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SÉRGIO LUIZ MURICY DE ALMEIDA
CÔNEGO BENIGNO JOSÉ DE CARVALHO: IMAGINÁRIO E CIÊNCIA NA
BAHIA DO SÉCULO XIX
SALVADOR/BA
2003
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SÉRGIO LUIZ MURICY DE ALMEIDA
CÔNEGO BENIGNO JOSÉ DE CARVALHO: IMAGINÁRIO E CIÊNCIA NA
BAHIA DO SÉCULO XIX
Dissertação apresentada ao Mestrado
em História Social da Universidade
Federal da Bahia, para obtenção do
grau de Mestre em História.
Orientadora: Profª. Dra. Lígia Bellini
SALVADOR/BA
2003
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SÉRGIO LUIZ MURICY DE ALMEIDA
CÔNEGO BENIGNO JOSÉ DE CARVALHO: IMAGINÁRIO E CIÊNCIA NA
BAHIA DO SÉCULO XIX
Dissertação apresentada ao Mestrado em
História Social da Universidade Federal da
Bahia, para obtenção do grau de Mestre em
História.
Orientadora: Profª. Dra. Lígia Bellini
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
Profº. Drº Jorge Carvalho do Nascimento
Universidade Federal de Sergipe
_____________________________
Profª. Dra. Maria Hilda B. Paraíso
Universidade Federal da Bahia
_____________________________
Profª. Dra. Lígia Bellini
Universidade Federal da Bahia
SALVADOR/BA
2003
À minha mãe, Etelvina, que pela sua
força me ensina a viver.
AGRADECIMENTOS
Várias pessoas passam por nossas vidas, mas poucas deixam marcas
consistentes que valham a pena lembrar. No entanto, para a execução desse projeto de
pesquisa, contei com a presença e ajuda de diversos amigos, que colaboraram com as
suas idéias e conselhos, deixando marcas em toda a dissertação. Eles merecem ser
lembrados sempre. Luís Cleber, Átila, Fábio, pelas dicas preciosas na fase de
elaboração do Projeto de Pesquisa. A Cezar, obrigado pela revisão da língua máter;
Roberto, sem você o mapa da expedição não sairia do meu imaginário; Miguel, valeu
pelas pistas do Documento 512; Almeciano Maia Júnior, pelas normas técnicas.
Francisco, obrigado pelas dicas no computador. Emilia, obrigado pelas teses e
dissertações emprestadas.
Aos amigos que me hospedaram em Salvador durante a minha peregrinação
pelos arquivos e para as aulas do Mestrado, Luis Freire, Helder e Tito, obrigado pelo
aconchego dos seus lares.
Às Professoras Jussara Portugal e Maria José Sepúlveda, do Colégio Modelo
Luís Eduardo Magalhães, onde trabalho, o apoio de vocês foi essencial.
À minhas irmãs, Cristina e Dina, obrigado por acreditarem em mim.
Obrigado ao Pe. Bernardo Stoettinger, do Mosteiro de Jequitibá. Foi ele quem
me mostrou as primeiras cartas da expedição científica do Cônego Benigno de
Carvalho.
Aos Professores do Mestrado em História da Universidade Federal da Bahia, em
especial a Prof.ª Dra. Maria Hilda B. Paraíso, co-orientadora da pesquisa, pelas fontes
indicadas e pela disposição em sempre atender a um mestrando aflito. Ao Profº. Dr.
Cândido da Costa e Silva, pela preciosa conversa que tivemos no início do
levantamento das fontes. À Profª. Dra. Elizete da Silva, pelo carinho na disciplina
História das Religiões, os debates foram enriquecedores.
Marina, a Biblioteca do Mestrado sem você não funcionaria, obrigado pela
atenção e ajuda.
Ao Profº. Dr. Pedro Tórtima, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que me
guiou pelos ricos arquivos dessa centenária instituição.
Aos funcionários das bibliotecas do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da
Fundação Clemente Mariani, que sempre me receberam com profissionalismo.
Não poderia deixar de agradecer à minha orientadora, a Profª. Dra. Lígia Bellini,
que sem vaidade e estrelismo, mas demonstrando muita competência e paciência,
proporcionou-me um amadurecimento para a minha caminhada de historiador.
Ao Danilo que sempre perguntava: “já acabou?”.
ALMEIDA, Sérgio Luiz Muricy de. Cônego Benigno José de Carvalho: Imaginário e
Ciência na Bahia do século XIX. Dissertação para conclusão do curso de Mestrado em
História Social da Universidade Federal da Bahia. Salvador: 2003.
RESUMO
Este estudo analisa a produção acadêmica e o pensamento político e religioso
do Cônego Benigno José de Carvalho e Cunha, sacerdote português, naturalizado
brasileiro, que viveu na Bahia até a sua morte em 1852. Com seu espírito
empreendedor, dirigiu escola, criou jornal e participou do Cabido da Sé baiana,
contribuindo para a vida intelectual e científica do Brasil no final da primeira metade do
século XIX. Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Como sócio
correspondente, comandou a primeira expedição científica, financiada pelo governo
imperial e pela Província da Bahia, em busca da cidade perdida na Serra do Sincorá, na
Chapada Diamantina. Através da análise da organização e trajetória histórica dessa
expedição, procura-se compreender as concepções científicas e políticas que
norteavam a intelectualidade brasileira do início do Segundo Reinado (1840-1852),
assim como investigar os interesses políticos e econômicos que a viagem do Cônego
Benigno de Carvalho despertou nas autoridades provinciais da Bahia, no momento da
expansão do garimpo no interior da Província. Além disso, analisando a expedição,
pode-se observar a sobrevivência de um rico imaginário, ainda presente no século XIX,
das cidades e civilizações perdidas.
SUMÁRIO
RESUMO....................................................................................................
LISTA DE FIGURAS...................................................................................
LISTA DE ABREVIATURAS.......................................................................
INTRODUÇÃO............................................................................................
11
1. BENIGNO JOSÉ DE CARVALHO E CUNHA: UM CÔNEGO
LETRADO NA BAHIA:...........................................................................
1.1. Formação religiosa e intelectual;...........................................................
1.2 .Naturalização e nomeação como Cônego............................................
16
20
30
2. ALEGORIAS DE UM IMPÉRIO:.............................................................
2.1.”Beati viri tui, et beati servi tui” ;.............................................................
2.2. O poder simbólico do rei.......................................................................
36
41
50
3. A EXPEDIÇÃO À CIDADE PERDIDA:...................................................
3.1. Perspectiva científica do romantismo;...................................................
3.2 .O Documento 512;................................................................................
3.3 .A organização da expedição;...............................................................
3.4 .À procura da cidade perdida;................................................................
55
61
66
71
82
4. CONCLUSÃO.........................................................................................
100
5. FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................
6. ANEXOS..................................................................................................
6.1. DISCURSO DO CÔNEGO BENIGNO DE CARVALHO........................
6.2. DOCUMENTO 512...............................................................................
103
111
111
129
Lista de Figuras
Figura 01: Inscrições do documento 512........... 70
Figura 02: Mapa da Expedições do Cônego Benigno de Carvalho......... 86
Lista de Abreviaturas
APEB Arquivo Público do Estado da Bahia (Salvador)
BN Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro)
IGHBa Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (Salvador)
INTRODUÇÃO
Em 1993, exatos dez anos atrás, em visita aos monges da Ordem Cisterciense
do Mosteiro de Jequitibá, Mundo Novo, interior da Bahia, fui apresentado a uma série
de cartas que despertou a minha curiosidade. As cartas relatavam uma mirabolante
viagem pelas matas da Chapada Diamantina, entre os anos de 1841 e 1846, conduzida
por um membro do alto clero baiano, o Cônego Benigno José de Carvalho e Cunha.
Quanto mais eu lia a documentação, na Biblioteca do Mosteiro, lugar mais do que
mágico para esse tipo de estudo, mais ficava curioso. Por que um sacerdote, bem
colocado na hierarquia eclesiástica, se envolveu em anos de total dedicação a uma
expedição que buscava uma provável cidade abandonada no interior da província
baiana? O que estava por trás dessa expedição? Quais os interesses do governo
provincial e do império brasileiro? Que imaginário norteava a organização de tão
excêntrica viagem? Quem era Benigno de Carvalho e Cunha? Várias questões
surgiram no decorrer da minha leitura, fazendo despertar, mais ainda, o espírito de
investigador. Além de tentar entender essa expedição, via a necessidade de conhecer
esse Cônego que, movido por fatores também pessoais e subjetivas, se envolveu na
organização e comando da expedição.
Procurei mais informações, através de uma pesquisa bibliográfica e pouca coisa
encontrei. As questões levantadas no início ainda permaneciam sem resposta. Só com
o estudo desenvolvido no Mestrado em História pela Universidade Federal da Bahia,
iniciado no primeiro semestre de 2001, pude responder a muitas das minhas dúvidas,
não só sobre a expedição como, particularmente, o universo de interesses que estavam
por de trás da sua organização.
Nas pesquisadas realizadas no Arquivo Público do Estado da Bahia, Biblioteca
Nacional, arquivos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro,
encontrei uma rica documentação que me foi possível utilizar para compreender a teia
de relações políticas, culturais e econômicas que estavam envolvidas na montagem da
viagem do Cônego Benigno. Encontrei cartas inéditas, que Carvalho escreveu para o
secretário do IHGB, Cônego Januário da Cunha Barbosa, no intento de buscar
financiamento e apoio para as suas investigações.
1
Com o aprofundamento das leituras bibliográficas e da documentação
encontrada, busquei traçar um perfil do Cônego Benigno de Carvalho, sua formação
eclesiástica, seus interesses pela ciência e suas relações políticas e sociais. A
pesquisa, que no início estava encaminhando-se unicamente para a compreensão do
imaginário das cidades perdidas e civilizações misteriosas, tomou outro rumo.
É diversificado o conjunto de atividades e produção acadêmica do padre
Benigno, incluindo desde um tratado de matemática até a edição de um jornal em
Salvador. Dirigiu escola, ensinou em Seminário Maior, publicou Tratado Teológico,
escreveu discurso em homenagem ao segundo casamento de D. Pedro I, foi
Procurador do Cabido da Sé baiana e homem de confiança do Arcebispo Dom
Romualdo Seixas. Precisava-se resgatar essa biografia que contribuiu, sem dúvida
alguma, para a vida intelectual e científica da Bahia e, por que não, do Brasil, pois o
projeto arqueológico das buscas da cidade abandonada envolveu o mais prestigiado
instituto cultural do país na época, o IHGB, contando com o apoio do próprio imperador,
D. Pedro II.
Para compreender essa rica personalidade, contei com a importante leitura do
livro Os Segadores e a Messe de Cândido da Costa e Silva
2
, trabalho que traça, a partir
de uma farta investigação documental, as características da formação do clero baiano
no século XIX, e sua participação política nos bastidores do poder.
Procurei analisar a narrativa dos viajantes estrangeiros, especialmente Spix e
Martius, pois os naturalistas alemães descrevem detalhes importantes da Chapada
Diamantina, espaço da viagem de Carvalho, como condições de vida da população,
abastecimento, segurança, além da descrição geográfica da região. Contei também
com a leitura do trabalho de Karen Macknow Lisboa
3
, que estuda a expedição dos dois
1
Estas cartas estão na Biblioteca Nacional.
2
SILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores e a Messe, O Clero oitocentista na Bahia. Salvador: Edufba, 2001.
3
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil
(1817-1820). São Paulo: Hucitec, 1997.
naturalistas, compondo um quadro da ciência no Brasil e na Europa, particularmente o
romantismo científico, que norteou boa parte da produção acadêmica do final do século
XVIII e princípios do seguinte.
Não bastava conhecer a ciência no Brasil da época, mas entender a ideologia
contida na produção do IHGB, sua criação e o processo da formação da pioneira
instituição carioca, e determinar a relação entre a expedição do Cônego Benigno e as
posturas acadêmicas dessa agremiação. Para isto, o trabalho de Arno Wehling
4
foi
bastante útil, pois expõe, com muita clareza, a preocupação dos intelectuais do Instituto
em construir a memória nacional a partir dos elementos culturais associados a
interesses de classe. E caberia ao IHGB desempenhar o papel, não só de divulgador,
mas especialmente de produtor, através da sua revista, de posturas que influenciaram a
produção literária e científica do Brasil no Segundo Reinado (1840-1889). Dom
Romualdo Seixas e o Cônego Benigno de Carvalho estavam entre os primeiros homens
de letras na Bahia a comporem o quadro de sócios do IHGB, evidenciando o respaldo
político e intelectual que os dois sacerdotes possuíam dentro e fora da província
baiana.
No estudo do imaginário das cidades perdidas, campo mais pedregoso do
trabalho, necessitei remontar a formação de todo um código da mentalidade européia,
desde a época das conquistas marítimas dos séculos XV e XVI até o processo de
permanência do mito, já no momento da viagem de Carvalho, não só na cultura
popular, como também no mundo erudito. Como bem o caracteriza Johnni Langer
5
, um
imaginário erudito, que foi, até pouco tempo atrás, estudado na História do Brasil, com
notáveis exceções, com o pioneiro trabalho de Sérgio Buarque de Holanda
6
.
Estamos cada vez mais valorizando o estudo das imagens que formam a
mentalidade social, política e cultural de um povo. Sandra Pesavento chama a atenção
para o fato de que “ o imaginário faz parte de um campo de representação e, como
expressão do pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar
4
WEHLING. Arno. Estado, História, Memória: Vernhagem e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999.
5
LANGER, Johnni. As Cidades Imaginárias do Brasil. Curitiba: Xerox do Brasil e Secretaria de Estado da Cultura
do Paraná, 1997.
6
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos endêmicos no descobrimento e colonização do
Brasil. 6ª ed, São Paulo: Brasiliense, 1994.
uma definição da realidade”
7
. O trabalho aqui desenvolvido procura enquadrar-se nesse
campo do estudo das representações e do imaginário, procurando, a par disto, resgatar
dados biográficos de um personagem pouco conhecido na História da Bahia e do Brasil.
O estudo é dividido em três capítulos. No primeiro, procuro apresentar um perfil
biográfico do Cônego Benigno, desde a sua chegada à Bahia, em plena crise política do
Primeiro Reinado, até o processo de naturalização em 1839. Ênfase é dada a sua
participação no clero baiano e inserção na sociedade de então.
O segundo capítulo, trata das representações construídas pelo Cônego sobre o
Império brasileiro, sua visão de política, Estado e governo. O documento centralmente
analisado é um discurso publicado em 1830, para os festejos da comemoração do
segundo casamento do imperador D. Pedro I.
No terceiro capítulo, o mais longo, descrevo a expedição em busca da cidade
perdida na Serra do Sincorá, na Chapada Diamantina, interior da Bahia, focalizando os
interesses envolvidos na organização da viagem científica, o papel do IHGB, do
governo imperial e provincial da Bahia. Neste capítulo é explorado a questão do
imaginário das cidades perdidas, dando destaque ao relato do Documento 512, que
narra a descoberta das ruínas deste provável sítio arqueológico em 1753, servindo de
roteiro para a expedição de Carvalho.
Por fim, encontra-se um Anexo com a transcrição - respeitando, na medida do
possível, o estilo e a grafia do português da época - do discurso proferido em
homenagem as núpcias de Dom Pedro I, que serviu de fonte principal para o segundo
capítulo, e do Documento 512, fundamental para a compreensão da expedição
científica de 1841.
Infelizmente, a pesquisa nos arquivos, especialmente no APEB, não respondeu a
todas as questões que foram surgindo ao longo do desenvolvimento da pesquisa. Não
foi encontrado o testamento do Cônego Benigno de Carvalho, peça importante para
compreender aspectos dos seus últimos dias de vida, que contivesse uma provável
relação de patrimônio e bens acumulados como sacerdote na Chapada Diamantina.
7
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “ Em busca de uma Outra História: Imaginando o Imaginário”. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v.15, nº 29, 1995, p. 15.
A relevância do trabalho, a meu ver, não está apenas na reconstrução desse
personagem instigante! Um misto de padre e arqueólogo, mas no reconhecimento da
contribuição das suas pesquisas no campo da hidrografia, cartografia e da pesquisa
arqueológica. Apesar de talvez não ter consciência disso no momento em que tudo
aconteceu, o Cônego Benigno José de Carvalho e Cunha ajudou a estabelecer melhor
a localização dos rios que cortam a rica paisagem natural da Chapada, em especial os
afluentes dos rios Paraguaçu e Una. E foi testemunha do processo de expansão
populacional da região, quando da corrida pelo diamante. O momento da expedição foi
estratégico para o governo baiano, interessado muito mais no brilho das pedras
preciosas do que o das cidades perdidas.
1. BENIGNO JOSÉ DE CARVALHO E CUNHA:
UM CÔNEGO LETRADO NA BAHIA
A participação do clero católico na vida política e cultural do Brasil é algo
presente de forma permanente, no período colonial ou após a Independência. Na
colônia, a intelectualidade estava particularmente instalada nos mosteiros e nas casas
de paróquias. Isto apesar de que nem sempre foi fácil a formação dos sacerdotes da
Igreja Católica que, para possuírem uma educação de acordo com seus trabalhos
religiosos, eram obrigados a aprofundar seus estudos em Coimbra ou em outros
centros de formação da metrópole portuguesa.
8
Tanto na época colonial como no pós-independência, a formação do clero
diocesano era a que mais preocupava e exigia atenção e cuidados especiais.
Multiplicavam-se escândalos envolvendo relações ilícitas e sua participação em
movimentos políticos. Já em relação ao clero regular, que possuía uma vida conventual,
comandada por regras centenárias, a formação intelectual era construída dentro dos
seus claustros, de acordo com a conhecida tríade “pobreza, castidade e obediência”,
votos que com freqüência eram também relaxados.
9
Dom Romualdo Antônio de Seixas,
arcebispo da Bahia de 1828 a 1860, primeiro brasileiro a ocupar a Sé Primaz do Brasil,
chamava atenção para a preparação intelectual do clero, declarando em suas
memórias:
A instrução do Clero secular ficou reduzida a simples lições
de Teologia casuística dadas por lente pago pelo Estado [...]
Constituído por huma crassa ignorancia, e por hum
8
SILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores e a Messe, O Clero oitocentista na Bahia. Salvador: Edufba, 2001,
p.150-152.
9
SILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores e a Messe,..., p. 165-166.
escandaloso comportamento.
10
Essa preocupação de Dom Romualdo Seixas estava em consonância com as
determinações da Santa Sé, que no século XIX faria de tudo para orientar e organizar a
Igreja Católica no Brasil de acordo com os requisitos tridentinos.
11
O Período
Monárquico (1822-1889) seria marcado por esse processo de vaticanização
12
da
estrutura eclesiástica no Brasil.
O funcionamento dos seminários para a formação dos quadros católicos de
sacerdotes era problemático, situação provocada pela carência de professores
capacitados e de uma formação de acordo com as exigências pretendidas pelos bispos.
Em 1815, começou a funcionar na Bahia o Seminário de São Dâmaso, fundado pelo
Arcebispo Dom Frei Francisco de São Dâmaso Abreu Vieira, décimo quarto Arcebispo
da Bahia, com a intenção de melhor aparelhar o corpo sacerdotal. Seu funcionamento
foi efêmero pois, em 18 de novembro de 1816, faleceu o seu fundador, ficando a recém
criada instituição de preparação sacerdotal sem o devido apoio institucional e
financeiro. Até a nomeação de Dom Romualdo Seixas em 1828, o governo da
Arquidiocese baiana ficou vacante, provocando, com isso, sérios problemas de ordem
administrativa na condução dos trabalhos da Sé Metropolitana. Além da disputa interna
pelo controle da Arquidiocese, devemos lembrar a forte participação de elementos do
clero baiano, tanto da capital, como do interior, no processo de independência de 1822,
com as principais lutas pela afirmação desse processo tendo sido travadas na Bahia.
13
Só em 1834, com Dom Romualdo Seixas já no governo da Arquidiocese, que o
Seminário Maior, denominação pela qual eram conhecidos os institutos de formação de
sacerdotes diocesanos, seria organizado com uma estrutura docente e administrativa
10
SEIXAS, D. Romualdo. Memórias do Marquês de Santa Cruz. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1861, p. 160.
11
AZZI, Riolando, A Sé Primacial de Salvador A Igreja Católica na Bahia (1551-2001). Petrópolis: Vozes, Vol.
II, 2001, p. 221.
12
A expressão usada aqui tem como objetivo chamar atenção para a aproximação da Igreja Católica no Brasil, no
século XIX, com a sua sede em Roma. Foi o movimento conhecido como ultramontanismo, que na Bahia e no Brasil
teve nas figuras de Dom Romualdo Seixas e Dom Antônio Macedo Costa, Bispo do Pará e depois da Bahia, suas
expressões mais marcantes.
13
BARBOSA, Cônego Manoel de Aquino. “Dois Vigários capitulares disputam o governo da Arquidiocese da Bahia
em julho de 1823”. Salvador, Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, nº. 77, 1952, p. 381-392.
de acordo com as preocupações do Arcebispo. Em 1851 foi fundado o Seminário
Menor, com objetivo preparar as crianças e adolescentes que pretendiam seguir a vida
religiosa.
Na carta pastoral de 12 de março de 1834, que anunciava a reabertura do
Seminário Maior, o prelado, mais uma vez, chamava a atenção para a necessidade de
aparelhar intelectualmente o clero, afirmando:
[...] altamente convencido da necessidade de promover
aquela instrução tantas vezes recomendada pelas nossas
pastorais, temos empregado até agora todos os meios que
estavam à nossa disposição para inspirar ou fortificar o amor
ao estudo, e aquisição dos conhecimentos , que podem
habilitar-se para o acertado desempenho do nosso sagrado
ministério.
[...] bem quiséramos apresentar logo um sistema completo de
estudos eclesiásticos, mas semelhante projeto é
absolutamente inexeqüível, atentas as poucas forças do
mesmo seminário; e por isso nos limitamos a estabelecer por
ora as cadeiras de língua francesa, retórica e filosofia
racional, história eclesiástica, teologia dogmática e moral,
sendo portanto forçoso que os pretendentes juntem aos seus
requerimentos certidão de se acharem examinados e
aprovados na língua latina. Talvez que antes de muito tempo
possamos também utilizar esta cadeira, assim como promover
a que conheçam melhor o gênio e as riquezas da nossa
própria língua
14
.
Esse espírito tridentino e conservador de Dom Romualdo o acompanharia em toda a
sua vida de prelado e chefe da Igreja Católica na Bahia.
Seu conhecimento não ficava restrito a questões da fé. Foi reconhecido, em
sua própria época, como um homem de letras com forte sensibilidade para os
elementos culturais. Foi sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, já
compondo seu quadro de colaboradores em 1839
15
. Teve uma agitada vida política
durante o I Reinado (1822-1831), chegando à Assembléia Legislativa no Rio de Janeiro
e travando sérios combates ideológicos e dogmáticos com aqueles que defendiam,
entre outras coisas, o fim do celibato clerical e a possibilidade da formação da Igreja
Católica Nacional Brasileira, separada de Roma. O Arcebispo, além de posicionar-se
contra essas propostas, que tinham na figura do Pe. Diogo Feijó seu representante
mais ilustre, defendia veementemente o uso do hábito eclesiástico como elemento
essencial da missão do sacerdote e símbolo da sua obediência e castidade. Num
trecho de suas memórias afirma Seixas:
Profundamente sensíveis a tão indigna irreverência, que mal
podemos crer que se pratique em algumas igrejas de nossa
diocese, ordenamos não só que nenhum sacerdote possa
celebrar o santo sacrifício da missa sem que esteja de hábito
talar, nem ouvir as confissões na igreja sem o mesmo hábito e
sobrepeliz; mas também encarregamos debaixo da mais
estrita responsabilidade aos Revdos Prelados dos conventos,
párocos, sacristães ou quaisquer outras pessoas, a quem
compete dar o guizamento para a celebração da missa, que o
não prestem de modo algum aos sacerdotes que se
apresentarem sem o referido hábito talar.
16
14
SEIXAS, Dom Romualdo. Apud: AZZI, Riolando, SILVA, Cândido da Costa e. Dois estudos sobre Dom
Romualdo Antônio de Seixas - Arcebispo da Bahia. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981, p. 27-28.
15
12ª. Sessão do IHGB em 18 de maio de 1839. Rio de Janeiro, RIHGB, TOMO I, 1908, p. 113. Analisaremos
melhor o IHGB no capítulo III quando trataremos da expedição científica comandada pelo Cônego Benigno pela
Chapada Dianantina (BA) e planejada pelo Instituto em 1841.
16
SEIXAS, Dom Romualdo. In: AZZI, Riolando, SILVA, Cândido da Costa e. Dois estudos ..., 1981, p. 21.
Em 03 de maio de 1856, Dom Romualdo funda, na Bahia, sendo seu primeiro
presidente, o Instituto Histórico Provincial, que recebeu também as denominações de
Instituto Histórico e Instituto Histórico Bahiano, o embrião para o futuro Instituto
Geográfico e Histórico de 1894. A instituição, que seguiu os passos do IHGB (Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro) possuía, como um dos seus objetivos, resgatar e
publicar documentos inéditos sobre a nossa formação histórica, como também artigos
ou ensaios dos mais respeitados intelectuais baianos de então, chegando a publicar um
periódico, que passou a circular em 1863.
17
Foi com esse espírito empreendedor e sempre atento às necessidades da
Arquidiocese baiana que Dom Romualdo acolhe, em 1829, um padre português, recém
chegado à Bahia, Benigno José de Carvalho e Cunha. A chegada de Carvalho se
apresentava como uma resposta à demanda crescente de sacerdotes preparados
intelectualmente para os trabalhos de organização do seminário diocesano e para o
Cabido da Sé Metropolitana. Como o próprio Dom Romualdo afirmou em suas
memórias, fazendo um trocadilho com o nome do padre e futuro Cônego Benigno,
quando da sua acolhida na Bahia,
Ora, este Padre, chegando de Portugal, tinha sido
benignamente acolhido por mim, que apreciando os seus
talentos e não vulgar instrucção, concorri, para que obtivesse
Carta e Naturalização, e lhe conferi a nomeação de Lente de
Dogma do Seminário Arquiepiscopal, e lhe dei outras provas
de estima e confiança.
18
1.1 . Formação religiosa e intelectual
17
SENA, Consuelo Pondé de. “O IGHB e os Congressos de História da Bahia”. In: Anais do IV Congresso de
História da Bahia, Salvador, 2001, p. 35-37.
O período do Primeiro Reinado (1822-1831) não foi conturbado apenas para o
Brasil. Em Portugal, as várias facções políticas, representadas por realistas, a favor da
Monarquia Absolutista, e liberais, que pregavam um governo constitucional, disputaram
palmo a palmo cada acontecimento da vida política portuguesa durante o processo de
implantação do Parlamento e da elaboração da Constituição, depois da Revolução do
Porto (1820)
19
. Em seguida, após a morte de D. João VI (1826), veio a disputa pelo
trono português, envolvendo praticamente toda a elite lusitana, prolongando-se por um
longo tempo, chegando a ameaçar a já frágil unidade política e territorial do pequeno
reino europeu. Dom Pedro I reivindicava o direito ao trono para a sua filha, a Infanta
Dona Maria da Glória, então criança, contra as intenções sucessoras do irmão D.
Miguel. O clima político entra em ebulição. Os miguelitas, facção da nobreza que
apoiava a coroação de D. Miguel como Rei de Portugal, em oposição aberta às
intenções de D. Pedro, viam muito mais o Imperador do Brasil como oportunista do que
de fato preocupado com a situação do reino. O clima foi de guerra civil, a tal ponto que
precisou da intervenção da Inglaterra e da Áustria, além de outros negociadores
estrangeiros, para conciliar e acalmar os ânimos acirrados dos grupos que defendiam,
cada um, os seus interesses particulares.
20
O clero português ficou dividido politicamente, seguindo, de maneira geral, as
duas facções que disputavam o trono e o controle da monarquia. O cardeal D. Frei
Patrício da Silva, tido como liberal, apoiava a formação de uma monarquia moderada,
chegando a compor o governo regencial da Infanta D. Maria Isabel, que deveria
governar Portugal até a coroação da sua sobrinha Dona Maria da Glória. Por outro lado,
encontramos a figura de Frei Francisco de S. Luis, tido como um dos maiores adeptos
da monarquia absolutista e defensor de Dona Carlota Joaquina e Dom Miguel.
21
Foi nesse cenário politicamente conturbado que o pe. Benigno de Carvalho
18
SEIXAS, Dom Romualdo. Memórias... 1861, p. 146.
19
PASSOS, Carlos de. O problema da sucessão de D. João VI. In: História de Portugal. Porto: Editora Portucalense,
Vol. VII, 1934, p. 127.
20
PASSOS, Carlos de. Reinado de D. Pedro IV e Regência Constitucional. In: História de Portugal. Porto: Editora
Portucalense, Vol. VII, 1934, p. 139, 159.
21
PASSOS, Carlos de. Reinado de D. Pedro IV ..., p. 138-160.
deixaria a sua terra natal e viria para o Brasil, estando aqui já provavelmente em 1829,
apesar de seus primeiros biógrafos, Sacramento Blake
22
e J. F. Velho Sobrinho
23
,
datarem a sua chegada como tendo ocorrido em 1834. Em fevereiro de 1830, o Pe.
Benigno já fazia publicar o seu primeiro ensaio na Bahia, que fora recitado na Igreja
Matriz de Santo Amaro da Purificação em fevereiro do mesmo ano
24
. Isto indica que os
dois especialistas em biografias do século XIX estavam equivocados a respeito do
início da presença do Pe. Benigno em terras brasileiras e baianas. Cândido da Costa e
Silva, no seu trabalho sobre o clero baiano no século XIX, Os Segadores e a Messe,
através de uma rica pesquisa arquivística, confirma a presença do Padre Benigno de
Carvalho na Bahia em data anterior a 1834.
Benigno José de Carvalho e Cunha, filho de José Antônio de Carvalho e de
Feliciana Roza de Viterbo, nasceu na Freguesia de Santa Maria Maior da Vila de
Chaves, na província portuguesa dos Trás-os-Montes. Esta formava, junto com a do
Minho, Beira, Estremadura, Alentejo e o Território de Algarves, o espaço político e
geográfico do reino de Portugal. Educado em família católica, como de costume em um
país como Portugal de forte tradição nesta religião, mostrou-se inclinado para a vida
sacerdotal, alcançando, provavelmente em 1813, a ordenação de presbítero.
25
Depois de ordenado, já na Universidade de Coimbra, a mais prestigiosa
instituição acadêmica de Portugal, centro importante de formação da intelectualidade
lusitana, o Pe. Benigno doutorou-se em Teologia e, não fosse o seu envolvimento
político durante o processo de sucessão do trono após a morte de D. João VI, teria
concluído o Doutorado em Matemática.
26
Em Coimbra, teve uma formação, como era
usual, concentrada no Direito Canônico. De tal forma que ensinou, durante quase toda
a sua vida, a disciplina Teologia Dogmática, tanto no Brasil, no Seminário aberto por
Dom Romualdo em 1834, como em Portugal na cidade de Évora, onde ministrava, no
Colégio da Purificação, Filosofia Racional, Natural e Moral, além de Geometria e
22
BLAKE, Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, Vol. I, 1883, p. 392-
393.
23
VELHO SOBRINHO, J. F. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Irmãos Pangetti, Vol. II, 1973, p.
250.
24
O ensaio foi a transcrição de um discurso recitado pelo Pe. Benigno em homenagem às núpcias de D. Pedro I com
a sua segunda esposa, a princesa bávara D. Amélia de Leuctemberg. Analisamos o seu conteúdo no capítulo II.
25
SILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores..., 2001, p. 331-332.
Teologia Dogmática
27
. Devido a sua habilidade com o Direito Canônico, Dom
Romualdo, além de confiar-lhe cadeira de importância no seminário diocesano como
professor, o nomeou Procurador do Cabido da Sé Metropolitana
28
, cargo da mais alta
confiança do Arcebispo, pois deveria resolver, com seus pareceres, todas as
pendências ou discórdias jurídicas no que se refere à convivência entre os membros do
clero ou outras questões que envolvessem a Arquidiocese baiana
29
.
Cândido da Costa e Silva qualifica a formação do clero brasileiro, quando este ia
aprofundar os seus estudos em Coimbra, como “sistematicamente formada na tradição
do absolutismo português, mediante o direito ditado em Coimbra”. Segundo Silva,
apenas o curso de Teologia, no Curso de Direito Canônico, tinha como disciplina
principal a jurisprudência Canônica. De acordo com os estatutos, esse “Direito assim
Público, como particular, ou he commum da Igreja Universal, ou he especial das Igrejas
Nacionais; e a cada Nação he da última importância conhecer perfeitamente o Direito
Canônico, e especial da sua Igreja”
30
. Daí a preferência do Arcebispo baiano em confiar
a Procuradoria do Cabido um sacerdote preparado nas lições de Coimbra, que
reforçava o estudo dos cânones eclesiásticos.
Segundo Sacramento Blake, no seu Dicionário Bibliográfico Brasileiro, depois da
sua formação como sacerdote secular, antes de chegar ao Brasil, o padre Benigno de
Carvalho ingressou na Congregação da Missão, onde aprendeu idiomas orientais,
próprios para o trabalho de missionário
31
. Na documentação que consultamos,
encontramos poucos dados que comprovam a presença do padre Benigno entre os
lazaristas, como eram conhecidos os padres dessa Congregação. Porém, há alguns
26
BLAKE, Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro..., p. 392.
27
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. Discurso recitado na Igreja Matriz de Santo Amaro da Purificação por
occasião da festividade celebrada no dia 5 de Fevereiro do corrente anno, pelo consócio de S. Majestade Imperial o
Senhor D. Pedro I, Imperador constitucional ... com a Princeza de Leuctemberg e Eiscthoedt. Bahia: Typ. Nacional
e Imperial, 1830, p. 01.
28
O Cabido da Sé funcionava como um conselho da Arquidiocese, cujos membros eram os Cônegos, que gozavam
de privilégios perante o clero local.
29
SEIXAS, Dom Romualdo. Memórias... 1861, p. 146. Segundo Kátia Mattoso, os integrantes do Cabido eram
“integrantes do alto clero baiano originários das famílias mais importantes da cidade e de seu Recôncavo. Seus
cargos serviam, antes de mais nada, para aumentar o prestígio social de que eles e suas famílias gozavam, pois as
rendas auferidas na Igreja vinham de uma Coroa pouco generosa com seus servidores. Superavam as recebidas pelos
seus titulares de paróquias, mas eram muito inferiores às recebidas pelos católicos europeus”. Cf.: MATTOSO, Kátia
M. de Queiroz. Bahia século XIX, uma Província do Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 334.
30
SIILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores . . . , 2001, p. 161.
indícios que nos levam a considerar como verossímil a afirmação de Blake. Fundada
em 1625 por São Vicente de Paula, a Congregação da Missão chegou em Portugal em
1820. O Pe. Benigno já estava ordenado desde 1813. A Congregação caracterizou-se
pelo ensino aos jovens, particularmente na organização de seminários e por missões
em várias partes do mundo. As características da Congregação estão perfeitamente de
acordo com a formação do Padre Benigno e com os trabalhos por ele desenvolvidos na
Bahia. Se as informações de Sacramento Blake forem verdadeiras, o Pe. Benigno foi
um dos primeiros lazaristas a imigrar para o Brasil.
Entretanto, a chegada oficial dos lazaristas na Bahia foi em 1853, quando Dom
Romualdo, na tentativa de melhor organizar o seminário diocesano, os convoca para
mais uma missão educacional, afirmando:
[...] um dos principais objetivos do admirável Instituto de São
Vicente de Paula foi a reforma dos seminários eclesiásticos,
que deu frutos salutares para a regeneração do clero da
França e outros países da Europa, que os bispos
empenharam-se em adotar em suas dioceses, movido pelo
exemplo dado pelo eminente Bispo de Mariana
32
,
encarregando esses padres, fiéis discípulos e herdeiros do
espírito de seu imortal fundador, não somente da fundação
mas igualmente da regência das cátedras de seu seminário,
compreendi que era preciso também tomar essas medidas
para promover a melhora dos Pequeno e Grande seminários
deste Arcebispado, do qual dependem os futuros destinos da
31
BLAKE, Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro..., p. 392.
32
D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana (1844-1876) pertencia à Congregação da Missão e formava com
Dom Romualdo Seixas, D. Antônio de Macedo Costa, bispo do Pará e posteriormente Arcebispo da Bahia (1861-
1891), e Dom Antônio Joaquim de Melo, bispo de São Paulo (1851-1851), a linha de frente do alto clero brasileiro
que defendia as prerrogativas da Santa Sé em Roma. Ultramontanos e conservadores construíram de forma veemente
a reforma da Igreja no Brasil seguindo a linha tridentina . Em Minas Gerais, os lazaristas dirigiam o famoso Colégio
do Caraça, que educava os filhos da elite local. Cf: AZZI, Riolando, SILVA, Cândido da Costa e. Dois estudos sobre
Dom Romualdo..., 1981, p. 17.
Igreja metropolitana..
33
A presença dos padres lazaristas na Bahia, quando da sua chegada, foi marcada
por forte repúdio e manifestações de hostilidade por parte do clero local, que achava
um atrevimento entregar o ensino e direção dos seminários a esses padres
estrangeiros. Dom Romualdo vai considerar uma “guerra injusta” a repulsa à presença
desses religiosos. A oposição à continuação desses padres nos seminários foi violenta,
da mesma forma como foram atacadas com críticas severas as Irmãs de Caridade
34
.
Essa oposição explica por que Dom Romualdo não pôde entregar de imediato o ensino
nos centros de estudos da Diocese a esses padres; esperava-se que os ânimos
contrários se desvanecessem. Só em dezembro de 1861, com o Cônego Rodrigo Inácio
de Souza Menezes assumindo provisoriamente a Arquidiocese, depois da morte de
Dom Romualdo, seriam declarados sem efeitos os contratos com os Padres da Missão,
que saíram dos seminários em julho de 1862
35
.
Se os padres lazaristas da Congregação da Missão já se faziam presentes em
Minas Gerais, no prestigiado Colégio do Caraça e na própria pessoa do Bispo de
Mariana, Dom Viçoso, teria o padre Benigno de Carvalho participado da implantação
dessa Congregação em Minas Gerais? Não temos documentação suficiente que venha
responder a essa pergunta, mas não seria de estranhar a sua colaboração com os
religiosos da mesma congregação de que fazia parte se, é claro, considerarmos as
afirmações de Sacramento Blake como verdadeiras.
No necrológio do padre Benigno, publicado pelo jornal O Noticiador Cathólico,
encontramos um reforço para a informação de Sacramento Blake. Afirma o periódico
que,
33
SEIXAS, Dom Romualdo. Memórias... 1861, p. 337-338. In. MATTOSO, Kátia M. de Queiroz. Bahia século
XIX,..., 1992, p. 386.
34
As Irmãs de Caridade ou Irmãs de São Vicente de Paula chegaram à Bahia em 1853 e deveriam exercer atividades
junto a doentes e mulheres de vários estratos sociais. Sofreram também forte oposição na capital baiana. Os padres
lazaristas, a princípio, deveriam servir de capelães para as essas irmãs até assumirem a direção dos Seminários
Menor e Maior em Salvador. Teria sido a estratégia usada por Dom Romualdo na tentativa de evitar maiores
conflitos com o clero insatisfeito com as suas presenças. Cf: SEIXAS, Dom Romualdo. Memórias... 1861, p. 337-
338.
35
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia século XIX ... , p. 387-388.
O falecido reverendo Cônego Benigno era natural de Portugal,
e havia sido educado na Congregação de São Vicente de
Paulo, sublime Instituto que na França, e por toda parte tem
produzido um certo ilustrado e fiel a sua missão divina.
36
No mesmo necrológio encontra-se a confirmação da sua formação em Coimbra e
o seu envolvimento com brasileiros que lá iam estudar. Diz o periódico que o padre,
Sempre distinguindo-se no amor das Letras, frequentou a
Universidade de Coimbra, e ahi chegou mesmo a ensinar,
como podem attestar distinctos brasileiros que forão seos
discipulos n’aquella cidade.
37
Durante o século XVIII e até o processo da Independência, a Bahia foi, entre as
regiões do Brasil, a que mais encaminhou estudantes para Coimbra, demonstrando a
preferência da elite baiana por esse centro de excelência no ensino superior de
Portugal.
38
Os redatores que assinaram a autoria do necrológio do Padre Benigno, Cônego
J.J. da Fonseca Lima e o Pe. Mariano de S. Roca de Lima, afirmam, no final do texto
laudatório, que foram seus “discípulos com muita honra”. Indicam, dessa forma, a
possibilidade de terem sido alunos seus, ou em Coimbra, ou já no Seminário Maior
39
.
No caso do Cônego J.J. da Fonseca, é mais provável que tenha sido aluno em
Coimbra, pois o Seminário só retomou suas atividades em 1834 e sua formação
sacerdotal foi anterior a esta data. Estas informações têm a relevância de atestar a
aproximação, que afirmamos acima, do padre Benigno com a comunidade de
estudantes brasileiros, e particularmente baianos, quando ministrava suas aulas
naquele centro acadêmico. É provável que esta aproximação, com laços de amizade ou
36
O Noticiador Cathólico, 20 de março de 1852. Salvador, Typ. de Epiphanio Pedroza, 1852, p.300
37
Idem, ibid.
38
WANDERLEY PINHO, A Bahia (1808-1856). In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização
Brasileira. São Paulo: Bertand do Brasil , p. 242-311, 1997, p. 300.
39
O Noticiador Cathólico, 20 de março de 1852, p. 303.
através da relação professor aluno, tenha influenciado a escolha da Bahia para a
fixação de sua residência, motivada pela conturbada situação política de Portugal.
Com a abertura do Seminário Maior por Dom Romualdo em 1834, o padre
Benigno de Carvalho assumiria a disciplina Teologia Dogmática, a mais adequada aos
seus dotes e formação intelectual. Com a experiência adquirida no ensino desta
disciplina em Portugal, e com sua erudição, foi neste período que ele começou a
escrever seu mais importante livro, um tratado de Teologia em dois volumes, publicado
em 1837, dedicado ao Arcebispo Dom Romualdo, seu protetor e amigo. O tratado,
intitulado A Religião da Razão ou a Harmonia da Razão com a Religião Revelada,
deve ter feito parte do material de referência dos estudantes do Seminário, pois estava
de acordo com a visão de religião e fé que Dom Romualdo pregava, sem contar que foi
escrito por um professor da instituição. Na dedicatória ao Arcebispo, o Pe. Benigno
exalta a Religião Católica que
Há mais de 18 séculos [...] se tem programado, e perpetuado
até esses dias, triunphando sempre das perseguições, e
ataques violentos, e repetidos, que seo berço lhe foram dados
pelo fanatismo judaico, e pagão, e no andar dos tempos pelo
delírio dos hereges, e dos ímpios. Em todo o tempo as suas
armas, tão fataes, alias à seus inimigos, foram a razão. E a
paciência: aquella, empregada por seos apologistas, que
apresentavam em toda a evidência os sólidos fundamentos de
sua fé; esta sustentada pelo corpo dos fiéis, e seus pastores
no sofrimento dos vexames, tormentos e da mesma morte,
com que a impiedade os maltratava acinte, e os
assassinava.
40
Na tentativa de construir um manifesto teológico a favor do catolicismo e contra
40
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão ou a Harmonia da Razão com a Religião Revelada.
Bahia: Typ. De Aurora Serpa e Cia, Vol. I, 1837, p. 03.
qualquer argumentação, científica ou religiosa, que viesse a manifestar oposição aos
dogmas pregados pela Igreja Católica, o tom que se estabeleceu no prefácio, como
transcrito acima, será mantido ao longo do livro.
Podemos destacar, de forma sucinta, alguns pontos temáticos encontrados nos
dois volumes, que demonstram que o padre Benigno de Carvalho foi um homem
comprometido com as idéias e postulados do seu tempo, e com sua formação
intelectual a partir da Universidade de Coimbra. Dificilmente seria diferente o seu
comportamento teológico frente às outras religiões ou qualquer pensamento que viesse
a ferir os preceitos da Igreja.
Assim, afirma, através de uma retórica rebuscada, que “a Religião é
absolutamente necessária ao homem”, pois só era possível alcançar a felicidade a partir
dos méritos espirituais que ela concedia a cada indivíduo. Defende a Revelação divina
como forma de comunicação de Deus com os homens, tornando a Razão mais uma
forma desse processo de comunicação. Dessa forma, Razão e Revelação formariam o
par necessário para a humanidade alcançar a felicidade
41
. Não admite outra
manifestação do sagrado que não aquela vinculada à Igreja Católica, realizando
severas críticas ao Islamismo, chegando a declarar:
[...] Mahomet, impostor Arabe, que nasceo em 570, e morreo
em 631, he o autor da religião Mahometana: esta religião se
contém no Alcorão, que quer dizer livro. Basta a leitura do
Alcorão, para nos convencer da ignorancia de Mahomet, ainda
que elle mesmo a não confessasse, apelidando-se o Profeta
idiota.
42
Elenca uma relação de grupos heréticos e cismáticos que a Igreja Católica teve
que enfrentar ao longo da sua história institucional, desde a sua formação, durante a
fase do Império Romano, até a Idade Média. Estabelece, dessa forma, que o
41
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão ..., Vol II, p.163.
movimento protestante liderado, inicialmente por Martinho Lutero, era apenas um
movimento herético que a Igreja combateu, chegando a criticar abertamente a figura de
Lutero e defendendo, com isso, a supremacia católica sobre as outras religiões e
igrejas
43
. A esse respeito que
[...] os Reformadores, e Scismáticos, foram falsos Apóstolos,
Patores sem Missão, e sem caracter, que o edifício de sua
pretendida religião foi fundada no ar, e que a fé de soas
sectários não he mais que um enthusiasmo, o qual subsiste
por hábito, e por um interesse puramente político, pela
vergonha de se retractar depois de ter declamado tanto contra
a Igreja Romana, e que emfim a Religião Christan, como a
professa a Igreja Católica Romana, he a única verdadeira
Religião de Jesus Christo, e dos Apostolos
44
.
Além do tratado de Teologia Dogmática, cujo conteúdo é brevemente
mencionado acima, o padre Benigno foi editor de um periódico católico que circulou na
capital baiana com o nome de Theiopolyta, editado pela Tipografia Imperial e
Constitucional da Viuva Serva em 1839. A publicação do periódico teve pouca duração,
pois o primeiro número saiu em 20 de abril de 1839 e o último em 17 de setembro do
mesmo ano. Talvez os problemas financeiros de manter um jornal tenham provocado
sua vida curta. De qualquer forma, esta iniciativa vem compor a imagem de um padre
que possuía uma diversificada vida intelectual na Bahia no final da primeira metade do
século XIX, particularmente em Salvador.
No momento de circulação do Theiopolyta, a imprensa baiana florescia em
diversas publicações de gêneros diferentes, como o católico
Voz da Religião
(1833).
Pouco tempo depois, o próprio Dom Romualdo funda e colabora com artigos no
42
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão..., p.164.
43
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão ..., Vol II, p. 43-50, 51-66.
44
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão..., p. 64.
Noticiador Catholico (1848). Aparecem na mesma época os jornais de ciência como a
Gazeta Médica (1856), o Jornal da Sociedade Agrícola e jornais literários, como
Variedades, Época Literária, Revista Americana (1847), além de órgãos de sociedades
e associações como O Musaico (1844), da Sociedade Instrutiva, e O Crepúsculo
(1845), criado pelo Instituto Literário da Bahia. Estes são apenas alguns conhecidos
exemplos da circulação de periódicos em Salvador no final da primeira metade do
século XIX. Os periódicos católicos desempenharam um papel importante na
divulgação das idéias da Igreja, principalmente neste momento, em que a instituição
Católica buscava se afirmar perante o Estado Imperial. A figura de Dom Romualdo
Seixas, líder desse processo na Bahia, cumpriria o papel de incentivadora e
patrocinadora de várias publicações que comungassem com as suas propostas
políticas e eclesiásticas
45
.
Velho Sobrinho, no seu Dicionário Bibliográfico Brasileiro, afirma que o padre
Benigno foi também autor de um inusitado ensaio que possuía como título A navegação
aérea ou a maneira segura de viajar pelo ar para qualquer parte do Mundo , impresso
em Salvador pela Tipografia do Órgão da Lei em 1832, com 40 páginas. Apesar de
infelizmente não termos encontrado esse ensaio nas nossas buscas, não deixa de ser
curiosa a possibilidade do padre Benigno ter enveredado pela pesquisa aérea, num
momento histórico em que o homem estava longe de pilotar o seu primeiro avião
46
.
Esse ecletismo intelectual de Carvalho é compreensível e natural, numa época
em que os intelectuais tentavam abarcar as várias áreas do conhecimento, e também, é
claro, dada a falta de professores específicos nas diversas ciências, o que obrigava os
poucos mestres a ensinarem múltiplas disciplinas. Tanto é assim que, além de editor de
jornal e professor de Teologia, Benigno de Carvalho também ensinava Música,
Filosofia, Latim, Geometria, Retórica e Grego. Sua atuação como professor de
Geometria provavelmente se devia a sua mencionada formação em Coimbra, que ficou
incompleta devido às questões políticas que o envolveram durante a chamada
Revolução Portuguesa.
45
WANDERLEY PINHO, A Bahia ..., p. 305.
1.2. Naturalização e nomeação como Cônego
Antes de assumir o cargo de professor de Teologia Dogmática no Seminário
Maior em 1834, o Pe. Benigno José de Carvalho e Cunha obteve, por parte de D.
Romualdo Seixas, todo o apoio necessário para o seu processo de naturalização como
cidadão do Império brasileiro
47
. A busca da nova cidadania, e talvez a pressa com que
o processo foi concluído, podem ser justificadas pelas ainda recentes hostilizações de
que os portugueses foram alvo logo após as lutas pela Independência. Procurar
naturalizar-se, para um português fixado na terra era, quase sempre, um caminho mais
seguro para o desenvolvimento dos seus interesses econômicos e facilitava sua
penetração nos meios políticos da Província
48
.
Essa afirmação de uma identidade nacional, chegando mesmo a repudiar até a
origem portuguesa, era comum, durante os primeiros meses após a Independência.
Frederico Edelweiss, consultando os jornais O Constitucional (1823) e o Independente
Constitucional (1824) encontrou uma lista de portugueses que apoiaram a nossa
Independência, ou descendentes destes que lutaram nos batalhões patrióticos em
Salvador ou no Recôncavo, que inclusive trocaram seus sobrenomes. Estes, em geral,
adotaram como sobrenomes termos designativos dos elementos da natureza da terra
recém liberta, ou de personagens da História da América, que faziam questão de
divulgar nesses periódicos. A lista é grande, mas podemos citar alguns mais curiosos,
de indivíduos que, no afã patriótico, colocaram em segundo plano questões estéticas na
escolha do nome, como Francisco Jê Acaiaba Montezuma, Manoel Colombo
Borborema, ou o extenso nome de Benedito Frósculo Joviano de Almeida Aimberê
Militão de Souza Bauruê Itaparica de Borré Fu Mi Ni Tacunduva
49
. O clamor patriótico
46
VELHO SOBRINHO, J. F. Dicionário ... , p. 250.
47
SEIXAS, Dom Romualdo. Memórias... 1861, p. 146.
48
WANDERLEY PINHO, A Bahia ..., p. 268-273.
49
EDELWEISS, Frederico G. “A Antroponímia Patriótica da Independência”. Salvador, Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, nº. 88, 1976-77, p. 137-158.
também chegou ao clero local, que participou das lutas, a exemplo do padre português
Manoel José de Freitas Batista Mascarenhas, vigário em Cachoeira, que teve
importante participação na consolidação da independência no Recôncavo, mudando o
seu nome para Manoel Dendê Bus em 14 de março de 1823, mudança autorizada por
despacho do Governo e acompanhada do aviso público pela imprensa local
50
.
O padre Benigno de Carvalho preferiu manter a sua identidade original e, em
menos de uma década de instalado na Bahia, alcançou tal confiança do Arcebispo que,
além de ocupar postos importantes dentro da administração da Arquidiocese, como
Procurador e Examinador Sinodal, tomou posse como Cônego da Sé baiana, em
outubro de 1839. A partir daí, passou a fazer parte de um grupo seleto de clérigos que
possuíam o privilégio de compor o Cabido baiano, posto que conferia dignidades e
honras almejadas por muitos do próprio clero local.
Para ingresso nesse grupo privilegiado do clero, em geral, o pretendente a
Cônego devia escrever um requerimento para a Mesa de Consciência e Ordens da
Arquidiocese, acompanhado do beneplácito do Arcebispo, que presidia o Cabido,
dando assim legitimidade ao processo de adesão. Além do requerimento, o candidato
anexava o seu curriculum intelectual, que certamente constituía um dos elementos
definidores da homologação do pedido, além, é claro, dos serviços já prestados à
mesma Arquidiocese e do seu grau de influência política ou econômica
51
.
O Cônego Benigno José de Carvalho e Cunha foi registrado e recebeu as
devidas honras e homenagens no dia 12 de outubro de 1839, como mandava a tradição
desse restrito colegiado clerical. Fez uso, a partir daí, do Sendal roxo
52
. Este era
[...] uma graça pontifícia concedida única e privativamente às
dignidades, aos Cônegos e aos meios Cônegos da mesma
Sé. [...] privilégio que fora solicitado por D. João VI e
concedido pelo Papa Pio VII, para que ‘fossem condecorados
50
BARBOSA, Manoel de Aquino. Padre Manoel Dendê Bús. Salvador, Anais do Arquivo do Estado da Bahia,
Vol.40, 1971, p. 171-209.
51
SIILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores . . . , 2001, p. 196.
52
BN, Seção de Manuscritos II 34,8,23.
as Dignidades, os Cônegos e meios cônegos, com um cinto
de sêda de cor rôxa, em atenção a ser a primeira Igreja deste
Reino, em que o mesmo Augusto Senhor rendeu a Deus as
devidas graças por have-lo salvado e a toda a real Família
dos perigos por que passaram’
53
.
Além do Sendal roxo, usava murça e sobrepeliz como todos os outros Cônegos
da Sé baiana. A pompa era, sem dúvida alguma, necessária para este corpo clerical
que, ao desfilar em procissão solene, impressionava os baianos.
Também impressionaram muitos viajantes estrangeiros algumas peculiaridades
do nosso clero. O Príncipe austríaco Maximiliano de Habsburgo
54
, visitando a Bahia em
1860, em seu diário de viagem, relatava a contradição espiritual e moral pela qual a
Igreja Católica passava ao conviver com a escravidão, comportando-se, muitas vezes,
os sacerdotes como simples funcionários públicos. O Príncipe afirmava não
compreender
[...] como um padre católico, no Brasil, pode ter coragem de
pregar do púlpito o Evangelho. Eles teriam que pregá-lo Ad
usum Delphini. Como mais tarde me convenci, não há, porém,
também no Brasil, além do respeitável Núncio, que se
crucifica, em vão, no seu sagrado fervor, nenhum sacerdote
católico verdadeiro. Eles são apenas empregados que usam
batina preta e celebram missa porque é moda.
55
53
BARBOSA, Manoel de Aquino. Padre Manoel..., p.180.
54
Ferdinand Maximilian de Habsburgo (1832-1867) visitou a Bahia em janeiro de 1860, permanecendo apenas
quatro dias em Salvador, seguindo depois para Ilhéus, registrando em seu diário de viagem ricas observações sobre a
cultura, escravidão e os vários tipos humanos que compunham a Bahia dos princípios da segunda metade do século
XIX. Morreu tragicamente em 1867, como Maximiliano I, como Imperador do México, executado pelas tropas
republicanas de Juarez.
55
HABSBURGO, Maximiliano de. Bahia 1860. Esboços de viagem. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Salvador:
Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1982, p. 113.
No mesmo diário, Maximiliano de Habsburgo ficou impressionado com a riqueza
“alegórica” da Festa do Bonfim e de uma “alegria” do nosso clero. Ao entrar na sacristia
da igreja, ”[...] espaçosa, ricamente ornamentada” estava, segundo ele, ”um padreco
alegre, amarelo [...], encostado a um baú, ao lado dos paramentos e do cálice,
conversando, comodamente e de maneira mais solícita, com algumas Senhoras. Era
uma sacristia confortável e jovial”.
56
Além de “Doutoral Magistral”, designação para aqueles que possuíam formação
acadêmica apropriada para a interpretação das escrituras sagradas, o Cônego Benigno
era de Prebenda inteira, ou seja, recebia uma remuneração mensal, vinda dos cofres
públicos, como era de costume no padroado
57
. Sua remuneração, em 1841, chegava a
400$000. Seus dividendos eram engrossados com o salário de 350$000, que recebia
como professor do Seminário Maior. Em conjunto os seus ganhos provavelmente não
representavam um grande salário pois, em carta ao Cônego Januário da Cunha
Barbosa, secretário e fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, queixava-se
da sua renda como Cônego e professor.
58
Para compararmos os rendimentos do Cônego com os salários de outros
trabalhadores ou profissionais da época estudada, podemos recorrer a Kátia Mattoso,
que definiu o salário de um pedreiro no século XIX, com pouca variação, em 250 mil
réis anuais e o de um professor em 800 mil réis
59
. A média recebida pelos párocos na
Bahia em 1835, ainda segundo Kátia Mattoso, não passava dos 25 mil réis anuais,
porém esses rendimentos poderiam ser engordados pelas contribuições dos fiéis. Mas,
de um modo geral, os salários dos sacerdotes baianos não correspondiam a uma
situação de conforto, apesar de alguns testamentos de padres descreverem uma
riqueza invejável. Porém essa não era a regra, levando-nos a concluir que os
rendimentos não só do Cônego Benigno, como de outros membros do corpo sacerdotal,
56
HABSBURGO, Maximiliano de. Bahia 1860. Esboços de viagem... , p. 113.
57
Existiam também os Cônegos de meia prebenda, que recebiam meio salário, e os Cônegos honoríficos, que não
recebiam côngruas e não poderiam participar do Coro Capitular, nem ter direito a voto nas reuniões do Cabido.
Geralmente, eram velhos sacerdotes, próximos da aposentadoria, alguns do interior que, por gratidão aos serviços
prestados na Arquidiocese, conseguiam a designação de Cônego.
58
BN, Seção de Manuscritos, I 3, 11, 81.
59
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia século XIX ... , p. 365.
não eram montantes consideráveis
60
.
O Capítulo da Sé baiana era formado por dezoito capitulares vitalícios, sendo
nove cônegos de prebenda inteira, que deveriam, por obrigação assumida, residir em
Salvador, para que pudessem seguir todas as regras impostas a sua condição, como
participar dos ofícios no Coro Capitular, respeitando os momentos de oração, o Oficio
Divino, como mandava a liturgia das Horas. Isto além dos encargos administrativos ou
eclesiásticos que cada um possuía, de acordo com a sua formação intelectual e
aptidões pessoais. No caso específico do Cônego Benigno de Carvalho, estava
também conferido o título de Magistral, somado à posição de Examinador Sinodal e de
Procurador do Cabido, estando de acordo com a sua formação e experiência, o que lhe
proporcionava respeito e admiração. Desde o Concílio de São Latrão que a Igreja
determinava que as sedes metropolitanas tivessem em seu corpo eclesiástico doutores
em Teologia para a interpretação das Sagradas Escrituras, não só para os fiéis como
para os seus próprios pares.
61
A função de Procurador do Cabido foi desempenhada pelo Cônego Benigno por
pouco tempo. Algumas posições por ele tomadas não teriam agradado o Arcebispo,
que em suas memórias chegou a relatar uma querela entre o Cura da Catedral e o
Cabido, no ano de 1840. Como era de costume, relata o Arcebispo, o Cura da Catedral
tinha direito aos rendimentos paroquiais, porém ainda recebia o salário de prebenda
inteira como cônego, acumulando uma renda respeitada e ao mesmo tempo desejada
por muitos, fazendo com que a Assembléia Curial questionasse esse acúmulo, pedindo
uma posição de Dom Romualdo sobre a questão. O Arcebispo encaminhou o caso ao
Procurador, Cônego Benigno, na expectativa de que este desse um parecer
conciliatório. No entanto, a interpretação de Carvalho, ao invés de acalmar os ânimos,
acirrou-os ainda mais. Contrário ao Cura da Catedral, propôs levar a questão até a
Assembléia Imperial no Rio de Janeiro. Não alcançando o pretendido e desolado,
pediu demissão do cargo de Procurador. Dom Romualdo quando narra estes fatos em
suas memórias, deixa claro que esse episódio provocou um abalo na sua relação de
60
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia século XIX ... , p. 360.
61
SIILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores . . . , 2001, p. 194-195.
confiança com o Cônego
62
.
De qualquer sorte, padre Benigno não pôde gozar, por muito tempo, os
privilégios que a sua posição conferia, como Procurador do Cabido ou como professor
do Seminário, pois, em dezembro de 1841, a experiência mais importante da sua vida,
que marcou para sempre a sua história pessoal, estava para acontecer. Trata-se da
expedição científica, financiada pelo governo imperial, o IHGB e o governo provincial
baiano, em busca da provável cidade perdida na Serra do Sincorá na Chapada
Diamantina, que consumiu mais de cinco anos de jornada pelos sertões da Bahia e a
sua própria vida. Analisamos esta sua investida científica no capítulo III.
2. ALEGORIAS DE UM IMPÉRIO
A cidade de Santo Amaro da Purificação, situada no Recôncavo baiano e um
dos principais centros de produção de açúcar no século XIX, viveu, no dia 05 de
fevereiro de 1830, um clima de festa. Senhores de engenho e seus familiares, as
62
SEIXAS, Dom Romualdo. Memórias... 1861, p. 145-147.
autoridades locais e o clero esperavam com expectativa o discurso do padre Benigno
de Carvalho. A festa era para comemorar o casamento do Imperador Dom Pedro I com
a Princesa bávara Dona Amélia de Leuctemberg. Esse seria o segundo casamento de
Dom Pedro, que havia ficado viúvo com a morte da Imperatriz Dona Leopoldina em
1826.
O discurso
63
em homenagem às núpcias imperiais é um rico documento para
uma análise das representações
64
do poder monárquico e a própria figura imperial no
Brasil, única monarquia das Américas. Foi publicado no mesmo ano (1830), o que
sugere a aceitação que teria alcançado junto a setores da elite. A publicação foi editada
pela Typographia Nacional e Imperial. Esta e a Typographia de Silva Serva,
constituíam, até 1828, as únicas opções para impressão de material de divulgação em
Salvador, produzindo as publicações oficiais do governo ou publicações avulsas
65
.
No texto, o padre Benigno não poupou elogios a essa “Monarquia dos trópicos
e à pessoa do “AugustoePai da Nação, como ele diversas vezes vai referir-se a D.
Pedro I. A razão do tom laudatório talvez seja uma forma de agradecimento pela
acolhida que teve por parte do governo imperial quando da sua chegada ao Brasil. Mas,
de qualquer sorte, o discurso está escrito de acordo com os cânones deste tipo de
texto. A elaboração de discursos em homenagem a soberanos, ressaltando as suas
qualidades, muitas vezes duvidosas, não era uma novidade no momento em questão.
Duvidosa também, poderíamos considerar, seria a própria qualidade intelectual desses
63
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. Discurso recitado na Igreja Matriz de Santo Amaro da Purificação por
occasião da festividade celebrada no dia 5 de Fevereiro do corrente anno, pelo consórcio de S. Magestade Imperial
o Senhor D. Pedro I, Imperador constitucional ... com a Princeza de Leuctemberg e Eiscthoedt. Bahia: Typ.
Nacional e Imperial, 1830. Ver a transcrição integral do discurso nos anexos p.111.
64
O conceito de representação utilizado aqui é o formulado por Roger Chartier como “o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”. Chartier propõe uma
história cultural “que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos - ou, por outras palavras das
representações do mundo social - que à revelia dos atores sociais traduzem as suas posições e interesses
objetivamente confrontados e que paralelamente descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como
gostariam que fossem”. Cf.: CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,
1988, pp. 16, 17 e 19.
65
WANDERLEY PINHO. A Bahia (1808-1856). In: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Bertrand
do Brasil, p. 242-311, 1997, p. 304. Desde 1821, ano do regresso de D. João VI a Portugal, como informa Jorge
Carvalho do Nascimento, “regulamentou-se a liberdade de impressão no Brasil e quebrou-se no Rio de Janeiro, o
monopólio da Impressão Régia com a instalação de duas novas empresas gráficas”. (NASCIMENTO, Jorge
Carvalho do. “Nota prévia sobre a palavra impressa no Brasil no século XIX: a biblioteca do povo e das escolas”.
Horizontes, Bragança Paulista, v. 19, p. 15-25, p. 13, jan/dez., 2001). Na Bahia na esteira dessa expansão, foram
criadas as primeiras tipografias regulamentadas pelo governo.
discursos, como bem alertou Wilson Martins na História da Inteligência Brasileira
66
,
propondo, porém, que o mérito desses textos “não se mede apenas em termos de
valor, mas também em termos de significação. O que não pertence à história da
literatura pode pertencer à história da cultura”
67
. O autor destaca as ricas
representações sobre o poder político veiculadas nos discursos, que podem ser
utilizados como fontes para o historiador, na compreensão do intricado jogo político de
um período. No caso do discurso de Carvalho, o conturbado Primeiro Reinado (1822-
1831), período da construção e consolidação do Brasil independente.
É necessário ter em mente, como afirma Lynn Hunt, que os “documentos que
descrevem ações simbólicas do passado, não são textos inocentes e transparentes;
foram escritos por autores com diferentes intenções e estratégias para lê-los”
68
. Desta
forma, precisamos também ter um quadro do contexto histórico, com suas teias de
relações econômicas, políticas, sociais e culturais para, a partir daí, podermos trilhar
caminhos mais seguros na pesquisa histórica, que nos conduzam ao entendimento do
nosso objeto de estudo.
Em 1809, já com a família real portuguesa instalada com sua corte no Rio de
Janeiro, encontramos alguns exemplos de Odes
69
, em sua homenagem de autoria do
clero e da intelectualidade local. Este é o caso do “Sermão em Ação de Graças Pela
Vinda do Príncipe regente Nosso Senhor para os Estados do Brasil”, pregado em
Recife pelo Fr. Bento da Trindade e da “Ode à chegada de Sua Alteza Real, o Príncipe
Regente, Nosso Senhor, ao Brasil”, de Joaquim José Lisboa publicada em 1810.
Poderíamos citar aqui uma lista enorme de obras com essas características que foram
publicadas pela Impressa Régia, na época recentemente criada no Brasil. Podemos
destacar ainda as oratórias famosas de Frei Antônio da Soledade (1755-1836), Pe.
Antônio Pereira de Souza Caldas (1762-1814), Frei José de Santa Eufrásia Peres
(1784-1847), célebres em sua época pelas palavras de elogios à família real ou aos
66
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. 2 v, 3ª ed, São Paulo: T. A . Queiroz, 1992.
67
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira ..., p. 36.
68
HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 2001, p.18.
69
Composição em verso de caráter lírico, composta em estrofes simétricas, que se destina a ser cantada. Era um
recurso literário muito comum na época, sempre em tom laudatório.
acontecimentos históricos do reino português
70
. Quando a independência havia sido
recentemente instalada, José Pedro Fernandes recita, no Teatro São João, no Rio de
Janeiro, no dia inaugural da Assembléia Nacional Constituinte, um elogio a Pedro I,
motivado também pelo aniversário do novo Imperador. Poemas foram recitados por
Diogo Duarte e Silva para festejar a adesão de Santa Catarina à causa da
independência e celebrando, também, a aclamação de Sua Majestade Imperial
71
.
Tradicionalmente, o orador começava o texto em latim. Isto fazia parte da
estética da oração e demonstrava erudição do autor. Wilson Martins nos dá o exemplo
do Te Deum oferecido à família real, pela sua chegada a capital da Colônia, em 18 de
março de 1808, em cerimônia celebrada na igreja de Nossa Senhora do Parto. O orador
foi o Cônego João Pereira da Silva (1743-1818). Seu tema foi tirado da Primeira
Epístola de S. Paulo a Timóteo:
Ó povo, afortunado povo, faze ressoar comigo os teus júbilos,
em presença do príncipe regente Nosso senhor: Jubilate in
conspectu regis domini. Alvoroce-se o nosso mar com todos
os seus recôncavos. o nosso mundo com todos os seus
habitantes. Moveat mare, et plenitudo ejus orbis terrarum, et
universa quae hatitant in co. Ó América, ó Rio de Janeiro, e
também não se verifica em ti hoje textualmente o que de outro
mundo, já comensurado, preconizara então no seu divino
entusiasmo o profeta e rei?”
72
.
O discurso do Pe. Benigno não chega a possuir todas as características de
uma ode, pois não foi elaborado com o recurso lírico dos versos, aspecto presente
neste gênero literário. Porém, em muitos momentos podemos perceber um certo tom
lírico na construção dos parágrafos e na provável entonação que o orador teria dado às
palavras contidas no texto.
70
MARTINS, Wilson. História da Inteligência ..., p.78.
71
MARTINS, Wilson. História da Inteligência ..., p.118.
72
Apud, MARTINS, Wilson. História da Inteligência ..., p.77-78.
O discurso é dividido em duas partes. Na primeira, é feita uma descrição da
figura de Dom Pedro I, seus méritos como chefe de Estado, sempre lançando mão de
referências mitológicas para exaltar a imagem do imperador, além de encontrarmos a
visão política do Cônego, dentro de sua argumentação, sobre a situação do Primeiro
Reinado
73
. A segunda parte, mantendo o mesmo estilo, é dedicada a Dona Amélia,
caracterizando a sua nobre linhagem e exaltando, entre outros aspectos, a importância
de um novo casamento para o imperador, como também o papel da figura feminina no
poder político de uma Nação.
O casamento de D. Pedro com Dona Amélia de Leuctemberg e Eiscthoedt,
então com dezessete anos de idade, só foi possível depois de uma longa negociação
diplomática, pois a fama do nosso soberano de péssimo marido corria todas as casas
reais da Europa, provocando repúdio de várias candidatas ao pretendente nubente. A
morte repentina, com menos de 30 anos de idade, de Dona Leopoldina, pertencente à
casa dos Habsburgs; a mais importante e prestigiada do continente europeu e, como
se falava na época, devido aos maus tratos e depressões provocados pelo
comportamento sempre tempestuoso e infiel de D. Pedro I, ajudou a criar uma imagem
não muito favorável do Imperador do Brasil no mundo civilizado da Europa
74
.
Era, sem dúvida alguma, necessário melhorar essa imagem de Pedro I, não só
na Europa, mas particularmente dentro do Brasil, e um bom casamento seria o passo
inicial. De imperador autoritário, ele passa, no discurso, a pai da Nação e fiel
responsável pela nossa prosperidade. De esposo infiel, a consorte dedicado à futura
imperatriz de “sangue puro e heróico, como o discurso faz referência à linhagem real
de Dona Amélia
75
.
Coube não só ao padre Benigno de Carvalho esse papel de construir uma
imagem mais positiva do nosso imperador, tanto no sentido político, como na vida
pessoal. Descrevê-lo com características adornadas de elementos históricos e
73
Em 1830, quando o discurso foi proferido em Santo Amaro da Purificação, a convivência de Pedro I com a elite
brasileira, de um modo geral, apresentava sérios problemas de ordem política e ideológica, chegando, em abril de
1831, a levar à abdicação do imperador e seu retorno a Portugal.
74
KAISER, Gloria. Dona Leopoldina, uma Habsburg no Trono Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997,
p.304 e 305.
75
Anexos, p. 126-127.
mitológicos, que reforçassem a imagem de líder e bem sucedido soberano. Outros
oradores, que praticaram um lirismo embolado e de bajulação, como o padre Benigno,
exerceram esse papel e, sob encomenda ou com base em convicção política, tentaram
criar versões mais positivas de Pedro I. Este é o caso do já citado José Pedro
Fernandes, que produz em 1826 uma ode consagrada ao Imperador pelo “faustíssimo
aniversário do dia em que tomou a si o glorioso título de defensor perpétuo do Brasil”.
Na morte de Dona Leopoldina e de D. João VI, Jorge José Pinto Vedras e Francisco
Moniz Barreto produziram textos alusivos à glória imperial dos Bragança
76
.
Porém, é provável que em 1830, em plena crise do Primeiro Reinado, um ano
antes de D. Pedro I abdicar ao Trono, o discurso do padre Benigno de Carvalho tenha
sido um dos poucos ainda produzidos com a intenção de colorir uma paisagem mais
propícia ao imperador e seu governo, já debilitado pelas circunstâncias políticas do
momento.
2.1. “Beati viri tui, et beati servi tui”
“Benditos são os teus varões e benditos são os teus servos”. É utilizando esta
expressão bíblica que o discurso se inicia, seguindo, como já dissemos, a tradição de
inserção de termos latinos no texto. A utilização de referências bíblicas para ilustrar e
justificar a argumentação não chega a ser uma surpresa na construção estilística
montada pelo orador, dada a sua formação eclesiástica. Esta é uma marca que se
observa ao longo de todo o texto.
O extrato do texto bíblico citado acima vem acompanhado de uma analogia do
imperador com a figura do rei Salomão, construtor do conhecido Templo de Jerusalém
76
MARTINS, Wilson. História da Inteligência ..., p.157.
e considerado dentro da história bíblica como o mais importante dos soberanos judeus
da Antigüidade. A força política de Salomão e sua sabedoria ao negociar, articular
alianças e particularmente arbitrar as questões institucionais e políticas do seu povo é
sempre lembrada como exemplo para qualquer soberano que pretenda realizar um
governo justo e administrativamente competente
77
. Pedro I não só é comparado a
Salomão, como também é exaltado como o “melhor Monarca do Universo”, com um
“trono ocupado pela Justiça, e pela Sabedoria”
78
. Justiça, em seguida será dito, pela
liderança no processo de Independência do Brasil, e sabedoria pela forma como
conduzirá o poder monárquico através de uma Constituição apta à estrutura imperial
brasileira.
Na caracterização da monarquia brasileira, o padre Benigno estabelece uma
estrutura argumentativa calcada na sacralização do monarca. O soberano é visto como
um representante ativo do poder divino, cabendo aos súditos a obediência e a
passividade perante as decisões do trono. Para justificar esse poder, alega “esta Divina
Predileção, para com hum povo, a quem a Providência destina hum grande Monarca”
79
e que “querendo Deus fundar e conservar perpetuamente este glorioso Império, nos
decretos inexcrutáveis da sua providência, vos destinou para governa-lo ao Grande
Pedro”
80
.
Não podemos esquecer da formação erudita que Carvalho teve em Coimbra e
das suas prováveis leituras, pelo menos dos teóricos da ciência política, como Nicolau
Maquiavel, Jean Bodin, Hugo Grotius e o inglês Thomas Hobbes.No caso específico de
Hobbes, o autor do discurso em homenagem às núpcias imperiais, expressa idéias
similares às que fazem parte da concepção de Estado construída pelo pensador inglês
e sua própria visão de monarquia, em que personifica-se o Estado na figura do
soberano. Na formulação hobbesiana, a passagem do Estado da natureza, selvagem e
sem controle, para o Estado civil “ocorre quando os indivíduos renunciam ao direito de
usar cada um a própria força, que os tornava iguais [...] para a confiar a uma única
77
ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo.
São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p. 36.
78
Anexos, p.112.
79
Optamos por transcrever o texto respeitando a grafia original. Anexos, p. 112.
80
Anexos, p.109.
pessoa”
81
. Para Carvalho, a figura de Pedro I representa para o Brasil a pessoa
responsável pela nossa passagem do estado da natureza, que poderia ser entendida
como a nossa fase colonial, para o estado civil que a Independência proporcionou.
A defesa, feita pelo Cônego, da estrutura monárquica de governo, seria
posteriormente confirmada, de forma mais veemente, no seu tratado de teologia
dogmática, A Religião da Razão ou a Harmonia da Razão com a Religião Revelada.
Nele se afirma que,
[...] a vista disto não sei porque motivo se declama tanto hoje
contra as Monarchias, que apezar de também poderem ser
tyrannias, todavia eu quero antes um tyranno, do que um ou
muitos milhões delles. Todo o governo, qualquer que seja a
sua forma, tem sempre o grande e inevitável defeito de ser
administrado por homens, e deve ser tão sujeito á corrupção,
como os mesmos homens, e ainda por mais este motivo me
admiro de tanto se maldizer das Monarchias.
82
Como bom monarquista, não deixa de criticar a forma de governo republicana,
afirmando, na sua visão de política e soberania, que nessa forma de organização do
Estado, o soberano, aproxima-se do povo para ter o controle do pais, chegando a citar
a experiência republicana na América ou na Europa que, na sua opinião, ao invés de
conduzir a um governo justo, levou as nações à tirania.
83
O padre Benigno defende e
legitima a linhagem imperial brasileira como algo natural para a nossa estrutura política,
da mesma forma que, com certa energia, defende a Igreja Católica, como herdeira da
tradição apostólica:
81
BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5ª ed, Brasília: Ed da
UnB, 2000, p. 956.
82
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão ou a Harmonia da Razão com a Religião Revelada. I
v, Bahia: Typ. de Aurora Serpa e Cia., 1837, p.198.
83
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão..., p. 197-198.
Um Católico illetrado [...] sabe que a sua Religião vem de Jesus
Christo, e de Apostolos, como sabe, que a sua herança vem de
seos pais; crê que o Papa he sucessor legitimo de São Pedro,
como Pedro 2º he sucessor de Pedro I, e legitimo Imperador do
Brasil [...]. Eu me atrevo a desafiar todo aquelle, que tiver
nascido fora do gremio da Igreja Romana, e a quem faltem
letras, para que forme a mesma cadea de monumentos, e
apresente os mesmas provas sensíveis da sua fé.
84
As posições políticas de Carvalho não só eram divulgadas em suas obras
teológicas, mas também no jornal Theiopolita, que fundou e dirigiu na capital baiana,
como em outro momento assinalamos. Neste, mesmo dando apoio à forma monárquica
de governo, considera o catolicismo acima de qualquer estrutura de poder. Em todos
os números do periódico consultados, na primeira página, encontramos o seguinte
pensamento do filósofo francês Montesquieu (1689-1755), extraído da sua obra
clássica O Espírito das Leis, o que indica a posição do padre quanto o papel da religião
na vida de uma nação:
Os princípios do christianismo bem gravado no coração,
serião infinitamente mais fortes para nos fazer cumprir os
deveres de cidadãos, do que a falsa honra das monarchias,
as virtudes humanas das Repúblicas, e o temos servil dos
estados despóticos. He coisa admirável a Religião Christã,
que parece não ter outro objecto senão a felicidade de outra
vida, faz também nossa felicidade nesta
85
.
Norberto Bobbio, ao classificar e descrever as diversas teorias das formas de
governo analisa a proposta de Montesquieu para a Monarquia Parlamentarista. A
84
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão... p. 67-68.
defesa do filósofo francês dessa forma de governo inspira-se particularmente no
modelo inglês, no qual o soberano é caracterizado a partir do conceito de honra
monárquica. O conceito de honra que, para Bobbio, é difícil de interpretar na obra de
Montesquieu, pode ser “aquele sentimento que nos leva a executar uma boa ação
exclusivamente pelo desejo de ter ou de manter uma boa reputação”
86
, ou seja, a
honra definida aqui está direcionada ao comportamento moral e ético, sem essas
características o governante não reuniria as condições apropriadas para o comando da
nação. O teórico italiano destaca a seguinte passagem do Espírito das Leis, que
tornaria mais claro o conceito de honra dentro da legitimação de uma monarquia:
“Conforme já dissemos, o governo monárquico pressupõe a
existência de estratos, de posições de preeminência social, e
também de uma nobreza original. Pela sua natureza, a honra
exige distinções e preferências: ela se situa, portanto, num
governo que é também assim. A ambição é perigosa numa
república, mas tem bons efeitos numa monarquia; dá-lhe vida
e tem a vantagem de não lhe trazer perigo, porque pode
facilmente ser reprimida”.
87
Encontra-se esta idéia no discurso do Pe. Benigno de Carvalho, quando tenta justificar
o poder de soberano de Pedro I. No início do século XIX, as monarquias européias
ainda estavam solapadas pelos ventos da Revolução Francesa, das idéias iluministas,
como as de Montesquieu, e do processo de emancipação das colônias na América.
Portugal, que havia passado pela sua revolução liberal em 1821, provocando o retorno
imediato de D. João VI, correndo esse soberano o risco de perder a coroa, instala pela
primeira vez uma estrutura monárquica liberal, delimitando as prerrogativas do Rei e
estabelecendo a participação do Parlamento como elemento de decisão dentro do
Estado, como exposto no capítulo anterior.
85
APEB, Seção Administrativa, vol. 532
A
Periódicos.
86
BOBBIO, Noberto. A teoria das formas de governo. 4ª ed., Brasília: UnB, 1985, p. 134.
No Brasil, esses ventos liberais chegariam filtrados pelos interesses das elites
locais. Sabemos o quanto as idéias liberais sofreriam mudanças quando da sua prática
em um país com uma organização social e produtiva baseada na grande lavoura, no
latifúndio e na escravidão. De qualquer forma, a elite brasileira, que realizou a
independência com os auspícios do até então Príncipe Regente D. Pedro esperava
uma monarquia mais representativa e um imperador mais flexível ao sopro das idéias
liberais. Este deveria, dessa forma, comungar com o ideal de Brasil que essa mesma
elite imaginava: parlamentarista, comandado por brasileiros natos, preferencialmente, e
com autonomia política suficiente para gerenciar seu destino. Essa consciência política,
como ficará mais claro nos anos da Regência e especialmente no Segundo Reinado,
provocou sérios embates entre os elementos da elite brasileira e os da elite portuguesa
de nascimento que buscavam, também, aproximar-se da figura imperial, moldando-a de
acordo com seus interesses
88
.
O padre Benigno, em seu discurso em louvor ao casamento real, atento à
situação de disputa interna pelo poder e preocupado com as prerrogativas da Igreja
Católica no padroado, não deixou de sustentar ao longo do texto a necessidade da
religião para a afirmação do regime monárquico. Entretanto o padre considera que o
clero deveria ter cautela ao participar de questões partidárias ou dinásticas. Lembremos
o seu envolvimento, poucos anos antes nos conflitos vividos em Portugal pela sucessão
ao trono, depois da morte de D. João VI. A propósito da relação entre poder temporal e
poder religioso, Carvalho observa que
As Guerras civis de Hespanha, e Portugal nestes nossos dias
terá (sic) tido um motivo puramente político. Uns queriam
mais liberdade, outros não queriam tanta; uns queriam no
Throno da Hespanha Carlos, outros Izabel; uns queriam em
Portugal a Senhora D. Maria II, outros D. Miguel. Dirão: he
verdade, que nenhuma destas questoens diz respeito a
87
BOBBIO, Noberto. A teoria das formas ..., p.134.
88
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2º v, 8ª ed., Rio de Janeiro:
Globo, 1989, p. 297-310.
Religião, mas os Padres, e Frades d’ambos os reinos para
levantar o povo contra as novas instituições, e irrita-lo contra o
partido liberal, lançaram mão da religião, e uma guerra de
sucessão, e liberdade política se tornou guerra de Religião,
guerra, que soprada pelo Fanatismo he sempre mais cruel, e
duradoura.
89
No discurso em homenagem às núpcias reais encontramos, de forma mais do
que aberta, chegando este a ser repetitivo, a defesa do reinado de Pedro I e uma crítica
clara à situação política de disputa interna em que encontrava a nação brasileira:
Quando a tranqüilidade pública se viu ameaçada por um
punhado de anarquistas em Minas Gerais
90
, que haviam
subjugado os sinceros sentimentos, da numerosa povoação
desta Província o Magnânimo IMPERADOR aparece nela de
repente, e sua presença para com os sediciosos teve o efeito
do raio, quando da nuvem rápido de despede, e caindo no
meio de feras selvaticas assombra, prostra, mas não fere: no
curto espaço de um mês se faz ver subitamente ao teatro da
Corte, e rompe nestas palavras: “Tudo fica sossegado em
Villa Rica, e dalí venho em quatro dias e meio acabar de
sossegar as coisas aqui.” PEDRO podia nesta ocasião dizer
como Cezar: ‘Veni, vidi, vici ‘”
91
.
89
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão..., p 231.
90
O acontecimento de Minas Gerais a que o discurso do Padre Benigno refere-se foi a viagem que D. Pedro fez
depois do assassinato do jornalista de Vila Rica, Líbero Badaró, porta-voz da elite mineira insatisfeita com os rumos
institucionais do I Reinado, sendo recebido com péssima acolhida pelos moradores daquela importante cidade
mineira. Suspeitou-se, na época, que o crime teria sido organizado pelo próprio D. Pedro. Cf: WANDERLEY
PINHO. A Bahia(1808-1856)..., p. 273-274.
91
Anexos, p. 124.
Ressalta-se em parte, nesta passagem, a imagem conciliatória do Imperador, que teria
conseguido acalmar os ânimos em Vila Rica. No entanto, a vitória política do Imperador
é comparada à vitória de Cesar e seu exército num dos episódios da expansão Roma,
cintando-se a célebre frase do general: Veni, vidi, vinci, ou seja, vim, vi e venci. As
representações, seja de conciliador ou brutal conquistador são inconsistente com a
imagem corrente de D. Pedro, na época.
Em seguida, Carvalho faz uma crítica ao processo político da Assembléia
Constituinte de 1823, sempre observando o poder de articulação e comando do
Imperador, afirmando que o “o Imperador intrépido, [...] vigilante dissolveu
imediatamente a Assembléia.
92
Chama atenção para a liderança do Imperador na construção da Independência,
dando, desta maneira, subsídios políticos para as suas futuras ações pessoais,
particularmente no momento da necessidade de uma atitude conciliatória para a paz da
Nação. Teria sido, dessa forma, a crise da Independência que fez
brilhar todo o seu grande gênio. Os Brasileiros estavão
divididos em differentes partidos: hum povo ardente era
arrastado por diversas paixões violentas: reprimil-as não era
possível: a anarchia preparava suas garras sanguinosas para
empolgar, e espedaçar este delicioso pais: PEDRO Activo,
Prudente, e Intrépido põe-se á frente da revolução, dobra,
dirige e doma a energia revolucionaria, e a encaminhar ao
bem da Nação. [...] Fundador do Império do Brasil, e seo
Nome vai dar novo lustre ao cathalogo brilhante dos
Fundadores das grandes Monarchias, e vai ser gravado no
Templo da Glória a par dos Nembrod, dos Cyros, dos
Alexandres, e dos Augustos.”
93
92
Anexos, p. 124.
93
Anexos, p. 119.
Percebe-se que, no discurso em honra e comemoração aos nubentes reais, o
nosso orador não deixou de colocar em pauta os problemas políticos que se passavam
na única monarquia da América. Infelizmente não dispomos de informações sobre a
reação da platéia ao ouvir tão enfáticas palavras de apoio ao governo de Pedro I. Já
vimos, anteriormente, que os presentes na Igreja Matriz de Santo Amaro da Purificação,
que lá estavam como pacientes ouvintes, faziam parte, certamente, das camadas
abastadas e da liderança política da região. Mas não podemos esquecer a divisão que
existia dentro da elite que apoiou a Independência, formada, de um lado, por partidários
de Pedro I, que nessa época eram particularmente portugueses, e do outro por
brasileiros, que formavam uma fileira importante de políticos desgostosos com os rumos
do governo imperial
94
.
Não é difícil chegarmos à conclusão de que o padre Benigno de Carvalho ou fez
o discurso porque estava convicto da “gloria imperial” de Pedro I e seu governo, ou
simplesmente respondeu a uma encomenda de partidários portugueses, como ele
próprio o era, na tentativa de construir respaldo político para o Primeiro Reinado. Diz
ele:
Ditoso Império Brasileiro ! Tu pareces ser chamado a lograr
os mais altos destinos ! Quem poderá calcular
antecipadamente onde há de parar a energia de uma Nação,
para assim dizer, ressuscitada? Nação, que o Grande PEDRO
de escrava, tornou livre e independente, para quem escolheu
a melhor Constituição e Legislação, e em cuja administração
tem posto o maior desvelo!
95
Depois da certeza manifestada quanto ao futuro político nas mãos de Dom
Pedro I, restava elogiar as potencialidades naturais do Brasil, reafirmando a sua
grandeza territorial perante os outros países da América, especialmente os Estados
Unidos, que já despontavam como potência continental:
94
VIOTTI, Emília. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 4ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 119.
95
Anexos, p. 127.
[...] poderoso Império cedo há de contrabalançar a potência
crescente dos Estados Unidos; terá sobre ela a vantagem de
um clima mais doce, e de um Solo mais fértil em produções
úteis e preciosas, de uma porção Geográfica, que domina o
caminho das duas Índias, de todos os grandes mares do
Globo, e forma para assim, dizer, e no das comunicações de
todas as partes do mundo civilizado.
96
Além de construir uma imagem heróica de Dom Pedro I, respaldada em uma
argumentação mitológica, o discurso estabelece uma visão do Brasil caminhando,
historicamente, para o domínio político e econômico do continente americano, com uma
forte vocação civilizatória perante os países vizinhos. Daí a exaltação das nossas
características geográficas e naturais. Essa representação do Brasil forte e com um
destino soberano seria retomada com bastante ênfase durante o Segundo Reinado
(1840-1889), cabendo às instituições intelectuais do Império, como o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, as Faculdades de Medicina e Direito o papel de construir e
divulgar esse ideal de Brasil perante as demais nações da América.
2.2. O poder simbólico do rei
Lilia Moritz Schwarcz no seu livro sobre o símbolo monárquico de D.
Pedro II, cita o pioneiro trabalho de Marc Bloch em Os Reis taumaturgos,
97
no qual este
96
Anexos, p. 127.
97
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos O caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra. São Paulo:
Cia das Letras, 1993.
autor “procura desvendar o lugar do maravilhoso na política, a eficácia mágica da
realeza, buscando compreender o poder de cura dos reis franceses e ingleses entre os
séculos XII e XVIII. Longe da explicação racional, Bloch encontra no próprio ‘desejo do
milagre’ a eficácia da crença no poder taumaturgo.”
98
Seguindo esta mesma linha de compreensão, Schwarcz nos alerta, como
Bronislaw Baczo
99
, que também propõe a relevância do estudo de sistemas simbólicos
de uma sociedade, para que percebamos como todo regime político estabelece em sua
base um imaginário social construído por utopias e ideologias, mas também por mitos,
símbolos e alegorias, elementos poderosos na conformação do poder político,
especialmente quando adquirem aceitação popular
100
.
Na tentativa de construir a imagem de Pedro I dentro de um discurso mitológico e
heróico, o Padre Benigno não poupa palavras, chegando a afirmar que
Entre os soberanos, que com suas virtudes aformosearão o
Universo, PEDRO brilha, qual Sol luminoso entre os astros da
noite. O grande Vespasiano foi sensato e valente; Tito affavel
benefico; Trajano doce e sociável; Adriano generoso; [...], que
dominavão; PEDRO, o imcomparavel PEDRO, reunindo em si
todas as virtudes, com que cada um destes grandes
Príncipes. [...] Oh Brasileiros!... Nação venturosa!... Respirai:
sois hum Povo livre ! Hum Povo Soberano! que he das
algemas, com que o Despotismo outrora rocheava os vossos
pulsos, onde estão os grilhões, que sustavão vossos passos
na carreira da gloria, a que vos convidava o vosso grande
engenho, e caracter Nacional? Desaparecerão: quebrou-as,
consumio-as, anniquilou-as o Inclito Coração de PEDRO, que
o excedeo em beneficencia para com o Império Brasileiro, não
98
SCHWARCZ. Lilia Moritz. As Barbas do Imperador..., p. 28.
99
BACZO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Paris: Payot, 1984.
100
SCHWARCZ. Lilia Moritz. As Barbas do Imperador ...., p. 20.
deverá com mais forte razão ser chamado as delícias da
Nação Brasileira?
101
O modelo de realeza defendido no discurso do padre Benigno de Carvalho pode
ser enquadrado no modelo clássico de poder real. Um soberano altivo, longe das
questões que envolvem os simples mortais, de linhagem especial, por que não dizer
divina, amparado por elementos que garantem a personificação do Estado em sua
figura quase que mítica. Disfarça-se o autoritarismo com um parlamento funcionando, à
maneira do rei, e com leis outorgadas, que legitimem a personificação do próprio
Estado na figura real. Por isso, a necessidade de colocar a imagem de Pedro I próxima
da de Salomão, dos Césares romanos e de Ciro, imperador persa.
Como bem chamou atenção Raymundo Faoro, em Os Donos do poder, ensaio
já clássico sobre o nosso patronato político, D. Pedro refugia-se no estilo de monarquia
constitucional e de um liberalismo ensimesmado para esconder as verdadeiras
articulações autoritárias, como bom herdeiro da tradição européia de governo,
especialmente a portuguesa.
102
A definição de monarquia pretendida pelo discurso ainda está calcada no
regime absolutista da Europa. Porém, percebemos que Carvalho tentou, ao mesmo
tempo, utilizar-se dos conceitos de poder monárquico de Montesquieu, quando defendia
a existência do parlamento, e com isso, uma certa divisão do poder da nação, e por
outro lado, o pensamento de Thomas Hobbes, ao personificar a figura real no próprio
estado com conotação absolutista. O rei enquadra as leis do país a partir das
necessidades restritas do estabelecimento da governabilidade. O seu poder é limitado,
não por força humana, mas pela própria natureza do cargo exercido. Sendo assim,
observa Bobbio: “ o absolutismo que caracteriza o poder do Estado nada mais é do que
a projeção do Absolutismo natural”
103
que estaria presente na formação de qualquer
Estado. Neste ponto, novamente a leitura de Hobbes é essencial, pois de acordo com
este autor só um Estado forte, com um soberano também forte, poderia domesticar o
101
Anexo, p. 121.
102
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder..., p. 289-290.
103
BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário..., v. I, p. 05.
estado de lupus da sociedade. Em toda narrativa de Carvalho, podemos perceber, a
influência do pensamento hobbesiano, tanto na procura de legitimar a linhagem de
Pedro I, como na justificativa da adequação do imperador à forma monárquica
implantada.
Os esforços no sentido de consolidar a imagem de Pedro I como monarca ideal
para o Brasil independente não se reduziriam à literatura. Lembremos o Elogio de José
Pedro Fernandes, citado no início deste capítulo, e particularmente os atos de
cerimônia de aclamação, em 1º de dezembro de 1822. Nesse momento especial, em
que a coroa é colocada na cabeça real, como símbolo do seu poder, e ele recebe
outras insígnias, como o cetro e o manto, o óleo santo deve ungir o novo monarca. O
ritual rompia com a tradição dos monarcas portugueses, que não o adotavam em suas
cerimônias de sagração real. A adoção do cerimonial imponente e legitimado com uma
missa solene comporia e selaria os ritos finais. Inspirado provavelmente na coroação de
Napoleão Bonaparte em 1804, o imperador teria feito questão de que a sua elevação
perante os súditos e Deus fosse a mais completa, não restando dúvida quanto a seu
poder
104
.
Coube ao artista francês Jean Baptiste Debret, residente no Brasil desde 1816,
como membro da Missão Artística Francesa, retratar não só este ritual de sagração de
Pedro I, como também o próprio retrato do imperador em trajes majestáticos, cumprindo
assim mais um trabalho que fez sob encomenda para a família real portuguesa.
Segundo Emília Ferreira da Silva, as obras “funcionavam como divulgadores da
imagem que o império queria imortalizar ou cristalizar, qual seja, a de um Império
civilizado e culto nos moldes europeus”
105
. A propaganda de divulgação do monarca
legitimado cumpria-se também através da pintura, meio de comunicação empregado
para retratar para a posteridade os mais importantes acontecimentos na vida das
famílias reais e abastadas de então.
104
SCHWARCZ. Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Cia das
Letras, 1999, p.38 39.
105
SILVA, Emília Maria Ferreira da. Representações da Sociedade Escravista na Viagem Pitoresca e Histórica ao
Brasil de Jean Baptiste Debret. Salvador: UFBA, p. 15, 2001. ( Dissertação de Mestrado)
É importante observar que o Pedro I real parece estar longe do soberano
retratado, não só no texto do padre Benigno, como nas outras representações aqui
mencionadas. A campanha para construir um imperador intocável e senhor das
decisões do Estado, sagrado pela sua linhagem e legítimo herdeiro do Brasil, não foi
suficiente para debelar a crise política e institucional em que se encontrava o Brasil do
primeiro Reinado.
Seu sucessor Pedro II seria mais feliz na tentativa de construir as
representações para legitimar o poder imperial durante o quase meio século de
Segundo Reinado. O que Dom Pedro I não conseguiu fazer, ou seja, compor para si a
figura de estadista e pai da nação, seu filho conseguiria, acrescentando ainda a
imagem de intelectual e acadêmico. Desde pequeno foi moldada a sua figura e
personalidade de estadista e futuro líder, facilitando, já na fase da coroação (1841), a
legitimidade popular e o apoio das elites à sua ascensão como Imperador
106
.
D. Pedro I faleceu em 24 de setembro de 1834, em Portugal, sem o trono
brasileiro, mas com a imagem de chefe e pai do Estado brasileiro ainda, de forma
insistente, sendo divulgada ao público do Brasil. Em 1835, Francisco Vilela Barbosa
publica um folheto de dez páginas lamentando a morte do Imperador e glorificando as
suas ações com o pomposo título Saudade pela sentidíssima morte do senhor D. Pedro
I, ex-Imperador do Brasil, Duque de Bragança
107
. Se o discurso do Cônego Benigno
de Carvalho foi um dos últimos elogios públicos ao desacreditado Imperador, antes da
abdicação, o folheto de Francisco Vilela Babosa representou, mesmo depois de morto,
mais uma tentativa de construir a imagem de monarca que D. Pedro almejava.
Carvalho, com seu posicionamento político de apoio à manutenção ao modelo
monárquico brasileiro, garantiu para si privilégios e posições dentro do intricado jogo
das articulações que o clero construía com o Estado Imperial. Com sua formação
intelectual e o patrocínio de Dom Romualdo Seixas, que também necessitava de
quadros mais qualificados, como apontamos no capítulo anterior, alcançou posição de
destaque no contexto intelectual baiano, em particular na hierarquia eclesiástica local,
em meados do século XIX.
106
SCHWARCZ. Lilia Moritz. As Barbas do Imperador ...., p. 21-66.
107
MARTINS, Wilson. História da Inteligência...., p.212.
3. A EXPEDIÇÃO À CIDADE PERDIDA
Em 1839, no terceiro número da Revista Trienal do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, foi publicado um documento (Relação), contendo a descrição das
ruínas de uma cidade desconhecida no interior da Bahia. O Documento 512, como é
conhecido, encontrava-se abandonado na Livraria Pública do Rio de Janeiro, a
biblioteca pública local, atual Biblioteca Nacional. Foi divulgado pela primeira vez por
Manoel Ferreira Lagos, sócio do IHGB, que havia sido fundado no ano anterior. Estava
em péssima situação de conservação, com alguns trechos roídos pelas traças ou
cupins, o que dificultava a leitura completa, impedindo a compreensão de todo o seu
significado
108
.
Em número anterior da revista, tinha sido publicada a descrição de uma rápida
expedição científica para decifrar as inscrições contidas na Pedra da Gávea no Rio de
Janeiro, que se presumia ser de alguma escrita antiga, cogitava-se fenícia. Essa
preocupação do IHGB, de investigar a possibilidade de existência de antigas
civilizações perdidas no Brasil, foi uma das primeiras práticas nos anos iniciais de
existência do Instituto.Os trabalhos de conclusão da expedição à Pedra da Gávea não
chegaram a confirmar ou negar a possibilidade de que os relevos contidos neste cartão
postal do Rio de Janeiro tivessem sido produzidos por algum povo remoto, que já
dominava a grafia. Porém, a resistência em negar inteiramente essa possibilidade já
indica o fascínio que provocava nos intelectuais do Instituto, preocupados em construir
a nossa história oficial. No final do relatório dessa rápida investigação científica,
assinado por Manoel de Araújo Porto Alegre e o Cônego Januário da Cunha Barbosa,
afirma-se que
A comissão não desespera da gloria, que aguarda o Instituto
Histórico e Geográfico na descoberta de iguaes monumentos;
nem da esperança de ver apparecer em seu seio um
Champoleon brazileiro, esse Newton da antiguidade Egypeia
ou Cuvier do Nilo, para como o facho de seu genio indagador
elluminar esta parte tão obscura da história primeira do nosso
Brazil.
109
Além da possibilidade da presença fenícia nas terras brasileiras, antes do
domínio europeu, aventava-se que os sulcos na referida Esfinge da Gávea fossem da
cultura viking, provenientes dos navegantes nórdicos que teriam chegado aqui através
das suas conhecidas aventuras náuticas. Os sulcos lembravam, para muitos que os
observaram, caracteres runos
110
. Essa alternativa para desvendar o mistério das
inscrições chamou atenção até mesmo do respeitado paleontólogo dinamarquês Peter
Wilhem Lund, que radicado no Brasil, publicou artigos no periódico do seu país,
Antiquarisk Tidsskftift, revista da Real Sociedade dos Antiquários do Norte, tentando
alertar para a hipótese da presença escandinava na América do Sul. Lund utilizou,
posteriormente, como referência para as suas pesquisas, o relatório da expedição da
Gávea e os relatórios do Cônego Benigno de Carvalho, publicados na revista do IHGB,
quando da sua expedição em busca da cidade abandonada na Serra do Sincorá
111
.
108
DORIA, Francisco Antonio. Caramuru e Catarina. São Paulo: Senac, 2000, p. 73. O documento encontra-se hoje
na Biblioteca Nacional e está registrado com o número 512. A sua transcrição encontra-se nos Anexos.
109
Revista do IHGB, nº 02, Tomo I, 1839, p. 80-81.
110
São caracteres em forma de haste, que compunham a escrita alfabética usada pelos povos Germânicos desde o
século III. Em sueco “runa” significa segredo. Cf: CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa. 2ªed, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 694.
111
VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 159-160.
O “Champoleon brazileiro”, que o relatório de investigação das inscrições da
Pedra da Gávea desejava que tivéssemos, estava para aparecer, em poucos meses, na
figura do Cônego Benigno de Carvalho. Caberia a ele tentar encontrar, em nome do
Instituto e do Governo Provincial da Bahia, o tão sonhado monumento antigo que
viesse a legitimar a nossa história a partir de elementos triunfais, comprovando o nosso
passado glorioso, como analisaremos adiante neste capítulo.
O IHGB foi criado em 1838, a partir de iniciativa dos sócios da Sociedade
Auxiliadora da Industria Nacional, que existia desde 1827 no Rio de Janeiro. Contou
como protetor e incentivador o próprio Imperador D. Pedro II, que recebeu o título de
protetor perpétuo na primeira sessão inaugural do Instituto, em 01 de dezembro de
1838
112
. O IHGB desempenhou um papel fundamental no processo de construção da
identidade nacional brasileira. Incentivou a produção de monografias sobre a história do
Brasil, apoiou expedições geográficas e de outras áreas científicas para a melhor
compreensão do espaço territorial, apoiou a produção literária e o resgate e divulgação
de documentos, até então desconhecidos do público, sobre a história do país
113
. O
espírito nacionalista, muitas vezes ufanista, destes primeiros anos do Instituto, marcaria
o teor das suas publicações, que não ficavam restritas às questões históricas e
geográficas, chegando a alcançar, através de sua revista, um número considerável de
leitores, o que demonstra a sua aceitação junto à intelectualidade da época.
114
Na proposta inaugural da criação do IHGB, redigida pelo Marechal Raymundo
José da Cunha Mattos, seu primeiro vice-presidente, e pelo primeiro secretário perpétuo
do Instituto, Cônego Januário da Cunha Barbosa, argumenta-se ser,
112
Revista do IHGB, nº 02, 1839, p.45.
113
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p.55.
114
A criação e atuação do IHGB, assim como o número de leitores de sua revista, servem como evidência adicional
para o argumento de Jorge Carvalho do Nascimento, em artigo intitulado “Nota prévia sobre a palavra impressa no
Brasil no século XIX: a biblioteca do povo e das escolas”. Neste trabalho, o autor contesta a idéia de que o Brasil era
pouco ilustrado, chamando atenção para a existência de um razoável campo editorial e de divulgação no país.
Nascimento fundamenta seu argumento na grande aceitação pelo público e recorde de vendas que a coleção
Biblioteca do Povo e das Escolas alcançou no século XIX, atingindo a tiragem de até 15.000 exemplares no Brasil e
em Portugal. NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. “Nota prévia sobre a palavra impressa no Brasil no século XIX: a
biblioteca do povo e das escolas”. Horizontes, Bragança Paulista, v.19, p.15 -25, jan/dez., 2001.
[...] innegável que as lettras, além de concorrerem para o
adorno da sociedade, influem poderosamente na firmeza de
seus alicerces, ou seja pelo esclerecimento de sues
membros, ou pelo adoçamento dos costumes públicos, é
evidente que uma monarchia constitucional, onde o merito e
os talentos devem abrir as portas aos empregos, e em que a
maior somma de luzes deve formar o maior grão de felicidade
publica, são as lettras de uma absoluta e indispensável
necessidade, principalmente aquellas que, versando sobre a
história e a geographia do paiz, devem ministrar grandes
auxílios á publica administração e ao esclarecimento de todos
os Brasileiros.
115
O Brasil precisava descobrir o seu passado, preferencialmente com provas da
existência de civilizações desenvolvidas do ponto de vista tecnológico e civilizacional
em geral, de acordo com os padrões das antigas civilizações do Oriente ou das
sociedades avançadas pré-colombianas, os Aztecas, Maias e Incas. Precisava-se
provar que tínhamos um passado que não era apenas de índios selvagens e primitivos,
mas de povos que, em algum momento da nossa história, construíram ou edificaram
monumentos e cidades esplendorosas
116
. Nossos intelectuais partilhavam um conceito
de civilização montado a partir dos padrões da intelectualidade européia.
Esse desejo é explicitado na monografia do naturalista Karl von Martius, Como
se deve escrever a história do Brasil, publicada na revista do IHGB em 1844,
ganhadora de um concurso que o próprio Instituto criou para incentivar a produção no
que se refere à metodologia da História do Brasil. Martius é taxativo quanto à
possibilidade de terem florescido aqui civilizações avançadas, chegando a citar a
expedição do Cônego Benigno como exemplo a ser seguido, nas buscas arqueológicas
de prováveis cidades abandonadas, que pudessem representar o nosso passado
115
Revista do IHGB, nº01, p. 05, 1839.
116
LANGER, Johnni. As Cidades Imaginárias do Brasil. Curitiba: Xerox do Brasil e Secretaria de Estado da Cultura
do Paraná, 1997, p. 82.
civilizatório. O autor considera ser este um assunto “de summa importância para o
ethnographo”. E propõe que
[...] Não poderá o historiador brasileiro deixar de
perscrutinar igualmente as ruinas de Pauplata, México,
Uxmal, Copan, Quito, Tiaguanaro, etc., se quizer formar um
juizo geral sobre o passado dos Povos Americanos. Até agora
não se descobriram no Brazil (ao menos que eu saiba)
vestígios de semelhantes construções, pois que as notícias
manuscriptas, das quais há uma cópia a “ Revista Trimensal “
do anno de 1839 [...], e que induziram o Senhor Benigno José
de Carvalho e Cunha a suspeitar que há uma grande antiga
Cidade ao lado sul da Serra do Sincorá, sobre o braço
esquerdo do Sincorá, são até agora os únicos que se
conhecem sobre monumentos brazileiros, que se
assemelham em grandeza e solidez com os do México,
Cundinamarca e Bolívia. A circunstancia, porém de não se
terem achado ainda semelhantes construções no Brasil
certamente não basta para duvidar que n’este paiz reinava em
tempos muito remotos uma civilização superior, semelhante a
dos paizes que acabo de mencionar.
E continua, indicando ser esta a opinião de outros estudiosos:
D’ahi resulta um desejo, que certamente muitos dos
membros do Instituto partilharão comigo, que se lhes
facultassem meios para fazer sacrifícios em favor de
investigações archeologicas: especialmente prestando auxílio
a viajantes que procurassem estes monumentos. Se
considerarmos que em alguns lugares, V. g. em Paupatla, se
elevam mattos altíssimos e millenarios sobre as construcções
de antigos monumentos, não se há de achar inverossimel que
o mesmo se encotrará nas florestas do Brazil, tanto mais que
até agora ellas não são conhecidas nem accessíveis senão
em muito pequena proporção
117
.
Esse entusiasmo que, como já afirmamos, caracterizou os primeiros anos do
Instituto Histórico, continuaria, de forma mais esporádica, por todo o século XIX. Em
1887, no número 50 da mesma revista do IHGB, Tristão de Alencar Araripe escreveu:
“Si pois no Brazil verificarmos a existência de antigas
inscrições e de cidades abandonadas, devemos concluir que
nossa terra subzistio um povo civilizado, que n’ella precedeo
as tribos erradias encontradas pelos portuguezes no seu
advento às plagas brazílicas, e foi o escultor d’essas
inscrições e o edificador de taes cidades.
De súbida importância é investigar, se efectivamente no sólo
brasileiro existem inscrições de caracteres ignotos e cidades
soterradas e escondidas nas brenhas; porque, se chegarmos
a resultados afirmativos, teremos essas avançado no
conhecimento da archeologia e novas idéias sobre as
revoluções, porque tem elle passado n’este globo sublumar a
antropologia e a etnologia forão novas conquistas.”
118
Observamos, dessa forma, que existiu, como afirma Johnni Langer, um
“imaginário acadêmico ou erudito”, que de certa maneira influenciou uma parcela da
nossa elite intelectual, particularmente aqueles que trabalhavam com a História do
Brasil no momento inicial do Segundo Reinado, quando se pretendeu construir a
nacionalidade a partir de elementos idealizados pelos valores e mitos da cultura
européia. Esse imaginário, especialmente o das cidades perdidas, estava impregnado
117
MARTIUS, Carl Frederick. “Como se deve escrever a história do Brasil (1843)”. Revista do IHGB, nº 06, p. 388-
389, 1844. Os grifos são nossos.
118
ARARIPE, Tristão de Alencar. “Cidades Perdidas e Inscrições Lapidares no Brazil”. RIHGB, Rio de Janeiro, nº
50, p. 213, 1887.
de uma perspectiva romântica de ciência, que influenciava a produção acadêmica de
então e induzia a certos tipos de concepções e condutas, que hoje poderíamos avaliar
como insanas e alheias à lógica científica, como é o caso específico da viagem do
Cônego Benigno. No entanto, se compreendermos o contexto em que essas posturas
acadêmicas foram gestadas, observaremos que estavam dentro de uma conjuntura
histórica favorável ao seu desenvolvimento. Momento, como já nos referimos, de
montagem da nacionalidade brasileira, processo que incluía desde o âmbito político até
o científico. Os brasileiros se orgulhavam da extensão do país frente aos demais países
da América, do seu possível destino de líder do continente, como foi destacado no
capítulo anterior, e necessitavam encontrar monumentos ou ruínas que legitimassem
seu passado grandioso, com elementos de civilizações antigas com uma sofisticação
tecnológica ou cultural.
119
Antes de abordarmos a trajetória histórica da expedição do Cônego Benigno de
Carvalho, que procurou responder a essa ânsia civilizacional na legitimação da nossa
história, cabe-nos compreender o que significou a perspectiva científica do romantismo,
que influenciou sobremaneira a produção acadêmica da primeira metade do século XIX,
e as características mais amplas da ciência no Brasil de então.
3.1. Perspectiva científica do romantismo
De acordo com Maria Amélia Dantes, o início da história institucional da ciência
no Brasil teria se dado a partir da transferência da Corte portuguesa para o Rio de
Janeiro. A criação de escolas de medicina e engenharia militar, e de uma Casa de
História Natural, além da Biblioteca Régia e a Escola de Belas Artes, mudaria as feições
119
LANGER, Johnni. As Cidades Imaginárias..., p. 81, 1997.
da antiga colônia lusitana na América, quanto à produção científica institucional
120
.
Dantes observa ainda que esse modelo de instituição implantado no Brasil era o
reconhecido pelos padrões europeus, teria sido adotado e incentivado pela Coroa e,
posteriormente pelo Império Brasileiro. A contratação de especialistas estrangeiros na
área de mineração e engenharia, e o estímulo às expedições científicas pelo vasto
território brasileiro consistiriam nas principais iniciativas nesses anos iniciais do século
XIX, ainda influenciados pelas idéias dos iluministas franceses e pelo romantismo na
cultura, de um modo mais amplo.
121
O Romantismo primava, entre outros aspectos, pela valorização dos elementos
nacionais. Surge no momento que a burguesia consolida o seu processo de ascensão
social, no final do século XVIII e início do XIX, realizando, particularmente na literatura,
críticas às conseqüências sociais, políticas e econômicas que as transformações em
curso provocavam nas estruturas da comunidade européia. Para Michel Löwy, a
questão central do Romantismo consiste numa “nostalgia das sociedades pré-
capitalistas e uma crítica ético-social ou cultural ao capitalismo”
122
apresentando-se a
partir de múltiplas faces, não só na literatura, mas também nas obras de filósofos,
economistas, historiadores e naturalistas.
No Brasil, adquiriu características particulares de acordo com as necessidades
do processo de consolidação do Estado-Nação, no que revoltas provinciais como a
Cabanagem, a Revolução Farroupilha, a Balaiada, e a Sabinada ameaçavam abalar a
frágil unidade do país. Para a elite intelectual, era de urgente afirmar a nossa identidade
histórica e territorial
123
. Precisava-se incentivar a produção de uma literatura nacional
distinta dos padrões portugueses, criando uma temática que valorizasse as nossas
raízes históricas com uma forte conotação indianista, um sentimentalismo e
nacionalismo muitas vezes exacerbado, particularmente no início do Segundo Reinado,
momento da fundação do IHGB e da organização da expedição do Cônego Benigno de
Carvalho. A fundação do Instituto e a criação da sua revista acontece no momento da
120
DANTES, Maria Amélia M. “Relações Científicas e Tradições Científicas Locais: Modelos Institucionais no
Brasil no final do século XIX”. In: ALFONSO-GOLDFAID, Carlos A . Maia (org). História da Ciência: o mapa de
conhecimento.2 v, São Paulo: Edusp, 1995, p. 924.
121
DANTES, Maria Amélia M. Relações Científicas e Tradições Científicas...p. 925.
122
LÖWY, Michel. Romantismo e messianismo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1990, p.12.(grifo no original)
construção dessa identidade nacional e constitui, segundo Arno Wehling “a mais
concreta realização, no plano cultural, deste objetivo”
124
, contribuindo para a
divulgação de uma política de memória nacional importante para aquele momento
histórico.
Na própria revista do Instituto encontramos a ânsia de se resgatar o passado
indígena. Vários ensaios e artigos dos membros do IHGB, no período, preocupavam-se
em descrever e caracterizar a formação indígena do Brasil. Esta era mitificada,
enquanto silenciava-se sobre a herança africana. Gonçalves Dias e Gonçalves de
Magalhães, representantes conhecidos desse momento literário do nosso nacionalismo
em construção, colaboraram com vários artigos na Revista do IHGB, sendo membros
do próprio Instituto. Descreveram os primeiros habitantes do Brasil a partir da visão do
“bom selvagem”, quase cordial, o que influenciou a produção de outros autores
românticos, como é o caso de José de Alencar.
125
A exaltação do passado indígena veio sobrepor-se às teses científicas
defendidas no século XVIII, que afirmavam a inferioridade dos primeiros habitantes da
América, a sua debilidade étnica e incapacidade de desenvolvimento histórico e
civilizatório. Pretendia-se, com isso, descartar as possibilidades de edificar nações
prósperas no Novo Mundo, a partir dos grupos autóctones do continente. Segundo
Antonello Gerbi, foi a partir das concepções do naturalista francês Buffon
126
e de seus
seguidores, o abade De Pauw e Guillaume Raynal, que a idéia da degeneração do
nativo americano, como também da fauna e flora locais, teriam alcançado seu ponto
máximo. Buffon chegou a afirmar, em sua Histoire Naturelle, que os animais do Novo
Mundo estavam longe da magnitude e importância dos do Velho Mundo para a história
da ciência. A mesma debilidade física verificada no reino animal ou vegetal era também
123
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui:..., p.66.
124
WEHLING. Arno. Estado, História, Memória: Vernhagem e a Construção da Identidade Nacional. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 33.
125
VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial..., p. 314.
126
George-Louis Leclerc (1707-1788) ou Conde de Buffon era francês, e alcançou notoriedade em sua época pelos
estudos da classificação das espécies vegetais e animais. Alguns de seus pensamentos com relação à evolução e à
origem das espécies precederam a Darwin em mais de 100 anos. Cf.: STENDMAN, Dicionário Médico. 23ª ed., Rio
de Janeiro: Guanabara, 1979, p. 176.
observada nos habitantes primitivos do continente. Inferiorizava-se, dessa forma, a
América, glorificando as características naturais e humanas da Europa.
127
A caracterização de Buffon do homem americano foi rigorosamente contestada
pelos nossos indianistas, que de forma idealizada perceberam a exuberância física do
nativo. Uma das passagens mais polêmicas da obra do naturalista francês, que devia
causar mal estar nos nossos intelectuais nacionalistas, definia que
O Selvagem é débil e pequeno nos órgãos da reprodução;
não tem pêlos nem barba, nem qualquer ardor por sua fêmea:
embora mais ligeiro que o europeu, pois possui o hábito de
correr, é muito menos forte de corpo; é igualmente bem
menos sensível e, ao entanto, mais crédulo e covarde; não
demonstra qualquer vivacidade, qualquer atividade d´alma;
quanto à do corpo, é menos um exercício, um movimento
voluntário, que uma necessidade de ação imposta pela
necessidade; prive-o da fome e da sede e terá destruído
simultaneamente o princípio ativo de todos os seus
movimentos; ele permanecerá num estúpido repouso sobre
suas pernas ou deitado durante dias inteiros.
128
Ainda para Buffon, a natureza hostil do Continente Americano constituía uma prova
irrefutável da falta de inteligência do nativo ameríndio que não teria tido capacidade de
domesticar o seu próprio espaço natural. Daí a insalubridade reinante e a dificuldade do
civilizado europeu em ocupar os limites determinados pela conquista
129
.
A ciência romântica do final do século XVIII teve no poeta e intelectual alemão
Johann Wolfgang Von Goethe um incentivador, influenciando uma geração de cientistas
e pensadores europeus. Goethe apresentaria um conjunto de postulados opostos à
127
GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Cia. Das Letras, 1996, p.
19-20.
128
GERBI, Antonello. O Novo Mundo..., p.21.
ciência iluminista, particularmente a newtoniana. Para ele “a natureza era um organismo
vivo, que pode ser observado pelos cincos sentidos”
130
, especialmente a visão, que
contemplava com melhor precisão qualquer pesquisa que tivesse como objetivo a
verificação dos elementos da natureza. Esse postulado marcaria as viagens científicas
do momento, como as de Alexander Humboldt (1799-1804) e as dos naturalistas
bávaros Spix e Martius(1817-1820).
131
O debate foi longo, e durou muitas décadas nos meios científicos da Europa. Só
depois das viagens e explorações do final do século XVIII e início do seguinte a
comunidade científica do Velho Mundo redefiniu seus conceitos sobre o Novo Mundo. A
viagem de Humboldt merece destaque devido à repercussão que teve, pois
demonstrou, através de suas pesquisas, a riqueza própria e original da nova terra,
contrariando a idéia de decadência e debilidade. Posteriormente, com o auxílio dos
postulados da teoria darwinista da evolução, as teorias de Buffon e seu grupo só seriam
lembradas nos anais da história da ciência.
132
O padre Benigno de Carvalho não ficou fora desse debate, e cita Buffon no seu
tratado de Teologia Dogmática, A Religião da Razão, afirmando, a partir da Histoire
Naturelle, a existência de uma rica quantidade de plantas no planeta, sendo a grande
maioria desconhecida da ciência. Carvalho argumenta que só a existência de um Deus
supremo poderia explicar tão diversificada natureza
133
. Ao mesmo tempo, nas suas
cartas ao Instituto ou ao governo provincial da Bahia, durante os anos da expedição
científica, relata em vários momentos as dificuldades de sobrevivência que se enfrenta
ao deparar-se com a natureza hostil e ignota do desconhecido interior da Chapada
Diamantina, espaço da sua viagem em busca da cidade perdida. Por outro lado, a
pulsão de ver e explorar sítios naturais desconhecidos, influenciada por concepções
românticas de ciência, também se expressa na concepção e trajetória da expedição por
ele liderada.
129
GERBI, Antonello. O Novo Mundo..., p.21.
130
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil
(1817-1870) .São Paulo, 1997 , p. 73.
131
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius..., 73-74.
132
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius,..., 77-88.
133
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. A Religião da Razão ou a Harmonia da Razão com a Religião Revelada. I
v, Bahia: Typ. de Aurora Serpa e Cia, 1837, p. 17.
As pesquisas arqueológicas, que estavam neste momento iniciando-se no
Brasil, desempenharam a função de contestação da imagem de atraso e debilidade dos
nossos primitivos habitantes e automaticamente da América. Caberia não só à viagem
do padre Benigno, como as várias outras, a tarefa de encontrar as provas materiais da
existência de civilizações que prosperaram e edificaram suas culturas em época
anterior à chegada dos conquistadores europeus.
3.2. O Documento 512
Foi a partir da descoberta do Documento 512 (Relação de 1753), que descrevia
a cidade abandonada e o possível caminho até ela, que o IHGB organizaria a sua
primeira grande expedição científica, com objetivo de encontrar a misteriosa cidade. O
documento, que serviu de roteiro para essa expedição científica, descreve uma viagem
de aventureiros, que por dez anos, durante a segunda metade do século XVIII, vagaram
pelo interior da Bahia em busca de metais e pedras preciosas, especialmente prata.
Depois de idas e vindas, como errantes, depararam-se acidentalmente com ruínas de
uma cidade abandonada, no encontro dos rios Paraguaçu e Una.
A bem da verdade, o que chamamos de roteiro é uma carta relatório escrita em
1753 por autor desconhecido. Várias especulações já foram feitas no sentido de
determinar a autoria do documento. Porém, não há certezas quanto a sua origem. Uma
das possibilidades é que ela foi escrita pelo bandeirante João da Silva Guimarães, que
saiu, durante muitos anos, à procura das lendárias minas de prata de Melchior Dias
134
,
e deixou alguns relatos escritos sobre suas aventuras, mas nenhum referindo-se à
cidade perdida pelos sertões da Bahia.
134
Melchior Dias Moréia andou, por muitos anos durante o século XVII, à procura de minas de prata no interior da
Bahia, especialmente na Chapada Diamantina. Corria notícia de que teria encontrado riquezas fabulosas. Porém, por
motivos de disputa com o governador D. Luiz de Souza e Martim de Sá, a quem negou mostrar o roteiro das
referidas minas, foi preso e veio a falecer em Salvador pelo ano de 1622. Cf: DORIA, Francisco Antonio. Caramuru
e Catarina..., 2000, p. 67-73.
Para Francisco Doria, no seu estudo sobre a família dos Garcia d´Ávila, o
provável autor do documento foi o desembargador da relação da Bahia, Tomé Rubim
de Barros Barreto, que possuía formação erudita e tinha fortes pretensões à literatura.
Foi poeta árcade, estudou em Coimbra e pertenceu à pequena nobreza de Portugal,
como também exerceu o posto de ouvidor em Ouro Preto e interessado pelas questões
das minas do Brasil, conhecendo a Chapada Diamantina em viagem de pesquisas
mineralógicas.
135
Identificar o autor do roteiro da cidade perdida como erudito é algo inevitável,
pela própria estrutura do texto e estilo empregado, como também as referências de
ruínas descritas e o próprio espaço urbano da misteriosa cidade. As imagens utilizadas
remetem às cidades européias, com praças, arcos e monumentos. No relato, os
aventureiros afirmam que, após passarem por uma “rua de bom comprimento”,
chegaram
[...] em huma Praça regular, e no meio d’ella uma columna de
pedra preta de grandeza extraordinária, e sobre ella huma
estatua de homem ordinario, com huma mão na ilharga
esquerda, e o braço direito estendido, mostrando com o dedo
index ao Polo Norte; em cada canto da dita Praça está huma
Agulha, à imitação das que usavão so romanos, mas alguma
já maltratadas, e partidas como feridas de alguns raios.
Relatam também que
[...] Da parte esquerda da dita Praça está outro edifício
totalmente arruinado, e pelos vestígios bem mostra que foi
templo, porque ainda conserva parte do seu magnífico
frontespício, e algumas naves de pedra inteira: occupa grande
território, e nas suas arruinadas paredes se veem obras de
primor com algumas figuras, e retratos embutidos na pedra
135
DORIA, Francisco Antonio. Caramuru e Catarina..., p. 79-80.
com cruzes de vários feitios, corvos, e outras miudezas, que
carecem de largo tempo para descreve-las.
136
As expressões designativas de elementos arquitetônicos, e as possíveis inscrições
contidas nos seus monumentos, que foram transcritas no relato, lembrando caracteres
gregos, símbolos da astrologia ou grafias das antigas civilizações do Oriente Próximo
(Figura 1), sugerem que o documento foi elaborado por alguém com um mínimo de
formação clássica e conhecimento das ruínas da civilização greco-romana.
Langer, apoiado nas conclusões de Pedro Calmon
137
, defende a hipótese de
que autoria do documento é do governador da província mineira Martinho de Mendonça
de Pena e de Proença, auxiliar de João Guimarães nas suas buscas pelas minas de
prata. Proença era poliglota, filólogo e membro da Real Academia de Lisboa. Nada
mais adequado, para criar um imaginário erudito, do que as referências clássicas de
Proença, somadas à avidez pelas minas de Guimarães, como destaca o referido
autor.
138
Detalhe curioso foi a descoberta, por parte dos aventureiros, de uma moeda de
ouro que, segundo o relato, continha a imagem de um homem jovem, que estaria posto
de joelho junto com imagens de um arco, uma coroa e uma seta, e
[...] de cujo genero não duvidamos se ache muito na dita
povoação, ou cidade desolada, porque se foi subverção por
algum terremoto, não daria tempo o repente a pôr em recato o
precioso; mas he necessario um braço muito forte, e poderoso
para resolver aquelle entulho calçado de tantos annos, como
mostra.
139
136
ANÔNIMO. Relação histórica de uma occulta, e grande povoação antiqüíssima sem moradores, que se
descobriu no anno de 1753. Bahia/ Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, documento n 512, 1754. O
documento não contem paginação; ver a transcrição nos anexos p.129.
137
CALMON, Pedro. O segredo das minas de prata. Rio de Janeiro: À noite, 1950.
138
LANGER, Johnni. “A Cidade Perdida da Bahia: mito e arqueologia no Brasil Império”. Revista Brasileira de
História [on-line]. 2002, vol. 22, nº 43, p. 126-152, disponível na world wide: http: www.scielo.br.
139
Documento 512, Anexos p. 133-134.
Descrevendo o caminho que conduziu ao sítio da cidade, o autor do documento
faz menção à esplêndida natureza que cercava as misteriosas ruínas, deslumbrando-se
com as montanhas que circundavam a região e a fartura das águas do rio que passava
em frente à cidade. O estilo empregado para descrever a natureza em torno da cidade
abandonada chega a ser poético, reforçando a suposição de que o autor era alguém
com um mínimo de formação erudita. Percebemos, em seguida, mais um referencial
europeu, quando o grupo de aventureiros resolve
investigar aquelle admirável prodigio da natureza, chegando-
nos ao pé dos montes, sem embaraço algum de matos, ou
rios, que nos dificultasse o transito; porem circulando as
montanhas, não achamos passo franco para executarmos a
resolução de acomettermos estes Alpes, e Pyrineos
Brasilicos, resultando-nos deste desengano huma inexplicável
tristeza.
140
Os “Alpes” e “Pyrineos” citados no texto reforçam a idéia de que as imagens
elaboradas para descrever o espaço que circundava a cidade abandonada
associavam-se a elementos da geografia européia.
Langer afirma que os aspectos relacionados à cultura greco-romana,
empregados pelo autor da carta relatório, nos conduzem a acreditar que ele estava
ciente das descobertas arqueológicas que estavam acontecendo na Europa desde o
início do século XVIII. Lembremos que, em 1710, já estavam sendo escavadas as
ruínas de Herculano, cidade romana destruída pelo Vesúvio no primeiro século da Era
Cristã. As escavações em Pompéia iniciaram-se em 1748. Não seria absurdo supor
que o nosso autor tivesse tido contato com essas informações, que na Europa
espalhavam-se com grande intensidade.
141
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, empolgado com a possibilidade de
encontrar tão preciosa prova do nosso passado civilizado, conseguiu financiamento por
parte do governo Imperial e da Província da Bahia para a montagem da expedição que
140
Documento 512, Anexos p. 133-134.
141
LANGER, Johnni. A Cidade Perdida da Bahia:... , 2002.
pretendeu descobrir essa tão misteriosa cidade no interior da Chapada Diamantina,
particularmente na Serra do Sincorá, local preciso do encontro dos rios Una e
Paraguaçu, como descrito no relato dos aventureiros de 1753.
Figura 1. Inscrições em escrita desconhecida, citadas no Documento 512. (ANÔNIMO 1753).
3. 3. A organização da expedição
Tudo leva a crer que a escolha do Cônego Benigno para conduzir os trabalhos
em busca da misteriosa cidade teria partido do próprio Instituto, que conhecia o Cônego
através de D. Romualdo Seixas, que o teria apresentado como pretendente a sócio da
agremiação logo após a sua própria indicação em 1840. Fazer parte do quadro dos
sócios do recém fundado IHGB, que contava como protetor o próprio Imperador, era
sinal de grande prestigio político e intelectual na época.
O Cônego Benigno, como já referimos em capítulo anterior, possuía um
currículo intelectual respeitado pelos seus pares e pelos setores mais abastados da
sociedade baiana. O convite teria sido feito em meados de 1840, quando o mesmo
viajou para a capital do Império para resolver, através de procuração do próprio
Arcebispo, problemas burocráticos do Cabido da Sé baiana. Neste momento, assumia a
função de procurador do próprio Cabido. Como era amigo pessoal e homem de
confiança de Dom Romualdo, provavelmente foi convidado para participar de algumas
reuniões do IHGB. Permaneceu três meses no Rio de Janeiro, tempo suficiente para
articular com o secretário perpétuo do Instituto, o também Cônego Januário da Cunha
Barbosa, e seu presidente, Visconde de São Leopoldo, ambos partidários da
realização da expedição em busca do precioso achado arqueológico, o financiamento e
apoio necessário para o projeto.
142
Em carta ao Instituto datada de 25 de fevereiro de 1841, agradecendo a sua
acolhida como sócio, o Cônego Benigno informa sobre as suas primeiras investidas na
busca de informações sobre a cidade abandonada. Na ocasião, envia o seu primeiro
relatório (Memória), descrevendo a viagem que fez à cidade de Valença. Os moradores
desta, segundo Carvalho poderiam fornecer informações preciosas sobre a localização
exata da cidade perdida. Na memória, o Cônego afirma estar disposto a dedicar-se “a
todo e qualquer trabalho em serviço do Instituto”, indicando como evidência disso a
viagem que fez para resolver a “primeira questão que me foi encarregado o Instituto - a
situação da cidade abandonada nestes sertões
143
. A sua confiança nos resultados
das pesquisas sobre a localização da cidade perdida é tanta que chegou a afirmar,
precipitadamente, que “pelas informações que colhi na mesma curta viagem [...] posso
ter o gosto de marcar a situação da cidade”
144
.
Não resta dúvida quanto ao entusiasmo dos membros do IHGB face a essas
notícias. O imaginário, que já era forte, é agora alimentado pelas pesquisas de um
intelectual de confiança, e que demonstrava vontade de solucionar o mistério da cidade
abandonada no interior da Bahia. A pressa em demonstrar resultados positivos nessas
primeiras pesquisas alimentou o desejo do IHGB de solucionar a questão do
Documento 512. O entusiasmo porém, ao que tudo indica fundava-se em informações
tão seguras e precisas quanto o relato enviado por Carvalho. Fazia crer Dom Romualdo
Seixas, em suas memórias, alertou, já tardiamente, para algumas características da
personalidade do Cônego Benigno. Segundo Seixas, a decisão do Cônego em aceitar
esse empreendimento científico, tido como singular, fazia parte do “[...] seu gênio um
pouco aventureiro e romântico”.
145
Nessa primeira etapa da exploração, o Cônego, devido ao pouco tempo que
possuía para prolongar-se na busca da cidade, pois deveria retornar a Salvador ainda
em fevereiro para assumir as aulas no Seminário Diocesano, afirmou que não gostaria
de arriscar-se, pois
[...] a jornada é longa e perigosa por causa das serpentes e
onças em que abundão aquelles sítios, há selvagens, jovens
escravos: o que há de acompanhar-me já subiu dois dias de
viagem acima da catadupa do rio que corre defronte da
cidade, e me informou de tudo isto.
146
142
APEB, Presidente de Província, maço: 5309.
143
BN, Seção de Manuscritos, I - 3, 11,81. O grifo é do original.
144
BN, Seção de Manuscritos, I - 3, 11,81.
145
SEIXAS, Dom Romualdo. Memórias... 1861, p. 147.
146
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência”. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, tomo VI, 1844, p.
318-321.
A existência desses perigos e enfrentamentos com selvagens e negros, como ele
próprio afirma, vinha das informações colhidas entre os moradores da região de
Valença, que o alertavam para os riscos envolvidos na viagem. Encontramos, em
outras cartas enviadas ao Instituto ou ao governo da Província da Bahia,
demonstrações do receio de defrontar-se com quilombolas que acreditava-se que
infestavam a região da Chapada Diamantina. Esta, pela sua extensão e difícil acesso,
era adequada para a sobrevivência de comunidades negras protegidas pelo incógnito
do seu espaço.
147
Maria Cristina Dantas Pina, em seu estudo sobre o garimpo e a escravidão nas
Lavras Diamantinas, chama a atenção para concentração de trabalhos historiográficos
sobre a escravidão do século XIX nas áreas de produção do açúcar, e sobre a
escravidão urbana, sendo as outras áreas de produção investigadas só recentemente.
Pina destaca, o trabalho de Erivaldo Fagundes Neves
148
como um dos primeiros que se
dedicaram a analisar a presença negra no sertão da Bahia. Neves chega à conclusão
que “a escravidão desenvolve-se no Alto Sertão da Bahia simultaneamente e
articuladamente com a meação, [...] evidenciando a multiplicidade das relações de
trabalho”
149
. É desta forma, indicada a presença de escravos para os trabalhos na
lavoura ou pecuária de subsistência, e posteriormente nas Lavras Diamantinas.
Foi a partir do levantamento de uma série de inventários que Pina chega à
conclusão da forte participação do elemento escravo na economia da Chapada
Diamantina, particularmente, no início do desenvolvimento do garimpo, no final da
primeira metade do século XIX
150
, momento da expedição da cidade perdida. Por isso,
não estranhemos, que nos caminhos trilhados pelo Cônego, ele ter encontrado
comunidades negras de quilombolas em uma região onde a marca da escravidão já se
fazia presente há muito tempo, mesmo antes do garimpo.
147
A Chapada Diamantina está localizada no centro do território baiano, ocupando uma área de 370 quilômetros de
comprimento por 228 de largura, constituindo-se num prolongamento da Serra da Mantigueira em Minas Gerais, que
se desdobra em Serra do Espinhaço e Serra da Mangabeira. Cf: PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do
Paraguassú: Cidade, garimpo e escravidão nas lavras diamantinas, século XIX. Salvador: UFBA, p.46, 2000. (
Dissertação de Mestrado).
148
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio: um estudo de história
regional e local. Salvador: Ed. da Universidade Federal da Bahia; Feira de Santana: Universidade estadual de Feira
de Santana, 1998, p. 247-290.
149
PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do Paraguassú: Cidade, garimpo e escravidão..., p.78.
150
PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do Paraguassú: Cidade, garimpo e escravidão... p.80-83.
Apesar dos perigos, o Cônego tencionava retornar à região no final de 1841,
com bestas e acompanhantes, além de “índios armados da aldeia de São Fidelis, que
me fica em caminho”
151
para evitar as surpresas da jornada a ser percorrida. A
insegurança na região era uma preocupação que remonta à expedição de Spix e
Martius, que destacam o completo abandono das autoridades na Vila de Caetité, onde
encontravam-se homens violentos ou jagunços a serviço de quem bem pudesse
pagar
152
.
Na conclusão da carta enviada ao IHGB, Carvalho pede ao Cônego Januário
sua interferência para que o governo imperial mandasse o financiamento necessário
para tão dispendiosa empreitada, alegando que os seus baixos rendimentos de Cônego
da Sé baiana e de professor do Seminário eram irrelevantes frente às despesas
necessárias. Os problemas para o financiamento da expedição estavam só começando.
Ao longo do seu processo, uma das suas maiores queixas era a falta de dinheiro para o
prosseguimento adequado das investigações. Estabeleceu-se como necessária para o
início da viagem a quantia de dois contos de réis, para a compra de seis bestas,
roupas, mantimentos e despesas pessoais.
153
Na primeira viagem, que podemos classificar como uma rápida expedição
apenas de reconhecimento da área que seria percorrida posteriormente, Carvalho
contou com as informações de algumas pessoas que conheciam a região e que teriam
ouvido falar na possibilidade da existência da cidade abandonada
154
. Foram
necessários três meses de preparação, que contou com a ajuda do próprio Dom
Romualdo Seixas. O arcebispo presenteou Carvalho com um mapa da América do Sul
para garantir uma melhor observação geográfica, além, é claro, do relato dos
aventureiros de 1753, peça indispensável para as investigações.
Na viagem de reconhecimento, o Cônego fez um rápido estudo das condições
geográficas que enfrentaria na futura expedição que planejava para o final do ano de
1841, quando o financiamento, segundo sua expectativa, estaria aprovado por parte
151
BN, Seção de Manuscritos, I - 3, 11,81.
152
SPIX, Joh. Bapt. Von & MARTIUS, C. F. P. von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Melhoramentos, 3
ed., vol. II, 1976, p. 117,121.
153
Lembremos que o seu total de rendimentos pessoais (Seminário mais prebenda de Cônego) era de 750$000.
154
O Cônego destaca as figuras do Desembargador Mascarenhas e do Sr. Remigio Pereira de Andrade, ambos
antigos moradores de Rio de Contas e conhecedores da região da Serra do Sincorá e dos rios Una e Paraguaçu.
das Instituições interessadas, especialmente o IHGB. Nesta sua análise, descreve as
características topográficas e climáticas da Serra do Sincorá, os rios que serpenteavam
a Chapada Diamantina, particularmente o Paraguaçu e o rio Una, mencionados na
narrativa dos exploradores de 1753.
155
Apesar da empolgação pelas informações obtidas nessa primeira expedição, o
Cônego reclamaria dos pessimistas que constantemente chamavam atenção para a
possibilidade de tudo não passar de fantasia de pessoas com imaginação poética.
Segundo o seu primeiro relatório ao IHGB, publicado na revista do Instituto com o nome
de Memórias, não faltava
[...] quem metta a bulla minha diligencia neste artigo,
reputando fabula a Relação dos aventureiros de 1753; eu
porem não descubro nella nem motivos de o desconfiar, pois
nada há alli que cheire a invenção poética, e será impossível
descortinar uma razão de gloria ou interesse, que podesse
estimular uma tal ficção: e como lembrariam a mineiros os
caracteres gregos, ou runnos? Antes noto nesta Relação
certa simplicidade e desalinho, como de quem escreve sem
estudo, pois nem se guarda ordem na exposição dos factos,
contando depois o que devia ser narrado em seguimento, se o
escripto fosse pensado: mostra que foram escriptos os factos
á proporção que iam lembrando, como se vê na moeda
cunhada que um delles achou, etc.
156
Em seguida faz confirmar a sua convicção de que estava bem próximo de solucionar o
problema da cidade perdida, não se importando com os incrédulos, pois
[...] diga lá cada um o que bem lhe parecer; o certo é que vi
coroadas minhas diligências, e realizadas minhas conjecturas,
155
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Memória sobre a situação da antiga cidade abandonada, que se diz
descoberta nos sertões do Brasil por certos aventureiros em 1753”. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Tomo III, 1841,
p. 160-162. Grifos do original da publicação.
156
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Memória sobre a situação da antiga cidade abandonada...”, p. 159.
senão com toda a certeza, por me não caber no tempo e
menos o prefazer minha viagem, ao menos com uma
probabilidade, que se approxima muito da certeza.
157
A convicção de Carvalho advinha em parte da crença na veracidade dos
testemunhos que colhera, principalmente dos mais velhos, que relatavam a existência
de um antigo povoado abandonado pelos seus moradores por causa de terremotos ou
grandes chuvas, ou ainda histórias sobre aventureiros que foram a sua procura e nunca
mais voltaram. De acordo com o Cônego,
Todos estes testemunhos confirmam admiravelmente minhas
conjecturas e primeira hypothese, de sorte que não posso
duvidar de que allí, na serra do Cincorá da parte sul, e na
margem esquerda do Braço do Cincorá, que eu devo buscar a
cidade abandonada.
158
Ao dar importância a relatos da tradição popular, o Cônego endossava e dava
prosseguimento ao imaginário das cidades perdidas, destruídas por catástrofes
monumentais, lembrando a Atlântida grega e tantas outras narrativas de civilizações
encantadoras, tradição derivada de uma oralidade perdida nas gerações da Europa,
mas que chegou ao Brasil e se prolongou ao longo do tempo. Langer lembra-nos da
narrativa bíblica do dilúvio e de outras tradições populares de cidades imaginárias, que
teriam tido o mesmo destino da procurada pelo padre Benigno. No Maranhão, a cidade
de Maiandeua, e em Pernambuco o relato da lenda de Grogongo, sítios encantados
que teriam desaparecido em função de acontecimentos mirabolantes.
159
Lembremos que o padre Benigno de Carvalho era português, naturalizando-se
brasileiro com idade avançada, tendo sofrido influência da tradição oral portuguesa. Por
isso não podemos nos surpreender com sua identificação com as narrativas colhidas
através dos moradores mais antigos de Valença, que transmitiam essas tradições
157
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Memória sobre a situação da antiga cidade abandonada...."., p. 159.
158
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Memória sobre a situação da antiga cidade abandonada...”, p.163.
159
LANGER, Johnni. A Cidade Perdida da Bahia: mito e arqueologia..., www.scielo.br.
míticas de raízes européias, já conhecidas pelo padre, mas com roupagem da cultura
da região.
Outro ponto que confirmou para o nosso padre arqueólogo a existência de uma
antiga civilização na Serra do Sincorá, suspeitando, até mesmo, que possuísse uma
avançada tecnologia, foi a observação de paredões naturais que acompanhavam os
caminhos e trilhas da região. Padre Benigno chegou a duvidar que teria sido obra da
natureza, pela sua perfeição arquitetônica e de estilo arrojado, sugerindo a obra de
algum grande engenheiro, possuidor de conhecimentos sofisticados para construir
tamanha estrutura. A natureza exuberante da Chapada Diamantina deixava o padre
impressionado com as formas que ela própria esculpia, e este duvidava que não fosse
obra humana.
160
A narrativa construída pelo padre Benigno, neste primeiro relato das suas
buscas da cidade perdida do Sincorá, leva-nos a uma imagem do maravilhoso.
Segundo Stephen Greenblatt, o efeito do maravilhamento provoca nas pessoas uma
“imensa força, força que provém do elemento surpresa”
161
chegando a compará-la a
uma espécie de paralisia, “uma cessação da inquietação associativa normal da
mente”
162
. A surpresa do Cônego ao deparar-se com as formações da natureza da
Chapada, alimentou ainda mais a idéia da possibilidade da cidade perdida escondida
em suas densas matas.
O sentido de inexpugnável e ao mesmo tempo encantador, presente na
Relação de 1753, insere-se no padrão de narrativas do maravilhoso que compunham o
imaginário das conquistas ibéricas no Novo Mundo, especialmente as espanholas,
como proposto por Guillermo Giucci
163
. Tal imaginário, apesar de ter perdido a sua força
inicial, perdurou por um longo período de tempo. É ele que conduziu o padre Benigno e
tantos outros à procura das ruínas da cidade perdida nas matas do interior da Bahia.
Com base em suas próprias observações e nos relatos dos moradores, que
ele considerou como verdadeiros, o caminho que conduziria à cidade era ladeado por
imensos paredões edificados pelos habitantes da misteriosa povoação. Um terremoto
160
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. Memória sobre a situação da antiga cidade abandonada..., p. 160.
161
GREENBLATT. Stephen. Possessões Maravilhosas. São Paulo: Edusp, 1996, p.37.
162
GREENBLATT. Stephen. Possessões Maravilhosas..., p. 37
163
GIUCCI, Guillerme. Viajantes do Maravilhoso: o Novo Mundo. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 21.
ou dilúvio teriam destruído a cidade, ou mesmo a figura de um dragão foi cogitada
como responsável pelo fim dessa civilização. Este ser imaginário ainda atormentaria
aqueles que se arriscassem a tentar encontrar a antiga cidade.
164
Talvez o caráter romântico da sua personalidade, mencionado nas memórias
de Dom Romualdo Seixas, fosse mais forte do que suas observações científicas sobre
a existência e localização da cidade descrita pela Relação de 1753. O certo é que o
padre Benigno levou a sério essas narrativas em todo processo da expedição, como
demonstrou nas cartas escritas, tanto para o IHGB, como para o próprio governo
provincial da Bahia.
Após a viagem de reconhecimento feita no início de fevereiro de 1841, e a
publicação das memórias da pequena expedição, o IHGB começou a negociar com o
governo Imperial o financiamento da busca da cidade perdida. Tal tarefa não se
mostraria tão fácil como de início parecia aos sócios do Instituto carioca. Apesar do
entusiasmo e interesse pela expedição, os custos previstos pelo Cônego Benigno de
Carvalho eram altos e dificilmente seriam cobertos. Pelas previsões do Cônego,
conforme foi apontado anteriormente, seriam necessários dois contos de réis, quantia
volumosa e que necessitaria de muito esforço para conseguir.
A expectativa e ansiedade por parte do Cônego são expressas nas duas cartas
enviadas ao secretário do Instituto, Januário da Cunha Barbosa. Na primeira, datada de
10 de agosto de 1841, ele agradece a publicação do seu primeiro relato em busca da
cidade e reclama da demora em receber a verba para as despesas da viagem, não
deixando, mais uma vez, de declarar os seus baixos rendimentos de religioso e
professor. Em anexo, Carvalho envia um provável mapa da localização da cidade, feito
a partir das suas observações em Valença e dos depoimentos colhidos
165
. Na segunda
carta, de 07 de outubro do mesmo ano, faz referência à urgência do envio do dinheiro
para a compra de equipamentos para a futura viagem, instrumentos de localização e
medição, necessários a qualquer verificação científica dessa natureza, um quadrante
para calcular as latitudes e um cronômetro para longitude, orçados em pelo menos
500$000.
166
164
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Memória sobre a situação da antiga cidade abandonada...”, p.163.
165
BN, Seção de Manuscritos, I - 3, 11,82.
166
BN, Seção de Manuscritos, I - 3, 11,83.
Durante o processo de negociação do IHGB com as autoridades que
financiariam a expedição, o Cônego Benigno, em quase todas as cartas enviadas ao
Cônego Januário da Cunha Barbosa, deixava clara a sua certeza sobre o sucesso da
viagem até a Serra do Sincorá e tocava, com certa veemência, no assunto da urgência
do dinheiro para a organização e concretização do projeto, explicando que necessitava
de algumas semanas, depois do envio da verba, para as providências que uma
expedição dessa monta exigia. Por vezes, Carvalho afirma que, caso tivesse condições
financeiras, teria partido de imediato para a concretização do seu desejo de provar a
localização da cidade abandonada, demonstrando um certo aborrecimento pela demora
da tão esperada verba.
Apenas em 11 de novembro de 1841 o governo imperial expedirá a aprovação
de seiscentos mil réis para as despesas da viagem, quantia bem abaixo do esperado,
além de determinar a liberação, por parte da justiça imperial e provincial, das atividades
de Cônego dentro do Cabido da Sé baiana, enquanto estivesse na expedição
167
. No dia
08 de dezembro, a sua licença é oficializada pelo Arcebispo Dom Romualdo Seixas,
atendendo à determinação do governo imperial
168
. Dessa maneira, o padre Benigno
estava totalmente liberado das suas funções burocráticas e de ensino, ficando pronto
para a missão científica que o aguardava. Um dia antes do registro da sua liberação por
parte de Dom Romualdo, 07 de dezembro, escreveu uma carta de agradecimento ao
Cônego Januário pelos esforços despendidos e, particularmente, pelo envolvimento do
IHGB e do governo imperial na sua viagem. Planejava para o dia 15 do mesmo mês a
sua partida, confirmando a urgência da empreitada.
169
A rapidez pretendida pelo Cônego Benigno em começar a expedição não se
explica somente pela sua vontade pessoal de colocar em prática o projeto, mas
também pela necessidade de evitar que cientistas estrangeiros, que já demonstravam
interesses na descrição do Documento 512, fizessem a descoberta primeiro. A corrida
pelas pesquisas arqueológicas na Europa era tal, que da distante Copenhague
aportaria em Salvador, no ano de 1840, logo em seguida à publicação do manuscrito
167
IHGB, lata 342, pasta 05/1841.
168
O ofício de liberação foi publicado na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia n. 68, p. 212, como
parte da documentação pessoal de Dom Romualdo Seixas.
169
BN, Seção de Manuscrito, I - 3, 11,84.
dos aventureiros, uma missão científica com o objetivo de comprovar a existência da
cidade perdida. A missão, que foi recebida pelo próprio Dom Romualdo Seixas,
interessado pela arqueologia, era chefiada pelos militares dinamarqueses Svenson e
Schultz, e acompanhada pelo naturalista Kruger. A falta de dados mais precisos e as
dificuldades da viagem pelo interior da província da Bahia teriam desestimulado os
membros da expedição, que partiram para a Dinamarca frustrada, sem o êxito
esperado.
170
Não é de se estranhar a presença dessa equipe de exploradores
dinamarqueses no Brasil e nem a rapidez com que tomaram contato com a aventura de
1753. Recordemos que o arqueólogo Peter Wilhelm Lund já morava no Brasil e
mantinha uma intensa correspondência com seus patrícios membros da Sociedade
Real dos Antiquários do Norte, da qual fazia parte. É praticamente certo que essa
expedição foi organizada a partir das informações que Lund enviou, e objetivava
comprovar a existência de dados materiais sobre a presença dos povos nórdicos no
território brasileiro antes dos portugueses, como nos referimos em momento anterior
deste capítulo.
O entusiasmo do IHGB em relação à expedição é indicado pelo conteúdo dos
discursos do presidente do Instituto, Visconde de São Leopoldo, e do Cônego Januário
da Cunha Barbosa. Em sessão solene comemorativa pelo aniversário de três anos da
agremiação acadêmica, contando com a presença da elite intelectual da corte e do
próprio Imperador Dom Pedro II, era anunciado oficialmente o início dos trabalhos
arqueológicos do Cônego Benigno de Carvalho.
Nos discursos do presidente e do secretário da entidade encontramos de forma
clara a associação do projeto da cidade perdida com os grandes achados
arqueológicos da América Latina e do Mundo Antigo. Mais uma vez, tenta-se inserir o
Brasil entre os países que abrigaram em época remota alguma civilização desenvolvida,
vindo legitimar o nosso passado, dando com isto respaldo histórico ao Império e
prestígio ao IHGB:
170
ESTRELITA JÚNIOR. As Minas do Sincorá. Rio de Janeiro, Ed, Bonfean, 1933, p. 159.
Subirá ainda a mais vossa fama, se a expedição confiada a
um intrépido nosso consócio, em pesquisa de inculcados
monumentos, e de uma cidade abandonada, que se diz
recôndita nos sertões do Brasil, obtiver êxito desejado; como
no México, as ruínas de Mitla e de Palenque attestam a
existência n´este nosso continente, e a inteira desapparição
de nações florentes, as quaes deixaram vestígios de uma
antiguidade, não menos venerável, de uma civilização, talvez
contemporânea á do Egypto e á da Índia; da mesma sorte o
nosso Instituto, accumulando títulos para o público
reconhecimento, abrirá também novo campo ás idéias e ás
conjecturas; espalhará clarão e evidência sobre os pontos da
istória e da geographia do paiz, o qual refletirá em honra e
lustre da pátria.
171
O Cônego Januário além de confirmar as expectativas do Visconde de São
Leopoldo de encontrar tão sonhada prova do nosso glorioso passado, ratifica sua
confiança no projeto do padre Benigno de Carvalho:
[...] o nosso esclarecido sócio Cônego Benigno José de
Carvalho e Cunha, partilhando o ardente patriótico zelo d´esta
associação, e dando largas o seu gênio archeologico, lá parte
agora mesmo, cheio de enthusiasmo e de esperança, a
adiantar as suas primeiras investigações, conduzindo no
labyrinto de tão cerradas florestas pelo fio de muitas tradições
por elle já colhidas nas abas d´essa ainda não devassada
serra.
172
171
LEOPOLDO, Visconde de São. Discurso do presidente. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, tomo III, n. 12, p.
429-430, 1841.
172
BARBOSA, Cônego Januário da Cunha. “Dos trabalhos do Instituto durante o terceiro anno”. Revista do IHGB,
Rio de Janeiro, tomo III, n. 12, p. 435, 1841.
Em seguida enaltece o governo Imperial por acreditar no projeto da cidade perdida,
particularmente na liberação dos meios financeiros adequados para a expedição. Por
fim, exalta esse tipo de viagem científica pelo interior do território brasileiro, que ainda,
segundo suas observações, carecia de um maior entendimento, pois tal tentativa
[...] é sempre gloriosa aos que a emprehendem; e quando se
não chegue ao desejado effeito, a descoberta de terrenos,
que podem ser vantajosos ao estado, compensará de certo os
esforços que se fizerem com este fito. Assim o Brasil tem sido
devassado em muitas partes do seu interior, e tem pago
superabundantemente as fadigas de affoutos aventureiros,
com thesouros, de que ainda se aproveita o Estado.
173
Caberia agora ao Cônego Benigno de Carvalho comprovar as conjecturas
expostas nas suas cartas ao IHGB e no seu primeiro relatório de investigação das
fontes sobre a existência da cidade abandonada, quando da sua viagem a Valença em
fevereiro de 1841. Porém, os mais de cinco anos de expedição deixariam mais dúvidas
do que certezas sobre a tão sonhada cidade perdida do Sincorá.
3.4. À procura da cidade perdida
A saída da expedição do Cônego Benigno de Carvalho de Salvador, no final do
ano de 1841, foi cercada de muita expectativa, não só por parte do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, mas também do próprio governo provincial, que liberou, para
acompanhar o nosso padre arqueólogo, ordenanças (soldados), os quais deveriam dar
proteção ao respeitado viajante. Além disso, levava o Cônego um salvo conduto,
assinado pelo próprio Presidente da Província, José Joaquim Pinheiro de Vasconcellos,
para que por nenhuma razão fosse impedida a sua passagem pelas terras da Chapada
Diamantina. O interesse do governo provincial na expedição não se limitava às
questões científicas que motivavam a longa jornada e os gastos. No próprio discurso
do secretário perpétuo do IHGB, citado na página anterior, percebemos a missão de
exploração que o padre Benigno teria recebido do governo pois, além de encontrar a
cidade, o reverendo cientista deveria também comunicar todo e qualquer achado,
especialmente de minérios, que ocorresse ao longo da viagem. Isto fica claro na
constante preocupação do padre em enviar cartas relatórios para o governo provincial
da Bahia, e do próprio governo em enviar-lhe ofícios e comunicados. Na sua
correspondência, o Cônego não só relata suas idas e vindas pela Chapada na busca
da cidade, mas também a descrição de pontos da geografia até então desconhecidos,
e suspeitas da existência de metais ou pedras preciosas.
174
Antes de iniciar a expedição, o padre Benigno enviou, para ser publicado na
revista trienal do IHGB, um pequeno ensaio sobre o potencial econômico do Brasil. Na
sua opinião, o país estava abandonado, pois o governo deveria investigar melhor o seu
espaço territorial em busca de riquezas minerais, especialmente no interior que ainda
encontrava-se isolado do resto da nação. Tais medidas poderiam ser a salvação de
uma economia tão debilitada como a nossa se comparada aos países da Europa:
admira-se com que este fontanal da riqueza nacional é
actualmente olhado no Brazil ! O Brazil sem estradas, sem
portos, sem canaes, sem marinha, sem machinas de indústria
e agricultura, sem povoação no seu vasto interior, não lança
mão do único e surperabundante recurso que lhe offerece seu
riquíssimo solo para povoar seus desertos espaçosos, plantar
e promover seu comércio interno, abrir communicações fáceis
em todas as direcções, pagar suas dívidas, e fomentar a
indústria de seus filhos!
175
173
BARBOSA, Cônego Januário da Cunha. “Dos trabalhos do Instituto...”, p . 435.
174
APEB, Presidente de Província, religião/vigário, 1824-1846, maço 5213.
175
CUNHA, Cônego Benigno José de Carvalho. “Breve Notícia sobre as minas há pouco descobertas no Assuruá, na
Província da Bahia”. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Tomo 12, 1849, p. 527.
O tom de manifesto é mantido até o final do ensaio, em que o Cônego pede desculpas
pela veemência da oratória. Este, entretanto, justifica-se pois “penaliza ver tão pobre
uma nação senhora do mais rico paiz em todo o gênero de mineração, e o mais
grandioso em sua vegetação”
176
. Para corroborar esta opinião, é citado o próprio José
Bonifácio de Andrada e Silva, em artigo que defendia a riqueza econômica do Brasil
através da exploração dos recursos minerais.
Mas é evidente que o ensaio serve também para propagandear a capacidade
de Carvalho para dirigir a expedição, além dos ganhos potenciais que sua realização
traria para o país.
Nas primeiras cartas, tanto as dirigidas ao Instituto como as endereçadas ao
governo provincial da Bahia, o padre Benigno reclamava das dificuldades de continuar
a expedição pela falta de verba para a sua manutenção, informando que a quantia de
600 mil réis recebida era irrisória frente os gastos com suprimentos, animais e diárias
de seus acompanhantes. Isso o teria levado a mudar o roteiro inicial, mais longo, para
um mais curto, em que os gastos também seriam menores e de acordo com o
financiamento recebido.
177
A sorte parecia não estar acompanhando o padre pois, pouco mais de um mês
após o início da expedição, foi acometido de malária junto com quase toda sua equipe,
chegando alguns à beira da morte pela fraqueza provocada pela febre, ficando os
trabalhos paralisados por mais de seis meses. Ao longo dos cinco anos de expedição e
do seu extenso roteiro (Figura 02), as febres tropicais atacaram constantemente nosso
expedicionário. Só no dia 16 de agosto de 1842, ainda convalescendo, este partiu com
destino às matas da Serra do Sincorá em busca do rio que atravessava a cidade
abandonada, conforme as pesquisas feitas em Valença no ano anterior.
178
Os meses de janeiro e fevereiro são marcados, em geral, por fortes chuvas na
região da Serra do Sincorá. Foram essas mesmas chuvas torrenciais um dos motivos
para que, na expedição de Valença, o padre cancelasse as suas primeiras
investigações nas matas da região do Rio de Contas até a subida da Serra e do
176
CUNHA, Cônego Benigno José de Carvalho. “Breve Notícia sobre as minas... “,p. 529.
177
LANGER, Johnni. A Cidade Perdida da Bahia: mito e arqueologia... p.
178
APEB, Presidente de Província, Religião/Vigário, 1824-1846, maço 5213.
povoado do Sincorá, como foi descrito em seu primeiro relatório. Verifica-se aqui um
descuido no planejamento da partida da expedição. Com base na experiência no ano
anterior, como registramos, teria sido mais seguro que a viagem fosse iniciada no final
do período das chuvas. Estas, além de dificultarem o acesso devido ao alagadiço dos
caminhos e trilhas, provocariam, como foi comprovada na primeira carta, uma série de
febres provenientes da grande quantidade de mosquitos transmissores da malária e
outras doenças tropicais.
Outros viajantes que passaram por essa região, ou próximo às terras da
Chapada Diamantina, a exemplo dos naturalistas bávaros Spix e Martius, na viagem
que fizeram praticamente pelos mesmos caminhos do Cônego, descrevem afecções
com “feição reumática e inflamatória; pneumonas, emoptises e tuberculose [...] e as
perigosas sezões [...] na estação das chuvas”
179
. O príncipe Maximiliano de Wied-
Neuwied, percorrendo o nosso interior, comenta que as febres
[...] que reinam nas zonas que percorri se distinguem das
febres das outras províncias por um caráter mais benigno;
assim é, que, por exemplo, ao longo do Rio São Francisco, na
época em que as suas águas baixam, a região toda se vê
infectada por epidemias que matam muita gente e se tornam,
sobretudo, muito perigosas para estrangeiros e para os
viajantes não aclimatados.
180
Como o espaço explorado pela expedição era muito abundante em rios e
riachos, com destaque para os rios Paraguaçu, Una, Grande, Utinga, Bonito, e tantos
outros menores com seus pequenos afluentes, não seria absurdo supor que de fato, na
época das chuvas, os mosquitos infestavam suas margens, provocando as “sezões”
(febres) descritas pelos viajantes estrangeiros acima e pelo próprio Cônego Benigno.
Este, durante a sua viagem de mais de cinco anos, foi castigado por essas febres
intermitentes, que provocaram debilidades no quase sexagenário padre arqueólogo.
179
SPIX, Joh. Bapt. Von & MARTIUS, C. F. P. von. Viagem pelo Brasil ..., p. 116.
180
WIED-NEUWIED, Maximilian.Viagem ao Brasil (1820/21). São Paulo: Cia Editora Nacional,1954, p. 424.
Rio Jacuípe
Rio Paraguaçu
Rio Una
Rio Stº Antônio
Rio Utinga
Rio Bonito
Rio de Contas
Rio São Francisco Rio Grande
Rio Corrente
Senhor do Bonfim
Jacobina
Irecê
Barra
Seabra
Rui Barbosa
Lençois
Andaraí
Mucugê
Feira de
Santana
Salvador
Valença
PERNAMBUCO
PIAUÍ
TOCANTINS
MARANHÃO
GOIÁS
ALAGOAS
SERGIPE
ESPÍRITO
SANTO
MINAS GERAIS
BRASIL
6
0
6
12
180
ESCALA
46º 44º 42º 40º 38º
11º
15º
17º
19º
Área das
expedições
1ªExpedição (1841)
Expedição (1842-46)
Jequié
Figura 02- Expediçôes do Cônego Benigno de Carvalho
(1841-1846)
Adaptado do Anuário Estatístico da Bahia/SEI - 1999
Mesmo não podendo sair, devido aos efeitos das febres, o padre Benigno,
segundo seu próprio relato, enviou um ordenança junto com um “negro ladino”
181
para
penetrarem nas matas e consultarem um caçador de nome Apolinário, conhecido pelas
suas aventuras. A tentativa não resultou em informações consistentes, apesar de que
outras notícias que chegavam para o padre eram de que a cidade estava bem próxima,
que do alto de um morro próximo aos rios Utinga e Bonito, nos arredores da Serra do
Sincorá, seria possível avistar o sítio da cidade perdida e até mesmo um quilombo
vizinho. Em vista disso, o Cônego caminhou cinqüenta e quatro léguas e, com o
testemunho de um antigo morador da região, Clemente de Souza, descreve que,
Nada vi, senão paredes de pedra calcárea que de longe
parecia com o reflexo das casas caiadas. Duas veses com
fadiga e estrago da minha roupa subi a este morro rompendo
mato denso até seu cume, e com um telescópio observei por
todos os lados aquelle immenso campo mavinho que fica
entre a pequena e moderna Povoação de Otinga, Jacobina e
Comissão a Est, Norte, Noroest, e João Amaro ao Sul e nada
vi, senão os taes paredões. Voltei então bem desconsolado
para o meu triste ranxo, onde nem o dono da Fazenda tinha
casa, e ahi aguentei duas noites muita chuva e um alagadiço,
onde corre mansamente por entre alto e sombrio arvoredo o
rio Brasil e que me causou uma tosse de dois meses.
182
Além dos problemas provocados pelas chuvas que ameaçavam a saúde do
padre Benigno, uma queda do cavalo que o conduzia pela mata densa da Chapada
atrasou ainda mais as buscas, pois a sua perna esquerda inchou e provocou dores por
quase quinze dias, a ponto de impedir as orações e celebrações diárias que, mesmo
em um local não usual, teriam que ser postas em prática por qualquer sacerdote fiel
181
Escravo ladino era o que já falava o português e podia desempenhar algumas funções caseiras ou de artesanato.
Ladino é uma corruptela de latino, sinônimo de letrado, de culto e inteligente. Cf.: CASCUDO, Luis da Câmara.
Dicionário de Folclore Brasileiro. 5ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia, p. 426.
182
APEB, Presidente de Província, Religião/Vigário, 1824-1846, maço 5213.
aos preceitos da Igreja. Neste momento da narrativa, começa-se a perceber um certo
desolamento por parte do nosso explorador. Corria o mês de novembro de 1842, quase
um ano após sua partida de Salvador, e ele não havia encontrado qualquer vestígio
das ruínas da cidade perdida do Documento 512.
183
As certezas iniciais, transmitidas
ao IHGB em suas cartas, estavam se esvaindo a cada dia.
Outro ponto que dificultou o desenvolvimento da expedição, além dos expostos
acima, foi o problema da alimentação da comitiva, que contava com vinte e duas
pessoas, entre os ordenanças e carregadores, e dos animais. O abastecimento de
milho e farinha na área percorrida era muito deficiente, chegando, segundo relato do
Cônego, a faltarem esses produtos para os moradores da região por mais de dois
anos, o que o levava a comprar todo milho e farinha que aparecesse para estocar, pois
a viagem parecia sem data para terminar.
A dificuldade no abastecimento de milho e farinha foi também apontada por
Spix e Martius, na sua passagem pela região da Chapada Diamantina, chegando a
ameaçar a sobrevivência das mulas que carregavam o farto material da expedição, e a
obrigar os viajantes a uma dieta forçada. O que teria abastecido a comitiva, pois nem
as fazendas pelas quais passavam possuíam esses alimentos em quantidade
suficiente, foi uma pequena agricultura de subsistência. Os naturalistas descreveram os
agricultores como “negros que cultivavam suas pequenas roças, nos dias de
liberdade”.
184
Só em janeiro de 1844 o padre Benigno reiniciou as buscas da cidade perdida.
No ano anterior, havia enfrentado uma forte crise de reumatismo agudo no braço
esquerdo, além de aguardar melhores pastos para os animais, como expõe na carta ao
governo provincial da Bahia. Porém, segundo relata, não perdia as esperanças de
encontrar o rio que passava em frente à cidade, coletando todo tipo de informação dos
moradores da região. Fossem eles escravos, pequenos agricultores, caçadores ou
quilombolas, não fez distinção das fontes orais que pudesse colher. Observa-se, dessa
forma, o quanto o mito da cidade perdida estava presente no universo cultural das
pessoas do interior da Bahia, especialmente na área pesquisada pelo padre.
183
APEB, Presidente de Província, Religião/Vigário, 1824-1846, maço 5213.
184
SPIX, Joh. Bapt. Von & MARTIUS, C. F. P. von. Viagem pelo Brasil..., 1976, p. 113.
Como estava aguardando um momento apropriado para checar as
informações, resolve, antes, criar um mínimo de estrutura para reiniciar os trabalhos de
investigação. Compra mais farinha, milho e boi. No final de fevereiro, a comitiva estava
construindo uma ponte sobre o rio Utinga, próximo ao povoado de João Amaro, e
abrindo picadas que deveriam facilitar as comunicações da capital da província com
essa região, que começava a despontar na produção de diamantes. Neste momento,
Carvalho tenta ratificar, para o presidente da Província, a importância da expedição,
que segundo ele não se limitava a procurar a misteriosa cidade, mas realizava
pesquisas topográficas e ampliava as vias de contato com o litoral.
185
De acordo com as pesquisas hidrográficas do Cônego, as águas do rio
Utinga, até então desconhecido dos mapas e que nasce próximo à atual cidade do
Morro do Chapéu, somadas com as do Andaraí e as do Paraguaçuzinho, fazem nascer
o mais importante rio da região, o rio Paraguaçu, que havia sido descrito de forma
incorreta pelos naturalistas Spix e Martius, induzindo a um reparo imediato no mapa da
região.
186
Quando tudo parecia caminhar para o desenvolvimento da expedição, as
febres voltaram a atacar os membros da comitiva, inclusive o próprio Cônego,
chegando a debilitá-lo de tal forma que permaneceria até o mês de junho sem reiniciar
os trabalhos. As sezões atacaram seu fígado e provocaram sérias alergias na pele, que
estava ainda sendo tratada, dificultando até mesmo a coordenação motora para
escrever seus relatórios. A saúde do Cônego demonstrava total fragilidade perante o
clima e as condições de salubridade da região.
187
Mesmo assim, o padre não desistia. A obstinação parece pouco a pouco ter-se
transformado em uma obsessão. A palavra dada ao Instituto, a confiança do governo
Provincial da Bahia, as expectativas do Imperador, do Arcebispo da Bahia, Dom
Romualdo Seixas, e da intelectualidade nacional e internacional, pressionavam nosso
expedicionário a prosseguir, mesmo teimosamente, com a viagem, que já passava dos
dois anos de buscas infrutíferas, chegando a ameaçar a sua própria vida. O orgulho e a
185
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência...”, p. 318-321.
186
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência ..”, p. 320.
187
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência...”,1844, p. 321.
vaidade movimentavam essa teia de valores e sentimentos, que resultaria em um fim
não muito heróico do nosso expedicionário.
Dando ouvidos aos testemunhos populares na região, que reforçavam ainda
mais sua obstinação, em 1844 estabelece uma nova possível localização da cidade, as
matas próximas a Serra do Orobó no atual município de Rui Barbosa, início da
Chapada Diamantina. Desta vez, a fonte teria sido um escravo, antigo morador de um
quilombo que, se dizia, ficava vizinho às cobiçadas ruínas. Este chegou a afirmar que
era hábito corriqueiro dos quilombolas, aos domingos, passearem pelas construções e
praças do perdido povoado. O Cônego propôs ao senhor desse cativo a sua compra,
que foi recusada. Desiludido, sem poder contar com esse importante guia, comentou
[...] a minha guia é o rio: terei mais trabalho, mas não deixarei
de ter bom resultado. Há três mezes que estou doente, não
sei o que tem havido a respeito desse negro; mas haverá 15
dias me instaram da Otinga para apressar a minha entrada,
que tínhamos guia. Se Deus me der saúde, entro depois de S.
João.
188
Em janeiro de 1845, o padre Benigno enviou outra carta relatório ao governo
Provincial da Bahia, publicada na revista do IHGB do mesmo ano. À época, era
Presidente da Província o Tenente-General Francisco José de Azevedo Soares de
Andréa
189
, que tomou posse em novembro do ano anterior e precisava ser informado
do desenrolar da expedição e particularmente dos seus gastos. Na carta relatório,
encontramos um resumo dos acontecimentos nos três anos de viagem do explorador
pelas matas da Chapada, ressaltando as suas pesquisas na área da hidrografia, os
trabalhos para a construção da ponte sobre o rio Utinga e as dificuldades na busca das
ruínas da cidade perdida.
Na carta ao novo Presidente da Província da Bahia, foi dado certo destaque à
descrição de várias comunidades de quilombolas que estavam protegidos pelas serras
188
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência...”,1844, p. 321.
189
VIANNA, Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia. Salvador: Diário da Bahia, 1893, p.131.
e matas da Chapada, um reduto perfeito para essas comunidades de negros que
buscavam o isolamento. O afastamento desses quilombos uma estratégia de
sobrevivência às tentativas de repressão por parte das autoridades e dos grupos
senhoriais. Os quilombos usavam a violência contra os brancos, ou quando eram
atacados ou em situações-limite para a manutenção do grupo
190
. O Cônego temia
aproximar-se desses quilombos, pois sua expedição científica poderia ser tomada
como uma expedição de repressão e atacado. Segundo a carta relatório, eram três os
principais “reinos de negros” na região, que poderiam servir como fortes pistas para se
chegar à cidade, sendo necessário muito cuidado, pois essas comunidades eram
perigosas e arredias ao contato. Daí a importância de homens bem armados para
enfrentá-las.
191
Stuart Schwartz aponta que comunidades de negros já ameaçavam, desde o
final do século XVIII, as pequenas e grandes propriedades da região. Ao ponto de, em
1791, terem sido necessários duzentos homens bem armados, sob o comando do
temido capitão do mato Severino Pereira, para a destruição dos quilombos que se
escondiam na Serra do Orobó e Andaraí
192
. Isto indica que os receios do Cônego, eram
mais do que plausíveis.
O padre apelava para outros argumentos, além da busca da cidade perdida,
para obter mais fundos para o prosseguimento das investigações. Afirma, além disso,
que tinha feito um acordo com pessoas da região, que se predispunham a trabalhar
nas pesquisas em busca da cidade. Por esse acordo, sem autorização do governo
provincial, comprometia-se a repartir terras que fossem descobertas ou devassadas
pelas picadas. Segundo seu relato, essa medida foi tomada com o objetivo de atrair
mais trabalhadores para a comitiva, que vinha perdendo homens devido ao início da
exploração das lavras diamantinas. O Cônego havia se determinado a continuar a
pagar salário só ao mínimo de carregadores. Como já estava há mais de três anos na
190
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3ª ed, São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 158.
191
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência. Offício do Sr. Cônego Benigno ao Exm. Presidente da
Bahia, o sr. Tenente General Andréa, sobre a cidade abandonada que há três annos procura no sertão d´essa
província, Carrapato, 23 de janeiro de 1845”. Revista do IHGB,Tomo VII, nº 25, p.102-104, 1845.
192
SCHWARTZ, Stuart B. Cantos e Quilombos numa conspiração de escravos Haussás, Bahia, 1814. In: REIS, João
José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio, história dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das
Letras, 1996, p. 376-377.
mesma área, provavelmente era conhecido pelos habitantes dos pequenos povoados
por onde andava, chamando atenção para a excêntrica busca da misteriosa cidade.
193
Para sensibilizar o novo governo apela, de forma precipitada, para a estratégia
de convencimento já usada em momento anterior, afirmando que a localização da
cidade estava descoberta, e que o investimento nesta empreitada científica era de
fundamental importância para a história do país:
Eu me animo a afirmar a V.EX., que a cidade esta descoberta;
mas para dar com mais brevidade esta gostosa notícia aos
sábios do Brasil e da Europa, que estão com os olhos em
mim, para saber de certo a existência de um monumento de
tamanha transcendência para a história deste paiz, são-me
necessário socorros, pois n´um terreno ocupados por negros
e feras, é-me indispensável entrar com cautela, e gente
armada e municiada, e levar mantimentos, porque d´aqui para
dentro não há que comer.
194
Nesses de mais de três anos de peregrinação, o padre foi testemunha da
ocupação desenfreada das Lavras Diamantinas. Onde antes se pisava em terreno
denso das matas virgens, encontrava-se agora povoados começando a efervescência
provocada pela busca do diamante. Esse processo, na sua opinião, não era favorável
para os planos iniciais da comissão, provavelmente pela alta dos preços de gêneros
alimentícios e ocupação da população na lavra da pedra preciosa. Mas lhe serve como
argumento para ressaltar a importância econômica da região explorada:
Eu bem desejo acabar com isto; porém, abandonado a meus
próprios recursos, hei de necessariamente ir de vagar,
especialmente pelas novas circunstâncias que occorem
n´este paiz, pouco povoado e pobre, que de repente vê
193
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência. Offício do Sr. Cônego Benigno...., 1845,p.104.Grifos
do original.
194
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência. Offício do Sr. Cônego ...” , p.104
rebentar diante dos olhos uma fonte de riqueza na lavra
actual. No mesmo sitio solitário onde há dois annos dormi,
debaixo de uma lapa, na qual se agasalhava igualmente uma
onça, escapo de vegetação, e rodeado de escarpadas
cordilheiras, se vê hoje o bolicio das grandes povoações, e
um comércio rico e activissimo.
195
Podemos compreender o processo de ocupação da Chapada Diamantina e a
expansão das Lavras Diamantinas a partir de alguns elementos levantados pelo
clássico trabalho de Josildete Gomes
196
. Segundo Gomes, entre 1675 e 1681 as terras
entre o rio Paraguaçu, o rio de Contas e o rio Una, até a Serra do Sincorá, foram
repartidas a particulares, constituindo os primeiros currais e uma lavoura de
subsistência. Porém, salienta a autora que várias lacunas do espaço territorial da
Chapada ficaram protegidas e isoladas dessa primeira leva de colonos. No século
XVIII, com a expansão mineradora do Brasil Central, ocorreu uma efervescência de
garimpeiros nas nascentes do rio de Contas, originando núcleos de povoação, como
conseqüência da “febre do ouro”.
197
A última grande ocupação dar-se-ia por volta de 1842, quando foram
encontrados os diamantes da Serra de Aroeiras, atual Chapada Velha, espalhando-se
a partir daí para outros pontos da Serra do Sincorá, provocando o surgimento de
núcleos urbanos importantes para o desenvolvimento da região, como Mucugê,
Andaraí e Lençóis
198
. O Cônego, como já nos referimos, foi testemunho dessa última
grande ocupação, não deixando de ser relevante, para o governo provincial baiano, as
cartas em que descrevia, os passos desse processo.
Passados quase quatro anos, do início da expedição, a imprensa baiana
começou a se manifestar ironicamente e desacreditar da aventura do padre erudito,
perdido nas matas da Chapada. O jornal O Musaico, de julho de 1845, realizou uma
retrospectiva da viagem, destacando os elementos que conduziram a sua organização,
195
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Correspondência. Offício do Sr. Cônego Benigno...,” 1845,p.105.
196
GOMMES, Josildete. “ Povoamento da Chapada Diamantina”. Salvador, Revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, nº 77, 1952, p. 221-139.
197
GOMMES, Josildete. “ Povoamento da Chapada Diamantina...,” p. 225.
sem, porém, deixar de apontar o fracasso dos esforços do padre até então. No mesmo
jornal, encontramos a informação de que a Assembléia Provincial da Bahia havia
designado mais uma quantia para o socorro da comissão
199
. Da mesma forma, o
periódico O Crepúsculo, de fevereiro de 1846, publicou a última carta relatório do padre
Benigno, destacando que seria muito mais útil que se realizasse uma exploração
topográfica e hidrográfica da região, com o auxílio de “algum engenheiro hábil”, do que
ficar errante, sem destino, como andava o Cônego.
200
Na sua última carta ao governo baiano, datada de 9 de janeiro de 1846 e
publicada no jornal O Crepúsculo de fevereiro de 1846, o padre Benigno praticamente
não faz menção à expedição. Percebe-se um certo acanhamento e talvez vergonha,
pois nas suas duas últimas cartas a certeza de encontrar a cidade era explícita. É
provável que o sentimento de desolação estivesse tomando conta do padre e, a cada
dia que passava, o descrédito em relação ao seu projeto ficava mais público. Nesta
última carta, os relatos se concentraram na descrição topográfica e dos rios da região
percorrida pela expedição. O padre Benigno sugere a imediata elaboração de novos
mapas que estivessem de acordo com as condições fluviais por ele observadas.
Descreve os erros do mapa traçado pelos naturalistas Spix e Martius, quando
passaram pelos caminhos da Chapada, particularmente a localização dos afluentes do
rio Paraguaçu. Não deixa também de apontar as graves falhas, segundo sua visão, do
mapa do engenheiro alemão Eschrwege
201
, que havia andado por aquelas bandas
anos atrás. Não deixa de alertar, de forma elegante, para o fato de que esses erros dos
estrangeiros eram compreensíveis, dado que não tinham o domínio da língua e, muitas
vezes, o pouco contato com os moradores da área percorrida dificultava a descrição
dos acidentes geográficos.
202
198
GOMMES, Josildete. “ Povoamento da Chapada Diamantina...,” p. 227.
199
O Musaico, Periódico mensal da Sociedade Industructiva da Bahia, Vol II, julho de 1845. BN, PR-SOR-
04620/04621.
200
O Crepúsculo, Periódico instrutivo e moral da Sociedade Instituto Literário da Bahia, fevereiro de 1846, nº 14, p.
20. BN: PR-SOR 04620-04621
201
Wilhem Ludwig, Barão de Eschrwege (1777-1855), engenheiro alemão, percorreu o Brasil, principalmente a
região da Minas Gerais, fazendo um vasto trabalho geológico de investigação. Obra mais conhecido é Pluto
brasiliensis. Cf.: SANTANA, José Carlos Barreto de. Ciência e Arte: Euclides da Cunha e as ciências naturais. São
Paulo: Hucitec, Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2001, p.103.
202
O Crepúsculo, Periódico instrutivo e moral..., Nº 14, p. 20. BN: PR-SOR 04620-04621.
Assim, a expedição do Cônego Benigno de Carvalho contribuiu para a
elaboração dos novos mapas da Chapada Diamantina, justamente no momento em
que o governo provincial mais precisava, devido à corrida pelo diamante e crescente
ocupação da região, fato de que o próprio padre foi testemunha ocular. Mas isso não
satisfez o Presidente da Província baiana, General Andréa, para manter o custoso
apoio financeiro ao projeto da cidade perdida por mais tempo.
Os anos de 1846 a 1849 foram muito difíceis para a expedição e seu líder,
cansado, sem apoio governamental, criticado pela opinião pública através dos jornais.
Alguns meses depois da carta de janeiro de 1846, o governo provincial cortaria os dois
ordenanças que acompanhavam e davam proteção ao padre. Em 1849, a Assembléia
Provincial e o próprio Cabido da Sé sugeriram a destituição do cargo de prebenda
inteira do Cônego, caso este não retornasse de imediato a Salvador, devendo
abandonar a insana expedição. O próprio Dom Romualdo enviou um ofício ao
Presidente da Província, agora o Conselheiro Francisco Gonçalves Martins, relatando o
seu desgosto e um certo tom de decepção, pela teimosia do Cônego Benigno em
permanecer tanto tempo nessa comissão. No mesmo ofício, Dom Romualdo ameaça,
caso o Cônego não retornasse, afastá-lo do Seminário Diocesano, cujas aulas já
estavam nas mãos do Frei Antônio da Virgem Maria
203
. Percebe-se que o Arcebispo
Metropolitano da Bahia também sofria pressões, particularmente de setores do clero
baiano, que se interessavam pela cadeira vaga de Cônego deixada pelo padre.
Provavelmente, os conchavos políticos já estavam se formando para a escolha do
sucessor do Cônego Benigno.
204
Parece-nos que, durante um bom tempo, o silêncio predominou nas relações
entre o Cônego Benigno de Carvalho e os patrocinadores da expedição. Não
encontramos nas nossas pesquisas nenhuma outra correspondência com as
autoridades competentes ou o próprio IHGB. Em relatório dos trabalhos do Instituto de
1849, redigido pelo agora secretário perpétuo, Manoel Ferreira Lagos, afirma que
203
ALMANACH CIVIL, POLÍTICO E COMERCIAL DA CIDADE DA BAHIA PARA O ANO DE 1845. Bahia:
Typ. Silva Serva, 1844.
204
APEB, Presidente de Província, Religião, Arcebispo. Maço: 5203-cad. 1849.
[...] não nos há chegado mais notícia alguma; e o Instituto
aguarda sôfrego o regresso do Sr. Cônego Benigno, pois
quando mesmo as suas fadigas não sejam coroadas do êxito
esperado, o paiz muito lucrará com a publicação dos seus
roteiros e observações, além de que, segundo nos consta,
tem reunido grande porção de fósseis para locupletar o
museu d´esta sociedade.
205
O IHGB substituiu o entusiasmo inicial, na busca de tão preciosa prova do
nosso passado civilizado, por uma cautela discreta a partir de então. Sem, é claro,
deixar de sonhar, durante muito tempo, com o encontro das ruínas da cidade perdida.
Tanto é assim que, após o silêncio do padre Benigno de Carvalho, a revista do Instituto
publica, em 1848, uma carta vinda de Salvador, do Major Manoel Rodrigues de
Oliveira, acompanhada de uma série de depoimentos, todos registrados em cartório,
garantindo a sua autenticidade. Os testemunhos questionavam a localização da cidade
abandonada defendida pelo padre Benigno e apresentavam informações sobre as
possibilidades da enigmática cidade encontrar-se em área distinta no interior baiano,
mais próxima das vilas de Belmonte (entre os rios Paraguaçu e Una, já no centro sul da
Bahia) e Camamu, e não da Serra do Sincorá, como pretendido pelas pesquisas do
ilustre pesquisador do Instituto.
206
O Major Oliveira chega a descrever provas materiais como louças, fragmentos
de mobiliário e utensílios estranhos aos costumes dos moradores da região, induzindo
a crer na possibilidade desses objetos pertencerem a algum povo desconhecido do
passado. Aponta também que o referido povo teria edificado um ancoradouro às
margens do Paraguaçu e aberto estradas de acesso ao rio Una. No entanto, as
certezas do major foram tomadas muito mais como fantasias e elucubrações
desmedidas, do que observações científicas que levassem o Instituto a investigar suas
descrições do provável local da misteriosa cidade O relato parecia tão mirabolante que,
205
LAGOS, Manuel Ferreira.”Relatório dos Trabalhos do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro”. Revista do
IHGB, Rio de Janeiro, tomo XI, 1849, p. 149.
206
OLIVEIRA, Manoel Rodrigues de. “Novos indícios da existência de uma antiga povoação abandonada no interior
da província da Bahia, 2 de julho de 1848”. Revista do IHGB, tomo X, 1848, p. 367.
ao que tudo indica, os sócios do IHGB não deram muito crédito à documentação
enviada pelo Major.
207
De qualquer forma, temos aí mais um indício de como o imaginário da cidade
perdida foi vigoroso nos primeiros anos do Segundo Reinado, não só na mentalidade
dos eruditos e pesquisadores do IHGB, como também na cultura popular como um
todo, desde a região da Serra do Sincorá, Chapada Diamantina, até o sul da província
baiana, como atesta o depoimento do Major Oliveira. Mas aqui é importante atentar
para os significados diversos que esse imaginário teve para os diferentes setores
sociais envolvidos. Enquanto, para os eruditos, fazia parte do processo de construção
da identidade brasileira nos moldes da Europa, para as pessoas mais simples, que
deram os depoimentos colhidos pelo padre ao longo da expedição, esse imaginário
representava uma tradição herdada de um tempo remoto, proveniente da cultura
européia e suas narrativas do fantástico e maravilhoso.
O Cônego Benigno de Carvalho e Cunha faleceu em 1852, na Freguesia de
Santa Isabel do Paraguaçu, atual Mucugê, em plena Chapada Diamantina, como atesta
o necrológio do jornal O Noticiador Catholico
208
. É provável que, à época, além de ter
perdido seu posto dentro do Cabido da Sé Baiana e a função de professor que exercia
no Seminário Diocesano, tenha também perdido um pouco da sua saúde mental. O
longo percurso, as febres constantes e outros problemas afetaram a personalidade do
nosso padre erudito, como sugere Dom Romualdo em suas memórias, afirmando que o
referido padre inteiramente convencido, da descoberta da cidade abandonada, pede ao
Arcebispo a autorização para catequizar os prováveis moradores desse maravilhoso
local. De acordo com Seixas, Carvalho parecia
[...] crer que ouvia toques de sinos, som de cornetas, e não
sei se também girândolas de foguetes, e immediatamente me
escreveu, pedindo-me as necessárias Faculdades espirituiaes
207
OLIVEIRA, Manoel Rodrigues de.”Novos indícios da existência de uma antiga povoação...”, p. 364-367.
208
Dicionários biográficos como o de Sacramento Blake eVelho Sobrinho e trabalhos acadêmicos como os de Johnni
Langer e o recém lançado Dicionário do Brasil Imperial informam incorretamente a data e local de morte do Cônego
Benigno. Só o livro do professor Cândido da Costa e Silva, Os Segadores e a Messe, sobre o clero oitocentista na
Bahia, já trabalhado nesta dissertação no capítulo primeiro, cita a verdadeira data e local da referida morte.
á benefício dos habitantes da sua nova cidade, onde em
breve pretendia fazer a sua entrada! Não tive a menor dúvida
em ih’as conceder, até mais ampla do que jamais eu tinha
feito á qualquer outro. Sabe-se qual foi o desfecho desta
empreza verdadeiramente cômica, de que a final foi victima o
mencionado Cônego, contrahindo grave molestia, de que veio
a morrer. Se, todavia, elle não pôde exercer o seu Sagrado
Ministério com os figurados habitantes da fabulosa cidade,
poderam aproveita-se delle os povos circunvizinhos do lugar
da sua residência, a maior parte dos quaes, mui longe dos
seus Pastores, se achavão em grande abandono e privação
dos mais indispensáveis socorros espirituaes, e o Cônego
Benigno, munido da Competente autorisação que com muito
gosto lhe conferi, os administrou com louvável zelo e
caridade.
209
O Cônego Benigno José de Carvalho e Cunha, pioneiro explorador da
fabulosa narrativa dos aventureiros de 1753, inaugurou, com seu trabalho, uma série
de outras expedições em busca da cidade perdida do Sincorá, tanto no século XIX,
como no século XX. Em 1913, o tenente-coronel inglês O’ Sulivan Beare afirmou que
a cidade abandonada estava localizada a leste do rio São Francisco, e não na Serra
do Sincorá. Outro inglês, o coronel Percy Harrison Fawcett, também se encantou com
a narrativa do documento 512, realizando, em 1921, uma viagem de investigação,
patrocinado pela respeitada Royal Geographical Society da Inglaterra, pelos caminhos
percorridos pelo Cônego, em busca de informações sobre a cidade perdida. Não
encontrando nada que favorecesse a organização de uma expedição, preferiu partir
para o Mato Grosso na tentativa de desvendar outra narrativa de civilização perdida.
Fawcett nunca mais foi visto, tendo desaparecido em 1925 com a sua comitiva nas
Provavelmente, essa falha nos trabalhos referidos acima, se deva ao fato de todos utilizarem Sacramento Blake como
fonte.
209
SEIXAS, Dom Romualdo. Memórias... 1861, p. 148.
florestas do Mato Grosso
210
. O tema voltou recentemente em 1984, quando Gabriel
Banaldi encontrou formações rochosas na cidade do Livramento de Brumado na
Bahia, chegando a considerá-las como pistas para o fim do mistério dos aventureiros
de 1753, cogitando que essas formações pertenciam a uma civilização pré-
colombiana
211
. Nenhuma dessas investigações obteve resultados satisfatórios,
ficando apenas nas especulações, com narrativas mais mirabolantes do que
científicas, o que não deixa de demonstrar o quanto o mito das cidades imaginárias e
civilizações perdidas é vigoroso.
Para Langer esses “arqueólogos do irreal” eram movidos por motivações
psicológicas e inconscientes que forneceram subsídios para a convicção de sua
realidade”
212
. Mas, além disso, a manutenção desse tipo de mito é parte da herança
cultural e histórica e até hoje fascina não só os eruditos, como também as pessoas
mais simples, demonstrando que o maravilhoso compõe, com outros aspectos, nossa
identidade enquanto povo ou indivíduo.
210
LEAL, Hermes. Coronel Fawcett: a verdadeira história do Indiana Jones. 2ª ed, São Paulo: Geração Editorial,
1997, p. 87.
211
LANGER, Johnni. As Cidades Imaginárias..., p. 184.
212
LANGER, Johnni. As Cidades Imaginárias... p.135.
4. CONCLUSÃO
A busca pela cidade perdida do Sincorá marcou definitivamente, e de forma
indelével, a vida do Cônego Benigno de Carvalho. Mas do que isto, contribuiu para a
geração de um conjunto rico de fontes para a história do imaginário e de processos
econômicos e políticos no Brasil do século XIX. Mesmo sem ter encontrado as provas
materiais da existência desse sítio arqueológico no interior da Bahia, e apesar do
improviso, não resta dúvida da importância das suas pesquisas, como pioneiro nas
investigações sobre as civilizações e cidades abandonadas no Brasil.
Independentemente do seu caráter romântico ou ingênuo, como foi descrito por Dom
Romualdo Seixas, a figura persistente de Carvalho, por que não dizer, obcecado pelas
investigações na Chapada Diamantina, no exato momento da expansão das lavras de
diamante, nos legou uma importante documentação, principalmente as suas cartas
relatórios, enviadas ao governo provincial da Bahia durante o desenvolvimento do seu
interminável percurso.
Como testemunha da expansão das lavras diamantinas, as narrativas do
Cônego nos reportam a um período da História da Bahia que vem sendo cada dia mais
estudado, demonstrando a sua relevância para a montagem do intricado quadro
político, econômico, social e cultural do Brasil, no período. Destacamos, também, a
referência às comunidades quilombolas que existiam escondidas nas matas da
Chapada ou protegidas pela incógnita do seu vasto espaço natural. Carvalho estava,
sem o saber, descrevendo a dinâmica das transformações vividas pelas populações
que habitavam o interior da Bahia, em particular a Chapada Diamantina. As dificuldades
de abastecimento, a insegurança que a corrida pelas lavras provocava, e o surgimento
de núcleos urbanos que dariam suporte ao garimpo.
Seja simplesmente em consonâncias com sua opção política de apoio à
monarquia, ou com o intuito de garantir para si privilégios na hierarquia eclesiástica e
no meio acadêmico, em geral, o Cônego Benigno também produziu escritos que
expressam aspectos do contexto político brasileiro no século XIX, em especial seu
discurso em homenagem às segundas núpcias de D. Pedro I. Mesmo sua vinda para o
Brasil está associada à conjuntura política portuguesa da época.
A organização e trajetória da expedição à cidade perdida relacionam-se ao
processo de construção de nossa nacionalidade com base em valores e mitos da
cultura européia, em parte influenciada pela ciência romântica, e que decerto
encontraram, no Brasil, condições de possibilidade para sua difusão.
O silêncio verificado a partir de janeiro de 1846, quando enviou a sua última
carta ao governo provincial baiano, deve-se provavelmente ao desgaste da expedição,
à vergonha intelectual e às doenças que atingiram a sua saúde. Tais fatores fizeram
com que Carvalho optasse pelo isolamento nas pequenas comunidades que floresciam
na Chapada, à exemplo de Mucugê, que se transformaria, em pouco tempo, em um dos
mais importantes centros do garimpo da região. Sem, no entanto, deixar de lado sua
formação sacerdotal, fez talvez seu último pedido ao Arcebispo da Bahia, a autorização
para permanecer na Serra do Sincorá, realizando trabalho de catequese e orientação
espiritual da população.
É curioso que, ao longo do trabalho de pesquisa, pouca informação obtivemos
sobre a sua vida de sacerdote, que pudesse ilustrar as suas práticas diárias de
devoção. O trabalho intelectual e burocrático o envolvia de tal forma que restava pouco
tempo para a lida de padre, a não ser aquelas tarefas indispensáveis, como participar
do Coro Diocesano na Catedral, dever de todos que faziam parte do Cabido
Metropolitano, e as missas dominicais. Só no final da vida é que o Cônego retornou à
missão de “cura d’almas” para as populações envolvidas nas lavras do diamante.
Talvez em parte a sua permanência na Serra do Sincorá foi motivada pela
esperança de finalmente encontrar as ruínas da cidade perdida como observamos
anteriormente, a formação natural da Chapada, com elementos que lembram paredões
e construções humanas continuavam a estimular a imaginação e o empenho de
Carvalho em realizar seu projeto.
Faltava, porém, ao padre arqueólogo a visão mais pragmática e técnica de um
engenheiro ou geólogo, como a do baiano Teodoro Sampaio que, em seu diário de
viagem pelos rincões da Chapada Diamantina, descrevia, em 1880, a riqueza da
paisagem, constituída de elementos que estimulavam o maravilhamento e a
imaginação. Sampaio chega a fazer referência a viagem do Cônego Benigno como
fantasiosa, e motivada por uma narrativa, também imaginosa, a dos aventureiros de
1753.
213
De certa maneira, esse imaginário permanece entre nós até hoje, não só nas
pessoas que acreditam na existência de cidades encantadas, mas em todo viajante que
se aventura pelo interior da Chapada Diamantina. Maravilhamento não só encontrado
lá, mas em outros lugares em que o homem consegue se despir da sua rigidez racional,
percebendo a sua pequenez diante da Natureza.
213
SAMPAIO, Theodoro F. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina. José Carlos Barreto de Santana (org.).
São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 280-291.
5. FONTES
5.1 Manuscritas
1.1 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA:
Pres. Prov. Religião/Vigário: 1824/18, maço 5213 / 1824-1846, maço 5213 / 1840,
maço 5309. Arcebispo, maço 5203, cad. 1846, 1849
1. 2 BIBLIOTECA NACIONAL
Divisão de Obras Raras: Manuscritos nº 1749 II, 34,8,23 . Doc. 06.
Documento 512
Cartas do Cônego Benigno de Carvalho ao Cônego Januário da Cunha Barbosa:
Seção de Manuscrito: I 3,11,81 / I 3,11,82 / I 3,11,83 / I 3, 11, 84.
1.3 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO BRASIL:
Aviso do Passo Imperial ao IHGB informando, em resposta ao pedido de auxílio feito
pelo Instituto para a empresa do Cônego Benigno que investiga vestígios da antiga
cidade no interior da Bahia, que S.M., o Imperador manda conceder ao dito Cônego
auxílio para despesas e dispensas das obrigações da Catedral. Lata 342, pasta
05/1841.
5.2. IMPRESSAS
5.2.1. Obras do Cônego Benigno José de Carvalho e Cunha
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Breve notícia sobre as minas há pouco
descobertas no Assuruá: na Província da Bahia”. Revista do IHGB, t. 12, p. 524-529,
1849.
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Memória sobre a situação da antiga cidade
abandonada, que se diz descoberta nos sertões do Brasil por certos aventureiros em
1753”. Revista do IHGB t. 3, p. 197-204, 1841.
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Carta escripta ao primeiro secretário perpétuo
do Instituto, Sincorá, 20 de agosto de 1842”. Revista do IHGB t. 3, n. 15, 1842.
CUNHA, Benigno José de Carvalho e. “Carta do Cônego Benigno acerca da cidade
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6. ANEXOS
6.1. DISCURSO RECITADO NA IGREJA MATRIZ DE SANTO AMARO DA
PURIFICAÇÃO POR OCASIÃO DA FESTIVIDADE CELEBRADA NO DIA 05 DE
FEVEREIRO DO CORRENTE ANNO PELO CONSÓRCIO DE SUA MAGESTADE
IMPERIAL O SENHOR D. PEDRO I IMPERADOR CONSTITUCIONAL, DEFENSOR
PERPÉTUO DO BRASIL COM A SERENÍSSIMA SENHORA PRINCEZA DE
LEUCTEMBERG E EISCTHOEDT.
Por Benigno José de Carvalho e Cunha -1830
Beati viri tui, et beati servi tui.
Bem aventurados os teos varões, e bem aventurados os teos servos.
Paralipomenos 1, 2º, cap. 9º, vs. 7º
Conhecer o bem, e amallo, e levantar os olhos e o coração ao fontanal, donde
emana, para gratificar sua benefica efusão, he o distintictivo dos seres inteligentes, he o
próprio caracter do homem virtuoso, he a propensão invencível do homem da Natureza,
he o dever sagrado do homem christão.
O agradeciemento, na verdade não só he dictado pela razão, e pela virtude, mas
a mesma natureza o ensina, e por isso, o grande Seneca dizia, - que nenhum governo
tinha legislado contra ingratos, - julgando superfluo, - que as Leis se introduzissem nos
officios da natureza.
As sagradas paginas do Novo e Velho Testamento estão cheias de exemplos,
exortações, e preceitos de gratidão: e está foi sempre a pratica do Chistianismo,
recebido o benefício gratificar o bemfeitor: o bemfeitor terreno, como canal immediato
do bem, o bemfeitor celestial, Deos, como primeiro Author de toda a nossa ventura. S.
Paulo roga instantemente aos fieis na sua Epistola a Timotheo, que, fação oração, e
rendão a Deos as devidas graças pelo bem, que liberalisa a todos os homens, e
singularmente pelos Reis obscro igitur fieri orationes, potulationes, gratiarum actiones
pro oinnibus, hominibus, pro Regibus . . .
Possuidos destes sentimentos, como homens, e como Christãos, gratos ao
Augusto Monarcha, Fundador e Defensor Perpetuo deste vasto Imperio, como
Cidadãos benemeritos, a Ilustre Câmara, o Clero, a Nobreza, o Povo desta insigne Villa
se ajuntão solenemente dentro do recinto deste sanctuario, e levão os olhos, o coração
ao Ceo para entoar as devidas graças ao Altíssimo, Supremo Arbitro das Nações, que
se há dignado distinguir este recem-nascido Imperio com mais decisivo testemunho de
sua divina predilecção no Consorcio ditoso do melhor Monarcha do Universo com a
mais bella e virtuosa Princeza, Ilustre Descendente, e Herdeira das virtudes do grande
Monarcha, Fundador da Monarchia e Constituição Bavara.
Esta Divina Predileção, para com hum povo, a quem a Providência destina hum
grande Monarcha, foi reconhecida pela famosa Rainha de Scheba, quando ao mais
Sabio, e mais venturoso Monarcha d’aquelle século, Salomão; diria estas palavras
notáveis quia diligit Deus Israel, et vult servare eun in aeternum ideirco posuit te super
eum Regem, ut facias judicium at que justitiam -, hum testemunho authentico da
predileção de Deos de Israel, a quem ama e quer conservar perpetuamente, dizia esta
Rainha, he o haver-te constituido rei sobre elle para fazerem juizo e justiça.
Este he cem effeito, Senhores, o meu sentimento, e o vosso, que querendo Deos
fundar e conservar perpetuamente este glorioso Império, nos decretos inexcrutaveis da
providencia , vos destinou para governa-lo ao Grande PEDRO, e lhe preparou e deo
huma Consorte, Digna de Seo Coração Magnanimo, a qual só podia enxugar as
lágrimas, e amaciar a saudade da Immortal LEOPOLDINA, Coadjutora da grande obra
da Liberdade e Independencia do Brasil, e primeira Esposa do nosso Augusto
Monarcha, e que uma morte prematura roubou ao Seo Amor e a ventura do Brasil.
Um throno occupado pela Justiça, e pela sabedoria he o mais insigne beneficio,
que Deos pode fazer a uma Nação, he a origem de sua gloria e de sua ventura, e he
por isso mesmo o maior estimulo do publico jubilo, e o mais justo motivo do
reconhecimento dos povos. Eu considero, Senhores, bem longe de vossos corações a
politica mentirosa. Não, não vos conduz ao templo do Senhor a lisonja, ou hypocresia
política.
Taes monstros não tem lugar num peito Brasileiro. Filhos de Heroes,
descendentes de uma Nação outrora Senhora de um Império tão dilatado como o do
Sol, e que sempre idolatrou seus Soberanos legítimos, e naturaes, só se abriga em
vosso peito o amor filial para com um Monarcha, verdadeiro Pai da Patria, só acolheis
em vosso coração os sentimentos puros de gratidão pelos benefícios recebidos, e de
admiração pelas virtudes de tão inclito Soberano, só vos transporta emfim o mais
sincero jubilo por tão venturoso Consorcio.
Tendo a honra, posto que sem meritos, de ser neste sagrado lugar o orgão de
vossos sentimentos, só poderei fallar a linguagem da verdade.
A Rainha de Scheba tendo sahido de seos Estados para ir pessoalmente
verificar as grandes coisas, que a fama publicara da Sabedoria e riqueza de Salomão,
depois de ter presenciado a bella architetura, e riqueza e aceio de seos Palácios, a
abundancia, e bem regimen de sua Casa, a discripção, e Sabedoria, e justiça do seo
governo, concluiu exclamando Beati viri tui, beati servi tui o grande Rei, quanto eu
tinha ouvido, ainda não iguala o que vejo, venturosos são os teos varões, venturosos os
teos servos. Eu da mesma sorte convencido da grande felicidade, que gosa a Nação
Brasileira debaixo do governo sabio e justo de Suas Magestades Imperiais o Senhor D.
PEDRO I, e Sua Augusta Consorte a Senhora D. AMELIA DE LEUCHTEMBERG, E
EISCHTOEDT, exclamei inclitos Soberanos, que com justo motivo o Povo Brasileiro
adora, venturosos são os vossos varões, os vossos Subditos! Beati viri tui, beati servi
tui.
Venturosa Nação Brasileira, porque tem a fortuna de ser governada por tão
Digno Soberano, e mais venturosa ainda, porque ao lado do mesmo inclito Soberano vê
sentada hoje no mesmo throno, ajudando a sustentar e reger as redeas pezadas do
Governo, a Clemente, Sabia, e Beneficentissima PRINCEZA de LEUCHTEMBERG,
Sua Digníssima Esposa.
Esta imponderável felicidade da Nação Brasileira debaixo do Governo do Sr. D.
PEDRO I dará assumpto á presente oração, que divido em duas partes.
Ventura da Nação Brasileira debaixo do Governo do Sr. D. PEDRO I primeira
parte: O complemento desta mesma ventura pelo Consorcio de Sua Magestade
Imperial com a Serenissima Senhora PRINCEZA D. AMELIA DE ELUCHTEMBERG, -
segunda parte.
Ainda que outra coisa não faça mais, do que presentar-vos o quadro daquelle
bem, que vós mesmos vedes e experimentaes, ainda que só exprima esta minha voz os
sentimentos de respeito, amor, e gratidão, em que vossos mesmos corações
tresbordão, sempre vos será grata a lembrança e recordação desta ventura, de que
gozaes, e a expressão daquelles sentimentos, e affectos, que hoje com tão pomposa
festividade manifestaes, fasendo conhecer ao mundo que hum Monarcha, Pai da Patria
he incensado com o Suavíssimo parfume do sincero amos dos seos povos, ao mesmo
tempo que hum tyranno so recebe a homenagem da vil adulação, que a lisonja timida
profere com os labios tremulos, e que o coração desmente.
Ajudado com o auxílio divino, que humildemente imploro, confiado na
benevolência de tão ilustre, Sabio e benemérito auditório, prestando-me vossas
atenções, vou expor a materia proposta, e já principio.
Beati viri tui, beati servi tui: vejamos, Senhores, com quanta razão se applica ao
Senhor D. PEDRO I Imperador do Brasil esta Sentença, que ao mais sabio dos mortaes
dirigia a Rainha de Scheba. Prometi mostrar nesta primeira parte o Brasil venturoso
pelo governo deste novo Salomão.
A ventura de hum Estado he a sua riqueza e civilização, porque só por estes
meios he que elle pode conseguir o seo fim. O fim de hum Estado não pode ser a
utilidade e paixões de hum só homem: seria absurdo admitir que milhões de homens se
tivesse reunido debaixo de huma mesma authoridade suprema para servir de
instrumento só á suas paixões, á seos caprichos e bem ser. se a violencia chegasse a
reunir os homens para hum tal fim, esta associação formaria hum rebanho de escravos
infelices, mas não hum Estado.
Grandes Soberanos, como Aurelio, Frederico 2º, José 2º, Catharina 2ª tem
proclamado este axioma político, que o Chefe de hum Estado he o seu primeiro servo,
que governa para a utilidade dos Súditos, e que estes lhe não obedecem, senão pelo
seo próprio interesse, confissão esta, que nada enfraquece a Authoridade suprema,
porém a confirma, tornando-a legitima porque uma potência, que só he de util a quem a
exercita, he sempre injusta a precaria. Nem a publica profissão desta verdade falta ao
nosso inclito Soberano, o Senhor D. PEDRO I para collocar seo Nome Augusto na
galeria dos Heroes a par dos maiores Monarchas do Universo. Não deve jamais o voraz
tempo riscar da lembrança dos Brasileiros aquellas memoráveis palavras, que a alta
Sabedoria de PEDRO lhes dirige em seo manifesto “ Brasileiros, diz, Amigos,
reunamo-nos, sou vosso compatriota, sou vosso Defensor; e encaremos como único
premio de vossos suores a honra, a gloria, a prosperidade do Brasil ... A minha
felicidade, convencei-vos, existe na vossa felicidade.” Em tudo esta peça immortal da
Sabedoria de PEDRO transluzem os mesmos Sentimentos.
O fim pois de hum Estado só pode ser a segurança, isto he, a separação de tudo
que pode pertubar ou difficultar o livre emprego das faculdades pessoaes do Cidadão, e
das cousas, que constituem a sua propriedade, por outros termos a garantia de seos
direitos naturaes e adquiridos; porque só hum interesse permanente, moral e comum,
he que pode cimentar a união dos Cidadãos, e torna-la indissoluvel, e hum tal interesse
só pode ser a segurança, ou garantia dos direitos.
Mas quando mais cresce a potencia, tanto mais facilmente se consegue esta
segurança: a potencia de hum Estado mede-se por sua riqueza e civilização; quanto
mais esclarecida e rica he uma Nação, tanto mais se aumentam os meios de defender-
se de seos inimigos estranhos e domesticos, tanto maiores progressos faz a Moral
entre seos membros, e menos inimigos acolhe dentro de seo seio, e he
conseguintemente prospera e venturosa.
Posto pois que a ventura Nacional consiste na sua riqueza e civilização, vamos
mostrar como no Governo do Sr. D. PEDRO I o Brasil tem conseguido esta ventura.
Antes porém que nos entranhemos em tão vasto e glorioso assumpto, he preciso notar,
que supposto não gozemos ainda completamente esta ventura Nacional, nada derroga
a gloria do AUGUSTO FUNDADOR deste Império pois que da sua parte tem assentado
as bases da prosperidade Nacional, e tem tornado a Nação tão venturosa, como he
possível pelos seos esforços.
Há 8 annos que Este Luminoso Sol do Brasil ilustra, e vivifica este vasto Império.
700 annos decorrerão antes que Roma visse o glorioso século de Augusto; só 400
annos depois do nascimento do Reino de Portugal he que os Portuguezes chegarão a
ver a época da sua maior gloria. Dominador de huma grande porção do Universo,
recolhendo as riquezas de todas as partes do mundo conhecido, Portugal tocou então o
apice de sua riqueza, e civilização no Reinado de D. Manoel.
Desde o Conde D. Henrique, Tronco da Augusta Dynastia Portugueza até D.
Manoel, 15 Monarchas trabalharão na prosperidade desta famosa Nação: estas fadigas
e esforços dos grandes Monarchas Portuguezes, coadjuvados pelo valor, pelas virtudes
e industria daquella Nação, crearão os elementos da celebre grandeza, que 4 séculos
depois da Fundação daquelle Reino offereceo o mais glorioso assumpto ao sonoro
clarim da Fama, assombrou o Universo, e foi invejada dos mais ilustres povos.
O caudaloso Amazonas he em seo fontanal hum pequeno rio: no curso de 1880
legoas engrossa progressivamente recolhendo em seo seio os cristalinos cabedaes do
innumeraveis rios, que nelle vem entornar suas riquezas: quando sua magestosa
corrente desagoa no Oceano, faz recuar suas aguas 14 legoas, e humilha seo
empolado orgulho: já não he o pequeno rio das montanhas do Perú, he o maior, o mais
considerável, o mais extenso, e magnífico rio do Universo.
Tudo se move lentamente, e como por degráos insensíveis na ordem da
natureza, como na ordem moral. Nenhuma Nação tocou jamais de repente o cume de
sua grandeza, de suas luzes, e de sua civilização. Além de que a segurança de hum
Estado he obtida pelo mesmo Estado, mas a civilização e a riqueza obtem-se
principalmente pelos esforços dos individuos, Favorecidos pelo Estado. A desunião
emfim dos cidadãos sobre o Governo origina partidos, que embargao tambem não
pouco o curso da ventura Nacional.
Mas tornando ao nosso assumpto digo que o Imperador faz a ventura do seo
Estado, quando mantem a segurança, e favorece o progresso e augmento e sua
civilisação. Estes são os unicos deveres de hum Soberano. O cumprimento destes
deveres exige 1º a determinação dos direitos e deveres dos Cidadãos, o que he objecto
da Legislação: 2º a garantia, conservação, e manutenção dos mesmos direitos, o que
he objecto da administração; tudo isto suppõe hum Estado independente.
Por todos estes tres meios fez o Sr. D. PEDRO I venturosa a Nação Brasileira, 1º
fazendo-a independente: 2º legislado: 3º administrando. Desenvolvamos cada hum
destes artigos de persi.
Independência do Brasil ! Tu és a primeira pedra fundamental do edifício sublime
de sua gloria e de sua felicidade !
O Brasil descoberto no século 15, povoado successivamente por colonias
Portuguezas até o reinado d’El Rei D. João 3º, e depois pela emigração dos mesmos
Portuguezes, que de seo moto próprio vinhão procurar fortuna neste delicioso Paiz;
emigração, que foi sobremaneira excessiva desde 1807 até 1820, tempo em que a
Dynastia Reinante, havendo deixado a Metrópole Européia, residio neste hemispherio,
contava em 1808 quatro milhões de habitantes civilizados sobre huma extensão de
terreno de 38.600 legoas quadradas. Desde 1500 até 1815 foi o Brasil Colonia; hum
mesmo Estado com os Reinos de Portugal e Algarves: neste mesmo anno se fez hum
Império independente.
Não exporei as razões, que justificão evidentemente esta celebre mudança na
organização social do Brasil; forão sabiamente expendidas no Manifesto do
IMPERADOR, graves penas tem desenvolvido o mesmo assumpto, e he precizo
attender a brevidade. Somente farei a este respeito huma reflexão.
Huma Colonia he hum filho, que a Nação Dominadora dá a luz, cria e educa.
Essa educação deve ter hum termo para os povos nascentes, assim como tem
para os filhos. Este termo he o maior idade para os filhos, que as leis fixão quando se
suppõe completa a educação, e o homem capaz de dirigir suas acções, e promover sua
propria felicidade.
Seria por ventura tolerada hum Pai, que depois de haver educado seo filho, o
quizesse obrigar a servir toda a vida ás suas commodidades, e augmento de sua
fortuna com detrimento da felicidade do mesmo filho?
Nem a natureza, nem a razão, nem a lei o tolerava. A natureza, porque o
destinava para chefe de huma nova sociedade: a razão, porque he sempre conforme
com as justas inclinações da natureza: a lei, porque marca o tempo do domínio paterno.
O Brasil era este filho emancipado pela natureza, pela razão, e pela Lei.
A natureza o tinha collocado 1200 legoas distante da Capital do Reino Unido:
hum mar vastissimo, e arriscado medeava entre o Monarcha e seos subditos, do que se
originava a demora, e muitas vezes, a frustração das determinações do Governo
Executivo, ao mesmo tempo que os Ministros e Vice-Reis, longe das vistas do
Soberano, arrastados pelo orgulho, e pelo interesse e ambição, como costuma
acontecer, opprimião este Povos com ferreo despotismo: de quantas vexações fostes
vós mesmos nesse tempo testemunhas, e talvez victimas? Além de que o Brasil tem
dentro em si quanto precisa para acudir a Primavera ostenta de mais pomposo e bello
nos Jardins do Tejo, ou nas graciosas Campinas da Italia, ou nos descantados prados
da Grécia: quanto o Outono alardea de mais saboroso na copia e variedade de fructos
de todos os climas, as doçuras de todas as Estações, e a riqueza de todo o genero de
productos naturaes.
He portanto o Brasil hum Paiz, que a Natureza fez independente.
A razão dicta a mesma independencia; pois he justo que hum Estado maior em
povoação e em riqueza, capaz de se felicitar a si mesma, continue a ser esgotada, e
escravizado por outro menor, e que pela distancia, e pela politica não pode, e não quer
avantajar a fortuna de sua Colonia.
A lei em fim, que emancipa os individuos, deve intender-se emancipar as
Colonias, que estão em semelhantes circunstancias, e por mais forte razão.
Mais ainda que a equidade, e a ventura do Brasil exigissem sua emancipação, só
huma serie de factos inesperados, e a actividade, e força de caracter, e talentos
admiraveis do Immortal PEDRO podião produzir sua independência. He com efeito hum
espectaculo novo na História, o que nos apresenta o Brasil nesta revolução da
Independência. Vemos mudar-se a organização social deste Paiz quase
insensivelmente, desenvolvendo-se a pouco e pouco, e os agentes de sua
emancipação chegar sem obstáculos, e só pelo poder dos factos á resultados, que elles
talvez desejassem, aos quaes porém não se atrevião a aspirar. Foi nesta crise que o
IMPERADOR fez brilhar todo o seu grande gênio. Os Brasileiros estavão divididos em
differentes partidos: hum povo ardente era arrastado por diversas paixões violentas:
reprimil-as não era possível: a anrchia preparava suas garras sanguinosas para
empolgar, e espedaçar este delicioso pais: PEDRO Activo, Prudente, e Intropido põe-se
á frente da revolução, dobra, dirige e doma a energia revolucionaria, e a encaminhar ao
bem da Nação. Os Povos se reunem á elle, como filhos em torno de hum Pai amante, e
desvelado pela sua felicidade: o acclamão seo defensor Perpetuo: lhe rogão tome o
título de Imperador: annue aos justos votos dos Brasileiros: assenta a pedra
fundamental de sua ventura, e se constitue Fundador do Império do Brasil, e seo Nome
vai dar novo lustre ao cathalogo brilhante dos Fundadores das grandes Monarchias, e
vai ser gravado no Templo da Glória a par dos nembrod, dos Cyros, dos Alexandres, e
dos Augustos.
O Brasil, solto pelos disvelos, e pelo heroico valor de PEDRO dos grilhões
pezados, com que a Nação dominadora atalhava, e impedia o progresso de sua
riqueza, civilização, e ventura;desenvolve suas faculdades, pôe em acção seos
membros, exercita seos talentos, e faz valer os ricos productos, que a natureza há
entornado em seo seio.
O Brasil independente ergue sua frente magestosa a par das grandes Nações do
Universo: já sente ascender-se nos Cidadãos do novo Império o amor da Patria: as
Letras e as Sciencias recebem novo impulso com os serviços, que vão prestar ao
próprio solo: já as riquezas não tem outro consumo, que não seja o que requer a
prosperidade nacional. O Brasil independente no extasi de sua imaginação embriagada
pela própria gloria já sente poder crear no novo Mundo novos heróes, que sejam
proprios seos, capazes de hombrear com os Tejo, do Sena, do Tibre, ou do Tamisa: já
se persuade ver surgir do Parnasso Brasileiro com as frentes laureadas novos Camões,
Tassos, e Homeros, que cantem as empresas de seos guerreiros: já sente excitar-se na
mocidade Brasileira o espirito marcial dos Castros e Albuquerques, dos Fábios, dos
Germanicos e Turennes: já vê animada com novo espirito patriótico a Industria,
Agricultura, e Commercio, fontes inexhauriveis da riqueza e ventura das Nações, e por
todos os lados lhe parece ver o Ceo risonho derramar em copiosas torrentes a
felicidade sobre o Novo Império.
Independência do Brasil ! Ah! Tu és a primeira pedra fundamental de sua
prosperidade, e o primeiro aderece da esplendente gloria de PEDRO, e o mais forte
estimulo, e justo motivo da gratidão dos Brasileiros com o seo IMMORTAL
LIBERTADOR.
Mas se PEDRO fundando hum novo Imperio no novo Mundo iguala á gloria dos
Heróes, Fundadores das Monarchias, legislando ao seo Povo excede quanto a fama
tem proclamado dos maiores Monarchas. A legislação de hum Estado occupa-se em
regular os direitos, e os deveres dos Cidadãos: por isso mesmo que aquelle, que
adquire direitos, se impõe também deveres se chama Lei. He preciso pois haver Leis,
tanto para regular os direitos e os deveres reciprocos do Soberano, e dos Subditos
entre si: os primeiros formão o que se chama Constituição do Estado, e os segundos se
comprehendem debaixo de nome de Legislação propriamente dita. A Constituição ou
Lei fundamental do Estado, e a Legislação serão tanto mais perfeitas, quanto mais
promoverem a segurança do estado, e quanto mais bem estabelecidos e garantidos
forem por ellas os direitos dos povos e seos deveres.
Quando aquelles dois objectos pertencem exclusivamente ao Governo não
podem commumente ser bem garantidos os direitos do povo; mas pelo contrario
succede, quando as differentes classes dos Subditos por meio de Representantes
tirados do seo seio tem parte na mesma Legislação e Constituição. Porque no primeiro
caso, se succede que o Governo he justo, não resta aos povos meio algum de evadir
sua oppressão: no 2º caso porém tem hum apoio nos seos Representantes: quando o
Governo he absoluto os Nobres, e os Privilegiados preponderão sobre a massa da
nação; e quando he representativo os povos se equilibrão por meio de seos deputados
com a porção mais poderosa da Nação, os direitos são iguaes, e os deveres reciprocos.
O IMMORTAL FUNDADOR do Império Brasileiro pezando em sua alta Sabedoria a
qualidade de legislação que podia felicitar mais o seo Povo, Povo, que, como Elle
mesmo se exprime em huma de suas Proclamações , seo Coração idolatrava, lançou
mão desta forma de Governo, em que a Constituição e Legislação está dependente não
só do Imperante, mas também dos Representantes da Nação.
Nembrod fundou o Império dos Assírios; mas sendo o primeiro Monarcha, que
houve no mundo, foi também o primeiro tyrano: Cyro fundou a Monarchia dos Persas,
mas agrilhoou seos povos, e fez pezar sobre elles o ferreo Sceptro do Despotismo,
Alexandre Magno fundou o Império da Macedônia, mas o esplendor das suas vitórias,
seo valor, seo grande genio só servirão a escravizar os povos conquistados, e a
opprimir a humanidade: Augusto fundou o Império Romano, mas sepultou sua
Liberdade; PEDRO funda o Império do Brasil, mas arranca seo Povo da escravidão,
em que jazia e faz girar no horizonte Brasileiro o Sol de huma bem regulada liberdade,
dando ao Brasil huma Constituição, pela qual fossem mais seguramente garantidos os
direitos dos seos Subditos Brasileiros. No mesmo tempo, em que a Europa forceja
inultilmente por conseguir sua liberdade, ao mesmo tempo que a tyrannia exercia em
toda parte seo barbaro domínio, a Europa quase toda gemia debaixo do jugo do
Absolutismo e Despotismo, PEDRO entre os Reis, como Aguia sublime, remontando
seo vôo ás nuvens, Sobranceiro á opinião e caprichos dos mais Soberanos,
inaccessível aos afagos e lisonja do orgulho natural aos homens, da espontaneamente
a Liberdade ao venturoso Povo Brasileiro. Ó gloria do Inclito Fundador do Império
Brasileiro ! Nem vossa fortuna, AUGUSTO IMPERADOR podia offerecer vos hum mais
brilhante assumpto ao Vosso Grande Genio, que o de libertar vossos Subditos, sem
Vossa Gloria aspirar a maior grandeza, que a de arvorar o pendão da humanidade e
Liberdade sobre as ruinas da tyrannia e despotismo.
Entre os soberanos, que com suas virtudes aformosearão o Universo, PEDRO
brilha, qual Sol luminoso entre os astros da noite. O grande Vesparsiano foi sensato e
valente; Tito affavel benefico; Trajano doce e sociável; Adriano generoso; Antonino
piedoso, Marco Aurélio Philosofo; mas a Philosofia d’Aurelio, a piedade de Antonino, a
generosidade de Adriano, a felicidade e doçura de Trajano, a beneficencia de Tito, o
valor e sabedoria de Vespasiano somente poderão amaciar os grilhões dos povos, que
dominavão; PEDRO, o imcomparavel PEDRO, reunindo em si todas as virtudes, com
que cada um destes grandes Príncipes, por quem ainda hoje o mundo chora, se
distinguião e caracterisavão, espedaçou as pezadas cadeiras, que algemavão seo Povo
querido, arrancou-lhe o ferreo jugo, soltou-o, libertou-o, fel-o grande e venturoso. Oh
Brasileiros!... Nação venturosa!... Respirai: sois hum Povo livre ! Hum Povo Soberano!
que he das algemas, com que o Despotismo outrora rocheava os vossos pulsos, onde
estão os grilhões, que sustavão vossos passos na carreira da gloria, a que vos
convidava o vosso grande engenho, e caracter Nacional? Desaparecerão: quebrou-as,
consumio-as, anniquilou-as o Inclito Coração de PEDRO, que o excedeo em
beneficencia para com o Império Brasileiro, não deverá com mais forte razão ser
chamado as delícias da Nação Brasileira?
Brasileiros, se os vossos corações e vozes faltarem a render-lhe esta
homenagem, tão bem merecida por quem vos deo o ser entre as nações, e a liberdade,
bradarão este reconhecimento os padrões eternos de sua beneficencia á despeito de
vossa ingratidão.
Tendo pois mostrado como o grande IMPERADOR fez a ventura do Brasil pela
independencia, e legislação, vejamos como igualmente tem promovido a sua felicidade
pela boa administração de hum Estado tem por objecto manter a Constituição e a
legislação, e faze-la obrar: sua açção pode ser pertubada por duas maneiras, ou por
guerras estrangeiras, e revoltas interiores, que ameação a segurança do Estado; ou
pela violação dos direitos individuais, que comprometem a segurança dos simples
Cidadãos. Para rechaçar os inimigos, submeter os sediciosos, lançar mão dos
culpados, e fazer respeitar as decisões dom Governo sobre todas as contestações
privadas é necessária uma força armada sempre pronta a ser empregada onde o
exigem as circunstâncias, um exército para obrar em terra, uma frota para combater
sobre o mar.
A ninguém é desconhecido qual tem sido, e é atualmente o disvelo, com que
Grande IMPERADOR, tem adiantado, engrossado, e disciplinado o Exército Brasileiro
da primeira e segunda Linha; a atividade, com que faz trabalhar os Estaleiros no fabrico
de nossas embarcações de guerra já as frotas Brasileiras tem sulcado os mares da
Europa, e seu Pavilhão estrelado tremulou sobre as ondas de todos os climas.
Quando a segurança exterior do estado é ameaçada, pode alguma vezes
sustentar-se sem intervenção de força armada: negociação sobre pontos litigiosos,
alianças habilmente manejadas podem desviar a guerra, instruções recebidas a tempo
sobre as intenções hostis do inimigo podem servir a inutiliza-las ou preveni-las, então
esmo, quando tem lugar a guerra, e se trata de terminar é preciso formar certas peças
autênticas, ou tratados, que possam servir de documentos as duas partes contratantes.
Todas estas funções necessitam da existência de um corpo de funcionários,
unicamente ocupados das relações exteriores do Estado, que se chama Corpo
Diplomático. D. PEDRO formou este corpo respeitável, e se tem esmerado na escolha
destes funcionários, que em todas Cortes estrangeiras revestidos dos poderes
necessários, contraem alianças úteis com todas as nações, previnem as desavenças,
formam tratados, e entretém uma comunicação amigável entre o IMPERADOR e a
Nação Brasileira, e os Soberanos e Povo do Universo.
A segurança individual dos Cidadãos descansa sobre as leis; mas estas podem
ser infringidas. Conhecer as infrações, julgar as diferenças dos particulares entre si,
punir os culpados é a função das autoridades judiciais; prevenir os delitos, e as
calamidades, que provém de causas naturais, adoçar as suas conseqüências, e manter
a ordem é o objetivo da Polícia. O IMPERADOR não só tem tido o maior desvelo na
escolha dos Ministros, que devem administrar a justiça, mas para instrução e
habilitação dos que para o futuro houverem de exercer os honrosos e importantíssimos
cargos da Magistratura criou as duas Academias de Olinda e São Paulo, onde o correr
dos anos, desenvolvendo os talentos da mocidade Brasileira, fará ver o mundo que se a
escravidão sepulta o fogo do genio debaixo das cinzas da opressão, não extinguiu sua
atividade, uma vez libertado brilha com novos e avultados resplendores. Igualmente
estabeleceu Ministros e corpos de Polícia para suprir a atividade da justiça, e zelar por
muitos e diferentes meios a segurança individual dos Cidadãos. É desta sorte que o
Inclito Fundador deste Império cumpriu as funções do governo administrativo, que
emanam do fim supremo as sociedade. Não cumpriu porém com menos desvelo da
sociedade do seu fim secundário, e se reportam a prosperidade Nacional.
Ainda que a riqueza e civilização sejam o resultado, e o fruto dos trabalhos e
esforços de todos os Cidadãos, o Governo pode entretanto contribuir ao seu
adiantamento, ou indiretamente protegendo os esforços espontâneos do interesse
particular, que já por si mesmo tendo sem cessar a aumentar a prosperidade individual,
ou diretamente estabelecendo os meios de civilização e industria que o interesse
particular não existiriam jamais sem intervenção do Governo. Tratados de Comercio,
privilégios, e isenções para as sociedades de pescaria, estabelecimento de fábricas,
novas comunicações, e estradas abertas no interior, introduções de Colônias para
aumento da povoação, Bancos em algumas Capitais das Províncias tem sido medidas,
com que o Grande IMPERADOR tem coadjuvado a prosperidade NACIONAL, e
cumprido as funções da administração derivadas do fim secundário do Estado. Em
todos os objetos de administração. PEDRO desenvolveu sempre uma atividade
incansável, e um desvelo raro e admirável.
Quando a tranqüilidade pública se viu ameaçada por um punhado de anarquistas
em Minas Gerais, que haviam subjugado os sinceros sentimentos, da numerosa
povoação desta Província o Magnânimo IMPERADOR aparece nela de repente, e sua
presença para com os sediciosos teve o efeito do raio, quando da nuvem rápido se
despede, e caindo no meio de feras selvaticas assombra, prostra, mas não fere: no
curto espaço de um mês se faz ver subitamente ao teatro da Corte, e rompe nestas
palavras: “Tudo fica sossegado em Villa Rica, e dalí venho em quatro dias e meio
acabar de sossegar as coisas aqui.” PEDRO podia nesta ocasião dizer como Cezar:
“Veni, vidi, vici.”
A inspeção dos estabelecimentos públicos, a visita das Províncias, a vigilância
sobre os empregados nas diversas repartições do serviço Nacional são outras tantas
provas de seu zelo infatigável na administração e quando a campanha do Sul
necessitou da sua presença afrontou a distância, os mares e os perigos e ali apareceu
quando a primeira Assembléia Constituinte e Legislativa, que devia preparar os
caminhos para os progressos ulteriores deste vasto Império, esquecendo seus deveres
( não o digo de todos os Senhores Ilustres deputados) havia disposto uma horrível
tormenta, que estava a ponto de afogar o Rio de Janeiro em um mar de angústias, e
talvez de sangue, o IMPERADOR intrépido, e sempre Vigilante dissolveu
imediatamente a Assembléia, e apresentou à Nação as bases da nova Constituição,
para fazer ver que Ele não pretendia tirar à Nação Brasileira a liberdade, que lhe havia
outorgado, mas só regula-la, e embaraçar seus excessos; e novamente fez convocar
outra Assembléia, que trilhando a vereda da moderação e da Justiça estabelecesse a
Constituição, e as leis do Estado.
Até aqui pois temos visto que o IMMORTAL Fundador deste Império tem feito
quando é da sua parte o Brasil venturoso pela Independência, pela Legislação e pela
administração. Passamos a ver o complemento desta ventura no ditoso Consórcio de
Sua MAJESTADE IMPERIAL com a Augusta! Princesa e Senhora D. AMÉLIA DE
LEUCTEMBERG.
SEGUNDA PARTE
O Heroísmo não é privativo de sexo masculino. Os Filósofos tem assentado pela
razão, e pela observação que o sexo feminino é apto para as maiores empresas. Entre
os Judeus admiramos uma Débora, chefe da República Judaica, exemplar da prudência
e do valor; uma Judith, que libertou Bethulia, sua Pátria, degolando o Chefe do exército
inimigo; uma Esther Rainha, que soube amaciar o furor de Assuero irritado contra o
mesmo povo Judeu, e resolvido a extermina-lo; a Sidonia nos apresenta a célebre Dido,
iludindo a maldade de seu irmão Pigmalion, e fundando a famosa Carthago; a Grécia
produziu a valente Maria Governadora da Eolia e Conquistadora; e a incomparável
Santa Pulcheria Imperatriz, a quem os Padres do Concílio Calcedônico horaram com a
aclamação unânime de guarda da fé, consiliadora da paz, expulsora dos Hereges, e
nova Helena; Princesa que havendo dirigido sempre com admirável destreza e
prudência o espírito sempre com admirável destreza e prudência o espírito do
Imperador Teodosio seu irmão, tomando por sua morte as rédeas do Governo,
assombrou o mundo com seo grande espírito, prudência e retidão nas mais dificultosas
crises do Império; o Egito teve Cleopatra, Roma Clelia, a Rússia Catarina II, Portugal
uma Santa Isabel, e Maria I, Avó Augusta do Nosso Inclito Soberano, Inglaterra Anna
Stuart e a famosa Isabel, que se fez respeitar em toda Europa. Suecia a célebre
Cristina, que por 21 anos governou gloriosamente aqueles Estados; e não só os tronos
e as armas, porém as mesmas Ciências e Artes contam suas heroinas. Sendo, pois o
espírito da mulher por si mesmo capaz de grande ações, quando a esta capacidade
comum se ajunta um gênio singular, uma educação distinta e sábia, e os exemplos de
antepassados ilustres, quem deixará de esperar resultados grandes e heróicos?
E se o amor conjugal une dois Esposos, ambos ilustrados, ambos heróis, e se
um Monarca, que por seu espírito, caráter, sabedoria e virtude he a admiração de seu
século, e faz seu povo venturoso, desposa uma Princesa, cujo espírito e cujas virtudes
a tornam digna de tão alto Consórcio, o amor, que une as vontades, não obriga a
comunicar-se e confrontar-se as reflexões de dois entendimentos ilustrados para o
acerto no governo?
Uma esposa é muitas vezes para um Monarca uma Esther, que acalma sua ira,
he uma Pulcheria, que dirige e aconselha suas ações mais ponderosas; he uma D.
Luiza de Gusmão, que decide, quando convém, a irresolução do Esposo, he em fim
uma conselheira privada, e da maior confiança, participa com seu Esposo das
amarguras da Sabedoria, e de sua gloria; e é igualmente interessada no bom sucesso
de sua administração.
A grande LEOPOLDINA PRIMEIRA Esposa do Immortal PEDRO havia sem
dúvida preenchido a ventura do Brasil, a morte inopinadamente lha roubou. Este vácuo,
esta orfandade dos Brasileiros veio encher, e remediar a Augusta Imperatriz AMELIA
DE LEUCTEMBERG. Descendente dos Cezares, dotada de um espírito vivíssimo, e
cultivado com a educação correspondente ao seu nascimento, adornada pelas mais
eminentes virtudes, havendo assinalado o dia de sua ditosa União com o Grande
IMPERADOR, e sua viagem com heróicos atos de benevolência, e de humanidade, nos
tem dado as mais bem fundadas esperanças da ventura do Brasil, e nos demonstra que
o Inclito PEDRO, sempre desvelado pela felicidade de seus Povos, tem aberto os
braços a uma Princesa em tudo digna do Seu Coração. Princesa, que reunido as mais
preciosas qualidades ao mais distinto sangue aumentará o esplendor do Trono, e do
Império, e porá o último complemento á glória, e a ventura do Brasil.
Sim, Senhores, o respeito e a submissão para o Sangue de um homem, que se
tem ilustrado pelo seu valor, são sentimentos, que nascem com a sociedade política, e
dos quais a mesma sociedade forma princípios algumas vezes úteis à sua manutenção.
A história atesta a verdade do fato. Muitas vezes se tem visto entre as Nações
uma assembléia de guerreiros afeitos ao ruído das armas, e ao sangue dos
combatentes, exaltada à vista de um menino fraco, só porque o olham como devendo
um dia trazer a lembrança aquele, de quem tem recebido a vida, e herdado o nome.
Estes sentimentos uniformes são a voz da Natureza, que nos adverte e ensina, que
assim como a árvores boa não pode produzir maus frutos, nem os ramos degenerar da
natureza dos troncos donde emanam da mesma sorte os filhos não degeneram
ordinariamente da nobreza de sentimentos e virtudes paternas.
A Augusta Consorte do Nosso Grande Monarca, filha de um Herói, que edificou
com suas grandes ações, e virtudes guerreiras a sua própria grandeza, correndo em
suas veias o Sangue do Fundador da Monarquia Bávara, e o Sangue de tantos e tão
grandes Príncipes, seus Antepassados não pode deixar de herdas suas exímias
virtudes, e de ser para o Povo Brasileiro, ao lado do Imortal PEDRO outra Pulcheria,
outra Esther, e completar o que unicamente faltava a ventura do Brasil.
Eis aqui pois, Senhores, o que prometi mostrar neste discurso, o Brasil venturoso
pelo Governo do Senhor D. PEDRO I, e o complemento desta ventura pelo seu
Consórcio com a Inclita PRINCESA DE LEUCTEMBERG. Grande IMPERADOR!
IMPERATRIZ! Augusta ! beati viri tui, beati servi tui : venturosos os teus varões,
venturosos os teus Suditos!
Ditoso Império Brasileiro ! Tu pareces ser chamado a lograr os mais altos
destinos ! Quem poderá calcular antecipadamente onde há de parar a energia de uma
Nação, para assim dizer, ressuscitada? Nação, que o Grande PEDRO de escrava,
tornou livre e independente, para quem escolheu a melhor Constituição e Legislação, e
em cuja administração tem posto o maior desvelo! Nação que tem a dita de ver
sentados em seu brilhante Solio dois Esplendentes Astros, cujo influxo ilustra alenta e
vivifica seu Pais venturoso!
O Brasil não tem falta de navios, tem magníficos portos, e tem marinheiros, seus
mesmos negros são intrépidos homens do mar.
Este poderoso Império cedo há de contrabalançar a potência crescente dos
Estados Unidos; terá sobre ela a vantagem de um clima mais doce, e de um Solo mais
fértil em produções úteis e preciosas, de uma poção Geográfica, que domina o caminho
das duas Índias, de todos os grandes mares do Globo, e forma para assim, dizer, e no
das comunicações de todas as partes do mundo civilizado.
He o Império mais rico, forte, e inconquistável. Frotas numerosas não poderam
investi-lo. Exército formidáveis inutilmente o ameaçam, tudo assegura uma
prosperidade, que irá gradualmente progredindo, e uma longa duração. Brasileiros !
Quanto é nobre e independente vosso destino ! a Prudência vos preparou grande
ventura. O Immortal PEDRO tem realisado este designios da Providência: a INCLITA
AMÉLIA veio por lhe o último complemento. Com quanta razão devemos, hoje entoar
hymnos de louvor ao Omnipotente como primeiro Autor de todo o nosso bem! Quanta
deve ser nossa gratidão para com o Grande Fundador deste venturoso Império!
Quando o Brasil chegar ao zenith de sua fortuna, quando a agricultura chegar à
sua perfeição, quando as Artes, e as Sciencias tiverem povoado este delicioso Paiz,
quando em fim a abundância, a paz, a moral, a polícia tiverem feito o Brasil
completamente prospero e venturoso, os séculos futuros verão gravado com letras de
amor e gratidão no coração de todos o Nosso Augusto de PEDRO: dirão os Pais aos
Filhos: “ He esta a ventura que o Grande PEDRO, o Pai da Patria, com Seos desvelos,
e com suas virtudes nos fundou”. Ela ! concorramos todos com o Augusto PAI
DEFENSOR DOS BRASILEIROS para conseguir esta ventura. Nossa união com o
Inclito CHEFE tornará mais eficazes seos grandes esforços, e o Brasil verá em fim hum
completo o glorioso edifício de sua felicidade; e as Nações do Universo erguendo os
olhos respeitosos para este magestoso Colosso da glória de PEDRO emudecerão
assombradas de sua grandeza, ou exclamarão no meio dos vivos transportes de sua
admiração: BEATI VIRI TUI, BEATI SERVI TUI.
6.2 . DOCUMENTO 512
214
Relação Histórica de huma occulta, e grande Povoação antiquíssima sem
moradores, que se descubrio no anno de 1753.
Em a América ______________________________________
nos interiores_______________________________________
contíguos aos _______________________________________
Mestre de Can ______________________________________
e sua commitiva, havendo dez annos que viajava pelos sertões, a vêr se
descubria as decantadas minas de prata do grande descubridor Moribeca, que por
culpa de hum Governador se não fizerão patentes, pois queria usurpar-lhe esta gloria, e
o teve prezo na Bahia até morrer, e ficarão por descobrir. veio esta notícia ao Rio de
Janeiro em princípio do anno de 1754.
Depois de huma larga, e importuna perigrinação, incitados da insaciável cobiça
do ouro, e quase perdidos em muitos annos por este vastissimo Certão, descubrimos
uma cordilheira de montes tão elevados, que parecião chegavão à Região etherea, e
que servião de throno ao vento, às mesmas estrellas; o luzimento que de longe se
admirava, principalmente quando o Sol fazia impressão no cristal de que era compsto,
formando huma vista tão grande, e agradável que ninguém daquelles reflexos podia
afastar os olhos; entrou a chover antes de entrarmos a registrar esta cristalina
maravilha, e viamos sobre a pedra escalvada correr as aguas precipitando-se dos altos
rochedos, parecendo-nos como neve, ferida pelos raios do Sol, pelas agradáveis vistas
d’aquelle _____________ uina se reduziria ____________________________ das
aguas e a tranquilidade _________ do tempo nos resolvemos a investigar aquelle
214
CALLADO, Antonio. Esqueleto na Lagoa Verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do Coronel Fawcett. Rio de
Janeiro: MEC, 1953. pp. 100-194. Os espaços do manuscrito expressos em linhas são os lugares roídos de cupim.
admirável prodigio da natureza, chegando-nos ao pé dos montes, sem embaraço algum
de matos, ou rios, que nos dificultasse o transito; porem circulando as montanhas, não
achamos passo franco para executarmos a resolução de acomettermos estes Alpes, e
Pyrineos Brasilicos, resultando-nos deste desengano huma inexplicável tristeza.
Abarracados nós, e com o desígnio de retrocedermos no dia seguinte, succedeo
correr hum negro, andando à lenha, a hum veado branco, que vio, e descobrir por este
acaso o caminho entre duas serras, que parecião cortadas por artifício, e não pela
Natureza: com o alvoroço d’esta novidade principiamos a subir, achando muita pedra
solta, e amontoada, por onde julgamos ser calçada desfeita com a continuação do
tempo. Gastamos boas tres horas na subida, porém suave pelos cristaes que
admiravamos, e no cume em hum campo raso maiores demonstrações para a nossa
admiração.
Devizamos couza de legoa e meia huma Povoação grande, persuadindo-nos
pelo dilatado da figura ser alguma cidade da côrte do Brazil, decemos logo ao Valle
com a cautella _____ seria em semelhante caso, mandado explor___________ gar a
qualidade e __________ se bem que repararam__________ fuminéz, sendo este, hum
dos signaes evidentes das Povoações.
Estivemos dois dias esperando aos exploradores para o fim que muito
desejamos, e só ouvimos cantar gallos para ajuizar que havia alli povoadores; até que
chegaram os nossos desenganados de que não havia moradores, ficando todos
confuzos: resolveu-se depois hum indio da nossa commitiva a entrar a todo o risco, e
com precaução; mas tornando assombrado, affirmou-nos não achar, nem descobrir
rastro de pessoas alguma; este caso nos fêz confundir de sorte, que não acreditamos
pelo que viamos de domicílios, e assim se arrujaram todos os exploradores a ir
seguindo os passos do indio.
Vierão confirmando o referido depoimento de não haver povo, e assim nos
determinamos todos a entrar com armas por esta povoação, em huma madrugada, sem
haver quem nos sahisse ao encontro a impedir os passos, e não achamos outro
caminho, senão o único que tem a grande povoação cuja entrada he por tres arcos de
grande altura, o do meio he maior, e os dois dos lados são mais pequenos; sobre o
grande e principal divisamos letras que se não poderão copiar pela grande altura.
Faz uma rua da largura dos tres arcos com casas de sobrados de huma, e outra
parte, com as fronteiras de pedra lavrada e já denegrida;_________ inscrições, abertas
todas____________ ortas são baixas de fei_________ nas notando que pela
regularidade e simetria com que estão feitas, parece huma só propriedade de casas,
sendo em realidade muitas, e algumas com seus terrados descubertos, e sem telha, por
que os tectos são de ladrilho requeimado huns, e de lages outros.
Corremos com bastante pavor algumas casas, e em nenhuma achamos vestígios
de alfaias, nem moveis, que podessemos pelo uso, e trato, conhecer a qualidade dos
naturaes: as casas são todas escuras no interior, e apenas tem huma escassa luz, e
como são abobadas, resonavão os echos dos que fallavão e as mesmas vozes
atemorisavão.
Passada, e vista a rua de bom comprimento, demos em huma Praça regular, e
no meio d’ella uma columna de pedra preta de grandeza extraordinária, e sobre ella
huma estatua de homem ordinario, com huma mão na ilharga esquerda, e o braço
direito estendido, mostrando com o dedo index ao Povo Norte; em cada canto da dita
Praça está huma Agulha, à imitação das que usavão so romanos, mas alguma já
maltratadas, e partidas como feridas de alguns raios.
Pelo lado direito d’esta Praça está hum soberbo edificio, como casa principal de
algum senhor da Terra; faz hum grande salão na entrada, e ainda com medo não
corremos todas as ca____ sendo tantas, e os retre___________ zerão formar
algum__________ mara achamos hu_________ massa de extraordin_____________
soas custavão o levantal-a.
Os morcegos erão tantos, que investião as caras das gente, e fazião uma tal
bulha, que admirava: sobre o portico principal da rua está uma figura de meio relevo
talhada da mesma pedra, e despida da cintura para cima, coroada de louro; representa
pessoa de pouca idade, sem barba, com huma banda atravessada, e hum fraldelim
pela cintura; debaixo do escudo de tal figura tem algumas characteres já gastos com o
tempo; divisão-se porem os seguintes: ___
Da parte esquerda da dita Praça está outro edifício totalmente arruinado, e pelos
vestígios bem mostra que foi templo, porque ainda conserva parte do seu magnífico
frontespício, e algumas naves de pedra inteira: occupa grande território, e nas suas
arruinadas paredes se veem obras de primor com algumas figuras, e retratos embutidos
na pedra com cruzes de vários feitios, corvos, e outras miudezas, que carecem de largo
tempo para descrevel-as.
Segue-se a este edificio huma grande parte de povoações toda arruinada, e
sepultada em grandes, e medonhas aberturas da terra, sem que em toda esta
circunferencia se veja herva, arvores ou planta produzida pela Natureza, mas sim
montões de pedra, huma toscas e outras lavradas, pelo q’entendemos_______ verção,
porque ainda entre_________ da de cadaveres, que________ e parte d’esta
infeliz_____ da e desamparada, talvez por algum terremoto.
Defronte da dita Praça corre arrebatadamente hum caudaloso rio largo, e
espaçoso com algumas margens, que o fazem muito agradavel à vista: terá de largura
onze, até doze braças, sem voltas consideraveis, limpas as margens de arvoredo, e
troncos, que as innundações costumão trazer; sondamos a sua altura, e achamos nas
partes mais profundas quinze, e até dezesses braças. Da parte d’alem tudo são
campos muito voçosos e com tanta variedade de flores, que parece andou a Natureza
mais cuidadosa por estas partes, fazendo produzir os mais mimosos campos de Flora:
admiramos tambem algumas lagoas todas cheias de arroz, do qual nos aproveitamos, e
tambem dos inumeráveis bandos de patos, que se crião na fertilidade d’estes campos,
sem nos ser difícil o caçal-os sem chumbo, mas sim às mãos.
Tres dias caminhamos rio abaixo, e topamos huma catadupa de tanto estrondo
pela força das agoas, e resistencia do lugar, que julgamos o não fazia maior as boccas
do decantado Nilo, que parece o grande Oceano. He todo cheio de peninsulas,
cobertas de verde relva, com algumas arvores dispersas, que fazem __________ davel.
Aqui achamos_________ a falta d’elle se nos_________ ta variedade de caça____ tros
muitos animais creados sem caçadores que os corrão, e os persigão.
Da parte do Oriente d’esta catadupa achamos subcavões, e medonhas covas,
fazendo-se experiência da sua profundidade com muitas cordas; as quaes por mais
compridas que fossem, nunca podemos topar o seu centro. Achamos também algumas
pedras soltas; e na superficie da terra, cravadas de prata, como tiradas das minas,
deixadas ao tempo.
Entre estas furnas vimos huma coberta com huma grande lage, e com as
seguintes figuras na mesma pedra, que insinuão grande mysterio ao que parece. Sobre
o portico do templo vimos outras da forma seguinte designadas.
Afastado da popoação, tiro de canhão, está huma grande lage, como casa de
campo de duzentos e cincoenta passos de frente: pelo qual se entra por hum grande
portico, e se sobe por huma escada de pedra de varias cores, dando-se logo em huma
grande sala, e depois d’esta em quinze casas pequenas todas com portas para a dita
sala, e cada huma sobre si, e com sua bica d’agoa________a qual agoas e
ajunta_______ mão no pateo exter______ columnatas em cir____ ra quadrada por
artificio, suspensas com os seguintes characteres.
Depois d’esta admiração, entramos pelas margens do rio a fazer experiencia de
descubrir ouro, e sem trabalho achamos boa pinta na superficie da terra, promettendo-
nos muita grandeza, assim de ouro, como de prata: admiramos o sêr deixada esta
povoação dos que a habitavão, não tendo achado a nossa exacta deligencia por estes
certões, pessoa alguma, que nos conte d’esta deploravel maravilha, de quem fosse
esta povoação, mostrando bem nas suas ruinas a figura, e grandeza que teria, e como
seria populosa, e opulenta nos seculos em que floreceo povoada; estando hoje
habitada de andorinhas, morcegas, ratos, e raposas, que cevadas na muita creação de
galinhas e patos, se fazem maiores que hum cão perdigueiro. Os ratos tem as pernas
tão curtas, que saltão como pulgas e não andão, nem correm como os de povoado.
D’aqui d’este lugar se apartou hum companheiro, o qual com outros mais, depois
de nove dias de boa marcha avistaram, à beira de huma grande enseada que faz hum
rio, huma canoa, com duas pessoas brancas, e de cabellos pretos, e soltos, vestidas á
Europea __________ hum tiro como signal para se ve____________ para fugirem.
Ter________ felpudo, e bravos__________ga a elles se encrespão todos, e investem.
Hum nosso companheiro chamado João Antonio achou em as ruinas de huma
casa hum dinheiro de ouro, figura esferica, maior que as nossas moedas de seis mil e
quatro centos: de huma parte com a imagem, ou figura de hum moço posto de joelhos;
e da outra parte hum arco, huma coroa, e huma setta, de cujo genero não duvidamos
se ache muito na dita povoação, ou cidade desolada, porque se foi subverção por
algum terremoto, não daria tempo o repente a pôr em recato o precioso; mas he
necessario um braço muito forte, e poderoso para resolver aquelle entulho calçado de
tantos annos, como mostra.
Estas notícias mando a Vm. d’este sertão da Bahia, e dos rios Parácaçu, Unã,
assentando não darmos parte a pessoa alguma, por que julgamos se despovoarão
villas, e arraiaes; mas eu a Vm. a dou das minas que temos descoberto, lembrando do
muito que lhe devo.
Supposto que da nossa companhia sahio já hum companheiro com pretexto
differente, com tudo peço a Vm. largue essas penurias, e venha utilizar-se d’estas
grandezas, usando da industria de peitar esse indio, para se faz perdido e condizir a
Vm. para estes thesouros, & c____________ charão nas entradas______________ bre
lages_______________.
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