 1990 foi de permanência na
concentração da terra. O índice de Gini, que mede a concentração da propriedade
da terra variando de zero a um, sendo o zero a igualdade absoluta e um a
concentração absoluta, o demonstra. A Tabela 1 traz a evolução da concentração de
terra no Brasil de acordo com o índice de Gini.
Ano 1967 1972 1978 1992 1998 2000
Índice 0,836 0,837 0,854 0,831 0,843 0,802
Tabela 1 – Evolução do índice de Gini (1967-2000). Fonte: Incra.
467
Conforme os dados divulgados em 2003 pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), os imóveis com mais de 2 mil hectares
representavam 43,7% da área total de propriedades no Brasil (Tabela 2).
Estratos
Àrea total (ha)
Imóveis Àrea total
Área
média
465
FERNANDES, Bernardo Mançano. Agronegócio e reforma agrária... op. cit.
466
MARTINS, José de Souza. A questão agrária brasileira e o papel do MST... op. cit. p. 35.
467
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA. O Brasil
desconcentrando terras: o índice de Gini. MDA, 2000. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/
arquivos/0127900015.pdf> Acesso em: 01 jul. 2007. sp.
135
imóveis Nº de imóveis % dos imóveis Hectares % de área Hectares
Até 10 1.338.711 31,6% 7.616.113 1,8% 5,7
De 10 a 25 1.102.999 26,0% 18.985.869 4,5% 17,2
De 25 a 50 684.237 16,1% 24.141.638 5,7% 35,3
De 50 a 100 485.482 11,5% 33.630.240 8,0% 69,3
De 100 a 500 482.677 11,4% 100.216.200 23,8% 207,6
De 500 a 1000 75.158 1,8% 52.191.003 12,4% 694,4
De 1000 a 2000 36.859 0,9% 50.932.790 12,1% 1.381,8
Mais de 2000 32.264 0,8% 132.631.509 31,6% 4.110,8
Total 4.238.421 100,0 % 420.345.382 100,0% 99,2
Tabela 2 – Estrutura Fundiária do Brasil, 2003. Fonte: Incra – situação em agosto de 2003.
468
Essa estrutura fundiária concentradora está diretamente relacionada à
situação de miséria de grande parte da população rural.
469
Essa é uma das
preocupações daquilo que se costuma chamar questão agrária. Sua continuidade é
também o resultado da adoção de uma política agrícola latifundista e
agroexportadora.
A chamada modernização do campo, realizada durante a ditadura militar
significou o recrudescimento de uma conflitualidade existente. Marcou uma outra
forma de exclusão, a partir da expropriação e do desemprego. Assim, cumpre
ressaltar em primeiro lugar, que essa modernização se deu de forma parcial no
campo. O que ocorreu foi a fusão do capitalista e do proprietário de terra na mesma
pessoa, sendo que banqueiros, empresários, etc. passaram a manter relações de
trabalho modernas, capitalistas na cidade e, ao mesmo tempo, relações pré-
capitalistas, quase feudais, no campo.
470
A expansão do agronegócio, possibilitada por esta fusão entre capitalista e
proprietário da terra, acirrou o problema da concentração da terra no Brasil, com a
máscara de progresso e produtividade sob a qual se esconde o que de mais
atrasado no campo.
O processo de construção da imagem do agronegócio oculta seu caráter
concentrador, predador, expropriatório e excludente para dar relevância
somente ao caráter produtivista, destacando o aumento da produção, da
riqueza e das novas tecnologias. Todavia, a questão estrutural permanece.
Do trabalho escravo à colheitadeira controlada por satélite, o processo de
exploração e dominação está presente, a concentração da propriedade da
468
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA. Estatísticas do
meio rural. 2 ed. Brasília/São Paulo: MDA/DIEESE, 2006. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/
arquivos/estati sticas_rurais.pdf> Acesso: em 10 jul. 2007.
469
PRADO JÚNIOR, Caio. A questão agrária no Brasil. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 18.
470
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A longa marcha do campesinato brasileiro... op. cit. sp.
136
terra se intensifica e a destruição do campesinato aumenta.
471
Então, a modernização do campo, o surgimento de empresas rurais e do
agronegócio não fez com que as relações de poder no campo se modificassem. Pelo
contrário, a começar pelas relações de trabalho extremamente desumanas a que
são submetidos os trabalhadores rurais, e chegando à demonstração de domínio por
parte dos proprietários a partir de mortes exemplares, verifica-se que o capital
transnacional mais avançado se articula perfeitamente com o arcaísmo do sistema
oligárquico local no campo brasileiro.
Isso demonstra que a forma como se o desenvolvimento da agricultura, as
políticas que determinam a questão agrícola, se refletem diretamente na questão
agrária. Como aponta Silva, esse é o caso do Brasil dos anos setenta. Pelo fato de a
industrialização da agricultura brasileira ter ocorrido muito rapidamente, grande parte
da população viu suas condições precárias de vida agravadas.
472
Além de outras
modificações ocorridas no campo na década de 1980, o autor aponta como de
grande importância essa crescente presença do capital monopolista no campo. “É
dessa forma que a modernização da agricultura se desenvolve: de um lado
produzindo 80 milhões de toneladas de grãos, de outro produzindo 30 milhões de
famintos e, ainda, de outro lado, produzindo milhares de mortos”.
473
Isso significa que, apesar de a produtividade no campo ter aumentado, ou
seja, de não haver uma crise agrícola, de falta de produção de alimentos, por
exemplo, a questão agrária restou agravada. Na mesma medida em que ocorrem os
lucros do capital em função de uma determinada política agrícola que não leva em
consideração os camponeses, expropriando-os e explorando-os, aumenta-se a
concentração da terra e a pobreza, o que se reflete em uma crise agrária. A
diferença, portanto, entre questão agrícola e questão agrária é de que a primeira diz
respeito a “aspectos ligados às mudanças na produção em si mesma: o que se
produz, onde se produz, o quanto se produz”. a segunda “está ligada às
transformações nas relações de produção: como se produz, de que forma se
471
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial...
op. cit. p. 38.
472
SILVA, José Graziano da. O que é questão agrária. 16 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 43-
44.
473
FERNANDES, Bernardo Mançano. A judiciarização da luta pela reforma agrária. In: TAVARES
DOS SANTOS, José Vicente (org.). Violências no tempo da globalização. p. 388-402. São Paulo:
Hucitec, 1999. p. 398.
137
produz”.
474
Assim, apesar de serem questões distintas, uma traz conseqüências
importantes à outra, sendo que o resultado na atualidade é de crise agrária
decorrente da adoção de uma determinada política agrícola. A questão agrária traz
em si problemas relacionados à
[...] concentração da estrutura fundiária; aos processos de expropriação,
expulsão e exclusão dos trabalhadores rurais: camponeses e assalariados;
à luta pela terra, pela reforma agrária e pela resistência na terra; à violência
extrema contra os trabalhadores, à produção, abastecimento e segurança
alimentar; aos modelos de desenvolvimento da agropecuária e seus
padrões tecnológicos, às políticas agrícolas e ao mercado, ao campo e à
cidade, à qualidade de vida e dignidade humana.
475
O problema da concentração da terra, as desigualdades, injustiças e a miséria
da população rural fazem parte, portanto, dessa categoria. Se se parte do conceito
de violência estrutural como repressão das necessidades humanas fundamentais,
percebe-se que o modelo de desenvolvimento que gera toda essa exclusão é
violento
476
, e gera conflitualidade. A partir da luta contra essa violência, essa
conflitualidade passa a ficar evidente na forma de conflitos particulares, que se
transformam em violência individual e de grupo.
Essa violência diária pode ser identificada facilmente na situação dos
trabalhadores rurais sem terra. Essas pessoas não possuem garantias sequer de
seu direito à vida, quanto mais do direito à saúde, à alimentação, à habitação, ao
trabalho, etc. Para Baratta, a violência estrutural, apesar de dificilmente ser assim
identificada, “é a forma geral da violência, em cujo contexto, direta ou indiretamente
todas as outras formas de violência encontram sua fonte, direta ou indiretamente”.
477
A partir dessa afirmação percebe-se que a violência e a conflitualidade o
anteriores à luta pela terra por parte dos movimentos sociais como o MST. E,
portanto, os conflitos agrários não se resumem à atuação desses movimentos, como
474
SILVA, José Graziano da. op. cit. p. 11. grifos no original.
475
FERNANDES, Bernardo Mançano. A questão agrária no limiar do século XXI. Núcleo de
Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária. Disponível em: <http://www2.prudente.
unesp.br/dgeo/nera/Arq_publicacoes/a%20questao%20agraria.exe> Acesso em: 20 ago. 2007. sp.
476
GALTUNG apud BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia
penal… p. 338. As necessidades reais são entendidas, nesse conceito, como [...] as potencialidades
de existência e qualidade da vida das pessoas, os grupos e os povos, que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento da capacidade de produção material e cultural em uma
formação econômico-social”. ibid. p. 337. Tradução livre.
477
ibid. p. 338. Tradução livre do original em espanhol: “[...] es la forma general en cuyo contexto,
directa o indirectamente, encuentran su fuente, en gran parte, todas las otras formas de violencia”.
138
querem transparecer os setores proprietários.
Dessa forma, a idéia de violência no campo incorretamente é identificada
como se se resumisse aos conflitos locais que provocam violência de grupo e
individual. “A concentração da propriedade fundiária diretamente conduz à negação
da satisfação de necessidades e direitos fundamentais da pessoa humana, sua
marca violenta indo muito além das mortes anunciadas nos multiplicados conflitos
pela posse da terra”.
478
Sendo assim, perante essa violência surgem as lutas por reforma agrária,
através de movimentos coletivos que se utilizam de métodos extremamente
provocativos para trazer visibilidade à conflitualidade, oculta por uma percepção
deturpada de existência de relações consensuais e pacíficas no campo.
2.1.3 A luta contra a violência e a violência da reação à luta
O fato é que diante dessa violência estrutural agravada pela legitimação do
latifúndio pela produção, os grupos de trabalhadores rurais excluídos dos processos
de produção no campo, em especial dos meios de produção, reuniram-se de
maneira que pudessem expor a sua inconformidade, lutando pela agilização no
cumprimento das leis e da Constituição sobre a reforma agrária.
O grupo mais significativo é o MST, mencionado, em função de possuir
abrangência nacional e uma estrutura organizativa própria. De 1985 a 1990, o MST
se articulou em dezoito estados, tendo, na atualidade, abrangência nacional. Através
dos Encontros nacionais passou a definir as suas atividades, desafios, projetos, e
organizar as suas ações.
479
O MST é ligado a outras entidades, registradas como pessoas jurídicas,
478
KARAM, Maria Lúcia. Sistema penal e luta pela terra. In: VARELLA, Marcelo Dias (org.).
Revoluções no campo jurídico. p. 243- 260. Joinville: OFICINA, 1998. p. 244.
479
A organização do MST é composta por 10 instâncias: 1) Congresso Nacional, qüinqüenal; 2)
Encontro nacional, bienal; 3) Coordenação Nacional, composta por dois membros de cada estado,
um membro do Sistema de Cooperativas dos Assentados de cada estado e dois membros dos
setores de atividades; 4) Direção nacional, com número variado de membros indicados pela
Coordenação Nacional; 5) Encontros estaduais, anuais; 6) Coordenações estaduais, compostas por
membros eleitos nos Encontros; 7) Direções estaduais, com número variável de membros indicados
pelas Coordenações estaduais; 8) Coordenações regionais, com membros eleitos nos encontros dos
assentados; 9) Coordenações de Assentamentos e acampamentos, com membros eleitos pelos
assentados e acampados; 10) Grupos de base, na formação das instâncias de representação e dos
setores de atividades, nos assentamentos e nos acampamentos, compostos por famílias e por grupos
de trabalhos específicos. FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil... op. cit.
p. 184-185.
139
através das quais firma convênios com o governo, a Associação Nacional de
Cooperação Agrícola (ANCA) e a Confederação das Cooperativas de Reforma
Agrária do Brasil (CONCRAB). Sua forma organizativa busca aplicar alguns
princípios. São eles a vinculação permanente com as massas, as lutas de massa, a
divisão de tarefas, a direção coletiva, a disciplina, a formação de quadros, e o
desenvolvimento da mística.
480
É de se ressaltar o empenho das famílias sem terra
na constituição do movimento.
A formação dos camponeses é uma parte essencial do movimento, sendo ela
política, e comportando educação, produção, administração e comunicação.
481
Desde as primeiras ocupações surgiu a preocupação com a educação, formando-se
comissões para organizar escolas para as crianças e para a alfabetização de jovens
e adultos, tendo-se formado nos assentamentos a partir de um currículo escolar
criado pelo Movimento. De acordo com informações do MST, cerca de 160 mil
crianças estudam no Ensino Fundamental nas 1800 escolas públicas dos
acampamentos e assentamentos. O setor de educação atua também na educação
infantil (de 0 a 6 anos), contando hoje com aproximadamente 500 educadores. Seu
programa de alfabetização atinge aproximadamente 30 mil jovens e adultos.
482
Dentro da sua estrutura, o MST organiza, de acordo com os dados do próprio
Movimento, mais de 500 associações de produção, comercialização e serviços; 49
Cooperativas de Produção Agropecuária (CPA), com 2299 famílias associadas; 32
Cooperativas de Prestação de Serviços com 11174 sócios diretos; duas
Cooperativas Regionais de Comercialização e três Cooperativas de Crédito com
6521 associados. São 96 pequenas e médias agroindústrias que processam frutas,
hortaliças, leite e derivados, grãos, café, carnes e doces, além de diversos
artesanatos.
483
A forma de organização e articulação do MST é a sua característica central.
Em um país onde sequer os partidos conseguem se organizar nacionalmente é de
fundamental importância política um movimento social que se articula com tal
480
STÉDILE, João Pedro. A luta pela reforma agrária e o MST. In: STÉDILE, João Pedro (Org.) A
reforma agrária e a luta do MST. p. 95-110. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 104-105.
481
FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil... op. cit. p. 173.
482
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST: 20 anos de lutas e
conquistas. MST informa. Ano III, 56, 02 fev. 2004. Disponível em: <http://www.mst.org.br/
informativos/mstinforma/mst_ informa56.htm> Acesso em: 28 set. 2006. sp.
483
ibid. sp.
140
abrangência a partir de ações de impacto frente ao poder público e à sociedade.
Comparato aduz que, mesmo que nenhuma das ações do MST seja inédita na
história, “a novidade está na articulação feita a partir de táticas e elementos já
conhecidos, e na habilidade política que o movimento tem demonstrado, ao fazer
aliados em vários segmentos da sociedade civil”.
484
No ano de 2005, o MST registrou o número de 124.240 famílias
acampadas,
485
estando localizadas em 22 unidades da federação, sendo que, de
1990 a 2001, o número de famílias acampadas foi de 368.325. O número de famílias
em assentamentos do MST era de 108.849 em agosto de 2001.
486
O MST se organiza tendo como uma de suas finalidades pressionar o
governo a efetivar o princípio da função social da propriedade. Pelo fato de as
necessidades das populações excluídas do campo não serem atendidas, o MST
procura realizar atos para chamar a atenção da opinião pública de forma a trazer à
tona o problema da terra e a urgência da reforma agrária. O MST se declara como
“um movimento social que luta pela reforma agrária e por uma sociedade mais justa.
O latifúndio é nosso maior inimigo, mas também a miséria, o analfabetismo, a fome,
a violência no campo e na cidade, que ele gera”.
487
A partir de objetivos, princípios e programas,
488
o MST orienta a sua prática,
que se divide em várias linhas de atuação. “Com plena convicção de que a Reforma
Agrária não se daria sem as premissas da luta concreta pela conquista e
democratização da terra, o MST criou importante mecanismo de apossamento de
áreas abandonadas: as ocupações de terras”.
489
Além das ocupações, onde
milhares de famílias sobrevivem por vezes por longos períodos até que as
negociações levem à conquista da terra ou à sua expulsão, freqüentemente por
meios violentos, também realizam a ocupação de prédios públicos, marchas
regionais e nacionais e o bloqueio de estradas.
484
COMPARATO, Bruno Konder. op. cit. sp.
485
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Biblioteca. Disponível em:
<http://www.mst.org.br/biblioteca/acampam/acamp2005.htm> Acesso em: 17 set. 2006. sp.
486
ibid.
487
SANTOS, Marina. Legitimidade das ocupações: Porque ocupamos. Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra. Disponível em: <http://www.mst.org.br/setores/dhumanos/legitimi/
legitimi6.htm> Acesso em: 28 set. 2006. sp.
488
Cf. FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil... op. cit. p. 184-185.
STÉDILE, José Pedro. A luta pela reforma agrária e o MST... op. cit. MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST: 20 anos de lutas e conquistas... op. cit. sp.
489
BALDEZ, Miguel Lanzellotti. op. cit. p. 101.
141
No momento em que ocorre a ocupação da terra que não cumpre com sua
função social, molda-se um espaço de luta e resistência, conceito este abordado por
Fernandes como sendo “a manifestação blica dos sujeitos e de seus objetivos”.
490
Para o autor, é a construção desse espaço que garante a visibilidade para o
problema da exclusão social rural, bem como o da concentração de terras e o não
cumprimento de sua função social.
A escolha do latifúndio para realizar a ocupação é feita considerando-se,
basicamente, dois fatores, conforme Görgen e Stedile: “1) a facilidade de acesso a
todas as famílias que estão organizadas para ocupar; 2) escolhe-se nessa região
uma área de tamanho grande, que produza pouco ou nada, que não esteja
cumprindo com sua função social”.
491
Tendo em vista que são famílias a acampar nos locais escolhidos, existe
entre elas o sentimento de comunidade, sendo que as ocupações são práticas
coletivas. Segundo Baldez, nessas práticas, “cada trabalhador se descobre no outro
e se recria como sujeito coletivo, sabendo que individualmente, como o quer e define
o direito burguês, ele não é, perde a essencialidade e a capacidade de agir como
sujeito social”.
492
É através dessas ocupações que os sem terra situam de uma
forma explícita o problema da estrutura agrária vigente, sendo esse o seu sentido
político mais importante.
Ocupações são, antes de tudo, formas de denúncia. Por isso se ocupa, para
denunciar a penúria em que vive o pobre, no campo e na cidade, e
pressionar pela reforma. É um exercício legítimo de democracia, tal qual o
de qualquer outro grupo mobilizado. É um exercício de cidadania, tal qual
um eleitor que, passado o pleito, deve fiscalizar, denunciar o não
cumprimento e reivindicar dos representantes que escolheu seus direitos
legítimos.
493
É a exposição pública de sua situação de excluídos que traz um significado
diferencial. “Os sem-terra não se defendem, mas tomam a iniciativa, ocupando áreas
e, sobretudo, organizando acampamentos”.
494
Somando-se todas as ocupações de
terras por diversos movimentos sociais em 2005, foram 437 ocupações, envolvendo
490
FERNANDES, Bernardo Mançano. MST... op. cit. p. 237-238.
491
GÖRGEN, Frei Sérgio; STÉDILE, João Pedro. op. cit. p. 52-53.
492
BALDEZ, Miguel Lanzellotti. op. cit. p. 101.
493
SANTOS, Marina. op. cit. sp.
494
GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo.
Petrópolis: Vozes; FASE, 1990. p. 24.
142
54427 famílias.
495
É de se destacar que uma importante distinção conceitual freqüentemente
não realizada por razões políticas entre os termos ocupação e invasão. De um lado,
ruralistas e vários setores da mídia unem-se em torno do uso da expressão invasão
para designar o ingresso das famílias organizadas pelo MST em uma propriedade
rural. De outro lado, trabalhadores rurais e defensores dos atos dos movimentos
sociais em prol do avanço na reforma agrária utilizam a expressão ocupação, para
designar o mesmo ato. Invadir, porém “significa um ato de força para tomar alguma
coisa de alguém”, enquanto que ocupar diz respeito, simplesmente, a preencher um
vazio no caso, terras que o cumprem sua função social”.
496
Após analisar os
dois conceitos, desde a sua origem etimológica, Silva conclui que
[...] a invasão é o ‘esbulho possessório’ definido em lei, enquanto a
ocupação constitui um ato político, como tantos outros, destinado a chamar
a atenção da autoridade omissa para o problema candente que afeta um
grande número de pessoas. A ocupação se caracteriza ainda pelo ‘estado
de necessidade’ das pessoas que realizam essa ão e pela destinação
social da área afetada.
497
Como observa Medeiros, essa guerra semântica, que traduz a ambigüidade
da lei e se refere também ao binômio propriedade produtiva/propriedade
improdutiva, é, na verdade, “um esforço para recobrir de legitimidade práticas
violentas, sempre em nome do direito de propriedade”.
498
Após ocorrer a ocupação, parte-se para o acampamento permanente,
geralmente em uma área de terra concedida pelo governo, prefeitura, ou algum
particular, e duram até que todos os membros sejam assentados.
499
Dando seqüência a esse momento de espacialização da luta, através das
ocupações e da resistência nos acampamentos, ocorre a negociação com o
governo. Conforme o MST, através da resistência das famílias, vai conquistando
495
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2005. Disponível em:
<http://www.cptnac.com.br/?system=news&action=read&id=1263&eid=6> Acesso em: 15 set. 2006.
sp.
496
SILVA, José Gomes da. A reforma agrária brasileira na virada do milênio. Campinas:
Associação Brasileira de Reforma Agrária, 1996. p. 116. Grifou-se.
497
SILVA, José Gomes da. Ocupação e invasão. In: GÖRGEN, Frei Sérgio (Coord.). Uma foice
longe da terra: repressão aos sem-terra em Porto Alegre. p. 107-115. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
p. 110.
498
MEDEIROS, Leonilde de Sérvolo. Dimensões políticas da violência no campo. In: MOLINA,
Mônica Castagna Et. al. (Orgs.) O direito achado na rua - Introdução crítica ao direito agrário. v.
3. p. 165-175. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. p. 191.
499
GÖRGEN, Frei Sérgio; STÉDILE, João Pedro. op. cit. p. 61-62.
143
territórios onde os assentamentos ocorrem, o movimento vai se territorializando.
Fernandes explica que o conceito de territorialização é utilizado para observar o
assentamento como conquista de uma fração do território.
500
A importância dos atos do MST, ao trazerem a público a questão agrária no
Brasil, é de tal monta que se pode observar a ausência de desapropriações e de
políticas relacionadas à reforma agrária onde o MST é fraco ou inexistente. “A lei
é aplicada quando existe iniciativa social, essa é a norma do direito. [...] A lei vem
depois do fato social, nunca antes. O fato social na reforma agrária é a ocupação, as
pessoas quererem terra, para depois aplicar a lei”.
501
Dessa forma, ao buscar, através das ocupações de terras, a concretização de
direitos fundamentais e a eficácia da Constituição Federal e das leis ordinárias que
tratam sobre a reforma agrária, como o Estatuto da Terra e a Lei Agrária (Lei
8.625/1993), seus atos têm um respaldo jurídico. Araujo constata que
[...] se existe uma base legal na qual está assente o movimento
reivindicatório pela terra, a legitimidade é dada pelos objetivos da Lei, isto é,
a busca por uma melhor distribuição da terra para que se leve ao campo
uma situação de justiça social (art. 1°, Estatuto d a Terra).
502
Nesse sentido, a atuação do MST se constitui em ações políticas com uma
finalidade de concretização de direitos. É a relação estabelecida, por Araujo, entre
política e direito, ou juridicização da política. “Tem-se um movimento social que
utiliza ações políticas para fazer com que o Estado se obrigue a efetivar normas
jurídicas cujo conteúdo aponta para a fruição de um determinado direito subjetivo: o
acesso à terra”.
503
Diante disso, fica claro que a ocupação da terra não é o início da
conflitualidade no campo, como buscam defender alguns setores da população. “O
começo da conflitualidade foi gerado pela expropriação, pelo desemprego, pelas
desigualdades resultantes do desenvolvimento contraditório do capitalismo”.
504
A violência da reação à luta
500
FERNANDES, Bernardo Mançano. MST... op. cit. p. 241.
501
STÉDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava gente: A trajetória do MST e a
luta pela terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p. 115.
502
ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O acesso à terra no Estado democrático de direito... op. cit.
p. 209.
503
ibid. p. 224.
504
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial...
op. cit. sp.
144
A partir da luta pela terra, porém, novos focos de conflito se mostram de
forma ainda mais intensa. Apesar de se saber claramente que as relações sociais no
campo foram sedimentadas ao longo dos séculos de forma extremamente violenta, o
que é demonstrado pela constância da violência física das agressões e mortes no
campo, essa conflitualidade torna-se mais evidente quando há a luta pela terra.
Isso porque questionar a propriedade privada a partir de sua função social
significa questionar o poder enraizado na terra pela tradição.
A terra constitui um meio de produção fundamental, fonte de apropriação da
renda capitalista da terra, de exploração do sobretrabalho dos camponeses
e da mais-valia dos trabalhadores rurais. A terra também é a base do poder
político, local e regional, uma garantia de exercício das práticas de
dominação clientelísticas, manipuladas pelos agentes do capital e da
propriedade fundiária , e pelos representantes do Estado intervencionista: a
propriedade privada da terra constitui um dos fundamentos do prestígio
social e do exercício da dominação.
505
Dessa maneira, percebe-se um incremento no número de conflitos no
campo
506
nos últimos anos. O ano de 2005 foi de um grande aumento em relação
aos últimos 21 anos. Aconteceram 1.881 conflitos em 2005, enquanto em 2004
foram 1801 (CPT, 2007). A comparação de 1996 a 2006 do número de conflitos no
campo está expressa na Figura 1.
0
500
1000
1500
2000
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
conflitos
Figura 1 – Número de conflitos no campo (1996-2005).
507
505
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada... op. cit. p. 139.
506
O termo conflitos no campo aqui é utilizado no sentido exposto pela Comissão Pastoral da Terra
em seu relatório anual. Nesse sentido violência significa “o constrangimento e ou destruição física ou
moral exercidos sobre os trabalhadores rurais e seus aliados. Esta violência está relacionada aos
diferentes conflitos registrados por questões de terra, água, trabalhista, seca, garimpo, ou nas ações
de protestos dos trabalhadores”. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Tabela síntese das
violências no campo no Brasil. Disponível em: <http://www.cptnacional.org.br/?system=news
&action=read&id=1254&eid=6> Acesso em: 29 mai. 2007.
507
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2006. Disponível em:
<http://www.cptnac.com.br/pub/publicacoes/3d38b4e21defcfc5274aaf6a34eb59c0.xls> Acesso em:
27 mai. 2007.
145
Com o aumento do número de conflitos no campo no Brasil, outras formas de
violência, tradicionais no meio rural brasileiro também se expressam mais. Baratta
expõe a “violência de grupo” como aquela em que o agente praticante do ato
violento é um grupo social, que se serve de indivíduos: “pertence a este tipo de
violência aquela realizada por grupos paramilitares”.
508
Pode-se identificar essa
forma de violência nos grupos de homens armados contratados pelos fazendeiros
para fazerem frente a grupos de sem terra quando ocupam suas propriedades.
Elas [milícias armadas] podem ser legalizadas sob a fachada de “empresas
de segurança”, como acontece em Mato Grosso do Sul, em Mato Grosso e
em São Paulo; podem aparecer como realmente são, um grupo de
pistoleiros contratados por fazendeiros que se cotizam, como na Paraíba;
podem estar, como em Alagoas, a serviço da Federação da Agricultura ou
até como em Goiás, onde um grupo de fazendeiros do município de
Caiapônia, criou a Patrulha Rural, eufemismo para um grupo de pistoleiros.
No Norte do Brasil, especialmente no Pará, os fazendeiros o se unem.
Cada um deles tem seus próprios pistoleiros, os “seguranças” das
fazendas.
509
O ano de 2003 foi especialmente preocupante quanto ao número de mortes
nos conflitos de terra, sendo que atingiu seu maior índice desde o início da
publicação de tais dados pela Comissão Pastoral da terra (CPT), em 1985. A Figura
2 representa a evolução dos dados a partir de 1996.
Nota-se que o número de mortes se manteve elevado nos últimos onze anos.
Apesar de em 2004 ter decrescido expressivamente, em relação a 2003, aquele ano
foi marcado por dois massacres em Minas Gerais, de dois fiscais do Ministério do
Trabalho, em Unaí, e de cinco sem-terra em Felisburgo.
0
10
20
30
40
50
60
70
80
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Nº Mortes
508
BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal… p. 338.
509
MARANHÃO, Malu; SCHNEIDER, Vilmar. A ofensiva da direita no campo no Brasil. Centro de
derechos humanos de Nuremberg. Disponível em: <http://www.menschenrechte.org/beitraege/
lateinamerika/beit005la.htm> Acesso em: 15 jul. 2007. sp.
146
Figura 2 – Total de mortes em conflitos de terra (1994-2005).
510
Mais comum do que a utilização das milícias armadas é a contratação de
jagunços, peões que têm por tarefa justamente matar pessoas incômodas.
511
A
contratação dessas pessoas é mais uma demonstração da permanência do atraso.
Como nota Barreira, esses mesmos personagens acionados no início do século
passado para reforçar o poder das oligarquias tradicionais, “hoje, nas portas de um
novo milênio, são sistematicamente utilizados no reforço de grupos econômicos
modernos”.
512
Isso porque a propriedade da terra sempre esteve ligada ao poder, e a prática
da agressão física contra os dissidentes é uma maneira de manifestá-lo. “As classes
dominantes agrárias sempre utilizaram a violência como uma tecnologia de poder,
aliada às práticas do clientelismo e da cooptação, contra as estratégias de
rompimento daquela relação estrutural com a propriedade da terra”.
513
Para Grzybowski, os enfrentamentos armados por terra atuais trazem como
novidade a “a amplitude das lutas e o fato dos assassinatos extrapolarem a esfera
individual e adquirirem o caráter de violência de classe”.
514
Violência de classe representada em uma organização, criada em 16 de maio
de 1985, em Goiânia, chamada União Democrática Ruralista (UDR).
515
Tal
510
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2006... op. cit.
511
Os jagunços fazem parte de uma forma de solução de conflitos através do que se chama de
banditismo. Segundo Martins, o banditismo vem desde o período colonial, mas se tornou muito
significativo com o coronelismo da República. Apesar de a palavra jagunço designar várias relações,
comumente se fala nos jagunços como aqueles trabalhadores que faziam parte dos exércitos
privados dos fazendeiros. Além disso, o jagunço de aluguel, “que poderia participar das lutas dos
fazendeiros ou que podia praticar um crime de encomenda, mediante pagamento, mas que não era
um agregado do coronel, quando muito seu protegido”. MARTINS, José de Souza. A militarização
da questão agrária no Brasil... op. cit. p. 58-59.
512
BARREIRA, César. Massacres: monopólios difusos da violência. Revista Crítica de Ciências
Sociais, Coimbra, n. 57/58, p. 169-185, junho/novembro 2000. p. 176.
513
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente; BRUMER, Anita. Estudos agrários no Brasil:
modernização, violência e lutas sociais (desenvolvimento e limites da Sociologia Rural no final do
Século XX). In: 30 años de sociologia rural en América Latina. p. 33-69. Montevideo: ALASRU,
2000. p. 47.
514
GRZYBOWSKI, Cândido. op. cit. p. 16.
515
Cabe ressaltar que não é de hoje a organização da elite do meio rural na defesa de seus
interesses. Mendonça traz um estudo de uma entidade, a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA),
criada em 1987. O ruralismo desse período seguiria três postulados, “integrando sua palavra de
ordem da defesa da vocação eminentemente agrícola do Brasil: a) a reivindicação da extensão dos
benefícios da ciência e da técnica ao campo, b) a necessidade da diversificação agrícola do país e c)
a demanda pela reatualização das formas de imobilização da mão-de-obra junto à grande lavoura,
constituindo o que se chamaria, à época, de uma nova civilização agrícola”. MENDONÇA, Sônia
Regina. Mundo rural, intelectuais e organização da cultura no Brasil: o caso da Sociedade Nacional
147
organização surgiu sob a liderança do fazendeiro Ronaldo Caiado, com o claro
objetivo de evitar a reforma agrária (através do PNRA de Sarney), pregando a
utilização de força física e de armas contra os sem terra.
516
Segundo Maranhão e
Schneider, a entidade se ramificou na década de oitenta para 11 estados. Um
importante ato da UDR se deu em 11 de julho de 1987, quando 40 mil produtores
rurais tomaram Brasília, durante a constituinte, para pressionar na elaboração da
nova Constituição na parte que dizia respeito à questão agrária.
517
Seu argumento é de que, ao não providenciar a proteção às suas terras, o
Estado abre a possibilidade de os próprios proprietários fazerem justiça pelas
próprias mãos. O assassinato de vários líderes sem terra ou outros dissidentes no
campo, entre outros, como religiosos e ativistas políticos, que lutam pela reforma
agrária, ou por melhores condições de vida, o atribuídos a integrantes da UDR,
sendo o caso mais conhecido de todos o de Chico Mendes, assassinado em 1988,
no Acre, tendo como mandantes dois integrantes daquela organização.
518
Assim,
pode-se identificar dois traços principais dos grupos dominantes no campo: “a
defesa da propriedade como direito absoluto e violência como prática de classe”.
519
Percebe-se assim o poder que vem ligado à propriedade. “Mais ainda, a
violência seria uma das formas de dominação exercida pelas classes dominantes
para reproduzir, no tempo e no espaço, suas posições na estrutura social, com
de Agricultura. Mundo Agrário. Revista de estudios rurales, nº 1, segundo semestre de 2000.
Disponível em: <http://www.mundoagrario.unlp.edu.ar/nro1/mendonca.htm> Acesso em: 13 out. 2006.
516
É importante ter em conta que existem várias entidades que reúnem ruralistas, sendo algumas
extremamente antigas. “No âmbito sindical, essa representação se através dos sindicatos rurais
nos municípios e regiões, das federações rurais nos estados e da Confederação Nacional da
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)”. A representação dos cafeicultures, usineiros, pecuaristas,
plantadores de soja, madeireiros e demais proprietários também se através de associações civis e
cooperativas de produtores, tais como a Sociedade Rural Brasileira (SRB), a Sociedade Nacional da
Agicultura), Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB)”, entre outras. BRASIL. Congresso
Nacional. CPMI “da Terra”: Relatório final (voto vencido). Relator: Deputado João Alfredo. Brasília,
2005. mimeo. p. 188.
517
MARANHÃO, Malu; SCHNEIDER, Vilmar. op. cit. sp. Após a candidatura de Ronaldo Caiado em
1989, houve uma certa ruptura do grupo, que vários optaram por votar em Fernando Collor de
Mello. Hoje, a UDR não possui uma abrangência nacional, estando presente abertamente no Paraná
e no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, sendo que em outras localidades é mais comum a
manutenção de milícias armadas por parte dos fazendeiros.
518
Darci Alves Pereira e seu pai Darly Alves da Silva foram condenados a 19 anos de prisão, em
1990. ibid. p. 206.
519
BRUNO, Regina Angela Landim. Nova República: a violência patronal rural como prática de
classe. Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, p. 284-310, jul/dez 2003. p. 285.
148
formas e as faces da violência se transformando ao longo do tempo”.
520
Mas a violência contra os trabalhadores rurais não se refere apenas à
estrutura do latifúndio e aos assassinatos. Os relatórios que aparecem hoje sobre a
situação dos trabalhadores rurais, como os cortadores de cana, e a situação de
trabalho escravo que ainda é uma violência comum, além do trabalho infantil,
demonstram que essa violência faz parte de relações de dominação costumeiras.
521
Os proprietários costumam ignorar a legislação trabalhista, ao mesmo tempo
em que o poder ligado à terra inibe a reivindicação por parte dos trabalhadores.
Além disso, em função da mecanização da lavoura, o trabalho manual se reduziu
sobremaneira, fazendo com que apenas em alguns períodos do ano sejam ofertados
empregos aos chamados bóias-frias, em uma relação precária de trabalho. Pela
necessidade de compensar a escassez de trabalho e os pagamentos por resultados,
muitos trabalhadores morreram nos últimos anos de fadiga.
522
Além disso, a redução de pessoas à condição de escravos permanece
existindo no país. Em 2005 houve um aumento das denúncias de ocorrência de
trabalho escravo. Foram encontradas 7.707 pessoas em situação de escravidão em
2005, sendo que, em 2004, foram 4.585 pessoas libertadas.
523
É claro que isso não
significa que a quantidade de pessoas nessa condição tenha aumentado, mas que
efetivamente, em função do maior número de denúncias, mais pessoas foram
encontradas nessa situação. Isso demonstra que o trabalho escravo é constante na
zona rural brasileira, apesar de haver dificuldades na sua identificação. Uma análise
520
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. O saber do crime, a noção de violência e a seletividade
penal. Delito y sociedad: Revista de Ciencias Sociales, Buenos Aires, año 9, n. 14, p. 94-106, 2000.
p. 95.
521
Um relato aprofundado de casos de violência no campo, redução de pessoas à condição análoga
à de escravo, além da questão da grilagem de terras em várias regiões do país, cf: BRASIL.
Congresso Nacional. CPMI “da Terra”... op. cit. O relatório também está disponível na internet:
www.joaoalfredo.org.br.
522
Em abril de 2007 foi divulgada uma pesquisa que conclui que o tempo de vida útil dos cortadores
de cana é a mesma que a dos escravos, cerca de 10 anos apenas. “Ao menos 19 mortes já
ocorreram nos canaviais de São Paulo desde meados de 2004, supostamente por excesso de
trabalho. Preocupados com as condições de trabalho e com a repercussão das mortes, as usinas
estão mudando o sistema de contratação desses trabalhadores, antes terceirizados”. CORTADORES
de cana têm vida útil de escravo em SP. Folha de São Paulo, Dinheiro, 29 de abril de 2007, p. B1.
Em relação a essa notícia, é interessante observar que a mesma foi divulgada na seção “dinheiro” do
jornal. Além disso, no dia 05 de maio, alguns dias após a divulgação da pesquisa, o mesmo jornal, na
mesma seção noticiou um protesto de cortadores de cana, organizado pelo MST e sindicatos,
mostrando a o “clima tenso” em função do policiamento reforçado e do impedimento da passagem
dos manifestantes para ingressar na feira Agrishow, em Ribeirão Preto. CORTADORES de cana
fazem protesto por melhores condições. Folha de São Paulo, Dinheiro, 05 de maio de 2007, p. B17.
523
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo Brasil 2005... op. cit.
149
mais detalhada dos dados demonstra ainda que o número de conflitos e de violência
em relação aos dados da população rural resulta em um número maior nos estados
onde mais cresce e se expande o agronegócio, nas regiões centro-oeste e norte. Os
maiores índices se deram no Mato Grosso, Pará, Goiás, Tocantins, Mato Grosso do
Sul, Roraima, Rondônia e Amapá.
524
Dessa maneira, apesar de a violência estrutural costumar ser ignorada,
aparecendo apenas a agressão física individual nos conflitos agrários, ela está
presente na permanência de uma conflitualidade, que se revela por vezes na
violência física, na eliminação do outro. “As relações sociais no campo contêm a
violência contra a pessoa como base de sua dinâmica, e apresentam uma realidade
agrária na qual o suplício do corpo é permanente”.
525
A violência individual das agressões físicas e mortes é uma forma de buscar
manter a situação de violência estrutural, as relações de poder, de classe e de
propriedade. Nesse sentido, as ameaças e consecuções dessa violência se mostram
como formas de dominação, mecanismos de sujeição para demonstrar força, de
forma a reproduzir as posições dominantes na estrutura social.
526
Assim, diante da prática da reivindicação cidadã, tem-se como resposta as
agressões planejadas. Para Tavares dos Santos, essas reações devem ser
consideradas como o “dilaceramento” da cidadania,
527
que propiciadas a partir do
próprio dilaceramento da carne, através de suplícios a servirem de exemplo. Para
ele, “[...] o suplício do corpo é permanente, o dilaceramento das pessoas é
constante, em particular, no espaço agrário. Verifica-se, cotidianamente, a recriação
das formas de punição do corpo, como efeito do processo de modernização da
agricultura”.
528
Porém, esse dilaceramento não provém apenas da violência de grupo e
individual, mas também da violência do sistema penal, que costuma formar um
coro com os interesses dos proprietários, desconsiderando os mais evidentes
524
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Conflitos no campo. Disponível
em: <http://www.mst.org.br/biblioteca/cpt2005/inicial.htm> Acesso em: 20 set. 2006. sp.
525
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Conflitos agrários e violência no Brasil: agentes sociais,
lutas pela terra e reforma agrária. In: SOBRAL, Fernanda Fonseca; PORTO, Maria Stela Grossi
(orgs.) A contemporaneidade brasileira: dilemas para a imaginação sociológica. p. 451-474. Santa
Cruz do Sul: Edunisc, 2001. p. 466.
526
idem. A cidadania dilacerada... op. cit. p. 134. MEDEIROS, Leonilde Sérvolo. Dimensões políticas
da violência no campo... op. cit. p. 186.
527
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada... op. cit. p. 134.
528
ibid. p. 133.
150
direitos dos sem terra, como a própria vida.
2.1.4 Da violência estrutural à violência institucional. Ou: para os amigos, a lei; para
os inimigos, o arbítrio
Se a operacionalização do sistema penal hoje recai quase exclusivamente
sobre os excluídos do capitalismo financeiro transnacional, além daqueles
deserdados históricos, e é contra eles também que se desenvolve o medo das
classes média e alta da população, imagine-se o que ocorre com excluídos
organizados coletivamente.
O caso dos sem terra é particular nesse aspecto, que, além de
incorporarem novas lutas contra os resultados da adoção de políticas neoliberais,
em especial no que diz respeito à lógica do agronegócio, questionam, acima de
tudo, a propriedade privada da terra. E juntamente a isso, o poder secular daqueles
que a detêm.
Assim, além das reações privadas às lutas, levadas a cabo por milícias
privadas ou por jagunços, como referido acima, os interesses dos proprietários são
defendidos também através da violência do sistema penal. A atuação da polícia
ocorre principalmente nas reintegrações de posse, geralmente de forma violenta e
resultando em prisões.
As relações entre poder público, na forma das agências do sistema penal e o
poder privado dos fazendeiros, antigos coronéis, que mantêm o arcaísmo de seus
desmandos na era da globalização, não é de hoje. Como visto, a relação
estabelecida entre sistema penal e proprietários de terra regride ao período da
escravidão, quando as penas públicas e as penas privadas andavam lado a lado na
repressão dos escravos dissidentes.
Além disso, com o poder dos coronéis em função da descentralização após a
proclamação da República, a distinção entre público e privado continuou nebulosa.
No meio rural no início deste século, as milícias privadas dos grandes
proprietários de terra, formadas por jagunços e pistoleiros, se confundiam
sistematicamente com as polícias locais: nas ações e nas ordens. As
ordens eram emitidas indiscriminadamente pelos chefes políticos, pelos
coronéis-proprietários de terra, ou pelos comandos das polícias locais.
Todos se colocavam como defensores e representantes da ordem.
529
529
BARREIRA, César. op. cit. p. 175.
151
Até os dias atuais essa situação persiste, sendo que de forma corriqueira se
percebe a atuação conjunta entre sistema penal e fazendeiros contra os sem terra.
Então, aquela violência de grupo, referida antes, comumente soma esforços à
violência institucional praticada pelos agentes do controle penal formal nas
reintegrações de posse. Isso leva a que a atuação da polícia se volte à defesa dos
interesses do proprietário da terra, geralmente com extrema violência, via de regra
com queima de barracos, torturas, lesões e mortes das pessoas acampadas. Como
ressalta Medeiros, “todas as notícias que nos chegam de situações de violência
evidenciam as interpenetrações entre o poder policial e as milícias privadas, entre
juízes e poder local, entre Estado e violência”.
530
A violência da reação às lutas dos sem terra passa a ser, por isso, o resultado
de um cálculo, onde polícia e milícias armadas se somam na repressão. De uma
situação de luta contra a violência estrutural, os sem terra passam a sofrer outra
forma de violência: a violência institucional.
531
A violência institucional é exercida
“quando o agente é um órgão do Estado, um governo, o exército ou a polícia. A
violência institucional pode ter formas legais, ou seja, de acordo com as leis vigentes
num Estado ou, como acontece em muitos casos, ilegais”.
532
Deixando de lado a possibilidade de realização de uma reforma agrária de
peso, o governo, ao mesmo tempo em que por um lado adota políticas como as
medidas que compõem a chamada reforma agrária de mercado, por outro lado
reprime com violência as manifestações que reivindicam reforma agrária através das
ocupações, além de promover a chamada “judiciarização da luta pela reforma
agrária”.
533
A cada de noventa foi especialmente violenta nessa repressão, sendo
que o arbítrio das lesões e mortes esteve presente.
Um fato paradigmático foi o ocorrido no dia 17 de abril de 1996, conhecido
como o massacre de Eldorado dos Carajás, no estado do Pará, onde 19 sem terra
530
MEDEIROS, Leonilde de Sérvolo. Dimensões políticas da violência no campo. p. 193.
531
BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal. p. 339.
532
ibid.
533
Este é o termo usado por Fernandes para se referir a um processo que possui três dimensões: o
uso indevido da ação possessória, por exemplo a grilagem de terras; em caso de ocupação, a
realização do despejo em defesa dos interesses e dos privilégios dos latifundiários e em detrimento
da vida dos trabalhadores; o não-desenvolvimento do processo discriminatório necessário para
compreender a razão do conflito”. FERNANDES, Bernardo Mançano. A judiciarização da luta pela
reforma agrária... op. cit. p. 394.
152
resultaram mortos e dezenas ficaram feridos.
534
Como relata César Barreira, o caso
de Eldorado dos Carajás é muito significativo quanto à união entre poder público e
privado na repressão aos sem terra, uma vez que o massacre ocorrido teve
conotação política clara, com a perseguição de determinados líderes que deveriam
ser mortos.
535
O massacre de Eldorado de Carajás, desnudando o lado arcaico e
tradicional das relações políticas econômicas do campo, faz parte da
mesma moeda do capitalismo moderno, mostrando não a necessidade
de uma mudança na estrutura agrária, mas também o poder do atraso, da
onipotência e impunidade dos grandes proprietários de terra que ainda
continuam dando as regras do jogo no meio rural brasileiro.
536
Outro fato que merece destaque é o massacre de Corumbiara, ocorrido em 09
de agosto de 1995, em Rondônia, onde nove trabalhadores rurais foram
assassinados.
537
Esses fatos, que não são isolados e únicos, expõem uma violência
no meio rural que chega a ponto de serem consideradas execuções sumárias e
extrajudiciais. É o que conclui o relatório publicado por Lima Jr. et. al.
[...] embora as práticas criminosas possam ser atribuídas mais a pistoleiros
contratados pelos fazendeiros, é certo que a polícia, com ou sem ordem
judicial de despejo, tem usado força excessiva em várias ocasiões, atirando
em multidões de trabalhadores e suas famílias, espancando-os e
queimando suas casas para forçá-los a abandonar a terra e torna-se
conivente com os homicídios na medida em que não os investiga
corretamente.
538
A violência institucional em relação aos conflitos do campo ocorreu de forma
particular durante a ditadura militar, dando lugar ao que Martins chamou de
534
“A chacina foi o resultado de um processo de negociação tenso realizado entre Governo do estado
do Pará, a polícia militar, os representantes do INCRA e os integrantes do movimento sem terra,
durante os anos de 1994 a 1996”. VARELLA, Marcelo Dias. op. cit. p. 144. Estavam acampadas
cerca de mil e quinhentas pessoas bloqueando a rodovia PA-150, em manifestação para pressionar o
Governo a desapropriar o complexo Macaxeira, no município de Parauapebas. Os trabalhadores sem
terra bloquearam a rodovia para reivindicar comida e transporte necessários para seguir até Belém.
Porém, buscando combater os ocupantes, chegaram ao local dois ônibus de policiais militares,
portando armas de fogo, escudos e cassetetes. Encurralados os manifestantes, “entre os dois
contingentes e a topografia local”, os policiais militares retiraram suas tarjetas de identificação, e
começaram a atirar. O pânico tomou conta das pessoas, sendo que 19 pessoas foram mortas e
dezenas ficaram feridas. ibid. p. 448.
535
BARREIRA, César. op. cit. p. 172-175.
536
ibid. p. 184.
537
Na ocasião a Policia Militar invadiu um acampamento dos sem terra no Município de Corumbiara
(RO). “Ao arrepio da lei que permite ações de reintegração de posse à luz do dia -, o confronto
resultou em 11 mortos e numerosos feridos e desaparecidos. Nove trabalhadores rurais foram
assassinados, alguns à queima roupa, outros pelas costas, barracos incendiados, corpos
carbonizados”. SILVA, José Gomes da. A reforma agrária brasileira na virada do milênio... op. cit.
p. 92.
538
LIMA JR., Jayme Benvenuto et. al. op. cit. p. 21.
153
militarização da questão agrária no Brasil. Além da violência física do policial, do
jagunço, da violência da justiça, que, segundo o autor, se transformou em executora
de uma política de expropriação territorial, privilegiando os interesses da empresa
privada sobre os dos trabalhadores, a militarização foi uma terceira forma de
violência, decorrente dessas outras duas.
539
O pretexto da infiltração comunista
bastou para a ditadura militar dizimar um grande número de líderes dos
trabalhadores rurais. Esses pretextos historicamente foram utilizados para a
repressão armada aos movimentos dos pobres do campo, como no caso da
acusação de monarquismo aos camponeses que lutavam nas revoltas de Canudos e
do Contestado.
540
Diferentes pretextos com uma prática comum: agressão, tortura e
morte.
Com efeito, ao contrário de a intervenção militar nas relações rurais reduzir o
poder dos grandes proprietários, na verdade ambas as forças se complementaram
na repressão violenta aos movimentos sociais para a manutenção da ordem.
Claramente, a ação repressiva longe de favorecer o monopólio da violência
por parte das instituições militares, implicou, ao contrário, um amplo
favorecimento da violência paramilitar e privada dos grandes proprietários
de terra. Nunca na história do Brasil o latifúndio foi o poderoso no uso da
violência privada e nunca as forças armadas foram tão frágeis em relação a
ele quanto durante o regime militar.
541
Além da violência institucional representada pela repressão armada aos
trabalhadores rurais que demonstram a sua inconformidade com a atual situação da
distribuição de terras, e praticam as ocupações, outra prática violenta, desta vez
supostamente amparada na lei, é a da prisão das lideranças dos movimentos, bem
como dos participantes.
542
Identificarem-se atos de ocupação de terras com fatos
criminosos é corriqueiro, sendo que os participantes de ocupações comumente
sofreram mais de um processo criminal. Os líderes do MST também possuem
grande experiência em delegacias de polícia e prisões.
539
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil... op. cit.
540
JONES, Alberto da Silva. Questão agrária e direito de propriedade. In: VARELLA, Marcelo Dias
(org.) Revoluções no campo jurídico. p. 11-54. Joinville: OFICINA, 1998. p. 27
541
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso... op. cit. p. 82-83.
542
Bergalli esclarece que a Galtung diferencia a violência estrutural da violência institucional através
da existência ou não de um sujeito em especial que provoque a violência. Ou seja, a primeira é mais
abstrata, e não algo que se possa a atribuir a uma instituição em especial, como na segunda.
BERGALLI, Roberto. La violencia del sistema penal. In: BERGALLI, Roberto et. al. Control social
punitivo: Sistema penal e instancias de aplicación (policía, jurisdicción y cárcel. p. 7-23. Barcelona:
M. J. Bosch, 1996.
154
Nesse ponto passa a ficar mais claro o significado da ação do sistema penal
no campo: a de reagir contra “crimes” e “criminosos”. Sabendo-se que, no marco
construcionista, o existe crime sem reação social, as agências do sistema penal
produzem, com as prisões, a relação entre reivindicações de terra, e criminalidade.
A partir daí, a redução de atos políticos a atos criminosos ganha também a opinião
pública, e, a partir das interações sociais, reivindicações são construídas
socialmente como crimes.
Ao realizarem as prisões, ainda logram delimitar o inimigo, e,
estrategicamente, desmobiliza-se os agentes, podendo neutralizá-los com o
encarceramento. Dessa forma, identifica-se os atos praticados durante as
ocupações pelos integrantes do MST com invasões, saques, ou seja, fatos
criminosos comuns. Dentre as acusações resultantes constam os crimes de dano,
“pelas cercas e demais estruturas destruídas quando das ocupações; furto, pelo
desaparecimento de lascas de madeira, cercas de arame, bois e alguns outros
animais; usurpação, devido às ocupações de terra, e formação de quadrilha, pela
reunião para o fim de cometer os crimes anteriores”.
543
Algumas decisões dos tribunais avançaram na interpretação dessas
capitulações na década de 1990. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 1996,
firmou jurisprudência sobre a necessidade de distinguir uma forma legítima de
pressão democrática de qualquer tipo de figura delituosa. Nessa decisão, o voto do
Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro trouxe elementos inéditos a respeito. Para ele, “a
conduta do agente do esbulho possessório é substancialmente distinta da conduta
da pessoa com interesse na reforma agrária”.
544
No caso julgado na oportunidade
tratava-se de um Habeas Corpus em função da prisão de integrantes do MST.
Observou o Ministro que
[...] no esbulho possessório, o agente dolosamente, investe contra a
propriedade alheia, a fim de usufruir um de seus atributos (uso). Ou alterar
os limites do domínio para enriquecimento sem justa causa. No caso dos
autos, ao contrário, diviso pressão social para concretização de um direito
(pelo menos - interesse). No primeiro caso, contraste de legalidade
compreende aspectos material e formal.
545
543
VARELLA, Marcelo Dias. op. cit. p. 327-328.
544
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Voto do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. Habeas-corpus
no 4.399, da 6a Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 12 de março de 1996.
Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/pesquisar.jsp?newsession=yes&tipo_visualizacao=RES
UMO&b=AC OR&livre=4399> Acesso em: 13 jun. 2007.
545
ibid.
155
A análise da finalidade com a qual atuam os sem terra na ocupação, muito
diferente daquelas relativas aos crimes pelos quais costumam ser denunciados, é o
que descaracteriza a ocupação como infração penal, através do tipo de
culpabilidade inserido na Teoria Geral do Delito, exposta por Cernicchiaro em seu
voto. “Grosso modo seria a possibilidade do operador do Direito analisar o grau de
reprovabilidade da conduta delituosa no meio social e de ponderar o bem jurídico
tutelado, privilegiando o aspecto material do delito em detrimento do formal”.
546
Em outra decisão do STJ, de 1997, constou de sua ementa, que “movimento
popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o
patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar
programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do
Estado de Direito Democrático”.
547
Assim, a forma como a interpretação dos casos se nos tribunais depende
também do grau de compreensão em relação à hermenêutica constitucional.
Sabendo-se que a interpretação de todo o ordenamento jurídico brasileiro, além de
todos os atos praticados por pessoas públicas ou privadas, deve estar em
consonância com os princípios da República, bem como com seus objetivos e
direitos fundamentais que deles decorrem, a legitimidade de qualquer ato deve ser
analisada por essa ótica.
O que precisa ser compreendido é que a legitimação da ocupação decorre
de sua destinação, ou seja, o trabalho vem em primeiro lugar, pois é a
produção que conduz a ação de ocupação na busca de um sustento próprio
para a sobrevivência. Frente a estas situações de emergência, a aplicação
da lei tem que atender à racionalidade inquestionável da lógica jurídica, ou
seja, considerar os fins sociais e as exigências do bem comum sobretudo
quando está em risco o direito à vida.
548
Em pesquisa sobre as prisões geradas por conflitos agrários no Brasil, Lima e
Strozake observam que elas “acontecem muito mais na esfera policial do que judicial
e, portanto, são prisões que parecem servir mais ao controle social do que em razão
546
SIQUEIRA, Cecília Pessoa Guerra de; HIRAYAMA, Viviane Vinaud. Ocupação: modo de realizar a
promessa constitucional de Reforma Agrária. In: MOLINA, Mônica Castagna Et. al. (Orgs.) O direito
achado na rua - Introdução crítica ao direito agrário. v. 3. p. 165-175. Brasília: Universidade de
Brasília, 2001. p. 293
547
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. Habeas-corpus no 5.574, da 6a Turma do
Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 08 de abril de 1997. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/
SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=5574&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=4> Acesso em: 13 jun. 2007.
548
SILVA, José Gomes da. Ocupação e invasão... op. cit. p. 110.
156
de um cometimento de crime propriamente dito”.
549
Isso demonstra a arbitrariedade
com a qual a polícia atua sobre os sem terra, mas também deixa clara a função de
exercício de poder e de controle social. Por outro lado, os autores também
verificaram em alguns locais a utilização do Direito Penal e do Processo Penal por
juízes como instrumentos de perseguição política aos militantes dos movimentos
sociais, concordando com o relatório da Anistia Internacional, de 1997.
550
Sabe-se que as decisões judiciais são sempre eivadas de valorações,
considerando-se o que foi abordado no primeiro capítulo sobre os second codes.
Sendo assim, as decisões em processos gerados a partir de ocupações de terras
costumam ser polarizadas. De um lado, juízes que possuem um posicionamento
mais conservador e legalista buscam desconsiderar o contexto em que o fato típico
ocorre, demonstrando que o jurista deve se abster desse tipo de abordagem. Por
outro lado, a corrente crítica argumenta, através da dogmática e de razões históricas
a não existência de crime e a necessidade de perseguição de justiça social.
551
Para a corrente conservadora, apesar de as manifestações públicas exigindo
direitos sejam próprias da democracia, “acreditam ser atribuição da justiça criminal
separar os ‘trabalhadores rurais com vocação’ ou ‘com aptidão agrícola’ e os
‘criminosos infiltrados’ nas organizações”.
552
, então, uma ligeira compreensão
dos motivos dos sem terra, porém, a sua atuação continua sendo percebida como
criminosa, sendo que entre estes atores devem ser identificados os genuínos
homens do campo e os criminosos. Tudo indica, nesse contexto, que, pelo fato de o
estereótipo do camponês não se coadunar com o do bandido, torna-se necessário
despi-lo primeiro de seu rótulo de camponês para posteriormente etiquetá-lo como
criminoso infiltrado.
Apesar de as penas cominadas aos manifestantes serem em regra reduzidas,
549
LIMA, Renato Sérgio de; STROZAKE, Juvelino. Garantias constitucionais e prisões motivadas por
conflitos agrários no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 14, n. 60, maio-junho de
2006, p. 321-339. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 327.
550
ibid. p. 328. Esse relatório foi publicado após a condenação do líder sem terra José Rainha Júnior,
e considera os integrantes do MST, presos em função das atividades do movimento, como presos
políticos, porque os seus processos se dão muito mais em função do que pensam e à sua
participação no MST do que nas provas. AMNISTÍA INTERNACIONAL. Brasil: Cargos penales por
motivos políticos contra activistas de la reforma agraria. Disponível em: <http://web.amnesty.org/libra
ry/print/ESLAMR190171997> Acesso em: 28 jul. 2007.
551
SINHORETTO, Jacqueline. A justiça e os conflitos agrários (segundo juízes e promotores).
Publicação oficial da Associação Juízes para a democracia, ano 11, n. 40, dez 2006/fev. 2007. p.
3.
552
ibid.
157
em função dos tipos penais aos quais se logra adaptar aos seus atos, a regra é que
haja a reiteração da criminalização, sendo que após ser criminalizado uma vez, o
sujeito passa a uma situação mais vulnerável.
553
Esse tipo de construção da
delinqüência pelas agências do sistema penal traz como principal função o controle
social dos dissidentes.
Esta política deliberada dos governos constitucionais busca tanto o
disciplinamento social como a intenção de deslegitimar as reclamações,
desqualificando seus verdadeiros objetivos e obstaculizando qualquer
alternativa distinta à ordem política e econômica vigente.
554
A finalidade dessa repressão penal é justamente a desarticulação das
organizações, retirando pessoas incômodas de circulação, e fazendo recair sobre
seus líderes e membros a etiqueta de criminosos. Possibilita-se dessa maneira um
maior controle social sobre uma só classe.
A prisão dos sem terra, principalmente sem condenação, configura a
utilização ao máximo de um sistema penal reservado aos inimigos, mas que na
América Latina atinge a maioria dos presos: “A característica mais destacada do
poder punitivo latino-americano atual em relação ao aprisionamento é que a grande
maioria aproximadamente ¾ - dos presos está submetida a medidas de
contenção, porque são processados não condenados”.
555
Isso significa que a lei
penal e processual, e a Constituição, que garantiriam a legalidade dos atos do
sistema penal são reservados apenas aos amigos, enquanto que aos inimigos é
dado o arbítrio. Ironicamente, contraria-se a fala atribuída a Getúlio Vargas, que
dizia: “Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei”.
Zaffaroni ressalta que, das três categorias de clientes do sistema penal, os
indesejáveis se encontram nas piores situações, que, em regra são eliminados
através de internação em rceres caracterizados por altos índices de morbidade,
553
LUNA, Franco Ariel; ALANIZ, Liliana Alejandra. No siempre tenemos que poner la outra mejilla. In:
Ponencias del XV Congreso Latinoamericano, VIII Iberoamericano y XI Nacional de Derecho
Penal y Criminología. p. 59-64. Córdoba: INECIP, 2003. p. 59.
554
AQUINO, Ruben Dario; CORONEL, Sebastian Leonardo; YBAÑEZ, Ricardo Daniel.
Criminalización de la protesta vs. ejercicio del derecho de resistência a la opresión: la transpolación
de un conflicto social al campo de lo penal. In: Ponencias del XV Congreso Latinoamericano, VIII
Iberoamericano y XI Nacional de Derecho Penal y Criminología. p. 47-51. Córdoba: INECIP,
2003. p. 48. Grifos no original. Tradução livre do espanhol: “Esta política deliberada de los gobiernos
constitucionales persigue tanto el disciplinamiento social como el intento de deslegitimar los reclamos,
descalificando sus verdaderos objetivos y obstaculizando qualquier alternativa distinta al orden
político y económico vigente”.
555
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal... op. cit. p. 70.
158
até mesmo em função das condições de higiene, agressões físicas, e homicídios.
os dissidentes “são mais tolerados, ainda que a repressão ao protesto social dos
excluídos do sistema produtivo tenha aumentado, mediante a aplicação extensiva de
tipos penais e a interpretação restringida de causas de justificação ou de
exculpação”.
556
Constituindo-se em poucos, os iguais são os únicos a utilizar os
benefícios do direito penal liberal.
557
No caso dos pobres organizados do campo é interessante que, mais do que
nunca, a sua criminalização configura a delimitação do inimigo. Isso porque, ao se
relacionar a pesquisa citada entre juízes e promotores conservadores, que separam
os camponeses dos criminosos infiltrados, fica clara a relação entre eles e a sua
ideologia política. Aquele posicionamento é vinculado principalmente à idéia de que
os infiltrados são os comunistas que querem instaurar uma outra ordem social no
país a partir de suas reivindicações. Nesse sentido, o inimigo interno adquire
características cada vez mais próximas daquele utilizado para fomentar a
propagação da ideologia da segurança nacional a partir da década de sessenta.
558
Sendo assim, o controle social formal não se ocupa apenas de construir uma
556
ibid. p. 71.
557
Com essa classificação, Zaffaroni busca demonstrar que o poder punitivo “sempre discriminou os
seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas,
dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos são
assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas
infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal [...]”. ibid. p. 11. Ao explicar a
essência do inimigo, explica que “o inimigo declarado (hostis judicatus) configura o núcleo do tronco
dos dissidentes ou inimigos abertos do poder de plantão, do qual participarão os inimigos políticos
puros de todos os tempos. Trata-se de inimigos declarados, não porque declarem ou manifestem sua
animosidade, mas sim porque o poder os declara como tais: não se declaram a si mesmos, mas
antes são declarados pelo poder”. ibid. p. 23. A questão a se responder é justamente se é possível
admitir o conceito de inimigo no direito do Estado de direito, “considerando como tal aquele que é
punido em razão de sua condição de ente perigoso ou daninho para a sociedade, sem que seja
relevante saber se a privação dos direitos mais elementares a qual é submetido (sobretudo a sua
liberdade) seja praticada com qualquer outro nome diferente do de pena, e sem prejuízo, tampouco,
de que se lhe reconheça um resíduo de direitos mais ou menos amplos”. ibid. p. 25.
558
A ideologia da segurança nacional ganhou importância no Brasil no período da ditadura militar.
“Foi ela inspirada na doutrina elaborada no National War College, nos Estados Unidos após a
Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de uma resposta ao avanço dos movimentos de ideologia
comunista, que estavam multiplicando a sua influência em todo o mundo, inclusive em países
estrategicamente importantes para o projeto de expansão norte-americano, tal como o Brasil”. DAL RI
JR., Arno. op. cit. p. 280. Isso fica claro no manual básico da Escola Superior de Guerra, citada por
Dal Ri Jr: “O conceito tradicional de defesa nacional coloca mais ênfase sobre os aspectos militares
da segurança e, correlatamente, sobre os problemas de agressão externa. A noção de segurança é
mais abrangente. Compreende, por assim dizer, a defesa global das instituições, incorporando, por
isso, os aspectos psicossociais, a preservação do desenvolvimento e da estabilidade política interna;
além disso, o conceito de segurança, muito mais explicitamente que o de defesa, toma em linha de
conta a agressão interna, corporificada na infiltração e subversão ideológica”. Escola Superior de
Guerra apud DAL RI JR., Arno. op. cit. p. 283.
159
criminalidade comum, de forma seletiva, mas principalmente, de construir um inimigo
político, ao separar os líderes dos demais camponeses. No momento em que se
rotula os atos dos sem terra como atos criminosos, possibilita-se que algumas
parcelas da sociedade os identifiquem dessa maneira, auxiliando no controle social.
Observe-se, porém, que esse inimigo político não é delimitado apenas através
da atuação das agências do sistema penal formal, ou seja, da criminalização
secundária. A criminalização primária também é fundamental nesse sentido. Além
de se notar a extrema preocupação com o patrimônio na lei penal, mais do que com
a pessoa, os grupos que se encontram em maioria nas casas legislativas brasileiras
sempre buscaram criminalizar as condutas dos setores mais frágeis e vulneráveis às
agências do sistema penal. Assim, a escolha seletiva dos bens a serem protegidos
pelo direito penal na criminalização primária por apenas um estrato social, de classe
alta, branca e masculina, faz com que os seus interesses sejam sobrelevados na
criação das leis.
[...] o sistema penal [...] irá refletir os interesses e proteger, de forma
especial, os bens jurídicos próprios da minoria detentora das riquezas e da
mais substancial parcela de poder, dirigindo seu maior rigor para uma
prioritária punição de condutas praticadas por membros das classes
subalternizadas, e, assim, funcionando, através da desigual e seletiva
manifestação de poder, expressada na imposição da pena, como importante
instrumento de manutenção e reprodução excludente de injusta estrutura
econômica e social dominante.
559
O resultado da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) “da Terra”
560
,
concluída em novembro de 2005, é um claro exemplo da tentativa de criminalização
por parte dos setores que detêm o poder de definição. Isso porque o relatório
aprovado traz duas propostas de projetos de lei em que se busca criminalizar as
ocupações de terra e inseri-las no rol de crimes hediondos, além de configurá-las
como atos terroristas.
561
559
KARAM, Maria Lúcia. op. cit. p. 247.
560
As Comissões Parlamentares Mistas de Inquérito são criadas no âmbito do Congresso Nacional e
integradas por Deputados e Senadores, podendo ser Permanentes ou Temporárias. Têm regras de
criação e funcionamento definidas no Regimento Comum, à semelhança do que ocorre com as
demais Comissões de cada uma das Casas.
561
A Comissão parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) “da Terra” foi criada “com o objetivo de realizar
amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, os
movimentos sociais de trabalhadores (que têm promovido ocupações de terras, áreas e edifícios
privados e públicos, por vezes com violência), assim como os movimentos de proprietários de terras
(que, segundo se divulga, têm-se organizado para impedir as ocupações por vezes com violência)”. A
CPMI teve como presidente o Senador Álvaro Dias (PSDB-PR), como Vice-Presidente o deputado
Ônix Lorenzoni (PFL-RS) e como relator o Deputado João Alfredo (PSOL-CE). Após dois anos de
160
Um dos projetos cria o tipo penal “Esbulho possessório com fins políticos”,
que seria o parágrafo segundo do artigo 161 do Código Penal, com a seguinte
redação: “Saquear, invadir, depredar ou incendiar propriedade alheia ou manter
quem nela se encontre em cárcere privado, com o fim de manifestar inconformismo
político ou de pressionar o governo a fazer ou deixar de fazer alguma coisa: Pena
reclusão, de três a dez anos”.
562
Além disso, tal projeto busca alterar o artigo 92 do
Código Penal, para acrescentar aos efeitos da condenação o inciso IV, com a
seguinte redação: “a extinção de pessoa jurídica legalmente instituída e utilizada
para prática de crime por iniciativa ou consentimento de seus dirigentes”.
563
Por
último, prevê a inclusão daquele tipo penal, o do esbulho possessório com fins
políticos, no rol dos crimes hediondos.
Na justificativa de tal projeto consta a explicação de que existe uma lacuna na
legislação penal, e que, por isso, os integrantes do MST seguem impunes por seus
atos. Isso porque, em geral, a condenação por dano e formação de quadrilha,
que o elemento subjetivo de outros tipos não está presente. A justificativa encerra
com a seguinte frase: “Com este projeto tornado lei, buscamos dar resposta eficaz
ao estágio que chegou esse tipo de movimento dito ‘social’, que impõe inaceitável
desenvolvimento da CPMI, o relatório foi apresentado pelo Deputado João Alfredo no dia 22 de
novembro de 2005, lido em sessão. Porém, não pôde ser votado porque vários parlamentares,
pertencentes à bancada ruralista
561
, pediram vista do relatório, conseguindo barrar a votação. No dia
29 de novembro houve a sessão onde o relatório foi posto em votação. Porém, o mesmo foi rejeitado,
tendo 13 votos contrários e oito favoráveis. O tom adotado no documento apresentado por João
Alfredo, de forma favorável à reforma agrária e contrária aos interesses dos ruralistas, provocou
atritos e levou integrantes da bancada ruralista a apresentarem outro texto, assinado pelo Deputado
Abelardo Lupion (PFL-PR). Este relatório foi o extremo oposto do original e reflete as posições
antagônicas do MST e da União Democrática Ruralista (UDR), e foi aprovado por 12 votos a um.
Enquanto no relatório do Deputado João Alfredo contava-se 751 ginas, sendo 27 delas de
encaminhamentos, uma proposta de emenda constitucional, três projetos de leis ordinárias e um
projeto de lei complementar, o de Abelardo Lupion tem 365 páginas, sendo 9 de encaminhamentos e
dois projetos de leis criminais. O relatório de João Alfredo trouxe detalhadamente o que foi
constatado nas viagens, com respaldo teórico, relacionado aos depoimentos colhidos. Dedicou, de
forma proporcional, 66 ginas aos movimentos sociais no campo e 56 páginas às organizações e
entidades ruralistas. Trouxe, em 296 páginas, a análise dos casos que a CPMI da Terra localizou em
nove estados. Fez também um diagnóstico da questão urbana relacionada ao setor imobiliário.
Quanto aos encaminhamentos ao Legislativo, não trouxe nenhuma proposta em matéria criminal,
estando todas diretamente relacionados à viabilização da reforma agrária. o relatório do Senador
Abelardo Lupion dedica 209 ginas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, trazendo
uma série de acusações a respeito de irregularidades de convênios, além de abordar exaustivamente
referências ideológicas ao MST. Quanto aos casos de violência no campo, narrados pelos depoentes,
bem como averiguados in loco pela CPMI, dez páginas são dedicadas. Em relação às entidades
ruralistas, ao trabalho escravo e às mortes dos trabalhadores no campo, nada é mencionado.
562
BRASIL. Congresso Nacional. CPMI “da Terra”: Relatório substitutivo. Relator: Deputado
Abelardo Lupion. Brasília, 2005. mimeo.
563
ibid.
161
desrespeito à liberdade social e à autoridade do Estado e fragiliza o processo
jurídico-democrático, o qual, há vinte anos, vem se consolidando em nosso país”.
564
O outro projeto proposto prevê o acréscimo de um parágrafo ao art. 20 da Lei
7170/1983 (Lei de Segurança Nacional), de forma que o ato de quem invade a
propriedade alheia com o fim de pressionar o governo seja considerado ato
terrorista. A redação do parágrafo é: “incide nas mesmas penas quem saqueia,
invade, depreda ou incendeia propriedade alheia, ou mantém quem nela se encontra
em cárcere privado, com o fim de manifestar inconformismo político ou de pressionar
o governo a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”.
565
Ao que parece, isso demonstra justamente a tese das teorias conflituais da
criminalidade, onde se percebe que os grupos que estão no poder buscam
criminalizar os atos dos demais, através do poder de definição.
566
Assim, define-se o
que é crime e quem são os criminosos. Mesmo que esses projetos jamais venham a
ser votados e aprovados, o relatório cumpriu com sua função simbólica. Todos os
noticiários do dia 30 de novembro de 2005 divulgaram os seus resultados, e o que
era para ter sido um estudo sobre as violências no campo tornou-se ele próprio uma
forma cruel de violência simbólica.
Na questão agrária, o fato de a maior parte dos representantes do povo ser
constituída de proprietários de terras faz justamente com que as demandas por
reforma agrária não progridam, bem como, que os atos dos sem terra produzam
efeitos que não o da sua própria criminalização.
cerca de 180 representantes dos chamados ruralistas na Câmara dos
Deputados, o que corresponde a mais de um terço dos votos. Mas,
demograficamente, as elites não são um terço da população. Portanto,
estão usurpando o lugar de alguém, alguém que não esta corretamente
representado, estão ocupando certamente o lugar dos pobres e dos que
trabalham.
567
A violência do sistema penal inicia, portanto, pela atuação dos próprios
legisladores. A Constituição de 1988, com os valores emancipatórios que trouxe,
não logrou ainda penetrar na mente dos representantes do povo. Da mesma forma
como dos juízes e também dos policiais. A atuação do judiciário, com honrosas
exceções, contribui muito para a manutenção do status quo, privilegiando os
564
ibid. p. 368.
565
ibid. p. 369.
566
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. op. cit.
567
MARTINS, José de Souza. A questão agrária brasileira... op. cit. p. 28.
162
interesses dos grandes proprietários em detrimento da situação paupérrima dos sem
terra.
O papel do sistema penal na reprodução da violência estrutural
Sendo reconhecidamente míope, por consagrar a idéia de violência resumida
à violência individual, o sistema penal necessita, para o bem de controlar
socialmente os pobres, individualizar suas condutas. E como se individualizam atos
cometidos com objetivos políticos claros de pressão social diante do
descumprimento da Constituição Federa e das leis? A resposta é cil e vem sendo
diariamente instrumentalizada: despolitizá-los.
Sobre o assunto, merece destaque o trabalho de Vera Andrade, que chega
justamente a essa conclusão, ao identificar na utilização do paradigma lico uma
forma de demarcação do inimigo interno. A partir daí “a problemática agrária é, no
mesmo movimento despolitizada e policizada (ou militarizada). No trajeto da
exclusão social à criminalização penal, duplica-se a violência, assim como duplica-
se a imunização”.
568
Nota-se, portanto, que a criminalização dos sem terra é possível em
função da individualização dos conflitos. Dessa forma torna-se fácil legitimar a
atuação das agências de controle penal, recaindo-se na violência institucional. Como
nota Baratta, “uma característica geral da construção dos conflitos dentro do
pensamento penal e criminológico tradicional é justamente a sua ‘despolitização’ em
termos de uma suposta ciência do comportamento individual e de uma técnica de
respostas a ele”.
569
Pelo fato de se individualizarem as lutas, de elas serem tratadas pelo direito
penal, e não pelo constitucional, há a identificação de pólos, o do bem e o do mal.
570
568
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A construção social dos conflitos agrários como
criminalidade. In : VARELLA, Marcelo Dias (org.). Revoluções no campo jurídico. p. 327-354.
Joinville: OFICINA, 1998. p. 346.
569
BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal… p. 352.
Tradução livre do original em espanhol: “Una característica general de la construcción de los
conflictos dentro de las categorías del pensamiento penal y criminológico tradicional es su
‘despolitizaciónen términos de una supuesta ciencia del comportamiento individual y de una técnica
de respuestas a él”.
570
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A construção social dos conflitos agrários como
criminalidade. p. 346. É necessário destacar que, muito embora este trabalho busque desocultar a
lógica de criminalização dos conflitos sociais, isso não significa que se deva apenas inverter os pólos,
163
E, diante disso, a delimitação de quem são os amigos e de quem são os inimigos,
contra os quais o sistema penal e a opinião pública deverão se voltar.
Sabe-se que o sistema penal atua segundo uma lógica absolutamente
seletiva, sendo esta a sua operacionalidade e objetivo real e não um erro na sua
execução. O sistema penal intervém, então, para manter a situação e não para
modificá-la. Sendo assim, constrói socialmente a idéia de que uma situação
complexa de conflitualidade se resume a um simples conflito, subversor da ordem.
Tal conflito se soluciona, segundo essa ótica, a partir da atuação do sistema penal,
reprimindo e acuando os subversores.
Ao se individualizar os conflitos, ocorre o ocultamento das demais formas de
violência, em especial das violências estrutural e institucional. A prisão contribui para
essa imagem da criminalidade como sendo constituída de atos de pessoas, tidas
como perigosas.
571
O medo e a sensação de insegurança passam a se dirigir, diante
disso, a algumas pessoas, e o discurso periculosista acaba legitimando políticas de
repressão, de lei e ordem, de redução de direitos humanos. “A este tipo
particularmente perverso de busca por legitimar a injustiça nas relações sociais, à
repressão violenta da demanda de justiça, pertence o uso público da doutrina de
‘segurança nacional’ e da pena legal e extralegal como guerra ao ‘inimigo
interno’”
572
.
Porém, mais importante é analisar qual função está sendo cumprida pelo
sistema penal ao atuar sobre os excluídos descontentes. Ao conseguirem impor ao
sistema a impunidade às próprias ações criminais, os grupos poderosos da
sociedade determinam a perseguição punitiva às infrações praticadas pela parcela
mais frágil da população, reproduzindo-se as desigualdades sociais existentes. “A
imunidade e a criminalização são concretizadas, geralmente pelos sistemas
punitivos segundo a lógica das desigualdades nas relações de propriedade e de
demonstrado-se que os sem-terra são o pólo do bem e os proprietários e o sistema penal
correspondem ao pólo do mal. Devido à complexidade das interações sociais, não cabe reduzi-las
dessa maneira, sendo necessário problematizar todos os grupos envolvidos. Entretanto, este não é o
objetivo do trabalho, que delimita o seu foco na problematização do processo de criminalização dos
conflitos agrários e de sua reprodução simbólica através da construção social na interação com os
meios de comunicação de massa.
571
ibid. p. 346.
572
ibid.
164
poder”.
573
Além de a clientela do sistema penal ser constituída de pobres e excluídos em
geral, as pessoas que reivindicam mudanças do status quo são freqüentemente
identificadas como criminosas.
A impunidade dos crimes mais graves é cada vez mais elevada à medida
em que cresce a violência estrutural e a prepotência das minorias
privilegiadas que pretendem satisfazer as suas necessidades em detrimento
das necessidades dos demais e reprimir com violência física as exigências
de progresso e justiça, assim como as pessoas, os grupos sociais e
movimentos que são seus intérpretes.
574
A lógica de funcionamento do sistema penal é, portanto, de “ao mesmo tempo
em que criminaliza os socialmente excluídos, imuniza-se as estruturas, o Estado e
suas instituições, bem como os latifundiários e sua constelação protetora”.
575
A
impunidade em relação às mortes de camponeses no campo é um exemplo dessa
imunidade. Entre 1985 e 2003, diante de 1349 timas de conflitos no campo em
todo o país, apenas 64 executores e 15 mandantes foram condenados, segundo
dados da CPT. Dos 1004 crimes ocorridos no período, 75 foram a julgamento, ou
seja, 7,5%.
576
Assim, ao se constatar que o sistema penal não satisfaz qualquer uma de
suas funções instrumentais justificadas pelo discurso jurídico-penal, como defender
os bens jurídicos, reprimir a criminalidade, etc., observa-se que isso o significa o
não cumprimento de outras funções, causando alguns efeitos.
Estes efeitos e funções incidem negativamente na existência de indivíduos
e na sociedade, e contribuem a reproduzir as relações desiguais de
propriedade e de poder. Desse ponto de vista, a pena se apresenta como
violência institucional, que cumpre a função de um instrumento de
reprodução da violência estrutural.
577
573
ibid. Tradução livre do original em espanhol: “La inmunidad y la criminalización son concretadas,
generalmente por los sistemas punitivos según la lógica de las desigualdades en las relaciones de
propiedad y poder”.
574
ibid. Tradução livre do original em espanhol: “[...] la impunidad de los crímenes más graves es
cada vez más elevada, en la medida en que crecen la violencia estructural y la prepotencia de
minorías privilegiadas, que pretenden satisfacer sus propias necesidades en desmedro de las
necesidades de los otros y reprimir con la violencia física las demandas de progreso y de justicia, así
como a las personas, a los grupos sociales y a los movimientos, que son sus intérpretes”.
575
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A construção social dos conflitos agrários como
criminalidade... op. cit. p. 344.
576
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Brasil julga 7,5% dos crimes
no campo. Disponível em: <http://www.mst.org.br /setores/dhumanos/violacoes/ violacao.htm>
Acesso em: 15 mar. 2006. sp.
577
BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal… p. 244.
165
Para reproduzir a violência estrutural, é necessária a delimitação de inimigos
internos, que possam manter viva a sensação de insegurança, permitindo a adoção
de políticas contrárias ao Estado de direito. Sendo assim, mais uma vez chega-se à
percepção de que o sistema penal em geral é acima de tudo uma forma de
reprodução das desigualdades. Acima de tudo, é necessário que fique destacada a
situação no Brasil, onde o sistema penal, na sua origem escravocrata, confundiu-se
penas públicas e privadas, instrumentalizando o controle sobre os corpos mais
frágeis do período. Atualmente, essa violência o pôde ser apagada, e a herança é
a de uma realidade extremamente cruel, onde a complacência com o extermínio é
evidente.
A visão dos meios de comunicação de massa, em especial do jornalismo,
sobre esses conflitos sociais no campo mostra-se de uma importância inestimável,
diante das observações realizadas no primeiro capítulo. Os meios de comunicação
possuem um privilégio dentre os órgãos de controle social informal que operam a
construção social da realidade, e a escolha dos fatos e enquadramentos que
deverão ser divulgados afeta sobremaneira a construção social dos próprios
conflitos agrários.
2.2 Os conflitos agrários nas páginas do jornal: o medo da luta, o medo do
outro
A violência que envolve a questão agrária no Brasil não tem apenas como
subtipos aqueles atos realizados por ruralistas e pelo sistema penal, decorrentes da
luta pela terra contra a violência estrutural. Em um outro plano, sente-se não apenas
a existência mas a centralidade da violência simbólica diante dos discursos sobre a
questão agrária.
Local privilegiado para a exposição de discursos é o jornal. E esse meio tem
ainda algumas características que o situam de maneira diferenciada em relação aos
demais. Algumas delas foram vistas no primeiro capítulo, e dizem respeito,
principalmente, ao lugar objetivo da fala. O que se pretende no discurso do jornal é
distanciar o máximo os fatos das opiniões, propiciando, assim, que, além de os
166
receptores verem o que o jornal está expondo, devem crer nessa informação.
578
Na busca por essa credibilidade, entretanto, uma leitura mais atenta do
discurso e da seletividade que o permeia, é possível perceber a utilização de uma
linguagem que, além de relatar fatos, difunde e legitima valores. Em função disso,
nota-se que a escolha do conjunto de valores que deve ser fortalecido no discurso
obedece a uma lógica, a qual deve ser compreendida.
Diante disso, analisar apenas o controle social formal sobre os atores da luta
pela terra, bem como a violência dos fazendeiros na reação às suas lutas parece
insuficiente. Por isso, a seguir busca-se relacionar a questão agrária, os conflitos no
campo e a violência ao discurso do jornal, no intuito de compreender de que maneira
o processo de construção social das notícias difunde uma determinada percepção
sobre os conflitos agrários no Brasil.
Para chegar a esse objetivo, o percurso deste subcapítulo inicia com um
estudo qualitativo de edições do jornal Zero Hora acerca do tema da questão
agrária. Passa por uma explicação sobre a metodologia utilizada (2.2.1), chegando-
se aos resultados obtidos (2.2.2 e 2.2.3). Posteriormente, os resultados da análise
são confrontados com outros estudos sobre os sem terra no jornalismo, para chegar,
finalmente, a uma compreensão geral acerca da interação entre sistema penal e
jornalismo na construção social dos conflitos agrários (2.2.4).
2.2.1 O discurso do jornal sobre os conflitos agrários: método de análise
Definir um método de análise significa, acima de tudo, optar por um
paradigma. Diante dessa percepção, foi necessário buscar um método que
trouxesse uma visão compatível com a teoria de base do trabalho. Foi estudado,
então, o método de Análise do Discurso Crítica (ADC), tendo como principais
referências as obras de Norman Fairclough e Teun van Dijk.
Tal método foi escolhido em função de que busca trabalhar as relações de
poder, contrariamente à defesa da neutralidade. Nesse sentido, Magalhães observa
que “A ADC atualmente se refere à abordagem lingüística adotada por estudiosos
que tomam o texto como unidade básica do discurso e da comunicação e que se
578
MOUILLAUD, Maurice. Preliminares. In: MOUILLAUD, Maurice; PORTO, Sérgio Dayrell (org.) O
jornal: da forma ao sentido. Brasília: UNB, 2002. p. 27.
167
voltam para a análise das relações de luta e conflito social”.
579
Além disso, a ADC
não se limita a descrever a realidade social, “busca a compreensão da realidade
social e mais que isso, a intervenção na realidade social pelo modo como aponta na
prática discursiva o lugar da desigualdade e exclusão, o que possibilita entrever
meios de superação dessa realidade".
580
Essa vertente da Análise de Discurso
considera a importância dos meios de comunicação de massa na atualidade, sendo
que busca vincular o seu discurso à realidade social, de forma a estudar “as formas
de manifestação da linguagem na mídia, seu papel na construção de sentidos
manipulados a serviço do poder".
581
Assim, é importante ter em vista a abordagem
da ideologia realizada por Thompson. Para a análise que o autor propõe, interessam
primeiramente “as maneiras como as formas simbólicas se entrecruzam com
relações de poder. Ela está interessada nas maneiras como o sentido é mobilizado,
no mundo social, e serve, por isso, para reforçar pessoas e grupos que ocupam
posições de poder”.
582
Dessa maneira, a ADC está
[...] orientada explicitamente para a agenda sociopolítica, para a
preocupação em inventariar e apresentar criticamente de que formas os
discursos sociais podem contribuir para a reprodução ou mudança das
relações de poder, e vem se constituindo hoje como uma área de estudo da
linguagem e do discurso dos media.
583
Ao relacionar linguagem e poder, Fairclough esclarece ter dois objetivos
principais. Em primeiro lugar, uma finalidade teórica, a de corrigir a subestimação do
significado da linguagem na produção, manutenção e mudança de relações sociais
de poder. Em segundo lugar, “uma finalidade mais prática, de auxiliar no incremento
da conscientização de como a linguagem contribui para a dominação de algumas
pessoas por outras, porque a conscientização é o primeiro degrau para a
579
MAGALHÃES, Izabel. Introdução: A análise de discurso crítica. DELTA, vol.21, no.spe,São Paulo
2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/delta/v21nspe/29248.pdf> Acesso em: 04 fev. 2007. p.
7.
580
MARTINS, André Ricardo Nunes. Grupos excluídos no discurso da mídia: uma análise de discurso
crítica. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada. vol. 21, n. spe, São
Paulo, 2005. p. 129-147. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/delta/v21nspe/29 255.pdf> Acesso
em: 01 fev. 2007. p. 145.
581
ibid. p. 136-137.
582
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: Teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 76
583
PONTE, Cristina. Leituras das notícias: contributos para uma análise do discurso jornalístico.
Lisboa: Horizonte, 2004. p. 130.
168
emancipação”.
584
Na sua teoria sobre a análise crítica do discurso, o autor explica que, assim
como o fenômeno lingüístico é social, o fenômeno social é lingüístico, que a
atividade da língua é uma parte nos processos e práticas sociais, e não apenas a
expressão. Assim, na política, por exemplo, as mesmas palavras são utilizadas
através de diferentes pontos de vista, e inclusive de formas incompatíveis por dois
lados, e para o autor, isso não é apenas o presságio de uma disputa política, é ela
própria política.
585
O discurso, para Fairclough é um excelente veículo de ideologia,
proporcionando o controle social e a manutenção do poder através do consenso,
como a partir das instituições sociais, como a escola, a mídia, a família, que,
cumulativa e coletivamente asseguram a dominação da classe do capitalista. O
poder ideológico, “que projeta algumas práticas como universais e de senso comum,
é um complemento significativo ao poder econômico e político, e tem um particular
significado aqui pelo fato de o mesmo ser exercitado no discurso”.
586
Sendo assim, tendo em vista a percepção de que a realidade é socialmente
construída, é importante verificar de que forma o discurso auxilia nessa construção
e, conseqüentemente, na criação e manutenção de relações de poder, e nas
possibilidades de permanência e mudança social.
Os discursos não apenas refletem ou representam entidades e relações
sociais, eles as constroem ou as ‘constituem’; diferentes discursos
constituem entidades-chave (sejam eles a doença mental’ a ‘cidadania’, ou
o ‘letramento’) de diferentes modos e posicionam as pessoas de diversas
maneiras como sujeitos sociais (por exemplo, como médicos ou pacientes),
e são esses efeitos sociais do discurso que são focalizados na análise de
discurso.
587
Dessa maneira, a perspectiva trazida por Fairclough é de uma análise de
discurso que reúna tanto a lingüística quanto a teoria social. Aponta o autor, que
584
FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. London and New York: Longman, 1989. p. 1.
Tradução livre do original em inglês: “I have written it for two main purposes. The first is more
theoretical: to help correct a widespread underestimation of the significance of language in the
production, maintenance, and change of social relations of power. The second is more practical: to
help increase consciousness of how language contributes to the domination of some people by others,
because consciousness is the first step towards emancipation”.
585
ibid. p. 23.
586
ibid. p. 33. Tradução livre do original em inglês: “Ideological power, the power to project one's
practices as universal and 'common sense', is a significant complement to economic and political
power, and of particular significance here because it is exercised in discourse”.
587
idem. Discurso e mudança social. Brasília: UNB, 1999. p. 22.
169
esse conceito de análise do discurso é tridimensional, ou seja, qualquer discurso “é
considerado como simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e
um exemplo de prática social”.
588
Enquanto a primeira dimensão cuida da análise
lingüística dos textos, a segunda, vista como interação, “especifica a natureza dos
processos de produção e interpretação textual”. a dimensão de prática social
“cuida de questões de interesse na análise social, tais como as circunstâncias
institucionais e organizacionais do evento discursivo e como elas moldam a natureza
da prática discursiva e os efeitos constitutivos/construtivos”.
589
Outro autor que compartilha da análise de discurso crítica é van Dick. Suas
análises são importantes porquanto identificam as especificidades estruturais do
discurso jornalístico. O autor destaca o processo de produção das notícias,
analisando os passos que se dão na fabricação do texto jornalístico. Para ele, “a
produção de notícias deve ser analisada principalmente em termos do
processamento do texto”, não somente no sentido das fases em que o texto é
produzido, mas sim, considerando-se que o texto jornalístico muito freqüentemente é
produzido a partir de outras formas discursivas, como quando cobre acontecimentos
a partir de relatos de outras pessoas ou mesmo quando o próprio acontecimento
produz discursos.
590
O autor trabalha com cinco estratégias de processamento, a
seleção, a reprodução, o resumo, as transformações locais e a reformulação
estilística.
591
A análise a partir dessas estratégias traz uma forma de desocultar posições
ideológicas expressas, como, por exemplo, pela escolha da palavra a ser utilizada
para denominar determinado fato, como por exemplo, o uso da palavra “‘revolta’ no
lugar de ‘distúrbios’ ou em lugar de ‘resistência’”.
592
Além disso, a forma verbal
passiva por vezes pode ser utilizada para não atribuir diretamente um fato negativo a
pessoas ou grupos poderosos.
A abordagem da análise do discurso proposta por van Dick se mostra
importante pelo fato de se adequar ao marco teórico do trabalho, percebendo a
588
ibid.
589
ibid.
590
DICK, Teun A. van. La noticia como discurso. Comprensión, estructura y producción. Barcelona:
Paidós, 1990. p. 141.
591
ibid. p. 168-173
592
ibid. p. 252. Tradução livre do original em espanhol: Lo mismo sucede con el uso de ‘revuelta’ en
lugar de ‘disturbios’ o en lugar de ‘resistencia’”.
170
questão da produção das notícias tanto segundo um enfoque microssociológico,
quanto de um enfoque macrossociológico. O autor busca, entretanto, suprir uma
deficiência nos estudos sobre o jornalismo que é justamente o da análise de seus
textos, de seu discurso, e não somente as condições de produção, que é objeto da
maioria das análises microssociológicas norte-americanas, nem apenas o contexto
socioeconômico, característico das análises estruturalistas européias.
Assim, van Dick propõe um estudo da interface sociocognitiva entre o texto e
os contextos socioeconômicos. “Concretamente, as maneiras nas quais os
fabricantes da notícia e os leitores representam efetivamente os acontecimentos
informativos, escrevem ou lêem os textos jornalísticos, processam diferentes textos
fonte ou participam nos fatos de comunicação”.
593
A análise de notícias que é realizada normalmente se refere ao seu conteúdo,
sem considerar, entretanto, a importância de uma análise aprofundada do seu
discurso, tendo em vista o estilo da linguagem noticiosa.
594
Acima de tudo é
necessário ressaltar, então, que a língua, para a análise do discurso, não é dotada
de transparência. Em sua decofidicação sentidos diversos podem surgir, reforçando
e afastando valores.
No que tange ao discurso do jornal, propriamente dito, é necessário analisar o
fato de que o mesmo traz a necessidade de que os leitores creiam no seu conteúdo,
tendo em vista que dificilmente uma afirmação poderá ser verificável. Em função
disso, possui uma linguagem própria, que pode proporcionar esse efeito.
A linguagem jornalística possui algumas regras a serem seguidas. Em
princípio, as funções da linguagem predominantemente utilizadas são a referencial e
a fática. O verbo se refere ao presente ou ao passado recente; usa-se o modo
indicativo, além da utilização da terceira pessoa, que provém da impessoalidade do
discurso. Quando introduz o texto sobre a linguagem das notícias, Lage observa que
a notícia é o resultado de “uma empresa produtora, na qual as decisões afloram de
um vago mecanismo, dirige-se a um público vasto, de cujo repertório tem apenas
idéias estatísticas; e se inocenta do que diz, como se falasse naturalmente dos
593
ibid. p. 250. Tradução livre do original em espanhol: “concretamente, las maneras en que los
fabricantes de la noticia y los lectores representan efectivamente los acontecimientos informativos,
escriben o leen los textos periodísticos, procesan diferentes textos fuente o participan en los hechos
de comunicación”.
594
idem. Estruturas da notícia na imprensa. In: Cognição, discurso e interação. São Paulo:
Contexto, 1992.
171
fenômenos, sem nada ocultar, exagerar ou distorcer”.
595
Dessa forma, além do que
se observou acerca da utilização das fontes oficiais como forma de se eximir de
opiniões próprias, e ao mesmo tempo de dar um conteúdo credível à matéria, o
jornalismo se vale de uma linguagem que também satisfaça estas necessidades. O
distanciamento aparente é necessário para que o jornal e/ou o jornalista não
configurem partes do conflito, o que os tornaria suspeitos.
Lage observa que a notícia é sempre axiomática, no sentido de que ela
“dispensa argumentações e, usualmente, as provas; quando as apresenta, é ainda
em forma de outros enunciados axiomáticos. Não raciocina; mostra, impõe-se como
dado e assim furta-se à análise crítica”. Para o autor, uma variável importante para
o sucesso de notícias inverificáveis pelo público é a situação relativa do emissor e
do público. Isto porque, “emissor e comunidade receptora, na comunicação social,
guardam uma relação de poder; de um modo geral, quem dispõe da palavra
respalda-se de alguma credibilidade”.
596
Nessa hipótese, a não ser que o veículo de
comunicação não goze de qualquer prestígio, mesmo no caso de uma matéria
inverificável pessoalmente pelo receptor da notícia, a tendência é de que acredite no
exposto, ao observar a possibilidade de ocorrência do que ela relata. “Como o
prestígio se vincula à tradição e ao hábito, temos por certo que o exercício
continuado da tarefa de informar e o uso de formas socialmente prestigiadas de
veiculação (o aspecto físico, ou discurso gráfico, consagrado nos jornais) acentua a
autoridade do emissor”.
597
Nesse sentido, o fato de o emissor não ter condições de afirmar um
acontecimento como certo, uma vez que depende de um processo cognitivo, como
no caso de uma investigação policial e do posterior processo criminal, não significa
que não o possa insinuar, ou melhor, expor a possibilidade de ter ocorrido de uma
ou de outra forma. Também para isto a linguagem pode ser utilizada, como no caso
da utilização de outros tempos verbais. O fato de o jornal não ser preciso em uma ou
outra parte de uma reportagem, utilizando, por exemplo, expressões que indicam
probabilidades, não significa o descrédito perante o seu público, uma vez que na
maioria dos casos estas imprecisões vêm acompanhadas de outros elementos que
transfiram também para elas um sentido de credibilidade.
595
LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 45.
596
ibid. p. 41.
597
ibid. p. 42.
172
Essa transferência de credibilidade ocorre através de uma conclusão tática
que pode ser tirada da relação de poder construída entre emissor e receptor, a
saber,
na construção de uma relação de poder desse tipo, uma conclusão tática é
de que as proposições menos verificáveis pela comunidade de receptores
deverão seguir-se àquelas mais provavelmente verificáveis, cuidando-se
que a verdade empírica destas contagie de credibilidade as outras. É mais
fácil manipular informações remotas ou abstratas.
598
Observa-se então que quanto maior a credibilidade de um veículo perante o
seu público (o que decorre de uma história de transmissão de informações
verdadeiras), maior é a possibilidade de que este público acredite em uma matéria
que não seja verificável. Essa relação de prestígio criada entre emissor e receptor
fará com que este tenha a tendência a considerar como verdadeira mesmo a
proposição à primeira vista falsa. “Não havendo confirmação imediata, colocará os
termos do enunciado sob tensão e pretenderá considerá-los de maneira que façam
sentido e enunciem uma verdade”.
599
Para propiciar uma visão mais clara a respeito de como a linguagem
jornalística auxilia na construção social dos conflitos agrários, optou-se por trabalhar,
ilustrativamente, com edições de jornal, a partir das observações acima que
diferenciam o discurso jornalístico dos demais e possibilitam a sua análise mais
atenta.
Como essa análise não pretende demonstrar o que foi estudado na
dissertação, mas apenas ilustrá-la, optou-se por escolher apenas um jornal, e,
também, um período de tempo curto. A escolha do objeto de análise seguiu alguns
critérios: um jornal regionalizado, que normalmente possibilita matérias mais
detalhadas sobre os fatos ocorridos nas localidades; uma região onde o MST fosse
forte e promovesse atos públicos e ocupações de terra constantemente; uma região
onde houvesse organização dos ruralistas para verificar a forma como o jornal
interage com os dois grupos; região próxima de Santa Catarina, onde fosse possível
compreender mais de perto o conflito, onde houvesse um conhecimento geográfico
pessoal, e que fosse um jornal grande, representativo. Em função disso, foi
escolhido o jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul.
598
ibid.
599
ibid.
173
O jornal Zero Hora
Zero Hora é um jornal de circulação regional, e foi criado em maio de 1964,
tendo, posteriormente, Maurício Sirotsky assumido seu controle acionário em 1970,
quando então passou a ser um dos veículos da Rede Brasil Sul de comunicações
(RBS).
600
Hoje, a RBS, que atua no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, possui
sete jornais, além de Zero Hora (Diário Gaúcho, Diário de Santa Maria, Pioneiro,
Diário Catarinense, Jornal de Santa Catarina, Hora de Santa Catarina e A Notícia).
O Zero Hora, apesar de ser um jornal regional, está entre os dez veículos com maior
circulação no país, de acordo com o Instituto Verificador de Circulação (IVC). O
ranking elaborado de acordo com a dia de circulação de janeiro a dezembro de
2003 nos jornais do país filiados ao IVC trouxe o jornal Zero Hora em 7º lugar.
601
O jornal se caracteriza por possuir um número grande de editorias, bem como
de cadernos especializados, dedicados desde ao meio rural aao público feminino.
Em relação à classe social a que se destina o jornal, a empresa expõe claramente
que se trata das classes A e B. O preço elevado do jornal (R$ 2,00 de segunda a
sábado e R$ 3,50 no domingo) demonstra isso. Outro jornal, o Diário Gaúcho, tem o
objetivo de circular nas classes C, D e E da população, tendo um projeto editorial
completamente diferente e um preço bem mais acessível (R$ 0,60).
A linha editorial de Zero Hora é muito ampla, compreende um conjunto de
valores sistematizados num documento chamado Guia de ética, qualidade e
responsabilidade social, tendo sido lançada a sua segunda edição em 2007, ano do
cinqüentenário do grupo. O guia “destina-se a proporcionar aos colaboradores do
Grupo RBS o conhecimento dos valores da empresa, assim como sua aplicação
prática em situações de trabalho”.
602
Segundo o guia, o valores do grupo RBS:
liberdade e igualdade, desenvolvimento pessoal e profissional, satisfação do cliente,
compromisso social e comunitário, responsabilidade empresarial.
603
As normas editoriais trazem, através de verbetes, alguns indicativos sobre a
600
GRUPO RBS. Quem somos. Disponível em: <http://www.rbs.com.br/quem_somos/index.php?
pagina=grupoRBS> Acesso em: 25 jul. 2007.
601
ibid.
602
GRUPO RBS. Guia de ética, qualidade e responsabilidade social. 2. ed. Porto Alegre: RBS
Publicações, 2007. p. 5.
603
ibid. p. 08 e 09.
174
forma como os jornalistas devem agir na construção da notícia, de forma a preservar
a ética editorial do jornal.
Como empresa de comunicação, a RBS busca difundir conteúdos com
responsabilidade e integridade, em nome do interesse público e com o
sentido de estimular o desenvolvimento social, cultural e econômico das
comunidades onde atua. Tais conceitos se refletem na linha editorial da
RBS, que valoriza, entre outros, a busca da verdade, a independência, o
pluralismo, a separação clara entre conteúdo editorial e comercial e a
distinção entre opinião e informação.
604
Diante do que foi visto acerca da ideologia do jornalismo, ou seja, a defesa da
objetividade, nota-se que o jornal Zero Hora a defende sob outro nome: a precisão.
No verbete “imparcialidade” do guia, consta a seguinte explicação: “Ao elaborar uma
notícia, o jornalista da RBS deve ter como única motivação divulgar, com precisão e
equilíbrio, um fato de interesse do blico”.
605
E no verbete precisão: “A RBS
entende que a simples publicação de versões conflitantes não é sinônimo de
imparcialidade. Cabe ao veículo apurar a verdade, com isenção e na sua
plenitude”.
606
Sendo assim, não caberia ao jornalista, de forma alguma, colocar-se em
algum lado de um conflito, nem ao veículo, é claro. Até porque o jornal consagra a
necessidade de distinção entre fatos e opiniões, não assumindo posições, conforme
a maior parte dos meios de comunicação de massa capitalistas.
Conflitos agrários no Rio Grande do Sul
Os conflitos no campo no Rio Grande do Sul possuem algumas
características específicas. Uma delas é o fato de que as terras pelas quais os sem
terra lutam não são devolutas e nem públicas. Não conflito entre fazendeiros e
governo, e a grilagem não é o principal problema. Soma-se à luta do MST no Rio
Grande do Sul uma moralidade que, acima de tudo, percebe como um grande
absurdo haver uma quantidade muito grande de terras concentrada nas mãos de
apenas uma pessoa. Então, além de criticarem a improdutividade das grandes
estâncias no RS, o MST também critica a sua extensão propriamente, deixando
604
ibid. p. 15.
605
ibid. p. 27.
606
ibid. p. 31. A RBS acata, entre outros, os preceitos do Conselho Nacional de Auto-
Regulamentação Publicitária (Conar), as normas do Conselho Executivo das Normas-Padrão (Cenp)
e o Código de Ética e Auto-Regulamentação da Associação Nacional de Jornais”. ibid. p. 47.
175
claro que o problema é a concentração da terra. Por isso, a moralidade como um
valor bem presente nas lutas do MST no estado.
Na verdade, as primeiras ocupações de terras que seriam a gênese do MST
no Brasil aconteceram no RS, no ano de 1979 na cidade de Ronda Alta, como
resultado de um processo de expropriação ocorrida pela criação de uma reserva
indígena.
607
Após conquistarem duas glebas na região, Macali e Brilhante, as
famílias remanescentes da luta ocuparam a fazenda Annoni, em 1980, sendo
despejados quase que imediatamente pela Polícia Federal, além de 12 colonos
terem sido presos.
608
Após esse acontecimento, ainda no ano de 1980, uma família, sem ter para
onde ir, resolveu acampar próximo ao encontro das estradas que levam a Ronda
Alta, Sarandi e Passo Fundo, local que, alguns meses depois abrigava já 600
famílias e passou a ser chamado de Encruzilhada Natalino. Nesse local, com o
auxílio da CPT e da Igreja Luterana, os sem terra se organizaram, recebendo o
apoio de sindicatos, estudantes, etc.
609
Porém, a repressão a essa mobilização se
deu de imediato. Primeiramente, houve as tentativas de cooptação dos sem terra,
para integrarem projetos de colonização no Acre, Roraima, Mato Grosso e Bahia.
Porém, apesar de inicialmente algumas famílias quase terem aceitado as propostas,
perceberam que aqueles projetos não tinham infra-estrutura que permitisse a sua
sobrevivência. Com a recusa às propostas, deu-se início à violência institucional,
610
sendo que ocorreu intervenção federal no local, de onde ninguém poderia entrar
nem sair. Em função da pressão de várias instituições, dentre elas a OAB, os
interventores se retiraram do acampamento.
O acampamento se desfez em assentamentos provisórios criados com a
compra de terras pela Igreja. Mas, em 1985, quando o MST havia sido formado a
partir da lógica criada naqueles acampamentos do início da cada, ocorreu um dos
principais fatos históricos da luta pela terra no RS, a ocupação da Fazenda Annoni,
de 9.500 hectares por mil e quinhentas famílias.
611
O acampamento permaneceu por sete anos, conjuntamente com marchas,
ocupações de outras áreas no estado, e outras ações visando à conquista da terra.
607
FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil... op. cit. p. 51.
608
ibid. p. 54.
609
ibid. p. 57.
610
ibid. p. 59.
611
ibid. p. 163.
176
O confronto com policiais e o ataque de jagunços nesse período trouxe um alto
saldo de mortes e ferimentos de sem terra. O assentamento da fazenda Annoni se
transformou em um referencial na luta pela reforma agrária no país.
De para as práticas dos sem terra ficaram cada vez mais organizadas,
sendo mantidas, justamente pelo fato de que há muitas terras ainda disponíveis para
a produção. No ano de 2006, houve oito ocupações de terras no estado, cinco
acampamentos, e oito conflitos por terra. No total 6.076 famílias estiveram
envolvidas nesses conflitos.
612
Em função dessas especificidades da região, optou-se por analisar um jornal
que estivesse envolvido com essa historicidade, e esse é o caso do jornal Zero
Hora. A análise tem por objetivo, então, verificar de que forma o este jornal tece a
imagem da questão agrária, em especial, do que é um conflito agrário, quem são os
atores envolvidos nessa questão, e o que possivelmente trará os maiores indícios,
quais são as vozes diretamente presentes no discurso. Essa determinada percepção
sobre a questão agrária e os conflitos agrários trará uma imagem sobre os seus
atores, dentre eles, os integrantes do MST. Além disso, é essencial a relação dessas
diferentes vozes com os agentes do controle social formal e informal. Em relação
aos primeiros, a análise possibilita a percepção sobre quem são as vozes oficiais
que se manifestam a respeito da questão agrária e dos conflitos agrários.
Quanto à escolha das edições do jornal a serem analisadas, o principal
critério foi o da atualidade. Quanto à quantidade, não houve a preocupação com
uma exaustividade, e, por isso, julgou-se que a análise de seis meses de edições
era suficiente para os objetivos do trabalho. Foi escolhido um período corrido, ao
invés de dias, semanas ou meses alternados para verificar a continuidade dos fatos
relatados pelo jornal, que normalmente quando ocorre um conflito agrário ele é
noticiado por vários dias, senão meses. Assim, foi selecionado o período de
novembro de 2006 a abril de 2007.
Dentre as várias seções do jornal, foram selecionadas as notícias que
dissessem respeito à questão agrária, ainda que fizessem parte de assuntos
diferentes. Além das matérias jornalísticas, alguns comentários de colunistas e
cartas de leitores significativos para o conjunto da análise também foram
612
COMISSAO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo 2006... op. cit.
177
abordados.
613
Para realizar um primeiro tratamento do material obtido, partiu-se de uma
organização a partir dos seguintes pontos principais: título, fato(s) a que se refere a
notícia, gênero jornalístico, elementos gráficos, personagens, fontes (diretas e
indiretas). A partir daí foram relacionados todos os títulos, que são bastante
representativos para a análise do discurso.
Após essa primeira catalogação, buscou-se elaborar categorias para
orientarem a análise. É necessário esclarecer que, muito embora todas as
categorias estejam estreitamente relacionadas, confundindo-se em alguns
momentos, cada uma possui alguns elementos peculiares. Além disso, muito pouco
será abordado acerca dos componentes gráficos e da apresentação da página do
jornal. Isso significa que parte-se de uma estrutura temática, tópicos globais sobre
os quais versa o exemplar da notícia.
Essas categorias surgiram tanto do estudo teórico realizado anteriormente,
quanto da própria análise do material. Essas categorias são: a) medo/vigilância; b)
paz-conflito; c) violência/crime.
a) A primeira categoria surgiu principalmente da pré-análise dos jornais,
porque da primeira leitura a idéia que ficou sobre os conflitos agrários no jornal é
justamente o sentimento de tensão entre os ruralistas em função das ações do MST
no estado. Nesse sentido, o medo dessas ações provocou vigilância, noticiada
diariamente pelo jornal. E vigilância significa, antes de tudo, controle social. A partir
desses indícios, essa categoria foi considerada essencial para uma melhor
percepção sobre a visão do jornal acerca dos conflitos agrários.
b) A segunda categoria parte tanto da análise teórica como da primeira
categoria. Em primeiro lugar, no esboço teórico anterior foi especificada a idéia da
613
É necessário nesse ponto definir a classificação dos gêneros jornalísticos. Tradicionalmente se
distingue no Brasil o jornalismo informativo do jornalismo opinativo. O primeiro é composto por nota,
notícia, reportagem, e entrevista. O segundo, por editorial, comentário, artigo, resenha, coluna,
crônica, caricatura e carta. PENA, Felipe. op. cit. p. 69. As matérias analisadas neste trabalho se
referem, principalmente, a notícias e reportagens. Um paralelo que se pode fazer entre os dois
gêneros é: A notícia: apura fatos, tem como referência a imparcialidade, opera em um movimento de
indução, atém-se à compreensão imediata dos fatos essenciais, independe da intenção do veículo,
trabalha muito com o singular, relata formal e secamente, tem pauta centrada no essencial que
recompõe um acontecimento. A reportagem: lida com assuntos sobre fatos, trabalha com o enfoque,
a interpretação, opera com a dedução, converte fatos em assunto, aprofunda, é produto da intenção
de passar uma visão interpretativa, focaliza a repetição, a abrangência, procura envolver, usa a
criatividade, trabalha com pauta mais complexa, pois aponta causas, contextos conseqüências, novas
fontes. DEUS apud PENA, Felipe. op. cit. p. 76.
178
existência e permanência da conflitualidade nas relações humanas. Sendo assim,
não há consenso, há conflito, e os confrontos pontuais entre sujeitos históricos
ocorre como um tensionamento dessa conflitualidade permanente.
614
Assim,
pareceu que a visão do jornal acerca do consenso ou conflito em torno da questão
agrária também traria indícios sobre a sua construção social.
c) A terceira categoria também decorre das primeiras, mas parte
principalmente da abordagem teórica anterior acerca da violência. Visualizar a forma
como as violências no campo se estampam nas páginas de Zero Hora também
permite identificar a sua perspectiva a respeito dessa categoria. A sua relação com a
idéia de crime/criminalidade e identificação de criminosos é importante, na medida
em que normalmente quando se identifica um foco de violência, no sentido de
agressão individual, busca-se etiquetar juntamente os responsáveis pela mesma, e
penalizá-los. Nesse ponto, ingressam também as agências de controle social formal
e a maneira como as mesmas interagem na questão agrária. A sua simples
presença indica uma determinada concepção acerca dos conflitos agrários, e o lado
para onde esse controle social volta seus binóculos também indica a construção da
responsabilidade pelo conflito.
Dados gerais sobre os conflitos no campo em Zero Hora
As matérias jornalísticas referentes à questão agrária encontram-se
localizadas dentro da seção “Geral” do Jornal Zero Hora, geralmente entre as
páginas 30 e 59, conforme o dia da semana.
De um total de 181 edições, dos meses de novembro e dezembro de 2006 e
janeiro, fevereiro, março e abril de 2007, em 58 estiveram presentes notas, notícias
ou reportagens que fizeram menção à questão agrária. Utilizou-se como mecanismo
de busca os termos “questão agrária”, “mst” e “conflitos no campo”.
Em todo o período analisado, duas reportagens especiais sobre o tema da
questão agrária foram publicadas, nos dias 25 de fevereiro e 07 de março de 2007.
As demais matérias são notícias ou notas. As notícias, na sua maior parte,
trouxeram ilustrações. As fotos, em regra, são dos sem terra, em suas diferentes
posições dependendo do enfoque da notícia. Quando se trata de noticiar marchas,
614
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial...
op. cit. TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Por uma sociologia da conflitualidade no tempo da
globalização... op. cit.
179
as fotos são dos sem terra marchando.
615
Quando é sobre o acampamento,
aparecem os sem terra montando o acampamento.
616
Por outro lado, em algumas
situações as fotos foram de fazendeiros vigiando os sem terra e também de
policiais.
617
Em alguns casos, ainda, fotos de conflitos físicos entre sem terra e
policiais ou entre sem terra e ruralistas.
618
É interessante observar que, além das
fotos, gráficos são expostos nas notícias, principalmente com o mapa do Rio Grande
do Sul indicando a localização dos conflitos noticiados. Em uma das notícias, além
do mapa do Rio Grande do Sul, também um mapa do Brasil é exposto com a
indicação dos conflitos.
619
ainda, em parte das notícias, um quadro explicativo
que busca remontar a acontecimentos anteriores, para contextualizar a notícia atual.
A maior parte das notícias ocupa no máximo um terço da página, sendo que
em alguns casos são utilizadas até duas páginas.
Os assuntos que motivaram notícias sobre a questão agrária em ZH, no
período de 01 de novembro de 2006 a 30 de abril de 2007 estão relacionados no
Quadro 1.
Assunto Nº de ocorrências
Fazenda Southall, em São Gabriel 15
Marchas rumo a São Gabriel e Eldorado do Sul 09
Invasões da Fazenda Coqueiros, em Coqueiros do Sul 08
Marcha em São Gabriel 05
Conflito em Coqueiros do Sul 05
Eldorado do Sul – eucaliptos 04
Invasão em São Borja 03
Acampamento na Rodovia BR116 em Pedro Osório 03
Invasões da via campesina 03
Acampamento em Pedro Osório 03
Nova Santa Rita 02
Fórum da liberdade 02
Protestos - Massacre de Eldorado dos Carajás 02
Invasões no Pontal de Paranapanema (SP) 01
Protesto contra prisão de Rainha Júnior em São Paulo 01
Quadro 01 – Fatos que motivaram notícias em ZH (nov.06/abr.07)
A maior parte das notícias se referiu ao problema da Fazenda Southall, que
está para ser desapropriada desde o ano de 2003, seguido pelas marchas, que
615
É o caso das fotografias dos dias 14 e 15 de novembro, 12 e 18 de abril.
616
Exemplos são as fotos dos dias 16 e 25 de novembro, 05 de dezembro, 07 de janeiro, 01 e 16 de
fevereiro, e 07 de março.
617
Alguns exemplos são as matérias dos dias 15 e 22 de novembro, 20 de fevereiro e dez de abril.
618
É o caso das fotos dos dias 23 e 24 de novembro, 01 e 02 de dezembro, 13 e 19 de abril.
619
AS MANIFESTAÇÕES. Zero Hora, Geral, 12 abr. 2007, p. 39.
180
também se relaciona com essa Fazenda e com outra, de Eldorado do Sul, e a
Fazenda Coqueiros, local onde está sediado um dos maiores conflitos de terra no
Rio Grande do Sul.
As demais ocorrências não tiveram grande continuidade no jornal, se
resumindo a três, duas ou uma notícia apenas.
Os resultados da análise serão apresentados nos tópicos 2.2.2 e 2.2.3,
divididos pelas categorias. No primeiro tópico, analisa-se o jornal segundo as duas
primeiras categorias, e, no segundo, com a outra, tendo em vista que se volta mais
ao papel das agências do controle social formal nas notícias.
2.2.2 Desordem, tensão e insegurança: para qual direção se voltam os binóculos?
Medo/vigilância
Na maior parte das matérias, os atores envolvidos no fato que deu origem à
notícia são os integrantes do MST e os ruralistas. Os governos do estado e federal
se mostram presentes, respectivamente, com as aparições da Brigada Militar e da
Polícia Rodoviária Federal, além do Incra. Por vezes espresente também o poder
Judiciário.
Uma parcela significativa das notícias se referiu aos riscos de ações do MST
e, por isso, relatos sobre o que se estava fazendo para prevenir-se de um “ataque”
do movimento do que propriamente sobre o que estava em jogo nas reivindicações.
Em função disso, a utilização de expressões que denotam tensão, principalmente
por parte de ruralistas, bem como a necessidade de vigilância dirigida aos sem terra.
As notícias se referem, principalmente, às marchas de São Gabriel e Eldorado do
Sul e da movimentação de sem terra em fazenda vizinha à Coqueiros, em Coqueiros
do Sul.
Do total de notícias veiculadas, cerca de 23 contiveram expressões como
monitoramento, vigilância, tensão e insegurança. Em algumas notícias a vigilância
esteve mais voltada à preocupação dos fazendeiros, como nos trechos abaixo.
O Presidente da comissão fundiária da federação da Agricultura do Rio
Grande do Sul (Farsul), Gedeão Pereira, diz que a entidade começou a
181
monitorar as porteiras de cada grande fazenda.
620
Sob a vigilância de produtores rurais [...].
621
Preocupado com a movimentação dos sem-terra, os ruralistas da região se
organizaram em um grupo de 60 pessoas, que se reveza na vigília.
622
– Infelizmente, o clima é de insegurança total.
623
[...] cerca de 300 ruralistas da região montaram, ontem, cinco pontos de
observação nas margens da rodovia, perto do acampamento dos sem-
terra.
624
Produtores rurais monitoram MST.
625
Em outras situações, a Brigada Militar aparece como responsável pela
vigilância, de tal maneira que ambos os atores se identificam como pólos contrários
aos atos do MST. A relação dos ruralistas com a polícia se estreita quando, na
edição do dia 17 de janeiro, relata-se o encontro do presidente do Sindicato Rural de
São Gabriel e vice-presidente da Farsul com o Secretário de Segurança Pública, no
intuito de solicitar a montagem de um posto fixo da Brigada perto do acampamento
do MST. O que ocorre, e é noticiado no dia 18 de janeiro, conforme o trecho abaixo.
Policiamento é reforçado em São Gabriel.
A Brigada Militar (BM) de São Gabriel montou ontem um posto fixo perto
do acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
(MST), a cerca de um quilômetro da Fazenda Southalll, no interior do
Município.
626
Outros trechos que apresentam a vigilância por parte da polícia, podem ser
lidos abaixo.
Acampamento sob vigilância permanente.
Binóculos assestados sob chapéus de abas largas, policiais do
Regimento de Polícia Montada de Passo Fundo passaram a manhã de
ontem vigiando dois acampamentos de sem-terra erguidos junto à Fazenda
Coqueiros, em Coqueiros do Sul.
627
BM usa avião para avaliar sem-terra.
628
620
PRODUTORES rurais reagem às marchas. Zero Hora, Geral, 14 nov. 2006, p. 38. Grifou-se.
621
MST se aproxima de área em Eldorado. Zero Hora, Geral, 16 nov. 2006, p. 27. Grifou-se.
622
ibid. Grifou-se.
623
ibid. Grifou-se.
624
VISTORIA mobilize fazendeiros e sem-terra. Zero Hora, Geral, 05 dez. 2006, p. 32. Grifou-se.
625
TENSÃO volta a rondar São Gabriel. Zero Hora, Geral, 15 jan. 2007, p. 25. Grifou-se.
626
POLICIAMENTO é reforçado em São Gabriel. Zero Hora, Geral, 18 jan. 2007, p. 36. Grifou-se.
627
ACAMPAMENTO sob vigilância permanente. Zero Hora, Geral, 21 fev. 2007, p. 30. Grifou-se.
628
BM usa avião para avaliar sem-terra. Zero Hora, Geral, 22 fev. 2007, p. 32. Grifou-se.
182
Segundo a BM, o temor era de que os sem-terra pudessem atacar os
trabalhadores durante a colheita.
629
Em relação às matérias publicadas no s de novembro, um dado
interessante é que o número de situações em que a BM é fonte reduz-se a três.
Enquanto isso, os depoimentos de ruralistas somam dezoito, em relação a quatro de
sem terra. Percebe-se que, nesse período, o jornal fez uma clara opção por divulgar
o que se passava no pólo proprietário das situações noticiadas.
Quer dizer, os ruralistas depõem para o jornal a sua preocupação com os atos
do MST, em especial duas marchas que estavam ocorrendo naquele período.
Porém, a sensação de tensão envolta nesses proprietários provavelmente não era a
mesma que se passava na marcha dos sem-terra, nem sequer na população local.
Entretanto, tendo em vista o número preponderante de seus depoimentos, o jornal
optou justamente por trazer à tona a existência e generalização desse sentimento,
de medo, que acarreta a vigilância diária, não apenas por parte dos proprietários,
mas também da polícia.
Em vários trechos se percebe, também, que o jornal incorporou a posição-
sujeito dos ruralistas, no momento em que em seu próprio texto assume o
sentimento de medo e tensão, como, por exemplo, nos trechos:
Tensão volta a rondar São Gabriel.
630
Na região, o clima é de tensão.
631
Por outro lado, é interessante notar que o jornal sempre se orienta de acordo
com os valores-notícia e que, dentre eles, o inusitado ocupa um espaço central.
Então, se se observar que as marchas foram pacíficas, ou seja, não acarretaram
nenhuma situação que concretizasse um bom critério de noticiabilidade, restou ao
jornal relatar a espera por esse fato. Através desses critérios, observa-se que a
sensação de insegurança exalada pelos fazendeiros nas linhas e entrelinhas de seu
discurso e as ações empreendidas pelos mesmos no sentido de buscarem recompor
a sua segurança era mais noticiável do que os motivos pelos quais os sem-terra
marchavam.
A notícia de 18 de abril de 2007 foi particularmente interessante nesse
629
VIGILIA em colheita desloca 80 PMs. Zero Hora, Geral, 10 abr. 2007, p. 34. Grifou-se.
630
TENSÃO volta a rondar São Gabriel. op. cit. Grifou-se.
631
INCRA vistoria estância em São Gabriel. Zero Hora, Geral, 17 jan. 2007, p. 26. Grifou-se.
183
sentido. Esse dia se seguiu ao aniversário de onze anos do massacre de Eldorado
dos Carajás, o qual costuma ser marcado por muitos protestos em todo o país. E as
manifestações foram noticiadas, em um quadro sumário na parte inferior da página.
Porém, a notícia propriamente dita ocupou-se quase exclusivamente da vigilância
empreendida pela BM a partir de aviões e reforços em terra. O próprio título da
matéria é “Abril vermelho visto do céu”.
As manifestações empreendidas ontem pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra para relembrar o 11º aniversário do massacre de
Eldorado dos Carajás foram a preocupação de toda a terça-feira do
comandante do Grupamento Militar Aéreo, tenente-coronel Paulo Stocker.
Do alto [...] o oficial monitorou a mobilização dos sem-terra.
Além de helicópteros, as principais entradas terrestres de Porto Alegre
tiveram reforço policial.
- Realmente, a gente esperava um dia mais difícil, mas tudo correu bem.
632
Não qualquer fala de líderes sem terra, nem de manifestantes. Não há
qualquer menção à questão da reforma agrária. A única relação tecida inclusive com
o massacre de Eldorado de Carajás é uma nota sobre o reconhecimento que a
governadora Ana Júlia, do Pará, fez, assumindo a responsabilidade do governo do
Estado no massacre. Em compensação, o texto todo se refere ao monitoramento,
contendo inclusive a fotografia do comandante do Grupamento Militar Aéreo em seu
helicóptero.
Portanto, a questão da vigilância e do monitoramento foi uma das
características comuns a quase todas as matérias. Uma diferença importante,
entretanto, em relação aos meses de novembro e de abril, foi o fato de que
enquanto as notícias daquele mês se referiram à vigilância por parte dos ruralistas,
enquanto a Brigada Militar era coadjuvante na história, neste, os pólos inverteram-
se. A Brigada Militar ocupou o posto de vigilância e os ruralistas tornaram-se
coadjuvantes. O número de depoimentos diretos dos sem-terra também aumentou
nesse mês.
Em abril, computa-se que se expõe dez vezes a voz direta de fontes ligadas à
Brigada Militar. Por outro lado, por seis vezes é registrada a voz dos sem terra, e em
apenas um momento é exposta a fala de um ruralista.
O motivo pelo qual se vislumbra essa diferença na cobertura parece ser o fato
a que se refere. Enquanto em novembro a maior parte das notícias foi sobre
632
ABRIL vermelho visto do céu. Zero Hora, Geral, 18 abr. 2007, p. 32. Grifou-se.
184
marchas que estavam ocorrendo na região da Campanha gaúcha, onde os ruralistas
são bastante unidos, no mês de abril de 2007 a maior parte das notícias foi sobre a
possibilidade de “invasões” à Fazenda Guerra, em Coqueiros do Sul, que fica no
norte do estado. Assim, o fato a que se refere a notícia modifica os seus atores,
porém, o tema e o tom não mudam: a vigilância e a tensão.
Por outro lado, o fato de se tripartir as vozes presentes no jornal, não significa
que esses três sujeitos enunciativos façam efetivamente parte de três pólos
diversos. Isso porque, na maior parte das notícias, o depoimento dos policiais
militares se coaduna com o dos fazendeiros, estando em outro pólo, entretanto, o
discurso dos sem terra.
Isso fica bastante claro no mês de abril, quando a fala dos ruralistas se
ausenta, porém, o seu discurso permanece, seja através da voz da Brigada Militar,
seja em função da maneira como o próprio jornal cobre os fatos.
Nos meses de dezembro e janeiro foi equilibrada a exposição das falas dos
sem terra e dos ruralistas, sendo que por dez vezes estes foram fontes da notícia,
enquanto a voz daqueles aparece por nove vezes. Por outro lado, a voz da Brigada
Militar aparece apenas uma vez nesses dois meses.
Nesse ponto é necessário destacar que tanto os ruralistas quanto a Brigada
Militar estão agindo de maneira a reafirmar o estado de coisas atual, enquanto que
os sem terra buscam romper com ele. Sendo assim, conforme o que foi visto
anteriormente, o enquadramento destinado a fatos que rompem com a ordem busca
reforçar pontos de vista que se pensa serem consensuais. Apesar de mostrarem
fatos que rompem com esse consenso, o jornal os define primeiro, a partir da
exposição de fontes oficiais e que se coadunam com o contexto atual, para então
deixar claro qual a interpretação deve ser conferida ao fato novo e subversivo.
633
Assim, a hierarquia das fontes sempre localiza as oficiais no topo. Conforme
mostra Tuchman, além desse requisito, a produtividade das fontes, a sua
proximidade física, a credibilidade de que dispõem, a garantia das informações que
repassam e a sua respeitabilidade são os fatores que determinam a sua
permanência nas páginas dos jornais.
634
Em função disso, também fontes,
principalmente as não-oficiais que são sub-representadas, o que demonstra mais
633
HALL, Stuart. et. al. op. cit.
634
WOLF, Mauro. op. cit. p. 199.
185
uma seletividade da informação. Assim, a estrutura social e de poder existente fica
refletida na definição dos fatos.
O fato de em algumas oportunidades os sem terra aparecerem como fontes,
porém, também não significa que o jornal assuma a sua opinião. Isso porque
[...] o jornal [...] é senhor do efeito que confere às vozes que reproduz. Isto
quer dizer que, mesmo no interior do conjunto do discurso de citação, pode-
se encontrar a partição entre o efeito da fonte e o efeito do agente, entre a
legitimação da fala como um fato e seu distanciamento como uma
citação.
635
O caráter dúplice da estratégia da citação no jornal fica claro ao se observar a
forma como são repercutidos os discursos dos sem terra. Eles o tidos
efetivamente como meras citações, enquanto os discursos dos fazendeiros e da
polícia são assumidos propriamente pelo jornal. Quer dizer, mesmo quando essas
fontes não estão citadas no texto, percebe-se a sua voz assumida pelo próprio
jornal.
Invocando algumas questões trabalhadas nas seções anteriores, é
importante, ainda, ao verificar a preponderância da categoria vigilância/medo nas
matérias jornalísticas analisadas, o que isso representa. Além do que está expresso
nessas notícias, torna-se essencial buscar significados ocultos, o que se revela
através das ausências do texto.
Uma das ausências mais sentidas foi a própria questão da reforma agrária.
Durante todo o período analisado foi feita referência efetivamente ao que pleiteiam
os sem terra apenas no dia 22 de novembro, ao reproduzir a voz direta de um líder
sem-terra:
- Marchamos por terra, justiça e paz. Temos o direito de ir e vir e vamos
chegar ao nosso destino disse frei Wilson Zanatta, da Comissão Pastoral
da terra.
636
Em todos os outros momentos em que vozes dos sem terra estão presentes,
referem-se à situação específica do conflito, ou seja, expondo se vão ficar no local
ou se vão se retirar, quais serão as próximas ações, etc.
De fato, sobre a reforma agrária, em algumas edições são expostos números
635
MOUILLAUD, Maurice. O sistema das citações. In: MOUILLAUD, Maurice; PORTO, Sérgio Dayrell.
O jornal: Da forma ao sentido. p. 117-144. Brasília: UNB, 2002. p. 121.
636
A 500 metros de um conflito. Zero Hora, Geral, 22 nov. 2007, p. 32. Grifou-se.
186
de pessoas assentadas e de fazendas desapropriadas no governo Lula.
637
É
interessante, então, verificar que mesmo diante de tanta tensão, não se busca
discutir a causa da mesma. Decisivamente, a causa da tensão é a atuação dos sem
terra. Ou seja, caso não houvesse as manifestações, não haveria tensão e, portanto,
tudo permaneceria em paz. Mas o motivo anterior, que levou às manifestações é
ocultado, via de regra.
Na verdade, enunciativamente falando, o jornal parte do pressuposto de que
as marchas do MST são causadoras da tensão. Como pressuposto, é
inquestionável. Relatado nas frases destacadas acima, como posto, ou seja, como
um saber novo, passível de questionamento, está apenas a forma como os ruralistas
reagiram aos atos do MST. Porém, o questionamento sobre a causa da tensão, ou
se efetivamente uma tensão generalizada, o pôde ser objeto de
questionamento. “No discurso dos media poderá haver tendência para transferir (ou
para criar a ilusão de transferir) para o domínio do pressuposto, para o domínio do
saber anterior, os conteúdos cuja circulação/imposição é julgada prioritária e, por
conseguinte, interessa subtrair ao filtro da recepção”.
638
Além disso, pelo fato de preponderar o discurso sobre o medo, a insegurança,
e a necessidade de vigilância em função de uma tensão, é necessário ressaltar que
papel o medo pode ter na adoção de determinadas posturas não apenas pelos
próprios ruralistas e pela BM, mas também pela própria comunidade.
Malaguti Batista, ao analisar a instrumentalização desses sentimentos,
observa que no Brasil, “a difusão do medo do caos e da desordem sempre tem
servido para detonar estratégias de exclusão e disciplinamento planejado das
massas empobrecidas”.
639
Apesar de o contexto social do qual parte a autora ser urbano, sabe-se que
facilmente se aplica à situação do campo. Assim, as imagens de terror envolvendo a
crueza do sangue derramado do dia-a-dia envolvem um conjunto de alegorias de
poder. “Essas alegorias, esses discursos, essas imagens, compõem um arranjo
estético, no qual a ocupação dos espaços públicos pelas classes subalternas [...]
produz fantasias de pânico do ‘caos social’”.
640
Com alegorias de poder distintas,
637
Edições do dia 13 de dezembro, p. 40; dia 25 de fevereiro, p. 05.
638
REBELO, José. op. cit. p. 96.
639
MALAGUTI BATISTA, Vera. Medo, genocídio e o lugar da ciência... op. cit. p. 135.
640
idem. O medo e o método. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, 9
187
mas tão enfáticas quanto as da cidade, a presença da classe subalterna exigindo
terras no campo também significa o caos. Na medida em que a terra esteve
historicamente ligada ao poder, torna-se impossível imaginar o povo tomando a
posse de milhares de hectares, sendo que em cada palmo desse chão encontra-se
incrustada uma genealogia que remete aos primeiros que dominaram tal espaço,
reproduzindo-se a sua concentração por tantas gerações. Ao imporem um risco à
reprodução dessa história, foices e bandeiras representam muito mais do que
simples pobres do campo marchando.
Os discursos dos proprietários, reproduzidos insistentemente pelo jornal,
demonstram bem isso. O medo proprietário do ingresso dos sem terra naquela
determinada propriedade é muito simbólico. Por isso, a necessidade excessiva de
vigilância e a clareza do medo estampada no discurso.
Um exemplo disso é a fala do presidente do Sindicato Rural de São Gabriel,
no dia 23 de novembro de 2006, quando os ruralistas criaram uma contra marcha
para impedir a marcha dos sem terra de entrar em São Gabriel:
- Este local é simbólico. Estamos no limite com Rosário e daqui eles não
passam. Se vierem, vai haver enfrentamento.
641
Ao veicular insistentemente esse medo, o jornal também o constrói e
reproduz. As escolhas realizadas no ambiente da redação, principalmente em
função de serem voltadas aos valores-notícia e aos constrangimentos da
organização jornalística, sempre acabam recaindo nas fontes mais seguras. E as
fontes mais seguras são as proprietárias, além das fontes oficiais.
O discurso do medo costuma ser instrumentalizado em situações diversas. É
o caso da análise de Malaguti Batista sobre o medo dos escravos por parte da elite
branca, exposta em trechos de jornais da década de 1830. Sob o título “Discursos
que matam: medos impressos” Malaguti logra demonstrar que os jornais
expressavam e propagavam justamente o medo que acometia às elites naquele
período: “Medo da cólera, medo do cometa, medo dos escravos, capoeiras ‘aos
magotes’ pelas ruas, enfim, a década de 30 do século XIX era de profunda
inquietação das elites; nada parecia estar ‘em ordem’”.
642
e 10. p. 188.
641
ESTRADA repartida em três. Zero Hora, Geral, 23 nov. 2007, p. 32.
642
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro... op. cit. p. 178.
188
Diante da desordem, provocada por uma situação social extremamente
violenta e injusta, a resposta buscada por essa mesma elite não era a solução do
problema. “O medo da desordem dispara entre os conservadores a retórica da
restrição de direitos e da impunidade. Manter a escravidão bem comportada implica
na adesão ao velho dogma inquisitorial que tem na pena a solução para conflitos
sociais”.
643
Decorrente da difusão desse medo é o aumento do controle social sobre os
escravos africanos no Brasil, principalmente após a Revolta dos Malês na Bahia, e
em função da revolução no Haiti. Porém,
[...] no debate sobre as conseqüências e medidas a serem tomadas diante
da perspectiva de uma grande rebelião escrava, não aparece qualquer
concessão ou demanda por mudanças naquela sociedade violentamente
hierarquizada. A sociedade imperial nem sequer questionou sobre a
instituição da escravidão. As denúncias de uma articulação internacional
envolvendo malês, haitianos e abolicionistas ingleses tratavam de delimitar
claramente para fora da sociedade imperial as causas das sublevações.
Delimitar o inimigo como alguém de fora, como o outro, e tratar de
estabelecer estratégias de controle duríssimas foram as medidas tomadas.
Questionar a escravidão, jamais.
644
Da mesma maneira, no momento em que surgem lutas em prol da reforma
agrária, o que menos se discute é a própria reforma agrária. O jornal, ao reproduzir
os medos proprietários, se limita a traduzir a luta social em necessidade de vigilância
e policiamento. E, dessa maneira, legitima o aumento do controle social e a atuação
violenta da polícia.
É necessário observar que esse enfoque factual e despreocupado com
questões de fundo poderia ser defendido em função do gênero jornalístico adotado,
ou seja, a notícia. Seria objeto de uma reportagem trabalhar questões mais
contextuais. Entretanto, as duas reportagens que são apresentadas sobre o tema da
questão agrária no período analisado, também expõem uma visão totalmente
simplista sobre o assunto, reduzindo-o à identificação do conflito na luta pela terra,
sequer mencionando efetivamente a necessidade de reforma agrária.
Nesse ponto, torna-se indispensável identificar que existe uma relação de
classe conflitual envolvida nesses casos noticiados. E o que a RBS traz em seu guia
de ética sobre isso é a necessidade de que os relatos sejam precisos. As palavras-
643
ibid. p. 186.
644
ibid. p. 28.
189
chave disso são “apurar a verdade, com isenção e na sua plenitude”.
645
Ora, o
enfoque adotado nesse sentido não é nada isento. E isso porque, além de na maior
parte das vezes a cobertura ter como base as falas dos proprietários, o seu discurso
é reproduzido mesmo quando os mesmos sequer são fonte direta da notícia, o que
acaba definindo o tom que será utilizado para todas as demais notícias a respeito.
A gravidade da adoção dessa posição-sujeito nos casos dos conflitos no
campo fica exposta em discursos mais crus que podem ser detectados fora do
jornal. O caso da Fazenda Southall, em São Gabriel é um exemplo de como os
ruralistas possuem um discurso ideológico forte. Dom Tomás Balduíno, ao realizar
exposição oral na 8ª reunião da CPMI da Terra fala sobre esse conflito de São
Gabriel. Explica a situação em que a fazenda foi desapropriada em 2003 e,
mediante recurso do proprietário, o STF suspendeu a desapropriação. Em função
disso, uma grande marcha do MST se dirigiu à cidade, buscando pressionar o STF a
mudar seu entendimento.
646
Da mesma forma como ocorreu em 2006, em 2003 os
ruralistas também tentaram barrar a estrada para que os sem terra não passassem.
Um panfleto foi distribuído na cidade, pelos ruralistas, através do qual o discurso
mais discriminatório, preconceituoso e assassino foi veiculado.
647
Por mais que o panfleto possa não representar os ideais de todos os
ruralistas de São Gabriel, o fato é que, ao reproduzir nas notícias apenas o ponto de
vista dos proprietários de terra, se está reproduzindo um discurso de classe,
apoiando inclusive a busca pelo extermínio.
645
GRUPO RBS. op. cit. p. 31. “A RBS acata, entre outros, os preceitos do Conselho Nacional de
Auto-Regulamentação Publicitária (Conar), as normas do Conselho Executivo das Normas-Padrão
(Cenp) e o Código de Ética e Auto-Regulamentação da Associação Nacional de Jornais”. ibid. p. 47.
646
BRASIL. Congresso Nacional. CPMI “da Terra”: Relatório final (voto vencido)... op. cit. p. 80-81.
647
Gabrielenses dizem não à invasão e aos seus apoiadores. Povo de São Gabriel, não permita que
sua cidade o bem conservada seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória
humana. São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que de pior no
seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre manipulada por meia dúzia de
covardes, que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venham trazer o roubo, a violência, o
estupro e a morte. Esses ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas, para grandes doenças,
fortes são os remédios. É preciso correr sangue para mostrarmos nossa bravura. Se queres a paz,
prepara a guerra, assim daremos exemplo ao mundo que, em São Gabriel, não lugar para
desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo. Nossa cidade é de
oportunidades para quem quer produzir. Não oportunidades para bêbados, ralé, vagabundos e
mendigos de aluguel. Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza à noite cem
litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos, que haverá sempre uma
vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se tu, gabrielense amigo, és proprietário
de terras ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles usam
para beber e rato envenenado bebe mais água ainda. Se tu, gabrielense amigo, possuis uma arma de
caça calibre 22, atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge
o alvo mesmo a 1.200 m de distância. Fim aos ratos! Viva o povo gabrielense!” ibid.
190
O discurso higienista esteve historicamente presente nos mais diversos meios
no Brasil. E ele é propagado em algumas das notícias de Zero Hora.
Um exemplo interessante que relaciona a desordem e à sujeira aos sem terra
é o trecho:
Na sexta-feira, cinco caminhões cruzaram 16 vezes pela avenida principal
de Coqueiros do Sul, carregados com integrantes do MST e tralhas para
acampamento. o há o que proíba os sem-terra de ir e vir, até porque se
deslocam para um terreno que arrendaram, estrategicamente situado em
frente à Fazenda Coqueiros.
648
Em primeiro lugar, utiliza-se novamente a estratégia argumentativa do
pressuposto. Isso porque no lugar do posto, quer dizer, a novidade, aparece o texto
“não o que proíba”. O que significa que o leitor iria pressupor que deveria haver
uma forma de impedir os sem terra de ir e vir.
Mas o principal é a identificação dos pertences dos sem terra que pretendiam
montar acampamento em Coqueiros do Sul como “tralhas”. Segundo o dicionário
Aurélio, “tralha” é sinônimo de “cacaréus”, que significa trastes e utensílios velhos. A
idéia de sujeira e de desordem está implícita nessa palavra, escolhida
ideologicamente para fazer parte da notícia. E é fala do próprio jornal.
Já na reprodução de uma fala do presidente do Sindicato Rural de São
Gabriel, fica mais clara a percepção a respeito dos acampamentos:
- Decisão judicial se cumpre e não se discute. O ideal seria que os sem-
terra voltassem para seu local de origem e não fazer uma favela rural em
São Gabriel, o que diminui a renda e aumenta as despesas do município.
649
A identificação dos atos dos sem terra como desordens é bastante clara, e se
relaciona com o rompimento com a paz. No momento em que os proprietários
propalam a idéia de que os acampamentos e futuros assentamentos são os
gérmens de favelas rurais, estão também difundindo a concepção da desordem
relacionada ao povo. Quer dizer, da sujeira. o deixa de ser também um discurso
higienista. “Percebendo a sujeira como portadora da desordem, podemos entender
como, em certas épocas da história, as pessoas estranhas, ‘os outros’, eram
investidos da qualidade de impuros, ou representavam emblematicamente a sujeira
a enodoar um arranjo estético”.
650
648
ACAMPAMENTO sob vigilância permanente. Zero Hora, Geral, 21 fev. 2007, p. 30. Grifou-se.
649
JUIZ visita acampamento do MST. Zero Hora, Geral, 25 de nov. 2006, p. 37.
650
MALAGUTI BATISTA, Vera. Medo, genocídio e o lugar da ciência... op. cit. p. 135.
191
Esses ideais higienistas são, também, discursos genocidas, que têm a
finalidade de exterminar a sujeira, para que se lugar à limpeza.
651
E representam
também a idéia de quebra de uma vida consensual, limpa, ordeira e pacífica.
A única matéria destinada a falar sobre o MST ocorre no dia 12 de abril,
buscando caracterizar o chamado “Abril Vermelho”. Nela, a cobertura destoa das
demais, indo aos sem-terra, entrevistando dois deles e explicando quem são as
pessoas que fazem parte do movimento. Esclarece que em grande parte são jovens
que sequer haviam nascido quando o movimento foi criado. Estabelece alguma
crítica à reforma agrária, ao identificar o fato de que as pessoas que estão hoje
lutando nasceram em assentamentos, e, na voz de um professor da Ufrgs, “uma boa
reforma agrária não deveria ser celeiro de novos sem-terra”.
652
Mesmo curta, a matéria pôde identificar o movimento sem criminalizá-lo,
apesar de utilizar o termo “invasões” de terras. Porém, um texto de Carlos Wagner,
postado ao lado traz uma visão mais opinativa, como que oferecendo a interpretação
da matéria ao leitor.
653
Paz-conflito
A maior parte das notícias relacionadas à questão da terra teve como
chapéu
654
o termo “questão agrária”. Nesse aspecto é interessante verificar o que o
jornal Zero Hora entende por questão agrária. Aparentemente, o termo diz respeito
às lutas no campo, tendo em vista que uma característica comum das notícias sob
esse chapéu é a de dizerem respeito a atos dos sem terra ou à resposta aos
mesmos por parte dos fazendeiros.
Como visto no tópico 2.1.3, a questão agrária não diz respeito apenas às lutas
dos camponeses por terra, mas sim à própria concentração da terra, aos processos
de expropriação, expulsão e exclusão dos trabalhadores rurais, à violência contra os
651
ibid.
652
A NOVA cara do MST. Zero Hora, Geral, 12 abr. 2007, p. 39.
653
A AGENDA do “griteiro”. Zero Hora, Geral, 12 abr. 2007, p. 39.
654
“Disposto acima da notícia ou reportagem, sempre colado à linha fina, esse lugar tem a função de
situar o conteúdo da matéria para o leitor, apresentar a ele referência sobre a notícia, indicando ali
uma região de sentidos legitimados pelo jornal”. ROMÃO, Lucília Maria Souza. Mais de perto, mil
faces secretas sob a face neutra: considerações sobre a heterogeneidade no discurso jornalístico.
Revista Papiro, São Paulo, ano 7, n. 25, out-dez de 2005. Disponível em: <http://www.eca.usp.br/nuc
leos/njr/espiral/papiro25b.htm> Acesso em: 20 out. 2007.
192
trabalhadores, à dignidade humana no campo.
655
“A questão agrária nasceu da
contradição estrutural do capitalismo que produz simultaneamente a concentração
da riqueza e a expansão da pobreza e da miséria. Essa desigualdade é resultado de
um conjunto de fatores políticos e econômicos”.
656
Porém, essa violência que origina
a luta pela terra em nenhum momento é expressa sob o chapéu “questão agrária”
nas notícias analisadas.
Nesse sentido, esclarece-se também a visão que o jornal tem sobre os
conflitos no campo, que a questão agrária é notícia quando diz respeito a um
conflito pontual. Porém, partindo-se dos pressupostos analisados anteriormente,
deve-se reconhecer que todas as relações sociais são permeadas pela
conflitualidade e não pela paz. Segundo as teorias conflituais, “a mudança e o
conflito devem deixar de ser entendidos como desvios de um sistema ‘normal’ e
equilibrado, e devem, ao contrário, ser vistos como características normais e
universais da sociedade”.
657
A conflitualidade é pré-existente às lutas camponesas pela terra.
658
Porém, o
seu tensionamento sim ӎ gerado por um modelo de desenvolvimento, que aumenta
a conflitualidade por causa da expropriação, concentração da terra e das
riquezas”.
659
Assim, oculta sob a obviedade de que a causa da tensão no campo é a
luta dos sem terra, está uma conflitualidade anterior, propagadora de uma violência
estrutural extrema.
A idéia, porém, de que a paz prevalecia antes da luta dos sem terra fica
expressa em todas as notícias. Isso porque a própria idéia de “tensão”, “temor”, por
parte dos ruralistas representa uma quebra em uma ordem natural. Essa ordem
natural, lida de uma maneira literal, fica estampada no depoimento do Presidente do
Sindicato Rural de Rosário do Sul.
- Aqui sempre foi o caminho deles. Mesmo assim é um transtorno. Bem na
655
FERNANDES, Bernardo Mançano. A questão agrária no limiar do século XXI... op. cit.
656
idem. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial... op. cit.
657
BARATTA, Alessandro. El modelo sociológico del conflicto y las teorias del conflicto acerca de la
criminalidad. In: ELBERT, Carlos Alberto. Criminología y sistema penal: Compilación in memorian.
p. 247-274. Montevideo/Buenos Aires: B de F, 2004. p. 250. Tradução livre do original em espanhol:
“El cambio y el conflicto deben dejar de ser entendidos como desviaciones de un sistema ‘normal’ y
equilibrado, y deben, al contrario, ser vistos como características normales y universales de la
sociedad”.
658
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial...
op. cit.
659
ibid. Grifos no original.
193
hora que vamos começar a plantar temos de parar tudo por causa disso.
660
Da mesma forma, o depoimento do presidente do Sindicato Rural de Guaíba,
Eldorado e Charqueadas, exposto no trecho.
- Infelizmente, o clima é de insegurança total. Estamos em época de plantio
(de arroz) e não queremos conflitos nem vamos provocá-los. queremos
proteger nosso patrimônio e zelar pela integridade dos nossos
funcionários.
661
Quer dizer, existe uma ordem natural das coisas. Na primavera, deve-se
plantar o arroz, depois, deve-se colhê-lo, e nessa ordem natural e pacífica, não
cabem marchas e ocupações de terras.
Assim, fica claro que os conflitos agrários são percebidos como gerados a
partir da luta pela terra, como nos trechos:
MST desencadeia onda de protestos. Produtores rurais reagem às
marchas.
662
Estado é alvo de onda de invasões.
663
Afirma-se que o MST “desencadeia” uma onda de protestos, o que significa o
rompimento de uma ordem estabelecida. Ao mesmo tempo, logo abaixo, o título
expõe que os produtores rurais “reagemàs marchas. Os atos dos ruralistas são,
portanto, reações a uma ação desencadeada pelo MST, de forma a proteger a sua
propriedade a partir da vigilância e da promoção de contra marchas, além de
promessas de enfrentamento.
Da mesma forma, nos trechos:
Ruralistas deflagrarão uma ofensiva contra as invasões promovidas em
todo o país pelo Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
664
- Temos de dar um basta nesse movimento (MST), que é puramente
ideológico e patrocinado pelo governo assistencialista. Não vamos deixar
eles passarem de jeito nenhum. Cada ação deles terá uma reação nossa
– afirmou o vice-presidente do sindicato, Felipe Nobre.
665
Porém, esses atos dos ruralistas, expostos como reações, implicitamente
guardam o significado de legítima defesa de suas propriedades. Consta, porém, da
660
MARCHA do MST é monitorada por ruralistas. Zero Hora, Geral, 15 nov. 2006, p. 31.
661
MST se aproxima de área em Eldorado. op. cit.
662
MST desencadeia onda de protestos. Zero Hora, Geral, 14 nov. 2006. p. 38. Grifou-se.
663
ESTADO é alvo de onda da invasões. Zero Hora, Geral, 12 abr. 2007, p. 38.
664
RURALISTAS preparam reação a invasões. Zero Hora, Geral, 04 dez. 2006, p. 35. Grifou-se.
665
A 500 metros de um conflito. op. cit. Grifou-se.
194
história analisada anteriormente que as “ondas de protestos” “desencadeadas” pelo
MST são também reações. Porém, são reações a uma ordem social injusta, desigual
e violenta, que acarreta violações de direitos, compreendido, na base de todos, o
direito à vida.
A ocupação o é o começo da conflitualidade, nem o fim. Ela é
desdobramento como forma de resistência dos trabalhadores sem-terra. O
começo foi gerado pela expropriação, pelo desemprego, pelas
desigualdades resultantes do desenvolvimento contraditório do
capitalismo.
666
A própria palavra “conflito” está presente sempre no contexto em que sem
terra e ruralistas confrontam-se ou preparam-se para se confrontar fisicamente. Ou
então, é claro, quando a Brigada Militar entra em confronto físico com os sem terra.
Antes disso não parece haver uma situação conflitual.
Junto com o rompimento da paz estabelecido pela atuação do MST, vem a
conseqüência dos problemas com a produtividade nas grandes propriedades
gaúchas. Enquanto o MST é identificado com um Brasil arcaico, as grandes
extensões de terra de propriedade de poucas famílias o são vistas como
representantes do Brasil arcaico no século XXI, nem as relações de trabalho que
nelas se investem. Isso aparece principalmente no contraponto entre agricultura
familiar e agronegócio.
Assim, a produtividade no jornal é estritamente relacionada às fazendas,
sejam elas ligadas ao arroz, à soja ou ao eucalipto. A notícia sobre a vigília de PMs
à colheita de soja em Coqueiros, bem como as falas de empresários responsáveis
pela comprovação da produtividade das fazendas ao Incra, como aparece no dia 16
de janeiro de 2007 busca justamente demonstrar isso. A fala direta da Corrêa
Engenharia do Brasil,
garante que as terras de 4,4 mil hectares o produtivas. Um dos sócios da
empresa, o engenheiro agrônomo Paulo Corrêa, diz que uma plantação
de arroz de 1,6 mil hectares, além da criação de mais de 3 mil cabeças de
bovinos, búfalos e ovelhas.
667
Também no dia 05 de dezembro:
Os ruralistas garantem que as áreas de Southall são produtivas e não
666
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial...
op. cit.
667
RURALISTAS e MST atentos a vistoria. Zero Hora, Geral, 16 jan. 2007, p. 35.
195
podem ser desapropriadas.
668
Além dessas falas representativas sobre a idéia de que mesmo a grande
propriedade possui produtividade e propicia o desenvolvimento, essa convicção está
muito presente nas notícias que tratam sobre ações do MST contra o plantio de
eucaliptos.
Sem-terra se mobilizam contra o reflorestamento.
669
Eucaliptos sob ataque.
[...] As três empresas com áreas invadidas (Votorantim, Stora Enso e
Aracruz) planejam aplicar cerca de US$ 4 bilhões (R$ 8,4 bilhões) no Rio
Grande do Sul, em projetos de reflorestamento e em fábricas de papel. A
Via Campesina, multinacional de protestos que tem como principal entidade
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desdenha esses
investimentos. Em seu comunicado à imprensa, nenhuma menção sobre
possíveis empregos gerados pelas reflorestadoras.
670
Invasões podem afetar investimentos.
671
A visão de que as empresas “reflorestadoras” promovem o desenvolvimento e
geram empregos mostra-se como um contraponto à atuação dos manifestantes que
invadiram a área, e, por isso, ainda arriscam a desistência de tais investimentos por
parte das transnacionais.
É interessante verificar também a definição dada à Via Campesina como
“multinacional de protestos”. Ou seja, se estão em los opostos uma multinacional
que tem como objeto promover protestos, e três transnacionais que pretendem
investir mais de oito bilhões de reais no Rio Grande do Sul, reflorestando e gerando
empregos, fica clara a percepção de para qual lado pende a balança. Além disso,
deixar claro que a Via Campesina não é de origem brasileira ou gaúcha pode ser útil
na definição dos “invasores” como estrangeiros, que vêm desenvolver protestos
buscando desestabilizar a economia local com interesses escusos. Ao mesmo
tempo, oculta-se justamente as reivindicações que são o objeto dos protestos. A
análise realizada a respeito disso conclui na notícia apenas que a Via Campesina
está buscando aliados na cidade, entre ambientalistas, e este seria o motivo da
manifestação.
Dessa maneira, enquanto a grande propriedade rural produz riquezas e
668
VISTORIA mobiliza fazendeiros e sem terra. Zero Hora, Geral, 05 dez. 2006, p. 32.
669
SEM-TERRA se mobilizam contra o reflorestamento. Zero Hora, Geral, 01 fev. 2007, p. 44.
670
EUCALIPTOS sob ataque. Zero Hora, Reportagem especial, 07 mar. 2007, p. 4.
671
INVASÕES podem afetar investimentos. Zero Hora, Geral, 07 mar. 2007, p. 5.
196
desenvolve o estado, a Via Campesina e o MST apenas emperram toda essa
produção com as suas manifestações.
Da forma como tem sido tratada, é como se o capitalismo promovesse o
desenvolvimento e a luta pela terra motivasse o conflito. De um lado, a
apologia ao agronegócio. De outro a criminalização da luta pela terra.
Enquanto, de fato, ambos produzem conflitualidade e desenvolvimento. É
preciso superar esta visão dicotômica para tratar a essência da
complexidade da questão agrária.
672
Algumas metáforas bélicas também começam a aparecer, quando se percebe
o conflito se originando da luta pela terra. Um exemplo disso é a idéia de paz e
trégua, expressos nos trechos abaixo:
O confronto entre colonos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e ruralistas, que esteve prestes a explodir na BR-290, em São
Gabriel, na semana passada, parece ter dado uma trégua. [...] A paz é uma
promessa dos dois lados, mas caso a marcha seja retomada em direção a
São Gabriel, os fazendeiros afirmam que tentarão impedi-la.
673
- A guerra não está ganha, mas a batalha sim. Vamos continuar vigilantes
porque, enquanto o MST estiver por perto, nós vamos oferecer resistência –
argumento Cláudio Antonio Fichtner, presidente do Sindicato Rural de
Guaíba, Eldorado do Sul e Charqueadas.
674
Os dois trechos dizem respeito ao mesmo conflito, em São Gabriel. No
primeiro caso, trata-se do texto do próprio jornal. No segundo, é a voz de um
ruralista gabrielense. A idéia de que ocorre uma guerra, ainda que em sentido
figurado, envolve vários outros significados. Em uma guerra, existem dois lados
opostos, onde os amigos e os inimigos. Tendo em vista que a voz preponderante
e os sentimentos aparentes na notícia são dos proprietários, não é difícil identificar
os dois pólos.
O termo front também é utilizado pelo próprio jornal.
Na tentativa de instalar uma versão gaúcha do Pontal de Paranapanema, o
MST vem inchando com centenas de famílias o front da reforma agrária
no RS: o entorno da Fazenda Coqueiros.
675
672
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial...
op. cit.
673
ESPERANÇA de trégua entre MST e ruralistas. Zero Hora, Geral, 27 nov. 2006, p. 29. Grifou-se.
674
VISTORIA mobiliza fazendeiros e sem terra. op. cit. Grifou-se.
675
O ENCLAVE do MST. Zero Hora, Reportagem especial, 25 fev. 2007, p. 04. Grifou-se.
197
Ora, a palavra front significa frente de batalha
676
, e, por mais conotativo que
deva ser o entendimento da sua utilização no contexto da notícia, percebe-se que o
jornal não pretende estabelecer uma distância significativa de seu sentido literal.
Isso porque o restante da notícia busca justamente expor conflitos pontuais
envolvendo sem terra e demonstrando que sua presença aumenta a criminalidade
nas regiões.
também nessa frase o que foi dito antes a respeito do posto e do
pressuposto. O saber anterior, ou pressuposto, nesse caso é composto pela primeira
frase. Ou seja, é visto como um consenso, como sendo inquestionável o fato de que
o MST busca instalar uma versão gaúcha do pontal de Paranapanema. Resta ao
posto, ou seja, ao saber novo, e, portanto, passível de questionamento, afirmar que
“O MST vem inchando com centenas de famílias o front da reforma agrária no RS”.
Essa segunda frase também traz outro pressuposto, ou seja, o de que existe um
front da reforma agrária no Rio Grande do Sul, e de que esse front é o entorno da
fazenda Coqueiros. Veja-se, portanto, que essa reportagem traz artifícios claros de
manipulação do texto, de tal maneira que uma interpretação individual do jornalista
possa parecer uma verdade inquestionável.
Outro artifício utilizado é o da citação, no momento em que, para corroborar
com a idéia de que realmente o MST está tentando construir uma versão gaúcha do
Pontal de Paranapanema, utiliza-se as mais diversas fontes, principalmente um
processo judicial e ocorrências policiais.
Além disso, apesar de não haver condenações em relação aos crimes
registrados na polícia, o jornalista veste-se de investigador, buscando motivos para
que realmente tenham sido os sem terra a cometer tais delitos. Utiliza também como
dados o número de ocorrências policiais registradas na região.
Da mesma forma, a frase:
Sem a presença de sua fazenda, ficaria consolidado o projeto de uma
MSTlândia de matizes socialistas, encravada entre as duas principais
estradas da região [...].
677
Veja-se que o saber novo, o posto, é justamente o fato de que sem a fazenda,
ficaria consolidado o projeto. Ocorre que, da forma como a frase foi construída, a
676
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Coordenação e edição Margarida dos
Anjos; Marina Baird Ferreira. São Paulo: Positivo informática, 2004. CD-ROM.
677
O PROJETO é fazer uma MSTlândia. Zero Hora, Reportagem especial, 25 fev. 2007, p. 05.
198
existência de um projeto de uma MSTlândia de matizes socialistas torna-se um
pressuposto, por conseqüência, inquestionável. Se se considerasse a
questionabilidade da existência desse projeto, a frase perderia completamente a
credibilidade. O objetivo da utilização dessa cnica de argumentação é evitar que
algo recaia em oposição ou dúvida. Com isso, “vai-se distanciando e imergindo no
pressuposto. Até se (con)fundir na evidência”.
678
Note-se, além disso, o sentido
irônico do termo MSTlândia, termo este criado pelo jornalista que escreveu a matéria
ou pelo seu editor, mas de qualquer forma pelo próprio jornal.
Ora, se existe uma paz inicial, violada pelas manifestações do MST, contra as
quais os ruralistas reagem, ficam claros dois pólos opostos se enfrentando. Para
definir quem é amigo e quem é inimigo, basta verificar quem vigia e quem é vigiado
no discurso do jornal. Reduz-se a conflitualidade ao momento específico do conflito.
Porém, em uma sociedade punitiva, sabe-se que, em qualquer conflito, é necessário
e seguro que todos saibam definir adequadamente quem é culpado e quem é
inocente. Não interessa a adoção de uma perspectiva mais contextual, histórica e
complexa, mas sim a simplificação. Dessa maneira, no momento em que são
noticiados conflitos agrários, busca-se justamente identificar essas variáveis. No
contexto das notícias de Zero Hora, apesar de em uma primeira leitura isso não
parecer tão evidente, a todo o momento define-se quem deve ser vigiado. Isso fica
claro quando as notícias que envolvem de fato uma marcha ou ocupação dos sem
terra se resume à cobertura acerca da vigilância em torno dela, seja pelos
fazendeiros, seja pela polícia.
Tudo indica, então, que o discurso do jornal logra, antes de tudo, delimitar o
movimento como sendo um inimigo político. E não apenas isso. É também um
inimigo de toda a sociedade, na medida em que também se destaca casos de
crimes comuns cometidos por sem terra.
Ainda, algumas observações sobre três termos específicos parecem ser
interessantes. No dia 14 de novembro, a notícia sobre a marcha que partiu de Arroio
dos Ratos em direção à Cabanha Dragão, em Eldorado do Sul trouxe o seguinte
enunciado:
Sob o sol a pino, homens, mulheres e crianças, recrutadas neste
acampamento – o maior do Estado - e também em Canguaçu e Nova Santa
678
REBELO, José. op. cit. p. 99.
199
Rita começaram a marchar pela BR-290.
679
A utilização do termo “recrutadas”, denotativamente pode ser considerado
simplesmente como angariar pessoas. Porém, no sentido exposto no texto, com
bastante ênfase à participação de mulheres e crianças, conotativamente se tem a
idéia, efetivamente, de um serviço militar obrigatório. Na definição do dicionário,
recrutar significa “1 Alistar para o serviço militar 2. Juntar, reunir, arregimentar
pessoas. 3. Aliciar adeptos para uma associação, companhia ou partido; convocar
para uma seita”.
Como nota Rebelo, “a linguagem é uma armadilha permanente”.
680
Nesse
sentido, é possível que a mesma palavra possua sentidos totalmente diversos
(polissemia), o que leva ao questionamento sobre se ela foi usada adequadamente e
se realmente ela queria significar apenas um dos sentidos, ou mais de um.
Formalmente, o enunciador resguarda-se por detrás da possibilidade de
reduzir a sua responsabilidade à significação literal do enunciado, relegando
para o enunciatário a reconstrução da respectiva significação implícita. Tal
jogo permite-lhe, de acordo com as circunstâncias do momento, negar ou
ratificar a interpretação do enunciatário.
681
Expor que mulheres e crianças foram recrutadas para caminhar dezenas de
quilômetros sob o sol a pino (o que fica explícito na fotografia, onde até um carrinho
de bebê aparece), leva à consideração de que há obrigação, em uma relação
verticalizada, por parte dos integrantes do movimento em realizar a caminhada. A
possibilidade de que esses atos sejam feitos por pura necessidade é
desconsiderada no jornal. Pode-se dar a entender aqui o movimento tanto como um
sistema militarizado e verticalizado, como messiânico.
No mesmo sentido pode ser analisado o seguinte enunciado: “Os militantes,
em romaria, chegam com o propósito anunciado [...]”.
682
A palavra romaria, segundo
o dicionário Aurélio significa, denotativamente, uma ”peregrinação religiosa; reunião
de devotos que participam de uma festa religiosa”, e, conotativamente, a
“aglomeração de pessoas em jornada”.
683
Apesar de aparentemente o significado da
palavra aqui ser o conotativo, sabe-se que a linguagem jornalística deve sempre ser
denotativa, referencial, relativa a fatos. Nesse caso, a escolha do termo ambíguo
679
MST desencadeia onda de protestos. op. cit.
680
REBELO, José. op. cit. p. 100
681
ibid.
682
O ENCLAVE do MST. op. cit. p. 04.
683
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. op. cit.
200
traz a possibilidade de diversas interpretações, em especial a referência a uma
peregrinação religiosa.
Ainda, na mesma reportagem, é exposto o enunciado: “Guerra está cercado
pelos sem-terra. O exército de simpatizantes do movimento, num raio de até 20
quilômetros da fazenda, é composto de 7,4 mil pessoas”. Exército, de acordo com o
dicionário significa, denotativamente, “as tropas de uma nação ou as tropas que
entram num combate” e, em sentido figurado, “grande porção de pessoas, multidão”.
Novamente se realiza a observação sobre a linguagem jornalística e o que se a
crer com essas palavras. De forma recorrente são mencionadas expressões para se
referir aos sem terra de tal maneira que os identifique tanto com um sentido
messiânico-religioso, quanto com um sentido veticalizado-militarizado. Esses
sentidos terminam por deslegitimar mais uma vez o movimento como algo arcaico e
irracional.
2.2.3 Do medo à repressão: o sistema penal no discurso do jornal sobre conflitos
agrários
Violência/crime
Na mesma esteira da ótica paz/conflito, é necessário elaborar a percepção do
jornal sobre a violência e o crime relacionados à questão agrária. Como visto, parte-
se nesse trabalho de uma visão materialista acerca da violência, não a reduzindo à
violência individual, mas também a uma violência estrutural, subjacente às demais,
decorrente da repressão das necessidades humanas fundamentais.
684
Além disso, nessa categoria se deve analisar qual é o lugar ocupado pelas
agências do sistema penal, tendo em vista a violência institucional. Relembrando a
questão do papel do jornalismo na legitimação do sistema penal, cabe verificar se
efetivamente as agências de controle penal ocupam um papel de destaque nas
notícias ou não.
Em primeiro lugar, cabe destacar a questão da terminologia utilizada para
designar o ingresso de integrantes do MST em áreas alheias com a finalidade de
pressionar pela sua desapropriação. Na grande maioria das vezes em que se
684
BARATTA, Alessadro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal... op. cit.
201
referem a essa forma de atuação do MST, o jornal utilizou o termo “invasão”. De
acordo com o que já foi visto, a escolha ideológica desse termo diz respeito à
concepção de que tal ato é criminoso e trata-se de um esbulho possessório. Os
exemplos abaixo retratam a palavra escolhida pelo jornal:
Invasão em São Borja. Dois ônibus foram usados por 150 membros do
MST para invadir a Fazenda Palermo, a 40 quilômetros do centro de São
Borja, na manhã de ontem. Capataz e vigias foram rendidos. A Brigada
Militar isolou o local.
685
A área de 1,3 mil hectares foi invadida segunda-feira por 150 sem-terra. O
grupo tem 48 horas para deixar o local.
686
Termina invasão em São Borja.
[...] Todos os sem-terra foram revistados e identificados pelos policiais.
Conforme a Brigada Militar, não houve feridos durante a operação.
687
Na opinião de Indursky, a designação invasão, e seu correlato verbal, invadir,
é atravessada, “desde o interdiscurso, pelo discurso jurídico e sinaliza uma posição-
sujeito legalista, que produz, neste processo de nomeação, o efeito de sentido de
violação da propriedade privada, com base no direito de propriedade, inscrito na
Constituição”.
688
Conseqüência disso é a percepção de que se está diante de um ato
ilegal, de uma violência contra os proprietários, sendo que a imprensa “escreve a
partir do mesmo lugar social em que se inscrevem os proprietários, com eles se
identificando”.
689
Sobre isso é interessante notar que duas notícias em particular atribuíram o
termo “invasão” à voz de integrantes do MST. É o caso do título: “MST promete
aumentar o número de invasões”.
690
Esse texto demonstra que o jornal Zero Hora, ao se apropriar do discurso do
MST, adapta-o a um conjunto de valores completamente diferentes, e mesmo no
momento de abrir um espaço para a voz do movimento (veja-se que o movimento é
o sujeito da frase, bem como o dono da voz), a modifica. De tal maneira que aos
leitores resta ler a notícia de que o movimento, sabendo que seus atos são ilegais,
685
INVASÃO em São Borja. Zero Hora, Geral, 14 nov. 2006, p. 38. Grifou-se.
686
MARCHA do MST é monitorada por ruralistas. op. cit. Grifou-se.
687
TERMINA invasão em São Borja. Zero Hora, Geral, 17 nov. 2006, p. 59. Grifou-se.
688
INDURSKY, Freda. O MST e o discurso da subsistência na imprensa brasileira. Verso e Reverso:
revista da Comunicação, ano XVII, n. 37, jul./dez. 2004, p. 133-146. p. 137.
689
ibid. p. 137.
690
MST promete aumentar número de invasões. Zero Hora, Geral, 26 fev. 2007, p. 30.
202
porquanto são invasões, promete continuar agindo da mesma forma. Esse tipo de
leitura permite que as reações dos leitores sejam justamente as identificadas na
seção “Palavra do leitor”, do mesmo jornal, ou seja, de revolta contra uma
organização criminosa, que promete cometer crimes e ninguém faz nada para
impedir.
Aí percebe-se que o discurso indireto é outro recurso empregado para
ignorar a posição-sujeito dos sem-terra e deslizar à posição-sujeito dos
fazendeiros com a qual o articulista e o jornal se identificam, por um
processo de deslocamento dos sentidos, cujo resultado final implica em
distorções bastante radicais dos sentidos mobilizados.
691
Dessa maneira, o jornal aparentemente abre espaço para a manifestação do
MST, quando na verdade trata-se da apropriação de seu discurso de maneira a
apagar a sua voz.
Em quatro situações, do total, o jornal utilizou a expressão ocupação e
entrada nas terras.
Em São Borja, as duas bandeiras do MST hasteadas na madrugada de
segunda-feira por 150 sem-terra na ocupação da fazenda Palermo [...].
692
Os sem-terra entraram em três estâncias localizadas em Pedro Osório, na
Zona Sul, em Nova Santa Rita, na Região Metropolitana, e em Coqueiros do
Sul [...].
693
Porém, essas expressões aparecem de forma isolada e, normalmente, no
mesmo parágrafo utiliza-se a expressão invasão, como que corrigindo de plano o
equívoco. Caso a utilização do termo ocupação fosse recorrente em uma notícia,
ocorreria o que explica Indursky, com base em Pêcheux, como um “acontecimento
discursivo”, ou seja, como “uma ruptura com uma rede de formulações e sua
repetibilidade”.
694
Porém, pelo fato de rapidamente o jornal corrigir o que de fato é
um equívoco, trata-se apenas de um acontecimento enunciativo.
Este acontecimento enunciativo revela quão controlador e violento é o
discurso da imprensa em relação aos excluídos, pois o discurso jornalístico
não só não mostra os sentidos do outro, como, ao dar-lhes a palavra,
apenas simula ser um espaço democrático que se abre para o discurso-
outro. Ou seja: o mesmo gesto que abre espaço para a manifestação do
691
INDURSKY, Freda. De ocupação a invasão: efeitos de sentido no discurso do/sobre o MST. In:
INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Os múltiplos territórios da Análise do
Discurso. p. 173-184. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 184.
692
TERMINA invasão em São Borja. op. cit. Grifou-se.
693
ESTADO é alvo de onda de invasões. op. cit. Grifou-se.
694
INDURSKY, Freda. O MST e o discurso da subsistência na imprensa brasileira... op. cit. p. 142.
203
outro apaga seus sentidos.
695
Nota-se, portanto, que o discurso da imprensa adota os mesmos termos
utilizados por fazendeiros e pelo sistema penal, identificando os atos do MST com
crimes contra a ordem ou contra o patrimônio.
Na notícia do dia 23 de novembro salta aos olhos uma questão interessante.
Ruralistas queimaram pneus na estrada para impedir a passagem dos sem terra.
Esse tipo de ato, entretanto, normalmente quando praticado pelos sem terra é
chamado barricada ou vandalismo. Porém, o texto da notícia explica que
cerca de 350 ruralistas acampados a 500 metros dos sem-terra recorreram
a uma estratégia normalmente associada aos adversários [...].
696
Nesse ponto, é conveniente destacar o quanto é possível manipular o texto do
jornal. Isso porque o mesmo fato, com a mesma descrição pode ser explicado de
diferentes maneiras. Certamente se o ato tivesse sido praticado pelos sem terra, a
expressão utilizada não seria meramente “estratégia”. No contexto, porém, em que
os ruralistas praticam-na, é de uma mera estratégia que se trata.
Em que pese o fato de que o discurso sobre na imprensa possibilite a
ocorrência das diferentes vozes envolvidas na questão agrária, o resultado
final é que as narrativas jornalísticas imprimem uma direção aos sentidos,
privilegiando a posição-sujeito dos fazendeiros e seu efeito de sentido.
697
Como visto, apesar de o jornal, na mesma esteira de ruralistas e policiais,
conceber o ato de invadir terras como um ato criminoso, não se trata de um crime
comum. Caso fosse, a notícia provavelmente estaria localizada na seção “polícia” e
não na seção “geral”. Ou seja, o jornal reconhece que existe uma questão política e
social de fundo no caso das ocupações de terras, que distingue o seu caráter em
relação a atos criminosos comuns. Isso também decorre, talvez, do fato de que
esses atos são praticados em família. Estão presentes mulheres, crianças, idosos, e,
acima de tudo, não possuem um estereótipo que os ligue ao de criminoso. Isso
porque, sabe-se que o sistema de controle penal se volta preferencialmente contra
homens, jovens, pobres e, preferencialmente, negros.
Dessa forma, é interessante a forma como em algumas reportagens se
695
ibid.
696
ESTRADA repartida em três. op. cit. Grifou-se.
697
INDURSKY, Freda. De ocupação a invasão: efeitos de sentido no discurso do/sobre o MST... op.
cit. p. 184.
204
consegue destacar outras características ligadas a esta criminalidade.
Diferentemente do criminoso comum, o integrante do MST é como um soldado de
um exército, que obedece a ordens de um superior para agir. Esses superiores,
chamados líderes do MST, também não são identificados com o perfil do criminoso.
Porém, possuem muito do que se poderia chamar criminoso político. Isso porque,
quando se quer efetivamente tratar de demonizar discursivamente os sem terra,
busca-se deixar claro que suas motivações o ideológicas. Que se tem em mente,
com essa atuação, romper com o Estado de direito vivido na atualidade para, sob o
socialismo, poder distribuir as terras que hoje pertencem a poucos.
Dessa maneira, no momento em que as notícias trazem esse discurso, os
líderes e integrantes do MST são despidos de sua roupagem de camponeses, com
toda a sua significação, para assumirem a personalidade de inimigos do Estado e, é
claro, de todos os que defendem a propriedade privada como um princípio absoluto.
Tornam-se, dessa maneira, passíveis de vigilância e temor, e, portanto, de um maior
controle social.
No dia 25 de fevereiro, foi publicada uma das duas únicas reportagens
especiais sobre o tema da questão agrária no período analisado. Essa reportagem,
porém, provavelmente por se tratar de um gênero jornalístico diferente, ou seja, mais
aprofundado do que as notícias, destoou também no que se refere à forma de
análise. De fato, as reportagens devem ser normalmente mais aprofundadas, operar
segundo a dedução, ter uma visão interpretativa e trazer pautas complexas.
Entretanto, apesar de a pauta complexa ter sido escolhida, a abordagem
interpretativa se deu em um sentido irônico e preconceituoso, buscando o interesse
político-econômico para as ações do MST em Coqueiros do Sul. Além disso, é o
texto em que mais se percebe a tendência criminalizadora e redutora no que
concerne à reforma agrária.
Em cinco anos, o enclave de sem-terra no Planalto Médio registrou 20
invasões de terra e cem delitos relacionados à disputa agrária. A Polícia
federal investiga a possível presença de estrangeiros nas ocorrências.
698
Uma das recordistas em produção agrícola no Estado, a região, chamada
Planalto Médio, vive uma disputa crescente e violenta pela posse da
terra.
699
698
A MSTlândia. Zero Hora, capa, 25 fev. 2007, p. 01. Grifou-se.
699
O ENCLAVE do MST. op. cit. Grifou-se.
205
Zero Hora fez uma pesquisa e constatou que essa linha de frente, que
compreende ainda os municípios de Sarandi, Almirante Tamandaré,
vivenciou entre os anos 2001 e 2006, mais de cem ocorrências policias
registradas em fazendas.
700
Félix Guerra, dono da Fazenda Coqueiros, foi transformado em desafeto
preferencial do MST também por motivos ideológico-sentimentais. Ele é o
último grande proprietário na região que foi berço do movimento dos sem-
terra [...] Sem a presença de sua fazenda, ficaria consolidado o projeto de
uma MSTlândia de matizes socialistas, encravada entre as duas principais
estradas da região, a BR-386 e a RS-324.
701
Em primeiro lugar, ao encontrar motivos sentimentais-ideológicos nas
sucessivas “invasõesda Fazenda Coqueiros, destaca que um projeto de formar
uma MSTlândia, tendo em vista os assentamentos do MST ao redor, onde o próprio
movimento foi fundado. Além disso, busca encontrar motivos econômicos,
concluindo que a região, por ser o celeiro do estado, é mais interessante do que as
terras da região da fronteira, por exemplo.
Discutir a questão agrária não é o objeto da matéria, o que fica claro desde o
início. A palavra “violenta” é utilizada exclusivamente para qualificar a disputa por
terra na região, ocultando, portanto, a situação que leva propriamente os sem terra a
ingressarem nessa disputa. Ou melhor, investiga-se essa motivação, mas através de
um filtro que apenas permite visualizar a existência de um interesse ideológico e não
a relação disso com a sobrevivência das pessoas.
Assim, após meses legitimando a necessidade de vigilância das ações dos
sem terra, a reportagem vem mostrar exatamente por quais motivos o MST deve ser
delimitado como um inimigo. Com a frase exposta acima, o jornal logra justamente
fazê-lo. Na verdade, esse inimigo não é bem individualizado nas páginas do jornal.
Trata-se de membros de um grupo criminoso. Mas, ao mesmo tempo, é comum
perceber a necessidade de separar os camponeses inocentes dos culpados. A fala
de um proprietário de terra no dia 24 de novembro, em São Gabriel demonstra isso.
“- Não quero confusão. Não vou chamar a polícia porque muitos deles não têm culpa
de nada”.
702
Quer dizer, então, que apenas alguns têm culpa e, provavelmente, trata-se
dos líderes. A existência de objetivos escusos nas ocupações e marchas é
ressaltada principalmente na mesma reportagem especial. Um dos objetos de
700
O PROJETO é fazer uma MSTlândia. op. cit. Grifou-se.
701
ibid.
702
EDITAL de vistoria irrita ruralistas. Zero Hora, Geral, 24 nov. 2006, p. 48.
206
análise do jornal é um documento da Brigada Militar que afirma a finalidade dos atos
criminosos que integrantes do MST teriam cometido na região.
Acuar Guerra, portanto, é questão de honra para os sem-terra, alerta um
documento preparado pelo serviço reservado da brigada Militar e anexado a
processo judicial criminal sobre delitos ocorridos em fazendas, que tramita
em Carazinho.
703
Ora, se os atos criminosos que teriam praticado os sem-terra na região têm
única e exclusivamente o objetivo de acuar o proprietário da fazenda, nota-se que,
mais uma vez, não se tratam de crimes comuns. Tudo indica que se tratam, isso sim,
de motivações político-ideológicas que vitimizam vários outros proprietários da
região, conforme dito pelo jornal. Relacionar numericamente ocorrências policiais
logra justamente ilustrar o significado da existência de um acampamento do MST na
região de Coqueiros do Sul.
São 20 invasões de propriedades rurais, 18 registros de furto e abate ilegal
de gado, 12 incêndios de lavouras, além de 70 atos de depredação de
propriedades rurais, o que inclui corte de árvores e destruição de veículos
usados na lavoura. Em quase todos os casos, testemunhas e vítimas
ouvidas nos inquéritos policiais apontam militantes do movimento dos
sem-terra como autores.
704
Os crimes principais, que também são relatados em um quadro, no caso de
um proprietário de um sítio, o depredações e saques, além da morte de animais.
Essa reportagem se distingue das demais justamente porque demonstra que os atos
ilícitos praticados pelos sem terra não se resumem às ocupações de propriedades,
estradas e praças. São também outros atos criminosos comuns e violentos. Mas,
além de significarem que a pobreza no campo gera a criminalidade, demonstram
outras motivações escusas, de assustar o maior latifundiário da região.
A relação dos atos do MST com o crime, vem bastante caracterizado na
tomada de decisões por membros dos órgãos do sistema penal. A atuação das
agências do sistema penal nas notícias analisadas foi representada pela Brigada
Militar e pelo Judiciário. Nessas matérias, a atuação da polícia se deu
preponderantemente no sentido de vigiar todos os passos dos sem terra,
propiciando um controle ao que sentiram ser “invasões” anunciadas. Em algumas
situações, entretanto, houve confronto direto com integrantes do movimento.
703
O ENCLAVE do MST. Zero Hora, Reportagem especial, 25 fev. 2007, p. 5.
704
O ENCLAVE do MST. op. cit. Grifou-se.
207
Alguns exemplos disso estão nos trechos selecionados. É interessante notar
também que a maior parte dessas ações da Brigada Militar é autorizada pelo
Judiciário. Foi o caso das barreiras formadas em São Gabriel e em Eldorado do Sul,
noticiadas nos dias 23 de novembro e 02 de dezembro, buscando impedir o
prosseguimento das duas marchas do MST que ocorreram no período.
No momento em que os sem terra tentam entrar na propriedade para fazer
suas manifestações, a violência estrutural contra a qual reagem converte-se em
violência institucional. Uma observação interessante quanto a isso é a reclamação
de torturas empreendidas contra os sem terra, divulgada no jornal Zero hora do dia
16 de abril.
Um dos coordenadores do acampamento, Carlos da Silva Moraes, contou
que acampados têm hematomas nas pernas, nas costas e no tórax,
produzidos por golpes de cassetete e chutes que teriam sido desferidos por
policiais.
705
Assim, após noticiar quotidianamente atos em que os sem terra haveriam
usado violência, por romperem com a paz, nessa edição o jornal noticia um relato de
violência institucional, gerado a partir da reclamação dos sem terra.
A atuação mais violenta da Brigada Militar, no sentido de violência física, foi a
relatada no dia 13 de abril.
Um integrante do movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
foi baleado e outros dois detidos em confronto com a Brigada Militar (BM)
na tarde de ontem, em Coqueiros do Sul. Durante a madrugada, outros três
manifestantes haviam sido presos por furto e posse irregular de munição.
706
De madrugada, quatro integrantes do MST foram presos quando
deixavam a Fazenda Coqueiros. Um deles era foragido da Justiça. Os
outros três tinham cinco cartuchos de arma e três colchões retirados da
base da BM montada no local. Depois de autuados, foram levados ao
presídio.
707
- Apreendemos 300 foices e facões, um manifestante foragido e outros
três que haviam cometido furto.
708
Apesar de o título da matéria ser voltada ao fato de um sem-terra ter levado
um tiro, toda a notícia relata que os sem-terra também estariam armados, expondo a
idéia de que eles próprios podem ter acertado o companheiro. O jornal busca deixar
705
SEM terra reclamam de torturas. Zero Hora, Geral, 16 abr. 2007, p. 28.
706
SEM terra leva tiro em confronto com a Brigada. Zero Hora, Geral, 13 abr. 2007, p. 48.
707
ibid. Grifou-se.
708
ibid. Grifou-se.
208
claro que a atuação da Brigada foi de defesa contra a entrada dos sem terra na
Fazenda Coqueiros. Além disso, que “houve disparos de sem-terra e de policiais
militares”. Porém, depois de revistá-los, a polícia encontrou apenas as foices e
facões que são os seus instrumentos de trabalho, e apreendeu trezentas delas.
Questionamentos quanto à legitimidade de uma operação que apreende
instrumentos de trabalho a pretexto de buscar armas de fogo não apareceram. A
notícia ainda ressalta a prisão de três sem terra de madrugada, por serem foragidos.
Novamente as fontes que aparecem são as oficiais, destacando-se A Brigada Militar
como voz direta na matéria.
Uma questão especial no que se refere ao relato dos jornais sobre a atuação
dos agentes do sistema penal na questão agrária é o fato de que ela aparece
sempre como complementar à dos fazendeiros, e vice-versa. Ou seja, é como se, ao
buscarem manter a ordem, os policiais corroborassem com o interesse dos
ruralistas, que querem também a manutenção do status quo. Porém, em algumas
situações a atuação dos policiais aparenta quase ser de segurança particular de
fazendeiros. É o caso das notícias sobre a aplicação de defensivos agrícolas na
fazenda Coqueiros, no dia 10 de abril de 2007, que foram deslocados 80 PMs
para realizar a segurança da propriedade.
Realizada pelo terceiro ano consecutivo, a mobilização da BM para garantir
o trabalho dos empregados da Fazenda Coqueiros, visada pelos sem-terra,
custa R$ 20 mil ao governo do Estado.
Comandante da BM na região, coronel Waldir Cerutti. “Não tem nada a ver
com serviço pessoal. Nosso dever é garantir a ordem em todos os lugares”.
Segundo a BM, o temor era de que os sem-terra pudessem atacar os
trabalhadores durante a colheita, pois a fazenda foi alvo de sete invasões
do MST desde abril de 2004.
709
Assim, aparece o custo da operação em Coqueiros para o Estado, em função
do risco da proximidade dos sem terra. Mais uma vez, porém, a discussão de fundo
ficou de lado, ou seja, o paradoxo de se gastar todo esse dinheiro com a segurança
privada de uma fazenda e nada com as causas do conflito que é a injusta
distribuição da terra, as desigualdades e opressões no campo.
Uma atuação bastante arbitrária dos policiais que ocorre nas reintegrações de
posse, porém, não são questionadas no jornal. Em duas situações pelo menos
aparece a destruição dos barracos montados pelos sem terra e a apreensão do
709
VIGÍLIA em colheita desloca 80 PMS. op. cit.
209
material, sendo que o objeto das ações possessórias é apenas a retomada da
posse, e não destruir ou apreender, sem devolução, o que estava no local e que é
de propriedade de outras pessoas. Entretanto, apenas houve o relato como se
fossem o cumprimento de ordens judiciais.
Uma operação com 200 policiais militares pôs fim ontem à invasão do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em Coqueiros do Sul [...].
Os policiais do Batalhão de Operações Especiais de Passo Fundo e de
santa Maria, incluindo um grupamento de 40 policiais montados, chegaram
ao local preparados para efetuar a identificação e prisão dos
invasores. Antes que entrassem na propriedade, os integrantes do MST
abandonaram a área invadida, abrigando-se nas áreas que mantêm
arrendadas ao lado da Coqueiros. Os policiais desmancharam os
galpões que haviam sido construídos e retiraram a cerca que os
manifestantes haviam deslocado por cerca de 200 metros para dentro da
Coqueiros. A madeira dos barracões foi apreendida pela Brigada
Militar.
710
A atuação do Poder Judiciário nos conflitos no campo também ocorre no
sentido de privilegiar os ruralistas, o que fica demonstrado em todas as decisões
judiciais expressas nas notícias analisadas, corroborando com a idéia de que os
atos, mesmo que marchas, são ilegais e devem ser barrados.
Decisão da Justiça impediu prosseguimento da caminhada. Brigada barra
marcha do MST.
711
Impedido de avançar e intimidado por mandados judiciais, o MST recuou
na tentativa de entrar na Cabanha Dragão, em Eldorado do Sul.
712
O juiz Marcelo Malizia Cabral também notificou a Brigada Militar para que
impeça a entrada de integrantes do MST na área.
713
De uma maneira geral, nota-se que, diante da identificação do conflito agrário
particular, busca-se individualizar o (s) culpado (s) e a (s) vítima (s), atuação própria
de uma sociedade punitiva e atomizada. O resultado acaba sendo a identificação de
um inimigo interno, o qual é necessário combater para fazer cessar a conflitualidade.
No mesmo sentido do medo branco dos escravos negros do século XIX e do
conseqüente aumento do controle social para a sua contenção, hoje a violência
física por parte dos fazendeiros, assim como a violência institucional do sistema
penal, acabam se voltando contra o grupo dissidente.
710
MST sai de área invadida. Zero Hora, Geral, 01 dez. 2006, p. 50. Grifou-se.
711
BRIGADA barra marcha do MST. Zero Hora, Geral, 02 dez. 2006, p. 33. Grifou-se.
712
VISTORIA mobiliza fazendeiros e sem-terra. op. cit. Grifou-se.
713
SEM terra se mobilizam contra o reflorestamento. op. cit.
210
O fato é que não sequer uma situação em que o jornal relate
manifestações do MST sob o ponto de vista dos seus próprios atores. O olhar é
sempre, na sua totalidade, dos ruralistas e dos agentes do sistema penal. Esse é o
maior indício que leva às conclusões dessa análise.
Por mais que o jornal busque demonstrar que o MST promove a criminalidade
ao “invadir” as terras, e a criminalidade comum, em furtos, depredações e mortes de
animais, nada de concreto também se traz para essas acusações, além de
ocorrências policiais. Ou seja, acusar um grupo de haver praticado crimes violentos,
ainda mais da forma como relatados pelo jornal, sem haver sequer um processo
formal, é uma grande irresponsabilidade do jornal. E essas acusações ficam ainda
mais duvidosas quando se nota os artifícios discursivos utilizados, em especial
naquela reportagem especial do dia 25 de fevereiro, para esconderem o fato de que
a maior parte do texto se trata de interpretações do próprio jornalista, sem relação
com a intencionalidade e prática do MST.
Ora, qualquer aula de jornalismo impresso irá demonstrar que o mais básico
na construção de uma reportagem sobre um fato, é buscar as fontes diretamente
relacionadas a esse fato. Mas os sem terra, que são os sujeitos das manifestações,
de fato são travestidos em objetos da vigilância nas matérias do jornal. A o ser
quando se trata de relatar os crimes. Nesse caso, eles passam a ser sujeitos, mas
não no sentido próprio da palavra. São traduzidos em sujeitos ativos do tipo penal
correspondente, despidos de sua humanidade, e demonizados.
A questão agrária nas outras seções do jornal
Após analisar as notícias e reportagens relacionadas à questão agrária,
retirando delas as três categorias discutidas, parece ser interessante verificar
rapidamente a forma como em outras seções do jornal foi feita referência à questão
agrária ou aos movimentos sociais de luta pela terra. Apesar de serem textos de
opinião, que, em regra, não refletem necessariamente a opinião do jornal, sabe-se
que também para a divulgação deles há uma seletividade.
Um exemplo é a seção de “palavra do leitor”, onde esta seletividade tem
bases claramente ideológicas, sendo que nos seis meses de análise todas as
menções à luta pela terra tiveram as mesmas características. Foram dezesseis as
211
cartas publicadas sobre o MST no período analisado. A sua escolha também passa
por uma seleção, onde apenas alguns temas, com determinados conteúdos, são
escolhidos. Isso fica claro em relação à questão agrária, tendo em vista que todas as
opiniões relacionadas ao MST são completamente contrárias a todas as suas ações,
normalmente questionando a ausência da polícia para conter manifestantes, ou de
outras agências de controle social formal. Além disso, várias referências irônicas,
como o caso em que um leitor, no dia 28 de novembro, propõe a criação do MSCF:
Movimento dos Sem Câmera Filmadora, tendo em vista que integrantes do MST, ao
ocuparem um prédio, tinham uma câmera filmadora.
Mas o depoimento que melhor representa, aparentemente, todas as demais
opiniões é a seguinte:
Onde esa polícia, que permite que alguns integrantes do MST caminhem
sobre uma rodovia sem tomar providências? Atrapalham o trânsito e
prejudicam o ir-e-vir do cidadão que trabalha e paga impostos.
714
O conceito de cidadania, invertido nessas frases, mostra claramente o perfil
ideológico do próprio jornal. Pois não é difícil perceber que as seções do jornal que
trazem opiniões, apesar de não representarem, em tese, o seu pensamento, são
cuidadosamente selecionadas conforme o efeito que se quer causar. No caso da
“Palavra do leitor” isso fica muito claro, pois ao expor a inconformidade do povo para
com os sem terra, o jornal está, implicitamente criando uma deslegitimação popular
de um movimento que tem a base no povo. “O ‘correio dos leitores’ pode significar
mais do que a expressão de interactividade entre o jornal e o seu público. Pode
significar mais do que uma simples disponibilização de espaço. Ele pode ser um
ponto de partida para operações de marketing, ou outras, que o jornal queira
desenvolver”.
715
Nesse caso, invoca-se o sistema penal, torna-se ilegítima a manifestação,
tendo em vista que atrapalha o trânsito, e ainda traz-se uma definição de cidadania
que exclui, a priori, os sem terra, dando a entender, no momento em que o conceito
de cidadania está ligado ao trabalho e pagamento de impostos, que os mesmos não
trabalham e não pagam impostos. Por isso, também não merecem o direito de ir e
vir, muito menos atrapalhando os cidadãos ordeiros.
714
PALAVRA do leitor. Zero Hora, 22 nov. 2006, p. 2.
715
REBELO, José. op. cit. p. 131.
212
Isso fica ainda mais perceptível pelo fato de que por duas vezes foram
publicadas cartas de Felipe Nobre, produtor rural e vice-presidente do Sindicato
Rural de São Gabriel, na seção de palavra do leitor. Este é um leitor com espaço
cativo na seção, tendo em vista sua afinidade ideológica com o jornal.
Além da palavra do leitor, a questão agrária esteve presente em outras
seções do jornal. O direito de propriedade foi o tema do Fórum da Liberdade, evento
promovido pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE), e que teve uma cobertura
exclusiva do jornal Zero Hora na seção de economia dos dias 17 e 18 de abril.
Sendo um evento voltado principalmente para empresários, é claro que a
abordagem do tema foi bastante direcionada para aqueles interesses.
As datas do evento coincidiram com o dia do aniversário de 11 anos do
massacre de Eldorado dos Carajás e o dia posterior, e, conseqüentemente, com as
manifestações do MST do chamado Abril Vermelho. Porém, a cobertura do Fórum
da Liberdade ofuscou a abordagem sobre o Massacre e também sobre as
manifestações. A reportagem do dia 17 de abril traz um destaque à palestra do
Presidente do IEE, Paulo Uebel. A parte de seu discurso que foi relatada por Zero
Hora, foi justamente a que se volta contra o MST.
Na edição em que o fórum elegeu como tema o direito à propriedade, Uebel
chamou o MST de ‘miséria, sangue e terrorismo’, em referência à sigla. E
colocou o movimento ao lado de organizações terroristas como o Sendero
Luminoso, a Al Qaeda e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
(Farc), por desrespeitar os direitos humanos e a propriedade e colocar em
risco a civilização.
716
Na mesma notícia, fala-se sobre o discurso de Yeda Crusius, governadora do
estado, ocorrido na mesma oportunidade. Porém, ao fazê-lo, destaca-se que “A
governadora Yeda Crusius fez um discurso acadêmico, ressaltando que o direito à
propriedade não pode ser absoluto”.
É interessante que o discurso de Uebel não foi qualificado como acadêmico,
político ou ideológico. Não houve qualquer rotulação, apenas suas idéias foram
transcritas. No caso da governadora do estado, pelo fato de as idéias por si
expostas terem sido em sentido oposto, foi necessário rotulá-lo como acadêmico, o
que, principalmente no campo jornalístico, significa fora da realidade, alienado da
prática.
716
PRESIDENTE do IEE critica os sem-terra. Zero Hora, Economia, 17 abr. 2007, p. 14.
213
Uma outra questão emblemática diz respeito à exposição, no local do evento,
de um caminhão, que teria sido incendiado em outubro de 2006 por integrantes do
MST em Coqueiros do Sul. Então, a repetição da idéia de que atos dos sem terra
são terroristas esteve presente durante toda a cobertura. E não só aí.
Antes disso, no dia 18 de março, foi realizada uma entrevista com Tarso
Genro, ministro da justiça, principalmente sobre a criação de uma lei antiterrorismo,
enviada ao Ministério pelo Palácio do Planalto. Dos oito questionamentos, três foram
relacionados aos atos do MST:
Agência RBS Ações do MST, como, por exemplo, a invasão do horto
da Aracruz no Rio Grande do Sul no ano passado estrariam nessa
nova lei? o. Absolutamente, o tem nada a ver. Aquilo é um atentado,
um delito contra a propriedade que tem de ser punido. À medida que aquilo
for apurado como delito, será um delito comum.
Agência RBS - E uma invasão do Congresso como a patrocinada pelo
Movimento de Libertação dos Sem-terra? Não. Isso é baderna. Não tem
nada a ver com terrorismo.
Agência RBS Ações desse tipo não inspiraram o projeto de lei
existente? Se fosse provocada por ações desse tipo, seria infantilidade.
717
O mais interessante dessa entrevista são as perguntas, quer dizer, o
direcionamento que o jornalista busca dar ao conteúdo da fala do ministro.
No dia 21 de abril a crônica de uma veterinária é justamente nesse sentido.
Explora a idéia de que os proprietários convivem com “a insegurança diária, com o
medo e o desrespeito”. A frase seguinte volta à questão da criminalização: “A
resposta a essa questão encontra-se na impunidade diante dos últimos atos
cometidos por esse movimento, dito como social”.
718
O texto corrobora justamente com os temas debatidos no Fórum da
Liberdade, ou seja, o direito à propriedade (dos proprietários), mas também retoma o
tema da análise das notícias. Trata-se, a partir de um comentário de uma leitora, de
legitimar a cobertura dos atos do MST através da ótica do medo e da insegurança.
Com isso, possibilita-se o aumento do controle social, a reclamação da impunidade,
a atuação efetiva das agências de controle social formal no sentido de reprimir os
atos do movimento.
717
SEGURANÇA não tem coloração partidária, Zero Hora, Política, 18 mar. 2007, p. 08. Grifos no
original.
718
TANURE, Soraya. Direito de propriedade: até quando? Zero Hora, 21 abr. 2007, p. 15.
214
2.2.4 Conflitos agrários no jornal: da invisibilidade à satanização
A relação entre imprensa e movimentos populares parece sempre ter sido de
tensão. Tendo em vista que os jornais constituíram-se em empresas, e que seus
proprietários, via de regra fizeram parte da elite no país, a cobertura sobre revoltas
escravas e camponesas sempre foi caracterizada pela invisibilidade do sofrimento
humano, legitimando atos cruéis.
Um exemplo disso é o estudo realizado por Malaguti Batista, onde a autora
analisa os discursos do medo na cidade do Rio de Janeiro a partir da conjuntura
logo após a Independência do Brasil. Os medos de levantes e rebeliões por parte
dos negros escravos foram freqüentemente pautas dos jornais cariocas, nos quais
os discursos sobre a necessidade de controle social da escravidão se fizeram
presentes, legitimando a violência.
719
Além do perigo escravo, outras revoltas populares levaram a reações
drásticas por parte do poder central no país. No final do século XIX, uma revolta
popular em específico chamou a atenção da imprensa. Em uma análise sobre a
atuação da imprensa no caso da Revolta de Canudos, ocorrida entre 1896 e 1897
no Nordeste brasileiro, Arbex Jr. menciona que durante a revolta foram enviados
para sua cobertura correspondentes dos grandes jornais da época, principalmente
paulistas e cariocas.
720
Na ocasião, os jornalistas “silenciaram sobre a imensa
crueldade demonstrada por oficiais e soldados”
721
, tendo sido ocultadas as degolas,
e as demais atrocidades cometidas.
722
O tipo de abordagem acerca de revoltas possui ainda, na atualidade,
características particulares. Como visto no primeiro capítulo, a análise que se faz do
jornalismo nesse trabalho volta-se para uma concepção construcionista, percebendo
que a notícia é uma construção social, na mesma medida em que é um mecanismo
de construção social da realidade. Acima de tudo, ao utilizar preponderantemente
fontes oficiais, por sucumbir ao controle social nas organizações, e, é claro, pelo fato
de ser uma atividade empresarial como outra qualquer, a atividade jornalística
representa o interesse na manutenção do status quo.
719
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro... op. cit. p. 175.
720
ARBEX JR., José. O jornalismo canalha: a promíscua relação entre a mídia e o poder. São
Paulo: Casa Amarela, 2003. p. 149.
721
ibid. p. 150.
722
ibid. p. 150.
215
Essa tendência se expressa também no fato de a imagem dos jornalistas em
relação ao seu público levar a que as notícias sejam expostas dentro de um universo
de valores que não permite o dissenso. Mesmo quando os meios de comunicação
reconhecem posições diferentes e noticiam-nas, ou seja, quando permitem o
dissenso, tratam-nas como “heresias curiosas, excentricidades irrelevantes que as
pessoas rias podem descartar como se não tivessem conseqüências”.
723
Assim, o
tratamento dispensado a qualquer acontecimento que choque a população por ser
diferente, afrontando valores dos setores hegemônicos, acontece de tal forma que,
para a manutenção da ordem, são buscados responsáveis, os quais se reduzem a
pessoas, indivíduos, jamais à ordem estrutural.
Após estudar o quotidiano do trabalho de 75 jornalistas, nos Estados Unidos,
num período de treze meses, Phillips também chegou à conclusão de que os hábitos
relacionados com o ofício, como a orientação temporal atual, “a lógica do concreto”,
e uma ênfase para os acontecimentos contingentes do que para as necessidades
estruturais influenciam na construção das notícias diárias. A rotina de trabalho
também impede a reflexão sobre os fatos, havendo uma tendência a vê-los de forma
desconexa. “As ambigüidades, os desenvolvimentos em fluxo e as contradições
tendem a não ser notícias. [...] De modo geral, as notícias dão a sensação de
novidade sem mudança”.
724
A idéia de novidade sem mudança é interessante no que tange às notícias
sobre a questão agrária no Brasil. Normalmente se noticia ocupações de terras,
marchas, ou seja, fatos novos (ou melhor, com endereços novos), sem uma
abordagem que auxilie na compreensão sobre a permanência do problema da
estrutura concentradora e excludente da terra no país.
Diante do surgimento e fortalecimento dos movimentos sociais de luta pela
terra, surge também uma relação com a imprensa, tendo em vista a necessidade de
adquirir visibilidade. Assim, a relação entre MST e mídia é complexa e dialética,
tendo em vista a interdependência entre ambos e, ao mesmo tempo, seu
antagonismo.
Em estudo sobre a relação entre Zero Hora e o MST, Berger busca
justamente compreender de que maneira o popular (movimento social) e o massivo
723
TUCHMAN, Gaye. La producción de la noticia… p. 170.
724
PHILLIPS, Bárbara. Novidade sem mudança. In: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões,
teorias e “estórias”. p. 326-331. Lisboa: Veja, 1993. p. 331.
216
(imprensa) se encontram. Uma questão interessante nesse aspecto é justamente a
necessidade de visibilidade que os movimentos sociais possuem e, é claro, a
importância dos meios de comunicação para tanto.
Sabe-se que as relações sociais no campo são, em regra, invisíveis. Pouco
se fala sobre os problemas relacionados à propriedade concentrada da terra e à
miséria que isso gera ao povo. Sendo assim, estar presente na imprensa é uma
forma de romper justamente com essa barreira de exclusão, que não é apenas uma
exclusão econômico-social, mas também uma exclusão simbólica. Dessa forma,
O MST percebe a mediação da informação na sua interlocução com o poder
político. E a mídia sabe que seu poder está na sua condição de mediação.
Nesta interação (sinuosa, sutil, não dita) ambas se vinculam mediante um
‘jogo de usos’. O MST precisa encenar suas reivindicações, torná-las
fotografáveis e oferecer à imprensa os elementos que confirmarão sua
natureza. A ela cabe contar o presente e quanto mais ‘expedientes de real’
tiver, maior será sua credibilidade.
725
Sendo assim, a notícia realiza a mediação entre o que ocorre no campo e o
leitor da cidade, fazendo com que o fato venha a acontecer também para este. A
forma como esse acontecer se delineia vai partir de decisões políticas
organizacionais internas da redação, fazendo com que, ao mesmo tempo, crie-se do
MST e da questão agrária a imagem que a própria noticia vier a veicular.
Observa-se nas edições de Zero Hora analisadas que o questionamento
sobre a forma como ZH confere visibilidade ao MST não se resume a isso. Significa
também analisar a maneira como aquele jornal identifica a questão agrária e a
noção de conflito e violência no campo. A adoção de um paradigma que parte do
consenso para um conflito provocado pelos sem terra permite legitimar a tomada de
atitudes por parte de latifundiários e policiais militares, posições-sujeito com as quais
o jornal se identifica.
Além disso, o conteúdo das notícias, apesar de tratarem, no fundo, de uma
questão estrutural há muito questionada, a abordagem realizada dificilmente se
refere à reforma agrária ou à questão agrária, mas a fatos específicos provocados
pelos sem terra. Dessa forma, percebe-se que a visibilidade dos conflitos no campo
é diretamente proporcional às atuações perturbadoras de uma “ordem”, provocadas
pelo MST.
As ações do MST têm justamente esse intuito. Sabem os camponeses que
725
BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: UFRGS, 1998. p. 11.
217
suas condições de vida jamais serão repercutidas caso eles deixem de criar um
acontecimento noticiável.
O encontro do MST com a imprensa se dá, portanto, através de um
cruzamento de interesses: enquanto o primeiro precisa ser publicizado, o
segundo, conseguir captar um evento noticiável; ou, em outras palavras, o
MST quer reivindicar e a imprensa, produzir notícia. A mídia precisa ser
provocada, é preciso que haja uma perturbação para que atenção ao
evento pautando as redações.
726
Porém, mesmo quando o MST consegue criar um fato noticiável, não são as
suas reivindicações, bem como os problemas estruturais do campo que aparecem,
“mas as ações de impacto que acabam, junto com o seu promotor (no caso, o MST),
sendo o gancho jornalístico das notícias”.
727
Assim, apesar de ter conquistado
visibilidade, isso se deu de forma localizada no próprio movimento, geralmente de
forma negativa, ficando de lado a causa pela qual os camponeses lutam.
728
Principalmente a partir de meados dos anos 1990, coincidindo com a adoção das
políticas neoliberais no país, “o clima de caos social passou a ser associado, na
mídia, ao MST, de forma que as políticas neoliberais excludentes e geradoras de
desemprego passaram a ficar encobertas”.
729
Tal abordagem jornalística sobre os movimentos sociais não é uma realidade
apenas brasileira. Analisando o caso dos piqueteiros
730
na Argentina, Pereyra
demonstra que “nos meios massivos o acontecimento do protesto se constrói a partir
726
MELO, Paula Reis. Notas sobre a condição do MST enquanto fonte jornalística. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, XXVIII, 2005, Rio de Janeiro. Anais... São Paulo:
Adaltech Informática, 2004. CD-ROM. sp.
727
ibid. sp.
728
GOHN, Maria da Glória. Mídia, terceiro setor e MST: Impactos sobre o futuro das cidades e do
campo. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 158.
729
ibid.
730
A realidade da adoção de políticas neoliberais afetou a Argentina de maneira particularmente
cruel, que foi um dos países que seguiu com maior presteza a receita dos organismos financeiros
internacionais. Os últimos anos da década de 1990 e o início do novo século trouxeram ao país uma
recessão histórica, que afetou as classes média e baixa da população. Não se conformando com
isso, algumas parcelas da população que se viram afetadas diretamente por essas políticas
sucederam-se em constantes protestos por melhora de salários, por emprego, qualidade de vida,
entre outras petições LUNA, Franco Ariel; ALANIZ, Liliana Alejandra. op. cit. p. 59. Porém, adotaram
para estes protestos métodos que irritaram os setores privilegiados, recebendo por isso cruéis
retaliações. A principal forma de protesto passou a ser a interrupção de ruas, os chamados piquetes,
a partir dos quais os manifestantes passaram a ser identificados por piqueteiros. Ressalta-se que a
adoção dessa forma de protesto se deu em função da incapacidade das formas tradicionais de
organização civil, como os sindicatos, igrejas, etc., em agir diante dessa realidade ROLDÁN,
Fernando Pedro; HNATIUK, Aníbal Rolando. La criminalización de la protesta social y los nuevos
actores. In: Derecho Penal Online (Revista eletrônica de doctrina y jurisprudencia en línea).
Disponível em: <www.derechopenalonline.com/derecho.php?id=15,74,1,0,1,0> Acesso em: 11 mai.
2007. sp.
218
de seus efeitos e não de suas causas”.
731
Explica que os piqueteiros são incluídos
nos noticiários somente como provocadores do ‘caos’ no trânsito, e não como atores
políticos. Com essa abordagem se consegue despolitizar o conflito. “O ‘caos’, como
figura, tem uma dupla construção: a demonização do manifestante e a
espetacularização do prejuízo provocado pelo protesto”.
732
É a mesma situação na
maioria dos protestos sociais, como é o caso das greves, dos setores privado e
público.
Em um sentido político mais explícito, alguns periódicos, como a revista Veja,
utilizam enquadramentos claramente negativos aos movimentos sociais em geral.
Em análise das edições dessa revista dos meses de maio, junho e julho de 2003,
Mendonça concluiu que esse papel político tem o intuito de
regular a legitimidade das organizações sociais a partir da visão de mundo e
do pensamento único institucionalizados em suas páginas. Esta construção,
guiada pela ótica neoliberal, trabalha um incessante jogo de enquadramento
de memória e de (re) definição dos legítimos movimentos sociais, como o
MST, em mera manifestação de violência.
733
Na televisão, a situação não é diferente. Após analisarem notícias televisivas
sobre o MST no Jornal Nacional (JN), da Rede Globo de Televisão e no Telejornal
Brasil (TJ) do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), Aldé e Lattman-Weltman
concluíram que “ambas as coberturas faziam uso de um enquadramento de conflito
em relação ao Movimento dos Sem-Terra, embora com diferenças fundamentais”.
734
Enquanto o TJ reforçava elementos de violência, perigo, iminência de combate,
confronto e hostilidade entre os adversários (elementos sensacionais do conflito), o
JN além desses elementos assumia um papel moralista, trazendo apelos à lei e à
ordem: “lamentava, assim, a invasão de terras produtivas, a irracionalidade e
731
PEREYRA, Marcelo R. op. cit. sp.
732
Tradução livre do original: “En los medios masivos el acontecimiento de la protesta se construye a
partir de sus efectos y no se sus causas. Es decir que los pobres-piqueteros son incluidos en las
agendas periodísticas sólo como provocadores del ‘caos’ en el tránsito urbano como si fueran un
problema más de los que aquejan a la ciudad - , y no como actores políticos, con lo cual se logra
despolitizar el conflicto. El ‘caos’, como figura, tiene una doble construcción: la demonización del
manifestante y la espetacularización del perjuicio provocado pela protesta”. PEREYRA, Marcelo R.
op. cit. sp.
733
MENDONÇA, Kleber dos Santos de. Assentamentos da memória: (re)construções de memória
discursiva na revista Veja. Compós: GT Produção de Sentido nas Mídias, 2006. Disponível em:
<http://www.unicap.br/gtp smid/pdf/CD-KleberMendona.pdf> Acesso em: 31 out. 2006.
734
ALDÉ, Alessandra; LATTMAN-WELTMAN, Fernando. O MST na TV: sublimação do político,
moralismo e crônica cotidiana do nosso “estado de natureza”. Doxa Laboratório de pesquisas em
comunicação política e opinião pública. Disponível em: <http://doxa.iuperj.br/artigos/MST2.pdf>
Acesso em: 15 mar. 2006.
219
irresponsabilidade dos sem-terra, o mau uso da terra distribuída e advogava a
viabilidade de outras formas, pacíficas, para solução do problema da terra”.
735
Essa
abordagem diz respeito justamente ao período em que o presidente Fernando
Henrique Cardoso deu início às ações para a chamada reforma agrária de mercado,
abordada no subcapítulo anterior.
Diante dessas pesquisas, é possível enumerar algumas características que
parecem ser comuns na cobertura dos jornais sobre a questão agrária e os sem
terra. As notícias em geral são tratadas de uma forma maniqueísta. Dividem-se os
dois lados da questão: o bem e o mal, sendo que de cada lado um estereótipo a
ser reforçado, e todos devem assumir os seus papéis. No caso de atos do MST, é
de praxe que sejam abordados de maneira que representem uma desordem
completamente ilegítima, reclamando punição aos culpados. Reduz-se os conflitos a
situações localizadas, possibilitando, assim, a responsabilização de indivíduos.
Deixa-se de lado o dever por parte do governo de efetivar a Constituição em matéria
de reforma agrária e de direitos fundamentais.
De desordeiros para criminosos, a distância entre uma abordagem e outra é
curta, sendo constantes as narrativas midiáticas incitando à manutenção da ordem
através da criminalização individual dos líderes e participantes do MST. “No universo
da ‘política como espetáculo’ em que esta construção se insere, são
indubitavelmente os holofotes da mídia [...] que, em simbiose com o sistema penal,
vêm desempenhando uma função ideológica fundamental”.
736
A forma como a mídia
aborda a violência no campo e as atitudes praticadas pelos integrantes do MST
acaba por construir um senso comum sobre tudo o que se refere ao grupo, tendo em
vista o poder da mídia na formação da opinião pública.
É necessário observar, porém, que a maneira como a mídia exerce a função
política de aniquilação dos movimentos sociais de luta pela terra faz parte de um
contexto sócio-histórico no qual preponderam consensos de uma sociedade de
classes e excludente. Assim, além da construção social dos conflitos agrários
levados a cabo pela mídia, é necessário ter em conta que nisso está envolvida
uma mentalidade secular dominante no imaginário coletivo, seja da
ausência de uma política fundiária indispensável em inúmeras experiências
735
ibid.
736
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A construção social dos conflitos agrários como
criminalidade... op. cit. p. 126.
220
históricas de desenvolvimento econômico, da idéia da terra como um bem
imóvel e intocável, mesmo que improdutivo, ou da histórica concentração
latifundiária existente no País.
737
É necessário se considerar, portanto, que se trata de uma relação dialética,
onde o jornalismo auxilia na construção social dos conflitos agrários, mas, para isso,
faz uso de ideologias presentes na sociedade, as quais o reforçadas,
dialeticamente, pela atuação, novamente, do jornalismo. Isso fica patente em uma
pesquisa encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil
(CNA), realizada em janeiro e fevereiro de 2006, pelo IBOPE. Mostra a pesquisa que
“76% da população considera antidemocráticas as invasões de terras promovidas
pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)”.
738
Afora a
necessidade de relativização dos dados em relação à metodologia utilizada, é um
dado representativo do modo como a sociedade percebe a democracia.
A despolitização dos atos coletivos faz parte de um contexto histórico em
que a sociedade não tolera a existência de uma esfera pública de organização para
o debate de temas que lhe interessam, além de o Estado desde se eximir de
responsabilidade, resumindo as suas atitudes à repressão penal e policial. Os
jornais contribuem, sem dúvidas, para esse tipo de desfecho, que os atos são
noticiados também segundo o senso comum individualista, como sendo o ato de
pessoas privadas que ameaçam sobremaneira a propriedade privada, direito este o
mais defendido.
Como salienta Bauman, um problema que se mostra na atualidade é que “a
arte de reinventar os problemas pessoais sob a forma de questões de ordem pública
tende a se definir de modo que torna excessivamente difícil ‘agrupá-los’ e condensá-
los numa força política”.
739
Os atos políticos do MST são costumeiramente
privatizados, construídos como uma relação apenas entre o proprietário-indivíduo e
o líder do movimento, além dos outros indivíduos que efetivamente praticaram o ato.
Porém, é justamente o oposto, a atuação coletiva e a politização é que caracterizam
737
GADINI, Sérgio; WOITOWICZ, Karina. A construção da luta pela terra na mídia brasileira:
Canudos, Contestado e MST no filtro da informação. Revista Rastros, ano V, n. 5, dez. 2004.
Disponível em: <http://redebonja.cbj.g12.br/ielusc/necom/rastros/rastros05/rastros0507.html> Acesso
em: 31 out. 2006. sp.
738
O Ibope ouviu 2002 pessoas entre os dias 16 e 20 de fevereiro, em 142 municípios de todas as
regiões do país. MST é criticado por 76% da população, diz Ibope. Terra, quinta, 9 de março de 2006.
Disponível e <http://noticias.terra.com.br/imprime/0,,OI911998-EI1774,00.html> Acesso em: 13 mar.
2006. sp.
739
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política... op. cit. p. 15.
221
os novos movimentos sociais. Como nota Santos, a “novidade dos NMs [novos
movimentos sociais] não reside na recusa da política mas, ao contrário, no
alargamento da política para além do marco liberal da distinção entre Estado e
sociedade civil”.
740
Nesse sentido, a característica exposta por Santos, de que os movimentos
sociais buscam a politização das mais diversas relações sociais, demonstra que a
limitação da cidadania em seu conceito liberal não é suficiente. Hoje os movimentos
sociais vêm atuando de forma que realizam vários deslocamentos daquele conceito,
recriando-o. A começar pela própria coletivização das reivindicações. O modelo
liberal de sociedade caracteriza-se pela privatização da vida social. “E, com base na
suposição de que apenas a ação econômica privada pode conduzir ao bem-estar
econômico, desaconselha a ação social e política. Conseqüentemente, caracteriza-
se pela individualização e despolitização da cidadania”.
741
Nesse sentido, a
cidadania é um conceito individual, no sentido de defesa e não de reivindicação. A
sociedade, constituída de indivíduos atomizados seria o espaço privado, econômico,
“condensando o político na esfera estatal pública”.
742
Não é de se estranhar, portanto, que a perspectiva sobre a democracia
também se restrinja aos moldes da democracia representativa, aliada ao conceito de
cidadania liberal. O MST, junto de outros movimentos sociais, traz justamente uma
ruptura. E normalmente as rupturas são percebidas negativamente no seio da
sociedade, e também pela mídia. “É assim como os mass media atuam como caixas
de ressonância que alertam, assinalam e estigmatizam os elementos conflitivos da
sociedade sem proporcionar os mínimos elementos para o debate e a reflexão”.
743
A redefinição do conceito cidadania, a partir da atuação desses movimentos,
traz justamente um ideal diferente de democracia, a idéia de que a cidadania é que
deve moldá-la.
744
740
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. 10
ed. São Paulo: Cortez, 2005..
741
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania... op. cit. Grifos no original.
742
ibid. p. 111.
743
BARATA, Francesc. El drama del delito en los mass media… p. 66. Tradução livre do original em
español: “Es así como los mass media actúan como cajas de resonancia que alertan, señalan y
estigmatizan a los elementos conflictivos de la sociedad sin aportar los más mínimos elementos para
el debate y la reflexión”.
744
Andrade relaciona quatro deslocamentos ao conceito de cidadania liberal provocados pela
necessidade de construção de um novo conceito: 1. apreensão da categoria cidadania como
processo histórico e dimensão política de conteúdo mutável, mobilizado pela participação política; 2.
222
A rotulação dos atos dos sem terra como antidemocráticos possui um efeito
simbólico inestimável. Possibilita-se dessa maneira reduzir os conflitos à prática da
luta pela terra, ignorando-se a situação de conflitualidade que sempre marcou e
continua marcando as relações sociais no campo. Ignora, da mesma maneira, as
origens das oligarquias rurais, a discussão sobre a legitimidade da propriedade da
terra, em função da grilagem, algo tão comum no Brasil. Além disso, quanto mais
violentas são as conseqüências da luta pela terra, mais noticiável se torna o fato. A
violência é reduzida, dessa maneira, a atos individualizados, mas não a quaisquer
atos: a atuação da polícia e dos ruralistas costuma ser abordada em uma ótica de
legítima defesa, sendo, portanto, justificável.
Os MCM, como mediadores privilegiados dos acontecimentos do mundo,
têm por função e objetivo fazer ver, que se transforma em determinadas
circunstâncias no objetivo de fazer crer. Portanto, eles não só expõem,
tornam público os acontecimentos, dão visibilidade, mas ao fazê-lo deixam
as marcas do lugar de enunciação, orientando a interpretação dos
acontecimentos.
745
Ao que tudo indica, a redução dos atos do MST a fatos individualizados e
subversores de uma ordem social pacífica, permite a sua delimitação como
criminosos. Além disso, pela sua filiação política, possibilita-se também a
identificação de inimigos. Assim como os despossuídos da cidade, os do campo
entram para o senso comum com o mesmo rótulo de ameaçadores da ordem.
Como observa Pereyra, a questão da pobreza costuma ser exposta pelos
meios de comunicação de maneira sensacionalista.
[...] os pobres aparecem aqui como sujeitos anômalos que não souberam/
puderam/ quiseram aproveitar as oportunidades que o modelo põe à sua
disposição; visão que se parece muito com a do neoliberalismo, que justifica
a exclusão social pela natureza individual dos ‘perdedores’, e que conta
do aumento da pobreza através da exibição de seus casos extremos. Os
cidadania como dimensão que engloba o conjunto dos direitos (e deveres) humanos, instituídos e
instituintes; “centrada na participação como sua alavanca mobilizadora, o que envolve uma
conscientização popular a respeito de sua importância ou, em outras palavras, uma pedagogia da
cidadania”; 3. cidadania construída a partir de ações “coletivas e plurais de classes, grupos e
movimentos sociais (que reenviam à realização das diferenças e o respeito às minorias)”; 4.
cidadania moldando a democracia (possível e sem fim). ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do
(pre)conceito liberal a um novo conceito de cidadania: pela mudança do senso comum sobre a
cidadania. In: Sistema penal máximo versus cidadania mínima. p. 63-80. Porto Alegre: do
Advogado, 2003. p. 75-78.
745
BERGER, Christa. MST: Atualizando a memória de exclusão e luta. In: PERUZZO, Cicília Maria
Krohling; PINHO, José benedito. Comunicação e multiculturalismo. p. 227-292. São Paulo:
INTERCOM; Manaus: Universidade do Amazonas, 2001. p. 287.
223
que são excluídos materialmente agora o são simbolicamente”.
746
É necessário destacar, porém, que os vários veículos de comunicação
possuem características diversas, não sendo justo generalizar a sua cobertura. O
fato é que os veículos maiores parecem ser mais influenciáveis ao discurso do
Estado, bem como ao dos ruralistas, que possuem grande poder econômico. Para
além disso, porém, existe um grande número de veículos independentes que fazem
o contra discurso, especialmente através de agências de notícias, blogs e portais na
internet.
747
Tratam-se, porém, de meios que devem ser buscados, escolhidos pelo
receptor, não são veículos hegemônicos que se impõem. Por isso a importância dos
demais, que possuem quase o monopólio do espaço destinado à informação pelas
famílias brasileiras.
Ao mesmo tempo em que os consensos da organização jornalística
condicionam a cobertura dos fatos, deve-se recordar também que esses consensos
têm outras variáveis: uma delas, a concorrência e a busca pelo lucro. Sendo assim,
como visto no primeiro capítulo, a violência e os fatos negativos em geral, assim
como situações inesperadas e peculiares, têm uma boa noticiabilidade.
Diante da análise realizada do jornal Zero Hora, transpareceu-se a
continuidade das abordagens preconceituosas em relação aos sem terra e, ao
mesmo tempo, uma determinada visão a respeito dos conflitos no campo. O fato é
que
[...] pouca coisa mudou, no último século, no que concerne à relação entre
as elites (incluídas a mídia e parte dos jornalistas e intelectuais por ela
empregada) e os movimentos sociais. Mudaram, obviamente, as condições
técnicas de apuração, produção e divulgação das notícias, assim como o
ambiente político e cultural, mas a mentalidade continuou escravista, racista
e tacanha.
748
Opera-se entre MST e jornalismo uma relação dialética, onde outros sujeitos
estão inseridos (ruralistas e policiais). Porém, e acima de tudo, sem a visibilidade
746
PEREYRA, Marcelo R. op. cit. sp. Tradução livre do original: “Los pobres aparecen aquí como
sujetos anómalos que no han sabido/podido/querido aprovechar las oportunidades que el modelo
pone a su disposición; visión que se parece mucho a la del neoliberalismo, que justifica la exclusión
social por la naturaleza individual de los ‘perdedores’, y que da cuenta del aumento de la pobreza a
través de la exhibición de sus casos extremos. Los que son excluidos materialmente ahora lo son
simbólicamente”.
747
Exemplos de veículos que fazem o contra discurso são a Revista Caros Amigos, da Editora
Amarela, A agência de notícias Carta Maior, O próprio site do MST e da Comissão Pastoral da Terra,
entre outros.
748
ARBEX JR., José. O jornalismo canalha... op. cit. p. 157.
224
conferida pelos meios de comunicação de massa, pouco restaria aos sem terra. É
necessário, entretanto, que se tenha em conta os efeitos negativos que a cobertura
dos jornais sobre a questão agrária podem permitir. A relação com as agências do
sistema penal e, com isso, o auxílio na reprodução da violência passam a ser
visíveis.
Diante de tantas transformações sociais ocorridas nos últimos anos,
coincidentes com a expansão do capital e a globalização, o sentido de comunidade,
assim como o de política, modificam-se sobremaneira. Talvez esse seja um dos
motivos pelos quais as lutas políticas coletivas gerem uma comum estranheza, e
costumem ser tratadas como atos individuais e privatizados. Uma contraposição a
esse lugar comum da individualização de tudo são as manifestações de resistência à
violência estrutural, de forma coletiva. No Brasil, o MST é um movimento que
adquire hoje a maior repercussão, em função dos atos que costuma praticar para
atrair a atenção da sociedade para a questão fundiária.
Seja pela pouca tradição de reivindicações de massa no país, seja pelo fato
de que realmente o movimento põe a nu uma realidade que quer ser esquecida, sua
repercussão em geral é extremamente negativa.
A violência no campo indica a existência de uma face da sociedade incapaz
de reconhecer direitos e negociar interesses, visto que nega o outro. Como
há, de fato, a defesa dos interesses absolutos da propriedade, nega-se
qualquer possibilidade de discuti-los através da constituição de uma outra
concepção de direito que coloque em pauta o tradicional lugar da
propriedade fundiária.
749
A negação a essa cidadania através da violência leva à demonstração do
autoritarismo de que continuam a se revestir os sistemas democráticos, em especial com
a expansão da doutrina neoliberal e sua correspondente política criminal de contenção
dos excldos. “[...] O exercício da violência como forma de dominão tende a dilacerar
essa construção social de uma cidadania concreta”.
750
Diante disso, os excldos
permanecem tendo que carregar todo o peso dos efeitos colaterais de decisões para as
quais jamais foram chamados a participar.
Judicialmente, a luta pela terra é individualizada, na medida em que a lei
penal pode ser aplicada individualmente. Porém, quando se trata da instância
policial do sistema penal, vigilância e violência voltam-se contra todo o movimento.
749
MEDEIROS, Leonilde de Sérvolo. Dimensões políticas da violência no campo... op. cit. p. 194.
750
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada... op. cit. p. 132.
225
No jornal, porém, ambas as percepções o expostas. Em primeiro lugar, a idéia de
que alguns entre os camponeses são criminosos, e devem ser identificados e
punidos. Em segundo lugar, porém, todo o movimento é digno de suspeita, tendo em
vista que a vigilância da sociedade deve recair sobre o grupo, considerado
subversor de uma realidade pacífica e ordenada.
A idéia de que um assentamento de sem terra nas localidades vai gerar o
aumento da criminalidade e “sujar” a paisagem, parte justamente do preconceito
advindo da visão positivista de criminalidade. Ou seja, o determinismo positivista
está inscrito na idéia de que a pobreza gera a criminalidade. Além disso, verifica-se
que o ideal higienista não se resume às cidades, onde discursos das fontes mais
variadas expõem a necessidade de “varrê-la” dos mendigos e vagabundos que a
tomam. Nota-se que no campo também se pleiteia a limpeza, e o discurso é o
mesmo. Porém, cumpre ressaltar que “os discursos higiênicos conduzem ao
extermínio. A pureza e a higiene são o oposto da sujeira e da desordem”.
751
Sendo assim, o discurso sobre a violência também é modificado: não se
identifica a violência estrutural como o pano de fundo das demais. E a mesma lógica
que oculta a violência estrutural e a violência institucional, fazendo com que a
violência seja percebida apenas no caso de violência individual, constrói a idéia de
que a conflitualidade surge no momento do conflito, da reivindicação através das
ocupações de terras, também no marco da violência individual. O sistema penal trata
uns através do sistema penal subterrâneo, fabricado exatamente para os inimigos
internos, enquanto trata outros através do sistema penal formal e sua lógica de
imunização em relação às estruturas de propriedade e de poder.
Ao se concluir que os sistemas penais latino americanos não apenas
reproduzem a desigualdade mas conduzem ao extermínio, tendo em vista o
significado do ingresso em qualquer um dos sistemas penais latino americanos,
demonstra-se a importância da atuação dos movimentos sociais. Ao lutarem contra
toda essa violência, propiciam a construção de um sujeito coletivo e participativo que
se empenha em transformar essa realidade.
Se a violência estrutural é gerada por um determinado modelo de
desenvolvimento, que expropriou e excluiu o camponês de qualquer condição digna
de vida, é necessário observar que diante disso detecta-se uma situação de
751
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro... op. cit. p. 116.
226
conflitualidade. Ou seja, a luta pela terra, no momento em que manifesta todas as
contradições do capitalismo em relação à questão agrária, está expressando,
através do conflito, a existência dessa permanente conflitualidade existente no
campo. “Um conflito por terra é um confronto entre classes sociais, entre modelos de
desenvolvimento, por territórios. O conflito pode ser enfrentado a partir da
conjugação de forças que disputam ideologias para convencerem ou derrotarem as
forças opostas”.
752
Sendo assim, não se pode perceber a situação da terra no Brasil
como uma situação pacífica e consensual. Como se a ordem natural das coisas
fosse rompida em função da luta pela terra, que ocasiona conflitos pontuais. Ora, os
conflitos pontuais são apenas a superfície, a parte mais facilmente divisável da
questão, permanecendo na base a situação de conflitualidade permanente
decorrente da adoção de um modelo concentrador e excludente de
desenvolvimento.
Justamente em função disso, reprimir conflitos pontuais jamais vai resolver o
problema que está no fundo, que acarreta a violência estrutural e não permite que as
pessoas vulneradas por esse sistema possam produzir e ter condições dignas de
vida.
Um conflito pode ser “esmagado” ou pode ser resolvido, entretanto a
conflitualidade o. Nenhuma força ou poder pode esmagá-la, chaciná-la,
massacrá-la. Ela permanece fixada na estrutura da sociedade, em
diferentes espaços, aguardando o tempo de volta, das condições políticas
de manifestação dos direitos.
753
Em uma atuação conjunta, controle social formal e controle social informal
constroem a realidade dos conflitos sociais no campo de forma seletiva e
estigmatizante. Isso faz com que apenas algumas situações sejam identificadas
efetivamente como conflitos. Esses conflitos, em função de serem causados pela
luta, possuem o autor do fato e a vítima, possibilitando-se, assim, a criminalização.
Dessa maneira, demonstra-se que a situação de conflitualidade envolvendo o meio
rural não é assim identificada, sendo que enunciar um conflito significa enunciar um
crime.
Da mesma forma, delimita-se também o inimigo, caracterizado pela ameaça a
uma ordem consensual e pacífica; é contra esse inimigo que os binóculos tanto do
752
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial...
op. cit.
753
ibid.
227
controle social formal quanto de toda a sociedade devem se voltar. Vigiar os sem
terra significa, porém, aumentar a sua vulnerabilidade, e permitir que todas as
situações que ocorrem no entorno fiquem ocultas.
Daí a margem para a imunidade dos fazendeiros em relação ao sistema
penal, bem como a união entre os mesmos e a polícia, poder público e poder
privado reunidos, com poder de fogo, contra os mesmos sujeitos sociais.
O papel do jornalismo, então, passa a ser o de reproduzir os discursos
dominantes, tornar visível apenas o que interessa sobre os sem terra, ou seja, o fato
novo, sem qualquer mudança. Através do jornalismo reforçam-se, através de
pressupostos, preconceitos contra a luta dos sem terra. Afirmações sem qualquer
comprovação e referência, que passam por verdades incontestáveis.
[...] o texto jornalístico é lugar de reelaborações, pois faz o acontecido entre
os colonos acontecer para os leitores, deslocando a cena vivida no campo
para o universo da cidade e as esferas do poder, promovendo uma
identidade do Movimento através da legitimação de sua luta ou de sua
demonização.
754
Pelo fato de identificar a questão agrária apenas nos conflitos por terra, o
jornal também constrói socialmente essa categoria, juntamente à conflitualidade e à
violência. Ou seja, a própria categoria “questão agrária” passa a ser relacionada
estritamente aos conflitos, que são, por sua vez, desordens acarretadas pelos
movimentos de luta pela terra. Estes devem ser, porquanto despolitizados,
identificados como criminalidade, e, através da repressão, são solucionados e a paz
retorna ao campo.
Pode-se afirmar, nesse sentido, que o papel do jornalismo, ao legitimar a
adoção de medidas violentas contra os sem terra é também o de exercitar uma
violência simbólica. Exclui o sujeito das lutas, ao mesmo tempo em que, através das
vozes de fazendeiros e policiais, o demoniza.
754
BERGER, Christa. MST: Atualizando a memória de exclusão e luta... op. cit. p. 292.
228
CONCLUSÃO
É impossível compreender uma situação vivida na atualidade sem o
entendimento acerca das interações que levaram ao seu desenvolvimento. Essa
convicção, trazida para o tema estudado no trabalho, remete à epígrafe, onde Darcy
Ribeiro deixa claras as marcas que o povo brasileiro sempre levará como herança
dos suplícios diários impingidos a seres humanos durante a escravidão. A agressão
aos ex-escravos após a escravidão permaneceu, e seus métodos foram
perpetuados, cotidianamente, no corpo de outros sujeitos, do campo e da cidade.
Os relatos de massacres, como o de Canudos, acompanham a trajetória do
povo brasileiro, marcando-a profundamente. De Canudos a Eldorado dos Carajás,
sonhos e lutas reprimidos por meio de chumbo. Diante da violência da concentração
das riquezas, que destina à miséria grande parte da população, a organização dos
trabalhadores em movimentos sociais é a luta pela vida.
Desde o final do século XIX, porém, muitos outros aspectos se modificaram.
Um exemplo é o desenvolvimento das tecnologias de informação que, no mesmo
passo em que permite a organização de movimentos sociais emancipatórios em
rede, auxilia na difusão de idéias conservadoras, classistas e racistas.
O caminho percorrido no trabalho partiu dos resultados das pesquisas
sociológicas norte-americanas, que levaram a uma ruptura de paradigma em
criminologia. É a perspectiva da construção social da realidade, na qual se expõe o
valor das interações sociais, principalmente através da linguagem, na concepção
acerca do que é a criminalidade. Sob esse enfoque, as instâncias de controle social,
formal e informal, atuam conjuntamente na construção social da criminalidade.
Ao estudar a operacionalidade do sistema penal, essas pesquisas chegaram
a resultados que o deslegitimaram, tendo em vista o descumprimento das suas
funções declaradas, e a descoberta de funções ocultas. A criminologia crítica surgiu
justamente conferindo a esses pressupostos um enfoque político-econômico,
concluindo que a função real desempenhada pelo sistema penal é a de reprodução
das desigualdades.
Além desse enfoque, é importante notar também que, na América Latina,
onde cerca de ¾ das pessoas presas sequer foram condenadas ou mesmo
passaram por um processo formal, percebe-se que o direito penal enquanto
229
limitação ao poder de punir do Estado funciona de maneiras diferentes conforme o
cliente de que se trata. A partir dessa operacionalidade, aos amigos um
tratamento conforme a lei e os direitos, mas aos inimigos reserva-se o arbítrio.
Apesar da deslegitimação teórica, e pelos próprios fatos, dos sistemas penais,
em especial na América Latina, os dias atuais vêm trazendo também um movimento
em sentido contrário: o de sua relegitimação. Dessa maneira, e principalmente a
partir de um discurso de emergência, busca-se suspender garantias fundamentais,
aumentar penas e criar novos tipos penais, a partir da ideologia periculosista que
ressuscita inclusive o positivismo criminológico.
A atuação dos jornais, no que diz respeito ao crime, realiza uma dupla função.
Em primeiro lugar, ao mesmo tempo em que constrói e reproduz preferencialmente
os discursos dos agentes do sistema penal, pelo fato de se constituírem como fontes
oficiais, credíveis, auxiliam na sua legitimação. Em segundo lugar, partindo da
característica do jornalismo que busca a definição de notícia nos fatos singulares,
sensacionaliza a vida social, de tal maneira que o crime passa a ocupar espaço em
narrativas que geram a propagação de estereótipos de criminosos e vítimas que
auxiliam na construção social da criminalidade. Além disso, realizam campanhas
alarmistas que criticam a “complacência” dos direitos humanos para com “bandidos”,
separando, assim, segundo o clássico princípio binário, as pessoas de bem das
pessoas más. Em função disso, se desincumbem da tarefa de relegitimar o sistema
penal.
É necessário evitar determinismos quando se fala sobre o papel dos meios de
comunicação de massa na sociedade, tendo em vista que as informações por eles
construídas ingressam no mundo social em conjunto com outras tantas informações
provenientes das interações sociais, permitindo que sua interpretação se modifique.
Porém, é possível afirmar que as decisões tomadas na redação, em função da
estrutura organizacional e da corrida pelo lucro, costumam deixar de fora problemas
estruturais, focalizando-se em fatos individualizados, descontextualizados e
despolitizados. Constrói-se, dessa maneira, a sociedade como um consenso, em
relação à qual qualquer manifestação de desconformidade coletiva é percebida
como uma ameaça. Diante disso, é possível simplificar a situação, optando-se por
identificar em algumas pessoas a característica de inimigos da sociedade; quem,
simplesmente por ser quem é, deve ser temido, e, portanto, vigiado e controlado.
230
Nesse ponto se inserem as discussões acerca do problema histórico da
ausência de reforma agrária no Brasil. Essa situação traduz uma violência estrutural
caracterizada pela fome, pela miséria, pela concentração de terras, relações de
trabalho demasiado exploradoras e degradação do meio ambiente.
Em função disso, já na década de cinqüenta, trabalhadores rurais se reuniram
em ligas camponesas buscando reivindicar direitos. A evolução dessas
organizações chegou ao ponto de, na década de 1980 ser criado o MST, movimento
que hoje tem caráter nacional e possui uma organização complexa. O MST atua,
principalmente, contra essa violência estrutural que aflige a maior parte da
população rural, buscando desconcentrar a terra, exigindo do governo a sua
distribuição.
Porém, essa reação à violência costuma gerar outras reações, ainda mais
violentas. Os grupos paramilitares contratados pelos fazendeiros foram
responsáveis por um número altíssimo de mortes de sem terra. A polícia, por sua
vez, auxilia os interesses proprietários no momento em que realiza despejos
violentos, por vezes resultando em massacres onde resultam muitos mortos. A
destruição dos pertences dos sem terra nesses atos é comum, e naturalizado. O
Judiciário permite as reintegrações de posse, tomando atitudes que demonstram
claramente com que lado se identificam.
Os meios de comunicação de massa, em uma sociedade atomizada, na
construção social da notícia, optam por divulgar conflitos específicos que ocorrem no
campo, principalmente provocados por atos dos sem terra, ocultando,
simultaneamente, a violência da estrutura agrária contra a qual os mesmo sem terra
lutam. Deixam de lado o fato de que a luta tem na sua base a sobrevivência.
A análise de discurso realizada no trabalho com o objetivo de ilustrar a
abordagem teórica acerca do papel do jornalismo na construção social dos conflitos
agrários, em interação com o sistema penal, permitiu concluir que a lógica na qual o
jornal insere a conflitualidade no campo é a de que os sem terra provocam os
conflitos. São vulneradores de uma ordem pacífica, gerando quedas de
produtividade nas fazendas. Em função disso, os proprietários de terra, em especial
no Rio Grande do Sul, se reúnem para, em conjunto com a Polícia Militar, vigiar e
controlar todos os passos do grupo. O jornal, no momento em que difunde a idéia de
que há necessidade de vigiá-los, também legitima o controle social, de forma que a
231
apreensão de seus instrumentos de trabalho, as batidas policiais, os despejos
violentos passam a ser naturalizados. Da mesma forma, os atos dos proprietários
são expostos como reações em legítima defesa.
Pelo fato de as ações dos movimentos trazerem a desordem, o discurso da
vigilância está ligado diretamente aos sentimentos de medo e tensão. Diante do
medo, reúnem-se novamente os pressupostos para se chegar à conclusão de que o
papel do jornalismo
755
é o de auxiliar, no contexto das interações sociais, na
delimitação de um inimigo no campo, que é, antes de tudo, um inimigo político,
tendo em vista que não possui o estereótipo do criminoso comum (estão lutando
junto mulheres, crianças e idosos), e principalmente, busca implantar uma revolução
socialista. Ou seja, a sua perseguição é explicada tanto pelo medo que provocam
em relação à perda da propriedade da terra (que tem o poder dos grandes
estancieiros incrustado em cada palmo), quanto pela sua ideologia política, o que
gera ainda mais temor.
Identificando-se um conflito, uma desordem, torna-se necessário aplicar o
único código conhecido: o da individualização do autor do fato e o da aplicação da
respectiva pena. Mas, veja-se: a vigilância e as freqüentes revistas a que os sem
terra estão submetidos não estão ligados diretamente à prática de um ato ilegal, mas
sim ao simples fato de serem quem são. reside a lógica do direito penal do autor
e, ainda, da delimitação do inimigo. Da mesma forma, da construção social da
criminalidade, tendo em vista que o sistema penal procura a criminalidade onde
espera encontrá-la. Antes de se voltar contra fatos criminosos praticados pelo grupo,
o sistema penal se volta contra pessoas, no sentido de controlá-las socialmente, já
que delas espera atos criminosos. Ao olhar seletivamente para os conflitos no
campo, permite-se reproduzir as desigualdades estruturais, criminalizando a base da
pirâmide social, para imunizar o topo.
Nesse processo, a estrutura fundiária concentrada, e as violências dela
decorrentes, são reproduzidas.
755
É necessário esclarecer, entretanto, que o jornalismo em si, apesar de ter origem na sociedade
capitalista e auxiliar na sua reprodução, e com isso, na legitimação das desigualdades e opressões,
não está em seu cerne atrelado a essa formação social. Na verdade, transcende ao contexto de sua
origem e desempenha funções emancipatórias. É o caso, por exemplo, dos jornais e revistas
alternativos, que, ao contrário de buscar reproduzir as desigualdades, têm a visão política necessária
para alimentar os desejos e necessidades de mudança social. Como nota Genro Filho, o jornalismo
“está apenas comando a insinuar suas imensas possibilidades e potencialidades histórico-sociais
no processo de autoconstrução humana”. GENRO FILHO, Adelmo. op. cit. p. 179.
232
E não significa apenas dizer que sistema penal e jornais buscam construir
socialmente os conflitos sociais como criminalidade, mas principalmente, dar a
entender que a conflitualidade no campo reside nesses conflitos particulares. Ou
seja, a construção social operada reduz a conflitualidade a conflitos particulares e,
numa sociedade punitiva, conflitos particulares possuem o culpado e o inocente,
quem provoca e quem se defende. Nesse caso, oculta sob a ótica da provocação (e
desordem) dos sem terra com suas marchas e ocupações, e da reação defensiva
dos fazendeiros e dos policiais (para restaurar a ordem), está justamente a violência
estrutural, base da conflitualidade no campo.
Os jornais se inserem nesta discussão no exercício de um papel de
legitimação do sistema penal, que optam por reproduzir os discursos dos agentes
do sistema penal, bem como dos proprietários de terra, ocultando simultaneamente
a voz dos próprios sem terra. Então, apesar de as notícias se referirem no mais das
vezes ao MST em si e aos atos praticados pelo movimento, de os integrantes serem
os modelos para as fotografias que aparecem nas notícias, a sua voz o está
presente, sobre-representadas, por outro lado, as vozes dos agentes do sistema
penal e dos ruralistas.
Expor movimentos contestadores como ameaças é uma prática histórica por
parte das elites no Brasil, que, ao difundir o medo, legitima a repressão. A ameaça é,
portanto, à própria realidade da estrutura fundiária no país, que é reproduzida, junto
da violência estrutural, a cada vez que seu discurso é repetido. Historicamente, o
medo vem sendo operacionalizado para um aumento no controle social sobre as
parcelas mais vulneráveis da população, legitimando-se, a partir da emergência,
atos cruéis e violadores dos direitos fundamentais mais básicos.
Ao responder, então, ao problema dessa pesquisa, resta observar as suas
conseqüências. O principal aspecto a ser ressaltado é a importância dos
movimentos de luta pela terra nesse contexto. O embate que ocorre entre os seus
interesses e os dos proprietários e do Estado significa justamente que uma ruptura
está acontecendo. E sabendo-se da herança que os brasileiros carregam de
autoritarismo, escravismo e classismo, esses movimentos permitem visualizar
possibilidades diferentes, ainda que de forma limitada, porque também são
constituídos de pessoas que vivem sob as mesmas tradições. Ou seja, um
movimento que luta contra a concentração da terra não necessariamente buscará
233
romper com o problema do racismo ou da estrutura patriarcal. Porém, a luta pela
vida através de um movimento coletivo auxilia no aprofundamento da democracia
brasileira, ainda que nesse caminho muito sofrimento esteja guardado para essas
pessoas.
Por outro lado, essa perspectiva permite visualizar a responsabilidade não
apenas dos fazendeiros, que promovem assassinatos, lesões e outros danos aos
sem terra, ou dos policiais que impingem da forma mais crua a violência institucional.
Também os membros do Judiciário, que não estão na luta face a face, e da forma
mais asséptica tomam decisões que repercutem das formas mais cruéis sobre
comunidades inteiras. Além disso, as próprias organizações jornalísticas, que em
conjunto com os discursos que paradoxalmente auxiliam na desinformação acerca
da conflitualidade no campo, legitimam o recrudescimento das violências individual e
institucional. E, quanto mais notícias são apresentadas sobre a questão agrária,
menos sobre a questão agrária pode ser compreendido, e mais invisível se torna a
conflitualidade no campo.
Quando todos reproduzem dia a dia esse descaso, o arbítrio e o julgamento
de outros seres humanos, esse mesmo sistema genocida se legitima. A importância
do surgimento do MST consiste, portanto, na resposta organizada à morte,
buscando, através da união conquistar os direitos a uma vida digna no campo. E é
apenas através da participação que se possibilita alguma mudança, ainda que a
força de seres humanos unidos deva ser extremamente grande para conseguir fazer
frente à reprodução estrutural das desigualdades.
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A MSTlândia. Zero Hora, capa, 25 fev. 2007, p. 01. Grifou-se.
A NOVA cara do MST. Zero Hora, Geral, 12 abr. 2007, p. 39.
ABRIL vermelho visto do céu. Zero Hora, Geral, 18 abr. 2007, p. 32.
ACAMPAMENTO sob vigilância permanente. Zero Hora, Geral, 21 fev. 2007, p. 30.
ACAMPAMENTO sob vigilância permanente. Zero Hora, Geral, 21 fev. 2007, p. 30.
AS MANIFESTAÇÕES. Zero Hora, Geral, 12 abr. 2007, p. 39.
BM usa avião para avaliar sem-terra. Zero Hora, Geral, 22 fev. 2007, p. 32.
BRIGADA barra marcha do MST. Zero Hora, Geral, 02 dez. 2006, p. 33.
EDITAL de vistoria irrita ruralistas. Zero Hora, Geral, 24 nov. 2006, p. 48.
ESPERANÇA de trégua entre MST e ruralistas. Zero Hora, Geral, 27 nov. 2006, p.
29.
ESTADO é alvo de onda da invasões. Zero Hora, Geral, 12 abr. 2007, p. 38.
ESTRADA repartida em três. Zero Hora, Geral, 23 nov. 2007, p. 32.
EUCALIPTOS sob ataque. Zero Hora, Reportagem especial, 07 mar. 2007, p. 4.
INCRA vistoria estância em São Gabriel. Zero Hora, Geral, 17 jan. 2007, p. 26.
INVASÃO em São Borja. Zero Hora, Geral, 14 nov. 2006, p. 38.
INVASÕES podem afetar investimentos. Zero Hora, Geral, 07 mar. 2007, p. 5.
JUIZ visita acampamento do MST. Zero Hora, Geral, 25 de nov. 2006, p. 37.
MARCHA do MST é monitorada por ruralistas. Zero Hora, Geral, 15 nov. 2006, p.
31.
MST desencadeia onda de protestos. Zero Hora, Geral, 14 nov. 2006. p. 38.
MST promete aumentar número de invasões. Zero Hora, Geral, 26 fev. 2007, p. 30.
MST sai de área invadida. Zero Hora, Geral, 01 dez. 2006, p. 50.
MST se aproxima de área em Eldorado. Zero Hora, Geral, 16 nov. 2006, p. 27.
O ENCLAVE do MST. Zero Hora, Reportagem especial, 25 fev. 2007, p. 04.
254
O ENCLAVE do MST. Zero Hora, Reportagem especial, 25 fev. 2007, p. 5.
O PROJETO é fazer uma MSTlândia. Zero Hora, Reportagem especial, 25 fev.
2007, p. 05.
PALAVRA do leitor. Zero Hora, 22 nov. 2006, p. 2.
POLICIAMENTO é reforçado em São Gabriel. Zero Hora, Geral, 18 jan. 2007, p. 36.
PRESIDENTE do IEE critica os sem-terra. Zero Hora, Economia, 17 abr. 2007, p.
14.
PRODUTORES rurais reagem às marchas. Zero Hora, Geral, 14 nov. 2006, p. 38.
RURALISTAS e MST atentos a vistoria. Zero Hora, Geral, 16 jan. 2007, p. 35.
RURALISTAS preparam reação a invasões. Zero Hora, Geral, 04 dez. 2006, p. 35.
SEGURANÇA não tem coloração partidária, Zero Hora, Política, 18 mar. 2007, p.
08.
SEM terra leva tiro em confronto com a Brigada. Zero Hora, Geral, 13 abr. 2007, p.
48.
SEM terra reclamam de torturas. Zero Hora, Geral, 16 abr. 2007, p. 28.
SEM-TERRA se mobilizam contra o reflorestamento. Zero Hora, Geral, 01 fev. 2007,
p. 44.
TANURE, Soraya. Direito de propriedade: até quando? Zero Hora, 21 abr. 2007, p.
15.
TENSÃO volta a rondar São Gabriel. Zero Hora, Geral, 15 jan. 2007, p. 25.
TERMINA invasão em São Borja. Zero Hora, Geral, 17 nov. 2006, p. 59.
VIGILIA em colheita desloca 80 PMs. Zero Hora, Geral, 10 abr. 2007, p. 34.
VISTORIA mobiliza fazendeiros e sem terra. Zero Hora, Geral, 05 dez. 2006, p. 32.
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