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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Yara Rodrigues de Andrade
(Im)possível nação: o Brasil de Manoel Bomfim e de
Paulo Prado no início do século XX
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Yara Rodrigues de Andrade
(Im)possível nação: o Brasil de Manoel Bomfim e de
Paulo Prado no início do século XX
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de
MESTRE em Ciências Sociais, sob a
orientação do Prof. Doutor Lúcio Flávio
Rodrigues de Almeida.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
_______________________________________
_______________________________________
________________________________________
AGRADECIMENTOS
Todo trabalho humano é conseqüência da contribuição de trabalhos anteriores, das
circunstâncias históricas e da cooperação de muitos. Como disse o filósofo, a pena de um
escritor é carregada de sociabilidade.
Esta dissertação não foi diferente. Beneficiou-se dos estudos anteriores, do avanço
técnico, se tornando realidade graças a uma complexa rede de relações sociais.
Começando pela grande amiga e "cúmplice da vida" Danielle, que tanto impulsionou meu
mestrado. Rosa Vieira tem grande responsabilidade por aproximar-me do debate, trazendo-me
o livro América Latina: males de origem. Beto iluminou as minhas reflexões e Paquita
permitiu-me vencer os obstáculos da língua espanhola. Já o inglês e boa parte da revisão
textual ficaram a cargo do cunhado Mário.
As armadilhas do nosso idioma foram encaradas com o fundamental apoio de meu
irmão Luiz Carlos. Minha irmã Silvia, além do português, cuidou da parte estrutural do texto.
Merilyn, com paciência e habilidade, soube entender minhas dúvidas e dialogar
comigo nas piores horas. O Binho e o Homero, apesar da distância, também marcaram
presença.
Meu orientador, Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, deu seu voto de confiança, a
professora Márcia D'Aléssio e o colega Celso Uemori concorreram com as valiosas sugestões
e críticas na etapa de qualificação.
O CNPq financiou a pesquisa, tornando-a possível.
Arthur acompanhou todo o processo e manteve-se firme ao meu lado. A todos os que
me suportaram o meu mais sincero agradecimento. Estejam certos de que as páginas a seguir,
bem mais do que uma dissertação de mestrado, são partes de um projeto de vida que vocês
ajudaram a construir.
À memória de meus pais
RESUMO
A partir da Revolução Francesa, a nação tornou-se um forte referencial teórico e
prático para a organização das comunidades humanas na Europa e, ao avançar pelo século
XIX, essa idéia se disseminou para outros continentes. Em diversos países, os debates sobre a
nação como realidade ou projeto, se travaram em termos racialistas. Foi o que ocorreu no
Brasil, de um modo muito peculiar, pois em um contexto marcado pela longa existência de
um sistema escravista moderno. Orientados pelas teorias das raças inferiores, muitos
pensadores brasileiros questionaram seriamente a viabilidade de uma nação mestiça.
Esta pesquisa tem por objetivo, explorando o cenário da época, destacar e cotejar o
trabalho de dois estudiosos das coisas e causas nacionais. Pretende-se averiguar a influência
que as doutrinas européias exerceram sobre suas reflexões e compreender as concepções de
cada um destes autores sobre as nações em geral e as possibilidades de se constituir uma
nação neste país situado nos trópicos.
O trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro, é feito um breve apanhado de
algumas das principais abordagens teóricas acerca de 'nação' para, em seguida, nelas se
inserirem as concepções de Manoel Bomfim e Paulo Prado. No segundo capítulo, é
examinada a influência da noção de 'raça' no processo de constituição do Brasil e como isto
foi interpretado por ambos os autores. No último capítulo, busca-se examinar o destaque que
os dois estudiosos deram aos 'paulistas', personificados pelos bandeirantes, que teriam atuado
no sentido de consolidar a nova nação ao redesenharem o mapa do Brasil e incluírem o nativo
na sociedade nascente.
Palavras-chave: nação, nacionalismo, racismo, formação nacional brasileira, pensamento
social brasileiro.
ABSTRACT
Since the French Revolution, nation became a strong theoretical reference to the
organization of the human communities in Europe and, arriving at the 20th century, this idea
was disseminated to other continents. In many countries, the debates about nation as reality or
project were performed in racialist terms. This happened in Brazil, in a very peculiar way,
because marked by the long existence of the slavery. Guided by theories of inferior races,
many Brazilian thinkers have doubted that a country of mestizos and mulattos would be
feasible.
This research, exploring the set of the age, aims to emphasize and compare the studies
of two authors on national things and themes. We intend to verify the influence of the
European doctrine in their reflections and understand the conception that each author has of
nation in general and about the possibility of a nation be constituted in this country situated on
the tropics.
This work has three chapters. In the first, there is a brief account of some of the
principal outlooks about “nation” and, next, we insert the conceptions of Manoel Bomfim e
Paulo Prado. In the second chapter, is examined the influence of the notion of race in the
Brazil’s process of constitution and how it was interpreted by both authors. In the last chapter,
we search to examine the prominence given to the “Paulistas” by the two authors – inhabitants
of the Brazilian state of São Paulo –, personified by the Bandeirantes, which would act to
consolidate the new nation redesigning the map of Brazil and including the native in the rising
society.
Key words: nation, nationalism, racism, Brazilian national formation, Brazilian social
thought.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
9
CAPÍTULO I – MANOEL BOMFIM E PAULO PRADO DIANTE
DO PROBLEMA NACIONAL BRASILEIRO.
14
1. Nação: teoria e história. 14
2. Nação no trabalho de Manoel Bomfim e de Paulo Prado. 29
3. Formação nacional brasileira na análise de Manoel Bomfim e de Paulo Prado.
40
CAPÍTULO II – A NAÇÃO E A QUESTÃO RACIAL
.
54
1. A influência da noção de 'raça' no debate sobre a formação do Brasil. 54
2. Brasil: uma nação miscigenada na interpretação de Manoel Bomfim e de Paulo
Prado.
69
CAPÍTULO III – A IMPORTÂNCIA DE SÃO PAULO PARA O
DESENVOLVIMENTO NACIONAL.
85
1. O papel dos paulistas. 85
2. O bandeirante paulista na visão de Manoel Bomfim e de Paulo Prado.
94
CONSIDERAÇÕES FINAIS
114
FONTES E BIBLIOGRAFIAS
119
9
INTRODUÇÃO
O período que se estende do culo XVIII até pouco depois da Segunda Guerra
Mundial foi definido por Hobsbawm, como um intervalo entre duas eras essencialmente
transnacionais.
1
A particularidade desse momento histórico foi o fortalecimento das
formações nacionais. Ainda que os pensadores liberais tivessem alguma dificuldade para
aceitar a idéia de nação, a temática tornava-se candente, e muitos se renderam a sua influência
e significado, até porque o processo de constituição de Estados nacionais territorializados se
impunha.
Nação é entendida por alguns como uma comunidade cultural, que partilha um mesmo
território e compartilha as mesmas instituições; por outros, como um agrupamento social, em
que os indivíduos manifestem vontade de pertencer a esse grupo, e se identifique com ele;
outros ainda, preferem compreendê-la como uma unidade política unificada, com códigos
morais particulares e em que os indivíduos estabeleçam nculos naturais. A língua e a
religião foram apontadas como os principais agentes aglutinadores das pessoas, e que
funcionam, portanto, como balizadores nacionais.
Nação é um poderoso imperativo moderno que diversos autores como Gellner a
vinculou à industrialização e à educação de massa;
2
outros destacaram a associação histórica
de nação com o Estado; outros ainda se referiram à “idéia de nação”.
Alguns autores de orientação marxista, como Almeida, explicam esse
desenvolvimento pela característica particular de relação que se estabelece, entre os
indivíduos no modo de produção capitalista. Estas relações não são indiferentes às
determinações, por um lado, do Estado burguês e, por outro, da esfera mercantil das relações
econômicas do capitalismo. Ressalta o estudioso, que nesta sociedade, as relações sociais são
reificadas, isto é, são intermediadas pela mercadoria. Dessa coisificação emerge uma aparente
igualdade humana, que contribui para ocultar as relações de dominação de classe. Daí sua
afirmação de que no capitalismo a relação entre os homens "aparece como uma relação entre
iguais". Nesse sentido, a idéia de nação funciona como um aglutinador social e é fundamental
para a reprodução da sociedade burguesa.
3
1
HOBSBWAM, E. J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade, p. 38.
2
GELLNER, E. Nações e nacionalismo, p. 99-100.
3
ALMEIDA, L. F. Ideologia nacional e nacionalismo, p. 20.
10
No Brasil, o debate sobre a questão nacional estava presente desde os escritos de José
Bonifácio, e ganhou expressão no transcorrer dos Oitocentos, afinal esse período foi pródigo
em movimentos de grande significação histórica, como: a independência em relação a
Portugal, a abolição da escravatura e proclamação da República. Contudo, o que nos
diferenciava era a nossa condição de periferia do capitalismo. Além do atraso econômico, a
dívida social brasileira era enorme, impossibilitando, na interpretação de muitos, a viabilidade
do Brasil enquanto nação.
Paralelamente às dificuldades econômicas e sociais, enfrentadas pela jovem nação, em
fins do século XIX, o país foi invadido por uma nova onda de “idéias novas", vindas, como
sempre, da Europa. Os princípios do liberalismo, que haviam sido inseridos na retórica
dominante, foram articulados por inúmeros autores, na forma de “um discurso científico
evolucionista como modelo de análise social".
4
É neste bojo que se inserem os trabalhos de Manoel Bomfim e Paulo Prado, dois
intérpretes do Brasil do início do século XX que problematizaram a possibilidade de se
construir uma nação, dois pensadores que se propunham elaborar um projeto de nação para o
Brasil.
O perfil de cada um é bem distinto. Manoel Bomfim era nordestino, originário da
classe média. A principal marca de seu pensamento era o nacionalismo. O amor pela terra está
presente em todo seu trabalho, que incluía atividades sócio-pedagógicas, além de uma vasta
bibliografia. Enalteceu o Brasil como pôde, enxergou na rude colônia qualidades de uma
grande pátria. Aceitou seu povo e refutou as idéias que o inferiorizavam. Cultuava o Estado,
pois o entendia como o responsável pela construção da nação. Mas não conseguiu libertar-se
de seus condicionantes históricos e suas interpretações foram pautadas pelo parâmetro racial,
pelo biologismo, pelo empirismo.
Quiçá pela sua formação acadêmica, suas formulações freqüentemente recorrem ao
mundo animal. Para ele "sentimento nacional é o apego necessário do animal ao ambiente em
que está acostumado". Muitas definições são ambíguas, oscilando entre o subjetivismo e o
objetivismo. Como ao dizer "a pátria é um sentimento e é um fato". Contudo, em sua densa
produção, é possível captar uma essência única: de América Latina: males de origem até O
Brasil nação, Bomfim se contrapôs, às doutrinas e as ações favoráveis ao imperialismo. Foi
4
SCHWARCZ, L. M. As teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX. O contexto
brasileiro, p. 28.
11
duro em suas críticas à corte portuguesa, apontou os interesses das grandes nações em terras
brasileiras e denunciou a conivência dos governantes locais.
Os Prados acumularam imensa riqueza com a exploração do café, o que lhes
possibilitou exercer forte influência econômica e política no país. Tendo recebido uma
educação européia, o culto, liberal e cosmopolita, Paulo Prado estava pouco engajado na
construção nacional, até porque, nacionalismo lembra estatismo, indo contra seus interesses
econômicos e sua orientação política. Mas isto, não o impediu de se voltar para seu país e se
propor a elaborar um projeto para investigar as origens da nação, o que significava, antes de
tudo, entender e explicar as razões do nosso atraso. Seus escritos são contundentes críticas ao
Brasil colonial, ao comportamento dos colonizadores e ao povo mestiço, a quem ele mais
culpou pelos problemas nacionais.
Paulo Prado foi sutil ao adotar as doutrinas dominantes em sua época. Ele não falava
em 'raças inferiores'; embora acreditasse na 'degeneração da raça' e defendesse o
branqueamento. As idéias deterministas o faziam ver no povo brasileiro herdeiros da lascívia
e da melancolia e seu pessimismo não permitia que vislumbrasse luz no fim do túnel. É
perceptível nele o endosso da idéia de que se o Brasil tivesse sido colonizado por um país
mais desenvolvido que Portugal, diversa teria sido sua fortuna. Não por outro motivo fez dele
as palavras do historiador britânico James Bryce: "se esta terra fosse anglo-saxônica, em trinta
anos teria 50 milhões de habitantes"
5
. A administração portuguesa era vista como corrupta e
inepta.
Este trabalho é resultado da leitura de muitos estudiosos do período, sobretudo
brasileiros, para estabelecer quais foram os lineamentos gerais sobre a nossa formação
presentes no pensamento de Manoel Bomfim e Paulo Prado. Busca revelar como eles
conseguiram ou não suplantar os limites de suas determinações sociais. A idéia central é
cotejar duas obras, escritas no mesmo momento histórico: O Brasil na América e Retrato do
Brasil, para apreender o sentido de nação, e qual o projeto para o Brasil em cada um deles. No
entanto, considerando que o pensamento dos autores se expressa em suas produções como um
todo, não ficaremos adstritos a esses dois textos e recorreremos aos demais livros que
compõem suas bibliografias.
Muitos textos acadêmicos desta natureza foram produzidos, especialmente no que
tange a Manoel Bomfim. Algumas dissertações e teses o colocaram frente a frente a
5
Citado por Paulo Prado (1997, p. 199).
12
pensadores, como: Silvio Romero
6
, Euclides da Cunha
7
e Manuel Gonzalez Prada
8
. Já Paulo
Prado, recebeu menos atenção por parte da academia. Entre os trabalhos mais recentes
destacam-se os escritos de Assa, que o aproxima de Mário de Andrade
9
. As principais
referências ao autor particularizam sua atuação no movimento modernista de 1922. A
comparação entre Manoel Bomfim e Paulo Prado contribui para a reflexão e conhecimento do
processo de formação do Brasil, resgata a colaboração desses dois brasileiros para o debate e
revela que a discussão se mantém em aberto.
A relevância da pesquisa se coloca pela atualidade do tema, pois o projeto de nação
discutido por eles parece nunca ter sido implantado e grande número dos problemas
apontados em seus trabalhos, ainda é motivo de preocupação para a sociedade brasileira. E,
esses dois brasileiros contemporâneos, singulares, de origem distinta, com trajetórias tão
diferentes e pontos de vista diversos, guardavam algumas afinidades, tinham concepções
comuns. Ao cotejá-los, essas identidades se realçam e suas propostas se clarificam.
O método de trabalho empregado consistiu fundamentalmente na investigação dos
textos de Manoel Bomfim e Paulo Prado, analisando-se as idéias expressas pelos autores. Mas
antes foi necessário contextualizar o debate no momento histórico, para destacar quão
importante era a questão nacional para os pensadores da época, evidenciando o prestígio e a
força dos princípios do nacionalismo. Outras predisposições ideológicas, como o racismo,
que revestiam o debate, também foram levantadas. As teses de que as raças inferiores
enfraqueciam nossas possibilidades, tornando inviável os projetos de nação, foram muito
enfatizadas pelo pensamento conservador. A singularidade que os autores atribuíam a São
Paulo, nos levou a uma análise mais específica da região, procurando examinar, mesmo que
sem grandes aprofundamentos, as razões históricas do bandeirantismo, fenômeno social que
concorreu para o alargamento das fronteiras deste país.
O trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro, denominado Manoel Bomfim e
Paulo Prado diante do problema nacional brasileiro, apresenta três tópicos. No inicial, será
6
NUNES, M. T. Silvio Romero e Manoel Bomfim: pioneiros de uma ideologia nacional. Aracaju: Cadernos da
UFS, 1976.
7
KROPF, S. P. Manoel Bomfim e Euclides da Cunha: vozes dissonantes aos horizontes do progresso. História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, III (1), p.80-98 Mar-Jun. 1996.
8
BECHELLI, R. S. Nacionalismos anti-racistas: Manoel Bomfim e Manuel Gonzalez Prada (Brasil e Peru na
passagem para o século XX). São Paulo, 2002, 161p. Dissertação de Mestrado (História Social) Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
9
ASSAD, S. Macunaíma e Retrato do Brasil: a construção da identidade nacional, sob o traço da luxúria.
Capturado na internet, em 10/10/2006, no endereço eletrônico: http://www.educacaopublica.rj.gov.br.
13
abordada a discussão teórica sobre a nação. Da essência do debate, pode-se apreender que o
surgimento desta, nos moldes modernos, estabelece um vínculo necessário com o modo de
produção capitalista e a categoria 'nação' tem papel fundamental para reproduzir este modo de
produção. O segundo pico é Nação no trabalho de Manoel Bomfim e de Paulo Prado. É a
parte em que será demonstrado como os dois autores interpretam o sentido de nação. As
especificidades brasileiras são abordadas na Formação nacional brasileira na análise de
Manoel Bomfim e de Paulo Prado, terceira e última parte deste capítulo, em que os dois
autores discorreram sobre as nossas circunstâncias históricas e as dificuldades encontradas
para a realização da nação brasileira.
No capítulo dois, A nação e a questão racial, procuramos destacar que a categoria
'raça' predominou nas discussões acerca da questão nacional. É de que trata o primeiro tópico
deste capítulo, A influência da noção de 'raça' no debate sobre a formação do Brasil,
mostrando as principais correntes teóricas brasileiras do período e, em que medida, essas
idéias marcaram o pensamento de Bomfim e de Prado. O resultado do congraçamento das
'três raças tristes' é Brasil: uma nação miscigenada na interpretação de Manoel Bomfim e de
Paulo Prado. É o momento em que os autores manifestam suas impressões da mistura racial.
Um povo que construiu uma nação, pois o Brasil tinha o que de melhor existia em cada um
dos elementos étnicos que o compunham, na visão de Bomfim. Já Prado enxergava o
'cruzamento' como conseqüência da luxúria, originando uma raça que, formada no vício,
tendia à degeneração.
O ponto de encontro dos autores se dá no planalto de Piratininga, com os bandeirantes.
No terceiro capítulo, que leva o título A importância de São Paulo para o desenvolvimento
nacional, cabe destaque à história de São Paulo e às grandes realizações das bandeiras
paulistas, além do mameluco. No primeiro tópico, O papel dos paulistas, é feito um breve
resgate das origens da cidade, as condições econômicas, a necessidade das incursões pela
mata em busca de ouro. No segundo, O bandeirante paulista na visão de Manoel Bomfim e de
Paulo Prado, os autores se voltam para os feitos dos mamelucos. Neste ponto suas opiniões
convergem. O local, onde a miscigenação deu certo, gerando um tipo forte, apto para
enfrentar os obstáculos da terra, no entender de Prado, ou um núcleo essencial da formação da
nacionalidade brasileira, nas palavras de Bomfim, foi São Paulo, por isso, a região tornou-se o
centro das análises dos dois estudiosos, que engrandeceram os feitos do povo paulista,
atribuindo os excessos cometidos à "rudeza dos tempos".
Por fim, obviamente, as considerações finais.
14
CAPÍTULO I MANOEL BOMFIM E PAULO PRADO
DIANTE DO PROBLEMA NACIONAL
BRASILEIRO.
1. Nação: teoria e história.
O tema nação, que ocupou intensamente os debates ao longo do século XIX e começo
do século XX, volta à tona nas discussões atuais. Conceituar algo tão controverso é uma tarefa
difícil. Bagehot, em seu livro Physics and Politics,
10
instado a opinar sobre o tema afirmou:
"we know what it is when you do not ask us,’ but we cannot very quickly explain or define
it".
11
Segundo Hobsbawm, "o conceito de nação é historicamente muito recente" e tendia a
significar "o povo". "A 'nação' era o corpo de cidadãos cuja soberania coletiva os constituía
como um Estado concebido como sua expressão política".
12
Estudiosos de matizes
ideológicos distintos se debruçaram sobre o assunto. Ribeiro destacou duas perspectivas
teóricas como correntes fundamentais na teoria das nações e dos nacionalismos:
o modernismo, para quem as nações e os nacionalismos são erupções instrumentais e
funcionais da modernidade, e o etnicismo, que mais ou menos tributário do
primordialismo, considera que umas e outros relevam de uma história de longa
duração, da comunidade étnica e de partilhas culturais profundas. Entre os primeiros
são referências incontornáveis Elie Kedourie (1969), Ernest Gellner (1983), Eric
Hobsbawm (1990) e Benedict Anderson (1983). Os etnicistas pertencem a uma
geração posterior, representada por Anthony D. Smith (1997), Walker Connor
(1998), John Armstrong (1982), Adrian Hastings (1997), Liah Greenfeld (1992) e
Josep Llobera (2000) e com uma abordagem etnicista mais atenuada Alain
Dieckhoff (2001).
13
Assim posto, aparentemente nação e nacionalismo são conceitos que se entrelaçam. É
possível relacionar nação ao Estado nacional, entendido como a sua expressão política. Mas
também é cabível observar que propor este vínculo sem levar em conta inúmeras
determinações, inclusive de caráter ideológico, traz o risco de se assumir acriticamente um
procedimento típico dos nacionalismos modernos. Até porque, mesmo se considerando que
10
BAGEHOT, W. Physics and Politics: or Thoughts on the Application of the Principles of Natural Selection
and Inheritance to Political Society, p. 15.
11
Sabemos o que é quando não somos perguntados, mas não podemos rapidamente defini-la ou explicá-la.
12
HOBSBWAM, E. J. Op. cit., p. 30/1.
13
RIBEIRO, R. A nação na Europa: breve discussão sobre a identidade nacional, nacionalismo e
supranacionalismo, p. 4.
15
inúmeros estudiosos destacam esta relação, existem os que postulam a existência de nação
sem Estado e Estado sem nação.
Guibernau leva em conta a possibilidade de haver nação sem Estado,
14
e não somente
nação, mas também nacionalismo e Estado nacional, exemplificou com as relações do Reino
Unido para com a Escócia e o País de Gales, lembrou-se da Catalunha e do País Basco dentro
da Espanha e se referiu a Québec e Flandres, além das situações extremas de palestinos,
tibetanos e curdos.
Ela distinguiu claramente nação, estado, estado nacional e nacionalismo.
Por nação a
autora entende um agrupamento:
humano consciente de formar uma comunidade e de partilhar uma cultura comum,
ligado a um território claramente demarcado, tendo um passado e um projeto
comuns e a exigência do direito de se governar. Desse modo, a "nação" inclui cinco
dimensões: psicológica (consciência de formar um grupo), cultural, territorial,
política e histórica.
15
A autora defendeu, ainda, que nação se diferencia de grupo étnico, pois este, apesar de
partilhar "de algum modo inespecífico, uma origem comum e múltiplos laços culturais,
históricos e territoriais, não apresenta exigências políticas específicas".
16
A definição de Estado, em seu trabalho parte da célebre conceituação weberiana de
comunidade humana que reconhece e aceita o monopólio do uso força dentro de um dado
território. Já Estado nacional é quase que a ampliação deste conceito, entendido como:
um fenômeno moderno, caracterizado pela formação de um tipo de estado que
possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da força dentro de um território
demarcado, e que procura unir o povo submetido a seu governo por meio da
homogeneização, criando uma cultura, mbolos e valores comuns, revivendo
tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os. (...) O estado nacional
procura criar uma nação e desenvolver um senso de comunidade dela proveniente.
(...) O estado nacional tem como objetivo a criação de uma cultura, símbolos e
valores comuns.
17
Por fim, nacionalismo que, para Guibernau, é o "sentimento de pertencer a uma
comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilos de
vida, e têm a vontade de decidir sobre seu destino político comum".
18
Ela entende que esse era
o poder do nacionalismo.
14
GUIBERNAU, M. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século XX, p. 110-1.
15
Ibid., p. 56.
16
Ibid., p. 110.
17
Ibid., p. 56.
18
Ibid., p. 56.
16
Em Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo do século XX, a autora
apresentou três abordagens para explicação do nacionalismo. A primeira, denominada
essencialismo busca focalizar "o caráter imutável da nação". Num nível de profundidade
maior, de acordo com ela, a segunda enfatiza os "fatores econômicos" e a terceira "desenvolve
teorias psicológicas associadas às necessidades que os indivíduos têm de se envolverem numa
coletividade com a qual possam identificar-se".
A concepção essencialista, nas palavras de Guibernau, não chega a constituir uma
teoria do nacionalismo, conforme afirma, provém de autores como Herder, que "considera a
nação uma entidade natural, como que eterna, criada por Deus". A língua e a cultura dão o
papel da nação na história. O destaque para os aspectos emocionais e idealizados da
comunidade se sobrepõe às questões econômicas, sociais e políticas.
19
A segunda corrente teórica apontada por Guibernau refere-se à análise de Gellner,
Deutsch, Kedourie e àqueles que ela considera representantes da corrente marxista. Segundo
ela, esses pensadores relacionam o nacionalismo com o processo de modernização. E a
terceira interpretação é aquela em que estudiosos do tema como Smith e Anderson
apresentaram "as teorias mais amplas a respeito do significado da identidade nacional e da
emergência da consciência nacional". Na opinião de Guibernau, o "nacionalismo é uma
ideologia estreitamente relacionada com a ascensão do estado nacional e comprometida com
idéias a respeito da soberania popular e da democracia suscitadas pelas revoluções francesa e
americana".
20
Além dos estudos e estudiosos citados por Guibernau, outros autores empreenderam
significativas pesquisas sobre o tema. No entanto, devido à natureza e às delimitações
próprias deste trabalho e a profusão de fontes de documentos, optamos por selecionar alguns,
em decorrência da forte influência que exerceram sobre os pensadores contemporâneos, tais
como Gellner, Smith e Anderson para melhor abordagem da análise. Destacam-se também as
investigações de Hobsbawm, que encorpou o debate ao elaborar uma "pequena lista de
leituras", para servir de guia de análise, da mesma forma que Pierre Vilar, ao resgatar o
aspecto econômico e social da categoria nação.
Começando por Gellner, que a partir de uma perspectiva teórica não marxista,
reconhece o Estado, "a instituição, ou conjunto de instituições, especialmente consagradas à
manutenção da ordem", como uma elaboração específica da divisão do trabalho, e lembra que
19
Ibid., p. 9.
20
Ibid., p. 11.
17
se não existe Estado, o existem fronteiras, governantes, não se podendo, nesse caso, falar
em nação e nacionalismo.
21
Este observou que explicar o significado de nação era mais difícil
do que o de Estado. A idéia de nação pareceria inerente à condição de pessoa nos tempos
modernos. Ainda segundo Gellner, o homem é capaz de imaginar uma "situação social em
que o Estado esteja ausente (...) (já) a idéia de um homem sem nação parece impor uma
tensão muito maior à imaginação moderna",
22
contudo, salientou "nações e Estados, são uma
contingência e não uma necessidade universal", e, embora o nacionalismo seja o elo entre
nação e Estado, o surgimento de cada um deles foi independente.
23
O autor resgatou duas definições de nação que denominou "provisórias". A primeira
a culturalconsidera que os vínculos nacionais se estabelecem pela cultura, isto é, os valores
sociais, sistemas de idéias, os símbolos, associações, comportamento e comunicações. A
segunda envolve a idéia de pertencimento, ou seja, as pessoas pertencem à mesma nação se
assim se reconhecem. Neste sentido, nação é artefato "das convicções, lealdade e
solidariedades do homem". Esta é a definição voluntarista. Entretanto, Gellner assinalou que
ambos os sentidos são insuficientes para um perfeito entendimento da nação e, por considerá-
los pouco satisfatórios, o autor optou por abordar o tema, despreocupado do sentido formal e
buscar apreender "o que a cultura faz".
24
Gellner parte do princípio de que identificação, lealdade, coerção ou constrangimento
estão presentes na maior parte dos agrupamentos. Portanto, asseverou "mesmo que a vontade
seja a base da nação, sendo também a base de tantas outras coisas, (...) não poderíamos de
maneira alguma definir o conceito de nação dessa forma". Porém não deixou de ressaltar a
força dessa idéia como explicação da emergência da nação, "porque na moderna era
nacionalista os objetos de identificação e adesão voluntária preferidos são as unidades
nacionais".
25
Outra definição de nação poderia ser balizada pela cultura. A história humana é rica
em diferenças culturais, contudo – observa Gellner – "esta riqueza de diferenças não converge
21
GELLNER, E. Op. cit.,, p. 15.
22
Ibid., p. 18.
23
Ibid., p. 19.
24
Ibid., p. 19/20.
25
Ibid., p. 86/87.
18
e de fato não pode fazê-lo, nem com as fronteiras das unidades políticas", nem com as
fronteiras do consentimento e da vontade.
26
Logo,
nações podem ser definidas de acordo com a era do nacionalismo em vez de se
dar ao contrário, como seria de se esperar. A "era do nacionalismo" não é uma mera
soma da revelação e da auto-afirmação política desta ou daquela nação. Em vez
disso, quando as condições sociais gerais conduzem a culturas eruditas
standardizadas, homogêneas e centralizadas, abrangendo populações inteiras e não
apenas minorias de elite, surge uma situação em que as culturas unificadas,
educacionalmente sancionadas e bem definidas, constituem na prática o único tipo
de unidade com que os homens se identificam voluntariamente e muitas vezes
ardentemente (...). Nestas condições, mas nelas, as nações podem realmente ser
definidas tanto em termos de vontade como de cultura, segundo a concordância de
ambas com as unidades políticas.
27
Para o autor, o nacionalismo é que origem às nações e não o contrário. Ele iniciou
seu livro Nações e Nacionalismo afirmando que nacionalismo é um princípio político "que
defende que a unidade nacional e a unidade política devem corresponder uma à outra".
28
E
mais: frisou que o nacionalismo não é uma invenção ideológica, pois ele está bem enraizado
na nossa condição atual é manifestação de amor à nação, de auto-idolatria coletiva
declarada,
29
nacionalismo é o estabelecimento de uma sociedade impessoal e anônima, com
indivíduos atomizados, reciprocamente substituíveis, unidos por uma cultura comum.
30
Segundo ele, de um nacionalismo bem sucedido, nasce uma nação,
31
a nação é algo concreto e
histórico.
32
Gellner relaciona estreitamente o nacionalismo à industrialização e à organização
de classes no mundo capitalista, sublinhou que foram o processo industrial e os abismos
gerados por ele que intensificaram os conflitos nacionalistas e frisou que:
quando uma nação se transformou em classe, numa categoria visível e
desigualmente distribuída num sistema globalmente móvel, é que se tornou
politicamente consciente e ativa. quando uma classe constituiu (...) uma "nação"
é que passou de uma classe em si a uma classe para si, ou uma nação para si. Nem as
classes nem as nações parecem ser catalisadores políticos: apenas as nações-classes
ou as classes-nações o são.
33
26
Ibid., p. 87.
27
Ibid., p. 88.
28
Ibid., p. 11.
29
Ibid., p. 90.
30
Ibid., p. 91.
31
Ibid., p. 166.
32
Ibid., p. 194.
33
Ibid., p. 178.
19
Em Las teorías del nacionalismo, Smith, diferentemente de Gellner, considera
nacionalismo "una clara variante ideológica de un movimiento social y político, con una
'tendencia direccional' determinada y un perfil e impulso reconocibles".
34
Para ele o
"nacionalismo en todas partes es un producto de las primeras etapas del capitalismo".
35
O
autor também estabelece uma relação, embora menos direta, do nacionalismo com a
modernização social e cultural, e separa surgimento da nação e nacionalismo,
36
questiona a
língua como identificadora da nação, pois esta, em sua opinião, poderia ser um marco na
Europa, mas no Oriente Médio a religião seria um autodefinidor ideológico mais poderoso.
37
Quando menciona a Europa Oriental, ressalta que, lá, os movimentos nacionalistas tinham
pouca coisa com o nacionalismo dos estados nacionais ocidentais e foram anteriores à
chegada do capitalismo ou da industrialização.
38
Smith observa que a maioria das teses sobre o nacionalismo é difusionista, pois trata o
fenômeno "como una ideología con raíces específicas en la Europa postmedieval".
39
O
surgimento do nacionalismo não é consenso entre os estudiosos, a data mais aceita é 1789 por
influência da Revolução Francesa. Ele considerou três hipóteses que dão base ao
nacionalismo. O primeiro é a necessidade de segurança e o desejo das pessoas de pertencer a
um grupo, o segundo trata-se da capacidade do nacionalismo de criar novos grupos, e, o
terceiro refere-se ao êxito do nacionalismo de se impor frente a outras crenças.
Ressaltou também que a estrutura do Estado-nação como forma de organização
política moderna, possuindo bandeira, hino, sistema educativo e judicial, moeda, mito
fundacional, entre outros símbolos, tem desempenhado cada vez mais destacado papel na vida
"de los individuos y grupos, a través de sus atributos reguladores, cognitivos e
emocionales."
40
Para ele:
El Estado-nación constituye la base casi indiscutida del orden mundial, el objeto
principal de las lealtades individuales, el definidor más importante de la identidad
del hombre. Es mucho más significativo para el individuo y para la seguridad
34
SMITH, A. Las teorías del nacionalismo, p. 31.
35
Ibid., p. 118.
36
Ibid., p. 29.
37
Ibid., p. 46.
38
Ibid., p. 120.
39
Ibid., p. 57.
40
Ibid., p. 28.
20
mundial que cualquier otro tipo anterior de organización política y social. Impregna
nuestro modo de ver hasta tal punto que actualmente apenas cuestionamos su
legitimidad. El Estado-nación se ha convertido en un puntal indispensable de nuestro
pensamiento y tendemos a considerar a las naciones como el color de la piel: como
un atributo 'natural' del hombre. Cuando hablamos de 'sociedad' hoy día, nos
referimos implícitamente a las 'naciones'.
41
Em seu trabalho, Smith cunhou o termo "nacionalismo policêntrico" para caracterizar
a oposição ao nacionalismo etnocêntrico
42
, característico do mundo antigo e medieval.
Segundo o autor o costume moderno de se estudar a história antiga, pelas histórias dos povos,
encontra sua raiz, pois cada um desses povos tinha seus códigos, seus ritos, suas crenças,
seu poder central. De acordo com análise de Solé, o nacionalismo policêntrico, que se
propagou após a Revolução Francesa, assume um caráter mais universal, menos reticente aos
valores de outros grupos, mais desejoso de integrar-se na "'familia de naciones' y encontrar así
su identidad y parte em el concierto internacional"
43
.
Benedict Anderson
44
não se diferenciou dos demais autores ao expressar a dificuldade
em conceituar o tema, tanto que se apropriou da idéia de Hugh Seton-Watson, que afirmou
não poder "estabelecer nenhuma 'definição científica' de nação; contudo, o fenômeno tem
existido e continua a existir".
45
Anderson, entretanto, criou uma locução nation-ness para
expressar a nacionalidade e suas múltiplas significações. Centrou seu trabalho em mostrar que
a nation-ness e o nacionalismo são artefatos culturais de um tipo peculiar, surgidos por volta
do século XVIII, tornados entidades históricas, que se transformaram no decorrer do tempo,
apresentando ainda hoje muita legitimidade
46
.
Por nação, Anderson compreendeu uma "comunidade política imaginada e
imaginada como implicitamente limitada e soberana"
47
. Segundo suas palavras, ela é
imaginada porque, embora persista uma idéia de comunhão, a maior parte dos membros dessa
comunidade jamais se encontrará. É vista como limitada porque independente do tamanho, a
nação possui fronteiras, limites; e pensada soberana devido às suas raízes, pois o conceito de
41
Ibid., p. 27.
42
Destaque-se que, para o autor, "esta distinción entre los dos tipos de nacionalismo es puramente analítica e
ideal típica" (Smith, 1971, p. 225).
43
SOLÉ, C. Prólogo. In: Las teorías del nacionalismo, p. 12.
44
Neste trabalho, todas as citações de Anderson referem-se a Benedict Anderson.
45
ANDERSON, B. Nação e consciência nacional, p. 11.
46
Ibid., p. 12.
47
Ibid., p.14/5.
21
nação surgiu "numa época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a
legitimidade do reino dinástico hierárquico, divinamente instituído". Lembrou, ainda, que "as
nações sonham em ser livres e o símbolo dessa liberdade é o Estado soberano". Por fim,
assinalou que ela é concebida como uma comunidade, pois embora haja desigualdades e
exploração, "a nação é sempre concebida como um companheirismo profundo e horizontal".
E é isso que, na opinião do autor, levou milhares de pessoas ao sacrifício, à entrega da própria
vida "por imaginações tão limitadas".
48
Na busca de entender a nação e suas circunstâncias históricas, Anderson, assim como
Smith lembrou que o nacionalismo ganhou força no século XVIII, momento em que a religião
perdia prestígio. Lembrava o autor, que:
Com o refluxo da religiosa, não desapareceu o sofrimento que a em parte
mitigava (...) o que se demandava, então, era uma transformação secular da
fatalidade em continuidade, da contingência em significado. Como veremos, poucas
coisas se adaptavam (se adaptam) melhor a essa finalidade do que uma idéia de
nação.
49
Salientou, contudo que embora estabelecesse relação, isso não significava que o
nacionalismo era resultado do desgaste sofrido pelas 'certezas religiosas'. Sua proposta para o
entendimento do nacionalismo era confrontá-lo com os sistemas culturais que o precederam,
destacando a comunidade religiosa e o reino dinástico. Para ele, o declínio desses sistemas
alterou profundamente o modo de pensar, tornando possível enxergar o mundo de outra
forma, daí a possibilidade de se refletir sobre 'nação'.
50
A possibilidade de se imaginar a nação
teria surgido historicamente num contexto de mudança em que a língua escrita deixou de ter
status de único acesso à verdade, o poder perdeu a aura de direito divino e o homem passou a
se colocar no centro do mundo.
Anderson também relacionou o fortalecimento da nação ao surgimento do capitalismo.
As descobertas científicas, a imprensa, além da valorização das "línguas vulgares" foram
fundamentais para a propagação de idéias. Como assinalou:
o que tornou imagináveis as novas comunidades foi uma interação semifortuita, mas
explosiva, entre um sistema de produção e de relações produtivas (capitalismo), uma
tecnologia de comunicação (imprensa) e a fatalidade da diversidade lingüística do
homem.
51
48
Ibid., p. 16.
49
Ibid., p. 19.
50
Ibid., p. 31.
51
Ibid., p. 52.
22
Nação e consciência nacional mostra que a ascensão de uma classe ligada ao
comércio, ao cálculo, impulsionou a alfabetização e a disseminação da língua. Dessa forma,
bem diferente das classes dirigentes pré-burguesas que geraram sua coesão, através da política
sexual e da herança, e que tinham uma condição de classe tanto concreta quanto imaginada, a
burguesia, alheia às lealdades pessoais e aos laços de parentesco, teve na língua o instrumento
da soldagem social. E a língua, ressaltou o autor, "foi fundamental na moldagem dos
nacionalismos europeus do século XIX".
52
Era a língua impressa que propiciava a existência
da comunidade, era ela que poderia vincular pessoas distantes que jamais iriam se encontrar,
por isso, o autor afirmou que "em termos de história mundial, as burguesias foram as
primeiras classes a consumar solidariedades numa base essencialmente imaginada".
53
A nação, vista por Anderson como uma comunidade que se movia através da história,
tem seu correspondente político no Estado nacional, este por sua vez, tornou-se norma a partir
da Primeira Guerra Mundial, atingindo seu ápice nos anos 1960.
No seu livro Iniciação ao Vocabulário da análise histórica, Vilar mostra que o Estado
"moderno" se esboçou no período de transição, quando a estrutura feudal se desmontava e
ascendia o capitalismo. Em alguns lugares da Europa progressivamente vão se criando os
laços de "solidariedades nacionais", dando origem a Estados-nacionais.
54
Pierre Vilar, em Hidalgos, amotinados y guerrilleros, assinalou que o tema foi
resgatado no final dos anos 1970, depois de ser considerado superado nas cadas
anteriores.
55
Orientando-se pela idéia da luta de classes como motor "de las transformaciones
que permiten el dominio creciente del hombre sobre la naturaleza",
56
o autor destacou que a
historiografia nacionalista do século XIX, em sua linguagem e discurso político, ocultava esta
dialética real e fazia com que as classes sociais desaparecessem. A nação, segundo ele,
tomava o lugar do Estado, a linguagem induzia à indistinção dos termos, o interesse nacional
era invocado contra aspirações de grupo ou de classe. Porém, nação, ressaltou, é uma
categoria histórica e sua definição poder ser dada historicamente, entretanto, para obter seu
52
Ibid., p. 81.
53
Ibid., p. 88.
54
VILAR, P. Iniciação ao vocabulário da análise histórica, p. 153-4.
55
VILAR, P. Hidalgos, amotinados y guerrilleros, p. 279.
56
Ibid., p. 282.
23
sentido completo é necessário pensar em outros aspectos como o psicológico, sociológico,
etnológico, pautando sempre pelo olhar do historiador.
57
De acordo com Vilar 'nação' é uma idéia latente desde a Roma Antiga, quando os
bárbaros, para indicar diferenças com o império, fixavam a língua como marca de
nacionalidade.
58
Dessa forma, o idioma pode ser considerado como um identificador de
nação. Mas Vilar apontou outros caminhos: a concepção de nacionalidade ligada ao sentido
de comunidade psicológica, ou à natureza comum, isto é, à origem comum. Salientou,
também, que a consciência de 'nação' vai pouco a pouco se corporificando em Estado, sem
perder a noção de 'solidariedade de interesses'. Sob esse aspecto, segue por duas trajetórias:
vai da concepção econômica «mercantilismo» («acrescentar», «aumentar» a riqueza
do grupo, defendendo-se e em caso de necessidade mostrando-se agressivo frente a
interesses estrangeiros) à concepção política «nacionalista» (antes de tempo)
através de uma série de escritos mal ordenados, mas plenos de sentido (...).
59
Ainda, segundo Vilar, com a ascensão da burguesia mercantil, no século XVII, tem-se
a consolidação do Estado nacional e a Revolução de 1789 é o coroamento dos valores
nacionais, e patrióticos.
60
E com isso, destacou o autor, se estabeleceu "durante a Revolução
Francesa, identidade de princípios entre a defesa da Pátria e a defesa da Revolução, entre a
idéia de nação e a idéia de governo saídos da 'vontade do povo'".
61
A idéia de 'nacional'
passou a vincular-se ao sentido de liberdade e igualdade, palavras de ordem da revolução
burguesa.
Nação, dessa forma, era um conceito revolucionário nos anos do século XIX,
pretendia englobar todos, ao menos no discurso. A burguesia passou a ocupar o poder
trazendo consigo seus valores, uma nova mentalidade, um novo modo de produzir. Vilar, que
estabeleceu relação direta entre burguesia, nação e indústria,
62
via na luta empreendida por
57
Idem, Hidalgos, amotinados y guerrilleros, p. 283.
58
Idem, Iniciação ao vocabulário da análise histórica, p. 151.
59
Ibid., p. 155.
60
Ibid., p. 156.
61
Ibid., p. 157.
62
Ibid., p. 164.
24
List
63
, em defesa da indústria alemã, a força do nacionalismo e seu estreito vínculo com o
desenvolvimento capitalista.
64
Conforme Vilar, esse sentimento 'patriótico' tomou corpo por toda a Europa. O
nacionalismo apagava os interesses de grupos ou de classe, pois a nação era "o facto
fundamental e finalidade suprema, a cujo interesse o indivíduo se deve subordinar e até
sacrificar-se, e perante a qual, em princípio, devem desaparecer os interesses de grupo e os
interesses de classe."
65
Entre os anos 1871 e 1914 o fenômeno do imperialismo travestia-se
nessa ideologia 'nacionalitária'. E as conseqüências foram funestas, pois como mencionou
Vilar, se a idéia de pátria forte, de amor ao solo natal, levou, ao menos no Ocidente, à
constituição de sólidos estados-nações;
66
a ânsia de revidar ofensas sofridas por alguns países,
aliada à acirrada disputa pelos mercados mundiais trouxeram como resultado o confronto
armado entre esses estados, culminado com a Primeira Grande Guerra.
Estudo importante empreendeu o austro-marxista Otto Bauer, que também reconheceu
a "dificultad de encontrar una definición satisfactoria de nación". Mas compreendeu essa
dificuldade como historicamente condicionada, dentro de uma sociedade de classe, em que as
massas populares não estão completamente inseridas, ocorrendo uma clara cisão em que se
colocam em lados opostos as classes dominantes e os tributários da nação.
67
O autor entendia
'nação' como um processo muito específico. Ela
no manifiesta como imagen especular de las luchas históricas, pues la nación sólo se
pone de manifiesto en el carácter nacional, en la nacionalidad del individuo, y la
nacionalidad del individuo lo es una faceta de su determinabilidad por la historia
de la sociedad, de su determinación por el desarrollo del proceso de trabajo y las
relaciones de trabajo.
68
José Aricó, no prefácio de La cuestión de la nacionalidades y la social democracia,
ressaltou que em Bauer, a nação
es concebida como "comunidad de destino", como un complejo de elementos
histórico-culturales en transformación que no puede por lo tanto establecer una línea
63
Georg Friedrich List (1789-1846), economista alemão que lançou a idéia do Zollverein, base da formação
econômica da futura nação alemã. (Buarque, 1983, p. X).
64
VILAR, P. Iniciação ao vocabulário da análise histórica, p. 165.
65
Ibid, p. 165.
66
Ibid., p. 167.
67
BAUER, O. La cuestión de las nacionalidades y la social democracia, p. 143.
68
Ibid., p. 144.
25
de continuidad con el estado, del mismo modo en que la voluntad colectiva no puede
ser identificada con la voluntad abstracta del estado.
69
Nação não era, portanto, somente uma categoria natural, "sino siempre y también
comunidad cultural".
70
Discordava das correntes que vinculavam a nação à descendência de
seus membros, à língua ou à idéia de pertencimento. Nesse sentido identificou três teorias, às
quais se contrapôs. A primeira persegue a idéia do caráter nacional, das características
peculiares de cada nação e dos atributos que a distinguem das demais. Denominada teoria
metafísica, assenta-se sob dois princípios básicos: o espiritualismo nacional e o materialismo
nacional. Segundo Bauer:
El espiritualismo nacional hizo de la nación un misterioso espíritu del
pueblo, de la historia de la nación el auto desarrollo del espíritu del pueblo, de la
historia mundial una lucha de espíritus de pueblos destinados por su peculiaridad ala
mutua amistad o a la recíproca enemistad. (e) Para el materialismo nacional, la
nación es un pedazo de peculiar sustancia material que tiene la misteriosa fuerza de
generar de sí la comunidad de carácter nacional.
71
As teorias psicológicas foram a segunda corrente identificada pelo autor austríaco na
definição de nação. Trata-se, na opinião dele, da tentativa de estudiosos em buscar a essência
da nação "en la conciencia de la copertenencia o bien en la voluntad de copertenencia".
72
Ao
que Bauer denominou "psicológico-intelectualista e psicológico-voluntarista". Os que adotam
esta abordagem concebem a nação como uma idéia orientada pela 'consciência nacional', ou
seja, os indivíduos se identificam com os seus 'co-nacionais', se sentem, como salientou,
"producto de la misma historia",
73
com isso percebem diferenças entre eles e os seres
humanos de outros grupos. Nesse sentido, destacou Bauer, "una nación sería el conjunto de
aquellos seres humanos conscientes de su copertenencia y de su diversidad con respecto a
otras naciones".
74
A terceira teoria apontada por Bauer, é a chamada teoria empírica da nação que
relaciona "elementos fundamentais" para sua constituição, tais como: 1) região de residência
69
ARICÓ, J. Advertencia. In: La cuestión de las nacionalidades y la social democracia, p. XIII.
70
BAUER, O. op. cit., p. 42.
71
Ibid., p. 129/30.
72
Ibid., p. 137.
73
Ibid., p. 145.
74
Ibid., p. 145.
26
comum; 2) ascendência comum; 3) língua comum; 4) costumes e usos comuns; 5) vivências
comuns e passado histórico comum; 6) leis comuns e religião comum.
75
Considerando tais idéias insuficientes e inadequadas, Bauer iniciou seu trabalho
explicitando
un postulado metodológico que quiere plantear a la ciencia su tarea de comprender
el fenómeno de la nación explicando a partir de la singularidad de su historia todo
lo que constituye, la peculiaridad, la individualidad de cada nación, y lo que la
diferencia de las demás naciones, o sea mostrando la nacionalidad de cada individuo
como lo histórico con respecto a él y lo histórico en él.
76
Ao partir de uma concepção marxista da história, mais do que definir nação, pretendia
enfocar a descrição do "proceso de integración de donde surgió la nación moderna", pois,
conforme palavras do autor, sua maior contribuição ao estudo da nação era "el de haber
derivado por primera vez este proceso de integración del desarrollo económico, de las
modificaciones de la estructura social y de la articulación en clases de la sociedad",
77
com isso
chegou a um novo significado, entendendo-a como uma comunidade de caráter nascida de
uma comunidade de destino. Por comunidade de caráter ele apreendeu toda individualidade de
cada nação ao longo de seu processo histórico, a identidade entre os compatriotas e que
convivam na mesma comunidade de destino, sendo submetidos às mesmas forças sociais.
Comunidade de destino é o conjunto dos que compartem um caráter e arrematou: "la nación
es una comunidad de destino".
78
No Brasil, autores como Almeida e Saes produziram trabalhos significativos ao
relacionar a questão nacional com a questão da ideologia e com o conceito de Estado,
respectivamente.
Em Ideologia Nacional e Nacionalismo, Almeida, fortemente influenciado pela
abordagem poulantzana, empreende, no interior do debate marxista, uma análise da ideologia
nacional fundamentalmente por uma dupla articulação: com a estrutura do aparelho de Estado
burguês e com as relações de produção capitalistas.
79
Antes de tudo, descarta a "comunidade
nacional como uma entidade natural".
80
Insere a discussão no debate marxista e analisa nação
75
BAUER, O. op. cit., p.137.
76
Ibid., p. 14.
77
Ibid., p. 19.
78
Ibid., p. 121.
79
ALMEIDA, L. F. Ideologia nacional e nacionalismo, p. 16.
80
Ibid, p. 15.
27
sob a perspectiva de dominação ideológica de classe, estabelecendo um vínculo intrínseco
entre nação e capitalismo.
O autor procura se distanciar das vertentes 'objetivistas', tanto aquelas orientadas pelo
materialismo histórico, que vinculam nação à análise da determinação mercantil, quanto
àquelas de influência weberiana, que estabelecem uma íntima relação entre nação e indústria.
Afasta-se também da vertente voluntarista, "que concebe a nação como expressiva da vontade
de classe da burguesia".
81
E, visando destacar as 'determinações superestruturais da ideologia
nacional', Almeida recorre a O Capital para demonstrar que, no modo de produção capitalista,
a relação entre "proprietários e não proprietários dos meios de produção aparece como uma
relação entre indivíduos" e que esta representação é condição precípua para o "próprio
processo de reprodução desse tipo de sociedade". Isto porque, salientou:
a separação produtor direto meios de produção, que engendra a concentração de
capital e a socialização do processo de trabalho, constitui, no plano jurídico-político,
os agentes da produção como indivíduos, "apagando" sua determinação de classe.
82
Tal separação, entre o produtor e os meios de produção, encontra, segundo o autor,
"correspondência em uma estrutura jurídico-política que constitui os trabalhadores diretos no
capitalismo como sujeitos", possibilitando uma "relação de igualdade com os proprietários do
capital".
83
É essa particularidade do modo de produção capitalista que, segundo Almeida, permite
a constituição da nação. Nesse sentido, considera nação uma categoria ideológica, pois ela
representa um espaço da igualdade, ocultando relações de dominação de classe.
84
Por ligá-la
tão umbilicalmente ao capitalismo é que Almeida rejeita as proposições de Bauer tanto no que
diz respeito à trans-historicidade da nação, quanto à interpretação de que o capitalismo é "o
lócus menos apropriado para apreensão do fenômeno nacional em seus contornos mais
nítidos".
85
Para Almeida, a constituição dos membros da sociedade como indivíduos proprietários
livres homogeneíza a nação, imprimindo-lhe um aspecto de "comunidade de iguais",
destacando seu "caráter universalístico". Contudo, o autor não negligenciou um outro aspecto
81
Ibid., p. 23.
82
Ibid, p. 27.
83
Ibid., p. 27.
84
Ibid., p. 34.
85
Ibid., p. 17.
28
da nação, a sua face única, a sua singularidade, lembrando o vínculo mítico entre território e
povo, Almeida destaca que os limites geográficos adquirem "uma importância primordial" na
configuração particular da nação.
86
Em Ideologia nacional e nacionalismo, o autor distingue Estado de nação e de
nacionalismo. Este seria "um determinado modo de apropriação/questionamento do
fetichismo do Estado burguês".
87
O nacionalismo, salienta o autor, é algo muito peculiar, pois
se trata da "apropriação da ideologia nacional", e essa apropriação, de alguma forma,
questiona a legitimidade de um "Estado burguês já constituído".
88
Para expressar a reprodução
dessa ideologia, Almeida cunhou o termo nacionismo, entendido como o conjunto das
práticas que traduzam e multipliquem os sentimentos dos indivíduos de uma comunidade
singular.
Entendendo o nacionalismo como 'sintoma' de uma questão nacional, Almeida destaca
que este fenômeno ocorre tanto no interior de formações sociais capitalistas constituídas
como em formações sociais não dominadas por este modo de produção. Neste sentido, não
somente eclodem nacionalismos sem nação, mas também, o nacionalismo pode justamente ser
fundamental para o processo de constituição desta "comunidade de cidadãos".
89
Outro aspecto levantado pelo trabalho de Almeida refere-se ao papel do Estado na
constituição/reprodução das relações econômicas do capitalismo. Ainda se orientando nos
trabalho de Marx e influenciado pelas contribuições althusserianas, o autor mostra com
clareza que o processo capitalista de reprodução, ao distinguir os agentes da produção como
indivíduos, assim como a idéia de nação, apaga sua determinação de classe. Essa
descaracterização da relação entre classes sociais dissimula uma condição de dependência, em
que a classe trabalhadora, ligada ao capital por "fios invisíveis" é um acessório deste, mesmo
fora do processo de trabalho.
90
Nessa perspectiva, o conceito de Estado e nação se imbricam,
pois:
Se o processo de produção capitalista não reproduz indivíduos-sujeitos, mas classes,
são as estruturas do Estado burguês que liberam e atomizam juridicamente os
membros do proletariado, tomando aqueles fios "invisíveis". A constituição (que é
também mistificação) dos sujeitos individuais característicos das sociedades
86
Ibid., p. 36.
87
Ibid., p. 50.
88
Ibid., p. 50
89
Ibid., p. 53.
90
Ibid., p. 29.
29
capitalistas não é, portanto, a constituição do indivíduo proletário, membro de uma
classe distinta e antagônica. É, em primeiro lugar, a constituição do cidadão.
Em segundo lugar, as estruturas do Estado burguês não constituem proletariado,
classe explorada e oprimida dentro e fora do processo de produção capitalista; elas
"dissolvem" o proletariado em um coletivo de cidadãos-proprietários (jurídicos). O
Estado não aglutina os portadores da força de trabalho em um coletivo de classe; ele
aglutina cidadãos em um coletivo nacional. Portanto, a igualação efetuada a partir
das estruturas do Estado capitalista que produzem o cidadão é distinta daquela
que, a partir das relações de produção, constitui o proletariado.
91
Saes, ao conceituar Estado burguês, relaciona-o umbilicalmente com nação, e afirma
que esta significa uma forma de coletividade imposta pelo Estado burguês aos agentes da
produção antagonicamente relacionados no processo de extorsão da mais-valia.
92
Trata-se de
um coletivo oposto à classe social que, de um lado, unifica os agentes da produção isolados
no mercado e, de outro, reproduz esse isolamento, ao impedir a formação de um coletivo na
esfera da produção. Tal coletividade que se define como o interesse comum, de todos os
agentes da produção produtores diretos e proprietários dos meios de produção –, em se
estabelecerem como habitantes de um espaço geográfico delimitado, o território, é o Povo-
Nação.
93
O resgate, de forma mais geral, nas Ciências Sociais, do debate sobre a nação, fornece-
nos subsídios para analisar as formulações explícitas ou implícitas de Manoel Bomfim e de
Paulo Prado e contextualizar historicamente o trabalho desses autores. Permite ainda,
compreender melhor como essa noção se insere e se redefine em suas obras. Desta forma, nos
auxilia a apreender a visão de dois brasileiros com enfoques ideológicos divergentes,
resultando em Brasis opostos (reais/irreais ou possíveis/impossíveis), em dois países que não
se reconhecem.
2. Nação no trabalho de Manoel Bomfim e de Paulo Prado.
Manoel Bomfim, médico por formação, era um cultor das questões nacionais.
Produziu quatro obras de história sociológica: América Latina: males de origem; O Brasil na
América: caracterização da formação brasileira: O Brasil na historia: deturpação das
tradições, degradação politica e o Brasil nação: realidade da soberania brasileira. E, se
nos títulos estampou seu sentimento, nas dedicatórias revelou suas razões. A primeira foi
91
Ibid., p. 39.
92
SAES, D. Estado e democracia: ensaios teóricos, p. 30.
93
Ibid., p. 30.
30
dirigida a "Sergipe: pedaço de terra americana em que nasci",
94
as demais se dirigiam
memória de Frei Vicente Salvador, primeiro definidor da tradição brasileira",
95
"aos heroes e
martyres de 6 de Março de 1817 homenagem brazileira e livre";
96
e glória de Castro
Alves – potente e comovida voz da revolução".
97
O aspecto mais destacado pelos estudiosos que se debruçaram sobre sua obra foi o seu
nacionalismo. Nas palavras de Aguiar, "Bomfim era nacionalista, mas nada tinha de ufanista",
ele não sustentava uma visão otimista da nação brasileira, nos moldes de Afonso Celso. Seu
nacionalismo tampouco era raivoso: "era uma busca permanente de caminhos".
98
Sua produção histórico-sociológica ficou caracterizada como um 'contra discurso', em
relação às idéias da maioria dos intelectuais de seu tempo. Seus escritos buscavam refutar a
imagem negativa que as nações "ricas" tinham dos países latino-americanos, especialmente do
Brasil, e negar as teorias que nos colocavam em condições de inferioridade em relação aos
países europeus e aos Estados Unidos.
Paulo Prado, diversamente de Bomfim, que dedicou boa parte de sua vida aos estudos
acadêmicos, era um grande empresário, ligado ao setor agro-exportador. Percorreu o mundo,
leu muito e na idade adulta "descobriu o Brasil". Escreveu dois livros e, como ele mesmo
manifestou, são ensaios. No primeiro Paulística - analisou a formação de São Paulo e no
segundo – Retrato do Brasil examinou o país como um todo. Se em Paulística deixou claro
que se tratava de "um livro de estudos regionais";
99
em Retrato do Brasil, fez questão de
declarar o contrário: ressaltou que seria forçoso reconhecer-lhe a qualidade de não ser
regionalista.
100
Assim, Paulo Prado iniciou sua "carreira" intelectual beirando os cinqüenta anos de
idade. Na interpretação de Calil, o que o levou a dedicar-se aos estudos históricos, além do
amor pelo seu país, foi o "gosto pela autenticidade para além das aparências e a busca
94
BOMFIM, M. América Latina: males de origem, p. 3.
95
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 7.
96
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 5.
97
Idem, O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, p. 7.
98
AGUIAR, R. C. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim, p. 504.
99
PRADO, P. Paulística etc., p. 45.
100
Idem, Retrato do Brasil, p. 184.
31
incansável dos elementos que determinam os traços de nossa identidade como nação".
101
Em
Retrato do Brasil o autor dá uma pista sobre seus motivos, ele viajou ao passado para
entender as razões de seu país. E isso o levava a encarar a
história não como uma ressurreição romântica, nem como ciência conjetural, à
alemã, mas como um conjunto de meras impressões, procurando no fundo
misterioso das forças conscientes ou instintivas as influências que dominaram, no
correr dos tempos, os indivíduos e a coletividade.
102
Fato bem percebido por Carlos Calil, foi que Paulo Prado "como outros intelectuais de
sua classe, antes e depois dele, descobriu a própria terra em Paris umbigo do mundo".
103
Mas o autor aceitou esse "cosmopolitismo" chegou a dizer que "o culto da pátria ausente
conheci-o eu forte e constante nesse grupo de espíritos privilegiados; neles a vida no
estrangeiro apurava o patriotismo".
104
A partir daí resolveu "assumir" sua pátria. Revelou-se
um nacionalista e confessou o sentimento cívico em seu primeiro livro, ao afirmar que
quando mais moço:
a Europa nos interessava (...) Lembro-me da injustiça que cometi várias vezes ao
partir, deixando com indiferença na sombra da tarde a última linha das montanhas
do Brasil (...) O amor às coisas trias, ao seu passado, ao mistério dos primitivos
habitantes, à sedução do Brasil brasileiro dos sertões do Nordeste – terra da coragem
e da poesia –, o amor a toda a vida estuante e fresca do país adolescente, ao que
constitui o orgulho e patrimônio de uma nacionalidade – tudo entregávamos ao
grupo, quase ridículo, dos sábios dos nossos institutos.
105
Se a brasilidade de Prado foi ser despertada em continente europeu, a percepção
nacional de Bomfim foi adquirida "na lida". Muito cedo foi lançado à rotina do trabalho e
muito cedo, também, desfrutou de intensa convivência com escravos. Tornou-se um
intelectual por esforço, dedicação e interesse aos estudos. Pouco viajou ao exterior e numa
experiência de viagem produziu seu primeiro livro – América Latina: males de origem.
Vivenciando outra realidade, Prado, depois de avivado seu pendor nacionalista, nos
narra Calil, retornou à pátria, tendo em mente o projeto de "investigar as origens da
nacionalidade para embasar um orgulhoso nacionalismo" (...).
106
Nacionalismo este que, ainda
nas palavras de Calil, o autor entendia "como o processo de tomada de consciência das
101
Ibid., p. 10.
102
Ibid., p. 186.
103
CALIL, A. Introdução e cronologia. In. Retrato do Brasil, p. 10.
104
PRADO, P. Paulística etc., p. 239.
105
Ibid., p. 56.
106
Idem, Retrato do Brasil, p. 10.
32
limitações e virtualidades do corpo social que permitiria 'romper os laços que nos amarram
desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada'".
107
Nacionalismo, que se
contrapunha ao otimismo do conde Afonso Celso em Porque me ufano de meu país.
Sentimento patriótico não romântico, de um pensador que, nas palavras de Nogueira "queria
ser uma voz dissonante, inserir-se nas correntes
108
que batalhavam pela gestação de um novo
país, sintonizado com o ritmo e o sentido da modernidade".
109
E foi esse nacionalismo tardio do paulistano que o fez repensar a nação, retrocedendo
ao período colonial, voltou-se primeiramente a São Paulo, para em seguida se estender ao
resto do país. Buscou no passado a compreensão do Brasil do seu presente, como evidenciou
no Post-Scriptum: "(...) alongar a vista pelo Brasil todo, pelos outros Brasis, onde com
freqüência se encontra o segredo do passado e a decifração dos problemas de hoje".
110
Em Bomfim, o significado de nação aparece multifacetado, uma vez que ele jogava
com o conceito: às vezes o confunde com pátria, outras, com nacionalismo ou
nacionalidade
111
. Ora é algo concreto, ora bastante abstrato, como no livro América Latina,
em que ele afirmou que "a pátria é um sentimento e é um fato; pois que nos sentimos fazer
parte de um meio social, temos uma pátria (...)";
112
ou, ainda, a idéia de nação se aproximava
também da de "uma sociedade soberana de povo independente".
113
Nesta tentativa de
mapeamento conceitual, podemos encontrar um dos eixos centrais da empreitada teórica de
Bomfim, destacando-se a recusa em naturalizar a nação.
É claro que este esforço solitário, e empreendido em um ambiente intelectual adverso,
não é desprovido de deslizes, quando se reporta ao processo de formação da Espanha, Manoel
107
PRADO, Paulo. "Poesia Pau Brasil", loc. cit., p. 110. Citado por Calil, In. Retrato do Brasil, p. 11.
108
Conforme ressaltou Baggio (A outra América: a América Latina na visão dos intelectuais brasileiros das
primeiras décadas republicanas, p 29/30), o darwinismo social oferecia uma visão muito pessimista quanto às
possibilidades futuras do Brasil, como contraponto a ele cresceu nos primeiros anos do século XX uma corrente
adepta do ufanismo nacionalista contando com Olavo Bilac e Afonso Celso como seus principais ícones. A
essência desse pensamento ufanista nacionalistas era a leitura romântica e apaixonada do Brasil, que enaltecia as
suas belezas naturais.
109
NOGUEIRA, M. A. Paulo Prado: Retrato do Brasil. In: MOTA, L. D. (org.). Um banquete no trópico (1), p.
194.
110
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 185.
111
E por pátria Bomfim entendia "o solo político", por nacionalismo, 'sentimento essencial e básico na
organização social' e por nacionalidade, o 'povo', a 'tradição' Bomfim, 1997, p. 328-30. Em América Latina ele
diz que "uma nacionalidade é o produto de uma evolução" (Bomfim, 1993, p. 52).
112
BOMFIM, M. América latina: males de origem, p. 34.
113
Ibid., p. 44.
33
Bomfim narra todas as lutas que, ao longo de oito séculos, se travaram na Península Ibérica
até o desfecho vitorioso que,
nos fins do século XV, a Espanha está constituída nação moderna, livre, organizada,
vitoriosa e à custa dos seus próprios esforços. (...) (De todos os povos) ela fizera
uma nacionalidade única, perfeitamente caracterizada, homogênea e forte. Foi um
cadinho de povos e raças, tradições e costumes.
114
Na ânsia de resgatar valores que enobrecessem as origens pátrias do Brasil, Manoel
Bomfim incorre em claro anacronismo, enxergando uma nação espanhola moderna em pleno
século XV, justamente na Espanha que até hoje representa um complicado cenário para a
nação. Como observa Hobsbawm, “o sentido moderno da palavra não é mais velho do que o
século XVIII”.
115
Mas não se podem ignorar as imensas diferenças de época e condições de
trabalho científico em que os dois autores elaboraram suas formulações.
Manoel Bomfim abriu o livro O Brazil na historia,
116
declarando que buscava
"apreciar as condições feitas à Nação (...) que turbaram o proseguir da nacionalidade
brazileira"; nesse sentido, "nacionalidade" é a formatação, é o desenvolvimento da nação. Em
outras palavras, "é a própria alma de um povo capaz de ser soberano".
117
Por isso, os
significados se confundem, se misturam, porquanto:
A nacionalidade, mesmo por entre revoluções, é a legítima continuidade de
um povo; nela esa ordem positiva, que é a ordem ativa, racionalidade na sucessão
das crises, identidade dos fins, sucessão dos motivos. Tradição consciência da
nacionalidade é, para a coletividade, como a consciência lúcida para o indivíduo.
(...) No mundo antigo, onde não havia equilíbrio de nações, também não havia
nacionalidades (...) Se, por insistentes desvirtuamentos, não se permite que as
tendências íntimas da nacionalidade venham a ter expressão, as suas energias
essenciais não se expandem, e o povo está condenado a não manter o caráter em que
se definiu nacionalmente; terá de desaparecer noutras tradições políticas. Uma nação
evolui como evolui cada pessoa, mantendo a essência de si mesma. (...) A prova
definitiva da realidade de uma nação é ter a sua evolução própria, em relação com as
suas tradições.
118
Bomfim valorizava as lutas nacionais, entendia que a defesa da nacionalidade devia
ser comum a qualquer agrupamento humano e significava a afirmação da pátria. No entanto,
isto não era o bastante. Considerava que:
para dar valor a uma nação, é indispensável uma cultura geral, inspirada nas
condições da terra, ao influxo das suas tradições essenciais o preparo do homem,
114
Ibid., p. 72.
115
HOBSBAWM, E. J. Op. cit., p. 13.
116
BOMFIM, M. O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 7.
117
Idem, O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, p. 137.
118
Ibid., p. 137/8.
34
para o meio que lhe é dado, no sentido da vida que ele vem trazendo, (...) [pois que]
a nação é o homem, elemento essencial dela.
119
As tradições assumiam importância significativa na constituição da nação. Em O
Brasil na América, observava que socialmente um povo, uma nacionalidade é uma
tradição;
120
em O Brazil na historia, destacou que "a tradição é factor essencial na affirmação
da nacionalidade",
121
e mais, a tradição vale como consciência nacional,
122
e a consciência
nacional era base para a nação. É inegável a relevância que Bomfim atribui à 'tradição', o que
talvez ele não levasse em devida conta é como essa 'tradição era criada e mais as
diferentes e contraditórias formas de apropriação da 'tradição'.
Nação era ainda, "um mundo de inteligências morais" em que se "espande uma
tradição que é a própria physionomia social do grupo".
123
Nação, portanto, era uma categoria
sociológica, um conceito que devia traduzir as particularidades de um povo frente aos demais,
uma idéia que o especificava, tornando-o único. Nação era o foro privilegiado para a
efetivação das tradições. E, como, para Bomfim não podia haver organização social sem o
agrupamento nacional, o nacionalismo adquiria significado capital, visto que ele é
sensibilidade, é condição natural necessária para a realização da sociedade humana, é a
consciência de um povo, a confiança íntima no destino da nação, um grupo social com
tradição nacional é nacionalista.
124
Considerava, o sergipano, que "na formação das tradições, para o definir das
nacionalidades, tudo se resolve em diferenciações históricas",
125
logo, é na história que se
devem procurar as características nacionais de cada sociedade. Por isso, afirmou: "toda nação
tem o seu caracter, cuja expressão formal se encontra na respectiva historia".
126
E, conforme
salientou, a história é o registro de cada tradição,
119
Ibid., p. 258.
120
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 328.
121
Idem, O Brazil na história: deturpação das tradições, degradação política, p. 110.
122
Ibid., p. 73.
123
Ibid., p. 36.
124
Ibid., p. 172-4.
125
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 39.
126
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 25.
35
é o campo onde se travam todos (...) combates de que resulta a victoria de umas
instituições sobre as outras, de classes e de doutrinas (...) no final toda a história se
reduz a contenda de tradições (...).
127
E, concluiu que a história é a expressão exagerada da grandeza nacional e a tradição,
que está expressa na história, é o espelho do desenvolvimento de uma nação, que reflete o
passado e revela o futuro.
128
A formulação de Prado é mais incisiva, o amor pelo Brasil e, sobretudo, o orgulho que
tinha do Planalto de Piratininga, estão estampados em sua primeira publicação Paulística,
compilação de uma rie de artigos de jornal, que era embrionariamente uma dissertação
sobre o Caminho do Mar, mas que pouco a pouco ganhou corpo, tornando-se uma análise de
São Paulo.
Escolheu a própria terra, pois entendia que não era possível "compreender a história do
Brasil sem conhecer a história de São Paulo, assim como a da Bahia, ou de Pernambuco, ou
de Minas Gerais".
129
Não se pode dizer que seja um livro laudatório, mas procurou distinguir
sua cidade do resto do país. Enxergou na pobre Piratininga, cedo, indício de sua vocação para
uma grande cidade, por isso, endossou as palavras de Oliveira Martins, quando este afirmou
que "no século XVI, a região de São Paulo apresentava os rudimentos de uma nação".
130
E o
fez porque, embora atrasada, via a cidade com "predestinação histórica e geográfica da
evolução nacional".
131
É a partir de São Paulo que formula a questão nacional.
Para ele, São Paulo tinha a unidade essencial de uma organização as bandeiras eram
uma empresa; havia identidade da população com a terra – o altiplano isolou a cidade,
gerando um tipo étnico diferenciado, sem a influência da metrópole ou do litoral;
132
e assim,
São Paulo apresentava, dentro da colônia, uma história única.
Mas, se o paulistano era mais conciso em suas formulações e mais objetivo em seus
sentimentos, Bomfim era mais romântico. Ele concebia o nacionalismo como um sentimento
simples, instintivo, essencial e básico na organização social. Em seu trabalho, muitas vezes
127
Ibid., p. 37.
127
Ibid., p. 37.
128
Ibid., p. 38.
129
PRADO, P. Paulística etc., p. 45.
130
Ibid., p. 86.
131
Ibid., p. 200.
132
Ibid., p. 86.
36
nacionalismo se confunde com patriotismo, que, embora não seja a base das organizações
político-sociais, é indispensável para a garantia de sua existência.
133
Considerava que o
patriotismo conduz a formação, a medida das energias primeiras de um povo e o
sentimento nacional é o apego necessário do animal ao ambiente em que está acostumado.
134
No pensamento de Bomfim, é nítida a influência da época em que vivia. Época essa, na qual
predominava uma concepção cientificista da realidade e tendo as teorias evolucionistas de
Darwin como parâmetro da análise social.
No julgamento de Bomfim, "a humanidade se realiza concretamente em pátrias",
135
e
é o resultado das relações sociais e do momento histórico:
Não humanidade abstrata. Como socialização imediata, existimos numa
tradição nacional; e é nas suas perspectivas que compreendemos a solidariedade
humana, de que participarão os nossos destinos. (...) (patriotismo) é a fórmula
afetiva de defesa e solidariedade nacional (...) reconhecemo-nos na idéia nacional, e
sentimos patrioticamente, pois que somos humanos.
136
E, pela ótica do nacionalismo, elogiava a formação histórica de Portugal por ter se
adiantado em relação às demais formações sociais européias, defendia que esse germe foi
herdado pelo Brasil. Por isso, conseguimos manter a unidade territorial, enquanto o resto do
continente latino-americano se dividiu em várias unidades políticas. Ele descartava qualquer
nacionalismo de cunho separatista, louvou os portugueses pela sua plasticidade e capacidade
de misturar-se com demais povos, o que nos leva a concluir que ele não aceitaria o critério de
língua, religião, etnicidade ou outros para definir nacionalidade.
Bomfim, quando falava em nação, sempre manifestou sua preocupação com os
sentimentos morais, dessa forma, entendia a nação como a tradição, em que os povos se
reconhecem e o sentimento de coesão e de solidariedade moldam as consciências. Ou ainda,
distinguia a nação como um "concreto de relações sociais aproximado na afinidade das
consciências" que permitia a seus membros o reconhecimento na "idéia nacional" e no
sentimento patriótico.
137
Percebe-se que nação para Bomfim é o resultado da especificidade de cada povo,
dentro de um processo histórico. Bauer falou de caráter nacional como um "complexo de
133
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 329.
134
Ibid., p. 329.
135
Ibid., p. 330.
136
Idem, O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, p. 553.
137
Idem, p. 553.
37
características físicas e mentais que distinguem uma nação da outra".
138
Muito embora
possível, não indícios de que Manoel Bomfim tenha lido a obra do escritor austríaco, pois
para o sergipano, o caráter nacional brasileiro, nossa particularidade, era dado pela
miscigenação, "uma situação étnica específica de acentuada mistura, como não poderia existir
nas colônias travadas em preconceito de raças".
139
Mas não a mistura de raças nos tornava
incomparáveis: a própria formação da nação era ímpar. Logo de início, tiveram os brasileiros
de lutar contra franceses e holandeses pela posse do território, "para conservar unidade de
origem e de consciência".
140
Em seguida os bandeirantes redesenharam o país, expandindo as
fronteiras e tudo isso "teve uma forte significação no caráter da nova nacionalidade".
141
Outro critério difundido na definição de nação é o conceito voluntarista, "doutrina que
aponta a essência da nação no desejo de unidade e liberdade políticas".
142
Não foi esta a
orientação dada por Bomfim, ele tinha clara a importância das circunstâncias históricas. Sabia
que o Brasil se inseriu nos quadros mundiais como conseqüência da expansão capitalista.
Quando as grandes nações buscavam mercados consumidores e/ou fornecedores de matéria-
prima, os grandes navegadores se lançavam aos mares e se fizeram presentes em todos os
continentes e valores como língua, religião, cultura entraram em choque. Embora pudesse
haver troca, tanto no sentido mercantil, quanto no entrosamento cultural, nem sempre poderia
representar uma organização social. Mas viu no português em terras americanas uma profunda
fusão, de onde surgiu uma nova nação – o Brasil, e um novo tipo humano – o brasileiro.
A língua, a cultura a religião já foram descartadas como parâmetro de pátria, o que nos
leva a concluir que o sergipano entendia a nação como a essência das relações sociais. Nação
era a própria sociabilidade humana, pautada pelas tradições e pela consciência nacional, o que
o coloca mais próximo das teorias psicológicas da nação. Ele via a nação como a expressão
da democracia e da soberania popular.
Numa visão totalmente oposta, é curioso perceber a pouca relevância dada para o
elemento "povo" na obra de Prado. A nação mais parece um artefato do acaso, era um "grande
138
BAUER, O. A nação. In: BALAKRISHNAN, G. (org.). Um mapa da questão nacional, p. 46.
139
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 35.
140
Ibid., p. 35.
141
Ibid., p. 35.
142
BAUER, O. op. cit., p. 76.
38
milagre" existir o Brasil até o século XX
143
e, na sua fala, é sensível a repulsa pelo nacional.
Ele demonstra afeto pelo Brasil, mas se cala em relação ao brasileiro. Seu modo de retratá-lo
é profundamente classista. Em Retrato do Brasil referindo-se a um relato de Martius, fala da
população como "uma mescla fantástica, a exibição de todos os estados sociais e de todas as
raças".
144
E, por fim, prediz para esse novo homem, esse mestiço, "os triunfos de seu destino,
ou (...) uma desilusão e um desastre na realização de sua finalidade histórica e geográfica".
145
É claro que ocorre o oposto com Bomfim, na sua obra, o brasileiro assume vital importância
na construção da nação. Nos trabalhos de sua maturidade ele asseverou n'O Brasil nação que
"antes que uma nação exista em plena vida, tem que ser edificada". Em seguida indagou:
"Como foi feito o Brasil? Por quem foi edificado?"
146
E n'O Brasil na América, ressaltou que
quem fez o Brasil foram os brasileiros,
147
e os brasileiros eram, segundo suas palavras, a
expressão do "contínuo caldeamento de raças, numa explícita combinação de energias e de
tradições".
148
Em O Brazil na historia assinalou que o Brasil se congregou com o "povo
unificado em sentimento de nacionalidade affirmada em provas explicitas".
149
Para Bomfim,
Desde que se manifestou em qualidades próprias, o povo brasileiro
demonstrou possuir os dons essenciais para ser uma nação – espírito de união,
solidariedade patriótica, cordialidade nas relações internas.
150
Prado não acreditava neste povo miscigenado, o que talvez tenha contribuído para
ater-se com mais ênfase na história de São Paulo. A cidade que ficara isolada no "altiplano,
defendida do contagio europeu",
151
que sofreu influência do sangue judaico, a cidade, cuja
população era o resultado dos primeiros colonos com o nativo, resultando o bravo mameluco.
Orientando-se pela história de São Paulo, Prado debruçou-se na história do país, com
Retrato do Brasil. Conforme salientou Berriel, em Retrato do Brasil o autor resgata idéias
abordadas em Paulística e isto não é casual, pois "indica a idéia de que a história do Brasil
143
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 199.
144
Ibid., p. 162.
145
Ibid., p. 163.
146
BOMFIM, M. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, p. 52.
147
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 333.
148
Ibid., p. 327.
149
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 147.
150
Idem, O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, p. 57.
151
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 159.
39
depende da história de São Paulo".
152
O paulistano assinalou que, cem anos depois de
descoberto, o Brasil era formado por uma sociedade informe e tumultuária que ocupava o
vasto território.
153
E não mudara, porquanto 200 anos depois, "a colônia, ao iniciar-se o
século de sua independência, era um corpo amorfo, de mera vida vegetativa, mantendo-se
apenas pelos laços tênues de língua e do culto".
154
Novamente, Prado revela sua inquietação frente à questão nacional. Na apresentação
de Paulística apropriou-se das palavras de Renan para afirmar que nação é "um plebiscito
continuado dia a dia".
155
E arrematou: "Sem o amor às coisas públicas, os agrupamentos
gregários de milhões de cabeças não possuem a vontade de convivência e coesão, que são os
caracteres fundamentais do Estado Nacional".
156
Nesse sentido, a concepção de nação segue por dois caminhos na pesquisa de Paulo
Prado. O primeiro é aquele que considera a língua e a religião, como indicação de vínculos
coletivos, indícios de nacionalidade. O segundo encara nação como uma "vontade da
convivência", a concepção voluntarista de nação. Contudo, outras demarcações nacionais,
além de língua e culto foram ressaltadas por ele, como constituintes de uma nação. São eles: a
história, "cada povo que pretende ser mais do que uma simples aglomeração humana deve
possuir o seu patrimônio histórico";
157
a unidade nacional entendida como o "problema
magno de nossa formação";
158
os regionalismos porque "constituem a parte viva e plástica
em que se conservam e se desenvolvem a variedade e a originalidade do complexo
nacional".
159
Assim, por meio da análise de seus textos é possível apreender que nação para Paulo
Prado era muito mais do que a mera organização social e política. Significava a consciência
dos fatos históricos de um povo, o conhecimento geográfico das suas limitações de território,
152
BERRIEL, C. E. O. Tietê, Tejo e Sena: a obra de Paulo Prado, p. 126.
153
PRADO, P. op. cit., p. 87.
154
Ibid., p. 160-1.
155
RENAN, J. E.. 1823-1892. Qu'est-ce que c'est une Nation? Conferência feita na Sorbonne em 11.3.1882.
Citado por Hobsbawm: Nações e nacionalismo, p. 23 e 108.
156
PRADO, P. Paulística etc., p. 62-3.
157
Ibid., p. 46.
158
Ibid., p. 50.
159
Ibid., p. 53.
40
aliados ao princípio cooperativo, à disciplina e à religião. No caso do Brasil, some-se ainda, a
importância da fusão das "três raças" resultando num novo tipo étnico.
3. Formação nacional brasileira na análise de Manoel Bomfim e de Paulo
Prado.
No intuito de melhor compreender o seu país, Manoel Bomfim, em O Brasil na
América, foi buscar nas raízes portuguesas os valores pátrios, que seriam incorporados
posteriormente em seus trabalhos. Dentro da Europa, distinguiu Portugal, que "inventou" uma
nação e enxergou naquela organização social qualidades nacionais. Enalteceu o português, a
contribuição branca para a formação étnica do brasileiro. Lembrou do Portugal heróico, das
virtudes lusitanas que foram o germe do Brasil, dos feitos portugueses que construíram um
império, no início da Era Moderna. Consolidava-se a sua idéia de nação, pautada em valores
como vitória e conquista. Portugal foi pioneiro nas navegações e nas grandes descobertas,
venceu os mares, pois "o português teve que fazer do Atlântico desconhecido o seu
domínio".
160
Da mesma forma abraçou o comércio a longa distância. Em tudo o pequeno reino se
sobressaía, em tudo se fez grande e poderoso; mas "o mesmo destino que o levou à grandeza,
condenou-o à decadência".
161
E ressaltou que foi o mercantilismo que transformou o
português em um homem "sequioso de gozos brutais ou materiais", menos interessado nas
coisas do espírito e avesso à meditação. Buscava o ganho fácil, e o ócio garantido pela
fortuna,
162
e "a grande obra se abateu, roída pelo parasitismo, amesquinhado na ganância
mercantil".
163
A exaltação ao reino lusitano era uma forma de enaltecer as origens brasileiras. Daí a
insistência do sergipano em atribuir valores positivos aos feitos do povo português, desde sua
formação, que segundo ele,
guardavam o seu valor intrínseco; mas desde cedo, a tradição lhes acentuou o caráter
numa divergência de formas que, ao expandirem-se, diferenciaram-se de mais em
160
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 55.
161
Ibid., p. 39.
162
Ibid., p. 79.
163
Ibid., p. 49.
41
mais, até firmarem-se em feição perfeitamente distinta, inconfundível, e, por muitos
aspectos, contrastante com o caráter nacional dos outros iberos.
164
Depois de extensa caracterização da nação portuguesa, destacando o que havia de
melhor naquele país, Bomfim se voltou à análise da formação brasileira. Mostrou que o
português foi aqui um germe que semeou por nossa gente toda sua grandeza e bravura. Numa
metáfora de uma árvore frondosa, afirmou que desgalhamos de Portugal, e, assim, originários
de uma gloriosa nação, também poderíamos ser grande. Dizia que começamos bem, a
nacionalidade brasileira é a primeira a se formar, fomos a primeira nação da América.
Segundo Bomfim, por causa do desejo de lucro vulgar "o Brasil ficou oficialmente
abandonado, quase que esquecido, no afã de arrecadar-se o que o Oriente oferecia".
165
E
descreveu a costa brasileira ocupada pelas populações num sistema de simples feitorias;
todavia, argumentou, reconhecendo Portugal a transitoriedade e fragilidade desse sistema,
buscou de outra forma tomar posse da terra. Foi então que surgiu a escolha da ocupação por
meio das capitanias, estrutura em que, acreditava ele, "gente escolhida com valor e com
intuitos" era selecionada, pois se objetivava constituir os núcleos formadores da
nacionalidade.
166
Bomfim recuperou de Martius a idéia de que "o português que no princípio
do século XVI emigrava para o Brasil, levava consigo aquela direção de espírito e coração,
que tanto caracterizava aqueles tempos" (...).
167
Os primeiros colonos, que para Prado não passavam de degredados, eram aos olhos de
Manoel Bomfim, vítimas de uma injustiça histórica, pois considerava que a má fama deles era
resultado de preconceito que merecia ser retificado. Primeiro, porque era comum naquela
época usar as colônias como lugar de desterro, segundo, porque embora tenha vindo alguns
condenados junto com colonizadores, estes eram em pequeno número; e por último, de se
considerar os motivos que poderiam levar um homem ser punido pela corte e, por fim
salientou que "Camões foi um degredado naqueles tempos".
168
Esses portugueses pioneiros,
na análise de Bomfim, eram marcados pela solidariedade e tenacidade, ânimo da pátria, o
sentimento de fazerem um novo país.
169
164
Ibid., p. 45.
165
Ibid., p. 84.
166
Ibid., p. 87.
167
Martius citado por Bomfim em O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 83.
168
BOMFIM, M. op. cit., p. 89.
169
Ibid., p. 88.
42
Considerava o colono formador dotado de virtudes, pois a Índia o havia depurado e
vieram para cá, aqueles que "convinham às necessidades da nação".
170
No relato de Bomfim,
esses aventureiros vinham com o intuito de se fixar na terra, de desenvolver a lavoura,
de conquistar a natureza e não com o cúpido afã de levantar a riqueza feita,
saqueando, extorquindo de qualquer forma. Onde quer que ficassem, eram energias
fecundas em que a terra se refazia no ânimo de uma verdadeira pátria.
171
Portanto, na interpretação do sergipano, eram os primeiros colonizadores, valorosos,
tenazes, tinham amor pelo solo natal, "compreensão nítida da existência nacional, (e) hábito
de atividade disciplinada", traziam consigo a idéia de pátria com o intento claro de "fazerem
um novo país".
172
Para ele, dos primitivos núcleos populacionais surgiram os sistemas de
milícias, que desempenharão papel fundamental na defesa de terra na luta contra
estrangeiros.
173
E a luta pelo território seria de vital importância para a formação do Brasil, na
concepção do sergipano.
174
Embora Prado reconhecesse o êxito lusitano das navegações, a iniciativa coube, nos
descobrimentos, ao "homem aventureiro, audacioso e sonhador, livre",
175
e do "edifício que a
energia lusitana levantara, realizando o sonho ambicioso do Homem de Sagres",
176
ele não
perquiriu os louros de Portugal. Preferiu destacar a decadência da nação lusitana. Dentre os
fatores que levaram à ruína o pequeno reino, o autor citou a Índia, as lutas no norte da África
e a união das coroas ibéricas, em 1580. Ou seja, Prado deu maior destaque para os fatores
externos no declínio de influência e de poder lusitanos no arranjo internacional. Diferente de
Manoel Bomfim, que apesar de admitir o fracasso de Alcácer-Quibir, ou os efeitos nocivos da
união com a Espanha, deu primazia a um fator interno, um mal que corroeu silenciosamente a
corte metropolitana: o parasitismo.
Paulo Prado iniciou seu trabalho falando da Renascença, período fecundo, que em sua
opinião, consagrou-se pela cobiça e pela sensualidade dos homens. O Renascimento, revelava
ele, impôs um novo modo de pensar e sentir, foi um resgate dos ideais antigos e "teve como
170
Ibid., p. 84.
171
Ibid., p. 87.
172
Ibid., p. 88.
173
Ibid., p. 88.
174
Ibid., p. 88-9.
175
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 137.
176
Ibid., p. 134.
43
resultado o alargamento, para assim dizer, das ambições humanas de poderio, de saber e de
gozo".
177
Retrato do Brasil fala de homens tomados por esses sentimentos que moveram o
mundo durante os séculos XV e XVI, momento em que veio à lume o Brasil. Foi neste
contexto que se fizeram nossos antepassados, o europeu que tomou posse do continente
latino-americano.
Segundo o trabalho de Prado, de início a ocupação das terras se deu de modo disperso,
"se fixaram aventureiros em feitorias esparsas pelo litoral".
178
Também mencionou o
abandono do Brasil pela corte durante todo o primeiro quartel do século XVI, por onde
"mercadejava em escravos, madeiras e animais, o colono isolado, vivendo, no seu sonho
pioneiro, da caça, das frutas e mantimentos da terra".
179
Mais tarde, asseverou o autor,
desenvolveram-se os núcleos de povoamento, com destaque para três: "foram os que tiveram
como chefes e patriarcas Jerônimo de Albuquerque, Diogo Álvares Caramuru e João
Ramalho", e destacou: "todos constituíram descendência", cruzando com as índias, porque
eram devassos.
180
E assim, no olhar do autor de Retrato do Brasil, principiou o país.
"A colonização do Brasil começou quando o gênio português patenteava ainda a ótima
de sua eficiência"
181
isso na opinião de Bomfim, porque, para Prado a colonização iniciou-
se quando Portugal estava "já gafado do germe da decadência".
182
Enquanto Bomfim
considerou a Índia um exemplo para a metrópole de seus desvios administrativos, e de
oportunidade purificadora para o colono,
183
Prado a qualificou como "uma escola de barbárie
e imoralidade".
184
Dessa forma, na concepção deste, o colono trouxe para o Brasil todas as
licenciosidades, evidenciando sua formação, seu caráter e seu meio, e por isso insistiu que
raramente tratava-se de gente "de origem superior e passado limpo":
185
eram os rebelados do
Velho Continente, os náufragos e aventureiros.
177
Ibid., p. 53-4.
178
Ibid., p. 67.
179
Ibid., p. 92.
180
Ibid., p. 69.
181
BOMFIM, M. op. cit., p. 83.
182
PRADO, P. op. cit., p. 138.
183
BOMFIM, M. op. cit.,p. 84-5.
184
PRADO, P. op. cit, p. 109.
185
Ibid., p. 67.
44
O Brasil, segundo o autor de Retrato, foi ocupado pelos degredados do reino,
corsários, flibusteiros
186
, jogadores arruinados, vagabundos, enfim, aqueles "a quem
incomodava e repelia a organização da sociedade européia".
187
Em essência, eram essas as
condições do colono primitivo destacadas por Prado, bem caracterizadas na máxima
horaciana, transcrita e traduzida por ele: "Cælum, non animum mutant, qui trans mare
currunt", isto é, "mudam de céu, mas não de espírito, os que atravessam os mares".
188
O colonizador para Paulo Prado era portador de graves defeitos, como individualista e
devasso. As páginas de Retrato do Brasil mostravam-no desprovido de qualquer sentimento
patriótico, alheio a valores éticos e avesso aos morais, sem "outro incentivo idealista senão
esse de procurar tesouros nos socavões das montanhas, e nos cascalhos dos córregos".
189
O
objetivo desses aventureiros não era a formação de um país, mas somente amealhar riqueza
fácil para gozá-la na corte portuguesa.
190
Quando pensamos em Brasil Colônia, nos remetemos às lutas contra os nativos e
contra o estrangeiro pela posse da terra, aspectos que determinaram o país nascente, ao menos
na visão de Bomfim. Para ele, a nação surgiu assim, "na boa luta, a que enraíza na terra e
fortifica o patriotismo".
191
Afirmava que a construção do Brasil foi resultado da ação direta
dos nacionais, e insistia na importância dessas primeiras batalhas na definição do contorno do
caráter do brasileiro. A nação era, na interpretação do sergipano, uma construção conjunta dos
pioneiros brancos e dos índios, desde os primeiros tempos coloniais e mais tarde pôde
também contar com a contribuição dos negros
192
, resultando numa sociedade que ficou
caracterizada pela miscigenação. A formação nacional brasileira é resultado do
congraçamento das três raças, pensava ele, e, para o êxito dessa fusão pesou muito o
temperamento lusitano, que logo se entrosou com o nativo, aceitou seus costumes e adotou
186
O autor se reporta à época das grandes aventuras dos piratas. Flibusteiros eram as personagens que
freqüentaram o Mar do Caribe nos séculos XVII e XVIII.
187
PRADO, P. op. cit., p. 66.
188
Ibid., p. 109.
189
Ibid., p. 116.
190
Ibid., p. 87.
191
BOMFIM, M. op. cit., p. 90.
192
Manoel Bomfim, no livro O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, afirmou que os negros
tiveram menos importância na formação brasileira porque chegaram por aqui em número expressivo somente
após 1750, quando a nacionalidade já estava definida. (Bomfim, 1997, p. 201).
45
alguns para si mesmo. O português foi, nas palavras de Bomfim, o colonizador que mais
cruzou porque:
Mais plástico e assimilador, fraco em número, afeito ao convívio de povos bárbaros,
sem grandes zelos de sobranceria, o português, no Brasil, juntou-se francamente, em
sangue e costumes, aos indígenas.
193
Bomfim considerou, que, afora a busca do ouro, estabeleceram-se as colônias de
povoamento e se desenvolveu a agricultura, graças ao espírito ordeiro e disciplinado do
português, e essa atividade econômica pôde florescer, porque havia tradição rural naquele
povo.
194
Tudo isso, na opinião dele, nos marcou de modo indelével, pois a atividade agrícola
fixa o homem à terra, é uma atividade estável, "a necessidade de cultivar a terra para ter
riqueza fez o essencial e deu à colonização primeira do Brasil o caráter que mais convinha; e é
isto o essencial na verificação que nos interessa".
195
Para ele, o português soube aproveitar o
ensejo e aqui chegando se mostrou um produtor, provou seu desejo de formar uma nova
pátria, desenvolver as tradições nacionais; muito diferente dos franceses que eram pura
pirataria. No afã de enaltecê-los, afirmou que os portugueses se revelaram mais aptos para a
vida moderna entre todos os europeus,
196
e a herança portuguesa distinguia o Brasil dentro do
continente.
197
Quanto aos antigos moradores da colônia, Bomfim considerava sua contribuição
fundamental, pois lembrava que o Brasil era a "nação que se desenvolveu sobre a primitiva
sociedade indígena",
198
afinal,
O português foi o criador da colonização moderna; mas à parte os pequenos
transplantes de gente (...) sua colonização medrou em parte alguma; dela não
surgiram outras nacionalidades (...) o Brasil se tornou um povo com capacidade
de nação, é que houve, aqui, qualquer coisa, em vida, além do português, e que foi
essencial para o êxito da empresa. pode ter sido o outro elemento humano, esse
gentio (...).
199
E, se os formadores da nação eram dignos de méritos, também o eram seus
descendentes. Bomfim valorizava o elemento nacional, e assinalava que a solução para o país
193
BOMFIM, M. op. cit., p. 107.
194
Ibid., p. 84.
195
Ibid., p. 351.
196
Ibid., p. 86.
197
Ibid., p. 351.
198
Ibid., p. 120.
199
Ibid., p. 108.
46
estava na melhoria das condições de seu povo, porque o Brasil era uma instituição
democrática, feita por todos, defendia a ampla participação na comunhão nacional. Segundo
ele, nossas circunstâncias históricas eram ímpares, porque cedo tivemos de lutar para defender
um território, para edificar uma pátria,
o brasileiro formou-se em condições de crescer e durar, porque, desde sempre teve
consciência de sua existência nacional; viveu, desde logo, na tradição de uma pátria,
defendendo-a intransigentemente. Muito concorreu para patentear nele a afirmação
do espírito nacional como demonstrações de patriotismo, a fraqueza, insuficiência
e degradação da metrópole.
200
Paulo Prado, por outro lado, totalmente refratário à idéia de um projeto de Brasil,
declarou que o início do país se deu a partir de três núcleos básicos de povoamento e
mestiçagem, é claro. Das batalhas contra os franceses limitou-se a destacar a importância da
ocupação do território, vislumbrou "algum sentimento nacional" somente na reação ao
holandês.
201
A luta essencial, no parecer de Prado, se deu contra o índio e a natureza, mas
pela conquista das riquezas minerais, considerava que a busca do ouro, enquanto atividade
fugidia, imprimiu esse caráter a toda à colônia. A cobiça e o sonho do ganho fácil, desviavam
os braços da lavoura, todos acorriam à cata do metal.
202
E por tudo isso três séculos após de
existência a situação do país era lamentável.
203
Nesse sentido, poderíamos falar em nação? Para Bomfim, sem dúvida, afinal "com um
século de existencia, reagiamos como um povo, em espirito de exuberante
nacionalidade".
204
E, ainda, fomos os primeiros na América a manifestar nossa nacionalidade,
e o fizemos brigando pelo solo natal contra uma nação européia: a Holanda. E o substrato
dessa nação era o povo brasileiro e sua tradição nacional.
205
para Prado, ao menos até o início do século XIX, não: éramos "simples
aglomeração de moléculas humanas".
206
Nas palavras do autor fica claro que uso de termos
da biologia na análise social não era exclusivo do sergipano, o que denota as influências da
época . Outro aspecto bem notado em seu texto é a denúncia de sua condição de classe. Assim
200
Ibid., p. 328.
201
PRADO, P. op. cit., p. 146.
202
Ibid., p. 119.
203
Ibid., p. 160.
204
BOMFIM, M. O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política,p. 293.
205
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 329.
206
PRADO, P. op. cit., p. 147.
47
se expressou ao afirmar que quando a nossa nacionalidade começou a se constituir, foi um
ambiente envenenado pelo negro cativo, permeado pelo preconceito racial e dominado pelo
mestiço que ela encontrou para prosperar. O impacto dele sobre a formação da nacionalidade
era de "conseqüências ainda incalculáveis".
207
Ele fez questão de frisar as cissuras, de repisar
os problemas que Bomfim se esforçou tanto para 'esquecer'. Das lutas em defesa da terra
contra os franceses, o paulistano enfatizou as crueldades praticadas pelos portugueses, com
relação à batalha contra os holandeses, ainda que reconhecesse nela algum sentimento
nacional, optou por dar destaque aos interesses econômicos e comerciais por trás do embate.
Além disso, insistiu em ressaltar a fragilidade da organização colonial frente à desmesurável
ambição do colono. Enquanto Bomfim concebia a sociedade brasileira como resultado do
ânimo de juventude, das qualidades da nação portuguesa "revigoradas na vivacidade plástica
das raças indígenas",
208
Prado via a formação da população como conseqüência da
devassidão e da cobiça, a mistura que houve aqui, observava, se deu pelos defeitos e não pelas
virtudes dos colonos; e nessa "terra de todos os vícios e de todos os crimes",
209
sem distinção
de classe, os valores morais se deterioraram, impactando na formação de uma sociedade triste,
sem aptidão para o progresso: uma sociedade tumultuária, extasiada pela luxúria e
determinada por "uniões de pura animalidade".
210
É de forma sutil que as teorias raciais
davam o arcabouço teórico para a sustentação do pensamento pradiano, o que se percebe
quando ele concluiu que faltava a esse povo o espírito construtor, a iniciativa de produzir do
inglês e do norte-americano. Daí a defesa do branqueamento.
Na descrição que fez dos moradores de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, deixou
transparecer certa dose de oclofobia
211
e sua condição de classe. Em Retrato do Brasil, elegeu
observações de viajantes estrangeiros que maldiziam as cidades brasileiras. O Rio era "uma
das mais imundas associações de homens debaixo dos céus"
212
. Rango, um viajante alemão,
"notou logo ao desembarcar o cheiro penetrante, adocicado, que exalavam as ruas cheias de
207
Ibid., p. 150.
208
BOMFIM, M. O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 293.
209
PRADO, P. op. cit., p. 76.
210
Ibid., p. 89.
211
Oclofobia, aversão à plebe. (Ferreira, 1999, p. 1431).
212
John Luccock, citado por PRADO, P. em Retrato do Brasil., p. 156.
48
negros carregando fardos no calor intenso".
213
O livro retrata uma Bahia dominada por
"negros e mulatos", com suas vielas e seus mercados, onde se comerciavam uma diversidade
de alimentos prontos para o consumo, que de acordo com um cronista da época, eram "ótimos
pelo asseio para tomar para vomitórios".
214
Conforme o relato, o açúcar conferiu um status
mais nobre a Pernambuco. Era o que chamou de "Portugal americano", tinha um "ar
civilizado que lhe emprestava a proximidade das terras de além mar".
215
Prosseguiu dizendo
que de suas cidades, Recife era mais opulento, "menos influenciado pelo mestiço".
216
Olinda
também produzia uma agradável sensação, exceto "no calor do meio dia, tinha a surpresa das
ruas cheias de negros, dando à cidade uma aparência sombria e tristonha".
217
Paulo Prado tinha uma impressão muito negativa da sua terra. A descrença no mestiço
e no brasileiro é patente, ele não conseguia conter o seu enfado e, ainda que não admitisse,
tinha aversão aos negros e descendentes. Na sua perspectiva, o Brasil era habitado por um
povo triste e melancólico, apático, doente, de vida social nula, incapaz de manifestações
coletivas duradouras, sem apego ao solo, um país de "indigência intelectual e artística". Essa
maneira de enxergar o Brasil colocava o autor em oposição à sociedade, operando um
distanciamento entre ambos. O paulistano era um aristocrata e não negava suas raízes.
Liberal, se assumia um cosmopolita, integrava a "elite europeizada", não tinha interesse em
expandir a participação popular na política, por isso mantinha abertas as fissuras do passado
com vistas a perpetuá-las. Muito diferente de Manoel Bomfim, que na ânsia de arquitetar uma
nação que alcançasse todos, acabou por exagerar em ocultar as contradições sociais do Brasil
Colônia, e contribuiu assim para a construção da história oficial brasileira: o mito da virtuosa
fusão das três raças, o povo é bom e deve participar da comunhão nacional. Enxergou uma
nação portuguesa em plena Idade Média, divisou valores pátrios nos colonos primitivos,
refutando a fama destes, e proclamou a precocidade da formação nacional brasileira no
continente americano.
O otimismo de Bomfim era marcante, sobretudo em O Brasil na América, trabalho em
que buscava destacar sua pátria e revelá-la viável. E se o Brasil era o seu foco, o problema
213
PRADO, P. op. cit., p. 156.
214
Ibid., p. 153.
215
Ibid., p. 103.
216
Ibid., p. 150.
217
Ibid., p. 151.
49
não poderia estar no povo, na negritude de sua gente; o ponto crítico estava no
comportamento e na visão da "classe dirigente", que se voltava para fora e desprezava os
nacionais, considerados indolentes e preguiçosos.
218
Para Bomfim, essa classe, descendente
do reinol
219
, se comportava como alienígena, distanciando-se das questões econômicas,
políticas e sociais de seu país. Parasitava o trabalho escravo e em nada contribuía para o
engrandecimento da nação. Mas o sergipano não restringiu suas farpas somente à "elite", em
América Latina em que foi bem mais duro em suas críticas foi incisivo quanto à atuação
da Igreja. Nas considerações de Bomfim, Estado e Igreja amparavam-se e esta
escraviza os espíritos, assegura a obediência das populações, semeia superstições, de
modo a tornar quase impossível qualquer tentativa de reforma e progresso social. É a
escravidão absoluta, intelectual e moral. Ao mesmo tempo explora como pode o
trabalho das pobres raças escravizadas, enriquece com ele e vai para Roma, ou
para onde for mister, todo fruto do trabalho de milhares e milhares de índios e
negros.
220
Todavia, a lusitana teria desempenhado papel relevante na história do Brasil.
Quando Bomfim se referiu aos antecedentes do colonizador falou da "poderosa unidade
religiosa do português", motivo que teria estimulado a luta contra os holandeses, e os
diferenciado dos franceses na ocupação da terra;
221
Prado não pensava dessa forma, apesar de
concordar com a forte religiosidade do português, entendia que a "Renascença e a Reforma
(...) modificaram a estrutura social e moral da civilização ocidental" e Portugal mergulhou na
"desmoralização dos costumes".
222
Não entreviu motivações religiosas no conflito com os
batavos. Ao contrário, como dito, assinalou que as "considerações materiais sobrepujavam
os vislumbres de revolta nativista".
223
Segundo o paulistano, a força da religião e o princípio
cooperativo observados nos primitivos colonos do norte, imprimiram um forte traço em toda
colonização e promoveram a independência dos Estados Unidos. Era o que, na opinião dele,
havia faltado ao português: a determinação, as condições e as circunstâncias que a religião
218
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 334.
219
Reinol é o natural do reino, ou seja, o português.
220
BOMFIM, M. América Latina: males de origem, p. 117.
221
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 86.
222
PRADO, P. op. cit., p. 134/5.
223
Ibid., p. 146.
50
promoveu ao norte do continente.
224
Aqui, ao que parece, ressalta-se a questão da
subjetividade como elemento de identidade nacional, logo, de formação de nação.
Nossa unidade nacional, segundo Bomfim, era herança da história de Portugal, que
teve de permanecer unido para se consolidar enquanto nação, e poder se separar de Castela.
Desmembrado da Espanha, afirmou, Portugal pôde estabelecer "uma pátria distinta,
nitidamente representada numa política, por um Estado".
225
Para ele, a formação do
Estado foi pioneiramente em solo português, e graças a esse legado, o Brasil se fez uma nação
una, extensa e centralizada, com eles, adquirimos, a capacidade de organização, de unidade
política, de centralidade, de sentimento de pátria, "daí resulta, em grande parte que, desde
cedo a colônia portuguesa se unificou na idéia explícita de um Brasil, abstração e realidade, a
que todos se referem, desde que a nova sociedade toma conta da terra".
226
E assim se fez uma
pátria, a primeira da América, no entender do sergipano. A vontade nacional, declarou,
venceu o holandês e impôs derrotas sucessivas à poderosa França.
E assim, como num moto-contínuo, o que o nortista glorificava, o sulista detraía.
Prado admitia a herança portuguesa, salientava, porém, que foram a indolência e a
passividade da população que facilitaram "a preservação da unidade social e política do
vastíssimo território"; além da ngua, do culto em comum e do ódio ao castelhano.
227
Destacou a contribuição da pesada máquina administrativa de Lisboa, encarando-a como mais
eficaz que o líder Simon Bolívar
228
– Brasil permaneceu único; enquanto a "outra América" se
dividia.
229
Outros fatores foram decisivos na manutenção da unidade do país, em sua opinião:
a elevação do Brasil a reino, "a intervenção superior dos homens da independência e do
Primeiro Reinado, a extinção da guerra civil, a centralização monárquica".
230
Porém, repisou,
"esse era o grande milagre".
231
224
Ibid., p. 133.
225
BOMFIM, M. op. cit., p. 90.
226
Ibid., p. 70.
227
PRADO, P. op. cit., p. 196/7.
228
Simon Bolívar, nascido em 1783 e morto em 1830, líder latino-americano, de inegável ascendência negra,
conduziu rebeliões contra o império espanhol. Lutou pela libertação da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru,
Bolívia. (GOTT, R. À sombra do libertador: Hugo Chávez e a transformação da Venezuela, p. 139).
229
PRADO, P. op. cit., p. 198.
230
Ibid., p. 198.
231
Ibid., p. 199.
51
No entanto, conforme o autor de Retrato do Brasil, se Portugal nos legou a língua, a
religião, as instituições políticas, a estrutura administrativa, nos legou também a escravidão,
além da tristeza, evidentemente. O pioneirismo português na navegação da Costa da África
permitiu àquele reino tomar frente no comércio negreiro, mas, asseverou que a servidão era
nefasta, destruiu o tecido social, desde os primeiros tempos envenenou nossa formação, "não
tanto pela mescla de seu sangue como pelo relaxamento dos costumes e pela dissolução do
caráter social".
232
Considerava que a servidão havia viciado o colono, todo trabalho na colônia
era executado pelos escravos, os demais habitantes se dedicavam a buscar ouro. Mas, o
regime escravo era
a imoralidade, a preguiça, o desprezo da dignidade humana, a incultura, o vício
protegido pela lei, o desleixo nos costumes, o desperdício, a imprevidência, a
subserviência ao chicote, o beija-mão ao poderoso – todas as falhas que constituíram
o que um publicista chamou de filosofia da senzala, em maior ou menor escala
latente nas profundezas inconfessáveis do caráter nacional.
233
A proposta de erradicar o trabalho servil ocupou praticamente todo o século XIX. As
pressões inglesas, o alto preço do "negro" no mercado, o interesse de cafeicultores em
substituir a mão-de-obra escrava pelo trabalho assalariado e as fugas constantes dos cativos
alimentavam os debates, e a questão da abolição tomou conta do cenário nos últimos anos do
século. Assim, como outros pensadores de seu tempo, Prado rejeitou a escravidão. Entretanto,
limitado pela sua condição social, o autor não avançou muito em suas formulações e críticas,
apesar de assentir com a sociologia que as diferenças entre brancos e negros eram
"quantitativas e não qualitativas" e que "o ambiente e os caracteres ancestrais" determinavam
"mais o procedimento do indivíduo do que a filiação",
234
culpou a vítima pelo crime, ao
considerar os escravos "terríveis elementos de corrupção no seio das famílias" e os
"mulatinhos e as crias (...) perniciosíssimos".
235
A mesma rejeição à servidão, vemos em Manoel Bomfim, porém, conforme apontado
por Uemori há uma mudança drástica no discurso do autor entre América Latina e O Brasil na
América.
236
Em seu primeiro trabalho, Bomfim foi contundente, designava o português um
232
Ibid., p. 150.
233
Ibid., p. 194-5.
234
Ibid., p. 191.
235
Ibid., p. 154.
236
UEMORI, C. N. Explorando em campo minado: a sinuosa trajetória intelectual de Manoel Bomfim em busca
da identidade nacional, p. 99.
52
parasita, que vivia do trabalho escravo. Este era considerado apenas uma máquina, destacou o
sergipano,
Comprado ou vendido, o negro ou o índio era um capital; o chicote, o meio de
crescer-lhe o juro, o recurso para que não se extraviasse. "Fazia-se ao negro o que
não é lícito fazer a nenhuma espécie de gado".
237
E continuou: "não havia nada de humano nas relações de senhor e escravo".
238
Por
isso, afirmou que a saída para eles era a morte, o que ocorria com freqüência. Insistiu que na
América do Sul a escravidão "foi a objeção moral, a degradação do trabalho, o
embrutecimento e o aniquilamento do trabalhador".
239
Já em O Brasil na América, tentou amenizar seus horrores, admitindo-a "menos
dolorosa aqui do que em qualquer das outras colônias modernas".
240
Adornou as relações
entre negros e os proprietários de terras, em sua descrição "a vida em geral se fazia com uma
relativa aproximação de senhores e escravos e havia para estes mais humanidade".
241
Falou de
"inocente escravidão" e que na alma do negro havia liberdade e sombras de felicidade e que
se a escravidão afrouxou os costumes, de outro lado, abrandou o coração.
242
O sergipano
negou existência de fatos mais graves de hostilidades contra os negros, como a repressão
violenta contra os fugitivos.
Afora casos individuais, contra um ou outro senhor mais desumano, as revoltas se
limitavam aos quilombos de negros fugidos, e que não eram caçados a dente de cães
de sangue
243
(...) O próprio desenvolvimento de Palmares e outros grandes
quilombos, mostra que os pretos escravos tinham, no Brasil, possibilidades que não
existiam noutras colônias. Palmares foi uma organização política e não um reduto de
ódios.
244
Entretanto, Bomfim não deixou de reconhecer os males que o trabalho cativo gerou,
como o atraso no desenvolvimento do país, "além dos maus efeitos morais e políticos".
245
Realçou a condição social do negro, duplamente estigmatizada: expatriado e cativo, todavia,
237
BOMFIM, M. América Latina: males de origem, p. 132.
238
Ibid., p. 133.
239
Ibid., p. 133.
240
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 203.
241
Ibid., p. 204.
242
Ibid., p. 204.
243
Grifo do autor.
244
BOMFIM, M. op. cit., p. 204.
245
Ibid., p. 203.
53
em contraste com Paulo Prado, mostrou-se sensível à situação, imputando à incapacidade dos
dirigentes a pendência da questão durante tão longo do tempo.
246
246
Conforme Bomfim, graças ao Estado bragantino, "o Brasil foi o último país a extinguir a escravidão."
BOMFIM, M. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, p. 406.
54
CAPÍTULO II – A NAÇÃO E A QUESTÃO RACIAL.
1. A influência da noção de "raça" no debate sobre a formação do Brasil.
O debate sobre a formação da nação no Brasil coincidiu, em certo período, com os
debates acerca da escravidão. Esta deixou seqüelas, marcando profundamente a sociedade. Ao
negro associava-se a indolência, a miséria e o trabalho. Contudo, o trabalho é essencial para o
desenvolvimento do capitalismo, e a nação que se formava ansiava por inserir-se nos circuitos
internacionais, mas o Brasil estava condenado por seu povo mestiço, seu passado escravocrata
e sua condição de colônia. O liberalismo econômico
247
e as teorias raciais desenganavam o
país e muitos ideólogos da época abraçavam a idéia da hierarquização de raças, rejeitavam a
mistura e consideravam a miscigenação o nosso maior problema.
No entanto, falar em raça, no que tange à espécie humana, talvez não seja muito
adequado e, antes de qualquer ponderação, cabe a pergunta feita por inúmeros autores, entre
os quais Azevedo: "existem raças humanas objetivamente dadas, seja em termos biológicos
ou culturais, ou a idéia de raça se constrói a partir do olhar historicamente dado de um sobre o
outro?"
248
Na discussão das relações raciais, aponta a autora, raça é considerada por alguns
"uma idéia historicamente inventada
249
e sem fundamento na natureza",
250
ou em outras
palavras "uma construção social", o que Fields considerou como uma "manobra ideológica"
que aprofunda o racismo; para outros, como LaCapra, a palavra "raça" deve vir sempre entre
aspas, porque uma mistificação pobre com efeitos formidáveis, uma vez que constitui o
fulcro de uma das formações ideológicas mais poderosas da história".
251
247
SCHWARCZ, L. M. As teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX. O contexto
brasileiro, p. 163. Citando Dumont (1966), "diz que o racismo é uma perversão do próprio liberalismo; ou seja,
que não se trata de pensar em teorias opostas, mas em como uma está contida na outra, que o liberalismo não
deu conta de entender a questão e a manifestação das diferenças entre os homens. O liberalismo teria
"naturalizado a igualdade" ao impô-la em um contexto de profunda afirmação das diferenças" (...).
248
AZEVEDO, C.M. M. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo, p. 61.
249
Azevedo salienta que esta idéia "tem sido arma essencial para a reprodução do racismo no dia-a-dia dos mais
diversos países". (Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre a cota racial, raça e racismo, p. 107).
250
AZEVEDO, C. M. M. op. cit., p. 107.
251
As observações de Fields e LaCapra foram extraídas do livro de Azevedo, anti-racismo e seus paradoxos...,
p.19 e 79 respectivamente.
55
Conforme Guibernau "a raça é um modo de nomear a diferença entre os membros de
uma coletividade particular e a 'outra', 'a alheia'",
252
todavia nem sempre foi assim, a noção de
raça como um parâmetro diferencial, segundo a autora, tem origem no século XIX, no período
de expansão colonial, foi largamente empregada "como um argumento legitimador da
dominação européia", e sua "principal utilização foi e ainda é a classificação dos indivíduos
na suposição de que diferenças no fenótipo são sinônimos de variações no intelecto e
habilidades". Guibernau revelou ainda, que além de ser uma representação arbitrária e
mutável, pois se "a princípio a raça foi identificada com classe ou status", com o decorrer do
tempo, seu sentido acabou se imbricando com a idéia de pátria, e assim "(...) mais tarde,
significou cultura, etnicidade ou nação".
253
Schwarcz recua ainda mais na história para mostrar que a percepção das diferenças
entre os homens vem desde a Grécia Antiga, entretanto, "o grande momento inaugurador" se
deu com a descoberta do Novo Mundo, quando os europeus entraram em contato com os
habitantes do continente americano.
254
O confronto desses povos trouxe à tona as distinções
na forma de organização social, essas diferenças que inicialmente eram encaradas com
admiração ou espanto, pouco a pouco vão ganhando aspectos de hierarquização, e é no século
XIX, invadido pela noção de progresso, e do avanço das ciências que se desenvolveram as
chamadas teorias raciais. A diversidade humana passou a ser foco de estudos acadêmicos, as
desigualdades econômicas e sociais eram explicadas pelas distintas capacidades inatas das
raças. Nascia assim, o racismo, com foros de ciência, gerado nos centros de excelência das
universidades européias e, isso lhe auxiliou a conquistar ares de verdade absoluta.
O êxito alcançado pelas doutrinas raciais explica-se em grande parte, pelos interesses
que historicamente as constituem. O processo de industrialização capitalista, iniciado no
século XVIII, na Inglaterra, disseminou-se pela Europa no decorrer do século XIX, e se
intensificaram as pressões dos operários e dos camponeses sobre a burguesia, o avanço da
indústria obrigava os países europeus a redimensionar seus mercados. Adicionem-se ainda, as
dificuldades de nações como Alemanha e Itália, que, em decorrência da tardia unificação,
teriam de externamente desfazer a 'partilha do mundo' e, internamente buscar símbolos que
reforçassem o processo da construção nacional. É nesse bojo que as doutrinas raciais se
difundem, pois,
252
GUIBERNAU, M. Op. cit., p. 95.
253
Ibid., p. 96.
254
SCHWARCZ, L. M. op. cit., p. 148-9.
56
a ideologia racista legitimava a organização da unidade nacional (burguesa);
apagava, em nome de um valor maior (a raça, a nação), as contradições internas
(contradições de classe, especialmente em um período de ascensão do movimento
operário), justificava tratar os operários como seres inferiores; combatia o
internacionalismo proletário; e fundamentava a opressão colonialista. Era uma
ideologia, que compartilhada por amplos setores da classe média (e mesmo do
operariado), correspondia aos interesses objetivos da dominação burguesa.
255
Aguiar assinalou que "a máscara científica do arianismo era um truque", que tinha
como "objetivo final sancionar o próprio sistema de dominação política".
256
Já na observação
de Arendt:
A raça foi uma tentativa de explicar a existência de seres humanos que ficavam à
margem da compreensão dos europeus, e cujas formas e feições de tal forma
assustavam e humilhavam os homens brancos, imigrantes ou conquistadores, que
eles não desejavam mais pertencer à mesma comum espécie humana. Na idéia da
raça encontrou-se a resposta dos bôeres à "monstruosidade" esmagadora descoberta
na África todo um continente povoado e abarrotado de selvagens (...) Dessa idéia
resultaram os mais terríveis massacres da história (...).
A raça, quer sob forma de conceito ideológico gerado na Europa, ou como
explicação de emergência para experiências chocantes e sangrentas, sempre atraiu os
piores elementos da civilização ocidental.
257
A idéia de raça é, portanto, criação de um tempo histórico, um produto social, uma
configuração moderna, uma categoria ideológica muito semelhante à conformação de nação.
Essa relação foi percebida por Smith em Las teorías del nacionalismo, quando se propôs a
examinar os movimentos nacionalistas, sua relação com o desenvolvimento econômico e a
modernização social e cultural. O autor deparou-se com um problema, como encarar o
racismo? Este é um desenvolvimento posterior ao nacionalismo, ou, ao contrário, um
movimento ideológico completamente diferente?
258
Para ele a doutrina mais próxima do
nacionalismo era o imperialismo. E destacou:
En casi todos los casos históricos, esta ideología es profesada por una etnia o una
nación, que cree que tiene la misión de hacer gozar a otras etnias o naciones de los
dones de su civilización. Con frecuencia de trata de un caso de simples imperios de
conquista, como sucede en los casos asirio y mongol, pero la combinación más sutil
de un imperio de conquista con una ética cosmopolita generalmente tiene sus
orígenes en la creencia de la superioridad total de la nación conquistadora. (…) Es
fácil pasar del aserto de que la propia etnia es la única poseedora de la verdad, de la
virtud, de la fuerza, etc., un baluarte de la cultura frente a la barbarie anárquica, al
aserto del derecho a la tutela e intervención prolongadas.
259
255
ALMEIDA, L. F. R. (Pontifícia Universidade Católica Campus Monte Alegre). Comunicação pessoal,
2008.
256
AGUIAR, R. C. op. cit., p. 185.
257
ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 215.
258
O autor se refere ao fascismo, racismo e nazismo, dado à natureza deste trabalho, focou-se somente no
racismo.
259
SMITH, A. op. cit., p. 359.
57
Ainda, segundo Smith, o racismo se liga ao nacionalismo quando defende a idéia de
que o mundo está dividido em raças e que algumas são superiores e por isso devem dominar
as mais fracas.
260
Salienta que "la peculiaridad de la posición racista es su premisa biológica",
e lembrou que "la importancia del darwinismo social reside en su recurso a la 'ciencia' para
justificar una doctrina de las características biológicas inmutables… encerrados en la lucha
perpetua del grupo por la dominación".
261
Uma particularidade do racismo é a sua característica 'a-nacional', surgido na Europa,
rapidamente ganhou o continente americano, e, além de não reconhecer as fronteiras
nacionais, tampouco é um fenômeno ocidental, visto como uma maneira de estigmatizar as
diferenças, com o objetivo de justificar abusos de poder, argumentam Shohat e Stam, ele
é, de um ponto de vista histórico, um aliado e um produto parcial do colonialismo.
As vítimas mais óbvias do racismo são aqueles cujas identidades foram forjadas no
caldeirão colonial: os africanos, os asiáticos e os povos nativos das Américas, assim
como aqueles que foram deslocados pelo colonialismo, como é o caso dos asiáticos
e dos caribenhos na Grã-Bretanha ou os árabes na França. A cultura colonialista
construiu um sentimento de superioridade ontológica da Europa em relação às "raças
inferiores desregradas".
262
Como os autores observam, o racismo, além de a-histórico, "constitui um sistema
hierárquico complexo, um conjunto estruturado de práticas e discursos sociais e
institucionais" (...).
263
E, como qualquer idéia dominante, traveste-se como uma verdade
plena. Por isso, Shohat e Stam destacaram que "as categorias raciais não são naturais ou
absolutas: são construções relativas e específicas, narrativas engendradas por processos
históricos de diferenciação".
264
O racismo, então, dominou a atenção de inúmeros pensadores, e muitos cientistas, ao
buscar nas ciências as repostas para os problemas colocados pela sociedade, contribuíram para
a constituição e disseminação das mais variadas teorias sobre as raças humanas. O objetivo
dessa grande parcela dos intelectuais do século XIX não era somente comprovar a
inferioridade da 'raça' negra. Era, também e principalmente, evidenciar a superioridade do
branco europeu. E essa superioridade não se restringia somente aos seres humanos. A biologia
analisava a fauna e a flora das Américas para concluir que aqui os animais e as plantas eram
260
Ibid., p. 361.
261
Ibid., p. 362.
262
SHOHAT, E., STAM, R. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação, p. 45.
263
Ibid., p. 46.
264
Ibid., p. 46.
58
de tamanho menor, o que indicaria a inferioridade do continente frente à velha e poderosa
Europa. Schwarcz destaca os trabalhos de estudiosos como o de Conde de Buffon, que, ao
constatar a inexistência de animais de grande porte em solo americano, e ainda, ao verificar
que os indígenas não tinham pêlos, concluiu tratar-se de um "continente imaturo", idéia que
foi incorporada, mas transformada por outros pensadores, como De Paw, para quem este
continente não era imaturo e sim decaído, degenerado, e "caminhava para sua bancarrota".
265
A divulgação, em 1859, de A origem das espécies fomentou ainda mais as discussões. O
darwinismo passou a ser um paradigma, por meio do qual o pensamento conservador
reinterpretava a natureza e toda a sociedade equiparando-as. E como do ponto de vista político
podiam ser neutras, as teorias de Darwin foram habilmente manipuladas pelos conservadores,
servindo para alimentar o imperialismo europeu.
Mas, os Oitocentos também se caracterizaram pela seqüência de movimentos de
independência dos países ao sul do continente americano. No Brasil, um dos dois últimos a
extinguir a escravidão, o debate sobre as perspectivas de construção de uma verdadeira nação
foram fortemente marcados pela incomoda presença de grandes contingentes de escravos (e,
logo, em seguida, ex-escravos) negros. A grande preocupação era a viabilização de um país
com um povo tão heterogêneo em seus traços e sem uma identificação de pátria. De acordo
com Azevedo, a partir dos anos (18)70 ganharam força "as soluções imigrantistas e
começaram a buscar no exterior o povo ideal para formar a futura nacionalidade brasileira".
266
A defesa da imigração de brancos era antiga, e contemplava três problemas que se
arrastaram ao longo do século: 'purificava a raça', gerava braços para substituir a mão-de-obra
escrava após a libertação dos negros, e, por fim, afastava o perigo de insurreições como as
ocorridas no norte da América do Sul e no Caribe: no Suriname, na Jamaica, em Barbados e
principalmente em São Domingos.
A construção nacional enfrentava muitos obstáculos. O tão sonhado progresso e o
avanço econômico pareciam estar sempre distantes. Fatores internos como a escravatura,
colocavam o país no mais baixo grau de civilização e isso inquietava pensadores. O que
certamente contribuiu, para que, paulatinamente, como revelou Costa, a escravidão passasse a
ser percebida como um grande mal, que incompatibilizava o país com o desenvolvimento da
indústria, inibia o comércio, impedia o processo de capitalização essencial ao
desenvolvimento da nação, além de desprestigiar a própria nacionalidade. A mudança de
265
SCHWARCZ, L. M. op. cit., p. 162.
266
AZEVEDO, C. M. M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, p. 37.
59
mentalidade também se orientava pelas em doutrinas vindas da Europa. Os "novos"
abolicionistas inspiravam-se "no pensamento da Ilustração, no romantismo e na economia
clássica" e ainda, no receituário de Augusto Comte.
267
A partir de 1870, os intelectuais brasileiros, aclimatando as teorias de Gobineau, Le
Bon, Lapouge, Spencer e Darwin, fundiam num conceito as idéias de raça-povo-nação.
Essas doutrinas imprimiam um cunho científico à aceita "inferioridade dos africanos, vista
até então, em termos do seu 'paganismo' e 'barbarismo cultural'".
268
Costa destacou que a "inferioridade racial" do negro serviu de justificativa para a
escravidão, "as idéias sobre a incapacidade intelectual da raça negra, seu primitivismo, sua
inferioridade, enfim, estavam profundamente arraigados no pensamento coletivo". E por isso,
mesmo alguns abolicionistas estavam convencidos dessa superioridade branca. A autora
afirma que nos anos que antecederam a abolição, havia no Brasil quem acreditasse "que os
africanos representavam uma raça intermediária entre o branco e o gorila: macacos
aperfeiçoados e não homens". Raça acaba por traduzir-se em identidade cultural ou étnica,
normalmente utilizada na designação de indivíduos negros e descendentes.
269
O discurso do determinismo racial, na análise de Schwarcz penetra no país no final do
século XIX, quando se extinguia de vez a escravidão e nascia a República. Para Leite, o
racismo obteve grande prestígio neste período, por duas razões:
Em primeiro lugar, era a fórmula preciosa para justificar o domínio branco sobre o
resto do mundo: se as outras raças eram biologicamente inferiores, se eram
incapazes de atingir os valores mais elevados da civilização, poderiam sobreviver
como massas trabalhadoras submetidas aos brancos. Essa justificativa era mais sutil
do que parece à primeira vista: através dela, o europeu não chegava a sentir conflito
ideológico com seus ideais democráticos e liberais. Não fora ele, europeu, que
intencionalmente estabelecera as diferenças entre as raças; ao contrário, estas eram
determinadas pela natureza. Em segundo lugar, o racismo parecia justificado pela
teoria evolucionista de Darwin e também sob este aspecto se harmonizava com a
vida intelectual européia: se o homem resultara de uma longa evolução, na qual
sobreviveram os mais capazes, as várias raças estariam em estágios diferentes de
evolução e as menos capazes deveriam ser destruídas pelas mais aptas.
270
Enquanto grande parte dos pensadores europeus estava plenamente convicta da
validade das teorias raciais e da inviabilidade de uma nação composta por "população mista",
no Brasil, ganhava força os "homens das ciências". Tratava-se, segundo Schwarcz, de "grupos
267
COSTA, E. V. Da senzala à colônia, p. 426-8.
268
AZEVEDO, C. M. M. op. cit., p. 62.
269
COSTA, E. V. op. cit., p. 413-4.
270
LEITE, D. M. O caráter nacional, p. 27.
60
de intelectuais, crescentemente congregados nos diferentes institutos de pesquisa, (...) ávidos
leitores da produção científica, sobretudo européia".
271
Além dessas instituições, a fundação
das faculdades de direito em São Paulo e em Pernambuco e de medicina na Bahia e no Rio de
Janeiro serviram para fomentar a pesquisa e ampliar as discussões.
A preocupação com os rumos da nação e a influência do ideal racista são nítidas nestes
centros educacionais
272
, o mesmo ocorreu com as faculdades de medicina, fundadas na Bahia
e no Rio de Janeiro. Havia como revelou Schwarcz:
uma disputa de hegemonia na medicina, entendida, nesse momento, como uma
pratica profissional em processo de construção. Os médicos da faculdade do Rio de
Janeiro buscavam sua originalidade e identidade na descoberta de doenças tropicais
como a febre amarela e o mal de Chagas (...) os médicos baianos farão o mesmo
ao entender o cruzamento racial como o nosso grande mal, mas, ao mesmo tempo,
nossa suprema diferença. Ou seja, enquanto para os médicos cariocas tratava-se de
combater doenças, para os profissionais baianos era o doente, a população doente
que estava em questão. Era a partir da miscigenação que se previa a loucura, se
entendia a criminalidade (...).
273
Contudo, independentemente da formação dos intelectuais, o que estava na pauta das
discussões da época, era a "nossa definição enquanto povo, e a deste país como nação, o que
os fazia colocar as relações raciais no centro de suas preocupações teóricas e de pesquisa, bem
como a sua atuação política".
274
Pensadores como Nina Rodrigues, Silvio Romero, Oliveira
Lima, Euclides da Cunha, Tobias Barreto, Tavares Bastos, entre outros se notabilizaram pelas
suas análises e previsões sobre o futuro do Brasil. Na "era das ciências", destaca Schwarcz,
esses homens se viam não só criadores de "novas teorias, mas também de uma nova nação".
275
O pessimismo desses intelectuais, que se sentiam responsáveis pela nação que se
formava, era em grande parte resultado da influência da literatura. Eles tendiam a interpretar a
sociedade brasileira a partir de idéias formuladas na Europa, e esse influxo aumentava com a
presença e os relatos dos viajantes que por aqui aportavam e constatavam as tristes
implicações da mistura racial, como José Ingenieros, Louis Couty, Louis Agassiz, Arthur de
271
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930,
p. 36-7.
272
Schwarcz afirma que a noção de 'raça' entra no Brasil, por intermédio desses estudiosos e salienta que a idéia
surge como uma noção negociada, construída em finais do século XIX, "nas mãos desses "homens de sciencia"
reunidos nas faculdades de direito e de medicina, nos museus etnográficos e nos institutos históricos nacionais."
(Schwarcz, 1996, p. 172).
273
Ibid., p.190.
274
CORRÊA, M. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil, p. 40.
275
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930,
p. 150.
61
Gobineau, para citar alguns dos muitos estrangeiros que visitaram o Brasil. Parece que os
nossos estudiosos se rendiam à importância cultural e à "superioridade" do Velho Continente
e, por isso, incorporavam as teses por desenvolvidas sem se darem conta das divergências
sociais, políticas e econômicas entre os países. Como assinalou Ianni:
Eram evidentes o ecletismo, o anacronismo, e exotismo, se pensamos nas
convergências e nos desencontros entre as idéias e a realidade. A realidade social,
econômica, política e cultural (...) não se ajustava facilmente às idéias e aos
conceitos, aos temas e às explicações emprestados às pressas de sistemas de
pensamento elaborados em países da Europa. (...) uma solução (...) era a
combinação de diversas correntes de idéias e distintas práticas, um singular
amálgama de alguma eficácia.
276
Fica claro que a adoção desses novos preceitos numa sociedade como a brasileira,
representava uma contradição. Schwarcz salientou que mesmo tais teorias recebendo uma
nova roupagem e obedecendo a uma gica peculiar, no auge da discussão da questão
nacional, elas causavam desconforto, pois para a autora,
se é certo que o conhecimento e a aceitação desses modelos evolucionistas e
darwinistas sociais por parte das elites intelectuais e políticas brasileiras traziam a
sensação de proximidade como mundo europeu e de confiança na inevitabilidade do
progresso e da civilização, isso implicava, no entanto, certo mal estar quando se
tratava de aplicar tais teorias em suas considerações sobre as raças. Paradoxalmente,
a introdução desse novo ideário científico expunha, também, as fragilidades e
especificidades de um país já tão miscigenado.
277
Essencialmente, as diferenças humanas que tanto incomodavam os pesquisadores,
tinham em solo brasílico uma relevância maior, pois, se, como afirmou Arendt, na Europa a
ideologia racista chegou "no momento em que os povos europeus haviam preparado, e até
certo ponto haviam realizado, o novo corpo político da nação",
278
no Brasil, ela entra em cena
logo no princípio da organização política, criando raízes mais profundas e contagiando toda a
sociedade. Conforme Silva, o processo de construção da nação brasileira se particularizou
pela indissociabilidade de dois traços básicos de nossa formação social: a situação de colônia
e a escravidão.
279
Havia ainda outras especificidades, como o indígena, a miscigenação, as
condições sociais e econômicas da maioria da população e o lugar do Brasil no cenário
internacional, que incitavam os pensadores a dar respostas aos conflitos que se apresentavam.
E o negro era o "problema" mais visível.
276
IANNI, O. A idéia de Brasil moderno, p. 17-8.
277
SCHWARCZ, L. M. op. cit., p. 34-5.
278
ARENDT, H. op. cit., p. 191.
279
SILVA, A. R. C. Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio: 1783-1823, p. 19.
62
Dessa forma, era tentador explicar o atraso, a pobreza pelo aspecto étnico, por isso,
naquele momento histórico, a "raça" tornou-se um parâmetro para se pensar na construção de
uma nação. De acordo com Aguiar o racismo científico predominava no debate brasileiro e,
ainda que com variantes, impregnou na intelectualidade da época, de modo que a idéia de
desigualdade de raças se ligava a da questão nacional. O que se discutia, argumenta, era a
"possibilidade de se constituir uma nação a partir de gente predominantemente inferior
negros, índios e mestiços".
280
Em busca de uma identidade brasileira é que a geração de 1870 aclimatou as teorias
européias e abraçou o darwinismo social, o evolucionismo. Os "homens de ciências"
envidavam todos os esforços na interpretação e compreensão dos problemas nacionais,
perseguiam soluções precisas que a ciência poderia proporcionar. Schwarcz destaca que a
antropologia criminal, partindo dos exames fisionômicos defendia que "nas características
físicas de um povo é que se conheciam e reconheciam a criminalidade, a loucura, as
potencialidades e os fracassos de um país".
281
Entendido como um "critério objetivo de
análise", tal método oferecia aos estudiosos da questão "uma rie de certezas não apenas
sobre o indivíduo, como também acerca da nação", e nas palavras de Laurindo Leão –
professor de direito criminal, citado por Schwarcz, resume-se o pensamento da época: "uma
nação mestiça é uma nação invadida por criminosos".
282
Os modelos deterministas representavam a vanguarda do pensamento brasileiro. Para
os intelectuais da época, sobretudo àqueles advindos da Escola de Recife, ciência era
sinônimo de civilização, avanço cultural, econômico e social, é novamente Schwarcz que
afirma:
A recepção dessas teorias científicas deterministas significava a entrada de
um discurso secular e temporal que, no contexto brasileiro, transformava-se em
instrumento de combate a uma série de instituições assentadas. No caso da faculdade
de Recife, a introdução simultânea dos modelos evolucionistas e social-darwinistas
resultou em uma tentativa bastante imediata de adaptar o direito a essas teorias,
aplicando-as à realidade nacional.
283
Dos pensadores brasileiros daquele século, alguns nomes merecem maior destaque,
pela sua obra, pelo prestígio que desfrutaram entre seus pares, e pela interlocução ou
influência de suas idéias com as idéias de Manoel Bomfim e de Paulo Prado, objeto de
280
AGUIAR, R. C. op. cit., p. 322.
281
SCHWARCZ, L. M. op. cit., p. 167.
282
Ibid., p. 167.
283
Ibid., p. 150.
63
reflexão do presente trabalho. No campo jurídico, podemos citar Silvio Romero, grande
desafeto de Manoel Bomfim, que se distinguiu pela erudição e pela contundência. Descrito
por Bosi como "a consciência ativa e vigilante da Escola do Recife",
284
empenhou-se por
orientar-se pela ciência, inspirava-se em autores como Darwin, Haeckel e Spencer para fazer
valer seu "naturalismo evolucionista, em oposição ao positivismo francês".
285
O sergipano via
no "critério etnográfico" a chave dos problemas nacionais, a raça era encarada como problema
central na discussão do país. Como assinalou Schwarcz, para Romero "tudo passava pelo fator
raça, e era a ele que se deveria retornar se o que se buscava era justamente o futuro da
nação".
286
Dessa forma, aceitava a mestiçagem, sempre pautado pelo determinismo biológico,
divisava a luta pela sobrevivência entre os seres humanos, a exemplo da teoria darwinista, e
percebia o "mestiço como produto final de uma raça em formação".
287
O destaque do aspecto contraditório do pensamento de Romero ficou a cargo de
Abdala Júnior, ao assinalar que embora Romero tivesse "na mestiçagem o ideal da identidade
nacional brasileira", argumentava em favor do branqueamento, pois alimentava a esperança
de que com "a extinção do tráfico, o gradual desaparecimento dos índios e a constante entrada
da imigração européia", o perfil do brasileiro assumiria cada vez mais os caracteres brancos. E
isso teria impacto positivo sobre o Brasil, porque assim como outros intelectuais do seu
tempo, ele, "muito preso a superstições cientificistas", acreditava na hierarquia entre as
"raças", e dessa forma, aumentar o número de brancos significava melhoria para o país.
288
No entanto, notou Aguiar, esse apoio à miscigenação sofreu um revés por volta de
1900, quando o sergipano passou a enxergar a mestiçagem como fator de degradação racial.
289
Descrente da possibilidade de o país tornar-se uma verdadeira nação em curto prazo,
abandonou a "saída étnica" e tornou-se um defensor do "arianismo ortodoxo".
290
Ficou claro
que, na percepção de Romero e de seus pares da academia de Recife, o mestiço representava
284
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira, p. 279.
285
SCHWARCZ, L. M. op. cit.,p. 153.
286
Ibid., p. 154.
287
Ibid., p. 154.
288
ABDALA JÚNIOR, B. Silvio Romero: história da literatura brasileira, p. 207-9.
289
AGUIAR, R. C. op. cit., p. 325.
290
Aguiar destaca que foi com este espírito que Silvio Romero leu o livro América Latina: males de origem de
Manoel Bomfim, e vê aí um das possíveis razões de sua crítica tão virulenta ao conterrâneo.
64
um obstáculo à construção nacional; na visão desses juristas, relatou Schwarcz, "a nação,
passando por um processo lento de evolução, carecia de um tipo único, uma raça delimitada,
estando sujeita às tentações da criminalidade, aos abismos da loucura".
291
Assim, como no direito se destacou Silvio Romero, na área médica cabe distinguir a
atuação de Nina Rodrigues. Este maranhense era, como o descreveu Aguiar, "a mais completa
tradução do racismo científico".
292
E como apontou Corrêa, apesar de repudiar a escravidão,
via o negro como o fator que inferiorizava nosso povo e esperava que a ciência desmontasse
"a pretensão de uma suposta igualdade entre os homens, justificação ideológica da
abolição",
293
visto que para ele a miscigenação acarretava a degenerescência étnica; dessa
forma, a mistura não traria o benefício da melhora apregoada por Romero, mas a degradação
do elemento branco.
Conforme Schwarcz, Nina e seus contemporâneos de cátedra, atentos aos problemas
do mestiçamento, se esmeraram por estabelecer relações entre doenças e raças. A condenação
da mistura, a hierarquização racial e a 'raça' como tema fundamental em suas análises,
"considerações e diagnósticos sobre os destinos da nação",
294
eram marcantes nesses
trabalhos. Embora com uma boa bagagem teórica, Nina não conseguiu escapar à influência
dos escritos de Lombroso e Lacassagne. Dsua crença na hereditariedade como destino e no
comportamento do indivíduo predeterminado pela sua conformação biológica.
295
O interesse do médico maranhense pelas questões raciais e pela formação nacional é
que mais chama a atenção de seus biógrafos. Apóstolo Neto assinalou que Nina Rodrigues foi
o primeiro estudioso do país, da virada do século XIX para o XX, a colocar o problema do
negro brasileiro enquanto um problema social, como uma questão de suma importância para a
compreensão da formação racial da população brasileira; ainda que pese a perspectiva racista,
nacionalista e cientificista que conforma a prática discursiva do autor.
296
Como revelou
Schwarcz, a partir de sua atuação que se consolida um processo de afirmação profissional,
291
SCHWARCZ, L. M. op. cit., p. 167.
292
AGUIAR, R. C. op. cit., p. 533.
293
CORRÊA, M. op. cit., p. 65.
294
SCHWARCZ, L. M. op. cit., p. 207.
295
CORRÊA, M. op. cit., p. 90-2.
296
APÓSTOLO NETO, J. Os africanos no Brasil: Raça, Cientificismo e Ficção em Nina Rodrigues, p. 1.
65
cujo propósito ia além da mera defesa da medicina legal".
297
A atividade médica, deslocando
o seu foco, passou a se ocupar mais do doente e menos da doença, pois para os médicos, o
problema era o criminoso e não o crime. uma interface desta disciplina com o direito, mas
com divergências de opiniões; enquanto no direito argumentava-se que a pena deveria ser
condizente com o crime, estudiosos como Rodrigues defendiam penas diversas para raças
com níveis distintos de evolução.
E, num tempo em que era comum a equiparação entre a sociedade e o indivíduo,
tempo em que a biologia era o paradigma para explicação da sociedade, essa aliança entre as
duas áreas do conhecimento era de fato um modo de atuação da ciência. A união entre elas foi
bem percebida por Corrêa, para quem havia continuidade na atuação de Nina Rodrigues e
Silvio Romero. Segundo essa pesquisadora, ambos os saberes viam a sociedade como um
organismo complexo, que a exemplo do corpo humano, nasce, se desenvolve, adoece e morre,
e a medicina poderia contribuir "para diagnosticar e indicar o tratamento adequado, de acordo
com os parâmetros médicos e jurídicos, dos atos que atentem contra a normalidade da vida
social".
298
Apesar da dedicação e do interesse do médico em compreender as "raças" que
colaboraram na composição da nossa população, em seu trabalho a formação nacional não
podia ser explicada, uma vez que o brasileiro era majoritariamente descendente de negros,
índios e mestiços tidos por ele como seres inferiores. Esse era o grande impasse de sua
formulação: num país atrasado com seu povo mestiço, a nação era pensada em termos raciais
e não "a partir de critérios econômicos ou culturais".
299
E, nesse aspecto, Rodrigues não
avançou.
Outro intelectual que contribuiu para a disseminação das idéias racistas foi Euclides da
Cunha, engenheiro carioca, que tinha uma visão muito negativa do homem tropical. Conforme
Galvão, no livro Os Sertões, temos "um verdadeiro libelo contra o mestiço", considerado:
desequilibrado e comparado ao histérico, acusado de hibridez moral, chamado de
dispersivo e dissolvente, além de oscilar entre influxos opostos de legados discordes.
A mestiçagem é enfaticamente qualificada como perniciosa. O índio é declarado
incapaz de compreender as mais simples concepções de um estado mental superior.
O negro não consegue alçar-se ao nível intelectual médio do indo-europeu.
300
297
SCHWARCZ, L. M. op. cit.,p. 211.
298
CORRÊA, M. op. cit., p. 94.
299
SCHWARCZ, L. M. op. cit., p. 209.
300
GALVÃO, W. N. Euclides da Cunha: os sertões, p. 162. (Grifos da autora).
66
Muito preso aos determinismos de seu tempo, Cunha possuía grande interesse em
entender a influência que o clima poderia exercer sobre os seres humanos. Isso porque, assim
como a raça está para Nina Rodrigues, o meio está para Euclides da Cunha. O meio, como
detectou Corrêa, "estava no centro de suas preocupações e era uma parte fundamental de sua
formação teórica".
301
Para Bosi, aí está o grande diferencial desse "engenheiro sociólogo", que
retratou em Os Sertões a face trágica da nação brasileira.
302
No nordeste do Brasil, ele pôde observar dois tipos de mestiço: o mulato e o
curiboca
303
. A miscigenação, após sucessivos cruzamentos, havia produzido no país uma
população de grande heterogeneidade, e o mulato, com sua grande variabilidade fenotípica,
era a clara expressão deste fato, mas o sertanejo era um tipo peculiar, tanto no seu físico,
quanto no seu comportamento. De acordo com Galvão, descendente dos bandeirantes
paulistas, isto é, dos mamelucos, isolada no meio do sertão, essa gente dedicava-se
"coletivamente ao trabalho nômade do regime pastoril, manifesta os traços psicológicos da
índole aventureira dos bandeirantes e da impulsividade indígena", tinha maior uniformidade
em suas feições, era forte; contudo, "por ter parado no tempo, igualmente atrasado e
supersticioso".
304
É evidente no raciocínio do autor a influência determinista na idéia de que
o meio condicionava o homem.
Entretanto, o desenrolar da guerra, a resistência do sertanejo não revelou inferioridade,
nem degeneração, o que abalou os seus preceitos. Postas à prova suas convicções teóricas, o
autor de Os Sertões vacila e, para não trair sua consciência, procura conciliar o que presenciou
em Canudos com as teorias racistas que tinha em mente. Mas, na interpretação de Galvão, ao
enfrentar esse "drama intelectual" o autor caiu numa armadilha, pois contradisse as teorias
desenvolvidas em seu livro, ao concluir que:
o brasileiro do sertão seria o primeiro produto da miscigenação dos bandeirantes
brancos com os índios durante três séculos de isolamento. Essa mistura, onde
entrariam as melhores qualidades das duas raças, e que, na melhor tradição nacional,
seqüestra o negro, produziu o sertanejo.
305
Foi nestas circunstâncias que se desenvolveu o debate da construção da nação:
embasado e sedimentado pelo pensamento racial, deixando claro que a influência da noção de
301
CORRÊA, M. op. cit., p. 62.
302
BOSI, A. op. cit., p. 347.
303
Curiboa, cariboca ou caboclo, é o cruzamento do branco com o índio.
304
GALVÃO, W. N. op. cit., p. 160.
305
Ibid., p. 162.
67
raça era muito mais significativa do que qualquer outro fator que pudesse contribuir para a
formação nacional, portanto, o Brasil instituiu sua comunidade política orientada pelos
padrões étnicos. Corrêa, fazendo coro a Schwarcz, afirmou que a nação brasileira, "antes de
ser pensada em termos de cultura, ou em termos econômicos", foi pensada em termos de raça,
mas que a economia, a política e a cultura não estavam excluídas das discussões, apenas se
subordinavam ao parâmetro racial.
306
E em meio a essa peleja, se constituía o "nacional", que
como Martins descreveu, em História da inteligência brasileira, baseado em Capistrano de
Abreu, essa "formação", foi um processo lento, que se iniciou no século XVII, ganhou corpo
no século XVIII e teve no século XIX seu coroamento e confirmação.
307
Assim como a nação,
o brasileiro foi muito determinado pelas questões raciais.
Além da temática racial, fatores econômicos também estavam presentes na discussão
da nação e, estes sim, constituíam-se em verdadeiros obstáculos para a viabilidade do país. A
construção da identidade nacional se inscreveu num cenário mais amplo, profundamente
marcado pelas condições do Brasil em suas relações internacionais. Sampaio Júnior, quando
falou do "impasse da formação nacional" destacou as condições históricas, lembrando que:
As dificuldades para a afirmação da nação decorrem das terríveis contradições de
uma formação social marcada pelo genocídio da civilização pré-cabralina; pelo
ultra-elitismo de uma sociedade incapaz de resolver suas pendências com o passado
escravista; pelo caráter predatório assumido pela atividade econômica em relação ao
meio ambiente; pela extrema vulnerabilidade do país às vicissitudes do capital
internacional e ao arbítrio do sistema imperialista; pela inadequação da base
produtiva para atender as necessidades do povo; pelos obstáculos encontrados para
afirmar o domínio sobre um território continental, composto de regiões mal
articuladas e desconexas entre si; pela falta de identidade nacional de um
aglomerado humano recente, oriundo de diferentes partes do globo; pela
precariedade das instituições administrativas e políticas que compõem o aparelho de
Estado; e, finalmente, pelo arraigado colonialismo cultural de nossas elites.
308
Essa mesma linha de argumentação encontra-se no depoimento de Lisboa, para quem
o Brasil e a América Latina como um todo passou a fazer parte do "processo civilizatório
da modernidade" de forma periférica, agregamos-nos a essa civilização, mas mediante a
condição de dominação,
309
e a sociedade que aqui se implanta e se desenvolve é alienígena,
uma violência contra os povos primitivos, as dificuldades do passado ressoavam no século
XIX, expressas nas palavras do autor:
306
CORRÊA, M. op. cit., p. 52.
307
MARTINS, W. História da inteligência brasileira: 1897-1914, p. 114.
308
SAMPAIO JÙNIOR, P. A. Entre a nação e a barbárie : os dilemas do capitalismo dependente em Caio
Prado, Florestan Fernandes e Celso Furtado, p. 416.
309
LISBOA, A. M. A modernidade tupiniquim, p. 5-6.
68
A complexidade da sociedade brasileira está visível desde as suas origens, quando
da sua formação na condição colonial como uma economia fundada no contraditório
eixo mercantil-escravista, o que é explicado pela promoção da primitiva acumulação
capitalista no contexto de expansão mercantilista-europeu no qual a empresa
colonial portuguesa não visava o povoamento, mas a apropriação rápida de um
grande excedente sob a forma de lucros obtidos através da comercialização dos
produtos coloniais no mercado mundial. (...) Esta busca por enriquecimento fácil
gerou o caráter predatório da nossa economia (...).
310
Conseqüência das grandes navegações, o Brasil e a América surgiu no mundo
quando o Velho Continente carecia alargar suas fronteiras, devido ao crescimento do
comércio e às dificuldades de negociar com o oriente em razão das invasões turcas, que
criavam dificuldades crescentes ao abastecimento de alguns produtos, particularmente da
manufatura. Pelo menos, assim descreveu Furtado, ao afirmar que a ocupação econômica das
novas terras "constitui um episódio da expansão comercial da Europa".
311
Afirmação
corroborada por Caio Prado Júnior, quando asseverou que a expansão se originou "de simples
empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daqueles países", para o autor, a era
que se convencionou chamar de "descobrimentos",
312
não é senão um capítulo da história do comércio europeu. Tudo que se passa são
incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a
partir do século XV e que lhes alargará o horizonte pelo Oceano afora. (...) A idéia
de povoar não ocorre inicialmente a nenhum. [dos povos europeus]. É o comércio
que os interessa.
313
Ribeiro Júnior, além de confirmar as circunstâncias do descobrimento e seu momento
histórico, lembrou que a ocupação de todo o continente latino-americano foi direcionada para
atender aos interesses das metrópoles, e as colônias desempenharam papel fundamental para a
estruturação e expansão da economia capitalista nascente. Assinalou, ainda que o Brasil e a
América ibérica "devia fornecer ao mercado europeu produtos tropicais de alto valor
comercial, metais nobres e pedras preciosas".
314
Dessa forma, o país nascia dependente do
mercado externo e com um papel determinado: proporcionar o crescimento e
desenvolvimento dos países europeus.
310
Ibid., p. 5-6.
311
Ibid., p. 5-6.
311
FURTADO, C. Formação econômica do Brasil, p. 6 .
312
PRADO JÚNIOR, C. História econômica do Brasil, p. 13.
313
Ibid., p. 14.
314
RIBEIRO JUNIOR, J. O Brasil monárquico em face das repúblicas americanas, p. 147.
69
Nesse panorama político, a conformação da sociedade brasileira tem em sua origem a
condição de colônia, da servidão, da extinção do nativo. Uma população resultado da mistura,
mas não da assimilação uniforme dos elementos que a compunham, uma estrutura econômica
dependente dos países centrais, uma nação que não conseguia superar seus problemas sociais.
É neste contexto que se inseriram as teorias raciais, aprofundando ainda mais a distância entre
o Brasil e a sociedade européia. E, neste sentido, tais teorias se constituíam num empecilho
aos movimentos nacionais, pois ao imputar aos povos do continente latino-americano as
razões de seu atraso, mascaravam as relações de exploração capitalista e marcavam de modo
indelével a formação destas nações e seus povos. De outro lado, exerciam o seu papel de
ideologia ao fornecerem argumentos "lógicos" para a manutenção do poder dos países
europeus.
A categoria 'raça', tão cara para os pensadores do começo do século XX, foi também
importante nas análises de Manoel Bomfim e de Paulo Prado. Orientados pelo discurso da
época, que relacionava raça e nação, avaliaram o impacto do cruzamento entre negros,
brancos e índios na formação da nacionalidade brasileira. Entretanto, as conclusões foram
distintas, enquanto para o primeiro, não se punha a viabilidade do Brasil pela questão racial,
para o segundo, as dificuldades estavam postas. Conforme o paulistano, a mistura deu origem
a uma nova 'raça', que se singularizava pela indolência, pela melancolia e pela tristeza,
portanto, a miscigenação havia marcado profundamente nossas origens e definiria nosso
futuro.
2. Brasil: uma nação miscigenada na interpretação de Manoel Bomfim e de
Paulo Prado
.
Manoel Bomfim era filho de pequenos proprietários e comerciantes. Nascido na então
província de Sergipe, ele conheceu cedo a realidade da escravatura, partilhou da vida de
escravos em sua terra. Quando adulto, por meio de uma expedição ao Rio Doce, teve
oportunidade de conhecer mais de perto as condições de vida dos índios botocudos, sobre a
qual afirmou Bechelli:
(...) se a sua experiência no engenho do pai possibilitou-lhe perceber como a escravidão era cruel e,
conseqüentemente, avaliar sua influência na população negra, a experiência que teve com os índios botocudos
lhe deu base necessária para avaliar, a questão do ameríndio – principalmente, na forma como este era tratado
pelos brancos.
315
315
BECHELLI, R. S. op. cit., p. 59.
70
A formação acadêmica de Manoel Bomfim iniciou-se na Escola de Medicina da
Bahia, onde Nina Rodrigues se notabilizou pelos seus trabalhos, comprovando o efeito
devastador do cruzamento racial. Em meados de 1887, Bomfim, antimonarquista e
republicano, vai morar na então capital federal e travar contatos com a intelectualidade da
época.
Filho do conselheiro Antonio Prado, ministro do Império, um conservador que
defendia uma "abolição gradual" e imigração da mão-de-obra branca, Paulo Prado "com
apenas 18 anos de idade, em 1887, participou da formação da Sociedade Promotora de
Imigração, ao lado de seu pai e de seu tio".
316
A formação acadêmica de Prado se deu na
Faculdade de Direito de São Paulo, aquela que nas palavras de Schwarcz tinha "suas raízes
atadas à independência política de 1822 (...) (e dedicou-se) à formação de quadros próprios e
de uma elite capaz de orientar os rumos da nação".
317
Concluiu o curso em 1889, ano da
República, e como destacou Berriel, "não pertenceu a uma geração digna de nota: era tarde
demais para ser romântico e cedo demais para que fosse modernista".
318
Depois de formado,
viajou para Europa.
A produção cultural desses dois autores é conseqüência de um processo de
amadurecimento e reflexão. O primeiro livro de Manoel Bomfim, América Latina: males de
origem, foi publicado em 1905, muito ligado a sua história, trata-se de um atento estudo das
condições sócio-econômicas da América Latina e seu passado colonial. A trilogia, publicada
anos mais tarde, volta-se ao Brasil e busca explicar nossas especificidades, a marca que ele
imprimiu em seu trabalho é o da contestação.
Paulo Prado era um empresário, pouco afeito às coisas brasileiras. Seu trabalho é bem
mais conciso que o de Manoel Bomfim, seus livros são baseados em documentos e relatos de
viajantes.
Bomfim e Prado, envolvidos nos debates da formação da nação e da questão racial,
fizeram uma análise que se opunham embora ambos manifestassem sentimento nacional.
Manoel Bomfim rejeitou as argumentações dos seus contemporâneos que atribuíam o atraso
brasileiro a categorias deterministas como 'raça' e 'clima'. Para ele, tais categorias, como
conceitos explicativos, só teriam sentido dentro de um contexto histórico, através das relações
sociais. Neste sentido, entendia o racismo científico como um instrumento de dominação, e o
316
BERRIEL, C. E. O. op. cit., p. 23.
317
SCHWARCZ, L. M. op. cit., p. 172.
318
BERRIEL, C. E. O. op. cit., p. 28.
71
livro América Latina foi escrito para dar uma dura resposta aos pensadores europeus.
Pretendia mostrar as vantagens do cruzamento ocorrido em solo latino-americano, destacar
que os problemas sociais enfrentados pelo continente tinham origem econômica e não racial,
revelar as relações de exploração à que estiveram submetidas as colônias ibero-americanas, e,
ainda, evidenciar o despreparo dos historiadores que se propunham a estudar nosso passado.
Além de denunciar o papel das classes dominantes nacionais na divulgação das idéias racistas.
Negou a inferioridade dos latino-americanos, afirmou que a teoria das raças inferiores
não passava de "um sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência
barata, e covardemente aplicado à exploração dos fracos pelos fortes".
319
Conforme Oliveira,
Bomfim "viu com uma clareza espantosa que o povo brasileiro não era inferior, mas
inferiorizado".
320
Darcy Ribeiro, no prefácio de América Latina, afirmou que uma das contribuições de
Bomfim foi "haver percebido o caráter reacionário e anti-científico do chamado 'darwinismo
social'". Ressaltou que:
no tempo em que tantos autores (...) apelavam para esta falsificação como
explicação básica da história, Manoel Bomfim a desmascara, afirmando que é
desonesto confundir as "alternativas históricas dos povos" com a suposta
"inferioridade definitiva das raças".
321
E, de fato, o darwinismo sociológico defendido por Spencer foi duramente atacado
pelo sergipano. Conforme Ventura & Sussekind, trata-se de uma interpretação "da sociedade
a partir da evolução das espécies e da seleção natural".
322
Para o filosofo inglês,
deve vigorar na sociedade a liberdade de iniciativa econômica, condenando-se,
portanto, medidas previdenciárias ou a intervenção do estado na economia. A
proteção ao mais "fraco" entravaria a seleção natural, impedindo a evolução da
espécie humana. Ora, o spencerismo converte-se em justificativa ideológica para o
liberalismo econômico, o que é apontado em A América Latina: (...) a crítica ao
darwinismo sociológico se dá pela explicitação do seu vínculo com o liberalismo
econômico e com o racismo.
323
Após a publicação deste primeiro trabalho, Bomfim afastou-se, só retomando sua
produção histórico-sociológica na década de 1920, quando escreveu a trilogia sobre as
condições históricas do Brasil. O Brasil na América é o esforço empreendido pelo sergipano
319
BOMFIM, M. América Latina: males de origem, p. 243.
320
OLIVEIRA, F. Manoel Bomfim, o nascimento de uma nação. In: BOMFIM, M. A América Latina: males de
origem, p. 23.
321
RIBEIRO, D. Manoel Bomfim, antropólogo. In: BOMFIM, M. A América Latina: males de origem, p. 17.
322
VENTURA, R. e SUSSEKIND, F. História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bomfim, p. 29.
323
Ibid., p. 29.
72
para, em suas palavras, "caracterizar a formação brasileira". Ele manteve sua postura crítica
em relação ao processo histórico porque passaram as colônias latino-americanas, mas apesar
de afirmar que se tratava de uma continuação de idéias, "que nestas páginas de agora se
encontre, apenas, o desenvolvimento de conceitos patentes no outro livro",
324
o autor efetuou
um corte entre América Latina e a trilogia, particularmente, O Brasil na América. Se em
América Latina Manoel Bomfim queria expor as conseqüências nefastas do passado colonial,
denunciar a ação imperialista dos países mais ricos, se intencionava trazer à lume os
problemas de todo o continente latino-americano; no primeiro livro de sua trilogia, a pesquisa
se volta para o Brasil, para estudar as especificidades brasileiras, destacar e enaltecer o que
nos tornava ímpares frente às demais colônias ibero-americanas.
Entretanto, esse "corte" não se restringiu a uma "questão geográfica". Como salientou
Uemori "a obra de Bomfim (conjunto de textos) não é homogênea", há uma mudança drástica
no discurso do autor entre América Latina e O Brasil na América.
325
O segundo trabalho é um
lamento nacionalista, nele o autor romanceou a história, enalteceu os primeiros rudimentos da
nação, mitificou o nativo, amenizou os horrores da escravidão, engrandeceu os feitos
portugueses, tudo em nome da construção nacional. O livro transborda otimismo e um
"expressivo entusiasmo pelo Brasil", como denotou Nunes.
326
Baggio acusou O Brasil na América de "minimizar a influência dos negros sobre a
essência da alma brasileira", e, com isso, "reduzir a importância do papel do negro na
formação nacional brasileira, pois, como vimos, reforçou a idéia de que nossas raízes
nacionais já estavam em franco processo de consolidação no primeiro século e meio da
colonização".
327
A análise de Uemori afigura-se mais procedente, segundo ele, não se trata, aí,
de negligenciar a contribuição ou negar a presença do negro na formação brasileira, mas sim
de dissimular o problema de modo a suavizar as oposições. Brasil na América, asseverou, é
uma tentativa de harmonização, de não revelar conflitos, de "esquecer" alguns acontecimentos
para viabilizar a nação brasileira. E acrescenta: América Latina é uma obra anti-romântica; e
O Brasil na América, romântica, para então concluir que as duas obras são antagônicas, pois,
324
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 27.
325
UEMORI, C. N. Explorando em campo minado: a sinuosa trajetória intelectual de Manoel Bomfim em busca
da identidade nacional, p. 99.
326
NUNES, M. T. Manoel Bomfim: pioneiro de uma ideologia nacional, p. 15.
327
BAGGIO, K. G. A outra América: a América Latina na visão dos intelectuais brasileiros das primeiras
décadas republicanas, p. 200-1.
73
Se em América Latina ele enxergou a violência, o ódio como fatores mediadores das
relações sociais entre as classes, em O Brasil na América o acento foi colocado na
harmonia, na cooperação e na solidariedade entre o colonizador e os "selvagens".
328
Ao mesmo tempo em que Bomfim escrevia O Brasil na América, Paulo Prado
publicou Paulística, um ensaio regionalista em que investigava a formação de São Paulo; mas
a obra mais encorpada do autor é Retrato do Brasil. Um ensaio, como ele disse, que se
caracterizava pelo seu caráter "não regionalista". Nela, o estudioso paulistano procurou
reproduzir em palavras sua impressão do país, e a imagem não podia ser mais implacável.
Retrato do Brasil é a descrição de um país amargo, marcado pela sua experiência colonial.
329
Ali, Prado destrinçou as mazelas sociais, denunciou a sedução dos trópicos, criticou o
comportamento dos habitantes da colônia, reprovou a política da metrópole portuguesa,
condenou a escravidão, e lançou dúvidas sobre a eficácia da mestiçagem.
O livro é o espelho da alma do autor carregado nas tintas do pessimismo, nele não há
Brasil viável. Éramos um povo triste de uma pátria em ruína, e o futuro do país estava
irremediavelmente definido pelo seu passado. É uma contundente reprovação aos ufanistas,
como Afonso Celso, para Buonicore, seu "objetivo era combater as visões românticas e o
otimismo ingênuo sobre o Brasil".
330
Segundo Nogueira, o bem nascido Paulo Prado
surpreendeu a todos pela veemência, com Retrato do Brasil, pois,
insurgia-se contra a visão que apresentava o Brasil como um paraíso de riquezas e
bondades inesgotáveis, quase sem "vícios", um rincão de belezas naturais
incomparáveis, rios caudalosos, matas exuberantes e aves com plumagens as mais
formosas, ocupado por um povo pacato e trabalhador, totalmente dedicado a
construir uma pátria predestinada a ser perfeita.
331
Quem também deu destaque ao pessimismo de Paulo Prado em Retrato do Brasil, foi
Sodré para quem o livro:
reflete o pessimismo, em relação ao nosso País, pessimismo que está ligado, pelo
autor, à formação de nosso povo, inferiorizado pelas suas origens. Êsse pessimismo
em relação ao povo, essa aceitação e eco de preconceitos gerados pelos interêsses
das classes dominantes, traduz o desespêro burguês ante a falta de perspectiva
histórica para a sua classe.
332
328
UEMORI, C. N. op. cit., p. 105.
329
PRADO, M. E. Leituras da colonização portuguesa no Brasil do século XX, p. 11.
330
BUONICORE, A. C. Descobrindo o povo brasileiro, p. 14.
331
NOGUEIRA, M. A. Paulo Prado: Retrato do Brasil, p. 193.
332
SODRÉ, N. W Memórias de um escritor I, p. 29.
74
Mas como destacou Nogueira, não que Paulo Prado fosse um antipatriótico;
333
ao
contrário, ele queria:
expor para o grande público os entraves e os dilemas que praticamente condenavam
o país a uma situação que parecia não se distanciar muito da que havia predominado
na antiga colônia portuguesa. Incomodava-o que os brasileiros não tivessem
consciência do país em que viviam, que não percebessem o lado sombrio e
problemático da sua formação histórica – invariavelmente associado ao passado
colônia e à escravidão e banalizassem romanticamente as dificuldades que lhe
travavam o progresso. (...) Não temia, por isso, a polêmica, nem a pecha de
"pessimista" Achava-se mesmo condenado a ela e a aceitava com facilidade, quase
de modo blasé. Ele era, afinal, um modernista.
334
Na década de 1920, no Brasil as ciências naturais ainda estavam muito dominadas
pelas idéias raciais e os intelectuais brasileiros dominados pelo cientificismo. Assim, a idéia
da raça como base da nação orientou as análises de muitos intelectuais da época, e poucos
pensadores se dispuseram a pensar o país por outro prisma. Como ressaltam Ventura &
Sussekind:
A partir de 1870, com a influência do cientificismo, evolucionismo e positivismo, o
racismo científico é adotado pela intelectualidade brasileira. As teorias racistas
colocavam, porém, um impasse para a elite pensante: se as raças negra e índia, além
da latina, eram inferiores, estariam a nação e o povo brasileiros irremediavelmente
condenados ao atraso? Tal impasse abria dois caminhos possíveis: ou bem a
aceitação da ausência de soluções, ou então a formulação de uma "saída" através de
um ajuste das teorias raciais ao contexto brasileiro. Se um Nina Rodrigues, por
exemplo, condenava tanto o negro e o índio quanto o mestiço, alarmando-se com a
perspectiva de toda a população brasileira tornar-se negra por meio do cruzamento;
outros, como Sílvio Romero e Joaquim Nabuco, aceitavam a inferioridade do negro
e do índio, defendendo, porém, a sua extinção e integração à raça e à cultura brancas
através da miscigenação. Romero acreditava que a miscigenação branquearia, em
três ou quatro séculos, a população, principalmente se a imigração aumentasse a
proporção do elemento branco na mistura.
335
Essa inferioridade não convencia Bomfim. Desde seu primeiro livro, América Latina,
ele foi enfático quanto à questão racial. O eixo central do autor era a nação, mas, como a
temática racial embasava as discussões de seu tempo, o autor trabalhava com a categoria
refutando qualquer tentativa de inferiorização de seu povo, o que equivaleria inferiorizar a sua
nação.
333
NOGUEIRA, M. op. cit., p. 193.
334
Maria Emilia Prado não concorda com essa apreciação e argumenta que, apesar de impregnado pelo espírito
da época, Paulo Prado não era um modernista (Prado. 2006, p. 7). Dutra (2000, p. 249) destacou que mesmo
com a ativa participação de Paulo Prado na Semana de Arte "não unanimidade entre os autores que analisam
sua obra quanto à aceitação da sua condição de autor modernista ...". E Diniz (2006, p.11) afirmou que, em
Retrato do Brasil, o autor adaptou as teorias raciais e as usou sua maneira. Uma atitude antropofágica
tipicamente modernista".
335
VENTURA, R. e SUSSEKIND, F. op. cit., p. 99.
75
No livro O Brasil na América, buscando caracterizar nossa formação, o autor seguiu
os rastros da história e aportou no mundo antigo, no tempo em que Roma era o grande
império. Mostrou a resistência ibérica, a linhagem portuguesa, a ruptura entre Castela e a
Lusitânia; esse percurso transcorrido por Bomfim, tinha o intuito de provar que as diferenças
entre nações se explicam pelo processo histórico, sem qualquer influência de "raça".
Conforme afirmou:
Na formação das tradições, para o definir das nacionalidades, tudo se resolve em
diferenciações históricas. Raça, clima, religião, língua (...) ficam sem valor, se não
há, nos motivos d'alma do grupo, estímulos sociais e morais que exijam afirmações
próprias, e determinem, com isto, um destino nacional distinto, que será a história
de um povo.
336
A idéia subjacente à rejeição das teorias raciais, na formulação do sergipano, era a da
construção da nação. Aceitar a hierarquização das raças inviabilizava o projeto nacional,
afinal, que nação poderia ser construída com pessoas inferiores? E esse projeto era muito caro
aos intelectuais daquele momento, sobretudo aos pensadores nacionalistas como Manoel
Bomfim.
Baseada na presunção da superioridade branca, a tese do branqueamento pressupunha
a "purificação" da sociedade brasileira, e os intelectuais da época preocupados com a
construção da nação mostraram-se receptivos à idéia. O Brasil na América exibe um país
mestiço e, refutando as teorias das raças puras, afirma que no caso da população brasileira o
cruzamento era uma vantagem.
337
Bomfim nunca se convenceu da fundamentação científica
dessas doutrinas, e sobre tal argumentação asseverou: "não chega a ser pérfida, porque é
estulta".
338
Inferiores, com tendências à vida criminosa, menor capacidade intelectual, pouco
afeito às atividades contínuas e rotineiras, sem educação e preparo para o trabalho, todas essas
acusações pesavam sobre o negro e seus descendentes. Nas páginas de Retrato do Brasil,
trezentos anos após o descobrimento, o país permanecia estagnado em seu desenvolvimento
econômico, com uma população exausta, doente, seus "povoadores mestiçados, sumindo-se o
índio diante do europeu e do negro, para a tirania nos centros litorâneos do mulato e da
mulata".
339
336
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 39.
337
Ibid., p. 167.
338
Idem, América Latina: males de origem, p. 244.
339
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 161.
76
É manifesta em Prado a crença da degeneração da raça, se em Paulística, falava que o
Jeca de Monteiro Lobato era o mameluco "ágil e ardiloso" decadente,
340
em Retrato do Brasil
foi mais longe: falou da "transformação biológica dos elementos étnicos", do mulato que era
"o ponto mais sensível do caso brasileiro", da "lei biológica da heterose", do "caboclo
miserável (...) o descendente da esplêndida fortaleza do bandeirante mameluco", defendeu
claramente a arianização do povo brasileiro "na cruza contínua (...) o negro desaparece".
341
Na opinião do paulistano, o negro, por causa da escravidão, havia deixado uma marca muito
profunda e negativa no caráter nacional. Como um bom discípulo de Nina Rodrigues,
sugeriu a suscetibilidade dos africanos às doenças e aos cios, mas não os relacionou às
condições sociais em que eles viviam; ao contrário, referiu-se "ao intenso cruzamento das
raças e sub-raças", endossando a idéia de cientistas americanos de esterilizar o negro, como
forma de eliminar conflitos, revelando uma postura de classe.
Bem diferente pensava Bomfim, na visão do sergipano, o povo brasileiro era o
verdadeiro construtor desta pátria; portanto, não podia haver nele qualquer tipo de
inferioridade. Em O Brasil na América afirmou que quem fez o Brasil, o defendeu, e o
expandiu até constituir-se em nação soberana, foram os brasileiros, e esses brasileiros eram
mestiços.
342
Decadência para Bomfim, foi o que ocorreu com as nações ibéricas, corroídas
pelo parasitismo de seus dirigentes. A idéia do abastardamento dos mestiços e da degeneração
da raça, tão ao gosto de pensadores como Nina Rodrigues, que teve em Euclides da Cunha um
forte adepto, e, em Prado um sutil defensor, encontrou em Bomfim uma contundente
oposição. Conforme Aguiar, "ao contrário de Euclides da Cunha, Manoel Bomfim não
entendia a miscigenação como o primeiro passo de um processo de degenerescência
étnica".
343
E ressaltou ainda que Bomfim, como poucos,
percebeu que a questão racial confundia-se, em todos os sentidos, com a questão da
identidade nacional ou mais especificamente, com a idéia de formação nacional.
(...) procurou demonstrar as inconsistências gicas e as imperfeições da base
empírica e histórica da "teoria das raças inferiores", que, segundo ele, expressava os
interesses dos grupos exploradores, internos e externos.
344
340
Idem, Paulística etc., p. 90.
341
Idem, Retrato do Brasil, p. 191-2.
342
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 333.
343
AGUIAR, R. C. op. cit., p. 185.
344
Ibid., p. 184.
77
Em O Brasil na História, Bomfim contestou as opiniões do escritor e jornalista
carioca, afirmando que:
Ha sem duvida, mistura de gentes e de raças, na formação nacional
brazileira, sem que isso signifique, como aprouve ao bel-prazer de Euclydes –
profundas discordancias ethnicas a separar-nos, e menos ainda que estivesse o
Brasil fadado a decompor-se em republicas turbulentas, sem affinidade
fortalecedora de uma tradição secular profunda. (...)
345
Ao recusar terminantemente as teorias raciais, Bomfim estabeleceu um novo recorte
para analisar as condições dos povos latino-americanos. Desviou a leitura do eixo
determinista para o sócio-histórico, mostrou a importância dos fatores sociais e econômicos
na formação histórica das nações, ressaltou a importância do povo na constituição de uma
pátria. E, por povo ele compreendia a própria nacionalidade, era "uma tradição caracterizada,
em que se contém a respectiva política, e moral e estética". Era o aglomerado social com,
consciência nacional.
346
Bechelli ressaltou que Bomfim acreditava na população como sendo a base formadora
do país.
347
Por isso refutava as teorias raciais, e também por isso, enalteceu, no Brasil, os
pioneiros portugueses e os nativos, o que lhe valeu o epíteto dado por Gilberto Freyre de
"indianófilo até a raiz dos cabelos".
348
O que estava por trás da idéia de raças era a divisão internacional do trabalho, num
contexto de extrema competição imperialista, aspecto captado pelo sergipano, que enxergava
a posição subalterna do Brasil no sistema capitalista mundial, por isso sintetizou a teoria das
raças inferiores da seguinte forma:
vão os "superiores" aos países onde existem esses "povos inferiores", organizam-
lhes a vida conforme as suas tradições deles superiores; instituem-se em classes
dirigentes e obrigam os inferiores a trabalhar para sustentá-las; e se estes o não
quiserem, então que os matem e eliminem de qualquer forma, a fim de ficar a terra
para os superiores: os ingleses governem o Cabo, e os cafres cavem as minas; sejam
os anglo-saxões senhores e gozadores exclusivos da Austrália, e destruam-se os
australianos como se fossem urna espécie daninha (...).
349
Segundo Leite, era claro para Bomfim que a teoria das raças era a justificativa
européia para domínio e escravização do resto da humanidade.
350
Ao argumento de que a
345
BOMFIM, M. O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 143 - Grifos do autor.
346
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 328.
347
BECHELLI, R. S. op. cit., p. 13.
348
FREYRE, G. Casa-grande & senzala, p. 167.
349
BOMFIM, M. América Latina: males de origem, p. 245.
350
LEITE, D. M. Op. cit., p. 254.
78
mistura iria obstaculizar a formação de uma nação, ele se contrapôs, ressaltando que os
verdadeiros motivos dos preconceitos europeus eram o interesse e a ignorância. "Pode-se
dizer que esta condenação tem dupla causa: a causa afetiva, interesseira e uma causa
intelectual a inteira ignorância das nossas condições e da nossa história social e política, no
passado e no presente".
351
Se o sergipano foi claro e incisivo em sua rejeição às teorias raciais, a mesma postura
não se verifica no autor de Retrato do Brasil. Ainda que julgasse "mal definido" e uma
questão em aberto na ciência, o termo "raça", presente na discussão de sua época, foi muito
usado, pelo paulistano, em sua avaliação sobre o Brasil.
352
Como destacou Almeida, "o autor
se utiliza de conceitos de raça e determinações biológicas e geográficas".
353
É bem visível em
Prado a força das doutrinas dominantes em seu tempo, ao falar em "raça paulista"
354
, "astenia
da raça"
355
, e ver o país como um "cadinho" das três "raças";
356
além disso, acreditava na
superioridade dos paulistas pela descendência dos mamelucos, mas também se convenceu da
debilidade do caboclo, como um determinismo, portanto, sua crença na degeneração das raças
acarretava sua descrença com o futuro do país. Contudo, ele não abraçou, de forma explícita,
as teorias raciais, defendeu que as diferenças entre os seres humanos não se situavam na
esfera da habilidade intelectual. Salientou em Retrato do Brasil:
Todas as raças parecem essencialmente iguais em capacidade mental e adaptação à
civilização. Nos centros primitivos da vida africana, o negro é um povo sadio, de
iniciativa pessoal, de grande poder imaginativo, organizador, laborioso. A sua
inferioridade social, nas aglomerações humanas civilizadas, é motivada, sem dúvida,
pelo menor desenvolvimento cultural e pela falta de oportunidade para a revelação
de atributos superiores. Diferenças quantitativas e não qualitativas, disse um
sociólogo americano: o ambiente, os caracteres ancestrais, determinando mais o
procedimento do indivíduo do que a filiação racial.
357
351
BOMFIM, M. América Latina: males de origem, p. 40.
352
PRADO, P. Paulística etc., p. 130.
353
ALMEIDA, T. V. Retrato do Brasil no contexto pós-moderno, p. 345.
354
PRADO, P. Paulística etc., p. 58.
355
Idem, Retrato do Brasil, p. 183.
356
Ibid., p. 195.
357
Ibid., p. 191.
79
Na opinião de Diniz, as teorias raciais influenciaram, mas não foram determinantes em
Retrato do Brasil. Sem negar-lhe contradições, viu em Paulo Prado, um pensador desprendido
dos preconceitos do seu tempo, um intelectual contestador.
358
E declarou:
Os rasgos do 'racismo científico' que povoam a obra de Prado devem-se mais a um
escopo teórico em voga no horizonte de idéias da época. De qualquer modo, Paulo
Prado se aproxima desse campo intelectual sem, no entanto, ser contaminado pelo
seu radicalismo. Isso equivale a dizer que a psicologia racial empreendida por Prado
não é, em hipótese alguma, uma visão racista da história do Brasil.
359
De outro lado, se Paulo Prado não aceitou as teorias predominantes; também não
conseguiu superá-las. Bem ajustado aos valores de sua época, negou haver conflito racial no
Brasil, colocando-nos em campo oposto ao dos Estados Unidos; na sua leitura, as relações
sociais aqui avançaram para a mistura e para a harmonia entre as "raças"; entretanto, a
questão da desigualdade biológica das raças, ele lançou para a ciência resolver.
360
Além da sutil defesa do branqueamento, estudiosos do seu trabalho, como Crespo, por
exemplo, o vêem "fuertemente influido por ideas de carácter evolucionista y determinista (por
no decir racista), el pueblo brasileño provenía de un mestizaje (étnico y cultural) que era
resultado de la lascivia, la codicia y la melancolía".
361
As páginas de Retrato do Brasil
corroboram essa interpretação, ao narrar a força da natureza corrompendo o homem, o vigor
do clima, que subjugava o espírito e o corpo e a menção que fez de autores positivistas como
Buckle.
362
Semelhante opinião tem Nogueira, para quem Retrato do Brasil não avançou muito
no debate sobre a contribuição do negro para a sociedade brasileira e salienta ser visível no
livro alguma influência do determinismo biológico.
363
A relação entre raça e nação é explícita em seu texto. Apoiando-se no relato de
Luccock, um viajante inglês, Prado reforçou preconceitos ao falar das condições das cidades
coloniais brasileiras. Ao destacar no país a estrutura social desordenada, a falta de higiene e
de "alimento espiritual", o aspecto desagradável dos negros que habitavam as cidades
358
DINIZ, C. L. C. Tristeza tupiniquim: a melancolia brasileira no Retrato do Brasil de Paulo Prado, p. 11.
359
Ibid., p. 11.
360
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 190-1.
361
CRESPO, R. A. Retratos de México, retratos de Brasil: José Vasconcelos, Monteiro Lobato, Paulo Prado y
sus visiones de lo "nacional", p. 10.
362
PRADO, P. op. cit., p. 66, 139, 143.
363
NOGUEIRA, M. A. op. cit., p. 205.
80
brasileiras, e das suas precárias condições de vida e saúde,
364
o autor revela certo desprezo
pela "plebe", e ninguém melhor para encarnar essa "plebe" que o negro. No entender de
Prado, desde o período colonial a escravidão infundiu na sociedade um estigma, a influência
do negro e do mestiço, com sua vida dissoluta, envenenou a formação brasileira, e o Brasil de
sua época era o reflexo de um passado sombrio.
Este passado mal visto, do qual fazia parte também o branco europeu, era interpretado
por Prado como atraso, e sua proposta era a superação desse atraso. Daí, que mesmo
reconhecendo no colono lusitano a "célula inicial da nossa formação",
365
não perdeu a mira e
acusou-os de lascivos e gananciosos. Segundo ele, o que caracterizava o português do século
XVI, era o seu transoceanismo, o lusitano não vinha para com idéia de fixar-se, mas
"ganhar fortuna, o mais depressa possível para desfrutar no além-mar".
366
Veio esse colono
primitivo, um "individualista e anárquico, ávido de gozo e vida livre veio-nos em seguida o
português da governança e da fradaria. Foi o colonizador. Foi o nosso antepassado
europeu".
367
Essa foi a contribuição branca para a miscigenação, entendida por Prado como
conseqüência de simples impulso sexual, desse modo, a sociedade brasileira era, na visão do
paulistano, constituída pela imoralidade do branco, da lascívia do índio e contaminação do
negro, resultando uma sociedade pervertida, corrupta e viciada.
Já, Bomfim, que assim como Prado, atribuiu grande importância aos portugueses na
formação do Brasil, retratava os primeiros exploradores portugueses como valorosos e
tenazes, ordeiros, disciplinados, excelentes povoadores, formadores de vida agrícola.
368
Eles
trouxeram consigo a idéia de pátria, para vieram "com o intuito implícito de conquistar a
natureza".
369
A sociedade era a confluência da homogeneidade política e unificação do
português, sua cordialidade e simplicidade da vida social do nativo,
370
e, por fim, a
afetividade e dedicação do negro. Embora Bomfim, negasse a inferioridade das raças, não
364
PRADO, P. op. cit., p. 155-9.
365
Ibid., p. 187.
366
Ibid., p. 87.
367
Ibid., p. 139.
368
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 84.
369
Ibid., p. 87.
370
Ibid., p. 148.
81
conseguiu fugir do ardil do seu tempo, entremeando a formação do Brasil com a
miscigenação. Ao que parece, no pensamento de Bomfim a 'raça' reveste a questão nacional.
Assim havia sido formada a nação, com a mistura de raças e de culturas,
371
a
miscigenação, portanto, se devia ao próprio caráter do colonizador, não pela sua devassidão,
como pensava Prado, mas pela sua capacidade de assimilação e entrosamento, por isso, o
português foi o colonizador que mais cruzou.
372
Segundo Manoel Bomfim, o português tinha experiência da mistura racial em sua
própria terra, pelo menos era o que pensavam os alemães de todos os ibéricos,
373
de
temperamento fácil, e em pequeno número no Brasil, a mistura com o indígena tornava-se
inevitável; havia ainda, a preocupação da Coroa em ocupar o território para garantir a posse.
Na leitura de Paulo Prado, o cruzamento, que ocorreu como resultado do comportamento
lascivo do colonizador, concorreu para a "solução para o problema da colonização e formação
da raça no novo país",
374
mas uma 'raça', como dito, marcada pelo vício, era a devassidão
se impondo sobre o brasileiro, enquanto Manoel Bomfim via no nacional o ápice do que havia
de melhor em cada um dos elementos formadores, e afirmava que o Brasil era mais que a
soma da contribuição de cada um deles.
Dessa forma, a primeira contribuição de Portugal para com o Brasil foi ter participado
da construção do tipo étnico nacional: o brasileiro. E essa influência, acreditava Prado, foi
decisiva para a futura população, porque além da quota biológica, o modo de ser do português
demarcou o caráter da população, um povo marcado pela imposição de seus instintos.
375
Na
análise de Retrato do Brasil, Nogueira destacou que:
Paulo Prado estava convencido de que o contato com o conquistador português,
europeu, caracterizado por uma experiência cultural em boa medida repressiva, com
a "exuberância de natureza tão nuançada de força e graça", marca de modo decisivo
a experiência brasileira.
376
Assim se explicava, na visão de Prado, o perfil do novo homem, formado na luta entre
a luxúria e a cobiça, "sem outro ideal, nem religioso, nem estético, sem nenhuma preocupação
371
Ibid., p.108.
372
Ibid., p. 108.
373
Ibid., p. 190.
374
PRADO, P. op. cit., p. 69.
375
Ibid., p. 161.
376
NOGUEIRA, M. op. cit., p. 201.
82
política, intelectual ou artística criava-se pelo decurso dos séculos uma raça triste".
377
Para
ele a melancolia era o nosso principal legado, e mais, a melancolia da luxúria e da cobiça são
vincos na "nossa psique racial", uma doença provocada "pela ausência de sentimentos afetivos
de ordem superior", e afirmava que foi nesse ambiente "que nasceu, viveu e proliferou o
habitante da Colônia".
378
Prado também reclamava a homogeneidade da população brasileira, acreditando na
necessidade dela para a constituição nacional; além disso, deixou transparecer a pouca fé que
creditava no mestiço. Na nação que não se formara, de acordo com ele, o amálgama de todas
as "cores e caracteres se instituía na evolução da raça o reino da mestiçagem".
379
Era essa mestiçagem que Bomfim valorizava. Se o Brasil era o encontro das três raças,
o brasileiro era o aprimoramento de cada uma delas, na opinião do sergipano, o nacional se
constituiu na luta, mas na luta pela defesa do território, e esse fator foi decisivo "nos destinos
e no caráter da sociedade nacional que aqui se formou".
380
Afirmava que o povo brasileiro é
"uma tradição caracterizada", "o brasileiro formou-se em condições de crescer e durar,
porque, desde sempre teve consciência de sua existência nacional".
381
O otimismo de Manoel Bomfim não lhe permitia ver tristeza, nem prejuízo no
encontro entre "as três raças humanas extremas".
382
A nação brasileira era o resultado de tais
cruzamentos e como cientista, partindo da natureza, vislumbrou as vantagens do
amalgamento racial, pondo em cheque a primazia da "raça pura". Era essa mistura que nos
caracterizava, era ela que definia a nossa 'brasilidade', falava da sociedade colonial como um
"contínuo caldeamento de raças, numa explícita combinação de energias e de tradições".
383
Ainda dentro dos limites da raça, afirmava que:
a formação nacional não é um simples desenvolvimento social, político, civil e
moral, mas um profundo e prolongado processo físico-psicológico. De fato, no
descortinar do passado, para a compreensão do presente, vemos a sociedade colonial
377
PRADO, P. op. cit., p. 140.
378
Ibid., p. 141.
379
Ibid., p. 148.
380
BOMFIM, M. op. cit., p. 209.
381
Ibid., p. 328.
382
Ibid., p. 167.
383
Ibid., p. 327.
83
a realizar o contínuo caldeamento de raças, numa explícita combinação de energias e
tradições.
384
Mas as circunstâncias históricas contribuíram para miscigenação. A descoberta do
ouro nas terras espanholas da América foi um fato importante na opinião dos dois estudiosos.
Manoel Bomfim considerava que o tardio descobrimento das riquezas minerais em solo
brasileiro acarretou o desenvolvimento de outros setores da economia, como a agricultura.
Segundo o sergipano, a exploração agrícola e a assimilação de raça nos singularizavam dentro
deste continente,
385
além de, ainda, acrescentar que o regime de capitanias gerou "o
povoamento estável das terras brasileiras,
386
e a colonização portuguesa tendeu a constituir
uma população relativamente homogênea, através de um largo cruzamento, e "por isso, a
formação brasileira tem um cunho sem similar na América: mistura, unificação e
nacionalidade prematura." (...).
387
Nas páginas de O Brasil na América, o autor,
demasiadamente nacionalista, descreveu um Brasil, onde os índios foram se juntando aos
colonizadores, se imiscuindo, sem violência; e uma América ibérica em que eles foram
exterminados.
Em Retrato do Brasil, a demora na localização das jazidas aumentou a obsessão dos
colonos "espalhada por todas as classes como uma loucura coletiva",
388
e, diferente de
Bomfim, Prado via esse frenesi pelo ouro desviar todo interesse do colono em desenvolver
qualquer outra atividade, por isso considerava que durante anos a economia se circunscreveu
ao cativeiro do gentio, à febre do ouro e da riqueza mineira.
389
Na interpretação do
paulistano, a cobiça incitava os homens, mas foi a luxúria que promoveu a mescla racial no
Brasil. Segundo ele, nesta sociedade androcêntrica, do branco europeu, "tudo favorecia a
exaltação de seu prazer: os impulsos da raça, a molícia do ambiente físico, a contínua
primavera, a ligeireza do vestuário, a cumplicidade do deserto e, sobretudo, a submissão fácil
e admirativa da mulher indígena",
390
cenário agravado com a vinda da mulher africana.
384
Ibid., p. 327.
385
Ibid., p. 351.
386
Ibid., p. 87.
387
Ibid., p. 340.
388
PRADO, P. op. cit., p. 115.
389
Ibid., p. 106.
390
Ibid., p. 89.
84
Em Paulo Prado, o Brasil mestiço não tinha como progredir, atrasado, com fraco
desenvolvimento e com uma estrutura mal organizada por culpa de seu povo, era uma nação
constituída da mistura de raça que a cada geração se degenerava. Para Prado, o meio não
contribuía: ao contrário, corrompia, era uma "natureza estonteadora de pujança, ou
terrivelmente implacável", o clima induzia o crescimento populacional – os influxos da
luxúria –, no interior predominava o cangaço e no nordeste a ignorância e o fanatismo: país
doente e abandonado, que repousa em seu sono colonial.
391
391
Ibid., p. 199-200-210.
85
CAPÍTULO III A IMPORTÂNCIA DE SÃO PAULO PARA O
DESENVOLVIMENTO NACIONAL NA
VISÃO DE MANOEL BOMFIM E DE
PAULO PRADO.
1. O papel dos paulistas.
No Brasil-colônia, a exigência da ocupação do território, aliada à busca de metais
preciosos contribuíram para o surgimento do fenômeno das bandeiras. As raízes do
movimento remontam o século XVI; no entanto, como apurou Abud, corroborando a queixa
de Paulo Prado, a documentação é escassa: "as bandeiras não deixaram suas memórias",
392
até
porque se tratavam de empreendimentos de particulares, muitas vezes de cunho ilegal.
Segundo a pesquisa da autora, os primeiros vestígios documentados deste tipo de organização
nos remetem à Guerra dos Emboabas, quando os paulistas sentiram a necessidade de registrar
suas descobertas para garantir a posse àqueles que julgavam ser seus donos.
393
O que se sabe, como relatou Abreu, é que originariamente as bandeiras eram
expedições de homens direcionados em prender e escravizar o gentio, "o nome provém talvez
do costume tupiniquim, referido por Anchieta, de levantar-se uma bandeira em sinal de
guerra",
394
e São Paulo se notabilizou pelo bandeirantismo. Embora Davidoff o descrevesse
como o "fruto social de uma região marginalizada, de escassos recursos materiais e de vida
econômica restrita",
395
para Morse, tal argumento não constitui explicação suficiente para a
longa persistência do fenômeno. Segundo ele, "uma série de outros fatores, étnicos, culturais
e psicológicos, poderia ser aduzido (...)".
396
O fato é que o paulista não atendia aos anseios da
Coroa. Parece que São Paulo não cabia na colonização brasileira, baseada na grande
propriedade monocultora, utilizando mão-de-obra escrava e voltada para o mercado externo.
392
ABUD, K. M. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições a construção de um mbolo paulista: o
bandeirante, p. 15.
393
Ibid., p. 60.
394
ABREU, C. Capítulos de história colonial, p. 128.
395
DAVIDOFF, C. H. op. cit., p. 25.
396
MORSE, R. M. Formação histórica de São Paulo: (de comunidade à metrópole), p. 34.
86
Começando pelo litoral, São Vicente não apresentava as condições "propícias à ação
do colonizador português. A estreita faixa litorânea e a má qualidade do solo das terras
próximas à marinha agiram como sérios obstáculos para a consecução do empreendimento
açucareiro",
397
acrescentando-se, ainda, a distância dos portos da Europa, as perspectivas do
litoral diminuíam, e a fundação de São Paulo, acabou por selar o destino da região vicentina.
A história de São Paulo começou antes da instalação dos jesuítas no Pátio do Colégio
em 1554. Da capitania de São Vicente, os homens rumaram em direção ao interior do
continente, e a barreira natural representada pela serra forçou os desbravadores a instalar,
inicialmente, a vila de Piratininga na borda do campo, o que significava "uma vitória ganha
sem combate sobre a mata, que reclamou alhures o esforço de várias gerações. Deste avanço,
segundo Abreu, procede ao desenvolvimento peculiar de São Paulo".
398
A localização parecia adequada, próximo ao rio Tietê, que poderia conduzir à bacia do
Prata, com fácil acesso ao rio Paraíba, e às Serras do Mar e da Mantiqueira. atingir o
planalto foi dura tarefa, Lima ressaltou que:
o mais difícil era galgar a cadeia de serras costeiras. Uma vez lá em cima, a extensão
dos planaltos convidava a marchar pela superfície, sobre a qual os rios não cavam
vales profundos, e contentam-se de saltitar através dos rápidos e dos escolhos.
399
E, conforme mencionou Frei Vicente Salvador, no caminho aberto pelos índios nos
campos acima de Paranapiacaba, foi onde escolheu Manuel da Nóbrega para instalar-se a
partir de 25 de janeiro de 1554,
400
fundando-se, então, a província de São Paulo.
Assim, apartada pela montanha, a cidade cresceu, assumindo características
particulares, e com o tempo adquiriu independência. Como destacou Paulo Prado, "isolava-se,
ao findar o século XVI, um núcleo de rude população quinhentista, que ia aumentar e
proliferar protegido pela própria Natureza hostil".
401
Se os fatores geográficos desde cedo imprimiram a São Paulo, um cunho particular
como ressaltou Levi , o que o levou a afirmar que a história de "São Paulo tem um caráter
especial próprio, pelo qual a geografia e os recursos naturais são grandemente
397
DAVIDOFF, C. H. op. cit., p. 12.
398
ABREU, C. op. cit., p. 127.
399
LIMA, O. Formação histórica da nacionalidade brasileira, p. 91.
400
SALVADOR, F. V. História do Brasil, p. 155.
401
PRADO, P. Paulística etc., p. 73.
87
responsáveis",
402
a atividade econômica também contribuiu para especificá-la. Quando Sodré
discorreu sobre a formação da sociedade colonial no Brasil, assinalou que diferentemente do
nordeste,
na zona vicentina não se desenvolveu a lavoura da cana-de-açúcar ou se estabeleceu
o regime dos engenhos com a amplitude que assumiu na zona pernambucana, o que,
aliás, lhe permitiu a transferência para o planalto da maior parte da população. Não
existiram em São Vicente e em o Paulo, as condições aristocratizantes que se
impuseram nas zonas açucareiras, onde o açúcar se tornou a forma dominante,
quando não única de produção. A sociedade, em conseqüência, tomou forma
diversa.
403
De acordo com Prado Júnior, a pressão colonizadora se exerceu com maior
intensidade no litoral de São Vicente e "a ocupação do planalto paulista se inicia e desenvolve
muito cedo".
404
Mas, se, por um lado, os campos de Piratininga apresentavam-se mais
atraentes aos olhos do colonizador, pelo clima, pela vegetação, pelo relevo e pela abundância
do gentio, de outro, o solo pobre, e a resistência do nativo imprimiam ao povoado grande
instabilidade. Ainda que tenha prosperado, como assinalou Prado Júnior, São Paulo era, sem
dúvida, uma região pobre
405
, como narrou Davidoff
406
. Vivendo de uma precária agricultura
de subsistência, as relações mercantis eram limitadas, "as indicações revelam a existência de
uma aldeia miserável".
407
Simonsen distinguiu o clima do planalto como um atrativo para os europeus e que
pouco a pouco atraiu muitos colonos.
408
As condições físicas e meteorológicas da região,
prossegue o autor, não propiciaram a produção "em condições econômicas, (de) nenhum
desses produtos exóticos dos climas tropicais que justificassem o estabelecimento, com a
Metrópole, das onerosas linhas do comércio do tempo",
409
cultivava-se para o próprio
consumo. Distante, sem atrativos para a corte, sem as mesmas expectativas de riqueza do
402
LEVI, D. E. A família Prado, p. 43.
403
SODRÉ, N. W. O que se deve ler para conhecer o Brasil, p. 116.
404
PRADO JUNIOR, C. Evolução política do Brasil e outros estudos, p. 94.
405
Ibid., p. 93.
406
Há controvérsia entre os estudiosos do período acerca das condições econômicas de São Paulo, como mostrou
Davidoff (1998, p. 23); no entanto, considerando o que a maioria dos autores relata, este trabalho segue a linha
adotada pelo autor.
407
DAVIDOFF, C. H. op. cit.,p. 22.
408
SIMONSEN, R. C. História econômica do Brasil. (1500/1820), p. 206.
409
Ibid., p. 207.
88
nordeste, restava aos moradores de São Paulo buscar formas alternativas de sobrevivência,
pelo menos assim descreve Davidoff,
Em realidade o povoado de São Paulo se constituiu de forma muito original
no contexto da colonização, e foi nessa sociedade peculiar que se engendrou a figura
do bandeirante, o paulista socializado desde a adolescência para empregar a vida em
prender e escravizar o gentio nos sertões.
410
Paulo Prado, em Retrato do Brasil, identificou cinco núcleos do bandeirantismo: as
bandeiras paulistas, as baianas, as pernambucanas, as maranhenses e as amazônicas.
411
Assinalou, contudo, que fatores externos como isolamento da montanha, o cruzamento do
índio, e fatores internos como ânsias de independência, ambição de mando, deram ao
movimento das "bandeiras paulistas uma feição específica no desenvolvimento da história do
Brasil".
412
Davidoff ao abordar o assunto, mostrou que na historiografia duas correntes
com entendimentos distintos dos termos 'entradas' e 'bandeiras'. Uma que emprega a
designação de bandeiras a
todas as expedições que incursionavam pelo sertão, partindo de qualquer ponto do
Brasil e formadas a partir de iniciativa oficial ou particular. A outra corrente limita a
aplicação do termo entradas às expedições inspiradas pelos representantes da Coroa,
e reserva apenas aos grupos paulistas, de formação espontânea, o nome bandeiras.
413
Seguindo os passos de Davidoff, neste trabalho serão adotados os termos bandeira ou
entrada, indiscriminadamente, aplicados exclusivamente aos movimentos que partiam de São
Paulo.
As incursões pelas matas, os embates com os indígenas, a vida rústica que levavam,
formaram a idéia de que os paulistas eram violentos, rebeldes, insubmissos e selvagens;
vivendo isolados se especializaram na arte de prear índios e ganharam fama pelas atrocidades
que cometiam. Mas o aprisionamento e a escravização do nativo e também do africano
não era fator de conflito frente à consciência da época. Ao contrário, era uma atividade como
outra qualquer, dentro da lógica econômica, a dominação branca era "natural", dado a sua
"superioridade racial" e a conquista de terras lhes garantia o direito do domínio e espoliação
dos nativos. E mais, o nativo, como "mercadoria" gerava um mercado promissor para o rude e
ambicioso paulistano, assim, auxiliados pela geografia, lançaram-se em busca dos índios.
410
DAVIDOFF, C. H. op. cit., p. 24.
411
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 99-100.
412
Ibid., p. 108.
413
DAVIDOFF, C. H. op. cit., p. 26-7.
89
Com o transcorrer do tempo, essas expedições ganharam apoio da Corte portuguesa e se
estruturaram como uma empresa, o que Davidoff denomina de "organização paramilitar".
Somente com a descoberta do ouro é que a imagem destes "vilões" começou a ser
romantizada e a historiografia passou a privilegiar os aspectos positivos de suas empreitadas.
Os primeiros historiadores a estudar os movimentos bandeiristas foram Pedro Taques de
Almeida Paes e Gaspar Teixeira de Azevedo Frei Gaspar da Madre de Deus, que traçaram
um perfil muito positivo do habitante de São Paulo "raça de gigantes". Segundo Abud, a
exaltação do paulista uma raça pura na visão de Taques e o resultado de uma boa mistura,
na opinião de Frei Gaspar foi a resposta encontrada, naquele momento histórico, para uma
sociedade que se estruturava, e os valores realçados no paulista eram "as qualidades exigidas
para alguém ser, naquela época, considerado nobre".
414
Essa imagem por eles construída se esvaeceu no decorrer do século XIX, quando o
Brasil começou a se delinear mais claramente como uma sociedade de classes e o debate
sobre a formação da nação tomou conta do cenário. Muitos dos comerciantes que
enriqueceram com o ouro e com a lavoura da cana eram originários da aristocracia
portuguesa, e nada tinham a ver com a ascendência do bandeirante paulista. Tinham como
atividade principal o comércio exterior; seus olhos se voltavam para a corte, e suas riquezas
lhes conferiam prestígio, sem qualquer necessidade da "tradição". Como destacou Abud:
No século XIX, os paulistas louvados por Pedro Taques deram lugar aos
descendentes do grupo que os ameaçava e que tinha conseguido se firmar como
dono de fortuna, transformando-se em donos de canaviais e engenhos, e ciosos de
sua ascendência européia, que se expunha a barbárie dos trópicos, tão renegadas
pelos muitos nobres portugueses que compunham a Corte.
415
Entretanto, a idéia voltou com força no início do século seguinte, em trabalhos como
Paulo Prado e Manoel Bomfim entre outros estudiosos. Dessa forma, o tema surgido no
século XVIII, reaparece nas primeiras décadas do século XX, época que Davidoff denominou
como o "período áureo destes estudos em São Paulo",
416
quando a figura do bandeirante,
cercada de mito, é recriada e reelaborada, de acordo com o aquele momento histórico.
417
Falava-se dos bravos aventureiros paulistas que incursionavam pelo sertão e redesenharam o
414
ABUD, K. M. op. cit.,p. 98.
415
Ibid., p. 112.
416
DAVIDOFF, C. H. op. cit.,p. 8-9.
417
Nesta recuperação da imagem do bandeirante, uma construção histórica, que é mítica. Conforme salienta
Abud (1985, p. 190), a bravura é a principal virtude realçada e estabelece uma profunda relação com suas vestes,
botas gibão, colete, por meio dos quais "procuravam dar a idéia de austeridade de seriedade...".
90
mapa do Brasil, mas silenciavam sobre as barbaridades cometidas contra os nativos. Autores
como Saint-Hilaire e, sobretudo Southey muito citado por Paulo Prado e Manoel Bomfim,
contribuíram para a consolidação da imagem do bandeirante, como o 'herói civilizador que
antecipa do tempo histórico da nação', ou de outra forma,
herói civilizador, que realiza e antecipa, através de suas ões práticas, a 'alma da
nação brasileira' e que constrói e prenuncia o Estado nacional, através do
devassamento dos sertões e da incorporação de imensas regiões ao domínio
brasileiro.
418
Conforme Abud, a ação do bandeirante distinguiu São Paulo no cenário nacional, e a
bandeira incorporou o significado de paulista, tornando indissociável um do outro, a ponto de,
no imaginário popular, associar-se a ânsia de riqueza dos bandeirantes com o
desenvolvimento econômico alcançado por São Paulo, com a expansão cafeeira.
419
A autora
acrescenta, ainda, que o movimento bandeirista simbolizava a unificação:
seja racial (a Bandeira era composta de brancos, (portugueses e espanhóis), índios,
negros, mestiços); seja territorial e política (o movimento bandeirantista incorporou
ao domínio português imensas regiões da América Meridional); seja econômica
(enviou mão-de-obra indígena às diversas capitanias; o ouro que descobriu
enriqueceu a Europa).
420
A representação virtuosa do bandeirante sempre se liga ao papel que desempenharam
na construção nacional. Davidoff o descreveu como "o elo fundamental da constituição e
permanência do povo brasileiro e do Estado nacional, em última instância, de sua unidade
geográfica e política",
421
e Abud o encarava como "construtor da nacionalidade, (aquele) que
ligou as longínquas regiões da América Meridional, cuja anexação deu o traçado geral do
mapa do Brasil".
422
É fato, porém, que esta não é a única versão do desempenho dos bandeirantes no
Brasil colonial. A caça, o aprisionamento e a comercialização dos nativos não foram feitos
sem muita crueldade ao gentio, as bandeiras do século XVI por onde passavam deixavam
devastação e numerosas tribos dizimadas. Assaltos às reduções se mostravam mais
vantajosos, pois ali o nativo estava domesticado. Como observou Abud, no episódio de
Guairá, "a passagem dos paulistas deixou no seu rastro uma lenda de ferocidade e selvageria,
418
DAVIDOFF, C. H. op. cit., p. 85.
419
ABUD, K. M. op. cit.,p. 5.
420
Ibid., p. 9.
421
DAVIDOFF, C. H. op. cit., p. 86.
422
ABUD, K. M.., op. cit., p. 2.
91
que foi particularmente alimentada pelos padres".
423
O mais obstinado opositor à ação dos
sertanistas era o padre Antonio Ruyz de Montoya, que, segundo Abud, "foi responsável pelas
primeiras derrotas infligidas aos paulistas na região, quando obteve do rei da Espanha
autorização para equipar com armas de fogo os neófitos guaranis".
424
Capistrano de Abreu também resgatou a outra face do bandeirante e, em Capítulos da
história colonial, citou as atrocidades cometidas pelos paulistas. A história das bandeiras,
conforme o autor, é sempre a mesma:
homens munidos de armas de fogo atacam selvagens que se defendem com arco e
flecha; à primeira investida morrem muitos dos assaltados e logo desmaia-lhes a
coragem; os restantes, amarrados, são conduzidos ao povoado e distribuídos
segundo as condições em que se organizou a bandeira.
425
No relato do massacre, em 1637, na igreja em Lagoa dos Patos, Capistrano de Abreu
conclui indagando: "compensará tais horrores a consideração de que por favor dos
bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas"?
426
Mas não da captura do índio viviam os bandeirantes. Eles desconsideravam
qualquer tratado ou acordo internacional e avançavam pelo continente em direção das terras
da América espanhola e, graças à ação deles, a Coroa portuguesa conquistou uma nova
conformação do território brasileiro. Como destacou Abud, a alegação de posse que "Portugal
fazia das terras tinha como fundamento a passagem dos paulistas por aquelas terras",
427
e o
bandeirismo paulista, salientou Magalhães, prolongou nossa pátria um pouco acima dos
limites de Tordesilhas. Ao sul, lembrava o autor, eles desbravaram as terras imanes do sertão
e conquistaram Paraná, Santa Catarina e parte do Rio Grande de São Pedro. Foi com o
empenho deles que Portugal fundou a Colônia de Sacramento. Em 1680, "o imperialismo luso
collimava o estuário do Prata para sua fronteira austral, e, apesar da guerra, (...) assegurou,
depois, a posse litorânea do Rio Grande do Sul" (...).
428
A atividade exploratória empreendida por esses "desbravadores" causou impactos em
São Paulo, despovoando a região. Paulo Prado considerou que a "mineração bandeirante
423
Ibid., p. 90.
424
Ibid., p. 91.
425
ABREU, C. op. cit., p. 129.
426
Ibid., p. 131.
427
ABUD, K. M., op. cit., p. 89.
428
MAGALHÃES, B. Expansão geographica do Brasil colonial, p. 39-40.
92
tirara-lhe o melhor do sangue com a emigração dos elementos sadios da capitania".
429
Se o
vilarejo era pobre, a saída de "homens válidos", de acordo com Abud, levou "a cidade a
uma terrível situação de pauperismo, com crises generalizadas de fome e carestia de alimentos
na primeira metade do século XVIII".
430
Como destacou Morse, em 1820, São Paulo ainda apresentava resquícios de seu
passado comunitário, era pouco mais que uma economia de subsistência, não podendo
alcançar o cosmopolitismo do Rio de Janeiro, Salvador ou Recife. O café, introduzido no país
na segunda metade do século XVIII
431
, mudou a sorte de São Paulo, pois a lavoura cafeeira
marcou profundamente a cidade. Nas terras roxas paulistas a plantação avançou e se tornou o
principal produto da economia brasileira, e a base agrícola-exportadora propiciou as
condições necessárias da acumulação para o impulso da indústria, gerando, também, uma
burguesia mercantil que detinha hegemonia política, a exemplo da família Prado.
A prosperidade trazida pelas exportações trouxe à tona a classe dominante paulista,
responsável pelo bem de maior significância na balança comercial do país, tornando-se,
assim, a classe de maior peso econômico no cenário nacional.
432
Essa aristocracia passou a
reclamar maior poder político, pois claramente havia um descompasso entre seu peso
econômico e sua influência junto ao centro de decisão da monarquia. Ressalte-se, que o
debate do momento era a formação da nação, pensada em sua integralidade, mas, como
assinala Saes "o bloco regional cafeeiro (...) [se lançou] à luta federalista republicana, com
vistas à obtenção da autonomia provincial".
433
Um setor mais extremado colocou alternativa de separação, a idéia da criação de uma
"pátria paulista". Conforme Adduci, chocando-se com as discussões em pauta, o movimento
separatista "exigia que se construísse uma "nação" (paulista) capaz de se contrapor à
brasileira".
434
429
PRADO, P. op. cit., p. 159.
430
ABUD, K. M., op. cit.,p. 62.
431
O café chegou ao Vale do Paraíba na segunda metade do século XVII e as exportações do produto
começaram a crescer somente por volta de 1816.
432
De acordo com Abud (1985, p. 123), durante a primeira metade do século XIX, o café do Vale do Paraíba,
deu origem à primeira aristocracia do café, que ao lado dos senhores de engenhos representavam os setor mais
rico da sociedade. A partir da segunda metade do século, o café disparou sua produção assumindo a liderança
nas exportações e se tornando o principal produto da economia brasileira.
433
SAES, D. A formação do estado burguês no Brasil: (1888-1891), p. 264.
434
ADDUCI, C. C. A "pátria paulista": o separatismo como resposta à crise final do império brasileiro, p. 211.
93
E, se um dos sentidos de nação é o conjunto de símbolos que singularizam
determinado grupo social, havia no baronato do café notável falta de tradição histórica, uma
vez que a maioria era herdeira de migrantes que obtiveram sucesso nas atividades mercantis,
inexistindo o tão falado "paulista quatrocentão".
435
A necessidade de mitos, com os quais
pudesse se identificar e justificar seu poder, levou a classe dominante a resgatar o sertanista,
que é elevado a mbolo da cidade, é apropriado pelo poder, mas trabalhado em sua
universalidade, como a representação de todos, visando sedimentar a idéia da "pátria
paulista".
Segundo Adduci, a figura do bandeirante foi central, pelas características atribuídas a
eles e por extensão "associadas aos 'paulistas', historicamente possuidores de iniciativa,
audácia, vigor e capacidade de conquistar, espalhando civilização".
436
No final do século XIX
e início do século XX, graças ao café, os problemas de infra-estrutura como os transportes
ferroviários, marítimos, e as comunicações tinham sido enfrentados, a produção cafeeira
lançando mão do trabalho livre, impulsionava a formação do mercado de trabalho, São Paulo
crescia, tornava-se mais urbano e se industrializava.
Nesse período assistiu-se a uma profusão de trabalhos que recuperavam as primeiras
narrativas, os primeiros documentos dos historiadores coloniais, como narrou Abud:
Foi nesse momento, entre 1890 e 1930, que a figura do bandeirante foi
resgatada como símbolo, pois ao mesmo tempo em que denunciava as qualidades de
arrojo, progresso e riqueza que São Paulo possuía, representava o processo de
integração territorial que dera sentido à unidade nacional. Como símbolo, o
bandeirante representava, de um lado a lealdade ao estado e, de outro a lealdade à
nação, e permitia também com a significação que os estudos históricos do período
lhe deram, que uma parcela da população, a dos imigrantes, se integrasse
emocionalmente a São Paulo, na medida em que urna das vertentes dos estudos
sobre o bandeirismo deu ênfase à miscigenação.
437
Sem conseguir se desvincular da noção de "raça", a produção intelectual sobre o
bandeirante oscilou, desde os trabalhos de Pedro Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus, no
século XVIII, em provar "a pureza da raça paulista" ou "descrever as vantagens do
cruzamento do português com o indígena".
438
os opositores ao bandeirantismo,
especialmente os padres das missões jesuíticas, tentavam macular a imagem do piratiningano,
435
De acordo com Abud, em o sangue intimorato... p. 121, as famílias "da elite", eram em geral de migrantes
que vieram para o Brasil por volta da segunda metade do século XVIII, como foi o caso dos Prados. Em outros,
como os Mesquitas e os Rodrigues Alves, a procedência data do início do século XIX.
436
ADUCCI, C. C., op. cit., p. 211.
437
ABUD, K. M. op. cit.,p. 132.
438
Ibid., p. 93.
94
infamando a mistura e detratando os mamelucos, como é possível comprovar no trecho que
Frei Gaspar transcreveu de um trabalho de dois missionários franceses Vaissette e Charlevoix
em que é clara a aversão aos paulistas, e à mestiçagem, pois,
o sangue Portuguez se tinha misturado muito com o dos Indios. (...) e desta mistura
sahiu huma geração perversa, da qual as desordens em todo o sentido chegárão tão
longe, que se deu a estes Mestiços o nome de Mamalucos por cauza da sua
semelhança com os antigos Escravos dos Soldões do Egyto.
439
Mas o protesto dos missionários assume um cunho político e econômico quando se
pensa nos prejuízos materiais e na quantidade de nativos que o paulista arrebatava das
missões; enquanto que a questão racial, referente à mistura entre os portugueses e os nativos,
apresenta-se como um problema menor. Significativa era a rejeição ao cruzamento com os
africanos, não só Manoel Bomfim e Paulo Prado procuraram dissimular a presença do negro
na nossa formação, mas é perceptível que o temor à negritude assombrava as mentes muito
antes das teorias raciais. Talvez esteja o motivo de sua rápida difusão, o fato é que esse
mesmo Frei Gaspar, mameluco, na descrição de Abud, ainda que aceitasse a mestiçagem com
o índio, na formação do paulista, "rejeitou a concorrência de mulatos e negros na fundação de
São Paulo". Conforme apurou Abud, seus trabalhos foram resgatados pelos autores dos anos
1920, em particular por Alfredo Ellis Júnior que, partindo do evolucionismo, aplicou, mas
"virou ao avesso" as teorias de Lapouge para explicar a formação de uma "sub-raça superior"
que se formou no Planalto de São Paulo.
440
2. O bandeirante paulista na visão de Manoel Bomfim e de Paulo Prado.
As produções de Manoel Bomfim e de Paulo Prado deram enfoque especial a São
Paulo, sobretudo as do último. Em ambos, a apreciação dos piratininganos é muito positiva, e
a louvação dos paulistas se prende ao momento histórico dos autores. Tanto Retrato do Brasil,
quanto O Brasil na América foram escritos na década de 1920, e, ainda que se trate de
trabalhos de longa maturação, inegavelmente sofreram influências dos acontecimentos
econômicos, sociais e políticos de sua época. As teorias raciais permeavam os debates e
encontram em Bomfim franca oposição, por outro lado, Diniz considera que o escopo teórico
racial que marcou a história das idéias no Brasil desde os anos 1870 "até o momento da
439
MADRE DE DEUS, G. Memórias para a história da capitania de São Vicente hoje chamada de São Paulo,
p. 130-1.
440
ABUD, K. M., op. cit., p. 142.
95
redação de Retrato do Brasil, terá importância capital na obra de Paulo Prado, o autor irá
reordená-lo e adaptá-lo na configuração de seu ensaio".
441
O trabalho de Paulo Prado está muito ligado às expectativas de uma classe receosa de
perder a sua liderança, em vista disso, notou Tardivo, tentará
fazer através da revisão histórica brasileira, a recuperação e a valorização da imagem
e do papel da oligarquia paulista os autênticos herdeiros do legado bandeirante e,
como eles, responsáveis pela fase de ascensão e apogeu vividos no país – justamente
quando o grupo ao qual pertence, começa a apresentar sinais de perda de
hegemonia.
442
A procedência "nobre" do paulistano foi destacada por todos os seus biógrafos, assim
como a presença da família na política durante o período imperial. Seus interesses se ligavam
ao setor agrário exportador, não foi à toa que a "descoberta" do Brasil em Paulo Prado
começou pela sua cidade natal. Seu livro Paulística é uma glorificação à cidade e uma busca
das raízes, em que estudou a procedência paulista e lamentou que "a história de São Paulo,
nos velhos cronistas, (...) [fosse] talvez mais imaginosa do que exata".
443
Referia-se o autor ao
"mistério das origens", para o qual a "parca e suspeita documentação"
444
histórica não oferecia
respostas.
445
Bomfim também falou muito de São Paulo e não lhe poupou elogios. Citou a "gente
paulista", lembrou de São Paulo como um núcleo da "formação da nacionalidade brasileira"
446
e, em O Brazil na historia, referiu-se a São Paulo como um dos grandes centros de atividade
na expansão do Brasil.
447
Bomfim não era paulista e não pertencia à oligarquia do café, mas
este pedaço de terra é exaltado, porque faz parte de um contexto maior, neste aspecto, o
sergipano imbuiu-se do discurso da época e valorizou nos paulistas exatamente o seu papel de
integrador nacional, e essa ação de integração era vista como resultado da atuação das
bandeiras. Daí a razão para especificar São Paulo e seus habitantes no cenário nacional.
441
DINIZ, C. L. C. Tristeza tupiniquim: a melancolia brasileira no Retrato do Brasil de Paulo Prado, p. 11.
442
TARDIVO, E. M. Terra radiosa, povo triste: a melancolia no Retrato do Brasil de Paulo Prado, p. 19.
443
PRADO, P. Paulística etc., p. 57.
444
ABUD, K. M. em O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições a construção de um mbolo paulista: o
bandeirante, (p. 15) destacou o relato de vários historiadores apontando o fato.
445
PRADO, P. op. cit., p. 46.
446
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 87.
447
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 149.
96
Dessa forma, eles foram buscar nos traços típicos de São Paulo, como as
características geográficas e a abundância do gentio, os fatores primeiros, que contribuíram
para a formação de sua peculiar população. Para ambos, a singularidade de São Paulo em
grande medida se devia a sua população mestiça, foi pelas mãos dessa gente que boa parte do
Brasil tinha sido construída.
Paulo Prado, quando resgatou a São Paulo do império colonial, viu na região isolada
no altiplano, ali onde Nóbrega e Anchieta se estabeleceram para seu apostolado, traços
característicos de vida independente.
448
Divisou nos campos de Piratininga dominados pelo
gentio, indícios precoces da formação nacional, e enxergou uma cidade que se desenvolveu,
mesmo com a crise da metrópole. Salientou as circunstâncias históricas e geográficas que
singularizaram o planalto e assinalou que, "no conjunto da formação do país se destaca a sua
história regional com uma peculiaridade notável e que os séculos têm transmitido de geração
em geração".
449
Além das circunstâncias históricas, também interessava a Prado a formação étnica de
sua gente, e, num momento em que a ciência se debatia nas discussões das "raças",
questionou a possibilidade de uma "raça paulista", deixando clara a influência da leitura dos
textos que o antecederam.
450
Destacou que O Caminho do Mar teve importância vital na
constituição da individualidade histórica de São Paulo, propiciando o desenvolvimento da
'raça'. Entendia que as dificuldades colocadas pela natureza, afastando "durante séculos a
montanha da capitania da estreita faixa litorânea, e, portanto, do contato pela navegação com
o mundo civilizado", acabaram por influir na formação do caráter e do tipo desta
população.
451
Na visão do paulistano, cercados pela densa mata, os moradores do planalto uniam-se
entre si em relações endogâmicas,
452
"protegendo o desenvolvimento da hereditariedade, que
448
PRADO, P. Paulística etc, p. 87.
449
Ibid., p. 46.
450
A década de 1920 foi próspera na discussão da superioridade de São Paulo. Conforme Abud, em o sangue
intimorato ..., p. 139, os principais representantes deste "orgulho paulista" eram Taunay, Alcântara Machado e
Ellis Júnior. É no trabalho deste último que se faz mais presente a idéia da superioridade da "raça paulista".
451
PRADO, P. op. cit.,p. 71.
452
Prado falava em manter a pureza da raça com as relações endogâmicas, Levi, no estudo que fez da Família
Prado mostrou que entre eles os cruzamentos consangüíneos foram constantes.
97
é o principal fator constitutivo das raças, e uma excelente condição para manter sua
pureza".
453
Como destacou o autor:
Achou-se logo São Paulo integrado e isolado ao mesmo tempo na evolução
do povo brasileiro. Os antecedentes étnicos do complexo social, o subconsciente
coletivo das diferentes gerações elementos de formação e elementos de
crescimento num meio propício – deram-lhe logo a especificidade que o caracterizou
durante o seu processo evolutivo (...).
454
Orientado por Capistrano de Abreu, como mostrou Calil, Paulo Prado partiu da idéia
de que o desenvolvimento da província seguia o esboço de uma "curva senóide", procurou
demonstrar que:
a ascensão era o resultado do isolamento dos paulistas proporcionado pela difícil
transposição do Caminho do Mar: o clímax fora obtido pela ação decisiva e
imprevista dos bandeirantes predadores de índios e inimigos dos espanhóis; a
decadência chegara com os governadores portugueses no início do século XVIII, e o
desmembramento do território, com a perda de Minas, do Sul e de Goiás; a
regeneração se iniciara em meados do século XIX, com as estradas de ferro, a
plantação intensiva do café, a importação de mão-de-obra e a renovação do
contingente humano pela imigração estrangeira.
455
São Paulo, sem ter a riqueza gerada pelo comércio do açúcar, tal qual o nordeste
brasileiro, levado pelo sucesso dos espanhóis em suas possessões na América, se dedicava à
busca do ouro. Os paulistas organizavam expedições e rumavam para o interior do país, e, na
ausência de metais preavam índios; essas expedições eram algo como 'uma marcha para o
oeste'. Na visão de Bomfim, eles eram fortes, tenazes e ousados, enfim o tipo adequado para
palmilhar as densa matas, o que possibilitou ao Brasil configurar um território tão vasto.
456
Um tipo étnico muito corajoso, que incorporava os valores da nova terra, e eles foram
beneficiados pela natureza. Lima destacou que "por uma curiosa anomalia, os cursos da água
da região de São Paulo ao Paraná correm do litoral para o interior, como se houvessem sido
predestinados a conduzir para ali os aventureiros".
457
Bomfim tomou por base os estudos de Karl Friedrich Phillipp von Martius, segundo o
qual o português pioneiro, buscando a defesa do território, criou um "Sistema de Milícia",
458
que era uma organização surgida no próprio seio da população, e que poderia explicar o
453
PRADO, P. op. cit., p. 78.
454
Ibid., p. 47.
455
CALIL, A. Introdução e cronologia. In. Retrato do Brasil,. p. 11.
456
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 237.
457
LIMA, O. Formação histórica da nacionalidade brasileira, p. 91.
458
BOMFIM, M. op. cit.,p. 88.
98
espírito empreendedor dos bandeirantes paulistas. A ação das bandeiras era de "pioneiros
livres e não soldados de um Estado", como ressaltou Bomfim,
459
eram o que Lima chamou de
"aventureiros que se organizavam em bandos", e formavam as entradas para embrenhar-se
pelo país, "quando as entradas se transformaram em expedições, mais numerosas e menos
desorganizadas, receberam o nome de bandeiras".
460
Diferentemente de Prado, o sergipano não atribuiu ao isolamento de São Paulo as
razões de sua importância, aparentemente preferiu não se ocupar das características
geográficas da cidade, pois para ele dizia muito mais o ânimo de seu povo. Na análise do
sergipano, a valorização do bandeirante era decorrente, sobretudo, do papel de desbravador
desses aventureiros. Era o ato da conquista de novos territórios, a expansão do Brasil, que os
faziam tão especial aos olhos do autor, além de considerar que os paulistas realizaram ato
único em toda a América, chamando-os de "pioneiros da tradição brasileira, no Sul", essa
gente "com quem nasceu o Brasil do Sul, e que foi ação essencial na formação do
conjunto".
461
Afirmou que assim foi até início do século XVIII e, lembrando a conquista das
terras do Paraná, asseverou: "se o atual Paraná foi São Paulo por quase todo o período
colonial, é que pelo paulista se conquistou, e desbravou, e colonizou a terra".
462
Para o autor, a expansão territorial e a unificação eram elementos importantes, pois
serviam como ponto de partida na formação nacional. Daí denominar a ação expansionista
dos paulistas de "modeladora", e vê-los como promotores da unidade nacional: "pela sua
atividade de pioneiros, foram os melhores instrumentos ou realizadores da fórmula
unificadora".
463
Não era um desbravamento qualquer, na visão dele, os paulistas foram para o
sul movidos "além do patriotismo, pelo interesse de captar escravos, e, sobretudo, de
descobrir minas".
464
Em sua retrospectiva histórica, Bomfim enxergou patriotismo nos paulistas já no
primeiro quartel do século XVII. São Paulo era, segundo ele, "um viveiro de portentosas
energias humanas"; e era daqui que irradiavam aqueles que iam "extinguir o domínio
459
Ibid., p. 363.
460
LIMA, O. op. cit., p. 88.
461
BOMFIM, M. op. cit., p. 87.
462
Ibid., p. 321.
463
Ibid., p. 325.
464
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 368.
99
castelhano do alto do Paraná, estendendo o Brasil até às últimas águas do planalto".
465
E
destacou:
O maior valor, constante em toda a historia dos Paulistas, são os intuitos patrioticos
dos seus commettimentos aventurosos, a dominar territorios. (...) E, por isso
porque procediam em patriotismo, a nacionalidade brazileira se poude affirmar ao
Sul. Na situação historica que lhe foi feita, não havia para a raça forte de Piratininga
outra forma de afirmação. E, então, aos temiveis preadores de indios coube a missão
de corrigir, no continente Sul, a monstruosa partilha de Tordesilhas.
466
Sem se atropelar na questão racial, Bomfim enaltecia o mameluco, enlevava o paulista
e, ainda que forçosamente, reconhecia na miragem do ouro o motor que os impulsionava e
que eles não poupavam esforços para obter. Afinal, foi a sede de ouro que fez esses homens
lançaram-se ao interior do Brasil. Por isso, afirmava que "os paulistas eram os condutores o
ânimo inteligente das empresas; o trabalho, a massa dos guerreiros, eram dados pelo esforço
do caboclo".
467
Os piratininganos eram os mestiços resultado da mescla da índia com o colono
português, para Bomfim, ao avançar pelo território e anexar novas terras eles iam se fundindo
com os nativos, assim, eles dilatavam os domínios nacionais e inseriam os índios na
sociedade, por isso o sergipano os via como os grandes construtores da nação. Os mamelucos,
continuava o autor, fez as primeiras glórias de São Paulo e notabilizou-se pelas aventuras no
interior do país.
A visão de Paulo Prado acerca dos mamelucos é aquela cultuada pela historiografia
predominante da época: um tipo humano resistente, que foi responsável pelo alargamento das
fronteiras nacionais, embrenhavam-se pelos sertões, enfrentando a "natureza adusta e
inesgotável",
468
e endossando as idéias de seu tempo, nos disse o autor de Paulística, que a
mistura do português com o índio, "resultou na formação de uma sub-raça que a história e a
lenda celebrizaram",
469
e ressaltou:
Do índio, vinha-lhe o ardil, o instinto, a maleabilidade, a coragem impassível, a
observação agudíssima apurando os sentidos. Do branco, a obstinação, a
inteligência, a imaginação, a cobiça. Corrigindo o velho fundo disciplinar e
tradicional do europeu, a fraternidade comunista do indígena seria a semente da
independência esquiva que veio caracterizar o novo tipo étnico em formação. E,
465
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 382.
466
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 106.
467
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 125.
468
PRADO, P. Paulística etc, p. 104.
469
Ibid., p. 103.
100
desenvolvendo-se nesta luta de cada instante contra a Natureza, foi que se revelou
a verdadeira grandeza da bandeira paulista.
470
Prado destacou que se a mistura caracterizou o país, em São Paulo, ela ganhava um
tom especial, pois aqui, assinalou, "a amalgamação se fez intensamente, como num cadinho e
favorecida pelo segregamento",
471
contudo, considerava o habitante de São Paulo mais do
que a simples união entre o português quinhentista e o nativo; contribuiu ainda, segundo o
autor, uma "mescla de sangue judaico (...) [que] veio sem dúvida melhorar as qualidades
étnicas do fator branco na constituição do novo tipo paulista".
472
A partir daí é que surgiu, de
acordo com ele, "o tipo predestinado do mameluco",
473
que viria "a exercer grande influência
na história do Brasil".
474
Observava que, no "final do século XVI, o caldeamento dos
elementos étnicos estava, por assim dizer, realizado no planalto e, com os característicos de
uma raça nova, ia surgir o paulista".
475
Com isso, o autor enfatizava a representação do branco
e sua importância tanto no sangue como nos valores desse povo. E, nessa formação, não havia
espaço para o negro africano, o paulista era, portanto, conseqüência de uma formação étnica
singular, apurada ao longo dos anos, sob o influxo de clima e relevo específicos. Mamelucos,
foi a designação dada pelos jesuítas, como notou Abreu, "isto é, filhos de cunhãs índias,
denominação evidentemente exata, pois mulheres brancas não chegavam para aquelas
brenhas".
476
A mistura aqui era tanta que os sentidos de: caboclo, mameluco, bandeirante e paulista
tornaram-se equivalentes, como ocorre nos textos de Paulo Prado e Manoel Bomfim. Mas, na
opinião de Bomfim, até o século XVIII, em São Paulo, prevalecia a ascendência indígena,
como na ngua, afinal a expressão ngua da terra
477
era a designação da língua tupi.
478
Os
470
Ibid., p. 104-5.
471
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 192.
472
Idem, Paulística etc., p. 75-6.
473
Ibid., p. 76.
474
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 70.
475
Idem, Paulística etc, p. 79.
476
ABREU, C. Capítulos de história colonial, p. 129.
477
Grifo do autor.
478
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 114.
101
nomes de lugares e mesmo de utensílios domésticos eram todos deste idioma, cuja presença
em São Paulo é marcante até hoje.
Entretanto, o avanço dos paulistas não poderia prescindir do auxílio indígena, de
acordo com o médico, a experiência dos nativos foi de grande valia para os piratininganos,
sem dúvida, muitas realizações destes se devem àqueles. Os tupis, por exemplo, eram grandes
guerreiros e trilhavam caminhos pelas matas; cruzaram do Tietê ao Paraná, por todo o litoral
de Bertioga, e os paulistas aproveitaram estas trilhas para alcançar o mar. A mesma idéia
Prado expressou em Paulística, mostrando que o Caminho do Mar havia sido desbravado
pelos nativos "pelo machado de pedra".
479
E, arrematava Bomfim, muito embora não se possa
falar que todo paulista fosse mestiço, foi no influxo desta mistura que eles se tornaram um
poderoso fator de "aproximação entre a gente da colônia e as tribos".
480
Mas o bandeirantismo é resultado das circunstâncias históricas de São Paulo. Prado
situou o movimento das bandeiras dentro do seu contexto socioeconômico, ao ressaltar que:
o bandeirismo é um resultado da localização do paulista no seu altiplano; a sua
expansão, como se deu era fatal e gica. Tudo empurrava o bandeirante para o
interior da terra: o rio, a lenda das minas do Potosi, o mistério cheio de promessas
das matas quase impenetráveis, escondendo duas fontes inesgotáveis de riqueza o
índio e o ouro. Nessa função histórica e geográfica a bandeira resumiu todas as
qualidades e defeitos da raça que se apurara na segregação da montanha.
481
Nesse sentido, argumentava Prado, as bandeiras foram importante fonte para suprir a
carência de mão-de-obra na lavoura e na defesa das culturas e criações,
482
a solução
encontrada pelos donatários foi a escravização do indígena. Diante das circunstâncias, e sendo
o gentio um inimigo, assegurou o autor, a bandeira surgiu "como uma necessidade inelutável,
fornecendo braços para a cultura das sesmarias e sítios, e arcos e flechas para a defesa e
sustento do colono".
483
Além disso, alegava, o paulista palmilhou a terra inóspita quase só,
sem nenhum auxílio oficial.
484
E os bandeirantes avançavam, fosse pela busca de índios ou por terem sido expulsos
da minas que haviam descoberto, muito incisivo na defesa dos paulistas, afirmava que estes
479
PRADO, P. Paulística etc, p. 66.
480
BOMFIM, M. op. cit., p. 119.
481
PRADO, P. op. cit., p.60.
482
Ibid., p. 136.
483
Ibid., p. 136.
484
Ibid., p. 145.
102
eram não desanimavam e mesmo despojados, aviltados e infamados, migravam à procura de
novas descobertas,
485
e, assim, foi que fundaram Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso,
chegando até o Pará.
486
Esse aspecto é muito frisado no trabalho de Bomfim, que repisou constantemente a
importância das bandeiras na delimitação do território brasileiro, avançando sobre as
possessões da colônia espanhola e garantindo mais terras ao domínio do Brasil. Narrou as
várias façanhas dos paulistas nesta empreitada, como o caso da expansão para o norte do país,
em que se dilataram as linhas divisórias, originalmente delimitadas entre Santos e
Pernambuco.
487
E, como eles acumulavam êxitos, considerou não haver "na América do
século XVII, povos que lhes pudessem fechar caminho", pois todos que os enfrentaram foram
derrotados.
488
Mas o sergipano queria mais: talvez relacionando muito diretamente extensão
territorial com importância política da nação, lamentou a perda da Cisplatina, concluindo que,
fosse o Brasil paulista, Portugal não teria perdido o Uruguai, os bandeirantes continuariam
avançando pelos territórios ocupados pelos espanhóis e o mapa da América do Sul teria
outra conformação.
489
Com o tempo, os mamelucos se aprimoraram, ao menos aos olhos de Bomfim. A
experiência das conquistas territoriais, as lutas contra o gentio, contra os espanhóis deram aos
paulistas, além da má reputação, perícia em combates, suas habilidades eram frequentemente
solicitadas em outras regiões do país, como foi o caso da Bahia, "os Paulistas são os
Brazileiros de essencia, que acodem aos repetidos chamados da Bahia, na defesa contra o
gentio Aymoré (...)", além disso, lutaram, ao lado de demais brasileiros, contra os holandeses
e em favor de Pernambuco, no caso dos Palmares.
490
E, sempre insistindo no intuito
nacionalista dos aventureiros, enxergou na luta contra os batavos uma autêntica ação
patriótica dos naturais da terra.
491
Assim, os paulistas:
foram os melhores instrumentos ou realizadores da fórmula unificadora. (...) Nem se
deve dizer que os bandeirantes paulistas foram, apenas, caçadores de índios e de
485
BOMFIM, M. op. cit., p. 96.
486
Ibid., p. 315-17.
487
Ibid., p. 237.
488
Ibid., p. 301.
489
Ibid., p. 301-3.
490
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 153.
491
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 259.
103
ouro, nômades inquietos, a riscar, tão somente, o território nacional. (...) como
desbravaram, eles lavraram e povoaram.
492
E, foram também os paulistas, de acordo com Bomfim, que impuseram fragorosa
derrota aos castelhanos na América espanhola. A defesa dos bandeirantes vai além: o Brasil
que se salvou foi aquele onde os bandeirantes imprimiram seus traços,
493
não fossem os
brasileiros,
o colono português teria ficado nos limites das primeiras capitanias, se da
colonização, ao influxo da terra, não houvesse surgido as gentes válidas que
permitiram resistir (...) Ter-se-ia perdido, mesmo, grande parte dessas primeiras
capitanias. Tal não se deu porque, com a herança da tenacidade portuguesa, o Brasil
nascente teve a boa iniciação política do Portugal ainda são, explicitamente
unificado, e patrioticamente homogêneo. Foi esse influxo, agindo sobre uma
sociedade de formação rural, que produziu o glorioso Brasil do século XVII.
494
É patente a admiração que os dois estudiosos tinham pelos bandeirantes, e é fato que
os piratininganos se distinguiram na história do Brasil, foi Prado quem salientou que "a
influência paulista teve uma função catalítica (...) na constituição da unidade nacional"
495
é
claro que se referia à ocupação das terras, pois salientou: "formaram o grande processo de
exploração e povoamento que é a própria história do país",
496
e, por isso, apesar de constatar
vários 'núcleos de influência' das bandeiras, destacou que:
em parte alguma (...) além do planalto de Piratininga, aparece a bandeira como
fenômeno histórico constante e especial. Aqui, apenas se constituiu nos seus
rudimentos a povoação mestiça e independente, começa o grande movimento de
conquista dos sertões.
497
A despeito da simpatia que Bomfim e Prado podiam ter pelo bandeirantismo, da
importância da ação dos paulistas na construção nacional, era inegável sua outra face. A
origem popular desse movimento não lhe imprimiu traços de solidariedade humana e não o
impediu de cometer muitas barbáries, as quais Manoel Bomfim preferiu "esquecê-las" ou
"escondê-las". Foi com certa cautela que o médico sergipano admitiu ações violentas
praticadas pelos mamelucos e, apesar de reconhecer que houve injustiças e crueldade, negava
categoricamente ter havido extermínio. Tentando justificar a atitude dos paulistas, afirmava
492
Ibid., p. 325.
493
Ibid., p. 322.
494
Ibid., p. 300.
495
PRADO, P. op. cit., p. 47.
496
Idem, Retrato do Brasil, p. 98.
497
Ibid., p. 88.
104
que: "obra de tanta monta, conduzidas por energias tais, nas idéias do tempo, não se faria sem
muita maldade e muito sofrimento para os pobres indígenas".
498
Paulo Prado reconheceu o verdadeiro intuito dessa organização desde o início, daí
não ter negligenciado e ter apontado o desempenho dos bandeirantes em prear o nativo,
a bandeira foi sempre uma empresa concebida e organizada para a exploração de
negócio. O granjeio do índio escravizado e vendido nos mercados a beira mar (...)
tornou possível as entradas de mineração (...).
499
Bomfim preferia abordar o assunto insistindo na ótica da conquista de terras, do
alargamento dos domínios nacionais, da formação da pátria brasileira. E, por isso, enfatizava a
importância das bandeiras que partiam de o Paulo, "as bandeiras de intrépidos que
aniquilarão o domínio espanhol de Guairá, e se estenderão, de mais em mais, até conquistar,
para o Brasil, todo o coração do continente".
500
Para ele tratava-se de uma disputa de
território, o nacional contra o estrangeiro, era a leitura de um homem do século XX, envolto
pelas discussões de seu momento olhando a história do Brasil. O seu nacionalismo o fazia
"torcer" pelo seu país. Logo, a destruição de Guairá tornava-se inevitável, pois muito
significativa para a colonização espanhola,
era o estabelecimento mais poderoso que as próprias reduções fundadas depois;
constituía o germe de uma colônia espanhola, que dominaria toda a região, e
chegaria, talvez, até a costa. O seu fracasso foi um choque que reduziu
consideravelmente a expansão castelhana na América do Sul.
501
O bandeirante não pensava em pátria, não tinha essa noção de nacionalidade tão cara
ao sergipano. O ataque às reduções objetivava a captura do nativo aliciado pelos padres e
condicionado ao trabalho rotineiro. Era o preço da mão-de-obra que atraía esses aventureiros.
Conforme Bomfim, os colonos ansiosos por braços para labutar a terra, "não hesitaram em
apresá-los e reduzi-los ao cativeiro, para tirar deles o trabalho (...) o mal ainda se agravou
porque especuladores desalmados trataram de converter os índios em gênero de negócio".
502
Bomfim considerava esse o ponto de origem do ódio que os missionários alimentavam
e a má fama que fomentavam contra os sertanistas. Em O Brasil na América, o autor
reconheceu influência dos jesuítas na formação do Brasil nos primeiros tempos e que foi
498
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 125.
499
PRADO, P. op. cit., p. 112.
500
BOMFIM, M. op. cit., p. 210.
501
Ibid., p. 312.
502
Ibid., p. 155.
105
decisiva por todo o período colonial.
503
Mas, que aos poucos, a atividade apostólico-política
teria colidido com os interesses dos colonos, pois, à medida que os bandeirantes avançavam,
iam se defrontando com os padres. E, assim, se fez presente a ação da Companhia com os
padres acusando os colonos de escravizar os índios e impor a eles martírios e castigos.
Neste aspecto, o embate entre eles era previsível desde os primeiros tempos da
ocupação, pois o desenvolvimento da agricultura, sobretudo a lavoura da cana-de-açúcar,
exigia grande quantidade de trabalhadores. Além de a metrópole não ter contingente
populacional suficiente para permitir o atendimento de tal demanda, o desenvolvimento das
forças produtivas capitalistas ainda não estava perfeitamente esboçado, resultando daí a
necessidade de lançar mão dos nativos em trabalho forçado.
Desse entrave se desenvolveu uma verdadeira guerra. Os padres difamavam os
bandeirantes chamando-os de "salteadores, cruéis".
504
Bomfim defendeu os paulistas,
argumentando que, mesmo sofrendo de carência moral, estes foram fundamentais na
cimentação da pátria nascente e que as calúnias contra os bandeirantes contribuíram para
turbar o desenvolvimento de nossa nacionalidade.
505
Os jesuítas pretendiam cumprir sua
missão: a de salvar os ímpios selvagens. Reclamavam os índios,
para a seara de Deus
506
, a quem reservavam as suas almas. Mas, em criaturas
simples como os pobres caboclos, a alma não se separa muito do corpo, e os padres,
para êxito completo de sua obra no governo das almas –, queriam também o
governo material dos seus neófitos, pondo-os fora da ação dos colonos, que assim,
ficam privados de obter trabalhadores.
507
Ressalte-se, contudo, que o problema não se restringia a São Paulo. Em todo o Brasil,
havia disputa pelos nativos entre os padres e os bandeirantes. E, se os colonos reclamavam o
nativo para utilizar sua força de trabalho, historiadores apontam que os próprios missionários
também o faziam. Simonsen relatou que, em meados do século XVIII, no norte e nordeste do
Brasil havia nove vilas de povoamento em estado paupérrimo; enquanto os padres, lançando
mão do trabalho servil em suas aldeias, logravam prosperidade.
508
503
Ibid., p. 154.
504
Ibid., , p. 309.
505
Ibid., p. 311.
506
Grifo do autor.
507
BOMFIM, M. op. cit., p.156.
508
SIMONSEN, R. C. op. cit., p. 327/8.
106
Em História Econômica do Brasil são narradas as dificuldades dos colonos ante a
carência de mão-de-obra por todo o período colonial. Não a agricultura, mas também as
extrações do ouro exigiam grande quantidade de operários e a colônia, especialmente os
paulistas, não dispunha deste recurso, está a razão dos conflitos com os missionários que se
arrastaram desde o século XVI. Como salientou Simonsen, sob a égide jesuítica nasceu o
povoado e se constituiu a legislação protetora dos primitivos ocupantes da terra, contudo,
salientou valeu a força do
imperativo econômico de um povo que queria expandir-se; a lei foi infringida, os
jesuítas combatidos e até expulsos, dentro dos primeiros cem anos da vida
piratiningana. E durante quase dois séculos irradiaram das capitanias paulistas, esses
grupos de energia condensada que iriam conquistar e integrar na colônia mais da
metade do Brasil de hoje.
509
Para Paulo Prado, que deu maior destaque ao papel dos jesuítas em seu primeiro livro,
Paulística, os religiosos e os colonizadores tinham a mesma origem e o mesmo perfil,
distinguindo-se somente na sua esfera de atuação. Concordava que inimizade entre eles girava
em torno da questão indígena, mas não só, outro fator da discórdia era o comportamento dos
colonos. Segundo ele, mesmo protegidos do contágio europeu, os paulistas não escapavam
dissolução geral dos costumes",
510
e a postura luxuriosa acarretava conflitos constantes entre
eles. A contenda, na opinião de Prado, deve ter se iniciado por volta de 1554 e se prolongou
até os "últimos anos do século XVII".
511
Todavia, notou o paulistano, a despeito das
diferenças entre colonos e padres, a violência empregada no tratamento aos nativos era
semelhante, pois, se o sertanista os resgatava para escravizá-los, aldeá-los ou vendê-los "para
os mercados do litoral", os padres os queriam para "salvar-lhes a alma". Contudo, a
brutalidade no método de conversão ficava patente pelas palavras de Anchieta: "para esse
genero de gente não ha melhor pregação do que espada e vara de ferro, na qual mais do que
em nenhuma outra é necessário que se cumpra o compelle e os intrare".
512
O fato de capturar os nativos depunha contra os paulistas. Na tentativa de abrandar os
acontecimentos, Bomfim, embora admitisse o fato, negava sua gravidade, atribuindo-o à
intriga dos missionários, e alegando existirem "fartas provas de que os paulistas não
509
Ibid., p. 209.
510
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 159-60.
511
Idem, Paulística etc, p. 83.
512
Ibid., p. 103. De acordo com Rónai (1980, p.42), compelle intrare, "obriga (-os) a entrar" * Palavras do amo
ao seu servo, na parábola da grande ceia, na tradução da Vulgata (Lucas, 14, 23).
107
cativavam tanto índio como pretendem os jesuítas",
513
dizia que os nativos eram pegos, mas
não exterminados e que cativeiro não é extermínio.
514
Paulo Prado, com seu olhar mais agudo, e sem qualquer intenção de dissimular o
conflito, considerou que esses desentendimentos puseram "em evidência os vícios e virtudes
tão peculiares ao tipo do bandeirante de São Paulo".
515
Se os missionários difundiam a fama dos paulistas, sem dúvida tinham razões de
sobra para isso. Em O Brasil na América, o autor narra a sina dos padres, fugindo dos ataques
dos bandeirantes, desde Guairá, até fundarem as Missões de Guaranis. Sempre compreendido
como um "ato de libertação nacional", Bomfim falava que os "terríveis bandeirantes
desbarataram de novo os padres espanhóis, e libertaram o território que consideravam da sua
pátria".
516
E os bravos bandeirantes seguiam sendo enaltecidos pelo autor, para quem,
somente no baixo Paraná-Uruguai é que os jesuítas ficaram fora do raio de ação dos paulistas
e puderam subsistir aos ataques perpetrados por eles. Mas quem os deteve, escreveu Bomfim,
foi a Coroa e não os missionários, pois estes "só lograram resistir porque o governo espanhol
lhes forneceu armas",
517
e, por tudo isso, afirmou: "e o castelhano, jesuíta ou não, tanto como
odeia, respeita o mameluco paulista".
518
De um nacionalismo bem mais contido, e um crítica menos contundente, Prado,
contudo, detratou o padre Vieira,
519
acusava-o de trair os interesses brasileiros no episódio da
luta contra os holandeses e de faltar ao beato "a visão da nova nacionalidade que começava a
se formar no monte das Tabocas e nos campos de Guararapes".
520
Seus comentários, no
entanto, não avançaram deste ponto, ao que parece, o autor preferiu não se aprofundar no
exame do tema. Em Retrato do Brasil, pouco se ocupou dele, chegando a afirmar que,
513
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 311.
514
Ibid., p. 125.
515
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 108.
516
BOMFIM, M. op. cit.,p. 312.
517
Ibid., p. 312.
518
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 100.
519
Segundo Calil (2004, p. 10), em artigo publicado em O Estado de São Paulo, Prado considerou o Padre
Vieira "um diplomata cosmopolita e tortuoso", o que lhe valeu uma dissensão com Amadeu Amaral. O
paulistano treplicou com um artigo intitulado "O padre Vieira".
520
PRADO, P. Paulística etc, p. 244.
108
naquelas resumidas ginas, seria melhor não indagar a "influência dos jesuítas na formação
de nossa nacionalidade".
521
Se, no julgamento de Bomfim, eram membros da Companhia de Jesus que faziam
'campanha' contra os paulistas, no entender de Prado, foi a violência dirigida aos inimigos, a
truculência no aprisionamento do índio e as revoltas na vila de Piratininga, protagonizadas
pelos paulistas, que difundiram a má fama "por toda a colônia e por toda a América
castelhana, até a Europa, dos crimes hediondos cometidos pelos mamelucos de São Paulo".
522
Era este perfil do paulista que Bomfim preferia ocultar e Prado justificá-lo, atribuindo seus
atos à "rudeza dos tempos".
523
E, seguindo a trilha do grande mestre, Capistrano de Abreu,
Paulo Prado recupera seu questionamento sobre a questão dos horrores e o montante de vidas
humanas perdidas na expansão territorial do Brasil. Justificaria tanto sofrimento?
524
Prado
deixa a questão em aberto, e salienta que tal interrogação permeará para sempre o estudo do
bandeirantismo paulista.
O embate com os jesuítas era visto positivamente pelo sergipano, pois significava
avanço territorial. Tanto ao retomar as terras brasileiras tomadas pelos missionários
espanhóis, quanto incorporando novas terras ao Brasil, e mesmo muito crítico às missões
religiosas, Bomfim ressaltava que a ação da Companhia de Jesus foi diferente no Brasil do
resto da América. Segundo ele, a metrópole espanhola delegou aos padres a questão indígena
se distanciando do problema, estes tinham independência, "foram senhores exclusivos da vida
temporal e espiritual dos índios reduzidos", preocupavam-se mais com a Companhia do que
com a pátria, chegando mesmo a ações antipatrióticas.
525
A ausência do sentimento nacional
nos padres, na visão de Bomfim, foi muito nociva para as futuras nações hispano-americanas
e a ação dos bandeirantes foi fundamental para conter a obra dos missionários em território
brasileiro, e salientou que foram os paulistas que neutralizaram a atividade apostólico-política
dos membros da Companhia de Jesus. Se eles "causaram muito mal" no Prata, como alega
Bomfim, certamente é porque não havia nenhuma força capaz de controlá-los como houve
521
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 107.
522
Idem, Paulística etc, p. 84.
523
Ibid., p. 86.
524
Ibid., p. 133.
525
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 161.
109
por aqui, mas os bandeirantes não agiram sós, e de acordo com Bomfim, quem "segurou" os
jesuítas no Brasil foram o espírito nacional do brasileiro e a política do estado português.
526
Isso não significa, como foi observado, que os sertanistas fossem patriotas. Paulo
Prado se aproxima mais da realidade ao afirmar que o que os movia era a sede de ouro. De
ouro, de índio e de qualquer outra oportunidade de negócio vantajoso, sem terem em mente
um projeto de pátria ou o sentimento de solidariedade, eles avançavam pelo continente
devastando o que encontrassem pelo caminho.
E, que era inevitável, posteriormente, Bomfim admitiu que parte da fama dos
paulistas era resultado de seus próprios feitos, mas ele acreditava que a metrópole utilizava
estrategicamente a situação, pois visava "quebrar e deluir a tradição brazileira".
527
Retomando Southey, reafirmou que na América não teria havido mais bravura, patriotismo e
intrepidez, insistindo na idéia de que a imagem negativa dos bandeirantes passada pelos
jesuítas eram calúnias.
528
Alegava que os paulistas eram mais hábeis no trato com os nativos
do que os missionários espanhóis e, por isso, fez dele as palavras de Southey ao falar dos
mamelucos paulistas: "quando expulsos os jesuítas, entregues os seus aldeamentos aos
espanhóis os exércitos brasileiros foram recebidos como libertadores".
529
Mais prudente e menos otimista, Paulo Prado foi bem mais severo na avaliação dos
seus conterrâneos, enxergava-os movidos somente por duas paixões: "o amor à riqueza e o
ódio ao espanhol".
530
Diferentemente de Bomfim, não via neles resquício algum de
patriotismo, conforme assinalou em Retrato do Brasil:
No fenômeno do bandeirismo tudo nos demonstra que a preocupação única do
sertanista era a aquisição de riqueza, o desenvolvimento do seu negócio em escravos
enquanto não aflorava o metal, e, quando este surgiu, com eles feneceram as
bandeiras. Não se lhe encontra o mínimo apego à pobre vila piratiningana donde
partia (...) Do amor ao torrão natal, nem uma única palavra.
531
526
Ibid., p. 380.
527
Idem, O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 93.
528
Idem, O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 305.
529
Ibid., p. 346.
530
Ibid., p. 88.
531
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 146.
110
Os desentendimentos entre religiosos e colonos se seguiram, conforme narrou
Bomfim, assumindo contornos insuperáveis e São Paulo se levantou; a revolta terminou em
1653, com um acordo selado entre as partes.
532
Bomfim destacou, ainda, a relevância de São Paulo ao lado de Pernambuco como
centros pioneiros em lutas explicitamente nacionalistas, lembrou dois episódios: a guerra dos
emboabas, em 1708, e a guerra dos mascates, em 1710. A primeira envolveu os piratininganos
numa luta para defender, e se apropriar, das então recentes descobertas auríferas, por esses
desbravadores, na região das gerais. Na segunda, eram os senhores de terra e engenho
pernambucanos nas ruas contra os comerciantes portugueses. Bomfim viu nesses
movimentos, sobretudo em Pernambuco, o germe das lutas pela emancipação nacional, pois lá
chegaram a falar em independência.
533
Se o aspecto positivo das bandeiras era o avanço pelo interior e o desbravamento desse
imenso país, tinha também seu lado negativo, o que não passou despercebido na análise do
paulistano. Para Prado, ao mesmo tempo em que se avançavam ao coração do Brasil, São
Paulo era abandonado e o afastamento de seus melhores filhos enfraqueceu a cidade
534
,
despovoando "a pequena Vila Piratiningana com as contínuas entradas pelo sertão".
535
A
descoberta do ouro, na visão de Prado, significou a decadência de Portugal, o martírio do
Brasil e o êxodo de São Paulo, a febre do metal se apoderou daqueles homens rudes e
ambiciosos como uma pandemia.
536
A idéia do prejuízo das descobertas, manifestada por Prado, foi partilhada pelo
sergipano, para quem o ouro trouxe conflitos para o Brasil. A notícia das jazidas atraía os
colonos de várias regiões do país, e também portugueses. Conforme Bomfim, a metrópole
insuflava os reinóis e os demais colonos contra os bandeirantes,
para amesquinhar os Paulistas, foram acceitas e repetidas todas as accusações dos
seus tradicionaes inimigos, os jesuitas, convertidas, as suas façanhas, em objeto de
libellos, para que, assim, ficassem os heróes do sertão despojados de tudo – de
glorias e de minas. Capistrano de Abreu (...) é peremptorio: O Governo da
metrópole sacrificava conscientemente S.Paulo a Minas (...).
537
532
BOMFIM, M., op. cit., p. 159-60.
533
Ibid., p. 371-2.
534
PRADO, P. Paulística etc., p. 157.
535
Ibid., p. 138.
536
Ibid., p. 153.
537
BOMFIM, M. O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 87.
111
Além da busca pela riqueza, assinalou Prado, outro fator que exerceu forte influência
no declínio de São Paulo foi a sua expansão. Esta era, conforme Berriel, a tese de Prado, "de
que o isolamento de São Paulo era a razão de sua grandeza, e confirma também que o contato
com outras populações poderia trazer prejuízo para o paulista".
538
Como registrou em
Paulística, "no primeiro quartel do século XVIII a capitania paulista, criada em 1709,
abrangia os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul, até a Colônia do Sacramento".
539
Todavia, lamentou, pouco a
pouco, foi se desmembrando, e até o início do século XIX a capitania apresentava-se num
"estado lastimável de decadência e aviltamento (...)".
540
A descoberta do ouro foi o triunfo dos paulistas e o infortúnio de São Paulo, dessa
forma, disse ele, "extinguiu-se de todo a chama ardente da antiga independência e altivez",
541
e na última metade do século XVIII, a cidade entrou em completo apagamento, chegando a se
transformar numa "simples comarca do Rio de Janeiro".
542
E lamentando, ressaltou, ainda,
que a involução da capitania, colocava um fim na "sonhada hegemonia paulista que a
princípio parecia lhe dar a predestinação histórica e geográfica da evolução nacional".
543
Sonhos de hegemonia que os cafeicultores paulistas buscavam retomar no início do século
XX.
Como assinalado, o que movia de fato os mamelucos era a sede do ouro, ou, no
dizer de Paulo Prado: a "cobiça". Quando Bomfim romanceia as entradas e bandeiras,
realçando a bravura, o patriotismo e a intrepidez nos bandeirantes, tem em mente a formação
da nação, e, por isso, tanta importância às aventuras dos sertanistas, anexando terras e
unificando o Brasil. Prado, por seu turno, viu na cobiça desse aventureiro que corria atrás da
prata, do ouro e das pedras preciosas um fator de degeneração da nação.
Com as jazidas se esgotando, as bandeiras também pouco a pouco vão perdendo o seu
fulgor, muitos dos homens levados para longe pela ilusão do ouro não retornavam ao torrão
538
BERRIEL, C. E. O. op. cit., p. 145.
539
PRADO, P. Paulística etc., p. 157.
540
Ibid., p. 166.
541
Ibid., p. 48.
542
Ibid., p. 48.
543
Ibid., p. 200.
112
natal. Consoante as palavras de Prado, o bandeirante que havia conquistado terras por todo o
Brasil,
transforma-se no colono e povoador das regiões do Sul, da ilha de Santa Catarina e
da antiga capitania de São Pedro; ao Norte é ele o criador e fazendeiro dos caatingais
baianos, até o Piauí, Ceará e Maranhão; o gado como elemento estabilizador fixa-o
nos latifúndios desses sertões; para o interior profundo do país, a mina, em Goiás e
Mato Grosso, extingue por seu turno e pela sua riqueza o nomadismo tradicional do
antigo piratiningano.
544
As conseqüências, contudo, puderam ser sentidas no perfil dos habitantes. Prado falou
no desaparecimento do piratiningano e sua substituição pelo "paulista da decadência e o seu
descendente do São Paulo moderno", aludiu a "uma nova raça", que seria o futuro povo
paulista.
545
Novamente se percebe a influência das teorias raciais da época, na análise do autor,
ainda que não as tenha abraçado efetivamente, deixou transparecer, porém, sua crença na
"degeneração da raça". Como destacou Leite, ele "aceita a idéia de que o mestiço degenera
depois das primeiras gerações",
546
e, excetuando a mistura entre o índio e o branco, condenou
a miscigenação, sobretudo no que se referia ao negro. Expressou-a ao apropriar-se de um
provérbio dos "americanos do Norte" segundo o qual "Deus fez o branco, Deus fez o negro,
mas o Diabo fez o mulato",
547
condenou a mistura porque era contundente no seu julgamento
em relação a negros e índios; o negro era indolente e o índio "um animal lascivo" que vivia de
acordo com as leis da natureza.
548
No trabalho de Paulo Prado, a mestiçagem é uma idéia imprecisa. Se, de um lado,
podia resolver o problema de ocupação do território e gerar o novo tipo brasileiro, de outro, o
autor tinha reservas ao cruzamento com os negros e revelava seu preconceito de classe,
549
a
única mistura bem vista era a do branco com o índio, afinal, ela gerou o bandeirante; no
entanto, este, segundo o próprio autor, se amesquinhou "depois de se desenrolarem gerações e
gerações desse cruzamento, o caboclo miserável – pálido epígono – é o descendente da
544
Ibid., p. 150-1.
545
Ibid., p. 90.
546
LEITE, D. M. op. cit., p. 264.
547
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 191.
548
Ibid., p. 74.
549
Ibid., p. 69.
113
esplendida fortaleza do bandeirante mamaluco".
550
Crespo, ao analisar Retrato do Brasil,
comparou o bandeirante ao Jeca Tatu de Monteiro Lobato e afirmou:
El caboclo, a quien Lobato se refería en 1914, según Prado había sido el bandeirante
del pasado. Y éste materializaba la mezcla bien lograda entre el indígena y el
portugués. Su papel en la formación de Brasil fue fundamental: al adentrarse
temerariamente por la selva en expediciones en busca de oro y de esclavos, fue el
bandeirante paulista quien expandió las fronteras del país hacia sus mites actuales.
Sin embargo, para Paulo Prado, a lo largo del tiempo la mezcla degeneró. El
resultado fue exactamente el tipo apático y miserable retratado como Jeca Tatu.
551
Embora, Bomfim e Prado façam alusão às circunstâncias históricas, para ambos, os
paulistas encerravam que havia de melhor na mistura: o bravo português, ou o português
quinhentista com o natural da terra. Também para ambos a importância de São Paulo se
explicava pelo ânimo dos mamelucos. Lançando mão da raça como categoria explicativa,
buscavam reforçar suas premissas, ou seja, refutar a inferioridade dos latino-americanos, mais
especificamente dos brasileiros, para o primeiro, e, ressaltar a degeneração, no caso do
segundo.
550
Ibid., p. 192.
551
CRESPO, R. A. Retratos de México, retratos de Brasil: José Vasconcelos, Monteiro Lobato, Paulo Prado y
sus visiones de lo "nacional", p. 4.
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A emergência das nações na Europa colocou na pauta do debate as questões nacionais
durante os Oitocentos. As formações sociais que se estruturaram nos tempos modernos,
orientavam-se fortemente pela idéia de valores comuns e tinham em seu cerne a presença do
Estado nacional.
Para muitos autores, o mérito da nação reside na sua capacidade de reunir e abrigar
indivíduos com história e laços semelhantes, formando uma unidade comum. Mas, a nação
não é uma comunidade de iguais. Vista de uma perspectiva mais ampla, ela encobre conflitos
as contradições inerentes ao modo de produção, em que ela prospera. Dessa forma, nação
não é um conceito neutro, é uma categoria ideológica, uma idéia que cumpre um papel social.
Por esse motivo, não se afigura pertinente compreender a nação somente como o conjunto de
pessoas que falam a mesma língua, compartilham as mesmas instituições e valores e, têm os
mesmos interesses. O que caracteriza a nação é a sua propriedade de aglutinar interesses
opostos, dirimindo as contradições sob o manto da igualdade.
Estudos da temática nacional ocuparam estudiosos de matizes teórico-ideológicos
distintos. O pensamento conservador, em fins do século XIX, tentava associar a idéia de
nação, não ao capitalismo, não às relações de produção; mas, sim, a ancestralidade definida
em termos lingüísticos e, principalmente, raciais.
Esta mentalidade teve efeito devastador em solo brasílico. A construção da nação
encontrava obstáculos tanto externos quanto internos – o clima, a raça, a escravidão, a
colonização portuguesa. Intelectuais brasileiros fundiam num conceito as idéias de raça-
povo-nação. O Brasil resultado das três raças tristes –, com uma população tão heterogênea,
não teria como pleitear seu lugar no mundo civilizado.
Os trabalhos de Bomfim e Prado se voltaram para a formação do Brasil. Embora
partissem de preocupações muito próximas, trilharam caminhos diferentes e chegaram a
propostas distintas.
Nação é o cerne do trabalho de Bomfim., segundo ele as especificidades de um grupo
social frente aos demais é o que a caracteriza, é antes de tudo, a obra de um povo, ou ainda,
"um mundo de inteligências morais" em que se "espande uma tradição que é a própria
physionomia social do grupo".
552
552
BOMFIM, M. O Brazil na historia: deturpação das tradições, degradação política, p. 36.
115
O Brasil pensado pelo sergipano era um país descendente dos heróicos portugueses,
aquele Portugal pioneiro na formação nacional. O português formador da nação brasileira era
o virtuoso renascentista, tenaz e solidário, trazia consigo a determinação de uma pátria e o
intuito explícito de fazer um novo país
553
. O segundo elemento étnico que contribuiu na
formação do sangue nacional foi o indígena, tido como "autônomo e forte",
554
o gentio foi
alvo de muita atenção do sergipano. "Generosos e beneficentes"
555
, hábeis conhecedores das
matas, foram os nativos que facilitaram a vida dos colonizadores. Quanto ao negro, Bomfim
considerou que eles pouco contribuíram na formação do brasileiro devido à tardia inserção do
africano em solo brasileiro. Afinal, "nos meados do século XVII, o Brasil estava definido"
556
e os movimentos mais significativos de escravos ocorreram entre os anos de "1750 a
1850".
557
Em sua "definição" de nação, ele não se utilizou do "recorte" raça, pois seu objeto de
estudo era o Brasil e um Brasil miscigenado. Ao contrário dos pensadores da época, via com
bons olhos essa mistura, entendia o brasileiro como resultado do que havia de melhor em cada
uma das "raças" formadoras. Ele acreditava no Brasil e também nos brasileiros.
Desde sua primeira produção sobre o tema América Latina: males de origem, a
preocupação essencial de Bomfim foi a de demonstrar a viabilidade das nações pobres e
miscigenadas do continente latino-americano. O Brasil na América é o empenho redobrado do
autor em particularizar o seu país, enlevando todos os esforços que pudessem contribuir para a
formação nacional. Essa particularização não foi infundada, pois o livro foi gestado na década
de 1920, período de intenso debate sobre as questões nacionais, momento em que a palavra de
ordem era a criação da nação, assunto que passava a "figurar como tema obrigatório no debate
intelectual".
558
Outro aspecto de Bomfim que vale a pena ressaltar é seu posicionamento político-
ideológico. Considerando-se sua proposta de educação popular, a defesa da industrialização e
o grande otimismo frente ao Brasil, talvez a qualificação adequada mais próxima seja retratá-
553
BOMFIM, M. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira, p. 88.
554
Idem, p. 108.
555
Idem, p. 140.
556
Idem, p. 202.
557
Idem, p. 202.
558
VELLOSO, M. P. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista, p. 91.
116
lo, no contexto, como um nacionalista de esquerda, o que não impediu que sua obra fosse, em
outros contextos, apropriada por nacionalistas de direita.
Bomfim ocultou conflitos e amenizou o embate dos colonizadores com os índios, além
de negligenciar a participação do negro na composição da sociedade. Nesse sentido, é
bastante procedente a avaliação de Uemori ao considerar esse 'esquecimento' como estratégia
para a formação da nação.
Paulo Prado, ao contrario do sergipano, era pessimista, liberal, antiindustrialista,
um grande defensor do laissez-faire, e pertencia a uma das famílias mais ricas do país, ligada
à exportação do café. Para o cosmopolita paulistano, a nação não era meramente a
organização social e política de um povo, mas antes, significava a consciência dos fatos
históricos desse povo, o conhecimento geográfico das suas limitações de território, aliados ao
princípio cooperativo, à disciplina e à religião. Para Prado, a língua e a religião eram
indicações efetivas de vínculos coletivos, indícios de nacionalidade, mas ele também encarava
nação como uma "vontade da convivência", expressando, neste caso, uma concepção
voluntarista de nação.
A análise de Paulo Prado tem como referência as teorias raciais que marcaram a
história das idéias no Brasil, desde 1870. Defendeu o branqueamento,m falou de "raça
paulista"
559
, "astenia da raça"
560
, e via o país como um "cadinho" das três "raças".
561
A
nação brasileira, vista por ele, nascia fadada ao insucesso. Resultado do cruzamento das três
raças tristes, o país era conseqüência da luxúria, estava manchado pela cobiça e mergulhado
na tristeza. Os elementos das raças formadoras o eram virtuosos, como imaginava Bomfim.
Ao contrário, eram devassos e gananciosos e, graças a eles, o Brasil estava condenado ao
atraso. O negro pouco a pouco havia se misturado, "diluindo-se suavemente pela mestiçagem
sem rebuço".
562
O problema era o mestiço, expressão de degeneração racial na qual Paulo
Prado acreditava
563
.
Prado fez questão de frisar as cissuras, de repisar os problemas que Bomfim se
esforçou tanto para "esquecer". Detratou os elementos étnicos que compunham o Brasil,
559
PRADO, P. Paulística etc, p. 58.
560
BOMFIM, M. op. cit., p. 183.
561
Ibid., p. 195.
562
PRADO, P. Retrato do Brasil, p. 190.
563
Idem, p. 192.
117
negou a 'existência' da nação, condenou a mestiçagem, e, bem diferente de Bomfim que
acusava a classe dominante ou a metrópole, Prado culpou o povo pelo atraso.
Mas havia entre esses dois pensadores algumas particularidades que faziam suas idéias
convergirem. Tanto Manoel Bomfim quanto Paulo Prado foram discípulos de Capistrano de
Abreu e ambos foram muito críticos em relação à política adotada pela metrópole portuguesa,
sobretudo no que se refere a Pernambuco no episódio da guerra contra os holandeses.
564
Contudo, a substância dessa convergência era a importância atribuída por eles ao papel dos
mamelucos paulistas na história do Brasil.
A história de São Paulo explica o surgimento do bandeirante. Região de solo pobre,
apartada pela montanha, sem qualquer atrativo econômico para a metrópole, São Paulo foi
'esquecida' pela administração colonial. Não podendo contar com as possibilidades locais,
nem com o apoio metropolitano, os moradores do Planalto do Piratininga, rumaram para o
interior do país em busca de oportunidades. Para Bomfim esses deslocamentos marcaram para
sempre o país. Primeiro pelo aspecto geográfico. À medida que os paulistas avançavam, iam
anexando terras aos domínios 'brasileiros', o que foi interpretado por Bomfim como uma
'manifestação de nacionalidade'. Outro aspecto era o papel de 'integrador nacional' dos
mamelucos, os territórios anexados ou estavam sendo utilizados por índios, que eram
capturados, ou por estrangeiros, que eram expulsos. E com isso, o Brasil distendia suas
fronteiras e a nação ganhava corpo.
Paulo Prado enxergou na pequena vila indícios precoces da formação nacional. Muito
voltado à questão étnica, o autor identificou uma "raça paulista", que havia florescido no
isolamento da cidade. Esses habitantes, que eram descendentes do português quinhentista e do
índio, possuíam uma constituição étnica singular, apurada ao longo dos anos, sob o influxo de
clima e relevo específicos. Eram os mamelucos, assim chamados pelos jesuítas, e vistos por
Paulo Prado como um tipo humano resistente, sendo os responsáveis pelo alargamento das
fronteiras nacionais. Embrenhavam-se nas matas em busca de ouro e como não o
encontravam, preavam índios para vendê-los aos proprietários de terra, a fim de trabalharem
nas lavouras. Os feitos dos paulistas, especialmente as atrocidades cometidas contra os
nativos, os notabilizaram, contudo, com a descoberta do ouro, eram cada vez mais freqüentes
564
Prado falou que "(...) a guerra holandesa primeira manifestação da nossa incipiente nacionalidade foi a
prova da incapacidade portuguesa" (Prado, 2004, p. 73) e Bomfim afirmou (...) "Portugal (...) abandonou
Pernambuco, mostrando-se, por vezes, até molestado dos seus zelos patrióticos. Esteve a ponto de vendê-lo pelo
preço da sua segurança na Europa" (Bomfim, 1997, p. 268).
118
as saídas de homens da cidade em busca do metal e muitos não retornavam, e, em
conseqüência, a cidade entrou em declínio e o paulista se degenerou.
O resgate do bandeirantismo se nas primeiras décadas do século XX, época que
Davidoff denominou como o "período áureo destes estudos em São Paulo",
565
quando a figura
do bandeirante, cercada de mito, é recriada e reelaborada, de acordo com o aquele momento
histórico.
566
Falava-se dos bravos aventureiros paulistas que incursionavam pelo sertão e
redesenharam o mapa do Brasil, que auxiliaram na construção de uma pátria, mas silenciavam
sobre as barbaridades cometidas contra os indígenas. O processo histórico brasileiro de
formação nacional corrobora as palavras de Renan
567
, para quem, edificar uma nação implica
ocultar importantes aspectos da própria História.
Cabe destacar que o tema 'nação' é muito fecundo e está longe de se esgotar.
Por fim, creio ser pertinente mencionar as dificuldades enfrentadas para a realização
deste trabalho. Levando-se em conta as condições objetivas do mestrado no Brasil, a
imposição de curtos prazos limita o aprofundamento da pesquisa. Todo estudo exige tempo,
dedicação, determinação e disciplina para o processo de reflexão e amadurecimento. Ao
término desta empreitada, muitas indagações se colocam, muitas outras propostas de trabalho
se mostram viáveis. Mais um motivo para acreditar que esta dissertação é somente um
começo.
565
DAVIDOFF, C. H. op. cit.,p. 8-9.
566
Nesta recuperação da imagem do bandeirante, uma construção histórica, que é mítica. Conforme salienta
Abud (1985, p. 190), a bravura é a principal virtude realçada e estabelece uma profunda relação com suas vestes,
botas gibão, colete, por meio dos quais "procuravam dar a idéia de austeridade de seriedade" (...).
567
Renan, E. Qu'est-ce qu'une nation? In: __________. Discours et Conferences. Paris: Calmann Lévy Éditeur,
1887. citado por Uemori, (2006, p. 108).
119
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