163
Então as torres da Sé não eram mais do que um borrão apagado, de Lisboa pouco
mais havia que um rumor de vozes e de sons indefinidos, a moldura da janela, o pri-
meiro telhado, um automóvel ao comprido da rua. O almuadem, cego, tinha gritado
para o espaço duma manhã luminosa, rubra, e logo azul, a cor do ar entre a terra que
aqui está e o céu que nos cobre, se quisermos acreditar nos insuficientes olhos com
que viemos ao mundo, mas o revisor, que hoje quase tão cego se vê como ele, ape-
nas resmungou... (p. 33)
No início do romance vivendo numa casa solitária, com a companhia de livros históri-
cos em que a poeira se acumula, tendo numa mulher “de fora” que faz a arrumação, Raimun-
do vê-se à frente de apenas “mais um dia”. Nessa manhã, no entanto, mesmo depois de nova-
mente adormecer, o tempo e o espaço do passado não cessam de vir até ele, numa espécie de
contínua interpelação: “Arrumou o livro, abriu a janela e foi então que o nevoeiro lhe deu na
cara, denso, cerradíssimo, se no lugar das torres da Sé ainda estivesse o almuadem da mesqui-
ta maior, decerto não a poderia ver, por tão delgada que era, imponderável quase...” (p. 36).
No entanto, essa visão de uma Lisboa difusa, envolta pela névoa, vai ter uma mudança
no momento em que Raimundo Silva acrescenta ao relato do historiador o “não” que irá mu-
dar também a sua vida. Depois da surpreendente ação de rebeldia, o revisor chega à janela e,
mesmo sendo noite, percebe que “(...) o nevoeiro desaparecera, não se acredita que tantas
cintilações tivessem estado ocultas nele, as luzes pelas encostas abaixo, as outras do outro
lado, amarelas e brancas, projectadas sobre a água como trémulos lumes...” (p. 52).
No dia seguinte ao “não”, o revisor, já confiante mas ainda um pouco receoso a respei-
to das conseqüências do ato praticado, vai à janela para ver como está o tempo, antes de sair
de casa. Nessa manhã, a cidade que se deixa ver do alto parece à sua espera como se o cha-
masse e ele decide, então, partir em busca das paisagens e caminhos que tem criado em sua
imaginação, da sua Lisboa reinventada:
Na outra margem, as altas chaminés lançam para o ar rolos de fumo que primeiro so-
bem verticalmente, até que o vento lhes quebra o impulso e os abate numa lenta nu-
vem que vai para o sul. Raimundo Silva baixa os olhos para os telhados que cobrem
o antigo chão de Lisboa. Tem as mãos apoiadas no parapeito da varanda, sente o fer-
ro frio e rugoso, agora está calmo, apenas olha, não pensa, e é neste instante que ao
seu espírito vazio lhe acode uma ideia para ocupar o seu dia livre, algo que afinal
nunca fizera na vida... (p. 58)