lutei durante quase 10 anos pra receber esses processos regularmente, de forma
regular, sem ter que dar propina pra ninguém, porque eles criam dificuldades
pra gerar facilidades. O que me levou a aceitar esse jogo, de 85% ficar para o
sistema, porque não ta com nenhum advogado, não ta comigo, foi exatamente o
câncer, porque eu achei que eu tava já no fim da vida e eu não sabia a
repercussão, não sabia se eu tinha metástase (...)quando pagou o último que deu
esses 6 bi e alguma coisa, eu tava saindo, ainda tava no tratamento de
quimioterapia, bastante debilitada, aí reuni os advogados, aí foi que eles
disseram: “ R., você para com esse negócio de querer mudar o mundo, você vai
continuar da mesma maneira.” Eu tinha feito uma reunião aí eu disse: gente, se
ninguém der propina ninguém vai receber, não tem como. Aí eles disseram: mas
também a gente não recebe, e realmente é a realidade, ou vc dava a propina e
recebia, ou vc não dava a propina e não recebia. Agora vc sabe lá o que é vc ter
um cliente no seu escritório doente, pobre, 14 , 15 anos, 10 anos esperando
receber um pagamento de um benefício que a justiça tinha reconhecido o direito,
que o direito era deles? Aí o que que acontece, a justiça deu ganho de causa e
eles tinham esses atrasados pra receber e eles não, durante 10 anos a questão
ganha e eles não depositaram esse dinheiro, não depositava, só que quando veio
o último cálculo, quando já não tinha mais por onde brigar, então sentou o grupo
da panela e disse: “ô R. nós pagamos, mas 85% é do sistema”, mesmo assim eu
resisti, quando eu fui pra essa reunião que eu disse que eu não pagava, não vou
pagar, os outros já tinham furado o sistema, porque uma coisa, se agente reúne e
fecha, então não tem que abrir, mas já foram por trás, cada qual com seu
chequezinho, então foi que chegou uma hora que eu estava esvaziada (...)Então é
por isso que eu não me acho culpada mas se a senhora me perguntar o que me
levou, eu fiz, eu só desisti, porque eu tenho 10 anos de luta, no final eu com duas
crianças pra criar que tinha 8 e 10 anos, eu com câncer, que apareceu assim do
nada, eu aí pensei: Não, eu não sei a repercussão disso, vou deixar essas
crianças no mundo sozinhas, separada, aí foi quando eu perguntei quanto é?, aí
teve um colega nosso disse: “R. bota o teu burrinho na sombra” eu ainda me
lembro dessa expressão, “dá o dinheiro dos caras, dá, aí o cliente também vai
tomar a cerveja, vai comprar a casa dele e você também ficar tranqüila, aí,
você não vai mudar o mundo, vai ser isso aí a vida toda, a gente vai pagar vai
dizer que não e vai vir outros que vão continuar pagando” R. 54 anos.
Como é possível perceber pelo relato da interna, mesmo tendo participado de um
esquema que desviou grandes quantias dos cofres públicos, ela não se considera totalmente
culpada, pois afirma que os valores pagos eram corretos se considerada a correção adotada
nos mesmos. O seu erro residiria apenas no fato de ter pago propina para uma suposta
máfia. Convencida de que sua ação não se constitui totalmente como crime, não possui
também total consciência de ter sido este um ato reprovável. Por serem o peculato e fraude
delitos que ocorrem majoritariamente entre pessoas de camadas mais privilegiadas da
sociedade, gerando grandes somas de dinheiro, não deixam de atribuir um certo “status” a
seu agente no mundo do crime, o que pudemos perceber na relação das presas com a
referida interna. E porque esses crimes são típicos dessas camadas sociais, incorrem na
impunidade, caminho para a destruição do estado de direito.
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