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ANA CLÁUDIA BERTINI CIENCIA
DA CAMELOT ARTURIANA À TERRA-MÉDIA:
REPRESENTAÇÕES DA MULHER EM LE MORTE
DARTHUR E THE LORD OF THE RINGS
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ANA CLÁUDIA BERTINI CIENCIA
DA CAMELOT ARTURIANA À TERRA-MÉDIA:
REPRESENTAÇÕES DA MULHER EM LE MORTE
DARTHUR E THE LORD OF THE RINGS
Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras
e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista,
Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título
de Mestre em Letras (Área de Concentração: Teoria da
Literatura).
Orientador: Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher
São José do Rio Preto
2008
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COMISSÃO JULGADORA
Titulares
Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher – Orientador
Profª. Drª. Nícea Helena de Almeida Nogueira
Prof. Dr. Orlando Nunes de Amorim
Suplentes
Prof. Dra. Carla Alexandra Ferreira
Profª. Drª. Regina Correa
AGRADECIMENTOS
Acima de tudo, a Deus, por tudo que já me deu, mesmo sem que eu pedisse;
Aos meus pais, Matilde e Edvaldo, e minha irmã, Daniela, pelo apoio e
confiança em todos os momentos;
Ao meu marido, José Augusto, por sempre confiar em minha capacidade,
incentivar-me e me fazer acreditar em mim mesma;
Ao meu orientador, Alvaro, pela atenção, paciência, orientação e,
principalmente, pela amizade;
Ao professor Orlando, membro da banca, pela leitura atenta e ajuda com os
“assuntos arturianos”;
Às professoras Nícea Helena, também membro da banca, Carla e Regina,
suplentes, pela disponibilidade, críticas e sugestões;
Ao Rogério, grande amigo, por entender tão bem minhas aflições e por ser tão
importante no processo de pesquisa como um todo;
Aos professores, pelas idéias e conhecimentos trocados;
Aos funcionários da seção de pós-graduação, pela atenção e ajuda;
Aos meus demais familiares, por sempre se interessarem por meu trabalho e
serem tão cuidadosos e prestativos;
Aos amigos, que de alguma forma acreditaram em mim;
A J.R.R. Tolkien, que criou um de meus livros favoritos e acabou tornando
possível esta pesquisa;
A todos aqueles que contribuíram, cada um a seu modo, com o mito arturiano.
“The road goes ever on” (Bilbo Baggins)
No princípio era a Mãe, o Verbo veio depois.
(Marilyn French, pensadora feminista
americana, 1985)
SUMÁRIO
01. INTRODUÇÃO.........................................................................................................8
02. A TRAJETÓRIA DA MULHER, O FEMINISMO E A CRÍTICA
FEMINISTA...................................................................................................................20
03. O CICLO ARTURIANO........................................................................................37
04. TOLKIEN E O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE O SENHOR DOS ANÉIS..... 52
05. A VEZ DAS MULHERES......................................................................................72
06. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................105
ANEXO.........................................................................................................................111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................116
RESUMO
O problema da representação da mulher é um tema instigante, passando por
esferas sociais, econômicas e políticas. Nosso foco, aqui, se volta para a literatura, mais
especificamente para dois autores que acreditamos trabalhar com perfis do ideário
medieval. O primeiro, Thomas Malory, viveu durante o século XV, e compôs a obra
mais alta do ciclo arturiano na Idade Média inglesa. o segundo, John Ronald Reuel
Tolkien, é um autor do século XX; é trazido à luz devido à harmonia que, acreditamos,
existe entre a caracterização de suas personagens femininas e alguns elementos
medievais
alguns, inclusive, do próprio ciclo arturiano. Valendo-nos da teoria
literária e de algumas teorias críticas feministas, investigamos a representação da
mulher nas obras A morte de Artur, de Malory, e O senhor dos anéis, de Tolkien. Após
contextualizarmos historicamente o papel da mulher na sociedade, identificamos as
características das personagens femininas que condizem (ou não) com determinados
perfis, propondo, também, uma análise comparativa entre as duas obras supracitadas.
PALAVRAS-CHAVE:
Identidade, representação, mulher, J. R. R. Tolkien,
Thomas Malory.
ABSTRACT
The issue of woman representation is an instigating theme, related to social,
economic and political spheres. Our focus, here, is directed to literature, more
specifically to two authors we believe that deal with medieval ideary profiles. The first
of them, Thomas Malory, lived during the 15th century, and wrote the masterpiece of
the Arthurian Cycle in English Middle Ages. The second, John Ronald Reuel Tolkien,
is a 20th century author; he is brought in due to the harmony we believe there is
between the characterization of his female characters and some medieval elements
some of them from the Arthurian Cycle itself. Based on literary theory and some
feminist critical theories, we investigated women representation in the works Le Morte
Darthur, by Thomas Malory, and The Lord of the Rings, by Tolkien. After
contextualizing woman’s role historically in society, we identified female characters
aspects that match (or not) with some profiles, proposing, also, a comparative analysis
between the two works.
PALAVRAS-CHAVE:
Identity, representation, woman, J. R. R. Tolkien,
Thomas Malory.
01. INTRODUÇÃO
O papel da mulher na formação das civilizações é importantíssimo. No entanto,
durante muito tempo a história das mulheres foi contada pela ótica masculina. Com isso,
muito da importância histórica feminina foi diminuída, quando não esquecida. A mulher
tornou-se alvo de intrigas, humilhações e inverdades muitas vezes fundamentadas em
algumas filosofias que ajudaram a construir o pensamento ocidental. Dessa forma, a
problemática do papel da mulher na sociedade é um tema bastante instigante.
Passando pelas esferas política, econômica e social, os estudos de gênero,
embasados por teorias do feminismo, vêm discutindo essa questão há algum tempo, seja
de forma panorâmica ou focados em algum período específico, como a Idade Média.
Exemplos de estudos com enfoque histórico são obras como Heloísa, Isolda e outras
damas no século XII, de Georges Duby (1995), em que o autor comenta as relações
entre os sexos e o lugar social reservado à mulher no mundo medieval, com base em
escritos documentais, e A mulher nos tempos das cruzadas, de Régine Pernoud (1993),
obra em que é mostrado o papel feminino diferenciado nas travessias para Jerusalém.
Outra forma de questionar o papel reservado à mulher é por meio da escrita, ou
seja, mulheres voltam seu olhar para sua própria condição social e literária. O estudo
acerca da mulher na condição de autora pode ser visto em textos como “Autor+a”, de
Telles (1992), e “O cânone literário e a autoria feminina”, de Duarte (1997). No
primeiro, Telles afirma que a denominação de “autora” vai muito além do feminino de
autor, que a abordagem de textos escritos por mulheres exige a reflexão de diversas
questões. Aponta que é no século XVIII que as mulheres começaram a escrever e a
publicar em grande número, tendo os castelos, hospícios e mansões (símbolos da
clausura) como cenários recorrentes. Ao contrário do que acontece com os homens em
relação à “angústia da influência” (Bloom), as mulheres possuem certa “ansiedade de
autoria”, buscando uma antecessora, uma espécie de “irmã”. Ou seja, enquanto os
homens temiam não serem os pioneiros, os “originais”, as mulheres, por sua vez,
ansiavam por outras autoras, anteriores a elas, que pudessem influenciá-las, dando-lhes
uma sensação de companhia, de não serem as únicas a se arriscarem no “território
selvagem” masculino. No segundo texto, Duarte aborda o fato de nomes femininos
serem raros no cânone, já que muitas autoras publicaram sob pseudônimos, tiveram seus
trabalhos apropriados por familiares homens ou foram simplesmente tidas como
“loucas” (como é o caso das mulheres dos séculos XVIII e XIX). Esse fato baseia-se na
visão, socialmente imposta, sobre a mulher, o anjo do lar”, nunca criadora. Pode-se
afirmar que o cânone é reflexo do patriarcalismo; o primeiro, assim como o sistema
patriarcal, faz com que as mulheres aceitem sua condição inferior, sua submissão, e
entendam que, também na literatura, a norma é o homem. A revisão do cânone, assim,
deveria ser estudada e incentivada.
Mesmo (ou principalmente) em textos escritos por homens, o ideário referente à
condição e ao comportamento da mulher pode ser analisado por meio do estudo das
personagens femininas. Reflexões sobre as personagens e suas representações podem
ser encontradas na obra organizada por Ghilardi-Lucena, Representações do feminino
(2003). Trata-se de uma coletânea de textos escritos por mulheres e sobre mulheres,
revisitando figuras femininas retratadas na literatura e refletindo sobre os papéis da
mulher na era moderna desta obra o texto “Um resgate das implicações psicossociais
da presença feminina em A Demanda do Santo Graal”, citado abaixo).
Em relação a este último tema, no tocante às personagens femininas e suas
representações, retomando a mencionada Idade Média, podemos perceber certa
harmonia entre as personagens de John Ronald Reuel Tolkien, autor de O Senhor dos
Anéis (1955) e O Silmarillion (1977),
1
com alguns elementos medievais. Embora
Tolkien seja um autor do século XX, essa relação é possível visto ele ser especialista
nesse período histórico devido a seus estudos de filologia. Além disso, vários
estudiosos, como David Colbert (2002), mostram que temas medievais e mitológicos
são recorrentes em sua obra. As personagens de Tolkien, ressaltemos, não são vistas e
estudadas como medievais, mas sim como reelaboração de representações medievais.
Ao longo da pesquisa, levantamos uma hipótese do porquê Tolkien voltar-se a um
período já há muito passado; desenvolveremos essa idéia adiante.
Em O Senhor dos Anéis, por exemplo, a elfa Galadriel, espécie de rainha e
feiticeira, assemelha-se às deusas mitológicas e aproxima-se da imagem medieval da
mulher pura, como Nossa Senhora, em contraste com a pecadora (Eva).
A também elfa Arwen pode ser vista como uma representação do amor cortês,
tomando por base a descrição do Dicionário temático do Ocidente Medieval,
coordenado por Jacques Le Goff e Jean Claude-Shmitt (2002). Apaixona-se por um
mortal, Aragorn, renuncia à sua imortalidade, contrariando a vontade do pai, e casa-se
com seu amado, tornando-se rainha; a tragicidade, entretanto, está presente ao longo de
seu romance, como demonstraremos adiante, na análise.
A terceira personagem feminina de O Senhor dos Anéis é Éowyn, que abdica
temporariamente de seu papel feminino e parte com o tio, às escondidas, para o campo
de batalha. Assemelha-se, dessa forma, à figura da donzela guerreira, descrita mais
detalhadamente abaixo.
Por fim, há a hobbit Rosinha Vila. É uma personagem de pouca ação na obra, mas
é freqüentemente citada por Sam Gamgi, com quem ela se casa ao final. Rosinha
figurativiza não a mulher ativa, como Éowyn, mas a mulher que espera, passivamente, a
1
Com exceção do título do trabalho, empregaremos os nomes da obras e das personagens em português.
As datas se referem à publicação na Inglaterra.
volta do amado. Disputa, ainda, a atenção do amado com Frodo, melhor amigo de Sam,
com quem este mantém uma relação bastante afetuosa inclusive, na época do
lançamento dos filmes, levantou-se a hipótese de um relacionamento homossexual entre
os dois hobbits.
2
Além de investigarmos como são representados os papéis de Galadriel, Arwen,
Éowyn e Rosinha e até que ponto eles se limitam, é interessante também percebermos
que certas semelhanças entre essas personagens e algumas mulheres do ciclo
arturiano. Devido ao fato de a lenda arturiana ter várias abordagens, que variam da
histórica (Historia regum Britanniae) à ficcional (como nos romances de Chrétien de
Troyes), escolhemos trabalhar com a obra que, segundo Amorim (2002), é considerada
o ápice da lenda arturiana na Inglaterra: A morte de Artur, de Sir Thomas Malory
(século XV). Trata-se de uma narrativa contínua, que reelabora todo o material sobre a
Távola Redonda e a busca do Graal.
Valendo-nos de ferramentas analíticas da teoria literária e de algumas teorias
críticas feministas, o foco de nossa pesquisa situa-se sobre as formas de representação
das personagens em A morte de Artur e em O senhor dos anéis, tentando elaborar um
mapeamento das principais características das personagens femininas que condizem (ou
não) com determinados perfis traçados historicamente. Ou seja, analisamos como a
representação da mulher na literatura leva em conta representações históricas. Essa
imagem feminina é, então, ao mesmo tempo, fiel e falsa; fiel, pois é calcada em papéis
reais existentes; falsa, porque não deixa de ser idealizada, reflexo do ideal.
Desenvolveremos essas afirmações adiante, em nossas análises.
2
Anna Smol, em seu artigo “Oh . . . Oh . . . Frodo!: Readings of Male Intimacy” (2004), aborda de forma
abrangente essa possibilidade, não limitando-se a confirmar (ou não) o relacionamento entre essas
personagens, mas mostrando como a intimidade masculina está presente na obra. Provavelmente, são as
fan-fictions as releituras de O senhor dos anéis que mais desenvolveram essa questão; sugerimos, como
exemplo, a leitura de “All that I had”, em <www.west-of-the-
moon.net/servlet/ReadSlashStory?storyID=148>.
Por meio da análise dos elementos constituintes das obras citadas, detectamos
como as personagens são nelas representadas. Além disso, investigamos, mais
especificamente, em que medida tais personagens femininas se relacionam ao ideário
medieval europeu no tocante à divisão dos papéis e funções sociais e culturais dos
sexos. Da obra de Malory, as personagens com as quais escolhemos trabalhar, visando
estabelecer semelhanças (e diferenças) em relação às personagens de Tolkien citadas,
foram Morgana, Hallews, Isolda e Guinevere.
Primeiramente, em uma tentativa de situarmos literariamente a Europa, de um
modo particular a Bretanha insular, durante a Idade Média, o principal trabalho
considerado foi A literatura inglesa medieval, de Vizioli (1992). O autor aborda a
situação da Inglaterra desde a retirada romana, no século V, até o fim da Idade Média,
no século XV, mencionando o fato de a literatura anglo-saxônica ser geralmente pouco
estudada devido a sua grande distância no tempo e à dificuldade da língua em que foi
escrita.
3
A obra de Vizioli remonta às primeiras manifestações em inglês arcaico, citando,
naturalmente, Beowulf, considerado a maior manifestação da literatura anglo-saxônica.
A prosa, inicialmente em ngua latina, conheceu seu período de ascensão nos séculos
IX e X, mas com a invasão normanda extinguiu-se pouco a pouco. As línguas de cultura
no país passaram a ser o latim e o francês; este ficou reservado à instrução, enquanto
aquele, ao entretenimento e à religião. O inglês ficou relegado às classes inferiores e,
quando recuperou seu prestígio, havia já se transformado no inglês médio (Middle
English).
3
Em nosso trabalho, adotamos a divisão do século V ao XV para a Idade Média. Sabemos que no caso
específico da Inglaterra, historiadores e críticos que prefiram chamar o período anterior à invasão
normanda, em 1066, de “período anglo-saxão”. Em algumas outras obras de referência, porém, como The
Penguin Guide to Literature in English (2001) e The Oxford Illustrated History of Britain (1994), usa-se
a nomenclatura Early Middle Ages (século V ao XI) e Later Middle Ages (século XI ao XV). A Idade
Média, assim, terminaria com o início da Era Tudor, em 1485.
Em sua fase inicial, a literatura na nova língua destacou-se na poesia épica,
assumindo, posteriormente, a forma dos romances de cavalaria. O desenvolvimento da
prosa foi bastante lento, limitando-se aos textos religiosos. O século XIV é considerado
o “século de ouro”, em que a poesia atingiu seu ápice. Os poetas começaram a se voltar
para os problemas de sua realidade, que os romances de cavalaria estavam em via de
extinção.
O final da Idade Média foi bastante improdutivo devido à repressão do
pensamento e à eclosão da Guerra das Duas Rosas. A melhor produção da época
encontra-se na poesia popular e, na prosa, enfatizemos, temos um de nossos objetos de
análise, a obra A morte de Artur.
Após essa contextualização da literatura inglesa medieval, passamos ao estudo da
condição da mulher ao longo da história, em especial no período medieval. Para esse
estudo, utilizamos Mulher uma trajetória épica, de Alambert (1997), e O que é
feminismo, de Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy (1985). Ambas as obras
apresentam um panorama histórico do papel feminino na sociedade desde a Antigüidade
e abordam a questão do desenvolvimento do feminismo e da luta pelos direitos da
mulher.
Os trabalhos supracitados foram utilizados, além de ponto de partida para teorias
históricas e feministas, para melhor situarmos as personagens femininas principais de O
Senhor dos Anéis dentro de um contexto medieval. Novamente, frisemos que não as
estudamos como personagens medievais propriamente ditas, mas como releitura e
reelaboração desses perfis.
Justifiquemos o porquê da contextualização histórica da Idade Média, uma vez
que não é este o foco de nosso trabalho. Acreditamos que literatura e história se
relacionam, e diversos meios de se ligar uma à outra. Um desses meios consiste em
assumirmos que tanto uma quanto outra são realizadas por meio de atos de leitura, por
meio de interpretações, segundo Hayden White, em “O texto histórico como artefato
literário” (1994).
De acordo com Baccega (1995, p. 65), história conota tanto a ciência construída
quanto o objeto dessa ciência, tanto o que se diz (discurso) quanto o que se passou
(fato). Ao longo do tempo, várias foram as concepções acerca da história (e,
conseqüentemente, da historiografia) e suas aproximações com a literatura. Até o século
XVIII, a historiografia era considerada uma arte literária, um ramo da retórica, com sua
natureza fictícia reconhecida. Ou seja, assumia-se a necessidade de se buscar técnicas
ficcionais na representação de fatos reais.
No começo do século XIX passou-se a identificar a verdade com o fato e
considerar a ficção como seu oposto. Sob esse prisma, os historiadores tentavam
expurgar de seus textos quaisquer vestígios de ficção, passando a enxergar o
pensamento mítico como o “demônio” responsável pelos fracassos e excessos
históricos. A historiografia, então, toma forma como disciplina erudita.
O que os historiadores do século XIX não compreendiam é que os fatos não
falam por si mesmos, mas sim passam pela interpretação de quem os escreve (o próprio
historiador). A partir do momento em que a inevitável aproximação do historiador
com seu objeto, temos discurso. A história chega a nós por meio da palavra, por meio de
uma relação com os fatos por meio da escrita, num processo análogo à ficção.
narratividade, subjetividade, construções lingüísticas, técnicas que normalmente se
encontram na trama de um romance.
Assim, como afirma White, em “As ficções da representação factual” (1994),
“Já não somos obrigados, pois, a acreditar [...] que a ficção é a antítese do fato [...] ou
que podemos relacionar os fatos entre si sem o auxílio de qualquer matriz capacitadora e
genericamente ficcional.” (p. 142) Essa noção aproxima-se do argumento de Baccega,
de que a história, sendo discurso, na verdade é composta por escolhas.
Como vemos, é pertinente traçarmos um paralelo entre a ficção e a história, uma
vez que ambas são relações com os fatos por meio de palavra; com diversos elementos
em comum, ambas são, no fim, formas de narrativa. Assim, acreditamos que para
melhor entendermos a perspectiva que pautou a criação das personagens, era também
importante que entendêssemos o papel feminino na Idade Média. Afinal, da mesma
forma que a literatura, a história é uma forma de ler o mundo, é uma representação, não
um retrato fiel.
Nesse sentido, para que nossas análises, principalmente a de A morte de Artur,
não se pautassem apenas em nossas experiências como leitores do século XXI, tentamos
elaborar uma perspectiva de leitura do século XV. Assim, merecem destaque os artigos
“As vozes literárias na construção da Idade dia” (BENEDETTI; BOVO, 2002) e
“Seeing, Hearing, Tasting Woman: Medieval Senses of Reading”, (Solterer, 1994).
Embora Solterer aborde, na maior parte de seu trabalho, as mulheres leitoras, o texto
nos apresenta um esboço do perfil do leitor, em geral, da Idade Média.
A leitura das mulheres era sensorial, ou seja, os textos mais interessantes, para
elas, eram os que, de algum modo, por meio da linguagem, do vocabulário ou das
imagens representadas, apelasse para seus sentidos. Solterer afirma que, num contexto
medieval, o prazer até mesmo a sensualidade – despertado nas mulheres com a leitura
já indicava uma tentativa de rompimento das barreiras de gênero.
Ainda com o objetivo mencionado no penúltimo parágrafo, o Dicionário temático
do Ocidente Medieval (2002) nos forneceu dados interessantes sobre a literatura,
descrita por Le Goff como o grito de agonia da sociedade, expressando as tensões entre
o real e o ideal, e as perspectivas de leitura nesse período. Tratando especificamente do
romance cortês, que, segundo o autor, mostra a mulher numa posição dominante em
relação ao amado, seu vassalo, Le Goff afirma:
Se a herança cortesã serve para traduzir a inquietação de uma
sociedade que procura manter uma imagem gloriosa de si mesma,
sabe-se que, desde sua elaboração no final do culo XII, a situação
transgressiva dos protagonistas envolvidos configuração triangular,
pois inclui um “jovem” no caminho da iniciação, uma dama e um
senhor, seu esposo sugere tensões implícitas entre uma sociedade
regrada e a sociedade que desfruta das obras. (LE GOFF; SCHMITT,
2002, p. 54)
Ao longo de nossa pesquisa, pudemos perceber que o ideal cortês foi visto como
“educador” da sociedade, à medida que pregava valores de amizade, amor e honra, e, ao
mesmo tempo, perigoso para as moças, que podiam sonhar com os romances, mas
deveriam saber ter limites entre sonho e realidade. Retomaremos alguns desses valores
mais adiante, nas análises.
Foram importantes também, antes de passarmos à análise das personagens, textos
sobre teorias feministas e a questão do gênero, como Feminismo como crítica da
modernidade (1994), de Benhabib e Cornell, “Gênero” (1992), de Campos, Uma
questão de gênero (1992), organizado por Costa e Bruschini, Mulheres e Literatura:
(Trans) Formando Identidades (1997), de Schmidt e Representações do feminino
(2003), organizado por Ghilardi-Lucena.
Em um segundo momento, apresentamos um breve resumo do enredo de cada
obra, assim como dados relevantes da biografia dos autores e fortuna crítica. Já nas
análises, estudamos individualmente e de modo mais aprofundado cada personagem de
O Senhor dos Anéis citada acima, além daquelas que foram levantas durante a leitura de
A morte de Artur.
Para o estudo da personagem Galadriel, alguns textos relevantes foram O mundo
mágico do Senhor dos Anéis: mitos, lendas e histórias fascinantes (2002), de Colbert,
em que o autor aborda, em um dos capítulos, essa personagem, atribuindo-lhe
características de santas e deusas mitológicas. Outra obra importante foi O Senhor dos
Anéis: da fantasia à ética (2003), de Greggersen, em que a autora aborda,
predominantemente, o aspecto religioso, e que por isso mesmo possibilita a comparação
entre Galadriel e Nossa Senhora.
Para o estudo de Arwen, o texto de partida foi “Um resgate das implicações
psicossociais da presença feminina em a Demanda do Santo Graal” (2003), de Pereira,
em que a autora trata da questão do amor cortês. O amor entre a elfa e Aragorn, ao
contrário do romance entre Guinevere e Lancelot, não é adúltero, mas é proibido pela
tradição social. Além disso, o sofrimento aparece ao longo de toda a trama ligado a esse
relacionamento; o próprio Elrond prevê que o futuro do casal será sombrio.
Para a análise de Éowyn, um trabalho importante para nossa pesquisa foi A
donzela guerreira: um estudo de gênero (1998), de Galvão, já que se relaciona
particularmente a essa personagem de O Senhor dos Anéis. Filha de pai sem mãe, cujos
traços principais são os cabelos curtos, trajes masculinos e abdicação das fraquezas
femininas, diferencia-se de outros arquétipos de mulher, como a feiticeira, a freira e a
meretriz, que partilham da mesma sina, a de abdicar de seu papel de esposa e mãe. Em
diversas ocasiões, a donzela precisa abdicar de atributos femininos, tais como os longos
cabelos; muitas vezes, é o pai quem enumera tais atributos. A filha, obediente, corta as
madeixas e esconde os seios com faixas quando sua condição de donzela é ameaçada ou
quando é necessário assemelhar-se a um cavaleiro, como, por exemplo, nos campos de
batalha. A donzela perde os cabelos para ganhar a guerra, e, se ela se casa, morre a
guerreira e nasce a mulher.
Finalmente, a análise de Rosinha pautou-se por textos acerca da condição das
mulheres “comuns” na Idade Média. Sua relação com Sam, pouco explorada ao longo
da obra, foi analisada a partir do relacionamento deste com Frodo, personagem
principal.
Após a análise de Galadriel, Arwen, Éowyn e Rosinha, fizemos o estudo
comparativo entre essas personagens e as do ciclo arturiano que aparecem em A morte
de Artur. Embasando-nos em trabalhos como os de Amorim (2002) e Pernoud (1993),
verificamos a influência da obra de Malory, em particular, e de elementos e figuras
medievais, em geral, em O senhor dos anéis.
Para a análise de A morte de Artur, foi necessário que escolhêssemos apenas
algumas personagens. O número de mulheres na obra é alto, de fato, mas apenas poucas
delas as quatro mencionadas acima eram significativas para nossa proposta.
Como base para essas análises, um dos textos mais relevantes, que inclusive nos
“sugeriu” essas personagens, foi “‘Am I nat an erthely woman?’”, de Marion Wynne-
Davies (1996), em que o olhar se volta para as figuras femininas. Foi com base nesse
texto que desenvolvemos uma de nossas principais conclusões sobre a obra de Malory:
o caráter de “denúncia” de valores que não serviam para a época. Tal afirmação
desenvolvemos mais abaixo, num momento mais apropriado.
Outra fonte valiosa foi o citado artigo “Um resgate das implicações
psicossociais da presença feminina em a Demanda do Santo Graal”. Além de nos guiar
na análise da personagem Arwen, o texto faz observações pertinentes a respeito de
Morgana e Guinevere.
Como A morte de Artur foi escrito realmente durante a Idade Média, mais
precisamente em seus momentos finais, utilizamos também textos de cunho histórico,
documental, para melhor entendermos a representação das mulheres e seus papéis
“reais” da época. Não citaremos aqui todos os textos lidos para a pesquisa, uma vez que
são vários os que, de alguma forma, tratam de aspectos relacionados ao mito arturiano,
seja estudando sua veracidade histórica ou analisando suas personagens.
Para concluir, levantamos os pontos convergentes e divergentes entre as obras,
verificando como se a representação feminina em ambas. Tentamos não nos
restringir a simplesmente apontar semelhanças e diferenças, mas, sim, tentar mapear os
elementos relevantes na caracterização dessas personagens.
Iniciamos, então, nosso trabalho com um capítulo cujo foco é abrangente, mas
indispensável ao melhor embasamento teórico e entendimento da pesquisa: o papel da
mulher abordado por um viés histórico, seguido de uma explanação acerca do
movimento e da crítica feministas.
02. A TRAJETÓRIA DA MULHER, O FEMINISMO E A CRÍTICA FEMINISTA
A problemática do papel da mulher torna-se um tema não instigante, como
também de grande relevância, uma vez que desvela aspectos históricos não estudados
comumente. Os estudos de gênero pretendem, de alguma forma, destruir o mito da
inferioridade natural feminina, resgatar a história das mulheres e rever a condição do
sujeito feminino. Também avaliam a visão que os homens têm a respeito de tal
“inferioridade” e de que maneira escrevem sobre as mulheres.
Neste capítulo, realizamos uma leitura ampla acerca da condição feminina.
Inicialmente, contextualizamos o papel da mulher ao longo da história (ocidental). Em
seguida, abordamos o surgimento do feminismo e as conseqüentes mudanças no
enfoque das teorias dele derivadas. Por fim, levantamos questões relacionadas à crítica
feminista e aos estudos de gênero, como a representação da mulher e o estudo da autoria
feminina. Aprofundamos mais a teoria da linha Anglo-Americana por ser esta a que
melhor se identifica com nosso trabalho. Embora o foco de nosso trabalho se situe na
representação literária, não no feminismo ou em estudos sobre a autoria feminina,
trouxemos esses tópicos para nosso texto numa tentativa de delinearmos melhor nossa
linha de raciocínio, uma vez que são fatores pertinentes (se não obrigatórios) para a
fundamentação teórica.
Primeiramente, traçamos um breve histórico da condição feminina, enfocando o
período medieval por ser este nosso objeto de estudo. Abordamos, nessa parte, não
apenas aspectos relacionados à literatura, mas à condição feminina como um todo. Por
hora, os fatos serão apenas expostos, sem que sejam levantadas questões pertinentes à
crítica feminista. A problematização desse tópico será feita na seqüência de nosso texto.
02.01. A Trajetória Feminina
Para traçarmos este breve panorama da história da mulher, baseamo-nos,
principalmente, nas obras Mulher uma trajetória épica (1997), de Alambert
(1997), Minha História das Mulheres, de Perrot (2006), “A Gênese da
Representação Feminina na Literatura Ocidental: Bíblia, Cabala, Idade Média”,
de Lobo (1997), e “A mulher na Idade Média: a construção de um modelo de
submissão”, de Carvalho (s.d).
As obras dessas autoras ajudaram-nos a traçar um perfil histórico da
mulher, desde a Pré-História até os dias atuais, com foco em sua situação social,
política e econômica; no caso das duas últimas, tal foco restringe-se à Idade
Média, como os próprios títulos de suas obras sugerem. Perrot tece ainda
considerações acerca de elementos de alguma forma relacionados ao feminino,
como a pilosidade (a forma como os pêlos são simbolicamente vistos de forma
diferente no homem e na mulher), o sexo e o trabalho; tais questões serão
brevemente mencionadas neste trabalho.
Na Antigüidade, as diferenças entre os sexos eram pouco acentuadas. A
forma física feminina que conhecemos hoje — mulheres mais delicadas e menos
musculosas que os homens se desenvolveu à medida que a mulher se
restringiu ao papel de mea na reprodução da espécie. As mulheres eram muito
estimadas nesse período, consideradas o cálice que trazia a vida ao mundo, além
de haver a figura das deusas, símbolos de sabedoria.
A sociedade tratou os homens e mulheres de modo igual até o
desenvolvimento de um novo tipo de economia. Quando não se podia mais
contar apenas com os alimentos obtidos ao acaso, o trabalho feminino passou a
ser desprezado, e o homem assumiu a liderança nos clãs. Tal desprezo acentuou-
se quando os escravos passaram a exercer as mesmas funções domésticas que a
mulher. A partir de então, com o início do patriarcado, estabeleceu-se o homem
como a norma, o centro do pensamento, e a mulher, conseqüentemente, era o
desvio.
Na Idade Média, que vai desde a queda do regime escravista no século V
até as revoluções burguesas no século XVI, eram os eclesiásticos que
elaboravam a maioria das idéias, divididos entre a concepção de mulher
pecadora e culpada” (Eva) e “mulher santa e salvadora” (Maria). Essa dicotomia
está presente desde a consolidação do cristianismo. O próprio mito judaico-
cristão da criação ao homem papel fundamental. Santo Agostinho, São Paulo
e São Tomás de Aquino, grandes consolidadores dos dogmas cristãos,
reforçavam filosofias relacionadas ao prazer sexual e ligadas à figura feminina.
Segundo tais ideais, as mulheres eram consideradas como débeis e suscetíveis à
tentação, devendo estar sempre sob a tutela masculina. Nos sermões, contavam-
se histórias de santas e prostitutas arrependidas, as exempla, mostrando o modelo
a ser seguido pelas mulheres.
Ao longo de toda a história, um dos poucos filósofos que advogou o
direito de as mulheres receberem educação escolar e desempenharem funções
públicas foi Platão. Não era o que ocorria na Idade Média, como se pode
concluir. Até os sete anos, a educação de meninos e meninas era a mesma. A
partir daí, eles eram educados para a guerra enquanto elas eram educadas para a
vida familiar. Com algumas exceções, a maioria das mulheres era analfabeta
4
,
aprendendo apenas trabalhos manuais. A carreira religiosa era uma opção para
aquelas que queriam receber algum tipo de instrução. No entanto, a partir da
metade do século XII, as religiosas foram segregadas e sua educação passou a
ser guiada por clérigos, reforçando mais a inferioridade de poder e de educação
da mulher em relação ao homem.
Em relação ao casamento e à condição feminina na sociedade feudal,
Dominique Barthélemy, Charles de La Roncière e Georges Duby, em História
da vida privada: da Europa feudal à Renascença (1990, volume organizado por
Duby), fazem importantes afirmações.
Como é de se esperar, as mulheres não escolhem seus maridos; são, em
vez disso, escolhidas em troca de algum bem. Nota-se que elas se assemelhavam
a mercadorias. A vontade feminina se fazia notar quando a mulher decidia
consagrar a Deus sua virgindade (algo comum às santas), fugindo assim da
obrigação de dar continuidade à linhagem de seu senhor. Havia também aquelas
que, num gesto platônico, permaneciam virgens: donzelas que morriam devido à
rejeição do amado. A fidelidade e castidade femininas eram vigiadas de perto,
havendo casos em que, na dúvida, os pais ou maridos matavam sua filha ou
esposa.
Em casa, o cômodo correspondente ao que hoje seria a sala servia à
demonstração de poder (no caso de homens como príncipes e senhores).
Naturalmente, então, as mulheres restringiam-se ao interior dos lares, aos
quartos. O encarceramento também se devia ao fato de as mulheres serem
4
Nesse caso, o analfabetismo não era uma privação única e característica das mulheres, uma vez que a
maioria dos homens também não sabia ler.
consideradas “perigosas”, por isso deviam ser mantidas encerradas no espaço
doméstico pelo chefe da casa. Aliás, o quarto era o aposento para o qual, após o
jantar, os senhores se recolhiam para descansar, ler, cantar, comer uma fruta ou
ter seus cabelos penteados e os piolhos tirados pelas donzelas; estas também
eram encarregadas de divertirem (sexualmente) os senhores após cumprirem
suas tarefas.
Em fins do século XI, com a introdução de reformas na Igreja, que
passou a controlar todos os setores da vida social e econômica, as mulheres
foram eliminadas de suas funções, proibidas de freqüentar escolas e
universidades, expulsas das profissões liberais e das atividades burocráticas.
Algumas começaram a adotar práticas consideradas heréticas e a ser perseguidas
pelos tribunais da Santa Inquisição, acusadas de feiticeiras. Dizia-se que as
feiticeiras agiam para exterminar a e ameaçavam a força sexual dos homens.
Na prática, porém, eram apenas mulheres que conheciam as propriedades das
ervas medicinais e usavam-nas a seu favor, além de, freqüentemente, reunirem-
se em grupos. A caça às bruxas, que terminou no século XVIII, levou à
fogueira milhares de mulheres.
A obra que consolida a crueldade e frieza com que eram tratadas as ditas
“feiticeiras” é o Malleus Malleficarum (O martelo das feiticeiras), escrita pelos
inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, em 1484. Com base na crença
de que a sexualidade feminina era intrinsecamente ligada ao demônio, a caça às
bruxas passa a regular o comportamento por meio do “adestramento” e
submissão do corpo da mulher. Numa introdução histórica ao contexto da obra
dos inquisidores, Rose Marie Muraro, uma das pioneiras do movimento
feminista no Brasil, considera que a Inquisição nada teve de coletivo, mas, em
vez disso, tratava-se de uma perseguição bem calculada pelas classes dominantes
para evitar qualquer ameaça ao poder
nesse caso, entenda-se “classe
dominante” como Igreja Católica.
Destaquemos, ainda, que o papel feminino diferiu do que descrevemos
até agora durante as Cruzadas. Nestas, a mulher sempre submissa assumia uma
postura ativa, tomando a frente das expedições ao lado dos homens e até mesmo
pegando em armas para defender os seus e Jerusalém. Àquelas que ficavam em
suas terras de origens eram mandadas cartas, às quais os historiadores recorriam
para saber o que estava acontecendo nos arredores da Terra Santa. Quanto ao
aspecto étnico-religioso, essas mulheres eram em sua maioria armênias ou
árabes cristãs; quase não registro de sarracenas nas Cruzadas, uma vez que
estas eram mantidas geralmente em haréns, ou escondidas por trás dos véus,
reclusas, longe da vida pública. Dentre as Cruzadas mais notáveis, destaca-se a
de Eleanor de Aquitânia, uma rainha que merece ser lembrada por seu interesse
pelas artes e pela política.
O Renascimento, que vai do século XV ao XVI, foi um período de
transição entre a realidade medieval e o capitalismo nascente. Predominavam
dois tipos de mulher: as trabalhadoras miseráveis, esgotadas pelo trabalho em
domicílio (geralmente pequenas indústrias têxteis, que se diferenciavam do
artesanato por haver um intermediário que ficava com a parte do lucro das
trabalhadoras e as explorava, ameaçando denunciá-las por prostituição ou
castigá-las), e as aristocratas, que viviam no luxo e se divertiam para ocupar o
tempo livre. Porém, nem mesmo esse segundo tipo tinha direitos de cidadania,
pois essas mulheres eram vistas como ociosas e objeto de desprezo.
As injustiças que pesavam sobre as mulheres não foram extintas nem
mesmo com o Renascimento. Apenas mais tarde, com a ascensão do ideário
Iluminista, pôs-se um fim à atmosfera sufocante herdada da Idade Média – o que
não significa que a condição feminina tenha mudado significativamente. Na
verdade, os iluministas teoricamente pregavam ideais de “liberdade, igualdade e
fraternidade”. Na prática, pensadores como Rousseau e Kant defendiam a
inferioridade e a exclusão femininas. A mulher burguesa e de classe média
deveria ser submissa ao homem, fraca nos desejos próprios, porém forte em sua
religiosidade e pureza.
O século XVIII foi aquele que confinou as mulheres no interior das
casas, fazendo com que se dedicassem exclusivamente à vida familiar. Enquanto
as mulheres das classes mais baixas exauriam-se em trabalhos domésticos, as de
classe mais alta passavam a maior parte do tempo na ociosidade, e suas
principais atividades eram ler e tocar piano. Desejavam o poder não para si
mesmas, mas para seus maridos. É interessante destacarmos que essa reclusão
era característica da mulher burguesa; para as aristocratas, era comum o
convívio social e, inclusive, uma postura dominadora e manipuladora. Um
exemplo literário disso seria a Marquesa de Merteuil, personagem de As
relações perigosas, de Choderlos de Laclos (1782).
Até o começo do século XIX, a mulher pouco saía às ruas. Essa postura,
embora submissa nos dias de hoje, não era questionada na época; pelo contrário,
a profissionalização feminina é que não era bem vista. A família era considerada
uma instituição importantíssima na sociedade; a mulher, dentro do lar, ocupa
uma posição secundária em relação ao homem. Seu papel era o de conservadora
de valores, e o casamento era o que lhe conferia status social mais elevado. O
relacionamento sexual, como se pode concluir, apenas admitido dentro de uma
relação matrimonial (no caso das mulheres). O adultério feminino, quando
tornado público, era a liquidação social; dessa forma, as mulheres não se
sujeitavam tão facilmente a aventuras extraconjugais.
Os papéis masculinos e femininos, tanto no tocante à sociedade quanto
aos relacionamentos, eram vistos como “naturais”. A passividade, a
dependência, a emotividade, a virgindade e a modéstia eram respaldadas por
uma ideologia cristã como características da mulher ideal. Uma conseqüência de
tais idéias era a de que a escrita feminina não era incentivada, pois a arte de criar
era associada ao homem; era permitido apenas que elas escrevessem diários e
cartas, mas nunca narrativas. É daí que surge a figura da “louca no sótão”
(Gilbert e Gubar, 1979): a mulher não tinha o direito de criar, de desenvolver a
escrita como forma de arte. Quando o faziam, reclusas nos aposentos mais
solitários da casa, eram vistas
às vezes por si mesmas
como loucas e,
literalmente, jogadas nos sótãos. Isoladas da sociedade, passavam a criar seu
mundo particular.
Mesmo com tamanho desprestígio e pressão, surgiram mulheres que se
destacaram na arte da escrita, como Jane Austen e as irmãs Brontë. Sabemos das
situções sócio-econômicas vividas por essas mulheres, além do fato de que suas
obras justamente “gritavam” as injustiças que pairavam sobre suas irmãs de sexo
tome-se como exemplo Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë; aqui, nosso
objetivo foi apenas destacar alguns dos mais proeminentes nomes femininos da
literatura inglesa do século XIX, cientes de que deixamos outras importantes
autoras de fora. Curiosamente, talvez a autora que seja mais representativa da
“louca”, da ânsia criadora aprisionada num corpo de mulher, não seja nenhuma
dessas, mas sim aquela que viveu a transição entre os séculos XIX e XX:
Virginia Woolf.
De acordo com Galbiati (2008), tendo crescido em um ambiente no qual
reuniões de intelectuais eram comuns, Woolf observava o domínio masculino e
era contrária às desigualdades entre os sexos. Criticava o papel submisso
feminino e defendia que toda mulher devia ter seu espaço e liberdade para
escrever. Para o contexto da época, tal postura da autora era um escândalo; ou
seja, Woolf não era em nada o “anjo do lar”, mas sim representava a figura da
“louca no sótão” – ou ainda, da louca lutando para sair do sótão. Além do ensaio
“A Room of One´s Own” (1929), Virginia questiona o domínio masculino e as
relações entre os sexos também em seus romances.
É a partir do final do século XIX que as mulheres começam a ganhar seu
espaço, com conquistas tanto no domínio das práticas sociais como também no
familiar. O século XX é o berço do “feminismo” como é comumente conhecido
(e, com freqüência, erroneamente interpretado e citado). Apresentamos
brevemente essa questão na próxima parte deste capítulo.
02.02. O Feminismo: das origens aos dias atuais
De acordo ainda com Alambert (1997), em poucas palavras, feminismo é
um termo que indica um movimento, teorias e práticas que visam à libertação da
mulher no meio familiar, trabalhista, sexual, dentre outros. O ponto básico do
feminismo é que existe uma opressão social (principalmente por parte dos
homens) específica a todas as mulheres, com base nas diferenças biológicas. A
partir de alguns posicionamentos da antropologia moderna, podemos inferir que
a origem do feminismo talvez date de épocas remotas, quando as mulheres se
organizavam em grupo para se defenderem dos maus tratos e violência
masculinos.
Do século VI ao XVIII, período em que ocorrem as primeiras
manifestações feministas, o feminismo constituiu-se em formas discursivas
elaboradas por pessoas ilustres diante da condição subalterna da mulher na
Antigüidade e na Idade Média. Como a mulher do povo sempre esteve ausente
dessa esfera de manifestações, não se pode falar em ações feministas nessa
época, o que não significa que não houve nada de importante nesse sentido. O
interesse maior das mulheres não era reivindicar seus direitos, mas sim provar
que eram tão capazes de escrever a história quanto os homens. Destacam-se,
aqui, as obras A cidade das mulheres, de Christine de Pizan (século XIV), em
que a autora prega a igualdade entre os sexos, e A reivindicação dos direitos da
mulher, de Mary Wollstonecraft (1792), em que defende uma educação para
meninas que aproveitasse melhor seu potencial humano.
Dentro do período anteriormente citado, houve o chamado feminismo
renascentista, do século XV ao XVI, importante, principalmente, nos âmbitos da
política, das letras e das artes. Houve soberanas que reinaram e cumpriram com
êxito missões de grande responsabilidade, como, por exemplo, a rainha
Elizabeth I. As mulheres das classes sociais mais baixas, porém, continuaram
sem nenhuma melhora em suas condições de trabalho.
Na metade do século XX, havia certo descontentamento das mulheres em
relação a sua condição. É por essa razão que o ápice do feminismo, na década de
60, não acontece por acaso. Além de ser uma conseqüência de conquistas
anteriores (como, por exemplo, o direito ao voto conseguido pelas sufragistas), o
feminismo dos anos 60 é também uma renovação nas discussões, passando agora
a se desenvolver também em outras áreas (Sociologia, Psicanálise e, nosso foco,
Literatura e Crítica Literária). Nesse momento, o feminismo contava com
mulheres mais bem instruídas do que suas antecessoras.
Alguns avanços do feminismo foram a conquista da igualdade jurídica e
o direito de exercer profissões liberais, além do citado direito ao voto.
Atualmente, apontam-se alguns limites como a defasagem do discurso feminista
ante a nova realidade mundial. Se na década de 60, o discurso era de “ataque”
aos homens, na tentativa de as mulheres se afirmarem e mostrarem sua
igualdade, hoje em dia, com avanços na política e no trabalho, por exemplo, tal
postura soa retrógrada.
O período que vivemos atualmente é de amadurecimento e reflexão sobre
as conquistas do Feminismo. Ao invés de se lutar pela igualdade em todos os
âmbitos, hoje se valorizam as diferenças entre os sexos. Contrariando o
radicalismo em relação a tudo que é masculino, Alambert afirma que a vida e
sua continuidade dependem do equilíbrio entre os seres humanos, entre os
homens e as mulheres.
Junto ao movimento feminista, desenvolveu-se uma necessidade de
metodologia, de justificar teoricamente as afirmações acerca das diferenças de
direitos e dos papéis dos sexos e de fundamentar as reivindicações feitas pelas
mulheres. Surge a crítica feminista, apresentada em seqüência.
02.03. A Crítica Feminista e os estudos de gênero
A crítica feminista surgiu como uma necessidade do próprio movimento
feminista. A princípio, tal crítica era mais radical, no sentido de ataque ao
masculino e de conscientização/doutrinação das mulheres. Por esse caráter
militante é que se estabelece a ligação evidente com o movimento feminista, na
época também agressivo e doutrinador.
Entre as pioneiras dessa crítica destacam-se Simone de Beauvoir e Kate
Millet. Como a base teórica de nossa dissertação não se apóia nessas autoras,
apresentaremos apenas brevemente cada uma de suas abordagens.
A primeira delas, Simone de Beauvoir, autora de O segundo sexo (1949),
propõe uma teoria a partir de uma certa predisposição humana. A mulher teria
seu papel marginal porque sua condição de mulher/mãe a impede de afirmar-se
diante da natureza. o homem não possui nenhum obstáculo para sua
realização como macho.
Assim, a princípio, seria a própria condição biológica feminina que a
oprimiria. Beauvoir, então, questiona essa submissão e sugere caminhos para
que as mulheres a evitem ou até dela escapem. Ela invoca o pressuposto da
liberdade humana e chega a afirmar que a condição principal para que a opressão
exista é a aceitação do oprimido. A mulher, assim, seria também culpada por sua
submissão. A maneira de escaparem da opressão é não se auto-enganando, ou
seja, não acreditarem que são inferiores e que seu papel submisso é natural.
Beauvoir propõe a inversão de papéis femininos e masculinos, pois a
partir do momento em que a mulher se tornar a parte dominante, a parte
dominada passará a ser o homem. Esse “ataque” ao masculino é o que
caracteriza o existencialismo da autora; entretanto, embora hoje nos soe como
algo muito radical, uma vez que a idéia é fazer exatamente o que os homens
fazem, na época cadas de 50 e 60 era a forma de as feministas
reivindicarem sua liberdade e, mais ainda, sua igualdade.
Na década de 70 temos a teoria política do patriarcado, exposta na obra A
política sexual (1969), de Kate Millet. Os estudos dessa autora dialogam com os
de Beauvoir na medida em que concordam que para que haja opressão é preciso
aceitação do oprimido.
Ela afirma que o patriarcalismo mantém esse consentimento da mulher
fazendo com que ela, de modo mais natural ou por meio da força bruta, aceite
sua “natureza” (dócil, frágil, obediente). Essa imposição do poder do homem
sobre a mulher Millet chama de “política sexual”.
Kate Millet também crítica o cânone literário, uma vez que este ressalta a
dominação do homem sobre a mulher. Nas obras, são ressaltados e tidos como
modelo os modos masculinos, ignorando o fato de que nem todos os leitores são
homens.
É a partir desses estudos pioneiros, principalmente, que a crítica passa a
buscar por uma metodologia de trabalho, dividindo-se então em duas vertentes:
a crítica francesa, sob influência da desconstrução de Derrida e da
psicanálise de Lacan, que se volta para uma possível subjetividade feminina
e vincula a liberação da mulher necessariamente a uma transformação social
profunda, com destaque para os nomes de Julia Kristeva e Luce Irigaray;
a crítica anglo-americana, de Elaine Showalter, Sandra Gilbert e
Susan Gubar, que trabalha com mais ênfase os problemas ligados ao cânone,
ao gênero e suas práticas interpretativas, às experiências de autoras e
leitoras.
Almejando alcançar a verdadeira natureza da mulher, surge a ponte entre
a crítica feminista e a psicanálise. É sob influência de Lacan que teóricas como
Julia Kristeva e Luce Irigaray explicam desvantagens lingüísticas e literárias
femininas. Os gêneros não seriam assim denominados com base em diferenças
sexuais, mas em algo mais complexo, relacionado às relações humanas e sociais.
A natureza, a linguagem e, conseqüentemente, a escrita feminina, porém,
estão longe de ser definidas. Como afirma Duarte (1997, p. 73), “seja através de
teorias que recebem reparos de reduções biologicistas, seja através mesmo da
mistificação do feminino, a questão continua suscitando reflexões”.
A chamada “linha anglo-americana”, na qual se destacam as teóricas
Kate Millet, Sandra Gilbert, Susan Gubar e Elaine Showalter, trabalha com os
problemas ligados ao cânone, à questão da autoria e da representação das
personagens femininas.
Da mesma forma que a academia é predominantemente masculina, o
cânone também o é, uma vez que reproduz a ideologia daquela. A abordagem
anglo-americana, além de problematizar essa questão, também faz releituras de
textos literários, buscando verificar a representação das mulheres e sua possível
(e muitas vezes provável) estereotipagem, como a esposa dócil e bondosa, em
contraste com a prostituta sedutora e maléfica. É nesse sentido que Kate Millet
afirma que o cânone reproduz o ideário masculino.
A diferença no número de escritores e escritoras no cânone ocidental dá-
se pelo fato de que, como já citado, a escrita feminina não era bem vista.
Estudando o caso específico da Inglaterra, Showalter aponta o século XIX como
o século da mulher romancista. Aliás, era (e ainda é) comum que se estabeleçam
“temas femininos” e “temas masculinos”. Segundo Duarte (1990), às mulheres
seria mais adequado que escrevessem romances sentimentais de cunho
psicológico.
O termo gênero, supracitado algumas vezes, era comumente entendido
como algo construído culturalmente, diferindo da noção de sexo biológico entre
os lingüistas. A antropologia, mais tarde, tomou o termo emprestado. Segundo
Campos (1992), o estabelecimento deste como categoria de análise significou
abalos na tradição do cânone ocidental, entre eles, a luta pela desnaturalização
da inferioridade feminina. A crítica feminista, desse modo, vem analisando
autoras que foram, de alguma forma, encobertas, fazendo dos estudos de gênero
um campo instigante e com potencial a ser desvendado.
Showalter (1985) divide a crítica feita por mulheres em duas etapas. A
primeira partia da constatação de que a experiência da mulher como leitora e
escritora era distinta da do homem. Por outro lado, imita o modelo masculino de
escrever, ou seja, analisa a partir da diferença, da comparação. A segunda etapa
deixa de enfatizar o texto masculino como objeto de estudo e se volta para o
texto feminino em si, concentra-se na literatura feita por mulheres.
É importante justificar nossa opção pela linha anglo-americana.
Showalter de fato propõe voltar-se para os textos produzidos por mulheres, e
nossa pesquisa lida com textos produzidos por homens. Mesmo assim,
escolhemos essa linha, pois, além de termos com ela maior afinidade, achamos
por bem não nos enveredarmos pela linha francesa, visto que estamos
interessados nas questões de representação e de gênero, e não em uma análise de
orientação mais psicanalítica.
Por fim, embora possa parecer ousado de nossa parte, propomos uma
terceira etapa, seguinte às duas de Showalter, uma em que a crítica, além de
reconhecer a produção feminina, revisite a masculina, não para salientar a
diferença, mas para estudar a construção daquilo que é denominado gênero. Se
este, hoje, já se consolidou como categoria de análise, nada impede que a mulher
seja estudada em textos masculinos, sem que isso signifique um retrocesso
analítico. Hoje, na pós-modernidade, a “voz silenciada” começa a ser ouvida;
talvez, então, não seja tão inadequado propor uma integração entre o masculino
e o feminino.
Neste capítulo, vimos brevemente a trajetória feminina ao longo da História.
Vislumbramos, em seguida, algumas características do movimento feminista e como
este influenciou no surgimento e ascensão da crítica feita por mulheres.
Apresentamos também a mudança gradativa na abordagem analítica, tanto naquela
que é feita por teóricas quanto em trabalhos acadêmicos.
Podemos perceber que os estudos de gênero, embora tenham rendido bons
frutos, carecem de outros trabalhos. Segundo Moreira (1998), “as mulheres e o
movimento feminista marcam o que há de mais promissor nos estudos literários nesta
virada de século” (p. 69; aqui, obviamente, a virada dos séculos se refere à passagem
do XX para o XXI).
Concluímos citando Campos (1992): “Questionando a adequação racional-
verdadeiro, o feminismo é um dos desconstrutores do pressuposto de que a razão
forneça fundamento universal, real e imutável” (p. 123).
No próximo capítulo, faremos a exposição das obras, de seu enredo e da
fortuna crítica pertinente ao papel feminino. Começamos com A Morte de Artur,
apresentando a lenda arturiana, dados biográficos pertinentes do autor e alguns textos
críticos. Em continuação, O Senhor dos Anéis, com um panorama acerca da obra de
Tolkien, sua biografia e, mais especificamente, as mulheres em seus textos.
03. O CICLO ARTURIANO
A Literatura Arturiana, a chamada “matéria da Bretanha”, consiste em um vasto
complexo de tradições e textos em verso e prosa. Não uma abordagem global e
definidora do percurso desenvolvido pelo ciclo arturiano, pois existem diversas
correntes interpretativas dos textos. Além disso, o período em que, supostamente, Artur
viveu é quase totalmente desconhecido; muito do que se sabe sobre ele foi registrado
tardiamente, com forte influência das lendas celtas.
A origem dessas narrativas data dos anos 600 e 700 d.C., com os Mabinogion,
contos galeses medievais divididos entre o Livro Negro, o Livro Branco e o Livro
Vermelho, este de compilação mais tardia, que traz a versão completa das lendas com
11 contos.
As primeiras menções a Artur, ou a personagens a ele relacionados, são de
cunho historiográfico, escritas em latim. O principal registro dessa época
séculos VI
e VII
é o livro do monge e historiador Gildas, De excidio et conquestu Britanniae,
em que se mesclam narrativa histórica e sermão, com ênfase em um discurso moral.
Devido ao fato de os textos serem escritos de acordo com a interpretação de seu autor,
com cunho mais ou menos historiográfico ou religioso, os acontecimentos dos séculos
V e VI são vistos com cautela, mesmo aqueles registrados em documentos.
De acordo com Amorim (2002), a figura do rei Artur é em parte histórica e em
parte lendária. Mesmo se assumirmos que não existiu nenhum homem de nome Artur,
entre os séculos V e VI d.C., que tenha realizado todos os feitos a ele atribuídos, ainda
assim é necessário aceitarmos que as histórias acerca dessa figura têm fundamentos
históricos importantes, apresentados a seguir.
Em meados do século V, a Bretanha passava por um período de guerra civil e
fome, de migrações e cidades arruinadas. A população, após o abandono romano, ia
sendo gradualmente dominada pelos saxões. Os poucos sobreviventes retiraram-se para
o país de Gales e para a Cornualha.
O provável nascimento de Artur teria ocorrido por volta de 465, durante o
reinado de Ambrósio Aureliano. Liderados e comandados por aquele, os bretões teriam
vencido os saxões na batalha do Monte Badon, à qual sempre se faz referência nas
narrativas do ciclo, por representar a força e habilidade cavaleiresca do suposto rei. Por
volta de 542 teria ocorrido a batalha de Camlann, na qual Artur teria morrido (ou
“desaparecido”). Nenhuma das duas batalhas é tida como verdadeira, pois os registros
são contraditórios, alguns provavelmente fruto da imaginação dos historiadores.
As primeiras menções a Artur propriamente dito ou a personagens a ele
relacionados aparecem em obras de cunho historiográfico, obras da chamada Literatura
Anglo-Latina. De excidio et conquestu Britanniae, citada acima, escrita por volta de
545, trata das adversidades relacionadas à conquista da Bretanha. É mais uma
lamentação das baixas e derrotas bélicas da Bretanha do que um livro de história. Outra
obra importante na cronologia da formação do ciclo arturiano é a Historia ecclesiastica
gentis Anglorum, de 731, escrita pelo Venerável Beda, em concordância com as
afirmações de Gildas.
A primeira grande fonte histórica da matéria da Bretanha é a Historia Britonum
de Nennius, do culo XI. Na narrativa desse monge historiador, são pela primeira vez
citados os nomes de Merlin e Artur. Como não há referências anteriores a este, acredita-
se que parte das narrativas relacionadas a suas vitórias, principalmente, é imaginária,
influenciada pelas tradições orais do norte da Bretanha. Tal obra é composta por sete
opúsculos; é em um deles que Artur tem seu nome formalmente citado pela primeira
vez, não como rei, mas como dux bellorum (“senhor da guerra”).
ainda, no século X, os Annales Cambriae, crônica que cobre 533 anos de
história da Câmbria (antigo nome do País de Gales). Refere-se duas vezes a Artur, nas
duas batalhas em que teria participado: a do monte Badon e a de Camlann.
A obra considerada o início do ciclo arturiano dos romances de cavalaria é a
Historia regum Britanniae (1135), de Geoffrey de Monmouth. Trata-se da história da
Bretanha insular desde suas origens até a consolidação da hegemonia anglo-saxã.
Ocorre, além disso, uma revalorização do mundo celta, conferindo à sua cultura o lugar
primordial na história bretã que lhe era negado. Por meio da coleta de vários mitos
bretões, Geoffrey de Monmouth passa a se referir a Artur não mais como um chefe
guerreiro, mas sim como um rei, cheio de virtudes, modelo de conduta. Há duas versões
dessa obra: a chamada Vulgata, mais extensa, e a Variant Version. Geoffrey de
Monmouth afirma que sua Historia foi baseada em um livro muito antigo, mas não
aponta qual. Alguns, como o cronista inglês William Newburgh (1136-1198), referem-
se a Monmouth como alguém “imaginativo” demais; o certo é que ele se serviu, além
das fontes populares, dos escritos históricos disponíveis. Geoffrey de Monmouth
escreveu, ainda, Prophetiae Merlini e Vita Merlini, em que cita a ilha de Avalon (do
galês, afal, que significa maçã).
A seqüência da literatura arturiana, a chamada literatura anglo-normanda, se deu
com escritores que nasceram (ou que viveram por muito tempo) na Inglaterra,
Normandia e em parte da França.
Em língua francesa, temos, primeiramente, o Roman de Brut, de Wace (1155),
uma adaptação para o francês da Historia de Geoffrey de Monmouth; assemelha-se
mais a uma crônica histórica. Destacam-se em Wace a instauração da Távola Redonda e
a busca pelo elemento sagrado, ainda sem a figura do Graal.
Temos, também, os Lais, de Marie de France (1160-1170), uma coletânea de
contos românticos; o principal deles, provavelmente, é o Lai da Madressilva”, em que
temos a história de Tristão e Isolda, ainda não integrada ao ciclo arturiano em si.
Um autor importante que rompeu com o cunho historiográfico e seguiu caminho
em direção à ficcionalização foi Chrétien de Troyes, mestre do romance cortês. Em suas
histórias, além do ficcional, também estava presente o elemento religioso, e aqui
finalmente temos a figura do Graal. Essa abordagem foi responsável por associar as
imagens e ações dos cavaleiros arturianos a locais sagrados e às Cruzadas, o que acabou
por dar a estas últimas um matiz menos bárbaro e violento. É também nessa fase que se
incorpora o romance entre Lancelot e Guinevere, considerado a causa máxima do
declínio de Camelot (em Chrétien de Troyes, “O Cavaleiro da Charrete”).
É importante ressaltarmos a empatia que os franceses sentiam pela figura de
Artur; embora fosse um bretão, ele era visto mais como um companheiro de origem
celta, uma metáfora da força e luta contra a invasão saxã. Aos poucos, porém, Artur foi
sendo transformado de guerreiro celta/bretão em símbolo da difusão do cristianismo.
Para os ingleses, por sua vez, a conquista normanda em 1066 foi bastante
importante, que, segundo Ward (1960, apud Amorim), impulsionou tanto a evolução
da língua quanto o estabelecimento de uma produção literária própria.
O primeiro produto da matéria da Bretanha em inglês é The Brut (1205-1210),
de Lawman, uma reelaboração do Roman de Brut de Wace. Na seqüência, temos a
elegia Pearl, que acabou dando o mesmo nome a seu autor, por este ser desconhecido.
Desta coletânea de poemas, o mais importante e conhecido é Sir Gawayne and the
grene knight; destaquemos que uma de suas traduções, de 1975, é de J. R. R. Tolkien.
5
O autor já havia também participado numa edição crítica da obra, em 1925. A tradução
mais recente é de 2007, feita por Simon Armitage.
No século XV, o ápice do ciclo arturiano na Inglaterra, em inglês médio
(Middle English), com a obra A morte de Artur (1469-1470), de Sir Thomas Malory,
com o tulo original de The Whole Book of Kyng Arthur and of His Noble Knyghts of
the Rounde Table. As originais oito narrativas da obra, reunidas e publicadas por
William Caxton em 1485, constituíam, a princípio, obras independentes, adaptações e
reaproveitamentos de boa parte do material sobre rei Artur existente até aquele
momento. Considerado um grande escritor, ciente da complexidade do comportamento
humano, Malory não tentou eliminar as sobreposições nem as incoerências existentes
entre uma história e outra, o que é interessante, uma vez que nos mostra diversidade de
relatos e versões acerca da história do rei Artur. Segundo Amorim, A morte de Artur é
um grande “repositório de material temático que foi retrabalhado infinitas vezes pelas
gerações posteriores” (AMORIM, 2002, p. 74).
Para concluir os escritos sobre o rei Artur nesse período, temos a produção na
Península Ibérica. O livro de José de Arimatéia é a versão em português, praticamente
sem alterações, do primeiro livro da Post-Vulgata. A Demanda do Santo Graal, Baladro
del sábio Merlin con sus profecias e La Demanda del Sancto Grial con los maravillosos
fecho de Lanzarote y de Galaz su hijo também são traduções de obras dos séculos XV e
5
Sir Gawain and the Green Knight. Translated by J.R.R. Tolkien. London: Allen and Uwin, 1975. Foi
também por meio do estudo e da tradução dessa obra que Tolkien teve contato direto com o inglês médio.
Ele ainda palestrou sobre diversos tópicos relacionados ao enredo, como a tentativa de Gawain em
cometer adultério, entre outros.
XVI.
6
Essas obras em português e espanhol não possuem grande importância, uma vez
que não tiveram muita repercussão nem acrescentaram nada de novo à lenda.
De maneira geral, pode-se dizer que o ciclo arturiano seguiu basicamente dois
caminhos, o da heroicização (Artur e seus cavaleiros como modelo de conduta
cavaleiresca) e o da divinização (Artur e seus cavaleiros como modelo de conduta
cristã). Amorim (2002) afirma que esse processo deu à história uma característica de
macro-texto, ao qual várias outras narrativas são acrescentadas, várias releituras são
feitas. A história arturiana continua sendo revista e ampliada. Curiosamente, mostrando
a força da lenda, alguns ainda crêem, semelhante ao que ocorre com o sebastianismo
português, que Artur voltará.
Um dos aspectos mais marcantes da matéria da Bretanha é justamente, sem
dúvida, essa sua longevidade e o interesse que desperta até hoje. Mesmo não sendo esse
o foco de nossa pesquisa, vale, aqui, mencionar algumas das mais recentes produções a
partir da lenda arturiana.
Dentre as versões infanto-juvenis, destacam-se A espada era a lei (desenho
produzido pela Disney, de 1963, adaptado do livro Sword in the Stone, escrito por T.H.
White em 1938), O Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda (livro, de Ana Maria
Machado, 1997), A Espada Mágica - A Lenda de Camelot (produção em desenho
animado, 1998) e Rei Arthur e Os Cavaleiros da Távola Redonda (versão ilustrada em
quadrinhos, tradução de Luciano Vieira Machado, 2007).
Para histórias em quadrinhos, algumas das adaptações da lenda são Príncipe
Valente (criado pelo canadense Hal Foster, em 1937, traz várias aventuras na corte do
6
A Demanda do Santo Graal é cópia de uma tradução que poderia remontar ao século XVIII. Uma das
duas edições conservadas de Baladro del sábio Merlin con sus profecias faz parte de La Demanda del
Sancto Grial con los maravillosos fecho de Lanzarote y de Galaz su hijo, esta provavelmente vertida da
tradução portuguesa. (AMORIM, p. 76)
Rei Artur),
Camelot 3000 (versão futurista da lenda, publicada nos anos 80 pela DC
Comics), Arthur, uma epopéia celta (publicado no Brasil em 2005 pela Ediouro, mostra
a trajetória de Arthur desde a infância até se tornar chefe dos bretões) e Os Sete
Soldados da Vitória (também da DC Comics, lançado no Brasil a partir de 2007; um
dos “soldados” é um cavaleiro da Távola Redonda).
As mais conhecidas releituras do mito arturiano, provavelmente, são as que
foram feitas para o cinema. Dentre muitas, destaquemos
7
Os Cavaleiros da Távola
Redonda (roteiro adaptado da obra de Malory, 1953), Príncipe Valente (adaptação de
um dos episódios dos quadrinhos homônimos, em que o príncipe da Escandinávia entra
na corte no rei Arthur, retoma o trono para sua família e readquire seus direitos, 1954),
Camelot (adaptação musical, 1967), Monty Python
Em Busca do Cálice Sagrado
(paródia feita pelo grupo humorista inglês em 1975), Excalibur (1981, considerada uma
boa adaptação da obra de Thomas Malory para o cinema), Lancelot - O Primeiro
Cavaleiro (focado no triângulo amoroso entre Artur, Guinevere e Lancelot, retrata o rei
bem mais velho, 1995), O Príncipe Valente (também adaptado dos quadrinhos, traz o
episódio em que Valiant, o herói do título, é enviado pelo rei Arthur para recuperar a
espada Excalibur, roubada por um grupo de vikings, 1997), As Brumas de Avalon
(adaptação do romance homônimo de Marion Zimmer Bradley, 2001), Aprendiz de
Feiticeiro (personagens em tempos atuais, revivendo alguns elementos da lenda, 2002),
Rei Arthur (2004) e O Aprendiz de Merlin - A Busca pelo Santo Graal (apresenta uma
Camelot em ruínas e a tentativa de Merlin em salvá-la, 2006).
O foco de nosso trabalho, como se sabe, não se relaciona a adaptações das
narrativas arturianas para outros suportes. Assim, o motivo de termos trazido todos
7
Colocamos aqui apenas os títulos que tiveram tradução para o português e que tratam de personagens
diretamente ligados a Artur. A lista completa, incluindo as produções para televisão, é bastante extensa.
esses exemplos acima foi para, posteriormente, no último capítulo, retomá-los e sugerir
novas possibilidades de abordagem de pesquisa.
Em continuação, agora em relação especificamente a nosso corpus, trazemos um
pouco da polêmica biografia de Thomas Malory, assim como trechos de fortuna crítica
relativos a A morte de Artur pertinentes a nosso trabalho.
03.01.Thomas Malory, autor de A Morte de Artur (?)
A questão da identidade do autor de A morte de Artur ainda é assunto
acadêmico controverso: o único consenso é o de que ele foi membro da
aristocracia inglesa e que boa parte da obra tenha sido escrita na prisão.
Pouco se sabe a respeito de Thomas Malory, a quem é quase sempre
atribuída a autoria da obra. Afirma-se que ele era notório tanto por suas
habilidades como escritor quanto por seus atos criminosos. Passou períodos
significativos de sua vida na cadeia, condenado por crimes como roubo de gado,
emboscada com tentativa de assassinato, roubo a mão armada, extorsão, estupro
e desacato à autoridade. Os 507 capítulos
mais de 300.000 palavras
de A
morte de Artur teriam sido compostos nesses períodos.
A primeira versão da obra foi impressa pelo “pai da impressão” na
Inglaterra, William Caxton, em 1485. A morte de Artur tem por base a obra de
Geoffrey de Monmouth, à qual Malory acrescentou outros elementos
popularizados pelos demais escritores citados (Wace, Lawman, Chrétien de
Troyes); incorpora também histórias relacionadas a Artur vindas de diversas
partes do continente. Pela primeira vez no âmbito da língua inglesa, Excalibur, a
Távola Redonda, o Santo Graal, o romance entre Lancelot e Guinevere e o conto
de Tristão e Isolda são relatados numa mesma obra, em uma mesma narrativa
mais ou menos coerente.
Caxton re-dividiu a obra de Malory em 21 partes/livros (em vez das oito
originais) e anexou seu prefácio. Neste, explica que foi questionado várias vezes
por nobres sobre o porquê de nunca ter publicado uma obra relacionada ao Rei
Artur este, segundo Caxton, um dos três melhores reis Cristãos existentes
até então. Afirma que um dos motivos para justificar tal publicação era o fato de
Artur ter nascido e morrido em terras bretãs/inglesas; outra razão era o número
de publicações francesas sobre esse mesmo tópico, ou seja, era uma “injustiça”
não haver em inglês uma obra que narrasse os grandes feitos realizados pelas
notórias figuras. Os nobres mencionados por Caxton acreditavam
veementemente na real existência do monarca e seus cavaleiros, baseados em
“provas” como o sepulcro em Glastonbury e o crânio de Gawaine no castelo de
Dover.
Dessa forma, após pesquisar qual seria a melhor obra para tal finalidade
fazer jus, em língua inglesa, à figura de Artur, seus cavaleiros e seus atos
heróicos
Caxton decide imprimir a cópia que lhe fora entregue por Thomas
Malory, afirmando ser esta uma cópia de histórias francesas, reduzidas ao inglês.
O editor ainda orienta os leitores, numa atitude claramente baseada em valores
cristãos, que tomem os feitos narrados como modelos de conduta a ser seguida;
os homens bons devem ser honrados, os maus, perseguidos e punidos.
Quanto à divisão e temática de cada parte/livro da obra, em uma livre
tradução do prefácio de Caxton (edição de 2004), temos o seguinte:
o primeiro livro trata de como Uther Pendragon, por meio da
interferência de Merlin, tornou-se pai de Artur;
o segundo livro é sobre o cavaleiro Balin;
o terceiro trata do casamento do já Rei Artur com Guinevere;
o quarto livro aborda a guerra declarada contra Artur pelos outros
reis; Merlin, nesse momento, é enganado e preso por Nimue, uma das
donzelas do lago;
o quinto livro trata da derrota de Lúcio, o Imperador;
o sexto livro é sobre Sir Lionel e Sir Lancelot; narra feitos
maravilhosos desses dois cavaleiros;
o sétimo livro é sobre Sir Gareth;
o oitavo começa a narrar as aventuras de Sir Tristão e sua paixão
pela bela Isolda; tais feitos e romance só terminarão no livro dez;
o décimo primeiro, décimo segundo e décimo terceiro livros
tratam de Sir Lancelot e seu filho, Galahad;
no décimo quarto livro inicia-se a busca pelo Graal;
os próximos três livros abordam, respectivamente, Sir Lancelot,
os irmãos Sir Bors e Sir Lionel, e o Santo Graal;
os dois próximos capítulos tratam, finalmente, do romance entre
Sir Lancelot e a rainha Guinevere
o vigésimo capítulo é sobre a lamentável morte do Rei Artur, e o
vigésimo primeiro trata de sua partida na balsa com a irmã .
É importante explicarmos, para maior esclarecimento, a diferença do
“resumo” do enredo de A Morte de Artur e O Senhor dos Anéis, uma vez que tal
aspecto se refere a uma das maiores dificuldades que enfrentamos no
desenvolvimento deste trabalho.
Temendo que o resumo do enredo de A morte de Artur não ficasse tão
claro quanto gostaríamos, achamos por bem não estendê-lo muito e fazê-lo em
tópicos, abordando apenas o assunto principal de cada livro. Em contrapartida,
O senhor dos Anéis é apresentado em texto corrido, mais longo, pelo fato de a
leitura e compreensão serem menos árduas, mais claras.
Como dito acima, a obra de Malory foi dividida em oito partes,
compostas separadamente. Além disso, o autor acrescentou à Historia de
Geoffrey de Monmouth vários outros elementos. Dessa forma, por mais que se
tenha tentado compor um enredo linear e coerente, em alguns trechos a leitura
torna-se bastante árdua. Elementos misturam-se, a cronologia é interrompida e
retomada bruscamente, além do número imenso de personagens sem qualquer
aprofundamento ou mesmo caracterização (alguns, inclusive, são mencionados
para serem mortos três parágrafos adiante). A compreensão do texto, em inglês
médio, não é das mais fáceis, e a tradução existente no Brasil segue certas
construções sintáticas e vocabulário que tornam o texto não tão fluido.
8
Antes de passarmos à próxima obra de nosso corpus, apresentamos
abaixo alguns textos críticos, pertinentes a nossa pesquisa, acerca de A morte de
Artur, especificamente, dos ideais da cavalaria e dos papéis dos sexos no mito
arturiano de forma geral.
8
É importante apontar, também, que alguns dos trechos citados da obra foram traduzidos por nós, uma
vez que não foi possível o acesso à tradução completa. Temos apenas dois dos três volumes, publicados
pela Thot Editora, em 1987.
03.02. A morte de Artur, as mulheres e os seus papéis
Iniciamos esta parte de nosso texto com um artigo que não trata
especificamente da obra A morte de Artur, mas de A demanda do Santo Graal,
obra que retrata o mito arturiano em língua portuguesa. Embora o estudo não se
refira à obra com que trabalhamos, os argumentos levantados em relação ao
papel feminino são pertinentes e aplicáveis no nosso caso.
Em “Um resgate das implicações psicossociais da presença feminina em
A demanda do Santo Graal (2003), de Pereira, temos uma análise das
representações da mulher em um contexto medieval. Segundo a autora, a
demanda do Santo Graal, alicerce sobre o qual se desenrola a lenda do rei Artur,
“revela como a presença e a atuação da mulher é determinante em uma
sociedade fortemente marcada pelo espírito de religiosidade com propostas de
preceitos e valores morais punitivos” (p. 215). A essência da Idade Média está
em seus paradoxos. O amor verdadeiro existe apenas fora do casamento e, se
por um lado o cavaleiro se redime na busca do Graal, por outro ele se perde nos
caminhos do adultério.
A presença da mulher era banida e evitada pelo cavaleiro casto, pois a
demanda devia estar vinculada a valores espirituais. A lenda do Graal representa
experiências humanas universais, como o adultério, o incesto, o dualismo “viril”
e “feminino” e a figura do herói e da dama, e é com base nesse quadro que
podemos entender a mulher no imaginário medieval. A mulher é ora
representada como demônio tentador, ora como pura donzela formosa, e essa
característica de dualidade pode ser percebida na expressão do amor cortês.
A proposta desse amor não era apenas carnal, mas sim sugeria que havia
identificação entre homem e mulher. Com a institucionalização do casamento
como sagrado, a Igreja acabou contribuindo para que essa definição de amor
surgisse. Na demanda do Graal, o amor cortês é representado por Lancelot e
Guinevere, que são capazes de romper com as regras eclesiásticas impostas à
sociedade.
O adultério, nesse contexto, era visto como a perfeição do espírito que o
casamento não podia realizar. Ao amor adúltero se relaciona outro aspecto
significativo do amor cortês: o sofrimento. Essa associação concede ao amor
ares de grandeza e singularidade. “Esse aspecto dualístico da paixão e do
sofrimento na relação homem/mulher medieval revela o caráter doloroso e
depressivo que a experiência amorosa acarretava nos cavaleiros e damas.”
(PEREIRA, 2003, p. 222)
A autora ainda afirma que a culpa do homem adúltero é menos indigna
que a derrota do homem traído. A derrota do rei Artur e a ruína do seu reino,
por exemplo, deveu-se à traição feminina, mostrando a mulher como
desestabilizadora de emoções. A lenda do Santo Graal ressalta outro aspecto em
relação ao feminino: o mistério, bastante relevante no retrato da mulher
medieval. Era no mistério, assim como no perigo, que residia o poder da
sedução.
Reforçando o papel da mulher na sociedade patriarcal e dominadora, a
procriação era tida como o destino feminino. Era por meio dessa capacidade de
criação que os casamentos eram estabelecidos.
No Graal, temos uma proposta de valorização da mulher em dois
sentidos. Primeiramente, por meio do culto à Mãe; em segundo lugar, pela
atuação de Guinevere, rompendo com o modelo vigente em busca da realização
de desejos próprios.
Para concluir, a autora tece três considerações principais a respeito da
atuação feminina na lenda do Graal. A primeira relaciona-se ao incesto e seu
caráter proibitivo, mais grave que a quebra dos votos matrimoniais. A segunda é
o sofrimento e tragédia que sempre acompanham o amor adúltero e o
incestuoso. Por fim, é importante percebermos que aquilo que move as
mulheres da demanda são as pulsões, ou seja, uma carga energética dinâmica
que as faz buscarem seus objetivos.
O principal texto no qual baseamos nossas análises foi “‘Am I nat na
erthely woman?’: Malory’s Morte Darthur”, de Marion Wynne-Davies, um dos
capítulos do livro Women and Arthurian Literature (1996). A autora afirma que
as situações representadas por Malory assemelham-se, a sua maneira, a uma
“guerra dos sexos” moderna.
Wynne-Davies, então, apresenta as personagens “punidas” por seus
maridos devido a sua conduta: Isolda e Guinevere. A autora argumenta a
respeito da injustiça em relação à mulher, sempre submetida a julgamento
masculino. Na sociedade masculina de A Morte de Artur, a mulher não tem
poder para mudar sua posição.
Algumas delas, por sua vez, como as feiticeiras Morgana e Hallews,
mostram-se independentes e livres (até certo ponto) de convenções.
Desenvolvem um comportamento agressivo, transgressor, fora do padrão moral
e sexual.
Wynne-Davies afirma que “o texto interroga a natureza da conduta
cavaleiresca e isso, inevitavelmente, tem importantes implicações no papel da
mulher em A Morte de Artur e na cultura do século XV, na qual a obra foi
produzida” (p. 61, tradução nossa).
9
Assim, as condutas femininas discrepantes
não são tão absurdas se analisadas à luz de seu momento de produção. Malory
acabou desenvolvendo uma obra que não apenas retratava as mulheres do
século XV, mas questionava os valores pouco adequados à sociedade em
ruínas. Essa afirmação, feita pela autora, é pertinente porque dialoga com uma
de nossas conclusões a partir das análises; tal conclusão será desenvolvida mais
adiante.
O texto de Wynne-Davies também é relevante no sentido de mostrar a
necessidade de um trabalho como o nosso. Afirma a autora que “um texto
dedicado inteiramente às relações de nero em A morte de Artur se faz
bastante necessário”.
10
Nossa pesquisa, embora o tenha como foco apenas a
obra de Malory, vai ao encontro dessa necessidade apontada.
9
Texto original: “the text does interrogate the nature of knightly conduct ant this, inevitably, has
importante implications for the role of women in the Morte Darthur and in the fifteenth-century culture in
whici the text was produced.”
10
No original: “a text devoted entirely to gender relationships in the Morte Darthur is badly needed.” (p.
62)
04. TOLKIEN E O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE O SENHOR DOS ANÉIS
Embora nossa proposta não seja uma análise fundamentada na biografia do
autor, algumas características da vida de Tolkien com relação bastante pertinente
ao processo de criação de O senhor dos anéis, ao enredo e às personagens
propriamente ditos. Aqui, seguimos basicamente o livro Hobbits, elfos e magos, de
Michael Stanton (2002); pesquisamos dados sobre o autor e sua obra em diversas
referências, mas como os dados obtidos foram os mesmos, optamos por esta fonte,
mais objetiva.
John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 1892, na África do Sul. Foi para a
Inglaterra após o falecimento do pai; vivia na zona rural, em um lugar chamado
Worcestershire (shire, condado em português, é o mesmo nome dado ao vilarejo dos
hobbits). Foi apresentado ao estudo de idiomas e à católica, duas áreas que o
acompanharam durante a vida toda, pela mãe, que morreu quando ele tinha 12 anos.
Lutou na Primeira Guerra Mundial, na qual perdeu quase todos seus amigos
mais íntimos; a atmosfera de terror da guerra e as perdas de pessoas queridas são
refletidas em O senhor dos anéis. Tolkien afirmava repetidamente que o livro não se
trata de uma metáfora da guerra; o que ocorre é que o “Mal”, ou seja, atitudes
egoístas e destrutivas, aparece em diversos tempos e lugares, em todas as lutas pelo
poder. Contraiu febre das trincheiras, em 1917, o que o afastou do combate e
permitiu que iniciasse parte dos escritos daquilo que viria a se tornar O Silmarillion
(1977).
11
Além de integrar o corpo de editores assistentes do Oxford English
Dictionary entre 1918 e 1920, atuou também como professor nas universidades de
11
Em alguns momentos das análises, foi preciso fazermos referência a algumas passagens e personagens
desta obra. Assim sendo, anexamos, ao final do trabalho, um pequeno resumo do enredo.
Leeds e Oxford; é interessante mencionar que, embora tenha atuado nessas
instituições e acumulado várias honrarias acadêmicas, nunca foi além do grau de
bacharel.
As histórias da Terra-Média começaram a partir do amor pela linguagem e
pelos idiomas; falava pelo menos quatro ao chegar ao colegial e inventou pelo
menos uma dúzia de outros.
12
Destacou-se também como crítico e estudioso; é o
autor dos primeiros comentários críticos a respeito do épico Beowulf, escrito em
inglês antigo (Old English) em forma de versos.
quem considere O senhor dos anéis uma obra de fantasy literature
(literatura de fantasia), subgênero baseado num mundo imaginário, inspirado em
mitologias (principalmente a nórdica). Essa conceituação do romance como um
gênero menor é um dos fatores que explica o preconceito acadêmico não em
relação a essa obra, como também relacionado a qualquer livro que aborde elementos
maravilhosos.
13
Entretanto, o fato de o mundo de Tolkien ser todo inventado, ignorando,
aparentemente, quaisquer noções de verossimilhança, e o mergulho na fantasia não
são justificativas plausíveis para que sua obra seja considerada um subgênero.
Consideramos que o trabalho que Tolkien tinha com a palavra
tanto lingüística
quanto literariamente
pode ser considerado um dos fatores que possibilita
chamarmos O senhor dos anéis de obra literária, à altura, quem sabe, de muitas
outras pertencentes ao cânone. Além disso, também pode ser citada a rica
intertextualidade com vários outros textos, como, por exemplo, A morte de Artur.
12
Algumas observações sobre a criação de línguas e a importância dos nomes na obra de Tolkien estão ao
final, em anexo.
13
Aqui, quando nos referimos ao maravilhoso, referimo-nos a obras como as de Tolkien, C.S. Lewis e,
mais recentemente, J.K. Rowling e Philip Pullman.
Nesse sentido, uma das perguntas que nos fizemos no início do
desenvolvimento deste trabalho foi se Tolkien teria lido a obra de Malory; embora
nossa pesquisa não tivesse como pré-requisito a “leitura obrigatória” de um autor
pelo outro, era interessante investigarmos a esse respeito. Não podemos afirmar com
certeza que Tolkien leu A morte de Artur, mas os dados que levantamos nos levam a
essa conclusão.
Nossas principais fontes de leitura foram a biografia e as cartas de Tolkien,
ambas publicadas em 2000 por Humphrey Carpenter. Em uma das primeiras cartas,
Tolkien afirma ter dado aulas de vários textos em inglês médio (embora não
mencione objetivamente quais) na Universidade de Leeds. Mais adiante, na carta
número 145, Tolkien comenta as comparações feitas entre ele e Malory (entre outros
autores): “Fico lisonjeado em ver que as primeiras opiniões são tão boas, embora
creia que as comparações com Spenser, Malory e Ariosto [...] sejam demais para
minha vaidade!” (p. 181, tradução nossa).
14
Ora, para que ele pudesse fazer tal
afirmação, devia conhecer a obra e o autor com o qual era comparado.
Na página 221 de sua biografia, é C.S. Lewis quem compara Tolkien a
Malory e outros autores, dentre eles Ariosto; uma vez que Tolkien declara não
conhecer apenas Ariosto, podemos entender que ele leu Malory. ainda as
constantes declarações de Tolkien a respeito de sua paixão e diversas leituras sobre o
mito arturiano.
Como dito acima, não podemos afirmar categoricamente que Tolkien tenha
lido Malory, mas os fatores apontados são bastante convincentes de tal fato. Mesmo
tendo ficado bastante satisfeitos com essas leituras e (in)conclusão, não pautamos
14
No original: “I am pleased to find that the preliminary opinions are so good, though I feel that
comparisons with Spenser, Malory and Ariosto [...] are too much for my vanity!”
nossa pesquisa apenas nessa “coincidência”. Tal possibilidade de diálogo entre os
textos é relevante, mas as análises foram feitas baseadas em diversos outros
elementos, principalmente nas semelhanças com papéis femininos relacionados à
medievalidade.
Quanto ao processo de criação de O senhor dos Anéis, este não se trata apenas
de uma continuação da primeira obra de Tolkien, O hobbit (1937). A natureza do
enredo é diferente, a maioria dos personagens muda, os locais que no primeiro livro
são apenas mencionados tornam-se agora palco das ações; acima de tudo, o tom é
mais sério, menos infantil.
A composição da obra começou por volta de 1937 e terminou somente 17
anos mais tarde. Segundo Tolkien, guerra, deveres acadêmicos, doenças pessoais e
dos filhos foram alguns dos fatores que impediram que o rascunho fosse terminado
até 1947. Após um longo processo de revisão e correção, Allen and Uwin editou e
lançou a obra entre 1954 e 1955, imaginando erroneamente que esta não alcançaria o
mesmo sucesso que O hobbit.
15
Porém, o livro recebeu boas críticas, e em 1965 uma edição não-autorizada
lançada nos Estados Unidos levantou a popularidade da obra. No final da década de
60, Tolkien tornou-se um cult nas universidades americanas; hoje, se adotarmos o
significado mais corrente deste termo, o status da obra mudou. Com adaptações para
o cinema, videogame, música, entre outros, O senhor dos anéis acabou provando ser
um sucesso maior do que o imaginado.
15
Michael Stanton, em Hobbits, elfos e magos (2002), atenta para o fato de, contrariamente ao que se
afirma, The Lord of the Rings não ser uma trilogia. Tal afirmação implicaria que cada volume se
sustentaria sozinho, independente dos demais. A obra de Tolkien deve ser vista como um livro único. A
publicação em três volumes é apenas uma estratégia editorial para facilitar o manuseio por parte do leitor
e garantir três momentos separados para a crítica.
Muitos vêem com certa antipatia essa “popularidade” alcançada, numa
postura contrária à idéia, corrente na pós-modernidade, de abolir as fronteiras
e,
principalmente, a hierarquia
entre texto original escrito/cultura de elite e texto
adaptado/cultura de massa. O próprio interesse da academia pela obra é visto com
suspeita; em sua maioria, os críticos restringem-se a comparações entre livro e filme
(com desvantagem quase certa para este, como no ensaio de Ross Smith, abaixo) e
estudos referentes às habilidades de Tolkien como lingüista (como, por exemplo, The
Languages of Tolkien's Middle-earth, de Ruth Noel, 1980). De qualquer forma, um
olhar crítico voltado a O senhor dos anéis é ainda pouco comum no Brasil, reiterando
o tal “preconceito” citado acima.
Apresentamos agora um breve resumo do enredo, seguido de uma exposição
de parte da fortuna crítica sobre o escritor, sua obra e, principalmente, suas
personagens femininas.
04. 01. O senhor dos anéis: o enredo, sua relação com as demais obras de
Tolkien e os filmes
A história de O senhor dos anéis (1955), na verdade, tem início em outra
obra de Tolkien, O hobbit, em que Bilbo Bolseiro encontra um misterioso anel.
O dono do objeto, a criatura Gollum, joga uma espécie de jogo de adivinhas com
Bilbo e, devido a um truque deste, perde a competição e o anel, ficando furioso e
acusando o hobbit de roubo.
Anos mais tarde, em O senhor dos anéis, ocorre a preparação de uma
grande festa para o aniversário de Bilbo, em que quase toda Hobbiton, a Vila
dos Hobbits, foi convidada. Gandalf, o Cinzento, um poderoso mago, também
chega para a festa. Durante a celebração, Bilbo coloca o misterioso anel no dedo
e desaparece. Gandalf desaprova a atitude do amigo, afirmando que não é bom
brincar com objetos mágicos. Bilbo planeja viajar e, após um imenso esforço,
deixa o anel para seu sobrinho, Frodo. Aconselhado por Gandalf, o rapaz não
mostra o objeto a ninguém até que o mago pesquise e saiba de que anel se trata.
Após muitos anos, o mago retorna, pois descobriu que o anel de Frodo é,
na verdade, o Um Anel, forjado por Sauron, o Senhor do Escuro, antigo
discípulo de Morgoth.
16
Se o objeto voltar para seu verdadeiro dono, tudo estará
sob o domínio do mal. Tentando evitar que isso aconteça, Frodo parte em
companhia de Sam, seu jardineiro, e de Merry e Pippin, seus amigos.
Quando chegam à estalagem em que Gandalf os encontraria, os quatro
hobbits descobrem que o mago não está lá. Frodo encontra um estranho
andarilho, apelidado Passolargo, e fica bastante apreensivo. Passolargo vai até o
quarto de Frodo e conta-lhe que não é um errante qualquer, mas sim Aragorn,
filho de Arathorn, herdeiro do trono de Gondor e amigo de Gandalf. Nessa
mesma noite, os hobbits são atacados por estranhos cavaleiros negros.
Na manhã seguinte, os cinco deixam o local. Guiados por Aragorn,
chegam ao Topo do Vento, onde os cavaleiros negros atacam outra vez e ferem
Frodo seriamente. Sua única esperança é chegar a Valfenda, a terra dos Elfos, a
16
Personagem de O Silmarillion. Morgoth é um dos “deuses” criados pelo Ser Supremo; deseja
corromper e criar as coisas e seres a seu modo (de modo semelhante a Lúcifer na tradição cristã). Ao lado
da aracnídea Ungoliant, Melkor espalha as trevas pela face do novo mundo. Tentando criar seus próprios
seres, acaba corrompendo a natureza de tal forma a dar vida aos orcs, seres beligerantes, sem muita
inteligência e organização.
tempo de ser curado. Os cavaleiros os perseguem, mas Frodo consegue cruzar o
rio e ser salvo.
Em Valfenda, Gandalf espera por eles e explica-lhes por que não foi ao
encontro deles na estalagem: Saruman, o Branco, outrora um bom mago,
trancou-o em sua torre em Isengard, pois agora também era servo de Sauron.
Um conselho acontece e todos percebem que o único meio de deter Sauron é
destruir seu Anel na fenda da Montanha da Perdição, em Mordor, onde foi
forjado. Uma sociedade é formada, composta por membros representantes das
principais raças: Frodo, Sam, Merry, Pippin, Gandalf, Aragorn, Boromir (um
homem, filho do regente de Gondor), Gimli (um anão) e Legolas (um elfo).
A comitiva se dirige à montanha Caradhras, mas devido ao mau tempo
decidem passar pelas minas de Moria. Perseguidos por centenas de orcs, chegam
à ponte de Khazad-Dûm. Um Balrog, um demônio do mundo antigo, luta com
Gandalf e ambos caem em um abismo. Os outros continuam seu caminho,
abatidos pelo triste fim do companheiro.
Chegando a Lothlórien, a floresta dourada, encontram-se com Galadriel,
a senhora da floresta. Ela avisa-lhes que a demanda está por um fio, mas que a
esperança existe enquanto todos se mantiverem fiéis. Pedindo que Frodo olhe
em seu espelho d’água, Galadriel é tentada pelo Um Anel, vencendo-o e
devolvendo-o ao hobbit.
Após deixar Lothlórien, a comitiva é atacada por um grupo de Uruk-Hai,
guerreiros criados por Saruman. Boromir tenta tirar o anel de Frodo, mas
percebe seu erro e morre lutando, defendendo seus amigos como o homem nobre
que é. Frodo vê que sua tarefa é arriscada e decide ir a Mordor sozinho para não
pôr os outros em perigo. Sam, entretanto, segue o mestre e afirma que não o
deixará. Merry e Pippin são raptados pelos Uruk-Hai, mas Aragorn, Legolas e
Gimli vão ao seu resgate. A sociedade é desfeita, e a sorte de todos está agora
nas mãos de um simples hobbit.
O grupo dos Uruk-Hai tenta retornar a Isengard, mas é atacado pelos
cavaleiros de Rohan. Os raptores são mortos, e durante a batalha Merry e Pippin
conseguem escapar. Os dois vão para a floresta de Fangorn, onde encontram
Barbárvore, um ent, uma das mais velhas criaturas da Terra-Média. Preocupado
com o que os hobbits lhe contam, Barbárvore chama todos os outros ents para
um debate e todos decidem lutar contra Saruman. Os ents atacam Isengard e
destroem tudo, com exceção da torre do mago.
Enquanto isso, Aragorn, Legolas e Gimli tentam localizar os hobbits
raptados. Encontram-se com os cavaleiros de Rohan, que dizem terem matado
apenas os Uruks. Homem, elfo e anão decidem procurar pelos pequenos em
Fangorn. Em vez de encontrarem seus amigos, os três avistam um estranho
mago vestido todo de branco. Pensando tratar-se de Saruman, tentam matá-lo,
mas, para sua surpresa, o homem revela ser Gandalf. O mago explica-lhes que
caiu no abismo por um longo tempo, ressuscitando como Gandalf, o Branco.
Guiados novamente pelo amigo, os quatro vão a Rohan, onde o rei
Théoden está sob o poder maléfico de Saruman. Gandalf quebra o feitiço,
expulsando Gríma, servo de Saruman e pretenso conselheiro real. Théoden
percebe que o perigo se aproxima, convoca todos os seus homens e parte para a
guerra, deixando sua sobrinha Éowyn encarregada de cuidar do reino. Gandalf
misteriosamente vai embora, dizendo a Aragorn para ser forte e esperar por seu
retorno ao quinto nascer do sol. O exército se organiza no Desfiladeiro de Helm,
onde se encontra uma antiga fortaleza. À noite, os Uruk-Hai os atacam. Os
Rohirrim estão perdendo a batalha, quando Aragorn e Théoden lideram seus
últimos homens. Repentinamente, Aragorn se lembra das palavras de Gandalf e
dirige o olhar para o Leste a tempo de ver o mago chegar com muitos outros
guerreiros para ajudá-los.
O inimigo é vencido e o grupo vai falar com Saruman em Isengard, onde
reencontram Merry e Pippin. O ardiloso feiticeiro tenta enganá-los, e Gríma
atira-lhes uma estranha bola de vidro. Durante a noite, Pippin sente-se tentado e
pega a esfera para olhar o que nela. Gandalf diz que a bola de vidro é um
Palantír, uma pedra mágica e, devido à imprudência do hobbit, o grande inimigo
pode saber onde estão. Tentando proteger os outros, Gandalf parte com Pippin.
Nesse entremeio, Sam e Frodo tentam chegar a Mordor. Os dois
encontram Gollum, a criatura repugnante de quem Bilbo pegou o Anel. Gollum
faz um acordo com os hobbits, prometendo levar-lhes a Mordor se sua vida for
poupada.
Enquanto descansam, são capturados por Faramir, irmão de Boromir. No
caminho para Gondor, são atacados por um Nâzgul, um dos Cavaleiros Negros,
agora montados em criaturas aladas. Ao contrário do irmão, Faramir percebe que
o Anel é importante e perigoso, e deixa Frodo, Sam e Gollum irem.
Tentando recuperar seu o anel, Gollum leva Sam e Frodo até a toca de
Laracna, uma aranha assassina gigante. Frodo é seriamente ferido, e alguns orcs
aparecem e levam-no a uma torre. Pensando que o amigo está morto, Sam
segue-os.
Os homens de Théoden preparam-se para a batalha. Éowyn decide lutar
ao lado do tio, pois está cansada de ser deixada para trás, apenas tomando conta
do reino; ela é filha de reis, e sangue guerreiro corre em suas veias. Além disso,
está apaixonada por Aragorn, e fará tudo para ficar ao seu lado.
Aragorn, Gimli e Legolas vão a uma caverna onde vive um exército de
mortos-vivos que juraram lealdade a Isildur e, como quebraram a promessa,
foram amaldiçoados até que lutassem ao lado de um dos herdeiros do trono, e
por isso seguem Aragorn.
Enquanto isso, Gandalf e Pippin chegam a Gondor para falar com o rei
Denethor. O monarca pouco se importa com as palavras do mago e manda seu
próprio filho Faramir para a batalha. O rapaz retorna quase morto, então
Denethor resolve fazer um pira e queimar seu corpo junto ao do filho. Gandalf
impede que isso aconteça, pois Faramir ainda está vivo, mas o rei comete
suicídio.
Nos campos de Pelennor acontece uma enorme batalha. O líder dos
Nâzgul mata Théoden, e Éowyn, ajudada por Merry, mata-o e vinga o tio.
Gravemente ferida, a moça é mandada para as casas de cura, onde conhece
Faramir. Éowyn ainda ama Aragorn, mas como sabe que ele ama Arwen, uma
elfa, decide tentar esquecê-lo com Faramir, que retribui seu carinho. Aragorn
chega com os mortos-vivos e vence o inimigo, libertando os amaldiçoados para
que possam descansar em paz.
Em Mordor, Frodo desperta na torre e Sam salva-o dos orcs. Com
dificuldade, os dois conseguem chegar à Montanha da Perdição, mas Frodo
desiste de destruir o Anel no fogo e resolve ficar com ele. Repentinamente,
Gollum os ataca e pega seu o anel, mas cai na fenda e destrói o objeto consigo.
Ocorre uma grande explosão, e Frodo e Sam são salvos pelas águias.
Sauron é finalmente destruído, e Aragorn torna-se rei de Gondor. Os
quatro hobbits voltam ao Condado, onde precisam lutar mais uma vez contra
Saruman, que finalmente é derrotado.
Alguns anos depois, Frodo e seus amigos vão aos portos cinzentos, onde
encontram Gandalf, Galadriel e o velho Bilbo. Frodo conta aos outros hobbits
que precisa deixá-los e partir para as terras imortais, pois sua missão acabou.
Todos se despedem e voltam ao Condado, e Sam finalmente sente que voltou
para casa.
Como foi dito acima, O senhor dos anéis é, a princípio, uma continuação
de O hobbit. Entretanto, à medida que Tolkien desenvolvia a obra, esta se
distanciava mais da primeira, pelo tom sério e pelos rumos que tomava a
narrativa. De qualquer modo, lendo a obra de Tolkien como um todo,
percebemos que todas suas narrativas são interligadas.
O mundo em que se passam as histórias é sempre a Terra Média. O anel
é encontrado por Bilbo em O hobbit, sendo que havia sido forjado à época de O
Silmarillion, durante as primeiras duas eras da criação do mundo. Sauron, o
inimigo, é na verdade uma “versão menos poderosa” de Morgoth, senhor do
escuro de O Silmarillion.
Os elfos foram criados em O Silmarillion, o que explica o porquê de
certas referências a nomes, lugares e acontecimentos em O senhor dos anéis não
serem totalmente entendidas em um primeiro momento. Inclusive, alguns
elementos que nem mesmo em O Silmarillion são explicados inteiramente,
sendo necessária também a leitura de Contos Inacabados (este último sem uma
seqüência narrativa linear).
Até mesmo a obra com caráter mais “infantil” de Tolkien, Roverandom
(mandado para publicação em 1936, mas só publicado em 1998) dialoga com o
restante da produção do autor. As referências não são explícitas, mas a descrição
dos personagens mágicos, a presença de dragões e mesmo a geografia do mundo
do cãozinho Rover, o protagonista, lembram (e muito) a Terra Média.
Mesmo com toda a inter-relação entre as narrativas, O senhor dos anéis
continua sendo a obra mais famosa de J. R. R. Tolkien. A narrativa tem dado
origem a diversas releituras, como as já mencionadas fan-fictions, jogos de
tabuleiro e eletrônicos, adaptações para os quadrinhos, entre outras. No cinema,
gerou até hoje duas adaptações: O senhor dos anéis, obra em técnica mista da
Warner, de 1978, e a trilogia do diretor neozelandês Peter Jackson, lançada pelo
mesmo estúdio entre os anos de 2001 e 2003. Quanto a esta última, sabe-se que
gerou, na época da sua estréia mundial, grande polêmica entre os mais
aficionados à obra, dando origem a textos mais agressivos como “Why the film
version of The Lord of the Rings betrays Tolkien’s novel”, de Ross Smith, e
outros um pouco mais analíticos, como “Malleable Mythologies: Competing
Strategies for Adapting Film Narrative to Video Games in Star Wars and The
Lord of the Rings”, de Harry Brown.
O primeiro traça críticas bastante diretas à adaptação cinematográfica de
Peter Jackson, baseado quase que exclusivamente em sua própria opinião
daquilo que seria uma filmagem “fiel” ao romance. Afirmando ser o filme uma
verdadeira afronta ao “espírito” do livro, Smith ataca praticamente todos os
elementos da mais nova versão da Warner, desde a escolha do elenco
(praticamente todo inadequado, em sua opinião) aos efeitos especiais utilizados.
Analisando a narrativa, conjetura:
Depois disso tudo, o que resta? Nada, além do produto de consumo
tão admirado pelos críticos do mundo todo: um desgovernado épico
saturado de ação com efeitos especiais, ao estilo de Hollywood,
disputando a preferência do público com outros sucessos de bilheteria
como Gladiador, Tróia e o ultimo Rei Artur. Tolkien poderia
imaginar que sua grandiosa narrativa seria um dia colocado na
mesma categoria desses trabalhos rudimentares e violentos? Seu
biógrafo, Michael White, estava com razão ao dizer: “Acho que ele
simplesmente fecharia os olhos para isso.” (p. 05, tradução nossa)
17
Na verdade, a postura de Smith, embora até bastante agressiva, é similar
à de muitos admiradores da obra do escritor. Expliquemos: ao lermos, formamos
nossa própria “adaptação”, nossas próprias imagens daquilo que seria mais
adequado ao espírito do livro”, para continuar com as palavras do crítico. No
entanto, esquecemo-nos de que, na verdade, tal fidelidade diz mais respeito às
nossas opiniões do que propriamente ao romance.
Nesse sentido, Brown propõe que repensemos o senso-comum de que “a
obra original é sempre melhor” (e essa obra é geralmente o livro) e passemos a
enxergar as novas narrativas não como inferiores, mas sim como novas
possibilidades narrativas em um diferente suporte. E quanto às famosas
“diferenças”, tão criticadas como infidelidades, Brown argumenta, citando
Anthony Lane , crítico de cinema da revista New Yorker, que “Conforme assistia
o filme [...] percebi que minhas memórias fiéis ao livro começavam a
17
After all this, what is left? Nothing, other than the consumer product so highly praised by critics around
the world: a non-stop, actionpacked epic with state of the art special effects, cut to the standard
Hollywood pattern, rivalling in its audience’s appreciation such low-brow blockbusters as Gladiator,
Troy and the latest King Arthur. Could Tolkien ever have imagined that his greatest tale would be placed
in the same category as these rudimentary and violent works? His biographer, Michael White, must surely
have been right when he said: ‘I think he would have just closed his eyes to it.’
desaparecer. Já é tempo de encerrar as intermináveis comparações entre página e
tela e assumir que as duas são criaturas diferentes.” (2004, p. 30, tradução
nossa).
18
Ao afirmar que filme e livro são diferentes, Brown de maneira alguma
traça comparações, muito menos privilegia um suporte em detrimento do outro.
Ao contrário, muito pertinentemente, tenta mostrar que os dois são, sim,
diferentes porque devem ser diferentes.
Isso não quer dizer que não possamos analisar quais aspectos das
narrativas foram representados de maneira mais interessante em determinado
meio. Apenas salientemos que as “vantagens”, por assim dizer, de um suporte
em alguns aspectos não fazem dele uma adaptação “superior” à outra. Ou ainda,
que o filme, ao inserir ou prolongar cenas que no livro eram mais curtas, está
fugindo do “espírito” do original.
No caso específico das personagens femininas, as críticas recaíram sobre
a personagem Arwen, interpretada por Liv Tyler. Enquando no livro esta quase
não é citada (como explanaremos melhor abaixo), no filme ela assume uma
postura ativa, atrevida
é ela, por exemplo, quem resgata Frodo dos Nâzgul e
ainda os desafia a pegá-lo, se essa fosse a vontade deles. Também se mostra
menos obediente ao pai, abandonando-o e permanecendo na Terra Média ao lado
do amado, Aragorn.
Pode-se questionar, em vez de criticar pura e simplesmente, o porquê
dessa mudança na postura da personagem de um meio para o outro.
Primeiramente, retomemos Brown: suportes diferentes devem ser vistos e
analisados como suportes diferentes, sem qualquer “hierarquização”. Assim
18
As I watched the film, an eager victim of its boundless will astound, I found my loyal memories to the
book beginning to fade. It may be time to halt the endless comparisons between page and screen, and to
confess that the two are very different beasts.
sendo, é natural que um filme com cerca de três horas de duração (cada), em que
a maioria das cenas são de batalhas e ação, apresente trechos protagonizados por
uma bela atriz. Além disso, no filme, ao contrário do livro, não apêndices, ou
seja, Arwen não poderia ser simplesmente citada para depois ter sua história
explicada.
Aqui, nosso objetivo não foi tecer considerações teóricas sobre os filmes,
uma vez que os textos lidos para esse fim foram apenas de crítica. Em vez disso,
tentamos apenas apresentar uma visão menos radical em relação às
intermináveis comparações livro/filme e lançar uma proposta de análise que
privilegie outras arquiteturas textuais. Tal proposta poderá ser desenvolvida num
trabalho futuro.
Apresentamos, agora, as personagens femininas em O Senhor dos Anéis,
assim como considerações sobre a visão que o próprio Tolkien tinha do papel da
mulher.
04.02. As mulheres em Tolkien
A concepção que J. R. R. Tolkien tinha a respeito das mulheres é
bastante interessante
ou, para também justificar nossa pesquisa, calcada em
ideais medievais. Por um lado, ela as via como santas, maternais, um modelo
inteiramente baseado no ideário católico. Seguindo essa mesma crença, via, por
outro lado, a amizade entre homem e mulher como algo impossível.
É na carta ao filho Michael (Letters, 2000,p. 48) que temos melhor
exposta a opinião do autor a esse respeito. Ele afirma que nosso mundo é
decadente, e neste, a relação entre homem e mulher pode ser física, nunca
fraterna. Talvez essa amizade seja possível entre alguns santos e santas, ou na
velhice, quando o apelo sexual quase não existe, mas nunca para os homens
mortais adultos. A principal arma do diabo, segundo Tolkien, é o sexo.
Na cultura ocidental, criou-se uma forma de sublimar esse “pecado”, por
meio de auto-negação, fidelidade, honra e cortesia; coloca-se a mulher como
uma deusa, um objeto inalcançável, e passa-se a adorá-la. Não é difícil vermos
que tal concepção é, basicamente, uma descrição do amor cortês, idealizado e
pautado em valores cristãos, um modelo de conduta que não necessariamente
reflete a realidade.
19
A carta segue discorrendo sobre sedução, casamento e comportamento
social dos sexos
e aí vemos uma postura bastante machista de Tolkien,
mesmo nos momentos em que se mostra “simpático” às mulheres. Uma visão
marcada por estereótipos, que a mulher como ameaçadora sexualmente,
contra a amizade entre os sexos, fruto de uma educação católica rigorosa. Ao
longo de nossas análises, encontramos personagens tolkienianas que refletem
esses modelos, que não são apenas opiniões pessoais do autor, mas sim parte do
ideário medieval e até mesmo da sociedade da primeira metade do século XX.
No tocante às personagens femininas em si, Leslie Donovan afirma, no
artigo “The valkyrie reflex in J.R.R. Tolkien’s The Lord of the Rings(2003),
que muitos leitores consideram uma falha a pouca quantidade de mulheres na
19
Para uma descrição mais detalhada do termo, sugerimos a leitura do verbete “amor cortesão” no
Dicionário temático do Ocidente Medieval, de Le Goff e Schmitt, p. 47-55. (2002).
obra. Algumas críticas consideraram tal “erro” uma mostra de misoginia do
autor, acusando-o de basear-se em estereótipos e ser paternalista e patriarcalista.
Por outro lado, numa postura menos agressiva, alguns críticos, como por
exemplo Edith Crowe (professora da San José State University, com estudos
publicados sobre Tolkien) apontam que tal postura do autor não era um simples
reflexo de sua opinião, mas uma representação de suas fontes de pesquisa e do
pensamento de sua época. Argumentam que, embora o número de mulheres seja
pequeno, seus papéis são significantes, ativos, tão importantes para o
desenvolvimento da obra quanto os dos homens.
Os trabalhos acerca da obra de Tolkien tendem a analisá-la à luz de
épicos clássicos, tipologia cristã, arquétipos psicológicos ou relações de gênero
(este último, o caso de nossa pesquisa). Citando outros autores, Donovan mostra
que os enredos e personagens de Tolkien trazem à tona um trabalho de pesquisa
e intertextualidade com textos mais antigos, como por exemplo A Odisséia
(século VIII a.C.), de Homero, Beowulf (entre 700-1000 d.C.) e a Völsunga Saga
(século XIII d.C.).
Embora esse artigo de Donovan seja, especificamente, voltado ao último
texto citado, ou seja, à comparação das personagens femininas de O senhor dos
anéis com as valquírias nórdicas, sua introdução teórica e justificativas nos
foram bastante úteis, pois iam ao encontro de nossos próprios objetivos de
pesquisa, além de estabelecer um bom nicho no qual situar nosso trabalho.
Outros dois artigos que foram de suma importância para nossa pesquisa
foram “Beds Are Good: Sex and Libido in Tolkien's Writing”, de Ty Rosenthal,
e “Oh . . . Oh . . . Frodo!: Readings of Male Intimacy”, de Anna Smol. Ambas as
autoras apresentam argumentos que dialogam com nossas impressões iniciais
acerca das personagens; a partir delas, outras idéias vieram à luz.
Apresentaremos e desenvolveremos esses argumentos num momento mais
pertinente, mais adiante, no capítulo dedicado às análises.
Em relação a Tolkien e suas obras, de modo mais geral, dois trabalhos
interessantes, entre tantos outros, são o de David Colbert, O mundo mágico do
Senhor dos Anéis: mitos, lendas e histórias fascinantes (2002), e o de David
Day, O mundo mágico de Tolkien (2004).
O primeiro, escrito após a estréia do filme A sociedade do anel (2001),
compõe uma espécie de guia” tanto para os fãs quanto para os leigos no
assunto Terra-Média. Segundo Colbert, os significados mais profundos da obra
de Tolkien passavam despercebidos pelos novatos, que se perguntavam por que
o escritor era tão aclamado. Algumas idéias como a imortalidade e o destino ou
mesmo a criação de línguas e povos a partir de antigas lendas não eram fáceis
de ser explicadas por meio dos filmes.
Com esse objetivo, Colbert conduz o leitor aos mistérios e profundezas
do mundo de Tolkien, desvendando as histórias por trás das histórias. Ao longo
de 36 tópicos organizados em forma de pergunta e resposta, alguns temas como
“Qual poema épico inspirou Tolkien?” ou “O que Tolkien via em Galadriel?
são abordados. Freqüentemente, são apontados e explicados fatos não de O
senhor dos anéis, mas também de O hobbit (1937) e O Silmarillion (2002).
O mundo mágico de Tolkien, escrito no ano do 50º aniversário de
publicação de O senhor dos anéis, traz as fontes mitológicas nas quais Tolkien
pode ter se baseado (ou não) para compor sua obra. Além da mitologia, são
mostradas outras referências históricas, lingüísticas e literárias.
Outra publicação bastante significativa para a nossa pesquisa foram as
revistas O universo fantástico de Tolkien (publicadas entre 2002 e 2003 pela
Camargo e Moraes Editora), que trazem matérias diversas, precisas e detalhadas
sobre o autor e suas obras, além de análises e estudos dos elementos relevantes
presentes. Dentre esses textos, destaquemos “O Senhor dos Anéis” e “O
Silmarillion”, de Américo C. Santos, que trazem um resumo bem elaborado dos
livros, e “Mulheres: a melhor parte da Terra-Média”, de Reinaldo J. Lopes,
acerca das personagens femininas.
Do próprio Tolkien, Contos inacabados (1980) e O Silmarillion nos
foram fundamentais para uma melhor análise e entendimento das obras. Ambos
os textos, compostos de diversos escritos sobre as primeiras eras da Terra-
Média, propiciam o estudo e a descoberta de detalhes acerca de personagens e
situações mencionados às vezes brevemente nas obras analisadas. A origem e
descrição de Galadriel (abaixo), por exemplo, foi complementada graças à
leitura destes livros. Foram descobertos outros detalhes bastante significativos,
embora alguns não sejam tão relevantes para este trabalho.
Publicado em 2005, Senhoras dos Anéis: mulheres na obra de J.R.R.
Tolkien, organizado por Rosana Rios, questiona, assim como nosso trabalho, a
escassez do elemento feminino nas obras O senhor dos anéis e O hobbit.
Organizada em forma de verbetes com o nome das personagens femininas, a
obra foi relevante, até certo ponto, para nossa pesquisa.
Frisemos, todavia, que embora a obra tenha, inclusive, um prefácio
assinado por Ronald Kyrmse, um dos maiores especialistas em Tolkien no
Brasil, o objetivo da organizadora não foi compor um texto acadêmico. Não se
faz referência a nenhuma bibliografia sobre Idade Média ou teorias sobre
feminismo, assuntos de certa forma abordados no decorrer do livro, e as autoras
assinam seus “apelidos” abaixo dos subtítulos.
Na seqüência, apresentamos as análises das obras. Evitamos fazer uma
separação formal entre as obras; em vez disso, apresentamos as personagens,
com suas características mais relevantes, divididas de acordo com suas
semelhanças e diferenças. Expandimos as análises e apontamos em que pontos
as características dessas mulheres dialogam ou discrepam. Assim, estão no
mesmo bloco Galadriel, Morgana e Hallews. Em outra seção, Arwen, Guinevere
e Isolda. Por fim, Éowyn e Rosinha.
05. A VEZ DAS MULHERES
Analisamos, aqui, as personagens de O senhor dos anéis e A morte de Artur que
julgamos mais relevantes dentro do contexto das obras. No caso do segundo romance,
havia várias outras mulheres (como, por exemplo, Igraine e Morgawse, respectivamente
mãe e tia de Artur), mas decidimos estudar, neste momento, apenas aquelas com as
quais poderíamos traçar um paralelo com as personagens O senhor dos anéis.
Ainda com relação à obra de Malory, havia personagens femininas que
apareciam na trama clamando por socorro masculino ou simplesmente cruzavam o
caminho de um cavaleiro; a maioria delas morria poucos parágrafos a frente, ou, na
melhor das hipóteses, apaixonavam-se pelo cavaleiro e juravam-lhe amor eterno. Estas
não despertaram nosso maior interesse.
05.01. As “feiticeiras”: Galadriel, Morgana e Hallews
A primeira personagem sobre a qual desenvolvemos a análise é
Galadriel, a senhora da floresta dourada. Ela aparece primeiramente em O
Silmarillion, e diversas versões sobre sua história. A explicação, segundo
Cristopher Tolkien, filho de J. R. R. Tolkien e editor de O Silmarillion e Contos
inacabados, é que seu pai deixara muitos escritos divergentes antes de morrer, e
provavelmente pretendia fazer as alterações necessárias para que não houvesse
contradição em suas histórias. Com a morte do pai, Cristopher reuniu as
narrativas que melhor formavam uma seqüência e publicou O Silmarillion.
Outras notas foram compiladas e publicadas em Contos inacabados, uma
coletânea de escritos sobre as primeiras eras. Na versão a seguir, usamos partes
de Contos inacabados, seguindo a narrativa de O Silmarillion a fim de evitar
contradições.
Galadriel é descrita como uma mulher forte de corpo, mente e vontade,
bastante bela, em cujos cabelos repousavam luz. Seu nome paterno era Nerwen
(donzela-homem), e o materno, Artanis (mulher-nobre), e tinha o dom
maravilhoso de penetrar na mente alheia, mas o se dava conta de que o mal
recaíra sobre a mente de todos os noldor (espécie de raça nobre de elfos),
inclusive a sua. Uniu-se à rebelião contra os Valar (criaturas semelhantes a
deuses) e partiu de Valinor, e, mesmo após a derrota final de Morgoth,
permaneceu na Terra-Média. Foi de Celeborn, seu companheiro, que recebeu o
nome Galadriel.
em O senhor dos anéis, Galadriel aparece pela primeira vez quando a
comitiva do Anel é recebida em Lothlórien. Após ser informada do trágico
destino de Gandalf, a senhora da floresta aconselha a todos:
20
Não vou lhes dar conselho, dizendo “façam isto”, “façam aquilo”.
Pois não é fazendo ou planejando, nem escolhendo entre um ou outro
caminho, que posso ser de ajuda; posso ajudá-los sabendo o que
aconteceu e acontece e, em parte, o que vai acontecer, Mas vou lhes
dizer isto: sua Demanda está sobre o fio de uma faca. Desviemum
pouco do caminho, e nada dará certo, para a ruína de todos. Mas a
esperança ainda permanece, enquanto toda a Comitiva for sincera. (O
senhor dos anéis, p. 372)
As palavras e o olhar de Galadriel são inquietantes; Boromir diz estar
desconfiado, mas Aragorn o adverte que não maldade na senhora e em suas
terras, a não ser aquela que o coração do homem traz. Uma tarde, Galadriel leva
Frodo até seu espelho d’água, onde, após ver um futuro turbulento, o hobbit lhe
20
Os trechos citados e as referências de ambos os romances estão em português, no corpo do texto, e em
inglês, em notas, quando a tradução for nossa.
oferece o fardo que carrega. Assim, após duas longas eras, o Um Anel chega-lhe
às mãos, dando-lhe aquilo com que sempre havia sonhado: o domínio da Terra-
Média.
Não vou negar que meu coração desejou muito pedir o que está
oferecendo. Por muitos longos anos, pensei o que faria, caso o
Grande Anel me chegasse às mãos, e veja! Ele está agora ao meu
alcance. [...] Você me oferece o Anel livremente! No lugar do Senhor
do Escuro, você coloca uma Rainha. E não serei escura, mas bela e
terrível como a Manhã e a Noite! Bela como o Mar e o Sol e a Neve
sobre a Montanha! Aterrorizante como a Tempestade e o Trovão!
Mais forte que os fundamentos da terra. Todos deverão me amar e se
desesperar! (p. 382)
Esse trecho é um dos vários clímax da trama. Se por um lado Galadriel
afirma que não seuma rainha escura, por outro, os elementos da natureza com
o qual se compara trazem, inevitavelmente, associações de força e inigualável
poder. Para a elfa, resistir a tal oferta de Frodo é quase impossível, uma vez que
ela, além de ambiciosa, era uma portadora de um Anel de Poder, o que a tornava
mais suscetível ao domínio do Um Anel.
21
Sua sabedoria e discernimento, entretanto, prevalecem, e ela recusa-o;
com esse último teste
como ela mesmo denomina
, Galadriel é finalmente
redimida por sua traição. “Vou diminuir e me dirigir para o Oeste, continuando a
ser Galadriel” (p. 382). O Oeste, nesse caso, é onde se localizam os Portos
Cinzentos, dos quais saem as embarcações para as terras imortais, a morada final
dos elfos.
Essa poderosa elfa é bastante diferente das outras personagens de O
Senhor dos Anéis. Por suas atitudes, analisamos Galadriel não só como uma
21
Um dos versos sobre o Um Anel, conhecidos na tradição élfica: “Três Anéis para os Reis-Elfos sob este
céu”. Narya, o Anel de Rubi, acabou caindo nas mãos de Gandalf. Vilya, o Anel de Safira, passou a
Elrond. Nenya, o Anel de Diamante e mais importante dos três, é o de Galadriel.
mulher medieval comum, mas a comparamos também com as deusas
mitológicas.
Em Galadriel vemos uma beleza e altivez incomuns mesmo entre os
noldor, evidenciando seu caráter especial. Seus nomes também são bastante
significativos: Nerwen, a representação de sua força e vigor, e Artanis,
enfatizando sua nobreza.
Os poderes de Galadriel estão acima dos normais (para um elfo, boa
audição, percepção aguçada, entre outros). Entretanto, tais poderes não são
capazes de mostrar-lhe o óbvio, que o mal toma conta das mentes de todos. Com
seu orgulho e presunção, junta-se à rebelião dos noldor e parte de Valinor. É
apenas com o passar das eras que Galadriel torna-se sensata, indicando que
poder nem sempre é sinônimo de sabedoria.
A capacidade de ler as mentes e prever o futuro é, ao mesmo tempo, um
dom e uma maldição. Por meio desse talento, Galadriel em Boromir o perigo
para o destino do Anel. Por outro lado, vive apreensiva por saber que não haverá
futuro para os elfos e por sentir que o destino da Terra-Média é tão trágico sem
saber exatamente o porquê. Essa maldição é uma espécie de punição, como a
fogueira para a feiticeira.
Na passagem que narra o encontro com Frodo e os demais, suas ações
podem nos levar a duvidar de sua bondade. Uma atmosfera misteriosa sempre a
circunda, levantando tal questão. Podemos perceber ao final da narrativa,
entretanto, que Galadriel é realmente uma personagem sombria, mas que suas
ações sempre visam o bem de toda a Terra-Média.
Foi justamente esse amor um dos motivos pelos quais ela recusou o
perdão dos Valar e permaneceu em Lothlórien, assemelhando-se assim às deusas
também denominadas Mãe-Terra, como Ísis (filha do céu e da terra, na mitologia
egípcia, governava o alto e o baixo mundo, o divino e o terreno), Gaia (da
mitologia grega, ou Tellus, na mitologia romana, é a deusa da Terra) e Deméter
(deusa dos campos e da terra fértil, chamada de Ceres na mitologia romana). Um
aspecto que merece ser salientado é o fato de essas deusas-mães estarem
presentes em quase todas as mitologias e que poucas culturas conferem esse
mesmo papel a entidades masculinas.
Galadriel possui ainda características de outra mãe importante para
Tolkien, um católico devoto: a Virgem Maria. Esta simboliza para os católicos o
que a elfa simboliza para Frodo e os demais: compaixão, sabedoria e esperança.
Não é por acaso que o presente que ela oferece a Frodo, antes de ele partir:
E você, Portador do Anel. [...] Para você preparei isto. – Ergueu um
pequeno frasco de cristal: brilhava quando ela o virava em sua mão, e
raios de luz branca emanavam dele. – Este frasco – disse ela –
contém a luz da estrela de Ëarendil, engastada nas águas de minha
fonte. Brilhará ainda mais quando a noite cair ao seu redor. Que essa
luz ilumine os lugares escuros por onde passar, quando todas as
outras luzes se apagarem. Lembre-se de Galadriel e de seu Espelho
(p. 393)
Galadriel oferece a Frodo o que Maria oferece a seus fiéis: luz na
escuridão, um presente precioso, e seu socorro incondicional nas horas de
necessidade. Também presenteia o restante da comitiva com artefatos especiais:
para todos, capas para camuflagem, resistentes como armaduras; para Aragorn,
uma nova bainha para sua espada;
22
para Sam, corda élfica, leve e resistente, e
um pouco da terra de Lothlórien, onde tudo floresce; para Legolas, um novo
arco; para Boromir, um cinto de ouro; para Merry e Pippin, dois pequenos cintos
de prata, com fivelas de ouro, e duas adagas.
O próprio nome da elfa é significativo; Galadriel quer dizer “donzela
coroada com uma grinalda radiante”, uma referência a seus cabelos cor de ouro
ou, ainda, uma espécie de halo ou auréola. A influência da figura de Maria é
bastante evidente em Tolkien, que Varda (a mais poderosa Valar de O
Silmarillion, senhora das estrelas) também é uma figura materna. A religião em
si é uma característica sempre presente nas obras do autor e forte elemento de
dominação durante a Idade Média.
Nesse sentido, é interessante também a adoração que Gimli tem pela
rainha elfa. Na história da Terra-média, elfos e anões são inimigos, de modo
que, a princípio, para Legolas e Gimli, era desagradável lutar um ao lado do
outro. Ao entrarem nos domínios de Galadriel, todos precisam ser vendados, o
que causa no anão uma grande revolta e desconforto. Porém, ao ficar frente a
frente com a senhora da floresta, Gimli é tomado de grande admiração. Galadriel
o trata com cortesia e respeito, ao que ele reverencia.
Escuras são as águas do Kheled-zâram, e frias o as nascentes
dos Kibil-nâla, e belos eram os salões cheios de pilares de Khazad-
dûm nos Dias Antigos, antes que poderosos reis caíssem no seio da
rocha. [disse Galadriel]
[...]
Apesar disso, mais bela ainda é a terra de Lórien, e a Senhora
Galadriel está acima de todas as jóias que existem sobre a terra!
[respondeu Gimli]
(p. 373)
22
Segundo Galadriel, a espada que fosse retirada de tal bainha não seria manchada ou quebrada, mesmo
na derrota. O presente de Aragorn, dessa forma, tem poder e importância semelhante à bainha de
Excalibur.
Ainda em Lothlórien, pouco antes de a comitiva partir, Gimli pede a
Galadriel, como presente, um único fio de seu cabelo dourado, o qual ele afirmar
que guardará como relíquia e tesouro. A partir desse encontro, Gimli passa a
amar profundamente Galadriel, defendendo-a de qualquer um que diga algum
impropério a seu respeito. A adoração do anão pela elfa, como se pode notar,é
semelhante à devoção que um mortal tem por uma santa ou, nesse caso, por
Nossa Senhora.
23
Em relação à idéia de dominação, notamos que esta parece ser exercida
sempre
no contexto ao qual nos referimos (intra e extratextual)
por
indivíduos do sexo masculino. Galadriel, nesse sentido, rompe com a
expectativa, uma vez que parece ser o elfo mais poderoso que ainda vive na
Terra Média. Ela retoma com maestria a figura de rainhas que, em determinado
momento da história, chamaram a atenção para si mesmas e para seus governos
(como a já citada Eleanor de Aquitânia).
Embora Galadriel invoque a figura de Nossa Senhora, como foi dito, é
inevitável associá-la também à figura da feiticeira. Assim, é também inevitável
traçar um paralelo entre ela e uma famosa personagem do ciclo arturiano:
Morgana.
24
Conhecida como a irmã maléfica do rei Artur”, Morgana manipula as
pessoas com seus poderes para alcançar seu objetivo maior: poder sobre a
Bretanha. Por isso mesmo, é a personagem feminina mais independente e ativa
23
Apenas a título de exemplo, em relação aos aspectos religiosos em O senhor dos anéis, há, ainda nesse
trecho – o da partida da comitiva – um convite de Celeborn para que todos ceiem com ele, como
despedida. Essa passagem é uma referência clara à última ceia de Cristo; não nos estenderemos nessa
analogia por não ser o foco desse trabalho.
24
Malory é bem menos descritivo e mais conciso que Tolkien, por isso a caracterização das personagens
de A morte de Artur é bem mais breve em relação às personagens de O senhor dos anéis.
de A morte de Artur; situando-se fora do código de cavalaria que prevê que
todas as damas devem estar sob o cuidado masculino.
Após a coroação de Artur como rei, ela logo arquiteta um meio para
matá-lo, envolvendo nessa trama seu marido, o rei Urien, e Sir Accolon. A este
último, por meio de feitiçaria, Morgana a espada Excalibur, e seu plano é
quase bem-sucedido. Accolon quase mata Artur em combate, mas no último
momento, os dois homens conversam e descobrem que tudo foi obra da
feiticeira.
Ó Sir Accolon — retorquiu o Rei Artur — misericórdia terás,
porque tuas palavras me fazem ver que nestes momentos não
reconhecias minha pessoa. Mas compreendo bem, por tuas palavras
também, que concordaste com a morte de minha pessoa e, portanto,
és traidor. Mesmo assim te perdôo porque minha irmã, Morgana a
Fada, por seus engenhos falsos te fez concordar e consentir com os
desejos falsos que tem, mas eu me vingarei dela com dureza, seu eu
tiver vida, e toda a Cristandade falará disso. (A morte de Artur, vol.
01, p.155)
O trecho acima é interessante porque, embora reconheça a traição de
Accolon, Artur atribui culpa maior ao comportamento de Morgana, e afirma que
sua vingança seria apoiada pela Igreja. Accolon acaba morrendo, e Artur manda
o corpo como “presenteà irmã, mandando que lhe digam que ele novamente
tem em sua posse a espada Excalibur.
O desfecho desse episódio se dá quando
[Artur] seguiu a cavalo para Camelot e encontrou sua rainha e barões
satisfeitíssimos por sua vinda. E quando eles souberam de suas
estranhas aventuras [...], maravilharam-se com a falsidade de
Morgana a Fada. Muitos cavaleiros desejaram que ela fosse
queimada. (p. 163, grifo nosso)
É interessante notarmos qual o castigo que os cavaleiros desejam para a
irmã do rei: a fogueira, uma referência àquilo que seria, durante anos, a pior
punição para as “feiticeiras” irmãs de Morgana.
Entretanto, Wynne-Davies (1996), aponta a arbitrariedade na definição
“mulheres boas” e “mulheres más”, referindo-se às personagens de A morte de
Artur. Embora as ações das segundas, ao longo de toda a narrativa, contrariem o
modelo de conduta feminina e até mesmo atentem contra a vida de outras
personagens, no final, “boas” e “más” acabam se mostrando duas faces da
mesma moeda. As mulheres, em vez de categoricamente classificadas em uma
dessas categorias, devem ser vistas como ricamente contraditórias.
Exemplifiquemos: Morgana é declaradamente uma feiticeira que
conspira contra o irmão, usando a magia para esse fim. Guinevere, por sua vez, é
a esposa devotada do rei, bela, perfeita em todas as atitudes, com exceção de seu
amor adúltero por Lancelot; é justamente esse amor que significará, em parte, a
ruína de Artur. É Morgana, ao final da narrativa, que mais uma vez usará seus
poderes, dessa vez não para prejudicar o irmão, mas para levá-lo em uma barca a
seu descanso final, provavelmente a Ilha de Avalon (Avilion, no original). Em
seu colo, o rei deita a cabeça ferida e se dirige a seu destino, onde deve ser
curado para um dia retornar.
Assim, nunca mais encontrei nada sobre Artur em livros que
fossem autorizados, nem li nada mais sobre sua morte, além do fato
de que ele partiu numa barca onde estavam três rainhas; uma delas
era a irmã do rei Artur, Morgana, a Fada [...]. Nada mais pude
encontrar sobre a morte do Rei Artur, além de que as damas o
levaram para seu funeral. [...]
Entretanto, alguns homens dizem, em várias partes da Inglaterra,
que o Rei Artur não está morto, mas foi, pela vontade de Nosso
Senhor Jesus, à outra parte; e os homens também afirmam que ele
voltará e obterá vitória pela cruz. (Le Morte Darthur, p. 689, tradução
nossa
)
25
Morgana representa, ainda, uma interessante contradição do pensamento
medieval, referente também às mulheres acusadas de feitiçaria pela Inquisição.
No texto de Malory, Morgana é uma perigosa ameaça em forma de mulher;
entretanto, dada esta última característica, como ela poderia ser perigosa? No
contexto medieval, se as mulheres eram realmente tão fracas e débeis, como
poderiam significar uma ameaça tão grave ao poder masculino?
A resposta para tal contradição é o “pacto com o mal”
seria o demônio
que daria força a essas mulheres, ou a “magia do mal” que concederia tamanho
poder a Morgana. Enquanto, para os homens, o poder se faz valer pela espada,
para as mulheres, é por meio da magia. Numa simbologia relacionada à
anatomia dos sexos, Artur recupera sua Excalibur, mas é Morgana quem fica
com a bainha (A morte de Artur, vol. 01, p. 159 – 161).
Ao compararmos Morgana com Galadriel, notamos que ambas exercem
papéis importantes para o desenrolar da trama: a primeira, como antagonista; a
segunda, como guia e protetora. Porém, mesmo tendo ajudado Frodo e os
demais, quando os poderes de Galadriel são descritos, percebe-se o quanto ela
deve ser temida. Mais uma vez, associa-se a magia feminina a algo misterioso,
além do entendimento (que fique claro, entendimento do homem), e que,
portanto, deve ser perigosa.
25
Texto original: Thus of Arthur I fynde no more wrytten in bokis that bene auctorysed, nothir more of
the verry sertaynté of hys dethe harde I never rede, but thus was he lad away in a shyp wherein were three
quenys: that one was Kynge Arthur syster, Quene Morgan le Fay [...]. Now more of the deth of Kynge
Arthur coude I never fynde, but that thes ladyes brought hym to his grave [...]. Yet som men say in many
partys of Inglonde that Kynge Arthure ys nat dede, but had by the wyll of Oure Lorde Jesu into another
place; and men say that he shall com agayne, and he shall wynne the Holy Crosse.
Podemos nos perguntar, então, qual a característica predominante em
Galadriel? A bondade, o semblante calmo, a cabeça rodeada por um halo de luz
a mãe da Terra Média? Ou a rainha bela e terrível como o mar, a quem todos
devem adorar e por ela se desesperar, que reina mais poderosa que qualquer
homem – inclusive o marido?
O perdão de sua traição contra os Noldor vem com a partida para as
Terras Imortais. De forma semelhante, Morgana também termina numa terra
onírica e fantástica. Entende-se que ambas ganham a vida eterna
e também o
exílio. A presença de mulheres como Galadriel e Morgana entre os homens
mortais pode ser perigosa; logo, não há lugar para elas no mundo.
A última personagem desse grupo de feiticeiras é Hallews. Sua
participação na trama resume-se a um único trecho em um único capítulo, mas
sua conduta totalmente discrepante do restante das personagens chamou nossa
atenção.
Contextualizemos esse trecho: uma dama pede ajuda a Sir Lancelot para
curar o irmão. Para isso, o cavaleiro deve trazer um pedaço de um pano
ensangüentado e uma espada que se encontram em um local chamado de Capela
Perigosa. Do lado de fora da Capela, Lancelot encontra um pequeno exército de
estranhos cavaleiros (a descrição nos permite dizer que se trata de cavaleiros
espectros).
Ao seu encontro veio uma bela donzela, exigindo-lhe que deixasse a
espada para trás ou morreria. Lancelot se recusa, então ela lhe pede um beijo.
Lancelot também o nega, dizendo que Deus não o permitia.
Ela, por fim, conta toda a verdade ao cavaleiro:
Sir Launcelot, agora te digo: eu te amei durante estes sete anos, mas
mulher alguma pode ter o teu amor, exceto a Rainha Guinever. E
que não te podia agradar, nem a teu corpo vivo, não tive qualquer
outro prazer neste mundo, exceto ver teu corpo morto. Teria então
embalsamado teu corpo para assim conservá-lo por todos os dias de
minha vida, e todos os dias eu te abraçaria e beijaria, apesar da
Rainha Guinever. (p. 45)
O cavaleiro, horrorizado, pede que Jesus o guarde de tais “artes sutis” e
parte imediatamente. A donzela, então, cai em tristeza e morre em uma
quinzena. Seu nome é, por fim, revelado: Hallews, a Feiticeira, Senhora do
castelo Nigurmus.
Como dissemos acima, embora breve, a participação de Hallews na
trama nos chamou a atenção, afinal, trata-se de uma referência clara a necrofilia.
Numa perspectiva atualizada de leitura, Wynne-Davies associa esse ato aos
crimes sexuais e à reificação do corpo feminino no século XX; são todos
reflexos de uma sociedade sexista, confusa em seus valores, na atribuição de
papéis aos sexos e na aceitação e respeito a certos comportamentos, tanto
femininos quanto masculinos.
Às mulheres era vedado o direito de sentir e expressar desejo (de certo
modo, ainda é, se pensarmos no discurso hipócrita e machista que prega, por um
lado, liberdade de direitos e, por outro, atribui às mulheres liberais sexualmente
nomes pouco elogiosos). Seu corpo era propriedade de seu senhor, seu dono ou
marido, e eram eles que decidiam como queriam usá-lo.
Hallews, assim como outras personagens cujo comportamento foge do
esperado, é punida com rejeição e morte, mais uma vez refletindo o ideário
medieval. Para ela, assim como para Morgana e para Galadriel, não há espaço na
sociedade. A importância dessas três personagens, no contexto das obras, é
justamente representar a força feminina, sempre associada ao uso de magia. Seja
pelo dom de penetrar na mente alheia e, ao mesmo tempo, oferecer conforto,
seja pela ambição a um poder masculino, seja pela vontade de livre-arbítrio de
seu corpo, Galadriel, Morgana e Hallews são fortes, por isso devem ser evitadas.
É interessante notarmos que a obra de Malory é a última publicada antes
do declínio da “matéria da Bretanha”. Mais do que uma simples coincidência,
talvez isso signifique o quão ultrapassados estavam o ideal da cavalaria, o amor
cortês e os modelos de conduta difundidos. A morte de Artur, mais do que um
retrato do século XV, é o registro escrito de uma era decadente.
Nesse sentido, afirmamos que Malory é menos conservador do que
Tolkien. Enquanto este parece tentar resgatar o heroísmo, a cavalaria e os ideais
maniqueístas cristãos, aquele revela o quanto tais valores não serviam mais.
Porém, se mais uma vez considerarmos o contexto de produção, veremos que tal
conjetura é explicável.
Enquanto Malory viveu numa época em que o indivíduo tinha pouca
liberdade, Tolkien presenciou duas grandes guerras. Foram dois períodos
difíceis, mas cada um a seu modo: para Malory, uma época em que qualquer
mudança da ordem social seria bem-vinda; para Tolkien, um período em que
todos os ideais de heroísmo e amizade
presentes no extinto código da
cavalaria
haviam se perdido.
Em relação às mulheres, Malory parece não apenas fazer o retrato de
uma época, mas sim escancarar o modo inadequado como elas eram vistas e
tratadas. A cavalaria de nada servia para salvar as mulheres da prostituição e da
exploração no trabalho doméstico.
Tolkien, em sua defesa dos valores perdidos, parece tentar resgatar
uma época em que o amor entre homem e mulher era indissolúvel, um período
em que o cavaleiro realmente protegia a honra de uma dama. Os papéis dos
sexos, bem definidos, eram aceitos sem que isso significasse opressão ou
inferioridade de qualquer das duas partes. O que podemos nos perguntar é se tal
época efetivamente existiu.
05.02. As rainhas: Arwen, Guinevere e Isolda
Damos seqüência às análises agora tendo como foco as rainhas.
Começamos por Arwen, a elfa por quem Aragorn se apaixona. Em O senhor dos
anéis, vemos que a jovem é filha de Elrond, senhor de Valfenda, onde ocorre o
conselho para decidir sobre o futuro do anel. Por meio de rápidas passagens
podemos inferir que Aragorn é apaixonado por ela e que, ao final da guerra do
Anel, os dois se casam.
Sua participação ativa na trama é pequena, se a comparamos com
Galadriel e Éowyn, por exemplo; apenas podemos saber mais sobre seu
envolvimento com Aragorn pelo Apêndice A, onde temos um relato intitulado
“Aqui Segue-se uma Parte da História de Aragorn e Arwen” (p. 1120).
Aragorn fugiu com a mãe, Gilraen, para Valfenda após a morte do pai.
Sabendo que o inimigo procurava pelo herdeiro de Gondor, Elrond mantém a
identidade do menino em segredo, criando-o entre os elfos.
Aos vinte anos, Aragorn encontra-se com uma maravilhosa elfa, bela a
ponto de ser comparada com Lúthien Tinúviel (personagem de O Silmarillion,
lendária por sua beleza e força de sedução):
No dia seguinte, na hora do pôr-do-sol, Aragorn caminhava
sozinho na floresta; seu coração estava leve e ele cantava, pois sentia-
se cheio de esperanças e o mundo era belo. E de repente, no momento
em que cantava, viu uma donzela caminhando num gramado por
entre os troncos brancos das bétulas; parou então assustado, pensando
que se tinha perdido num sonho, ou então que recebera a diva dos
menestréis-élficos, capazes de fazer com que as coisas por eles
cantadas apareçam diante dos olhos de quem os escuta.
Na verdade Aragorn estivera cantando uma parte da Balada de
Lúthien, que conta sobre o encontro de Lúthien e Beren na Floresta
de Neldoreth. E eis que Lúthien estava ali, caminhando diante de seus
olhos em Valfenda, vestindo um manto prata e azul, bela como o
crepúsculo em Casadelfos; seus cabelos escuros esvoaçavam num
vento repentino, e sua fronte estava cingida com pedras que pareciam
estrelas. (p. 1121)
A jovem afirma não ser quem ele pensa, mas diz que talvez seus destinos
sejam os mesmos, referindo-se à infelicidade no amor e à renúncia à
imortalidade. Apresenta-se, então, como Arwen, filha de Elrond; embora
Aragorn tenha morado no local desde criança, ainda não a conhecia, pois ela
havia morado nas terras da mãe, em Lothlórien, por muitos anos. A partir desse
momento, Aragorn passa a amar Arwen.
Gilraen percebe que algo está acontecendo com o filho e lhe pergunta a
respeito; informada do que se trata, a mãe adverte-o que Elrond não concordará
com a união, pois Arwen é de uma linhagem superior. Realmente, Elrond, ao
notar que Aragorn se apaixonou por sua filha, avisa-o sobre o destino sombrio
que lhe aguarda como herdeiro de Isildur. Afirma também que Arwen e ele não
podem ficar juntos, pois no fim dos dias dos elfos, todos partirão para as terras
imortais, inclusive ela.
Aragorn diz que a escolha de partir ou não diz respeito apenas a Arwen,
não a seu pai, e, por respeito e amor a Elrond, parte no dia seguinte. Por muitos
anos, Aragorn dedica-se a lutar pela defesa da Terra-Média. Aos noventa e
quatro anos de Aragorn,
26
antes que ele parta para as batalhas contra Sauron,
Arwen decide entregar-lhe seu coração e renunciar à imortalidade para poderem
ficar juntos.
Ao saber da escolha da filha, Elrond diz a Aragorn que seu futuro é
escuro, cheio de lutas e perigos, mas que ele deve agora reivindicar seu lugar ao
trono de Gondor, pois Arwen não merece casar-se com um simples mortal.
Na guerra contra Sauron, na batalha nos campos de Pelinore, Aragorn
empunha o estandarte dado pela amada. Após a derrota de Sauron, torna-se rei
de Gondor e casa-se com Arwen.
Juntos, Aragorn e Arwen governaram por muitos anos. Quando sentiu
que sua hora havia chegado, o rei despede-se de sua amada e parte para sempre.
Após a morte do marido, Arwen deixa Gondor e vai para a antiga floresta de
Lothlórien, onde agora as árvores secam e falecem. Com a queda das últimas
folhas, Arwen também deixa o mundo dos mortais.
Com Arwen, vemos uma espécie de representação do amor cortês
medieval, como na Demanda do Santo Graal. O amor entre a elfa e Aragorn não
é adúltero, mas é proibido pela tradição social. Embora Tolkien seja sutil em
suas descrições, notamos o quanto o desejo e o sexo são presentes; a perfeição
do amor cortês entre os dois estava em resistir a essa necessidade. Além disso, o
26
Em geral, os seres criados por Tolkien atingem idades avançadas, como os personagens bíblicos. Por
isso, Aragorn já é bastante longevo antes mesmo de partir para a Guerra do Anel.
sofrimento aparece ao longo de toda a trama ligado a esse relacionamento; o
próprio Elrond prevê que o futuro do casal será sombrio.
Esse elemento trágico é o que faz com que simpatizemos e “torçamos”
pelo amor dos dois, como ocorre com Lancelot e Guinevere. Se compararmos
Arwen a Éowyn, por exemplo, veremos que esta parece uma companheira mais
adequada para Aragorn. No entanto, a elfa é como uma musa para o guerreiro,
fonte de seus sonhos e dona do seu verdadeiro amor.
Ela também simboliza a quase perfeição feminina, bela, pura e de
linhagem superior. Por ser tão inatingível é que Aragorn sofre por amá-la, e é
também para tentar equiparar-se socialmente a ela, entre outros motivos, que ele
reivindica seu lugar ao trono de Gondor. Por mais importante que fosse, ele
precisa fazer valer essa importância e ser digno de casar-se com Arwen, uma
princesa élfica. É somente quando decide deixar de ser Passolargo, um simples
andarilho, e reassumir seu lugar de direito que Aragorn fica à altura – ou quase –
da amada. Em certa medida, a ascensão ao trono de Aragorn é uma
representação de uma prática social específica, ou seja, aquela que incentiva
(quando não obriga) a realização de uniões entre membros da mesma classe
social.
A história de Arwen, nesse ponto, assemelha-se muito à de Lúthien
Tinúviel, citada acima. Ambas se apaixonaram por um mortal, enfrentaram o pai
e, ao final, escolheram viver ao lado do amado em detrimento de uma vida
imortal com seu povo. Entretanto, salientemos que, no caso de Lúthien, a
desaprovação do pai é bem maior, já que este chega a pensar em matar o
companheiro da filha, Beren. A vida dos dois é bastante mais atribulada: Lúthien
vai com Beren em sua jornada atrás das Simarils, enquanto Arwen em nenhum
momento participa da Guerra do Anel. A escolha de Lúthien também é mais
rigorosa: ela escolhe realmente tornar-se mortal; Arwen, por sua vez, abre mão
de seu lugar nos navios que a levariam às Terras Imortais, mas continua sendo
elfa, tanto que tarda muito em deixar o mundo dos vivos. Por fim, os poderes de
Lúthien são superiores, talvez por ela ser de linhagem superior: seu pai Thingol
era um dos primeiros elfos, e sua mãe Melian era uma Maiar. o pai de Arwen
é meio-elfo, ou seja, com poderes mais limitados. Ainda assim, não levando a
genealogia em consideração, Lúthien desempenha um papel bem mais ativo na
trama de O Silmarillion do que Arwen em O senhor dos anéis, além de ser mais
sedutora.
27
A atuação maior de Arwen ocorre após seu casamento com Aragorn,
quando a então rainha concede a Frodo a oportunidade de ir às terras imortais,
juntamente com o restante dos elfos, e passar a eternidade merecida de um
portador de anel de poder. Assim como Galadriel, também presenteia Frodo com
uma jóia para reconfortá-lo.
Vou lhe dar um presente. Pois sou a filha de Elrond. Não vou
acompanhar meu pai quando ele partir para os Portos, pois a minha
escolha é a mesma de Lúthien, e como ela eu também escolhi tanto o
doce como o amargo. Mas você irá em meu lugar, Portador do Anel,
quando a hora chegar, se você assim quiser. Se seus ferimentos ainda
lhe doerem e a lembrança do fardo for pesada, então você poderá
permanecer no oeste até que todas as feridas e todo o cansaço estejam
curados. Mas use isto agora, em memória de Pedra Élfica e Estrela
Vespertina, cujas vidas se entrelaçaram com a sua.
E ela pegou uma pedra branca semelhante a uma estrela que estava
sobre o seu peito, pendurada numa corrente de prata, e a colocou em
volta do pescoço de Frodo. - Quando a lembrança do medo e da
escuridão o incomodar - disse ela -, isso lhe trará ajuda. (p. 1033)
27
Embora nossa pesquisa não seja especificamente sobre O Silmarillion, fizemos essa comparação para
mostrar, como foi dito acima, que as obras de Tolkien são todas relacionadas, tanto no que diz respeito ao
espaço das narrativas quanto aos temas.
Notemos que essa grande ação ocorre apenas depois de ela se tornar
rainha, o que lhe confere valor e poder. Se não tivesse rompido com o pai,
Arwen provavelmente seria para sempre “apenas” uma princesa. Essa figura da
rainha é significativa também no Graal, que é a falta ou a traição desta que
desmoraliza um rei. Não é esse o caso de Arwen, já que seu reinado foi glorioso.
O casal reina por muitos até a morte de Aragorn. Nesse momento, Arwen
passa talvez pelo seu maior sofrimento: ver tudo o que ama morrer e ser
obrigada a esperar até que todo o poder imortal contido nela se esvaia para que
possa finalmente repousar. Essa provação pode ser vista como um castigo;
contrariando o pai, ela consegue ficar ao lado do amado e ser feliz por um
tempo, mas paga com o resto de uma vida amarga e solitária. Também no
contexto medieval, as mulheres que rompiam com as regras sociais eram, de
alguma forma, punidas, seja com a exclusão, seja com castigos corporais ou até
mesmo com a morte. Em relação a essa última punição, voltemos a Arwen e
façamos um questionamento: a morte seria um castigo em todas as situações?
Afinal, de que adianta viver eternamente, como um elfo, sem qualquer
motivação?
Desenvolvamos, agora a análise de Guinevere, em muitos pontos
semelhantes à de Arwen. Filha do rei Leodegrance, Guinevere é escolhida por
Artur, uma vez que um rei de seu porte não deveria ficar sem consorte. O pai
entrega a filha de muito bom grado; a moça é levada a Artur e, como presente,
Leodegrance manda também a Távola Redonda.
Os dois se casam em uma grande festa; Artur afirma para Merlin que,
para ele, mulher mais bela e destemida não há. Guinevere, embora aprecie e
respeite os sentimentos do marido, não deixa de sentir alguma coisa pelo
principal cavaleiro do reino, Lancelot.
Durante um bom tempo, Lancelot conteve seu amor e seu desejo,
contentando-se em ser apenas o “paladino da rainha”; era do conhecimento de
todos, porém, que havia algo além de tanta dedicação.
Durante a busca do Graal, o cavaleiro jura entregar-se inteiramente à
demanda, porém, seus pensamentos voltam-se mais uma vez para Guinevere. Os
dois, então, “amam-se tão mais ardentemente do que antes e passam tantos
momentos íntimos juntos que toda a corte comentava a respeito” (p. 588,
tradução nossa).
28
Como foi dito acima, embora Guinevere seja, a princípio, considerada
uma personagem “boa”, ao final da narrativa, ela é uma das responsáveis pela
desonra de Artur
mostrando o comportamento contraditório apontado
anteriormente, na análise de Morgana. Sua primeira punição, por seu amor
adúltero, é ser acusada, numa trama engendrada por Agraveine e Mordred, de
tentar envenenar Sir Gawain. Por esse crime, ela é sentenciada a ser queimada
viva, a não ser que algum cavaleiro a defenda em uma contenda. Agravaine,
inclusive, comenta:
Sinto-me espantado por não nos envergonharmos em ver e saber o
quanto Sir Lancelot se deita dia e noite com a rainha, e todos os
sabemos bem; e é vergonhoso para todos nós, que todos sejamos
coniventes que um rei tão nobre quanto o Rei Artur seja tão
humilhado. (Le Morte Darthur, p. 646, tradução nossa)
29
28
No original: “they loved togydirs more hotter than they dud toforehonde, and had many such prevy
draughtis togydir that many in the courte spake of hit”.
29
No original: “I mervayle that we all be nat ashamed bothe to se and to know how Sir Launcelot lyeth
dayly and nyghtly by the Quene - and all we know well that hit ys so - and hit ys shamefully suffird of us
all that we shulde suffir so noble a kynge as Kynge Arthur ys to be shamed.”
O leitor, muito provavelmente, sabe que Lancelot irá salvar a vida da
amada; porém, o que é interessante nesse trecho é notarmos que Guinevere é
submetida a uma sentença dada por homens. Mais do que isso, Malory nos
mostra uma suposta igualdade de julgamento tanto para mulheres “comuns”
quanto para uma rainha.
É Agravaine quem revela a Artur a traição de sua esposa com seu mais
amado cavaleiro (no romance cortês, personagens como Agravaine são
chamados de maledicente). O rei pede, então, provas, negando-se a dar ouvidos
a quaisquer rumores maldosos sobre Lancelot e Guinevere. É possível que Artur,
na realidade, tivesse ciência do que acontecia entre os dois, mas, até que as
evidências fossem (mais) explícitas diante de toda a corte, preferia fazer-se de
desentendido; afinal, Lancelot lhe fizera muito bem, como cavaleiro, além de
dar felicidade a sua solitária rainha.
Confirmando a afirmação de Pereira (2003), a presença feminina na
narrativa está atrelada a um caráter de religiosidade e punição. Para Guinevere,
o amor verdadeiro encontra-se além dos laços matrimoniais, e se por um lado
Lancelot se redime na busca pelo cálice sagrado, por outro ele se perde nos
caminhos de seu amor proibido.
Em demandas com fundo religioso, principalmente, o cavaleiro deveria
evitar a presença feminina, o que explica a dedicação de Lancelot, em um
primeiro momento, à busca do Graal. No livro XVIII, inclusive, o cavaleiro opta
por conhecer e deitar-se com outras mulheres a fim de evitar comentários de
que ele se encontrava com a rainha. Guinevere a princípio fica enciumada,
mas quando o amado lhe explica suas razões, ela lhe pede que se afaste da corte.
No amor cortês, a ligação entre homem e mulher não é apenas carnal;
havia entre os dois certa identificação, intimidade que não havia no casamento.
Mais do que a conquista do objeto, da mulher amada, são importantes a relação
de vassalagem e o período de espera e pequenas recompensas (o guerredon).
Embora as regras do amor cortês contrariem a moral cristã, foi a própria a Igreja
que colaborou, de certa forma, para que amores assim existissem, uma vez que
o casamento religioso nada mais era do que um sacramento instituído, sem
muita consulta à vontade dos cônjuges. É por essa razão que Pereira (2003)
reafirma o amor cortês como uma “perfeição do espírito” que não era possível
por meio do casamento.
Embora em A morte de Artur os dois amantes sejam, de certa forma,
punidos (Lancelot e Guinevere terminam a narrativa isolados nos mosteiros de
Glastonbury e Almesbury, respectivamente, destinados a viver o resto de suas
vidas em castidade), a traição feminina é ainda mais pecaminosa do que a
masculina. A ex-rainha sente mais necessidade de perdão do que o ex-cavaleiro.
Lancelot ainda procura a rainha mais uma vez; ela pede para que ele não
mais o faça, e que procure uma dama e com ela se case. Guinevere afirma pedir
a Deus, em orações, para que a perdoe de seu amor
sincero, porém
pecaminoso
, e que, um dia, ela possa contemplar Sua face e Sua graça.
Guinevere morre antes de Lancelot, rogando a Deus que nunca mais possa ver o
amado novamente com “olhos mundanos”; também pede que seja, por fim,
enterrada ao lado do marido (enterrada simbolicamente, pois não se sabia ao
certo onde estava o corpo de Artur).
O castigo mais rigoroso e o arrependimento feminino mais notável é o
caso, também, da história de Tristão e Isolda, a bela (esta característica é
salientada na narrativa todas as vezes em que se faz referência à jovem). Dadas
as semelhanças com a história de Guinevere e Lancelot, pouco resta a ser dito
em relação a Isolda. Salientemos que, a princípio, este conto não fazia parte do
ciclo arturiano; quando incorporado, Tristão passa a ser um dos cavaleiros da
Távola Redonda.
Talvez a história entre Isolda e Tristão seja mais dramática do que a de
Guinevere e Lancelot ou mesmo a de Arwen e Aragorn, uma vez que os
amantes apaixonaram-se antes de saber o que o destino lhes reservava. Há ainda
o fato de a moça ter salvo a vida do rapaz, o que aumentou a proximidade e o
conseqüente sentimento entre eles.
No caminho para a Cornualha, o casal acaba bebendo, acidentalmente,
uma espécie de poção do amor dada pela mãe de Isola segundo ela, a bebida
deveria fazer com que a filha e o futuro marido se amassem para sempre. O que
acontece, como previsto, é que Tristão e Isolda acabam se entregando ao amor
carnal.
A jovem se casa com o tio de Tristão, o rei Mark; o amado passa a ser
seu paladino protetor, assim como Lancelot o era de Guinevere. Salva-a de
muitos apuros, dentre eles o mais significativo: a colônia de leprosos.
Como se sabe, a lepra é uma doença infecciosa que atinge os nervos e a
pele. Durante muito tempo, foi considerada uma espécie de castigo divino,
incurável e mutilador. Por essa razão, os doentes eram isolados em leprosários.
Ao exilar a esposa em um local como esse, o rei Mark não desejava que
ela morresse simplesmente; ao contrário, desejava que ela vivesse privada de
seu principal atrativo: a beleza. Foi dito acima que Isolda é sempre
caracterizada como “a bela”, tanto que a descrição de seus atributos chega até
mesmo aos ouvidos da rainha Guinevere. Destruindo a beleza e o apelo sexual
da esposa, o rei Mark objetivava destruir o amor de Tristão por ela.
Mais uma vez vemos uma mulher submetida ao jugo masculino. Sua
punição, sem dúvida, é mais torturante que a de Guinevere. Porém, Tristão
consegue salvá-la, como fará tantas outras vezes, mesmo sendo ameaçado de
morte. O fim da jovem é mais condizente às características do amor cortês:
Tristão e o rei Mark matam-se em um combate, e Isolda morre lamentando o
destino do amado.
Nas obras, a importância de Arwen, Guinevere e Isolda é representar o
motivo pelo qual os homens vivem e lutam. Aragorn se torna rei para estar à
altura da elfa amada; Lancelot dedica-se em suas demandas para sublimar seus
pensamentos e, ao mesmo tempo, ser motivo de orgulho para a rainha; Tristão
reforça seu caráter cada vez que salva sua bela amada, ou ainda, quando é capaz
de estar ao lado dela e honrá-la acima de seu amor. Essas três personagens, com
suas contradições comportamentais, são, ao mesmo tempo, razão e
desequilíbrio: razão para atos bravos e corajosos, desequilíbrio ao despertarem e
nutrirem sentimentos que contrariem as regras sociais.
Se traçarmos um paralelo entre as análises, vemos que Guinevere se
encontra entre a presença sedutora, passional e trágica de Isolda e o sentimento
glorioso, perfeito e sublimado de Arwen. Isolda e Arwen, embora representem o
amor cortês, distanciam-se na forma como essa representação é feita, de forma
mais ou menos carnal. O caráter proibitivo em Tristão e Isolda é mais forte, uma
vez que, nesse caso, o romance entre eles era adúltero. E embora Arwen, como
já foi dito, termine seus dias sozinha, o desespero de Isolda parece mais agudo.
Antes de passarmos às outras análises, é interessante ressaltarmos um
aspecto dos relacionamentos amorosos acima: com exceção de Aragorn, os
homens não são totalmente fiéis a suas damas; ainda assim, juram amá-las
acima de qualquer outra mulher. Elas acreditam em tal juramento e honram-no
com sua fidelidade. Para Lancelot e Tristão – e para a temática cortesã como um
todo -, era aceitável que se deitassem com outras mulheres para atender a seus
desejos físicos. Guinevere e Isolda, por sua vez, deveriam se manter intocadas
(com exceção do contato com seus maridos) e preservadas para eles. Mais uma
vez, vemos a diferença de conduta esperada
num mesmo contexto
para
homens e mulheres.
Finalizamos esta seção com um questionamento em relação a Arwen,
desenvolvido também em relação a Éowyn, a próxima personagem a ser
analisada. É interessante o fato de a elfa só realizar grandes feitos após se tornar
rainha, o que pode nos levar a pensar se as mulheres são notáveis após o
casamento. Por outro lado, se analisarmos Éowyn, a terceira personagem
feminina da obra, apresentada a seguir, vemos que com ela ocorre o contrário —
ou seja, ela realiza um feito notável antes do casamento. A nosso ver, esse fato
não seria contraditório, pois os papéis iniciais de Arwen e Éowyn são distintos.
Desenvolveremos mais essa questão abaixo.
05.03. As “mulheres comuns”: Éowyn e Rosinha
A terceira mulher de O senhor dos anéis a ser apresentada é Éowyn,
sobrinha do rei Théoden de Rohan. Essa personagem aparece no segundo livro,
As duas torres, e acaba por desempenhar um papel importantíssimo ao final da
trama.
Segundo sua descrição, na gina 504, Éowyn possui olhos pensativos,
frios, pele pálida e cabelos cor de ouro. Ainda assim, com todo esse aspecto
frágil de uma manhã primaveril, pareceu a Aragorn forte como aço, uma
verdadeira filha de reis. O herdeiro de Isildur, por sua vez, também não passou
despercebido pela moça.
Posteriormente, ela recebe parte dos cavaleiros vitoriosos da batalha no
desfiladeiro de Rohan, e dedica atenções especiais a Aragorn. Ao perceber o
interesse especial que ela lhe tem, ele se perturba, já que ama outra, mas
continua tratando-a com respeito e afeição. Em um diálogo entre os dois, temos
uma das falas mais características da personalidade de Éowyn:
ouvi demais sobre deveres [...] Mas por acaso não sou da Casa
de Eorl, uma escudeira e não uma ama-seca? [...] Serei sempre
deixada para trás quando os Cavaleiros partem, para cuidar da casa
enquanto eles ganham fama, e para preparar-lhes cama e comida,
esperando seu regresso? [...] (Eu temo) Uma gaiola [...] Ficar atrás de
grades, até que o hábito e a velhice as aceitem e todas as
oportunidades de realizar grandes feitos estejam além de qualquer
lembrança ou desejo. (p. 828-829)
Dessa forma, contrariando toda a tradição do lugar da mulher na
sociedade
em casa, esperando os guerreiros voltarem e cuidando de seus
afazeres
, Éowyn parte para o campo de batalha disfarçada de cavaleiro e
com o nome Dernhelm. É nos campos de Pelinore que ela realiza provavelmente
a maior de suas proezas: matar o chefe dos Cavaleiros Negros. Dizia-se que
nenhum homem poderia causar mal a um Nazgûl, e é com grande satisfação que
o jovem cavaleiro que acompanha Merry anuncia que não é um homem, mas
sim uma mulher. “Mas não sou um homem mortal! Você está olhando para uma
mulher. Sou Éowyn, filha de Éomund” (p. 890). Ela o ataca e, com a ajuda do
hobbit, acaba com o inimigo.
30
Entretanto, Éowyn não escapa ilesa da luta com a criatura maligna.
Gravemente ferida, é levada para as casas de cura, onde outro fato significativo
ocorre. Enquanto espera ansiosa para que se cure e possa voltar à batalha,
conhece Faramir, o irmão mais jovem de Boromir. O rapaz fica completamente
encantado, enquanto ela parece preocupar-se apenas com o que está acontecendo
nos arredores de Mordor. Aos poucos, os dois se aproximam, até que ele se
declara a ela. Éowyn, por sua vez, admite querer ser amada por Aragorn, mas
aceita o carinho de Faramir e abre seu coração à possibilidade de um novo amor.
Após os funerais de Théoden, depois que toda a guerra do anel já havia acabado,
Éomer anuncia o casamento entre os dois.
Podemos perceber claramente que Éowyn se identifica com alguns
aspectos da figura da donzela guerreira descrita por Galvão (1998). A primeira
característica em comum é o pacto com o pai, nesse caso com o tio, que ela é
órfã. Éowyn dedica sua juventude a cuidar de Théoden, cumprindo todas as suas
vontades em relação ao reino. É ela quem sempre é escolhida para ficar e cuidar
de Rohan quando os homens vão para a batalha. Ainda em relação ao amor filial
que Éowyn nutre por Théoden, é interessante lembrarmos que foi a vingança
pela morte do tio que a levou a enfrentar abertamente o chefe dos Nazgûl.
30
É possível estabelecermos um paralelo entre o destino de Éowyn, em relação à morte do zgul, e
Macbeth, que a este “ninguém nascido de mulher pode fazer mal”
30
(SHAKESPEARE, Quarto Ato,
Cena I). Entretanto, ao final, é morto por um Macduff que havia sido arrancado antes do tempo do ventre
da mãe, ou seja, não havia nascido naturalmente. Vemos que, nos dois casos, é um jogo de palavras e
sentidos que determina o destino das personagens.
Entretanto, uma outra figura masculina passa a dividir com Théoden o
amor da donzela: Aragorn, herdeiro de Gondor. Podemos interpretar esse amor
como uma transferência do amor filial, ou seja, Éowyn passa a amar Aragorn
por ele refletir as características admiradas no pai/tio. Ainda assim, mesmo
apaixonada, ela não deixa de querer lutar. É motivada por ele e por seu
sentimento que Éowyn parte para a batalha disfarçada de cavaleiro e com o
nome de Dernhelm. O nome é bastante expressivo, já que significa “cavaleiro do
segredo”. Éowyn é uma donzela que guarda dentro de si uma alma de cavaleiro?
Ou uma armadura de cavaleiro que traz escondida uma donzela? Qual seria a
verdadeira identidade de Dernhelm? Este é o paradoxo de seu comportamento.
Frisemos que, embora ela se vista de homem, o processo de
masculinização não é total, que a donzela mantém seus longos cabelos loiros.
No contexto da obra, porém, tal fato não é tão significativo, uma vez que os
homens, elfos e anões também tinham cabelos compridos.
Em relação a Faramir, a situação é bastante diferente. Ao aceitar seu
carinho e abrir-se a uma nova possibilidade de amar, Éowyn deixa de pensar em
campos de batalha e conforma-se em ser “apenas” sua esposa.
Naquele momento o coração de Éowyn mudou, ou então finalmente
ela percebeu a mudança. E de repente seu inverno passou e o sol
brilhou para ela.
Estou em Minas Anor, a Torre do Sol - disse ela -; e eis que a
Sombra partiu! Não serei mais uma escudeira, nem competirei com
os grandes Cavaleiros, e deixarei de me regozijar apenas com
canções de matança. Serei uma curadora, e amarei todas as coisas que
crescem e não são estéreis. Outra vez olhou para Faramir. Não
desejo mais ser uma rainha — disse ela.
[...] E [Faramir] tomando-a nos braços beijou-a sob o céu
ensolarado, sem se preocupar se estavam sobre a muralha, num ponto
alto, à vista de muitas pessoas. (p. 1023)
O beijo de Faramir é como uma espécie de “autorização” para um
relacionamento maior. Éowyn sente-se enfim curada não apenas da ferida
provocada pelo Nazgûl, mas sente também que a sombra e a frieza de seus olhos
deixaram-na para sempre. Assim, ela rompe o pacto com o pai e, de acordo com
Galvão, seu casamento mata a donzela guerreira e faz nascer a mulher. De fato,
Éowyn, a partir de então, resigna-se ao papel feminino esperado e, em relação à
dicotomia mulher santa/mulher pecadora, Éowyn assemelha-se mais ao primeiro
tipo, com sua beleza pura e clara de manhã de primavera. Ela afirma também
que passará a ser uma “curadora”, outro papel feminino social característico das
mulheres (basta pensarmos nas enfermeiras nos tempos de guerra).
Em relação ao questionamento feito na seção acima, em relação ao
“estado civil” da mulher e a realização de grandes feitos, é mais evidente agora o
porquê de a situação de Éowyn ser diferente da de Arwen (e, por isso, o fato de
esta ser notável após o casamento e aquela antes não é contraditório).
Arwen era uma princesa e, mesmo sendo de linhagem nobre, esperava-se
que se casasse e, um dia fosse rainha (dos elfos ou dos homens). É natural que,
na casa de seu pai, Elrond, seu papel fosse pequeno, até mesmo meramente
decorativo. Ao casar-se com Aragorn, torna-se, efetivamente, rainha de Gondor;
ao lado do marido, reina e exerce seu poder. Arwen é um exemplo da mulher
que não deseja o poder para si, mas para seu consorte, e é somente ao lado dele
que o reinado prospera.
Éowyn, a princípio, era uma donzela guerreira e, como tal não se
destina ao matrimônio, podia ir para batalha e realizar ações grandiosas. Após
casar-se com Faramir — que, ressaltemos, é apenas capitão do exército de
Gondor, não o rei —, ela assume seu papel “normal” de mulher, como afirma
Galvão. Resumidamente, a trajetórida de Éowyn e Arwen é inversa. Assim,
podemos voltar a nosso questionamento, o qual deixaremos ainda em aberto: por
que às mulheres comuns é destinado apenas o anonimato? E seria esse um
destino reservado apenas às mulheres?
No tocante às mulheres comuns, como podemos analisar a hobbit
Rosinha? Sabemos que ela aparece pouquíssimo ao longo da narrativa de O
senhor dos anéis, e que falar do casal Rosinha e Sam é quase impossível sem ao
menos mencionarmos a figura de Frodo.
Rosinha é a hobbit para quem Sam afirma querer voltar ao final da
guerra do anel. Quando isso finalmente acontece, ela demonstra alegria em vê-lo
de volta são e salvo, e certa irritação pelo fato de ele ter estado fora tanto tempo,
na companhia de Frodo, e não ter se importado com ela. Sam e Frodo ainda
precisam livrar o condado e alguns inimigos, o que faz com que a mocinha tenha
que esperar mais um pouco. Frodo nota que ela sorri para Sam e que seus olhos
brilham.
Finalmente, Rosinha pergunta a Sam, indiretamente, quanto tempo mais
ele pretende esperar, e deixa claro que não gosta do fato de ele estar sempre fora
de casa. Sam fica dividido entre morar com Frodo, em Bolsão, ou casar-se com a
amada. Frodo sugere que ele faça os dois: case-se e morar com a esposa em
sua casa. Sam e Rosinha finalmente se casam e realmente vão morar com Frodo;
os dois têm vários filhos.
É interessante notar que, mesmo após se casar, Sam continua
demonstrando uma grande preocupação com o amigo. Nota quando este se sente
mal (devido aos ferimentos recebidos na guerra do anel), ajuda-o em todas as
tarefas e, ao final, passa pelo momento mais dramático da amizade dos dois: a
separação. Frodo parte para os Portos Cinzentos, deixando Sam para cuidar do
Condado sozinho
ou melhor, ao lado da mulher.
O triângulo Sam, Rosinha e Frodo, freqüentemente, é visto como palco
de relacionamentos estranhos, mal resolvidos. Pergunta-se por que Sam
demonstra maior dedicação para com Frodo do que com a mulher com quem se
casa. Além disso, por que pensa tão pouco nela durante sua aventura?
Ora, se pensarmos que o local e a situação em que Sam se encontrava
eram inóspitos, seria romântico demais supor que haveria tempo para pensar na
mulher amada nesse contexto
cena romântica típica de cinema. Havia a
preocupação em salvar a própria vida, acima de tudo.
No tocante ao relacionamento com Frodo, Smol (2004) e Rosenthal
(2004) apontam, em seus estudos, que O senhor dos anéis, antes de indicar
homossexualidade, retoma valores de amizade e intimidade entre homens,
comuns na Idade Média e no Período Vitoriano. Tais sentimentos, segundo a
autora, são comuns em tempos de guerra
tempos esses vividos tanto por
Tolkien quanto pelos personagens. Os soldados, longe de tudo aquilo que amam,
apegam-se aos companheiros de batalha; é comum, nesse sentido, relatos de
soldados que se esforçaram ao máximo para salvar a vida de um colega e,
inclusive, esperaram a seu lado até que este morresse em seus braços.
31
Além disso, lembremos que Tolkien tenta resgatar valores da cavalaria
medieval e, de certo modo, mostrar aos jovens um modelo de conduta. Nesse
contexto, eram ressaltadas qualidades como bravura, coragem, lealdade; não
31
Um dos cartazes do filme O Retorno do Rei ilustra justamente essa cena: Sam com Frodo
convalescendo em seus braços.
havia espaço, na mente do cavaleiro, para pensar em mulheres – tanto que,
quando Lancelot o faz, por exemplo, seus objetivos se perdem. Em suas cartas, o
autor deixa claro que considera a amizade um sentimento superior ao amor.
Sam e Rosinha, ao contrário de outros casais analisados, não são
representações do amor cortês. É claro que o hobbit é bastante apaixonado pela
moça, porém, não nutre por ela sentimentos de idealização e subordinação; sua
conduta de vassalo é para com seu melhor amigo, Frodo. Além disso, havia
entre eles também uma hierarquia: Sam era jardineiro de Frodo (embora este
tratasse aquele como igual). Nesse contexto, mais próximo de moldes feudais do
que amorosos, a mulher é menos importante do que o senhor.
Por fim, pelos valores católico-conservadores de Tolkien, é pouco
provável que retratar um relacionamento homossexual fosse sua intenção. Aqui,
façamos uma observação importante: talvez não fosse essa a idéia do autor, o
que não desautoriza seus leitores a interpretarem desse modo. Dado o contexto
da obra, é bem pouco possível tal interpretação, porém, de se considerar que
existem sim diversas possibilidades de análise. O que não se pode permitir é a
restrição de nosso olhar a uma interpretação “correta”. Nesse sentido, são
infrutíferas as intermináveis discussões acerca daquilo que Tolkien quis (ou não)
dizer.
Quanto ao relacionamento sexual entre Sam e Rosinha, este não é citado.
Sabemos que, de fato, eles consumaram o casamento, uma vez que tiveram
vários filhos. A figura central do matrimônio é masculina, embora nesse caso, a
hobbit pareça ter mais iniciativa do que Sam. A mulher se restringe ao seu papel
sócio-cultural (com exceção de Éowyn): esperar que o amado volte, torcendo
para que ele esteja bem.
O sexo, ao fim da jornada, é como uma recompensa: o homem retorna e
encontra uma mulher esperando-o, pronta para satisfazê-lo e diverti-lo (como
ocorria com os cavaleiros medievais ao retornarem para suas casas). Notemos
que, pelo modo como são expostos os fatos na narrativa, o sexo parece ser bem
aceito apenas em relações matrimoniais. Personagens que não se casam
como
Bilbo, Frodo, Legolas e Gimli
são privados desses prazeres carnais.
Aqui, voltemos a nosso questionamento anterior, relacionado ao
anonimato das mulheres “comuns”, e analisemos dois aspectos nesse sentido. O
primeiro diz respeito à citada ausência feminina em grandes feitos. Mulheres
como Éowyn se destacam ao assumirem papéis primordialmente masculinos
e após passarem por testes que provem sua capacidade. As rainhas, por sua
vez, ganham ênfase após o casamento. Mulheres como Rosinha, porém, não
ganham destaque algum. Sua única importância é garantir a perpetuação da
espécie.
Por outro lado, é necessário pensarmos até que ponto as aventuras e
guerras são o mais importante. É claro que, para um guerreiro, realmente o são.
Entretanto, após buscas e batalhas, faz parte da trajetória do herói voltar para
casa. Ou seja, ressalta-se a importância de se viver aventuras e demandas, mas
ao mesmo tempo salienta-se o importante papel do lar, da esposa, símbolos de
estabilidade e equilíbrio em tempos conturbados.
Acima de tempos de guerra ou paz, parece-nos é que a importância do
papel da mulher também está ligada à classe social a que ela pertence. Galadriel
era uma autoridade da classe mais nobre dos elfos; Arwen, Guinevere e Isolda,
princesas que se tornaram rainhas; Morgana e Hallews, feiticeiras, além de
qualquer paralelo com o mundo “normal”; Éowyn, filha de reis de Rohan.
Sobra-nos apenas Rosinha, pertencente à raça mais simples e esquecida
da Terra-média, os hobbits. Tão ínfima era sua participação social que, quando
descobrem que é Frodo quem carrega o anel, chegam a duvidar de sua
capacidade. Como esperar, então, que uma hobbit fêmea tenha algum destaque?
Cremos que a associação poder/classe social/sexo é extremamente pertinente,
uma vez que a literatura é um reflexo da sociedade que a produz e um
instrumento potencial para o estudo da história.
06. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse trabalho, tentamos investigar a mulher nas obras A morte de Artur, de
Malory, e O senhor dos anéis, de Tolkien. Por meio da análise comparativa das duas
obras, pudemos vislumbrar como as personagens femininas em Tolkien e Malory se
assemelham, em alguns aspectos, e como são realmente uma significativa representação
de parte do imaginário medieval, por meio de seus papéis dentro da trama.
Escolhemos a obra de Malory por ser esta o ponto alto da matéria da Bretanha na
Idade Média, em língua inglesa. No caso de O senhor dos anéis, após a leitura nos
pareceu claro o diálogo com diversos elementos medievais e, em especial, do ciclo
arturiano. Escolhemos uma obra do século XX, em vez de tantas outras da Idade Média,
justamente para analisarmos melhor esse diálogo, considerando as personagens de
Tolkien como reelaboração de representações da Idade Média, não como personagens
medievais propriamente ditas.
Mesmo cientes do fato de, com certa freqüência, a obra de Tolkien ser considerada
um gênero menor de literatura, acreditamos na importância de nossa análise. Como
foi mencionado, o trabalho com a palavra e a intertextualidade com mitologia, religião e
outros textos são, para nós, fatores suficientemente convincentes de que O senhor dos
anéis merece um estudo mais atento. Cremos ser tempo de as pesquisas acadêmicas
relativizarem seu olhar desconfiado
até mesmo
preconceituoso
e se voltarem para
novas narrativas e novos suportes onde estas se manifestam.
Nesse sentido, além das análises apontadas e de nosso objetivo inicial, ao longo
de nossa pesquisa pudemos vislumbrar outras possibilidades para futuros trabalhos
acadêmicos. Especificamente em relação a A morte de Artur, um aspecto interessante
seria a análise comparativa da obra de Malory com outra do ciclo arturiano. Ainda na
esteira dos estudos de gênero, pensamos em As brumas de Avalon (1979), de Marion
Zimmer Bradley; o interessante, nesse caso, seria verificar, além da representação das
personagens do ponto de vista de um autor e de uma autora, a mudança de foco
narrativo
em sua obra, Bradley dá voz a Morgana.
Em relação a O senhor dos anéis, é pertinente um estudo que enfoque os
elementos mitológicos e/ou religiosos, visto que é bastante clara a relação, por exemplo,
entre Galadriel e Nossa Senhora, ou de outras personagens com deuses (nesse último
caso, referimo-nos a personagens de O Silmarillion). Além disso, no Brasil, ainda não
um trabalho que aborde a obra completa do autor, com levantamento de fortuna
crítica.
Uma outra possibilidade, comum às duas obras de nosso corpus, é o estudo de
novas adaptações em diversos suportes: quadrinhos, música, jogos eletrônicos, jogos de
RPG, jogos de tabuleiro, fan-fictions, peças teatrais, action figures, entre outros. Como
mostramos anteriormente, é notável a quantidade de releituras feitas a partir do mito
arturiano e de O senhor dos anéis.
O interessante, no caso desses produtos, é justamente a possibilidade de se
expandir a narrativa do romance, seja visual ou verbalmente. Ou ainda, criar novas
narrativas a partir da obra original — ou talvez melhor seria dizermos “obra matriz”.
Voltando a nossas análises, pudemos verificar, além da medievalidade, a presença
de elementos mitológicos, religiosos, alguns contextualmente marcados e outros
contemporâneos, que mostram como a literatura é questionadora de valores, por um
lado, ou trabalha por sua manutenção, por outro.
O questionamento é mais visível em Malory, autor do século XV, fruto de uma
sociedade em ruínas, que pregava ideais retrógrados e pouco adequados ao momento
que surgia, o Renascimento. Se por um lado havia o florescer cultural e artístico, por
outro, a condição feminina continuava estagnada
em alguns casos, até pior, se
pensarmos em países que sofreram com a Inquisição. O julgamento medieval das
mulheres estava longe de ser parcial e justo; em vez disso, tratava-se de opiniões de
eclesiásticos que, temerosos de perder seu poder, subjugavam a mulher.
Morgana, nesse sentido, representa o medo masculino ante a sexualidade e a
liberdade femininas. A irmã do rei deseja o poder para si, e faz o que é necessário para
alcançá-lo, o que provoca o descontentamento para não dizer o ódio dos cavaleiros
de Camelot. No entanto, esses mesmos cavaleiros matavam e derramavam sangue em
nome do rei ou, bastante freqüentemente, em nome de seu orgulho e moral, numa
conduta semelhante à da feiticeira. Por que condenavam-na, então?
Hallews também simboliza a sexualidade reprimida
e, no caso dela, pervertida.
A necrofilia, hoje considerada um ato hediondo, mostra o quanto a mulher era confusa
em relação ao corpo, ou melhor, àquilo que podia fazer com seu corpo e o do homem. É
punida com a morte; o desejo é transformado num cadáver.
A morte de Artur, nesse sentido, mais do que retratar o ideal de comportamento na
sociedade cavaleiresca, mostra como essa mesma sociedade aprisionava as mulheres por
meio de casamentos, obrigações para com seu senhor (no caso das servas) ou
juramentos de fidelidade eterna a cavaleiros que morriam em seus braços.
Guinevere e Isolda são aquelas que quebram com esse juramento. Buscam a
realização amorosa, não a matrimonial
embora, em nenhum momento, pensem em
abandonar seus maridos para isso. O “final feliz”, nesses casos, não existe; ambas
terminam afastadas de Lancelot e Tristão, respectivamente. É notável também a
quantidade de desventuras ocorridas ao longo de suas narrativas, mostrando o caráter
doutrinador e punitivo da sociedade medieval em relação à mulher adúltera.
Além dessas personagens, muitas outras mulheres que passaram pelas páginas
de A morte de Artur; poucas, todavia, são as que receberam destaque, ou até mesmo um
nome. Para o retrato que Malory pretendia traçar, não interessavam as mulheres
“normais” tanto que, na última seção de nossa análise, não personagens suas.
Dessa forma, podemos notar também o quanto a figura feminina na Idade Média é, ao
mesmo tempo, presente e anônima.
Tolkien, por sua vez, tendo lutado numa guerra e visto o filho ser enviado a outra,
além de ter sido educado num catolicismo rigoroso, demonstra uma visão bastante
distinta de Malory no que concerne a ideais relacionados ao comportamento, amizade e
relacionamento entre os sexos. Mesmo que, muitas vezes, os papéis das mulheres em O
senhor dos anéis e A morte de Artur se assemelhem, o desenrolar da trama mostra-nos
outro tipo de cuidado com as personagens femininas daquele. As mulheres, em Tolkien,
são intimistas, voltam-se a seus interiores, apenas ou seja, restringem-se ao modelo
do papel feminino. em Malory, as personagens deixam de se interessar apenas por
seu íntimo para transitar à vontade pelo espaço externo.
Assim como Guinevere e Isolda, Arwen também rompe com os padrões da
sociedade em que vive, uma vez que desobedece o pai em nome da realização amorosa.
Embora seu fim seja solitário
passar a eternidade numa floresta até que a última folha
da última árvore caia
, ela pôde, ao contrário das duas outras personagens citadas,
gozar, em vida, de um casamento com amor, glorioso em poder e respeitado pelo povo.
Éowyn realiza seu desejo de lutar em campo de batalha, como um cavaleiro;
cumprida sua vontade, é hora de voltar ao papel feminino que lhe cabe: casar-se com
um cavaleiro honrado e servi-lo, cuidando de seu jardim. E é com satisfação e alegria
que a nobre dama de Rohan o faz.
Por meio dessas duas personagens, vemos a tentativa de Tolkien em resgatar
ideais há muito perdidos, de felicidade, realização, respeito conjugal e fidelidade, dentro
de certas normas comportamentais. A mulher até pode realizar suas vontades, desde que
estas não atinjam sensivelmente o status quo.
Por meio da ficção, em Arwen e Éowyn, Tolkien parece deixar claro o que
afirmava para seu filho Michael: não pode existir amizade os sexos. A mulher deve ser
vista como um ser inatingível
papel cuja maior representante é Galadriel
numa
conduta cavaleiresca incomum em pleno século XX, mais uma vez mostrando a
tentativa de retomada de valores arcaicos. Rosinha, a mulher que espera, que ama com
calma, é o perfeito modelo de resignação e paciência depreendido da análise da
narrativa.
As personagens aqui estudadas, mais do que simples retratos de certos papéis ou
estereótipos, são representações em potencial do contexto que as produziu. O que vemos
é que, seja no século XV ou no XX, o comportamento feminino é alvo de curiosidade,
medo ou atração. E que, na Idade Média ou Contemporânea, as ações das mulheres
passam pelo jugo masculino. Mesmo após o movimento feminista e a conquista de
tantos direitos, ainda enfrentamos questões como diferenças de direitos e abusos.
Após a análise das obras de nosso corpus e a prévia investigação sobre o papel da
mulher, as conquistas feministas, a crítica e os estudos de gênero, podemos perceber,
por fim, que os estudos de gênero, embora tenham rendido bons frutos, carecem de
outros trabalhos. Dada a inegável importância feminina na construção das civilizações e
dos valores sociais, torna-se indiscutível a necessidade de interesse acadêmico sobre
esse tema. A questão da mulher permanece ainda em aberto, seja na Antropologia, na
História, na Política ou na Literatura.
Se a escolha do cânone, a representação das mulheres e a contagem dos fatos
sempre foram feitas sob o ponto de vista masculino, é realmente tempo de revermos a
literatura sob outro prisma. Em tempos pós-modernos, nada mais apropriado do que
continuar a erguer uma voz por tanto tempo silenciada e considerar a representação das
mulheres como sendo um aspecto bastante significativo.
ANEXO
01. Resumo do enredo de O Silmarillion
Com The Silmarillion (1977), Tolkien afirmava tentar criar uma mitologia para a
Inglaterra, já que, devido ao fato de os povos saxões possuírem uma cultura
predominantemente oral, grande parte de sua tradição foi perdida.
Semelhantemente ao Gênesis bíblico, em The Silmarillion é narrada a história
da criação de um mundo por Eru Ilúvatar, espécie de deus supremo. Por meio das
canções entoadas pelos Valar, os espíritos angélicos, Ilúvatar criava. Contemplando sua
criação, os Valar admiram-se de tal forma que decidem viver neste novo mundo. Os
catorze mais poderosos, sete machos e sete fêmeas, recebem nomes. São criadas
criaturas belíssimas e altivas, os elfos, os primeiros filhos de Ilúvatar.
Entretanto, de modo semelhante a Lúcifer na tradição cristã, um dos Valar
chamado Melkor (posteriormente Morgoth) deseja corromper e criar as coisas e seres a
seu modo. Ao lado da aracnídea Ungoliant, Melkor espalha as trevas pela face do novo
mundo. Tentando criar seus próprios seres, acaba corrompendo a natureza de tal forma
a dar vida aos orcs.
Os elfos são convidados a viver protegidos em Valinor, a terra dos Valar. Ao
longo de sua jornada até lá, a espécie vai se dispersando e formando novos grupos. Um
dos elfos chegou a casar-se com Melian, uma Maiar (ajudante dos Valar) e com ela tem
uma filha: Lúthien Tinúviel.
No paraíso dos Valar, Fëanor, um dos elfos mais talentosos no trato com metais
e pedras preciosas, cria as Silmarils, que, além de darem nome à obra, continham a luz
das duas árvores de Valinor. As jóias acabam por provocar diversos problemas, como o
ataque de Melkor e Ungoliant, que roubam estas pedras preciosas, e a extinção das duas
árvores e de sua luz. A aranha maligna devora todas as Silmarils, com exceção de uma,
que Melkor coloca em sua coroa.
Após uma grave discussão com os Valar, que lamentavam pelo destino da terra,
Fëanor é banido de Valinor, assim como todos os outros elfos que optam por ficar a seu
lado. Muitas disputas, algumas até resultando em mortes, surgem durante a marcha dos
elfos pelo mundo.
Durante esse tempo, outros seres são criados. Uma das espécies havia sido feita
antes mesmo dos elfos, mas mantida sem vida até o momento considerado adequado.
Foi Aulë quem, semelhantemente a Prometeu, havia esculpido essas criaturas: os anões.
Entretanto, como os primeiros seres deveriam ser os elfos, Manwë resolve destrui-los.
Ao final se compadece e decide mantê-los inteiros, esperando pela hora de serem
animados. Os ents, os pastores de árvores, vivem nas florestas da senhora Yavanna. Por
fim, são criados os homens, semelhantes aos elfos em compleição e estatura, porém
mais frágeis a ferimentos e mortais.
A história segue narrando os acontecimentos que sucederam a expulsão dos
elfos e o relacionamento (não muito amistoso) entre os seres da Terra-Média. Conta-se
como se deu o fim de Melkor e a destruição de Númenor, antiga ilha dos homens, por
um dilúvio tão potente quanto o bíblico.
Ao final, fala-se sobre a origem dos chamados anéis de poder e sobre a Terceira
Era da Terra-Média, período em que se passa a história de The Lord of the Rings.
02. Sobre a criação de línguas e a importância dos nomes na obra de Tolkien
“A invenção do idioma é o fundamento... Para mim, o nome vem em primeiro
lugar e a história se segue” (STANTON, 2002, p. 15). A declaração acima, atribuía a J.
R. R. Tolkien, demonstra seu amor pelo estudo das línguas. Conhecedor de mais de
vinte idiomas (grego, latim, lombardo, gótico, rdico, sueco, norueguês, dinamarquês,
anglo-saxão, inglês médio, alemão, holandês, francês, espanhol, italiano, galês, russo e
finlandês), se considerarmos as modalidades antiga e moderna, Tolkien chegou a criar
14 outras línguas — segundo Ruth Noel, autora de The Languages of Tolkien's Middle-
earth, de 1980 — a partir de elementos destas.
Segundo Tolkien, a base de criação de sua obra foi “fundamentalmente
lingüística” (Letters of J.R.R. Tolkien, p. 219, tradução nossa). A fala comum da Terra-
média ou seja, a parte em inglês do texto é o Westron. O quenya é uma variante
élfica usada para ocasiões formais; o sindarin é usado pelos elfos cinzentos. Essas duas
últimas línguas foram influenciadas pelo finlandês e pelo galês, pois Tolkien achava sua
sonoridade bonita e própria para um povo como os elfos. Da mesma forma, a língua
negra usada em Mordor tem um som desagradável, profundamente gutural e
onomatopaica (Tolkien não chegou a desenvolver essa língua, apenas criou algumas
palavras, pois a achava feia).
Em relação ao trabalho com topônimos e antropônimos, Tolkien o encarava
como um quebra-cabeças. Seja por influência de palavras existentes, seja pela junção
de termos inventados por ele mesmo, o certo é que os nomes encerram em si grande
parte do significado daquilo que nomeiam.
De acordo com o glossário elaborado por Ruth Noel (1980), Valfenda
(Rivendell, em inglês) em élfico significa “Vale da Fenda” ou “vale dividido”. Galadriel
significa “dama coroada com halo radiante”, referindo-se a seus cabelos loiros (galad=
radiante; riel=dama coroada). Arwen Undomiel é a “dama real, filha do crepúsculo”
(ar=nobre, real; wen=dama; undomë=crepúsculo; iel=sufixo que indica nome feminino,
traduzido como “filha de”).
São inúmeros os exemplos em que o trabalho lingüístico de Tolkien deu origem
aos nomes de seus personagens. Segundo o autor, a Terra-média foi criada para ser um
lugar em que essas línguas inventadas fossem faladas. De forma bastante poética, o
cumprimento geral que Tolkien criou para esse mundo foi Elen si la lumenn’omentielvo
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