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Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE
Curso de Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais
Criminalidade Feminina: trajetórias e confluências na fala de presas
do Talavera Bruce
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SIMONE BRANDÃO SOUZA
Dissertação apresentada no Curso de Mestrado em
Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais; área de
concentração: Produção e Análise da Informação
Geográfica; Escola Nacional de Ciências Estatísticas –
ENCE/IBGE, como requisito à obtenção do Título de
Mestre.
Orientadora: Dra Jane Maria Pereira Souto de Oliveira
Rio de Janeiro, Novembro 2005
2
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Souza, Simone Brandão.
Criminalidade Feminina: trajetórias e confluências na
fala de presas do Talavera Bruce / Simone Brandão
Souza : ENCE/IBGE, 2005, 240p.
Dissertação – Escola Nacional de Ciências Estatísticas
1. Crime. 2. Prisões. 3. Mulheres. 4. Vulnerabilidade
social. 5. Dissertação (Mestrado).ENCE/IBGE I. Título.
3
SIMONE BRANDÃO SOUZA
Criminalidade Feminina: trajetórias e confluências na fala de presas
do Talavera Bruce
Dissertação apresentada no Curso de
Mestrado em Estudos Populacionais e
Pesquisas Sociais; área de concentração:
Produção e Análise da Informação
Geográfica; Escola Nacional de Ciências
Estatísticas – ENCE/IBGE, como requisito à
obtenção do Título de Mestre.
____________________________________________
Prof. Dra. Jane M. P. Souto de Oliveira
ENCE-IBGE
_______________________________________
Prof. Dr. César Ajara
ENCE-IBGE
_______________________________________
Profª. Dr
a
.Maria Helena Tenório de Almeida
FSS-UERJ
____________________________________
Prof. Dr. Paulo de Martino Jannuzzi
ENCE-RJ e SEADE-SP
4
Dedicatória
Às presas do Talavera Bruce que, generosamente,
se dispuseram a falar de suas trajetórias
5
Agradecimentos
A realização do curso de mestrado, bem como a elaboração da dissertação me
exigiram uma dedicação especial. Essa dedicação teria sido impossível sem o aporte de
muitas pessoas, sob diferentes formas,. Hoje, concretizando esse meu sonho, quero aqui
agradecer:
À Professora Jane Souto de Oliveira que, em todos os momentos, me incentivou,
valorizou meu trabalho e não me deixou esmorecer. Agradeço por suas contribuições
sempre tão valiosas e competentes, sua disponibilidade e seriedade. Pelas discussões
democráticas e enriquecedoras. Pelas risadas, pelo carinho e por ter sido não só minha
orientadora, mas uma amiga.
À Maria Bastos pela troca de idéias em diversos momentos e, principalmente, pelo
carinho na elaboração do Abstract.
À Professora Maria Helena Tenório de Almeida pelas contribuições teóricas e pelos
insights, por meio de nossas conversas sempre agradáveis.
À Ana Sílvia Furtado Vasconcelos, Coordenadora de Serviço Social da Secretaria
de Estado de Administração Penitenciária, pelo apoio nos diversos momentos em que
precisei e por seu empenho na autorização para a realização da pesquisa na Penitenciária
Talavera Bruce.
A Marcos Pinheiro, Diretor da Penitenciária Talavera Bruce, por ter me recebido
com solicitude e respeito, facilitando a realização da pesquisa, e aos servidores da unidade
pela colaboração nas diferentes fases do trabalho de campo.
A Mirella Amorim Araújo pela ajuda na arte da capa.
À Maria Célia de Oliveira Freire, Chefe do Serviço Social do Instituto Estadual de
Infectologia São Sebastião, onde também trabalho, pelo apoio, colaboração, compreensão e
amizade.
Às colegas de trabalho, antigas e atuais, da SEAP e do IEISS, por compreenderem a
dificuldade na conciliação do trabalho com o mestrado e se disponibilizarem, muitas vezes,
a trocar ou cobrir meus plantões.
6
Aos professores, servidores e amigos da ENCE, em especial a Ângela Britto,
Natasha Fonseca, Dulce Teixeira e Maria Martha Jogaib, pelas trocas, risos, lágrimas e
companheirismo, durante todo o curso, especialmente no processo de elaboração da
dissertação.
A todos os meus amigos queridos que compreenderam meu afastamento e se
fizeram presentes quando precisei.
A Valéria Reis, amiga companheira, presente nos momentos tristes e alegres de
minha vida e incentivadora maior de meu crescimento profissional, praticamente por tudo.
Aos meus pais que compreenderam a importância de meu sonho e, com o carinho de
sempre, me apoiaram a seguir em frente.
A Deus essa força maior que está sempre comigo e nunca me deixou esmorecer
diante de todas as dificuldades encontradas no meu caminhar.
7
Epígrafe
“Porque isso aqui é uma estupidez, isso aí tinha que acabar, isso aí
é um Auschwitz da vida, isso aí é um campo de concentração, isso é
um gueto, esses Bangu 7 aí, esse complexo de Bangu, isso é
terrível, tinham que ter vergonha de fazer um negócio desse.
Porque, eu não sei se a senhora já entrou lá, é um...Parece, sabe
essas coisas de cemitério, gavetas de cemitério? Então, as camas,
são as gavetas, são mortos vivos, é um deitado embaixo, o outro
encima, então a senhora olhando assim, a senhora tem a impressão
que está num monte de gaveteiros de cemitério, porque são mortos
vivos”.
(R. 54 anos, presa na Penitenciária Talavera Bruce)
8
Resumo
Esta dissertação objetiva subsidiar a compreensão da criminalidade feminina, a partir de
pesquisa realizada na Penitenciária Talavera Bruce, unidade prisional do Estado do Rio de
Janeiro que abriga o maior contingente de mulheres condenadas. Analisa os fatores
socioeconômicos e culturais propiciatórios à entrada e à permanência de mulheres no
mundo do crime, os principais delitos por elas cometidos, bem como suas motivações e seu
papel na criminalidade..
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa de campo combinou o enfoque qualitativo ao
quantitativo e se desdobrou em duas etapas: a primeira correspondeu à construção de um
banco de dados com informações (idade, idade ao cometer o delito, tipo de delito e duração
da pena) para o total das 291 internas da Penitenciária; a segunda incorporou a observação
participante e a realização de entrevistas em profundidade com um grupo de 26 detentas.
Com base nos resultados da pesquisa e de sua comparação com outros estudos, é possível
afirmar que houve uma mudança na tipologia dos crimes praticados por mulheres. Se antes
a participação em crimes contra o patrimônio era a mais significativa entre as presas, hoje
se constata a superioridade numérica de mulheres condenadas por crimes de tráfico de
drogas. A exemplo do que ocorre entre os homens, é visível o protagonismo juvenil no
cometimento dos diversos tipos de delitos, entre as mulheres. Por outro lado, observa-se
uma leve elevação do número de mulheres com mais idade, cumprindo pena.
A análise das entrevistas indicou que o cometimento dos delitos resulta, em grande parte,
de uma conjugação de fatores sociais, econômicos e culturais, não havendo portanto, uma
causalidade única ou linear. Ademais, indicou que, aliado a tais fatores, o processo de
prisonização pode contribuir para a manutenção dessa criminalidade.
9
Abstract
The objective of this dissertation is to subsidize the comprehension of female criminality,
considering the research realized in the State of Rio de Janeiro Talavera Bruce Prison,
which shelters the majority of condemned women. We analyze the socioeconomic and
cultural factors which propitiate the entrance and permanence of women in the world of
crime, their main offenses, motivations and the role they play in criminality.
The research combines qualitative and quantitative aspects and was developed in two
stages: the first one corresponds to the construction of a data base including information on
age, age when crime was committed, type of offense and duration of penalty, considering
the 291 interns in the institution; the second one includes the methodology of participative
observation inside the institution and the realization of 26 interviews.
As a result of the study we can assure the there has been a change in the typology of
women crime offenses in Rio de Janeiro in recent decades. The participation of women in
criminality was mostly related to robbery offenses. Nowadays the majority of women are
condemned for drug traffic related crimes. Related to the phenomena of male juvenile
typology crime, more and more young female have been involved in a variety of offenses.
On the other hand we observe an increasing number of older women in jail.
The interviews have shown that the offenses result, mainly, from cultural and
socioeconomic factors, indicating no linear or single factor causality. In addition to these
factors we have observed that the imprisonment contributes to the maintenance of
criminality.
10
Lista de Gráficos
Gráfico 1 – Distribuição das presas por delito cometido - UP Talavera Bruce –
Setembro 2004..........................................................................................
57
Gráfico 2 – Distribuição das Presas por Idade - UP Talavera Bruce – Setembro
2004...............................................................................................................
59
Gráfico 3 – Distribuição das Presas por idade na data da prisão - UP Talavera Bruce
– Setembro 2004.............................................................................................
60
Gráfico 4 – Distribuição das Presas condenadas por Tráfico, segundo as idades na
data da prisão - UP Talavera Bruce – Setembro 2004...........................................
61
Gráfico 5 – Distribuição das Presas Condenadas por Roubo, segundo as idades na
data da Prisão - UP Talavera Bruce – Setembro 2004............................................
62
Gráfico 6 – Distribuição das Presas Condenadas por Homicídio, segundo as idades
na data da Prisão - UP Talavera Bruce – Setembro 2004........................................
63
Gráfico 7 – Distribuição das Presas Condenadas por Seqüestro, segundo as idades na
data da Prisão - UP Talavera Bruce – Setembro 2004........................................
63
Gráfico 8 – Distribuição das Presas Condenadas por Latrocínio, segundo as idades
na data da Prisão - UP Talavera Bruce – Setembro 2004........................................
64
Gráfico 9 – Distribuição das Presas Condenadas por Furto, segundo as idades na
data da Prisão - UP Talavera Bruce – Setembro 2004............................................
65
Gráfico 10 – Distribuição das Presas por Penas em Anos - UP Talavera Bruce –
Setembro 2004................................................................................................
67
11
Lista de Tabelas
Tabela 1 – Distribuição das presas por delito cometido - 1976, 2000 e 2004....
58
Tabela 2 - Distribuição das detentas do Presídio Talavera Bruce, por tipo de
delito e idade ao ser presa - Setembro 2004...................................................
65
Tabela 3 – Distribuição das presas condenadas por outros delitos segundo as
idades na data da prisão – UP Talavera Bruce – Setembro/2004........................
66
Tabela 4: Distribuição do Total de Presas e das Presas Entrevistadas, por tipo de
delito – UP - Talavera Bruce - Setembro de 2004
117
Lista de Quadros
Quadro 1 – Fatores propiciatórios à prática de .delitos relacionados às drogas nas
histórias de vida das presas da UP Talavera Bruce...
125
12
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................... 14
PARTE I: A Entrada na Prisão: Passos Teóricos e Metodológicos 21
Capítulo 1: Prisão, Prisonização e Instituições Totais
22
Capítulo 2: Traçando a Metodologia
44
Capítulo 3: As Presas do Talavera Bruce: Um Perfil Estatístico
55
Capítulo 4: Por Dentro das Regras do Presídio..
69
Capítulo 5 : O Jornal Só Isso!: Muito a Dizer
80
Parte II: A Fala das Presas: Fragmentos De Histórias De Vida 88
Capítulo 6: Antes Da Prisão
89
Capítulo 7: O Crime
116
Capítulo 8: Na Prisão
160
Conclusões
188
Bibliografia
193
Anexo1: Questionário
197
Anexo 2: Capa Do Jornal Só Isso!
206
13
Introdução
A criminalidade urbana, em função de seu crescimento e de sua intensificação, ao
longo das últimas décadas no Brasil, tem sido motivo de preocupação de vários setores da
sociedade. No campo intelectual, diversos estudiosos têm-se debruçado sobre o assunto;
poucos, entretanto, são os que tratam da criminalidade feminina.
É possível que o fenômeno não suscite tanto interesse de investigação da parte de
pesquisadores, por permanecerem relativamente baixos os índices de criminalidade e as
taxas de encarceramento da população feminina, vis-à-vis aos da população masculina.
De fato, voltando a atenção especificamente para questão do encarceramento,
verifica-se que o número de mulheres nos presídios é significativamente inferior ao de
homens e, em que pesem as diferenças sócio-culturais e econômicas entre países e regiões
ou seus distintos graus de desenvolvimento, este parece ser um fenômeno que assume
simultaneidade mundial.
Assim, investigação realizada a sites
1
oficiais de órgãos públicos de justiça e
administração penitenciária do Brasil, Canadá, Chile, Escócia, Estados Unidos, Argentina,
Coréia do Sul, Finlândia, Índia, Inglaterra, Irlanda do Norte, Israel, Itália, Espanha, Peru,
Portugal, França, Rússia e Suíça mostra que a proporção de mulheres na população
carcerária total, embora se diferenciando entre estes países, se mantém baixa. A Irlanda no
Norte apresentaria o menor índice (1,9%) e a China o maior (21,9%). Este último,
1- Serviço Penitenciário Federal da Argentina: http://www.spf.jus.gov.ar/home1.htm, Serviço Prisional do Canadá: http://www.csc-
scc.gc.ca/, Sistema Penitenciário do Chile: http://www.gendarmeria.cl./, Sistema Penitenciário da República da Coréia do
Sul:
http://www.moj.go.kr/mojeng/mainfunction/mainfunction_5.php,Serviço Penitenciário da Escócia http://www.sps.gov.uk/,
Direção Geral das Instituições Penitenciárias da Espanha:
http://www.mir.es/instpeni/index.htm, Agência Federal das Prisões dos
Estados Unidos:
http://www.bop.gov/Serviço Prisional de Finlândia: http://www.vankeinhoito.fi/5141.htm, Serviço Prisional da
França:
http://www.justice.gouv.fr/anglais/justorg/justorga10.htm, Sistema Prisional de Hong
Kong:
http://www.correctionalservices.gov.hk/, Serviço Prisional da Índia:http://tiharprisons.nic.in/Sistema Prisional da
Inglaterra e Gales:
http://www.hmprisonservice.gov.uk/, Serviço Prisional da Irlanda do Norte:
http://www.niprisonservice.gov.uk/, Serviço Prisional de Israel:http://www.ips.gov.il/ShabasEng/Main/default.asp, Sistema
Penitenciário da Itália:
http://www.giustizia.it/misc/DIPPROVVREG.HTM, Agência de Correicional do Japão/Ministério da
Justiça:
http://www.moj.go.jp/ENGLISH/index.html, Estabelecimento Prisional da Região Administrativa Especial de Macau da
República Popular da China :
http://www.macau.gov.mo/sub_page/top_pt_map.phtml, Sistema Penitenciário do Peru:
http://www.minjus.gob.pe/, Direção Geral dos Serviços Prisionais de Portugal:http://www.mj.gov.pt/?id=18, Sistema
Penitenciário da Rússia:
http://www.prison.org/english/rpsys.htm. Serviço Prisional da Suíçahttp://www.kvv.se/
14
consideravelmente mais alto, pode ser compreendido se nos reportarmos à questão cultural
na China e ao lugar subalterno da mulher nesta sociedade.
O Brasil coloca-se numa posição intermediária nesta escala, com o número de
mulheres presas respondendo por 4,8% da população carcerária total. A desagregação da
taxa, por unidades federativas, apresenta algumas variações. De acordo com dados do
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), relativos a dezembro de 2003, o estado do
Maranhão é o que ostenta a mais baixa taxa: 2,3%; no pólo oposto, está o Mato Grosso do
Sul com 10,0%. O Rio de Janeiro possui um percentual um pouco acima da média nacional,
alcançando as mulheres 5,7% da população prisional no Estado.
Alguns autores buscaram compreender a diferença nas taxas de criminalidade
feminina e masculina. A princípio, as explicações pautavam-se nas diferenças físicas e
psíquicas entre homens e mulheres como fatores determinantes para a prática do delito.
desconsiderando totalmente os fatores sócio-culturais que contribuem na formação dos
comportamentos dos indivíduos. Além deste foco biologista, tais linhas de pensamento
eram também influenciadas pela percepção, historicamente construída, do papel e do lugar
da mulher nas relações sociais.
A teoria biologista perdeu fôlego na década de 1970 e o enfoque sobre a
criminalidade feminina se modificou, passando-se, então, a discutir a forma de inserção da
mulher no crime. Dentro dessa perspectiva investigativa, acreditava-se que tanto os crimes
cometidos por mulheres como o seu papel na criminalidade estariam associados ao modelo
de socialização das meninas. Daí a origem da participação subalterna das mulheres nos
delitos e a característica não violenta dos crimes femininos.
Em 1976, Lemgruber, levantou a hipótese de que “à medida que as disparidades
sócio-econômico-estruturais entre os sexos diminuem, há um aumento recíproco da
criminalidade feminina. Levando-se isto em conta é razoável supor que, muito em breve, a
população de presas no Brasil revele crescimento acentuado” (Lemgruber,1997, pg.6).
Cerca de vinte anos depois, em 1997, a própria autora refutou tal hipótese ao analisar a
evolução ocorrida no período: enquanto a inserção da mulher no mercado de trabalho havia
praticamente dobrado no Brasil entre 1976 e 1997, a participação feminina na totalidade de
presos do sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro se elevara em apenas 0,5%.
15
Soares e Ilgenfritz também concordam com Lemgruber quando em sua análise
indagam o porque das mulheres continuarem, em 2000, a ter “uma participação tão
pequena nas estatísticas prisionais, mesmo depois de terem ampliado sua participação no
espaço público e ultrapassado as barreiras protetoras do mundo doméstico” (Soares, 2002,
pg.92) e lançam a seguinte questão: “O que explica a permanência desse padrão, ao longo
do século XX, mesmo depois de elas estarem integradas ao mercado de trabalho tanto
quanto os homens (embora com menores salários) e de terem se tornado independentes,
econômica e socialmente?” (Soares, 2002, pg.92).
Entretanto, os dados recentes acerca da “integração” da mulher no mercado de
trabalho não parecem refletir a existência de tanta igualdade de gênero no acesso a postos
de trabalho, o que poderia ser um dos fatores a influenciar o aumento de mulheres no
mundo do crime.
As conquistas femininas, ao longo do último século, nos diversos setores da vida
pública e privada, são fatos incontestáveis. Mas teriam sido elas suficientes para romper a
desigualdade social econômica e cultural que sempre marcou as relações de gênero em
nosso país?
Historicamente, a mulher teve uma identidade socialmente imposta que restringia a
sua entrada na esfera pública. Lócus da invisibilidade feminina e de privação dos seus
direitos, era no espaço privado que se legitimava a subordinação da mulher e as
desigualdades de gênero. Na outra ponta, na esfera pública, estava o lugar destinado aos
homens por excelência, era o espaço da liberdade e de tudo o quanto possuía significado
político. Se a intimidade das mulheres, bem como seus desejos e vivências permaneciam na
esfera privada, tanto maior era sua invisibilidade social, tanto menor era seu significado
político.
Na medida em que a vida privada da mulher passa a ser politizada, ela migra da
esfera privada para a esfera pública, tornando-se visíveis questões até então veladas como
planejamento familiar, relacionamento com os filhos e direitos sexuais.
Esta visibilidade dada às questões que vinham sendo mantidas na esfera privada,
influenciou sobremaneira na conquista do espaço pelas mulheres, seja no mercado de
trabalho, na família e na sociedade de uma forma geral. O papel social da mulher passa,
então, a ser redimensionado.
16
Embora avanços tenham acontecido através da politização do espaço privado, o
alcance da esfera pública pelas mulheres ainda está em processo. Daí a necessidade de
desconstruir a falsa imagem de que a casa e a família são os únicos espaços possíveis para a
existência cotidiana da mulher. Esta construção ideológica, que possui raízes patriarcais,
parece ser ainda mais resistente nas camadas menos privilegiadas da sociedade. Por ter
baixa escolaridade, reduzidos circuitos de troca social e poucas possibilidades de
investimento cultural, a mulher oriunda destes segmentos enfrenta maiores obstáculos para
romper com esta forma de opressão, o que só se viabiliza a partir do momento em que ela
passa a representar seus próprios interesses e a ser porta-voz de seus direitos.
Na luta por direitos, é possível afirmar que algumas barreiras foram transpassadas.
Sem dúvida, a mulher obteve avanços significativos no plano educacional, alcançou maior
espaço no mercado de trabalho e possui melhores condições de atuação profissional. O
direito ao voto, a crescente participação feminina em atividades acadêmicas e políticas
também foram conquistas importantes. No plano mais subjetivo, mudanças relevantes
ocorreram na relação entre gêneros, principalmente no que diz respeito à questão sexual.
Apesar destes avanços em termos de conquista de espaço e de direitos, as
desigualdades e discriminações relacionadas a gênero ainda persistem. Elas se traduzem na
violência doméstica, no baixo acesso a mecanismos de poder, na diferença salarial entre
homens e mulheres, na desigual divisão dos afazeres domésticos que ocasiona a dupla
jornada de trabalho para a mulher.
A mulher ainda não consegue se inserir com igualdade no mercado de trabalho e
embora assuma hoje responsabilidades iguais as dos homens, não tem o mesmo acesso e
retorno em diferentes aspectos da vida social. A inserção econômica de grande parte das
mulheres ainda é subalterna, o que se evidencia no fato de 1 em cada 5 mulheres ocupadas
no país (22,0%) ser trabalhadora doméstica.. Além disso, o rendimento médio das mulheres
brasileiras corresponde a 70% do rendimento dos homens e se observarmos os de maior
escolaridade (com mais de onze anos de estudo), essa desigualdade é ainda gritante: o valor
do rendimento recebido pelas mulheres representava, em média, 58% do valor recebido por
homens (IBGE, Síntese de Indicadores Sociais -2003).
Em poucas palavras, os avanços das mulheres no mundo do trabalho ainda não
foram suficientes para romper a desigualdade de gênero nesse campo, nem tampouco para
17
superar o fato de a participação econômica da maioria se dar pela via do desemprego ou da
inscrição em atividades precárias, irregulares e mal remuneradas .
Não por acaso este é o perfil ocupacional predominante das mulheres presas no
sistema carcerário do Rio de Janeiro, como apontou o estudo de Soares e Ilgenfritz (2002).
Não queremos dizer com isso que a motivação das mulheres para praticar um crime
se encerre apenas nas privações sócio-econômicas, nem tampouco vincular mecanicamente
a pobreza à violência.
O que queremos é chamar a atenção para o grau maior de vulnerabilidade das
mulheres pobres, sua exposição maior ao atrativo de ganho fácil exercido pelo mundo do
crime. Nesse sentido, pesariam tanto a própria necessidade da mulher em prover seu
próprio sustento, quanto sua crescente responsabilidade na “manutenção” da família,
fazendo com que a busca por alguma forma de rendimento se torne premente. Com a
necessidade de se garantir o presente, limitam-se as expectativas para o futuro e prioriza-se
o imediato, o que pode facilitar o envolvimento, sobretudo no caso das mais pobres e
desamparadas, em atividades criminosas e lucrativas no curto prazo.
É preciso, porém, não perder de vista as razões de ordem extra-econômica que
concorrem para o cometimento do delito. A exemplo do que acontece com os homens,
elementos subjetivos podem igualmente influenciar a inserção da mulher na criminalidade.
Se a violência se manifesta sob diversas formas, ela se faz acompanhar também por
circunstancias e elementos propiciatórios diversos e é a conjugação destes que deve ser
levada em conta para uma compreensão adequada do fenômeno. Zaluar (1996) reforça a
diretriz investigativa que se pretende seguir no desvelamento da criminalidade feminina.
Segundo a autora, a explicação do crime não se dá na forma linear de causa e efeito, mas
pela busca de um conjunto de fatores que vão gerar um conjunto de dispositivos com uma
cadeia de efeitos entrecruzados.
Assim, a presente dissertação se propõe a contribuir para desvendar tais fatores,
tendo como ponto de partida algumas indagações: quem são essas mulheres criminosas?
Quais os principais delitos praticados por elas? Que fatores ou conjugação de fatores
socioeconômicos e culturais teriam influenciando seu ingresso e permanência na
criminalidade? Que motivações as levaram ao cometimento do delito?. Que lugares ocupam
na “divisão técnica e social” do crime?
18
Para realizar nosso estudo, combinamos os enfoques qualitativo e quantitativo. Na
pesquisa de campo, construímos inicialmente um banco de dados com informações de
identificação e jurídicas de toda a população reclusa na Penitenciária Talavera Bruce e,
posteriormente, adotamos o método da observação participante e realizamos entrevistas
com um grupo de internas daquela unidade prisional.
A presente dissertação, após a introdução, foi dividida em duas partes: a Parte I
Entrada na prisão: passos teóricos e metodológicos reconstitui a forma pela qual a
pesquisa foi sendo construída, pondo em relevo nossas primeiras incursões teóricas, o
traçado metodológico que adotamos e as fontes de dados que nos serviram de suporte. A
segunda A fala das presas: fragmentos de histórias de vida, baseada nas entrevistas,
descreve e analisa as trajetórias das presas, desde a infância à vida adulta, passando pelo
cometimento do crime até a prisão, bem como sua vida intra-muros.
O primeiro capítulo é, por assim dizer, uma introdução ao tema das prisões; nele se
resgata o histórico da pena de prisão no Brasil e se procede à discussão teórico-conceitual
das instituições totais e do processo de prisonização.
O segundo capítulo descreve a metodologia empregada no estudo, que se desdobrou
em duas etapas: a primeira correspondeu à construção de um banco de dados com
informações para o total das 291 internas da Penitenciária; a segunda incorporou a
observação participante e a realização de entrevistas em profundidade com um grupo de 26
detentas.
O terceiro capítulo traça o perfil estatístico da população carcerária, com base nas
quatro variáveis - idade, idade ao cometer o delito, tipo de delito e duração da pena das
detentas –
disponibilizadas pelos arquivos da Penitenciária.
O quarto capítulo aborda as regras institucionais, através da sistematização do dia-a-
dia das presas, da descrição física da Penitenciária e da participação das internas nas
atividades propostas para sua reinserção social, tais como estudo, trabalho, formação
profissional, lazer e cultura
No quinto capítulo, é apresentado o jornal Só Isso!, uma ferramenta de
reivindicação e enfrentamento utilizada pelas detentas e produzida por elas e que se
constituiu para nós como objeto e meio de pesquisa.
19
Na Parte II, inteiramente construída com base nas entrevistas feitas com as internas,
se reconstitui a história de vida das detentas, privilegiando três momentos distintos, que
correspondem, respectivamente, aos três últimos capítulos desta dissertação: assim, o sexto
aborda a trajetória das detentas antes da prisão, partindo de sua infância até a vida adulta; o
sétimo analisa o crime cometido, suas circunstâncias, motivos e o papel exercido pela
detenta em seu planejamento e execução; e o oitavo focaliza as práticas e representações
das presas no que diz respeito à sua experiência prisional. São discutidos, ainda, os pontos
fortes e fracos da instituição e as relações das internas com suas famílias, após a detenção.
Ao final, apresentamos nossas conclusões.
20
PARTE I
A ENTRADA NA PRISÃO: PASSOS TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS
21
Capítulo 1 – Prisão, processo de prisonização
2
e instituições totais
Quando iniciamos o trabalho de campo na Penitenciária Talavera Bruce,tendo em
mente estudar a criminalidade feminina, buscávamos especificamente compreender como
ela acontece fora dos muros da prisão, que elementos estariam perpassando este fenômeno,
num movimento dialético de interconexões e transições. Por assim ser, ele deveria ser
desvendado através de uma análise dialética, entendendo como esses elementos se
relacionam, se encadeiam e se determinam reciprocamente. Para tanto tínhamos como
preocupação principal desvendar o mundo daquelas mulheres, desde a sua infância até o
período anterior à sua prisão. Imaginava que daí surgiriam respostas a algumas de minhas
indagações sobre as mulheres no crime.
Este foi nosso ponto de partida, minha inquietação inicial. Entretanto, à medida que
atravessávamos os portões da prisão para realizar as entrevistas e sentávamos com aquelas
mulheres, ouvindo suas histórias de vida, sobre o período que ainda pertenciam à sociedade
livre e também suas desventuras dentro da prisão, percebíamos que aqueles imensos muros
que nos cercavam, para além de separarem dois mundos distintos, escondiam também um
outro significado: as relações estabelecidas ali dentro, fossem das presas entre si, com o
corpo funcional, com o mundo externo e com a vida, agora cerceada, eram fruto e ao
mesmo tempo reforço daquela criminalidade que eu buscava compreender.
Essa concepção materialista-dialética dos fenômenos em Marx é bem definida por
Mao-Tsetung(1982) e parece se encaixar perfeitamente nestas reflexões iniciais:
“ no estudo do desenvolvimento de um fenômeno deve partir-se do seu
conteúdo interno, das suas relações com os outros fenômenos, (...), deve-
se considerar o desenvolvimento dos fenômenos como sendo o seu
movimento próprio, necessário, interno, encontrando-se, alias, cada
fenômeno no seu movimento, em ligação e interação com outros
fenômenos que o rodeiam
. A causa fundamental do desenvolvimento dos
fenômenos não é externa, mas interna; ela reside no contraditório do
interior dos próprios fenômenos. No interior de todo fenômeno há
contradições, daí o seu movimento e desenvolvimento".
(TSETUNG,
1982, p.63).´
2
O termo prisonização, embora não conste dos dicionários, é uma categoria criada por Donald Clemmer para
expressar o processo de assimilação sofrido pelas pessoas encarceradas. Tal processo foi inicialmente
estudado por Goffman que o denominou de colonização, aplicando-o ao conjunto de instituições por ele
chamadas de “instituições totais” .
22
A relação entre instituição punitiva e internas deixava à mostra o movimento gerado
pelos contraditórios, criando um embate entre forças antagônicas.
Desenhava-se, pois, à nossa frente um caminho adicional a percorrer: era necessário
também compreender o significado e as conseqüências da vida no cárcere para as mulheres,
que poderiam estar ligados à manutenção desta criminalidade feminina que eu tinha por
interesse desvendar. Se, como diz o ditado popular, “a prisão é uma escola do crime”,
tratava-se de averiguar, por meio da observação participante e das entrevistas em
profundidade com as detentas, se e em que medida isso estaria correspondendo à realidade
Tal perspectiva analítica é, até certo ponto, pouco explorada pela bibliografia que,
no campo das ciências sociais, trata da criminalidade urbana no Brasil e tende a privilegiar
a conjugação de fatores sociais, econômicos, culturais e políticos, externos à prisão
3
., que
estariam criando condições propiciatórias à inserção de homens e mulheres no mundo do
crime.
Daí nossa busca inicial por textos que explorassem também o significado da prisão
na vida dos detentos e sua influência na reincidência criminal. Este é o sentido das
primeiras incursões teóricas que conformam o presente capítulo, no qual se reconstitui, de
forma sumária, o percurso que vai do surgimento das primeiras prisões às atuais unidades
prisionais femininas e se discutem os conteúdos do processo de prisonização, a partir não
só da segregação, como também da submissão a uma normatização, típica das instituições
totais.
1.1 – Dos suplícios ao surgimento das prisões
A penalização no Brasil, ao tempo em que este foi colônia de Portugal e ainda
durante anos após a independência do país, obedeceu à “Ordenação Filipina do Livro V”,
qual seja , um conjunto de punições estabelecidas pela Monarquia portuguesa para os
diversos crimes até então tipificados. Este era o período dos suplícios – um estilo penal que
punia o criminoso, supliciando o seu corpo.
3
O que é explicado em grande parte pelas próprias dificuldades de acesso dos pesquisadores ao sistema
prisional, como será mais bem discutido no capítulo 2
23
Moraes (1923, p. 2) destaca algumas das penalidades previstas pela Ordenação no
período dos suplícios:
Morte natural cruelmente (Através de vários tipos de tortura imputados pelo
carrasco).
Morte pelo fogo (De forma que o corpo se torne pó, apagando a lembrança de sua
existência).
Açoites com ou sem baraço
4
ou pregão pela cidade ou vila.
Degredo para as galés (trabalhos forçados com os condenados acorrentados pelos
pés ou aprisionados em embarcação e obrigados a remar).
Degredo perpétuo ou temporário para a África, Índia, Brasil, couto de Castro Marim
(asilo de criminosos, somente para mulheres), para fora do reino, fora da vila ou
fora do bispado.
Mutilação das mãos e língua.
Queimadura com tenazes ardentes.
Capellas
5
de chifres na cabeça (aplicada a maridos condescendentes).
Estas e outras penalidades atrozes foram adotadas durante os séculos XVII e XVIII e
tinham o corpo como o alvo principal da punição dos crimes. O indivíduo julgado
criminoso era supliciado publicamente como forma de expiação do delito cometido. O
castigo no corpo deveria atingir também a alma do condenado e servir de exemplo àqueles
que assistiam ao espetáculo da punição.
Segundo Foucault (1987), vários fatores como os costumes, o tipo de crime e a classe
social dos condenados influenciavam a escolha da pena. Em função destes critérios,
particularmente quando o criminoso era de classe social privilegiada, algumas penas eram
abrandadas. A penalidade mais utilizada era o banimento, entretanto, mesmo não sendo
corporal, era conjugada a outras penas de suplícios como a utilização de coleira de ferro, o
açoite e a marcação com ferro quente. Um exemplo da aplicação desse procedimento
combinado é dado por mulheres que, quando tinham a pena de banimento imputada,
ficavam reclusas em hospital e sofriam também a pena física.
4
De acordo com Houaiss: corda com que se açoitavam réus, com leitura do pregão de culpa e pena.
5
Segundo Houaiss o termo era empregado para designar “algo com que se cobre a cabeça para protegê-la ou
orná-la”.
24
O suplício era uma técnica da lei e obedecia a critérios na sua aplicação, não era tão
somente um ato de crueldade movido por emoção do supliciador. Ele deveria causar um
sofrimento capaz de ser medido, de ser apreciado, hierarquizado: “o suplício repousa na
arte qualitativa do sofrimento” (Foucault, 1987, p. 34). Era um ritual da justiça que se
propunha a “expurgar o crime” através do corpo do supliciado.
Enquanto o corpo punido servia para trazer à cena pública a verdade do crime, o
acusado não tinha, em muitos casos, sequer clareza do motivo de sua condenação, quiçá
direito de defesa ou acesso ao processo que evoluía em segredo.
Essa verdade com relação ao delito, tão buscada pela justiça, dependia da confissão do
criminoso. O interrogatório do acusado, caminho inicial para se chegar aos fatos verídicos
já era, como denominado por Foucault, um suplício da verdade, pois empregava a tortura
ou ameaças - como o castigo de Deus - para se obter a confissão de um crime muitas vezes
não praticado.
“A tortura judiciária no século XVIII funciona nessa estranha
economia em que o ritual que produz a verdade caminha a par com o
ritual que impõe a punição. O corpo interrogado no suplício
constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da
verdade” (FOUCAULT, 1987, p.41)
O corpo supliciado exposto publicamente nas ruas – como as mulheres alcoviteiras
que deveriam andar com polainas vermelhas na cabeça até serem enviadas para o degredo –
trazia à tona toda a verdade do processo que até então era um segredo.
O suplício teria ainda uma função jurídico-política de manifestação do poder
soberano. Através da punição, a soberania lesada pelo súdito era restaurada naquele
momento pelo soberano. Assim, o suplício do corpo do condenado simbolizava e reforçava
o poder do soberano.
Como analisa Foucault (1987), esse desprezo ao corpo, representado pelos suplícios,
pode ser compreendido se notarmos que aquela não era uma época de economia industrial e
portanto o corpo, enquanto força de trabalho, não tinha utilidade ou valor de mercado.
Além disso, a morte era algo comum tanto no plano demográfico em função, por exemplo,
das constantes epidemias, quanto no plano espiritual, segundo valores do cristianismo.
Contudo, o que mais fortemente explica a utilização do suplício, na punição dos
25
condenados, é o fato dele ser um instrumento esclarecedor da verdade e fortalecedor do
poder soberano.
É no período do Iluminismo que começam a surgir as críticas ao suplício, sendo tal
prática considerada como atrocidade. A própria sociedade revolta-se com as injustiças na
aplicação das penas, em especial pela falta de eqüidade entre condenados de classes sociais
distintas. A agitação das camadas populares contra a imputação dos suplícios passa a
mobilizar também pessoas influentes da época e obriga o poder a repensar sua prática
punitiva e a adotar medidas mais dissociadas da violência física.
“Entre a verdade e a punição só deverá haver agora uma relação de
conseqüência legítima. Que o poder que sanciona não se macule
mais por um crime maior que o que ele quis castigar” (Focault,
1987, p.52).
Assim, em fins do século XVIII, engrossam os protestos contra os suplícios entre
diversos segmentos sociais, tornando-se este modelo inaceitável enquanto prática punitiva.
Vários são os países que aderem ao movimento de abolição dos suplícios, especialmente de
espetacularização da penalização. Esse novo senso humanitário questiona o suplício como
penalidade pois, por sua crueldade, se assemelha ao próprio crime que busca punir.
A penalização do criminoso começa a sofrer mudança e o mesmo se dá com o perfil
dos delitos que se tornam menos violentos: diminuem os crimes de morte, crescem os
ligados à propriedade, profissionalizam-se roubos e furtos. Em paralelo, ocorrem
transformações na sociedade com o crescimento da população, o aumento das riquezas e a
expansão da propriedade privada A justiça vai se tornando mais severa com os crimes
contra o patrimônio e começa a pensar novos meios de coibi-los e puni-los. Nesse sentido,
passa-se a vigiar e policiar de forma mais intensa os pobres que são freqüentemente
associados à crimes desse tipo. Assim, diminui-se a punição ao corpo do criminoso, mas
em contrapartida vigia-se o corpo social.
“Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas para
atingir um alvo que agora é largamente difuso no corpo social.
Encontrar novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos efeitos
adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar,
universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu exercício.
Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e
multiplicando seus circuitos. Em resumo, constituir uma nova
economia e uma nova tecnologia do poder de punir: tais são sem
dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII”
(FOUCAULT, 1987, p.82)
26
O que se percebe é que na realidade o fim dos suplícios do corpo, enquanto punição,
não é só uma questão humanitária, mas uma estratégia do judiciário para se adaptar a uma
nova ordem econômica que modificou sua forma de acumulação de capital, bem como suas
relações de produção, valorizando ainda mais a propriedade privada e trazendo em seu
rastro novas mazelas sociais. Além da necessidade de se adequar a este novo contexto
social, outro fator que influenciou a mudança da penalização do criminoso foi o interesse
em descentralizar o poder de punir, que deixa de ser concentrado nas mãos do soberano.
A idéia de punição surgida nessa reforma judiciária é pautada na requalificação do
criminoso e em sua readaptação à sociedade. Este objetivo vai então “evoluir” para o
surgimento das prisões enquanto espaço para reclusão e punição do indivíduo criminoso e
não mais como destino final do degredo. No novo modelo de prisão o corpo passa a ser
submetido a um treinamento repressivo, remodelando-se hábitos, costumes e valores. Esse
disciplinamento dos corpos intenta torná-los dóceis e controláveis, através da dominação
dos mesmos. A prisão passa a ser o instrumento de castigo, deturpando assim a proposta
inicial que deveria ser a de preparar o indivíduo para o retorno à sociedade livre longe da
criminalidade.
Segundo Lobo (1990), foram vários os modelos de prisão implementados ao longo
dos anos. John Howard foi autor de um regime prisional celular, que preconizava a
reclusão em células, com trabalho obrigatório diário, doutrinamento religioso buscando
transformar a moral do indivíduo. Este modelo de Howard foi implantado na Inglaterra
entre os anos 1775 e 1781 e aperfeiçoado mais tarde por Geremias Bentham que adotou o
modelo arquitetônico panóptico, uma estrutura de forma radial com uma torre de vigilância
central de onde é possível observar todas as celas individuais dispostas em volta da torre,
permitindo controlar cada movimento do condenado. O panoptismo influenciou a
construção de prisões nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo, sendo a primeira
prisão panóptica construída em 1800.
Praticamente neste mesmo período um outro modelo penal é criado: o Filadélfia que
propunha o isolamento total do detento. Neste sistema, o prisioneiro não participava de
atividades laborativas na prisão e era impedido de receber visitas, recebendo doutrinamento
religioso como forma de corrigir-se. No Brasil, esse modelo chegou a ser adotado
27
temporariamente, sendo substituído pelo Sistema de Auburn, que previa o trabalho forçado
mas autorizava que o preso tivesse visitas.
Em 1846, é criado o Sistema Progressivo Inglês que compreende três momentos
seqüenciais no cumprimento da pena: o período da prova, que acontece logo que o
condenado vai para a prisão e permanece por um tempo determinado em total isolamento; o
período com isolamento noturno quando o prisioneiro passa a trabalhar durante o dia e é
isolado à noite, mantendo um silêncio rígido e, finalmente, o terceiro momento,
denominado período da comunidade, onde ele recebe a liberdade condicional.
No ano de 1853, surge o Sistema Irlandês que, além das três fases do Sistema
Progressivo Inglês, possui mais uma etapa que consiste na preparação do preso para a vida
extra-muros, cumprida em unidades prisionais semi-abertas. Este foi o sistema penal
adotado pelo Brasil através do Código Penal Brasileiro em 1940.
A reforma penal no Brasil, que marca a transição dos suplícios para a pena privativa
de liberdade e o surgimento das prisões, começa com a Constituição Política do Império,
promulgada em 1824, que cria limites para a aplicação dos suplícios, chegando mesmo a
proibir alguns castigos como o açoite, tortura e marcas de ferro quente nos condenados.
Essa prática violenta, entretanto, não é abolida totalmente ou prontamente e a própria
revogação da Ordenação, que embasava as penalidades no Brasil, só se dá em 16 de
dezembro de 1830 com a publicação do Código Criminal.
As prisões de certa forma já existiam desde a época dos suplícios, mas em geral
eram utilizadas para o exílio do degredado. No Rio de Janeiro, já entre 1735 e 1740, foi
construído, a mando da Igreja, o Aljube - uma prisão para os “misteres do Juízo
Eclesiástico”-, que recolhia contrabandistas e aqueles que comerciavam contra as ordens
régias. Posteriormente, em 1808, o Aljube passou a servir de cadeia provisória. Só em 1834
deu-se início à construção da Casa de Correção, que começou a funcionar em 1840 no local
onde hoje existe o complexo penitenciário da Frei Caneca. Com a Casa de Correção em
funcionamento, o Aljube teve sua utilidade reduzida mas ainda abrigou detentos até 1856.
No início do século XIX, o Rio de Janeiro tinha outras prisões como a da Ilha das Cobras
destinada a penas de galés, a da Fortaleza de São Sebastião, no Morro do Castelo, onde os
escravos ficavam reclusos e a da Ilha de Santa Bárbara, uma prisão feminina.
28
O Rio de Janeiro que sempre teve relevante papel na formação histórica do país,
principalmente por ter sido capital do Império e da República por quase dois séculos, pode
ser considerado o lócus de surgimento das prisões brasileiras.
1.2 As prisões femininas no Rio de Janeiro
Uma das primeiras prisões destinadas a mulheres de que se tem registro é a do
Calabouço, uma prisão para escravos situada no Morro do Castelo e posteriormente
transferida para a Casa de Correção da Corte. Lá, segundo Soares (2002), 187 mulheres
escravas ficaram reclusas entre 1869 e 1870. Além das instalações e condições de higiene
da prisão serem bastante precárias, não havia separação entre mulheres e homens; somente
em 1905 foram criadas cinco celas especificamente para mulheres.
Com a reforma penitenciária liderada por Lemos de Brito entre 1923 e 1924, foi
sugerido pelo jurista que se criasse um reformatório especial para as mulheres, indicando,
segundo Soares (2002), a percepção da necessidade de dar um tratamento diferenciado à
criminalidade feminina.
Cândido Mendes de Almeida, outro jurista da época, era da mesma opinião e
sugeriu a construção de uma penitenciária agrícola feminina onde as internas seriam
educadas na prática de trabalhos rurais e agrícolas próprios para as mulheres, como a
avicultura, a apicultura, a sericicultura, a pequena lavoura e a jardinagem”(SOARES,
2002, p. 54).
Estas propostas demonstram bem como o pensamento da época sobre o papel da
mulher na sociedade influenciou a elaboração do modelo de prisão feminina. Tinha-se a
preocupação de reeducar as presas ensinando atividades “próprias para serem executadas
por mulheres”. Esta visão típica da sociedade patriarcal, com modelo de economia primário
exportador, somava-se a uma visão moralista que se refletia no tratamento diferenciado
dado às presas condenadas por crimes comuns vis-à-vis às condenadas por crimes de
contravenção associados à prostituição e à embriaguez. Estas últimas, que representavam a
maioria do efetivo carcerário feminino, eram. marginalizadas e discriminadas, por serem
vistas como moralmente inferiores. A necessidade de separar as demais presas, que tinham
29
penas maiores, daquelas presas por crimes de prostituição e embriaguez, com penas
menores e grande rotatividade na prisão,, impulsionou a criação de uma unidade prisional
destinada às mulheres. Soares cita uma fala de Lemos de Brito à época que demonstra o
pensamento conservador e preconceituoso com relação à mulher presa que norteou a
criação da prisão feminina:
“Ao lado da mulher honesta e de boa família, condenada por um crime
passional ou culposo, ou a que aguarda julgamento, seja por um aborto
provocado ou motivo de honra, seja por um infanticídio determinado muitas
vezes por uma crise psíquica de fundo puerperal, estão as prostituídas mais
sórdidas, vindas como homicidas da zona do baixo meretrício, as ladras
reincidentes, as mulheres portadoras de tuberculose, sífilis, moléstias
venéreas, ou hostis à higiene”(Soares, 2002, p.56).
Outro motivo que alavancou a criação do presídio feminino foi a necessidade de
separar homens de mulheres presas, pois, na concepção dos juristas que pensavam a
reforma penal, a permanência das mulheres junto aos homens presos era nociva já que
instigava os instintos masculinos, comprometendo assim a paz e a tranqüilidade nas
prisões.
Era preciso agora criar um doutrinamento a ser adotado na prisão feminina para
submeter as mulheres presas, domando-as, reeducando-as, dentro das normas da moral e
dos bons costumes, transformando-as, enfim, de pecadoras em rainhas do lar, responsáveis
por cuidar da família e obedecer aos seus maridos, numa relação de submissão e
obediência.
Essa transformação na alma feminina só seria possível através do doutrinamento
religioso. Assim, quando em 1942 foi criada a primeira penitenciária feminina do Rio de
Janeiro (na época Distrito Federal)– Talavera Bruce -, a Igreja Católica, representada pelas
Irmãs do Bom Pastor, foi chamada a administrá-la.
Sob a responsabilidade das freiras ficavam as esferas de educação, disciplina,
trabalho, higiene e economia. Segurança, transporte, alimentação, subsistência e saúde
eram incumbências da Penitenciária Central do Distrito Federal.
O surgimento dos presídios femininos no Brasil e mais especificamente no Rio de
Janeiro é marcado pela reforma do sistema penal e por mudanças nos textos do código
penal, código de processo penal e lei das contravenções penais.
30
Essas reformas vão sendo costuradas desde a revolução de 30 até a criação do
Estado Novo, quando é realizada também a reforma administrativa e é criada a legislação
trabalhista. Tais mudanças no cenário sócio-político brasileiro vão implicar, segundo Lima
(1983), a criação de instrumentos de controle das relações de poder local, bem como a
regulação e a submissão das relações capital-trabalho ao Estado.
Essa reformulação nas relações do Estado com a sociedade, além da própria
reorganização do poder público, tinha um caráter autoritário e centralizador, o que vai se
refletir na nova organização jurídico-penal.
O novo estatuto penal, ao mesmo tempo em que conserva o caráter moralista já
evidenciado em períodos anteriores, reproduz a carga de centralização e poder, oriunda das
mudanças na estrutura de Estado. Tal configuração vai influenciar decisivamente a nova
organização das prisões. Estas irão seguir um modelo de centralização do sistema
penitenciário, com a criação em 1934 da Inspetoria Geral Penitenciária, instituição de
caráter nacional responsável por assegurar o cumprimento prático do regime proposto pelo
código penal.
“Fica assim firmada a característica geral da ideologia penal do
período, ela corresponde no diagnóstico da necessidade de
centralização do poder político nacional e sua lógica implica a adoção,
com respeito a toda relação de poder, de uma atitude autoritária por
parte do Estado.” (Lima, 1983, p.22)
Dessa forma, a nova ideologia penal vai moldar a imagem sociopolítica da prisão,
caracterizando a roupagem repressiva do estado. Os ideólogos conservadores que
contribuíram intelectualmente para a conformação desta reforma não só reforçavam a
importância do caráter centralizador e repressivo do Estado no combate à violência, como
também sugeriam que o código penal fosse mais severo com o indivíduo que delinqüiu e
primasse pela redução dos direitos do mesmo. Estes discursos tinham na realidade o
objetivo de minar, como afirma Lima (1983), a resistência legal da sociedade civil ante a
repressão que reinava na época por parte do Estado.
A mudança de uma sociedade agrária para uma sociedade industrializada gera novos
conflitos sociais de classes. Estas transformações sociais alteram o foco de atenção, por
parte do Estado, do indivíduo para o grupo social que passa a ser mais ameaçador para o
31
poder público e suscita então o cerceamento dos direitos legais do cidadão, como forma de
garantir a autoridade do Estado e o controle da sociedade.
A redução dos direitos civis vem travestida no discurso de uma maior rigorosidade
no trato da delinqüência, como demonstra a citação do jurista Francisco Campos feita por
Lima:
“As nossas vigentes leis do processo penal asseguram aos réus,
ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das
provas um tão extenso catálogo de garantias e favores que a
repressão se torna necessariamente defeituosa e retardatária,
decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade
(Lima, 1983, p.23)
Assim, o estabelecimento nos anos 1930 de uma reforma penal e penitenciária vem
atender à necessidade do Estado Novo de controlar e reprimir as relações conflitivas da
nova ordem social que eclodem com a emergência das questões sociais oriundas da nova
sociedade capitalista.
As novas relações sociais pautadas no também novo modo de acumulação
capitalista geram uma reorganização penal para combater o perigo delas advindo. Essa
periculosidade é associada à classe trabalhadora, e em particular à multidão de pobres
desempregados ou inseridos nas franjas, nos circuitos informais da economia urbana. Com
isso, acentua-se o tratamento das questões sociais como caso de polícia, prática que é
legalizada pela reforma penal.
Esse tratamento policialesco dado à questão social legitimava o surgimento de
novos delitos e o que era tão somente uma mazela social passou a ser visto como um
degrau para a escalada do crime e que, por isso mesmo, deveria ser reprimido. Para tanto, a
polícia tinha como ação preventiva da criminalidade combater aquilo que a lei de
contravenções denominava de vadiagem, pois para a polícia da época, essa “transgressão”
era o primeiro passo para a inserção do sujeito na criminalidade. Desempregados eram, da
mesma forma, considerados vadios e portanto alvo dessa política equivocada de combate ao
crime.
As manifestações trabalhistas eram igualmente tratadas como caso de polícia.
Adaptou-se a legislação penal para cumprir este papel que, na verdade, salvaguardava os
interesses capitalistas em detrimento dos direitos do cidadão: eram os crimes contra a
organização do trabalho.
32
Em um contexto em que a pobreza se transforma, aos olhos do Estado e da justiça,
no centro da criminalidade, intensifica-se o caráter punitivo da lei em relação aos pobres.
A prisão vem apoiada nesta mesma legislação burguesa, como o lugar apropriado para
punir e transformar criminosos em cidadãos honestos. Entretanto há aí uma grande
inversão, pois o que se cria é uma prisão para guardar pobres “perigosos” e que, ao invés de
recuperar, se torna um espaço de reprodução da criminalidade pela ineficácia própria de
seus métodos.
Além da prisão, outros mecanismos legais foram postos em prática para manter sob
controle a população criminalizada: eram eles o flagrante, a prisão preventiva e as medidas
de segurança, que aumentavam o número de detenções para averiguação e mais uma vez
legitimavam o controle policialesco das camadas mais vulneráveis da população.
Testemunho disso é que, de 1944 a 1953, conforme relatórios da Penitenciária
Central do Distrito Federal, citados no trabalho de Lima(1983), o número de mulheres
detidas e depois liberadas é imensamente superior ao número de mulheres condenadas. Em
1944, por exemplo, foram detidas 176 mulheres e somente 11 condenadas; em 1951, foram
presas 510 mulheres, mas apenas 16 sentenciadas. Grande parte destas detenções, que
inchavam o quantitativo de mulheres presas, sem no entanto aumentar o total de
condenações, ocorria por vadiagem e prostituição.
Segundo Lima (1983) é essa mulher marginalizada pelo mercado de trabalho
industrializado e exercendo ocupações informais – domésticas, biscateiras, prostitutas - que
passa a ser alvo dos sistemas policial e prisional e ambos, em combinação de desígnios,
objetivam redomesticar a mulher “criminosa”.
Para cumprir essa função, é criada, em 1942, a Penitenciária de Mulheres do
Distrito Federal, administrada, como já dito antes, pelas religiosas do Bom Pastor, que
instituíram ali um regime de prisão-convento.
E qual seria o sentido de uma intervenção religiosa na recuperação de mulheres
criminosas? A resposta está nas representações que se tinha, à época, do papel da mulher na
sociedade e da sua subjetividade. A mulher era vista como um apêndice do homem e
portanto dependente do mesmo. Seu papel era o de mãe e esposa devota, seu lugar era o lar,
e suas atividades natas as tarefas domésticas, sua função era procriar e seu prazer, dar
prazer ao homem.
33
Entretanto se a mulher tinha essa face santa ela também possuía uma outra face
voltada para o mal. Nesta ambigüidade estariam os fundamentos da criminalidade feminina
e para combatê-la, as prisioneiras deveriam ser domesticadas.
A mulher que praticava o crime fugia de sua natureza. e portanto era anormal. O
cometimento do crime pela mulher era tido como algo patológico ou demoníaco. Incluíam-
se aí também e principalmente as prostitutas, homicidas passionais que tinham seus crimes
associados ao exercício de sua sexualidade, permitida somente aos homens. Para que a
mulher desabrochasse novamente o seu lado “santa” era necessário que esse mal fosse
expurgado.
Essa era a função da prisão feminina quando de seu surgimento: a recuperação do
lado “bom” da mulher e a extirpação do seu lado “mau”, resgatando a mãe e a esposa para
o espaço restrito e privado do lar, diferente das prisões masculinas que objetivavam
recuperar o cidadão para a sociedade, um espaço mais amplo e público destinado ao
homem.
Assim na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, a domesticidade fundou-se
como o objetivo maior da penalização das mulheres e a doutrina religiosa foi adotada como
tratamento penitenciário, seguindo regras rigorosas estabelecidas pelas Servas do Bom
Pastor. Essa unidade inaugurou a separação de prisões por sexo visando a evitar a
promiscuidade e a influência perniciosa da mulher sobre os homens presos.
A prisão feminina contava com dois níveis de direção e controle da administração e
disciplina da unidade. No primeiro nível vinha a direção geral que era subordinada à
Penitenciária Central do Distrito Federal, órgão maior de assuntos penitenciários em nível
federal. Hierarquicamente abaixo da direção geral estava a administração interna sob a
coordenação das freiras. Por último, estava o corpo de guardas, responsável por fazer
cumprir as normas disciplinares estabelecidas pelos dois níveis superiores.
Essa administração interna da penitenciária feminina exercida pelas freiras, que já
tinham larga experiência em gerenciar instituições de reclusão, dizia respeito a
responsabilidades em coordenar a disciplina, trabalho e higiene das presas, além da
economia da instituição, sempre sob o poder centralizador do Estado que supervisionava as
ações das freiras.
34
Às religiosas cabia ainda e principalmente a execução de atividades de enfermagem
e assistência, que na leitura de Lima (1983) indicariam a intenção de tratamento do corpo
das mulheres através dos serviços de enfermagem, e da alma das prisioneiras através da
assistência e do disciplinamento.
“A autoridade que impõe é externa, a autoridade que zela é interna. E
finalmente, às figuras externas da marginal, da vadia, da prostituta, da
criminosa, correspondem as figuras internas da menor, da incapaz, da
irresponsável, isto é da prisioneira.”(Lima, 1983, p.57)
A prisão feminina trouxe inovações do ponto de vista administrativo, já que era
gerenciada por freiras, e também na perspectiva arquitetônica, posto que eliminou grades
no interior das celas, substituindo-as por basculantes e reduziu a altura do muro que cercava
a penitenciária. Estas mudanças pressupunham que através da disciplina imposta, as
mulheres seriam docilizadas, transformadas, domesticadas e se reencontrariam com a visão
socialmente idealizada de mulher. Todo esse processo seria pois suficiente para inibir
tentativas de fugas, daí ser desnecessária a existência de grades e muros altos, que seriam
substituídos pela religião, disciplina, reeducação e vigilância constante e meticulosa,
objetivando-se tornar a prisão numa instituição mais próxima de um internato.
Em que pese o conservadorismo da ideologia do momento, a Penitenciária Feminina
teve um caráter reformista, pelo menos no que tange ao objetivo institucional, que deixou
de ter como fim a punição e passou a ter em mira a reforma interna das presas. Essa
inovação, de caráter subjetivo, foi acompanhada por uma mudança na aparência prisional
de forma que a penitenciária tivesse mais ares de reformatório e menos de prisão.
De qualquer modo, inovações à parte, esta reforma interna das presas estava
condicionada à submissão das mulheres a rígidas regras disciplinares de cunho religioso e
moral. Buscava-se trabalhar os seus corpos e sua moral para que pudessem readquirir a
vocação perdida e reaprender seu papel na sociedade, qual seja o de mulher submissa e
doméstica. Na prática, todas as atividades disponíveis na prisão, fossem de trabalho ou
lazer, concorriam para este fim: o lar. Assim, a prisão deveria novamente domesticar as
presas para retornarem a este espaço privativo e restrito destinado às mulheres. Se a
criminalidade tinha como lócus de ação, em grande parte, a rua, o crime seria uma
tentativa da mulher de romper com esse padrão social feminino da época que restringia o
lugar da mulher à casa, junto da família.
35
O rompimento desta vocação feminina de rainha do lar levaria ao cometimento do
delito e seria fruto da negação de submissão ao padrão feminino estabelecido na sociedade,
portanto uma anormalidade que deveria ser corrigida envolvendo a mulher neste círculo de
promoção do apego ao lar fomentado pela prisão, atacando aí, de forma obsessiva,
principalmente a sexualidade feminina e a agressividade, que deveriam ser reprimidas, já
que eram a fonte de todo o mal e não eram de natureza feminina.
Este disciplinamento imposto pelas religiosas, embora tivesse caráter inovador e
fosse colocado como a antítese da punição, era o exercício da violência contra a mulher
com outra roupagem. Por não respeitar a subjetividade das presas, traduzindo-se em um
tratamento repressor e massificador, gerou mais violência e indisciplina entre as internas.
O agravamento na dificuldade das Servas do Bom Pastor em administrar os
conflitos internos da Penitenciária Feminina, em função da reação das presas ao regime
imposto pelas religiosas, levou ao fim a administração das freiras e, em 1955, a
Penitenciária de mulheres passou a ser gerenciada somente pela direção da Penitenciária
Central do Distrito Federal. A partir de 1966, a unidade foi transformada em Instituto Penal
Talavera Bruce e passou a ter autonomia administrativa. Posteriormente sua denominação
mudou para Penitenciária Talavera Bruce, nome que conserva até hoje.
A administração das Servas do Bom Pastor, marcada por seu caráter religioso,
moralista e repressor, e a administração laica, que permanece até os dias atuais, têm em
comum a violência legitimada e intrínseca da prisão. Tal violência está implícita no regime
a que são submetidas as mulheres encarceradas, condenadas a um isolamento forçado,
onde, por anos de suas vidas, deverão obedecer a regras rígidas de convivência e
padronizadoras de rotinas comuns do dia-a-dia. Se antes da prisão estabeleciam suas rotinas
livremente, agora se subordinam a horários fixos e vigilância cerrada.
Essa nova forma de sociabilidade imposta às mulheres na prisão, por uma
instituição fechada e normatizadora, além de controlar as interações estabelecidas no seu
interior e mediar as relações de seus internos com o mundo externo, também difunde e
transmite socialmente concepções e representações de conteúdos excludentes. Isso se dá
mediante práticas que alteram os referenciais de vida e a identidade das presas e contribuem
para construir e/ou reforçar estereótipos, estigmas e discriminações. É esta a essência do
processo de prisonização, que discutiremos, a seguir.
36
1.3. Processo de prisonização e instituições totais
6
Na prisão, novas formas de sociabilidade são construídas obedecendo a regras e
relações intra e extra muros impostas pela instituição. Para Perruci (1983) ali existiriam
dois modos de vida interagindo: o oficial e o interno-informal. Em paralelo às hierarquias
formais da instituição com suas regras oriundas das autoridades penitenciárias que
submetem a presa a um sistema de controle rigoroso, subsiste uma outra realidade informal,
produto da inter-relação entre os indivíduos dentro deste sistema social.
A convivência forçada com outras mulheres de diferentes costumes, origens,
famílias, religiões, escolaridades e classes sociais obriga a conformação de uma vida
conjunta com costumes e valores próprios que são moldados pela dinâmica institucional.
Essa convivência atrás de grades é mediada por um poder repressivo, coercitivo e vigilante
que visa a manter a ordem interna. Ali a privacidade praticamente inexiste e cada ação
individual é percebida pelo coletivo; não é apenas o olhar da lei que vigia, mas também o
dos pares.
O objetivo segregador da prisão é contundente: separa a mulher que praticou um
delito da sociedade e, através de suas normas rigorosas, cria enormes barreiras que
impedem seu contato com o mundo externo. Assim, desmantelam-se, muitas vezes laços
sociais essenciais ao objetivo de ressocialização, a que a pena de reclusão se propõe e não
alcança.
Quando a mulher é condenada e vai para a prisão é forçosamente obrigada a se
adaptar a esta nova realidade, tão peculiar e cheia de conflitos. Esse processo de adaptação
em que se vão perdendo alguns referenciais próprios e absorvendo, em graus diferenciados,
o modo de pensar, os costumes, os hábitos e a cultura da prisão foi denominado por Donald
Clemmer como processo de prisonização.
Thompson, citando Clemer, esclarece que o conceito de prisonização tem por base a
categoria assimilação que diria respeito ao processo ocorrido com um indivíduo ou grupo
que passa a fazer parte de outro grupo e se funde com este. Seria um processo gradual,
vagaroso e até mesmo inconsciente, onde o indivíduo absorveria de tal modo a cultura
6
Embora as noções de prisonização e instituições totais sejam aplicadas a um coletivo, independente das
características (sexo, idade, cor, entre outras) dos indivíduos que dele fazem parte, na discussão feita a seguir
destes conceitos, estaremos particularizando a experiência concreta de mulheres presas.
37
daquele coletivo ou ambiente em que se inseriu que passaria a ser característico dele.
Aplicada à prisão, esta noção de assimilação corresponderia ao processo de prisonização
que, segundo Thompson, “indica a adoção, em maior ou menor grau, do modo de pensar,
dos costumes, dos hábitos da cultura geral da penitenciária”(Thompson 1980, p.17)
Logo num primeiro momento, a presa teria a sua condição social ignorada e
alterada, pois passa a fazer parte do anonimato dentro de um grupo que, por ser
subordinado ao poder institucional, obriga a presa a reconhecer e a acatar a autoridade dos
custodiadores. A roupa, por exemplo, que individualiza o sujeito, passa a ser igual para
todo o grupo e as gírias da cadeia, se não entram para o seu vocabulário no dia-a-dia, pelo
menos são entendidas e utilizadas forçosamente na comunicação entre os pares.
Nesse processo de adaptação à vida na instituição, as presas aprendem também as
formas de burlar algumas normas e “se dar bem”, ou obter alguns privilégios e favores. É
como se elas fossem se adequando à nova realidade e misturando-se a ela, como um
camaleão que adquire as cores do ambiente. A presa despe-se de seu status originário e
absorve os dogmas do grupo, transformando-se gradativamente, e todas, em escalas
diferentes, sofrem a influência do que Thompson (1980) chama de “fatores universais da
prisonização”.
Estes fatores seriam a submissão a papel inferior, absorção de normas relativas à
organização da prisão, mudança nos costumes ligados à alimentação, vestuário, trabalho e
descanso, adoção das gírias da prisão, alteração da percepção de si mesma e do outro e da
noção de espaço e tempo, eventual interesse em inserir-se em uma boa atividade laborativa,
que muitas vezes lhe rende privilégios junto ao corpo funcional ou à população prisional.
Cria-se ali uma nova comunidade que é obrigada a abandonar os costumes da
sociedade livre e se estabelecer obedecendo a regras endógenas – nascidas das novas
relações dentro da instituição e com o mundo externo – e exógenas – impostas pelo sistema
prisional e constituídas de forma anti-democrática, já que as detentas não participam do
processo de construção das normas estabelecidas.
“A característica mais marcante da penitenciária, olhada como um
sistema social, é que ela representa uma tentativa para a criação e
manutenção de um grupamento humano submetido à um regime de
controle total ou quase total” (Thompson, 1980, p.22)
38
O que remete à noção de instituição total, cunhada por Goffman. Afirma o autor que
toda instituição tem tendências de fechamento por tomar parte do tempo e do interesse de
seus participantes. Entretanto, algumas instituições são mais fechadas do que outras. O
fechamento é mais acentuado à medida que impõe limites maiores de contato de seus
integrantes com o mundo externo, sendo essa limitação representada nas características
físicas das instituições, tais como muros altos, portas fechadas, grades, arames farpados,
entre outras. Estes elementos impostos entre o indivíduo integrante da instituição e o
mundo externo são constitutivos das instituições totais.
Tais instituições seriam criadas na sociedade para diferentes grupos de indivíduos e
possuiriam objetivos diversos. As casas de acolhida para velhos, órfãos, cegos e indigentes
seriam um primeiro tipo de instituição total, destinando-se a cuidar de pessoas consideradas
incapazes e inofensivas; um segundo tipo teria como objetivo asilar pessoas incapazes de se
cuidar e que representam um perigo para a sociedade, porém de forma não intencional,
caso, por exemplo, de hospitais psiquiátricos, sanatórios e hospitais de hanseníase. As
prisões seriam um terceiro tipo de instituição total e visariam proteger a sociedade de
indivíduos que representam um perigo intencional. Dentro desta lógica, as pessoas que lá
estão internadas são os menos importantes para a instituição, que tem como preocupação
principal livrar a sociedade daqueles indivíduos e do mal que possam causar, não
privilegiando o bem estar dos presos. Outras instituições totais seriam criadas ainda para se
realizar de forma mais adequada determinadas tarefas, como os quartéis, colégios internos,
navios, dentre outras. Finalmente, os mosteiros e conventos representam as instituições que
objetivam o isolamento dos indivíduos para instrução de religiosos e refúgio do mundo.
Segundo Goffman (1961) os distintos objetivos dessas instituições são bastante
claros: econômico, educativo, de tratamento médico ou psiquiátrico, de proteção da
sociedade, além de intimidação e reforma dos indivíduos. Tais objetivos justificariam os
procedimentos das instituições, as práticas de seus profissionais e as atitudes de pessoas que
se inter-relacionam com os internos:
“O esquema de interpretação da instituição começa a atuar
automaticamente logo que o internado é admitido, pois a equipe
dirigente tem a noção de que a admissão é prova “prima facie” de que
essa pessoa deve ser o tipo de indivíduo que a instituição procura
tratar. Um homem colocado em prisão política deve ser um traidor; um
homem na cadeia deve ser um delinqüente; um homem num hospital
para doentes mentais deve estar doente. Se não fosse traidor,
39
delinqüente ou doente por que estaria aí? Essa identificação
automática do internado não é apenas uma forma de dar nomes; está
no centro de um meio básico de controle social” (Goffman, 1961, p.77)
Assim é possível perceber que a cultura dessas instituições visa o controle dos
internos. Por trás dos motivos que justificam a existência de prisões , hospitais psiquiátricos
e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, existe o objetivo de disciplinar e moralizar
os indivíduos considerados “desviantes”. As instituições totais, seriam “um local de
residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante,
separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida
mais fechada e formalmente administrada”(Goffman, 1961, p.11). E, embora existam
diversos tipos de instituições totais possuidoras de características distintas, elas
compartilham de um ponto: a existência de uma única estrutura de relações sociais.
Sabemos que as relações estabelecidas pelos indivíduos nas diversas esferas de suas
vidas se dão em diferentes lugares, com pessoas distintas e em momentos diversos. Estas
relações são de certa forma livres, pois os vários sistemas de autoridades, existentes na
sociedade, são dispersos, não existindo uma autoridade direta ou um esquema racionalizado
explícito que as norteie. Entretanto, nas instituições totais, seja ela qual for, a estrutura de
relações obedece a uma racionalidade. Assim todos os aspectos da vida acontecem num
mesmo lugar e debaixo de uma autoridade. Trabalha-se, come-se, dorme-se, pratica-se o
lazer no mesmo local, com um número consideravelmente grande de pessoas que estão
subordinadas às mesmas regras de convivência, sendo obrigadas a fazerem as mesmas
atividades.
Essas atividades diárias são obrigatórias e seqüenciais obedecendo a um rigoroso
esquema de horário e definidas em sistema de regras controladas por funcionários, o que
representa uma outra característica dessa estrutura de relações.
Todo esse esquema rigoroso visa atender aos objetivos oficiais da instituição, pois a
partir do momento que as atividades são previsíveis, com horários pré-estabelecidos, o
controle dos indivíduos torna-se mais fácil, na medida em que estes vão sendo disciplinados
e enquadrados no padrão de comportamento definido pela instituição.
“O controle de muitas necessidades humanas pela organização
burocrática de grupos completos de pessoas – seja ou não uma
necessidade ou meio eficiente de organização social nas circunstâncias
– é o fato básico das instituições totais.” (Goffman, 1961, p.18)
40
Dessa forma, as instituições totais são formadas por dois grupos distintos: os
internos que obedecem e os funcionários que vigiam e controlam para que as normas sejam
cumpridas. O primeiro grupo quase não tem contato com o mundo externo, o segundo, no
entanto, está integrado a este mundo exterior.
A tendência é de que os dois grupos se relacionem de forma hostil, atribuindo-se
mutuamente estereótipos e gerando sentimentos de superioridade por parte da equipe, e de
inferioridade por parte dos internos.
“A mobilidade social entre os dois estratos é grosseiramente limitada;
geralmente há uma grande distância social e esta é freqüentemente
prescrita”(Goffman, 1961, p.19)
Além dessa distância entre internos e funcionários, os primeiros são excluídos das
decisões sobre seus destinos e normalmente não são informados sobre as determinações
tomadas pela instituição com relação às suas vidas. Esse processo de exclusão fortalece a
divisão estabelecida entre os dois mundos sociais e culturais antagônicos e
interdependentes.
O distanciamento da vida em sociedade vai minando as relações estabelecidas antes
da prisão. Tal como observamos no Talavera Bruce, o isolamento e a solidão decorrentes
desta ausência de contato com o mundo exterior vão gerar a necessidade de integração
naquele grupo em que a presa agora está inserida e a identificação com a população
carcerária começa a acontecer. Assim, a rejeição, a necessidade de aceitação e a carência
que muitas internas sofrem em decorrência do abandono da família e de amigos
intensificam o processo de prisonização, pois maior será a necessidade de integrar-se
àquele grupo na prisão.
O resultado da exposição aos fatores descritos por Thompson, que concorrem para o
processo de prisonização durante os anos de cumprimento da pena, vai influenciar na perda
de alguns referenciais e na obtenção de outros, desorganizando internamente a detenta a
ponto de dificultar-lhe a reinserção social ou mesmo aproximá-la mais da criminalidade.
Os condicionamentos estigmatizantes próprios da prisão substituem, de forma
gradativa, os condicionamentos sociais extra-muros e a readaptação à sociedade pode
tornar-se difícil, principalmente para aquelas que cumprem penas maiores. Isso porque nas
penas mais longas, além do processo de desculturação e institucionalização, são maiores as
possibilidades de problemas de ordem prática como dissolução da família, perda de
41
emprego e de bens e o conseqüente empobrecimento, que, agregados, vão dificultar a
reinserção social da mulher presa.
A readaptação à vida extra-muros torna-se custosa. Após longos anos de
segregação, submetidas a rotinas monótonas e rígidas de disciplinamento, este se torna seu
referencial de vida em sociedade. Na prisão, a cultura trazida da vida anterior vai sofrendo
um desgaste e se desfazendo, seus laços sociais se reduzem e, sem o contato com a vida na
sociedade livre, sua cultura individual deixa de se renovar e sua existência passa a ser
dominada pela rotina prisional. A construção dessa nova cultura, adaptada aos rigores da
prisão, norteará a vida da detenta durante sua permanência no cárcere e terá reflexos em sua
vida de egressa.
Assim depreende-se que o processo de prisonização contribui para a deterioração da
mulher presa, fazendo-a se anular para si mesma e para a sociedade. A perda dos
referenciais adquiridos antes da reclusão e a aquisição de outros, moldados pela
convivência na prisão, provocarão estranhamento com o mundo desconhecido que se
descortinará à sua frente, quando de seu retorno à sociedade livre.
“É principalmente na situação de egresso que o indivíduo se encontra
desprovido da capacidade de integrão social necessária à toda
ressocialização, o que implicará num primeiro momento na
capacidade exigida pelo agir social, de poder se inter-relacionar com
os outros” (Miralles, 1975, p.22)
Dessa forma quando a ex-detenta retoma a convivência em sociedade esbarra em
diversos problemas, alguns provenientes do processo de prisonização a que foi submetida,
outros, próprios da sociedade que é refratária a essa reinserção social.
A estigmatização da egressa, o descrédito da sociedade no sistema prisional
enquanto instituição ressocializadora, a rejeição social, o despreparo profissional agravado
pelos anos de prisão e o desemprego, conjugados aos efeitos perversos do processo de
prisonização, podem compelir a ex-detenta a reincidir criminalmente, fato que, por si só, já
estaria influenciando na conformação da criminalidade feminina.
Como vimos até aqui, a passagem dos suplícios para a pena de reclusão e o
conseqüente surgimento dos presídios sempre tiveram como fundamento básico punir o
criminoso, afastando-o da sociedade. Se no suplício o foco da punição estava no flagelo ao
corpo do indivíduo, chegando mesmo ao seu extermínio espetaculoso, a prisão segrega o
42
corpo do criminoso do convívio social e domestica sua alma, livrando, dessa forma, a
sociedade do “mal” e mantendo a ordem social.
Ainda que veladamente, a prisão tem na punição a intenção retributiva, qual seja
devolver ao indivíduo que praticou o crime o mal que ele causou à sociedade. Ora, este
objetivo não é compatível com a meta maior de ressocialização a que a prisão se propôs
quando foi criada.
O que vemos na prática é uma instituição com um sistema social fechado, dotada de
um poder exógeno que dita regras e submete a presa a um regime de controle rigoroso,
compartilhado pelo conjunto das internas, que, tendo por base as relações ali estabelecidas,
vão criar uma sociabilidade própria.
Essa cultura prisional, produto da assimilação do modus vivendi do cárcere, ou o
processo de prisonização em si, é que irá nortear a vida da interna na prisão e influenciar
negativamente sua reinserção social, após o cumprimento de sua pena, em alguns casos,
concorrendo para a reincidência no mundo do crime.
A discussão teórica até aqui desenvolvida, em especial a do fenômeno de
prisonização, é exemplarmente ilustrada pelos resultados da pesquisa de campo realizada na
Penitenciária Talavera Bruce. Conjugados - teoria e prática de pesquisa - permitiram
desvendar nuances pouco conhecidas das mulheres presas e de suas vidas na prisão,
ajudando a esclarecer certos fatores conformadores da criminalidade feminina. Antes,
porém, de apresentar esses resultados, faz-se necessário discutir a metodologia de trabalho
adotada na pesquisa. É este o objeto do próximo capítulo.
43
Capítulo 2 – Traçando a metodologia
Ao traçarmos a metodologia a ser adotada no desenvolvimento desta pesquisa,
privilegiamos a observação participante e a realização de entrevistas em profundidade,
tomando por base nossa vivência como assistente social da Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária do Rio de Janeiro. Aí trabalhamos desde 1996, atuando em
várias unidades prisionais e em programas diversos, tanto na área de saúde, como de
assistência à população carcerária e seus familiares.
Em uma das prisões, especificamente o Presídio Ary Franco, integramos uma
equipe multidisciplinar composta por assistente social, psicólogo e psiquiatra, que tinha por
atribuição principal realizar entrevistas com os internos recém-chegados às unidades de
ingresso do sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Tais entrevistas visavam estabelecer o
perfil bio-psico-social do preso, bem como definir suas aptidões, interesses laborativos,
educacionais e culturais, orientando a execução individualizada da pena. Eram abordadas
questões relativas à história familiar do detento, infância e adolescência, escolarização,
composição da família, inserção no mercado de trabalho, uso/abuso de drogas, delito
cometido e perspectivas futuras. Os temas tratados na entrevista originavam um relatório
bio-psico-social único da equipe, contemplando a história de vida do detento e contendo
avaliações específicas dos profissionais, com indicação de atividades para o preso participar
durante o cumprimento de sua pena. Com isso, objetivava-se a individualização da pena,
preconizada no Código Penal, buscando adequar o cumprimento da pena ao indivíduo
preso, com base em suas necessidades, aptidões e possibilidades e contribuir, assim, para
sua reinserção social.
A experiência vivida, principalmente neste projeto denominado PIT – Plano
Individualizado de Tratamento Penitenciário – e em outros programas dirigidos à
população carcerária, nos fez perceber a riqueza e a profusão de elementos ocultos, quase
nunca ditos ou ouvidos, mas que podiam aflorar no contato mais próximo com essas
pessoas, ajudando a elucidar elementos centrais de seu passado e seu presente.
Assim, foi sobretudo o acúmulo dessa experiência profissional o que nos levou a
adotar métodos qualitativos no processo de investigação. Estabelecer uma relação de
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proximidade com as internas da Penitenciária Talavera Bruce, entrevistá-las, escutar suas
falas em sucessivas incursões à unidade prisional e observar, mesmo que minimamente,
frações de seus dias delineavam-se, desde o início do projeto de pesquisa, como os passos
fundamentais do trabalho de campo a ser desenvolvido.
Tudo levava a crer, porém, que esta não seria uma tarefa simples. Como atestam,
entre outros, um dos primeiros estudos sócio-antropológicos levados a efeito no Brasil
sobre o mundo dos presídios, o de Ramalho (1979) na Casa de Detenção em São Paulo, e,
mais recentemente, os de Lemgruber (1999) e Soares (2002) sobre o sistema penitenciário
do Rio de Janeiro, são inúmeras as dificuldades de realização de pesquisa nas prisões, seja
pela rigorosidade nos critérios para autorização, seja em função da ausência de cooperação
dos agentes institucionais, na implementação do trabalho de campo.
Podemos afirmar, no entanto, que houve uma relativa facilidade no nosso acesso à
unidade prisional Talavera Bruce e que não encontramos maiores resistências para realizar
a pesquisa. Certamente, o fato de fazermos parte da estrutura da Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária pesou favoravelmente e facilitou, de maneira geral, o
processo..
Obedecendo à hierarquia institucional, recebemos a necessária autorização tanto da
Divisão de Serviço Social da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, quanto
da Direção da Penitenciária Talavera Bruce. O diretor dessa unidade, que se mostrou
sensível ao estudo proposto, cedeu uma sala para realização das entrevistas, autorizou o uso
do gravador e disponibilizou os prontuários e fichas da Seção de Classificação para o
levantamento de dados.
Após tais entendimentos, marcamos para 17 de setembro de 2004, uma sexta-feira, a
data para o início da investigação. A escolha das sextas-feiras para desenvolver o trabalho
de campo na penitenciária foi influenciada pela necessidade de encontrar um dia
“tranqüilo” na rotina da instituição. Isso excluía, a priori, os dias de visita (quartas,sábados
e domingos), por ser esse um evento que mobiliza não só as detentas, mas também o corpo
funcional, praticamente inviabilizando toda e qualquer outra atividade no presídio.
Tendo fixado a sexta-feira como o dia de nossas idas semanais ao Talavera Bruce,
definimos também o que seria nossa atividade principal no primeiro dia de pesquisa:
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iniciar, com base nos arquivos da seção de Classificação, a montagem de um banco de
dados de todas as internas do presídio.
Naquele dia 17, ao cruzarmos os muros altos e brancos com grades e portões
pesados, que cerram a liberdade e encerram essa “população tanto desviante, perigosa como
supérflua no plano econômico” (Wacquant, 2001, p. 98), esperávamos nos defrontar, uma
vez mais, com a marca que a privação- objetiva e subjetiva - imprime nas presidiárias.
Mulheres, em sua maioria, ressabiadas e carrancudas, algumas marcadas na pele, a maioria
na alma, guardando tão seguramente histórias de vida, de poucas alegrias, e muita dor,
conflitos, revolta e envolvimento com a violência criminal.
Contrariando nossas expectativas, o primeiro contato foi não com o sofrimento, mas
com a alegria. Aquele 17 de setembro foi um dia especial, ao coincidir com a realização do
1º Concurso da Garota Talavera Bruce. Por meio dele, as internas puderam, por algumas
horas, deixar aflorar um outro lado desconhecido pela sociedade. Ao organizarem e
participarem de um concurso de beleza, muitas puderam despir-se do estereótipo de
“mulheres-feras” e tornar-se “mulheres-belas”, resgatando o domínio e o cuidado de seus
corpos disciplinados pelo sistema prisional.
O evento possibilitou que elas tivessem os “quinze minutos de fama”, preconizados
por Andy Warhol, e, através da cobertura da imprensa, saíssem da invisibilidade social, da
qual a maioria sempre fez parte e da qual algumas pareciam ter procurado fugir, mesmo que
pelo caminho da criminalidade.
Assim, o primeiro dia de estudo na penitenciária Talavera Bruce, foi totalmente
atípico tanto para a instituição, como para nossa pesquisa. O concurso de beleza rompeu
com a rotina monótona dos dias sempre iguais, típica das instituições totais, alterou as
regras de funcionamento e introduziu uma dinâmica nova, ainda que fugaz, no presídio.
Rompeu, também, com o nosso esquema de atividades para aquela data. O planejado
levantamento de dados das internas nos arquivos da seção de Classificação teria de esperar
mais uma semana para começar a ser feito e cedeu lugar à rica experiência de observação
daquele jornada particular.
Autorizadas pela direção da unidade a entrar com uma máquina fotográfica para
registrar o Concurso, fomos apresentadas às quatro internas organizadoras do concurso e
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editoras do Jornal Só Isso!, porta-voz das presas da Penitenciária Talavera Bruce e que viria
a se tornar um grande aliado no nosso percurso investigativo.
Juntando-nos, então, aos vários fotojornalistas, presentes na cobertura do evento
concurso, fotografamos diversas internas durante a realização do desfile e, posteriormente,
na entrega dos prêmios às vencedoras. No júri, integrantes do sistema jurídico-penal
votavam ao lado de figuras conhecidas das colunas sociais. Ao final, todos proferiram
discursos sobre a importância da sociedade enxergar a presa além do véu de criminosa e
teceram promessas de melhoria das condições prisionais e implantação de novas oficinas de
trabalho.
Convidadas a assistir ao desfile, as presas de “bom comportamento” - talvez grande
parte do efetivo da unidade prisional, posto que o auditório estava lotado - se entreolhavam
ante os discursos das autoridades e convidados e expressavam algo entre incredulidade e
cansaço de promessas não cumpridas. Mas essa expressão escapou rápida como um
lampejo, pois naquele dia a palavra de ordem era a alegria.
Na semana seguinte, voltando ao presídio, procuramos as internas responsáveis pelo
jornal para parabenizá-las pelo evento e aproveitamos a oportunidade para explicar-lhes
detalhadamente o objetivo do trabalho. Sua adesão ao projeto era extremamente importante
para nós. Se – como o sucesso do concurso nos fazia supor - essas internas tivessem
legitimidade entre as demais presas, o jornal poderia ser um forte aliado na aceitação da
pesquisa pelo coletivo carcerário, condição imprescindível para a realização de uma
pesquisa alicerçada em entrevistas voluntárias.
A equipe responsável pelo jornal logo demonstrou interesse e aceitação pelo
trabalho. Três internas se habilitaram a participar das entrevistas e solicitaram que
escrevêssemos um pequeno artigo para ser publicado no número seguinte, o que fizemos
dias depois e resultou na divulgação da pesquisa, na edição de dezembro do jornal Só Isso!
Selava-se, assim, uma parceria fundamental para penetrarmos em um universo de
pessoas reticentes e desconfiadas e ganharmos sua confiança. O aval das editoras do jornal
era uma espécie de senha de entrada que poderia ajudar a romper com a desconfiança e o
temor daquele universo e gerar bons frutos para nosso estudo.
A realização das entrevistas, porém, seria uma etapa a ser vivida mais a frente.
Antes, era preciso montar o banco de dados das presas da Penitenciária Talavera Bruce,
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passo que, desde o início, nos pareceu importante no sentido de traçar um perfil mínimo das
mulheres ali encarceradas. Para tanto, teríamos disponível o arquivo de fichas resumo,
administrado pela Seção de Classificação, setor responsável, como o nome já demonstra,
por classificar as internas, por meio de prontuários e de um sistema operacional que
agrupam os dados de identificação, situação jurídica e aspectos da vida prisional das
detentas.
Como método de trabalho, iríamos, numa primeira etapa, levantar os dados de todas
as internas do Talavera Bruce e posteriormente, com o banco de dados já montado,
procederíamos à sistematização e à análise desses dados, bem como a uma primeira seleção
das internas a serem entrevistadas, na segunda etapa da pesquisa. Os dados do cadastro
atendiam, pois, a um duplo propósito: o primeiro era o de traçar o perfil estatístico do
universo de detentas e o segundo era o de dar suporte a uma seleção prévia das internas, a
serem entrevistadas.
Essa seleção seguiria alguns critérios, de modo que fosse representativa da
população carcerária. Selecionaríamos detentas em todos os delitos classificados na
unidade e o número de presas a serem entrevistadas em cada delito deveria guardar
proporcionalidade com o número de presas condenadas naquele artigo. Assim, para os
crimes com maior número de condenações, maior seria o quantitativo de mulheres a serem
entrevistadas. Em cada delito escolheríamos, ainda, mulheres nas diversas faixas etárias e
dentro destas faixas, aquelas com condenações menores e outras com a pena mais elevada.
Estes seriam os critérios a serem adotados na aplicação do questionário.
A fim de garantir o sigilo na segunda etapa da investigação, ou seja, no momento de
realização das entrevistas, buscamos um local dentro da unidade que atendesse a esse
propósito, prevendo algumas dificuldades nessa empreitada, pois as unidades prisionais,
além de privilegiarem a segurança, em detrimento de qualquer outra necessidade, possuem,
em sua maioria, instalações físicas precárias e insuficientes.
A sala de atendimento jurídico foi o espaço disponibilizado pela Direção para
realizarmos as entrevistas e que afortunadamente contemplou nossas necessidades. Esta
pequena sala, localizada no prédio da administração, não tinha atendimento às sextas feiras
proporcionando assim privacidade na aplicação do questionário. O acesso para as detentas
também seria fácil, uma vez que o prédio possui ligação com todas as galerias e pavilhões.
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Definido o espaço físico para a realização da segunda etapa do trabalho de campo,
pudemos efetivamente nos concentrar na primeira.
O levantamento de dados foi iniciado, de fato, no dia 24 de setembro de 2004, já
que no dia 17 de setembro, nos limitamos às apresentações do estudo proposto e da
pesquisadora aos funcionários (agentes penitenciários) da Seção de Classificação. Estes, se
não se mostraram satisfeitos com o fato de ter alguém, ainda que por pouco tempo,
“invadindo” seu espaço de trabalho e compartilhando das suas rotinas, tampouco foram de
todo refratários à pesquisa.
A montagem do banco de dados transcorreu sem transtornos, sendo mesmo
possível, em alguns momentos, contar com a colaboração dos funcionários da
Classificação. Entretanto, já ao final desta etapa, que consumiu aproximadamente dois
meses entre levantamento, crítica e correção, percebemos certo desconforto, por parte dos
funcionários, com a nossa presença, talvez por não se sentirem à vontade ou por influência
da visão repressiva que impregna as unidades prisionais. Uma visão que é
institucionalmente construída e legitimada e que, em geral, não se coaduna com os ideais de
reinserção social.
Esta contradição entre a missão institucional de reinserção social e o aumento da
austeridade em prol da segurança, apontada por Wacqüant (2001) em relação ao sistema
penitenciário americano, poderia igualmente ser aplicada a outros sistemas e se explicita
claramente na unidade por nós investigada:
O funcionamento interno dos estabelecimentos penais é cada vez mais
dominado pela austeridade e segurança, o objetivo de reinserção reduzindo-se a
mero slogan de marketing burocrático. (...) Se por um lado os guardas
carcerários ’aderem à inserção como ideal‘, toda organização de seu trabalho
nega a realidade desse ideal: ausência de doutrina, ausência de meios e de
tempo, ausência de formação, (...) conseguem reduzir esse ideal a “uma palavra
e uma falsa aparência. (...) Afinal de contas, enquanto a prisão mantiver sua
missão primordial de segurança pública, fundada num modelo coercitivo,
dissuasivo e repressivo, essa missão caberá aos guardas carcerários.”
(Wacquant,2001, p. 119 )
Em que pese esta contradição, foi possível construir, sem interferências, um banco
de dados com as informações contidas no arquivo atualizado da Seção de Classificação.
As fichas cadastrais - fonte utilizada para a construção do banco de dados –
continham as seguintes informações: nome da interna, número de identidade, filiação, data
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de nascimento, data da prisão, artigos em que fora condenada e pena atribuída. Para o
delineamento do perfil básico das detentas doTalavera Bruce utilizamos quatro destas
variáveis: data de nascimento, data da prisão, delito(s) cometido (s) e pena. Visando à
seleção das entrevistadas e à aplicação dos questionários na segunda etapa da pesquisa, os
nomes das internas também foram incluídos no banco de dados. E isto porque, para que as
presas tenham autorização para sair de seu pavilhão ou galeria e ir para qualquer
atendimento ou atividade no prédio administrativo, é necessário que seja enviada pelo
requisitante da presa uma senha, ou seja, um papel contendo nome e localização da interna,
setor requisitante, além de horário e data do atendimento a ser realizado. Esta é uma medida
utilizada nas unidades prisionais visando garantir o controle do trânsito da população
carcerária.
Levantados os dados, feita a crítica e montado o banco em planilha eletrônica,
elaboramos análises e gráficos, com base nos resultados obtidos, e partimos para a seleção
das internas a serem entrevistadas.
Obedecendo aos critérios já descritos anteriormente, pensamos, de início, em
selecionar 30 internas para as entrevistas. O número e a composição final das entrevistadas
não correspondeu, contudo, ao desenho inicial, o que se deveu a quatro fatores.
O primeiro foi a demanda espontânea de presas que queriam ser entrevistadas,
motivadas algumas por curiosidade, outras por desejarem quebrar a rotina: “ sair um pouco
da cela, conversar com gente da rua”, como nos foi dito. Houve ainda casos de internas que
tomaram conhecimento da pesquisa pelo jornal ou por colegas e nos procuraram, com a
intenção de contribuir com o estudo.
O segundo fator que alterou a seleção inicial se deu por via de indicações: algumas
presas que não haviam sido previamente selecionadas, acabaram sendo entrevistadas, por
indicação da equipe do jornal ou de outras presas que, tendo participado da pesquisa e a par
dos critérios de seleção, se dispunham a ajudar, sugerindo nomes de colegas que se
enquadravam nos perfis por nós definidos.
O terceiro foi a recusa de algumas internas em participar da pesquisa, por diferentes
motivos: falta de interesse, trabalho; desconfiança da pesquisa e medo de se expor.
Por último, o quarto fator a modificar o desenho inicial foi a saída de algumas
internas da unidade, por serem beneficiadas pela Liberdade Condicional ou transferidas
50
para outras unidades prisionais. Em todos esses casos, procuramos incluir na seleção,
presas que estavam dentro dos mesmos critérios estabelecidos anteriormente.
Podemos dizer, portanto, que o grupo de entrevistadas foi se constituindo durante o
período mesmo de realização das entrevistas, à medida que íamos estabelecendo uma
relação mais próxima com a população carcerária e deixando de ser desconhecidas,
principalmente entre aquelas internas que trabalhavam no prédio administrativo e tinham
um contato mais freqüente conosco. Estas foram importantes na conformação do grupo de
entrevistadas, seja participando como entrevistadas, seja indicando outras presas para
integrarem a pesquisa.
Para as entrevistas elaboramos um questionário não identificado, basicamente
qualitativo, contendo 62 questões entre abertas e fechadas distribuídas em seções que
seguiam uma ordem cronológica com relação à vida da detenta e buscavam conhecer
elementos de sua trajetória antes, durante e após o delito. Dentro dessa lógica as perguntas
abordavam a infância e adolescência da presa, a vida adulta anterior à prisão, uso de drogas,
sua história de inserção no mundo do crime e o delito que provocara sua condenação. A
estas, se seguiam as perguntas relativas à vida no cárcere e às perspectivas futuras da
interna para sua vida extra-muros.
O questionário, apesar de extenso, foi bem aceito pelas entrevistadas. O uso do
gravador também não encontrou oposição, embora tenhamos percebido entre algumas
detentas, certo receio de assumir a autoria do delito ou seu envolvimento com a
criminalidade, principalmente quando se tratava de delitos socialmente considerados mais
graves como latrocínio, homicídio ou estupro. Não podemos afirmar, porém, que a negação
tenha sido exclusivamente em função do uso do gravador. Como pudemos observar em
nossa prática profissional, o não reconhecimento da responsabilidade no cometimento do
delito não é algo incomum entre a população carcerária. A desconfiança com relação ao
interlocutor e o temor de desdobramentos de sua confissão talvez sejam os grandes
responsáveis por essa recusa.
Durante o período em que realizamos as entrevistas - dezembro de 2004 a abril de
2005 -, houve algumas intercorrências de ordem institucional que merecem aqui o nosso
registro, pois serviram para ampliar nosso conhecimento acerca das diversas relações que
se estabelecem na prisão e do poder repressivo exercido sobre a população carcerária.
51
A primeira foi a dificuldade que encontramos, em alguns plantões de agentes
penitenciários da portaria, para entrar na unidade com o gravador, apesar da autorização
verbal que nos havia sido dada pelo diretor. Esta autorização verbal foi justamente o
problema. Embora informássemos aos agentes penitenciários da liberação do gravador pela
direção, alguns deles exigiam a autorização por escrito. Assim, nos momentos em que nos
impediam de ingressar com o gravador, tínhamos que contatar o diretor e solicitar sua
anuência, o que não era possível, quando este se encontrava fora da unidade. Nestas
ocasiões, restava-nos deixar o gravador na portaria e realizar a entrevista anotando as
respostas das presas, o que certamente tornava o conteúdo transcrito mais empobrecido.
Mesmo tentando reproduzir o mais fielmente possível a fala das internas, sempre
perdíamos, na transcrição manual, alguma riqueza de detalhes. Esta situação ocorreu em
três plantões, no período inicial da pesquisa. Posteriormente, com a regularidade de nossa
presença semanal, pudemos, sem maiores problemas, entrar com o gravador na unidade
prisional.
O fato aqui relatado poderia ser interpretado tão somente como zelo no exercício da
função de agente penitenciário, acatando as normas e respeitando a hierarquia institucional,
em que o diretor é a figura de maior autoridade e a única capaz de autorizar algo
excepcional a essas normas.
Por outro lado, o fato poderia ser interpretado, também, como um reflexo do receio
de dar voz às presas e, mais do que isso, de ter o seu conteúdo registrado. A fala das presas
poderia ser dissonante do discurso sustentado pelos representantes da instituição. É o que
Lemgruber (1999) sinalizou como romper com a “hierarquia da credibilidade”, ou seja dar
voz ao grupo subordinado, deixando-o expor seus pontos de vista que são diferentes do
grupo superior e, por assim ser, os que deveriam ter mais credibilidade. Assim, gravar a
fala desse grupo subordinado seria também expor as relações que se processam dentro do
presídio, de um ponto de vista que não o institucional. Seria revelar o que deveria ficar
velado.
Um outro episódio, talvez o mais significativo e marcante, por trazer à tona a
rigidez das rotinas institucionais e o mal-estar provocado com o rompimento das mesmas,
também vale a pena ser relatado.
52
Realizamos uma entrevista bastante longa e interessante em seu conteúdo com uma
interna que, por seu delito, tem bastante notoriedade dentro e fora do sistema penitenciário.
Na prisão ela exerce atividade laborativa e portanto tem um trânsito mais “livre” dentro da
unidade, fato que torna desnecessário o envio de senha para sua convocação. Isso implica,
entretanto, a falta de controle dos passos daquela presa por parte da seção de segurança.
Assim, quando a entrevistamos, embora ela estivesse dentro de uma sala no prédio
administrativo, a segurança da unidade não tinha conhecimento do fato, posto que não fora
emitida senha para sua liberação.
Sua entrevista foi a última realizada naquele dia e para garantir uma certa
privacidade, evitando barulhos externos e interrupções das internas mais curiosas,
mantivemos a porta da sala encostada. O relato da presa foi tão envolvente, com tantos
detalhes e observações importantes sobre o delito, que ultrapassamos em 15 minutos o
horário de encerramento das atividades na penitenciária, qual seja o das 17:00 horas. Nesse
horário, todas as internas devem retornar a suas celas para mais um confere, ou seja, a
contagem que tem por objetivo verificar se todo o efetivo carcerário está presente na
unidade e que é feita três vezes ao dia, em horários fixos.
Abruptamente a porta da sala em que estávamos foi aberta e uma guarda com
expressão de espanto e nervosismo adentrou gritando: - Ela está aqui, ela está aqui!. Outras
guardas vieram em seguida e, igualmente assustadas, repreenderam a presa. Esta,
visivelmente amedrontada, desculpava-se todo o tempo, justificando ter perdido o horário
do confere por estar envolvida com a entrevista e pedindo-me que confirmasse o que dizia.
Prontamente intercedi a seu favor, não só por ser verdade, mas sobretudo por me sentir
responsável por uma situação que quebrava uma regra institucional e como tal era passível
de punição à interna. Em resposta a nossas justificativas, foi dito que era obrigação da presa
- e não minha - conhecer e acatar as normas institucionais, reforçando claramente a
separação que “devia” haver entre a população carcerária e os visitantes, ou seja, entre o
mundo dentro e fora da prisão.
A detenta foi repreendida verbalmente e conduzida à sua cela. Restou-nos, então,
procurar a direção da unidade e pedir que a interna não fosse castigada por uma distração
que também era nossa. O diretor assegurou-nos que nada aconteceria à interna, o que
53
aliviou nossa tensão. Na semana seguinte a própria interna confirmou não haver recebido
nenhuma punição pelo ocorrido.
Esse acontecimento tornou evidente para nós uma questão importante na prisão:
neste espaço, as rotinas institucionais são, acima de tudo, um instrumento de controle social
e o rompimento dessas rotinas ameaça, embora em grau e intensidade diferentes, vigias e
vigiados. Vimos, naquele momento, uma interna com medo de ser punida, punição que
poderia implicar a supressão de seus direitos, por meio de sanções como proibição de visita,
isolamento na cela de castigo, dentre outras. Vimos, também, as guardas se sentirem
ameaçadas, pois se a ausência detectada no confere significasse uma fuga, elas poderiam
ser punidas administrativamente, já que são suas atribuições cuidar para que não haja
transgressões disciplinares e vigiar para que não ocorra fuga.
Procuramos até aqui, não só descrever a metodologia utilizada em nossa pesquisa,
mas também analisar as dificuldades e problemas vivenciados durante a realização do
trabalho de campo, passíveis de ocorrer no ambiente prisional. Acreditamos que esta
discussão fornece elementos para uma melhor compreensão, não só da dinâmica
institucional, que norteia as relações ali estabelecidas, mas também favorece o
entendimento da população que se quer estudar e que sem dúvida é influenciada por essa
realidade da prisão. É sobre essa população carcerária feminina reclusa na Penitenciária
Talavera Bruce que falaremos agora. Para tanto, apresentaremos no próximo capítulo, os
resultados da análise de dados elaborados a partir do banco de dados, traçando um breve
perfil dessas mulheres presas.
54
Capítulo 3: As presas do Talavera Bruce: um perfil estatístico
No período de montagem do banco de dados
7
, a população carcerária da
Penitenciária Talavera Bruce era composta por 314 mulheres. Deste total, uma estava em
prisão provisória e outras vinte eram acauteladas, ou seja, ainda não haviam sido
condenadas, embora respondessem a processo e fossem oriundas de delegacias e casas de
custódia. Sua permanência ali se justificava pelo fato de terem dado à luz após a prisão e
por ser a Penitenciária Talavera Bruce a única unidade prisional do estado a dispor de
creche, onde as mesmas podem permanecer com seus filhos até os seis meses de idade.
Passado este prazo, a criança deve ficar sob a responsabilidade de familiares ou ser
encaminhada ao Juizado da Infância e Juventude, enquanto a interna, caso ainda não tenha
sido julgada, retorna à unidade prisional ou delegacia de origem. Em função de tais
peculiaridades, excluímos, de nosso estudo, as presas acauteladas ou em prisão provisória,
reduzindo-se a população-alvo para 291 detentas.
Com base nos dados cadastrais, construímos, a seguir, o perfil das 291 internas já
condenadas e reclusas na Penitenciária Talavera Bruce, focalizando, de início, a
distribuição destas por tipo de delito cometido. Um primeiro aspecto a destacar é o das
diversas modalidades de crime que aí se fazem representar: tráfico, roubo, homicídio,
seqüestro, latrocínio, furto, estupro, uso de drogas, falsificação de documento público,
estelionato, receptação, ocultação de cadáver, atentado ao pudor, extorsão, falsificação de
moeda e peculato
Se é amplo e diversificado o elenco de crimes, sua concentração também é
significativa: 55% das detentas da Penitenciária Talavera Bruce foram condenadas por
tráfico de drogas. Tal proporção é praticamente idêntica à detectada na pesquisa de Soares e
Ilgenfritz (2002), realizada com o universo de presas condenadas e cumprindo pena nas
unidades prisionais femininas no estado do Rio de Janeiro, em 1999/2000: 56,1% de
7
Tal como já mencionado, a montagem do banco de dados foi feita no período compreendido entre setembro
e novembro de 2004. Como entradas e saídas de detentas são comuns, adotamos como data de referência para
efeito de totalização e distribuição etária da população carcerária o dia 24 de setembro, data de início do
levantamento. Gráficos e tabelas estão referidos também ao mesmo mês (setembro).
55
mulheres condenadas por uso/tráfico de drogas; 52,3% por tráfico e 3,8% por uso/tráfico,
associado a outros delitos.
Se levarmos em conta o estudo realizado por Lemgruber (1976), também tendo
como população-alvo mulheres reclusas na Penitenciária Talavera Bruce, podemos afirmar
que nestes quase 30 anos houve uma mudança considerável no perfil das mulheres presas
no que tange o tipo de crime cometido. Naquele ano, as mulheres condenadas por crimes de
porte ou tráfico de entorpecentes representavam apenas 20,8% da população total do
Talavera Bruce, enquanto 60,7% cumpriam pena por terem cometido crimes contra o
patrimônio (furto, roubo, extorsão por seqüestro, apropriação indébita e estelionato).
Tal mudança é sem dúvida a mais relevante observada na criminalidade feminina.
Ela acompanha, de fato, as mudanças no padrão geral de criminalidade , tanto no país,
quanto no exterior, apontadas por diversos estudiosos do tema. Entretanto, pelo menos duas
relativizações são necessárias para a correta avaliação do fenômeno. O aumento no número
de condenações por trafico de drogas pode resultar, também, de um aumento da repressão a
esse tipo de crime, bem como da reduzida capacidade de negociação das mulheres com a
polícia, quando de sua prisão, em função de, geralmente, ocuparem posições subalternas
nessas “organizações” do tráfico de drogas. Essa subalternidade implica menor poder
aquisitivo para negociar a liberdade com a polícia, no momento em que são capturadas, ou
mesmo para valer-se de advogado particular e de outros recursos de modo a impedir sua
prisão ou viabilizar sua soltura. Assim, as mulheres por exercerem atividades no tráfico
mais subalternas e conseqüentemente terem menos possibilidades de negociar sua
liberdade, acabam sendo presas, aumentando esse quantitativo.
Os crimes de roubo e furto somam hoje 15,8% das condenações na Penitenciária
Talavera Bruce, com 36 mulheres cumprindo pena por roubo e 10 por furto. Na distribuição
dos delitos o roubo está em segundo lugar com 12,4%, mantendo a mesma posição de
2000.
Por sua vez, o homicídio que aparecia em quinta colocação na pesquisa de Soares e
Ilgenfritz, sendo responsável por 6% das condenações femininas no sistema penitenciário
fluminense, alcança 11% do total de internas do Talavera Bruce, ocupando a terceira
posição na distribuição dos delitos da unidade prisional. Já em 1976 este mesmo delito
correspondia a 9% do total de condenações naquela unidade.
56
O percentual de presas que cumprem pena no Talavera Bruce por seqüestro totaliza
8% (23 internas), aproximando-se bastante do resultado obtido para a população carcerária
feminina no Rio de Janeiro em 2000, quando a mesma modalidade de crime representava
9%. Cabe destacar, porém, que em 1976 este número era insignificante e representava
apenas 0,6% das mulheres encarceradas no Talavera Bruce, o que aponta para um sensível
incremento da participação da mulher neste tipo de crime.
As demais condenações por crimes de estupro, falsificação de documento público,
estelionato, receptação, ocultação de cadáver, atentado ao pudor, extorsão, falsificação de
moeda e peculato apresentam baixa representatividade entre as detentas, como é possível
observar no gráfico 1.
159
36
32
23
19
10
3
1
1
1
1
111
11
0
20
40
60
80
100
120
140
160
de Presas
1
Delitos
Gráfico 1 - Distribuão das Presas por Delito Cometido
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
Tráfico
Roubo
Homicídio
Seqüestro
Latrocínio
Furto
Estupro
Usuário droga
Falsificão doc.público
Estelionato
Receptação
Ocult. Cadáver
Atentado ao Pudor
Extorsão
Falsificão Moeda
Peculato
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
Os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, incomuns entre as mulheres, são
em sua maioria condenações por co-participação, não sendo a mulher, na maioria dos casos,
a autora principal do delito, mas alguém que participou indiretamente ou foi omissa,
permitindo que o delito se consumasse.
57
Delitos como receptação e ocultação de cadáver, em geral, vêm associados a outros
crimes; no caso de receptação, associado a furto ou tráfico, e no de ocultação de cadáver,
associado a homicídio ou latrocínio e raramente geram uma condenação isoladamente,
como as que encontramos em nosso estudo. Por não serem o crime principal nas
condenações, acabam por aparecer sub-representados, embora tenhamos encontrado, com
certa freqüência, tais delitos associados a outros crimes.
Por último, delitos como falsificação de documento público, estelionato, extorsão,
falsificação de moeda e peculato, também denominados “crimes do colarinho branco”,
talvez tenham baixa representatividade por serem crimes aonde é maior a impunidade de
seus autores. Estes, em geral, não pertencem às camadas desprivilegiadas da sociedade e
através de subornos ou outros recursos, recebem um tratamento diferenciado da polícia e da
justiça, logrando, muitas vezes, escapar da prisão ou mesmo da condenação.
Tabela 1 – Distribuição das presas por delito cometido –
1976, 2000 e 2004
Penitenciária Talavera
Bruce
1976
Unidades Penitenciárias
do Rio de Janeiro
8
2000
Penitenciária Talavera
Bruce
2004
Delitos
Nº Absoluto Nº Relativo Nº Absoluto Nº Relativo Nº Absoluto Nº Relativo
168 100% 524 100% 291 100%
Drogas
35 20,8% 294 56,1% 159 54,6%
Seqüestro
1 0,6% 49 9,3% 23 7,9%
Roubo
31 18,5% 97 18,5% 36 12,4%
Homicídio
15 8,9% 30 5,7% 32 11,0%
Furto
59 35,1% 22 4,2% 10 3,4%
Estelionato
9 5,3% 13 2,5% 1 0,3 %
Outros
18 10,8% 19 3,7% 30 10,4%
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce e dados das pesquisas de
Lemgruber (1976) e Soares (2002)
8
Penitenciária Talavera Bruce (256 detentas), Presídio Nelson Hungria (215 detentas), Instituto Penal
Romeiro Neto (53 detentas), Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho (15 detentas) e
Hospital Psiquiátrico Penal Roberto Medeiros (9 detentas).
58
A tabela 1 ilustra, a partir das pesquisas de Lemgruber (1976) e Soares (2000), as
mudanças ocorridas em alguns delitos ao longo dos anos, ficando mais latente o aumento
da participação de mulheres em crimes ligados às drogas, especialmente o tráfico, e
também seqüestro, e a redução de sua atuação no furto.
A segunda variável selecionada para compor o perfil das presidiárias do Talavera
Bruce diz respeito à idade destas. Tomando, inicialmente, a época da investigação de nossa
pesquisa (setembro de 2004), como período de referência e desagregando as internas em
três faixas de etárias
9
, observa-se que a maior parte das internas (38,2%) se concentra na
faixa de 18 e 29 anos, sendo de 31,9% o percentual na faixa etária de 30 a 39 anos e de
29,9% o da faixa de 40 anos ou mais. Podemos afirmar, portanto, que a maioria das
mulheres que cumprem pena no Talavera Bruce são jovens ou jovens adultas: 70,1%
daquela população têm entre 18 e 39 anos de idade.
Gráfico 2 - Distribuição das Presas por Idade
UP Talavera Bruce - Setembro/04
38,15%
31,95%
29,90%
18 a 29 anos -111
internas
30 a 39 anos - 93
internas
40 e mais - 87
internas
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
No estudo de Lemgruber, em 1976, a faixa etária entre 18 e 39 anos tinha uma
representatividade ainda maior, com um percentual de 82,4%, enquanto no de Ilgenfritz e
9
A seleção das faixas buscou atender tanto a um certo grau de homogeneidade de distribuição, quanto à
possibilidade de comparação com os estudos anteriores de Lemgruber (1976) e Ilgenfritz e Soares (2000),
com os quais aqui estabelecemos dialogo.
59
Soares, feito em 2000 para toda a população carcerária feminina do Rio, a mesma faixa
absorvia 76,1% do total .
Embora a população encarcerada no Talavera Bruce seja majoritariamente jovem, a
mudança na distribuição das idades ao longo dos anos estaria apontando para uma pequena
transformação no perfil das mulheres presas, considerando-se o aumento do número de
mulheres cumprindo pena que possuem idade acima de 40 anos.
Este crescimento no percentual de mulheres presas com 40 anos ou mais poderia
estar ainda associado ao fato de as mulheres estarem cumprindo penas mais longas e
portanto permanecerem na unidade por mais anos. Importa observar, ainda, que segundo
dados apresentados na Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2004, no período entre
1993 e 2003 houve um aumento da população feminina a partir de 40 anos de forma mais
significativa do que em outras faixas etárias, não sendo portanto este um fator isolado da
população feminina encarcerada, mas uma tendência em todo o Brasil
10
.
Quando, no entanto, analisamos a idade das detentas na data em que foram presas,
observamos que 49,14% tinham entre 18 e 29 anos à época da prisão, enquanto 29,90%
estavam na faixa etária entre 30 e 39 anos e 20,96% possuíam 40 anos ou mais. Esses dados
reforçam o protagonismo juvenil no cometimento dos delitos, independentemente do ano
em que se deu a prisão.
Gráfico 3 - Distribuição das Presas por Idade na data da prisão
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
49,14%
29,90%
20,96%
18 a 29 anos - 143 internas
30 a 39 anos - 87 internas
40 e mais - 61 internas
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
10
De acordo com o estudo de tendências demográficas realizado pelo IBGE a população com 65 anos ou
mais sofreu crescimento entre os anos de 1980 a 2000. Em 1980 essa parcela da população, incluindo aí
homens e mulheres, representava 4,72% da população residente do Estado do Rio de Janeiro , em 1991 este
percentual subiu para 5,95% e em 2000 chegou a 7,43%.
60
Lamentavelmente não é possível comparar tais dados com anos anteriores pois este
levantamento não foi realizado nos estudos já citados.
Consideramos entretanto, mais interessante para entendermos os fatores
determinantes da criminalidade feminina, conhecer a idade que as mulheres possuíam
quando cometeram o crime, por tipo de delito, pois questões tanto objetivas quanto
subjetivas perpassaram aquele momento exercendo influência nas tomadas de decisões das
internas levando-as a delinqüir, e assim atitudes e características, típicas de determinadas
idades poderiam contribuir ou não neste processo de inserção na criminalidade.
Foi possível constatar que as mulheres condenadas por tráfico eram
majoritariamente jovens quando foram presas. Na distribuição desta variável, 50,32% das
mulheres, ou 80 internas, tinham entre 18 e 29 anos, 26,41% ou 42 presas tinham entre 30
e 39 anos, e 23,27% das condenadas possuíam idade igual ou superior a 40 anos,
totalizando 37 detentas.
Gráfico 4 - Distribuição das Presas Condenadas por Tráfico, se
g
undo
as Idades na data da prisão
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
50,32%
26,41%
23,27%
18 a 29 anos - 80
internas
30 a 39 anos - 42
internas
40 e mais - 37 internas
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
No roubo, segunda maior causa de condenação das internas do Talavera Bruce, o
percentual de mulheres na faixa etária de 18 a 29 anos na data da prisão é ainda maior:
69,44% ou 25 internas. Já o grupo de presas que possuía entre 30 a 39 anos quando foram
detidas corresponde a 27,77% do total de mulheres condenadas neste delito. Apenas uma
presa, que representa 2,79%, estava na faixa de 40 anos ou mais de idade. Esta
concentração do delito maciçamente nas faixas etárias compreendidas entre 18 e 39 anos
61
pode indicar que este é um crime praticado por mulheres jovens, talvez por exigir da
mulher características predominantes na juventude como agilidade, impetuosidade e
coragem.
Gráfico 5 - Distribuição das Presas Condenadas por
Roubo, segundo as Idades na data da Prisão
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
69,44%
27,77%
2,79%
18 a 29 anos - 25
internas
30 a 39 anos - 10
internas
40 ou mais - 1
interna
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
O crime de homicídio, o terceiro mais praticado pelas mulheres que cumprem pena
no Talavera Bruce tem uma distribuição bastante homogênea. Encontramos o mesmo
percentual de 31,25% nas faixas etárias de 18 a 29 anos e de 40 anos e mais, ambas com 10
ocorrências cada, totalizando a faixa 30 a 39 anos 12 internas condenadas pelo mesmo
crime, o que corresponde a 37,50%. Essa homogeneidade nas diferentes faixas etárias pode
ser entendida pela própria natureza do homicídio, que em geral se dá por diversas
motivações, sejam elas passionais ou ligadas à execução de outro delito, e que portanto não
possui necessariamente vinculação direta entre seu cometimento e a idade de quem o
praticou.
62
Gráfico 6 - Distribuição das Presas Condenadas por
Homicídio, segundo as Idades na data de prisão
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
31,25%
37,50%
31,25%
18 a 29 anos - 10
internas
30 a 39 anos - 12
internas
40 e mais - 10
internas
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
O seqüestro é um crime que também tem uma participação considerável da mulher,
muitas vezes esta atuação se dá em atividades subalternas, tomando conta de cativeiro,
cozinhando para a vítima, servindo de “isca” para atrair o seqüestrado, ou mesmo cedendo
a própria casa para servir de cativeiro, como pudemos perceber nas entrevistas realizadas.
No universo pesquisado, este delito está na quarta posição entre os mais praticados pelas
mulheres condenadas no Talavera Bruce.
Gráfico 7 - Distribuição das Presas Condenadas por Seqüestro,
segundo as idades na data da prisão
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
52,17%
26,08%
21,75%
18 a 29 anos - 12
internas
30 a 39 anos - 6
internas
40 ou mais - 5
internas
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
63
Entre as mulheres condenadas por seqüestro, de maioria jovem, 12 internas
(52,17%) possuíam de 18 a 29 anos na data da prisão, enquanto 6 internas (26,08%) tinham
entre 30 a 39 anos. As outras 5 presas (21,75%) estavam acima dos 40 anos quando de sua
prisão.
O crime de latrocínio, em geral é identificado no código penal como roubo seguido
de morte. O número de mulheres condenadas no Talavera Bruce por este delito é
significativo e até previsível se observarmos o alto número de mulheres condenadas por
roubo, já que na maioria das vezes se utilizam de armas letais para praticar o delito que
resulta em morte da vítima.
Gráfico 8 - Distribuição das Presas Condenadas por
Latrocínio, segundo as Idades na data da prisão
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
52,63%
42,10%
5,27%
18 a 29 anos - 10
internas
30 a 39 anos - 8
internas
40 ou mais - 1
interna
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
Também neste tipo de crime, a grande maioria de mulheres condenadas por sua
prática era jovem quando foi presa. Aquelas que tinham entre 18 e 29 anos na data da
prisão, representam 52,63% (10 internas) do total que cumpre pena por este delito. Outros
42,10% (8 internas) estavam na faixa etária de 30 a 39 anos e apenas uma interna (5,27%)
tinha 40 anos ou mais.
O crime de furto que, na década de 1970, já esteve entre os mais cometidos por
mulheres, hoje não é mais a causa de tantas condenações femininas. Tal fato pode indicar
que as mulheres estariam migrando para outros delitos mais rendosos e menos perigosos,
como por exemplo o tráfico, onde grande parte das mulheres envolvidas exerce funções de
menor exposição ao risco.
64
Gráfico 9 - Distribuição das Presas Condenadas por Furto,
segundo as Idades na data da prisão
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
40%
20%
40%
18 a 29 anos - 04
internas
30 a 39 anos - 02
internas
40 e mais - 04
internas
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
Do total de mulheres condenadas pelo crime de furto, 40% tinham entre 18 e 29
anos na data da prisão, ou seja, estavam na faixa etária mais jovem. E um fato interessante é
que a faixa etária de mulheres mais velhas, com 40 anos ou mais também concentra 40% do
total de presas condenadas por furto. Dado o número reduzido de ocorrências, tais
percentuais devem, no entanto, ser lidos com cautela.
Tabela 2: Distribuição das presas, por tipo de delito e idade ao ser presa
UP Talavera Bruce - Setembro de 2004
Tipos de crime Grupos
de
Idade
Total Tráfico Roubo Homicídio Seqüestro Latrocínio Furto
291
(*)
159 36 32 23 19 10 Total
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
18 a 29 49,1 51 69 34,4 52,2 53 40
30 a 39 29,9 26 28 34,4 26,1 42 20
40 e
mais
21,0 23 3 31,2 21,7 5 40
(*) Inclui 12 presas classificadas por outros tipos de crime
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce.
65
Os demais delitos estão mais pulverizados, apresentam números pequenos de
condenações, alguns por não serem comumente praticados por mulheres como estupro e
atentado violento ao pudor, e outros por serem delitos que muitas vezes caem na
impunidade. A tabela abaixo ilustra a sua distribuição entre as presas do Talavera Bruce.
Tabela 3 – Distribuição das presas condenadas por outros delitos,
segundo as idades na data da prisão – UP Talavera Bruce – Setembro/2004
Grupos de idade
Tipo de Delito
18 a 29 anos 30 a 39 anos 40 ou mais
Total 3 6 3
Estupro 1 2
Usuário droga 1
Falsificação Doc. Público 1
Estelionato 1
Receptação 1
Ocult. Cadáver 1
Atentado ao Pudor 1
Extorsão 1
Falsificação Moeda 1
Peculato 1
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
Com o banco de dados montado foi possível também visualizar a distribuição das
penas entre as internas de acordo com os anos de condenação. As penas curtas de menos de
4 anos totalizam apenas 9,65%, prevalecendo as penas curtas/médias de 4 até menos de 10
anos, com 52,23%. As penas médias de 10 anos até menos de quinze somam 14,08%, já as
penas médias/altas de 15 a menos de 20 anos correspondem a 9,96% da população do
Talavera Bruce e as condenações mais longas, com penas acima de 20 anos concentram
14,08% das internas.
66
Gráfico 10 - Distribuição das Presas por Penas
em Anos
UP Talavera Bruce - Setembro/2004
9,65%
52,23%
14,08%
9,96%
14,08%
Menos de 4 anos - 28
internas
De 4 a menos de 10
anos - 152 internas
De 10 a menos de 15
anos - 41 internas
De 15 a menos de 20
anos - 29 internas
Acima de 20 anos - 41
internas
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
Na pesquisa de Lemgruber em 1976, as penas curtas de menos de 4 anos possuíam
uma representatividade maior do que a encontrada hoje, com 28,1% de mulheres
condenadas. As penas curtas/médias de 4 até menos de 10 anos também prevaleciam com
43,8% do total de internas, , enquanto as penas de 10 até menos de 15 anos apresentavam
um percentual de 12,4%. As penas de 15 até menos de 20 anos também não apresentava
muita variação totalizando 7,9%, entretanto as penas mais longas, acima de 20 anos com
7,8%, representavam praticamente a metade do percentual que encontramos na população
atual.
Os dados aqui apresentados permitiram traçar um breve perfil da população
feminina que cumpre pena na Penitenciária Talavera Bruce, com destaque para alguns
traços:. mais de 2/3 têm hoje entre 18 e 39 anos de idade , 55% foram condenadas por
delitos associados ao tráfico de drogas, o que representa aproximadamente mais que o
dobro do percentual de internas condenadas nos crimes contra o patrimônio (24,05%), que
abrangem furto, roubo, extorsão mediante seqüestro e estelionato; quase a metade (49,1%)
tinha idades entre 18 e 29 anos quando foi presa, o que aponta para o protagonismo juvenil
no mundo do crime, não importa qual tenha sido o tipo de delito cometido. Com relação às
penas, embora prevaleçam as penas curtas/médias, (4 anos até menos de 10 anos), cabe
destacar o incremento de mulheres cumprindo penas de maior duração (acima de 20 anos) e
a redução no número de presas cumprindo penas curtas de menos de 4 anos.
67
Esta breve análise de dados nos fornece uma visão geral de algumas poucas
variáveis, mas revela detalhes importantes que conformam a questão da criminalidade
feminina. É necessário entretanto lançar luz à outros elementos que perpassam essa mesma
criminalidade, sejam aqueles presentes na história da vida pregressa das internas, ou mesmo
aqueles vivenciados no dia-a-dia da prisão, através das normas institucionais a que estão
submetidas.
É dessa disciplina normatizada, presente nas rotinas institucionais, que controla a
população carcerária da Penitenciária Talavera Bruce, moldando e caracterizando a
estrutura das relações estabelecidas pelas presas, intra e extra-muros, que falaremos no
capítulo seguinte.
68
Capítulo 4: Por Dentro das Regras da Prisão
São 7:00 horas da manhã. Por trás dos altos muros de três a cinco metros de altura
que cercam os aproximados 17.000m2 de terreno onde a Penitenciária Talavera Bruce foi
edificada, distribuídas nas galerias A, B, C, D e E, nos alojamentos I e II e no Anexo, 314
mulheres levantam para um novo dia, quase sempre igual à todos os outros já vividos no
cárcere desde que foram presas e condenadas por seus diferentes delitos. Essa falta de
novidades na seqüência dos dias é ainda mais sentida por aquelas presas que não trabalham
e possuem mais um dia pela frente mergulhadas na ociosidade.
No bloco principal da Penitenciária funciona todo o setor administrativo da unidade.
No primeiro andar, dois corredores, que formam um L invertido, agrupam diversas salas
onde funcionam a Inspetoria, Segurança, alojamento dos agentes penitenciários, Jornal Só
Isso!, Cooperativa de Artesanato, Serviço Social, Classificação, Atendimento Jurídico,
Educacional, Psicologia, Refeitório e cozinha de funcionários. No segundo andar, em um
único e comprido corredor, estão instalados a Direção, Dentista, Ambulatório Médico e sala
para atendimento do Psiquiatra.
É também neste bloco principal que estão localizadas as galerias A, B, C e D,
separadas da ala administrativa apenas por um corredor com um portão de grades. Todas as
galerias ficam no andar superior e sua principal característica é possuírem em média 31
celas individuais ou cubículos, como são costumeiramente chamados na prisão, talvez por
seu tamanho diminuto (2,90m X 1,85m). No andar de baixo estão localizados os
alojamentos, que não possuem celas individuais mas dormitórios coletivos, e outros
espaços destinados à diferentes atividades das presas.
A distribuição das internas nas galerias é categorizada obedecendo não a critérios
como tipos de delitos ou anos de condenação, mas a comportamento, religiosidade e
inserção em atividade laborativa, por exemplo. As galerias em geral abrigam as presas que
tem melhor comportamento, ficando os alojamentos para as presas consideradas mais
rebeldes. Cumprir a pena numa cela individual, é para as presas quase como um prêmio por
bom comportamento, já o alojamento poderia ser comparado a um “castigo” por não se
comportar bem. A cela individual representa a possibilidade de manter um mínimo de
69
privacidade e individualidade já que aquele pequeno espaço torna-se “particular”, onde a
presa pode recolher-se e não se envolver em conflitos, onde ela pode também reproduzir o
seu mundo, os seus gostos, através da decoração da “sua” cela. Lemgruber (1999) descreve
bem este cuidado que as presas tem com esse espaço:
“Fotos de artistas são recortadas e coladas nas paredes; camas e pequenos
armários recobertos de colchas coloridas e paninhos de crochê; pequenos
tapetes dispostos no piso; bibelôs e vidros de perfumes espalhados pela cela. Em
algumas celas encontram-se, ainda rádios e aparelhos de TV.”(Lemgruber,
1999, p.30)
Em nossas entrevistas às presas, algumas verbalizaram esta importância de se ter
uma cela individual:
“ Porque aqui a gente tem o nosso cubículo individual é uma privacidade que
pra mim não tem preço. Tem chance de depois de eu dar a tarefa, a remissão,
entrar pra dentro do seu, chamado cubículo, sabe (...), eu acho isso uma dádiva
do céu pra mim.”(H. 65 anos)
“ É que você tem espaço, você tem até certo ponto a tua individualidade
respeitada, porque você tem a tua cela, né”(R. 54 anos)
Na galeria A, que conta com 30 celas individuais, estão as presas evangélicas. O
andar de baixo abriga um alojamento coletivo destinado às grávidas, muitas ainda não
condenadas e que vem encaminhadas de delegacias e casas de custódia objetivando um
melhor acompanhamento médico. Quando dão à luz vão com seu bebê para a creche da
unidade, uma construção fora do bloco principal, que conta com dois berçários, copa e sala
de recreação. Lá as mães permanecem com seus filhos até que os mesmos completem seis
meses, idade em que devem ser encaminhados para o convívio com a família da presa ou
enviados para um abrigo.
A galeria B, que também possui celas individuais, não guarda presas com nenhuma
característica específica, mas apenas aquelas de melhor comportamento conseguem ser
enviadas para lá. No andar de baixo funciona a cozinha, onde 12 presas trabalham, uma
biblioteca e a confecção que insere 28 internas em atividades laborativas de corte e costura.
A galeria C é destinada somente a presas que trabalham, entretanto suas celas
individuais não são suficientes para todas as internas que exercem atividades laborativas na
unidade. Embaixo dessa galeria um alojamento coletivo abriga um contingente de 19 a 20
70
presas consideradas rebeldes. É interessante como os espaços físicos também reproduzem
uma ideologia, que neste caso coloca as presas de melhor comportamento acima das presas
consideradas rebeldes, reforçando claramente uma divisão de classes entre as presas e
dissolvendo qualquer influência que um grupo possa exercer sobre o outro no convívio
diário, ou mesmo a possibilidade de uma organização mais ampla das presas no sentido de
buscar o atendimento de seus direitos básicos e de se criar uma população mais coesa, o
que não interessa à administração, em função da dificuldade maior de controle que essa
união implicaria.
Na galeria D as presas estão distribuídas em celas individuais e igualmente ali se
abrigam as de bom comportamento. Embaixo encontra-se um local para cultos religiosos,
um auditório e uma sala de ginástica com espelhos espalhados nas paredes e uma bicicleta
ergométrica, onde algumas presas se exercitam, independente da galeria ou pavilhão do
qual fazem parte.
Existe ainda a galeria E com as celas de segurança que são individuais e funcionam
como castigo. São chamadas na linguagem da penitenciária de tranca, pois como o nome
sugere as presas ficam trancadas nestas celas durante o período designado para cumprir o
castigo imputado por ter cometido determinada falta disciplinar. Ali o ambiente é
totalmente impessoal e pouco higiênico. Quando encaminhada para essas celas, a presa só
pode levar consigo artigos para sua higiene pessoal. Permanecem na “tranca” 24 hs sem
direito a banho de sol, embora este seja um direito garantido no Regulamento do Sistema
Penitenciário. Além disso tem suas visitas suspensas.
Separados do bloco principal encontramos o Pavilhão I que possui celas individuais
sendo 10 destinadas às presas idosas e com problemas de saúde e 20 para presas que tem
direito a visita íntima, ou seja, encontro íntimo com o companheiro. Um detalhe
interessante é que a visita íntima não é considerada um direito, mas sim uma regalia e
portanto condicionada à alguns pré-requisitos como bom comportamento, comprovação de
relação marital, participação em palestras de prevenção de DST/Aids para o casal e exame
clínico e psiquiátrico para ambos. O cometimento de alguma infração por parte da presa e o
conseqüente rebaixamento de seu comportamento implicam na cessação da regalia por no
mínimo seis meses. As mulheres que tem por orientação sexual o homossexualismo não
possuem direito à visita íntima, o que demonstra o reflexo da discriminação com relação à
71
essa questão e o desrespeito ao direito de não ser discriminado. O que se vê aí é também a
regulação da sexualidade do indivíduo encarcerado. O Pavilhão I abriga ainda as presas
estrangeiras, distribuídas em dois pequenos alojamentos para seis e onze pessoas
respectivamente, possuindo banheiros próprios.
No Pavilhão II, que já foi destinado às presas políticas, e no anexo, construções
também localizadas fora do bloco principal, encontram-se as internas recém chegadas ao
Talavera Bruce. Sua capacidade é de aproximadamente cinqüenta presas distribuídas em
oito celas. Ao chegar na unidade, as ingressas são encaminhadas para esses locais e
permanecem ali por pelo menos quatro dias, isoladas e submetidas à um horário restrito
para sair de suas celas, qual seja diariamente de 8:00 às 9:00 horas. Segundo as próprias
internas, este é o pior local para se estar na unidade, principalmente pelo isolamento
imposto a presa ingressa. As falas de algumas presas nas entrevistas corroboram com esta
visão:
“...tem um troço meio estúpido aqui, que é pegar, não é aqui é em todo o sistema,
pega o preso, chegou, bota ele 10 dias trancado dentro de um quarto. Horrível
isso. Por que ele fica deprimido. Pra que? Alguém, nesses 10 dias alguém chega
e conversa com ele? Vai dizer pra ele o que que é o sistema penitenciário?
Ninguém faz isso né?” (R. 54 anos)
Após o isolamento no anexo, a interna passa para o pavilhão II e ali permanece até
que haja vaga em outra galeria ou alojamento que possua o perfil da interna e isso só
acontece quando presas são transferidas de um local para outro ou no caso de ocorrer a
liberdade de alguém.
Com exceção das internas recém chegadas na unidade, as mulheres no Talavera
Bruce tem uma certa mobilidade na unidade, não ficando restritas às celas durante todo o
dia como acontece em muitas prisões, especialmente aquelas com população masculina.
Às 7:00 da manhã todas as presas já estão de pé. As celas são abertas: é a hora do
confere, momento em que os agentes de segurança penitenciária irão verificar se todas as
presas se encontram na unidade, se não houve nenhuma fuga. Este é o primeiro confere
diário, outros três ainda acontecerão ao longo do dia. Logo o café e o pão são servidos
dentro das galerias e alojamentos que continuam fechados, apenas as celas são abertas e
enquanto se arrumam as internas podem circular dentro de sua galeria, alojamento ou
72
pavilhão. Para aquelas presas que trabalham na cozinha ou servindo o café o dia começa às
5:00 horas.
As 9:00 horas os pesados portões das galerias, alojamentos e pavilhões são abertos,
com um barulho peculiar da prisão, um som pesado, seco, triste, tão comum para quem
está ali há algum tempo e perturbador para os menos acostumados. Os pátios internos
também são liberados às internas. Neste horário aquelas presas que trabalham dirigem-se às
suas seções e as outras ou voltam a dormir ou dedicam-se à diferentes atividades, à critério
de cada uma.
Lemgruber (1999) descreve um pouco essa rotina matinal das presas que não estão
inseridas em atividades laborativas na unidade:
“As primeiras horas são, em geral, dedicadas à realização de diversas tarefas:
varrem-se corredores e salas; limpam-se janelas; lavam-se roupas; cozinha-se.
Terminados esses serviços, a interna dedica-se a seus próprios afazeres. Para a
maior parte iniciam-se, então os afazeres destinados à obtenção de alguma fonte
de renda...”(Lemgruber, 1999, p.48)
As presas que exercem atividades laborativas classificadas na unidade trabalham até
as 11:00, quando devem novamente voltar para as suas celas e submeter-se a outro confere
aproximadamente às 11:30. Em seguida o almoço é servido e as internas podem descansar
ou fazer outras atividades até as 13:00 horas, quando retornam ao trabalho e lá permanecem
até as 17:00 horas.
Durante todo o dia as presas que não trabalham tem certa liberdade de circulação
dentro da unidade e podem ir a outras galerias e pátios desde que informando às guardas
que ficam nos corredores.
Às 17:00 horas o expediente é encerrado e as presas retornam às suas celas para o
penúltimo confere do dia. Agora as galerias, alojamentos e pavilhões são fechados,
permanecendo abertas somente as celas e restringindo a circulação das internas apenas à
sua própria galeria, pavilhão ou alojamento. Logo o jantar também é servido. Às 20:00
horas, é realizado o último confere do dia, as celas são fechadas e só serão abertas
novamente no dia seguinte às 7:00 horas. Somente no Pavilhão I, as celas das presas idosas
permanecem abertas à noite em função da possibilidade de sentirem-se mal e precisarem de
um socorro rápido de outra colega, já que nesse horário o número de guardas é reduzido.
73
Segundo algumas internas entrevistadas a rotina, principalmente para quem
trabalha, é tão cansativa que à noite quando as celas são fechadas, embora ainda seja
relativamente cedo, muitas já não fazem mais qualquer atividade e preferem mesmo dormir.
Nos sábados, dia que não há expediente na unidade, o horário do confere pela
manhã é o mesmo, entretanto os pavilhões, galerias e alojamentos permanecem trancados
após as nove horas e somente as celas ficam abertas. Durante toda a manhã é permitido às
internas circularem dentro deste espaço bem como pelos respectivos pátios de visita
internos que também ficam abertos. Segundo algumas internas não há muito que fazer
nesses dias:
“Oito horas é o confere e depois você faz o que? Porque você não trabalha...
Você faz o que? Você tem que fazer... caminhar, ginástica(...) elas jogam bola,
futebol, voleybol, basketbal, não sei elas vão pro pátio antes de visita, elas
caminham, fazem ginástica, às vezes só sentam lá, bebe café, né.?”(C. 25anos)
O pátio de visita é fechado novamente às onze horas quando as presas retornam às
suas celas para outro confere. Os pavilhões e galerias permanecem trancados até o horário
de entrada das visitas quando é permitida a saída para o pátio somente daquelas presas que
possuem visitantes.
Na Penitenciária Talavera Bruce as visitas acontecem nos pátios anexos às galerias e
pavilhões, aos sábados de 13:00 às 16:30, domingos das dez horas às 16:30 horas e quartas
feiras também das 13:00 às 16:30 horas. Às quartas-feiras as presas que trabalham e têm
visita nesse dia encerram seu expediente às 12:00 e retornam para suas celas a fim de se
arrumar para receber seus visitantes.
Segundo C., presa da unidade que trabalha no jornal e não tem visita porque é
estrangeira, mas está sempre presente nos pátios na hora da visitação para tirar fotos das
presas com suas famílias e ter uma renda extra, algumas internas são extremamente
vaidosas e se preparam para receber suas visitas com muito cuidado. É como se quisessem
com isso se despir da imagem de mulheres presas e ficarem mais próximas da mulher livre
em sociedade que um dia foram: “elas se arrumam pra visita né, fica chique, maquiagem
tudo isso...”.
O domingo tem uma peculiaridade: acontece também a visita íntima das presas com
companheiros que não são detentos, estes entram na unidade antes das dez horas e
permanecem até as 16:30. As presas que possuem companheiros também presos fazem a
74
visita íntima às sextas feiras na própria unidade do interno em geral de quinze em quinze
dias. Estas são as mais prejudicadas pois dependem do transporte que é feito pelo Serviço
de Operações Especiais (SOE) da SEAP, que muitas vezes atrasa ou até mesmo, sob a
justificativa de não ter carro suficiente para fazer o transporte cancelam a ida das internas.
Segundo as presas o transporte é bastante desconfortável e sem ventilação, muitas delas se
queixam ainda do tratamento grosseiro recebido de alguns agentes penitenciários que as
conduzem. Estes fatos são motivos para muitas presas desistirem da visita íntima aos
companheiros, pois algumas relatam já ter passado mal por diversas vezes dentro da
viatura.
Nos dias de visita, os familiares, após enfrentarem longas filas para entrar na
unidade, sempre trazendo comidas prontas em vasilhames, cigarros, roupas para as presas,
passam pela revista efetuada na portaria pelos agentes penitenciários, onde tem seus corpos
e pertences revistados em busca de armas ou drogas, num procedimento constrangedor para
os familiares e pouco eficiente pois com toda essa revista as drogas, armas e celulares
continuam entrando nas prisões por vias escusas.
Duas presas denominadas “chamadoras”, a partir da chegada dos visitantes, levam
até os pavilhões e galerias as senhas de liberação das internas para a visitação. De posse da
senha as presas têm liberação então para ir ao pátio encontrar sua família e lá permanecem
até as 16:30 horas, quando os visitantes vão embora e as internas retornam às suas celas
para um novo confere.
Para as presas que não trabalham este é um dia especial pois é um dos raros
momentos em que se pode romper com a monotonia dos dias vividos na prisão. Entretanto
para essas internas ou para aquelas que trabalham e aguardam estes dias com grande
ansiedade, nada pior do que a espera pela visita que não vem, como relatado pela interna C:
“às vezes ela se arruma e a visita não chega, então elas esperam arrumadas,
esperam, esperam e ninguém chega. Ah, que coisa triste, as pessoas ficam
nervosas, ficam ansiosa né?”(C. 25anos)
A ausência de visitas torna os dias ainda mais iguais, principalmente para quem não
trabalha. As diferenças entre as presas que trabalham e as que não exercem nenhuma
atividade laborativa, não se encerram apenas nas rotinas do dia a dia, mas se refletem
75
também no acesso a alguns benefícios e na forma como é vista na unidade tanto pelo corpo
funcional, como por outras internas.
A presa que consegue trabalho na unidade em geral é aquela que tem bom
comportamento e só por isso já é vista de forma mais positiva. Quanto melhor o seu
comportamento e a sua instrução, melhor será a atividade laborativa em que ela será
inserida. Alguns benefícios extras também são concedidos àquelas presas que trabalham ou
que tem bom comportamento, como por exemplo o direito a eventualmente telefonar para
familiares, com a autorização da direção.
A avaliação de comportamento é feita pela Seção de Classificação a cada seis meses
e cores são atribuídas ao comportamento das presas em seus prontuários. Se a presa não
infringe as normas impostas não sofre sanções e não é dada a parte disciplinar da mesma,
que implica em anotações em seu prontuário. Conseqüentemente seu comportamento vai
sendo considerado melhor a cada semestre, o que possibilita melhores condições de
permanência na unidade, seja conseguindo um bom trabalho ou tendo direito a algumas
regalias como fazer ligações telefônicas e receber visitas extras.
As atividades laborativas são divididas entre aquelas remuneradas e não
remuneradas, entretanto ambas são consideradas para a remissão de pena, que consiste na
redução de um dia de prisão para cada três dias trabalhados.
As atividades remuneradas são administradas pela Fundação Santa Cabrini, um
braço do próprio Estado. Ela é responsável por supervisionar as diversas frentes de trabalho
implantadas nas unidades por diferentes empresários. Nestas atividades sob o controle da
Santa Cabrini a remuneração das presas não pode ser inferior a um terço do salário mínimo,
piso que já representa uma exploração da mão de obra dos internos se formos considerar
que eles devem trabalhar no mínimo seis e no máximo oito horas por dia durante os cinco
dias na semana, sem direito à férias ou décimo terceiro salário. Do valor a ser pago à
interna mensalmente, 10% é destinado a um pecúlio depositado em poupança todo mês e
que hipoteticamente deverá ser entregue a interna após o cumprimento de sua pena,
entretanto alguns internos queixam-se da dificuldade em receber tal valor posteriormente,
em função da demora do pagamento.
Ainda com relação à rotina das presas um outro elemento que ajuda a romper com o
isolamento próprio da prisão é a chegada de cartas de familiares e amigos, principalmente
76
para aquelas pessoas que não recebem visitas. Diariamente, de segunda à sexta-feira às
duas horas da tarde, com exceção de quarta-feira, as cartas são encaminhadas para a oficina
de costura e lá distribuídas para as internas. Esse é um momento de alento, um momento de
contato com a realidade extra-muros, para algumas o único contato com o que lhe restou da
vida em liberdade.
Como se percebe a tutela das presas é exercida rigidamente através de horários
fixos para todas as atividades. Essa rigorosidade não dá margens para mudanças nas ações
diárias que se tornam monótonas. Esse quadro se agrava ainda mais, segundo a fala de
algumas internas, quando não se ocupa o tempo com atividades na prisão, ou mesmo
quando não se tem visitas:
“Bem eu acho que o tempo é sempre o mesmo pra quem não tem visita. É
sempre tudo igual porque não trabalha, não tem visita, porque é sempre a mesma
coisa, sempre, você não tem um ponto onde você fica ali, porque você não tem
visita e mesmo assim você não trabalha é uma coisa que cada dia faz a mesma
coisa, você não tem um ponto onde você pode se mudar a si mesmo, sabe?”
(C.25 anos).
Assim, o trabalho ou o estudo e o contato com a família seriam, na visão da interna,
pontos de apoio para a presa sobreviver ao processo de normatização ou prisonização a que
é submetida e representariam ainda uma perspectiva de mudança, senão no presente, talvez
no futuro.
Lamentavelmente o número de presas que recebem visita de forma efetiva ou que
trabalham ou estudam ainda é bastante reduzido. Do total de 314 presas da unidade, 215
possuem visitantes cadastrados, mas apenas 50 recebem visita regularmente.
Com relação à inserção em atividades laborativas somente 148 internas trabalham, o
que representa menos da metade do quantitativo total da unidade. Segundo informações da
direção da unidade as atividades laborativas remuneradas na prisão são a hidroponia, uma
espécie de horta onde três internas trabalham, o Jornal Só Isso! que funciona com cinco
internas, sendo uma não remunerada, a confecção de roupas que absorve a mão de obra de
vinte e oito internas, a secretaria da Santa Cabrini onde apenas uma interna está classificada
e a cozinha que possui doze internas trabalhando.
Nas atividades não remuneradas, que também são desejadas por proporcionarem a
remissão da pena, vinte e cinco internas trabalham na cooperativa de artesanato, outras
77
cinco no salão de cabeleireiro e outras setenta internas estão distribuídas nas diversas
seções da unidade atuando junto ao corpo funcional e exercendo funções administrativas ou
de serviços gerais. Estas presas são chamadas de “faxinas” ou colaboradoras.
Estudar não parece ser prioridade entre as presas pois segundo dados do diretor da
unidade, 136 internas estão matriculadas na escola existente na Penitenciária Talavera
Bruce, mas apenas 80 presas freqüentam as aulas regularmente. A escola, que é edificada
no próprio terreno da penitenciária, pertence à rede estadual de ensino e oferece os cursos
fundamental e médio. Os professores não são funcionários da SEAP mas da própria
secretaria de educação. O desestímulo das presas para estudar talvez tenha seus
fundamentos no fato de ser praticamente impossível conciliar o trabalho e o estudo na
unidade prisional, por questões de carga horária, já que em geral, as atividades laborativas
exigem oito horas de trabalho diárias. Somado a isso a remissão é diferenciada nas duas
instâncias, pois para cada três dias trabalhados a presa reduz um dia de sua pena , já no
estudo para remir um dia de pena é preciso estudar seis dias. Assim, como a prioridade é a
liberdade a preferência é sempre pelo trabalho. Uma outra hipótese explicativa do fracasso
da escolarização na prisão já era apontada por Lemgruber em 1976: o fato dos professores
serem pouco dinâmicos e as aulas monótonas. Esta avaliação também foi expressa na fala
das internas em algumas de nossas entrevistas.
Outra forma de romper com a rotina institucional é a participação em cursos
profissionalizantes na unidade que também são administrados pela Fundação Santa Cabrini
e pela Seção de Educação, entretanto os cursos são bastante reduzidos e a adesão é
pequena. Atualmente os cursos oferecidos são: Modelagem e Corte e Costura com quinze
integrantes, Elétrica que possui dez alunas, Teatro que conta com trinta participantes e
Pintura com dez freqüentadoras.
A prática das religiões na unidade também tem se mostrado importante para as
internas, seja como uma fonte de recursos materiais para aquelas que não tem ajuda da
família ou qualquer outra fonte de renda na prisão, seja como uma forma de alívio das
dores do cárcere e possibilidade de quebrar a monotonia dos dias. No Talavera Bruce
aproximadamente oito internas freqüentam as reuniões espíritas kardecistas, quinze
praticam o catolicismo e outras sessenta presas participam dos cultos evangélicos das
diversas congregações protestantes.
78
Esse mundo monótono, sofrido e regrado da prisão que molda as relações sociais
estabelecidas por seus atores e que procuramos descrever aqui, não é vivenciado pelas
mulheres presas apenas com passividade, mas enfrentado por muitas, de formas
diferenciadas. O jornal Só Isso!, elaborado pelas detentas é um exemplo dessas formas de
enfrentamento. No próximo capítulo, nos deteremos um pouco no referido jornal a fim de
conhecê-lo melhor, tanto por ser uma ferramenta importante para as presas na luta diária
pela dignidade na prisão, como também por se traduzir num excelente objeto e meio de
pesquisa que se apóia na própria fala das presas.
79
Capítulo 5: Jornal “SÓ ISSO!”: Muito a Dizer
O jornal Só Isso! surgiu em 2004 a partir da iniciativa de uma interna natural da
Alemanha que ao ingressar na unidade para cumprir pena por tráfico de drogas, passou a
trabalhar na confecção de caixas de presente, e segundo seu relato, tinha problemas para se
comunicar com as outras presas ou mesmo transmitir suas idéias, tanto por ser estrangeira,
como por ser nova na unidade e existir, segundo a visão da interna, um estranhamento com
sua presença. Avaliou que uma forma de facilitar a comunicação entre as presas poderia ser
através de um jornal elaborado pelas internas, o que verificou ainda não existir na unidade.
Ela e outra interna, oriunda de um país da América do Sul e sua monitora na
confecção de caixas de presente, procuraram a direção da unidade e propuseram a criação
do jornal, no que foram apoiadas pelo diretor. Iniciaram a produção do jornal utilizando
uma velha máquina de datilografar cedida pela direção, substituída depois por um
computador usado também fornecido pelo diretor da unidade.
A ONG Viva Rio, em visita à unidade tomou conhecimento da existência do jornal
e das necessidades para a produção do mesmo como papel, tinta para impressora dentre
outros. Esse contato rendeu a divulgação do jornal na internet em sites do Viva Rio e do
Viva Favela bem como uma matéria no Canal Futura. Dois empresários – um gráfico e o
outro jornalista - mobilizados através da difusão do jornal nos meios de comunicação,
procuraram a direção da unidade e ofereceram o patrocínio para o jornal, através da sua
impressão e da supervisão jornalística, além de disponibilizarem um endereço eletrônico e
um telefone para contatos, administrados pela secretária de um dos empresários
patrocinadores. Esse convênio permanece até hoje e é o grande responsável por manter o
jornal funcionando e dispondo do trabalho remunerado de quatro a cinco presas distribuídas
nas funções de editora, sub-editora, desenhista e digitadora que também acumulam a função
de redatoras.
O nome do jornal – Só Isso! - também foi pensado pela interna alemã e seria um
nome irônico, uma crítica a um pensamento reducionista da própria sociedade com relação
aos problemas do cárcere e das presas, que na visão da interna, são sempre minimizados ou
desconsiderados socialmente seja por desconhecimento dos mesmos ou por preconceito.
80
Assim o jornal não teria “só isso”, entendido aqui como algo reduzido, a dizer sobre o
universo das presas, mas serviria como um instrumento capaz de atravessar os muros da
prisão, seja através dos funcionários, dos visitantes ou do envio de exemplares para outras
unidades, e informar sobre o que acontece de fato dentro da prisão, sobre as mulheres
encarceradas e suas histórias pessoais, seria uma catarse individual e ao mesmo tempo
coletiva capaz de aliviar as dores sentidas através da informação e da divulgação deste
mundo velado.
A estruturação do jornal e suas diversas seções temáticas foram sendo alteradas ao
longo das edições, entretanto havia uma pauta básica inicial definida pela equipe de
internas do jornal e pelo jornalista patrocinador que foi crescendo à medida que percebiam
a necessidade de incluir novas seções, seja pela demanda do coletivo de presas, seja pela
sucessão de acontecimentos na unidade ou pelo surgimento de novas atividades.
Atualmente o jornal Só Isso! conta com diversas seções que discutem assuntos
diferenciados mas que são igualmente importantes no processo de comunicação e
resistência ao fenômeno da prisonização a que as mulheres presas são submetidas
involuntariamente. Exploraremos agora um pouco de cada uma das seções que compõe o
jornal, procurando mostrar a importância das mesmas no processo de enfrentamento de
suas realidades.
A disposição das seções no jornal obedece a uma seqüência que vem sendo mantida
ao longo das edições. O jornal inicia com a seção Religião, um espaço para mensagens
escritas por colaboradores religiosos de diversos cultos, e também para a publicação de
depoimentos das próprias presas que expressam, na maioria das vezes, a importância da fé
em suas vidas dentro do cárcere, algo como se o encontro com a religião naquele espaço
possibilitasse o resgate de suas dignidades e servisse de bálsamo para a opressão vivida na
prisão, principalmente para aquelas presas que não tem qualquer apoio da família seja
material ou afetivo. O trecho abaixo, extraído do jornal expressa esse papel da religião na
vida de muitas mulheres presas:
“Me senti impotente e sem forças para encontrar uma saída daquele
lugar desconhecido, sombrio, frio e escuro. Elevei meus pensamentos à
Deus (...) fui atendida em minhas preces e hoje aquele túnel de tristeza
já não passa de uma página virada no livro da minha vida. Outras
páginas apareceram me trazendo paz, harmonia, equilíbrio, sabedoria
da vida, renovação da minha fé.” M.A.S.A. – Talavera Bruce
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A seção seguinte, Boca no Trombone é voltada para a publicação de críticas ao
sistema penitenciário feitas pelas internas do Talavera Bruce e por detentos de outras
prisões que denunciam principalmente as carências materiais de sua unidade e fazem
reivindicações. Esta seção é alvo, muitas vezes, de censura por parte da Secretaria de
Administração Penitenciária que faz uma leitura prévia do jornal antes de sua publicação e
segundo informações da presa editora do Só Isso, em geral, através dessa censura, veta a
publicação de 30% das matérias que quase sempre contém reclamações sobre carências das
unidades prisionais. Em troca da não publicação, a Secretaria procura atender pontualmente
aquelas reivindicações, evitando a exposição negativa da instituição. A equipe do jornal é
consciente da censura sofrida, entretanto utiliza este recurso para tentar minimamente sanar
os problemas mais pontuais dos detentos. Estrategicamente, a cada edição novas
reivindicações são propostas para a publicação e embora sejam cortadas e continuem
ocultas servirão de instrumento para requerer seus direitos e resolver algumas dificuldades
dentro do cárcere. O trecho do jornal, em destaque abaixo, demonstra o papel que a seção
Boca no Trombone possui:
“ SOS Bangu II – (...) precisamos de sua atenção para que tenhamos
oportunidade de exercer atividades laborativas (trabalho). Pois
acreditamos que somente com trabalho podemos resgatar a nossa auto-
estima e nossa dignidade”
Percebe-se aí ainda a clareza do papel do trabalho na vida das mulheres que estão
no cárcere.
Na seção Cartas dos Leitores, homens e mulheres de diversas unidades prisionais
que recebem exemplares do jornal, e também da própria Penitenciária Talavera Bruce,
fazem elogios e críticas ao Jornal Só Isso! imprimindo sua visão sobre a importância da
publicação para a população carcerária e a respeito de suas vivências na prisão, como
atestam os fragmentos das cartas, retirados da edição de dezembro:
“Saudações, equipe da redação pelo belo trabalho intra e extramuros
do Jornal Só Isso! Venho através desta congratular este brilhante
trabalho, pois foi feito com muita sabedoria e dedicação das internas
desta unidade prisional. (...) Neste mundo ainda existem pessoas
generosas e compreensivas que acreditam em nos (internos/as), dando
uma oportunidade de nos deixar mostrar que somos aptos e
capacitados a retornar à sociedade que tanto nos discrimina” P.H.C.N
– Presídio Bangu V
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“Assim partilhando com outras pessoas que estão sofrendo as
conquistas, alegrias, tristezas, os sofrimentos e dores de todas vocês;
grandes guerreiras desta luta cotidiana nossa! Espero que com a
chegada desse jornal e o investimento dos empresários e empresas,
venham surgir aí pra vocês mulheres uma opção e um meio mais
rápido de passar o tempo da pena.” L.R.C. – Presídio Hélio Gomes
“Venho por meio desta parabenizar o jornal Só Isso! e toda sua equipe
e colaboradores. Porque vejo nele um meio de remir um pouco a rotina
cansativa dentro do cárcere, onde podemos expressar com amor, ou
com ódio” A. Penitenciária Talavera Bruce
Esta seção, em especial, demonstra a percepção que a população carcerária possui
do jornal, enquanto instrumento legítimo de reivindicações e como possibilidade de
transformação da política prisional. É também um espaço onde podem se expressar,
destrancando palavras de amor ou de dor, carentes de serem ouvidas, já que ouvir o interno
no cárcere é um exercício pouco comum restringindo-se mesmo aos raros momentos em
que são atendidos por profissionais, em sua maioria da área da assistência, como assistentes
sociais, psicólogos, médicos ou educadores. A dificuldade de acesso do preso a esses
profissionais está vinculada ao privilegiamento da segurança, pois na visão das
administrações de grande parte das prisões quanto menor o número de presos fora das celas
e circulando pela unidade, tanto melhor para a segurança prisional.
Nos Classificados estão os anúncios de oferecimento de serviço das presas do
Talavera Bruce que desempenham diversas atividades informais dentro da prisão, ou seja
exercem trabalhos que não são classificados ou reconhecidos formalmente pela unidade e
portanto não contribuem para a remissão de suas penas, mas geram renda para as mulheres
e são exercidos para a própria população carcerária.
Os anúncios ilustram bem algumas das atividades oferecidas e exercidas pelas
presas para outras presas, trabalhos que são responsáveis muitas vezes pela manutenção
daquelas internas que não tem ajuda financeira da família ou mesmo que tem a necessidade
de sustentar filhos, mães ou outros parentes na rua. A divisão de classes se reflete também
na prisão e embora sejam raras as presas que gozam de uma melhor situação financeira, são
elas que, em sua maioria, utilizam os serviços de limpeza e manutenção das suas celas,
oferecidas por outras presas:
“LAVAGEM DE ROUPAS – Limpeza em geral. T. (Alojamento #)
83
É possível perceber em alguns anúncios a preocupação em imprimir uma identidade
no cubículo (nome dado a cela individual da presa), de tornar aquele espaço diferenciado,
habitável, com elementos que lembrem o mundo lá fora, que mantenham vivos seus
referenciais naquele espaço tão impessoal e frio.
“ DECORAÇÂO – Você quer decorar seu cubículo? M. te ajuda. Ela
coloca cortinas, prateleiras, limpa e pinta seu cubículo. M. (Pavilhão #
, Cubículo#)
Essa preocupação não se dá só com o espaço físico, mas se reflete também na
atenção dispensada ao corpo:
CROCHÊ – Roupa que mostra mais sua forma feminina. C. (Pavilhão
#, Cubículo #)
S.M. – Faz as modas da cadeia, bom gosto e estilo (fuxico). S.
(Alojamento #)
Estes anúncios são uma demonstração da necessidade que existe entre as presas de,
através de um detalhe que as individualize, se reapropriar do próprio corpo que é
disciplinado dia-a-dia e transformado em objeto da dominação exercida pela instituição.
A seção Arte e Cultura publica matérias sobre as atividades e eventos acontecidos
na unidade. Esta seção foi criada depois do lançamento do jornal motivada pelo surgimento
de novos cursos e atividades culturais. No intervalo das edições as presas que trabalham no
setor de eventos da Penitenciária e que é vinculado à coordenação educacional da unidade,
promovem, com a aprovação e apoio da direção, diversos acontecimentos voltados para a
arte e cultura que vão alimentar na edição seguinte os artigos desta seção. Ela se constitui
como um importante canal de divulgação das atividades artísticas e culturais entre as presas
e no papel de incentivador da participação das mesmas nestas ações.
O Correio Sentimental, como o nome sugere é um espaço destinado à publicação de
cartas de presos e presas de todas as unidades do sistema prisional não só do Rio de Janeiro
como também de outros estados para intercâmbio objetivando travar amizades ou mesmo
relacionamentos afetivos:
“...hoje me encontro privado da liberdade, fui condenado no artigo 12
e a minha pena é de quatro anos e sessenta e seis dias. Já estou
cumprindo pena há dois anos no presídio Hélio Gomes e já estou perto
84
de ganhar a tão sonhada liberdade. Pó isso quero me corresponder
com uma pessoa verdadeira, amiga, e que venha a ser a minha futura
mulher” V.S.F. Presídio Hélio Gomes
Para muitas presas abandonadas pelos companheiros, (fato bastante comum ente a
população carcerária feminina e que abordaremos mais detidamente no próximo capítulo)
esta é uma possibilidade de estabelecer novos relacionamentos e até mesmo retomar sua
sexualidade obrigatoriamente adormecida.
Essa promoção de intercâmbio também se dá na seção Recados de Amor que é
destinada não só à troca de mensagens de amor entre internos das diversas unidades
penitenciárias, como também declarações de afeto entre presos e destes para familiares ou
pessoas queridas. Esta seção é também um espaço onde se publicam poemas, textos e
mensagens dos internos. Junto com o Correio Sentimental a seção Recados de Amor é um
espaço agregador, que transcende a barreira dos muros das prisões pois possibilita um tipo
de contato entre presos de unidades distintas o que de certa forma rompe com o isolamento
imposto aos indivíduos que estão no cárcere.
“Este mês faz seis meses que trocamos cartas e vc superou minhas
expectativas, você é um cara educado, carinhoso e atencioso. Você é
especial, te adoro! De: S. Magé, Para: J.L.P. Sanatório Penal.
“Se pudesse expressar todo o carinho e amor que sinto por vocês meus
amados filhos, com certeza daria o sol, a lua e as estrelas como forma
de meu amor. Sinto a saudade me sufocar a cada minuto e segundo que
fico longe de vocês” C. – Talavera Bruce
Profissionais da área de assistência jurídica e saúde que atuam no sistema prisional
também contribuem com o jornal e elaboram matérias sobre temas diversos sugeridos pelas
próprias presas. Estes artigos são publicados nas seções Saúde e Assistência Jurídica – o
que devemos saber? A divulgação dessas informações no meio carcerário é extremamente
importante pela dificuldade de acesso dos internos aos serviços de assistência nas unidades
e pela precariedade dos mesmos, resultado de uma política penitenciária que privilegia a
segurança das prisões em detrimento do atendimento das necessidades básicas dos presos,
que custodiados pelo estado tem sua assistência sob responsabilidade do sistema prisional.
Além das seções citadas até aqui, que compõe a pauta fixa do jornal, são publicadas
também histórias pessoais das detentas. Segundo C. a editora do jornal, as próprias internas
a procuram querendo contar a sua vida, algumas à princípio ressabiadas e com medo de se
exporem, mas ávidas por desabafarem seus dramas. Rompida a insegurança inicial e
85
estabelecida a confiança surge um problema: muitas presas não sabem escrever. Para
contornar essa dificuldade relatam suas histórias que são transcritas pelas redatoras da
forma mais fidedigna possível.
O relato, sempre carregado de emoção, desnuda a presa que antes figura ameaçadora
mesmo para algumas internas, transforma-se em alguém com uma história de privações,
opressões ou carências, vivenciadas em diferentes momentos da vida, que culminando no
cometimento do delito, teve sua história pessoal pregressa apagada, desconsiderada,
restando apenas o estereótipo de criminosa.
Para C., a editora de do jornal, tudo isso representa um aprendizado pois possibilita
a todos repensar a visão que se tem da mulher presa e ensaiar um olhar sob outras
perspectiva, a partir do ângulo do que foi experenciado por aquela mulher.
A participação das presas no jornal não se limita à determinadas seções do jornal
mas também é exercida através de críticas, sugestões de matérias, poesias que vem através
de cartas quando oriundas de outras unidades, ou mesmos no contato diário do coletivo de
presas com as internas que trabalham no jornal, pois o acesso à sala da redação é livre.
Segundo C., 90% do que é publicado é elaborado pela população carcerária, cabendo a
equipe do jornal selecionar, corrigir os textos enviados e publicar.
Uma matéria que nos chamou a atenção na edição de Dezembro foi a enquête
realizada pela própria equipe do jornal Só Isso! que teve a supervisão do jornalista
patrocinador.
A idéia de realizar esta enquete surgiu logo após iniciarmos as entrevistas com as
internas para a nossa pesquisa e termos publicado na edição anterior do jornal pequena
matéria divulgando a realização de nossa pesquisa na unidade. Segundo a editora do jornal
o que motivou a realização da enquête foi seu interesse em realizar uma matéria que falasse
das mulheres presas, mostrasse seu perfil para se contrapor a visão preconceituosa expresa
muitas vezes pelos visitantes da penitenciária.
Proposta da enquete feita e discutida com o jornalista patrocinador, criaram as
questões que iriam compor os questionários a serem aplicados nas internas. Nele incluíram
idade, estado civil, cor/raça, número de filhos, religião, profissão, delito praticado,
reincidência, sentença atribuída, se recebem visitas, preferência sexual e com que
atividades ocupam o tempo ocioso. Outras questões de caráter mais geral também foram
86
incluídas na enquête como por exemplo atriz preferida, prato predileto e numa interessante
comparação da prisão com uma ilha deserta onde “ninguém entra e consegue sair
facilmente” (Só Isso!, 2004, p. 3), perguntaram quem as presas levariam ou deixariam em
uma ilha deserta. Na enquete realizaram ainda uma avaliação dos serviços e setores da
unidade prisional, onde as presas atribuíram notas aos mesmos.
Como metodologia, elaboraram 306 questionários, correspondente ao total de presas
da unidade no momento da realização da enquête e após reunião com as presas monitoras,
que são representantes das galerias e alojamentos, distribuíram, através delas, os
questionários para todo o efetivo carcerário da Penitenciária Talavera Bruce. Do total de
questionários encaminhados, receberam das monitoras e das próprias presas 102
respondidos que foram a base do resultado da enquête. É importante salientar que os
questionários eram anônimos e preenchidos pelas internas respondentes.
Os resultados foram todos tabulados pela editora do jornal e sua equipe sempre com
a supervisão do jornalista patrocinador, sendo de três semanas o tempo utilizado para
realizar a enquête desde a elaboração até o resultado final.
Acreditamos que além da motivação inicial para realizar a enquete, informada por
C., nossa pesquisa também tenha colaborado fornecendo subsídios para a pesquisa,
principalmente no que diz respeito à elaboração dos seus questionários que tinham
majoritariamente perguntas idênticas às que utilizamos em nossa pesquisa, da qual três
integrantes do jornal haviam participado respondendo nosso questionário antes da
realização da enquête do jornal.
A percepção das internas em utilizar a enquête como um instrumento auxiliar na
desmistificação da imagem da mulher presa, ou mesmo como possibilidade de mostrar a
sua face real e ainda poder avaliar os serviços e setores existentes na unidade, demonstra
mais uma vez como o jornal é um mecanismo que pode ser utilizado na transformação das
relações estabelecidas entre as presas, a prisão e a sociedade.
87
PARTE II
A FALA DAS PRESAS: FRAGMENTOS DE HISTÓRIAS DE VIDA
88
Capítulo 6: Antes da prisão
6.1. A família de origem
A noção de família está associada a um grupo de pessoas que mantêm laços de
parentesco ou afinidade, habitam uma mesma unidade doméstica e compartilham hábitos,
valores e práticas em comum. Tendo como paradigma a família nuclear – composta por
marido, mulher e filhos -, mas servindo para designar também a rede ampliada de parentela,
ela constitui a unidade-chave da organização social de diversas sociedades. Na sociedade
brasileira, como assinala Da Matta (1987,p125), a noção de família não apenas remeteria a
uma instituição considerada necessária à vida social, mas seria também um valor. Para ele:
“ a família é um grupo social, bem como uma rede de relações. Funda-se na
genealogia e nos elos jurídicos, mas também se faz na convivência social intensa
e longa. É um dado de fato da existência social (sem família, como dizem os
velhos manuais de sociologia não há sociedade) e também constitui um valor, um
ponto do sistema para o qual tudo deve tender” (1987, p.125).
Assim, a família teria um conteúdo de valor bastante arraigado socialmente, sendo
uma referência para o bem ou para o mal. “Ser alguém de família” significaria ter uma
inscrição social valorizada, mas “ser criado sem família” poderia indicar um aspecto
negativo na formação do indivíduo, assim, a família seria um símbolo de virtude moral.
“É curioso observar que tomamos o “legal” e a lei como um valor (daí o
adjetivo legal para exprimir o certo, o positivo, o bom: aquilo que é realizado de
acordo com as boas normas de sociabilidade e de moralidade) da mesma forma
que tomamos a “família” para exprimir um dado empírico e um modo de ser,
bem como um valor e até mesmo a condição da existência.” (Da Matta, 1987,
pg.125)
Na mesma direção, Woortmann (1987) chama a atenção para a complexidade a
ambigüidade presentes no conceito de família, em especial na cultura brasileira. Afirma ele
que na cultura brasileira “familia pode designar a família doméstica, seja de socialização ou
de procriação, mas pode significar[..]uma parte da rede de parentesco, ou também a árvore
genealógica”.
89
Assinalam, ainda, ambos os autores que a forma da vida familiar, da organização
doméstica e das redes de parentesco pode diferir entre distintos grupos sociais.
De uma forma geral, a família não seria apenas aquela nuclear, composta por pais e
filhos, mas englobaria todo o conjunto de parentes. Ela não teria modelos múltiplos, mas
uma flexibilização que permitiria diferentes soluções para aquele grupo social que vai se
estabelecer e se compor não necessariamente com base no que se idealiza como modelo de
família, mas a partir do que a prática da vida cotidiana impõe.
Assim, em que pese a diversidade dos tipos de famílias existentes em nossa
sociedade (famílias nucleares, famílias extensas), a centralidade desta instituição persiste
independente das mudanças na sociedade e do processo de transformação e adaptação
sofrido pela própria família e expresso em diferentes arranjos familiares, como por exemplo
o das famílias monoparentais, onde apenas um genitor é responsável pela sua prole.
A partir das 26 entrevistas realizadas com as internas da Penitenciária Talavera
Bruce, podemos afirmar que o modelo nuclear composto por marido/mulher e filhos foi
aquele em que a maioria das presas entrevistadas - 18 - foram socializadas.
As demais tiveram como responsáveis por sua criação não os genitores, mas avós,
tios, padrinhos, conhecidos e desconhecidos, o que se, por um lado, aponta para o
significado das redes sociais de parentesco, compadrio e conhecimento, sobretudo nas
camadas mais pobres da população, por outro, revela também a vulnerabilidade e a
inconstância das relações vividas por muitas das presas em sua infância e adolescência:
criadas ‘de mão em mão’, por diferentes pessoas da família ou de fora ou mesmo em
instituições públicas, tendo pouco ou nenhum contato com os pais biológicos e
experimentando relações o mais das vezes destituídas de afeto e permeadas de violência. É
o que atestam seus depoimentos
Desde pequena eu fui criada por famílias conhecidas e desconhecidas da
minha mãe, sabe essas pessoas que tomam conta de criança? Minha mãe me
deixava lá e desaparecia, ia se virar ficava um tempão depois me pegava e me
levava para outras pessoas e assim foi até meus onze, doze anos quando ela me
levou pra morar com ela e meu padrasto. Aí, depois dos 14 anos eu saí de casa,
depois de uma briga com a minha mãe, e passei por instituições de menores e
morei em pensões e hotéis. Apesar disso tudo, eu sempre amei a minha mãe. Eu
era abandonada por ela na casa das pessoas, mas eu tinha a ilusão de que ela
viria me buscar. Eu não conheci meus avós, nem meu pai, conheci meus tios por
parte de mãe, mas a relação com eles era distante. Eu fui morar com a minha
mãe e meu padrasto depois dos doze anos, mas não deu certo. Minha mãe era
90
uma pessoa ignorante e brigava por qualquer coisa. Um dia, quando eu tinha
quatorze anos, minha mãe brigou comigo porque eu cheguei tarde em casa e me
expulsou de casa, depois que eu saí não voltei mais, nunca mais morei com ela.
Eu amo mas ela não me ama”( L. 38 anos).
“Fui criada na roça, devido eu não ter mãe nem pai, fui criada sem mãe nem pai,
nunca conheci mãe nem pai nem pelo retrato, e fui criada na roça de um jeito
diferente né? Pela minha madrinha e padrinho (...) então eu fui criada na roça,
com meus pais de criação, porque antes de minha mãe morrer ela me deu pra
uma comadre dela né? Se ela não voltasse, que essa pessoa me criasse, então ela
não voltou, ela foi pro hospital em Belo Horizonte e não voltou (...) Eram pessoas
diferentes sabe, eu era muito espancada pela minha mãe de criação”( M. 35
anos).
Eu fui criada de mão em mão, lá e cá, cada hora eu tava na casa de um, ora na
casa da minha avó, ora na casa da minha tia. Não teve uma única pessoa pra
cuidar de mim. Quando a minha avó morreu, eu fui morar com a minha tia e
quando a minha tia teve câncer eu fui morar com a minha mãe” (I. 23 anos).
“Eu fui criada pelos meus pais (...) e uma parte do tempo pelos meus avós (...)
Porque eu fui criada no meio da contravenção, então a minha família sempre
teve que viajar muito, eu sempre tive que ficar sempre com os meus avós, então
quando eu completei doze pra treze anos, precisamente quase treze, meu pai teve
que ir para outro estado, minha mãe acompanhou e eu fiquei com meus avós”
(W. 38 anos).
A última citação serve para antecipar um outro dado importante revelado pela
pesquisa: apesar da maioria das presas entrevistadas ter sido socializada em famílias em
que pai e mãe estavam presentes, este fator não foi garantidor de um lar estruturado e sem
grandes conflitos ou enfrentamentos intergeracionais.
Com base nas entrevistas, podemos afirmar que metade das internas foi educada no
seio de famílias com problemas graves e que, nesse grupo, prevaleciam as que haviam sido
criadas por pai e mãe. Em outras palavras, a problemática familiar não estava vinculada à
ausência dos pais, mas decorria em grande parte de sua presença, de vez que eram eles os
principais causadores da violência doméstica.
“Ah, meu pai me...eu não entendo, meu pai quando ele era novo, ah eu vou
começar a chorar, porque tem que chorar...Quando eu era nova meu pai era
muito agarrado comigo, mas depois chegou um certo tempo que ele começou a
me bater, eu não entendo porque ele me batia (...) Mas ele quando bebia, eu não
sei, meu pai batia muito em mim e no meu irmão, botava a gente ajoelhada no
caroço de milho, batia com a cabeça da gente na parede sabe? Botava a mão da
gente no “bagulho” do fogão, ovo quente, colher quente na mão, meu pai era
assim desse jeito (...) Ele batia muito na minha mãe. (Q. 30 anos).
“Minha mãe trabalhava muito (...) tinha um restaurante, tipo restaurante, então
não tinha tempo pra gente na escola de ir uma reunião nossa, de assinar um
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boletim, e ainda bebia né? Quando chegava à noite ela começava a beber e meu
pai muito distante de casa, porque ele trabalhava, ele pegava às duas da tarde e
só chegava em casa quatro horas, quatro e meia da manhã, então praticamente
nós fomos criados por pai e mãe, dentro de casa mas mais com a minha mãe,
entendeu? Então era uma situação muito conturbada. Os dois viviam
praticamente aquela união de muitos anos atrás, casamento pra se manter a
aparência” (X. 45 anos).
Vários fatores constitutivos de relações familiares conflitivas, próprios de muitas
famílias contemporâneas - como o alcoolismo, a drogadição, a violência física e até mesmo
o abuso sexual - aparecem nos relatos das internas, quando aludem a sua infância e
adolescência, não importa sob a guarda de quem estivessem. Dentre esses fatores, o
alcoolismo entre pais ou responsáveis e a violência física na relação entre os mesmos e
destes com as internas são os mais recorrentes citados:
Meus tios brigavam muito (...) minha tia me batia com o cabo de vassoura, me
batia muito quando ela ficava chateada”(I. 23 anos)
Meu padrasto não trabalhava, usava drogas e era alcoólatra. Com o meu
padrasto a relação era ruim, ele tentou me estuprar e me agredia fisicamente
(A.. 22 anos)
“.Meu pai era alcoólatra, entendeu, aí eu assistia brigas, umas desavenças
assim...Devido ele beber muito a relação da gente era um pouquinho
complicada, tinha briga e ele era agressivo...só quando a gente era menor, na
infância, depois que a gente cresceu aí parou, acabou. ” (P. 29 anos)
Todos esses elementos danosos não podem ser considerados apenas resultado da
subjetividade dos indivíduos responsáveis pela criação das internas. São também fruto das
mazelas sociais engendradas por uma sociedade capitalista selvagem e por seus efeitos
perversos. Como assinala Guatarri (1990), o trabalho social tem sua finalidade regulada por
uma economia de lucro e por relações de poder, levando os países de terceiro mundo a
tutelas econômicas que condenam algumas regiões e conseqüentemente sua população à
pauperização absoluta e irreversível. No quadro familiar, isso se traduz pela deterioração
das formas de vida humanas individuais: “as redes de parentesco tendem a se reduzir ao
mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e
familiar se encontra freqüentemente ossificada (Guatarri, 1990, pg.7).
Essa ‘vida familiar ossificada’, ao mesmo tempo insensível e endurecida, que
emerge nos relatos de muitas presas não pode ser debitada apenas na conta de seus pais ou
92
responsáveis. As ações destes, enquanto manifestação de violência, são também produto de
problemas na estrutura social do país, traduzidos na iniqüidade social, na perpetuação da
miséria, no desemprego e em precárias condições de trabalho, na degradação das redes de
assistência e solidariedade, enfim numa constelação de fatores que, conforme bem sintetiza
Velho (2002, p.65), “configuram um quadro de desorganização social e de valores
propícios à irrupção de conflitos e descontentamentos”.
Independentemente, porém, de ser fenômeno resultante da subjetividade dos pais, de
estruturas sociais iníquas, ou de ambos, o fato é que a violência - física e psicológica -
infligida às internas se mostrou, através de suas falas, como algo marcante em sua infância
e adolescência. Assim, mesmo não sendo possível estabelecer uma relação de causalidade
linear entre a violência sofrida na infância ou adolescência e a posterior inserção da mulher
na criminalidade, é provável que ela tenha gerado efeitos danosos em sua formação.
A esse propósito, Soares e Ilgenfritz (2002), a partir de pesquisa realizada no
sistema penitenciário fluminense, atestam que mais de 95% das mulheres presas
entrevistadas foram vítimas de violência em alguma fase de suas vidas, seja esta violência
infligida por familiares ou agentes de instituições policiais. Sua conclusão é a de que tais
experiências não podem ser consideradas indutoras da criminalidade e que o ciclo da
violência começa na família, desde a infância, continua no matrimônio, se desdobra na ação
da polícia e se consolida nas prisões, podendo recomeçar no retorno à vida em liberdade. Se
essa violência sofrida não as induz ao crime, também em nada contribui para o fim da
violência e da criminalidade.
6.2 A transição precoce para a vida adulta
Aspecto importante detectado entre as presas entrevistadas é a transição precoce
para a vida adulta, observada a partir de situações vividas ainda na infância ou adolescência
e que comumente estão associadas à maturidade, como a interrupção da escolarização, a
inserção em atividades laborativas, a gravidez na adolescência, a drogadição e a saída da
casa dos pais ou responsáveis. Analisamos, a seguir, esses elementos, que se inscrevem
muitas vezes de forma conjunta em suas histórias de vida.
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Abandono dos estudos
Entre as internas entrevistadas o abandono escolar na infância ou na adolescência
ocorreu com 17 das mesmas, que, à época, tinham idades variando entre onze e dezesseis
anos. Destas, 15 não chegaram a concluir o ensino fundamental e duas sequer foram
alfabetizadas. Nessa situação, encontram-se tanto internas que, no período de realização da
pesquisa, tinham mais de 40 anos, quanto internas jovens, cujas idades se situavam entre os
20 e 30 anos. Mas se a situação de analfabetismo funcional as aproxima, os motivos
alegados para não prosseguirem os estudos voltam a diferenciá-las:
“Eu sei ler e sei escrever, um pouco, mas sei. Estudei até a segunda série. Na
época eu tinha uns 14 anos quando parei de estudar pra ajudar em casa.” (Z. 45
anos)
“Eu estudei até a quarta série primária, eu parei de estudar já praticamente com
uns 15 anos, 14 pra 15 anos. Parei porque eu já não gostava de estudar, eu vou
lhe ser franca, e logo eu comecei a namorar com o pai dos meu filhos então
aquilo ajudou ...Aí pronto, logo passei a ser mulher dele, assumir outras
responsabilidades, então parei o estudo.” (X . 45 anos)
“Eu aprendi a ler e escrever aqui. Eu cheguei a estudar na infância mas não
aprendi. Estudei até a primeira série, mas eu sei ler. Eu estudei pouco porque eu
não tive como, a família era muito pobre, a família não tinha condições
nenhuma, a minha mãe era uma lavadeira coitada, sofrida, a gente ajudava ela
também. Eu estudei, mas não aprendi” (V. 58 anos)
Percebemos, nessas falas, que as internas com mais idade acionam a necessidade de
trabalhar – dentro ou fora de casa – ou a assunção de novos papéis na vida doméstica para
justificar o abandono dos estudos. A chave de leitura é, pois, a troca de uma
responsabilidade por outra – estudo X trabalho ou estudo X gestão da unidade doméstica –
e as razões de ordem familiar se superpõem às razões individuais..
Bem diverso é o depoimento das internas mais novas, que não hesitam em expor seu
desinteresse em relação à escola, expresso no gosto por “matar aula”, em constantes fugas e
reprovações, bem como seu envolvimento com o mundo do crime e com as drogas. São,
portanto, essencialmente motivos individuais que aparecem na fala dessas detentas para
explicar sua saída precoce da escola; quando referem à família, é apenas para mencionar a
indiferença ou a falta de incentivo de seus pais ou responsáveis no prosseguimento de sua
trajetória escolar:
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“Eu não sei ler nem escrever. Estudei até a primeira série primária. Eu parei de
estudar porque eu fui expulsa por causa das minhas brigas com as minhas
colegas e também eu gostava de matar aula” (A. 22 anos)
“Eu sei ler e escrever, estudei até a segunda série só, mas eu sei ler e escrever.
Eu parei porque eu fugi da escola, nunca passava de ano, fugi da escola. Meus
pais nem ligou, fugi, fui fugindo, os dias que eu falava que ia pra escola, eu ia
pros supermercado roubar, e ia vivendo a vida, ia pra praia, ia pra casa da
minha madrinha” (Q. 30 anos)
“Eu parei de estudar por falta de incentivo. Eu queria fazer curso de
administração, eu queria fazer um monte de coisas e não fiz, minha mãe me
desincentivou, aí eu também tava envolvida com droga, mas mesmo drogada eu
gostava de estudar, sabe? Mas teve muito desinteresse da parte dos meus pais em
querer me ajudar. Acho que eu tinha quinze ou dezesseis anos.” (E. 26 anos)
As referências feitas nas citações anteriores das detentas ao desinteresse dos pais ou
responsáveis por sua educação suscitam um comentário. Estudos mostram que a
valorização e o investimento no estudo dos filhos tendem a guardar relação, não apenas
com o nível de rendimento familiar, mas também com o grau educacional dos pais e
sobretudo da mãe, que é, em geral a principal responsável pela socialização de criança e do
adolescente, na unidade doméstica.
Para a grande maioria das presas entrevistadas, o quadro familiar de origem pouco
estimulava sua permanência e progressão no sistema escolar. No caso de 19 delas, os pais
ou responsáveis possuíam pouca ou nenhuma escolarização, estando ainda, no caso de 17
dentre estas, inseridos em atividades manuais precárias, intermitentes e mal remuneradas, o
que reforçava a necessidade de incorporação precoce dos filhos ao mercado de trabalho.
Assim, de uma forma geral, foram as detentas cujos pais ou responsáveis
combinavam as duas características (baixa escolarização e inserção precária no mercado de
trabalho) as que, ainda na infância ou adolescência, abandonaram a escola ou começaram a
trabalhar, desenhando-se, desde então, para elas, um futuro de poucas possibilidades de
melhoria social.
Gravidez precoce
A gravidez precoce foi um fator vivido por 4 das internas entrevistadas, quando
tinham idade entre doze e dezesseis anos. Seus depoimentos mostram como a iniciação
sexual e a gravidez modificaram sua vida na adolescência, fazendo com que algumas
abandonassem a escola e outras se casassem ou passassem a viver com seus companheiros
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e transformando-as de meninas em mulheres com novas responsabilidades dentro da
família. .
“Eu estudei até a quinta série e parei de estudar com doze anos porque eu
engravidei” (I. 23 anos)
“Que eu já tinha minha filha (...) era eu e a minha mãe, mas pra mim poder
sustentar eu e a minha filha, que eu tive uma filha, eu me perdi com doze, tive
minha filha com quatorze anos, aí depois com o tempo tinha que ajudar em casa,
que eu sou a única filha mulher.” (Q. 30 anos).
“...eu me perdi também com o pai dos meus filhos muito cedo, com 13 anos, com
16 anos eu já fui mãe (....) éramos três eu, minha irmã e meu irmão (...) cada um
teve que tomar o seu rumo de vida (...) logo passei a ser mulher dele” (X. 45
anos)
O fenômeno da gravidez na adolescência , cujos índices vêm se elevando no Brasil,
em período recente, tem atraído o interesse de diversos estudiosos e provocado polêmicas
sobre seus condicionantes. Para alguns, o fenômeno resultaria da falta de informação sobre
sexualidade e de acesso a meios contraceptivos. Para outros, envolveria aspectos
emocionais culturais e sociais, além de fatores biológicos, como as mudanças no corpo das
adolescentes, que impulsionam ao desejo sexual e ao interesse de saber-se fértil.
Nesse sentido, afirma Dadoorian (2000) que a gravidez na adolescência pode ser
desejada por várias razões, entre as quais carência afetiva, dificuldades no relacionamento
familiar, necessidade de amparar alguém e ser amparada, desejo de formar uma família e
ser mulher. Acrescenta, ainda, que é nas famílias pobres que o fenômeno ocorre com maior
freqüência e que este pode representar uma fonte de reconhecimento social ou ainda uma
forma de suprir carências afetivas dentro do próprio quadro familiar, neste caso o filho
substituiria a falta de carinho sentida na relação com os pais.
Cruzando os dados de nossa pesquisa, percebemos que as presas que engravidaram
na adolescência tinham relações conflitivas em casa, especialmente com os pais. Além
disso, eram oriundas de famílias pobres, combinando-se , nesses casos, carências objetivas
e subjetivas a reduzidas perspectivas de reconhecimento social. Assim, a gravidez pode ter
sido uma tentativa consciente ou inconsciente de compensar tais problemas.
O ônus da gravidez precoce é a interrupção de uma fase que poderia ser de
investimento num futuro profissional ou o desgaste representado pela necessidade de
conciliar estudos com os cuidados do recém-nascido. É o que atestam os resultados da
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pesquisa GRAVAD (Gravidez na Adolescência: estudo multicêntrico sobre jovens,
sexualidade e reprodução no Brasil), realizada por três universidades brasileiras – Federal
da Bahia e do Rio Grande do Sul, e Estadual do Rio de Janeiro. Eles apontam que o
impacto da maternidade sobre os estudos é grande entre as jovens mães: no primeiro ano
após o nascimento dos bebês, 42% das jovens entrevistadas confirmaram ter tido problemas
em freqüentar a escola, 25% pararam de estudar temporariamente e 17% definitivamente.
Das internas entrevistadas que haviam engravidado precocemente, uma abandonou
a escola no mesmo período da maternidade e outras duas tiveram diversas mudanças na
vida após a experiência da gravidez, como a inserção no mercado de trabalho informal,
também prematuramente e ainda a união precoce com companheiro.
Saída da casa de origem
Uniões prematuras foram estabelecidas por 6 das presas entrevistadas, com idades
entre quinze e dezoito anos. Em decorrência dessas uniões ou de conflitos no seio da
família, o mesmo número de presas saiu da casa dos pais ou responsáveis entre treze e
dezessete anos.
“Eu tive muita liberdade e falta de limites na minha infância e adolescência por
parte dos meus avós. Tudo que eu queria eles permitiam, tanto que eu saí da
escola cedo e também casei cedo aos 17 anos.” (B. 37 anos)
“Eu saí de casa com 15 anos pra morar com meu namorado” (C. 25 anos)
“Bom, até os 15 anos eu morei com eles (os pais), depois eu casei. Eu casei com
15 anos (...) a época que eu saí da minha casa pra casar” (F. 35 anos)
“Eu parei de estudar porque eu arrumei marido e construí família” (N. 69 anos)
“Eu era jovem, parei de estudar eu tinha o que? Foi logo que eu casei, porque eu
casei com 18 que eu parei de estudar. Pra trabalhar, parei de estudar e também
eu logo fiquei grávida da minha filha.” (X. 51 anos)
Como é possível perceber, a união precoce foi um elemento presente na vida de
internas de diferentes faixas etárias. Isso, se por um lado, teria introduzido uma ruptura no
quotidiano de vida daquelas mulheres, quando jovens, por outro, apontaria também para a
manutenção do padrão historicamente associado à mulher na esfera da vida privada: filha,
cônjuge, mãe, padrão este que tende a ser ainda mais arraigado entre as camadas populares.
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Uso de drogas
O uso de drogas ilícitas na infância ou adolescência foi feito por 7 das presas
entrevistadas. Destas, mais da metade possuía entre os pais ou responsáveis e irmãos
usuários de drogas ou alcoolistas. Um fator a ser destacado é que todas as internas que
começaram a fazer uso de drogas prematuramente estiveram expostas a fatores perniciosos
como violência física no âmbito familiar, situação de abandono escolar e inserção precoce
em atividade laborativa.
“Com quatorze anos eu já fumava maconha, eu já fui aviciada de maconha”
(Q.30 anos)
“Ah, comecei a usar (maconha) com uns dez anos” (E. 26 anos)
“Fazia, usava maconha (...) com doze anos, mas agora eu to há dois anos sem
usar” (A. 22 anos)
Segundo Minayo (2003) são a família, a escola e o grupo de amigos adolescentes e
as interações daí advindas que estabelecem as normas para os comportamentos sociais,
inclusive o uso de drogas, já que são as fontes primárias de socialização do indivíduo.
Assim a fragilidade nesses vínculos seria fator de risco para a instalação do uso de drogas.
Existiriam ainda outras influências sociais, consideradas secundárias, que seriam a religião
a mídia e a comunidade.
A família entretanto, como é uma fonte maior de socialização do jovem, poderia
transmitir normas enviesadas através do modelo de comportamento dos pais ou
responsáveis, principalmente no que se refere ao uso de álcool e drogas pelos mesmos.
Também a atitude contestadora do jovem de busca de independência é, muitas
vezes, confundida pelos pais com rebeldia e o distanciamento dos pais e aproximação maior
do jovem com o grupo de amigos é inevitável, dessa forma como afirma Minayo:
“os amigos e colegas de escola formam grupos de intimidade, influenciando, de
forma marcante, a transmissão de normas na fase da adolescência. Por disporem
de laços fortes e monitorarem, diretamente, atitudes e comportamentos de seus
membros têm um papel muito importante nessa etapa da vida.” (Minayo, 2002,
pg.302)
Se os amigos têm também influência na aproximação com as drogas, outros
indivíduos, não tão próximos assim podem se tornar atraentes, já que as relações familiares
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são muitas vezes conflitivas e com pouca interação afetiva. A atração despertada, seja ela
qual for, pode influenciar na drogadição do jovem.
Pode-se concluir, portanto, que os contextos sociais múltiplos como família,
amigos, escola, comunidade e o sistema legal, influenciam e são influenciados pelo uso de
drogas entre os jovens, sendo que o grupo familiar é a conexão desses diferentes setores
que se interpenetram nas vidas das crianças e adolescentes e portanto acaba por tornar-se
um lócus privilegiado tanto para o desenvolvimento do uso de drogas, quando há
desagregação, como é o caso de algumas internas entrevistadas, quanto para o resgate do
jovem da dependência química.
Pensar que somente um desses contextos é responsável pelo uso de drogas, feito
pelas internas em sua infância ou adolescência, seria no mínimo um pensamento
reducionista da questão. De qualquer modo, é fato que a drogadição é mais um elemento
presente na infância e adolescência das internas forçando-lhes o amadurecimento precoce.
Entrada precoce no mercado de trabalho
De todos os fatores, o mais recorrente a apressar sua entrada no mundo adulto é a
inserção no mundo do trabalho que em geral está associada ao abandono escolar. A maioria
das internas que começou a trabalhar na infância ou adolescência o fez para auxiliar na
renda familiar.
A entrada no mundo do trabalho em detrimento da escolarização pode ser explicada
quando observamos a condição sócio-econômica das presas na sua infância: 18 destas
poderiam ser caracterizadas como oriundas de famílias pobres; outras 4, cujos pais ou
responsáveis desenvolviam atividade profissional regular e possuíam certa estabilidade
econômica, poderiam ser descritas como provenientes de segmentos de classe média-baixa
e as demais (4) poderiam ser situadas como integrantes de camadas médias.
As presas que começaram a trabalhar ainda na infância ou adolescência totalizam 18
entrevistadas. A idade em que se inseriram em atividades laborativas variou dos nove aos
dezessete anos, sendo que 17 tinham até quinze anos de idade apenas. Suas primeiras
ocupações foram, em sua maioria, manuais e ligadas ao âmbito doméstico: faxineira, babá,
passadeira, lavadeira e, em três casos, trabalhadora rural.
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Na verdade o trabalho “na casa dos outros” é uma extensão do que já faziam em
casa, através do domínio, da manipulação dos objetos do cotidiano, seja no arrumar a casa,
lavar e passar a roupa, cuidar dos irmãos. Assim se finda a infância, com a obtenção desse
domínio e a transposição do mesmo para outros grupos familiares, de forma que já seja
possível sobreviver com seu próprio trabalho.
“Precisei trabalhar na adolescência pra me sustentar, com 14 anos eu comecei
a trabalhar como promotora de vendas” (D. 38 anos)
“Eu trabalhei, com quinze anos eu comecei a trabalhar, com quinze anos. Eu
trabalhava de babá.”(U. 51 anos)
“Eu precisei trabalhar na infância. Muito pequena, doze anos. Lavando,
trabalhando na casa dos outros.” (V.58 anos)
“Trabalhei e muito mesmo. Desde nove anos. Capinando, roçando, fazendo
farinha, de tudo, de tudo na vida.(...) Adolescente trabalhava muito, era uma
escrava, sabe uma vida de escravo? Só faltava me amarrar e me chicotear, mas
me chicotearam sem roupa, eu fui chicoteada sem roupa, sabe uns fios de luz
grosso, pegava aqueles fio grosso e cochava assim em mim, mandava tirar minha
roupa e me chicoteava” (Y.35 anos)
Analisando essa transposição da produção de valores de uso em valores de troca,
típica da iniciação de adolescentes e jovens pobres no mercado de trabalho, Mello (1998)
afirma que:
“quando trocam suas casas pelas casas dos outros vão, de algum modo ainda,
tornar possível a sobrevivência do grupo familiar. Investidas de responsabilidade
desde cedo, não é difícil a troca: assim como cuidavam dos irmãos menores,
assim como sabiam providenciar algum alimento para a família, assim também
vão cuidar de crianças e fazer pequenos serviços domésticos em casa alheia.
Recebem pouco: a alimentação, alguma roupa velha e, às vezes, a possibilidade
de ir à escola. Dinheiro, pouco ou nenhum. Mas sua simples ausência da casa
paterna significa mais alimento para os que lá ficaram.” (Mello, 1988, pg.158).
O trabalho não é uma opção em suas vidas, é uma necessidade. O trabalho faz com
que amadureçam rapidamente, uma maturidade imposta pela carência e pelo dever.
Algumas, desde cedo, descobrem a dupla jornada de trabalho pois, além de exercerem
atividades remuneradas, também assumem responsabilidades em casa.
“Meus pais eram responsáveis pra sustentar a casa mas eu trabalhava dentro de
casa pra ajudar, quer dizer, meu pai e minha mãe saíam pra trabalhar fora e eu
cuidava da casa, cuidava dos irmãos pequenos também.” (Z.45 anos)
“Claro, sou filha única de mulher! Ajudava minha mãe a lavar, passar,
cozinhar. Cansei de catar xepa pros meus irmãos poder comer, porque eu tenho
quatro irmão homem” (Q. 30anos)
100
Dentro de uma concepção machista burguesa do papel da mulher na sociedade, a ela
cabe cuidar da casa, do marido e dos filhos. Esta visão é incorporada logo cedo pelas
meninas e reproduzida no seu dia a dia. Na ausência da mãe cuidam da casa e dos irmãos,
aos poucos deixam de ir a escola e logo estão trabalhando, em geral em atividades que
tiveram tempo, oportunidade e obrigação de aprender dentro de casa. Não há escolha, e os
sonhos são limitados pela necessidade como afirma Mello:
“Embora haja sonhos – e qual a menina que não sonha com o casamento, com
filhos, com a festa e a folgança – o trabalho não faz parte deles: ser isto ou
aquilo, trabalhar deste ou daquele modo. Aceitam o que tem a mão, o que lhes
cabe nesta partilha injusta de esforço e recompensa”(Mello, 1988, pg.162).
As perspectivas de conseguir um “bom trabalho” nessa fase da vida são inexistentes,
a princípio porque a idade não permite legalmente uma inserção formal no mercado de
trabalho e segundo porque, em geral, nesta faixa etária a escolarização ainda é baixa e a
profissionalização inexistente.
Assim, todos esses elementos: o abandono escolar, a inserção precária no mundo do
trabalho, a gravidez na adolescência, a drogadição, as uniões prematuras e a saída de casa
são indicativos da transição que essas internas fizeram precocemente da adolescência para a
vida adulta.
A definição de adolescência para a OMS é bastante ampla, pois para o órgão esta
fase corresponde ao período dos dez aos dezenove anos de idade. A adolescência teria por
base a passagem das características sexuais secundárias para a maturidade sexual, a
evolução dos padrões psicológicos, juntamente com a identificação do indivíduo que evolui
da fase infantil para adulta, e a passagem do estado de total dependência para o de relativa
independência, entretanto, segundo Abramovay, alguns autores afirmam que:
“ser ou não ser adolescente está diretamente relacionado com as condições
sociais e econômicas, ou melhor dizendo ao lugar em que cada um ocupa em
relação à estrutura social” (Abramovay, 2004 pg.12)
Assim a trajetória dos jovens/adolescentes é na verdade demarcada pelas condições
sociais, culturais, políticas e econômicas das famílias em que estão inseridos. São as
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condições impostas a esses grupos sociais que abreviaram o tempo de juventude de muitas
dessas mulheres presas. Para elas o tempo de preparação para a vida adulta foi efêmero e
deixou de existir ante as necessidades impostas pela vida.
Se a adolescência já é um momento difícil pelos próprios conflitos que se impõem
internamente e externamente aos jovens, pela própria dificuldade na transição da infância
para a maturidade,tanto mais doloroso ele é quando além destas questões subjetivas estão
presentes também problemas familiares como alcoolismo, pobreza, desemprego, violência.
Ou quando o sentimento de rejeição extrapola as relações familiares e está presente
também na escola e na sociedade que não acolhe aquele jovem.
É essa rejeição aos jovens, esse não pertencimento, seja no seio da família ou da
própria sociedade que Soares chama de invisibilidade social. Esta se inicia na não aceitação
por parte da família e continua na sociedade através do desamparo, desprezo, indiferença e
por fim a estigmatização. Esse percurso nefasto não é restrito apenas aos jovens pobres, já
que sentimentos como rejeição, desprezo e estigmatização não são próprios de uma classe
social ou de outra. Sem dúvida, porém, os pobres possuem menos possibilidades de
amenizar estes problemas, pois como vimos nas falas das internas os pais, por conta muitas
vezes da subalternidade de sua inserção no mercado de trabalho, têm poucas chances de
negociar uma maior permanência ao lado dos filhos e menos acesso a recursos profissionais
de ajuda para seus jovens filhos. Além disso, estão mais sujeitos às pressões que fragilizam
emocionalmente e interferem na auto-estima.
Para Soares(2005) , deve-se ter cuidado com a tendência a reforçar os preconceitos
que depreciam os pobres que já são bastante maltratados pela pobreza, mas há que se
reconhecer a correlação entre algumas realidades: em existindo uma há grande
probabilidade de se encontrar outras.
“(a) pobreza,(b) menor escolaridade, (c) menor acesso a oportunidades de
trabalho,(d) maior chance de sofrer o desemprego e o desamparo econômico e
social,( e) angústia e insegurança,( f) depressão da auto-estima, (g) alcoolismo,
(h) violência doméstica ,(i) geração de ambiente propício ao absenteísmo, à
desatenção e à rejeição dos filhos,( j) vivência de rejeição na infância, o que
fragiliza o desenvolvimento psicológico, emocional e cognitivo, rebaixa auto
estima e estilhaça as imagens familiares que serviriam de referência positiva na
construção da identidade e na absorção de valores positivos,( l) crianças e
adolescentes com esse histórico tendem a apresentar maior propensão a
experimentar deficiências no aprendizado (...), (m) Dificuldades na família, na
escola, e pressão para o ingresso precoce no mercado de trabalho (...) (n) a
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saída da escola reduz as chances de acesso a empregos e amplia a probabilidade
de que o círculo da pobreza se reproduza por mais uma geração, (o)
configurando-se este quadro, aumentam as probabilidades de que o adolescente
experimente a degradação da auto-estima, especialmente se considerarmos o
contexto social e cultural em que prosperam os preconceitos e as artimanhas da
invisibilização” (Soares, 2005, pg.209)
Esta citação encaixa-se perfeitamente bem nas histórias de vida da maioria das
presas que entrevistamos. É possível identificar diversas realidades que estavam presentes
nas falas das internas quando relataram sua infância e adolescência em família. Podemos
perceber o quanto são vulneráveis, até mesmo porque são pobres, com sua auto-estima
prejudicada, em situação de abandono pela família, desprezados pela escola, sem
acolhimento na comunidade e com pouca ou nenhuma oportunidade no mercado de
trabalho e na vida, de uma forma geral. Todos esses elementos, segundo Soares denunciam
as responsabilidades da sociedade na constituição da delinqüência, da transgressão e do
crime.
Não queremos aqui afirmar que as agruras vivenciadas pelas internas entrevistadas,
na infância e adolescência, sejam responsáveis pelo cometimento do delito na vida adulta,
isso significaria dizer que por sofrerem privações, as pessoas estaria fadadas ao crime. A
realidade contradita isso: a maioria dos pobres não delinqüe e a criminalidade é perpetrada
também por indivíduos oriundos das classes abastadas, embora estes sejam menos passíveis
de condenações e aprisionamentos.
O que, sim, queremos reforçar é que não existe causa única para a inserção da
mulher na criminalidade mas diversos fatores que se interpenetram e favorecem a entrada
no mundo do crime.
A inserção no mundo do crime
O caminho da criminalidade, como forma de saída da invisibilidade, meio de
garantir a sobrevivência ou por outros motivos, foi trilhado ainda na infância ou
adolescência por 6 das internas entrevistadas.
“Eu fui pra rua e fiquei um mês, lá eu pedia, roubava e comecei a usar cocaína,
mas eu já usava maconha antes de doze anos. Aí eu fiquei indo e voltando pra
rua e pra casa dos treze aos dezoito anos. Na rua a gente ganha tudo fácil, pede
no restaurante as pessoas dá, na rua a gente não passa fome, o pior é na noite, o
frio e a solidão, aí bate uma saudade de casa, mas de manhã quando a gente vê
103
os amigo de novo acaba tudo isso. Eu passei também por muitos abrigos de
menor. O meu pai eu não conheci, eu soube que ele morreu num assalto e eu
sinto mágoa da minha mãe que não me criou. (...) Quando eu tava na rua eu
roubava mesmo pra sobreviver, depois quando eu entrei pro tráfico foi pra
manter o meu vício mesmo” (A.22 anos)
“Na minha infância (quem sustentava) eram as pessoas que me abrigavam e na
adolescência era eu mesma porque eu trabalhava e roubava”(D.38 anos)
“Ah, acho que eu tinha uns quatorze anos (quando cometeu o primeiro delito).
Foi roubo. Ah eu acho que vem dos meus irmãos, eu via eles ganhando dinheiro,
não sei, eu acho que é o ambiente, meus irmãos já faziam isso, eu acho que é o
ambiente”(E. 26 anos)
“Quando eu era mais nova eu só usava drogas. Quando eu tinha quinze ou
dezesseis anos que comecei a me envolver mais com o tráfico. Eu só vendia no
tráfico.” (O.26 anos)
Certamente todo este quadro de vulnerabilidade econômica e social no âmbito
doméstico e na sociedade de uma forma geral, em que os meninos e as meninas pobres
estão inseridos, favorece sua entrada na criminalidade. É o preconceito, a indiferença e a
estigmatização sofridos que lançam o jovem na invisibilidade, e o crime pode ser a forma
encontrada por alguns para retomar a sua visibilidade, recompondo-se como sujeito,
reafirmando-se e se reconstruindo, mesmo que de uma forma contraditória, enviesada.
Mesmo que despertando o ódio do outro, mas provocando algum tipo de sentimento, desde
que lhe proporcione a sensação de reconstrução da sua auto-estima, independente de seu
método ser destrutivo e paradoxalmente auto-destrutivo.
6.3 A vida adulta antes da prisão
A vida das internas entrevistadas, já em sua fase adulta e imediatamente anterior ao
cometimento do delito pelo qual foram condenadas, não melhorou muito nos aspectos
econômicos ou mesmo no que diz respeito às relações familiares, se comparada à sua
infância e adolescência.
Analisando as condições sócio-econômicas das presas entrevistadas, em sua vida
adulta, constatamos que 15 continuavam pertencendo às camadas pobres da população; o
grupo intermediário – que descrevemos antes como de “classe média baixa” mais do que
dobrou, passando a ser representado por 9 internas, enquanto o grupo de renda maior, que
104
definimos como de “classe média”, sofreu um decréscimo, reduzindo –se de 4 para 2
presas.
Cruzando os dados dos dois períodos, podemos dizer que houve pouca mudança, já
que as internas continuavam, em sua vida adulta, majoritariamente pertencendo aos
segmentos pobres , característicos de sua infância e adolescência. Observou-se, contudo,
para cinco internas, uma variação em sentido oposto: ascendente, no caso de três;
descendente, no caso de outras duas.
Das 3 internas que se diziam pobres quando viviam sob a responsabilidade dos pais
e experimentaram uma mobilidade ascendente, duas viviam, na fase adulta, com
companheiros e exerciam atividades com melhor remuneração. A terceira havia acumulado
dinheiro, fruto de sua vida na criminalidade.
Outros elementos que nos ajudaram a compor esse quadro sócio econômico na fase
adulta das internas entrevistadas são a origem geo-espacial e as condições de moradia à
época em que foram presas. Constatamos que 16 internas viviam em bairros do subúrbio ou
da Baixada Fluminense quando foram presas, outras 6 residiam em áreas deterioradas do
centro e da zona portuária do Rio de Janeiro, bem como de outros municípios do Estado. A
minoria - 4 entrevistadas - informou viver com boa infra-estrutura, em bairros nobres da
Zona Sul do Rio de Janeiro , de outros municípios do Estado e, no caso específico de uma
interna, de outro país.
“Eu morava com mais duas grandes amigas, porque eu estava num apartamento
grande, sabe, então eu cedia dois quartos pra elas, porque eram muito amigas e
a gente se cotizava pra pagar aquele apartamento. É um bom apartamento,
sabe? Com quartos independentes, cada qual com sua independência, então, bem
localizado, (...) bem no coração ali de Copacabana.” (H. 65 anos)
“Eu morava em Del Castilho. Era favela. Era um barraco de madeira na beira
do rio. Era próprio, mas assim herdado da minha mãe de criação que comprou
ele pagando com um som e R$ 1500,00.” (A.22 anos)
“Lá na Favela Tira Gosto, em Campos, barraco de tábua. Era próprio, inclusive
até a gente ficou desabrigado pelas águas do Paraíba que derrubou minha casa,
aí eu fiquei sem ter onde morar, me abrigaram numa escola, tava com oito meses
de barriga quando eles fizeram isso e até hoje eles não deram minha casa ainda,
vai pra três anos já. Também não tem quem corra atrás pra mim, pra ver isso lá
fora, aí fica meio difícil, vou sair não tenho nem casa pra morar.” (G. 24 anos)
105
Do total de internas entrevistadas, 10 residiam em favelas e faziam parte do grupo
majoritário de presas (22), que moravam em bairros periféricos e com pouca infra-estrutura.
Destas, 6 viviam em habitação precária, aqui entendida por barraco de madeira ou um
cômodo com ou sem banheiro. A maioria morava em casa própria.
À época de sua prisão, a maioria das internas entrevistadas tinha uma rede de
parentesco numerosa, em geral composta por pais, avós e irmãos, além de já ter
estabelecido novos vínculos familiares com companheiros e filhos. Vinte e uma internas
ainda possuíam os pais, ou um dos genitores vivos, quando foram presas, e destas 13
tinham mais de três irmãos.. O mesmo número (13) ainda possuía avós.
Dezesseis entrevistadas afirmaram possuir companheiro ou namorado e 22 já eram
mães, quando foram presas (6 internas com um filho; 14 com dois ou três filhos.e 2 com
quatro ou cinco filhos).Isso parece apontar certa mudança no padrão reprodutivo, se
compararmos com o número de filhos de seus genitores, que em sua maioria tinham mais
de três filhos.
Apesar de sua extensa rede de parentela, o núcleo doméstico da maioria das presas
era reduzido. Metade das internas entrevistadas (13) morava sozinha ou com os filhos; 2
com o companheiro; 8 com companheiros e filhos, enquanto 3 permaneciam morando na
casa dos pais.
“Meu pai já tava falecido e a minha mãe, a minha mãe é viva até hoje. Somos
oito (filhos), continuam todos vivos. Tenho três filhos, já tinha os três com dez,
sete e seis anos. Morava com meus filhos.” (F. 35 anos)
Essa configuração familiar nos mostra que as presas eram, em sua maioria,
isoladamente ou junto com o companheiro ou algum outro familiar, responsáveis pelo
próprio sustento ou de sua família. Somavam 10 as internas que eram as únicas
responsáveis por se manter e 11 as que dividiam essa responsabilidade com o companheiro
ou outro familiar. Apenas 5 eram sustentadas pelos companheiros ou outros familiares
11
.
A manutenção da pobreza na vida da maioria das internas entrevistadas, percebida
até aqui, nos leva a concluir que toda a trajetória percorrida pelas presas em suas
existências, com situações de saída precoce da escola, entrada prematura no mundo do
11
Tais dados demonstram sintonia com algumas tendências nas estruturas familiares reveladas na PNAD-
2002 e na Síntese de Indicadores Sociais, do mesmo ano. que apontavam para um crescimento das “famílias
unipessoais”, em especial de mulheres, e sinalizavam um aumento das famílias chefiadas pelas mesmas, ou
composta somente pela mulher e seus filhos, eventos mais acentuados nas metrópoles
106
trabalho, uniões antecipadas, gravidezes na adolescência, só minaram o percurso que
poderiam trilhar rumo a uma vida com menos dificuldades e mais conquistas, caso tivessem
tido a oportunidade de estudar mais anos, investir na formação profissional, viver
plenamente a infância e adolescência, com todas a suas dificuldades e possibilidades, mas
amplamente, sem exclusões, sem estigmas, sem precisar pular etapas tão necessárias de
serem vividas dignamente pelos sujeitos, e tão importantes para a formação dos indivíduos.
Este desinvestimento na infância e adolescência se traduz na vida adulta quando
analisamos a formação profissional das internas e sua inserção no mercado de trabalho.
Apenas 8 internas entrevistadas fizeram algum curso profissionalizante ao longo de sua
vida, sendo que destas 7 pertenciam ao grupo de internas que não vivenciaram conflitos no
seio da família.
Se pensarmos em perspectivas de vida futura quando se agregam diversas realidades
positivas como: viver em família sem conflitos, ter uma transição minimamente adequada
para a vida adulta, possibilidade de investimento na profissionalização, verificamos que a
conjunção destes fatores foi positiva, na medida em que, dentre as 8 internas que fizeram
curso profissionalizante e tiveram uma infância e adolescência sem conflitos familiares, 4
conseguiram exercer as funções apreendidas em sua profissionalização na vida adulta antes
de serem presas.
“Fiz, eu fiz pra corretora de seguros, tanto que eu era corretora de seguros
quando eu vim.” (F. 35 anos)
Não obstante, quando nos voltamos para a vida profissional das internas, o que
vemos é a prevalência de ocupações de baixa qualificação. Aquelas que conseguiram se
profissionalizar antes da prisão e se inserir no mercado de trabalho em atividades mais
qualificadas representavam a minoria.
Assim, 17 das presas entrevistadas só tiveram experiências profissionais em
atividades manuais de baixa qualificação, entre as quais se destacavam:trabalho doméstico
remunerado (9 presas); vendedora ambulante ou em comércio sem vínculo empregatício
(4), além de outras como babá, ajudante de produção, feirante.
Somente 5 presas exerciam ocupações de nível médio (técnico de enfermagem,
secretária, professora, representante de vendas e instrumentadora cirúrgica) ou superior
(psicóloga e advogada). Dentro deste grupo encontramos internas que exerceram mais de
uma atividade qualificada durante sua vida profissional.
107
Identificamos, ainda, 3 outras presas que haviam transitado em diferentes formas de
inserção no mercado de trabalho. Duas internas começaram a vida profissional em
atividade de baixa qualificação e migraram posteriormente para ocupação qualificada, outra
fez o caminho inverso. Neste caso específico, a transição esteve associada ao uso de drogas
pela mesma, que atuava como professora e passou a trabalhar como balconista em bar
noturno.
A última presa poderia ser considerada um caso atípico, de vez que era a única a
exercer uma função empresarial, administrando inicialmente loja e depois salão de beleza,
de sua propriedade.
“Trabalhei, já fui recreadora, babá, vendedora de cachorro quente e por último
fazia quentinha e vendia”. (B. 37 anos).
“Sempre fui doméstica. Já trabalhei numa lavanderia de roupas lavando roupa.”
(Q.30 anos)
“Eu estava trabalhando de secretária, já trabalhei em fábrica de, como é que é o
nome? De garrafas de óleo diesel...É auxiliar de produção é...trabalho na
máquina, aonde eram feitas e eu recolhia o que ia montar. E trabalhei também
em gráficas. Fazia todos os tipos de trabalho com papéis, fazia colagem,
separava, tudo. Já trabalhei também de doméstica, trabalhei numa locadora,
é...atendente, e muitas outras que não lembro.”( T.28 anos)
“Trabalhei de enfermeira (auxiliar de enfermagem), secretária de colégio, eu
trabalhei na Secretaria Municipal de Obras, como secretária também da
prefeitura, trabalhei no, como é que fala? No cartório eleitoral, assim, que eu
trabalhava com o juiz eleitoral da minha cidade. Tudo pela prefeitura e eu
trabalhava como secretária também, sempre como secretária. Com 15 anos fui
babá.” (U. 51 anos).
É importante sinalizar que o exercício da atividade econômica não se deu de forma
contínua para muitas presas, mas intercalada com episódios de desemprego, além do fato de
várias internas terem exercido trabalhos esporádicos, por curto espaço de tempo. Essa
inconstância ou mesmo brevidade nas experiências profissionais tinham diversos fatores
determinantes, como o desemprego estrutural, a inabilidade da interna para as funções
requeridas, o desinteresse em desempenhá-las, o uso abusivo de drogas, ou mesmo sua
inserção na criminalidade. Para algumas internas, o crime era mais vantajoso
financeiramente, haja vista não terem qualificação profissional, serem mal remuneradas ou
exercerem atividades monótonas e desinteressantes. Assim, em alguns casos ora estavam
trabalhando, ora estavam cometendo delitos, como expresso no relato de duas internas:
108
“Não, porque eu estava sendo procurada pela polícia, mas antes eu tinha parado
com os assaltos e vendia Natura, só parei de vender porque estava procurada.”
(D. 38 anos)
“Trabalhei como ajudante de cozinha e faxineira. Com treze anos eu comecei a
trabalhar como faxineira, fiquei uns dois meses, mas a mulher não me pagava,
eu ralei
12
, depois com quinze anos trabalhei também como faxineira mas fiquei
só duas semanas porque o pessoal ficou com preconceito com a minha cor, a
síndica e uma das mulheres que eu trabalhava pra ela, aí eu não fui mais. Aí
depois trabalhei quando eu tinha dezoito anos como ajudante de cozinha numa
creche da minha comunidade, lá eu fiquei quase dois anos e eu saí porque mudou
a direção da creche e falaram que iam trocar todo mundo aí antes que me
mandassem embora eu saí. Mas eu gostei de trabalhar lá”
Eu comecei com treze anos né (no crime), quando eu tava na rua eu roubava pra
sobreviver mesmo e depois quando eu entrei pro tráfico foi pra manter o meu
vício mesmo” (A.22 anos)
.
Essa ida de jovens para a criminalidade, como alternativa às poucas perspectivas de
mudança nas condições de vida, quase sempre alavancadas pelo trabalho escasso e
desmotivador, também é tratada por Mello:
“...desvalidos para uma plena realização escolar e destinados a um trabalho
sem significado, sentem como fracasso a permanência da pobreza, e muitas vezes
só conseguem encontrar saídas válidas quando transformam a marginalização, a
que a sociedade condenou o grupo social ao qual pertencem, em verdadeira
marginalidade violenta e destrutiva.” (Mello, 1988, pg. 156).
O histórico da inserção da maioria das mulheres entrevistadas no mundo do trabalho
é de precariedade e esta conclusão é reforçada quando investigamos a ocupação das
mesmas no momento em que foram presas. Do total de mulheres pesquisadas, metade
estava inativa ou desempregada à época da prisão, 7 se inscreviam no mercado de trabalho
em ocupações de baixa qualificação e 6 exerciam atividades que exigiam qualificação.
“Tava, era vendedora autônoma”.(P. 29 anos)
“Eu fazia as coisas em casa pra poder vender. Mas sair pra trabalhar não.
Salgados, sacolé, esse tipo de coisa.” ( X 45 anos)
“Trabalhava em casa, tomava conta de criança” (Y. 35 anos)
“Com cosméticos, venda, vendedora. E era lavadeira e passadeira” (Z. 45 anos).
Aquelas que não estavam trabalhando quando foram presas expressaram diversos
motivos para esta situação, dentre eles o próprio desemprego, problemas de saúde,
12
Ralei: gíria que significa fui embora.
109
desinteresse pelo trabalho, gravidez, possuir outras fontes de renda como pensão ou mesmo
a própria inserção no mundo do crime.
“Já , já tinha saído (do trabalho). Ah, porque, sei lá, me deu vontade de sair, que
eu ganhava muito pouco pra eu me sustentar e acho que o crime me deu mais
opção, entendeu? De ganhar dinheiro....É por necessidades, né? Era a opção que
eu tinha, ou uma ou outra...” (E. 26 anos).
“Não. Porque eu tava com tuberculose e eu me sentia fraca pra trabalhar. Eu
não gostava muito de trabalhar não, mas o trabalho que eu gostei de trabalhar
foi na cozinha da creche. Eu acho que eu ainda não descobri com o que eu
gostaria de trabalhar.” (A. 22 anos).
“Não, porque eu trabalhava como panfletista, no tempo, com chuva, com sol, e
eu tava cansada desse trabalho e tava até doente por causa dele. Aí minha mãe e
meu namorado me davam dinheiro.” (I. 23 anos).
Assim, pelas falas das detentas, percebemos que o trabalho precário, em especial
para aquelas que têm pouca escolarização, desmotiva, faz adoecer e algumas vezes
impulsiona para a criminalidade.
Por outro lado o estigma atribuído àquelas que já estiveram presas, fecha muitas
portas do mercado de trabalho. Wacquant (2001) quando trata das dificuldades de
reinserção social, afirma que esta se torna mais do que aleatória “considerando a
fragilidade dos meios que lhe são destinados no exterior e a multiplicidade dos obstáculos
com os quais os antigos presidiários se vêem confrontados”. (Wacquant, 2001, pg. 145)
“Não, eu fui dispensada porque eles descobriram que eu era ex-presidiária.” (L.
38 anos)
Essa visão acerca das dificuldades de reinserção social vivenciadas pela egressa é
compartilhada por Zaluar (1994). Para a autora, o reconhecimento do ex-presidiário apenas
pelo título de criminoso constrói uma fantasia estereotipada daquele indivíduo e termina
por excluí-lo definitivamente do convívio social. Essa fantasia corresponde à criação de
uma organização e de uma cultura criminosas que vão dar suporte e impedir as saídas dessa
nova identidade de criminoso, levando assim a reincidência criminal.
Um outro detalhe interessante, observado a partir das entrevistas é que entre as 13
internas que se declaravam inativas ou desempregadas quando foram presas, 6 eram as
únicas responsáveis pelo seu sustento e da família e 3 dividiam esta responsabilidade com o
companheiro ou outra pessoa.
110
A estrutura familiar de mulheres respondendo pela manutenção da família, ou
mesmo dividindo a responsabilidade com outro integrante do núcleo familiar, suscita
maiores obrigações por parte das mesmas, o que implica na priorização do trabalho ou na
busca de soluções imediatas para as necessidades materiais básicas, reduzindo-se assim as
expectativas com o futuro melhor e investimentos neste sentido. Desta forma, o
desemprego aliado à ausência de políticas públicas que minimizem os problemas daí
advindos podem tornar as mulheres, atingidas por esta questão, mais vulneráveis ao
envolvimento com atividades ilícitas que lhes garantam retorno imediato.
Se as condições sócio-econômicas não apresentaram melhoras na vida das internas
entrevistadas, as relações familiares vividas pelas mesmas, quando foram presas,
mantiveram praticamente o mesmo padrão daquelas experimentadas na infância e
adolescência, qual seja, o número daquelas que vivem em relações permeadas de conflitos,
desafetos e distanciamentos é bem próximo daquelas que são inseridas em relações
familiares relativamente estruturadas e com poucas desavenças.
Entretanto, é importante se considerar que muitas internas quando foram presas já
haviam constituído sua própria família e que estas relações na vida adulta anterior ao
cárcere dizem respeito também a outros indivíduos agora incorporados ao grupo familiar,
como filhos e companheiros.
Influenciado ou não por esses novos integrantes, houve um pequeno crescimento no
grupo de internas que na vida adulta possuíam problemas estruturais na família, agora
representado por 14 internas.
O que é marcante de se observar é o padrão de continuidade na desestrutura familiar
e seus conflitos, que em muitos casos não só permanece, como também se desloca dos
genitores para novos membros da família, como o companheiro.
Daquelas internas que foram criadas em famílias com problemas estruturais, apenas
três informaram ter boas relações familiares quando foram presas, referindo-se nesse
momento não mais à família de origem mas àquela composta por companheiros e/ou filhos.
Em um desses casos, se antes, em sua infância e adolescência, a relação com os
padrinhos, que lhe criaram, era permeada de violência, na vida adulta esses conflitos
parecem não se reproduzirem no seio da família que constituiu, como atesta o seu relato:
111
“Graças a Deus nossas relações familiares era bem, nós nunca brigamos, nunca
discutimos, os vizinhos tinha até inveja de nós né. “não vocês tem uma família
diferente, vocês não brigam, não discutem”, as crianças não deixava as crianças
ficar na rua, ficar solta, as crianças brincavam na minha porta, eu largava tudo
ficava vigiando as crianças brincar (...) Era favela né, às vezes passava gente
armada assim, então tinha que vigiar mesmo, eu, pros meus filhos eu sou igual
aquelas galinhas assim, eu sou muito coisa com meus filhos, ah nossa senhora,
meus filhos é tudo, nossa mãe” (Y. 35 anos)
Se algumas poucas internas conseguem constituir uma nova família isenta de
problemas estruturais, que antes estavam presentes na infância e adolescência , outras (4)
fizeram o caminho contrário. Destas, duas internas mencionam problemas nas relações
familiares em função do companheiro e/ou filhos e outras duas presas têm como foco dos
problemas familiares a inserção no mundo do crime, que as distanciou da família de
origem.
“Minha mãe sempre me avisava que aquela pessoa (o companheiro) não era boa
companhia (...)Com ele tinha seus altos e baixos, mas o medo e ao mesmo tempo
a paixão que eu sentia por ele, me impedia de ter tomado uma decisão antes de
qualquer coisa” (T. 28 anos).
“A relação estava estremecida com a minha família porque eu havia conhecido
uma pessoa (envolvido com o crime) e joguei tudo pro alto e vim morar no Rio de
Janeiro. Aí minha família não concordava. A gente se via pouco, com meus pais
a gente tinha pouco contato. Meus fihos moravam com a minha sogra e com eles
eu tinha uma boa relação.” (S. 44 anos)
“Meus pais faleceram há muitos anos, eu tinha dezenove anos quando meus pais
faleceram. Irmãos morreram todos. Dessa grande família só restou eu.Meus
fihos eles ficaram mais com o pai né, quer dizer porque eu vivia presa, sempre
presa”(V. 58 anos)
Dentre as internas que viviam em famílias com relações conflitivas na infância e
adolescência e mantiveram este padrão na fase adulta de suas vidas, algumas tiveram esse
foco de conflito deslocado para a figura do companheiro:
“Ah, a gente brigava muito e às vezes saía no tapa, ele (companheiro) me batia e
eu batia nele também” (A.22 anos)
“A gente tava brigando muito, eu e meu companheiro tava brigando muito.” (G.
24 anos)
Assim, como acontecia na infância e adolescência das presas, na vida adulta os
problemas também estão presentes nas relações familiares e não são diferentes, entretanto
112
algumas vezes são perpetrados por novos atores que agora fazem parte do núcleo familiar
da interna.
Dentre esses problemas que se repetem, a violência física, bastante presente na
infância e adolescência das internas entrevistadas, não é tão expressiva na vida adulta das
mesmas, inscrevendo-se no caso de 3 internas.
“ Quando eu vivi com ele que nós tivemos uma relação muito horrível, de
espancamento aquela coisa toda, me espancava muito, tinha muita mulher, me
traía, aquela coisa, quer dizer, eu não tive uma vida fácil. Não é? Sempre foi
difícil” (X. 45 anos)
.
A problemática que teve maior incidência nas relações familiares das internas na
época em que foram presas foi o uso abusivo de drogas por familiares, seguido de
alcoolismo.
“É, não agora meu pai não é usuário de droga não mas ele tinha problema com
álcool, agora meus irmãos têm problema com droga, meus sobrinhos tem
problema com droga e com álcool também.”(E. 26 anos)
“Tinha, o meu marido usava droga. As duas coisas, cocaína e maconha”. (G. 24
anos)
“Meus irmãos cocaína, meu pai bebia muito.”(O.26 anos)
“Esses meus dois irmãos tiveram com drogas e bebida, mais bebida do que
droga. E meu companheiro tinha problemas com drogas, era com drogas.” (T.
28 anos)
“Tinha, o meu companheiro, ele também usava o mesmo que eu, maconha, pó e
bebia.”(A. 22 anos).
O uso abusivo de drogas também era feito por 8 internas na idade adulta, antes de
serem presas, sendo que destas 6 faziam uso de cocaína isoladamente ou combinada com
outras drogas como maconha e ecstasy. Já o alcoolismo entre as internas, é bastante
reduzido, registrando-se apenas no caso de 2 presas.
“Fazia, usava maconha, pó e bebia também e droga era todo dia, cheirava
muito” (A.22 anos)
“Fazia. Bebidas alcoólicas e drogas, cocaína e ecstasy, diariamente.”(C. 25
anos)
113
“Nessa agora eu usava, acho que, muita maconha. Eu já fui viciada em cocaína,
mas agora era só maconha. A freqüência era de manhã, na hora do almoço,
viciada...É todo dia e várias vezes ao dia.” (E. 26 anos)
“Cocaína, só no final de semana. Com quatorze anos eu já fumava maconha, eu
já fui aviciada de maconha.(Q. 30 anos)
Assim como pudemos perceber, diversos padrões de problemas na estrutura familiar
vivenciados na infância e adolescência das presas entrevistadas, não só permanecem entre
os mesmos indivíduos como também se reproduzem entre outros novos atores que passam a
compor o núcleo familiar. É um círculo que não se rompe, mas que se reproduz e toma
formas diferentes, mantendo a sua essência, desagregando as famílias e violentando seus
integrantes.
Se as relações familiares, em sua maioria, mantêm um padrão de desagregação e
conflitos desde a infância até a idade adulta das presas, o mesmo se dá com as condições
sócio-econômicas que, de uma forma geral, continuam precárias, contribuindo
isoladamente ou em conjunto para a marginalização dessas mulheres, que se tornam alvo da
estigmatização social em especial por serem pobres e muitas ainda por serem negras e “por
força da projeção de preconceitos ou por conta da indiferença generalizada, perambulam
invisíveis” (Soares, 2005, pg. 215). Dessa forma, como o reconhecimento e o acolhimento
pela sociedade não se dão de forma natural como se desejava e como deveria ser ele acaba
sendo imposto, de uma forma enviesada e violenta pelos indivíduos excluídos.
Na verdade estamos, através dos dados apresentados, sinalizando o quanto a
maioria dessas mulheres se tornou vulnerável à criminalidade em função da exposição a
diversas realidades que se entrecruzam e que são vivenciadas desde a infância, seja nos
conflitos e desprezo familiar, nas necessidades materiais, na rejeição, na baixa estima
advinda deste conjunto de realidades, na falta de acolhimento e oportunidades da sociedade
e nas diversas violências sofridas, seja na família, no trabalho, seja a violência simbólica do
sistema econômico ou das instituições que não cumprem mais seu papel..
Soares (2005) também faz análise similar sobre a vulnerabilidade dos jovens pobres
ao envolvimento com a violência e o crime e embora o sabendo necessário para uma
reflexão crítica da questão e quiçá adoção de medidas transformadoras dessa realidade,
sinaliza os riscos de tal discurso pois:
114
“denunciando as responsabilidades que a sociedade tem na formação da
“delinqüência”, da “transgressão”, do “crime”, estou abrindo espaços para a
defesa e a proteção dos vulneráveis e para a reversão do quadro, das tendências
dos processos das carências, do sofrimento, etc. Mas, ao mesmo tempo, estou
municiando o policial na esquina, em seu comportamento racista, classista,
estigmatizador.” (Soares, 2005, pg.210)
Entretanto é necessário divulgar este paroxismo inerente à questão, para que ao se
pensar uma forma de enfrentamento da mesma, tenha-se “cuidados, qualificação e
desconstrução crítica, no movimento de sua própria afirmação” (Soares, 2005, pg. 210),
evitando assim interpretações deterministas e reducionistas que, ao invés de contribuir para
a transformação desta problemática, gerem criminalizações embasadas em estigmas que
irão retroalimentar a violência que se quer combater. .
115
Capítulo 7: O Crime
Os estudos sobre criminalidade feminina muitas vezes se limitaram a pensar os
delitos cometidos pelas mulheres atribuindo-lhes uma tipicidade feminina, ou seja, alguns
crimes seriam considerados "delitos de gênero", entre eles infanticídio, homicídios
passionais e furto. Pensava-se, ainda, que a atividade delituosa da mulher estivesse
vinculada aos crimes cometidos por seus companheiros, como se o delito praticado pela
mulher fosse um apêndice da “criminalidade masculina”. Assim os crimes cometidos pelas
mulheres, que ocorrem em escala bem inferior à dos homens, eram vistos como “uma coisa
menor”, com inferioridade.
Esta diferenciação entre os crimes típicos de homens e os “delitos de gênero”
também é abordada por Zaluar. Sem dar uma conotação de inferioridade à mulher, a autora
salienta que na criminalidade violenta os protagonistas são os homens, ocupando a mulher
um papel secundário:
“armas, símbolos fálicos por excelência, são assunto de homem e marcam a
passagem de uma criminalidade eventual e periférica, para uma carreira neste
mundo empresarial violento. Mas isto não quer dizer que as mulheres estejam
fora deste mundo. A presença delas é, pelo contrário, diversificada e complexa.”
(Zaluar, 1994, p.224)
.A diversificação e a complexidade da criminalidade feminina podem ser
percebidas, também através da mídia, onde notamos que os crimes cometidos por mulheres
têm sofrido uma alteração no seu perfil se equiparando aos crimes considerados masculinos
como tráfico, roubos, furtos, seqüestros, dentre outros. Entretanto, embora a mulher
participe do universo desses delitos, outrora considerados tipicamente masculinos, não
necessariamente seu papel é o de personagem principal na execução do mesmo.
Neste capítulo pretendemos desvendar um pouco a inserção da mulher no crime,
buscando compreender, com base nas entrevistas realizadas, o quadro em que se deu seu
ingresso no universo do crime, os delitos cometidos, bem como suas motivações e o papel
por elas desempenhado no planejamento e execução do crime.
Para realizar tal análise, optamos por reunir os delitos em três categorias temáticas:
a primeira categoria - crimes ligados às drogas - diz respeito ao uso, tráfico de drogas e
116
formação de quadrilha; a segunda - crimes violentos - agrega os delitos de homicídio,
roubo, latrocínio, seqüestro, extorsão, atentado violento ao pudor e estupro e a terceira -
crimes não violentos - abrange furto, estelionato, receptação, peculato, corrupção ativa e
formação de quadrilha. Tal categorização é a mesma utilizada por Soares e Ilgenfritz na
análise dos dados de sua pesquisa, já citada neste estudo.
As entrevistas contemplaram internas que estão cumprindo pena pelos crimes de
tráfico, seja ele nacional ou internacional, furto, homicídio, roubo, latrocínio, que na
verdade é o crime de roubo com o agravante de morte da vítima, peculato, seqüestro,
atentado violento ao pudor e estupro. Várias vezes, o artigo principal de sua condenação
estava associado a outros artigos secundários. A título de exemplo, encontramos internas
condenadas por tráfico de drogas (artigo 12) que também haviam sido condenadas por
associação ao tráfico (artigo 14) ou por outros delitos (formação de quadrilha, porte ilegal
de arma, falsidade ideológica, ocultação de cadáver, receptação de roubo), considerados
secundários na condenação das internas.
A distribuição das presas entrevistadas por tipo de delito cometido é reproduzida na
Tabela 4, que permite, ainda, cotejar essa distribuição com a do total de presas na Unidade
Talavera Bruce. Nesse confronto, fica claro que a seleção das entrevistadas se, por um lado,
procurou seguir de perto a distribuição geral, por outro, foi influenciada também pela
disponibilidade e interesse das presas em participarem da pesquisa. Assim, nenhuma das
detentas que espontaneamente se ofereceram para prestar seu depoimento deixou de ser
entrevistada, o que explica o destaque relativamente maior conferido a alguns delitos, no
grupo de entrevistadas.
Tabela 4: Distribuição do Total de Presas e das Presas Entrevistadas, por tipo de
delito – UP - Talavera Bruce - Setembro de 2004
Presas Presas entrevistadas Tipo de delito
V.A V.R V.A V.R
Total 291 100,0 26 100,0
Tráfico de drogas 159 54,6 10 38,5
Roubo 36 12,4 2 7,7
Homicídio 32 11,0 3 11,5
117
Seqüestro 23 7,9 3 11,5
Latrocínio 19 6,5 2 7,7
Furto 10 3,4 3 11.5
Estupro 3 1,0 1 3,9
Atentado ao pudor 1 0.3 1 3,9
Peculato 1 0,3 1 3,9
Outros 7 2,4 - -
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
Um aspecto a destacar diz respeito à reincidência criminal das entrevistadas.
Constatamos que 21 delas (81%) nunca haviam cumprido pena anteriormente, ou seja, eram
primárias
13
.
O fato de não serem reincidentes não significa, porém, que este tenha sido o único
delito praticado em suas vidas ou que nunca tivessem sido detidas antes. Assim, do total de
presas primárias, 3 já estavam na criminalidade antes dessa prisão, embora até então nunca
tivessem sido condenadas, e 2 já tinham inclusive sido presas, em função do cometimento
do mesmo delito ou de outros.
“Primária. Mas eu já tava no crime antes, desde menor, eu já fui presa várias
vezes, umas dez vezes, mas nunca fiquei, a primeira vez que eu fui presa foi com
dezessete anos, por agressão.” (A. 22 anos)
“Primária. Mas eu já fui presa num 155 (furto), mas fui só na delegacia e não
teve queixa, fui liberada e depois num 12 (tráfico) traficando na boca, mas
também fui liberada.” (Q, 30 anos).
Na fala das internas reincidentes, percebemos que o aprisionamento acaba sendo
banalizado por algumas, já que ocorre com certa freqüência. É como se a prisão fosse um
fato previsível para quem está na vida do crime, um de seus ônus, entre tantos outros.
“Sou reincidente. É nesse delito não, nesse delito eu não sou reincidente não,
mas eu sou reincidente em crimes hediondos: tráfico, associação ao tráfico.
Também já tive falsa ideologia e tráfico internacional. A primeira vez de todas
(prisão) foi roubo, mas eu fiquei poucos meses, depois eu também fiquei nessa de
falsa ideologia, fiquei poucos meses, depois essa outra de doze (tráfico), eu fiquei
quatro anos, foi quatro anos.”(E. 26 anos)
“Perdi a conta quantas vezes fui presa, mais de vinte vezes, mas condenação
mesmo só tive três.” (V. 58 anos)
13
Tal resultado praticamente coincide com o obtido na enquete realizada em outubro de 2004 pelo Jornal Só
Isso!, com a participação de 1/3 das detentas da Penitenciária Talavera Bruce, e que situou em 80% a
proporção de internas primárias no total.
118
Embora a grande maioria de presas seja primária, não se pode menosprezar o
significado da reincidência criminal. Ela é a prova do fracasso do esforço de ressocialização
dos apenados, a partir do momento em que o sistema prisional não dispõe de uma política
penitenciária promovedora da reinserção social e a sociedade, impregnada pela
estigmatização do ex-detento, consolida sua exclusão.
Feitas essas considerações de ordem mais geral sobre a classificação das detentas
entrevistadas por tipo de delito e condição de condenação, trata-se, agora, de examinar,
com base em seus depoimentos, o histórico do crime que as levou à prisão.
7.1 Crimes Ligados às Drogas
Dentro deste grupo entrevistamos somente internas condenadas por tráfico de
drogas, que somavam 10 presas (38,5%) do total pesquisado. Quatro delas acumulavam
esse delito ao de associação ao tráfico e as outras seis cumpriam pena por tráfico
internacional de drogas. Não havia no grupo pesquisado nenhuma interna condenada por
uso de drogas, delito incomum entre presidiários, haja vista a política de penas alternativas
utilizadas para crimes de penas inferiores.
Sete dessas detentas desempenhavam funções subalternas e de pouco prestígio na
organização do narcotráfico: duas eram “vapor” (aquela que vende a droga na “boca de
fumo”); quatro eram “mulas” (aquela que faz o transporte da droga) e a última guardava
drogas para o tráfico em sua casa.
Das que auto-denominavammulas”, três levavam drogas para os companheiros
presos quando foram detidas. A droga servia para que seus companheiros pudessem traficar
no cárcere, o que revertia em ganhos para as mulheres, já que o dinheiro da venda de
drogas era a única fonte de renda declarada pelas internas. Apenas uma entre as três
informou que não lucrava diretamente transportando droga para a prisão pois, segundo seu
relato, o companheiro era dependente químico e levar a droga para ele lhe seria menos
oneroso do que ter que comprá-la dentro do cárcere.
“Eu era vapor e tava no tráfico desde os dezesseis anos, eu comecei como vigia,
depois comecei a vender maconha edepois maconha e pó” (A. 22 anos).
“Comecei como vapor do branco, aí depois fui vapor do preto, aí depois fui
olheira, aí saí e comecei carregando drogas.” (G. 24 anos).
119
“Eu tava levando droga pro meu marido que tava preso, aí eu fui pega com as
droga na sala da revista do presídio.” (M. 24 anos)
Essa participação da mulher no crime, através do transporte de drogas para o
companheiro na prisão, possui um duplo significado: econômico e simbólico. O simbólico
está no papel que a mulher representa para o companheiro, o papel da “mulher do bandido”,
que deve estar sempre presente quando ele é preso e pronta a ajudá-lo em quaisquer
circunstâncias:
“Ao contrário da Amélia, esta mulher dedicada pode vir a roubar, mentir,
traficar e até matar (e morrer) se isso for preciso para ajudar o prisioneiro, seja
por conluio com o seu narcisismo ou para salvar-lhe a vida. Não pode portanto,
permanecer no mundo doméstico das preocupações femininas e de seus papéis
tradicionais que a Amélia nunca deixou. Vai, mais que à luta, à guerra” (Zaluar,
1988,pg. 230).
Do ponto de vista econômico, sabemos que o tráfico de drogas é uma possibilidade
rápida e eficiente para se ganhar muito dinheiro. Conforme afirma Zaluar (1988), os lucros
com essa atividade não podem ser comparados com os salários de diferentes profissionais,
desde o simples operário a um gerente de uma grande empresa, o que faz com que o tráfico
de drogas perpasse indistintamente as diversas camadas sociais.
Mas se o poder de atração exercido pelo narcotráfico, a partir da elevadíssima
margem de lucros que proporciona – lhe permite recrutar adeptos em todas as camadas
sociais, sua cadeia de comando e suas posições de maior status e prestígio são fortemente
seletivas. Em outras palavras, também nessa organização criminosa se observa uma clara
divisão social de trabalho, que tende a favorecer alguns grupos em detrimento de outros..
Assim, os jovens - homens ou mulheres - ,que hoje estão presos, são em sua maioria
pobres e com pouca escolarização que exerceram ou ainda exercem atividades de pouco
prestígio e grande exposição a risco do narcotráfico
14
. São eles que estão na linha de frente,
que são encarcerados ou morrem nos confrontos com a polícia, que representam a
personificação de um mal social e despertam a ira da população. São eles também que
formam a “última fila de explorados nesse imenso empreendimento, ramificado em escala
internacional” (Zaluar, 1988).
14
Tal afirmação, feita por diversos estudiosos da criminalidade no Brasil, é também corroborada por minha
experiência profissional como assistente social do sistema prisional, realizando entrevistas com internos do
Presídio Ary Franco e elaborando exames criminológicos de presos da Penitenciária Milton Dias Moreira, que
em ambos os casos, na sua maioria, estão condenados por tráfico de drogas.
120
As funções de maior prestígio acabam sendo delegadas àqueles que possuem maior
escolaridade e/ou são oriundos de classes sociais privilegiadas. Fato que é possível ser
constatado quando vemos na mídia o envolvimento no tráfico de jovens que são de classe
média e que tiveram acesso às “boas escolas”. Eles não são presos nas favelas, em “bocas
de fumo”, armados e traficando como “vapor”, fazendo a segurança dos pontos de venda,
ou “endolando” as drogas. Na verdade, o que vemos é que eles formam quadrilhas com
esquemas de comercialização de drogas mais caras como o ecstasy, distribuindo-as em
festas de jovens ou fazendo entregas em domicílio, e se utilizam de recursos modernos para
a efetivação dos seus negócios, como o disque-drogas e a própria Internet.
Entre as internas que entrevistamos apenas duas se enquadram relativamente neste
mesmo perfil: ambas eram oriundas de camadas médias, haviam concluído o nível superior
e tinham uma inserção no tráfico nada subalternizada.
A primeira delas, natural de um país europeu, tinha sociedade com outros
traficantes. Juntos financiavam a compra de drogas na Colômbia e contratavam mulheres
para fazer o transporte do material desse país para a Europa. Apesar de sua posição no
tráfico ter um caráter mais propriamente empresarial, sua prisão se deu em função de ela
mesmo ter atuado como “mula”, por não ter encontrado, na ocasião, alguém disponível para
fazer o transporte.
“Eu era quem comprava as drogas, eu era associada com outros traficantes que
conheci no bar que eu trabalhava e eu dava o dinheiro e eles também e a gente
mandava meninas pra cá pra serem mulas, elas iam na Colômbia comprar, aí eu
pagava a elas e revendia a droga na Alemanha. Mas quando eu fui presa, eu e
minha mãe, eu vim para a Colômbia porque teve um problema, a menina que
vinha, em cima da hora disse que não poderia vir mais, aí eu já tinha dado muito
dinheiro como entrada e se não fosse buscar a droga ia perder o dinheiro todo,
aí eu resolvi vir e a minha mãe que não sabia de nada quis viajar comigo,
achando que era a passeio e eu tentei convencer de ela não vir mas ela insistiu
porque eu já tinha prometido que viria com ela, ela achava que quando eu vinha
era pra passear. Aí quando a gente passou pelo Brasil fomos presas.”(C. 25
anos).
A segunda detenta de perfil de classe média, a que nos referimos, participava,
juntamente com um sócio e na residência deste, num bairro da zona sul do Rio, de um
esquema de venda de drogas, atendendo a uma clientela restrita e de alto poder aquisitivo.
No grupo de mulheres condenadas por tráfico, apenas uma tinha sido presa como a
pessoa que gerenciava o “negócio”, cuidando da compra de drogas e de sua distribuição,
121
bem como administrando financeiramente a atividade. De acordo com o seu processo, ao
qual tivemos acesso, a interna administrava um comércio de drogas que, na verdade,
pertencia a seus dois filhos, que estavam presos. Sua inserção no tráfico era, portanto,
bastante peculiar: apesar da pouca escolarização e de sua origem pobre, gerenciava um
“comércio” que se tornou familiar, sendo a “pessoa de confiança” dos filhos presos. Neste
caso sua origem humilde e sua baixa escolaridade não influenciavam no seu papel, posto
que foi por delegação dos filhos, os verdadeiros “donos do negócio”, e com base no critério
de confiança e lealdade que a mesma assumiu uma posição de mando.
Se o papel subalterno destinado à maioria das mulheres no narcotráfico parece ser
em grande parte determinado por sua origem e condição social, por outro lado, ele é
reforçado também pelo ethos guerreiro, pela cultura viril e violenta, típica de “machos” que
acompanha, de modo geral, as organizações criminosas. “Estar de frente”, no comando ou
ainda em outras atividades portando armas, é “coisa para homem”. Como afirma Zaluar:
“De fato, essa criminalidade demarca também os limites de uma cultura viril
exclusiva, sem matizes, sem a dialética do feminino como contraponto. É um
sistema simbólico criado sob o signo da masculinidade apenas. Mesmo que
poucas mulheres, exceções à regra, tomem parte ativa (...) na administração da
boca, isso não muda a representação de seu lugar, segundo o imaginário local.
O mundo da guerra as exclui e elas não formam quadrilhas.” (Zaluar, 1988, pg.
143).
Dentro dessa lógica para que a mulher não tenha um papel secundário na hierarquia
do tráfico, é preciso que ela seja “masculina”, no sentido de ser fora do padrão, de ser
diferente; de negar “na história de suas vidas, as trajetórias mais comuns das mulheres
que passam ou entram pelo mundo do crime” (Zaluar, 1988, pg.227), caso contrário,
cabem-lhes os papéis convencionais do feminino.
Entre as dez presas por crimes ligados às drogas, apenas duas internas tiveram seu
envolvimento com o crime ainda na adolescência.
Para a primeira dessas, a inserção no crime, aos treze anos de idade, se deu pela
necessidade de sobrevivência, já que vivia nas ruas, para fugir do ambiente violento que era
o seu lar adotivo. A permanência na vida delituosa até a idade adulta, quando foi presa, é
explicada pela premência de sustentar sua dependência química e a do companheiro e
também como uma estratégia de sobrevivência, própria e da família que constituiu, posto
122
que tanto a sua inserção quanto a do companheiro no mercado de trabalho eram bastante
precárias.
A história da segunda presa, cuja trajetória no mundo do crime se inicia entre os 15
e 16 anos, guarda traços similares à da primeira. Aí estão presentes, também, o uso da
droga, a ilusão do “ganho fácil”, propiciada pelo tráfico, sobretudo em comparação com o
trabalho árduo e mal remunerado de faxineira, que chegou a exercer por um tempo. Mas é a
necessidade financeira o motivo que enfatiza para ter se envolvido com o crime, já que o
companheiro fora preso e ela precisava se sustentar e à filha.
Além das detentas acima citadas, outras três declararam fazer uso de entorpecentes.
Embora nenhuma delas tenha correlacionado diretamente o vício e ao cometimento do
delito, consideramos que este pode ser também um elemento propiciatório à inserção na
criminalidade, sobretudo no caso das mais pobres, pois, como se sabe, a manutenção do
vício de drogas é custosa.
Ademais, entre as dez internas que compõem o grupo de apenadas por crime de
drogas, sete possuíam familiares envolvidos com o mesmo crime. Cinco declararam ser o
companheiro um usuário de drogas e destas três alegaram ter sido o transporte de drogas
para ele, na prisão, o motivo de haverem cometido o delito.
Na verdade, porém, quase nunca se trata de um único motivo. Na fala das presas,
vários elementos se cruzam e se reforçam para explicar sua participação no trafico de
drogas: a necessidade, as dificuldades em obter trabalho, a atração pelo ganho fácil, o amor
pelo companheiro.
“Quando eu era mais nova eu só usava drogasquando eu tinha quinze pra
dezesseis anos que eu comecei a me envolver mais com o tráfico. Assim eu vi
que o dinheiro era fácil né... E agora aconteceu que eu tava sem dinheiro,
porque meu companheiro tava preso e eu precisava de dinheiro pra comprar as
coisas pra mim e pra minha filha, aí foi isso aí.” ( O. 26 anos)
Porque assim, vendo minhas filhas querendo as coisas, eu não tinha mais pra
dar, tava sufocada, aí eu tentei arrumar um emprego, mas com a M.E. (filha)
muito pequenininha, ela tava com três meses, não deu, M.E. adoeceu, parou na
UTI, aí não deu pra mim arrumar um emprego porque eu não tinha com quem
deixar, não tinha creche, não tinha nada, aí eu fui peguei e optei pelo lado mais
fácil. Mas quando eu comecei mesmo eu tava de barriga da M.E. (...) eu já tava
de quatro meses. (...) Foi por necessidade mesmo, graças à Deus eu não tenho
vício. Foi mais por necessidade.” (G. 24 anos).
“O que me levou a fazer isso foi gostar demais e também uma forma de
sobrevivência né, de ganhar dinheiro, que eu tava desempregada. Foi o amor e o
123
dinheiro, mais o amor que eu tinha por ele (companheiro), porque tudo
começou com uma conversa que eu tive com ele na prisão e ele me pediu pra
levar a droga pra ele aí eu atendi. Também era eu só sozinha pra trabalhar e ir
na prisão aí não tinha como, ficava muito cansativo trabalhar.” ( J. 23 anos).
“Foi um ato de burrice, por gostar do meu marido. Porque ele era dependente
da droga, tipo assim, se a senhora tem um namorado que gosta de chocolate a
senhora vai dar chocolate pra ele de presente, o meu gostava de maconha, aí eu
levei pra ele. Foi também pra gastar menos né porque eu levando era mais
barato do que ele comprar lá dentro do presídio.” (K. 22 anos).
“ Foi por causa da droga que ele usava, ele tava preso era dependente né e
precisava. Ele não queria que eu trouxesse ia pedir a outra mulher pra trazer,
mas aí eu não quis né? Fiquei com ciúme dele e comecei a levar droga pra ele, e
eu também tinha que levar as coisas pra ele né, também levava dinheiro,
tinha que ta lá direto no presídio,não tinha como trabalhar.”( M. 24 anos)
Apenas uma interna justificou a prática do crime como resultado de ambição:
“Eu não tinha necessidades financeiras mas aí o dinheiro entra fácil e rápido e é
muito dinheiro, aí você começa a querer mais e mais..” (C. 25 anos)
Cabe assinalar que, no grupo das dez detentas condenadas por drogas, três negaram
os delitos ou qualquer envolvimento com o crime. Não obstante, seus processos judiciais,
aos quais tivemos acesso, são bastante concludentes com relação à participação das mesmas
no cometimento dos delitos e a análise de suas entrevistas aponta para elementos presentes
na vida das presas que poderiam, supostamente, ter motivado o envolvimento das internas
com o tráfico de drogas.
A primeira destas internas, oriunda de classe média e com curso de nível superior,
durante toda a vida teve boas condições financeiras, em especial quando o companheiro era
vivo. A doença e morte do mesmo teriam dilapidado o patrimônio do casal, deixando a
interna sem casa própria, com inserção informal no mercado de trabalho e rendimentos
instáveis. Apesar disso, ela permaneceu morando em bairro nobre da cidade do Rio e é
possível que, para manter um certo status, tenha acabado por se enredar com o tráfico.
A segunda interna a negar o crime foi presa por estocar drogas em sua casa. Estava
desempregada, morava com dois filhos, dependia da ajuda financeira da mãe e do
namorado e era usuária de drogas desde os quatorze anos. Além destes elementos que
podem ter influenciado a interna no cometimento do delito, tinha um cunhado envolvido
com o tráfico de drogas. Não queremos aqui afirmar que a participação de familiar no crime
seja um fator determinante para o ingresso na criminalidade, mas um elemento que pode, de
124
certo modo, contribuir para naturalizar práticas ilícitas ou mesmo facilitar o acesso a estas
práticas.
Isso fica mais evidente no caso da terceira interna a negar o cometimento do delito,
de vez que ela foi condenada por administrar e gerenciar o comércio de drogas estabelecido
pelos dois filhos que se encontravam presos.
No Quadro 1, reproduzimos, a partir dos depoimentos das presas, os vários
elementos presentes em suas histórias de vida que, direta ou indiretamente, podem ter
servido de facilitadores ou fatores propiciatórios à sua entrada no universo do crime
Quadro 1: Fatores propiciatórios à prática de delitos relacionados às drogas presentes nas
histórias de vida das presas da UP Talavera Bruce
Presas
Dependência
Química da
Interna
Dependência
Química de
Familiar
Necessidades
financeiras
Ambição Amor ao
companheiro
Familiar
no crime
Outros
Motivos
A.
C.
G.
H.
I.
J.
K.
M.
N.
O.
Fonte: Elaboração da autora, com base nos arquivos da Penitenciária Talavera Bruce
125
Pela leitura do Quadro 1, podemos observar que, para quase a totalidade das presas
entrevistadas, não existe um único fator a impulsionar a prática de delitos relacionados às
drogas, mas um conjunto de fatores e circunstâncias que se reforçam mutuamente e tendem
a se inscrever tanto na infância e na adolescência, quanto na fase adulta de suas vidas.
Embora mudem os personagens envolvidos, permanecem a drogadição na família e
a inserção de familiar no crime. Se antes era o pai ou o responsável quem usava drogas,
agora é o companheiro que exerce esse papel e, em muitos casos, também faz parte da
criminalidade. É o amor por esse companheiro que vai mobilizar a mulher a apoiá-lo e
atendê-lo cegamente, mesmo que o preço a ser pago seja a sua liberdade. Por vezes, é
também pelo seu próprio vício e pela dificuldade financeira de mantê-lo que ela vai
delinqüir.
Mas o cenário principal, o elemento-chave para a entrada e permanência na
criminalidade da maioria das mulheres entrevistadas, é dado pela necessidade financeira,
que resulta de seu despreparo para o mercado de trabalho e de suas restritas possibilidades
de sustentação econômica. Situações adversas em seu ciclo de vida (desemprego, prisão ou
morte do marido ou companheiro, doença de algum membro da família), acentuando seu
grau de vulnerabilidade social, podem precipitar ou consolidar seu envolvimento com o
crime: uma vez ingressando no tráfico de drogas, delito de retorno financeiro rápido e alto,
essa necessidade de ter ou a ambição de ter mais podem ser determinantes para a
permanência na criminalidade.
Por outro lado, é preciso lembrar que, embora o papel da mulher no tráfico seja via-
de-regra, um papel subalterno, nem por isso deixa de ser funcional para o negócio. A
representação usual de que a mulher é “menos criminosa que o homem” serve para
escamotear a sua ação no tráfico, principalmente quando seu papel é o de transportar a
droga. A mulher chamaria menos atenção e, nesse aspecto, tanto no caso das que levam
drogas para os companheiros no presídio, quanto das que participam diretamente do tráfico,
a própria anatomia seria um fator favorecedor, posto que muitas portam a droga dentro da
própria vagina. Se o espaço público não lhes oferece oportunidades, é a partir do seu corpo,
o seu espaço privado, que as oportunidades surgirão.
126
7.2 Crimes Violentos
O grupo de crimes violentos engloba homicídio, roubo, latrocínio, seqüestro,
atentado ao pudor e estupro. Em confronto com os crimes ligados às drogas tais delitos
apresentam três características distintivas: a primeira é a de que podem ser praticados
apenas por uma única pessoa ; a segunda é a de que, em geral, apresentam uma organização
menos complexa e ramificada do que a do narcotráfico e a terceira é a de que podem não ter
a característica de continuidade, típica do crime-negócio. Isso não significa, é claro, que
algumas modalidades destes crimes – sobretudo no caso de seqüestros e roubos – não sejam
colonizadas e instrumentalizadas pelo narcotráfico ou que, com ou sem vinculação ao
tráfico de drogas, não haja quadrilhas ou indivíduos especializados nesses delitos e que os
cometam diversas vezes.
Ademais, alguns crimes violentos possuem características específicas: o homicídio,
por exemplo, pode ser passional, o estupro e o atentado violento ao pudor podem estar
associados a distúrbios psíquicos do criminoso, além do que estes três crimes nem sempre
visam obter lucro.
Assim, quando analisamos, por meio dos relatos das presas, sua participação nos
crimes violentos, verificamos que no homicídio, delito que possui três ocorrências em
nossas entrevistas, todas as internas foram as mandantes dos crimes e não executoras. Em
um dos casos o crime foi de cunho passional, sendo a vítima o marido da interna. Motivado
por problemas conjugais, de acordo com o relato da interna, o crime teria sido uma forma
de se libertar da opressão do marido e das ameaças do mesmo. Neste caso não parece ter
havido a influência de outros fatores no cometimento do delito, sejam eles econômicos ou
de outro caráter: a interna não tinha envolvimento anterior com a criminalidade e não fazia
uso de drogas.
“ Esse crime foi a morte do meu marido. Eu posso dizer que a minha
participação foi de omissão, porque eu tinha como fazer a coisa parar e eu não
fiz, deixei acontecer, e aí eu to como mandante. A gente brigava muito e ele me
ameaçava e chegou ao ponto de me dizer assim: “o teu filho é o meu filho
também e eu dei vida a ele também, portanto se eu quiser posso tirar”, ele usava
isso pra me ameaçar, então eu preferi que a mãe dele chorasse do que a minha
mãe chorasse.”( B. 37 anos).
127
Em muitos casos esse tipo de crime contra a pessoa, é praticado sob o impulso do
momento, mas aqui esta regra não procede, posto que houve uma premeditação do crime.
Segundo Perruci, é comum neste tipo de delito as presas enfatizarem “o papel da vítima no
processo dinâmico do crime, chegando algumas delas a transferir totalmente a
responsabilidade do crime para a vítima” (Perruci, 1983, pg. 139), o que está expresso na
fala da interna que destacamos acima.
Esta justificativa para a sociedade e para si mesma, as isenta, muitas vezes, do
sentimento de remorso pela prática do delito. O que sentem na verdade é o arrependimento
pelo fato do crime tê-las levado para a prisão. Assim, esse sentimento pode ser entendido
quando percebemos o processo de dominação e marginalização que muitas mulheres estão
submetidas, principalmente aquelas oriundas das camadas mais pobres da população.
Conforme afirma Perruci,
os ressentimentos acumulados e escondidos no subconsciente e no inconsciente,
no ato do crime se transformam num processo de transferência para a vítima,
embora, muitas vezes, a responsabilidade desta última seja real e não
imaginária. De qualquer modo, a vítima representa simbolicamente, quase
sempre, o meio social opressor e as condições individuais desesperadoras em
que viviam as condenadas” (Perruci, 1983, pg.139).
Diferentemente da interna B, as outras duas presas, condenadas por homicídio e
participantes da nossa pesquisa, já possuíam envolvimento com o crime antes dessa
condenação.
A primeira delas nega o homicídio, que teve seu companheiro como executor, sendo
a vítima um rapaz com quem se havia desentendido.Tampouco admite qualquer inserção
prévia na criminalidade, embora tenha sido condenada também no tráfico de drogas e tenha
tido processo anterior por tentativa de homicídio.
A interna que possuía nível médio incompleto, trabalhava como vendedora
autônoma, residia apenas com o companheiro, com o qual declarava manter bom
relacionamento, possuía condições econômicas satisfatórias e não era usuária de drogas.
Podemos supor que a motivação para o cometimento do delito possa estar associada a sua
possível inserção no tráfico de drogas e às relações resultantes desse tipo de criminalidade.
entretanto, a negativa da interna não nos dá muitos elementos para a análise que não sua
história de vida.
128
“É...eu to como mandante (risos), que falaram que eu discuti com um rapaz e
depois de três meses mataram ele, aí falaram que eu mandei matar, mas até aí
ninguém diretamente ninguém acusa, falaram, disseram...É, falaram que eu
mandei matar (...) aí to aí presa pra caramba! (...) E o meu parceiro ta preso
também, meu parceiro é bombeiro, ele. Ele ta como autor, não matou ninguém
coitado, quem matou mesmo já até morreu (...) Nada me levou a cometer o delito
(risos), é as pessoas falam, disseram, entendeu, posso até ter uma participação
bem mínima, mas até ele chegar lá, mandar matar, eu não vou mandar matar
ninguém porque eu não sou Deus para tirar a vida de ninguém e nem tenho esse
poder de mandar ninguém matar ninguém né, mas fazer o que? Mas eu vou
embora, eu vou embora (risos) (...) É assim, às vezes eu posso ter comentado
alguma coisa com alguém, a pessoa ir lá querer fazer alguma coisa entendeu?
Pode até ter acontecido isso, mas não foi nem minha intenção, mas fazer o que?”
P. 29 anos
W., segunda presa condenada por homicídio, oriunda de classe média alta, também
nega a autoria no delito, embora a arma do crime fosse registrada em seu nome. Reconhece,
contudo, sua participação anterior em crime de roubo, sendo seu papel indicar pessoas ou
locais para roubo de jóias, ajudar no planejamento do mesmo e posteriormente negociar o
produto do assalto. A presa não agia sozinha mas participava de quadrilha formada por uma
amiga, também oriunda de classe média alta, e os companheiros de ambas que eram ex-
detentos. Sua participação era facilitada por seu status social, já que era comerciante e
residia em bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro, o que favorecia o conhecimento com
vítimas potenciais. Tal inserção na criminalidade teria sido curta: apenas sete meses. Se,
por um lado, as condições econômicas de W. eram bastante satisfatórias, não sendo este um
fator motivador para sua entrada no crime, por outro lado, a interna foi criada no mundo da
contravenção, já que pai, tios e avô comandavam uma área do jogo do bicho. Somava-se a
isso a presença do companheiro ex-detento, que efetuava os delitos, realizando os assaltos
nos locais que a presa indicava. Sua fala não demonstrava o afeto ao ex-companheiro como
influência significativa no cometimento do delito de roubo, mas a ganância.
Segundo a interna, o homicídio pelo qual foi condenada como mandante e que teve
como vítima a sua comparsa, não teria tido sua participação, posto que quando aconteceu já
teria abandonado o crime. Ainda de acordo com seu relato, o delito deveu-se à insatisfação
na divisão do produto do assalto e foi praticado por seu companheiro à época. O
descontentamento com a distribuição do lucro do roubo foi também o motivo do crime de
latrocínio, pelo qual a interna também está condenada e que ela atribui ao ex-companheiro.
Com relação ao crime de roubo a presa afirma que foi motivada, a princípio, pelo interesse
129
de ajudar sua comparsa, que era sua amiga, estava endividada e lhe solicitara a indicação de
vítimas em potencial para os assaltos. Posteriormente, percebendo a possibilidade de lucro
alto, rápido e fácil com o crime passou a agir movida pela ambição. Assim, é possível
questionar se o crime de homicídio não teria sido estimulado pelo mesmo motivo.
“Só porque eu comercializava jóias, né, e essas pessoas, esse rapaz que eu me
envolvi, ele na época, ele tava como fugitivo né então ele tentou armar pra que a
gente apanhasse essas pessoas só que eu sempre fui contra, então fazia os
assaltos na joalheria, essas coisas todas mas nada que pudesse me colocar em
risco para ser presa. Eu não participava com ele dos assaltos, eu “dava”
(indicava) pra ele e pra uma amiga minha, até mesmo porque eu não tinha
coragem, não queria ir mesmo. Então num desses assaltos ele discutiu numa das
vezes que a gente tava fazendo a venda das jóias, aí ele me largou e foi começou
a discutir com o rapaz que foi comprar e acabou matando. O 121 é da morte
dessa minha amiga, porque um outro amigo desse rapaz que eu namorava se
tornou amante dela (...) a gente já não tava mais trabalhando, tinha parado com
isso. Falei pra ela que eu não queria mais e ela continuou com ele fazendo os
assaltos (...) eu acho que na hora da divisão também houve o mesmo problema e
ele acabou matando ela. (...) Eu tinha lucro, comecei a ter depois do terceiro
assalto, porque eu falei: peraí, já que está assim então vamos fazer direito. Foi
daí que eu comecei a dar os negócios e eu tinha a minha participação sim (...)
Eu comecei pra ajudar essa minha amiga, pura e exclusivamente pra isso,
porque eu não tinha necessidade nenhuma não, financeira nenhuma não.
Claro que quanto mais muito melhor, sendo que eu não procurava, não tinha
porque procurar, até mesmo porque sempre gostei de trabalhar, mesmo presa eu
to sempre trabalhando, mas foi puro impulso em querer ajudar e quando
começa a vim muito fácil, você acaba gostando né, que eu também sou ser
humano, então erra ne´?” W. 38 anos
O relato de W., associado às mudanças no perfil dos delitos cometidos por
mulheres, analisadas no capítulo 3 desta dissertação, sugere um comentário. Se antes os
delitos de homicídio praticados por mulheres eram sobretudo passionais, sendo
impulsionados por sentimentos de ciúme, vingança, ou ressentimento, hoje eles se ligam
também a outros crimes e são fruto de outras motivações. Ou seja, resultam também do
próprio jogo de poder inerente à criminalidade atual, com suas guerras entre facções, em
busca de maior lucro para as organizações criminosas e dos conflitos no interior de algumas
quadrilhas, onde os sujeitos orientados por uma lógica individualista exacerbado,
ambicionam ter/ser mais que o outro, independentemente de sua origem ou condição de
classe social.
130
Assim, no caso dessa última interna que comentamos, tanto o homicídio quanto o
latrocínio, a ela atribuídos, parecem estar associados a essa ambição desmedida por poder e
dinheiro, próprios da criminalidade contemporânea.
No crime de roubo, especificamente, entrevistamos duas internas, chamando-nos a
atenção o fato de ambas planejarem e executarem o crime, em pé de igualdade, com seus
comparsas.
A primeira interna foi condenada por roubos a residências, delito a que se
associaram também os de formação de quadrilha, falsidade ideológica e receptação de
produto roubado. Sua inserção na criminalidade ocorreu na adolescência, quando foi
expulsa da casa da mãe e, embora trabalhasse, praticava furtos e roubos para melhor se
manter.
A presa sempre viveu em situação de abandono familiar e foi criada por pessoas
estranhas, até os 14 anos quando passou a morar com mãe e padrasto. Conseguiu, mesmo
assim, escolarizar-se até o nível superior incompleto. Especializou-se no crime, o que, em
sua fala, soava com certo orgulho, talvez porque de forma subjetiva este fosse o meio que
encontrou de ser reconhecida, principalmente pela mãe, a quem agradava financeiramente
enquanto estava inserida na criminalidade.
A facilidade de ganhar dinheiro e manter um bom nível de vida com a prática dos
delitos parece ter sido um fator motivador para a interna permanecer no crime. Além do
que, passou a ter relacionamento afetivo com companheiro que também praticava assaltos a
residências, o que, segundo ela, serviu para intensificar suas atividades criminais:
“Eu planejava e executava os assaltos a casas e apartamentos. Eu fui me
aprimorando e criei uma coisa nova: eu me arrumava bem e ia ver um imóvel
que estivesse à venda ou para alugar e aí eu sondava todo o local e planejava o
assalto à outros imóveis daquele local, junto também com outras pessoas. Eu que
bolei isso e depois outros passaram a fazer também. (...) Bom, a princípio, na
minha adolescência que eu fazia pequenos furtos era pra me manter, pois só meu
trabalho não era suficiente porque eu ganhava um salário só. Aí com isso, com
os assaltos, meu padrão de vida foi melhorando e eu fazia pra manter esse
padrão de vida, aí a gente vai melhorando e começa a querer cada vez mais.
Depois eu tive um companheiro que usava drogas e que fazia assaltos aí também
por conta dele eu passei a assaltar mais.(...) A minha família não falava nada
porque eles não ligavam pra mim mesmo, que dirá pro que eu estava fazendo. Eu
dava presente pra eles...” D. 38 anos
Dessa forma, a prática do crime não é motivada apenas pela necessidade
financeira, embora este tenha sido o ponto de partida, mas também pela introjeção de
131
valores que estimulam a busca de poder e prazer, as gratificações narcísicas, o fascínio
pelo dinheiro e a vontade de “ser alguém”. Tais valores são reforçados e difundidos a
partir das transformações sociais contemporâneas, impulsionadas pela globalização e
seu poder de difusão de uma nova ideologia de consumo e de novos estilos de vida.
A segunda interna entrevistada e condenada por crime de roubo a empresas e
comércios, cumpria ainda pena por latrocínio. Seu papel, como o da interna anterior,
embora não fosse de liderança, tampouco era subalterno, já que participava do
planejamento do crime e da sua ação.
“Ah, eu praticamente planejava, ia assim, tinha participação direta. Planejava
geralmente todos assaltos. (...) Ah, joalheria, fábrica, ônibus de turismo, mais
empresa. Não liderava, tinha uma participação, a liderança era de outra pessoa,
mas eu tinha uma participação tanto no planejamento quanto pra efetuar a
ação.”( E. 24 anos).
A interna é oriunda de um lar pobre, marcado por conflitos familiares, desafeto,
uso abusivo de bebida alcoólica pelo pai e de drogas pelos irmãos, bem como pela
inserção desses irmãos, que eram mais velhos que a interna, na criminalidade. De acordo
com seu relato, ela teria se iniciado no roubo aos quatorze anos, sob influência dos
irmãos. Num lar desprovido de recursos financeiros, onde a figura da mãe era de
severidade e desamor e a do pai era de omissão, ausência e alcoolismo, os irmãos se
tornaram a sua referência de ser alguém, de ter dinheiro, de não ser invisível.
“Ah, eu começar a delinqüir acho que vem dos meus irmãos, eu via eles
ganhando dinheiro, não sei, eu acho que é o ambiente, meus irmãos já faziam
isso, acho que é o ambiente.”( E. 24 anos)
A fala da interna deixa clara a influência da referência familiar na sua entrada para a
criminalidade com tão pouca idade. Aliás, a precocidade também esteve presente em
práticas informais de trabalho na rua, no uso de drogas, no abandono da escola, o que
num conjunto destrutivo, minou outras possibilidades de convívio social e reforçou sua
marginalização. Como resultado, teve várias passagens por instituições sócio-educativas
na adolescência e por prisões na vida adulta.
“Fui presa quatro vezes mas na maior, de maior idade porque eu já tive
passagem na de menor, tive umas quatro passagens.”( E. 24 anos)
132
Quando fala da motivação para o cometimento do delito, a presa sinaliza a
influência de diversos fatores, que associados, lhe fizeram não só cometer o delito pelo
qual foi condenada, como também permanecer na criminalidade desde a adolescência.
“Ah, não sei, primeiro vem a necessidade de ter bastante dinheiro, de ter as
coisa, sei lá, a adrenalina, não sei o uso de drogas, os amigos, não sei acho que é
muita coisa. É tudo isso com certeza. No trabalho a remuneração era muito
pouca e o crime compensava mais né? Foi a opção do dinheiro, entendeu, do
dinheiro, porque eu queria ter uma casa, um carro, aí foi pela opção do dinheiro
e era uma coisa que eu sabia fazer, quando a gente sabe fazer alguma coisa, é
como ligar no automático né, não tive opção de aprender outra coisa, só sabia
isso mesmo... Se eu tivesse outra opção, aprendido outra coisa assim, não sei, eu
acho que eu fui muito pelo dinheiro mesmo, fui muito pelo dinheiro.” (E. 24
anos)
Esse rico relato da interna traz à tona diversos elementos que se relacionam e
formam um cenário trágico e real que contextualiza, não só o cometimento do delito, como
a inserção da presa no mundo do crime. Ela fala da influência dos irmãos e dos amigos, já
vinculados ao crime, do uso de drogas, da adrenalina sentida na prática do delito, tão
buscada pelos jovens, de não ter aprendido uma profissão ou um ofício que lhe dessem uma
alternativa ao crime, da necessidade de ter muito dinheiro e de suas aspirações de consumo.
Quando ela fala do início de suas experiências no crime e indica o ambiente em que
vivia com os irmãos na criminalidade, ganhando dinheiro e “saindo”, mesmo que
ilusoriamente, da situação de pobreza em que uma família de negros da periferia de São
Paulo vivia, ela fala da possibilidade de romper com a invisibilidade à que muitos jovens,
em especial os pobres e negros, estão submetidos. Embora existam várias formas e motivos
para se ser invisível numa sociedade, quando esse alguém é objeto de estigmas e
preconceitos a invisibilidade é ainda mais efetiva.
Segundo Soares (2005), quando a sociedade torna alguém invisível, está eliminando
aquela pessoa e projetando nela o reflexo da intolerância social. Nesse processo a
individualidade, a singularidade daquele alguém desaparece e é substituído por uma
imagem estereotipada do indivíduo que lhe é imposta, pelo estigma alimentado pela
sociedade.
“Quem está ali na esquina não é o Pedro, o Roberto ou a Maria, com suas
respectivas idades e histórias de vida, seus defeitos e qualidades, suas emoções e
medos, suas ambições e desejos. Quem está ali é o “moleque perigoso” ou a
“guria perdida”, cujo comportamento passa a ser previsível. Lançar sobre uma
133
pessoa um estigma corresponde a acusá-la simplesmente pelo fato de ela existir.
Prever seu comportamento estimula e justifica a adoção de atitudes preventivas.
Como aquilo que se prevê é ameaçador, a defesa antecipada será a agressão ou
a fuga, também hostil. Quer dizer, o preconceito arma o medo que dispara a
violência preventivamente. Essa é a caprichosa incongruência do estigma, que
acaba funcionando como uma forma de oculta-lo da consciência crítica de quem
o pratica: a interpretação que suscita será sempre comprovada pela prática não
por estar certa, mas por promover o resultado temido (...) a “profecia que se
autocumpre”.” (Soares, 2005, pg.175)
Todo esse processo é absorvido e percebido, mesmo que inconscientemente, pelos
indivíduos atingidos por essa invisibilidade gerando internamente a necessidade de sair
desse círculo, de ser como os outros, de ter como os outros, de criar visibilidade.
Na cultura contemporânea, ser é igual a ter, assim o indivíduo pode tornar-se visível
pelo viés do consumo, da estampa que pode comprar, então ter dinheiro e possuir símbolos
próprios de quem é visível, é uma forma também de sair da invisibilidade, neste caso, o
crime pode ser o meio mais rápido e mais trágico para isso, mas reforça a “profecia que se
autocumpre”, pois ao cometer o delito inspira na vítima o ódio e a crença na coerência do
preconceito.
Para Soares a utilização do crime como forma de sair da invisibilidade
“põe em marcha a máquina da violência que começa com o cárcere privado do
estigma internalizado, prendendo cabeça e coração na armadilha do
preconceito, segue pelas trilhas de gato e rato – a polícia atrás – e culmina com
a morte ou a sentença que o condena à morte simbólica: a pena. O ciclo
frequentemente replica-se nas sucessivas reincidências, nada se aproveita. O
sofrimento espalha-se por todo lado, perde-se muito dinheiro, desperdiçam-se
vidas e é só. O jovem não se sente nem um pouco melhor com o crime que
comete.” (Soares, 2005, pg.226)
O desejo expresso pela interna de querer ter muito dinheiro para comprar uma casa e
um carro talvez não passe aqui pela ganância, mas pela necessidade de ter o que
socialmente simboliza o que tem “quem é alguém”. Quando a interna, em tela, fez a
“opção” de não trabalhar numa atividade que lhe remunerava mal mas ganhar “muito
dinheiro” com a prática do crime, há que se considerar não só a importância do dinheiro
como meio de saciar a fome de outras necessidades básicas que todo ser humano possui,
mas adquirir também símbolos de inclusão, como resume Soares (2005, pg. 228): “ há
fome física. Há miséria e seu calvário. Há um rosário de carências”, entretanto, “não há
só isso e (...) a história não deve ser contada, unilateralmente, pelo ângulo da economia”.
134
Estes símbolos, que extrapolam o viés econômico, geram a sensação de pertencimento
social tão necessária para se sentir visível.
Assim, ter é ser: ter dinheiro, ter poder, para ser alguém reconhecido socialmente. E
embora o caminho da violência seja contrário às leis, é ele o atalho para se atingir alguns
valores tão estimulados e apreciados na sociedade: o poder e o dinheiro
Essa necessidade de empoderamento e visibilidade pode ser ainda maior entre as
mulheres que, sempre tão alijadas dos papéis de poder na sociedade, principalmente quando
pobres e afrodescendentes, podem encontrar no mundo do crime essa possibilidade.
No crime, E. não possuía status subalterno, pelo contrário, participava da elaboração
e da execução da ação. Sendo partícipe deste processo, “adquiria” certo “poder”, se sentia
reconhecida e tinha a recompensa do pertencimento àquele grupo, já que o núcleo familiar
lhe era refratário.
Na definição de Arendt (1994, pg.36) o poder “corresponde à habilidade humana
não apenas de agir mas para agir em concerto, o poder nunca é propriedade de um
indivíduo, pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o
grupo conserva-se unido”. Para se ter acesso a esse poder ou fazer parte dele, é preciso
estar incluído, pois não há poder isoladamente já que para um indivíduo ascender a um
posto de liderança é necessário que haja antes concessão do grupo para que ela lá esteja.
Se, na vida em família e no meio social, E. “não era ninguém”, não possuía poder,
no sentido de participar em conjunto da construção social, era na quadrilha, através da
violência, que ela buscava obter esse poder, a fim de se sentir incluída, sentir-se alguém.
Arendt (1994, pg.63) afirma que “cada diminuição no poder é um convite à
violência” . Dessa forma, a decepção dos indivíduos com a faculdade de agir, ocasionada
pela “burocratização da vida pública, vulnerabilidade dos grandes sistemas e
monopolização do poder”, que impedem a participação dos sujeitos no processo de
construção da sociedade, em especial aqueles excluídos de sua cidadania, desprotegidos
socialmente e sem acesso aos instrumentos de poder, vão estimular a violência pois essa
exclusão suscita a troca do poder, que lhes escapa, pela adoção da violência, que teria um
caráter instrumental nessa busca de empoderamento.
A violência, entretanto, não recria o poder mas o destrói. Ela surge onde ele está
ameaçado, mas como está isolada, não só elimina o poder como também não é capaz de (re)
135
criá-lo, porque segrega os indivíduos destruindo a possibilidade da participação na
construção social, fonte de poder.
“A marca mais evidente da destruição do poder pela violência é o “isolamento”
entre os homens e a concomitante desagregação da esfera pública enquanto espaço da
aparição da pluralidade de homens e opiniões, e isto se dá na exata medida em que a
violência usurpa e ocupa o lugar do poder:
“do cano de uma arma” emerge o comando mais efetivo, resultando na mais
perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí é o poder.”( Arendt,
1994, pg.42).
Assim a inserção na criminalidade, como possibilidade de se salvar da invisibilidade
social e de se obter “poder”, a partir do acesso a símbolos de distinção, valorização e
pertencimento no âmbito social, foi o caminho trilhado por E., não tendo sido menos
diferente da trajetória de Q., uma das duas internas entrevistadas e condenadas por
latrocínio.
A história de Q. é bastante similar a de E.: privações materiais na infância, família
com relações conflitivas, pai alcoólatra e violento com a interna, irmãos usuários de drogas
e envolvidos com o crime, baixa escolarização da presa, saída precoce da escola, inserção
precária no mercado de trabalho durante a adolescência, ausência de formação profissional,
gravidez precoce, drogadição no início da juventude e entrada para o crime ainda na
adolescência. Na vida adulta de Q. o cenário não se transforma, tanto nas relações
familiares quanto no campo material e os motivos para começar a delinqüir, expressos por
Q., também não são muito diversos daqueles apresentados por E..
“Eu tinha doze anos quando comecei e roubava no mercado. Ah, era pra comer
né, andar bem, quem não gosta de andar bem arrumada na rua? Pôxa! Minha
família não podia me dar, meu pai só me espancava, meu pai nunca me deu
nada, só quando eu era pequena. Todos os lugares que meu pai ia só eu junto,
duma hora pra outra meu pai começou a me espancar. Eu não entendo.(...) Pôxa,
isso influenciou tanta coisa, que eu tenho tanto ódio, eu sou uma boa pessoa mas
eu guardo muito ódio, tudo por causa dele, muito mesmo (...) E também é que a
gente fica na empolgação quando é nova né? A gente acha que é onda andar de
carro, cheio de armas, aquilo, e vai indo (...) Ah quem é criado na favela tem
essas opções né, é no crime ou vira prostituta, ou tem uns que vira até advogado
dentro de favela, né? Quem quer seguir a sua vida, segue sua vida do jeito que
136
dá pra seguir né, porque é muita coisa, muita droga que rola, muita aí, nem
fala.” Q. 30 anos
A partir desse relato da interna, podemos identificar diversos fatores que
influenciaram sua inserção na criminalidade. Percebemos que inicialmente o que a motivou
a começar a praticar delitos aos doze anos de idade, foram as necessidades materiais
básicas da família, especialmente a alimentação, pois além de roubar gêneros alimentícios
nos supermercados, também recolhia sobras das feiras para os irmãos se alimentarem,
conforme informou em outro momento da entrevista. Esta trajetória parece também ter sido
reforçada pela rejeição e agressividade do pai, além da impossibilidade deste em atender às
expectativas e desejos de consumo da interna, comuns a todo adolescente, como querer
“andar arrumada na rua”. Mais à frente ela fala do significado de estar em meio à pessoas
envolvidas com a criminalidade, portando símbolos de poder e dinheiro como armas e
carro, pois fazer parte deste grupo é sinônimo de status, não só para a interna mas também
nas representações de muitos de sua comunidade.
Estar na moda e estar armado significa possuir instrumentos de poder que possuem
uma utilidade econômica e que simbolizam diferenciação, reconhecimento e inclusão, ao
menos no grupo que se convive. Afinal, o que se busca é pertencer pois assim
“calçam a identidade, empinam a auto-estima, selam o pacto de
admissão ao grupo, bombeiam a auto-confiança” (Soares, 2005,
pg.230).
A sensação de possuir valor e de compartilhamento de sentimentos e idéias, leva
muitos jovens, homens e mulheres, a aderirem a bandos criminosos e armados, pois além
do valor subjetivo de pertencer a um grupo, vem a possibilidade de adquirir símbolos de
poder através do dinheiro ganho.
De acordo com Soares (2005) a roupa da moda pode não ser apenas uma escolha
estética mas trazer embutida também questões éticas e ideológicas, “funcionam como
carteirinha de sócio do clube. Garantem o ingresso na festa mórbida em que se celebram o
destemor, a lealdade, a crueldade mais brutal e a disciplina. É bastante para quem vaga
pela cidade ávido por referências.” (Soares, 2005, pg.229)
137
Além disso, estar armado, desperta o desejo e admiração das mulheres que se
identificando com esses valores acabam por se tornar “mulheres de bandidos” ou se igualar
e inserir-se no mundo do crime.
Quando falamos aqui que a trajetória de Q. no crime se iniciou a partir da
necessidade de ajudar a família, não estávamos querendo dizer que esta foi a motivação
principal ou a única motivação, ou estaríamos apenas associando pobreza com violência e
sabemos que esta correlação não se sustenta sozinha, prova disso é que nem todas as
crianças e jovens pobres se encaminham para o crime. Queríamos sinalizar que esta
necessidade material da família foi um elemento facilitador da sua inserção no crime, que
poderia ter sido interrompida se não houvesse fatores mais subjetivos até – alguns dos quais
já abordamos - , que conjuntamente reforçaram sua permanência no crime.
Outro destes fatores é a própria visão determinista que a interna possui sobre o
futuro de quem mora na favela, onde pra ela as opções destinadas às mulheres são tornar-se
prostituta ou bandida, visão construída e reforçada no dia a dia através da exclusão a que
essas comunidades são relegadas, na ausência de políticas públicas e de mecanismos de
inclusão, na má distribuição de serviços e recursos do estado, bem como pela construção
social estereotipada da imagem do pobre ou do morador de favela como um indivíduo que
seria um criminoso nato. Assim, cria-se uma identidade social do mal onde estão inscritos
todos os despossuídos.
Com relação a seu papel no crime, Q. afirma já ter tido vários, posto que seu
envolvimento com a criminalidade se deu através de diferentes delitos:
“Eu já fui presa num 155 (furto). Pôxa, já fiz tanta coisa, que se eu for contar
tudo que eu fiz a senhora fica aqui e não vai sair mais (...) Eu já ajudei meus
colegas a enterrar vários corpos, já vi muitos colegas morrer na boca de fumo, já
vi vagabundo armar pra outro, entendeu, já vi muita judaria, alguém assim que
você gosta, não poder ajudar, saber que vai morrer e que se tu der um toque,
vagabundo vai se ligar que tu deu e vagabundo matar, já trafiquei, sempre fui
vapor, mas já ajudei na endolação (embalar as drogas) , ficava na missão de
guardar as armas, essas coisas assim” Q. 30 anos.
Seu papel no crime, especificamente quando vinculado ao tráfico, é sempre
subalterno e na fala da interna se confunde com as agruras vividas no seu desempenho,
onde há traição e morte , numa guerra pelo dinheiro e pelo poder. Entretanto, o delito pelo
138
qual foi condenada - latrocínio - deixa claro que não atuava apenas no tráfico, mas também
praticava furtos e roubos.
“Eu me envolvi com o cara que eu queria roubar ele, tive que matar né? Ele era
polícia, era um PM aposentado, mas ele morando lá na Cidade de Deus, no ap
(apartamento) da PM, se eu marcasse (não ficar atenta) ele me matava. Então eu
tive que matar. Pôxa, que arrependimento! Conheci ele em três semanas, em três
semanas eu matei ele. O que me levou a fazer isso, eu nem sei te explicar. Na
hora a gente fica cega. (...) Eu ia roubar pra mim ficar bem na vida né? Tinha
filho, queria viajar, queria sair, só que eu me ferrei. Ele reagiu né, se eu não
mato, eu morro.” Q. 30 anos
A interna alega que tenha cometido o latrocínio por necessidade de defesa já que a
vítima teria reagido, imputando de certa forma a responsabilidade do delito à mesma.
Quando fala de seu arrependimento, não se refere ao crime em si mas ao fato de ter sido
presa em função do cometimento do delito.
Assim, um crime que seria apenas contra o patrimônio, transforma-se num crime
contra a vida, que banalmente é justificado como uma conseqüência, como um acidente
mas que na verdade é um efeito perverso do uso da arma de fogo.
Quanto ao roubo, motivo primeiro do delito, teria sido influenciado mais uma vez
pelas necessidades financeiras e desejo de consumo que o padrão de vida da interna não
possibilitava.
Sabemos que por trás dessa justificativa da interna de adquirir bens materiais que
extrapolam aqueles necessários à sobrevivência, está, mesmo que de forma imperceptível, a
necessidade de acesso a “bens simbólicos e afetivos” (Soares, 2005), entretanto, se nos
atermos à necessidade material ou ao desejo de consumo que muitas internas revelam como
sua motivação para o crime, chegamos à um ponto interessante: em que pese a sua longa
permanência no mundo do crime, não se percebe uma melhoria do padrão de vida destas
pessoas. O desejo de ganhar muito dinheiro e enriquecer, principalmente, é ilusório, até
mesmo porque o gasto com drogas, armas e outros símbolos de poder também não são
pequenos.
Esta visão ilusória de ficar rico que o jovem alimenta e que é despertada pelo crime,
favorece o consumo exagerado de roupas, bebida e drogas, a quem dele participa. Zaluar
afirma que este jovem
139
“no entanto é um iludido: com o lucro fácil, uma vez que seu consumo orgiástico
e excessivo o deixa sempre de bolso vazio, levando-o a repetir compulsivamente
o ato criminoso, com o poder da arma de fogo, que o deixa viver por instantes
um poder absoluto sobre suas vítimas, mas que acaba colocando-o na mesma
posição diante dos quadrilheiros e policiais mais armados do que ele, com a
possibilidade, enfim, de que, apesar de jovem, preto e pobre, vá se “dar bem” e
sair dessa vida de perigos e medos. Na verdade a quase totalidade desses jovens
ou morre muito cedo ou é presa e passa a viver os horrores do sistema prisional
brasileiro. Pouquíssimos conseguem se estabelecer mas todos contribuem para
enriquecer outros personagens que continuam nas sombras e que são os
principais beneficiários das cifras da criminalidade.” (Zaluar 1998, pg. 142).
Assim, a partir da impossibilidade de adquirir bens socialmente valorizados, parte-
se para o ganho de “dinheiro fácil” a fim de atender à essa “falta” material. Entretanto, esse
dinheiro que chega “facilmente” também é gasto rapidamente pois o objetivo maior de
adquiri-lo não é apenas para suprir a premência da falta, mas para os gastos que são
excessivos com roupas, carro, vícios, que aos olhos da comunidade seriam um indicativo de
que aquela pessoa “se deu bem”.
A segunda interna entrevistada no crime de latrocínio nega sua participação no
delito, que envolve também seu companheiro.
A presa, que é natural do Espírito Santo, sempre trabalhou e por longo tempo foi
funcionária pública, de nível médio, em seu estado. Não possuía vícios e tinha bom
relacionamento familiar, particularmente com o companheiro, com o qual convivia há
muitos anos numa relação de afeto e cumplicidade. O companheiro, embora nunca tenha
tido envolvimento com a criminalidade, era inconstante com o trabalho e quase sempre
dependia financeiramente da presa e de sua família.
Com a proposta de trabalharem informalmente prestando serviços na Região do Lagos, a
fim de motivá-lo a ser menos dependente financeiramente da interna, pediu exoneração de
seu emprego e veio com o companheiro e os filhos para o Rio de Janeiro,.
Ao buscar vaga de trabalho em borracharia, companheiro recebeu proposta de fazer
o transporte de um caminhão de uma localidade à outra, o que na verdade era um roubo de
carga de caminhão que culminou na morte da vítima do assalto.
A interna que negou ter ciência prévia da participação do companheiro no assalto,
foi presa quando ao visitá-lo na delegacia e afirmou ter sido condenada injustamente no
lugar de uma mulher que havia de fato participado do crime e com a qual teria sido
confundida.
140
“A minha participação foi o seguinte, que o eu marido quando fez isso aí, foram
duas mulheres que foram juntas pra poder fazer esse assalto, ai a senhora vê
bem, eu vim de uma família que não tinha bem noção do que era isso, então eu
não podia me envolver em nada
Porque eu não sabia de nada. Ele foi lá ver o negócio do trabalho com a
borracharia, quando chegou na borracharia que ele conheceu esse rapaz. Aí eles
conversaram, combinaram tudinho. Quando ele chegou em casa ele não falou
comigo, quando ele fala comigo o seguinte, que ele achou normal pegar um
caminhão do posto de gasolina e botar noutro posto. Ele fala comigo isso,
também não sei se ele ta mentindo ou se ele não ta, mas acho que eu conheço ele,
ele não ta me mentindo. Porque ele era só pra ele trazer o caminhão de um posto
de gasolina e botar no outro, o cara falou que ia dar a ele R$ 500,00,ia tirar de
um posto de gasolina colocar no outro posto de gasolina e esperar lá o rapaz
chegar com as duas mulheres e o cara. Nesse posto de gasolina, de um até
chegar o outro posto, nesse meio tempo eles mataram o motorista do caminhão
(...) Quando chegou lá na delegacia, quando eles foram presos , aquele negócio
todoinho, quando o delegado começou a perguntar não sei o que, aí lá onde
pegaram o homem falaram que tinha duas mulheres. Ai o que aconteceu?
Quando eu cheguei lá dentro o delegado falou comigo que eu tinha participado ,
que eu tinha ajudado a assaltar, que eu tinha roubado, ajudado a roubar, coisa
e tal, ai fiquei, ai falou que eu tava presa, “mas eu não posso ficar presa senhor,
eu vou ficar presa como se eu não fiz nada? E o delegado cismou que era eu
porque disse que tinha uma morena e uma loura. Ai o promotor falou que a
morena seria eu, ai eu falei: moço mas eu sou preta, eu não sou morena, moço
eu sou preta. Mas ai ele falou que era eu, que era eu. Que o promotor bateu o
martelo de tal forma que eu fico assim pensando tem hora, que como uma
pessoa que nunca viu a senhora de lugar nenhum, não sabe nem que a senhora
existia, olhar pra dentro dos olhos da senhora e falar: não é ela sim, é ela sim.
Eu não tinha participação nenhuma, nenhuma”. (U. 51 anos).
A participação da interna no delito, caso tenha havido, pode ter sido motivada pelo
amor e cumplicidade ao companheiro, sentimentos que permaneceram inabalados nos sete
anos em que a interna cumpre pena, haja vista a continuidade do relacionamento após a
prisão. A interna pretende manter o apoio ao comapanheiro após o cumprimento da pena,
posto que sua condenação é menor que a dele e tem como projeto ainda reconstruírem uma
vida a dois.
Essa espécie de “amor bandido”, numa alusão a paixão das mulheres por seus
companheiros criminosos, capaz de levá-las não só a serem cúmplices dos mesmos mas a
praticarem delitos por eles, foi identificada também como um fator motivador do crime de
outra presa que entrevistamos, condenada por seqüestro, delito no qual pesquisamos três
internas ao todo.
A referida presa não teve uma participação direta no delito e negou possuir intenção
de participar do mesmo, mas foi cúmplice do companheiro que cometeu o crime juntamente
com outros comparsas.
141
A interna é oriunda de família humilde, tendo sido criada sem conflitos na infância e
adolescência e na ausência de problemas familiares estruturais tipo drogadição, alcoolismo
ou violência física. Na idade adulta sempre trabalhou e nunca teve vícios. Foi casada e após
ter se separado do marido com quem viveu uma relação de submissão, pouco afeto e
desvalorização, conheceu o companheiro, que tinha envolvimento com o crime, na favela
onde residia.
A descoberta da inserção do companheiro na criminalidade só veio após algum
tempo de relacionamento. Inicialmente tomou conhecimento de que o mesmo usava drogas
e acreditou, a princípio, que pudesse ajudá-lo a se livrar do vício e posteriormente tirá-lo do
crime, já que companheiro não parecia refratário a essas possibilidades. Apesar de estar
envolvida afetivamente, percebeu que seria difícil haver alguma mudança no companheiro,
entretanto, essa incerteza não a fez afastar-se e uma das motivações para a permanência da
interna o lado companheiro era a nova forma de relação afetiva vivida ao seu lado, diversa
da união “machista” que viveu com o ex-marido onde possuía um papel subalterno e
desvalorizado.
Esse amor bandido era ambíguo: por um lado lhe dava a sensação de ser valorizada
e ter outro papel na relação, sentimentos reforçados pela generosidade e atenção do
companheiro, atitudes inexistentes em seu casamento. Por outro lado, companheiro tinha
rompantes agressivos. Esta face perniciosa parecia não ter muito peso na relação, valia
muito mais a sensação de visibilidade que passou a ter junto do companheiro e da falsa
ilusão de se sentir capaz de resgatá-lo da vida do crime, sentimentos que valiam mais do
que a invisibilidade que possuía na companhia do marido. Na nova relação a interna deixa
de exercer um papel coadjuvante e passa a ter o papel principal, o que parece ser a grande
motivação para permanecer ao lado do companheiro.
Com relação à sua participação no delito e de acordo com o seu relato, não só não
houve sua intenção de participar do crime, como também a interna não estava ciente do seu
planejamento, tendo sido envolvida pelo companheiro que a levou junto com a filha e um
casal de amigos para o local onde ocorreu o seqüestro, uma cidade da Região dos Lagos,
com a proposta de viajar a lazer. A descoberta do seqüestro só aconteceu mais à diante
quando, sob pretexto de comprar alimentos foi convencida a acompanhar o compaheiro e o
casal amigo. Neste contexto efetuaram o seqüestro. Coube à interna resgatar os pertences
142
dos casais e a filha que havia ficado na pousada onde estavam hospedados, enquanto a
quadrilha levava a vítima para o cativeiro. Afirmou que depois não teve mais participação,
a não ser permanecer escondida com o companheiro até a polícia descobrir o cativeiro.
Reconhece sua participação como cúmplice no delito e afirma que foi motivada por
amor e medo do companheiro, ambigüidade que permeou o relacionamento e a impediu de
abandonar o parceiro.
“A minha participação foi nenhuma, eu não sabia do seqüestro, foi uma
coisa premeditada por ele e por esse companheiro dele antes de nós irmos para
essa praia. Mas depois eu fui cúmplice porque eu sabia o que estava acontecendo
e eu fui levada a participar porque eu tava com ele e eu amava ele, ele ma
cativava, eu achava que eu ia mudar ele. (...) Foi por amor e medo dele, um
medo que me fascinava, porque eu tinha medo das atitudes dele, porque eu sabia
quando eu olhava no olho dele que ele era capaz de fazer o que ele falava, a
ameaça, eu sabia que ele sendo bandido ele era capaz de fazer. Mas era mais por
amor. Eu sempre procurava cuidar pra que nada acontecesse à ele, eu queria
cuidar dele, e eu achava que eu podia passar por tudo e ele não podia sofrer
nada. Mas ele cuidava muito bem de mim, se eu não quisesse cozinhar ele fazia
comida pra mim, ele era mão aberta, trazia tudo pra mim e isso me cativava, aí
eu dizia: ele lembra de mim até na rua, pôxa eu nunca vou encontrar alguém
igual o A.. Porque o meu ex-marido era do Paraná, do interior e era um cara que
eu tinha que fazer tudo dentro de casa pra ele, ele não fazia nada pra me
agradar, ele nunca comprou nada pra mim, o A. era diferente dele. T 28 anos.
Essa relação de amor e proteção da mulher ao companheiro criminoso é algo que
segundo Zaluar (1998) pode não só frear a ação dos companheiros como também levá-la a
delinqüir por eles, assim seriam múltiplas as significações do feminino entre os criminosos
e destes para as mulheres:
“Se a dedicação de algumas pode torná-las cegas para o mal causado pelas
ações dos homens que protegem, na fala dos bandidos outras aparecem como a
última ligação com a moralidade. Estas últimas são ao mesmo tempo figuras da
proteção e da autoridade. São elas as únicas a impor algum respeito aos
bandidos, são elas que os demovem de continuar na vida do crime.” (Zaluar
1988, pg. 230)
Soares (2005) também aborda esta questão das mulheres que enamoradas e
envolvidas com criminosos, deixam de apenas sustentar modelos de identificação para
esses homens e passam de coadjuvantes à protagonistas na relação com o crime, em função
do companheiro sem, entretanto, terem o controle da situação.
143
“Se o desejo das gurias é o desejo dos guris (...) a história entorta quando
muitas entre elas, elegem como modelo o macho violento, arrogante, poderoso e
armado (...). Instaura-se um magnetismo perverso que enseja a emulação da
prepotência armada. As moças , aquelas encantadas pela estetização do mal,
atuam como mediadoras da violência, turbinando a adrenalina de seus pares (...)
Portando-se como elos de uma engrenagem que se reproduz automaticamente,
elas não são sujeitos do processo. Pelo contrário, não o conhecem nem o
controlam. São vítimas e objetos. Convertem-se em cúmplices
inadvertidamente.” (Soares 2005, pg.231).
Assim é esse encantamento pelos companheiros criminosos e por símbolos da
violência reforço da virilidade, que levam muitas mulheres a se envolverem com a
criminalidade direta ou indiretamente e se por um lado alimentam o narcisismo dos seus
amores bandidos, por outro se sentem poderosas por tê-los ao lado e inflam sua auto-
estima.
A segunda interna entrevistada por seqüestro, embora também tenha se envolvido
no delito através de um namorado, afirma que não foi o sentimento pelo mesmo que a fez
participar do delito, mas sim a ambição, o desejo de ganhar muito dinheiro, pois queria ter
“boa vida”, motivação já identificada em algumas internas. É oriunda de classe média, o
que reforça a ausência de necessidade financeira no cometimento do delito.
Foi criada em família sem conflitos ou problemas estruturais aparentes, tinha um
bom relacionamento familiar, residia com três filhos e era separada do marido. Trabalhava
em atividade qualificada, com corretagem de seguros e recebia pensão alimentícia do ex-
marido.
O papel da interna no seqüestro foi secundário e não teve participação direta já que
afirma ter apenas cedido o sítio da família para servir de cativeiro, além de não ter atuado
no planejamento ou execução do crime. A interna que nunca teve envolvimento com a
criminalidade foi convidada pelo namorado a participar do delito. Este também trabalhava,
mas já tinha antecedente criminal.
“É, eu emprestei meu sítio. É emprestei pra essas pessoas que ocorreu o
seqüestro. Eu sabia que ia ter algo ali entendeu e eu ia ganhar uma porcentagem
em cima disso. O que acontece é que eu conheci um rapaz, de corretagem de
seguros, ele trabalhava no banco e ele se envolvia com essas outras pessoas que
eu até conheci e aí eu fui e me envolvi. (...) O que me levou foi a ambição. É
ambição, a questão de querer mais, achar que, tá acostumada com vida boa né?
Eu hoje tenho plena convicção que foi ambição, luxúria, ganância. Não teve a
ver com relacionamento, porque eu sou uma pessoa assim, ah, eu nãocostumava
misturar não, foi uma falta de vigilância total, não costumava misturar não,
144
assim, ah, eu gostava, ah, era namorado? Tudo bem, mas era ele lá e eu cá. Em
nenhum momento eu vou dizer que foi por causa de homem, porque não foi,
porque eu queria ganhar muito e a ganância me trouxe para a cadeia, a luxúria,
a ganância entendeu? Querer mais e mais, eu tinha uma vida boa e eu queria
mais, então eu não vou dizer, ninguém influenciou ninguém, eu fui porque eu
quis, a verdade é essa”. (F. 35 anos).
A terceira interna condenada por seqüestro teve o mesmo tipo de participação que F.
no crime: cedeu sua casa para servir de cativeiro, entretanto sua participação não se
resumiu a apenas um delito, tendo atuado desta forma por diversas vezes.
A história de vida desta interna e a motivação da mesma para cometer o delito são
bastante diferentes daquelas identificadas em F. A interna X. foi criada pelos pais em
família pobre com problemas estruturais como pais ausentes e mãe alcoolista. Sua
escolarização foi interrompida precocemente em função de sua primeira gravidez e
posterior união.
Na idade adulta sua situação econômica permaneceu precária e embora a interna
sempre tenha trabalhado suas atividades profissionais eram subalternas. O ex-companheiro
tinha inserção no mundo do crime e enquanto viveram juntos, a presa foi vítima de
violência doméstica.
Quando se envolveu com a criminalidade, a interna havia perdido dois filhos
assassinados que estavam no crime. Possuía outros três filhos menores e estava
desempregada exercendo atividade informal, de baixa remuneração, na própria casa. O
convite para participar dos seqüestros, cedendo sua casa como cativeiro em troca de parte
do dinheiro arrecadado com os resgates, foi efetuado por amigos dos filhos falecidos da
interna.
Com base na história de vida da presa, é possível perceber que o mundo do crime
fez parte de seu cotidiano tanto na convivência com o ex-marido quanto com os próprios
filhos, que seguiram os passos do pai. O que pode ter criado em suas representações uma
certa banalização da criminalidade a ponto de mais tarde, influenciada ainda por outros
fatores, também se inserir no universo do crime.
Segundo afirma Dejours “no sofrimento assim como nas defesas e mesmo no
consentimento para padecer ou infligir sofrimento, não há mecanismo incoercível ou
inexorável (...) não há leis naturais e sim regras de conduta construídas por homens e
mulheres” (Dejours, 1999, pg.83). Assim, a convivência cotidiana com a violência, ao lado
145
daqueles que infligem essa violência pode tornar a percepção do sofrimento alheio, no caso
aquele infligido às vítimas, distorcida, desprovida de indignação e, portanto, passível de
resignação diante desta violência, ou até mesmo de associação à ela. Entretanto, esta reação
não seria consciente, mas estaria por trás da “escolha” de inserir-se na criminalidade para
aplacar o que é real: as necessidades materiais básicas vivenciadas junto aos filhos, em
função do exercício de atividade laborativa precária.
“A minha participação no delito foi a seguinte: depois que o meu filho morreu,
porque o meu filho ficou um ano nessa área aí (seqüestro), então quando ele
morreu eu conheci né uma determinada pessoa que andava com ele, que
enquanto ele era vivo eu não conhecia, então no enterro dele eu conheci aquele
povo todinho e tudo, aí eles pegaram e me convidaram porque eu morava assim,
numa área praticamente militar, aqui em Magalhães Bastos, então eles pediram
pra emprestar a casa que eu ia receber um dinheiro, aquela coisa toda, né e eu
deixei me levar e emprestei a casa, a minha participação foi esta de ter
emprestado a minha casa pra cativeiro, só emprestei a casa e saí, então não
tenho participação no ato de seqüestrar, de ter pegado a vítima, de pegar
dinheiro, de fazer comida, de nada disso (...) O que me levou a entrar nessa?
Meus filhos. Tava vendo meus filhos passarem necessidade sabia? Não tava
trabalhando na época, tinha perdido meu filho, então tava com um pequeno de
seis anos né, outro com nove e uma menina com dezessete anos. E o meu filho
que morreu às vezes mantinha a casa comigo. É necessidade né? (...) Foi não
querer ver meus filhos passar necessidade né? Aí eles (a quadrilha) me davam
dinheiro, nunca me davam o dinheiro que eles ganhavam, sempre me davam
menos porque aquela área bandido, você não é bandido, então você sempre leva
a menor parte né? (...) Eu acredito que a má companhia influencia muito e foi
isso que aconteceu comigo, quer dizer, juntou aquele jogo né, má companhia,
aquela coisa no teu ouvido falando, você olha a situação ao seu redor, vê que
realmente parece que não tem solução, mas existe uma solução que é Deus, mas
a gente sem Jesus não vê isso, e quando a gente vê a gente vai fazer aquelo que
não deve pra tentar resolver o seu problema. Só que você não resolve, você
arranja outros, vários problemas piores do que aquele que você está passando
né?”( X .45 anos )
Percebemos pelo relato que a sua inserção no crime era de fato secundária, tanto
assim que a própria interna se vê diferente dos outros integrantes da quadrilha e não se
considera “bandida”. Na prisão, a aproximação com a religião parece fazer emergir um
juízo crítico em relação ao delito praticado e ela recrimina a própria atitude, mas ainda
justifica sua participação com os argumentos da necessidade financeira e da influência de
más companhias, dessa forma, os fins justificariam os meios.
Essa percepção que a interna possui de si mesma, como não sendo criminosa, parece
ser construída também a partir da banalização da criminalidade, posto que em sua visão
aquela seria uma forma de ganhar dinheiro – comum no seu meio – e por ser a sua
146
participação no delito mais coadjuvante não é percebida por ela como um ato tão grave
assim e que portanto não a credenciaria como uma “bandida”.
Dentre os crimes violentos que investigamos, o estupro e o atentado violento ao
pudor foram os mais difíceis de compreender os fatores que influenciaram sua prática.
Principalmente pela própria negação das internas em relação à sua participação no
cometimento dos mesmos, o que atribuímos ao próprio estigma social que envolve os
referidos delitos e que são repudiados inclusive pela própria massa carcerária.
A princípio, o crime de estupro só tem a sua autoria atribuída ao homem, pois de
acordo com o Código Penal significa: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante
violência ou grave ameaça”. Entretanto, a mulher pode ser tipificada como co-autora do
delito e também ser condenada no mesmo. Para tanto, ela teria que participar da ação, junto
com o autor, ou mesmo consentir que o crime ocorresse, ou ainda ser omissa com relação
ao delito.
Entrevistamos duas internas condenadas nos crimes de estupro e atentado violento
ao pudor. A primeira teve a infância e adolescência permeada de desamor, abandono e
violência física, que parecem tê-la marcado profundamente. Não conheceu os pais e foi
criada por padrinhos violentos e outras pessoas estranhas que a submeteram ao trabalho
forçado desde à infância.
A interna que não foi escolarizada sempre trabalhou em atividades precarizadas e
nunca teve vícios ou envolvimento anterior com a criminalidade. Quando participou do
delito tinha condições financeiras precárias e já tinha constituído sua própria família,
composta pelo companheiro e quatro filhos menores, com os quais relatou ter bom
relacionamento.
No tocante ao delito, não chegou a negá-lo totalmente, mas omitiu e não reconheceu
alguns detalhes do crime – partes de seu processo – ao qual tivemos acesso, que configuram
de fato o crime como estupro. Reconheceu apenas que tenha havido atentado violento ao
pudor.
Antes da ocorrência do delito, a interna trabalhava em casa tomando conta de
crianças, inclusive da filha do autor principal do crime, que era seu vizinho. Essa atividade
os aproximou, gerando uma amizade entre as famílias. A presa passou a participar das
sessões de magia promovidas na casa do mesmo, reaproximando-se da prática religiosa,
147
que já havia tido contato na adolescência, quando morava na Bahia. Lá teria sido “dada”
por sua madrinha para um “espírito maligno” e forçada a viver por um tempo em um centro
espírita, onde era agredida fisicamente e obrigada a trabalhar em regime escravo.
“ A minha mãe de criação quebrou a minha cabeça uma vez e depois ela me deu
de presente pra um espiritista, que ela me deu de presente, num tempos atrás ela
me deu pra uma macumbeira, me deu pra um espírito, um espírito chamado
Tranca Rua, ela me deu praquele espírito e ali mais uma vez eu fui maltratada
por aqueles espíritos, espancada muito por aqueles espíritos, a mulher, a
macumbeira me deixava com fome. Trabalhava muito, era uma escrava, sabe
uma vida de escravo? Só faltava me amarrar e me chicotear, mas me
chicotearam sem roupa (...) é ela me deu de presente e depois me pegou de volta
devido eu ser muito espancada, passando fome.” (Y. 35 anos).
O delito teve como vítima a ex-mulher do vizinho, que se dizendo incorporado por
um espírito ditava ordens à Y., ao seu companheiro e a outro homem, além da filha
adolescente da interna. Seguindo essas ordens teriam espancado a mulher, tirado as
próprias roupas e praticado sexo com a mesma, sob a ameaça de “coisas ruins” lhes
acontecerem caso não lhe obedecessem. A interna não reconhece terem praticado sexo com
a vítima, mas “apenas” terem agredido-a e ficado nus diante dela.
Sobre o que teria motivado sua participação no delito, atribui à causas sobrenaturais
e agora convertida à religião evangélica e com traços de fanatismo religioso, acredita que,
pelo fato de ter se envolvido com o espiritismo, o Demônio intencionava destruir a sua vida
e por isso lhe cegou, usando sua mão para fazer “coisas erradas” e, isentando-se de certa
forma da responsabilidade, conclui que o espírito maligno teria sido responsável por sua
participação no delito.
“A minha participação foi ajudar a espancar, foi isso, ele mandava a gente
obedecia, mas o estupro, assim, não houve o estupro. Só de tirar a roupa, o cara
assim obrigou nós tudo a tirar a roupa, mas não houve relação sexual pura, isso
aí não houve (...) É todo mundo que ele obrigou, era um espírito que estava
incorporado nele. Ele obrigou só a tirar a roupa pra poder mostrar pra moça,
pra mulher dele, que era ciúme né, que não tinha nada a ver, que o mesmo corpo
que nós tinha ela tinha. Mais sendo que não era ele, era um espírito maligno
incorporado nele. Não teve sexo. Só ficaram sem roupa. (...)Aí devido também eu
já ter sido envolvida com macumba lá na Bahia, ser criada na macumba, devido
aquela mulher ter me dado praqueles espíritos malignos, o espírito aproveitou
entendeu, começou a fazer arruaça na minha vida, que o plano do satanás era
me matar, me destruir, levar pro inferno com ele, mas aí ele foi sozinho (...)
Naquele dia ele incorporou um espírito brabo, mas muito brabo mesmo que eu
nunca tinha visto na minha vida, eu nunca tinha visto um espírito como o que
incorporou nele. Aí ele começou a espancar a mulher, a amante dele, aí
espancou, espancou e naquele momento e tudo nos obrigou nós também a
148
espancar. Nós tava ali sendo dominados pelos espíritos (...) Nem eu tive força
pra combater aquele espírito maligno que estava incorporado naquele homem e
nem o meu esposo, nem o outro cara, nem a outra pessoa, ninguém teve força.”
Y. 35 anos.
A interna demonstra arrependimento no cometimento do delito, principalmente no
que tange à agressão física da vítima:
“Ele espancou muito, fez muita barbaridade que eu não gosto nem de falar que,
sabe, eu peço todo dia pra Deus tirar, arrancar sabe da minha mente, porque foi
uma coisa muito triste, foi muito doloroso, muito triste o que aconteceu (...) Ele
queria matar a vítima, numa hora ele mandou guardar a vítima, mas lá na minha
casa eu deixei ela ir embora, eu dei brecha, mandei ela ir embora, aí ele ficou
bravo, que eu tinha é quebrado o trabalho dele que não era pra ter deixado a
menina ir embora, que ele ia terminar aquilo, mas eu deixei ela ir embora.”(Y.
35 anos)
No misticismo da interna, fantasia e realidade se confundem, e tentam justificar um
delito moralmente condenado pela sociedade.
A participação no crime, mesmo que influenciada por terceiros, parece reproduzir
no delito a mesma violência à que foi submetida na adolescência. A ausência de um juízo
crítico que impedisse sua ação no crime parece ter bases no baixo nível de instrução da
interna e no seu tipo simplório típico de sua origem rural. Sua participação poderia também
ter sido facilitada por possuir algum tipo de distúrbio psicológico, fator determinante e
bastante recorrente em muitos casos de estupro e atentado violento ao pudor.
A segunda interna entrevistada e condenada como co-autora nos crimes de estupro e
atentado violento ao pudor, é oriunda de família pobre de origem rural, pais eram rudes na
criação, entretanto não havia maiores conflitos ou problemas estruturais no núcleo familiar.
Sua escolarização é baixa em função de ter começado a desenvolver atividades
laborativas ainda na infância. A interna não teve formação profissional e sempre exerceu
atividades informais com pouca remuneração.
Quando cometeu o delito residia apenas com o marido e filha adolescente em
condições sócio econômicas precárias, posto que interna trabalhava eventualmente como
doméstica e marido estava desempregado.
As relações familiares eram conflitivas no que tange o relacionamento entre pais e
filha. A interna parecia reproduzir a educação rude e severa que recebeu dos pais, chegando
mesmo, em alguns momentos, a agredir fisicamente a filha. Sua relação com o marido,
149
entretanto, parecia ser de devoção e complacência. Ainda segundo seu relato, possuíam tão
bom relacionamento que nem mesmo o passado de alcoolista do marido o teria abalado.
Com relação aos delitos, a interna não só negou totalmente sua participação como
também a do autor, seu marido, transferindo a culpa para a vítima, a própria filha, que
segundo a presa teria inventado a versão do crime para se vingar das agressões que sofreu
dos pais.
Z. afirmou que a filha era rebelde, não lhe respeitava e não gostava de lhe ajudar nos
afazeres domésticos, o que ocasionava conflitos e resultava em agressão física da interna
para com a filha. Ainda na sua versão, a filha teria feito a denúncia de que a mãe lhe
obrigou durante anos a manter relações sexuais com o pai e com outro homem, amigo do
casal.
“Olha, o delito foi assim, o delito não, por causa que a causadora disso tudo foi
a minha filha que me colocou aqui dentro, ela me colocou aqui dentro dizendo
que o pai dela fazia relação sexual com ela e que eu obrigava. Jamais eu poderia
fazer uma coisa dessa pra um pai, botar um pai na cama da filha, eu não tenho,
eu não tive, nunca tive essa loucura (...) mas ela não tá inventando, ela não foi
sozinha na delegacia não que quando ela foi na delegacia ela não tava dentro da
minha casa, ela tava na casa da madrinha dela, a madrinha dela induziu ela e a
madrinha dela foi junto por causa que ela era menor, dezesseis anos, então o
delegado não ia aceitar o depoimento dela (...) não posso dizer que ele abusou
porque eu nunca vi, nunca vi, por causa que ele era uma pessoa que não, que
nem, era difícil ele estar dentro de casa, só na hora que ele chegava pra deitar e
dormir e sair, quando, de madrugada levantar e sair para trabalhar. Que eu
levantava junto com ele pra poder fazer o café dele pra ele tomar antes de sair e
eu nunca vi ele deitar, nunca vi nada. Ela nunca falou nada comigo, foi falar pra
própria madrinha que ela foi...pressionada, pressionada, assim como eu fui
pressionada dentro da delegacia, fui pressionada também pra dizer o que eu
nunca vi (...) É que eles falam que, ela fala que eu obrigava, eu obrigava ele a
fazer relação sexual com ela, mas eu nunca fiz isso, nunca na minha vida eu tive
esse poder pra fazer isso, botar o próprio pai deitado com a própria filha, não
tive essa capacidade, nunca tive nem em pensamento, a única, só se eu tivesse
com a cabeça virada pro outro lado, virada pelo avesso.” (Z. 45 anos).
A negação das práticas dos delitos pelos quais foi condenada não é fato incomum
entre os indivíduos que os praticam, à princípio por ser um crime que tem como
característica intrínseca a violência física ou moral, principalmente quando a vítima tem
relação parental.
Em que pese o fato da interna e do marido não terem tido nenhum envolvimento
anterior com a criminalidade, este delito é bastante específico e não necessariamente
150
precisa estar associado à uma carreira criminosa, principalmente quando ele ocorre dentro
da própria família.
Assim é possível que fatores inerentes à estrutura e a relação familiar ou mesmo a
estrutura mental e psíquica dos indivíduos envolvidos, tenham influenciado no
cometimento dos delitos. Pois o que vemos na dinâmica familiar, através da fala da interna,
é num pólo uma relação violenta desta com a filha e no outro polo uma relação de
submissão e apego da interna com o marido, tanto que poderia ser capaz de subjugar a filha
ao despotismo do marido. E embora em nossa sociedade contemporânea este poder
despótico do chefe de família seja algo, aos nossos olhos, do passado, em algumas famílias
ele ainda pode parecer legítimo e ser legitimado pela própria mulher, que submissa
desconhece ou ignora os “direitos subjetivos familiais” (Mestieri, 1982), também
denominados “direitos-função”, que não são meramente direitos egoístas, mas são
constitutivos da organização da família na promoção do bem estar de todos.
“O chefe de família ou mais modernamente os cônjuges, tem direito de
promover a educação dos filhos, no legítimo exercício de autoridade educativa,
de guarda, conselho, vigilância (...) mas o direito não reconhece essas
faculdades e poderes aos pais para que os realizem egoisticamente no seu
interesse; são reconhecidos, isto sim, no interesse do filho e do grupo familial.”
(Mestieri, 1982, pg.57).
Assim essa submissão e afeto ao marido poderiam se sobrepor à esse papel da mãe
com o filho, levando a interna à submeter a filha ao contato sexual por anos seguidos, com
o próprio pai, valendo-se de seu poder de mãe e da relação de dependência econômica e
afetiva entre a vítima e os pais que perpetraram a violência.
Essa relação de dependência com os pais torna-se um instrumento de coação e
constrangimento à prática do delito. É possível ainda que toda essa dinâmica familiar seja
permeada por transtornos psíquicos desenvolvidos por seus integrantes.
7.3 Crimes não violentos
Neste grupo, entrevistamos internas condenadas pelos crimes de furto e peculato.
No primeiro delito participaram da pesquisa três internas tendo sido encontrado vários
pontos em comum entre as presas.
151
O primeiro ponto diz respeito ao tipo de participação das internas no delito: todas
agiam sozinhas, não fazendo parte de nenhuma quadrilha. Esta ação unipessoal parece ser
favorecida pelas próprias características da execução do delito, que na maioria das vezes se
dá em lojas e supermercados, através do furto de gêneros alimentícios, roupas e outras
mercadorias, sendo também comum o furto à bolsas e carteiras de passantes nas ruas.
Este crime não parece ter um “status” dentro da criminalidade, sendo bastante
associado à necessidades de sobrevivência e portanto praticado pelas presas consideradas
“caídas” ou aquelas mais pobres. Sobre a participação das mulheres nesse tipo de delito
Zaluar afirma que aquelas
“que não são contadas como membros das quadrilhas de assaltantes ou
traficantes, têm um papel secundário nas atividades delinqüentes, elas se
especializam em roubar lojas e supermercados, de onde trazem roupas, gêneros
alimentícios, bebidas e o que mais for possível para dividir entre elas ou dar a
seus homens. As mais velhas são muito habilidosas na arte de carregar
mercadorias variadas entre as suas pernas e andar pelo supermercado como se
nada acontecesse. São as “minas do pisa”, porque pisam sem despertar
desconfianças. As mais jovens que não tem essa capacidade de “sair no pisa”,
entram no estabelecimento, enchem as bolsas de mercadorias e saem com elas na
cara dos caixas e dos seguranças, arriscando a sorte. São conhecidas como
“bolseiras”. Nenhuma delas é dita nem se diz bandida, pois não usa arma e nem
entra na guerra do tráfico” (Zaluar, 1998, pg.225)
Talvez até pela menor rentabilidade, este tipo de delito tenha, ao longo dos anos,
reduzido o número de mulheres que o praticam. Enquanto em 1976, na pesquisa realizada
por Lemgruber com as presas da Penitenciária Talavera Bruce, o percentual relativo deste
delito foi de 35,1%, encontramos hoje em nosso estudo apenas 4% de mulheres condenadas
por furto. Os números indicam ainda uma possível migração das mulheres para delitos mais
lucratrivos como tráfico por exemplo.
É possível também que o furto seja um crime mais difícil de se reprimir, porque é
menos visível em função da própria experiência das mulheres no delito ou mesmo que o
próprio comércio, alvo preferencial deste tipo de crime, com sua segurança privada se
utilize de meios próprios, como a violência, para reprimi-lo, não chegando suas ocorrências
sequer ao registro policial, tanto menos à prisão e condenação das mulheres.
152
Para Lemgruber este tipo de crime é motivado por questões de ordem econômica,
afirmação que ela reforça quando identifica, no período por ela pesquisado, um crescimento
neste tipo de delito:
“Entre 1973 e 1976 houve um aumento significativo em relação à este tipo de
delito o que sem dúvida evidencia que, cada vez menos, as camadas mais baixas
da população conseguem resolver satisfatoriamente seus problemas de
subsistência” (Lemgruber, 1998. pg.60)
E, de fato, as três internas entrevistadas afirmaram terem sido motivadas a cometer
o delito por necessidades financeiras, embora nem sempre a inserção na criminalidade
tenha tido o mesmo motivo.
A primeira interna pesquisada praticava furtos desde os quinze anos, idade em que
saiu de casa em função de conflitos com a mãe que a rejeitava, particularmente por sua
homossexualidade. Neste caso a inserção na criminalidade teria sido motivada por
necessidades materiais básicas, já que precisava se sustentar. Embora furtasse, a interna
também chegou a trabalhar, mas a baixa escolaridade e a ausência de formação profissional
dificultaram sua inserção no mercado de trabalho, o que reforçou sua permanência na vida
criminosa.
A interna acredita ser cleptomaníaca, pois afirma sentir “necessidade” de furtar,
mesmo objetos sem valor e dos quais não precisa. Esta “necessidade” lhe provocaria
inclusive impressões físicas tais como sudorese, taquicardia, que cessam quando o delito é
cometido.
“Eu comecei através do furto por necessidade financeira, que eu saí de casa
quando eu tinha quinze anos e aí eu tinha necessidade de se tornar uma pessoa
independente. Eu meti uma parada onde que eu consegui muito dinheiro e investi
numa sociedade de uma merceariazinha que depois não deu certo. Às vezes,
mesmo tendo dinheiro eu furtava, aí quando eu fui presa eu descobri que eu era
cleptomaniaca porque eu pegava tudo que eu via, até aqui na prisão das colegas,
aí depois eu me arrependia e acabava devolvendo as coisas. A última vez na rua
foi por necessidade, porque eu já fui presa quatro vezes no mesmo artigo, aí
quando eu saí da prisão que eu tava já trabalhando, descobriram que eu era ex-
presidiária e me mandaram embora, aí como eu estava sem trabalhar fui morar
com o meu pai, só que minha mãe e meus irmãos tinham saído de casa, aí ficou
meu pai e quatro sobrinhos meus e eu vio que o dinheiro do meu pai não tava
dando pra manter as despesas que os meus sobrinhos e a minha filha estavam
passando necessidade, aí eu fiz isso aí pra conseguir grana.” (L. 38 anos).
153
A longa permanência da interna na criminalidade lhe rendeu diversas prisões, o que,
por conseguinte lhe dificultou nova inserção no mercado de trabalho, gerando um círculo
vicioso estigmatizante que impulsiona a interna à reincidência.
A segunda interna entrevistada, uma idosa, também condenada por furto, reforça a
idéia deste círculo vicioso, já que a mesma há mais de quarenta anos faz parte dele, sem
conseguir sair. Esta situação torna-se mais crítica com o envelhecer, à medida que o
mercado de trabalho cerra suas portas para essa mão de obra, principalmente quando não é
qualificada, como é o caso da interna, que desde jovem divide a sua vida entre os anos que
esteve na criminalidade e outros tantos em que esteve presa, tantos que perdeu as contas.
Essa múltipla exclusão por ser idosa, sem qualificação profissional, semi-analfabeta e ex-
presidiária, somada à necessidade de sobreviver, a cada nova saída da prisão lhe impulsiona
para a criminalidade.
A história de vida da interna é constituída de diversos fatores que foram se
entrecruzando e conduzindo-a para o caminho da criminalidade. A começar pela origem de
família pobre nordestina, mas permeada de afeto. Não freqüentou a escola e desde os doze
anos trabalhou para ajudar a família. A necessidade financeira teria motivado o
cometimento dos primeiros furtos de alimentos na feira aos quinze anos.
Mais tarde passou a furtar roupas em lojas, comida em supermercado e bolsas de
pessoas nas ruas, sobrevivendo com o dinheiro fruto do furto, já que por suas limitações de
escolaridade e formação profissional não conseguia se inserir no mercado de trabalho. Foi
presa aproximadamente vinte vezes e acredita que a falta de acolhimento da sociedade e sua
baixa escolaridade tenham motivado sua permanência no crime.
“Eu comecei por necessidade desde lá dos quinze anos (...)eu pegava uma coisa
assim na feira, até pra comer entendeu? Não era...Pegava as coisa pra comer,
um pedaço de carne, pão na padaria. É, eu já vinha na miséria e o único lugar
que eu me apoiava é enquanto eu tava roubando, porque pedindo ninguém dá.
Eu digo porque agora eu saí dessa cadeia em 2000 e procurei muita ajuda, quis
trabalhar em restaurante pra cozinhar, serviços de casa, é muito difícil. Agora
mesmo eu vou sair daqui, eu tô pedindo à Deus uma ajuda né, porque a senhora
imagina com a idade que eu tenho, sair daqui e depois...Deus me livre! (...) Eu só
vim me especializar em roubos assim aqui no Rio de Janeiro, depois que eu vim
embora. Eu ia pras loja, pegava umas roupas vendia pra comer, pra pagar
aluguel, ia no mercado, pegava um, às vezes abria a bolsa de uma pessoa,
pegava um dinheiro (...) o que me levou a isso foi falta de instrução, falta de
apoio também, foi o que me levou à isso, porque se eu fosse uma pessoa que fosse
educada com bom estudo, entendeu, tivesse uma boa índole, eu talvez não fosse
hoje o que eu sou.” (V. 58 anos).
154
A fala da interna reforça a hipótese de que este seria um tipo de crime praticado, em
grande parte, para suprir necessidades materiais básicas, conforme a afirmação de
Lemgruber que citamos anteriormente e confirma também o círculo vicioso do estigma para
aquelas que já são reincidentes e que praticamente elimina qualquer possibilidade de
reinserção social para essas pessoas, criando toda uma situação facilitadora para nova
prática de delitos.
A última interna entrevistada no delito de furto se diferencia das demais tanto na
motivação inicial quanto em diversos aspectos da história de vida. O tipo de delito e a
participação eram os mesmos das outras internas: furtava em lojas e agia sozinha.
Se o modus operandi é o mesmo das outras internas, a razão para o cometimento
deste tipo de delito, que de uma forma geral é a precariedade financeira, não foi o motivo
que levou S. a entrar para a criminalidade.
A interna foi criada em condições econômicas satisfatórias, usufruiu de bom
relacionamento familiar, sem problemas estruturais como drogadição, alcoolismo ou
violência doméstica. Teve ainda uma boa escolarização, formação profissional em nível
médio, na idade adulta sempre trabalhou e segundo seu relato, vivia uma vida regrada até
conhecer seu ex-companheiro que aparentemente tinha boas condições financeiras, mas que
era fruto de sua inserção na criminalidade como assaltante. A presa afirma que este fato, à
princípio, despertou sua curiosidade de saber como o crime funcionava e que junto com a
possibilidade de ter uma renda maior e adquirir bens que seu salário não proporcionava,
passou a participar dos assaltos junto com o companheiro e posteriormente, após o
falecimento do mesmo começou a furtar em lojas e especializou-se nesse tipo de delito.
Com a sua entrada para a criminalidade, afastou-se da família e passou a sobreviver com o
fruto dos delitos
“A minha participação era sozinha, eu agia sozinha, fazia furtos em lojas. Eu
entrava, colocava a mercadoria na sacola e trazia. Na época, era fantástico, eu
me sentia, eu chegava ali na loja, aí tinha o fiscal, o segurança e eu driblava
eles, era uma sensação muito boa, eu me sentia. Mas aí eu queria sempre mais,
sempre mais. O que me levou a entrar nessa foi a aventura Aventura, eu queria
conhecer o outro lado, o lado do crime, que eu levava uma vida certinha. Era a
possibilidade de ganhar dinheiro, de ter tudo do bom, de comprar coisas caras,
eu era compulsiva com isso de comprar. Eu queria, sabe, ter o dinheiro pra
comprar determinada coisa, ter poder de adquirir aquilo. Antes eu tinha que
155
trabalhar bastante para ter as coisas. Essa pessoa que eu larguei tudo, foi um
companheiro que era 157, mas eu não acredito que eu tenha entrado nessa por
causa de amor por ele, na verdade eu admirava como ele ganhava dinheiro fácil
e aí comecei a participar com ele, depois passei a fazer meus 155 sozinha, depois
que ele morreu assassinado. Mas eu comecei por vontade de conhecer o outro
lado da vida, o lado errado, saber como funcionava o mundo do crime. A
vontade surgiu depois que eu conheci esse rapaz, mas eu não sabia que ele fazia
isso, que ele assaltava, eu via que ele tinha boa vida, que tinha dinheiro. Aí
quando eu descobri , eu quis conhecer como essa coisa funcionava. Antes a
minha vida era só trabalho e estudo, não tinha tempo pro lazer, se eu quisesse ter
mais dinheiro tinha que trabalhar mais.”(S. 44 anos).
Nesse caso, o que parece ter motivado a interna, a princípio, a envolver-se com o
crime foi a vontade de sair daquela vida regrada que levava com possibilidades restritas e
se aventurar num mundo desconhecido, que se desvelava à seus olhos como alternativa para
ganhar mais dinheiro e poder consumir o que desejasse sem esforço de ter que trabalhar
muito pra isso.
O companheiro teve o papel de abrir-lhe as portas para esse mundo e uma vez
dentro dele sentia-se com “poder” ao driblar os seguranças das lojas, vivenciando uma
sensação que talvez não tivesse experimentado em outras instâncias de sua vida regulada.
A ambição e talvez a busca de reconhecimento, de “empoderamento” parecem ter sido
fatores que influenciaram a sua inserção e permanência na criminalidade.
Zaluar fala desse lado subjetivo do mundo do crime, que vai além da necessidade e
que desperta uma atração nos indivíduos, própria de sua dinâmica, tanto em função da
“ambição de ganhar muito”, da vontade de “encher o bolso de dinheiro”, do desejo de
“ganhar fácil”, ou seja “ficar rico”, entre outros valores subjetivos, que na verdade estão
afinados com os valores individualistas, tão enaltecidos em nossa sociedade
contemporânea.
“A adesão dos bandidos aos valores do individualismo moderno não pode
tampouco ser entendida como oposta aos valores do cidadão brasileiro comum.
É que na sociedade brasileira, especialmente nas elites dirigentes, os valores
culturais do individualismo e da moralidade rompem, de fato com as lealdades
pessoais e a dependência que constrangia as ações individuais. Mas esse
rompimento não se deu no contexto histórico da preocupação com o interesse
público nem com a luta pela igualdade da cidadania, nem tampouco com a
adesão das elites a uma ética do trabalho. Ao contrário, tudo indica que o
individualismo pós-moderno, marcado pelo declínio do homem público e a
privatização intimista do indivíduo, aqui deixou fortes marcas, onde os mais
imediatos interesses individuais são sublimados.” (Zaluar,1998, pg. 148 )
156
Assim, os valores pautam-se em lemas do tipo “levar vantagem em tudo” para se
conseguir a imagem de bem sucedido e “ganhar dinheiro fácil”, que sabemos, é
compartilhado e legitimado pelo próprio capitalismo brasileiro quando privilegia a
especulação e golpes financeiros ao invés de investir na produção.
Essa cultura individualista e isenta de moral é compartilhada pelos sujeitos não só
nas várias camadas sociais como também nos diferentes tipos de crimes, e um tipo de delito
em que esses valores são bastante presentes na sua origem é o peculato, crime caracterizado
pela apropriação efetuada por funcionário público, de dinheiro, valor ou qualquer outro
bem móvel, público ou particular de que tem a posse, em razão do cargo, ou desviá-lo em
proveito próprio ou alheio e valendo-se da facilidade que lhe proporciona a qualidade de
funcionário.
Entrevistamos uma interna condenada neste artigo que teria fraudado a Previdência
Social, entretanto apesar de reconhecer que tenha cometido o delito, nega a ilegalidade das
ações que advogava contra a Previdência Social, pois afirma que seus cálculos milionários
estavam corretos e que a Previdência é que postergava o pagamento desses processo que
eram antigos. Assume apenas ter dado propina para que os referidos processos fossem
pagos pela Previdência e resume neste ato sua responsabilidade no delito.
A interna que possuía vários escrtórios de advocacia, empregava toda a família e
trabalhava com questões previdenciárias. Relatou ter entrado no esquema de propinas,
pressionada pela máfia da Previdência e também porque, ao se descobrir com um câncer,
quis deixar a família amparada, em especial os dois filhos menores.
“Olha a minha participação, primeiro eu sei que eu, conscientemente, eu não
considero delito, porque os cálculos foram feitos dentro do que daquilo que a
sentença determinou. Quando o poder judiciário viu que ao longo dos anos,
aquilo que ele determinou, deu essa quantia estratosférica, tipo assim, vou tirar
meu corpo fora, passou a ser crime, criminalizaram meu cálculo, agora aonde
foi que eu errei? Foi que ninguém paga essa importância sem dar propina. O
meu erro singe-se pra receber eu tive que dar propina. Porque eu não me isento
totalmente de culpa mas não me acho totalmente culpada. Eu fui, eu também não
gosto desse termo fui levada, porque a gente raciocina não, é? Mas eu passei por
um historial de vida que eu tava muito fragilizada, eu tava com câncer, separada,
fui ameaçada de morte, por peitar várias coisas dentro do sistema, por não
concordar com o sistema, e o que me levou a fazer o jogo do sistema , no final,
foi esse câncer que eu descobri que tava assim de uma hora pra outra, com dois
filhos pequenos, eu não sabia a repercussão da minha doença, e já vinha lutando
contra o sistema, seguramente há 20 anos, que eu vinha tentando mudar o
sistema (...)Agora o que que me levou a isso? O que me levou a isso foi que eu
157
lutei durante quase 10 anos pra receber esses processos regularmente, de forma
regular, sem ter que dar propina pra ninguém, porque eles criam dificuldades
pra gerar facilidades. O que me levou a aceitar esse jogo, de 85% ficar para o
sistema, porque não ta com nenhum advogado, não ta comigo, foi exatamente o
câncer, porque eu achei que eu tava já no fim da vida e eu não sabia a
repercussão, não sabia se eu tinha metástase (...)quando pagou o último que deu
esses 6 bi e alguma coisa, eu tava saindo, ainda tava no tratamento de
quimioterapia, bastante debilitada, aí reuni os advogados, aí foi que eles
disseram: “ R., você para com esse negócio de querer mudar o mundo, você vai
continuar da mesma maneira.” Eu tinha feito uma reunião aí eu disse: gente, se
ninguém der propina ninguém vai receber, não tem como. Aí eles disseram: mas
também a gente não recebe, e realmente é a realidade, ou vc dava a propina e
recebia, ou vc não dava a propina e não recebia. Agora vc sabe lá o que é vc ter
um cliente no seu escritório doente, pobre, 14 , 15 anos, 10 anos esperando
receber um pagamento de um benefício que a justiça tinha reconhecido o direito,
que o direito era deles? Aí o que que acontece, a justiça deu ganho de causa e
eles tinham esses atrasados pra receber e eles não, durante 10 anos a questão
ganha e eles não depositaram esse dinheiro, não depositava, só que quando veio
o último cálculo, quando já não tinha mais por onde brigar, então sentou o grupo
da panela e disse: “ô R. nós pagamos, mas 85% é do sistema”, mesmo assim eu
resisti, quando eu fui pra essa reunião que eu disse que eu não pagava, não vou
pagar, os outros já tinham furado o sistema, porque uma coisa, se agente reúne e
fecha, então não tem que abrir, mas já foram por trás, cada qual com seu
chequezinho, então foi que chegou uma hora que eu estava esvaziada (...)Então é
por isso que eu não me acho culpada mas se a senhora me perguntar o que me
levou, eu fiz, eu só desisti, porque eu tenho 10 anos de luta, no final eu com duas
crianças pra criar que tinha 8 e 10 anos, eu com câncer, que apareceu assim do
nada, eu aí pensei: Não, eu não sei a repercussão disso, vou deixar essas
crianças no mundo sozinhas, separada, aí foi quando eu perguntei quanto é?, aí
teve um colega nosso disse: “R. bota o teu burrinho na sombra” eu ainda me
lembro dessa expressão, “dá o dinheiro dos caras, dá, aí o cliente também vai
tomar a cerveja, vai comprar a casa dele e você também ficar tranqüila, aí,
você não vai mudar o mundo, vai ser isso aí a vida toda, a gente vai pagar vai
dizer que não e vai vir outros que vão continuar pagando” R. 54 anos.
Como é possível perceber pelo relato da interna, mesmo tendo participado de um
esquema que desviou grandes quantias dos cofres públicos, ela não se considera totalmente
culpada, pois afirma que os valores pagos eram corretos se considerada a correção adotada
nos mesmos. O seu erro residiria apenas no fato de ter pago propina para uma suposta
máfia. Convencida de que sua ação não se constitui totalmente como crime, não possui
também total consciência de ter sido este um ato reprovável. Por serem o peculato e fraude
delitos que ocorrem majoritariamente entre pessoas de camadas mais privilegiadas da
sociedade, gerando grandes somas de dinheiro, não deixam de atribuir um certo “status” a
seu agente no mundo do crime, o que pudemos perceber na relação das presas com a
referida interna. E porque esses crimes são típicos dessas camadas sociais, incorrem na
impunidade, caminho para a destruição do estado de direito.
158
Não se pode esquecer que esses crimes de corrupção, são também causa do
empobrecimento da população e do aumento da desigualdade social. Quando a interna
movida pela intenção de deixar a família “protegida” financeiramente, decide se envolver
no esquema de corrupção, a ambição parece ser o grande mote dessa decisão, já que
envolve grandes quantias de dinheiro e usa como arma a astúcia ou estratagemas muito bem
engendrados, que se por um lado vão dar cobertura à sua família, por outro vão contribuir
para empobrecer o país.
A corrupção é um dos grandes entraves ao desenvolvimento econômico e à justiça
social no país e é o cidadão o principal agente promovedor deste mal e também o único
capaz de interrompê-lo, entretanto a ambição e o individualismo, tão comuns em nossos
dias, atropelam a honestidade e motivam este tipo de delito que vai se tornando trivial,
normal, sendo ainda incentivado pela impunidade e tolerância da própria sociedade, que
igualmente vai sendo influenciada pelo desejo de “levar vantagem em tudo”.
A análise que fizemos até aqui sobre os delitos cometidos pelas internas
entrevistadas da Penitenciária Talavera Bruce, nos mostra que não existe um fator
determinante específico para a criminalidade feminina, mas sim que a inserção das
mulheres no crime é influenciada por fatores sociais, econômicos, culturais e afetivos
diferentes que se perpassam, em diversos momentos, suas vidas e que estabelecem uma
conexão nefasta, levando-as ao cometimento do delito. Este pode ser um fato isolado ou
pode também se repetir sucessivas vezes; em ambos os casos, as leva, mais cedo ou mais
tarde para a prisão,instituição que se propõe a reinserir socialmente o indivíduo mas que na
prática se ocupa e se especializa na punição, infligida ao corpo e à alma dos indivíduos que
ali estão custodiados. É sobre a vivência das internas nesta instituição que trataremos agora.
159
Capítulo 8: Na prisão
Pretendemos aqui conhecer um pouco da vida na prisão que, sabe-se monótona e
regrada, dotada de códigos e organização social próprias que submete um grande número
de pessoas diferentes à atividades comuns, com horários estabelecidos, impostas por uma
administração e vigiadas e controladas por um corpo funcional.
Teoricamente essas atividades teriam como objetivo preparar o indivíduo para a
reinserção social fora da criminalidade e seriam alguns dos fatores decisivos para a
transformação do indivíduo criminoso, entretanto, há um hiato entre o que se objetiva com
essa política institucional e o resultado que se obtém de fato. Esse hiato é mediado também
pelas atividades oferecidas na prisão à população carcerária.
Para desvendar um pouco dessa dinâmica, abordaremos aqui algumas dessas
atividades como trabalho, escolarização, formação profissional, bem como atividades
culturais e esportivas disponíveis para as presas. A partir do levantamento de pontos fortes
e pontos fracos da prisão junto das presas, conheceremos a avaliação que fazem da
instituição.
Levando-se em consideração que o apoio familiar e a visita são também fatores
considerados decisivos para a reinserção social, posto que amenizam as dores do cárcere e
se constituem como um dos poucos elos das presas com a realidade extra muros
abordaremos as relações familiares após a condenação das internas.
O trabalho prisional
O trabalho na prisão foi adotado como método correcional desde o século XVI nos
países europeus, entretanto durante o século XIX um modelo utilizado na Pennsylvania,
que acreditava ser importante não adotar o trabalho prisional posto que para o preso poder
refletir sobre o delito e se “arrepender” do mesmo, reintegrando-se posteriormente à
sociedade era necessário que o detento ficasse totalmente isolado, influenciou vários países
160
da Europa, que passaram então a adotá-lo. Este sistema entretanto durou pouco tempo e
logo se inseriu novamente o trabalho nas prisões.
À princípio, objetivava-se com o trabalho prisional reduzir os custos de manutanção
dos presos e evitar a ociosidade e o envolvimento do preso em infrações dentro do cárcere,
posteriormente o trabalho passou a ser considerado como um dos fatores constitutivos do
tratamento penitenciário, que tinha como fim a "ressocialização" do preso.
No Brasil o trabalho prisional está previsto no Código Penal, no Regulamento do
Sistema Penitenciário, na Lei de Execução Penal (LEP)e nas Regras Mínimas para o
Tratamento do Preso no Brasil (RM), que é adotada pela ONU.
A Lei de Execução Penal prevê que: " o condenado à pena privativa de liberdade
está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidades"
Além da obrigatoriedade, o trabalho prisional deve levar em conta a habilitação,
condição pessoal e as necessidades futuras do preso, bem como as oportunidades
oferecidas pelo mercado de trabalho. A lei regulamenta ainda a jornada de trabalho que não
deve ser inferior à seis nem superior à oito horas diárias com direito à descanso nos
domingos e feriados, é previsto ainda um seguro contra acidentes de trabalho para o preso.
De acordo com a LEP, a remuneração mensal do preso não pode ser inferior à 3/4
do salário mínimo e atualmente varia de R$ 180,00 para aquele interno que é aprendiz, à R$
360,00 para os monitores. Estes valores, entretanto, não são pagos integralmente aos
presos, mas fracionado para atender as determinações da LEP que prevê a destinação de 1/4
do salário pago para as indenizações preconizadas na lei e estabelecidas na sentença e as
multas impostas na condenação, e os outros 3/4 são igualmente divididos entre o preso,
para seus gastos pessoais caso possua, para sua assistência e para o pecúlio de reserva que
visa ressarcir o Estado das despesas realizadas com a manutenção do preso.
O trabalho prisional se divide em remunerado e não remunerado, mas ambos dão
direito à remição de pena à proporção de três dias trabalhados para um dia remido, o que
significa que a cada três dias trabalhados o condenado tem direito a reduzir um dia de sua
pena.
No Rio de Janeiro todas as atividades laborativas remuneradas são geridas pela
Fuandação Santa Cabrini, um órgão estadual que trabalha em parceria com a Secretaria de
Estado de Administração Penitenciária. Essa Fundação é também responsável por abrir
161
novas frentes de trabalho nas unidades prisionais e administrar as folhas de presença e de
pagamento dos internos trabalhadores.
De acordo com as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil, da ONU,
" o trabalho prisional não deve possuir caráter aflitivo mas consistir-se em condição de
dignidade humana", o que significa dizer que ele não deve se se constituir como um castigo
mas sim como uma possibilidade profissional futura, que atuando de forma pedagógica, não
só combata a ociosidade como também transforme a relação do indivíduo com a instituição
trabalho. E assim enquanto função educativa, no sentido de recuperação social do indivíduo
delinqüente, deve ser priorizado no tratamento penitenciário.
Entretanto, para que os presos possam compreender esse valor intrínseco do
trabalho e transformar a relação desse indivíduo com essa instituição, é preciso também que
a administração compreenda o objetivo educativo do trabalho e a importância do mesmo no
projeto de reinserção social.
O que vemos na prática e através dos dados de nossa pesquisa não corrobora com
este objetivo do trabalho prisional. Se partirmos do pressuposto que o trabalho prisional é
uma obrigação do preso já temos um problema pois a quantidade de postos de trabalho
disponíveis é insuficiente para todas as presas,
Segundo informações da Direção da Penitenciária Talavera Bruce, menos da metade
da população carcerária da unidade exerce atividade laborativa. A diferença desse
percentual com o que encontramos, deve-se ao fato de que dentro do perfil traçado para as
entrevistas, as internas que estavam mais acessíveis à pesquisa eram majoritariamente
aquelas que trabalhavam pois permaneciam mais tempo no prédio central da administração,
onde ficávamos localizados realizando as entrevistas.
Ainda com base nos dados fornecidos pela direção, apenas 32% das internas que
trabalham na unidade, ou 48 presas, recebem remuneração e 52% ou 77 internas exercem
atividades profissionalizantes ou que exigem profissionalização.
Já entre as internas por nós entrevistadas, 18 exerciam atividades laborativas na
unidade e, independente da natureza da atividade, são chamadas de “Faxinas”. Destas
somente 6 recebiam remuneração pelo trabalho desempenhado na prisão. Aquelas que
trabalhavam em atividades profissionalizantes, ou que exigiam profissionalização
totalizavam 10, outras 4 exerciam funções administrativas nas diferentes seções da unidade,
162
como Psicologia e Educacional. As demais (4) desempenhavam atividades de baixa
qualificação como limpeza e conservação dos setores.
A escassez de postos de trabalho na prisão se torna ainda mais grave quando o
entendemos como um direito, à medida que favorece um benefício legal: a remição de
pena. Instalar atividades laborativas nas unidades prisionais é bastante vantajoso para os
empresários pois além de não se pagar pelo espaço utilizado para a instalação da atividade,
o trabalho prisional não está submetido ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), o que significa dizer que os presos não têm direito à férias, 13º salário e outros
benefícios que o trabalhador livre possui. Assim temos que mais da metade das presas da
Penitenciária Talavera Bruce estão excluídas deste benefício, porque não há um
investimento do Estado para a efetivação desta política e também da sociedade civil que
não se interessa em estabelecer parcerias, levando atividades laborativas para dentro das
prisões, mesmo levando-se em conta todas as vantagens para o empregador.
Para as presas o trabalho tem diversos significados, algumas o vêem como uma
forma de passar o tempo, que na prisão parece se arrastar, seria um meio de sair da
ociosidade, “ocupar a mente”, principalmente para aquelas que estão sem contato com os
familiares e não recebem visitas.
Nas situações de ausência de parentes, o trabalho adquire uma importância ainda
maior quando é remunerado, já que vai subsidiar os gastos pessoais das internas que não
são cobertos pelo Estado, ajudando a suprir as carências materiais que a própria instituição
teria o dever de resolver, como roupas e produtos de higiene que não são fornecidos para as
presas com a freqüência que seria necessária. O trabalho remunerado também é
extremamente importante para aquelas internas que precisam manter a família fora da
prisão.
Sabendo-se que grande parte das internas é oriunda das camadas mais pobres da
sociedade, podemos afirmar que para a maior parte dessa população, o trabalho prisional
como fonte de remuneração é de suma importância.
O trabalho na prisão também tem especial relevância para aquelas presas que
possuem penas altas, já que favorece a remição da pena. Nossa pesquisa revelou que a
maioria das internas da Penitenciária Talavera Bruce possui precárias condições sócio
econômicas, o que por si só já demanda a necessidade de trabalhos remunerados. No
163
entanto, do total das 314 internas, 148 internas (47,1%) trabalhavam na unidade e apenas
48 exerciam atividades remuneradas, o que representa tão somente 16% de toda a
população carcerária do Talavera Bruce.
Basendo-se neste cenário podemos afirmar que a ausência de remuneração no
trabalho prisional se constitui como um problema para as internas, entretanto a
remuneração inadequada para as atividades realizadas, que são inferiores às praticadas pelo
mercado de trabalho, também as desqualificam e acabam por gerar nas presas um
sentimento de insatisfação e devalorização. Assim, a relação que estabelecem ali com o
trabalho não é construtiva ou pedagógica, mas pautada na necessidade premente da
obtenção de recursos e na tentativa de preencher o tempo ocioso que também impulsiona
muitas internas a procurarem uma ocupação.
“Sua condição de existência dentro dos muros de uma prisão não sofre
mudanças significativas de acordo com o trabalho realizado. E mais ainda, o
preso vai perdendo a noção do relacionamento dele com o seu sustento. Isso é
fácil de explicar: aqui fora se você ganha mais ou menos você vive melhor ou
pior. Para o preso, se sua situação melhora ou piora isto na verdade nada tem a
ver com ele.” (Lemgruber, 1999, pg.138)
Assim, a interna não estabelece uma relação do trabalho e seu rendimento com
melhorias ou pioras nas condições de vida na prisão já que este fator está diretamente
vinculado à competência da administração.
Segundo Lemgruber “isso cria uma série de fatores de prisonização graves porque
modifica radicalmente a postura do sujeito perante a vida e tende a criar no preso uma
imagem mágica do mundo – tudo que acontece, acontece simplesmente.” (Lemgruber,
1999, pg. 138).
Quando pensamos ainda na função pedagógica do trabalho, os dados não são menos
decepcionante, pois 48% dos postos de trabalho oferecidos não dependem de qualificação
ou mesmo são capazes de qualificar as internas, o que se constitui num grande problema,
pois não consegue alcançar o objetivo de resgatar a relação das internas com a instituição
trabalho. Parece-nos então que a preocupação maior da instituição reside na necessidade
apenas de manter as presas ocupadas em qualquer atividade laborativa, independente de sua
natureza.
164
Perruci em sua pesquisa realizada com as presas da Colônia Penal Feminina de
Pernambuco, em 1983, detectou esta necessidade de ocupar as internas com qualquer
atividade laborativa, em detrimento do caráter pedagógico que a mesma deveria ter:
“A administração parece compreender que é melhor para a disciplina do
estabelecimento que as condenadas trabalhem, mas não há uma conscientização
da importância do trabalho como um dos elementos da pena privativa de
liberdade, nem tampouco do trabalho integrado num programa de recuperação
social do delinqüente.” (Perruci, 1983, pg. 126)
Assim, embora não se possa negar a influência positiva do trabalho para a
manutenção da disciplina e segurança na prissão, posto que mantém as presas ocupadas e
com menos tempo para articular planos de fuga ou rebelião, também seu objetivo não pode
se encerrar nessa função, pois se for utilizado apenas com este objetivo, “o trabalho torna-
se um meio e não um fim social para que deveria estar voltado o tratamento
penitenciário.” (Perruci, 1983, pg.128).
Quanto à escolha do campo de trabalho para as internas atuarem dentro da unidade,
embora elas tenham liberdade para solicitar sua inserção nessa ou naquela atividade
laborativa, cabe ao diretor e ao setor de segurança definirem quais atividades aquelas presas
irão desempenhar, segundo a confiança que inspirem à Direção, segundo às necessidades da
instituição, bem como as aptidões que as internas possuam, sendo os interesses pessoais das
internas, em geral, secundários nesta distribuição do trabalho.
Percebemos que quanto melhor é o nível cultural da interna e sua origem de classes
mais privilegiadas, melhores são as atividades nas quais as mesmas são inseridas e tanto
melhor é o tratamento dos funcionários com essas internas. Um exemplo desta situação é
que aquelas presas que não estão trabalhando ou estão inseridas em atividades menos
especializadas e mais precárias têm mais queixas dos funcionários, por outro lado a pouca
escolaridade das internas, geralmente não as estimula a quererem se inserir em atividades
que contribuam mais para o seu crescimento, esta não participação em atividades mais
construtivas, por outro lado as fazem se sentirem inferiores e diferentes das outras internas
ocasionando um isolamento ou a formação de grupos que são discriminados por aquelas
internas que estão em atividades mais privilegiadas, contraditoriamente as internas mais
limitadas culturalmente são as que deveriam ter mais incentivo e maior inserção em
atividades que contribuíssem positivamente para sua reinserção social.
165
Como as vagas para trabalho remunerado ou não são reduzidas e a carência entre as
presas é grande, muitas optam por trabalhar informalmente dentro da prisão em atividades
voltadas para as próprias presas e visando apenas o rendimento, já que essas atividades não
são reconhecidas pela instituição para efeito de remição de pena.
Assim esse tipo de trabalho informal se divide em dois grupos: os trabalhos
artesanais como tricô, crochê e bordados que as internas realizam nas próprias celas e
vendem para outras presas, funcionários e visitantes e o grupo da prestação de serviços
como lavagem de roupa, reformas e arrumação de celas, manicure, dentre outras. Pelo
caráter informal da atividade e de descontinuidade, já que algumas internas exercem essas
atividades eventualmente, não é possível precisar o número de internas que se ocupam
desse tipo de trabalho.
Algumas internas contrariamente, preferem não exercer atividades laborativas
porque não querem trabalhar sem remuneração, se beneficiando apenas da remição de pena
– geralmente aquelas que cumprem penas curtas – , outras porque julgam que o trabalho
não é remunerado adequadamente e há ainda aquelas que consideram o trabalho oferecido
desinteressante e que por isso trabalhar seria pra elas um castigo além da pena que já devem
cumprir.
“Ah não, não trabalho mais não, já trabalhei muito, ninguém me dá dinheiro,
quero trabalhar para ganhar dinheiro.Minha cadeia é alta, vou trabalhar de
faxina à toa, não tenho uma visita, tendo serviço que paga aqui dentro, não
posso...Adoro dinheiro.” Q. 30 anos.
Para Foucault, “o salário do trabalho penal não retribui uma produção, ele
funciona como motor e marca das transformações individuais; uma ficção jurídica, já que
não representa a “livre” cessão de uma força de trabalho, mas um artifício que se supõe
eficaz dentro das técnicas de correção” (Foucault, 1987, pg. 217)
O problema é que os salários praticados na prisão não são justos porque inexiste
uma legislação trabalhista que regule também essa questão, assim como outros direitos e
deveres, ficando as presas trabalhadoras totalmente desprotegidas neste sentido.
Uma outra questão acerca do trabalho prisional é que ele geralmente exclui a
possibilidade da presa estudar, pois o horário de trabalho em quase todas as atividades
disponíveis é das 9:00 às 17:00 horas, o que impossibilita a freqüência escolar. Como no
166
estudo a remição de pena é de seis dias estudados para um dia remido, as internas preferem
o trabalho ao estudo.
“Não trabalho, porque aqui pode trabalhar e estudar, mas não dá para fazer as
duas coisas em função do horário, porque se vc faz uma coisa não dá pra fazer a
outra, não dá pra conciliar, e também vaga para trabalho é difícil, aí eu preferi
ficar só com o estudo, preferi estudar, porque na época, aqui, eu tive que
escolher uma coisa ou outra.” S. 44 anos.
Em que pese toda esta problemática acerca do trabalho prisional, que na maioria dos
seus postos não depende de qualificação profissional e também não qualifica a presa, que
no final se constitui como exploração de mão de obra, haja vista os baixos salários
praticados – quando existem - e a ausência de direitos trabalhistas, a procura por trabalho é
grande e mesmo a maioria das presas não estando inserida em atividade laborativa, pode-se
afirmar que essa maioria tem interesse em trabalhar.
A verdade é que a prisão e toda a sua rotina monótona acaba por incentivar a
inserção em atividades laborativas, até de internas que antes, em liberdade, não
trabalhavam porque não queriam ou por não terem necessidade, sendo sustentadas por
terceiros. Na prisão a inserção de internas com estes perfis vai se dar seja pela precisão da
remuneração, seja pela remição de pena, seja para não permanecer no ócio alienador, ou
mesmo para garantir algumas facilidades e privilégios junto aos diversos setores e à
direção, como facilidade de atendimento pelos profissionais, e ainda melhor tratamento por
parte dos guardas e acesso a telefone, que legalmente é proibido.
Assim, com base nas entrevistas, podemos concluir que apesar de mais da metade
das internas não estarem exercendo atividades laborativas na prisão, a grande maioria tem
esse desejo, entretanto, não há postos de trabalho suficientes para a demanda das presas,
mesmo sendo o trabalho prisional quase sempre um exemplo de exploração de mão de obra
e majoritariamente composto por atividades que não formam as presas profissionalmente. O
que percebemos é que o trabalho prisional oferecido às internas é em sua maioria, dotado
de características monótonas e pouco criativas, além de totalmente desprovido de caráter
pedagógico e de significado, fatores importantes para romper com o cunho alienador que
instrumentaliza esse tipo de instituição repressiva e normatizadora. Alem disso, um novo
modelo de trabalho prisional que tivesse esses elementos, contribuiria para transformar as
representações das internas acerca do trabalho preparando-as para uma inserção
diferenciada na vida extra-muros.
167
A escola na prisão
A escolarização das internas é outro elemento constitutivo do tratamento
penitenciário batante importante para a reinserção social das detentas. A Penitenciária
Talavera Bruce possui uma escola estadual que oferece os ensinos fundamental e médio às
detentas, entretanto, a freqüência é bastante baixa.
Das internas entrevistadas, apenas 6 estavam estudando quando a pesquisa foi
realizada, resultado próximo do quantitativo geral de presas freqüentando a escola, que nos
foi informado pelo diretor da unidade. Os números refletem não só a existência de poucas
presas sendo escolarizadas, como também a grande a evasão escolar na prisão.
Um primeiro motivo para muitas internas não freqüentarem a escola é o fato de
estarem inseridas em atividades laborativas, o que como abordamos na seção anterior
referente ao trabalho pisional, é um fator excludente em relação ao estudo. Para se ter uma
idéia, entre as 18 internas entrevistadas que trabalham apenas uma freqüenta a escola, pois
a participação nas duas atividades é favorecida pelo seu horário de trabalho que é
diferenciado das demais presas, já que seu trabalho é servir o café da manhã para o coletivo
de presas e portanto começa a trabalhar bem mais cedo que as outras presas.
Embora a instituição repita o discurso da importância da escolarização para o
tratamento penitenciário , visando a reinserção social, este não se efetiva na prática pois
mesmo aquelas internas que não trabalham contratadas por nenhuma firma e por isso não
teriam uma rigidez maior de carga horária a cumprir e que são “apenas” as “faxinas” das
seções, trabalhando somente pela remição, sem remuneração, não são beneficiadas por uma
flexibilização do horário de forma a contemplar o estudo e o trabalho.
“Não estudo porque eu trabalho e isso ocupa todo o meu tempo.” C. 25 anos
“Eu não estudo porque o tempo não dá pra estudar.” G. 24 anos
“Não, eu estava estudando mas devido ao meu trabalho, só um dia só (de aula),
aí eu parei (...)Porque eu trabalho, só vou freqüentar o grupo escolar só na terça
e quinta, só dois dias de aula e mesmo assim eu estava fazendo,tava indo terça e
quinta mas aí a minha professora folgava na quinta feira aí eu não tinha
professor na quinta feira, aí mesmo assim eu ia e ficava sozinha na sala de aula
estudando, só com a professora, aí eu falei não pra mim ficar aqui na sala de
168
aula sentada sem a professora, que não tinha professora pra mim e melhor
parar.” Y. 35 anos.
Dessa forma, como no trabalho a remição da pena é maior do que no estudo, a
opção é quase sempre pela participação na atividade laborativa em detrimento da
escolarização.
Eu não, porque eu tenho que estudar um ano pra diminuir um mês de pena. Eu
prefiro trabalhar, porque eu trabalho três dias e ganho um dia a menos na minha
pena.” M. 24 anos.
Existe ainda uma cultura bastante arraigada entre as internas desde a vida pregressa
à prisão, da priorização do trabalho e não da escola. Lembremos que esta foi a realidade da
infância e adolescência de muitas presas: a necessidade material levou-as ao abandono da
escola, uma escola que também não era acolhedora, não era estimulante. Esta é a visão que
várias internas possuem das instituições de ensino e dessa forma não se sentem estimuladas
a retornar ao estudo, tanto pelas representações que já trazem da escola, como também pela
necessidade material que se reproduz na prisão, levando as internas a mais uma vez
optarem pelo trabalho.
“Ah eu tava estudando, já saí da escola, não quero saber de estudo. Não ganha
dinheiro, eu quero coisa que ganhe dinheiro. Ah, já to velha já, já to com trinta
anos vou aprender mais o que? Quer lição pior da vida essa?” Q. 30 anos
“Não senhora. Eu estudava, aí eu parei por causa que aí eu peguei uma lavagem
de roupa da menina aqui aí eu lavo a roupa dela, aí então eu parei por causa da
faxina e da lavagem de roupa. É com esse meio dessa roupa que eu ganho meu
trocado aqui dentro pra eu ir me mantendo.” Z. 45 anos
A visão da escola desestimulante não se limita somente aquelas internas que com
esta pré-noção optam por não estudar, mas também é compartilhada por algumas presas que
já estudaram na prisão e não se sentiram estimuladas à continuar, motivo, talvez, da evasão
escolar também no cárcere.
“Não, eu até já estudei mas parei porque a remissão pra quem estuda é de 6
dias trabalhados por 1, aí o trabalho é melhor porque é 3 por 1, além disso eu
acho que as aulas desestimulam porque, é muito assim, parece mais aula pra
criança e não pra adultos.” B. 37 anos.
“Não, porque eu não gosto dessa escola aqui da unidade. Eu acho chato.” L. 38
anos.
169
“Não, porque eu fui estudar uma época aí, logo assim que eu cheguei, mas não
gostei não porque é muita conversação dentro da sala, isso estressa aí eu preferi
sair.” X. 45 anos.
“O colégio ta precisando haver um estímulo mais pras meninas irem pra escola,
(...)ela (a escola) não consegue motivar porque ela está, essa aluna ela está com
a auto-estima baixa, com problemas psicológicos profundos, sabe de ver uma
filha que foi estuprada, de uma que está com dez anos grávida, e ela ta aqui,
enfim, sabe, então acho que tem que ter suporte psicológico” R. 54 anos
Esta leitura da interna é interessante e corroborada pela fala de outras que alegam
“não ter cabeça” para estudar:
“Não, porque eu não tenho mais vontade, a cabeça não dá mais para estudar.”
N. 69 anos.
“Não. Eu não quero, não estou com o psicológico pra isso não, não to não, não
tenho cabeça, não. Se eu falar que tenho, não tenho, não adianta eu ir pra lá e
ficar...Já não sou muito boa na coisa, aí ficar lá não adianta né? Eu tenho que
fazer o que eu gosto.” P. 29 anos.
Lemgruber também detectou o problema do despreparo da escola para mobilizar
essa população tão específica:
“ A diretora vê no pouco interesse das alunas a causa principal do fracasso da
escola mas ela mesma diz que as professoras são “fracas” e não são dinâmicas,
(...) ora dado tal quadro, seria difícil esperar maior participação das internas.
Aulas monótonas, professores desinteressados, tudo influi para que a escola
exerça atração mínima sobre as presas. Assim a escola, que teoricamente seria
um veículo de mobilidade social não surte os efeitos esperados. Currículos
tradicionais aliados a um quadro de professores que aparentemente não estão
treinados para o desempenho de suas tarefas, jamais provocarão atitudes
positivas por parte das internas” (Lemgruber, 1999, pg. 40)
O mais cruel de todo esse quadro é o fato de haver pessoas que só tem a
possibilidade de voltar a estudar, ou mesmo de freqüentar a escola pela primeira vez em
suas vidas dentro de uma prisão. Esse é o reflexo da exclusão sofrida por essas mulheres
em sua infância e adolescência. O modelo atual de escola na prisão também não tem se
empenhado para promover a inclusão das detentas, além disso o sistema prisional agrava
essa deficiência quando dificulta o acesso das presas à escolarização.
É preciso que a escola no cárcere contribua para o resgate da auto-estima e da
cidadania das presas e que se transforme num instrumento de mobilidade social, como bem
170
sinalizado por Lemgruber. Talvez se sentindo cidadãs, muitas internas sejam capazes de
mudar seus destinos.
Atividades culturais, esportivas e profissionalização.
O tratamento penal, visando a reinserção social, também deve oferecer a presa
atividades culturais, de lazer, esportivas e de profissionalização.
Entretanto, se na prisão o trabalho é escasso e o estudo inconsistente, as atividades
culturais, esportivas e os cursos profissionalizantes são ainda mais reduzidos, talvez por
serem considerados desnecessários, ou mesmo vistos como regalias ou fonte de prazer para
as detentas, contrariando assim a lógica punitiva da instituição.
Esta visão descolada do caráter e da importância pedagógica que, também, essas
atividades devem ter, é compartilhada por muito funcionários do sistema prisional que
preferem a adoção de mecanismos de repressão a fim de manter a passividade dos presos,
assegurando assim a segurança da unidade.
Esta postura inibe iniciativas de atividades com as detentas, externas ao sistema
penitenciário, que poderiam ser bastante construtivas e criativas. Tal limitação resulta em
reduzidas ofertas de atividades culturais, esportivas e profissionalizantes na unidade, além
do descompromisso com a natureza e objetivo das mesmas.
Assim, as atividades disponíveis na unidade acabam nem sempre contribuindo de
forma efetiva para a vida extra-muros das internas e servindo apenas como um
preenchimento para o vazio de suas vidas naquele momento.
De qualquer forma, na Penitenciária Talavera Bruce, a administração tem se
mostrado aberta e sensível para a promoção dessas atividades e hoje oferece aulas de
modelagem e corte e costura, elétrica, teatro, pintura, bateria e volley. A adesão ainda é
pequena e dentro do universo do Talavera Bruce apenas 100 internas freqüentam essas
atividades
Entre as internas que entrevistamos, 42% participam de atividades culturais e
esportivas, sendo que 30% freqüentam atividades culturais e 12% as esportivas. Também é
de 42% o percentual de internas entrevistadas que fizeram ou estão fazendo cursos
profissionalizantes.
171
A justificativa das internas para não participarem dos cursos profissionalizantes é
em sua maioria pela falta de interesse em participar dos mesmos, o que parece indicar que
os cursos não atendem aos interesses das presas e além disso são oferecidos sem levantar a
necessidade do mercado do trabalho. Assim, a visão que norteia a implantação dos cursos
não é a do preparo das internas para uma inserção digna no mundo do trabalho, mas a
ocupação do tempo ocioso das presas a qualquer custo. Algumas ainda dizem não
freqüentar os cursos profissionalizantes, por priorizarem o trabalho e portanto não terem
como conciliar as duas atividades.
“Não, nunca fiz, nunca me interessei. Primeiro, porque eu nunca me interessei, e
segundo quando eu cheguei no Nelson Hungria, eu cheguei no dia 31 de janeiro
de 96, então seis meses após, era reinauguração, a cadeia não tinha nada, não
tinha sala de psicólogo, não tinha social, não tínhamos nada, era apenas uma
inspetora, aI sala da inspetoria e o gabinete da diretora que era dona Creusa na
época, então logo que a cadeia começou a ser reativada, cantina e tudo eu fui
trabalhar na cantina então eu trabalhava, pegava de 8 horas da manhã,ou às
vezes 9 horas, terminava o café e ia pra lá, e só saía mesmo 5 horas 5 e meia da
tarde. Então aquilo me prendia muito eu trabalhei lá durante 6 anos da minha
vida, então eu não tinha tempo pra outra atividade.” X. 45 anos.
O motivo informado pela maioria das internas entrevistadas (14), para justificar a
não participação em atividades culturais ou esportivas, também é não gostar de tais
atividades.
“Não senhora, ah eu não sou muito chegada à esse negócio esportivo não, não
sou muito chegada não, nem teatro não senhora.” Z. 45 anos.
Outras, além de não demonstrarem interesse pelas atividades também parecem não
querer participar muito da dinâmica da prisão e criam seus próprios modos de adaptação à
sua condição de presidiária.
“Não, porque eu não gosto, não gosto muito de me envolver não sabe? Isso aqui
é um lugar que vc vê, olha, observa, fica quietinha que é a melhor coisa que vc
faz, se se envolver muito só dá problema, as pessoas te interpretam muito mal
nesse lugar.” P. 29 anos
“Nenhuma, por isso que eu to gorda assim que nem um sapo. Não tem nada que
me interesse aqui, senhora, verdade de coração, nada, só o que eu quero mas eu
sei que não é agora, mas eu não boto na minha mente? É ir embora.” Q. 30
anos.
172
A fala de outra interna mostra que pode haver um critério de seleção enviesado,
criado pelas próprias presas responsáveis por organizar as atividades culturais e que
possuem certa autonomia para tomada de decisões e legitimada pela instituição, qual seja,
priorizar a participação das internas que têm penas mais altas. Sabendo-se que há divisões
de grupos entre as internas, outros critérios podem também existir e serem velados, tais
como pertencer à este ou àquele grupo de internas para ser inserida em determinada
atividade, ou ser indicada por funcionário ou mesmo outra presa “de confiança”.
“Não, porque eu já estou saindo, eu quis entrar pro ensaio da bateria mas não
deixaram porque eu já to saindo, é o que eu falo: “presa atrasa presa”.” A. 22
anos.
Também em relação a não participar de curso profissionalizante, a interna A.
participa de curso profissionalizante, ela fornece a mesma justificativa:
“Não, por isso, porque a minha cadeia é baixa e aí quem tem cadeia baixa não
participa muito” A. 22 anos
Coincidentemente ou não com a fala da interna A., apenas duas internas
entrevistadas, que freqüentam atividades culturais ou esportivas possuem pena inferior a
quatro anos, esse mesmo quantitativo também representa o número de internas que
participam ou participaram de cursos profissionalizantes e que possuem penas baixas.
Como vemos, a inserção em atividades culturais, esportivas e em cursos
profissionalizantes é mediada também por questões externas à política prisional, como a
interferência de internas que coordenam tais atividades e que a partir de critérios subjetivos
próprios filtram as participantes. Esta situação reforça não só a divisão da massa carcerária
em grupos como também reforça a exclusão de indivíduos que já são excluídos, além de
alimentar rivalidades e insatisfações naquelas internas que tem o seu acesso a tais
atividades impedido.
“ Do lado da administração, as “elites” servem como fator desintegrador do
conjunto social das presas, Tratadas igualitariamente elas teriam reforçados os
sentimentos de solidariedade através de situações comuns e que poderiam
representar fator de autonomia, possibilitando até mesmo rebeldias declaradas
contra os aspectos repressores da prisão, representados principalmente pela
administração. Nesse sentido, aliás, o esquema de controle dentro da
penitenciária reproduz as formas de dominação do mundo exterior, embora, aqui
173
permeada e conduzida pela coercibilidade mais do que evidente da pena.
“Dividir para reinar”, pois, formando “elites” e diluindo ou escamoteando o
interesse comum das presas” (Perruci, 1983, pg. 121)
Este controle escamoteado e de certa forma legitimado por algumas presas, pode
gerar conflitos disciplinares e problemas na convivência entre as internas, motivados por
insatisfações e até mesmo injustiças, assim, essas “elites” de presas não são positivas pois
não são eleitas pelo coletivo de internas mas impostas de cima para baixo significando uma
representação da administração entre as presas.
A divulgação das atividades oferecidas na unidade não parece ser muito precária, já
que o jornal Só Isso sempre o faz, assim um dos grandes nós da questão parece ser a
própria exclusão que algumas presas sofrem pelas próprias internas, fundada em motivos
diversos, seja por terem uma pena menor ou por terem pouca instrução ou por serem
consideradas rebeldes, o que é acatado e legitimado pelos custodiadores. Um indicativo
desse fato é que também nas atividades laborativas apenas 28% das internas entrevistadas
possui penas baixas.
Segundo Lemgruber, essa exclusão ou falta de solidariedade entre os presos é
comum nas populações carcerárias e na prisão feminina, principalmente:
“Em qualquer população de presos a primeira característica que ressalta é a
ausência de solidariedade completa, resultado das condições próprias da vida
cativa, também estimulada pela administração, para quem não interessa uma
população coesa, pelas dificuldades que apresentaria em relação ao controle que
se deseja exercer (...) esperteza e desonestidade superam a simpatia e a
cooperação...é o mundo do “eu”, “mim” e “meu”, antes do “nosso”, “deles” e
“dele”.(Lemgruber, 1999, pg.91)
Assim a individualidade estaria acima do coletivismo e o desejo de manter essa
individualidade intacta, sem se “misturar” com outras presas, é percebido na fala de
algumas internas que discriminam as outras presas e falam de si como se não pertencessem
àquele coletivo. Como referia Goffman (1987), é o “temor da contaminação”, uma
contaminação física, para alguns, como o medo de adoecer compartilhando banheiros ou
utensílios e a contaminação simbólica, onde a presa embora saiba de sua condição de
detenta não suporta conviver com outras presas às quais considera inferiores. Ainda
segundo Lemgruber (1999), a própria noção de que as presas devem ser separadas por
174
delito ou por periculosidade e uma amostra do desejo de criar limites, evitando a
contaminação simbólica.
Esta análise pode ser comprovada através da fala de algumas internas quando fazem
a avaliação da unidade elegendo pontos fortes e pontos fracos e consideram as próprias
presas, ou a mistura de presas independente do delito como problemas na unidade. É
importante sinalizar que nas entrevistas, as internas puderam eleger mais de um ponto forte
e mais de um ponto fraco.
“A comida...tudo, eu tá aqui presa, as amizades aqui, porque vc tem que saber
quem é quem, e também o SOE, quando tem alguém passando mal eles demoram
pra vim buscar, pra falar a verdade é o ó aqui dentro.” A. 22 anos.
A mistura das presas de delitos diferentes e de presas perigosas com presas
que não são perigosas, e também a comida que é ruim.” C. 25 anos.
Às vezes são as presas, que não pensam igual, não agem igual e também o
dentista” T. 51 anos
“As internas, só as internas, a diferença é muito grande. Não que eu tenha
problemas, não porque eu me adapto a qualquer local, tanto na alta sociedade
como na baixa sociedade, tanto na zona sul como na favela, pra mim é a mesma
coisa, mas acho que é o pensamento delas, né, tem presa aqui que foi presa
porque roubou fralda, porque roubou comida, então é uma forma de pensar
muito diferente, as internas mesmo.” W. 38 anos.
“Pra mim na unidade eu acho que de ruim é essas garotas novas que chega aí,
quer fazer mil coisas, faz coisas erradas, que pra mim isso já me deixa até assim
meio a parte nervosa, porque eu no meu modo de pensar, no meu ponto de vista,
eu mesmo que que fosse uma pessoa nova, porque hoje eu to com 45 anos, eu
procurava evitar de não fazer aquela barbela pra não ir parar numa tranca
cheia. Delas querer arrumar problema, querer agredir guarda, tem umas que são
metida a valente aí quer pegar pelo gogó da guarda e isso já me deixa, eu acho
muito ruim, muito ruim, mas na parte onde eu, no pavilhão onde eu moro, graças
à Deus é um lugar calmo (...) É isso, não pra mim não tem mais nada de ruim,
pra mim não tem mais nada de ruim.” Z. 45 anos.
Essas falas revelam , ainda, que a separação entre presas existe e fisicamente é
efetuada pela própria administração, que mantém , por exemplo, as presas consideradas
“rebeldes” nos pavihões onde as celas são coletivas e aquelas de bom comportamento em
cubículos individuais.
Esta divisão também detectada por Perruci em sua pesquisa com as presas de
Recife:
175
Aqui se coloca, justamente a formação de “elites” prisionais, representadas
pelas presas de bom comportamento ou, simplesmente simpáticas à
administração, “marginalizando” as demais, que por um motivo ou outro, não
obtém certos privilégios. Esse tipo de estratificação carcerária, quase dividindo
o conjunto das presas em “classes artificiais”, cria, ao mesmo tempo, facilidades
e dificuldades na vida de uma prisão” (Perruci,1983, pg. 121)
Se na prisão feminina não existe a separação das presas por facções, à exemplo do
que acontece com a população carcerária masculina, percebe-se um clara distribuição do
efetivo carcerário feminino dentro da unidade a partir de parâmetros como comportamento
da presa e sua inserção em atividades de tratamento penitenciário, em especial o trabalho.
Assim quando indicam os pontos fracos da unidade a categoria “presas” aparece em
segundo lugar entre os problemas elegidos o que demonstra uma fragmentação do coletivo
e presença do sentimento do não pertencimento à este grupo. A principal queixa refere-se á
comida servida na uniade. A falta de trabalho , em especial o trabalho remunerado e as
brigas entre as internas também são problemas bastante cotados entre as presas
entrevistadas. Os demais pontos fracos são bastante pulverizados e podem estar mais
vinculados a experiências pessoais de cada interna, e embora existam em menor escala são
reais e não devem ser desconsiderados. Se agrupamos estes pontos em grandes grupos
teremos os seguintes grupos: “serviços e assistência” , “tratamento interpessoal dispensado
às presas” e “convivência no coletivo carcerário” .
No grupo de “serviços e assistência” foram citados problemas como falta de cursos
na unidade, falta de materiais de higiene e de medicamentos, atendimento médico,
psicologia, dentista, serviço social, direção, falta de incentivo para o estudo, necessidade de
reformas físicas na unidade e demora na emissão de carteira de visitante. Este grupo detém
a maior parte dos pontos, representando 33% do total de pontos fracos informados pelas
internas. Se incluirmos aí as queixas à comida servida na unidade e falta de trabalho esse
percentual sobe para 54%.
Agrupando em “tratamento dispensado às presas” as queixas de falta de respeito dos
funcionários com as internas, desigualdade de direitos entre as presas e proibição de visita
de pessoa amiga, teremos 10% do total de reclamações.
As queixas sobre mistura das presas de diferentes delitos, possibilidade de rebeliões,
brigas entre as internas e as próprias presas, reunidas no grupo e “convivência no coletivo
carcerário” totalizam 23% dos pontos fracos.
176
Um ponto fraco mais subjetivo que é estar presa, representa apenas 4% do total de
queixas, mas é importante ser destacado, por ser um fator angustiante para algumas
internas. Entre as internas entrevistadas, quatro não quiseram opinar ou disseram não existir
pontos fracos na unidade, o que pode significar temor de se comprometer e sofrer
represálias.
“Eu eu acho assim muito fracassado aqui a parte da social e das psicólogas, que
acontece muitas coisas na unidade por falta de assim de entrosamento entre as
psicólogas, as sociais da casa e as presas, por quê? Eu acho que um trabalho, eu
no meu modo de pensar, um trabalho social é tipo assim, se uma presa precisa
falar com um familiar ou que tem o endereço, que tem o telefone e que ta com
problema, eu acharia que ela teria que se empenhar mais nesse papel de
procurar saber, porque eu acho que o papel de uma social no meu ponto de vista,
pelos anos que eu venho vendo assim na cadeia, é trabalhar em cima disso, e
pela parte da psicóloga eu acho que a psicóloga deveria chamar as pessoas,
porque por exemplo se uma coleguinha ta com um problema porque é brigona,
faz, acontece e tal, e ta sempre assim maltratando a outra coleguinha, eu acho
que a psicóloga tinha que chamar pra saber o que que ta acontecendo, porque se
ela ta fazendo isso algum problema ela tem, porque um a pessoa normal não vai
fazer loucura, então ela tem alguma coisa.” U. 51 anos
“A comida, o trabalho, porque deveria ter mais opções de trabalho
remunerado, os amigos agora não podem mais visitar porque acabou o direito à
visita de pessoa amiga e aí às vezes fica difícil porque a família às vezes tem
dificuldade de entrar.” S. 44 anos
“Rebelião. Eu já passei por duas. Quando fala que vai ter ou que ta no clima, eu
já, meus nervos ficam à flor da pele. Briga, confusão, isso me deixa tensa, porque
o resto, não tenho nada que falar.” F. 35 anos
Com relação aos pontos fortes, o que mais se destaca é a satisfação com a direção da
unidade, bem como com a escola. Também foram apontados como pontos positivos na
unidade as atividades oferecidas, em especial os eventos culturais e também o fato ds
internas não permanecerem trancadas em suas celas durante todo o dia.
Se agruparmos também os pontos fortes teremos um total de 20 presas elogiando o
grupo de serviços, que incluem a escola, a existência de cultos evangélicos e das demais
religiões na unidade, a enfermaria, a direção, o setor de segurança, a existência de cubículos
individuais, a existência de atividades culturais e esportivas, estar trabalhando, a Seção
Educacional, o Setor de Valores, a Defensoria em exercício na unidade, o Serviço Social e
o dentista.
O gupo de “tratamento dispensado às internas”, foi elogiado por apenas 4 internas e
dizem respeito ao tratamento dado pelas chefias dos setores e por funcionários, bem como o
fato de não permanecerem trancadas na cela por todo o dia.
177
Com relação à “convivência entre as presas” apenas uma interna citou o
“aprendizado do convívio na prisão” como um ponto forte. Outra interna citou uma questão
mais subjetiva como um ponto positivo na unidade: o dia de entrega das correspondências.
Apenas uma presa não opinou e outra afirmou que tudo na unidade é bom em sua
avaliação.
“ A disciplina que a direção impõe que eu acho que é justa, porque se a guarda
ou a presa agredirem vão ser punidas legalmente e não de outra forma, a
direção também é atenciosa, a Segurança também é um ponto positivo, porqu
aqui a família é respeitada na visita.” B. 37 anos.
“ As presas aqui tem certa liberdade, porque não ficam trancadas o tempo todo
e também o fato de terem diversas religiões dentro da unidade” C. 25 anos
“É que vc tem espaço, vc tem até certo ponto a tua individualidade respeitada,
porque vc tem a tua cela, né, a direção em si, (...) Essa coisa de vc poder sair,
entrar a hora que vc quer pra dentro da tua cela, isso é muito positivo. Muito.”
R. 54 anos
“ Os pontos positivos é a escola, é a jurídica da casa, a assistência médica, isso
tudo eu sou muito bem tratada.” V. 58 anos
Para complementar a avaliação que fazem da prisão, as internas também deram
sugestões sobre o que achavam que poderia ser feito na unidade para melhorar as condições
de cumprimento da pena.
As respostas mais freqüentes dizem respeito a necessidade de ter mais atividades
ligadas ao tratamento penitenciário, principalmente mais postos de trabalho na unidade,
tanto para efeitos de remição de pena quanto os remunerados, que auxiliam financeiramente
as presas. Dentro dessa perspectiva elas consideram importante que haja mais lazer, mais
cursos profissionalizantes e mais incentivo para a escolarização, além da possibilidade de
poderem sair para cursar a universidade.
Melhorias na assistência jurídica da unidade, como maior freqüência no
atendimento e atuação mais abrangente, também são solicitações das internas bastante
recorrentes e que também se constituem como um serviço a ser prestado pelo sistema, bem
como um direito das presas.
Também foi sugerido melhoria no transporte das presas, realizado, pelo Serviço de
Operações Especiais (SOE), que segundo as internas chega a ser desumano, dadas as
condições precárias das viaturas que nunca estão com o sistema de ventilação da caçamba
178
funcionando e sugerem mudanças também no tratamento dado pelos agentes que fazem o
transporte, que consideram rudes.
Assim como nos ponto críticos e pontos fortes, algumas internas optaram por não
opinar e uma presa reforçou que o grande problema da prisão são as presas, não existindo
portanto sugestão que pudesse melhorar tal problema.
Se analisarmos em conjunto os pontos fracos, pontos fortes e as sugestões das
internas, veremos que as condições no sistema penitenciário estão distantes de serem ideais
e que a a grande deficiência da unidade e por conseguinte o âmbito onde as internas
solicitam mais mudanças é nos serviços oferecidos pelo sistema, bem como nas atividades
ligadas ao tratamento penitenciário que são o trabalho, a profissionalização, escolarização e
lazer.
Este cenário é um reflexo da ausência de uma política penitenciária que privilegie as
atividades voltadas para a reinserção social, mas dentro de uma perspectiva pedagógica
com ações que favorecessem a elevação da auto-estima, o aprimoramento pessoal, através
da readaptação profissional ou do aprendizado de uma profissão, por exemplo, que não seja
de qualquer natureza mas que esteja afinada com as aptidões e interesses das internas, bem
como com as necessidades do mercado de trabalho, que possa infundir responsabilidade e
obrigações, que seja capaz de resgatar a cidadania dessas mulheres e que não seja
desumana nem mortificante mas sim libertadora.
A relação com a família na prisão
A prisão representa na vida das mulheres não só a perda da liberdade, mas uma
gama de privações e cisões impostas pelas duras rotinas e normatizações que subjugam não
só a interna como também seus familiares.
Nesta roda viva, movida por ventos da disciplina e da opressão, da dor e do
desamor, da carência e da distância, muitos familiares se tornam ausentes ao longo do
tempo e deixam de assistir e apoiar as mulheres, que agora se encontram reclusas.
Os motivos do afastamento são diversos: a dificuldade financeira para visitar a filha,
mãe, companheira, tia ou irmã que está presa e muitas vezes ainda cuidar da prole da
interna que ficou sob a responsabilidade da família. A distância é outro motivo recorrente,
179
quando os familiares residem em outras cidades; o trabalho que não favorece ao familiar
comparecer à visita; a falta de tempo, pois o tempo não para e há outras prioridades na vida
a se atender. Assim as visitas vão escasseando e para algumas internas restam o consolo de
algumas linhas nas correspondências enviadas ou mais eventualmente ainda algumas
poucas e rápidas palavras trocadas ao telefone, por uma concessão da administração. Essa é
a realidade de grande parte, ou podemos mesmo afirmar, da maioria das presas da
Penitenciária Talavera Bruce.
De acordo com os dados fornecidos pelo diretor da unidade quando realizamos a
pesquisa, havia 215 internas com visitantes cadastrados, mas apenas 50, aproximadamente,
recebiam visitas regularmente.
Entre as presas que entrevistamos, 31% ou oito internas não recebe visitas, destas,
três presas não possuem qualquer contato com a família, embora os familiares existam e
apenas em um caso o motivo do afastamento é financeiro, as demais se relacionam apenas
por cartas e telefonemas eventuais.
Das 18 internas que afirmaram receber visitas, apenas 28% ou cinco presas
possuem visitação freqüente, ou seja, são visitadas entre uma e três vezes por semana.
Aquelas que recebem visita dos familiares apenas duas vezes no mês totalizam 9 internas,
as demais recebem visitas ainda com menor freqüência: entre uma à duas vezes ao ano. Em
que pese haver visitação, muitas destas internas referem afastamento de familiares e
transformação no trato dispensado pela família à presa.
O fato é que segundo seus relatos, as relações familiares modificam,
independentemente do papel que a interna desempenhava na família. E embora haja alguns
relatos de melhoria nas relações familiares, em função, por exemplo, de mais união, muitas
ainda se queixam de abandono e distanciamento de alguns familiares.
Apenas 31% ou oito internas relataram melhoria nas relações familiares,
ocasionada, principalmente pela maior união dos integrantes, promovida após a prisão da
interna, ou pela aproximação de parentes que antes eram afastados da presa. Mas mesmo
em alguns desses casos em que a relação familiar se recobra, há concomitantemente o
registro de afastamento de algum membro da família, principalmente irmãos e
companheiros, que parece em sua maioria ser motivado por questões subjetivas morais, de
reprovação à conduta da interna, ou por não se estar disposto a acompanhar a interna
180
durante o tempo de permanência na prisão. Outras 12% ou três internas informaram que as
relações familiares não mudaram, entretanto uma delas já tinha relação distante com a
família e permaneceram afastados após a prisão, tendo contato apenas por telefone e cartas.
O maior percentual, 57%, ou quinze internas, refere afastamento dos familiares ou
abandono total, que é o caso de seis destas presas.
Uma questão interessante é o abandono pelos companheiros que é bastante comum.
Entre as dez internas que residiam com o companheiro antes de serem presas, quatro foram
abandonadas pelos mesmos, dois tiveram os companheiros assassinados e outras três os
mesmo encontram-se presos. Destas três, apenas duas usufruem visita íntima com os
companheiros e a outra se relaciona apenas por carta com o marido.
Algumas famílias, que possuíam uma relação muito mais utilitarista do que afetiva
com as internas também costumam abandoná-las na prisão, já que a presa não pode mais
provê-las.
“Ah, eles ficaram distantes de mim , se afastaram, me abandonaram na cadeia.
Quando eu tava na rua eu me virava e ajudava a todo mundo, aí quando eu vim
pra cá e parei de ajudar, aí eu fui abandonada.” A. 22 anos
“Minhas relações agora é nenhuma, porque eu não tenho contato com a minha
mãe que nem me procura, só o meu padrasto e o meu filho que eu tenho uma
ótima relação. Da primeira vez a minha mãe até ficou mais presente, porque eu
tinha muito dinheiro e aí tinha o interesse em quem iria ficar com o dinheiro. Na
segunda eu só recebi carta do meu padrasto e agora ele é que vem, traz artigos
de higiene, mas a minha mãe quer que eu morra. Atualmente ela fica com meus
filhos e não deixa eles virem.” D. 38 anos
“É as relações estão enfraquecidas. Posso dizer enfraquecida. Hoje tem irmãos
meus que eu não tenho mais coragem de..., se eu ver eu só devo só dar bom dia e
mais nada, até porque houve afastamento, porque tenho irmão que trabalha na
plataforma, tem outro que trabalha, é gerente do banco Boavista, outra que é
assistente social, então eles tem os status, entendeu, eles tem a vida deles, então
eles tem vergonha. É um direito deles. Se eu tivesse no lugar deles, de repente
poderia reagir da mesma forma, então não posso julgá-los, cada ação é uma
reação.” F. 35 anos
“Ah, da outra vez minha irmã levou 6 meses pra vim e dessa vez ela veio antes
porque eu escrevi uma carta pra ela falando que eu tava muito triste na cadeia.”
G. 24 anos
“Não, eu não tenho contato com a minha família, ninguém me visita desde a
minha prisão e não tenho contato com ninguém tem um ano e nove meses. Eu
acho que eles não querem saber de mim.” M. 24 anos.
“Olha atualmente, eu tava comentando o seguinte, por exemplo, as minhas
sobrinhas não fizeram carteira, então tem 3 anos que eu não as vejo e estão
maiores do que eu e eu tenho muita vontade assim de ver mas isso também tem
um outro lado que eu to me questionando, a gente perde aquele laço, sabe
181
aquela, porque dizem que o amor é uma coisa construída né, então assim, eu
não sei quando eu chegar em casa como é que eu vou vê-las...eu tenho muita
saudade dos meus irmãos, sou agarrada, mas à sobrinho, à minha tia também
que é alta funcionária, a minha tia se afastou porque: “Ah Deus me livre uma
sobrinha fraudadora”, enfim essas coisitas, a minha tia se afastou, mas de uma
maneira geral, meus amigos, tudo, tão sempre perguntando, tão sempre vindo,
continua boa.” R. 54 anos.
“O que mudou? Nada porque a minha família não me procura, ninguém quer
conviver, conversa com preso não, ninguém quer ajudar não porque preso é o
último a falar. Todos, to dizendo por experiência própria você vê tem trezentas e
tantas mulher aqui e a senhora vê ali 4 visitas no pátio. Acho que, nem chega a
minoria, nada. Que a senhora vai na visita, dia de sábado e domingo, vê 10
visitas, 300 mulher...A maioria abandona, abandona. Não tem família...” V. 58
anos
“Eu tenho contato. Eles vêm, nunca deixam de me visitar, minha mãe, meu filho,
minhas irmãs, tios, vem em todas as visitas e a relação não mudou nada, ta até
mais clara agora.” W. 38 anos.
Assim, com base nos relatos das internas entrevistadas, o cenário que se desvela da
relação das presas com seus familiares é de distanciamento e abandono. Esse fato é bastante
negativo pois a visita é não só um referencial do mundo extra-muros para a interna, como
também um instrumento de alívio da opressão, causada pelo encarceramento. É a família
também que, algumas vezes, ajuda financeiramente à interna no que o Estado deixa de
prover. Sem este ponto de apoio, a reinserção social torna-se mais difícil, pois como
reconstruir uma vida já dizimada e empobrecida materialmente pelo tempo vivido na
prisão, sem suporte familiar, que dê condições materiais básicas para o soerguimento das
internas? Uma prova da importância desse apoio está na fala de uma interna entrevistada:
“Não eu acho que ficaram mais próximos de mim porque nós éramos uma
família muito unida, então devido o que aconteceu eles se apegaram acho que
mais ainda, porque eles se uniram pra me dar força. Porque tem hora que parece
que isso aqui vai sufocar, né aí é onde que eles tão sempre com uma palavra
amiga, sempre tão chegando junto, às vezes eu digo: “gente eu já não to
agüentando mais” aí vem sempre uma carta: “não, vc vai agüentar, vc é forte, vc
é guerreira, vc tem que aguentar”. Então eu acho que reuniu mais a gente, né.”
U. 51 anos.
Lemgruber também observou este fenômeno em sua pesquisa: “Várias internas são
praticamente abandonadas pela família. Visitas às vezes freqüentes, vão aos poucos
rareando até serem definitivamente interrompidas. Muito comuns são os casos em que a
família custeia inicialmente os honorários dos advogados e após algum tempo interrompe
o pagamento deixando a mulher à própria sorte.” (Lemgruber, 1999, pg.50)
182
A visita embora seja um direito das presas também obedece a normatizações tão
rígidas quanto aquelas que as internas são submetidas no dia-a-dia, que vai desde à rigorosa
exigência documental para o credenciamento, passando pela constrangedora e também
rigorosa revista – que parece transferir o estigma do crime para a família –, até a suspensão
da visitação quando a interna comete alguma infração. Todas essas dificuldades criadas
pela instituição, somadas àquelas próprias das famílias, acabam por gerar este afastamento
que se deveria evitar quando se almeja a reinserção social.
O tratamento penitenciário de uma forma geral e a escassa participação da família
neste processo parecem não fornecer uma base de sustentação suficiente para o resgate
dessas mulheres da criminalidade em sua vida extra-muros. Várias internas entervistadas,
quando falam de suas perspectivas para o futuro mostram ter clareza desta dificuldade que
ainda é agravada pelo estigma de ex-presidiária que lhes é atribuída mesmo após
“pagarem” sua “dívida” com a sociedade.
“Agora eu tenho certeza que quando eu sair daqui não vai ser assim , mas eu sei
também o que me espera lá fora, não sou nenhuma criança, tenho os pés no
chão. Sei que quando chegar lá as pessoas vão me olhar atravessado, tanto é que
quando eu sair daqui não vou morar no mesmo bairro, nem em São Gonçalo
porque eu sei o que vai ser, eu sei o que me espera, mas também depois de tudo
que eu passei nesses cinco anos e mais o pouco que eu ainda tenho pra tirar, ta
tranqüilo, Deus vai me ajudar. Tudo é uma vida nova, vou sai como se eu tivesse
começando, começar de novo.” F. 35 anos
Analisando as perspectivas das internas entrevistadas para a vida extra-muros, onde
cada presa pode enumerar diversos objetivos futuros, é possível afirmar que 6 internas têm
consciência da dificuldade que encontrarão, principalmente para se reinserir no mercado de
trabalho, mas mesmo assim trabalhar é a meta de 18 das internas. Talvez, por serem cientes
dos entraves possíveis para se reinserirem no trabalho formal, principalmente, que 7
internas entrevistadas pretendem trabalhar por conta própria em atividades como vendedora
ambulante ou como proprietária de pequenos empreendimentos.
A metade das internas (13) refere ter como perspectiva, voltar para a família, em
especial para os filhos. Apenas três internas, ou 11% reforçam a intenção de abandonar a
criminalidade e 4 fazem planos de estudar ou fazer cursos profissionalizantes.
“Eu quero ir assinar a condicional, tirar meus documento, ficar uns 5 meses só
do lado dos meus filhos, trabalhando, sem muita amizade, porque os meus
amigos lá de fora me abandonaram e eu queria comprar uma barraca de
cachorro quente, um isopor e ir pra praia vender, e aí sustentar os meus filhos
com o dinheiro do suor do meu trabalho, não dinheiro do tráfico que só me
trouxe pra cadeia. Eu quero viver assim uma vida digna com os meus filhos e
183
quando os meus filhos crescerem e casarem e eu tiver netos, aí Deus vai saber o
que fazer comigo.” A. 22 anos.
“Eu pretendo retomar minha vida, porque aqui a gente não vive, a gente
sobrevive, eu pretendo voltar a estudar, trabalhar, fazer curso de cabeleireira e
fazer faculdade de Direito e montar meu próprio salão de cabeleireiro.” D. 38
anos.
“Eu pretendo trabalhar, tentar arrumar um emprego, porque eu sei que é difícil
de conseguir pra ex-presidiária.” M. 24 anos.
“Eu vejo que trabalho vai ser um pouco difícil, penso em levar esses cursos que
fiz adiante, minha família vai me ajudar, e eu quero fazer coisas boas, não deixar
a mente vazia e encontrar um bom casamento.” T. 28 anos.
“Ir pra casa desse ex companheiro meu que ele falou que ia me dar uma,
arrumar um trabalho pra mim, uma barraca ou uma coisa, pra eu vender
cachorro quente, vender alguma coisa.” V. 58 anos
Um fato que chama a atenção é a ausência de consistência e, em vários casos, até de
possibilidade de concretização de muitas das perspectivas das internas, principalmente no
que diz respeito às atividades profissionais, fato que reforça a incompetência da prisão em
proporcionar às presas o aprendizado de uma profissão que esteja prioritariamente
associado às demandas de trabalho na sociedade.
Mas pior do que não preparar o indivíduo adequadamente para inserir-se no mundo
do trabalho é ainda desprepará-lo para esse fim, pois a ausência de ações competentes e
pedagógicas voltadas para a profissionalização, somada à toda a rotina alienante da prisão,
à médio e à longo prazo acabam, como sinaliza Wacqüant, por desqualifica-lo ainda mais e
torna-lo “inempregável”. (Wacqüant, 2001).
Assim, levando-se em conta que além da exigência de qualificação, existe toda uma
resistência do mercado de trabalho para absorver a mão de obra de egressos do sistema
penal, seria necessário existir, além de uma política pública de incentivo à absorção dessa
mão de obra, um trabalho de resgate da relação dessas mulheres com a instituição trabalho
através de uma formação profissional qualificada, de forma que as presas pudessem ter
perspectivas reais de inserção social e não criarem falsas expectativas, que possivelmente
frustradas, podem se constituir como um incentivo de retorno à criminalidade.
É neste ponto que retomamos a questão da prisonização, aqui entendida como o
processo pelo qual o indivíduo preso vai assimilando no dia-a-dia os costumes, valores e
normas da prisão, e deixando pra trás os seus referenciais anteriores ao cárcere. Ele vai se
184
moldando à vida carcerária e absorvendo, à princípio, por uma questão de sobrevivência
naquele mundo hostil, as normas daquela convivência, peculiares àquele grupo, e por assim
serem, com virtudes estimadas especificamente naquele sistema. Por tudo isso, com o
passar do tempo o indivíduo preso vai se distanciando dos valores e padrões sociais da vida
extra-muros, e quanto mais tempo ele permanece na prisão, maior vai ser este
distanciamento e mais difícil será a readaptação à sociedade, o que por conseguinte poderá
leva-lo novamente à criminalidade. É como se no tempo que permanecesse na cadeia, ele
fosse desaprendendo o que havia aprendido, e em oposição à esse tempo, que lá dentro se
sucede tão monotonamente, aqui fora, e cada vez mais, tudo se transforma com uma
velocidade impressionante, o que era moderno hoje, em pouco tempo é considerado
ultrapassado. Sem acompanhar essas mudanças e sem ser qualificada para lidar com elas,
aliado ao peso do estigma de ex-presidiária, que lhe é atribuído, a interna se torna peça
descartável para o mercado de trabalho, apenas reciclada para a engrenagem do crime.
Esse descompromisso do sistema penal com as ações do tratamento penitenciário,
como por exemplo, o oferecimento de trabalhos que não geram nas presas um compromisso
com a atividade exercida, um senso de responsabilidade e um sentimento de
reconhecimento e inclusão, também vão criar fatores de prisonização nas internas pois irão
contribuir para modificar a postura daquela pessoa perante a vida e criar uma imagem irreal
do mundo – “tudo que acontece, acontece simplesmente” Lemgruber, 1999.
“Aqui é uma faculdade pra quem quer aprender o mal (...) Porque a cadeia não
ressocializa ninguém (...) Então dentro da cadeia tem que ter ocupação para o
preso, porque o preso ele fica 24 hs por dia solto nesse pátio, no horário que nós
ficamos soltas, só aprendendo aquilo que não presta. Então se tiver firmas dentro
da cadeia, trabalhos dentro da cadeia e tudo isso vai melhorar muito condição
nossa, principalmente trabalhos remunerados que a pessoa tem como se
sustentar e ainda mandar um dinheirinho pra família, é pouco mas tem.” X. 45
anos.
Essa questão da remuneração é de suma importância para que a presa não perca a
noção do relacionamento do trabalho com o sustento, princípios da sociedade extra-muros
que imprimem valor ao trabalho e que acaba sendo desconstruído na prisão a partir das
relações de trabalho lá existentes e que contribuem para o processo de prisonização.
Aos efeitos desculturalizantes da prisonização, somam-se fatores sociais externos,
como a estigmatização do egresso, com o rótulo de presidiário, o empobrecimento do preso
185
e de seus familiares, que em função da permanência na prisão vão perdendo os parcos
recursos que dispunham antes do encarceramento, bem como o trabalho e a moradia. Estas
perdas materiais vão afetar a família e conseqüentemente causar problemas nas relações
afetivas da presa com os familiares, resultando muitas vezes em separações, abandonos e
afastamentos. Somado à tudo isso vem a precarização e descompromisso das ações do
tratamento penitenciário como trabalho, formação e lazer, com a reinserção social digna da
interna.
Ao sair da prisão ela se vê mais empobrecida e com pouco ou nenhum suporte para
reconstruir sua vida, pois as políticas públicas estão mais ocupadas em construir prisões e
aparelhar a polícia para proteger a sociedade “desse tipo de indivíduo”.
“Hum, nem sei, o que eu vou fazer da minha vida não, vou sair com 36 vou estar
velhinha. Não sei o que eu vou fazer não, mas pode ter certeza que matar,
roubar, traficar, nada disso eu vou fazer, que foi a primeira e última. Quero ir
embora, quem não quer ser livre, pôxa. Mesmo assim ainda não consegue nem
arrumar um serviço, quando sair daqui, porque a sociedade fica falando é
assassina, matou, vou dar um serviço vai querer me matar, é por isso que
vagabundo mata, rouba, volta de novo, só que eu não vou matar ninguém não,
vou viver minha vida, vou deixar na mão de Deus que ele vai dar o rumo.” Q. 30
anos.
“É, que é muito difícil, a senhora pensa que não, mas é muito difícil, ninguém
quer ajudar. Se chegar ali fora e pedir um prato de comida, difícil, ninguém vai
dar, se chegar na favela pedir uma droga eles dá. È muito difícil. Só se regenera
mesmo quem tiver muita boa vontade.(...) o único lugar que eu apoiava é
enquanto eu tava roubando porque pedindo ninguém dá. Eu digo porque agora
eu saí dessa cadeia em 2000 e procurei muita ajuda, quis trabalhar em
restaurante pra cozinhar, serviços de casa, é muito difícil. Agora mesmo eu vou
sair, eu to pedindo a Deus uma ajuda, né? Porque a senhora imagina com a
idade que eu tenho, sair daqui e depois...Deus me livre.” V. 58 anos.
Problemas, ao sair da prisão, como o desemprego, a falta de dinheiro, a rejeição
social, bem como os valores apreendidos no cárcere através do processo de prisonização,
somados à inconsistência dos recursos e equipamentos de proteção social disponíveis na
sociedade e aos diversos entraves impostos às ex-presidiárias, vão tornar sua reinserção
social bastante incerta e ainda favorecer à reincidência criminal. Todo este conjunto de
fatores irá legitimar a criminalização da miséria que tem erroneamente o seu foco nos
pobres e egressos do sistema penal, e que fecha os olhos para os problemas econômicos,
para a precarização das relações de trabalho, para o desemprego, a desigualdade social, o
empobrecimento da população, a invisibilidade social e a rejeição dos indivíduos,
186
problemas familiares estruturais, crise da moralidade, fragilização do ethos do trabalho,
individualismo e consumismo, realidades que interligadas contribuem decisivamente para a
manutenção da criminalidade e para a recidiva no crime.
187
Conclusões
Neste trabalho, procuramos fazer um estudo da criminalidade feminina, a partir de
pesquisa de campo desenvolvida na Penitenciária Talavera Bruce, no Rio de Janeiro entre
setembro e dezembro de 2004.
Como ficou delineado no primeiro capítulo da dissertação, a criminalidade feminina
foi historicamente considerada diversa daquela praticada pelos homens. Testemunho disso
foi o tratamento dispensado às presas quando da criação da primeira prisão feminina no Rio
de Janeiro, instituição de caráter religioso que tinha por objetivo transformar a mulher
“desviante” numa criatura dócil e submissa, por meio da domesticação de seu corpo e da
transformação de sua moral. Buscava-se preparar a mulher criminosa para o lar, o espaço
privado que lhe cabia, enquanto o homem criminoso deveria ser recuperado para o retorno
à sociedade, ou seja, para o espaço público que lhe era destinado.
O caráter laico, posteriormente atribuído ao tratamento penitenciário, não tornou
menos opressora a sociabilidade imposta às mulheres presas, Esta nova sociabilidade,
denominada na literatura especializada de prisonização, se funda numa normatização rígida
e massificadora, controladora das relações internas e mediadora daquelas estabelecidas com
o mundo extra-muros, e que vai, ao longo do tempo, desconstruindo, em diferentes níveis,
alguns referenciais próprios das detentas e incutindo-lhes outros, embasados na cultura
prisional.
Assim, constatou-se que a prisonização é um dos elementos que podem influir na
criminalidade feminina. A vivência deste processo gera seqüelas na subjetividade da ex-
presidiária que, associadas às limitações impostas pela sociedade livre, podem levar a uma
nova inserção na criminalidade, retro-alimentando o círculo nefasto de criminalização que a
prisão produz nos indivíduos que ela se propõe a recuperar.
A prisão funciona como (re) produtora da miséria na medida em que, ao longo do
período de encarceramento, inflige perdas à mulher presa, em diferentes dimensões da vida
social, a começar pelo trabalho e pela moradia. Essa perda material tende, na maioria das
vezes, a atingir a família e, em muitos casos, a estremecer relações familiares e afetivas. A
falta de apoio familiar, as reduzidas possibilidades de trabalho, formação profissional e
188
lazer e a falta de acesso a bens materiais básicos tornam mais difícil a vida da detenta,
dentro da prisão e quando de seu retorno à sociedade livre. Nesse sentido, pode-se afirmar
que a prisão empobrece ou agrava a pobreza pré-existente.
O perfil traçado para a população carcerária da Penitenciária Talavera Bruce, em
confronto com o do estudo feito por Lemgruber em 1976 para a mesma população revela
algumas mudanças significativas.
No total de 291 detentas cadastradas no presídio, quando da realização de nossa
pesquisa, observou-se o predomínio das que foram condenadas por tráfico de drogas
(54,6%). Isso aponta para um rápido crescimento dessa modalidade de crime, nas últimas
décadas, de vez que na pesquisa de Lemgruber, em 1976, tal percentual era da ordem de
20,8%. Em contrapartida, os crimes contra o patrimônio, que respondiam por 53,6% das
condenações (furto: 35,1% e roubo: 18,5%), em meados dos anos 1970, tiveram seu peso
relativo reduzido para 25,8% (furto: 3,4% e roubo: 12,4%), em 2004.
Cabe destacar também o forte incremento na participação das mulheres em crimes
de seqüestro. Tal tipo de delito elevou-se de 0,6%, em 1976, para 8% em 2004.
Os resultados de nossa pesquisa apontam, ainda, para o protagonismo juvenil no
cometimento dos diferentes delitos estudados: 49,1% do total de detentas tinham menos de
30 anos quando praticaram o crime que as levou à prisão. Não foi possível, no entanto,
fazer essa análise ao longo dos anos, pois o estudo que aqui tomamos como contraponto
não investigou a mesma variável.
Ainda dentro da categoria idade, é possível afirmar que, embora a população de
mulheres presas também seja majoritariamente composta por jovens e adultas jovens, a
mudança na distribuição das idades ao longo dos anos indica um aumento relativo das que
se situam na faixa de 40 anos ou mais. Na pesquisa de Lemgruber, essa proporção
correspondia a 17,6% , enquanto na nossa alcança 21,0%.
Um outro aspecto a ser ressaltado diz respeito à distribuição das penas entre as
internas de acordo com os anos de condenação: prevalecem as penas curtas/médias de 4
anos até menos de 10 anos para a maioria (55,23%) das mulheres presas, independente dos
delitos cometidos.
Na Parte II da dissertação, analisamos as entrevistas realizadas com 26 presas
condenadas por crimes de tráfico, furto, homicídio, roubo, latrocínio, peculato, seqüestro,
189
atentado violento ao pudor e estupro, constatando, em primeiro lugar, que.eram, em sua
grande maioria primárias, ou seja, nunca haviam sido condenada.
A grande maioria das internas foi socializada em famílias de baixa renda e muitas
delas experimentaram problemas estruturais, tanto nas relações familiares na infância e na
adolescência, quanto na vida adulta, sendo recorrentes os casos de violência, alcoolismo e
drogadição. A maioria também efetuou uma transição precoce para a vida adulta, seja por
decorrência de abandono escolar ou ingresso no mercado de trabalho, seja por adesão ao
uso e comércio de drogas, seja, ainda, por gravidez, casamento e maternidade, quando
ainda eram adolescentes ou jovens.
Com relação a suas histórias ocupacionais, patenteia-se a predominância de
atividades manuais precárias, de baixa ou nenhuma qualificação, com destaque para a o
trabalho doméstico. É importante ressaltar, no entanto, que metade das internas
entrevistadas estava desempregada ou inativa, à época do cometimento do delito.
Quanto ao papel que exerciam na criminalidade, concluímos que nos crimes
relacionados a drogas, a inserção das presas tendia a ser subalterna, circunscrevendo-se
quase sempre às funções de .vapor, de vigia ou mula. A presença, entre as entrevistadas, de
presas oriundas de camadas médias e atuando em circuitos internacionais, chama a atenção
entretanto para dois novos aspectos de sua inserção nessa modalidade criminosa. O
primeiro é o de que, embora minoritária, já se verifica a participação da mulher no
planejamento e execução do crime, contratando outras mulheres para servirem de mulas e
financiando, no todo ou em parte, o empreendimento. O segundo é o de que o ingresso e a
permanência no mundo das drogas não poderiam ser associados apenas à sobrevivência
econômica, à necessidade de manter o próprio vício ou ao amor bandido, que são
recorrentemente apontados na literatura especializada. Se estes permanecem sendo os
motivos principais, no discurso de algumas entrevistadas, a “ambição”, o desejo de “ter
mais” e de aumentar seu poder, a busca de emoções fortes (“a adrenalina”) são
mencionados como motivos para a prática de delitos. E isso vale também como o
narcotráfico, seja para modalidades de roubo
Nos crimes de roubo, a participação da mulher é mais igualitária, se compararmos
com a atuação dos homens neste tipo de delito. Já nos crimes de furto as presas eram as
executoras e agiam sozinhas
190
Enquanto nos crimes de homicídio a maioria das presas entrevistadas se posiciona
como mandante e não como executora, nos delitos de atentado violento ao pudor e estupro
seu papel é coadjuvante, atuando, em geral, a mulher como cúmplice no cometimento dos
delitos.
Com base na análise da vida das detentas na prisão, enfocada no último capítulo
desta dissertação, pode-se concluir que o sistema prisional do Rio de Janeiro não possui
uma política penitenciária que atenda ao objetivo da reinserção social. As atividades
oferecidas dentro da instituição são insuficientes para o quantitativo de detentas cumprindo
pena e não preparam as mulheres para sua reinserção social. Tal situação é ainda agravada
pelo abandono material e afetivo a que as presas estão relegadas pela família.
Fecha-se, assim, um circuito perverso de exclusão social. Se é inegável que os
aparelhos de controle e repressão do Estado incidem mais fortemente sobre determinados
segmentos sociais – e aqui caberia lembrar, com Paulo Sergio Pinheiro, que a polícia e o
sistema presidiário sempre fizeram sua “opção preferencial” pelos pobres – e que, portanto,
é preferencialmente entre os pobres que são recrutados os delinqüentes e os presidiários - ,
é inegável também que polícia-prisão-delinqüente se apóiam uns sobre outros, formando
um circuito que nunca é interrompido (Foucault, 1977,248).
Tal circuito se inicia quando a polícia, em suas constantes incursões em favelas e
periferias recruta os delinqüentes. A prisão é o passo seguinte e, nesse espaço, presos e
presas ou são socializados para o crime, juntando-se a delinqüentes já formados ou sofrem
o isolamento e a perda de seus referenciais de trabalho e família. Ao entrarem na cadeia
ficam indelevelmente marcados como delinqüentes, o que torna extremamente difícil – para
não dizer impossível – sua reinserção na vida social. E são eles e elas também que,
voltando ao convívio social, passam a ser perseguidos pela polícia, por seus antecedentes
criminais, ou a ser pressionados para retornar ao mundo do crime, por antigos ou novos
parceiros.
Nesse sentido, os comentários finais diriam respeito ao papel instrumental da
delinqüência numa sociedade de classes, como a nossa, que é, ademais, profundamente
marcada pela desigualdade. Um papel que reforça, antes de tudo, o controle social e acaba
por particularizar e estigmatizar os pobres como “classes perigosas”, fazendo com que seus
locais de moradia, tanto quanto suas formas de atividade, muitas delas inscritas no âmbito
191
da informalidade e exercidas no espaço das ruas, passem a ser objeto de vigilância
constante, quando não da arbitrariedade policial.
Concentrando-se no que se poderia chamar de “delinqüência do varejo”, e
privilegiando, por meio de operações espetaculares, amplamente divulgadas pela mídia, a
prisão de bandidos convertidos em “inimigo público número 1”, a ação dos órgãos de
repressão acaba por desviar a atenção dos crimes do colarinho branco, dos crimes
financeiros e dos circuitos superiores do tráfico de drogas de drogas e do contrabando de
armas, em suma, da “delinqüência do atacado”, praticada pelo crime organizado, muitas
vezes, com a indiferença ou mesmo a cumplicidade de diversos agentes do Estado.
Caberia lembrar que a “economia da delinqüência” não se esgota no produto do
crime; mas serve para alimentar a rede imensa de atividades que a ela se relacionam. A par
de toda a organização da polícia e da justiça penal, haveria que mencionar o sensível
crescimento experimentado pelas indústrias de armas, de dispositivos de segurança e de
veículos blindados; o impulso dado aos setores de construção civil, pela criação de novos
presídios e com a transformação das moradias da classe média e alta em “presídios
particulares”, cercados por muros e grades, cada vez mais altos e dispositivos de alarme e
segurança, cada vez mais sofisticados, sem falar na rede de serviços criada para prevenir ou
combater a delinqüência ou para livrar delinqüentes de condenações ou prisões.
Mesmo na atividade política, o tema da delinqüência é utilizado como arma de
crítica, constituindo o eixo central da plataforma eleitoral dos que defendem uma política
de segurança máxima - entendida como “prender pessoas e apreender coisas”– ou se valem
de slogans do tipo “bandido bom é bandido morto”para garantir seus mandatos.
Isto posto, não há como deixar de reconhecer a atualidade das reflexões de
Ramalho, em seu estudo sobre presídios, feito em 1979:
A importância que assume a delinqüência na sociedade de hoje extrapola de
muito seus limites. Ela não serve somente ao exercício de um controle mais
rígido sobre toda uma classe, como também propicia crescimento da indústria ,
descompressão do mercado de trabalho, fatores econômicos que mostram sua
complexidade no conjunto de fenômenos sociais. O crime e os criminosos
desempenham um papel social relevante para a manutenção da sociedade tal
como está.(Ramalho,1979,p.179)
Apesar de todas as transformações experimentadas pela sociedade brasileira e, em
particular, do processo de democratização levado a efeito no período, o papel da
“delinqüência do varejo”, das polícias e dos presídios se manteve praticamente inalterado.
192
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______ e ATHAYDE, Celso. Bill, MV. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva,
2005.
SOUZA, Simone B. As famílias e sua relação com a loucura e delinqüência .
Monografia apresentada no curso de Especialização em Serviço Social e Saúde. Rio de
Janeiro: FSS, UERJ, 1997.
THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
VELHO, Gilberto. Mudança, crise e violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002.
WACQUANT, L. “Proscritos da cidade: estigma e divisão social no gueto americano
e na periferia urbana francesa”. In: Novos Estudos CEBRAP. n.º 43. 1997
______. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar , 2001.
WOLFF, Maria Palma. Antologia de Vidas e Histórias na prisão: emergência e
injunção do controle social. Lúmen Júris Editora, R.S., 2005.
WOORTMAN, Klaas. A família das mulheres. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro e CNPq,
1987.
ZALUAR, A.
A Globalização do Crime e os Limites da Explicação Local. In: Alvito, M. &
Velho, G. (orgs.).
Cidadania e Violência, Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.
_______. “A globalização do crime e os limites da explicação local”. In:VELHO, G. e
ALVITO, M. (orgs). Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ e Editora
FGV, 1996.
195
______. Condomínio do Diabo. Rio de Janeiro: Editora Revan: Ed. UFRJ. 1994.
______. “Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil”. In:
NOVAIS, F. e Schwarcz, l. M. (orgs). História da vida privada no Brasil, vol. 4. São
Paulo: Cia das Letras, 1998.
196
QUESTIONÁRIO
Nº da entrevista:______________
Data da entrevista:__________________
I - DADOS PESSOAIS
1 - Idade:________
2 – Qual a sua Cor/Raça?
2.1 – Em qual dessas categorias você enquadraria a sua cor/raça?
( ) Branca
( ) Parda
( ) Negra
( ) Amarela
( ) Indígena
3 – Naturalidade: _______________
3.1 – ( ) rural
( ) urbana
4 – Nacionalidade: ______________
5 – Situação Conjugal atual:
( ) Solteira
( ) Casada
( ) Amigada
( ) Desquitada/Divorciada/Separada
( ) Viúva
6 – Situação Conjugal ao ser presa:
( ) Solteira
( ) Casada
( ) Amigada
( ) Desquitada/Divorciada/ Separada
( ) Viúva
197
7 – Atualmente tem alguma religião?
( )não
( )sim – Qual?________________________
8 – Ao ser presa tinha alguma religião?
( )não
( )sim – Qual?________________________
8.1-Se diferente da anterior, por que mudou de religião?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
II – HISTÓRIA DE VIDA
9 – Por quem você foi criada?
( ) Pai
( ) Mãe
( ) Padrasto
( )Madrasta
( )Avós
( ) Abrigos / Instituições
( )Outros parentes:___________________
10 – Como eram as relações familiares na sua infância/adolescência?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
11 – Qual era o grau de instrução dos seus pais ou responsáveis?
________________________________________________________________________
12 – Você sabe ler?
( ) sim
( ) não
13 – Você sabe escrever?
( ) sim
( ) não
14 - Até que série estudou?____________
198
15 - Por que parou de estudar?
16 – Quem era o responsável pelo sustento da família na sua infância/adolescência?
( ) pai
( ) mãe
( ) irmãos
( ) avós
( ) tios
( ) outros___________________
17 – Qual a ocupação do responsável pelo sustento da família na sua infância/adolescência?
18 – Você precisou trabalhar na infância para ajudar a sustentar a família?
( ) sim
( ) não
18.1 – Se sim, com que idade e em que atividade?
__________________________________________________________
19 – Naturalidade do pai:_____________________
( ) rural
( ) urbana
20 – Naturalidade da mãe: _____________________
( ) rural
( ) urbana
21 – Em que local você passou a maior parte da sua infância / adolescência?
( ) Rural
( ) Urbana
21.1 – Se no Rio de Janeiro, em que bairro?______________________
III – VIDA ADULTA
22 – Qual a sua idade ao ser presa, na atual condenação?
_____________
199
23 - Onde morava ao ser presa?
23.1 - Bairro:________________
23.1.1 - Favela? ( ) Sim ( ) Não
23.1.2 – Área de Ocupação ( ) Sim ( ) Não
23.2 - Cidade:________________
23.3 – Estado:________________
24 – Qual era o tipo de domicílio:
( ) Casa/ Apartamento
( ) Cômodo/quarto
( ) Barraco
( ) Abrigo / Casa de Apoio
( )Morava na rua
25 – Qual a condição do domicílio?
( ) Próprio
( ) alugado
( ) posse
( ) cedido
( ) morava de favor
26 – Ao ser presa, qual era a composição da sua família?
26.1 - Pais
( ) sim _____________
( ) não
26.2 – Irmãos?
( ) sim
( ) não
26.2.1 – Se sim, quantos? _______
26.3 – Avós
( )sim
( )não
26.4 - Filhos:
( ) sim
( ) não
26.4.1 – Se sim, quantos? _______Idades:________________
26.5 – Companheiro(a) / marido?
( ) sim
( ) não
26.5.1 – Se sim, há quanto tempo?_______
200
26.6 – Outros familiares:____________________________
27 – Ao ser presa com quem residia?
( ) Só
( ) Com pai
( ) Com mãe
( ) Com os pais
( ) Com pais e irmãos
( ) Com marido ou companheiro (a)
( ) Com filhos
( ) Com marido ou companheiro (a) e filhos
( ) Com outros parentes:______________________________________________
( ) Com amigos
( ) Outros:_________________________________________________________
28 – Quem era a(s) pessoa(s) responsável(is) pelo sustento da sua casa quando você foi
presa?
29 - Como eram as relações familiares antes de ser presa?
30 – Fez algum curso profissionalizante antes de ser presa?
( ) sim
( ) não
30.1 – Se sim, qual?
31 - Você já trabalhou em algum tipo de atividade remunerada antes de ser presa?
( ) sim
( ) não
31.1 – Se sim, em que?_________________________________________________
32 - Com que idade começou a trabalhar?______________
33 – Ao ser presa, exercia algum trabalho?
( ) sim
( ) não
33.1 – Se sim, qual a ocupação, ramo de atividade e posição na ocupação?
_______________________________________________________________
201
33.1.1 – Qual era a remuneração nesse trabalho?
33.2 – Se não, por quê? ________________________________________________
34 - Qual era a renda familiar mensal, em salários mínimos, quando você foi presa?
( ) Até 1 salário mínimo
( ) + de 1 até 3 salários mínimos
( ) + de 3 até 5 salários mínimos
( ) + de 5 até 10 salários mínimos
( ) + de 10 salários mínimos
( ) Não sabe
35 - O que fazia nas horas de lazer?
_________________________________________________________________________
IV – SOBRE DROGADICÇÃO
36- Ao ser presa você fazia uso de alguma droga ou bebida alcoólica?
( ) sim
( ) não
36.1 – Se sim, quais?___________________________________________
36.2 - Com que freqüência?
( ) Diariamente
( ) Pelo menos uma vez por semana
( ) Eventualmente
36.3 - Com que idade começou a usar drogas?____________
37 – Ao ser presa alguém na família tinha problemas com uso abusivo de bebida alcoólica
ou drogas?
( ) Sim
( ) Não
37.1 – Se sim, quem?_____________________________
37.1.1 – O que?___________________________
V – SOBRE O DELITO
38 - Em que ano foi presa?____________
39 – Qual(is) o(s) delito(s)?
40 - Qual foi a sua participação no delito?
202
41 - Qual a sua pena?_______________________
42 - O que a levou a cometer este delito?
_________________________________________________________________________
43 – Em relação ao delito, você é:
( ) Primaria
( ) Reincidente
43.1 – Se reincidente, quais os delitos anteriores?____________________________
43.2 – Quantos anos tinha quando cometeu o primeiro delito?_________________
44 – Quantas vezes você foi presa?_______________
45 - Como e porque você começou a delinqüir?
46 – Sua família sabia do seu envolvimento com o crime?
( ) Sim
( ) Não
46.1 - Se sim, como reagiam ao seu envolvimento com o crime?_______________
47 - Como a família reagiu à sua prisão?
_________________________________________________________________________
48 – Antes de ser presa teve algum companheiro ou familiar envolvido com o crime?
( ) sim
( ) não
48.1 – Se sim, quem?_____________
48.2 - Qual delito?__________________
49 – Você mantém contato com seus familiares agora?
( ) sim
( ) não
49.1 Se sim, através de:
( ) Visitas
( ) Telefonemas
( ) Cartas
49.2 – Se não, por quê?_____________________________________
203
50 – Você recebe visitas?
( ) Sim
( ) Não
50.1- Se sim, quem te visita?___________________________
50.1.2 - Com que regularidade?
( ) uma vez por semana
( )uma ou duas vezes por mês
( )algumas vezes por ano
51 - Como estão as relações familiares agora?
52 – Com quem da família você pode contar atualmente?
_________________________________________________________________________
53 – O que mudou na relação com a família após a sua prisão?
_________________________________________________________________________
VI – SOBRE O CÁRCERE
54 - Quanto tempo você está presa nesta unidade?_________________
55 - Você trabalha na unidade?
( ) Sim
( ) Não
55.1 - Se sim, em que?____________
55.2 - Se não, por que?_________________________________________________
56 - Você estuda na unidade?
( ) Sim
( ) Não
56.1 - Se não, por que?_________________________________________________
57 - Você participa de alguma atividade cultural ou esportiva na unidade?
( ) Sim
( ) Não
57.1 - Se sim, o que?____________
57.2 - Se não, por que?_________________________________________________
204
58 - Você já fez algum curso profissionalizante na prisão?
( ) Sim
( ) Não
58.1 - Se sim, qual?____________
58.2 - Se não, por que?_________________________________________________
59 - Quais os pontos negativos da unidade?
60 - Quais os pontos positivos da unidade?
61 - Na sua opinião, o que poderia ser feito na unidade para melhorar as condições de
cumprimento da sua pena?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
62 – O que você pretende fazer após cumprir sua pena?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
205
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