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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literios em meio eletrônico
D. Jucunda, de Machado de Assis
Edição de Referência: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Ninguém, quando D. Jucunda aparece no Imperial Teatro de D. Pedro II, em algum baile,
em casa, ou na rua, ninguém lhe mais de trinta e quatro anos. A verdade, porém, é
que orça pelos quarenta e cinco; nasceu em 1843. A natureza tem assim os seus
mimosos. Deixa correr o tempo, filha minha, disse a boa madre eterna; eu estou com
as mãos para te amparar. Quando te enfastiares da vida, unhar-te-ei a cara, polvilhar-te-ei
os cabelos, e darás um pulo dos trinta e quatro aos sessenta, entre um cotilhão e o
almoço.
É provinciana. Chegou aqui no começo de 1860, com a madrinha, grande senhora de
engenho, e um sobrinho desta, que era deputado. Foi o sobrinho quem propôs à tia esta
viagem, mas foi a afilhada quem a efetuou, tão-somente com fazer descair os olhos
desconsolados.
Não, não estou mais para essas folias do mar. vi o Rio de Janeiro... Você que acha,
Cundinha? perguntou D. Maria do Carmo.
— Eu gostava de ir, dindinha.
D. Maria do Carmo ainda quis resistir, mas nãode; a afilhada ocupava em seu coração
a alcova da filha que perdera em 1857. Viviam no engenho desde 1858. O pai de
Jucunda, barbeiro de ofício, residia na vila, onde fora vereador e juiz de paz; quando a
ilustre comadre lhe pediu a filha, não hesitou um instante; consentiu entregar-lha para
benefício de todos. Ficou com a outra filha, Raimunda.
Jucunda e Raimunda eram gêmeas, circunstância que sugeriu ao pai a idéia de lhes dar
nomes consoantes. Em criança, a beleza natural supria nelas qualquer outro alinho;
andavam na loja e pela vizinhança, em camisa rota, descalço, muito enlameadas às
vezes, mas sempre lindas. Aos doze anos perderam a mãe. então as duas irmãs não
eram tão iguais. A beleza de Jucunda acentuava-se, ia caminhando para a perfeição: a de
Raimunda, ao contrário, parava e murchava; as feições iam descambando na banalidade
e no inexpressivo. O talhe da primeira tinha outro garbo, e as mãos, tão pequenas como
as da irmã, eram macias — talvez, porque escolhiam ofícios menos ásperos.
Passando ao engenho da madrinha, Jucunda não sentiu a diferença de uma a outra
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fortuna. Não se admirou de nada, nem das paredes do quarto, nem dos móveis antigos,
nem das ricas toalhas de crivo, nem das fronhas de renda. Não estranhou as mucamas
(que nunca teve), nem as suas atitudes obedientes; aprendeu logo a linguagem do
mando. Cavalos, redes, jóias, sedas, tudo o que a madrinha lhe foi dando pelo tempo
adiante, tudo recebeu, menos como obséquios de hospedagem que como restituição. Não
expressava desejo que se lhe não cumprisse. Quis aprender piano, teve piano e mestre;
quis francês, teve francês. Qualquer que fosse o preço das cousas, D. Maria do Carmo
não lhe recusava nada.
A diferença de situação entre Jucunda e o resto da família era agravada pelo contraste
moral. Raimunda e o pai acomodavam-se, sem esforço, às condições da vida precária e
rude; fenômeno que Jucunda atribuía, instintivamente à índole inferior de ambos. Pai e
irmã, entretanto, achavam natural que a outra subisse a tais alturas, com esta
particularidade que o pai tirava orgulho da elevação da filha, enquanto que Raimunda
nem conhecia esse sentimento; deixava-se estar na humildade ignorante. De gêmeas que
eram, e criadas juntas, sentiam-se agora filhas do mesmo pai um grande senhor de
engenho, por exemplo — que houvera Raimunda em alguma agregada da casa.
Leitor, não dificuldade em explicar essas cousas. São desacordos possíveis entre a
pessoa e o meio, que os acontecimentos retificam, ou deixam subsistir até que os dous se
acomodem. também naturezas rebeldes à elevação da fortuna. Vi atribuir à rainha
Cristina esta explosão de cólera contra o famoso Espartero: "Fiz-te duque, fiz-te grande
de Espanha; nunca te pude fazer fidalgo". Não respondo pela veracidade da anedota;
afirmo só que a bela Jucunda nunca poderia ouvir à madrinha alguma cousa que com isso
se parecesse.
CAPÍTULO II
— Sabe quem vai casar? perguntou Jucunda à madrinha, depois de lhe beijar a mão.
Na véspera, estando a calçar as luvas para ir ao Teatro Provisório, recebera cartas do pai
e da irmã, deixou-as no toucador, para ler quando voltasse. Mas voltou tarde, e com tal
sono, que esqueceu as cartas. Agora de manhã, ao sair do banho, vestida para o almoço,
é que as pôde ler. Esperava que fossem como de costume, triviais e queixosas. Triviais
seriam; mas havia a novidade do casamento da irmã com um alferes, chamado Getulino.
— Getulino de quê? perguntou D. Maria do Carmo.
Getulino... Não me lembro; parece que é Amarante, ou Cavalcanti. Não. Cavalcanti
não é; parece que é mesmo Amarante. Logo vejo. Não tenho idéia de semelhante alferes.
Há de ser gente nova.
— Quatro anos! murmurou a madrinha. Se eu era capaz de imaginar que ficaria aqui tanto
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tempo fora de minha casa!
— Mas a senhora está dentro de sua casa, replicou a afilhada dando-lhe um beijo.
D. Maria do Carmo sorriu. A casa era um velho palacete restaurado, no centro de uma
grande chácara, bairro do Engenho Velho. D. Maria do Carmo tinha querido voltar à
província, no prazo marcado novembro de 1860; mas a afilhada obteve a estação de
Petrópolis; iriam em março de 1861. Março chegou, foi-se embora, e voltou ainda duas
vezes, sem que elas abalassem daqui; estamos agora em agosto de 1863. Jucunda tem
vinte anos.
Ao almoço, falaram do espetáculo da véspera e das pessoas que viram no teatro.
Jucunda conhecia a principal gente do Rio; a madrinha fê-la recebida, as relações
multiplicaram-se; ela ia observando e assimilando. Bela e graciosa, vestindo-se bem e
caro, ávida de crescer, não lhe foi difícil ganhar amigas e atrair pretendentes. Era das
primeiras em todas as festas. Talvez o eco chegasse à vila natal ou foi simples
adivinhação de malévolo, que entendeu colar isto uma noite, nas paredes da casa do
barbeiro:
Nhã Cundinha
Já rainha
Nhã Mundinha
Na cozinha.
O pai arrancou, indignado, o papel; mas a notícia correu depressa a vila toda, que era
pequena, e foi o entretenimento de muitos dias. A vida é curta.
Jucunda, acabado o almoço, disse à madrinha que desejava mandar algumas cousas
para o enxoval da irmã, e, às duas horas, saíram de casa. na varanda o coupé
embaixo, o lacaio de pé, desbarretado, com a mão no fecho da portinhola —, D. Maria do
Carmo notou que a afilhada parecia absorta; perguntou-lhe o que era.
— Nada, respondeu Jucunda, voltando a si.
Desceram; no último degrau, perguntou Jucunda se a madrinha é que mandara pôr as
mulas.
— Eu não; foram eles mesmos. Querias antes os cavalos?
— O dia está pedindo os cavalos pretos; mas agora é tarde, vamos.
Entraram, e o coupé, tirado pela bela parelha de mulas gordas e fortes, dirigiu-se para o
Largo de S. Francisco de Paula. Não disseram nada durante os primeiros minutos; D.
Maria é que interrompeu o silêncio, perguntando o nome do alferes.
Não é Amarante, não, senhora, nem Cavalcanti; chama-se Getulino Damião
Gonçalves, respondeu a moça.
— Não conheço.
Jucunda tomou a mergulhar em si mesma. Um dos seus prazeres diletos, quando ia de
carro, era ver a outra gente a pé, e gozar as admirações de relance. Nem esse a atraía
agora. Talvez o alferes lhe fizesse lembrar algum general; verdade é que os conhecia
casados. Pode ser também que esse alferes, destinado a dar-lhe sobrinhos cabos-de-
esquadra, viesse lançar-lhe alguma sombra aborrecida nou brilhante e azul. As idéias
passam tão rápidas e embrulhadas, que é difícil colhê-las, e pô-las em ordem; mas, enfim,
se alguém supuser que ela cuidava também em certo homem, esse não andará errado.
Era candidato recente o doutor Maia, que voltara da Europa, meses antes, para entrar na
posse da herança da mãe. Com a do pai, ia a mais de seiscentos contos. A questão do
dinheiro era aqui um tanto secundária, porque Jucunda tinha certa a herança da
madrinha; mas não se há de mandar embora um homem, porque possui seiscentos
contos, não lhe faltando outras qualidades preciosas de figura e de espírito, um pouco de
genealogia, e tal ou qual pontinha de ambição, que ela puxaria em tempo, como se faz às
orelhas das crianças preguiçosas. havia recusado outros candidatos. De si mesma
chegou a sonhar com um senador, posição feita e ministro possível. Aceitou este Maia;
mas, gostando dele, e muito, por que é que não acabava de casar?
Por quê? Eis aí o mais difícil de aventar, amigo leitor. Jucunda não sabia o motivo. Era
desses que nascem naqueles escaninhos da alma, em que o dono o penetra, mas
penetramos nós outros, contadores de histórias. Creio que se liga à doença do pai.
estava ferido, na asa, quando ela para veio; a moléstia foi crescendo, até fazer-se
desenganada. Navalha não exclui espírito, haja vista Fígaro; o nosso velho disse à filha
Jucunda, em uma das cartas, que tinha dentro de si um aprendiz de barbeiro, que lhe
alanhava as entranhas. Se tal era, era também vagaroso, porque não acabava de
escanhoá-lo. Jucunda não supunha que a eliminação do velho fosse necessária à
celebração do casamento ainda que por motivo de velar o passado; se claramente lhe
viesse a idéia, é de crer que a repelisse com horror. Ao contrário, a idéia que agora
mesmo lhe acudia, pouco antes de parar o coupé, é que não era bonito casar, enquanto o
pai estava curtindo dores. Eis um motivo decente, leitor amigo; é o que
procurávamos pouco, é o que a alma pode confessar a si mesma, é o que tirou à
fisionomia da moça o ar fúnebre que ela parecia haver trazido de casa.
Compraram o enxoval de Raimunda, e o remeteram pelo primeiro vapor, com cartas de
ambas. A de Jucunda era mais longa que de costume; falava-lhe do noivo alferes, mas
não empregava a palavra cunhado. Não tardou que viesse resposta da irmã, toda gratidão
e respeitos. Sobre o pai dizia que ia com os seus achaques velhos, um dia pior, outro
melhor; era opinião do doutor que podia morrer de repente, mas podia também agüentar
meses e anos.
Jucunda meditou muito sobre a carta. Logo que Maia se lhe declarou, pediu-lhe ela que
nada dissessem à madrinha por uns dias; ampliou o prazo a semanas; não podia fazê-lo a
meses ou anos. Foi à madrinha, e confiou a situação. Não quisera casar com o pai
enfermo; mas, dada a incerteza da cura, era melhor casar logo.
Vou escrever a meu pai, e peço-me a mim mesma, disse ela, se dindinha achar que
faço bem.
Escreveu ao pai, e terminou:
Não o convido para vir ao Rio de Janeiro, porque é melhor sarar antes; demais, logo que
nos casarmos, lá iremos ter. Quero mostrar a meu marido (desculpe este modo de falar) a
vilazinha do meu nascimento, e ver as cousas de que tanto gostei, em criança, o chafariz
do largo, a matriz e o padre Matos. Ainda vive o padre Matos?
O pai leu a carta com lágrimas; mandou-lhe dizer que sim, que podia casar, que não vinha
por andar achacado; mas longe que pudesse...
Mundinha exagerou muito, disse Jucunda à madrinha. Quem escreve assim, não está
para morrer.
Tinha proposto casamento à capucha, por causa do pai; mas o tom da carta fê-la aceitar o
plano de D. Maria do Carmo e as bodas foram de estrondo. Talvez a proposta não lhe
viesse da alma. Casaram-se pouco tempo depois. Jucunda viu mais de um dignitário do
Estado inclinar-se diante dela, e dar-lhe o parabém. Os mais célebres colos da cidade
fizeram-lhe corte. Equipagens ricas, cavalos briosos, atirando as patas com vagar e
graça, pela chácara dentro, muitas librés particulares, flores, luzes; fora, na rua, a
multidão olhando. Monsenhor Tavares, membro influente do cabido celebrou o
casamento.
Jucunda via tudo através de um véu mágico, tecido de ar e de sonho; conversações,
música, danças, tudo era como uma longa melodia, vaga e remota, ou próxima e branda,
que lhe tomava o coração, e pela primeira vez a fazia estupefata diante de alguma cousa
deste mundo.
CAPÍTULO III
D. Maria do Carmo não alcançou que os recém-casados ficassem morando com ela.
Jucunda desejava-o; mas o marido achou que não. Tinham casa na mesma rua, perto da
madrinha; e assim viviam juntos e separados. De verão iam os três para Petrópolis, onde
residiam debaixo do mesmo tecto.
Extinta a melodia, secas as rosas, passados os primeiros dias do noivado, Jucunda pôde
tomar no recente tumulto, e achou-se grande senhora. não era a afilhada de D.
Maria do Carmo, e sua provável herdeira; tinha agora o prestígio do marido; o prestígio e
o amor. Maia literalmente adorava a mulher; inventava o que a pudesse fazer feliz, e
acudia a cumprir-lhe o menor dos seus desejos. Um destes consistiu na série de jantares
que deram em Petrópolis, durante uma estação, aos sábados, jantares que ficaram
célebres; a flor da cidade ali ia por turmas. Nos dias diplomáticos, Jucunda teve a honra
de ver a seu lado, algumas vezes, o internúncio apostólico.
Um dia, no Engenho Velho, recebeu Jucunda a notícia da morte do pai. A carta era da
irmã; contava-lhe as circunstâncias do caso: o pai nem teve tempo de dizer: ai, Jesus!
Caiu da rede abaixo e expirou.
Leu a carta sentada. Ficou por algum tempo com o papel na mão, a olhar fixamente;
relembrava as cousas da infância, e a ternura do pai; saturava bem a alma daqueles dias
antigos, despegava-se de si mesma, e acabou levando o lenço aos olhos, com os braços
fincados nos joelhos. O marido veio achá-la nessa atitude, e correu para ela.
— Que é que tem? perguntou-lhe.
Jucunda, sobressaltada, ergueu os olhos para ele; estavam úmidos; não disse nada.
— Que foi? insistiu o marido.
— Morreu meu pai, respondeu ela.
Maia pôs um joelho no chão, pegou-a pela cintura e conchegou-a ao peito; ela escondeu
a cara no ombro do marido, e foi então que as lágrimas romperam mais grossas.
— Vamos, sossegue. Olhe o seu estado.
Jucunda estava grávida. A advertência fê-la erguer de pronto a cabeça, e enxugar os
olhos; a carta, envolvida no lenço, foi esconder no bolso a ruim ortografia da irmã e outros
pormenores. Maia sentou-se na poltrona, com uma das mãos da mulher entre as suas.
Olhando para o chão, viu um papel impresso, trecho de jornal, apanhou-o e leu; era a
notícia da morte do sogro, que Jucunda não vira cair de dentro da carta. Quando acabou
de ler, deu com a mulher, pálida e ansiosa. Esta tirou-lhe o papel e leu também. Com
pouco se aquietou. Viu que a notícia apontava tão-somente a vida política do pai, e
concluía dizendo que este "era o modelo dos varões que sacrificam tudo à grandeza local;
não fora isso, e o seu nome, como o de outros, menos virtuosos e capazes, ecoaria pelo
país inteiro".
— Vamos, descansa; qualquer abalo pode fazer-te mal.
Não houve abalo; mas, à vista do estado de Jucunda, a missa por alma do pai foi dita na
capela da madrinha, só para os parentes.
Chegado o tempo, nasceu o filho esperado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Esse
primeiro e único fruto, parece que veio ao mundo menos para aumentar a família, que
para dar às graças pessoais de Jucunda o definitivo toque. Com efeito, poucos meses
depois, Jucunda atingia o grau de beleza, que conservou por muitos anos. A maternidade
realçava a feminidade.
uma sombra empanou o céu daquele casal. Foi pelos fins de 1866. Jucunda estava a
mirar o filho dormindo, quando lhe vieram dizer que uma senhora a procurava.
— Não disse quem é?
— Não disse, não, senhora.
— Bem vestida?
Não, senhora; é assim meia esquisita, muito magra. Jucunda olhou para o espelho e
desceu. Embaixo, reiterou algumas ordens; depois, pisando rijo e farfalhando as saias, foi
ter com a visita. Quando entrou na sala de espera, viu uma mulher de pé, magra,
amarelada, envolvida em um xale velho e escuro, sem luvas nem chapéu. Ficou por
alguns instantes calada, esperando; a outra rompeu o silêncio: era Raimunda.
— Não me conhece, Cundinha?
Antes que acabasse, a irmã a reconhecera. Jucunda caminhou para ela, abraçou-a, fê-
la sentar-se; admirou-se de a ver aqui, sem saber de nada; a última carta recebida era
de muito tempo; quando chegara?
cinco meses; Getulino foi para a guerra, como sabe; eu vim depois, para ver se
podia...
Falava com humildade e a medo, baixando os olhos a miúdo. Antes de vir a irmã, estivera
mirando a sala, que cuidou ser a principal da casa; tinha receio de macular a palhinha do
chão. Todas as galanterias da parede e da mesa central, os filetes de ouro de um quadro,
cadeiras, tudo lhe pareciam riquezas do outro mundo.antes de entrar, ficara por algum
tempo a contemplar a casa, tão grande e tão rica. Contou à irmã que perdera o filho,
ainda na província; agora viera com a idéia de seguir para o Paraguai, ou para onde
estivesse mais perto do marido. Getulino escrevera-lhe que voltasse para a província ou
ficasse aqui.
— Mas que tem feito nestes cinco meses?
Vim com uma família conhecida, e aqui fiquei costurando para ela. A família foi para S.
Paulo, vai fazer um mês; pagou o primeiro aluguel de uma casinha onde moro,
costurando para fora.
Enquanto a irmã falava, Jucunda contornava-a com os olhos desde o vestido de seda
gasto o último do enxoval, o xale escuro, as mãos amarelas e magras, até às
bichinhas de coral que lhe dera ao sair da província. Era evidente que Raimunda pusera
em si o melhor que possuía para honrar a irmã. Jucunda viu tudo; não lhe escaparam
sequer os dedos maltratados do trabalho, e o composto geral tanto lhe deu pena como
repulsa. Raimunda ia falando, contou-lhe que o marido saíra tenente por atos de bravura
e outras muitas cousas. Não dizia você; para não empregar senhora, falava
indiretamente; "Viu? Soube? Eu lhe digo. Se quiser..." E a irmã, que a princípio fez um
gesto para dizer que deixasse aqueles respeitos, depressa o reprimiu, e deixou-se tratar
como à outra parecesse melhor.
— Tem filhos?
— Tenho um, acudiu Jucunda: está dormindo.
Raimunda concluiu a visita. Quisera vê-la e, ao mesmo tempo, pedir-lhe proteção. Havia
de conhecer pessoas que pagassem melhor. Não sabia fazer vestidos de francesas, nem
de luxo, mas de andar em casa, sim, e também camisas de crivo. Jucunda não pôde
sorrir. Pobre costureira do sertão! Prometeu ir vê-la, pediu indicação da casa, e despediu-
a ali mesmo.
Em verdade, a visita deixou-lhe uma sensação mui complexa: dó, tédio, impaciência. Não
obstante, cumpriu o que disse, foi visitá-la à Rua do Costa, ajudou-a com dinheiro,
mantimento e roupa. Voltou ainda lá, como a outra tornou ao Engenho Velho, sem acordo,
mas às furtadelas. No fim de dous meses, falando-lhe o marido na possibilidade de uma
viagem à Europa, Jucunda persuadiu a irmã da necessidade de regressar à província;
mandar-lhe-ia uma mesada, até que o tenente voltasse da guerra.
Foi então que o marido recebeu aviso anônimo das visitas da mulher à Rua do Costa, e
das que lhe fazia, em casa, uma mulher suspeita. Maia foi à Rua do Costa, achou
Raimunda arranjando as malas para embarcar no dia seguinte. Quando ele lhe falou do
Engenho Velho, Raimunda adivinhou que era o marido da irmã; explicou as visitas,
dizendo que "D. Jucunda era sua patrícia e antiga protetora"; agora mesmo, se voltava
para a vila natal, era com o dinheiro dela, roupas e tudo. Maia, depois de longo
interrogatório, saiu dali convencido. Não disse nada em casa; mas, três meses depois, por
ocasião de falecer D. Maria do Carmo, referiu Jucunda ao marido a grande e sincera
afeição que a defunta lhe tinha, e ela à defunta.
Maia lembrou-se então da Rua do Costa.
Todos lhe querem bem a você, sei, interrompeu ele, mas por que é que nunca me
falou daquela pobre mulher, sua protegida, que aqui esteve há tempos, uma que morava
na Rua do Costa?
Jucunda empalideceu. O marido contou-lhe tudo, a carta anônima, a entrevista que tivera
com Raimunda, e finalmente a confissão desta, as próprias palavras, ditas com lágrimas.
Jucunda sentiu-se vexada e confusa.
Que mal em fazer bem, quando a pessoa o merece? perguntou-lhe o marido,
concluindo a frase com um beijo.
— Sim, era excelente mulher, muito trabalhadeira...
CAPÍTULO IV
Não houve outra sombra na vida conjugal. A morte do marido ocorreu em 1884. Bela, com
a meação do casal, e a herança da madrinha, contando quarenta e cinco anos que
parecem trinta e quatro, tão querida da natureza como da fortuna, pode contrair segundas
núpcias, e não lhe faltam candidatos; mas não pensa nisso. Tem boa saúde e grande
consideração.
A irmã faleceu antes de acabar a guerra. Getulino galgou os postos em campanha, e saiu
há alguns anos brigadeiro. Reside aqui; vai jantar, aos domingos, com a cunhada e o filho
desta, no palacete de D. Maria do Carmo, para onde a nossa D. Jucunda se mudou. Tem
escrito alguns opúsculos sobre armamento e composição do Exército, e outros assuntos
militares. Dizem que deseja ser ministro da Guerra. Aqui, tempos, falando-se disso no
Engenho Velho, perguntou alguém a D. Jucunda se era verdade que o cunhado fitava as
cumeadas do poder.
O general? retorquiu ela com o seu grande ar de matrona elegante; pode ser. Não
conheço os seus planos políticos, mas acho que daria um bom ministro de Estado.
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