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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA
A EDUCAÇÃO ATRÁS DAS GRADES: REPRESENTAÇÕES DE TECNOLOGIA E
GÊNERO ENTRE ADULTOS PRESOS
VALTER CARDOSO DA SILVA
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em
Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal
do Paraná.
Orientadora: Profª. Drª. Marília Gomes de
Carvalho
CURITIBA
2006
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2
VALTER CARDOSO DA SILVA
A EDUCAÇÃO ATRÁS DAS GRADES: REPRESENTAÇÕES DE TECNOLOGIA E
GÊNERO ENTRE ADULTOS PRESOS
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em
Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal
do Paraná.
Orientadora: Profª. Drª. Marília Gomes de
Carvalho
CURITIBA
2006
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3
“/: Virá o dia em que todos/ ao levantar a
vista, / veremos nesta terra / reinar a
liberdade”
(Manoel Machado, adaptação Isaías, 51)
“As prisões, suas normas, procedimentos e
valores observam a absoluta primazia na
dominação e no controle da massa
encarcerada. Decorre que a manutenção da
ordem e disciplina internas são transfiguradas
no fim precípuo da organização penal. Os
programas e atividades considerados
‘reeducativos’ inserem-se nesta lógica de
funcionamento, pautando suas ações e
finalidades pela necessidade de subjugar os
sujeitos punidos, adaptando-os ao sistema
social da prisão. Contudo, a resistência
prisioneira ao controle é patente. A educação,
de forma alguma, permanece neutra nesse
processo (embate) de subjugação e
resistência. Seus pressupostos metodológicos
e suas práticas cotidianas podem contribuir
para a sedimentação da escola enquanto
recurso ulterior da preservação e formação
dos sujeitos, nos interstícios dos processos
de dominação” (PORTUGUÊS, 2001b, p. 10).
4
Meu agradecimento maior a todas as pessoas que, mesmo estando em
meio às agruras do cárcere, concordaram em colaborar com este trabalho.
Agradeço também de forma especial às professoras e às equipes
pedagógicas que concederam entrevistas para que esta pesquisa se realizasse.
Agradeço à Pastoral Carcerária e seus voluntários (as), que através de
seu trabalho de levar solidariedade cristã às pessoas encarceradas me
apresentaram o universo da prisão.
Aos funcionários e à direção das unidades pesquisadas e do Sistema
Penitenciário Paraná como um todo:obrigado por de alguma forma colaborarem
com a execução deste estudo.
Ao Programa de Pós-Graduação em Tecnologia – PPGTE da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR (CEFET): obrigado por viabilizar a
produção deste trabalho, e assim, ter me permitido crescer ao desenvolvê-lo.
Agradeço aos professores (as), à coordenação e técnicos administrativos (as) que
colaboraram nessa dissertação.
À professora Doutora Marília Gomes de Carvalho, pela competência,
paciência e generosidade com que soube me conduzir na realização desta pesquisa.
Aos professores Pedro Rodolfo Bodê de Moraes, João Augusto Bastos,
Gilson Leandro Queluz, pelas orientações e pelo compartilhar de seus
conhecimentos num momento significativo de minha história acadêmica.
Aos colegas pesquisadores do Getec – Grupo de Estudos e Pesquisas de
Gênero e Tecnologia ligado ao PPGTE da UTFPR, e do Centro de Estudos em
Segurança Pública e Direitos Humanos (GEV) da UFPR pelas oportunidades de
crescimento surgidas em nossas discussões, trabalhos e projetos.
À toda minha família, especialmente na figura de meus pais, Antonio e
Clotilde; meus irmãos e de meus queridos primos Marcos e Marcelo, a quem
considero mais que irmãos: Obrigado pelo apoio, me perdoem a ausência.
Aos irmãos de Curitiba: Sandro, obrigado pelo ombro amigo. Jair, valeu a
solidariedade. Samara, me sinto profundamente grato por suas palavras de
incentivo e esclarecimento que muito contribuíram para a produção deste trabalho.
Aos meus incríveis amigos (as) de copo e de bar: não menciono seus
nomes temendo cometer a injustiça da omissão. Obrigado pela alegria, apoio e
compreensão.
A todos (as) aqueles (as) que, direta ou indiretamente, contribuíram para a
conclusão deste trabalho.
5
SUMÁRIO
Lista de figuras............................................................................................................6
Resumo.......................................................................................................................7
Abstract.......................................................................................................................8
Introdução ...................................................................................................................9
1. O foco da análise: tecnologia e gênero..............................................................16
1.1 SOCIEDADE TECNOLÓGICA .............................................................................16
1.2 GÊNERO .......................................................................................................28
1.2.1 Gênero e sociedade ..........................................................................................35
1.2.2 Relações de Gênero e Tecnologia....................................................................39
2. A prisão como universo de investigação............................................................42
2.1 GÊNERO NO MUNDO DA CRIMINALIDADE...........................................................59
2.2 A CRIMINALIDADE, AS MULHERES E A PRISÃO ...................................................67
3. Educação: reproduzir ou problematizar?............................................................74
3.1 EDUCAÇÃO E TECNOLOGIA .............................................................................81
3.2 GÊNERO, EDUCAÇÃO E TECNOLOGIA ...............................................................84
3.3 EDUCAÇÃO DE ADULTOS PRESOS....................................................................88
4 Passos metodológicos .......................................................................................93
5 Características do campo.................................................................................111
5.1 OS ENTREVISTADOS.....................................................................................123
5.1.1 Estudantes presas e presos.............................................................................130
6 Representações de Tecnologia........................................................................137
6.1 REPRESENTAÇÕES DE TECNOLOGIA ENTRE ESTUDANTES PRESAS E PRESOS ....150
7 Representações de Gênero.............................................................................161
7.1 R
EPRESENTAÇÕES DE GÊNERO DOS ESTUDANTES PRESAS E PRESOS ..............170
8 Representações dos estudantes a partir da educação da qual participam......186
8.1 ESTUDANTES PRESAS ..................................................................................186
8.2 E
STUDANTES PRESOS..................................................................................192
9. Considerações finais........................................................................................201
10. Referências......................................................................................................213
Apêndice A – Roteiro de entrevista equipe pedagógica..........................................219
Apêndice B – Roteiro de entrevista professores .....................................................220
Apêndice C – Roteiro de entrevista estudantes ......................................................221
Anexo A – Alunos matriculados por unidade penal.................................................222
Anexo B – Carta Solicitação permissão para pesquisa...........................................223
Anexo C – Imagens Centenário da Prisão Provisória de Curitiba – Ahú.................224
6
Lista de figuras
FIGURA 1: ESCOLA PENITENCIÁRIA................................................................................95
FIGURA 2: PRISÃO PROVISÓRIA DE CURITIBA - PPC ....................................................115
FIGURA 3: CURSOS PROFISSIONALIZANTES NO SISTEMA PENITENCIÁRIO PARANAENSE ...117
F
IGURA 4: PENITENCIÁRIA FEMININA DO PARANÁ – PFP...............................................117
F
IGURA 5: CRECHE DA PENITENCIÁRIA FEMININA DO PARANÁ .......................................119
FIGURA 6: ESCOLARIDADE DOS PRESOS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO PARANANENSE......120
FIGURA 7: MOTIVOS DA EVASÃO ESCOLAR DOS PRESOS DO PARANÁ..............................121
FIGURA 8: PRESOS QUE ESTUDAM NO SISTEMA PENITENCIÁRIO PARANAENSE.................122
7
Resumo
Este trabalho tem por objetivo analisar as representações de tecnologia e gênero
presentes na educação de presas e presos, bem como as representações que estes
mesmos atores constroem a partir da educação da qual participam. Para tanto,
delimitou-se como universo de pesquisa duas unidades penitenciárias de regime
fechado – uma feminina e outra masculina – localizadas em Curitiba e Região
Metropolitana. A partir de uma abordagem qualitativa de natureza interpretativa,
foram entrevistados profissionais pedagogos, professores e estudantes presas e
presos – no caso destes últimos procurou-se desvendar suas representações
coletivas, optando pela estratégia de entrevistas em grupo. O referencial teórico
utilizado para a discussão de Tecnologia como processo social tomou por base as
reflexões da Escola de Frankfurt, João Augusto Bastos e Marília Gomes de
Carvalho. O conceito de Gênero como relação de poder que se estabelece histórica
e socialmente se reporta principalmente a Joan Scott. A compreensão de como se
dá o surgimento da prisão e de seu uso como tecnologia de poder é feita
principalmente a partir dos textos de Michel Foucault. Por fim utilizou-se dos escritos
de Paulo Freire para uma abordagem da educação como ferramenta para a
problematização do mundo. A análise dos resultados da pesquisa aponta para
representações de tecnologia ligadas a artefatos e a processos produtivos, sendo
que as relações dos estudantes presos com a mesma se daria, preferencialmente,
na medida em que estes se qualificam para o mercado de trabalho – havendo pouco
espaço para a crítica da racionalidade técnica ou da razão instrumental. No que se
refere às representações de gênero os resultados são igualmente conservadores,
apontando estereótipos dicotomizados para o masculino e o feminino, ou seja, a
partir de oposições entre espaço público e espaço privado, instrumentalidade e
expressividade, papel do provedor e papel da mãe. A escola na prisão se mostra
uma tecnologia de controle e assimilação da disciplina, contribuindo para a
reprodução das estruturas da sociedade extramuros, constituindo-se assim numa
espécie de seu espelho às avessas. Contudo resta a indagação se esta reprodução
social acontece de fato, ou se sua afirmação por parte dos estudantes presos não
faria parte de um estratégico discurso de resistência.
Palavras-chave: Tecnologia; Gênero; Prisão; Educação de presos.
8
Abstract
This paper is result of a research developed within the Universidade Tecnologica
Federal do Parana’s Post Graduation Program in Technologies, which has as an
objective to analyze the representation of technology and gender presented in the
education of arrested people, male and female, as well as the representations that
this people build from the education they participate. For this, the research universe
was delimitated in two penitentiary units – a female and a male, both located in
Curitiba and its Metropolitan area. The approaching was qualitative with an
interpretative nature, were interviewed pedagogues, teachers and the arrested
students – looking for achieve the collective representations of the last ones, the
strategy chosen was the collective interviews ones with the peer-groups formed by
their school level classes. The theoretical reference used for the discussion of
technology as a social process used as basis the reflections of Frankfurt’s School,
Joao Augusto Bastos and Marilia Gomes de Carvalho. The concept of Gender as
power’s relation historically and socially established leads mainly to Joan Scott. The
comprehension of how the prison rises and its use as technology of power is made
based mainly on Michel Foucault texts. Finally the scripts of Paulo Freire were used
to approach the education as a tool to the problematic of the world. The analyses of
the ethnographical material points to representations of technology connected to art
facts and to productive processes, as the relation of the arrested students with it
would be, preferentially, while they qualify themselves to the work market – with short
space to critics of technical rationality or of instrumental reason. Referentially to the
gender representations the results were equally conservatives pointing stereotypes to
male and female at the nowadays society – the respective opposites between public
and private space, instrumentally and expressivity, paper of the provider and paper of
the mother. The school in prison shows itself as a control’s technology and
assimilation of the discipline, contributing to the reproduction of the structures of the
outsider society, turning itself in an inside out mirror. Leaving nevertheless the
question, this social reproduction really happens or, its affirmation coming from the
arrested students it’s not part of a strategy speech of resistance.
Key-words: technology, gender, prison, arrested education.
9
Introdução
A escolha da educação nas prisões como campo de pesquisa neste trabalho
decorreu, em primeiro lugar, do interesse pessoal do investigador. Desde o ano de
1994 o mesmo vem tendo a oportunidade de desenvolver trabalho voluntário junto
ao sistema penitenciário do Estado do Paraná.
Nas ocasiões em que pode travar conhecimento com presos, chamou a
atenção do pesquisador o fato deles serem provenientes de classes sociais menos
favorecidas, assim como sua baixa escolaridade ou simplesmente apresentarem os
sintomas do analfabetismo funcional.
Tal situação é explicada pelo senso comum através de uma relação de
determinação entre criminalidade e pobreza. A tentação de imaginar que os pobres
são, em virtude de suas condições socioeconômicas, mais suscetíveis a cometer
crimes, é quase irresistível.
Associe-se a tal circunstância outro estereótipo: o de que a criminalidade
está ligada diretamente às deficiências dos processos de escolarização das classes
marginalizadas. A idéia que subsiste é a de que a educação isenta as pessoas do
crime.
Além das experiências mencionadas, o recorte de gênero também chamava
atenção de forma marcante. O número de mulheres sempre inferior ao de homens
induzia à indagação: o mundo do crime é realmente um universo masculino? Se tal
afirmação possui fundamento, como estão constituídas as identidades destas
mulheres encarceradas?
10
A estes dados acrescentem-se também as questões ligadas à tecnologia. O
mundo ocidental capitalista, desde o século XVIII vem paulatinamente ordenando-se
por meio da racionalidade técnica instrumental, relegando a segundo plano aqueles
que, pelos mais variados motivos, não se apropriam do referencial de
conhecimentos técnico-científicos capazes de capacitá-los para a interação neste
horizonte tecnológico.
Mas este mundo tecnológico, ao mesmo tempo em que criava as bases
científicas de sua organização, as usava para criar, nos dizeres de Foucault (1977),
os mecanismos de controle tão necessários para seu bom funcionamento – dentre
eles, a escola e a prisão.
Assim, considerando a sociedade tecnológica
1
o entorno onde se dão as
mais variadas relações de poder que acabam por definir e ordenar o real, optou-se
por buscar os pontos de intersecção destas problemáticas.
A partir daí, propõe-se então uma análise da educação em ambiente de
privação de liberdade, uma vez que a mesma é considerada imprescindível para
promover a reintegração dos homens e mulheres presos ao mundo da liberdade.
Essa discussão se coloca para além do mundo das prisões. Afinal,
teoricamente os homens e mulheres que cometem crimes são encaminhados à
reclusão, não apenas para que seja cumprido um efeito reparador no tecido social
rompido pelo crime, mas também para que tais indivíduos de lá retornem
ressocializados.
1
Assume-se que o conceito de sociedade tecnológica é questionável. No entanto, vale ressaltar que
neste trabalho, não se tem a intenção de desvincular a sociedade tecnológica do contexto geral dos
desdobramentos assumidos pelo sistema capitalista. Tem-se a compreensão que a tecnologia não
possui caráter determinante, mas considera-se que a mesma possui um interessante valor heurístico
para a análise do real. Ao agenciar a tecnologia, em momento algum existe a pretensão de retirar das
dinâmicas do sistema capitalista sua marca na formação das estruturas da sociedade atual. Essa
discussão, sobre as relações entre a tecnologia e a sociedade, será aprofundada no decorrer deste
estudo.
11
Na prática então, a prisão assume a si o papel de reformadora de seres
humanos “decaídos”. Para tanto precisará reafirmar nos espíritos e nas almas de
seus internos aqueles valores morais que conduzem os sujeitos à vivência dos
papéis previamente determinados a eles.
Como toda instituição moderna, ela terá de se valer do discurso científico e
tecnológico. É através dele que promoverá a eleição das metodologias,
procedimentos e normatizações responsáveis pela consecução dos seus objetivos.
Neste sentido a escola cumpre papel preponderante na medida em que se
constitui como um forte mecanismo transmissor dos conhecimentos que respondem
pela construção e reconstrução das sínteses produtoras de significado para o real.
Aqui algumas indagações: a educação que se desenvolve em ambiente de
privação de liberdade corresponde ao que as modernas teorias entendem que é o
seu papel, a saber, a problematização de sua realidade, a fim de que homens e
mulheres possam escolher seus espaços de atuação a partir de suas preferências e
de sua autonomia?
Ou ela, aliada ao trabalho enquanto elemento disciplinador, será
responsável por reproduzir padrões de comportamento, contribuindo para a
conformação dos sujeitos a papéis predeterminados por estereótipos de homens e
mulheres pertencentes à determinada classe social?
Mais ainda, estará ela preparando os internos e as internas para as
constantes transformações que estão em curso no mundo extramuros? Realmente
procura levá-los a compreender a dinâmica dos processos que se desenvolvem na
sociedade à revelia dos mesmos?
12
Ou estaria se reportando a papéis e estruturas tradicionais, reforçando
estereótipos que contribuem para a manutenção de relações de poder que têm por
base a dominação?
Os educadores que trabalham dentro da prisão estão preparando os
reclusos para viverem na sociedade tecnológica que caracteriza a atualidade?
Estas questões e ponderações se fizeram presentes não apenas no
momento da elaboração da problematização que deu origem a esta pesquisa, mas
também durante todos os procedimentos referentes a este estudo.
Assim, surgiu como problema de investigação a indagação sobre quais as
representações de tecnologia e gênero presentes na educação de presas e presos,
bem como quais as representações que estes mesmos atores constroem a partir da
educação da qual participam?
A partir de tal pergunta delineou-se o objetivo geral, isto é, analisar quais as
representações de tecnologia e gênero presentes na educação de presas e presos,
bem como quais as representações que estes mesmos atores constroem a partir da
educação da qual participam.
Procurando chegar a este fim foram estabelecidos os seguintes objetivos
específicos para a pesquisa:
Analisar as representações de tecnologia presentes na educação de
presas e presos;
Analisar as representações de gênero presentes na educação de
presas e presos;
Analisar as representações construídas por presas e presos a partir
da educação da qual participam.
13
Para tanto foram delimitadas duas unidades penitenciárias de regime
fechado. Uma masculina – A Prisão Provisória de Curitiba (O Ahú) – e uma feminina
– a Penitenciária Feminina do Paraná.
Para atender aos objetivos da pesquisa foi utilizada a abordagem qualitativa
de natureza interpretativa, empregando como instrumento preferencial de coleta de
dados a entrevista semi-estruturada.
Para este estudo foram entrevistados cinco profissionais das equipes
pedagógicas das unidades delimitadas como universo de pesquisa. Além delas
foram também ouvidas dez professoras que ministravam aulas em classes de
alfabetização, do ensino fundamental de 1ª a 4ª série, do ensino fundamental de 5ª a
8ª série e do ensino médio.
Para as entrevistas com os internos das duas unidades penitenciárias optou-
se por adotar a estratégia de entrevistar grupos de convivência – peer-groups
formados por um total de vinte estudantes presos e vinte estudantes presas que
freqüentassem as mesmas classes de escolarização e estivessem cursando as
mesmas séries, tendo como objetivo o alcance das representações de grupo.
O resultado da pesquisa desenvolvida neste universo é o trabalho cuja
estrutura está apresentada na seqüência.
O primeiro capítulo apresenta os principais conceitos que fundamentam
teoricamente a pesquisa: tecnologia e gênero. Está dividido em duas partes. Tem
início com uma discussão sobre a tecnologia e suas implicações na sociedade
moderna. Para tanto recorre-se a autores como Milton Vargas, Ruy Gama, João
Augusto Bastos, Marília Gomes de Carvalho, bem como do filósofo Jurgen
Habermas.
14
Na segunda parte, através dos textos de Joan Scott e Claudia de Lima
Costa, discute-se o surgimento da categoria gênero e sua evolução histórica,
culminando na abordagem do gênero como um conceito relacional. Ainda ao final
deste capítulo, procura-se entender as implicações sociais da categoria gênero, bem
como suas relações com a tecnologia.
No segundo capítulo, ainda de cunho teórico, procede-se uma revisão
bibliográfica sobre a prisão. A partir de Michel Foucault busca-se a compreensão do
surgimento da prisão e de seu uso como tecnologia de controle social. Os estudos
de Erwin Goffman a propósito dos efeitos da prisão enquanto instituição total sobre a
estrutura do eu, também estão presentes nesta tematização. O capítulo prossegue
buscando compreender os matizes que tal instituição assume no Brasil. O
fechamento desta discussão se dá com uma análise do recorte de gênero no regime
penitenciário.
No terceiro capítulo o foco da revisão bibliográfica recai sobre a educação.
Para tanto, a partir dos escritos de Paulo Freire, faz-se uma discussão do conceito
de educação como problematizadora do mundo e como promotora da autonomia
dos sujeitos.
O capítulo segue adiante procurando entender as relações da educação com
a tecnologia e de como a abordagem de gênero permite desvendar tendências
ideológicas que a mesma pode vir a assumir. Fecha-se o debate questionando-se se
os processos de ensino aprendizagem desenvolvidos em ambientes de privação de
liberdade podem realmente ser considerados educação.
O quarto capítulo é voltado para a apresentação da metodologia adotada
neste estudo. Aqui aponta-se para a natureza qualitativa da pesquisa realizada, bem
como explicita-se como se deu a coleta dos dados.
15
O quinto capítulo é dedicado à caracterização do sistema penitenciário e
das duas unidades penitenciárias onde se desenvolve a pesquisa. Na seqüência
apresenta-se os entrevistados, a saber, as pedagogas, as professoras, as presas e
os presos entrevistados.
O sexto, o sétimo e o oitavo capítulos são destinados à apresentação e
análise dos resultados da pesquisa. A partir das categorias de análise eleitas neste
trabalho apresentam-se no sexto e sétimo capítulos, as representações de
tecnologia e gênero de pedagogas, professoras, presas e presos. No oitavo capítulo
se dá atenção especial às representações construídas pelos internos a partir da
educação da qual participam.
Nas considerações finais, promove-se uma síntese dos resultados desta
pesquisa tomando por base os objetivos propostos por este trabalho. Além disso, à
luz das reflexões surgidas durante a análise dos dados, são propostos novos temas
que poderiam ser aprofundados a partir de investigações com a mesma temática.
16
1. O foco da análise: tecnologia e gênero
A fim de que se possa desenvolver análise das representações de
tecnologia e gênero no universo da prisão, faz-se necessária uma aproximação
teórica destes conceitos. Passar-se-á, num primeiro momento, a uma análise dos
processos que constroem os vários significados da tecnologia. O passo seguinte
será a discussão da constituição histórica da categoria gênero, bem como as suas
implicações sociais em meio a uma sociedade tecnológica.
1.1 Sociedade tecnológica
A sociedade contemporânea pode ser caracterizada e identificada de
diversas maneiras e sob múltiplas perspectivas. Uma delas é afirmar seu caráter
tecnológico. Isso é uma forma reducionista de procurar explicitar toda a gama de
relações que marcam a dinâmica do mundo atual. No entanto, tem-se que, a
tecnologia se instituiu como o paradigma da modernidade.
Desde o período da Revolução Industrial, o mundo ocidental, a partir da
hegemonia da ótica burguesa da acumulação, vale-se da ciência como parâmetro de
explicação de mundo. Desta maneira, afirmar a tecnologia e a ciência como fonte de
verdade chega a ser redundante, já que os homens e mulheres contemporâneos
confiam nelas como seus antepassados confiavam nos seus deuses
2
.
2
No decorrer deste trabalho em vários momentos usar-se-á a expressão ciência no singular. No
entanto há a compreensão de que existem várias formas de se compreender ciência, bem como de
produzi-la. Como se perceberá pela leitura deste estudo, quando o mesmo produz a crítica das
ciências quer se referir àquele modelo cientificista e positivista que está ligado à racionalidade técnica
e à razão instrumental.
17
Este comportamento ficou de tal forma arraigado na vida contemporânea que fomos
levados a pensar desta maneira durante toda a nossa permanência nos bancos
escolares. A lógica primordial do comportamento humano é a lógica da eficácia
tecnológica; suas razões são as razões da ciência. As notícias do dia-a-dia
exacerbam as virtudes da ciência e da tecnologia; os produtos são vendidos calcados
nas suas qualidades embasadas em depoimentos “científicos” (BAZZO, 1998, p.113-
114).
O conhecimento científico-tecnológico – presente nos mais variados
aspectos da sociedade ocidental – chega a não ser percebido como princípio capaz
de alterar a forma como os diversos atores sociais estabelecem suas relações
pessoais e profissionais no dia-a-dia. Por este motivo, faz-se cada vez mais
necessário procurar uma compreensão global deste fenômeno.
No entanto, aproximar-se conceitualmente ou ainda, buscar o significado de
tecnologia revela-se uma dificuldade, uma vez que tal fenômeno apresenta um
caráter polissêmico, isto é, carrega em si mesmo, uma gama de significados e
interpretações, que foram sendo gestados a partir de situações tanto sócio –culturais
quanto históricas.
O trabalho da pesquisadora portuguesa Maria de Fátima Reis aponta pelo
menos oito concepções diferentes para o termo: a tecnologia como artefato, como
uma atividade com propósito, como um processo, como conhecimento, como algo
que é determinado por valores e pelo contexto, como um sistema dinâmico, como
organização social e como cultura (REIS, 1995).
Entre as várias concepções sobre o tema – algumas reducionistas e
recorrentes no senso comum, outras mais elaboradas, fruto de intensas discussões
acadêmicas – existem aquelas que compreendem a tecnologia como um artefato,
isto é, a concebem como uma série de objetos e materiais de “última geração”, a
18
própria consubstanciação do conhecimento científico-tecnológico – esta seria a que
mais estaria presente no senso comum.
Em uma outra noção, um tanto mais complexa, a tecnologia como artefato é
apresentada como um ambiente criado pelos seres humanos, que tomam por base a
natureza para criar extensões da mesma. Estes construtos seriam “proezas do homo
faber (Homem, o fazedor) que, continuamente tira partido das suas descobertas
anteriores para iniciar novos desenvolvimentos e fazer novas descobertas” (REIS,
1995).
Há outras concepções que a reduzem a um conjunto de técnicas; e outras
ainda que procuram identificá-la com equipamentos e máquinas dos quais as
empresas se valem para a produção de bens e serviços. Realmente, não há como
negar que “empresas que desenvolvem tecnologias cada vez mais avançadas
tornam-se, portanto competitivas, com condições de enfrentar um mercado cada vez
mais seletivo” (CARVALHO, 2003, p.19).
A partir do início da era moderna, tendo em vista um desenvolvimento
econômico em bases cada vez mais velozes e eficientes, buscou-se agregar de
forma progressiva conhecimento científico às técnicas de produção. O saber fazer
passou a estar ancorado em experiência e em teoria científica.
Um dos desdobramentos deste processo histórico, está presente na
concepção de tecnologia como ciência aplicada defendida por Vargas, que afirma
que a mesma “é o estudo ou tratado das aplicações de métodos, teorias,
experiências e conclusões das ciências ao conhecimento dos materiais e processos
utilizados pela técnica” (VARGAS, 1994, p. 213).
Tais aspectos pragmáticos e instrumentais dos conhecimentos tecnológicos
foram amplamente adotados e difundidos pelas sociedades que se pautam pelos
19
sistemas de mercado. Como já foi apontado anteriormente, quanto mais capazes de
gerar e incorporar tecnologias de ponta aos seus sistemas produtivos, mais
capacitadas se tornam, estas mesmas sociedades, para atuar num mundo
globalizado.
Como se verá adiante, este logos adotará no ocidente características
ideológicas no decorrer da era moderna. Tal racionalidade será duramente criticada
pela Teoria Crítica, proposta pela Escola de Frankfurt
3
, na medida em que a mesma
entende que a vida humana será submetida à tecnocracia. Marcuse, citado por
Araújo aponta que
A dinâmica do progresso técnico está sempre impregnada de conteúdo político. O
logos da técnica tornou-se o logos da servidão. A força da tecnologia que poderia ser
libertadora – pela instrumentalização das coisas – tornou-se um entrave à libertação
pela instrumentalização dos homens (ARAÚJO, 2004, p. 22).
Outra concepção ampla de tecnologia procura apresentá-la como “ciência do
trabalho produtivo” (GAMA, 1987, p.178). Poder-se-ia assim, pensar em tecnologia a
partir do surgimento do sistema capitalista, quando, pelo incremento das técnicas
produtivas advindas do conhecimento científico agregado, ocorrem profundas
transformações no mundo do trabalho, todas elas tendo como objetivo a produção
de um valor de mercadoria que será trocado por capital.
Para este autor, então, tecnologia é:
3
A Escola de Frankfurt teve sua origem por volta do início da década de vinte.Tinha por preocupação
principal a elaboração de uma teoria crítica da sociedade, a partir da qual se fizesse emergir as
contradições da sociedade capitalista. Para tal tarefa, tomaram por base, pelo menos no inicio, os
escritos de Hegel, Marx e Freud. Entre seus principais expoentes podem ser citados Max Horkheimer,
Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse e Jurgen Habermas. Todos, de alguma forma
promovem a critica da razão instrumental e da racionalidade técnica, na medida em que as mesmas
não foram capazes de promover aquilo que, no entender dos frankfurtianos, era a maior proposta do
projeto iluminista: a emancipação e a liberdade do homem (REALE e ANTISERI, 1990). Para outras
leituras sobre a escola, ver ainda Bárbara Freitag (FREITAG, 1990).
20
estudo e conhecimento científico das operações técnicas ou da técnica. Compreende
o estudo sistemático dos instrumentos, das ferramentas e das máquinas empregadas
nos diversos ramos da técnica, dos gestos e dos tempos de trabalho e de custos, dos
materiais e da energia empregada (GAMA, 1987, p.30).
Neste sentido, Ruy Gama procura perceber que a tecnologia possui
implicações outras que não apenas a instrumental – já que admite que se deva
contemplar as dimensões sócio-culturais nas quais a mesma é produzida.
Afirma ainda, ser a tecnologia uma ciência, possuindo quatro dimensões
especulativas: a tecnologia do trabalho, a tecnologia dos materiais, a tecnologia dos
meios de trabalho e a tecnologia básica ou praxiologia. Tais divisões não seriam
estanques, mas estariam imbricadas num modelo – representado geometricamente
por um tetraedro – que permitiria um exame mais completo de todo o sistema
produtivo (GAMA, 1987).
Assumindo-se as posições expostas até aqui, mas também buscando um
esforço de ir para além das mesmas, deve-se compreender a tecnologia e a ciência
como processos sociais
4
e assim, tomá-las em seu caráter de constante
transformação, sujeitas à dinâmica de interação com o mundo no qual vivem
homens e mulheres. Em outras palavras, a tecnologia se afirma não apenas
historicamente, mas também sócio culturalmente, já que:
a dimensão da História torna-se, pois, o elo para nos aproximar dos cernes das
técnicas e das tecnologias. Estas não são fatos isolados ou fragmentos de peças
fragmentadas.Tudo é revestido de história, de acontecimento e de ação humana
interpretando a vida e reconstruindo seu destino (BASTOS, 1997, p.12).
O autor busca entender o mundo atual e a sociedade como um todo a partir
de um contexto tecnológico. Sob esta ótica a tecnologia seria o quadro referencial, o
4
A concepção de tecnologia como processo social que será desenvolvida neste trabalho toma como
referência os trabalhos de João Augusto Bastos (BASTOS, 1998) e Marília Gomes de Carvalho
(CARVALHO, 2003), bem como a produção dos alunos do PPGTE, dentre as quais destacam-se
dentre outras, as dissertações de mestrado de ARAÚJO (2004); FEITOSA (2004); MIRANDA (2002) e
QUEIROZ (2001).
21
próprio pano de fundo a partir do qual todos os demais fenômenos sociais ocorrem.
Assim, a mesma é capaz de construir mentalidades, desenvolver linguagem própria,
estruturando pensamentos, gerando valores e transformando os já estabelecidos.
A partir disto os indivíduos se vêem obrigados a adquirir um instrumental de
saberes que lhes serão essenciais para sua inserção e participação na estrutura
social. No entanto, a produção de tais conhecimentos está ligada a uma lógica, a
uma forma de organização racional que, marcando de forma mais relevante as
relações de produção, perpassa toda a sociedade.
Tal lógica pode ser identificada na intersecção entre o desenvolvimento
tecnológico dos sistemas produtivos e o avanço do capitalismo enquanto modo de
produção, capaz de promover a acumulação de capital. O próprio processo de
criação e desenvolvimento científico acaba por se submeter a essa lógica:
(...) permanece o mito da ideologia da industrialização como condição essencial para
o crescimento econômico baseado muito mais na geração de riquezas do que na
distribuição de renda. Ainda, presencia-se o mito das novas tecnologias como
formadoras do ‘admirável mundo novo’, importadas indiscriminadamente para
solucionar problemas fora de contextos regionais e sociais” (BASTOS, 1998, p. 15).
Carvalho, a partir de uma perspectiva marxista, afirma que sob a ótica do
capitalismo:
O aumento da produtividade passa a ser o ponto crucial da produção. Isto porque
com o aumento da produtividade, quanto mais se produz mais se consegue vender,
e, portanto, mais se realizam os lucros, permitindo assim a reprodução ampliada do
capital. Quanto menos força de trabalho se utiliza, com o uso de mais avançados
instrumentos de produção, maior tende a ser a taxa de lucro e conseqüentemente,
maior a acumulação (...). É desta forma que o desenvolvimento das forças produtivas
é fundamental para a expansão ampliada do capital e o desenvolvimento tecnológico
[se torna], cada vez mais, seu ‘carro chefe’ (CARVALHO, 1997, p. 71).
A lógica da acumulação capitalista reorganiza as relações entre os seres
humanos. Marx analisa este processo afirmando que a exploração da força de
22
trabalho é um fator que leva o trabalhador a ser encarado apenas como uma peça
no processo produtivo (CARVALHO, 1997).
O modelo de sociedade que tem por base a tecnologia aliada ao modo de
produção capitalista, apresenta-se de forma excludente e desigual
5
, na medida em
que marginaliza aqueles que não têm o domínio de uma série de conhecimentos
técnico-simbólicos, necessários para apreender as diversas dinâmicas impostas por
esta sociedade. Isto porque, as configurações sociais, que atuam por critérios que
têm a classe, a raça e o gênero como referenciais, acabam por não permitir o
acesso de forma igualitária àqueles conhecimentos.
O aumento das desigualdades de renda atingem, em especial, as classes
marginalizadas que residem nos centros urbanos (...) tornando cada vez mais visíveis
as contradições do sistema. No seio da sociedade (...) dominada pelo capitalismo,
reproduzem-se constantemente as contradições de classe, os antagonismos, as
hierarquias e as diversidades sociais. De fato o desenvolvimento do capitalismo pode
ser caracterizado como desigual, combinado e contraditório. (...) (SANTOS, T. S.,
2001. p.184).
Não se trata aqui de demonizar as práticas tecnológicas. Ao se analisar as
relações entre ciência e técnica desde o início da modernidade, não há como negar
que o progresso tecnológico trouxe no seu bojo um grande leque de possibilidades
que tornam a vida humana mais fácil.
5
Estes setores sociais acabam por se colocar numa posição muito delicada, na medida em que não
ter acesso a conhecimentos de ordem cientifica e tecnológica impede que os indivíduos possam se
inserir no sistema produtivo. Pode-se perceber facilmente que “(...) os setores sociais assalariados,
desempregados, pauperizados e migrantes são os mais atingidos [por tal processo de
exclusão],
agravando as tensões e fragmentações” (CARVALHO, 1997, p. 81). Faz-se uma referência à
escalada da violência urbana. Embora não se possa estabelecer relações de causalidade e
determinação entre educação, empregabilidade e violência urbana, não há dúvidas que este são
alguns dos fatores que promovem o isolamento entre as classes sociais e o crescimento dos mais
variados tipos de violência que estão no entorno deste trabalho. Assim “(...) a sociedade brasileira
vem conhecendo taxas de violência nas suas mais distintas modalidades: crime comum, violência
fatal conectada ao crime organizado, graves violações dos direitos humanos, explosão de conflitos
nas relações pessoais e intersubjetivas. Em especial, a emergência do narcotráfico, promovendo a
desorganização das formas tradicionais de socialidade entre as classes populares urbanas,
estimulando o medo das classes médias e altas e enfraquecendo a capacidade do poder público em
aplicar a lei e a ordem, têm grande parte na construção do cenário de insegurança coletiva.”
(ADORNO, 2002, p. 87-88)
23
No entanto, esta perspectiva torna-se problemática quando é interpretada
sob a ótica do determinismo tecnológico, isto é quando aponta que a única via para
o desenvolvimento para todos os povos é o modelo científico tecnológico adotado
pelo ocidente na modernidade
6
.
Reforçando esta idéia, Carvalho aponta que seria necessário um esforço de
análise histórica, a fim de observar que as sociedades modernas e industriais – que
sofrem o impacto direto das constantes transformações e inovações tecnológicas –
constituem uma ínfima parcela da história se comparados à totalidade do
desenvolvimento técnico cultural da humanidade.
Cabe ainda analisar que, mesmo contemporaneamente, podem ser
encontrados em diversas partes do globo, culturas que não incorporaram às suas
práticas sócio-culturais o modelo científico tecnológico que é hegemônico no
ocidente.
Diante destes dados, pode-se refletir que a sociedade mercantil capitalista, com base
no desenvolvimento tecnológico, não é a única possibilidade de organização social
criada pela humanidade.Ela é passível de mudança e superação assim como já
aconteceu com outras formações do passado (CARVALHO, 1997, p.73).
Por outro lado, a tecnologia enquanto fenômeno humano e processo social
possui características paradoxais. Isto porque ao mesmo tempo em que promove a
re-significação das ações e dos atos humanos, gerando o homem civilizado, também
é capaz de promover a reificação do homem
7
.
6
Embora sob os mesmos fenômenos, indivíduos que pertencem à mesma sociedade acabam por
construir diferentes sistemas de valores e pensamento. De certa forma, tal afirmação se torna
evidente quando se analisa os diversos construtos sociais que aparecem à margem das economias
de mercado (CARVALHO, 1997).
7
Numa linha um tanto distinta do raciocínio que se faz aqui, mas também pertinente ao contexto geral
deste estudo, é importante que se reflita que a geração do homem moderno e civilizado não se deu
sem algum custo. A partir de Durkheim, Elias e Freud, Bodê de Moraes (2005) argumenta que a
humanidade promove seu processo civilizador a fim de alcançar a felicidade coletiva, sendo que para
tanto teve de agenciar uma série de mecanismos de controle a fim de frear instintos primitivos – tais
como a vivência exarcebada da sexualidade e da agressividade. No entanto, apesar de tais controles
24
Se a tecnologia permitiu uma explosão produtiva e melhorou assim as condições de
vida de parcelas significativas da humanidade, ela também, tornada propriedade
privada e subordinada cada vez mais à lógica do modo de produção capitalista, tem
gerado exclusão e miséria e arranhado perigosamente os limites da própria
sobrevivência da espécie humana (FARACO, 1998, p.07).
O século XX foi especialmente pródigo em produzir a crítica desta
racionalidade técnica – talvez por ser neste período que seus efeitos tornaram-se
mais evidentes. Em especial os estudiosos da escola de Frankfurt desenvolveram
um corpo teórico onde apontavam os limites daquilo que chamavam razão
instrumental capitalista. O filósofo Jürgen Habermas (1983) denunciou o valor
extremado e desprovido de crítica que boa parte da sociedade ocidental
contemporânea atribuiu ao desenvolvimento tecnológico.
Ancorado nos estudos de seus colegas frankfurtianos, e buscando
aprofundar ainda mais suas discussões, afirmou ser a tecnologia uma ideologia. Isto
se evidencia no caráter acrítico com que a sociedade ocidental contemporânea
elabora suas construções valorativas, bem como seus sistemas de representação de
mundo a partir de critérios técnico-científicos.
Assim denuncia que a racionalidade instrumental acaba por migrar dos
campos técnico-produtivos e passa a contaminar as relações inter-pessoais, bem
como as do homem com a natureza ao seu redor, numa tentativa estéril de traduzir a
subjetividade humana em objetividade fria e calculável:
terem permitido uma vida social mais segura, na medida em que garantia ao Estado o monopólio do
uso da violência física, tiveram como conseqüência que, se por um lado “(...) vida torna-se menos
perigosa [por outro torna-se] menos emocional ou agradável, pelo menos no que diz respeito à
satisfação direta do prazer” (ELIAS apud BODÊ de MORAES, 2005, p.92). Seguindo este raciocínio,
tem-se outro paradoxo, já que ao mesmo tempo em que a civilidade é condição para uma vida mais
feliz, é também causa de um mal estar na civilização, já que limita as possibilidades de satisfação
direta do prazer.
25
O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza passou
a fornecer tanto os conceitos puros, como os instrumentos da dominação cada vez
mais eficaz do homem pelo Homem, através da dominação da natureza (...) Hoje a
dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas
enquanto tecnologia, e esta, garante a formidável legitimação do poder político em
expansão que absorve todas as esferas da cultura (...) (HABERMAS, 1983, p.305).
Este é o discurso hegemônico da sociedade moderna, constituindo-se naquilo
que os frankfurtianos criticavam como tecnocracia, isto é, a redução de todas as
instâncias da vida humana aos padrões tecnológicos impostos pela ciência. Araújo,
a partir deste pano de fundo afirma que
Para Habermas, um crítico otimista do grande projeto iluminista da modernidade,
projeto este obscurecido pela racionalidade com-respeito-a-fins, mas não acabado, a
saída deste beco gnosiológico que a razão criou para si, no instante da sua
instrumentalização e burocratização, em seu eclipse, parafraseando Adorno e
Horkheimer, está na construção de uma nova racionalidade. É necessário uma
“guinada lingüística”. É necessário uma racionalidade comunicativa (ARAÚJO, 2004,
p. 22).
Por este modelo, o uso da racionalidade estaria voltado para o
desenvolvimento da interlocução entre indivíduos portadores de capacidade
lingüística. Tem como pressuposto que os atos de linguagem buscam a
compreensão e o entendimento e não uma mera racionalidade direcionada pura e
simplesmente para a consecução instrumental de objetivos pré-estabelecidos.
O papel da razão comunicativa para Bastos, também poderia ser
compreendido como interlocução entre os sujeitos já que no seu entender Habermas
(...) propõe a reconstrução da racionalidade através do ato lingüístico. Da ra{ão
transcendental que eocerra o sujeito solitário passa-se para a razão comunicativa que
consiste no processo de interação entre sujeitos, e como tal se compreendem. O
pensamento está em reviravolta, pois a filosofia da atividade transcendental, que
tematiza condições de possibilidades de objetivação dos objetos, é substituída pela
filosofia da linguagem, que tematiza possibilidades de ação social comunicativa,
reconstruindo o sistema de regras de entendimentos entre os sujeitos (BASTOS,
1998, p.55).
26
Todo este esforço se faz necessário porque temos contemporaneamente,
uma racionalidade técnico-capitalista, que se expande de forma não democrática, a
fim de realizar altos níveis de produtividade e lucratividade, ao mesmo tempo que
uma parcela cada vez maior da sociedade – impedida de alcançar as benesses
deste mundo técnico moderno – busca de alguma forma se manter integrada ao
sistema social. Milton Santos afirma que
(...) vivemos, nos diversos níveis da vida econômica, social, individual, uma
racionalidade totalitária que vem acompanhada de uma perda da razão. Um
escândalo de carências e de escassez que atinge uma parcela cada vez maior da
sociedade permite conhecer a realidade desta perdição. E uma boa parcela da
humanidade, por desinteresse ou incapacidade, não é mais capaz de obedecer a leis,
normas, regras, mandamentos, costumes, derivados dessa racionalidade
hegemônica. Daí a proliferação de ‘ilegais’ , ‘irregulares’, ‘informais’. (...) (SANTOS,
2000)
Após todas estas considerações pertinentes a uma melhor compreensão do
contexto da sociedade tecnológica, pode-se chegar à indagação: afinal o que é
tecnologia?
A partir das leituras de Milton Vargas e Ruy Gama, sob a ótica de Habermas
e dos frankfurtianos, Bastos aponta que a tecnologia
(...) pode ser entendida como a capacidade de perceber, compreender, criar, adaptar,
organizar e produzir insumos produtos e serviços. Em outros termos a tecnologia
transcende à dimensão puramente técnica, ao desenvolvimento experimental ou à
pesquisa em laboratório; ela envolve dimensões de engenharia de produção,
qualidade, gerência, marketing, assistência técnica, vendas, dentre outras, que a
tornam um vetor fundamental de expressão da cultura das sociedades (BASTOS,
1998, p. 32).
A partir desta perspectiva, Carvalho procura entender as dimensões daquilo
que se entende por tecnologia, apontando que é preciso pensá-la a partir das
condições materiais que estabelecem as relações dos grupos humanos com a
realidade à sua volta. Assim
(...) a tecnologia perpassa todas as formações sociais porque na produção das
condições materiais de vida, necessárias a qualquer sociedade, é imprescindível a
27
criação, apropriação e manipulação de técnicas que carregam em si elementos
culturais, políticos, religiosos, econômicos constituintes da concretude da existência
social. Deste ponto de vista, a tecnologia está intrinsicamente presente tanto numa
enxada quanto num super computador (CARVALHO, 2003, p.20).
Afirma-se assim o caráter da tecnologia como processo social, uma vez que
não é possível pensá-la desvinculada de um determinado contexto histórico e social.
Contexto este que será permeado por manifestações que estarão marcadas por
disputas e interesses socioeconômicos, relações de poder e conflitos sociais, sendo
a sua geração, apropriação, distribuição e consumo mediadas por todas estas
manifestações.
Há que se proceder a investigação de como os diversos agentes sociais têm
compreendido este processo. Embora pareça claro que, para os gestores de
sistemas empresariais, a tecnologia é encarada como uma poderosa força produtiva,
parece que o seu significado ainda possa ser obscuro para uma boa parcela da
população
8
.
De fato, exatamente para aquelas parcelas da população que terão suas
vidas totalmente modificadas – na medida em que a dinamização dos sistemas
produtivos reduz sua possibilidade de acesso à empregabilidade – o sentido da
tecnologia parece ainda distante.
O que dizer então dos que foram excluídos do processo produtivo, daqueles
que por questões subjetivas e estruturais se encontram isolados da sociedade?
Embora a tecnologia seja uma das marcas da sociedade ocidental capitalista
– ao ponto de ser chamada de sociedade tecnológica – não é a única chave para a
compreensão de sua estrutura cultural. Uma compreensão maior e mais rica de suas
8
Conclui-se também que, mesmo tendo uma visão mais ampla do significado e da importância da
tecnologia, estes mesmos gestores ainda possuem uma visão reducionista da questão na medida
que não a pensam fora dos contextos de produção.
28
dinâmicas e processos exige que outros conceitos sejam agregados à sua
discussão.
Uma outra categoria de análise importante para a compreensão da realidade
social seria a abordagem de gênero, uma vez que a mesma permite perceber como
se processam uma série de fenômenos relevantes no que se refere à dinâmica das
relações de poder estabelecidas na sociedade – mais explicitamente, como se
consolidam e se estruturam os papéis sociais para homens e mulheres.
1.2 Gênero
Para entender as condições que levaram ao uso da categoria gênero dentro
das pesquisas de cunho social, é necessário que se reporte a uma trajetória histórica
que remonta aos meados dos anos sessenta. Naquele momento o movimento
feminista apresentava críticas contundentes às discriminações sofridas pelas
mulheres no mundo ocidental. Sua ação política dava-se no sentido de obter
posições de igualdade dentro da sociedade. Sua estratégia era o questionamento da
base biológica que servia de fundamento àquela desigualdade.
Tais movimentos, ao mesmo tempo em que procuravam tornar a mulher um
sujeito coletivo, promoviam uma diversidade de estudos que tinham por objetivo
problematizar a condição feminina, na medida em que deslocavam a diferença dos
papéis masculinos e femininos do campo da biologia para o da história e demais
ciências sociais. Assim
À medida que os aspectos masculinos e femininos eram tratados, não apenas como
diferenças biológicas, mas sim diferenças construídas socialmente, ou seja da sua
29
desnaturalização, o termo gênero passou a ser mais indicado como forma de
enfatizar a influência da cultura na construção dessas diferenças que tem por base
características biológicas (CARVALHO, 2003, p.15).
A princípio esta categoria surgia como uma alternativa para a discussão das
relações de poder entre homens e mulheres, permitindo um certo distanciamento da
ação política do movimento feminista e possibilitando a devida isenção que a
academia necessitava para a análise do tema. Então, "esse uso do termo 'gênero'
constitui um dos aspectos daquilo que se poderia chamar de busca de legitimidade
acadêmica para os estudos feministas, nos anos 80" (SCOTT, 1995, p.75).
Tal transição não se deu sem alguma resistência: houve pesquisadoras que
não estavam dispostas a abrir mão do sujeito político mulher, que havia sido
construído com esforço, e viam com desconfiança o uso da nova categoria, que no
seu entender, não era ameaçadora o suficiente para uma prática política relevante
(SIMIÃO, 2000).
Embora de início o termo gênero tenha sido empregado praticamente como
sinônimo da categoria mulher, o seu uso por diferentes áreas acadêmicas acabou
por lhe conferir uma série de significados e interpretações diversos. Isto porque “(...)
antropólogos, sociólogos, psicólogos, cientistas políticos foram dando cores
diferentes ao conceito, conforme a bagagem conceitual específica que suas
disciplinas traziam" (SIMIÃO, 2000, p. 7).
A pesquisadora Claudia de Lima Costa analisa como o termo adquiriu um
caráter polissêmico, na medida em que a sua utilização não foi única. Aponta que o
mesmo sofre diferentes leituras e interpretações: gênero como variável binária;
gênero como papéis sexuais dicotomizados; gênero como uma variável psicológica,
gênero como tradução de sistemas de culturas e gênero como relacional.
Subjacente ao enfoque de gênero como variável binária – que enquadra,
sem considerar a variedade de possibilidades para papéis masculinos e femininos,
30
todos os indivíduos como simplesmente homens e mulheres, – existe a posição de
que as categorias lingüísticas são determinadas a partir das diferenças sexuais.
Homens e mulheres têm características diferenciadas. Isso fica evidente pelo
uso da linguagem. Eles se expressam mais diretamente, de forma autoritária. Elas,
porém, teriam uma locução mais plena de nuances e sub-entendidos (COSTA,
citada por SIMIÃO, 2000).
Esta visão não leva em conta as condições sociais, históricas e culturais que
dão origem aos diferentes usos que homens e mulheres fazem da linguagem. É em
meio a tais circunstâncias e a partir das suas necessidades que os mesmos
estabelecem comunicação. Limitar gênero à descrição das diferenças sexuais,
ignorando o contexto acima é cometer um reducionismo.
Na perspectiva que procura entender o gênero como papéis dicotomizados,
parte-se do pressuposto que a realidade social se apresenta com alguns papéis já
definidos para os homens, assim como outros já estariam pré-estabelecidos para as
mulheres. Estes definem não apenas como se dão as relações entre os sexos, mas
também a própria percepção que têm de si mesmos.
Interpretando desta forma a dinâmica dos papéis masculinos e femininos,
abre-se mão de analisar um rico campo de considerações, a saber, as relações
entre gênero e poder, uma vez que é através das mesmas que aqueles papéis são
gerados, definidos e determinados.
Há que se considerar também que
(...) a teoria dos papéis não fornece um relato adequado da mudança social. Os
teóricos vêem a mudança como algo que acontece para os papéis de cada gênero
(...) não como algo que surge dentro das relações entre os gêneros em conseqüência
da interação dialética entre a prática social e a estrutura social" (COSTA, 1994, p.
149).
31
Como toda visão dicotomizada e dualista, essa perspectiva mostra-se
parcial. Ao buscar compreender os papéis que homens e mulheres assumem no
complexo emaranhado das configurações sociais, não considera que também
tomam parte desta dinâmica, fatores outros, tais como a classe social, a etnia ou
ainda, a vivência da religiosidade. No entanto, há que se considerar o avanço dessa
perspectiva de gênero, na medida em que descarta que o comportamento masculino
e feminino seja diferenciado em bases puramente biológicas (CASAGRANDE e
CORREA, 2002).
A construção da categoria gênero como uma variável psicológica teve uma
grande contribuição de profissionais da área da psicologia. Trataram de procurar
concebê-lo como uma das forças que orientam a formação da personalidade. Nesse
sentido, ”(...) desenvolveram um instrumento onde as diferenças entre masculinidade
e feminilidade constituiriam mais uma questão de grau do que de oposição”
(COSTA. 1994, p. 150).
Para a análise, foi pensada uma escala cujos extremos estariam
simbolizados pelo masculino e pelo feminino; sendo que assim poder-se-ia localizar
os indivíduos entre os mesmos. A androginia, considerada o ponto ideal de
equilíbrio, estaria localizada ao centro da escala.
Algumas críticas foram levantadas a esta perspectiva. As principais foram no
sentido da impossibilidade de se precisar o que tal escala era capaz de medir e nem
o significado de tal aferição. Além do que, percebeu-se que aquilo que era
considerado mais masculino, estava associado com altos níveis de
instrumentalidade e, o mais feminino com expressividade
9
.
9
Note-se que aqui instrumentalidade está ligado àquelas características objetivas e pragmáticas
necessárias à atuação no mundo público. Expressividade está associada à características subjetivas,
voltadas ao mundo interior e à vivência dos sentimentos comuns no mundo privado.
32
A partir daí, Costa infere que "(...) o gênero como força ou orientação
psicológica, continuou fundamentando noções tradicionais de masculinidade e
feminilidade e terminou por reificar ainda mais esta mesma distinção a que se
propunha dissolver" (COSTA, 1994, p.152).
A concepção que trata gênero como tradução de sistemas culturais afirma
que homens e mulheres pertencem a sistemas sociais diferentes e incomensuráveis.
Segundo Costa, os defensores desta visão justificam que
(...) as experiências da mulher como aquelas que cuidam, alimentam e pacificam,
permitiu-lhes criar uma cultura diferente e articular diferentes epistemologias, como
valores culturais e estéticos alternativos. A diferença se torna então um conceito-
chave para significar que as mulheres têm uma voz, psicologia e experiências de
amor diferentes. Essa ‘contra-cultura’, fundada no mundo de cooperação,
participação e sensibilidade da mulher quanto às necessidades dos outros influencia,
por sua vez, o estilo de seu discurso ao fazê-lo mais pessoal, relacional e ligado ao
contexto do que a linguagem do homem (COSTA, 1994, 153-154).
Esse itinerário de experiências diversas situaria homens e mulheres em
mundos sociolingüísticos diferentes e com poucas possibilidades de interpenetração,
já que os mesmos, desde a infância, estão inseridos num processo de vivência e
disseminação de valores e modos culturais opostos – diferenças que vão desde as
regras de interação aos modos de discurso.
Há que se chamar atenção para o forte apelo político que esta teorização
traz em si mesma. Além de se correr o risco de romantizar o universo feminino – o
que pode obscurecer as bases reais da dominação – não se deve esquecer que:
(...) embora haja fatores econômicos, políticos, históricos e ideológicos bastante reais
e concretos que contribuem para manter as mulheres como uma sub cultura política
separada (...) o discurso sobre ‘mundos separados’ põe demasiada ênfase na
diferença, negligenciando as importantes semelhanças entre os seres humanos
(COSTA, 1994, p. 155).
33
No mais, não se deve ignorar a multiplicidade de vozes que permeiam um
universo supostamente feminino, se é que este é possível. Como as mulheres não
são todas iguais, há que se considerar que critérios como classe, raça, etnia, idade,
etc. serão decisivos em seu posicionamento. A partir de Barrie Thorne, Costa afirma
que esta concepção de gênero como sistema cultural implica em relegar a segundo
plano toda a diversidade existente dentro do próprio gênero feminino (COSTA,
1994).
Após a exposição de algumas das principais acepções que o termo gênero
pode assumir, faz-se necessário explicitar a perspectiva que este trabalho adotará, a
saber, o gênero como relacional, uma vez que existe a compreensão de que se
constitui em uma útil categoria de análise histórica e cultural.
Isto porque o mesmo parte da totalidade do sistema social em que homens e
mulheres se relacionam, evitando concepções dualistas ou estáticas mas
considerando a realidade como um todo dinâmico onde a vivência da masculinidade
e da feminilidade estão permeadas por relações de poder.
Neste contexto, admite que existe uma diversidade de papéis desenvolvidos
e vivenciados por homens e mulheres a partir da gama de fatores culturais que
interagem na construção de suas identidades. Assim, segundo Costa, "os gêneros
passam a ser entendidos como processos também moldados por escolhas
individuais e por pressões situacionais compreensíveis somente no contexto da
interação social" (COSTA, 1994, p. 161).
Trata-se de enfocar as relações de gênero como construção histórica, isto é,
como fruto das relações econômicas, políticas e ideológicas que a sociedade foi
construindo ao longo do tempo, na medida em que definia papéis diferenciados para
34
mulheres e homens. Assim a pesquisadora Joan Scott, ao analisar este contexto
teórico indica que:
(...) a palavra gênero indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no
uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’. O termo gênero enfatizava
igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas
que estavam preocupadas pelo fato de que a produção de estudos sobre mulheres se
centrava nas mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo
‘gênero’ para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário analítico.
Segundo esta visão, as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos
e não se poderia compreender qualquer um dos sexos por meio de um estudo
inteiramente separado (SCOTT, 1995, p.73).
Propõe-se o uso do gênero como categoria de análise, numa abordagem
relacional – isto é, que pretende compreender a dinâmica dos papéis masculinos e
femininos a partir das relações de poder estabelecidas histórica e culturalmente
entre os sexos.
Neste contexto Carvalho afirma que:
(...) homens e mulheres passaram a ser vistos como seres que não nascem com seus
papéis e regras de comportamento impressos em seus códigos genéticos, mas sim
como pessoas que aprendem, através da vida social, aquilo que é mais indicado e
socialmente aprovado fazer, acreditar, realizar, enfim, ser, de acordo com o código
cultural de seu meio social. Desta forma, não há um único padrão de comportamento
para homens e outro para as mulheres, mas tantos quantos forem o número de
sociedades ou de situações vividas (CARVALHO, 2003, p. 15-16).
Aliada a esta concepção de gênero, mas buscando ir além de uma
interpretação do mesmo em que o corpo e o sexo seriam vistos como apenas uma
espécie de “cabide” onde se pendurariam as características culturais construídas a
partir das relações sociais específicas a que os sujeitos pertencem, as
pesquisadoras pós-estruturalistas contribuem para a ampliação desta categoria.
Linda Nicholson, procurando promover a superação de uma certa dualidade
entre aspectos culturais e biológicos, afirma a importância que o corpo adquire na
leitura do mapa de semelhanças e diferenças entre homens e mulheres: “Nesse
35
mapa o corpo não desaparece; ele se torna uma variável historicamente específica
cujo sentido e importância são reconhecidos como potencialmente diferentes em
contextos históricos variáveis” (NICHOLSON, 2000, p.36).
Tendo então definido o enfoque de gênero a ser adotado por este trabalho,
poder-se-á desenvolver um segundo momento do mesmo, ou seja, a análise de
como foram sendo construídas as relações de poder a partir dos gêneros masculino
e feminino na sociedade ocidental capitalista, marcadamente tecnológica.
1.2.1 Gênero e sociedade
Sabe-se que as diferentes culturas solucionam de forma singular a
satisfação de suas necessidades, sejam elas materiais ou simbólicas. A partir de
diferentes formas de interação com o meio, as sociedades humanas produzem
construtos que acabam por definir os diferentes papéis que os indivíduos ocuparão
nestas sociedades. É neste contexto então, que as relações entre os gêneros estão
imbricadas e podem ser percebidas.
No entanto, “(...) não são definitivas nem estáticas. Elas se transformam, não
só de acordo com o processo histórico, mas também na medida em que as
necessidades sociais assim impõem” (CARVALHO, 2003, p. 16).
Assim, será possível perceber uma diversidade de situações ao redor do
globo, onde os diversos agrupamentos humanos delimitaram de forma diferenciada
as atividades atribuídas a homens e mulheres. Pode-se afirmar que as mesmas
estão permeadas pelos valores que compõem a visão de mundo de cada um destes
povos.
36
Exatamente por ser parte constitutiva da maneira como as várias sociedades
entendem o mundo, a divisão dos papéis sexuais dentro das várias sociedades,
como já foi indicado anteriormente, tende a ser naturalizada. Romper com tal
naturalização exige um esforço que, segundo Bourdieu:
(...) é indispensável para quebrar a relação de enganosa familiaridade que nos liga à
nossa própria tradição. As aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um
longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social
produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a relação entre as
causas e seus efeitos e fazer ver uma construção social naturalizada (os ‘gêneros’
como habitus sexuados), como fundamento in natura da arbitrária divisão que está no
principio não só da realidade como da representação da realidade (...) (BOURDIEU,
1999, p. 9-10).
A partir desta perspectiva, e buscando compreender a gama de matizes que
as relações de gênero assumiram no ocidente, chega-se à constatação de que neste
modelo, “ao homem corresponderia o papel instrumental de provedor da família,
enquanto à mulher papel expressivo de responsabilidade pelo bem estar emocional
da família” (CARVALHO, 2003, p. 16).
Compreende-se a partir daí, a construção histórica dos estereótipos que
reservam ao homem o espaço público e o ambiente da rua, enquanto relega as
mulheres ao mundo privado, o ambiente doméstico.
É o caso, por exemplo, da inserção de homens e mulheres no mundo do
trabalho: pesquisas nesta área demonstram haver uma separação entre o público e
o privado, entre o mundo da produção e o ambiente familiar, sendo que os primeiros
estariam ligados de modo “natural” ao espaço masculino e os segundos, da mesma
forma, ao espaço feminino (PEDRO, 1994).
Tem-se que este modelo, como já foi apontado anteriormente, acaba por ter
um papel decisivo na construção das identidades masculinas e femininas. Neste
contexto, citando Parsons, CARVALHO aponta criticamente que:
37
(...) aos homens coube desenvolver características psicológicas correspondentes às
suas atividades no mundo público que se manifestariam por meio do pensamento
racional, agressividade, assertividade e segurança. [E às mulheres], tendo em vista
suas tarefas domésticas e cuidados com as crianças na esfera privada, deveriam
desenvolver mais a afetividade do que os homens e por isso aprendem a ser
amorosas, delicadas e pacientes (CARVALHO, 2003, p.16)
Esta conformação social acaba por instituir modelos com possibilidades
muito específicas para a manifestação do masculino e do feminino, o que – além de
possibilitar espaços para situações de dominação/subordinação – faz com que
aqueles que não se encaixem nos estereótipos previstos para o seu sexo, enfrentem
situações de discriminação.
Nas sociedades modernas e industriais, a racionalidade técnica – oriunda
das áreas ligadas à produção – tende a migrar para outras áreas do agir humano.
Assim, as atividades masculinas, permeadas por altos níveis de instrumentalidade,
são mais reconhecidas e valorizadas – inclusive porque estão ligadas à esfera
pública e são geradoras de bens e riquezas materiais.
Por outro lado, as atividades femininas – inseridas na esfera do mundo
privado ou doméstico – são desvalorizadas e raramente são definidas como
trabalho, e, uma vez que não são remuneradas, adquirem um status inferior
(CARVALHO, 2003).
Já foi salientado que o gênero é um construto social oriundo das relações
estabelecidas histórica e socialmente entre os sexos e, assim sendo, a partir destas
conformações concretas, não poderá ter como fruto papéis unificados para o
masculino e para o feminino.
Pelo contrário, a partir da multiplicidade de situações sociais encontradas em
grandes centros urbanos – comuns nas sociedades industriais – é mais provável que
38
gere uma grande diversidade de possibilidades de papéis tanto para homens como
para mulheres.
Isto porque, nestas sociedades:
As relações sociais são cada vez mais diversificadas, e os modelos de referência são
colocados em cheque a todo o instante, de forma tal que a negociação de
significados ocorre em todos os grupos e situações sociais, quase que o tempo todo.
As pessoas não se comportam, portanto, sempre da mesma maneira (CARVALHO e
NASCIMENTO, 2003, p.35).
A partir daí é compreensível que as relações de poder, que definem as
bases de dominação e subordinação, não sejam estanques e ultrapassem a esfera
do masculino e do feminino. Nesta conformação seria perfeitamente possível, por
exemplo, que se encontrasse homens que exercessem certa dominação no
ambiente doméstico, e que desempenhassem papéis de subordinados em relação a
mulheres em seu ambiente de trabalho. O inverso também seria aceitável.
Isto se dá porque:
Sob o ponto de vista das relações de poder (...) sabe-se que elas não ocorrem
somente entre homens e mulheres [podendo ser exercidas por parte das mulheres
sobre os homens e também das mulheres sobre outras mulheres]. Há casos ainda
em que numa determinada situação a relação de poder se estabelece e em outras a
relação é igualitária (CARVALHO, 2003, p. 17-18).
Assim, há que se reconhecer que somente através do enfoque relacional é
que se poderá compreender a dinâmica das performances de gênero na atualidade.
Modelos preestabelecidos se mostrarão sempre incompletos diante da multiplicidade
de possibilidades apresentadas pelas diferentes realidades vivenciadas por homens
e mulheres.
No entanto, a partir do que foi exposto, ainda se faz necessário que se
detenha o olhar sobre as implicações referentes às relações existentes entre gênero
39
e tecnologia, uma vez que as mesmas são por vezes mediadas por modelos que
têm por base estereótipos calcados em concepções estáticas – que de forma
simplista pensam a diferença como fruto natural da base biológica.
1.2.2 Relações de Gênero e Tecnologia
As concepções de gênero e de tecnologia que orientam este trabalho
procuram conceber a ambos como fruto das relações de poder que permeiam a
sociedade. Assim sendo, estão sujeitos às vicissitudes do contexto em que se quer
analisá-las enquanto fenômenos sociais.
No ocidente existe uma configuração social que aponta os espaços públicos
– ou o espaço da rua – como masculino e os ambientes privados e domésticos como
femininos.
Esta constatação por si só já pode orientar o olhar do observador para o
caráter eminentemente masculino que a tecnologia assumiu no ocidente. Isto
porque, nos últimos trezentos anos a mesma esteve a serviço do universo da
produção, da industrializa÷ão, da conquista e subordinação da natureza e sua
vinculação à satisfação das necessidades humanas.
Carvalho aponta que:
Como o desenvolvimento das técnicas produtivas foi dominado pelos homens, em
função da distribuição de papéis entre homens e mulheres na constituição da
sociedade industrial, as mulheres ficaram, pelo menos nas representações sociais,
ausentes das atividades que produzem inovações tecnológicas. As relações de
gênero estão permeadas por relações de poder que levaram à discriminação das
mulheres não só das atividades geradoras do conhecimento técnico, mas também a
uma ideologia que vem, através das mais variadas formas discriminatórias, excluindo-
as deste processo (CARVALHO, 2003, p. 22).
40
Foi visto anteriormente que as concepções de gênero constituem-se
importantes referenciais no processo de construção e constituição das identidades.
Tal chega a ser a sua força que, segundo pesquisas na área, nota-se que limitam e
até mesmo impedem o ingresso e permanência das mulheres nas áreas de pesquisa
e produção tecnológica nas academias.
Assim “enquanto cerca de 37% dos títulos de doutor em Ciências Sociais na
França e nos EUA foram outorgados a mulheres em 1992, os valores equivalentes
para a Física são apenas 19% na França e 12% nos EUA” (VELHO e LEÓN, 1998,
p. 312).
Há que se entender que este quadro não é estático e, que paulatinamente
há indícios de que espaços vêm sendo ocupados, assim como velhas concepções
de mundo começam a ser questionadas.
Além do mais, uma compreensão mais ampla da tecnologia enquanto
processo social conduz a um redimensionamento do papel das mulheres no
ambiente cultural que propicia a sua criação e disseminação (CARVALHO, 2003).
Estas reflexões se mostram importantes quando se procura compreender
determinadas realidades onde a diferença dos papéis sexuais se apresenta de forma
marcante.
Ao longo desta exposição, foi sendo demonstrado como, a partir da aliança
entre ciência e técnica, uma certa racionalidade instrumental foi se constituindo e se
afirmando como produtora e reformatadora do real.
Se por um lado, ela esteve presente na constituição dos sistemas
produtivos bem como na afirmação dos diferentes papéis para o masculino e o
feminino, também tratou de instituir instrumentos de controle social que dessem
conta de garantir ambiente propício para a sociedade capitalista moderna se afirmar.
41
Neste sentido, será de grande proveito uma análise de como se deu o
nascimento da prisão nas sociedades ocidentais bem como o papel que as mesmas
representam na manutenção da ordem social.
42
2. A prisão como universo de investigação
Este capítulo tem por objetivo uma aproximação das teorizações sobre o
universo da prisão e de como a mesma tem servido de mecanismo de controle social
nas sociedades ocidentais. Procurar-se-á proceder também uma análise das
conformações que a mesma tem adquirido no território nacional, bem como as
contribuições da análise de gênero sobre o tema. Começar-se-á pelo estudo de seu
surgimento.
Os séculos XVIII e XIX tiveram papel significante no processo de construção
da modernidade no ocidente. Pode-se apontar como uma das marcas do êxito deste
projeto, o monopólio do uso da força física pelo Estado.
Max Weber associa esta nova conformação ao desenvolvimento da proposta
capitalista que, na medida em que promovia transformações significativas no
processo produtivo, por meio do desenvolvimento tecnológico, transpunha as
discussões acerca da moralidade para o campo da cultura, enquanto o critério de
cientificidade adquire papel preponderante na construção e constituição do ideário
de progresso (WEBER, 1982).
Retoma-se aqui a idéia desenvolvida anteriormente, onde se vê a
racionalidade técnica e científica transpondo o âmbito do campo produtivo e
remodelando outras áreas do agir humano. O discurso da ciência, no entanto, longe
de ser neutro, reveste-se de um caráter político. Sob o prisma da humanização
institui-se o logos da racionalização e esta possui vínculos com o projeto de
desenvolvimento do capitalismo.
A história das prisões está inserida neste processo. Na medida em que a
efetivação das propostas anunciadas acima exigia um novo tipo de controle sobre os
43
pobres
10
, novas formas de manutenção de disciplina e, até certo ponto, de uma
determinada passividade, serão necessárias.
Tendo por objetivo a moralização dos pobres – tidos como classe perigosa –
, são desenvolvidas novas formas de efetivação do controle social. É neste momento
que se opera a racionalização do poder punitivo. O iluminismo, em sua tarefa de
promoção da racionalidade, agirá no sentido de banir as penas de suplício, optando
agora por outras formas de concretização do poder.
Em suas análises sobre o nascimento da prisão, Michel Foucault
11
aponta
que o afrouxamento da severidade penal foi visto durante muito tempo “como se
fosse um fenômeno quantitativo: menos crueldade, menos sofrimento, mais
suavidade, mais respeito e ‘humanidade’ ” (FOUCAULT, 1977, p. 20).
Isto porque há um sentimento de indignação contra a pena de suplício
12
, que
é vista nesta época como a encarnação da barbárie. A civilidade deve prevalecer,
demonstrando a superioridade daquele que pune. O sentimento da época diz que
“no pior dos assassinos, uma coisa pelo menos será respeitada quando punimos:
sua humanidade” (FOUCAULT, 1977, p. 69-70).
Pode-se perceber um deslocamento do objeto da ação de punitiva. Percebe-
se que as transformações nas estruturas sociais, iniciadas ainda no século XVIII,
10
Foucault aponta – como se verá na seqüência – que tal controle sobre os pobres era necessário
pois os mesmos – uma vez que viviam em estado de constante penúria, tendo às vezes que recorrer
aos saques para garantir sua subsistência – serão vistos nesta fase do capitalismo como criminosos
em potencial, uma recorrente ameaça ao novo tipo de riqueza exposta – fábricas, bancos,
mercadorias, estoques, etc. que desponta na passagem do XVIII ao século XX (FOUCAULT, 2003).
11
Para este autor a prisão se torna uma perfeita tecnologia de poder, agindo em conjunto com outras
instituições – família, escola, caserna, fábricas, hospitais, etc. – ela terá importante papel na
implementação das sociedades disciplinares. Caberia a estas instituições desencadear no indivíduo
os mecanismos que promovam a assimilação do controle e a disciplina necessária à produção
capitalista (BARBOSA, 2005). Para uma melhor compreensão da idéia de sociedade disciplinar ver
FOUCAULT (2003).
12
O suplício, como é definido por Foucault, trata-se de pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz.
Sendo um fenômeno inexplicável, liga-se ao poder do soberano de uma forma bárbara e cruel. Possui
uma economia própria: se aplicado para purgar o crime, não produz reconciliação com o corpo social,
inscrevendo sobre o corpo do condenado determinados sinais que não devem ser apagados
(FOUCAULT, 1977).
44
tiveram papel preponderante em todo este processo. Todo o discurso reformador do
sistema punitivo está ancorado em uma suavização dos crimes: o capitalismo
crescente faz com que as ações criminosas se desloquem da violência contra
pessoas e passe a ter por alvo preferencial, a propriedade privada
13
.
Assim, é possível afirmar que “com as novas formas de acumulação de
capital, de produção e de estatuto jurídico da propriedade, todas as práticas
populares que se classificavam (...) na ilegalidade dos direitos são desviados à força
para a ilegalidade dos bens” (FOUCAULT, 1977, p. 80).
A racionalidade iluminista e burguesa tomará a si a tarefa de reformular o
aparelho repressivo. Tais reformadores apontam como heresias contra a razão tanto
o super poder dos reis como a má distribuição do poder punitivo, que se exerce
através de múltiplos mecanismos instituídos de forma descontínua e muitas vezes,
sobrepostos. A fim de alcançar resultados mais regulares e eficientes é criada toda
uma nova teoria jurídica da penalidade. É a chegada da razão instrumental iluminista
à área punitiva
14
.
13
A nova Civilidade da sociedade industrial capitalista promove tal suavização, como apontado pouco
acima. Sua estrutura – multiplicação da riqueza, propriedade privada das terras como valor absoluto,
crescimento demográfico acentuado – sua nova conformação social altera as relações de poder. A
riqueza da burguesia industrial torna seus bens materiais – bens de produção – o alvo preferencial da
criminalidade.
14
Existe uma discussão acerca da racionalização dos processos punitivos que começaram a ser
perpretados a partir do século XVIII. Embora não se negue que o discurso científico serviu de base
para a o desenvolvimento deste processo, o modo como este se deu não seguiu propriamente a tais
cânones. Primeiramente porque as propostas dos grandes reformadores como Benthan e Howard,
por exemplo, nunca vieram a ser implementadas. Por outro lado, há que se refletir acerca das
configurações que os sistemas penitenciários assumem no presente. Seriam eles uma alternativa tão
racionalmente superior às antigas formas de punição? Questiona-se a possibilidade de mensuração
da dor: a prisão seria mesmo menos dolorosa e bárbara que o suplício? Tal afirmação não seria um
anacronismo? A modernidade pode ter banido de suas práticas as execuções e justiçamentos
cruentos em praça pública, mas só por isso se tornou menos violenta? Assim, há que se chamar a
atenção para a relatividade histórica e social dos parâmetros de humanidade e crueldade. De certa
forma os sistemas punitivos da modernidade são positivados porque “(...) como os castigos físicos, a
tortura e outras formas de ataque ao corpo e à mente continuam sendo uma realidade efetiva,
acabamos seduzidos pelo encarceramento – e até agora nada nos convenceu que este não seja uma
forma de castigo físico – e, assim, olhamos para o passado e para as possibilidades do presente de
se voltarem a práticas punitivas supostamente mais desumanas que a prisão, em vez de tentarmos
pensar novas maneiras, não criminalizantes e não punitivas de lidarmos com os erros e as falhas
humanas” (BODÊ DE MORAES, 2005, p.127).
45
Uma das primeiras providências do discurso da racionalização do sistema
punitivo – adequando-o à tarefa de atuar como verdadeiro instrumento de controle
social – será a construção dos conceitos de crime e criminoso
15
, que terão papel
preponderante na delimitação dos espaços a serem ocupados pelas camadas
sociais.
Há que se produzir um distanciamento entre delinqüentes e operários,
delineando uma diferença que será vital para o funcionamento do sistema. Até o
século XVIII, embora não se negue a atrocidade dos suplícios em praça pública, a
delinqüência era não apenas tolerada, mas gozava de alguma simpatia por parte da
população.
Foi absolutamente necessário constituir o povo como um sujeito moral, portanto
separando-o da delinqüência, portanto separando nitidamente o grupo de
delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas também
para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos
maiores perigos. (FOUCAULT, 1986, p. 133).
A partir daqui, nas representações da população, e nas do Estado
principalmente, os delinqüentes passarão a ser inimigos em potencial que podiam
tramar contra as instituições sócio-políticas. Não há distinções neste nível, entre
presos políticos e presos comuns. Ambos estavam marcados pelo mesmo potencial
destrutivo de corrupção moral, pois, ao definir a norma, o código de leis define, por
conseguinte, os desviantes (PERROT, 1992).
15
Constrói-se aqui a idéia de que o crime não está mais vinculado à faltas religiosas ou morais. Trata-
se de infração à lei, que é civil e estará expressa no interior das sociedades como manifestação do
poder político. As leis adquirem um caráter positivo, na medida estabelecem e representam o que é
útil à coletividade ao mesmo tempo em que promove a interdição das condutas tidas como nocivas a
ela. Por conseguinte o criminoso é aquele que causa danos à estrutura social. Recuperando
Rousseau, em virtude do mesmo rompido com o pacto social, passa a ser concebido como um
inimigo interno (FOUCAULT, 2003).
46
Surge assim a justificativa para as estratégias de controle do Estado. E este
se volta sobre uma população passível de ser criminalizada. A idéia é fazer crer que
existe uma relação de determinação entre pobreza e criminalidade
16
.
Por outro lado, a reinvenção do aparelho repressivo, ao mesmo tempo em
que tornou o poder de polícia do Estado extremamente mais complexo, criou
tribunais e constituiu inúmeras jurisdições especiais para gerir as ilegalidades da
nova e emergente classe burguesa – agora no exercício do poder público.
As evasões fiscais, operações comerciais irregulares, fraudes serão os
pecadilhos dos burgueses que não devem ser comparados com os bárbaros crimes
cometidos pela classe proletária ou pelos excluídos dela
17
.
Isto torna evidente que “um sistema penal deve ser concebido como um
instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las a todas”
(FOUCAULT, 1977, p. 82).
De qualquer forma, pode-se afirmar que a racionalização do poder punitivo o
tornou mais abrangente, generalizado e regular, alcançando uma maior inserção no
corpo social. As punições são fruto de leis elaboradas a partir de um contrato social
e não mais a encarnação da vontade do soberano.
O corpo social, a sociedade tem o direito de se defender daqueles que a
atacam. O critério usado para determinar o grau de severidade da punição –
encarada como uma espécie de correção ao dano social causado pela infração –
será a humanidade, não do infrator, mas daquele que aplica a pena.
16
Esta linha de raciocínio conduz à perigosa conclusão de que o pobre, o favelado, o despossuído,
deve – por definição – ser colocado sob suspeita das ações criminosas que ocorrem no âmbito social.
No entanto, sabe-se hoje que afirmar a criminalidade como questão meramente econômica é criar um
reducionismo (RAMALHO, 1979).
17
O trecho de Foucault, não poderia ser mais direto: “(...) as leis são boas, para os pobres;
infelizmente os pobres escapam às leis, o que é realmente detestável. Os ricos escapam às leis,
porém isso não tem importância alguma pois as leis não foram feitas para eles. No entanto, isso tem
como conseqüência que os pobres seguem o exemplo dos ricos para não respeitar as leis.”
(FOUCAULT, 2003, p. 94).
47
Tais penas têm por objetivo uma função exemplar bem como o controle
social, não o crime em si: servem muito mais como uma ação preventiva contra
ações de futuros delinqüentes.
Importante é que a população considerada perigosa
18
tenha impressa, em
suas representações, qual é o resultado das ações criminosas. Muito mais que ao
corpo, quer se atingir o espírito dos delinqüentes: “que seja o espírito, ou antes um
jogo de representação e de sinais que circulem discretamente mas com necessidade
e evidência no espírito de todos. Não mais o corpo, mas a alma, dizia Mabbly”
(FOUCAULT, 1977, p. 91).
A pena de prisão se adequará bem a este papel. Embora num primeiro
momento não estivesse prevista no ideário dos reformadores do sistema penal – em
fins do século XVIII e início do Século XIX – sendo aliás, criticada por alguns, já que
não atendia às características específicas de certos crimes, irá impor-se como a
pena que será preferencialmente aplicada a partir deste período (FOUCAULT,
2003).
Vê-se assim que a reclusão como pena, o sistema carcerário nascente,
cumpria perfeitamente os requisitos de controle e coerção social que a evolução do
sistema capitalista necessitava no inicio do século XIX. Tal modelo de controle será
implementado, a partir de sua força disciplinar, também em escolas, hospitais e nas
fábricas.
Para cumprir sua proposta, a prisão se fará isolar do restante da sociedade,
constituindo-se num micro-cosmo à parte, onde – através de condições estritamente
controladas – tentará promover a reforma dos espíritos e das almas corrompidas
pela delinqüência.
18
O professor Pedro Rodolfo Bodê de Moraes introduz uma discussão interessante a partir de Marx e
de Alberto Passos Guimarães sobre a origem econômica da periculosidade das massas
empobrecidas assim chamadas de classes perigosas (BODÊ DE MOARES, 2005).
48
Após os Congressos Internacionais de Ciências Penitenciárias que
transcorreram na Europa, na segunda metade do século XIX, buscou-se delinear os
modelos que, com ajustes feitos a partir de cada realidade nacional, passarão a ser
usados no ocidente.
Pode-se mencionar três sistemas básicos:
O Regime de Auburn, que pregava a separação do preso durante a noite e da vida
comum durante o dia, com a obrigação do trabalho e a observância do sistema; O
Regime de Philadelphia, que tinha reclusão celular contínua, e individual dos
detentos, também com obrigação de trabalhar e o Regime Irlandês ou Progressivo,
que se utilizava de um sistema intermediário, funcionando na transição entre o
encarceramento e a liberdade (PEDROSO, 1995, p. 61).
De qualquer forma percebe-se o caráter de patente segregação promovida
pela prisão. Em virtude deste fechamento em si mesma, cabe perfeitamente no
conceito de instituição total cunhado por Erwin Goffman:
Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde
um grande número de indivíduos em situação semelhante, separados da sociedade
mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e
formalmente administrada (GOFFMAN, 1974, p.11).
Embora este conceito possa parecer muito vago, podendo ser aplicado a
uma gama de instituições com características bem diversas das prisões, tais como
hospitais psiquiátricos, quartéis, escolas, navios da marinha mercante e outras mais,
percebe-se que cada uma delas possui grande e intenso grau de proximidade, na
medida em que permitem que se possa “usar o método de tipos ideais, através do
estabelecimento de aspectos comuns, com a esperança de posteriormente
esclarecer diferenças significativas” (GOFFMAN, 1974, p. 17).
No caso específico das prisões, a categoria se aplica perfeitamente, já que
49
Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob
uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do
participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de
outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas
coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente
estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à
seguinte, e toda a seqüência de atividade é imposta de cima, por um sistema de
regras formais explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente, as várias atividades
obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para
atender aos objetivos oficiais da instituição (GOFFMAN, 1974, p. 17-18).
A partir do exposto acima, é possível reconhecer as rotinas e procedimentos
implementados no dia a dia das prisões. Mais ainda, dentro do panorama conceitual
de Goffman, pode-se reconhecer ainda no ambiente das prisões a realidade
bipartida presente nas instituições totais: o mundo da equipe dirigente e o mundo
dos internos.
Cabe à equipe dirigente cumprir, no trato dos internos, uma série de
pressupostos que irão garantir os “padrões humanitários” que são estabelecidos de
antemão seja por hierarquia superior, por organismos da sociedade civil organizada
ou ainda pelos dispositivos legais.
A equipe dirigente, dotada de um corpo de saberes quanto aos objetivos das
instituições – no caso a instituição penal – deve deixar racionalmente claro os
objetivos aos quais se propõe. Embora reconheça, em boa parte das vezes, mas
nunca de forma aberta aos internos, que seus objetivos não são cumpridos a
contento (GOFFMAN, 1974).
Dentro da prisão, a moralidade é base para a interpretação do conjunto de
atividades diárias, desconsiderando que o preso não tem controle e
responsabilidade sobre seus atos. Esta visão está de acordo com a proposta
objetiva de toda instituição total, que visa sempre o auto-controle do interno, a partir
de uma orientação predeterminada.
50
A tradução do comportamento do internado para termos moralistas, adequados à
perspectiva oficial da instituição, necessariamente conterá algumas pressuposições
amplas quanto ao caráter dos seres humanos. Dados os internos que tem a seu
cargo, e o processamento que a eles deve ser imposto, a equipe dirigente tende a
criar o que se poderia considerar uma teoria da natureza humana. Como uma parte
implícita da perspectiva institucional, essa teoria racionaliza a atividade, dá meios
sutis para manter a distância social com relação aos internados e uma interpretação
estereotipada deles, bem como para justificar o tratamento que lhes é imposto.
Geralmente, a teoria abrange as possibilidades ‘boas’ ou ‘más’ de conduta do
internado, as formas apresentadas pela indisciplina, o valor institucional de privilégios
e castigos, bem como a diferença ’essencial’ entre a equipe dirigente e os internados
(GOFFMAN, 1974, p.80).
A partir de tal postura espera-se que ocorra, por parte do (preso) internado,
uma espécie de identificação automática e todas as ações ou mesmo omissões
praticadas pelo interno servirão de argumento para corroborar com o rótulo – de
patologia ou delinqüência – que já existia antes mesmo deste chegar à instituição.
Afinal, “o problema da equipe dirigente é encontrar um crime que se ajuste ao
castigo” (GOFFMAN, 1974, p. 78).
Neste momento da caracterização dos indivíduos, o discurso científico será
a grande marca da modernidade. Aqui novamente pode-se perceber o poder se
revestindo de um conjunto de saberes como justificativa para sua atuação.
O papel da ciência neste processo de ocultação ou dissimulação do poder
será preponderante. As modernas ciências humanas dão a ele um caráter
confessável, pois sob a máscara da civilidade e racionalidade, a violência se torna
aceitável.
Assim o projeto moderno irá solicitar à criminologia um discurso que possa
dar às práticas legais de punição um caráter de legitimação científica, permitindo-lhe
“funcionar num horizonte geral de verdade” (FOUCAULT, 1977, p.227).
Buscando exercer seu poder punitivo, a prisão enquanto aparelho
correcional irá se valer de alguns princípios para promover uma transformação
qualitativa naqueles que a ela foram entregues “(...) o esquema político-moral do
51
isolamento individual e da hierarquia; o modelo econômico de força aplicada a um
trabalho obrigatório; o modelo técnico-médico da cura e da normalização”
(FOUCAULT, 1977, p. 220).
Tem-se aqui a idéia de que será com base em saberes oriundos das
ciências humanas que os magistrados poderão operar seu oficio punitivo. Por
extensão, a prisão não apenas se valerá dos saberes produzidos a partir da
observação dos condenados, mas ela própria se tornará um laboratório, um aparelho
de saber
19
(FOUCAULT, 1977)
Para tanto, far-se-ão necessários determinados mecanismos disciplinares,
um esquema que permita perfeita vigilância sobre os corpos: o Panóptico
20
.
Desenvolve-se assim mais do que a constituição de um campo de aquisição de
saberes, mas também um campo de experimentação do poder, que se institui e
perpassa as atitudes dos indivíduos: “um duplo processo: arrancada epistemológica
a partir de um afinamento das relações de poder; multiplicação dos efeitos de poder
graças à formação e acumulação de novos conhecimentos” (FOUCAULT, 1977, p.
196-197).
19
Neste ponto, pode-se relativizar a importância do discurso científico na formação dos modernos
sistemas de punição. Há autores que apontam para a proximidade das idéias de crime e pecado.
Neste sentido a prisão seria realmente um local de penitência onde indivíduos caídos devem purgar
seus “pecados”. Seguindo este raciocínio, “a prisão moderna é um híbrido de práticas religiosas
penitenciais medievais com o mundo moderno e o processo de laicização, racionalização e eficácia,
que estariam longe de uma ruptura com a religiosidade (...)” (BODÊ DE MORAES, 2005, p. 138).
20
Foucault informa que Benthan criou, no seu entender, o mecanismo-modelo perfeito para
instituições promotoras da internalização da ordem social – prisões, escolas, hospitais, fábricas, etc. –
tal dispositivo era “(...) um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre
no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o
exterior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia segundo o objetivo da instituição, uma criança
aprendendo a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando
sua loucura, etc. Na torre central havia um vigilante. Como cada cela dava ao mesmo tempo para o
interior e para o exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; (...) de modo a poder ver
tudo sem que ninguém ao contrário pudesse vê-lo” (FOUCAULT, 2003, p.87). Pode-se facilmente
imaginar o efeito disciplinador de tal procedimento. Para Foucault, vivemos sob os auspícios de uma
sociedade onde vigora o panoptismo. Sobre os limites dos efeitos do panoptismo ver BODÊ DE
MORAES (2005).
52
Este tipo de inspiração de cunho científico guiava os reformadores dos
modelos de prisão existentes até o século XVIII. O próprio John Howard, criador da
prisão moderna, tinha uma visão pouco lisonjeira dos cárceres que pretendia
reformar, apontando-os como “regiões de culpa, sofrimento e remorso. Suas
masmorras seriam para ele o inferno na terra, a encarnação terrena da danação
eterna tal como o dia do julgamento representaria o Juízo Final” (IGNATIEF apud
COELHO, 1987, p. 12).
Não que Howard acreditasse que as prisões não devessem ser locais de
penitência. A idéia era que, seu objetivo, longe da destruição física e moral dos
condenados, seria garantir aquilo que parecia ser uma fixação para os reformadores
da época: estabelecer a justa medida da dor.
Conjugando higiene, trabalho, silêncio e valores religiosos significativos,
Howard propunha que era possível converter os delinqüentes e infratores da lei em
indivíduos novamente preparados para o convívio social (BODÊ DE MORAES,
2005).
Do invento de John Howard – que trazia como inovação a garantia de
aceitáveis condições de higiene, vestuário e dieta aos presos – ao momento atual
onde vemos modernos complexos penitenciários – munidos de circuitos fechados de
TV, detectores de metal e outros apetrechos tecnológicos
21
– um longo percurso
histórico foi transcorrido.
21
Embora no Brasil convivam lado a lado a estas instalações dotadas das mais modernas inovações
tecnológicas outras que fariam, nas palavras do professor Edmundo Campos Coelho, “corar a
Howard”. Como se verá a seguir, a precariedade do sistema penitenciário brasileiro é notória. Sobre o
assunto é significativo o trabalho de Sérgio Adorno (1991), do próprio Edmundo Campos Coelho
(1987), Antônio Luiz Paixão (1991), Jose Ricardo Ramalho (1979) e Pedro Rodolfo Bodê de Morais
(2005). Poder-se-ia buscar os motivos que levam o poder público a manter este estado de coisas no
universo das penitenciárias. Algumas leituras sugerem que as políticas públicas na área estão
subordinadas a interesses estratégicos, que em muitos casos são perpassados por condicionantes
econômicos. Para uma abordagem interessante do tema ver Löic Wacquant, as Prisões da Miséria
(2001).
53
Mas no entender dos estudiosos da prisão, uma inegável semelhança une
estes modelos: sua pretensão para a ressocialização
22
dos seus internos. Porém:
como pode pretender a prisão ressocializar o criminoso quando ela o isola do
convívio com a sociedade e o incapacita, por esta forma, para as práticas da
sociabilidade? Como pode pretender reintegrá-lo ao convívio social quando é a
própria prisão que o impele para a “sociedade dos cativos” onde a prática do crime
valoriza o indivíduo e o torna respeitável para a massa carcerária? (COELHO, 1987,
p.13).
O discurso das autoridades oficiais da área, no entanto aponta sempre no
sentido da reabilitação dos condenados como grande ideal, ponto de chegada e de
partida que se constituem na justificativa e razão de ser do sistema penitenciário
23
.
Para tal empreita, são defendidas três linhas mestras que procuram orientar
as políticas públicas
24
para o sistema penitenciário brasileiro: o trabalho (visando a
profissionalização), a educação e a assistência jurídica e social (ADORNO, 1991).
Porém, do ponto de vista daqueles a quem tais políticas deveriam atender, e
muitas vezes dos próprios técnicos que as ministram, as mesmas se encontram
aquém das necessidades que a realidade exige. No que se refere, por exemplo, ao
corpo técnico responsável pela assistência jurídica e social, os presos queixam-se
do tratamento que recebem, relatando mesmo que há descaso e indiferença “(...) por
ocasião dos exames e testes que subsidiam a confecção de laudos periciais
22
O professor Pedro Bodê desenvolve uma análise de que a prisão configura-se em perversidade
exatamente por prometer algo que não é capaz de promover, mais propriamente, por assegurar que
irá proporcionar condições para que se desenvolva um processo de ressocialização e não ser capaz
de realizar tal intento (BODÊ DE MORAES, 2005).
23
Aqui parece que há de se concordar que “a despeito de propósitos reformadores e
ressocializadores embutidos na fala dos governantes e na convicção de homens aos quais está
incumbida a tarefa de administrar massas carcerárias, a prisão não consegue dissimular seu avesso:
o de ser aparelho exemplarmente punitivo” (ADORNO, 1991, p. 70.)
24
Lado a lado com este discurso – que muitas vezes se resume a mero exercício de retórica – pode-
se perceber a implementação de ações que visam aumentar o número de vagas no sistema.
54
destinados a instruir pedidos de obtenção de benefícios legais
25
(...)” (ADORNO,
1991, p. 74).
No que se refere ao trabalho no interior do sistema penitenciário, os estudos
efetuados por Adorno (1991), Coelho (1987) e Ramalho (1979) têm em comum
apontar que o mesmo, bem como a formação profissional, na prisão atendem
apenas a uma pequena parcela da massa carcerária. O trabalho então, quando
existe, se apresenta de forma ineficaz.
Normalmente se verá a maior parte da massa envolvida em serviços de
manutenção, limpeza e, em alguns casos, cozinha. “As oficinas de costura, de
marcenaria, serralheria e outras que poderiam se constituir em verdadeiros espaços
de formação profissional atendem a um pequeno número de detentos (...)”
(ADORNO, 1991, p. 74).
Com relação à educação, foco de análise deste trabalho, proceder-se-á uma
análise mais apurada mais adiante. Mas pode-se adiantar que a mesma possui um
caráter e cumpre uma função fortemente ideológica dentro das prisões.
O exposto acima apenas reforça a convicção existente em vários setores na
sociedade de que a prisão não é capaz de promover a reabilitação daqueles que lhe
foram confiados. Pelo contrário recebe a alcunha de escola do crime e o senso
comum afirma que as pessoas saem da prisão pior do que entraram (PAIXÃO,
1991).
É recorrente a imagem das prisões como instituições que degradam os
indivíduos. Num primeiro momento pode-se atribuir tal imagem ao isolamento a que
25
Adorno se refere aqui àquela bateria de exames que na época em que escreve seu artigo,
constituía o Exame Criminológico, que era pré-requisito para benefícios que se constituíam na
progressão de regime, tais como livramento condicional, redução ou comutação da pena,
transferência para regime semi-aberto ou aberto, etc. embora tal exame inexista na legislação atual,
os presos continuam reclamando do mau atendimento por parte da equipe técnica do sistema,
embora tal prática deva ser relativizada como uma categoria nativa.
55
os submete – isolamento da família, dos amigos e demais esferas de interação. Tal
confinamento teria por fim o pagamento das infrações cometidas – com o condenado
recebendo sobre si todo o peso da vingança social, a fim de purgar-lhe os maus
hábitos e uma moralidade deturpada.
Num segundo momento, tem-se ainda que ressaltar a atmosfera de contágio
e contaminação que se dá pelo contato promíscuo com outros condenados dos mais
variados tipos. As prisões constituir-se-iam então em locais privilegiados para o
aprendizado das práticas do mundo do crime, já que:
(...) promove toda sorte de contaminação – patológica e criminógena – , exacerbando
a violência como forma institucionalizada e moralmente legítima de solução de
conflitos intersubjetivos. Esse quadro agrava-se devido ao expressivo contingente de
população encarcerada nos distritos e delegacias policias
26
, nos quais se encontram
indiferenciados presos primários e reincidentes, detidos para averiguação ou em
flagrante e cidadãos já sentenciados pela justiça criminal (ADORNO, 1991, p. 71).
Embora esta perspectiva tenha sido percebida in loco, e de certa forma,
comprovada por pesquisas realizadas no âmbito do sistema penitenciário brasileiro,
a mesma não estava prevista pelos idealizadores da prisão como modelo
correcional. Para estes:
As penitenciárias não deveriam ser universidades do crime e tampouco escolas de
sofrimento. Pelo contrário, deveriam atuar como instituições educacionais, no sentido
da correção das incompetências comportamentais de seus internos, com o objetivo
de transformá-los em indivíduos aptos a preencher as exigências normativas que a
sociedade impõe a seus membros (PAIXAO, 1991, p.10).
Porém, parece ser no que elas se tornaram: caldeirões do diabo, oficinas do
diabo, purgatório de inocentes e culpados, a descrição das prisões como
“estruturalmente violentas (...), locais perigosos, ‘cheios de maldade’, inclusive pelos
26
Pode-se acrescentar aqui, como uma realidade muito próxima e análoga, a situação dos presídios.
56
sentimentos ambíguos e contraditórios que a instituição prisional produz (...)” (BODÊ
DE MORAES, 2005, p.168) é comum.
De qualquer forma, quando questionadas sobre esta situação, as
administrações das instituições penais brasileiras respondem com a indicação da
“(...) absoluta escassez de condições de operacionalização
27
; os entraves são de
toda a ordem, apontados por todos os segmentos envolvidos na questão
penitenciária”(CAMARGO, 1992, p. 11).
Vale lembrar que os presos, atingidos diretamente por estas questões
estruturais, também têm sua cota de críticas – que se tornam muito mais
contundentes quando se percebe que se referem às garantias mínimas de
sobrevivência e dignidade humana. As mesmas mencionam “(...) superlotação, má
alimentação, problemas com visitas, falta de assistência jurídica, perseguições...
Todos, unanimemente, reclamam do governo – qualquer que seja – lembrando que
preso ‘não vota, nem dá voto’ ” (CAMARGO, 1992, p. 11).
A partir do que foi exposto, admitindo-se que existem críticas negativas que
surgem desde a equipe dirigente, passando pela equipe técnica até os próprios
presos, fica difícil a defesa da pena de prisão.
A principal função da prisão – no nível do senso comum – seria a tentativa
de conter o avanço da criminalidade, principalmente no que se refere aos
considerados crimes violentos. Mas ela, ao buscar dar conta desta tarefa, se vê
traída pela relação custo benefício.
27
Referem-se aqui principalmente à “(...) falta de verbas, de pessoal especializado, de equipamentos;
não contam com a colaboração desejada dos próprios funcionários, da polícia militar, nem mesmo de
alguns magistrados” (CAMARGO, 1992, p. 11).
57
Isto, em primeiro lugar, porque temos que admitir que o Sistema de Justiça
Criminal como um todo esbarra no problema da ineficiência
28
– já que não consegue
punir senão uma pequena parte dos crimes que são cometidos.
Sendo assim,
Os efeitos do encarceramento sobre a criminalidade não podem mesmo ser muito
expressivos. Donde se poderia concluir que, aumentando a eficácia de todas as suas
partes componentes, o Sistema de Justiça Criminal seria capaz de encarcerar mais e,
encarcerando mais, produziria melhores resultados no controle do crime. Entretanto,
este é um outro mito, que confunde redução da impunidade, melhoria do
desempenho da Polícia e da Justiça com elevação das taxas de encarceramento
(LEMGRUBER, 2001, p. 10).
Essa perspectiva, que não vê na prisão uma alternativa viável como forma
de correção, não precisaria ser reforçada – inclusive pelas reflexões já apresentadas
neste trabalho. Afinal, a ela se afirma e se apresenta mais eficiente como
mecanismo de controle do que como instrumento de combate ao crime.
E, caso ainda se insista que a mesma visa combater o crime enquanto
promove a ressocialização não há como negar que “a penitenciária, a casa de
correção e a prisão nada têm feito além de acumular fracassos vexatórios. São
incontestes as provas que demonstram que essas instituições geram mais
criminosos que a previnem” (NATIONAL ADVISORY COMMISSION apud
WACQUANT, 1999, p. 39).
As prisões, do seu surgimento até a atualidade, têm recebido os mais
variados tipos de críticas: desde a acusação sumária de corrupção, passando pelas
condições sub-humanas a que reduz seus detentos, até a constatação pura e
simples de que não cumpre a finalidade básica para a qual foi criada – punir o
28
Faz-se referência aqui à dificuldade que o Sistema de Justiça criminal tem de levar a termo os
processos que promovem o esclarecimento de crimes registrados pela polícia, bem como levá-los a
julgamento e promover a sua devida penalização. Tomando por base a realidade do Rio de Janeiro e
São Paulo no final da década de noventa, afirma-se que cerca de 80% e 70% respectivamente dos
crimes de homicídio não chegam a ser esclarecidos (LEMGRUBER, 2001)
58
infrator e recuperá-lo para a sociedade. No entanto, a sociedade ocidental não
parece ter vislumbrado ainda outras hipóteses que pudessem dar solução ao
problema da criminalidade (RAMALHO, 1979).
Ao se refletir sobre seus limites, pode-se ressaltar alguns pontos que
poderiam ainda ser identificados como atuais no sistema prisional brasileiro:
(...) a detenção provoca reincidência(...); A prisão torna possível, ou melhor, favorece
a organização de um meio de delinqüentes, solidários entre si, hierarquizados,
prontos para todas as cumplicidades futuras (...); As condições dadas aos detentos
libertados condenam-nos fatalmente à reincidência (...); Enfim a prisão fabrica
indiretamente delinqüentes, ao fazer cair na miséria a família do detento”
(FOUCAULT, 1977, p. 234-236).
Caberia a indagação: se o modelo não funciona, qual a razão de continuar
existindo apesar da sua falência? Ao refletir sobre o tema, Bodê aponta que
(...) a prisão e o sistema penitenciário nasceram para ser exatamente o que são e o
que sempre foram: uma forma de controle social perverso que passa pela
‘criminalização da marginalidade’ e da pobreza ao mesmo tempo em que é uma
vitrine para toda a sociedade e os pobres em particular daquilo que realmente seriam:
potencial e virtualmente membros das classes perigosas (BODÊ DE MORAES, 2005,
p. 181).
Mesmo compreendendo que a complexidade do tema não se esgota no que
se expôs até aqui, faz-se necessário acrescentar uma outra categoria à análise do
universo da criminalidade e das prisões, a saber o enfoque da categoria gênero,
uma vez que as representações que configuram e intermediam as relações entre os
sujeitos ali constituídas se apresentam marcadas por estereótipos dos papéis
masculino e feminino.
59
2.1 Gênero no mundo da criminalidade
Já se apontou que o discurso dualista que apresenta o mundo público como
um espaço masculino, deixando o mundo privado e doméstico como espaço a ser
ocupado pela mulher, se dissemina socialmente e permeia as relações
intersubjetivas constituídas pelos sujeitos.
Assim, em uma primeira aproximação, o mundo da criminalidade, que
poderia ser apontado como a porta de entrada para o mundo da prisão, caracterizar-
se-ia – não apenas pelo leigo em geral, mas principalmente pelos operadores do
direito – como masculino.
Esta configuração se dá, em primeiro lugar, porque é um espaço público, o
que por si só, já o interditaria para a atuação feminina. Mas, para além desta
interdição, entende-se que este mundo exige características que foram
historicamente atribuídas aos homens, tais como arrojamento, agressividade,
capacidade de luta e enfrentamento, uma certa brutalidade que – quando se pensa
na construção de identidades dos sujeitos no ocidente – estão associadas à
virilidade e ao perfil masculino.
No caso feminino, pelo contrário, sempre se procurou enxergar nelas
características opostas às elencadas acima: vê-se na mulher a pureza e a
fragilidade, uma certa complacência necessária à maternidade. Aliás, os
estereótipos orientam que a mulher deve ser pura, porque puras são as mães. E de
qualquer forma, a sua sensibilidade não suportaria os horrores que permeiam o
mundo do crime.
Esta visão um tanto idílica da mulher se torna hegemônica na sociedade
brasileira em um momento histórico bem específico. Ela vem surgir exatamente
quando a moral burguesa se impõe às demais construções existentes no país. O
60
texto de Claudia Fonseca (1997) ajuda a iluminar esta situação, quando nos aponta
que ser mulher, mãe e pobre no Brasil do início do século XX exigia características
muito mais arrojadas que as de rainha do lar.
Note-se que – como já apontado anteriormente – sempre se considerou um
preceito indiscutível no ocidente que as mulheres deveriam estar no resguardo do
lar, desenvolvendo as tarefas domésticas, uma vez que os homens – provedores por
natureza – dariam conta do sustento da casa através da ocupação do espaço
público.
No entanto, a partir de seus estudos, a pesquisadora afirma que esta
imagem é fruto de uma construção que tem por base os valores específicos da
classe dominante, ainda do Brasil Colônia, podendo também ser encontrados nos
escritos de viajantes europeus.
Mais do que representar a realidade, tal estereótipo tinha a função ideológica
de produzir as diferenças de classe
Basta aproximar-se da realidade de outrora para constatar que as mulheres pobres
sempre trabalharam fora de casa. (...) não faltam exemplos de trabalhos femininos:
lavadeira, engomadeira, ama-de-leite, cartomante. (...) Ironicamente, apesar de ser
evidente que em muitos casos a mulher trazia o sustento principal da casa, o trabalho
feminino continuava a ser apresentado (...) como um mero suplemento à renda
masculina (FONSECA, 1997, p. 517).
Rachel Soihet (1997) também demonstra que a história desta sujeição
feminina ao lar está ligada historicamente ao discurso burguês, o qual associa que o
modelo de mulher perfeita, a mulher de bem, a mulher que não será “mal falada” é a
mãe submissa, que deverá ficar circunscrita à instância doméstica.
No entanto, no âmbito da cultura popular se verificava uma diversidade de
propostas e manifestações femininas. Não apenas poderiam ser encontradas
mulheres que estavam à frente de suas famílias, como também mulheres sós, que
61
não se mantinham necessariamente sob a proteção e conseqüente domínio de um
homem.
Há que se notar que esta configuração não poderia ser considerada ideal,
uma vez que o processo de instauração do capitalismo em território nacional iria
necessitar de uma sociedade calcada em outras bases.
Para tanto, era necessário aliar a substituição do trabalho escravo pela mão
de obra assalariada, à adoção dos valores da família burguesa por parte desta nova
classe de trabalhadores livres, já que
(...) o custo da reprodução do trabalho era calculado considerando como certa a
contribuição invisível, não remunerada, do trabalho doméstico das mulheres. Além
disso, as concepções de honra e de casamento das mulheres pobres eram
consideradas perigosas à moralidade da nova sociedade que se formava (SOIHET,
1997, 362-363).
Mas e se, ainda assim, elas saíssem desta esfera, buscando outras formas
de constituição de identidade e sociabilidade? Quais eram as estratégias adotadas
quando as ciladas da moralidade não davam conta de garantir a submissão
feminina?
Para tais casos recorria-se aos mecanismos de controle social já
mencionados por Foucault. O sistema jurídico de uma forma geral e a polícia de uma
forma mais específica eram convocados a manter as mulheres das classes
populares nos limites da disciplina e controle exigidos pela nova ordem estabelecida.
Neste sentido, tal ação procurava se fazer sentir na moderação da linguagem dessas
mulheres, estimulando seus ‘hábitos sadios e boas maneiras’, reprimindo seus
excessos verbais. A violência seria presença marcante nesse processo. Ainda mais
que naquele momento a postura das classes dominantes era mais de coerção do que
de direção intelectual ou moral (SOIHET, 1997, 363).
62
Tais constatações ajudam a compreender melhor como as mulheres foram
sendo “coagidas” a abandonar aquelas características de agressividade, destemor e
arrojamento, ao mesmo tempo em que eram incitadas a internalizar as já conhecidas
posturas de fragilidade e recato, bem como o predomínio das faculdades afetivas
sobre as intelectuais, a submissão da sua sexualidade ao desempenho da
maternidade.
No entanto, tais elementos embora sejam importantes para se entender a
constituição das identidades femininas, não autoriza a suposição de que as mesmas
formem um bloco monolítico. Pelo contrário, os diferentes contextos vividos pelas
mulheres permitiram a coexistência, e isto permanece até o presente – de uma
multiplicidade de propostas e possibilidades de modelos femininos.
Assim sendo, se pelo estereótipo hegemônico o ambiente da rua está
barrado às mulheres e o mundo da criminalidade não se apresenta a elas como
alternativa plausível para garantir seu sustento e sobrevivência, na contra-mão dos
discursos tradicionais, a realidade se apresenta repleta de outras possibilidades.
É certo que os estereótipos sobre a mulher apontam que a natureza
feminina a “isenta” do crime. Michele Perrot, na sua discussão sobre os excluídos da
história, utilizando a descrição bíblica da origem dos seres humanos e do universo,
já ironizava, afirmando que, em vez de os cometer, “Eva” induz ao crime: “Ainda em
nossos dias, ‘o detento partilha da crença popular de que é ela a instigadora do
crime, a causa de todas as suas desgraças’. A mulher, gênio maligno do homem: a
literatura criminal participa do mito da eterna Eva” (PERROT, 1992, p. 258).
Os operadores do direito e a literatura criminal – em seu discurso – têm
tomado como base o já discutido estereótipo que pretende relegar às mulheres o
63
mundo privado, o ambiente doméstico, enquanto que o espaço público, o ambiente
da rua, está reservado ao homem.
Apesar dos criminalistas do século XIX – que estão na base da formação do
pensamento jurídico e do direito atuais – já apontarem que as mulheres cometem
crimes, essa atividade ainda é ligada à sua condição estereotipada referida acima.
O discurso destes criminologistas afirma que os crimes cometidos pelas
mulheres, o crime feminino, tem a passionalidade como caráter – principalmente nos
caso de homicídio. O que as impulsiona ao crime será sempre a vingança ou o
ciúme.
A mulher normal, do ponto de vista de Lombroso
29
, é um ser inferior, dada ao instinto
e não à inteligência e, portanto, próxima dos selvagens, malvada por índole. A mulher
criminosa é ainda mais inferior, pois tem analogia com a estrutura psíquica e física do
delinqüente, ou seja, o criminoso nato que se aproxima do monstro pelos traços
físicos de regressão da espécie. A mulher é semelhante ao criminoso nato e, embora
menos propícia ao crime, também o comete, sendo desviante as prostitutas e as
criminosas (ALMEIDA, 2001, p. 75).
Embora a leitura de autores como Lombroso possa parecer datada e
marcada por um certo darwinismo social
30
extremado, Almeida afirma que, mesmo
em nossos dias, existe a tipificação “crime feminino” e que este, no decorrer da
história esteve associado aos crimes de paixão – aqueles cometidos sob forte
pressão ou influência emocional – e àqueles que são fruto de distúrbios de ordem
biológica – como o infanticídio cometido no período puerperial (ALMEIDA, 2001).
29
Cesare Lombroso, médico e criminalista italiano, um dos principais expoentes da criminologia do
século XIX.
30
Corrente teórica da segunda metade do séc. XIX e primeira metade do séc. XX, ou a doutrina por
ela formulada, que aplica alguns princípios básicos da idéia darwinista de evolução (como as de
seleção natural, luta pela existência, e sobrevivência do mais apto) ao estudo e interpretação da vida
humana em sociedade. [A designação é historicamente imprecisa, uma vez que as primeiras obras
ligadas a essa corrente antecederam a elaboração e publicação dos trabalhos de C. Darwin em
biologia.]. (REALE e ANTISERI, 1990).
64
Corrêa (1983) problematiza esta perspectiva, procurando demonstrar que,
atribuir à natureza biológica da mulher os crimes por ela cometidos, pode se
constituir numa estratégia para manter os papéis sexuais tradicionais inalterados.
Desse modo, há que se discutir se seriam as condições hormonais
específicas do corpo feminino – como por exemplo, as já populares tensões pré-
menstruais, ou ainda sua natureza propensa a picos de perda da racionalidade –
que realmente induzem a mulher a comportamentos violentos, ou, talvez uma outra
hipótese mais plausível, seriam as condições histórico sociais de repressão impostas
à mulher que só lhe permitiriam esta linguagem, esta forma específica, este
momento único de rebeldia e liberação? Assim, passado tal período, estaria ela
novamente obrigada a retornar a seu cotidiano de submissão? (CORRÊA, 1983).
Assim, se for aceita a hipótese biológica para a justificação da criminalidade
da mulher, a mesma não poderia ser considerada um sujeito ativo, totalmente
responsável pelos seus atos.
Em conseqüência, caberá aos sistemas jurídicos a defesa da ordem social
estabelecida, com seus papéis masculinos e femininos já devidamente definidos e
marcados: a fragilidade da mulher conferindo-lhe a procriação e a sujeição ao
homem. Estes, dotados por natureza com a virilidade, desempenharão o papel de
provedor.
Assim se configura a ordem familiar. Cabe à Justiça sua manutenção e
defesa. Inclusive é para o que Almeida, a partir do texto de Corrêa chama a atenção:
Essa é uma das razões pelas quais as mulheres tendem a ser absolvidas mais
freqüentemente do que os homens. Sendo assim, como contradizer essas normas,
condenando as mulheres que, por exemplo, mataram o companheiro, tal como se
condena os homens? Não seria isso um atestado de que as mulheres têm também
poder e força sobre os homens? Não seria melhor absolvê-las ou julgá-las sob a idéia
de que mataram para se defender? (...) Nega-se, portanto, a capacidade de a mulher
cometer crimes, independentemente do tipo ou violência utilizada (ALMEIDA, 2001,
p.144).
65
Acrescente-se a esta reflexão a situação dos crimes hediondos – aqueles
que envolvem altas doses de frieza e premeditação, aqueles que fogem totalmente à
tipificação de “crime feminino” tratados aqui anteriormente – como por exemplo,
quando os crimes envolvem tortura, ou ainda o seqüestro seguido de morte de
crianças
31
.
Numa situação como essa, o crime é severamente castigado. Neste caso, as
mulheres são condenadas mais pela negação de sua docilidade tida como natural
ou ainda, por terem de alguma forma, traído o estereótipo instituído no imaginário
social, que pela gravidade do crime em si mesmo (ALMEIDA, 2001).
Neste ponto algumas reflexões a partir dos discursos sobre a mulher no
mundo da criminalidade se fazem necessárias. Seria importante perguntar até que
ponto esta forma de construir dizeres e saberes sobre a maneira como ela age e
interage neste universo, não se configura também uma estratégia de dominação?
Voltando ao texto de Michele Perrot, seria preciso assumir suas análises e
indagações:
É que a mulher parece menos ameaçadora. De resto, sua criminalidade responde à
sua fragilidade. (...) O crime, o delito são assuntos de homens, atos viris cometidos na
selva das cidades. Seu esvanecimento nesse teatro será o índice de sua submissão,
de uma moralização ampliada da mulher? Ou uma certa forma de afastá-la para os
bastidores? Essa indulgência, no fundo não será suspeita? Recusar à mulher sua
estrutura criminal não será ainda uma maneira de negá-la? (PERROT, 1992, p. 256-
258).
Mas, outras indagações surgem aqui. As mulheres podem ter os mesmos
tipos de vivências e reações que os homens? O uso da racionalidade voltada para a
31
Em seu estudo intitulado “Mulheres que matam: universo imaginário do mundo do crime”, ALMEIDA
traça importante perfil da mulher assassina e suas motivações. Inclusive daquelas que cometem
infanticídio e de como são tratadas, pelos próprios operadores do direito – que deveriam possuir um
discurso calcado na isenção científica – como monstros, desumanas e selvagens.
66
criminalidade se constituiria em atributo estritamente masculino? Uma mulher pode
ser tão “fria e calculista” quanto um homem? Em suma, a mulher é capaz de cometer
e praticar os mesmos tipos de crimes que os homens? Ou deve ainda continuar
sendo alvo de uma suposta benevolência masculina dos operadores do direito? Esta
tal suposta benevolência, realmente traz benefícios às mulheres em geral?
Almeida fornece pistas para que se possa refletir sobre a questão dos crimes
ditos femininos:
O tratamento penal deve ser o mesmo dado ao homem, porque a sansão deve ser
equivalente ao delito praticado e não proporcional ao sexo de quem o procedeu. Mas
observo é que há uma naturalização por parte dos operadores do direito, do crime
cometido por mulheres. Será que a mulher, apesar da emoção, não pretende com o
crime colocar-se para além da figura típica da fragilidade, da maternidade e do lugar
doméstico? (ALMEIDA, 2001, p. 150).
Há que se discutir. Afinal, negar à mulher, também na área da criminalidade,
seu papel de sujeito histórico capaz de escolhas e atitudes, não podendo portanto
ser totalmente responsabilizada pelos seus atos, é uma maneira de mantê-la ainda
sob tutela.
Após estas considerações sobre o gênero no mundo da criminalidade,
passar-se-á à análise das prisões femininas propriamente ditas. Afinal, se a
sociedade ocidental mantém especificidades masculinas e femininas para o mundo
público e para o mundo privado, manterá tal recorte para a punição dos
comportamentos criminosos, buscando – mesmo que de forma retórica – a re-
inserção desses sujeitos ao corpo social.
67
2.2 A criminalidade, as mulheres e a prisão
Um mapeamento da situação feminina em ambientes de reclusão não pode
se furtar de discutir as situações de violência das quais homens e mulheres que
habitam o mundo da prisão são oriundos.
Vivendo em condições precárias, as populações carentes e periféricas
encontram sérias dificuldades para se inserir no mundo do trabalho.
Dentre os muitos fatores que contribuem para tal situação, pesquisas na
área apontam que os diversos cursos profissionalizantes ofertados a esta população
se mostram insuficientes para garantir condições de competição num mercado de
mão-de-obra em constante mutação e especialização tecnológica.
Esta situação é ainda agravada pelas marcas excludentes do preconceito
contra sua classe e seu local de origem: muitos jovens das classes populares “(...)
deixam de tornar-se trabalhadores porque sua própria condição de pobres ameaça e
amedronta aqueles que lhes poderiam fornecer emprego” (ZALUAR, 1994, p. 17).
Daí que o mundo do trabalho não se apresenta de forma atrativa e o
universo da criminalidade se coloca de forma muito sedutora. A realidade das
ocupações produtivas assume uma conotação negativa – pois envolvem situações
de discriminação, salários baixos, desemprego, etc. – numa associação ancestral
com a escravidão.
Por outro lado, a criminalidade se apresenta como possibilidade de dinheiro
fácil, de impor medo e respeitabilidade, de afirmação da masculinidade, de se
mostrar valente e corajoso, da sensação de estar acima das normas e das regras, e
até mesmo, e por que não, da possibilidade de adotar hábitos de consumo distante
do cotidiano dos trabalhadores convencionais.
68
Revestido de uma moralidade toda própria, o mundo da criminalidade
conserva em muitos aspectos, semelhanças com as regras pertinentes aos papéis
dos gêneros masculinos e femininos vigentes para o restante do todo social.
Assim faz parte da honra masculina o respeito às mulheres pertencentes à
família de um trabalhador. Para tanto será preciso protegê-la do estupro, mesmo que
seja preciso matar ou entrar para o mundo do crime para cumprir tal ensejo.
O prestígio masculino afirma-se através de uma visão sexista de honra.
Neste sentido será índice dos mesmos a competência para arranjar mulher e, não
apenas mantê-la em casa, mas também proporcionar-lhe proteção.
Os homens serão cobrados a ostentar índices de que é um bom provedor de
sua mulher. Neste sentido
Muitos presentes, jóias para adorná-la e dinheiro no bolso surgem para ele como os
elementos que perpassam o seu imaginário, quando falam dos motivos para a ação
criminosa ou para a atração que o bandido exerce sobre as mulheres. O revólver na
cintura é o objeto que completa o quadro das representações sexistas, por ele
mesmo um símbolo fálico e por assegurar a proteção neste mundo de relações
violentas (ZALUAR, 1994, 79).
Percebe-se que as relações entre homens e mulheres se dão nos moldes da
dominação masculina, seja nas relações familiares ou fora dela. A mulher, sua
obtenção, proteção e manutenção são motivos tanto para que os homens se
mantenham afastados do mundo do crime, como para que adentrem
irremediavelmente em seu universo. Há que se chamar atenção para a figura
materna, que possui um caráter sui generis neste ambiente
32
.
32
No contexto de ação masculina, a figura da mãe parece ter um significado coibitivo e limitador para
o ingresso na criminalidade. Os jovens parecem ter medo e vergonha de que as mesmas descubram
a origem do dinheiro ou dos bens que trazem para suas casas. Por outro lado, temem que seu estilo
de vida pregressa possa acarretar medo, sofrimento e vergonha para suas mães. Mesmo naquelas
famílias onde a estrutura não corresponde ao modelo de família patriarcal, ali onde a ausência da
figura paterna é apontada pelo senso comum como um fator de incentivo à violência e à
criminalidade, em detrimento ao mundo do trabalho, a figura da mãe ainda é um elemento que
restringe a passagem para a marginalidade (ZALUAR, 1994).
69
A atração que o bandido exerce sobre as mulheres neste contexto é patente.
O mesmo se apresenta como aquele que pode lhe garantir, ao mesmo tempo,
proteção e prestýgio: a garantia de que não sofrerá mais humilhações ou
espancamentos. No mais, se sentem atraídas, pois assim como o policial, o bandido
é um homem das armas, e estas são:
(...) uma extensão do corpo masculino, instrumento do exercício de sua força. Por
isso são também chamadas de ‘ferro’, outro nome do órgão sexual masculino. A
associação de significantes fica também clara no uso constante do verbo ‘deitar’
(como no ato sexual se faz com quem assume a posição de mulher) em lugar de
matar (o que se faz com a arma). Vencer os outros homens através de sua posse é
fundamental para a afirmação do homem, que se torna respeitado na localidade
(ZALUAR, 1994, p. 106).
A partir deste contexto, parece ser possível afirmar que o convívio familiar e
institucional pelos quais passam estes homens e mulheres que habitam o universo
da prisão tem sido marcado por relações de violência. Tal realidade é comumente
confirmada pelas pesquisas realizadas junto aos sistemas penitenciários de diversos
estados brasileiros.
Atendo-se mais especificamente a dados levantados junto a prisões
femininas no Estado do Rio de Janeiro, têm-se apontado para a hipótese da
existência de relações de “(...) reprodução e continuidade, entre a participação em
atividades criminosas e trajetórias de violências experimentadas na infância,
adolescência e/ou fase adulta” (ILGENFRITZ, 2001).
Comparativamente, o número de mulheres presas no Brasil é ainda inferior
ao de homens. Este número, no entanto, vem crescendo exponencialmente nos
últimos anos
33
.
33
Este crescimento, que ocorre tanto no Brasil como no mundo, é significativo – isto é, o número de
mulheres presas cresce, em termos porcentuais, muito mais rápido do que o de homens – mas, tal
fenômeno ainda não altera, no curto prazo, a relação de proporcionalidade de homens e mulheres: os
dados do Rio de Janeiro mostram que um aumento de 132% do número de presas representa 360
70
Guardando-se as especificidades de cada estado brasileiro, pode-se atribuir
tal crescimento à participação estrutural da mulher nas atividades relativas ao
narcotráfico. Dados do Rio de Janeiro apontam um aumento do número de mulheres
condenadas por posse, uso e tráfico de drogas (de 32,6% em 1988 para 56% das
condenações em 2000).
Embora este fato possa estar relacionado ao crescimento efetivo do tráfico
de drogas naquele estado, bem como às políticas públicas levadas a cabo para
combatê-lo, deve-se chamar a atenção para o caráter subalterno e periférico
ocupado pelas mulheres na estrutura do tráfico de entorpecentes.
Em função deste papel de coadjuvante, sobra a elas quando capturadas
poucas possibilidades de negociação com a policia. Sempre reportando-se aos
dados do Rio de Janeiro, as pesquisas apontam que mais de 70% das presas
condenadas por tráfico de drogas constituem-se naquele personagem que o mundo
do crime acostumou-se a chamar de “laranja”.
Isto fica evidente quando se pergunta a elas qual papel desempenhavam na
hierarquia do tráfico:
Boa parte se definiu como “bucha” (a pessoa que é presa por estar presente na cena
em que são efetuadas outras prisões), como “consumidora”, como “mula” ou “avião”
(transportadora da droga), como “vapor” (que negocia pequenas quantidades no
varejo) e como “cúmplice” ou “assistente/fogueteira”. Algumas mulheres se
identificaram como “vendedoras” – sem especificar em que escalão se situavam – e
apenas uma pequena parte delas utilizou expressões que sugerem papéis mais
centrais, como: “abastecedora/distribuidora”, “traficante”, “caixa/contabilidade”,
“gerente” e “dona de boca” (MUSUMECI, 2001, p. 4).
A análise destes dados reforça o que já foi afirmado anteriormente – isto é,
relações de gênero no mundo da criminalidade ocorrendo com base na dominação
mulheres. Já o aumento de 96% do número de presos representa 7.974 homens a mais no sistema
(MUSUMECI, 2001).
71
masculina – mas também aponta para o ingresso das mulheres em atividades antes
associadas ao universo masculino.
Há que se chamar a atenção para o fato de, também neste universo, existir a
possibilidade para a multiplicidade de papéis masculinos e femininos, não havendo
situações que se apresentem estáticas, mas que estão em constante transformação
devido ao dinamismo das relações sociais e intersubjetivas.
Pensar as condições nas quais mulheres se encontram em unidades
penitenciárias envolve rever todos os estereótipos pertinentes à condição feminina.
Tanto quanto nas unidades masculinas, as relações entre os diversos sujeitos são
permeadas pela violência.
Assim, nos ambientes das prisões femininas, caem por terra aquelas
imagens que associam a mulher com fragilidade e a candura. Nestes espaços a
violência faz parte do imaginário e do cotidiano das presas. Sobreviver na prisão
exige quantidades bem dosadas de força e enfrentamento de conflitos, seja com as
companheiras, seja com a equipe dirigente
34
.
No entanto, as pesquisas apontam que em prisões femininas não se
encontram as já famosas organizações criminosas comuns nas unidades prisionais
masculinas: “Ao contrário dos homens, que estão distribuídos pelas unidades
penitenciárias por facções, as mulheres não pertencem a nenhuma facção e têm
muita dificuldade em se unir e se organizar. Estão sempre competindo (...)”
(ILGENFRITZ, 2001).
34
Uma grande dificuldade das pesquisas neste campo – seja de prisões femininas ou masculinas – é
encontrar espaço para que os informantes relatem livremente suas experiências. Instituições totais,
com fortes objetivos disciplinares, mantêm certa impermeabilidade para o observador externo. Voltar-
se-á a este tema no momento da caracterização do objeto da pesquisa.
72
O que os dados das pesquisas nesta área apontam é que a prisão, por tudo
o que ela representa, trata-se de apenas outra escala em uma trajetória de inúmeras
violências que compõem a história de parte considerável de sua população feminina.
O ciclo da violência, que se inicia na família e nas instituições para crianças e
adolescentes, perpetua-se no casamento, desdobra-se na ação tradicional das
polícias e se completa nas penitenciárias, para recomeçar, provavelmente, na vida
das futuras egressas. Na melhor das hipóteses, a prisão não ajuda a alterar o
repertório de violência que a maior parte das presas acumulou ao longo de sua
existência. Isso é particularmente grave se se considera que a maior parte das
mulheres cometeu crimes não-violentos e poderiam receber penas alternativas,
secundadas por um conjunto de iniciativas de apoio à reinserção social e à elevação
da qualidade de vida (MUSUMECI, 2001, p. 8)
Na prática, não é o que acontece. E isso não apenas no Brasil, pois parece
haver uma “mesmice” unindo as prisões das várias partes do mundo. Há que se
lembrar que a prisão por si só, está historicamente associada a estratégias de
controle social. A mesma então terá, como também já foi apontado um papel de
controle sobre os comportamentos que se espera que as mulheres cumpram.
Por isso
(...) existe uma estranha similaridade nas prisões em geral, e especialmente nas
prisões femininas. (...) Qualquer estudo convencional das ciências sociais sobre
mulheres prisioneiras vai lhe apresentar uma prisioneira típica – geralmente
caracterizada como ‘mãe’, com um nível de escolaridade relativamente baixo e que é
também viciada em drogas. (...) [Da mesma forma, em] prisões femininas em um país
europeu, descobrimos – como no caso das masculinas – um número bastante
desproporcional de mulheres imigrantes, cidadãs ilegais, africanas, asiáticas e latinas
(DAVIS e DENT, 2003, p. 527-528).
Há que se considerar neste contexto, o que o uso da criminologia – que se
espalhou da Europa à América junto com a cultura imperialista – foi preponderante
para a constituição deste estado de coisas.
De qualquer forma submeter populações a estratégias de controle social
sempre foi uma característica da sociedade moderna. Já se apontou em outros
73
momentos o quanto o aparato científico e tecnológico desempenhou papel
preponderante neste processo – seja pela constituição de saberes sobre a psique do
preso, seja pela criação de modelos arquitetônicos que racionalizem a prisão.
Em nossos tempos, tal racionalidade parece ter adotado um aspecto mais
bizarro, na medida em que, evoluindo para algo que alguns estudiosos chamam de
Industria da Prisão, busca mecanismos para atuar junto aos Estados-nação e
justificar um certo expansionismo prisional.
Em outras palavras, a instituição da prisão e seu uso discursivo produzem o tipo de
prisioneiro que, por sua vez, justifica a expansão das prisões. Inclusive, o termo
indústria da prisão pode se referir exatamente à produção de prisioneiros mesmo que
a indústria produza lucros para um número crescente de corporações e, drenando os
bens sociais de instituições como escolas e hospitais, creche e moradia, tenha um
papel fundamental na produção das condições de pobreza que criam a percepção de
uma necessidade de um maior número de prisões (DAVIS e DENT, 2003, p. 528).
A produção de estudos sobre a prisão se mostra profícua, pois sendo ela um
espelho da sociedade, servirá para uma saudável apreciação do que é o seu
reverso, ou seja, uma análise apurada do que constitui a própria sociedade – ou pelo
menos do que a racionalidade instrumentalizada não pode admitir que se revele às
claras.
Tais estudos se convertem em ferramentas que “(...) permitirão procurar
maneiras de utilizar a história escrita da prisão para entender raça, gênero e
globalização de uma nova forma” (DAVIS e DENT, 2003, p. 529).
Após o exposto sobre o ambiente onde se realiza o presente estudo, a
saber, o universo das prisões, há que se proceder a uma aproximação teórica dos
processos relativos à educação.
74
3. Educação: reproduzir ou problematizar?
Este capítulo quer discutir alguns conceitos relativos à educação.
Compreendendo que este termo é polissêmico buscar-se-á explicitar a perspectiva
que norteará este trabalho. A seguir promove-se a análise das contribuições das
implicações da tecnologia e do gênero na compreensão de tais processos,
encerrando-se com as indagações sobre as possibilidades de se desenvolver os
mesmos em ambiente de privação de liberdade.
Quando se considera a produção teórica sobre o tema educação nos últimos
anos, tomando por partida uma grande gama de propostas, muitas vezes
divergentes entre si, pode-se chegar à conclusão de que defini-la ou conceituá-la
não se configura em tarefa fácil.
Neste trabalho adotar-se-á educação como um processo onde os indivíduos
estão sempre em formação, construindo-se e reconstruindo-se e onde, através de
uma contínua dinâmica de interações, produzem sua própria identidade.
Neste sentido os processos educativos envolvem atividades que estariam
voltadas para a “formação de sujeitos com capacidade moral e intelectual, mas
também [com] uma competência comunicativa dialógica” (PRESTES, 1996, p. 73).
A partir daí podemos entender educação como tarefa de lidar com
qualidades intrínsecas e inerentes aos sujeitos, oportunizando que as mesmas
possam ser aperfeiçoadas, desenvolvendo as habilidades necessárias às diversas
dimensões do agir humano. Está-se referindo ao “ato de educar, orientar,
acompanhar, nortear, mas também o de trazer ‘de dentro para fora’ as
potencialidades do indivíduo” (GRINSPUN, apud PELIANO, 1999).
75
Ao se adotar esta perspectiva não se toma os processos educativos apenas
como mera transmissão de conhecimentos que teriam por objetivo a formação de
sujeitos intelectualmente competentes. Tais processos deveriam estar voltados
muito mais para a construção e reconstrução de conhecimentos, tomando por base
o contexto global onde educandos e educadores estão inseridos, considerando os
sujeitos em uma dimensão integral, onde suas facetas afetiva e ética, por exemplo,
também seriam contempladas.
Uma ótica assim construída deverá então levar em conta a “palavra”, isto é
toda a gama da experiência vivida, que cada envolvido neste processo traz em si,
pois é ao manifestá-la que
(...) o homem assume conscientemente sua essencial condição humana (...). A
educação reproduz, assim, em seu plano próprio, a estrutura dinâmica e o movimento
dialético do processo histórico de produção do homem. Para o homem, produzir-se é
conquistar-se, conquistar sua forma humana (FREIRE, 1987, p. 13).
Trata-se aqui da oposição demonstrada por Paulo Freire entre a educação
bancária e educação problematizadora.
O educador tece uma valiosa critica às concepções que encaram as
atividades de ensino aprendizagem como um constante “adicionar” ou “depositar”
conhecimentos. A perspectiva bancária não considera a criatividade e a
subjetividade e toma o educando como ser passivo do conhecimento, negando o
constante dinamismo que caracteriza a educação.
A partir daí somente os educadores são considerados os detentores do
conhecimento, tomando para si as atividades que protagonizam a educação. A eles
é permitido pensar, pronunciar a palavra, disciplinar a classe, prescrever as opções
possíveis. O educador é o ator do processo educativo. O professor educa.
76
Aos educandos cabe então, o papel de coadjuvantes da educação. Sua
criatividade é domesticada e suas experiências, que poderiam enriquecer o processo
de aprendizagem, são negadas.
O verdadeiro encontro entre educadores e educandos não acontece. Nesta
perspectiva nega-se que
(...) o pensar do educador somente ganha autenticidade a partir do pensar dos
educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto na intercomunicação. (...) E,
se o pensar só assim tem sentido, se tem sua fonte geradora na ação sobre o mundo,
o qual mediatiza as consciências em comunicação, não será possível a superposição
dos homens aos homens (FREIRE, 1987, p. 64).
Uma perspectiva de educação que se proponha verdadeiramente
problematizadora deverá superar as contradições que possam surgir entre
educandos e educadores. Assim deverá promover sempre a troca, o diálogo.
Daí que o educador terá de assumir um outro papel nesta dinâmica,
adotando uma postura de abertura diante do educando e do conhecimento. O
primeiro passo seria reconhecer que
(...) enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado,
também se educa. Ambos, assim, tornam-se sujeitos do processo, em que crescem
juntos e em que os argumentos de autoridade já não valem. Em que, para ser-se,
funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não
contra elas (FREIRE, 1987, p. 68).
Tal perspectiva nega os cânones tradicionais e as concepções de homem
abstratas, essencialistas e desligadas do mundo, também não podendo concebê-lo
como uma construção desligada do ser humano.
O entendimento é que a educação se dá a partir de reflexões feitas pelos
sujeitos através de suas relações com o mundo, em um esforço de construção crítica
de sua própria consciência.
77
Longe de ser assistencialista, adquire um parâmetro de criticidade já que “se
funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeira dos homens sobre a
realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora
da busca e da transformação criadora” (FREIRE, 1987, p. 72).
A educação por esta perspectiva não considera o mundo como uma
realidade estática, à qual os sujeitos devam se conformar de forma passiva, mas,
pelo contrário, toma a realidade em sua dinâmica histórica de constante
transformação dialética.
Neste sentido, Paulo Freire quer que a educação
(...) corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade.
Daí que se identifique com eles como seres para além de si mesmos – como
‘projetos’ – , como seres que caminham para frente; que olham pra frente; como
seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para traz não deve
ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que
está sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique com o movimento
permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem
inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu
sujeito, o seu objetivo (FREIRE, p.73).
A proposta pedagógica de Paulo Freire é profundamente otimista com
relação à capacidade dos sujeitos construírem um diálogo intersubjetivo e, a partir
dele, criarem e recriarem a sua realidade.
Infelizmente, apesar de ser grandemente cultuado como referência e ser
citado como base e fundamento para propostas pedagógicas em todo o mundo, as
instituições escolares brasileiras parecem ainda estar longe de realmente
proporcionar aos que dela se aproximam instrumental para que efetuem uma leitura
crítica da mundo onde se inserem.
Pelo contrário, atuam muito mais no sentido da reprodução do sistema social
vigente. Sua ação ainda é classificatória, desvinculada do ambiente social e seu
78
discurso identifica os educandos a partir de rótulos e estereótipos, bem como suas
práticas favorecem a exclusão e marginalização.
Uma análise mais apurada permite perceber que “(...) os cursos e os
conhecimentos trabalhados pela escola perdem seu vínculo com as exigências das
necessidades sociais e atrelam-se a interesses de grupos que detêm o poder”
(PRESTES, 1996, p. 57).
Na perspectiva de educação problematizadora de Paulo Freire, mas
buscando possibilidades para a construção de propostas e práticas pedagógicas que
se diferenciem das que hoje se efetivam pode-se tornar ao filósofo Jurgen Habermas
e sua Teoria da Ação Comunicativa
35
.
Construída no sentido de promover a conciliação entre o que ele mesmo
chama de mundo do sistema e mundo da vida, numa dinâmica interativa que busca
a comunicação entre essas duas racionalidades, tal teoria se configura em
interessante referencial para se pensar a educação:
Quando os pais querem educar seus filhos, quando as gerações que vivem hoje
querem se apropriar do saber transmitido pelas gerações passadas, quando os
indivíduos e os grupos querem cooperar entre si, isto é, viver pacificamente com o
mínimo de emprego de força, são obrigados a agir comunicativamente (HABERMAS,
1993, p. 105).
Em seus escritos Habermas defende a total liberdade dos sujeitos. A partir
dele se concebe a idéia de que a educação deve acontecer em ambiente livre de
toda e qualquer tipo de coação, pois só assim é possível que educandos e
educadores comuniquem suas experiências pessoais, sua bagagem de
conhecimentos tácitos, a fim de construir uma nova aprendizagem.
35
O conceito de ação comunicativa em Habermas (1993) se refere às interações sociais que são
orientadas a partir de atos comunicativos, sendo que se faz uso da linguagem – verbal ou extra-verbal
– a fim de produzir o entendimento entre as partes .
79
Em outras palavras, o agir educativo ocorre pela interação entre os sujeitos
– capazes de desenvolver reflexão e dotados de espírito crítico – que se
reconhecem como portadores de saber, e, por isso mesmo, aptos a construir novos
conhecimentos a partir de experiências partilhadas por todos que participem deste
agir educativo – não mais como educandos e educadores, mas todos
compartilhando o estatuto de aprendizes (BASTOS, 1998).
A educação – através das instituições que a tomam por tarefa – cumpre
papel central nas dinâmicas sócio-culturais. Vale lembrar, que em virtude de sua
natureza e do serviço que presta, a escola deveria regular-se a partir dos processos
da ação comunicativa, uma vez que “(...) exerce um papel fundamental na
transmissão cultural, na socialização e na construção da personalidade individual,
isto é, na reprodução das estruturas simbólicas do mundo e da vida (...)” (PINTO,
1996, p. 152).
Esta exigência se justifica em consonância a dois fatores importantes. Um
primeiro se refere a um compromisso ético: o de promover o pensamento autônomo
que possibilite o educando, a partir de suas contingências sócio-culturais tornar-se
sujeito e não objeto dos processos de aprendizagem, já que “(...) não existe tábula
rasa, analfabetismo absoluto; todos falam, se comunicam, usam um vocabulário
básico, manejam conceitos dentro do senso comum [e] possuem referências da
realidade em que estão inseridos (...)” (DEMO, 1994, p. 32).
O segundo fator se refere à própria dinâmica assumida pelas sociedades
tecnológicas no contexto do atual estágio do capitalismo: compreender a forma
como se dão os avanços científicos e tecnológicos, bem como captar suas
implicações exige uma nova gama de atitudes por parte dos que estão envolvidos
em processos educativos.
80
Para tanto se faz necessário abandonar aquelas visões de mundo dualistas,
que por muitas vezes toma por base sínteses isoladas e reducionistas; em benefício
de leituras de caráter sistêmico – isto é, a busca por análises que promovam a
compreensão das inter-relações entre o todo e as partes de um fenômeno.
Isto porque a própria realidade se apresenta mesclada por uma série de
fatores que se inter-relacionam – tais como gênero, classe ou etnia, por exemplo –
formando um todo complexo, impossível de ser captado e compreendido em
separado.
Como já foi asseverado em outro momento, a sociedade tecnológica se
configura complexa e multifacetada. E, como bem analisaram os teóricos da Escola
de Frankfurt, não raro a ciência e a tecnologia são tomadas em sua dimensão
ideológica. Por conseguinte a própria educação terá de contribuir com a formação de
ferramentas que possibilitem aos sujeitos avaliar este contexto.
Assim, é preciso educar para a tecnologia. Só será possível estabelecer
parâmetros mais democráticos para a produção e utilização da mesma a partir do
momento em que “(...) a tecnologia estiver nas mãos de pessoas verdadeiramente
educadas
36
– homens e mulheres cuja moral e capacidade intelectual tenham sido
desenvolvidas ao máximo” (REIS, 1995, p.116 e 117).
Pensar a sociedade tecnológica e suas produções de forma crítica e
reflexiva é a tarefa que o professor João Augusto Bastos procurou estimular quando
propôs, a partir das teorias de Jurgen Habermas, a Educação Tecnológica
(BASTOS, 1998).
36
Por tudo que foi exposto até aqui, não é possível confundir-se educação com letramento ou
ilustração acadêmica, mas sim com capacidade de produzir síntese crítica do mundo à sua volta.
81
3.1 Educação e tecnologia
As análises existentes das instituições de ensino têm demonstrado que as
mesmas possuem certo despreparo para lidar com as questões suscitadas pelo
desenvolvimento científico e tecnológico – uma das principais características do
período contemporâneo.
A grande diversidade de inovações de nosso tempo parece gerar, naqueles
que deveriam ser os responsáveis por promover sua crítica, certa insegurança ou
mal-estar. Isto porque os avanços técnico-científicos ocorrem num período de tempo
muito menor que a capacidade que a sociedade parece dispor para rever sua esfera
de valores (CARVALHO, 1997).
É tarefa da educação superar este obstáculo evitando práticas
conservadoras e preconceituosas com respeito às inovações – mas mantendo com
relação a elas uma postura de criticidade.
Neste ponto é preciso uma especial atenção com o que se possa entender
com educar para a tecnologia. Esta não se refere, pura e simplesmente, a processos
educativos que ocorram mediados por aparelhos tecnológicos. Também não se
reduz ao preparo de indivíduos para a produção de artefatos e mecanismos
tecnológicos – ou à qualificação técnica para seu manejo.
É preciso fazer essas ressalvas, pois algumas vezes este é o caráter de
instituições e centros que se afirmam como especializadas em desenvolver uma
educação tecnológica. Na grande maioria destes casos ocorre a transmissão pura e
simples de saberes técnicos (o fazer pelo fazer), sem uma preocupação maior com a
compreensão mais aprofundada do que ela representa. Nestes ambientes:
82
(...) são raras as práticas pedagógicas baseadas em trabalhar opções de escolha
entre as mais diversas tecnologias, a possibilidade de diferentes soluções para
resolver os problemas e suas implicações na sociedade como um todo. É comum ao
educador a tarefa de conduzir os educandos na direção de seus objetivos pré-
estabelecidos, e pior ainda, incutindo-lhes única e exclusivamente a necessidade de
uma formação profissional para o mercado de trabalho, reduzindo o sujeito aos
valores do capital (IAROZINSKI, 2000, p.43).
Tal situação reflete o ensino tecnológico, expressão usada para designar os
processos restritos que primam por estar “(...) limitando-se à transmissão de
conhecimentos técnicos aplicados nas práticas escolares no ambiente das escolas
técnicas e da rede de formação profissional” (IAROZINSKI, 2000, p. 44).
Pelo contrário, educar para tecnologia refere-se à discussão e reflexão da
mesma enquanto processo social, isto é, não como artefato isolado, mas buscando a
compreensão ampla de suas dimensões sócio-cultural, econômica e histórica.
Assim, Bastos cunha o termo educação tecnológica e aponta que sua
característica básica seria:
(...) registrar, sistematizar, compreender e utilizar o conceito de tecnologia, histórica e
socialmente construído, para dele fazer elemento de ensino, pesquisa e extensão,
numa dimensão que ultrapasse os limites das simples aplicações técnicas, como
instrumento de inovação e transformação das atividades econômicas em benefício do
homem, enquanto trabalhador, e do país (BASTOS, 1998, p. 32).
A sua proposta vai além da simples acomodação às múltiplas mutações
pelas quais passam as sociedades ditas tecnológicas. Os sujeitos, a partir deste
contexto educativo, estarão aptos a atuar como protagonistas dos processos de
transformação da sociedade – nos quais a tecnologia assume papel preponderante
– já que detêm uma compreensão sistêmica de suas raízes, seu sentido e suas
motivações.
O panorama de fundo é possibilitar que os educandos possam desenvolver
uma visão ampla da conjuntura em que os conhecimentos científicos são acionados,
83
passando a gerar tecnologia
37
. Ao compreender tais estruturas e contingências
estar-se-á ampliando substancialmente sua consciência do mundo onde estão
inseridos.
Através de abordagem intersubjetiva, a educação deverá promover a
decodificação das várias facetas assumidas pela tecnologia. Através de processos
investigativos e postura inquiridora, poderá promover e subsidiar a emancipação dos
sujeitos, na medida em que os capacita a construir e organizar de forma
independente sua própria vida (BASTOS, 1997).
Como efeito então, desta dinâmica a educação para a tecnologia quer que
os indivíduos e sujeitos
(...) conheçam melhor as suas potencialidades e as suas fraquezas; tomem
consciência de si mesmos, desenvolvam a capacidade de investigação, a
autoconfiança e a independência; se tornem mais aptos a levantar questões do que
em as aceitar; e se preparem para tomar decisões e aceitar a responsabilidade
dessas mesmas decisões; (...) promova o desenvolvimento de indivíduos criativos,
perspicazes, preocupados com o que os rodeia e [se tornem] confiantes (REIS, 1995,
p. 49).
Uma vez concluído este esforço para delinear a educação e tecnologia e
suas contribuições para que os processos educativos se dêem de forma realmente
problematizadora e emancipatória, faz-se necessário observar as contribuições que
a categoria gênero pode trazer às discussões sobre o tema.
37
Tecnologia entendida aqui como o domínio de conhecimentos das mais variadas áreas aplicados à
resolução de problemas práticos de sua existência.
84
3.2 Gênero, educação e tecnologia
Apontou-se que a sociedade moderna, que tem na tecnologia um dos
principais constituintes de seu corpo social, apresenta-se complexa e multifacetada.
Neste sentido a educação, como também foi demonstrado, cumpre papel
preponderante na constituição das representações que os sujeitos produzem do
mundo à sua volta.
O gênero se constitui em importante categoria na compreensão das relações
de poder que ocorrem no meio social. Assim, também no que se refere à educação
uma leitura através deste recorte, se mostrará valiosa para a problematização e
enriquecimento desta análise.
As instituições escolares como já foi defendido anteriormente, são
responsáveis pela formação, discussão e transmissão de estruturas simbólicas e
valorativas entre as gerações. A própria formação de identidade, fruto das relações
responsáveis pela socialização dos sujeitos, sofre ação direta das interações
mantidas em ambiente escolar.
Pois entre os muitos conteúdos de referência que tais sujeitos usarão na
elaboração de suas representações de mundo, encontram-se também as imagens e
construções relativas aos papéis de gênero.
Pensar a partir da categoria teórica gênero nos dá a possibilidade de entender as
relações entre os sexos também no âmbito da cultura, do simbólico, das
representações, e isso é muito importante quando se pensa em educação, porque,
quando trabalhamos nessa área, reconstruímos a cultura, os valores, os símbolos nas
novas gerações, transmitindo ou recriando, reproduzindo ou transformando as
hierarquias, as diferentes importâncias atribuídas socialmente àquilo que é associado
ao feminino e ao masculino (CARVALHO, M.P., 1999, p. 9).
85
Uma análise critica da história da escola e da educação, revela que a
mesma ainda está longe de ser uma realidade problematizadora, que busca
oportunizar encontros comunicativos entre os diversos estratos componentes do
todo social – como foi defendido aqui através dos escritos de Freire, Habermas e da
proposta da educação tecnológica de Bastos.
Pelo contrário, as relações no interior dos ambientes escolares, em sua
maioria, primam pela promoção de distinção entre os indivíduos. A escola
infelizmente não nasceu democrática.
Note-se, no entanto, que o acesso à escola por parte daqueles que foram
sendo histórica e socialmente excluídos dela é fruto de esforço reivindicativo
organizado. Porém, houve e ainda há um discurso – não revelado, subliminar e não
reconhecido oficialmente – orientado no sentido de garantir a reprodução das
diferenças entre os sujeitos.
A escola incumbe-se e:
(...) se incumbiu de separar os sujeitos – tornando aqueles que nela entravam
distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela dividiu também,
internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação,
ordenamento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental
moderna começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela
também se fez diferente para ricos e para pobres e ela imediatamente separou os
meninos das meninas (LOURO, 1997, p. 57).
Correndo o risco de incorrer em generalizações que podem ser
consideradas infundadas, é preciso reconhecer que o aparato estrutural da escola –
currículos, instalações, educadores e profissionais de apoio, manuais e
regulamentos, a própria linguagem dos educadores ou a dos materiais didáticos, as
avaliações e os sistemas de valores empregados – estão voltados para a
manutenção das diferenças de gênero, classe e etnia (LOURO, 1998).
86
A escola, no que se refere ao gênero possui mecanismos especiais para
manter inquestionados os papéis que se espera que homens e mulheres
desempenhem. As expectativas quanto aos comportamentos esperados e
considerados naturais de meninos e meninas, bem como as diferenças na
elaboração do currículo de cursos masculinos e femininos podem ser contados entre
as muitas estratégias utilizadas para manter a diferença.
Uma análise superficial das dinâmicas e práticas escolares poderia apontar
como exagero a exposição acima. Afinal meninos e meninas, homens e mulheres já
freqüentam os mesmos cursos e podem estar lado a lado no ambiente escolar.
Mas freqüentar o mesmo espaço físico não implica em igualdade de papéis.
As práticas escolares ainda primam por construir identidades masculinas e femininas
adequados ao seu horizonte de época, sem cumprir seu pretenso papel de
problematização dos ocultamentos ideológicos.
Um exame um pouco mais acurado dos conteúdos e materiais didáticos
empregados já permite que se identifiquem os estereótipos e preconceitos de
gênero. Nestes a mulher aparece, na maior parte das vezes, associada ao ambiente
doméstico, ao mundo privado, enquanto que o homem é apresentado no mundo
público em papéis de decisão e comando, espaço este raramente ocupado pelos
membros do sexo feminino.
Assim, as escolas ainda têm como resultado de sua ação a valorização e a
promoção do masculino em detrimento do feminino, sendo poucas as instituições
que desenvolvem programas que questionem esta orientação tão comum na cultura
ocidental (DELGADO, 1998).
As palavras, os gestos, as atitudes, enfim a linguagem desenvolvida na
escola adquirem um papel relevante nesta construção de gênero bipartida. No
87
entanto, há que se reconhecer que em boa parte das vezes estes conteúdos não
são percebidos pelos agentes como portadores de estereótipos de gênero
38
.
As interações desenvolvidas em ambiente escolar são cruciais para a
construção e constituição das identidades e, consequentemente dos papéis de
gênero. Tal processo poderá se configurar de forma problemática quando os
conceitos e práticas escolares – que refletem as representações presentes na
sociedade onde ela se insere – vêm carregados de conteúdos discriminatórios
contribuindo para a fragmentação das identidades que não se enquadram nos
estereótipos.
A sociedade tecnológica se vale do discurso institucional da escola para
transmitir seu sistema de verdade. Logo, não se pode relevar a segundo plano o
poder do discurso escolar na formação da visão de mundo nem na construção de
papéis identitários dos indivíduos.
Assim, as afirmações e juízos expressos na escola vão ter uma repercussão,
que nem de longe são neutros com relação aos discursos de gênero.
Exemplificando: o uso do termo homem de forma genérica, querendo representar
toda a espécie humana – na qual também está inserido o sexo feminino – contribui
para a invisibilidade das mulheres na medida em que aponta os homens como
referência do ser.
A este respeito podemos refletir que:
enquanto o homem representa genericamente o ser humano, a mulher continua
sendo definida pela sua condição biológica. Ao definir o homem como sendo aquele
dotado de qualidades viris, como coragem, força ou vigor sexual e a mulher como
aquela capaz de procriar, sugere-se que uma mulher com coragem, força, vigor
38
Bakhtin defende que a linguagem “(...) não é meio neutro que se torne fácil e livremente
propriedade intencional do falante, ela esta povoada e superpovoada de intenções de outrem”
(BAKTHTIN, 1997). Assim a constituição dos discursos presentes no meio social estão permeados de
intencionalidades e de representações que estão carregados de valores muitas vezes contraditórios.
88
sexual e que, por algum motivo, não pudesse parir outros seres humanos não seria
‘verdadeiramente’ uma mulher (SILVA, 2000, p. 24).
A escola, ao não discutir de forma crítica valores sociais como os citados
acima, contribui para a manutenção de uma realidade ainda dividida ao meio e
marcada por estereótipos, não apenas de gênero, mas de toda classe de
desiguladades e submissões.
Ao perpetuar-se tais modelos reforça-se o cotidiano de bipartição entre o
masculino e o feminino, mantendo inalterada a estrutura social onde “a oposição
binária e o processo social das relações de gênero tornam-se parte do próprio
significado de poder; pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça
o sistema inteiro” ( SCOTT, 1995, p. 77).
Após estas considerações sobre as funções e disfunções representadas
pela educação na (de) formação dos papéis de gênero no mundo ocidental, pode-se
voltar para a análise destas relações no universo da prisão ou, dito de outra forma,
como se processa a educação de adultos presos.
3.3 Educação de adultos presos
Apontou-se em outro momento deste trabalho que a educação se constituía
em uma das bases promotoras do processo de reintegração do preso à sociedade
(ao lado do trabalho-profissionalização e da assistência jurídica).
Frizou-se também que a mesma cumpria um caráter fortemente ideológico
na estrutura do sistema penitenciário. É claramente perceptível que, ao discurso
oficial, a educação é pensada como um dos pontos centrais que irão promover a
89
transformação do preso – cidadão delinqüente por definição – em cidadão integrado
à ordem legal (ADORNO, 1991).
Há aqui uma contradição evidente: como conciliar aquela imagem da prisão
como universidade do crime – “(...) espaço de interação e aprendizagem, do qual
resulta a ‘conversão’ de novos adeptos a uma perspectiva criminosa” (PAIXAO,
1991, p. 9) – com a proposta da prisão como local privilegiado para que se aprenda
a vida em sociedade?
É certo que historicamente os saberes científicos foram conjurados para, em
conformidade com o projeto de manutenção da ordem legal, tornar a prisão, ou o
sistema penitenciário em “empresa para modificar as pessoas” (FOUCAULT, 1977,
p. 196).
Pensado sob esta ótica, e tendo como objetivo último a restauração de
indivíduos caídos socialmente, o sistema penitenciário muniu-se então de um corpo
técnico, a fim de levar a cabo tal tarefa – dependendo das dimensões da unidade
prisional, constituem este corpo técnico as equipes de psiquiatria, medicina,
arquitetura, assistência social, sociologia e, é lógico, pedagogia – a quantidade de
professores e pedagogos irá depender do número de presos da unidade.
Esse grupo de profissionais, acrescido ainda das equipes jurídicas –
advogados e estagiários – em conjunto com as direções das unidades penitenciárias
e equipe de segurança, se vêem imbricados na árdua tarefa de tentar conciliar a
bela teoria com a dura prática cotidiana das prisões.
Estão eles constantemente envolvidos com:
(...) o embate diuturno entre suas finalidades de punir e reabilitar. Esse embate é
parte fundamental na composição penitenciária, no seu cotidiano, nos seus
procedimentos mais corriqueiros, na proposição de atividades, na sua rotina, na
relação institucional entre diretorias, seções e departamentos, na avaliação de sua
gestão, nas reformas físico-estruturais e mesmo na formulação de sua arquitetura,
90
nos seus regulamentos, na nomeação e atribuição de cargos e funções
(PORTUGUÊS, 2001, p. 359).
Além dos objetivos da prisão serem contraditórios por natureza, o trato com
os presos também se dará de forma conflituosa. Em uma prisão todas as instâncias
e atos, por mais corriqueiros, têm de ser negociados. Como instituição total, fechada
sobre si mesma, refratária a estímulos externos, a prisão só sobrevive graças a seu
corpo de normas e regras de conduta rigidamente estabelecidos.
Assim, o trabalho dos educadores está inserido neste contexto cujo
equilíbrio, conquistado com base em acordos tácitos ou explícitos, em última
instância existe “(...) à base de delicadas teias comunicativas sobre a linha que
separa a autoridade institucional da massa carcerária, regulando[-se] através de
negociações ininterruptas (...)” (COELHO, 1987, p. 108).
Em outras palavras, as atividades dos profissionais responsáveis pela
reabilitação, têm “(...) sua organização e funcionamento [regidos] pelos fundamentos
da contenção, da vigilância, da subjugação dos indivíduos ao cárcere”
(PORTUGUÊS, 2001, p. 360).
A questão que se impõe então é: a partir da discussão de que a educação
deve ser entendida como espaço de realização ontológica dos seres humanos
enquanto sujeitos, pode se efetivar num ambiente profundamente repressivo, cujo
surgimento histórico deu-se com finalidade objetiva de promoção do controle social?
A prisão promove todo um aparato de normas e regras que têm por objetivo
a subjugação do eu, a sujeição da identidade. A educação enquanto processo
deveria atuar no sentido inverso. Porém, “a característica fundamental da pedagogia
do educador em presídios é a contradição, é saber lidar com conflitos, saber
trabalhar as contradições à exaustão” (GADOTTI apud PORTUGUÊS, 2001, p. 360).
91
O grande desafio se dá no sentido de buscar conciliar as normas relativas à
segurança dos presídios, que exigem a disciplina e constante vigilância, com as
atividades que pretendem desenvolver a autonomia plena dos sujeitos, fundadas na
construção da criatividade e da capacidade crítica dos mesmos.
Outro dado complicador para efetivação de propostas que se queiram
realmente educativas deve-se ao fato dos profissionais do setor da pedagogia das
prisões também comporem o corpo técnico que, há bem pouco tempo, procediam as
avaliações disciplinares dos presos – o agora extinto exame criminológico.
Mas os professores e demais integrantes da equipe pedagógica ainda têm
atuação e peso decisório na elaboração de outros pareceres sobre a conduta do
preso, bem como sobre o andamento de sua vida prisional. Isto faz com que se
acabe por “(...) transportar para o espaço de sala de aula os procedimentos
pertinentes à gestão penitenciaria, suas normas, procedimentos e valores”
(PORTUGUES, 2001, p. 365).
Se por um lado a educação sempre esteve presente na realidade das
prisões desde o seu nascimento, acaba por estar atrelada com os mecanismos
ajustadores e promotores da disciplina, na medida em que procura moldar os
indivíduos às normas e regras vigentes dentro dos presídios. Sendo assim, se
apresenta conflitante com os projetos que a querem promotora da autêntica vocação
humana, o alcance da plenitude do ser:
A contradição entre a educação e a reabilitação penitenciária incide
preponderantemente nesse aspecto. A primeira almeja a formação dos sujeitos, a
ampliação de sua leitura de mundo, o despertar da criatividade e da participação para
a construção de conhecimentos, a transformação e a superação de sua condição. Já
a segunda, atribui a absoluta primazia na anulação da pessoa, na sua mortificação
enquanto sujeito, aceitando sua situação e condição como imutáveis ou, ao menos,
cujas possibilidades para modificá-las estão fora de seu alcance (PORTUGUÊS,
2001, p. 372).
92
Com base nestes pressupostos teóricos e tendo em vista os objetivos desta
pesquisa, faz-se necessário descrever, na seqüência, os passos metodológicos
adotados para o desenvolvimento da mesma.
93
4 Passos metodológicos
Este trabalho adota a abordagem qualitativa de natureza interpretativa. Tal
escolha se deve em primeiro lugar à necessidade imposta pelo objeto, que instiga a
“(...) perceber o nível dos significados, motivos, aspirações, atitudes, crenças e
valores, que se expressa pela linguagem comum e na vida cotidiana” (MINAYO &
SANCHES, 1993, p. 245).
A abordagem qualitativa possibilita ainda uma aproximação maior aos
diversos significados atribuídos pelos sujeitos às diferentes situações vividas pelos
mesmos, possibilitando-lhes partilhar suas experiências significativas.
Desta forma temos que “(...) uma das grandes postulações da pesquisa
qualitativa é a de sua atenção preferencial pelos pressupostos que servem de
fundamento à vida das pessoas” (TRIVINÕS, 1991, p. 130).
Além do que, a pesquisa qualitativa toma por base e fundamento a
existência de uma ligação dialética entre o sujeito e a realidade à sua volta, havendo
(...) uma interdependência viva indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade
do sujeito. O conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por
uma teoria explicativa; o sujeito observador é parte integrante do processo de
conhecimento e interpreta os fenômenos atribuindo-lhes um significado (CHIZZOTTI,
2000, p. 79).
A fim de aplicar esta perspectiva ao objeto a ser pesquisado, ou seja, as
representações de tecnologia e gênero presentes na educação de homens e
mulheres reclusos, bem como quais as representações que estes mesmos atores
constroem a partir da educação da qual participam, buscou-se uma aproximação do
universo das prisões situadas em Curitiba.
94
O primeiro movimento efetuado foi no sentido de buscar bibliografia que
pudesse constituir-se em referencial teórico. Tal preocupação é resultante da
compreensão de que não existem fatos brutos, e uma compreensão científica de
determinado processo ou fenômeno estará sempre ancorada em teoria capaz de
orientar o olhar do pesquisador
39
(DUHEM apud ARANHA & MARTINS, 1993).
Uma vez de posse de referencial teórico capaz de permitir a compreensão
de seu objeto, buscou-se uma aproximação mais efetiva do mesmo, isto é, das
práticas educativas no interior do mundo das prisões de Curitiba.
Neste sentido, procedeu-se investigação junto à Secretaria de Estado da
Educação a fim de obter informações sobre quais seriam as políticas públicas
voltadas para este âmbito de ensino aprendizagem. Após algumas tentativas
frustradas – ora via contato telefônico, ora in loco – o pesquisador foi informado de
que não havia nenhuma deliberação normativa específica por parte daquela pasta
sobre este campo tão específico da educação.
Porém havia uma ação conjunta da Secretaria de Educação com a
Secretaria da Justiça, através da qual a pasta da educação fornece corpo técnico e
a certificação – por meio do sistema de ensino supletivo presencial – e a pasta da
justiça integra estes profissionais ao esquema normativo geral do sistema
penitenciário, coordenando os trabalhos dos mesmos nas unidades específicas.
Em uma destas visitas à Secretaria da Educação houve a oportunidade de
conhecer e gravar entrevista
40
com um professor que naquela época, exercia o
39
Neste sentido, este trabalho é devedor do Getec – Grupo de Estudos e Pesquisas de Gênero e
Tecnologia, que está ligado ao PPGTE – Programa de Pós Graduação em Tecnologia da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Cefet-Pr), na medida em que o mesmo proporcionou
ao pesquisador as leituras da maior parte do referencial teórico que discute gênero nesta dissertação.
Da mesma forma, a aproximação do material bibliográfico que faz a discussão da criminalidade e do
sistema penitenciário foi proporcionada pela participação do pesquisador no GEV – Grupo de Estudos
da Violência da UFPR (hoje Centro de Estudo em Segurança Pública e Direitos Humanos).
40
Mesmo sem ter ainda um roteiro semi-estruturado, o pesquisador decidiu não desperdiçar a
oportunidade de obter dados sobre o universo de pesquisa, uma vez que o mesmo se configura
95
magistério junto às prisões; obtendo-se algumas informações importantes para
nortear o trabalho do pesquisador.
Desta entrevista, obteve-se a informação da existência da Escola
Penitenciária, responsável pela qualificação do pessoal que atua junto ao sistema
penitenciário. A Espen funciona sob a coordenação da Secretaria da Justiça e tem
no seu corpo técnico, professores como responsáveis pela coordenação das ações
pedagógicas junto aos presos do Paraná.
Figura 1: Escola penitenciária.
Fonte: DEPEN-PR
Outra informação relevante foi a de que a educação nas unidades
penitenciárias do Paraná funciona dentro do sistema CEBEJA – Centro Especial de
Educação Básica para Jovens e Adultos.
Em Curitiba e Região Metropolitana as escolas de todas as unidades
penitenciárias funcionam como extensões da Escola CEBEJA Mario Faraco,
localizada na Colônia Penal Agrícola, no município de Piraquara, onde estão lotados
todos os professores e equipe pedagógica da Secretaria de Educação que atuam
junto ao sistema penitenciário.
De posse destas informações o pesquisador procurou estabelecer contato
com as duas instituições
41
, a fim de agendar futuras entrevistas e coleta de dados, o
refratário a permitir o livre trânsito de informações, como se verá a seguir. Além do mais, tais dados
obtidos do informante serviram muito mais para a efetiva montagem e estruturação da pesquisa do
que como objeto de análise – até porque o dito professor não atuava em nenhuma das unidades
escolhidas mais tarde como universo de pesquisa.
41
O pesquisador optou, visando economizar tempo, trabalhar paralelamente em duas frentes
institucionais: munido de carta de apresentação do programa de mestrado, buscou contato ao mesmo
96
que foi feito de forma peculiar na Espen e com relativa facilidade no CEBEJA Mário
Faraco.
A afirmação de que os agendamentos na Espen foram feitos de forma
peculiar deve-se ao fato de que, através de contatos telefônicos, foram marcados
pelo menos três momentos para entrevista. No entanto nestas ocasiões, chegando
ao local e horário marcado para as mesmas, o pesquisador era comunicado que não
poderia realizá-las em virtude da direção da escola ter sido convocada “às pressas”
pela coordenação do Departamento Penitenciário, ou por alguma outra
eventualidade.
Transpostos esses percalços, e finalmente sendo recebido pela direção da
Espen, a entrevista deu-se sem maiores problemas. Registre-se apenas que houve
a necessidade de explicar detalhadamente os objetivos da pesquisa como um todo,
deixando evidente seu caráter científico e pedagógico, antes de começarmos a
entrevista propriamente dita.
Este ritual de marcar horário e entrevista e ver sua efetivação frustrada
repetiu-se, mais ou menos nos mesmos moldes, com todas as demais autoridades
do sistema penitenciário entrevistadas. Estas experiências levaram o pesquisador a
ter uma idéia das dificuldades que teria para proceder as entrevistas com os presos.
Para os contatos com o CEBEJA Mário Faraco não foram encontradas
maiores dificuldades. Talvez pelo fato do pesquisador ser também professor da rede
pública estadual, todos os professores e equipe pedagógica foram solícitos e
demonstraram interesse em contribuir com o trabalho de mestrado de um
“companheiro”.
tempo, tanto com o corpo de professores e técnicos da Secretaria de Educação como também com
as autoridades encarregadas da gestão do sistema penitenciário – estas ligadas à Secretaria de
Justiça.
97
Sem maiores dificuldades, efetuando apenas agendamento telefônico prévio,
foram efetuadas entrevistas com a equipe pedagógica da unidade escolar, bem
como com alguns professores – que atuavam tanto no próprio CEBEJA Mario
Faraco como nas extensões do mesmo, que funcionam dentro das unidades
penitenciárias.
Para coletar os dados optou-se pela entrevista semiestruturada, visando
assim proporcionar maior liberdade e manter a espontaneidade dos informantes.
Assim, montou-se um roteiro elaborado com questões centrais que se desejava que
os entrevistados abordassem em suas falas. Tal roteiro resultou não apenas “(...) da
teoria que alimenta a ação do investigador, mas também de toda a informação que
(...) [o mesmo já havia recolhido] sobre o fenômeno social que interessa”
(TRIVINÕS, 1991, p. 63).
A entrevista se apresenta como instrumento privilegiado para pesquisas que
têm a natureza deste trabalho, já que permite alcançar com certa dose de precisão,
dados e detalhes que não seriam encontrados através de outras abordagens.
Permite ainda que o pesquisador esclareça ambigüidades e equívocos no momento
mesmo em que elas ocorrem, num processo de diálogo que possibilita repetir ou
reformular perguntas, captando significações diretamente da fala dos informantes
(MARCONI & LAKATOS, 1982).
Tendo efetuado esta primeira aproximação com um dos elementos
constituintes do universo de pesquisa, isto é, tendo tido acesso à fala de alguns dos
professores do sistema penitenciário e tendo obtido sua visão sobre as práticas
educativas no ambiente das prisões, era preciso buscar ouvir os outros envolvidos
neste processo, a saber os próprios presos do sistema penitenciário paranaense.
98
Convém ressaltar que quando se desenvolve uma pesquisa de campo, a
escolha e delimitação do universo de pesquisa estão totalmente a cargo do
pesquisador.
O mesmo não se dá quando se tem por objeto os processos pertinentes ao
sistema penitenciário como um todo. A prisão enquanto instituição total exige, para
levar a termo suas propostas, que uma série de rituais de poder sejam executados
de forma específica.
Desta forma, toda e qualquer ação que envolva a presença de elementos
externos à sua rotina requer negociação prévia. Negociação esta que está sujeita a
uma hierarquia de poder que tem por objetivo último a manutenção da segurança e
da disciplina interna.
Assim, realizar pesquisa na prisão exige, em primeiro lugar anuência da
direção do Departamento Penitenciário. O pesquisador já tinha esse dado em mente
– mas talvez em nível subliminar – devido ao seu contato anterior com o sistema
como voluntário da Pastoral Carcerária. Esta necessidade foi reforçada durante a
entrevista com a direção da Espen.
Procurando evitar problemas com as questões disciplinares, num primeiro
momento, pensou-se em propor à direção do sistema que a pesquisa fosse realizada
junto aos internos da Colônia Penal Agrícola, onde os presos estão em regime semi-
aberto e gozam de relativa liberdade se comparados aos detentos das outras
unidades penitenciárias paranaenses.
Mas, como desde o início a proposta era desenvolver um estudo
comparativo entre as práticas educativas realizadas em prisões masculinas e
femininas – visando exatamente detectar as possíveis marcações e diferenças de
gênero ali existentes – temia-se que efetuar a pesquisa com regime fechado para
99
mulheres e aberto para homens fosse prejudicar a comparação dos dados no
momento da análise.
Essas preocupações se demonstraram, pelo menos em parte infundadas, já
que, uma vez tendo tomado conhecimento do teor da pesquisa, a chefia do Depen
se mostrou totalmente favorável à realização da mesma.
Aliás, não apenas se mostrou favorável à realização da pesquisa, como
também sugeriu que o pesquisador buscasse conhecer cada uma das unidades
penitenciárias do sistema de Curitiba e da região metropolitana, a fim de verificar
qual estaria mais em acordo com a realização da pesquisa.
Buscando ganhar tempo – e valendo-se do conhecimento prévio do sistema
que dispunha pelos motivos já mencionados – o pesquisador, mesmo sob pena de
deixar de tomar contato com um valioso referencial para o trabalho – mais
especificamente, as realidades de cada uma das unidades penitenciárias de Curitiba
e região metropolitana – optou por delimitar de antemão como objeto de pesquisa a
Prisão Provisória de Curitiba e a Penitenciária Feminina do Paraná (localizada em
Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba).
A escolha por estas unidades se deve, em primeiro lugar, por se tratar de
regime fechado, configurando-se exatamente no protótipo do que se constitui a
prisão enquanto regime de privação total da liberdade – o que não ocorre, por
exemplo, nos regimes semi-abertos, onde os presos já estão num estado de
progressão de regime e, se não possuem uma total liberdade de ir e vir, gozam de
alguns benefícios que outras situações não comportam.
Outro ponto decisivo para escolha da Prisão Provisória de Curitiba foram as
alternativas que se apresentavam a ela. Mais especificamente a Penitenciária
Central do Estado – que desde a última grande rebelião em 2000, se encontra
100
ocupada pela polícia militar – e a Penitenciária Estadual de Piraquara – PEP, ambas
localizadas em Piraquara.
Com relação à Penitenciária Central, o pesquisador foi informado pela
direção do sistema que a pesquisa ali, embora não fosse impraticável, envolveria
grandes entraves burocráticos e de segurança. Descartou-se então esta unidade,
pois como se sabe as pesquisas que envolvem trabalhos de mestrado possuem
prazos específicos a serem cumpridos e temia-se que complicações no sentido das
expostas acima pudessem prejudicar o cumprimento dos referidos prazos.
No caso da PEP, há que se reconhecer que houve até certo incentivo para
que a pesquisa lá se realizasse. No entanto, sua característica específica de
constituir-se em prisão parcialmente terceirizada, desestimulou o pesquisador a
desenvolver ali o seu trabalho
42
– mesmo porque, não haveria Penitenciária
Feminina similar para que se procedesse a devida análise comparativa.
Tais considerações se fazem necessárias a fim de que se tenha claro que o
presente estudo não se deu a partir de uma suposta neutralidade e isenção na
escolha dos objetos. Uma série de questões estruturais se interpuseram, e foram,
porque não dizer, decisivas no processo de delimitação do objeto de pesquisa.
Além disso, tem-se a convicção de que o universo das prisões não constitui
uma realidade monolítica, havendo uma multiplicidade de configurações e situações
que se apresentam na especificidade de cada uma das unidades penitenciárias do
sistema. Isto vai aqui colocado a fim de deixar claro que este trabalho não se
pretende generalizante, sendo que suas análises não devem de forma alguma ser
apressadamente estendidas para fora do universo investigado.
42
Note-se que por ser terceirizada a PEP possui um regime disciplinar sui generis, o que, no
entender do pesquisador, poderia ter uma influência determinante nas representações que os presos
possam construir das práticas educativas.
101
Até porque, na realidade a prisão não se apresenta de forma transparente,
mas pelo contrário, permite entrever apenas o que deseja que seja visto e
observado. Afirma-se isto a partir da compreensão de que a simples presença do
pesquisador, como se verá mais adiante, representa uma total modificação nas suas
rotinas diárias.
Uma vez tendo sido escolhido o universo de pesquisa, buscou-se então uma
aproximação do mesmo. Para tanto, procurou-se diretamente com a direção das
unidades penitenciárias contatos para a efetivação dos trabalhos de investigação.
A partir de contatos telefônicos agendou-se encontros com as direções das
duas unidades penitenciárias. No entanto, provavelmente devido até mesmo à
diferença de porte entre as duas unidades, os trâmites para que os mesmos se
efetivassem na Penitenciária Feminina foram menos burocráticos.
Na Prisão Provisória de Curitiba – que neste trabalho será chamada
simplesmente de Ahú, como é conhecida por aqueles que estão ou atuam no
sistema – houve problemas: embora o diretor tenha se mostrado favorável à
execução da pesquisa, inicialmente entraves burocráticos e na seqüência questões
de segurança atrasaram a realização dos trabalhos
43
.
O mesmo não aconteceu na Penitenciária Feminina do Paraná – que será
neste trabalho, chamada apenas de Feminina ou Penitenciária Feminina, como é
conhecida no sistema penitenciário paranaense. Após contato telefônico, o
43
Num primeiro momento houve um pequeno problema burocrático, já que a pessoa encarregada de
acompanhar nosso trabalho estava entrando em período de férias. Em outro momento, alegou-se
razões de segurança para não permitir a entrada do gravador para a efetivação das entrevistas com
os presos. Tentou-se negociar a entrada do gravador e diante de sua impossibilidade, o pesquisador
demonstrou-se disposto a realizar o trabalho sem o mesmo. Foi então solicitado que se
encaminhasse ofício à direção da unidade solicitando especificamente as datas em que o
pesquisador pretendia ter seu acesso permitido à escola. Foi providenciado o ofício pedido, mas
então já havia entrado o mês de dezembro de 2004, e foi afirmado ao pesquisador que, por razões de
segurança, este seria um mês inadequado para a realização de qualquer atividade que rompesse
com a rotina da unidade, uma vez que os presos, por estarem longe de suas casas num mês
tradicionalmente festivo e que remete aos valores familiares, estariam mais suscetíveis a mudanças
súbitas de comportamento, desaconselhando a entrada do pesquisador na unidade.
102
pesquisador foi recebido pela direção da unidade e, uma vez explicado o teor da
pesquisa procedeu-se, juntamente com a chefia de segurança, uma visita às
dependências da escola – bem como ao setor administrativo, aos canteiros de
trabalho
44
e ao berçário.
Na escola, o pesquisador pôde entrar em contato com o setor de pedagogia
da unidade – coordenado por servidores da Secretaria de Justiça e não da
Secretaria de Educação. Através deste setor procedeu-se o agendamento de
entrevistas com o corpo de professoras da unidade.
Tanto no que se refere às professoras e pedagogas do sistema, como no
tocante aos presos e presas, excluiu-se a informação relativa ao nome dos
entrevistados visando manter o anonimato dos mesmos.
Embora existam professores do sexo masculino atuando no sistema, as
mulheres constituem maioria, seja atuando como professoras, seja como
pedagogas. No caso deste estudo, as entrevistas foram realizadas apenas com
profissionais do sexo feminino
45
.
Aplicou-se à equipe pedagógica, bem como às professoras que ali exerciam
o magistério o mesmo roteiro de entrevista semiestruturado aplicado aos professores
e equipe técnica do CEBEJA Mário Faraco
46
.
As entrevistas
47
com as professoras foram realizadas na sala da pedagogia,
individualmente – embora na entrevista com a primeira professora, um membro da
44
Oficinas de costura, silk-scream e pintura de camisetas.
45
Tal fato não se deve a escolha ou recorte do pesquisador, mas a uma questão circunstancial, uma
vez que foram ouvidos apenas os profissionais que se dispuseram a dar entrevistas.
46
Cópia do roteiro em anexo.
47
Considerando as peculiaridades do universo penitenciário, o pesquisador optou por não aplicar um
questionário de coleta de dados pessoais aos entrevistados neste estudo. Tal decisão se deu,
primeiro em vista do caráter coletivo das representações buscadas. Num segundo momento,
considerou-se as dificuldades já descritas anteriormente, bem como o “custo”, em termos de tempo e
negociação para a implementação do mesmo. Posteriormente, tendo conhecimento de ser usual a
construção deste tipo de instrumento em pesquisas de caráter qualitativo, procurou-se suprir tal
ausência lançando mão do extenso material etnográfico que não se enquadrava nas categorias de
103
equipe pedagógica tenha se deixado permanecer na sala a maior parte do tempo da
entrevista.
O contato com as professoras aconteceu, em algumas ocasiões, antes das
mesmas entrarem em sala; em outras ocasiões no próprio horário da aula, tendo a
equipe pedagógica se disposto a acompanhar a turma da professora em questão
enquanto esta participava da entrevista, ou então, com as colegas atendendo a duas
turmas ao mesmo tempo para que a entrevista pudesse se efetivar.
Através de acerto com a pedagogia da unidade, o pesquisador pode de um
modo um tanto informal, observar como acontecem as aulas no ambiente da
penitenciária feminina.
As entrevistas com a equipe do CEBEJA Mário Faraco ocorreram entre os
meses de junho e setembro de 2004. No caso da Penitenciária Feminina, os
primeiros contatos com a unidade se deram a partir do final de setembro e, as
entrevistas e o referido trabalho de observação se deram no decorrer do mês de
outubro daquele ano.
Paralelamente a estas atividades de observação e de entrevistas de
professores e equipe pedagógica, o pesquisador começou a proceder à elaboração
do roteiro de entrevista semiestruturado a ser aplicado junto às presas.
Há, por parte do pesquisador, a compreensão de que as relações
intersubjetivas cumprem importante papel na constituição da vida social, sendo que
é a partir delas que se estabelecem as representações sobre a sociedade – seja sob
o signo da reprodução pura e simples, seja pela produção de variantes modificadas.
No caso das prisões, entende-se que as tais relações intersubjetivas têm
uma marcação muito mais forte e presente na constituição, não apenas das
análises selecionadas para este trabalho, mas que constituía-se em interessante suporte para uma
melhor compreensão das características dos informantes.
104
identidades de presos e presas, mas também das representações que os mesmos
constroem sobre si e sobre o universo da prisão – bem como sobre a educação,
objeto de interesse desta pesquisa.
Tendo em vista estas questões teóricas procurou-se construir uma
metodologia que fosse apropriada para capturar as manifestações intersubjetivas, já
que há o entendimento de que as mesmas se constituem em subsídios importantes
para a análise sociológica.
Parte-se do pressuposto então de que as representações sociais se
constroem e se modificam a partir da dinâmica das relações sociais, sendo este
amálgama um sistema de referências que produz os significados para as ações
48
.
Fazia-se necessário uma abordagem que desse conta da reconstrução das
orientações coletivas dos grupos, e ainda, que contribuísse para uma verificação do
conhecimento do “mundo interior” de seus atores e a sua relação com os atos
intencionais, facilitando o acesso aos conhecimentos, não somente os reflexivos,
mas também aqueles que conduzem os atores às suas ações.
Tendo por objetivo alcançar estas significações que têm um caráter coletivo,
optou-se por produzir entrevistas com grupos de presos e presas. Para tanto,
estabeleceu-se como critério que o grupo pesquisado possuísse um mínimo de
homogeneidade, isto é, que fosse formado por estudantes (presos e presas) que
pertencessem ao mesmo nível escolar, que estivessem cursando as mesmas
disciplinas, que ocupassem as mesmas classes, que tivessem os mesmos
professores, enfim que compartilhassem várias experiências e houvessem
desenvolvido um mínimo de convivência mútua.
48
Bourdieu desenvolve análise interessante sobre o tema e, através da noção de habitus, reflete as
interações existentes entre as representações de caráter social e individual. Para ele o habitus é uma
construção social e, como tal, organiza e estabelece parâmetros para a ação concreta que se realiza
na medida em que é posto em prática pelos diversos atores sociais (BOURDIEU, 1983).
105
Para tanto, buscou-se junto à pedagogia a organização de grupos de presas
que atendessem às especificações acima citadas
49
. Foram entrevistadas um total de
20 presas, distribuídas em quatro diferentes grupos que possuíam o mesmo número
de pessoas: as que cursavam o ensino médio, o ensino fundamental de 5ª a 8ª
séries, o ensino fundamental de 1ª a 4ª séries e as que estavam no processo de
alfabetização.
As entrevistas com as presas transcorreram no decorrer do mês de
novembro de 2004, no período da tarde, durante o horário de aulas, tendo elas sido
dispensadas das mesmas.
A única exceção se deu com o primeiro grupo de estudantes, as detentas
que cursavam o ensino médio, que começaram a ser entrevistadas às 15 horas, uma
hora antes do início das aulas. Mas, problemas com a empresa que contrata a mão-
de-obra junto à Penitenciária Feminina, fez com que a equipe pedagógica optasse
pela dispensa das aulas, “a fim de não prejudicar o horário de trabalho das presas”.
As entrevistas foram realizadas em diferentes ambientes, de acordo com a
disponibilidade de espaço na data específica em que se efetivavam. Assim, com as
presas estudantes do ensino médio as mesmas se realizaram na biblioteca. As
estudantes do ensino fundamental de 5ª a 8ª série foram ouvidas na sala da
pedagogia; enquanto que as entrevistas com as estudantes de alfabetização e 1ª a
4ª série se deram em salas de aulas que na data específica estavam vazias.
49
Registre-se que ao pesquisador não foi possibilitado escolher, nem no caso da Penitenciária
feminina nem no Ahú, os presos que participariam da pesquisa. Esta foi uma prerrogativa que as
direções das unidades penitenciárias em conjunto com as equipes técnicas mantiveram para si.
106
Em momento algum o pesquisador foi deixado a sós com as detentas.
Razões de segurança foram alegadas para que se mantivesse sempre um agente
penitenciário acompanhando o transcorrer das entrevistas
50
.
Outro ponto a ser ressaltado é que, embora em momento algum as
entrevistas tenham sido interrompidas, em diversas ocasiões pessoas ligadas à
equipe pedagógica e mesmo professores adentravam no local onde se realizavam
as mesmas. Este fato, no entanto, não pareceu inibir as informantes.
As presas, de uma forma geral, mas principalmente as das séries mais
elevadas, se apresentaram bem comunicativas. Embora se colocassem uma de
cada vez sobre as questões postas pelo pesquisador, com raras exceções,
discorriam bastante a partir das perguntas feitas, bem como sobre os outros
assuntos que, no seu entender, estavam relacionados com o tema, fato este que fez
com que o pesquisador tivesse que intervir algumas vezes, tentando direcionar o
foco das falas para o objeto de investigação, sem no entanto interferir na
espontaneidade das informantes nem menosprezar a riqueza das informações
paralelas, úteis para uma melhor compreensão do seu universo de representações.
Todas as informantes se mostraram interessadas em saber a natureza do
trabalho do pesquisador e, uma vez de posse desta informação, demonstraram-se,
principalmente as dos níveis mais elevados, interessadas em saber dos seus
resultados e, em conjunto com a equipe pedagógica da unidade, solicitaram cópia
do trabalho para a biblioteca da unidade.
50
O quesito segurança é levado a sério nas penitenciárias femininas. Talvez o fato de abrigarem um
número menor de detentas, se comparadas às unidades masculinas, faça com que o efetivo de
pessoal se torne mais evidente, dando a impressão ao observador externo de que a vigilância sobre
as presas se dá de forma mais ostensiva. O fato é que o escrutínio da intimidade entre os muros de
uma Penitenciária Feminina aparenta ser bem mais acentuado.
107
Uma vez efetuado o relato de como se procederam as abordagens
metodológicas junto à Penitenciária Feminina, faz-se necessário desenvolver relato
similar com relação ao mesmo trabalho efetuado na Prisão Provisória do Ahú.
Foi mencionado anteriormente que em fins de 2004 entraves burocráticos e
de segurança acabaram por comprometer temporariamente o desenvolvimento da
pesquisa naquela unidade. Aguardou-se então o início do ano letivo de 2005 para
reiniciar os contatos.
Houve ainda alguns contratempos, pois neste primeiro semestre de 2005
não só ocorreu alternância na direção geral do Depen, como também na direção da
Prisão do Ahú. De resto, é importante salientar que a nova direção da prisão não se
mostrou desfavorável à realização do estudo, mas solicitou novo “ritual” de
solicitação de ofícios para realização da mesma.
Acatados todos os trâmites burocráticos e de segurança, iniciou-se os
trabalhos de pesquisa em fins de junho de 2005. Registre-se, no entanto, que neste
ínterim o pesquisador pôde amadurecer um pouco mais seu referencial teórico afim
de melhor compreender os processos que pretendia analisar.
Através de contatos com a vice-direção da unidade do Ahú, finalmente
obteve-se a autorização para a entrada na escola da prisão. Esta nova
administração se mostrou mais compreensiva com relação à natureza da pesquisa,
permitindo sem maiores problemas a entrada do pesquisador e de seu material – a
saber, seu gravador
51
.
51
No que se refere ao gravador, talvez seja interessante apontar que, em todas as vezes que se
entrou nas unidades penitenciarias, eram efetuados telefonemas a fim de se confirmar a autorização
para a entrada do mesmo. Fato pitoresco: a única vez em que este processo não se deu, ainda na
penitenciária feminina, o pesquisador estava prestes a começar uma entrevista com a direção da
unidade e a mesma espantou-se ao ver o gravador, pois embora a própria já houvesse autorizado –
via telefone – ao pesquisador a comparecer com o mesmo, segundo ela o agente penitenciário da
portaria deveria ter entrado em contato com a segurança para confirmar sua entrada, sendo que em
função disso este agente deveria ser repreendido.
108
No entanto, deve-se ressaltar que, no Ahú o contato foi restrito. Embora o
pesquisador já conhecesse parte de suas instalações devido ao seu já referido
trabalho voluntário, é importante notar que não se realizou uma visita prévia às
instalações do mesmo a fim de conhecer o universo antes de iniciar a pesquisa
52
.
Até mesmo o contato com a equipe pedagógica da escola deu-se apenas no
momento de iniciarem-se as entrevistas. A vice-direção da unidade já havia
solicitado anteriormente ao pesquisador os detalhes metodológicos da pesquisa:
número de presos a serem entrevistados, os níveis de escolaridade, etc.
Estes detalhes técnicos do estudo - todos nos mesmos moldes do trabalho
já efetuado na Penitenciária Feminina – foram transmitidos à equipe pedagógica,
sem maiores discussões com o pesquisador.
Não foram feitas entrevistas com os professores nesta unidade e, como a
entrevista com a equipe pedagógica – também da Secretaria de Justiça – foi
efetuada na sua sala, que se localiza no prédio da administração, fora das
dependências da escola, houve poucas oportunidades para observação efetiva do
trabalho pedagógico.
Mesmo assim, enquanto esperava, nas salas de aula, a chegada do grupo
de presos, que subiam das galerias até a escola – processo que, devido ao grande
número de internos detentos da unidade, varia de acordo com a equipe de agentes
de segurança, que pode ser mais rápida no processo ou mais minuciosa
demandando mais tempo – o pesquisador pôde não apenas travar contato um pouco
52
Talvez isso se deva ao fato do primeiro contato que o pesquisador travou com a nova
administração do Ahú, ter ocorrido durante uma visita do Grupo de Estudos de Violência da UFPR
àquela unidade, já em meados do primeiro semestre de 2005. Em função da mesma, talvez a direção
da unidade tenha considerado este procedimento desnecessário – embora na ocasião em que os
integrantes do GEV ali estiveram, por razões de segurança, só lhes foi permitido o acesso aos
canteiros de trabalho e nas instalações externas da prisão, tendo sido vedada a entrada às galerias.
109
mais informal com os professores daquela unidade, bem como observar como era o
trato dos mesmos com os presos.
As entrevistas com os presos da Prisão do Ahú ocorreram em uma sala de
aula – à época realizavam-se já as atividades de recuperação de final de semestre,
não estando todas as salas ocupadas. O fato de as entrevistas não ocorrerem
durante o período em que os estudantes deveriam estar em aula, como ocorreu na
Penitenciária Feminina, deu maior liberdade tanto ao pesquisador quanto aos seus
informantes, no entanto a duração das seções não passou de 30 a 40 minutos em
média.
A exemplo da forma como se deram os trabalhos na Penitenciária Feminina,
não coube ao pesquisador escolher os presos que se constituiriam em informantes.
No entanto, a escolha destes na prisão do Ahú, deu-se de forma totalmente aleatória
– o que não parece ter ocorrido no caso prisão feminina – procurando apenas
respeitar as condições que eram pressupostos para a constituição de peer groups,
isto é, que fossem estudantes do mesmo nível escolar, que freqüentassem a mesma
sala, etc..
Foram entrevistados um total de vinte presos, também distribuídos em
grupos dos que cursavam o ensino médio, o ensino fundamental de 5ª a 8ª série, o
ensino fundamental de 1ª a 4ª série e alfabetização – grupos estes que tinham o
mesmo número de integrantes.
O pesquisador foi deixado a sós com seus informantes, não tendo sido
destacado nenhum agente penitenciário para acompanhá-lo durante a execução das
entrevistas.
Os presos mostraram-se bastante comunicativos, mas há que se registrar
que diferentemente do que ocorreu nas falas das presas, estes ativeram-se mais às
110
questões propostas, trazendo poucos assuntos alheios ao tema em pauta. Assim, as
poucas intervenções do pesquisador se deram mais no sentido de buscar extrair
mais informações do que no sentido de procurar focar as falas.
Antes de proceder-se o trabalho de interpretação e análise das entrevistas,
faz-se necessário uma aproximação do campo onde se desenvolve este estudo.
Para tanto, começar-se-á com um pequeno resgate de caráter histórico de como as
prisões foram se constituindo no Brasil. Na seqüência faz-se a caracterização do
sistema penitenciário paranaense bem como das duas unidades prisionais
delimitadas como universo desta pesquisa. Por fim, apresenta-se os entrevistados, a
saber, as pedagogas, as professoras, as presas e os presos entrevistados.
111
5 Características do campo
Após a realização da descrição dos passos metodológicos seguidos na
elaboração deste trabalho, passar-se-á a um exercício de caracterização do objeto
de pesquisa. Para tanto, procurar-se-á mostrar o estado da arte no Brasil e no
Paraná e principalmente caracterizar as prisões onde se realiza este estudo. Na
seqüência apresentar-se-á os entrevistados, a saber, as pedagogas, as professoras
e os estudantes presas e presos. Começar-se-á com um recorte histórico das
prisões no Brasil.
Historicamente
53
a prisão portou-se como legítima tecnologia de poder,
exercendo controle sobre aqueles que poderiam representar ameaça ao status quo
vigente:
A prisão, símbolo do direito de punição do Estado, teve, quando da sua implantação
no Brasil, utilização variada: foi alojamento de escravos e ex-escravos, serviu como
asilo para menores e crianças de rua, foi confundida com hospício ou casa para
abrigar doentes mentais e, finalmente [não nos esqueçamos facilmente dos dois
longos períodos ditatoriais que se deram no decorrer do século XX], fortaleza para
encerrar os inimigos políticos (PEDROSO, 1995, p. 5).
Desde o início de sua história, a aplicação de penalidades no Brasil assumiu
a herança autoritária que já vigorava na metrópole portuguesa. Na fase colonial o
consórcio entre Igreja e Estado – via inquisição – promovia o equívoco entre crime e
pecado. A modernidade e o século XIX trouxeram reformas que, se por um lado
reconheceram os direitos dos encarcerados, por outro não baniram a pena de morte.
53
O pesquisador reconhece que este breve relato não dá conta de reconstituir a história das prisões
no Brasil. No entanto, apesar dos limites do que vai aqui escrito, quer situar o contexto no qual as
prisões se constituíram no país. Para uma leitura das prisões na perspectiva histórica ver PEDROSO,
R. C. Os signos da opressão (1995).
112
A prisão e o sistema legal tratavam de promover a exclusão dos
indesejáveis: fossem eles negros, capoeiras, vadios ou estrangeiros, eram
considerados criminosos e potencialmente habilitados a estar nos cárceres.
A República brasileira assumiu o discurso dos legisladores positivistas do
final do século XIX e começo do século XX, mas não foi capaz de impedir que as
prisões brasileiras continuassem extremamente desumanas. Agia-se em sentido
contrário: a exclusão promovida pela prisão reforçava a pedagogia do medo.
Assim, uma análise das prisões no Brasil através de um recorte da história
revela que as políticas públicas brasileiras para este setor, a despeito dos discursos
oficiais, acabaram por montar um aparelho penitenciário que deu conta de atender a
um tríplice papel: a exclusão, a repressão e a prisão (PEDROSO, 1995).
Atualmente as prisões paulistas e cariocas possuem um caráter
paradigmático no cenário nacional – até pelo espaço que ocupam na mídia, seja
pelas constantes rebeliões que seus internos protagonizam, seja pelo nível de
organização alcançado pelo crime organizado.
O número de encarcerados destes Estados também contribui
significativamente para este fenômeno: Segundo o Ministério da Justiça existem no
país cerca de 222 mil presos. Aproximadamente 44% deles estão nos presídios
paulistas, sendo que São Paulo e Rio de Janeiro são em conjunto, responsáveis por
55% dos presos do país (DEPEN NACIONAL, 2005).
De forma geral os dados estatísticos do Depen Nacional apontam para os
crimes roubo, homicídios, tráficos de entorpecentes e furtos como sendo aqueles
que mais contribuem para o encarceramento no país (DEPEN NACIONAL, 2005).
Os números brutos da violência e da criminalidade têm contribuído para a
reprodução do mito do encarceramento como resposta viável para estes problemas.
113
Embora deva-se reconhecer que tal equívoco não é privilégio brasileiro
54
, percebe-
se que a falta de pesquisas mais aprofundadas sobre o fenômeno da criminalidade e
do aprisionamento no Brasil contribui para o desperdício de vidas e de fundos
públicos
55
.
De qualquer forma, há que se respeitar as características concernentes a
cada Estado da União ao se abordar tais assuntos. Porém, ao se efetuar um estudo
sobre a estrutura do sistema penitenciário paranaense – locus onde se desenvolve
este trabalho – perceber-se-á que o mesmo possui uma série de características que
são muito próximas às levantadas por estudos realizados no restante do país.
De início, um esboço de caráter histórico irá apontar que sua constituição
atendeu os mesmos pressupostos: controle das massas e sua devida subordinação
a uma ética do trabalho.
A análise das relações entre criminalidade, violência e encarceramento na
passagem do século XIX ao XX aponta que a preocupação maior era conter os
abusos das classes inferiores – estrangeiros, proletários, indivíduos sem religião ou
instrução.
Para tanto lançou-se mão das prisões. Estas já eram problemáticas, sendo
que em geral seus problemas consistiam na falta de segurança:
(...) na inadequabilidade do espaço, localizado que estavam em prédios impróprios,
que colocavam em convívio diário, em ‘células apertadas’, simples presos
54
Para uma análise do quanto políticas de aprisionamento se configuram ineficazes, ver o exemplo
americano em WACQUANT (1999), LEMGRUBER (2001) e BARBOSA (2005). Para analisar como o
tema é tratado em território europeu ver WACQUANT, L. A aberração carcerária à moda francesa
(2004), CHRISTIE, N. Elementos para uma geografia penal (1999) e GARLAND, D. As contradições
da “sociedade punitiva”: o caso britânico (1999).
55
Os estudos na área têm demonstrado que “(...) quem sai das penitenciárias, em geral sai pior e, ao
reincidir, freqüentemente comete crimes mais graves, ao contrário dos infratores punidos com penas
alternativas, que reincidem muito menos” (LEMGRUBER, 2001, p. 28). A pesquisadora prossegue
argumentando que se trata de desperdício dos recursos públicos priorizar as penas de
encarceramento daqueles que não representam ameaça real ao convívio social. Tais recursos seriam
muito melhor empregados se fossem canalizados em investimentos que priorizassem programas
educativos e de resgate da cultura e da cidadania (LEMGRUBER, 2001).
114
correcionais de várias naturezas, menores, em ambiente de ‘perversão moral’ e
‘promiscuidade’, ‘sem ar’, ‘sem luz’, ‘sem as mínimas condições de higiene’ (DE BONI
apud BODÊ DE MORAES, 2004, p. 182).
Procurando atender as demandas de controle social das classes menos
favorecidas, conter o avanço da criminalidade e promover a justiça na Curitiba do
início do século XX, buscou-se a reforma da Polícia bem como a criação de
estabelecimentos que fossem adequados às novas necessidades do Estado (BODÊ
DE MORAES, 2005).
O ano de 1909 marca a inauguração da primeira penitenciária do Paraná:
originalmente denominada de Penitenciária do Estado – hoje Prisão Provisória de
Curitiba, ou Ahú – esta prisão já nasceu com defasagem de vagas. Três décadas
depois, já em 1940 surge a Colônia Penal Agrícola, no município de Piraquara,
região metropolitana de Curitiba. Na década seguinte é a vez da Penitenciária
Central do Estado (1954). O Complexo Médico Penal (também conhecido
popularmente como Manicômio Judiciário, ou simplesmente “manico”) veio a ser
inaugurado em 1969. A Penitenciária Feminina do Estado (hoje Penitenciária
Feminina do Paraná) surgiu no ano seguinte, e, o Centro de Observação e Triagem
ou COT como é conhecido, em 1979.
Hoje o Sistema Penitenciário do Paraná conta com dezessete unidades
penitenciárias, das quais nove estão na capital e região metropolitana
56
, duas em
Ponta Grossa
57
, duas em Londrina
58
, uma em Cascavel
59
, uma em Guarapuava
60
,
uma em Foz do Iguaçu
61
e outra em Maringá
62
.
56
Em Curitiba: Prisão Provisória de Curitiba – PPC, Centro de Observação e Triagem – COT e
Penitenciária Feminina de Regime Semi-Aberto – PFA; em Piraquara: Penitenciária Central do Estado
– PCE, Colônia Penal Agrícola – CPA, Penitenciária Estadual de Piraquara – PEP e Penitenciária
Feminina do Paraná – PFP; em Quatro Barras: Complexo Médico Penal – CMP; Em Araucária: Casa
de Custódia de Curitiba – CCC.
57
Penitenciária Estadual de Ponta Grossa – PEPG e Regime Semi-Aberto Penitenciária Waldemar
Teodoro de Ponta Grossa – RAPG.
58
Penitenciária Estadual de Londrina – PEL e Casa de Custódia de Londrina – CCL.
115
Foram escolhidas como universo de pesquisa uma unidade penitenciária
masculina – A Prisão Provisória de Curitiba, também conhecida como Ahú – e uma
unidade penitenciária feminina: a Penitenciária Feminina do Paraná, que é chamada
simplesmente de feminina tanto por presos como por funcionários.
O Ahú, segundo designação do próprio DEPEN-PR (2005), é um
estabelecimento penal de máxima segurança que atende, em caráter provisório,
presos do sexo masculino. Oficialmente deveria manter sob sua custódia temporária
apenas indivíduos que, devido à natureza do crime cometido, esperam decisão
judicial em regime fechado. No entanto, a deficiência de vagas no sistema faz com
que permaneçam na unidade presos já condenados, enquanto aguardam
transferência para as unidades onde devem cumprir legalmente suas penas.
A prisão do Ahú, localizada no bairro que também leva esse nome – bairro
hoje tido como nobre em Curitiba – ocupa uma área total de 67.764,36m2,
possuindo 14.000m2 de área construída – o que leva à indagação se os protestos
pedindo a retirada da unidade penitenciária dali teriam origem em moradores
realmente preocupados com a segurança ou em especulações do mercado
imobiliário.
Figura 2: Prisão Provisória de Curitiba - PPC (também conhecida como Ahú).
Fonte:DEPEN-PR
59
Penitenciária Industrial de Cascavel – PIC.
60
Penitenciária Industrial de Guarapuava – PIG.
61
Penitenciária Estadual de foz do Iguaçu – PEF.
62
Penitenciária Estadual de Maringá – PEM.
116
Sua capacidade é de 750 presos, mas no momento em que se realizou essa
pesquisa, foi informado, extra-oficialmente, o número aproximado de 850 detentos,
sendo que aguardava-se a chegada de mais ou menos 120 pessoas vindas dos
vários distritos policiais da capital.
A área construída conta com seis galerias, possuindo 154
cubículos/alojamentos – chamados tanto pela massa carcerária como pelos
funcionários, de xadrez ou simplesmente “xis”
63
. Possui também três refeitórios e um
pátio interno, vinte e quatro quartos para visitas íntimas, um consultório médico e
dois odontológicos.
A estrutura física conta ainda com uma enfermaria, uma sala para
atendimento técnico, uma lavanderia, duas cozinhas
64
e ainda 36 canteiros de
trabalho.
Com relação ao trabalho, a página do DEPEN-PR (2005) informa que 60%
da população carcerária está envolvida com atividades laborativas, tais como
panificação, cozinha, confecção de bolas, recuperação de carteiras escolares ou
manutenção da unidade
65
.
As instalações do Ahú possuem ainda seis salas de aula e uma biblioteca –
que compõem a escola, onde foi focado este estudo. Nestas dependências são
ofertados, aos internos que cumprem pena ou aguardam julgamento, os cursos
supletivos do ensino fundamental e do ensino médio.
São oferecidos sazonalmente cursos profissionalizantes, como marcenaria,
padaria, além de cursos básicos de informática. Com relação a cursos no sistema
63
A segurança conta também com dez solitárias, para onde são destinados os presos que cometem
faltas disciplinares e devem cumprir “castigo".
64
Embora este dado conste na página oficial do DEPEN-PR, foi informado ao pesquisador que a
alimentação dos presos é fornecida por uma empresa terceirizada.
65
A página cita também a produção de macarrão, industria de confecção, estofaria, montagem de
produtos elétricos e encartelamento de botões.
117
penitenciário, a tabela abaixo mostra a relação entre procura, inscrição e conclusão
dos mesmos no primeiro semestre de 2003.
Cursos Profissionalizantes
Cursos Realizados 16
Nº de inscritos 697
Nº de matriculados 298
Nº de concluintes 187
Fonte: GAP/DEPEN - 1º semestre de 2003
Figura 3: Cursos profissionalizantes no Sistema Penitenciário Paranaense ano 2003.
Fonte:DEPEN-PR
A Penitenciária Feminina do Paraná – PFP está localizada no município de
Piraquara, também é unidade penal de segurança máxima, mantendo sob sua
custódia tanto presas provisórias como condenadas.
Figura 4: Penitenciária Feminina do Paraná.
Fonte: DEPEN-PR
Mesmo sendo em número menor, desde a criação da Penitenciária do
Estado (hoje Prisão Provisória de Curitiba, ou Ahú), em 1909
66
, sempre houve a
necessidade de se criar alas especiais para mulheres nas unidades prisionais, não
sendo difícil imaginar o tipo de situação vexatória isso causava às internas, bem
66
Em anexo imagens que o DEPEN-PR disponibiliza sobre o Centenário da Prisão Provisória de
Curitiba.
118
como os problemas relativos à disciplina que este expediente gerava
67
. Tais
dificuldades foram sanadas a partir do surgimento da “feminina”.
A penitenciária feminina ocupa um terreno de 31.900 m2, tendo 4.959 m2 de
área construída. Sua estrutura física tem capacidade para atender a 342 internas e,
embora a página do DEPEN-PR (2005) informe uma população carcerária média de
300 presas, no momento em que se efetuou este estudo foi informada uma
população que oscilava em torno de 400 internas.
As instalações contam com cinco galerias, onde estão dispostas 123 celas
68
.
Possui também dois pátios, um refeitório e um quarto destinado à visita íntima. As
presas informaram, no entanto, que a maioria delas recebe poucas visitas de
maridos, companheiros ou namorados
69
.
Desde 1990 a penitenciária feminina conta também com uma creche, com
capacidade para 40 crianças, onde são atendidos os filhos das internas até a idade
dos três anos. No passado essas crianças permaneciam nas celas, junto com suas
mães. Hoje, as gestantes a partir do sétimo mês em condições normais – ou antes,
caso seja diagnosticado gravidez de risco – ocupam uma ala especial, onde ficam
até que seus filhos atinjam o terceiro mês, quando os mesmos vão para a creche. As
instalações desta estão em excelentes condições, possuindo área de lazer,
brinquedos, jardim e playground.
A área construída é composta ainda por uma capela ecumênica – que
durante a semana, é utilizada como sala de aula –, cinco salas para atendimento
técnico, uma lavanderia, um consultório médico e um odontológico. Existe uma
67
Para maiores detalhes do tipo de condições enfrentadas por mulheres quando têm de partilhar
espaço privação de liberdade com homens, ver página oficial dos direitos humanos, através do livro
virtual o Brasil atrás das grades, no endereço: <http://www.hrw.org/portuguese/reports/presos>.
68
Existem seis celas solitárias, destinadas ao “castigo”.
69
Apesar desta fala, há que se reconhecer que existe certo número de gestantes e parturientes na
unidade.
119
cozinha, mas a exemplo do Ahú, a alimentação das presas também é fornecida por
uma empresa terceirizada.
Figura 5: Creche da Penitenciária Feminina do Paraná - PFP.
Fonte: DEPEN-PR
Existem na penitenciária feminina oito canteiros de trabalho, que estão
divididos entre a montagem de aparelhos elétricos e eletrônicos, artesanato,
confecção de roupas, cartões de Natal, manutenção e cozinha, entre outras
atividades. Segundo as informações na página do DEPEN-PR (2005), 95% das
internas estão envolvidas com atividades laborativas.
A escola na Penitenciária Feminina dispõe de uma biblioteca e sete salas de
aula. Nas dependências da mesma, as internas podem cursar o supletivo do ensino
fundamental e do ensino médio.
Uma vez efetuada uma descrição do meio físico onde se realizou este
trabalho, proceder-se-á a mesma tarefa com relação à educação no sistema
penitenciário paranaense.
Segundo dados do DEPEN-PR (Pesquisa do Perfil Sócio Demográfico e
Criminal dos Presos no Estado do Paraná sob Ângulo da Reincidência
70
), mais da
metade dos detentos no sistema penitenciário paranaense possuem o Ensino
Fundamental incompleto, menos de dez por cento concluiu o Ensino Médio e apenas
um por cento chega a ingressar ao Ensino Superior (DEPEN-PR, 2005).
70
Há que se levar em consideração que tal pesquisa, tendo sido concluída no ano de 2004, contou
com o universo de 124 detentos, oriundos das várias unidades penitenciárias que compõem o
sistema. Os dados completos da pesquisa podem ser encontrados na página do DEPEN-PR, no
endereço <http://www.pr.gov.br/depen/downloads/perfil_presos.pdf>.
120
Aponta também que a maior parte dos presos tiveram acesso à escola mas
abandonaram os estudos na adolescência – a maioria devido a dificuldades
financeiras, necessidade de se inserir no mercado de trabalho, desinteresse pelos
estudos e até mesmo pela entrada no mundo do crime.
Figura 6: Escolaridade dos presos no Sistema Penitenciário Parananense.
Fonte: Pesquisa do Perfil Sócio Demográfico e Criminal dos Presos no Estado do Paraná
sob Ângulo da Reincidência DEPEN-PR.
Os dados do DEPEN-PR apontam que 67% dos presos estão matriculados
nas escolas das unidades do sistema penitenciário paranaense, sendo que, ainda
com base na pesquisa já citada, o tempo de permanência dos mesmos na escola
varia de 3 meses a um ano (DEPEN-PR, 2005).
Como já mencionado, a educação no sistema penitenciário paranaense
funciona a partir de um convênio entre Secretaria da Educação (SEED) e Secretaria
de Justiça (SEJU). Os cursos do Ensino Fundamental e Médio são ofertados pelo
regime de ensino supletivo. Assim, a SEED disponibiliza ao sistema penitenciário
professores, enquanto que a SEJU coordena esses trabalhos dentro da rotina
administrativa das unidades penitenciárias.
No Ahú as aulas acontecem tanto no período da manhã como da tarde. A
tarde, os professores já se encontram na unidade a partir das 13 horas, mas como
121
devem esperar que os presos sejam liberados, as aulas dificilmente começam antes
das 14 ou 14:30 horas, durando até às 16 horas – período que pode ser
interrompido a qualquer momento por questões de segurança.
Figura 7: Motivos da evasão escolar dos presos do Paraná (antes da prisão).
Fonte: Pesquisa do Perfil Sócio Demográfico e Criminal dos Presos no Estado do Paraná
sob Ângulo da Reincidência DEPEN-PR.
122
Na Penitenciária Feminina as aulas se dão exclusivamente no período da
tarde, iniciando-se às 16 horas, indo até o horário das 18 horas. Lá, provavelmente
devido ao número menor de internas, a liberação das mesmas se dá de forma muito
mais rápida. No entanto, são válidos os mesmos pressupostos de segurança.
Figura 8: Presos que estudam no sistema penitenciário Paranaense.
Fonte: Pesquisa do Perfil Sócio Demográfico e Criminal dos Presos no Estado do Paraná
sob Ângulo da Reincidência DEPEN-PR.
123
No decorrer do trabalho pôde ser observado – tanto no Ahú quanto na
Penitenciária Feminina – que o ambiente de sala de aula era bastante tranqüilo, até
mesmo informal. Os presos e as presas demonstravam liberdade para aproximar-se
dos professores, esclarecer suas dúvidas com relação à matéria das disciplinas,
embora se notasse um clima de respeito extremo para com os mesmos.
Após esta caracterização geral do ambiente penitenciário onde se efetuou a
pesquisa – que provavelmente contribuirá para uma melhor compreensão da prisão
e de seus pressupostos – passar-se-á para a análise propriamente dita dos
resultados da pesquisa de campo.
5.1 Os entrevistados
A caracterização dos entrevistados permite que se possa vislumbrar um
esboço dos sujeitos envolvidos nos processos de educação em ambiente prisional.
Vale lembrar que tal esforço não obedece aos cânones tradicionais em ciências
sociais. Como não foi elaborado questionário específico para levantamento de dados
pessoais, usa-se do conteúdo de suas falas para uma melhor compreensão de
quem são estes atores, bem como do significado de suas afirmações que serão
analisadas mais adiante.
Em linhas gerais apurou-se que, no que se refere às pedagogas
entrevistadas junto ao sistema penitenciário, a maioria está atuando há mais de
quinze anos (uma única entrevistada desempenha a função de pedagoga como
estagiária).
124
Das cinco entrevistadas duas estão lotadas na Secretaria de Justiça e três
estão ligadas à Secretaria de Educação. Tal informação se mostra relevante porque,
as pedagogas da Secretaria de Justiça têm um comprometimento maior no que se
refere à estrutura disciplinar das unidades penitenciárias. São as responsáveis pelo
levantamento da condição em que se encontra o preso com relação à educação
quando chega à unidade. Devem acompanhar seu desempenho e auxiliá-los na
opção por cursos profissionalizantes que queiram fazer. Em virtude deste
acompanhamento mais próximo, podem ser convidadas a desenvolver parecer sobre
as condições disciplinares dos mesmos.
Este contato mais próximo com os detentos não consta entre as atribuições
das pedagogas entrevistadas que estão ligadas à Secretaria de Educação. As
profissionais entrevistadas neste trabalho estão lotadas no CEBEJA Mario Faraco e
desenvolvem um trabalho de suporte pedagógico junto aos professores, sendo que
as oportunidades para um contato direto com os detentos são mais restritas.
De qualquer forma é de responsabilidade das equipes pedagógicas todo o
trabalho que se refere à educação dos presos e presas como um todo. Assim passa
por sua avaliação todos os cursos que são ofertados dentro de uma unidade, bem
como toda e qualquer atividade pedagógica que os professores queiram
implementar e, o parâmetro para sua aprovação ou não, são as normas de
segurança – “Tudo tem que se passar pela segurança [da unidade]” (pedagoga).
As entrevistas revelaram que as mesmas possuem um discurso pedagógico
comprometido com teorias avançadas, ou seja, que a educação cumpre importante
papel da emancipação dos indivíduos. O que não impede, como se verá mais
adiante, que defendam, talvez de forma irrefletida, posições nem sempre
coincidentes com tais teorias.
125
É consenso entre as pedagogas entrevistadas que a falta de estrutura
familiar está entre as causas determinantes da criminalidade – “a família é o alicerce
da pessoa. É através da família que ele traz os valores que ajuda a formar a
personalidade dele. Então você consegue atingir os seus objetivos na adolescência,
na vida, através de muitos valores que a família te incorpora” (pedagoga).
No entanto, aparecem nas falas outras variáveis fortes para a compreensão
desta realidade, tais como a desigualdade social, o desemprego, a pouca
qualificação profissional, o inchaço das cidades, a ausência de políticas que
promovam a cidadania e mesmo a própria lógica excludente do capitalismo
brasileiro:
Não tem uma profissão. Não tem escolaridade (...). Então elas vão procurar o que, o
vicio, a prostituição, o tráfico que assusta, a criminalidade em si.
(...) você sabe, né, o capitalismo, não dá chance pras pessoas, é muita concorrência,
não dá oportunidade, aí acontece a exclusão (...) então, essa vida faz com que eles
se depreciem. Eu não sei se posso culpá-los (...) por buscar uma saída na
criminalidade (...) (pedagogas).
Aparece na maior parte das falas que as condições de uma prisão não são
as ideais para o desenvolvimento da cognição. As questões de disciplina, as
pressões resultantes das diversas rivalidades existentes na prisão, as preocupações
com amigos e familiares, as variações de humor resultantes de uma vida de reclusão
são apontados como dificultadores do processo de aprendizagem.
Uma entrevistada aponta a ausência de liberdade como principal impeditivo
para um bom desempenho dos detentos – “(...) os reais interesses deles são outros,
né, muitas vezes ele vem pra cá pra não ficar na cela ou no pátio, onde é mais fácil
arrumar encrenca. Isso não é vida... na realidade eles não têm muita escolha, e isso
prejudica (...)” (pedagoga).
126
Tem-se então que, embora haja alguns pontos consensuais com relação à
educação, à prisão e aos próprios presos, os exemplos acima demonstram a
existência de posições bem marcadas e diversas sobre estes mesmos temas.
Pelas afirmações feitas por estas profissionais conclui-se que suas
concepções refletem-se no trabalho que desempenham junto a professores e
presos. Concluído este esforço para uma análise geral das pedagogas, será feito o
mesmo com relação às professoras.
As entrevistas destas apresentam-se ainda mais heterogêneas. Todas são
lotadas na Secretaria de Educação, e embora estejam no magistério há mais de dez
anos, duas afirmaram estar atuando na prisão há menos de um ano.
As dez entrevistadas declararam já ter feito curso de pós graduação, sete
sendo especialistas em Educação e três nas áreas específicas que atuam
(Geografia, História e Arte-Educação), sendo que pelo menos uma declarou
interesse em continuar os estudos.
Apesar da formação, suas falas recorriam pouco ao uso de teorias
pedagógicas para fundamentar suas posições, apontando para uma atuação a partir
de suas experiências pessoais
71
, o que fica evidente ao se referirem ao trabalho de
sala de aula: “(...) nada do que ensinam na faculdade te prepara pro que cê vai
encontrar lá” (professora de alfabetização). “(...) você se prepara para uma coisa e
(...) de repente tem de mudar tudo” (professora de arte educação).
É importante ressaltar que, nas falas das entrevistadas – tanto das
professoras quanto das pedagogas – não há uma preocupação maior com a
periculosidade da sua área de atuação. Embora reconheçam que o desempenho de
sua profissão dentro das prisões envolve situações de risco, todas demonstraram
71
Esta foi uma solicitação estratégica do pesquisador.
127
tranqüilidade com relação a este fato – “(...) às vezes até esqueço onde é que eu tô
(...) acho que tenho mais medo de andar em certos bairros do que de vir aqui
(professora de história).
No entanto, surge, em mais de uma entrevista, a afirmação de que os
professores também se sentem vigiados nas unidades onde desempenham o seu
trabalho. Seria este mais um efeito do forte esquema de vigilância da prisão ou mais
um dos muitos efeitos que as instituições totais provocam naqueles que são
submetidos às suas rotinas?
A proximidade que sua atividade profissional exige que tenham com os
presos internos poderia fazer com que recaia, também sobre os mesmos, a mesma
carga de vigilância que existe sobre os presos, por isso a necessidade de assimilar o
discurso da equipe dirigente (GOFFMAN, 1974).
No que se refere às concepções teóricas sobre a educação há pouco
consenso. Encontram-se tanto discursos extremamente conservadores, no sentido
de que é papel da educação – “(...) [moldar] o espírito dos alunos para que se
tornem cidadãos decentes (...)” (professora de matemática), como outros mais
elaborados que vão no sentido de ajudar o educando a encontrar os seus próprios
espaços de realização – “(...) quero que minha aula seje um espaço pra ele por pra
fora tudo que ele quiser (...)” (professora de arte educação).
Mesmo que se reconheça a ambigüidade destes discursos opostos, parece
haver consenso no que se refere à construção de uma identidade marginal em
relação ao detento – “(...) depois que entram aqui viram tudo santo”, “(...) se tá aqui é
porque alguma coisa ele aprontô (...)” (professoras de alfabetização e de
matemática). O “remédio” para tal identidade deteriorada seria uma educação
centrada não em conteúdos, mas em valores capazes de restaurar uma natureza
128
supostamente contaminada pela convivência em meio à marginalidade e na prisão –
(...) tem que fazer todo esse resgate, principalmente aqui por ser preso” (professora
ensino fundamental de 1ª a 4ª série).
Com relação aos resultados do seu trabalho há uma diversidade de posturas
e considerações. Algumas demonstram certo ceticismo quanto à possibilidade dos
seus alunos poderem ter qualquer oportunidade para usar seus novos
conhecimentos numa vida fora do mundo da criminalidade:
(...) elas não demonstram muito interesse pelas coisas. Que noventa por cento que
está aqui dentro é por drogas. Então vida fácil, tem prostituição. (...) E vai ver, quando
você pergunta o que vai fazer quando sair daqui, a reincidência é muito grande.
Porque elas voltam a praticar novamente o mesmo delito. E a reincidência de presos
aqui é enorme. Elas saem e voltam. Às vezes três dias após já estão de novo
(professora ensino fundamental 1ª a 4ª série).
Outras afirmam posturas que não levam em consideração as estruturas
sociais inerentes ao cotidiano de origem da maioria dos presos e presas atendidos
pelos professores:
Uma também outro dia: ‘ah quando eu sair daqui eu vou ser uma indigente, que não
tenho casa, não tem trabalho, e eu quero estudar, como é que vai ser?’ Quando
chegar a hora você tem dois braços, tem duas pernas. Você vai dar um jeito. Tem
que ir pra frente. Eu sempre incentivo (professora de alfabetização).
Tal situação pode estar relacionada com a já citada multiplicidade de
concepções de educação que aparecem nas falas. Dentre elas pode-se destacar,
pelo menos duas, que são diametralmente opostas: uma que encara o magistério
(...) como se fosse uma missão” (professora de alfabetização) e outra talvez já mais
preocupada com uma formação integral, que dê conta de problematizar a realidade.
De qualquer maneira aparece de forma consensual nas entrevistas a idéia
dos valores prevalecendo sobre os conteúdos. Isso pode ser resultado do
129
treinamento recebido pelos professores que ingressam no sistema – neste, são
orientados a ouvir os alunos, permitindo que os mesmos desabafem as muitas
tensões que compõem o seu cotidiano
72
. Essa realidade pode estar atrelada à idéia
da assimilação do discurso da instituição que Goffman (1974) propõe em sua teoria?
Voltar-se-á ao tema mais adiante.
A interação entre as professoras entrevistadas com seus alunos, por vezes,
as colocam em contato com as histórias de vida dos mesmos, fazendo com que se
sensibilizem com suas tragédias pessoais. Neste contexto, algumas se sentem
gratificadas por poderem contribuir para a superação de seus infortúnios. Por outro
lado, como apontado anteriormente, este contato com tais misérias leva algumas a
desconfiarem da possibilidade de reintegração e apostarem na sua reincidência.
Corre-se o risco, tal a riqueza de dados subjetivos fornecidos pela fala das
professoras, de perder o foco da análise, ou seja, as concepções de tecnologia e as
representações de gênero que permeiam os processos educativos. No entanto
espera-se que o que foi apresentado até aqui contribua para a compreensão de
quem são os atores que interagem com os presos nestes processos educativos. É
necessário que se apresente também a análise das entrevistas das presas e presos,
procurando formar delas um esboço que permita compreender melhor suas falas.
72
Tal expediente se configura em importante estratégia para ganhar a confiança e o respeito dos
presos e criar a empatia necessária para que os professores se sintam seguros em uma realidade
que é insegura.
130
5.1.1 Estudantes presas e presos
O universo composto pelas detentas ouvidas neste estudo, se configura
ainda mais heterogêneo que os analisados anteriormente – respectivamente
pedagogas e professoras. Isto em virtude da própria metodologia adotada: foram
ouvidas grupos de presas da alfabetização, do ensino fundamental de 1ª a 4ª série e
de 5ª a 8ª série e um outro grupo de presas que cursam o ensino médio.
Assim percebe-se, a começar pela idade, uma grande disparidade de
realidades. Pôde ser notado um arco de variação que vai dos vinte aos sessenta
anos – moças que mal saíram da adolescência e um certo número de mulheres mais
velhas. Mas, em conformidade com a realidade nacional, a maioria das presas
ouvidas está, aparentemente, na faixa dos vinte e cinco aos trinta e cinco anos.
A avaliação das direções de presídio aponta que o motivo que traz as
mulheres para as penitenciárias no Paraná, também em conformidade com as
pesquisas nacionais, é o tráfico de drogas. Entre os outros motivos apontados estão
o seqüestro e o homicídio
73
.
Emerge das entrevistas o perfil de mulheres sofridas, vindas das camadas
mais baixas da população que vive na periferia dos grandes centros do Estado do
Paraná
74
– embora também tenham sido ouvidas mulheres que, pelo ramo de
atividade profissional (comerciantes e microempresárias) e disposição econômica
familiar, poderiam ser caracterizadas na classe média brasileira.
73
O pesquisador adotou a estratégia de não abordar os motivos ou delitos que trouxeram os
estudantes entrevistados à prisão a fim de não perder o foco da análise. Porém pôde apurar que,
segundo dados do DEPEN-PR, os delitos mais comuns entre os presos das unidades penitenciárias
masculinas são o homicídio, o tráfico de entorpecentes e o roubo.
74
Entretanto, também foram ouvidas presas que têm origem nos estados vizinhos (sul e sudeste) e
ainda uma nordestina e uma mulher proveniente do Paraguai.
131
A variável família foi citada por todos os peer-groups ouvidos. A exemplo das
professoras, as presas também consideram que a estrutura familiar é condicionante
na formação das identidades dos indivíduos.
Algumas declararam o abandono por parte das famílias – o que corrobora os
números nacionais que afirmam que as presas são esquecidas pelos familiares na
prisão. Outras afirmaram que o desejo de voltar ao convívio dos filhos é o principal
alento para superar todas as adversidades da vida na prisão.
De qualquer forma a grande maioria possui filhos e, é desejo delas garantir
que os mesmos possam crescer fora da marginalidade, evitando assim a vinda para
a prisão.
O nível de consciência crítica – capacidade de articulação mental sobre si e
sobre o mundo à sua volta – este sim, varia de acordo com o nível de escolarização,
embora não possa ser apontado como uma regra: presas que estão passando pelo
processo de alfabetização manifestaram de forma muito completa sua capacidade
de julgamento sobre a sua situação e sobre o seu mundo de origem. Enquanto que,
também entre as alunas do ensino médio, foram encontradas visões de mundo
“romantizadas” e “ingênuas”.
Quando o assunto das entrevistas resvalava para o cotidiano da vida no
cárcere, suas falas adquiriam um tom de ressentimento, porém este não era dirigido
à prisão ou aos seus carcereiros, mas permanecia indefinido, aparentemente dirigido
à situação de privação de liberdade em si mesma.
132
É consenso nas falas das presas a idéia de que a vinda ao mundo da cadeia
é um castigo merecido, justa retribuição pelo crime cometido – “(...) se a gente tá
aqui... cada um errou de uma forma, mas errou
75
(...)” (estudante ensino médio).
Para muitas delas a cadeia é realmente – “(...) um inferno na terra
(estudante ensino fundamental 1ª a 4ª série). Enquanto a maior parte delas prefere,
talvez estrategicamente, silenciar sobre o assunto
76
, outras aproveitam a
oportunidade da entrevista para extravasar sua revolta contra o mundo das grades.
Percebe-se em seus discursos o desejo de convencer o pesquisador de que
houve mudança, de que o período em que estão na prisão já foi suficiente para
“purgar” o mal de suas identidades enquanto criminosas. E neste sentido, a
educação – até enquanto ponto de interlocução com o pesquisador – constitui peça
importante desta construção.
Este ponto é relevante, já que esteve presente em todos os grupos de
estudantes, falas que, ao mesmo tempo em que reconhecem as inúmeras
dificuldades que terão de enfrentar ao sair da prisão, apontam para uma grande
esperança de superar tais dificuldades e abandonar o mundo do crime.
Para elas essas dificuldades virão tanto das condições internas das próprias
presas – “(...) você pode tirá uma presa de dentro da cadeia mas cê não tira a cadeia
de dentro da presa (...)” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série) – como
referentes às condições que a sociedade lhes vai impor quando de sua saída – “a
sociedade não perdoa, tem um monte de gente que só tá esperando a primeira
oportunidade prá te condená, pra te mandá de volta pra cá (...)” (estudante ensino
médio).
75
Aqui novamente poder-se-ia-se voltar a Goffman sobre a assimilação do discurso da instituição total
por parte do interno. No entanto as opiniões se dividem quando se referem ao tipo de castigo que
deveriam receber.
76
É preciso chamar novamente a atenção ao fato de que as entrevistas sempre eram acompanhadas
por um agente penitenciário.
133
Este fato pode ser interpretado de muitas formas. Uma delas é a
incorporação do discurso institucional de que a prisão deve ser o divisor de águas de
uma vida deteriorada pelo crime e, que agora, cumprido o ritual, assimilados os
conhecimentos e o discurso institucional científico da prisão, pode-se finalmente
pleitear ser aceito no convívio da sociedade que as excluiu.
Chega-se ao final deste esforço para apresentar as presas com a impressão
de que se está diante de um caleidoscópio, onde as vozes são repletas de nuances
e contrastes – um espelho, mesmo em tamanho micro, da grande diversidade que é
a sociedade extramuros. Passa-se agora para a análise de sua contraparte, os
estudantes presos.
O universo dos detentos ouvidos neste estudo se configura, a exemplo do
que foi a análise de todos os outros atores, também heterogêneo. Isto se dá também
em virtude da metodologia – foram usados os mesmo critérios de seleção, isto é,
presos das salas de alfabetização, do ensino fundamental de 1ª a 4ª séries e de 5ª a
8ª bem como um grupo do ensino médio.
Não se pôde notar a predominância de alguma faixa etária mais específica
por nível de escolaridade. Os estudantes entrevistados são aparentemente jovens –
embora tenha sido ouvido um ou outro senhor que, na avaliação do pesquisador,
não devia contar ainda com cinqüenta anos
77
.
O levantamento de um perfil mais geral dos presos entrevistados é
dificultado, possivelmente por uma variável de gênero. Como foi salientado em outro
momento deste trabalho, as mulheres em suas falas discorreram ricamente sobre os
mais variados assuntos, que consideravam correlatos às questões que lhes eram
propostas.
77
Os números do Estado revelam que mais da metade dos presos paranaenses não possui mais de
trinta anos (DEPEN-PR, 2005).
134
O mesmo não se deu com os grupos masculinos. Estes ativeram-se aos
temas propostos, trazendo poucos assuntos paralelos, o que resultou em poucas
possibilidades para a tentativa de uma análise complementar a partir de suas
próprias entrevistas.
Pode-se vislumbrar por um elemento ou outro de suas falas que os mesmos
são oriundos das classes populares. No entanto, os presos pareciam não se sentir à
vontade para abordar o tema da pobreza, um assunto que pode ser encarado por
alguns como sintoma de fracasso.
Também no que se refere à procedência dos presos, há poucos elementos
que permitam precisar um perfil a partir das entrevistas. Os dados do Depen-Pr
(2005), no entanto apontam que cerca de cinqüenta por cento da população
carcerária do Estado é proveniente das cidades do interior, pouco mais de trinta por
cento da região Metropolitana de Curitiba, outros quinze por cento da área rural do
interior do Paraná e que três por cento é oriunda de outros Estados. O pesquisador
entende que estes números não traduzem a realidade deste estudo, no entanto
apresenta tais dados apenas como elemento ilustrativo.
Os presos pouco discorreram sobre o papel da família na formação do
indivíduo. Não que tenham evitado o tema, mas ao abordá-lo, fizeram-no para
ressaltar o papel masculino como provedor.
Foi consenso nas falas masculinas que as mulheres sentem de forma mais
intensa os efeitos da ausência da família no ambiente prisional. Há, segundo eles,
um certo abandono com relação às presas. Tal não se daria com os homens – o que
é corroborado por pesquisas em nível nacional.
Ainda dentro do tema família, não se falou sobre a educação dos filhos ou
de seu envolvimento no mundo criminalidade. Mencionaram que as preocupações
135
com os destinos da família, de forma geral, constitui-se em um dos impeditivos para
um bom desempenho escolar.
Os grupos de entrevistados, talvez em função de ocuparem a mesma faixa
etária, apresentaram um nível de consciência crítica homogêneo, com alguns
poucos presos apresentando análises mais elaboradas sobre os temas propostos.
No entanto, ressalta-se o caráter um tanto quanto pontual das falas, não
relacionavam sua condição a questões de ordem estrutural.
A idéia da cadeia como justa retribuição aos delitos e como castigo merecido
para suas ações individuais também aparece nas falas masculinas – “(...) se a gente
tâmo aqui é pruque aprontô, num tem essa de dizê agora pro professo, que tá aqui
sem devê” (estudante alfabetização).
Porém há uma espécie de silêncio, ou simplesmente eles não têm a
necessidade de expor as muitas situações conflitantes com as quais convivem.
Antes preferem sugerir programas de estudo, aumento da carga horária da escola e
outras atividades que poderiam amenizar seu sofrimento.
Nos peer-groups masculinos ainda é mais perceptível uma preocupação de
incorporar o discurso do “recuperado”, daquele que já passou por transformações
fortes e radicais, que teriam tido, como resultado do tempo em que estão na prisão,
fortes e significativas transformações em sua estrutura mental.
Paradoxalmente, suas próprias falas apontam para o pouco tempo em que
estão presos – o tempo médio de permanência na prisão dos entrevistados (quando
mencionado) varia entre seis meses e dois anos.
É consenso entre os presos que a reabilitação ao mundo extra-muros será
difícil. Mas a idéia de que serão capazes de superar todo e qualquer tipo de
136
obstáculo é unânime. Em momento algum aparece a possibilidade, mesmo que
remota, de voltar ao mundo do crime.
Se tal discurso é estratégico – a fim de ganhar a simpatia do interlocutor
que, embora tivesse deixado claro o seu papel, era confundido com uma autoridade
do mundo prisional – não há como precisar.
O mais provável é a especulação de que talvez ocupe um duplo papel junto
a uma identidade fragmentada e brutalizada pela convivência com a realidade
violenta da prisão: o desejo já acima exposto de ganhar a simpatia de um estranho
ou, talvez até em maior intensidade, o desejo de manter viva a esperança de
abandonar de vez uma realidade caótica e violenta; a vontade, por vezes até
inconsciente, de transformar radicalmente suas vidas e reinventá-las em outras
bases que não aquela da dura realidade da criminalidade e do cárcere.
Após o exposto passar-se-á a discorrer sobre os temas que compõem os
objetivos deste estudo a partir das categorias de análise, ou seja as representações
que os atores aqui analisados – pedagogas, professoras e estudantes presas e
presos – têm de tecnologia e gênero, bem como as representações que os
estudantes constroem a partir da educação da qual particiapam.
137
6 Representações
78
de Tecnologia
Uma vez que se estipulou como um dos objetivos específicos a análise das
concepções de tecnologia presentes na educação de presas e presos – e para tanto,
optou-se por ouvir os próprios envolvidos neste processo, a saber, equipes
pedagógicas, professores e os presos e presas – começar-se-á pela interpretação
das concepções de tecnologia presentes nas falas das equipes pedagógicas.
Uma primeira aproximação das falas das profissionais das equipes
pedagógicas revela que a concepção de tecnologia no ambiente da prisão não difere
muito daquela que permeia o restante da sociedade: a tecnologia é percebida como
artefato.
Assim, à indagação sobre tecnologia respostas tais como – “(...) aqui temos
poucos recursos tecnológicos” e “antes havia um laboratório de informática, mas o
governo recolheu os computadores (...)” (pedagogas) – foram comuns.
Tais assertivas indicam que estes atores compartilham de uma visão ainda
restrita de tecnologia, na qual a mesma é encarada muito mais como objetos e
utensílios de ultima geração, ou então, artefatos disponíveis no mercado para o
consumo e, que de alguma forma estariam facilitando as atividades humanas e
garantindo o seu conforto.
No entanto, como a aplicação do roteiro de entrevista semi-estruturado
permite certo grau de interação entre entrevistado e entrevistador – desde que este
78
Neste trabalho toma-se representação como o quadro de significações e sentidos simbólicos que
os diversos sujeitos possuem da realidade em que estão inseridos, bem como das diversas relações
que se estabelecem no seu cotidiano. Entende-se que as mesmas se constituem nas “(...) matrizes
de práticas construtoras do próprio mundo social” (CHARTIER, 1991, p. 185). Neste sentido, é no
quadro de representações que se encontra o sentido mesmo das ações humanas. Desta forma a
análise social deverá “(...) ir mais longe na percepção daquilo que dinamiza a atividade humana,
buscando-se, além dos traços dos objetos,as explicações mais profundas que os motivam”
(VOVELLE, 1998, p.84).
138
se preocupe em não direcionar e limitar o pensamento dos entrevistados, o que
viciaria o instrumento de coleta de dados – o diálogo com as mesmas revelou outras
concepções um tanto mais complexas sobre o tema.
Desta forma, se num primeiro momento interpretava-se a tecnologia como
referência a aparelhos e recursos tecnológicos que pudessem ser utilizados como
facilitadores do processo de ensino aprendizagem, houve outros depoimentos que
apontavam no sentido de que, sob tal categoria também se abriga uma gama de
conteúdos que podem ser apreendidos pelos sujeitos.
Seguindo esta linha de raciocínio, encontram-se nas entrevistas falas que
apontam para os cursos profissionalizantes da área tecnológica. Pode-se identificar
aqui certo pensamento utilitarista, uma vez que a tecnologia é vista como uma série
de conhecimentos que habilitaria os estudantes a ocupar determinados postos no
sistema produtivo:
(...) Olha, quando a gente oferece os cursos procuramos fazer um levantamento do
que é que nossa clientela necessita e está interessada. Então, quais são as
profissões predominantes: construção civil em primeiro lugar, nada definido,
confeitaria (...) informática (...) em determinado momento (...) a gente tinha
(pedagoga).
Nota-se aqui uma preocupação em capacitar o indivíduo para a re-inserção
no mundo do trabalho. O objetivo é dar condições para que o estudante preso se
aproprie de um saber fazer de fundo científico.
No entanto, talvez devesse ser usada a expressão saber executar,
realçando o aspecto mecânico e irrefletido dos conhecimentos transmitidos pela
tradição de certos cursos profissionalizantes, que buscam capacitar os sujeitos a
executar operações sem a preocupação em garantir que os mesmos se apropriem
139
do significado que tais funções representam dentro do panorama produtivo,
contribuindo para a reificação e coisificação dos seres humanos.
Este caráter de mero executor de tarefas se evidencia quando se percebe
em algumas falas a preocupação com a rápida defasagem dos conhecimentos
transmitidos pelos cursos – “Se você dá um curso hoje, e ele sai daqui a quinze dias,
ele já tá atrasado” (pedagoga).
Os processos tecnológicos – sua produção e apropriação – fazem parte de
um contexto maior, onde o pragmatismo e a racionalidade técnica estão aliados aos
objetivos dos sistemas de mercado. Assim, mesmo que de forma irrefletida – uma
vez que a tecnologia, como já apontavam os teóricos frankfurtianos, se reveste de
um caráter ideológico – há uma preocupação em adequar os indivíduos a tal lógica
do mercado (BASTOS, 1998).
Considerando o contexto de inovação tecnológica constante, no caso do
trabalhador comum e, principalmente no caso do estudante presidiário, por suas
condições específicas de privação de liberdade, esta adequação pode vir a se tornar
uma tarefa de Sísifo, já que – “Por mais que você proporcione uma tecnologia
atualizada você não acompanha o mercado de trabalho” (pedagoga).
Procurando superar tais dificuldades mercadológicas e proporcionar maior
poder de barganha para seus estudantes, no momento de uma futura busca por re-
inserção profissional, aparece nas entrevistas das equipes pedagógicas a
preocupação com a formação de profissionais autônomos.
Esta estratégia formativa atenderia a uma dupla demanda dos presos. Por
um lado se tornaria uma alternativa interessante para um mercado de trabalho
assalariado de competição cada vez mais acirrada. Por outro, ajudaria a contornar
um problema não menos contundente – a questão da discriminação sofrida pelos
140
egressos das penitenciárias: “(...) quando ele sai, além de tudo tem a discriminação,
preconceito” ; “agora, um ex-presidiário é bem mais complicado [para arrumar
emprego]” (pedagogas).
Essa preocupação com a discriminação sofrida pelos ex-presidiários levou o
sistema penitenciário, ao celebrar suas parcerias, a omitir dos certificados que os
cursos foram realizados na prisão:
No certificado sai impresso a instituição que promoveu o curso. (...) Não sai (...)
realizado na penitenciária. (...) Então sai a entidade Senac, Senai, Universidade
Federal... que são as entidades que executam os cursos. Pra evitar qualquer
identificação (pedagoga).
Há que se ressaltar novamente, a opção metodológica do pesquisador: os
dados sobre os cursos profissionalizantes apontados até aqui se referem
unicamente ao que foi extraído das falas das entrevistas com as profissionais das
equipes pedagógicas. Para um maior aprofundamento de como se dão os mesmos,
seu modo de funcionamento e eficácia seria necessário um estudo específico.
No mais, aparecem ainda, com alguma freqüência nas falas das pedagogas
referências à falta de acesso às tecnologias avançadas que são utilizadas por
profissionais da área da educação nas escolas “normais” – “(...) a nossa escola, ela
não tem tecnologias avançadas, que até escolas municipais e estaduais têm na
sociedade. A nossa é carente de tecnologia, nem computador elas têm acesso
(pedagoga).
Estas afirmações poderiam ser usadas como reforço à idéia já exposta
anteriormente, que liga tecnologia ao artefato. Mas parece ser consenso para parte
das entrevistadas a idéia de que tal “deficiência” teria de ser superada pelo trabalho
do professor em sala de aula.
141
Assim, para uma parcela das profissionais das equipes pedagógicas o
professor “é o elo da sociedade para elas aqui” (pedagoga), devendo seu trabalho
dar conta de atualizar com seus alunos as inovações e transformações que ocorrem
na sociedade.
O professor, enquanto elemento externo, como sujeito que pode transitar
pela realidade intra-muros, deverá através do uso de “(...) livros, de jornais, do papo
nas aulas, dos grupos de trabalho (...)” promover a discussão da sociedade em face
à tecnologia – “(...)então esses avanços lá de fora é trazido oralmente” (pedagoga).
A essa fala alia-se outra de que, o sucesso do trabalho do professor
dependerá desta sua capacidade de discutir os grandes temas das constantes
transformações que ocorrem na sociedade a partir de sua matéria de formação -
porque o nosso aluno, apesar de ser preso e tudo mais, eles são bastante
inteligentes e bastante críticos” (pedagoga).
Essa concepção apresentada aqui é complexa e necessita ser pensada a
partir de pelo menos duas implicações opostas. Por um lado, ela é um tanto mais
avançada pela forma como encara e concebe tecnologia que, pelo menos
aparentemente, deveria se desvincular do produto ou artefato tecnológico. Pois
realmente não seria pela presença destes elementos que se procederia a
compreensão do alcance e extensão da tecnologia.
No entanto ao centrar no professor a responsabilidade pela discussão da
tecnologia e de suas implicações, revela uma concepção de educação ainda por
demais conservadora, considerando o educando como mero receptáculo de
conteúdos e não um agente ativo da educação (FREIRE, 1987).
Indo um pouco em direção contrária a apresentada aqui, em pelo menos
uma entrevista observa-se uma outra avaliação de tecnologia e suas implicações:
142
(...) acredito que todas as matérias irão automaticamente inserir a questão da
tecnologia, já que elas vão tentar levar o aluno a pensar sua realidade” (pedagoga).
Neste sentido é possível pensar que a tecnologia pode ser encarada como
um fenômeno/processo social, já que se torna uma mediadora das relações do ser
humano com o mundo à sua volta, não apenas na consecução dos bens
necessários à sua sobrevivência, mas muito mais na construção de sentido para
este mundo (BASTOS, 1997).
Chega-se assim à constatação de que entre as profissionais das equipes
pedagógicas não existe consenso sobre as concepções de tecnologia que puderam
ser levantadas a partir de suas entrevistas.
Percebe-se, no entanto, que a tecnologia como fenômeno/processo social
necessita ainda de mais espaço nas discussões dos currículos formativos não
apenas da educação de adultos presos, mas também da educação formal como um
todo.
Isso porque são exatamente os profissionais pedagogos os que articulam e
coordenam as ações voltadas à educação. Embora eles não sejam os únicos
protagonistas neste processo, se a percepção que os mesmos têm de tecnologia
ainda se configura conservadora e pragmática, haverá muitas chances de que os
demais envolvidos nos processos educativos tenham barradas posições mais
avançadas.
Para uma melhor compreensão deste quadro será preciso ouvir as vozes
dos demais envolvidos nos processos da educação em ambiente de prisão
entrevistados neste estudo, a saber, as professoras e os próprios presos e presas.
Prosseguir-se-á analisando as concepções que surgem nas entrevistas das
professoras.
143
A exemplo do caso das pedagogas, quando se parte para a análise das falas
das educadoras, no que se refere às suas concepções de tecnologia, conclui-se que
estas também não diferem muito daquelas que permeiam o senso comum da
maioria da população. Isto é, novamente prevalece a idéia do artefato como a
manifestação do conhecimento científico-tecnológico.
Essa visão tradicional fica evidente quando novamente podem ser
encontrados depoimentos que a associam com a existência ou não na escola, de
recursos eletro-eletrônicos, principalmente os que permeiam o mundo da
computação e cibernética – “(...) até o ano passado a gente tinha um laboratório de
informática aqui na escola. Então era utilizado (...) Daí cortaram” (professora ensino
fundamental 1ª a 4ª série).
Tal concepção não deve ser tomada como estranha, já que tanto as
professoras como as pedagogas, pelo menos aparentemente, têm em si o discurso
da instituição escolar, e esta como apontado anteriormente, é muitas vezes
responsável pela reprodução das idéias dominantes no meio social (LOURO, 1998).
Uma das formas de apresentar a sociedade contemporânea é apontar que a
mesma vive sob os auspícios do cientificismo de base tecnológica. Assim, a escola e
seus agentes, incorporando a tarefa de transmissora destes princípios da verdade
da ciência, não pode deixar de lamentar a ausência dos equipamentos que são
tomados como a consubstanciação do conhecimento científico e tecnológico – o
laboratório de informática aqui é apenas o índice que remete a uma concepção mais
profunda: aquela de que só a ciência, através de seus aparatos e produtos de última
geração, pode mostrar a verdade do mundo.
Prosseguindo na análise das falas das professoras aparece de forma mais
ou menos consensual a idéia de que as entrevistadas não tratam da produção da
144
tecnologia, seu significado, bem como os objetivos aos quais ela se destina em suas
aulas – “[tema] específico não tem. Quando a gente fala de novidades, a gente
conversa sobre o desenvolvimento da tecnologia” (professora alfabetização).
No entanto, afirmam que as apostilas do sistema supletivo CEBEJA trazem
assuntos que consideram correlatos, na medida em que abordam as transformações
no mundo do trabalho e mesmo as revoluções dos costumes provocadas pela
informática:
(...) o material que a gente usa (...) as apostilas que a gente tem procurado trabalhar
(...) elas direcionam um pouco para as inovações, para a informática, para as coisas
que a gente tem de saber hoje, tem que dominar, que o aluno tem que ter
conhecimento disso para que ele tenha chance, até no mercado de trabalho
(professora matemática)
Tais afirmações levam à consideração de que neste ambiente, ou pelo
menos para tais atores, a tecnologia não é considerada como fenômeno que
perpassa a própria construção dos significados no mundo moderno.
Assim, se por um lado há o entendimento por parte das professoras de que
é necessário, para um boa atuação na estrutura social, a aquisição de certos
saberes instrumentais, por outro, pode-se afirmar que o trabalho pedagógico não
promove a discussão da racionalidade técnica como ordenação do real.
De uma forma geral, e quando é discutido – “(...) porque de 1ª a 4ª não dá
pra gente ficar muito detalhadamente num assunto” (professora ensino fundamental
1ª a 4ª série) – o tema da tecnologia fica restrito então a discussões esporádicas
suscitadas pelo material didático, ou a outras situações igualmente aleatórias – “(...)
quando surge o assunto e aí a gente conversa sobre aquilo” (professora de
ciências).
145
No entanto, embora as declarações das professoras tenham ido neste
sentido, pela análise e interpretação do dito e do não dito, pode-se ir um pouco além
e relativizar suas afirmações.
É possível encontrar falas que indicam que é criado um ambiente, no
mínimo, propício à discussão um pouco mais ampla da tecnologia e do seu entorno:
Antes de introduzir o assunto eu converso e deixo elas bem curiosas para aquilo que
a gente vai ver. O texto que vou fazer (...) eu converso antes, trazendo assuntos que
levem a ele. E daí deixo elas bem curiosas. Depois, quando a gente lan÷a, ‘ah, a
professora falou que era assim’. Acho interessante isso (...) é preciso mostrar para
elas, para que elas pegassem, para que elas vissem mais (professora ensino
fundamental 1ª a 4ª série).
Tudo indica que a professora ao aplicar seu método irá propiciar a discussão
da racionalidade técnica, vindo possivelmente a problematizar seus significados.
Retoma-se aqui que há dificuldade por parte das professoras no
entendimento da extensão e significado do que é a tecnologia. Esse é um fator que
limita a sua discussão.
Depreende-se de suas falas a idéia de que, embora tenham claro que, para
exercer as suas funções do magistério, é necessário ter a posse de uma série de
conhecimentos e saberes de origem científica, e também de que usam tais saberes
e conhecimentos para transformar uma realidade humana, estes atores não
entendem suas atividades como diretamente ligadas ao mundo da ciência e da
tecnologia.
Isto seria fruto do franco processo de desvalorização pelo qual tem passado
a carreira do magistério? Seria por certa tradição de dar aos conhecimentos da área
das humanidades um status de menor importância? Tal configuração sofre influência
do viés de gênero, já que a imensa maioria dos profissionais da educação é do sexo
feminino? Há aqui a idéia da contaminação, fruto do contato direto que as
146
professoras têm com indivíduos ditos estigmatizados? Tais interrogações
necessitariam de pesquisa específica para serem esclarecidas.
Retornando ainda a uma tentativa de problematização das afirmações das
professoras a partir das entrelinhas de suas falas pode-se lançar mão de fragmentos
que revelam que a discussão da tecnologia ocorre, mesmo que as professoras não o
façam de uma forma clara e específica – “Tem na apostila, a gente trabalha, a gente
discute”; “(...) é... esse conteúdo eu trabalho quando faço uma discussão nos
estudos sociais da natureza (...)” (professoras de história e de ciências).
Assim, não se pode deixar de mencionar nesta análise uma espécie de
consenso para o uso da tecnologia como elemento disciplinador e moralizador,
procurando formar uma ética do trabalho – “(...) o que tem na apostila é informática
(...) então digo a eles vamos ‘meninos’ que pra mexer no computador tem que saber,
pelo menos, ler direito” (professora de português).
Tal preocupação com a transmissão de valores, se dá, até mesmo, em
detrimento da apreensão e assimilação de conteúdos, por parte dos educandos.
Assim:
Então a gente sempre passa valores pra eles (...) nós professores somos um caminho
para eles, um elo. Por isso que eles gostam de ir para a escola, que sai da cela, sai
do ambiente, vem aqui conversa com os professores, conversa com os colegas. Acho
que nós professores estamos passando isso, valores para eles, valores pra eles
verem que o mundo lá fora é diferente. Que a vida deles era diferente. A partir do
momento que eles saírem daqui, tem que ter uma outra vida. A gente passa isso.
Procura passar isso. Então esse é o nosso trabalho. Mais de conscientização
(professora de alfabetização).
Pode-se problematizar esta postura a partir de pelo menos dois pontos
básicos. O primeiro deles diz respeito aos conteúdos serem relegados para um
segundo plano no processo educativo. Em outro momento deste estudo mencionou-
se que a educação para a tecnologia, ou educação tecnológica, pressupõe uma
147
discussão ética dos valores apresentados pela sociedade que tem a tecnologia por
base. Mas esta discussão não poderá ser feita em detrimento dos conteúdos, uma
vez que estes são imprescindíveis para a própria compreensão da realidade e dos já
mencionados valores que a mesma veicula.
O outro ponto passível de problematização é o que diz respeito ao
entendimento de que a educação não pressupõe uma ‘conversão’ a valores, sejam
eles morais ou tecnológicos. Ela deve contribuir para que os sujeitos possam
construir referenciais que lhes permitam avaliar os diversos contextos em que estão
inseridos de forma autônoma.
Uma percepção diversa da apresentada até aqui pôde ser percebida quando
algumas professoras entrevistadas fizeram colocações que denotam concepções de
tecnologia um tanto mais complexas.
Assim, mesmo que a partir da queixa sobre a impossibilidade de adentrar o
mundo intra-muros com aparelhos ditos de alta tecnologia – aparelhos celulares,
computadores, DVDs, etc. – houve falas que afirmaram ser possível a discussão
teórica das diversas implicações das transformações científicas e técnicas pelas
quais o mundo atual tem passado.
Embora não se possa afirmar que tal discussão ocorra em um nível
aprofundado, é possível registrar uma preocupação com a problematização da
situação em que os detentos se encontram e das limitações que a prisão lhes impõe:
(...) um violão que o aluno surtou, quebrou o violão (...) eu disse se vira. Não é bem
se vira, mas vamos fazer isso ai virar um outro tipo de violão. Aí ele cria um violão, na
forma dele, que toca! (...) E ele faz, ele toca, ele cria. Aí quando ele cria a gente faz
um fundo, a gente dá sugestão, o grupo (...) sempre o grupo. Não é trabalho
individual, sempre em grupo (professora de arte educação).
148
Esta visão denota uma compreensão e conhecimento que pode ser aliado à
técnica e que, desta forma, proporciona a resolução de problemas práticos dos
diversos sujeitos.
Neste contexto, o educando foi levado a questionar uma situação,
compreendê-la e, construir uma resposta satisfatória a esta situação-problema. A
habilidade exigida não foi a assimilação, mas a criatividade e a inovação.
Para tanto foi preciso lançar mão de conhecimentos das diversas áreas e, a
partir de certo domínio das mesmas, gerar novos conceitos tecnológicos:
Na 5ª a 8ª nós estamos trabalhando prismas, as formas geométricas, que em
matemática ajuda, eles estão criando luminárias. Então eles vêem que aquilo que
eles aprenderam na matemática, se ele pensar um pouco melhor, ele pode
desenvolver. ‘Pô, mas esse quadrado pode se tornar o quê?’ ‘Aquele bloco celular?’
‘Puxa, pode sair um candelabro’, pode sair várias coisas (professora de arte
educação).
Esta concepção resgata o sentido do termo tecnologia, no sentido em que a
mesma consiste em aplicar os conhecimentos a fim de aprimorar a técnica enquanto
saber fazer e assim, atender a uma necessidade humana (BASTOS, 1998).
(...) alguns instrumentos não pode usar dentro da cadeia. (...) vou serrar um bloco de
celulóide, não pode. Então vai pedra com pedra, vai lixando (...). O homem da
caverna não fez? Por que vocês não fazem? Então eles sempre dão um jeitinho
(...)não temos tesoura (...) Ah, vamos ver. Com o lápis a gente faz várias voltas num
círculo e vai rasgando direitinho (...) depois a gente passa outra coisa por cima (...)
por aí” (professora de arte educação).
Não se trata aqui de, a partir de determinada experiência, idealizar a
discussão da tecnologia dentro da prisão. Trata-se apenas de buscar subsídios para
que a compreensão deste ambiente, apesar das várias falas que apontam numa
única direção, possa ser pensada de forma múltipla, como são as várias realidades.
Inclusive porque mesmo a melhor das iniciativas, por vezes se encontra com seus
149
limites – o trabalho da maior parte dos alunos de arte-educação vai na linha da
produção instrumental, sem maiores possibilidades de aplicação na realidade extra-
muros (luminárias de palito, móbiles, etc.).
Ainda numa ótica que procura pensar a tecnologia a partir de uma
concepção problematizadora, outra professora fala de situações práticas em que os
seus estudantes vão enfrentar no contato com os artefatos tecnológicos por ocasião
de sua saída da prisão. Tenta assim introduzir uma discussão um pouco mais ampla:
(...) ‘Ah, você vai tirar carteira [de trabalho ou identidade] um dia (...) já sai na hora,
não tem mais que levar foto’. Então a tecnologia já está aí, na padronização dos
procedimentos. ‘Então se você quiser enviar um currículo para uma empresa (...)
então você vai ter que usar tecnologia para sair com esse currículo pronto’. Então
usamos os diversos conhecimentos da nossa área e de outras afins para
problematizar, para entender o ritmo da transformação e da permanência (professora
de história).
Esta iniciativa quer fazer com que os alunos possam compreender o
contexto no qual a tecnologia está sendo produzida, bem como o significado que
assume nas várias situações onde estes atores estão inseridos.
Assim como no caso citado acima, não se trata de romantizar o trabalho das
profissionais. A professora em questão deixa claro que poucos são aqueles que
conseguem atingir uma compreensão mais completa das inúmeras transformações
que a tecnologia sofre no eixo tempo-espaço – “(...) para eles esta discussão fica
parecendo ficção científica” (professora de história).
É importante frisar o fato de que, para algumas professoras as informações
do universo tecnológico chegam à prisão via meios de comunicação – “(...) elas
comentam o noticiário e as outras coisas que viram na televisão” (professora de
ensino fundamental 1ª a 4ª série) – o que não deixa de ser problemático, uma vez
que tais veículos se acham impregnados das propostas da sociedade de consumo.
150
Talvez até em função disso, as professoras afirmem que os presos –
Acham positivo o avanço da tecnologia. Comentam como positivo e gostariam de
vivenciar lá fora os benefícios de tanta tecnologia, gostariam de conhecer isso
(professora de geografia).
Não houve um bloco monolítico de concepções acerca da tecnologia, porém
se as diversas vozes de professoras montam um mosaico de concepções, às vezes
contraditórias, outras complementares, elas se coadunam e se complementam com
o discurso das equipes pedagógicas sobre o mesmo tema – não há como negar que
as suas concepções são muito próximas.
Pode-se atribuir tal proximidade ao fato destas profissionais terem que
articular suas práticas a partir de propostas já estabelecidas pelas Secretarias às
quais estão subordinadas. Contribui também para tal situação a rotina de discussão
das melhores propostas de trabalho a serem implementadas junto aos seus alunos.
6.1 Representações de tecnologia entre estudantes presas e
presos
Antes de iniciar tal análise, faz-se necessário voltar ao seu recorte
metodológico. Enquanto pedagogas e professoras foram ouvidas em entrevistas
individuais, optou-se por ouvir grupos de presas e presos. Assim, obtiveram-se não
concepções, representações ou posturas individuais, mas, procurou-se alcançar
aquilo que os grupos de convivência têm como referencial para suas ações
(BOURDIEU, 1983), já que se entende que, principalmente em ambientes como o da
prisão, o coletivo tem papel fundante na formação das identidades.
151
O recorte usado para a formação dos peer-groups foi as séries de
escolarização – alfabetização, ensino fundamental de 1ª a 4ª série, ensino
fundamental de 5ª a 8ª série e ensino médio. No entanto, a análise focará o que
aparece como elemento comum aos grupos.
Feitas as devidas ressalvas metodológicas, passar-se-á às análises das
falas das presas no que se refere às suas concepções de tecnologia. Como no caso
dos outros atores já analisados, num primeiro momento, de uma forma geral, as
estudantes tendem a associar tecnologia ao artefato, ao produto tecnológico.
Pode-se estabelecer uma relação direta desta visão com aquela partilhada
por pedagogas e professoras, pois na medida em que trabalham direta ou
indiretamente com as internas, elas representam uma referência, portanto é de se
esperar que partilhem pelo menos algumas posturas e entendimentos.
Por outro lado, não se deve considerar que estudantes sejam matéria
passiva para as atividades cognitivas. Tanto elas como eles são capazes de
desenvolver operações mentais que lhes permitam construir novos conceitos e
conhecimentos a partir das informações que recebem.
Tal processo se dá tomando por base suas próprias experiências e histórias
de vida. Desta forma, as concepções que as presas trazem de seu universo de
origem sobre a questão tecnológica não devem ser desprezadas. No entanto, a
discussão sistemática deste conteúdo parece ser algo totalmente novo para seu
campo de significações – “eu nunca me interessei muito por isso” (estudante do
ensino médio).
Há consenso nos grupos de que é preciso desenvolver estudos que lhes
permitam uma melhor compreensão de um mundo com constantes transformações.
152
Para uma parcela das estudantes, seja de forma reflexiva ou não, as inovações
tecnológicas são consideradas o motor dessas mudanças.
A partir de tais estudos, acreditam que serão capazes de uma interação a
contento com estas realidades – “a gente vai saí daqui sabeno bem, bastante coisa,
desenvolvida. Vai sabê trabalhá nalguma coisa” (estudante ensino fundamental 1ª a
4ª série).
Neste sentido, associam o aprendizado da tecnologia com o ensino
profissionalizante – “Eles têm forma de ajudá a gente. Ensinam a costurá (...) outros
setor também (...) Quando a gente saí lá fora dá vontade de fazê alguma coisa,
arrumá um emprego melhor” (estudante de alfabetização).
Retoma-se aqui a mesma opinião das pedagogas. Para o universo de
significações das detentas é importante adquirir ferramentas que lhes garantam a
possibilidade de inclusão no mundo do trabalho.
Há, no entanto, outras falas que, quando se aborda o tema da tecnologia e
se toma o rumo das formas pelas quais se dá seu aprendizado, apontam para
concepções menos pragmáticas e mais integrais:
Como confinada teu ambiente fica muito restrito. Se você começa a estudar, começa
a ampliar seus conhecimentos, começa a ter uma visão mais aberta do que te fecha
na cadeia. A escola te reintegra, e te dá uma visão melhor de todas essas coisas do
mundo lá fora, inclusive da tecnologia (estudante ensino médio).
Corroborando a afirmação feita pelas professoras de que não abordam
diretamente com os alunos as questões da tecnologia, surge nos grupos falas que
mostram que as estudantes acabam por ter acesso às novidades tecnológicas via
televisão – “Então como temos acesso à T.V., se a gente quiser, nós se mantêm
informada (...) a gente assiste jornal, a gente sabe o que tá passando no mundo. A
Globo mostra (...)” (estudante ensino médio).
153
Esta afirmação demonstra como o nível de consciência crítica das
estudantes se revela parcial – interessante mencionar que os grupos que se
referiram à televisão foram os de alfabetização e de ensino médio. Em momento
algum elas demonstraram em suas falas alguma evidência de que compreendiam
que os meios de comunicação, como a televisão, são veículos de entretenimento
com fins comerciais, atuando como reprodutores da sociedade de consumo e que,
neste caso, têm papel preponderante em legitimar tais produtos voltados ao
consumo com o selo da ciência e da tecnologia.
De qualquer forma, é consenso entre todos os grupos de estudantes o fato
de que o mundo tecnológico passa por inovações constantes – “(...) a tecnologia tá
bem avançada , (...) a gente vai chegá lá e encontrá coisas bem diferente do que a
gente deixô (...) a gente vê que o mundo tá andando a galope. Muito rápido. E a
tecnologia muito mais” (estudantes ensino fundamental 1ª a 4ª série e ensino
médio).
Se, por um lado, tal afirmação desvia um pouco o foco de uma concepção
ligada ao mero artefato e produto, conduzindo a uma compreensão, mesmo que
irrefletida, de que a tecnologia interfere na organização da sociedade, por outro, este
fato não deve ser super-estimado.
Quando questionadas sobre as maneiras pelas quais tomaram
conhecimento de toda essa dinâmica, as respostas se dividem: algumas falam de
suas aulas, outras do contato com as visitas dos familiares e com funcionários,
assim como outras afirmam que “(...) graças a Deus e a televisão, isso faz com que
a gente se atualize!” (estudante alfabetização).
Apesar das visões de mundo parciais e ingênuas, surge em meio às falas, a
idéia de que só será possível acompanhar os avanços tecnológicos a partir de
154
cursos de atualização – “(...) é importante a gente aprender já que tá aqui (...) pra
gente entender melhor as coisa da tecnologia” (estudante ensino fundamental de 1ª
a 4ª série).
Com relação à tecnologia as falas apresentaram uma grande lacuna. As
entrevistadas aparentemente têm pouco vocabulário para discutir este assunto,
temiam não estar fazendo associações corretas e às vezes pediam desculpas ao
pesquisador por não saber responder certo às perguntas que eram feitas – situação
onde se insistia com elas que não havia como responder errado já que o que se
buscava eram suas concepções.
No entanto, procurou-se não insistir mais no tema, a fim de que as mesmas
não se sentissem tentadas a procurar respostas forjadas para agradar ao
entrevistador – se é que isso deixa de acontecer em algum momento, quando se
executa pesquisa em ambiente prisional.
A seguir serão analisadas as falas que emergem das entrevistas com os
grupos masculinos e as concepções que eles apresentam sobre a tecnologia.
Há que se começar ressaltando que houve a preocupação metodológica de
buscar ouvir estudantes com as mesmas características dos grupos femininos, isto
é, peer-groups de alunos que freqüentassem a mesma sala de alfabetização, do
ensino fundamental de 1ª a 4ª série, do ensino fundamental de 5ª a 8ª série e do
ensino médio.
Destes grupos, em conformidade com todos os demais atores, emerge a
concepção da tecnologia como artefato – “a cada dia que passa surge coisas novas,
cada vez mais” (estudante ensino médio).
No entanto, quando comparada às falas das presas, nota-se uma maior
extensão de temas correlatos. Abordou-se um amplo arco que vai desde a
155
urbanização de áreas periféricas com fins de especulação imobiliária – “Eu mesmo
morava num lugar que nem asfalto tinha. Hoje dia tem. Não é mais favela, já se
tornou uma vila. Tem escola, banco e postinho. Mas isso não é à toa. Vai ver quem
ta morando lá agora” (estudante ensino fundamental 1ª a 4ª série) – à reestruturação
produtiva via informatização das linhas de produção – “Hoje já não se usa mais a
máquina de escrever, todo mundo usa o computador. Pelas coisas que eu
trabalhava também. Trabalhei numa fábrica e já tô sabendo que tá tudo
computadorizado” (estudante ensino médio).
Porém, embora possa se afirmar, a partir das falas um alto nível de
percepção do poder de transformação da tecnologia – “(...) a cada dia que passa
surgem coisas nova que a gente nem mesmo conhece (...) o mundo tá diferente
(estudante ensino fundamental de 1ª a 4 série) – nota-se que não há muita
profundidade na reflexão com relação aos rumos que a racionalidade técnica impõe
aos processos sociais.
Assim, é necessário um grau de interação com o mundo da tecnologia a fim
de garantir a própria sobrevivência, bem como dos familiares. E neste sentido,
muitos afirmam estar confiantes diante do mundo tecnológico – “(...) o progresso tá
invadindo tudo, a tecnologia com certeza também tá passando todas as metas e
espero conseguí me depará com um mundo cheio de oportunidades e que possa
progredí mais no futuro (...)” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
Para tanto consideram importante se preparar para ter um bom desempenho
no mundo extra-muros. A exemplo das falas nos peer-groups femininos, eles
também consideram que isso se dará via educação – “(...) acho que deveria inventá
mais curso, prepará mais o preso pra podê saí na sociedade (...)” (estudante
alfabetização).
156
Ainda nesta linha de raciocínio, o tema da tecnologia faz com que surjam
outras questões práticas, como a questão financeira, por exemplo – “Tem várias
coisa que eu tô aprendeno aqui, que até mesmo economizá” (estudante de ensino
fundamental 1ª a 4ª série).
Percebe-se nesta fala, e em outras mais explícitas, que o mundo tecnológico
para os entrevistados, é o mundo da produção. Um mundo onde existem poucas
oportunidades e estas não devem ser desperdiçadas. Por isso é necessário
qualificar-se, aprender a poupar. É necessário apropriar-se dos valores da
racionalidade instrumental – a lógica da sociedade capitalista (BASTOS, 1998).
Pode-se deduzir que o estudante preso, sem poder adentrar neste universo
por sua situação social, vê na qualificação profissional proporcionada pelo mundo da
prisão, a oportunidade de finalmente poder integrar-se na sociedade de consumo, da
qual se via e se vê excluído.
Até que ponto suas falas representam a manifestação de um desejo
inconsciente de ter acesso a bens de consumo que tais sujeitos saberiam estar fora
de seu alcance? Seriam estas falas mais uma tentativa de ganhar a simpatia do
interlocutor? Estas são questões que este estudo não tem condições de responder.
Numa linha mais reflexiva houve falas que apontam que é preciso dialogar e
estabelecer comunicação com o mundo tecnológico. Neste ponto de vista, infere-se
que a educação teria um outro papel:
O estudo mesmo vai está relacionado muito mesmo à tecnologia (...) digamos, vai
está relacionado a como se comunicá com o mundo (...) tecnologia se desenvolveu e
está se desenvolvendo muito (...) Por isso que eu falo do estudo (...) Pra você tê um
benefício (...) a pessoa, pelo menos, tem que tê o ensino fundamental pra ela sabê se
comunicá co’as pessoa (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
157
Pode-se perceber aqui uma preocupação com o desejo de extrair sentido de
uma realidade que, em virtude das constantes transformações, pode se apresentar
como caótica.
De qualquer forma as falas das entrevistas masculinas também apontam
para a informática como o ‘carro-chefe’ dos avanços tecnológicos do mundo
moderno:
Hoje mesmo é informática (...) do poco qu’eu conheço, do pouco qu’eu sei, é a área
da informática que desenvolveu e tá desenvolvendo muito. A informática é o texto
chave da humanidade hoje (...) toda a informática (...) ela que traiz rapideiz hoje, e o
conhecimento que tá havendo, que tá evoluindo (estudante ensino fundamental 1ª a
4ª série).
Houve falas no sentido de que seria necessário superar as questões de
segurança e trazer mais recursos tecnológicos para dentro dos muros da prisão –
(...) tá faltando um poco de tecnologia aqui dentro também. Umas aula de
informática, alguns computador pra gente. E tê umas três veiz pur semana um telão
pra gente assisti uns filme. E está pur dentro, está pur dentro das coisa” (estudante
ensino fundamental 1ª a 4ª série).
Embora não haja consenso
79
, é recorrente na fala dos estudantes a idéia de
que estar bem preparado para interagir com a sociedade tecnológica, se constitui
num fator que ajudaria a reduzir a reincidência. A grande maioria dos entrevistados
afirmou ser de suma importância o contato com a tecnologia para que possa ocorrer
uma boa reintegração social:
Se o cara já desde aqui de dentro aprendê como vai tá o mundo lá fora, vai sabê
aproveitá melhor as oportunidade. Vai aproveitá também essa tecnologia que tá tendo
(estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
79
É preciso chamar a atenção para o fato de que os indivíduos que buscam a escola o fazem por
múltiplos interesses. Seja para se afastar dos problemas do pátio, seja pela busca de novas
possibilidades na vida extra muros, seja para se habilitar a benefícios jurídicos ou disciplinares.
158
(...) mais importante do que sabê como tão os avanço da tecnologia (...) [é ter em
mente que quando] a gente saí daqui, tem que trabaiá mesmo (...) (estudante de
alfabetização).
De qualquer forma, a partir das entrevistas pode-se inferir que há uma certa
insegurança com relação a esta questão.
Para os que alimentam esperanças de uma vida fora do mundo da
criminalidade, assimilar os conteúdos referentes ao mundo da tecnologia é um
importante desafio a ser vencido. Para eles, por ser desconhecido, este universo
pode configurar-se como assustador. Aparentemente pensar na possibilidade de
fracasso não se configura em alternativa interessante para estes sujeitos.
Fica a idéia recorrente em todos os grupos – mais delineada em alguns,
apenas sugerida em outros – de que a sociedade tecnológica se apresenta como um
admirável mundo novo. Mundo este que pode tanto ser pleno de possibilidades
positivas, como também repleto de ameaças para quem está fora dele, ainda que
seja por certo período de tempo.
Por fim, a análise das falas masculinas deixa a nítida impressão de que,
embora tenham uma noção maior do significado de tecnologia, esta se torna a eles
um fenômeno ainda mais desafiador, uma vez que não haverá alternativa: terão, de
alguma forma, que se deparar diretamente com ela.
Ao final deste bloco, pode-se chegar a algumas conclusões:
Em primeiro lugar, os atores envolvidos possuem em comum a idéia, um
tanto simplista, de que a tecnologia se confunde com seu produto, ou seja, é vista
como artefato. Esta afirmação não é fruto de um bloco monolítico de vozes e
concepções, mas não se pode negar que ela permeia todos os extratos
pesquisados.
159
Além disso, a tecnologia neste ambiente será sempre associada às
inovações da cibernética, principalmente no que se refere aos recursos de
informática e da rede mundial de computadores.
Ao se buscar problematizar o tema, desemboca-se nas questões relativas ao
mercado de trabalho e aos processos produtivos. Há uma grande preocupação, até
por se tratar de ambiente escolar, em proporcionar o preparo de mão-de-obra – mais
uma vez a educação dos pobres deve ser voltada para o ambiente profissional.
Neste sentido pedagogas e professoras parecem compartilhar de uma série
de pontos em comum. Todas as falas buscaram em algum momento se munir de
teorias pedagógicas avançadas para embasar seus pontos de vista. No entanto,
com poucas divergências, adotam o discurso institucional: a cadeia deve reformar e
a educação deve dar um certo preparo tecnológico que propicie a reintegração ao
mundo extramuros.
Assim, a educação ofertada na prisão se aproxima do que foi apresentado
anteriormente como ensino tecnológico. Isto porque se preocupa em transmitir
conhecimentos técnicos sem maiores discussões sobre seu impacto no ambiente
social.
Isto permite afirmar que nestes espaços, as relações da educação com a
tecnologia não estão dentro dos parâmetros do que Bastos (1998) estabelece como
Educação Tecnológica.
A escola dos presos não atua no sentido de torná-los protagonistas, já que,
entre outras coisas, não trabalha no sentido de promover a compreensão sistêmica
da produção, difusão e apropriação dos processos tecnológicos.
Como não prima pelo uso de processos investigativos nem quer promover
posturas questionadoras, a discussão da tecnologia nestes ambientes contribui para
160
a reprodução dos modelos vigentes na sociedade capitalista, a saber, a tecnologia
como um dos fatores que contribuem para a alienação.
De mais a mais, a escola em ambiente de prisão não se compreende como
uma tecnologia de transmissão de conteúdo. Apesar de recorrerem às teorias
pedagógicas mais avançadas, estas parecem não contribuir para fazer com que
professoras e pedagogas se coloquem de forma mais crítica diante do papel da
prisão frente a seus internos.
Sendo assim, se o compromisso não é com a transmissão de conteúdo,
acaba por sê-lo com relação à transmissão de valores morais. Neste ambiente a
escola funciona como um elemento reformador de consciências.
Isso se dá principalmente porque a escola também não se percebe enquanto
tecnologia de controle. Apesar de ser a instituição responsável por repassar aos
seus assistidos a noção científica de como se dá a realidade, ela, através de seus
agentes, assume o discurso da prisão.
Por fim não se discute em ambiente escolar que a prisão é uma tecnologia
de controle por excelência. Não se dá conta de que ela mesma, ao adotar seus
mecanismos moralizadores, está contribuindo para que aquela instituição continue
desempenhando o seu papel, ou seja, fazer com que os indivíduos das classes
subalternas internalizem a disciplina necessária ao bom desenvolvimento do
capitalismo (FOUCAULT, 2003).
Após estas considerações é necessário focar em outra categoria de valor
para a compreensão da educação levada a cabo no interior das prisões, a saber, as
representações de gênero construídas e constituídas por seus diversos atores.
161
7 Representações de Gênero
Uma vez realizado o estudo das representações de tecnologia presentes na
educação de presas e presos a partir das entrevistas com os próprios envolvidos
neste processo, passa-se a proceder à interpretação das representações de gênero
presentes nas falas dos mesmos. Começar-se-á com as equipes pedagógicas.
Uma aproximação aos discursos presentes nas entrevistas com as
profissionais pedagogas, aponta para o fato de que não há muita diferença entre seu
entendimento das divisões e papéis masculinos e femininos daqueles que
perpassam o tecido social: de uma forma geral o gênero é visto como um dado
biológico.
Quando perguntadas sobre os porquês das diferenças de comportamento
masculino e feminino, tem-se respostas como “eu acho que é da natureza mesmo da
mulher” (pedagoga).
Tais afirmações não se constituem em um bloco único, no entanto, em
nenhum momento houve falas que pudessem levar a interpretações de que outros
fatores, como por exemplo o dado cultural, pudessem contribuir na constituição das
identidades de gênero dos diversos atores sociais.
A partir deste fato pode-se dizer que as visões de homem e de mulher das
pedagogas correspondem a perfis estereotipados vigentes na sociedade: o mundo
do trabalho, entendido como espaço produtivo, sendo destinado “naturalmente” aos
homens; o espaço doméstico, o cuidado e a preocupação com a família, deve ser
ocupado pelas mulheres (PEDRO, 1994).
162
Assim o homem é entendido como provedor. A ele cabe o sustento da
família
(...) e ele sabe que isso daí ele vai ter que desempenhar, um trabalho lá fora, um
trabalho, uma profissão e o estudo é importante. E geralmente tem na cabeça: ele
que vai ter que dar conta da família (...) ele acha importante o estudo para que ele
saia melhor lá fora e saia daqui (...) para poder ter uma oportunidade (...) que ele
possa ter (...) de serviço, de trabalho mesmo (pedagoga).
Já as mulheres são entendidas fundamentalmente como mães, e em função
disso, cabe a elas a responsabilidade pela família em seu espaço doméstico. “(...) a
mulher (...) que sempre tá do lado dele, fazendo as exigências deles, em relação à
comida, em relação às roupas” (pedagoga).
No entanto, a leitura que as próprias profissionais entrevistadas fazem de
homens e mulheres revelam algumas contradições. O estereótipo masculino aponta
para uma atitude de dinamismo e para uma postura questionadora. Em oposição, as
mulheres são vistas como passivas e pouco contestadoras – talvez mesmo em
função dos espaços que são destinados a eles e elas no ambiente social.
Entretanto, as entrevistas com as pedagogas revelam que este perfil não
corresponde à realidade no ambiente de prisão. Elas consideram as mulheres muito
mais questionadoras do que os homens – “(...) Elas não se acomodam (...) eu acho
o homem assim meio acomodado (...) ele aceita, ele não questiona (...) a mulher
não, a mulher questiona, questiona... Corre atrás dos seus direitos” (pedagoga).
Pode-se interpretar tal contradição como fruto da variedade de identidades
que os sujeitos podem construir a partir das diferentes situações vividas. Relações
163
sociais diversificadas podem fazer com que os mesmos re-signifiquem os modelos
que têm como referência
80
(CARVALHO e NASCIMENTO, 2003).
Outro aspecto contraditório que pode ser apontado nas falas das equipes
pedagógicas se refere ao interesse dos estudantes pela educação. Estas
profissionais deixam subentendido que o universo feminino não exige uma
preocupação – de forma tão incisiva como no caso dos homens – com a formação
para o trabalho.
Entretanto afirmam que o interesse pelos estudos não sofre nenhum tipo de
diferenciação por sexo. Tanto nas unidades masculinas quanto nas femininas existe
procura pelos cursos ofertados
81
.
Mesmo percebendo essas contradições nas entrevistas, pode-se afirmar que
a ação das pedagogas vai no sentido de reforçar o discurso institucional da escola
com relação a gênero. Assim atua muito mais na reprodução dos tradicionais papéis
pensados para os mesmos, do que no seu questionamento (LOURO, 1998, p. 39).
Embora o currículo formal da Secretaria de Educação ofertado para o
sistema penitenciário seja único, as unidades diferenciam os cursos
profissionalizantes levando em consideração as particularidades de gênero das
mesmas – “[no masculino] técnica de construção civil, de pintura de parede (...) lá
[no feminino] a gente faz manicure, pedicure, cabeleireiro (...) No masculino não,
construção; e pras duas: padaria, bolo, salgadinho (...)“ (pedagoga).
No caso feminino, tais cursos estariam voltados para uma atuação no
mercado informal. Já no caso masculino, percebe-se que a preocupação é a
80
Tais processos de reconstrução de significados para os papéis de gênero, no ambiente da prisão
tornam-se mais evidentes em função das condições de violência às quais são submetidos os sujeitos.
81
Há que se destacar que o interesse por cursos em ambientes de prisão vai além das futuras
utilizações pragmáticas que os mesmos possam ter no mundo do trabalho. A escola cumpre um papel
disciplinar importante. Voltar-se-á a este assunto quando analisar-se as representações que os
presos têm de educação.
164
capacitação dos internos para a sua atuação no mercado de trabalho formal –
podendo inclusive ser ofertados cursos que tradicionalmente sejam pensados como
integrantes do universo das mulheres – “Veja, em Maringá, que é uma unidade
masculina, lá tem um canteiro de trabalho onde os presos bordam” (pedagoga).
Seguindo este raciocínio, percebe-se que o interesse feminino por
educação, sempre segundo as pedagogas, está relacionado à sua atuação na
esfera privada – “(...) a escola vai ajudar ela administrar a vida dela e a dos filhos
também (...) Olha, eu posso até ajudar o meu filho nas tarefas dele quando tiver lá
fora” (pedagoga).
Isso não significa que esta preocupação com os filhos também não possa
trazer problemas com relação ao seu desempenho escolar. As entrevistas das
equipes pedagógicas apontam que é exatamente a preocupação com a família o
principal impedititivo para um bom rendimento nos processos de ensino
aprendizagem – “(...) ela não consegue se concentrar na escola por problemas que
o filho tem lá fora, essa coisa toda” (pedagoga).
Aliás, no que se refere à relação dos estudantes presos com suas famílias,
as informantes afirmam que os homens são muito mais dependentes do apoio
externo do que as mulheres, e, ao que parece, são mais atendidos por seus
familiares – “(...) o homem é muito mais exigente neste ponto. E não dá muita bola
pra família. Ele tem interesse quando tá preso, que é importante a mãe [e também a
mulher, a namorada] estar lá do lado dele [para dar apoio psicológico, financeiro,
etc.]” (pedagoga).
Já a mulher presa parece adotar uma postura mais independente. Ainda
segundo as informantes, elas não querem dar “(...) trabalho para os familiares
165
(pedagoga). Parecem não se importar mesmo, até com a situação de abandono que
sofrem ocorre por parte de algumas famílias.
Chega-se ao final da análise das representações de gênero presentes nas
entrevistas das pedagogas com a nítida impressão de que as mesmas partilham das
tradicionais visões dicotômicas sobre os papéis masculinos e femininos que
permeiam as relações sociais na atualidade.
Tal constatação não causa espanto, já que tais profissionais estão imbuídas
dos valores e concepções da instituição escolar e, esta, como já bem apontado
anteriormente, acaba por colaborar com o processo de reprodução da realidade
(LOURO, 1998, p. 39).
Não se quer aqui, responsabilizar a escola, ou as profissionais pedagogas,
pela manutenção dos papéis tradicionais de gênero, mas, contribuir para a
compreensão das representações compartilhadas por uma parcela significativa dos
seus atores.
É necessário seguir adiante com a análise, a fim de obter uma perspectiva
maior das representações de gênero que permeiam a educação de adultos presos.
Seguir-se-á com a análise das falas das professoras.
Uma aproximação das falas das educadoras revela que, embora muito do
que elas afirmem sejam representações comuns no imaginário e na prática da maior
parte dos sujeitos na sociedade ocidental, não se pode afirmar a existência de uma
singularidade nos discursos sobre o gênero.
Ao contrário do que fizeram as pedagogas, em momento algum foram feitas
afirmações, que pudessem conduzir à interpretação de que consideram os diferentes
papéis masculinos e femininos como dado biológico.
166
As diferenças entre estes modelos comportamentais estariam ligados aos
dados culturais e históricos dos diversos sujeitos. Assim, os relatos apontam para a
construção das identidades através de experiências sociais concretas (COSTA,
1994, p. 161).
Entretanto apesar de aparentemente, as professoras possuírem
representações de gênero mais avançadas, isso não as impede de acionarem em
suas falas uma série de estereótipos com relação aos papéis sexuais do homem e
da mulher.
Dentre estes, as entrevistas apontam para a idéia das mulheres obterem
melhor desempenho do que os homens na área de Português, e dos homens serem
mais capacitados para resolverem problemas da Matemática – “A mulher tem uma
dificuldade na Matemática incrível. Na cabeça elas fazem, no papel é difícil. Agora,
os homens, o raciocínio é mais rápido em Matemática e, em Português, tem mais
dificuldade. É ao contrário” (professora ensino fundamental 1ª a 4ª série).
Reproduz-se aqui, novamente a idéia de que, também em ambiente escolar,
os homens estariam aptos a resolver tarefas que exigissem altos índices de
instrumentalidade, enquanto que as mulheres estariam mais voltadas para a
expressividade. Uma tal visão desconsidera a multiplicidade de papéis possíveis
para homens e mulheres (SCOTT, 1995).
Aparece também o estereótipo de que a tecnologia faz parte do universo
masculino, enquanto as mulheres, devido talvez ao seu papel circunscrito ao
ambiente privado, teriam pouco interesse pelo assunto.
As professoras afirmam que os homens perguntam menos e demonstram ter
maior conhecimento sobre as questões que envolvem tecnologia – “Elas perguntam
167
mais porque eles parecem já ter um certo conhecimento destes assuntos. Talvez por
serem mais vividos” (professora de alfabetização).
No entanto, é preciso chamar a atenção para a fragilidade do argumento,
uma vez que o mesmo é calcado num estereótipo recorrente no ocidente – o de que
os homens têm maior contato com o universo da tecnologia.
Essa idéia surge pelo fato de, historicamente a tecnologia ter sido apropriada
pelo universo da produção, e este ser considerado, como também já apontado,
como masculino (CARVALHO, 2003).
As análises produzidas até aqui não autorizam interpretações de que a
condição da mulher e seu papel no ambiente social não façam parte das discussões
realizadas pelas professoras em seu trabalho no ambiente da prisão – “(...) esses
dias a gente fez uma discussão [sobre a igualdade de condições no mercado de
trabalho] que as mulheres estão mudando, mas ainda não conseguiram igualar o
salário” (professora alfabetização).
No entanto, estas discussões ainda carecem de um embasamento teórico
que dê conta de superar as contradições presentes nos estereótipos, também não
levam a uma problematização mais profunda da condição da mulher na sociedade
ocidental – “textos que eu tenho fala bastante sobre receitas, sobre a condição da
mulher” (professora alfabetização).
Não há consenso entre as professoras quando se trata do interesse pelos
estudos. Algumas afirmam que são os homens os que mais demonstram reconhecer
a importância da educação – “o interesse dos homens (...) são maiores do que o das
mulheres” (professora história) outras relataram exatamente o contrário – “(...) na
minha opinião (...) quem pergunta mais, tem mais interesse são as mulheres
(professora de geografia).
168
As professoras não o afirmam, mas deixam subentendido que o maior
interesse masculino pelos estudos se dá devido a uma questão pragmática. Cairão
sobre eles as cobranças para que assumam uma futura atuação no mercado de
trabalho.
O caso das mulheres é mais complexo. As professoras chegam a atribuir o
desinteresse a uma futilidade feminina – “O interesse nos estudo vem em segundo
plano em relação à questão sexual delas, a aparência física delas, etc.(...) os
homens já não tem essa questão de falar que está com dor de cabeça, (...) ou não
sei o que para disfarçar, para não comparecer” (professora de história).
De qualquer forma através das falas pode-se dizer que o profissionalismo
das professoras teria que dar conta de superar as possíveis diferenças de gênero
em situação de sala de aula.
Elas revelaram também uma possível explicação para as desigualdades
entre homens e mulheres – o dado cultural novamente aponta para o fato de que as
mesmas são construídas, seriam fruto das relações e das experiências
intersubjetivas – “A questão da cultura masculina e feminina ainda faz a diferença.
Essa questão da criação, a forma de tratamento da criação do feminino e masculino
ainda faz a diferença na questão do aprendizado, no desinteresse” (professora de
história).
A professora aponta para o caminho já trilhado pelos teóricos. É necessário
se afastar das explicações simplistas e das generalizações apressadas que
apresentam o dado biológico como explicação de uma manifestação da sociedade.
Pelo contrário, é preciso que se busque uma compreensão social para os
significados que foram sendo dados ao corpo (BOURDIEU, 1999).
169
As representações das professoras, aparentemente, se configuram mais
ricas em amplitude do que as das pedagogas. Suas análises, mesmo carregadas de
estereótipos correntes no ambiente social, aprofundam a discussão ao levarem em
conta o dado cultural, ultrapassando a idéia do gênero como manifestação biológica.
No entanto, tanto umas como outras, abrem possibilidades interessantes
para a compreensão desta categoria no universo da prisão. Suas falas refletem a
idéia já apresentada de que a prisão se configura num espelho da sociedade. É de
se esperar que se encontre então, em seu interior os mesmos estereótipos que
circulam no ambiente social (DAVIS e DENT, 2003).
Por outro lado, a prisão enquanto tecnologia de controle social se configura
em mecanismo eficiente para obrigar as mulheres a assumirem e se conformarem
com um papel de submissão idealizado para elas (SOIHET, 1997).
Assim, não causa espanto uma visão de gênero conservadora no que tange
às representações presentes nas falas de professoras e pedagogas que atuam no
ambiente da prisão. De acordo com os cânones que determinam os comportamentos
masculinos e femininos possíveis, não deveria haver mulheres presas. Elas não
foram feitas para o mundo do crime, sendo, no máximo, sua fonte inspiradora
(PERROT, 1992).
Logo, equipe pedagógica e corpo docente, ao incorporar o discurso da
equipe dirigente de uma instituição total, verão no comportamento das internas as
falhas a serem corrigidas (GOFFMAN, 1974).
Não se estranha então, que ressaltem a postura questionadora das
estudantes, já que tal atitude rompe com o papel pré-determinado para a mulher.
170
Mais ainda, segundo tais estereótipos ela necessita de uma carga de correção maior
do que os homens, pois não pertence ao mundo do crime
82
.
Uma compreensão maior deste horizonte necessita lançar seu foco de
atenção para os demais atores envolvidos, a saber, os presos e as presas que
participam dos processos educacionais em ambiente de prisão.
7.1 Representações de gênero dos estudantes presas e presos
Passar-se-á agora à análise das representações de gênero dos estudantes
presos e presas. Sempre cabe lembrar que a metodologia empregada para tanto foi
a de ouvir grupos de convivência a partir das séries de escolarização. Tal
procedimento se deu a fim de resgatar as orientações coletivas dos mesmos, uma
vez que de forma consciente ou não, serão elas que levarão os indivíduos às suas
ações.
No caso das prisões há a compreensão de que estas relações
intersubjetivas cumprem um importante papel na vida social, já que é através delas
que se estabelecem as representações sobre a sociedade, seja através da
reprodução ou através da re-significação das mesmas (BOURDIEU, 1983).
Começar-se-á com a apreciação das falas das estudantes presas.
Uma leitura das entrevistas feitas com os grupos femininos revela que as
mesmas afirmam sua identidade a partir do estereótipo da maternidade. A todo
82
Esta discussão será aprofundada quando da análises das representações de gênero das
estudantes presas.
171
momento, o seu discurso remonta a idéia de que a realização da mulher se dá
através do sucesso de suas tarefas domésticas ligadas ao papel de mãe.
A mesma linha de análise permite afirmar que a visão que as estudantes
partilham a respeito dos homens também coincide com o estereótipo tradicional que
é hegemônico no ocidente.
Dentre as várias características que compõem este modelo, elas destacam o
papel do homem como provedor, tendo então que adquirir uma série de qualidades
que lhes permita um bom desempenho no mundo público.
Assim sendo, não manifestam apego à família. Elas não afirmam que os
homens não nutram sentimentos por seus familiares. Mas, como tem de interagir no
mundo público, seja através do desempenho de atividades produtivas ou ligadas ao
mundo do crime, certo distanciamento do ambiente familiar já é esperado.
Em situação de privação de liberdade, estas conformações adquirem
nuances mais fortes. Como já apontado, as situações de violência forçam os
indivíduos a buscar a re-elaboração dos significados e sentidos que os sujeitos
conferem aos padrões de comportamento.
Isto fica claro quando os grupos de estudantes se manifestam sobre as
dificuldades que homens e mulheres enfrentam na prisão. Não há um consenso. As
opiniões se dividem dentro dos grupos: algumas afirmam que seria mais fácil para o
homem cumprir seu tempo de prisão; outras, vão dizer exatamente o contrário.
Entre aquelas que afirmam uma maior dificuldade feminina para a
permanência na prisão, existe uma unanimidade em apontar o afastamento da
família como principal problema a ser enfrentado – “A mãe tem mais amor pelos
filho. Ela gera o filho, carrega na barriga nove mêis, tem mais amor. Quando a gente
172
vai presa (...) [minha filha] é piquena, de cinco mêis, num tô veno o crescimento
dela. A gente fica mais traumatizada (...)” (estudante alfabetização)
Os argumentos que apontam para prisão como sendo mais árdua para os
homens do que para as mulheres se dividem. Algumas afirmam pura e
simplesmente que – “(...) quer queira ou não, a gente sempre foi mais forte. Eles
pensam que a mulher é o sexo frágil, mas eu penso o contrário” (estudante do
ensino médio).
Outras afirmam que é mais difícil para os homens devido a características
específicas da própria identidade masculina e feminina:
Pro homem é mais difícil. A mulher consegue levar com mais serenidade, com mais
calma, com mais estabilidade emocional (...) Por que a mulher por si própria já tem a
tendência de ser mais parada, pacata, mais acomodada, de aceitar as situações. O
homem é mais revoltado, o homem é mais agressivo. Então pro homem puxar uma
cadeia é bem mais complicado do que para a mulher. (estudante ensino médio).
Há ainda uma terceira opinião que aponta novamente para os diferentes
significados que a família assume para homens e mulheres no ambiente de prisão.
Elas evitariam as diversas situações problemáticas pertinentes a este universo
devido ao desejo de reencontro com os familiares – “Para a mulher é mais fácil
porque ela pensa lá, pensa na família, no filho que ela tem que voltar a ver
(estudante de ensino médio).
Ressalte-se também que as estudantes não se vêem como questionadoras
– o que corresponde à visão das pedagogas – pelo contrário, têm delas mesmas
uma idéia de passividade e conformidade com sua situação de privação de
liberdade. Pode-se interpretar este fenômeno como reprodução dos estereótipos
correntes ou ainda um discurso estratégico de conformidade com o ideário da
instituição.
173
Os relatos das estudantes informam diferenças na relação dos presos e
presas com suas famílias. Segundo elas, os homens privados de liberdade teriam
um maior apoio por parte das mesmas. Já as mulheres, ao contrário, sofreriam certo
abandono, principalmente com relação a seus companheiros.
Pur que pra mulher, quando o marido vai preso, a mulher fala assim: ‘ah, eu vô visitá
ele’, ‘purque ele é o pai do meu filho’, entendeu? Sempre a mulher [a se preocupar].
Sabe pur quê? Os home tira sarro das mulher e diz: ‘Não é purque eu sô o pai do seu
filho [que tenho que te visitar na cadeia]. As vêiz a gente e todo mundo fala: ‘Ah, eu
vô visitá ele, purque ele é pai dos meus filho’. Mas, os home já não fala o mesmo
(estudante alfabetização).
Deve-se ressaltar que estas representações não são unânimes entre as
pesquisadas neste estudo. As opiniões se dividem e muitas delas afirmam que não
podem reclamar dos seus familiares – “Eu recebo de visita todos os domingos.
Minha família me dá muito apoio. Então, nessa parte eu não me preocupo muito
(estudante do ensino médio).
De qualquer forma, pode-se interpretar que as mulheres não estão tão
preocupadas com o abandono que sofrem seja dos companheiros, seja por parte de
outros familiares. Para elas, o mais importante na relação familiar, é a manutenção
de sua identidade como mãe.
Mesmo que algumas apontem que seus companheiros abandonam os filhos
que estão com elas dentro da prisão – “Eu tenho uma filha aqui dentro. E é raro os
pai vir olhá eles na creche (...) Cê vai vê, o mínimo. É muito raro o pai dar uma volta
com o filho. É muito difícil. O pai deu trêis, quatro mêis, já casô di novo. Vai ficá
viveno cuma outra família” (estudante alfabetização). Isso não representa nada se
comparado à preocupação que tem por estar distante dos filhos que estão no mundo
extra-muros – “Mas nós não, não se importa com a visita, não se importa com nada.
Se importa com os filho que estão lá fora. Então é muito difícil, quando cê pega uma
174
colher de comida e cê lembra dele, quando vai deitá, lembra dele” (estudante 1ª a 4ª
série).
Nas representações dos grupos femininos aparece de forma marcante uma
preocupação com o retorno ao mundo além-muros. Para elas tal retorno se dará
também de forma diferente para homens e mulheres. Embora haja consenso sobre
as dificuldades que terão de ser enfrentadas, o mesmo não se dá quanto a qual dos
sexos terá de confrontar-se com maiores problemas para voltar ao convívio social.
Em suas representações a idéia do preconceito, da cobrança da sociedade
sobre aqueles que transgrediram para o mundo do crime é evidente – “Porque o
preconceito não é só pro homem ou só pra mulher. É pros dois. Porque a sociedade
é um caso sério. Eu acho que não existe só pra mulher ou pro homem. É pros dois
(estudante de 1ª a 4ª série).
Porém, quando se refere ao grau de dificuldade que homens e mulheres
enfrentarão em função dos seus papéis, as opiniões se dividem. A maior parte
aponta que serão eles que terão maiores problemas, e embora haja falas que
indiquem que é mais difícil para elas, também existem afirmações de que esta
situação independe do sexo, mas das condições objetivas de cada um.
As mulheres afirmam que os homens vão encontrar maiores obstáculos para
sua reintegração social porque estarão mais expostos ao preconceito, uma vez que
seu universo de atuação é o mundo público.
(...) lá fora na sociedade ele vai fazer uma ficha de trabalho. Mesmo que não seja
registrado, ele vai se expor. E com certeza vai ser discriminado. A mulher já não, pra
mulher já é mais fácil. Ela fica fazendo trabalho dela e tudo. A maioria não vai
trabalhar, ou vai fazer o trabalho em casa de autônomo. Para o homem é mais difícil
a reintegração na sociedade (estudante ensino médio).
175
Em contraposição a este pensamento, várias falas apontam para uma carga
de preconceito maior sobre a ex-presidiária. No seu entender o crime produz nelas
marcas estigmatizantes que não seriam passíveis de regeneração em hipótese
alguma, o que não seria válido para os homens.
Sempre eu vou ser cobrada. E eu acho que é mais difícil para a mulher. Homem, a
cara do homem não suja. Mas mulher suja pro resto da vida(...) Porque o homem
quando faz uma coisa, aquilo lá acaba, entendeu? Mas a mulher por exemplo, tem
pessoa que fala: ‘vocês estão fazendo serviço de homem’. ‘Isso é trabalho de
homem’, entendeu? (...) Eu vou falar: ‘eu sou mulher, eu não tenho’ (...) ‘Não, você
não presta’. ‘Faz isso porque quer fazer’ (...) Mas homem já não (...) Quando a mulher
faz (...) é pra toda vida! Nunca mais limpa aquilo! (estudante 5ª a 8ª série).
Aparece de forma isolada nas entrevistas a idéia de que não se pode
prescrever de antemão qual dos dois sexos enfrentará maior carga de dificuldade. O
argumento aponta para as características pessoais de cada um. O contexto onde os
sujeitos estarão inseridos será preponderante na sucessão de fatos que podem vir
ou não a ocorrer.
Há que se retomar um silêncio apresentado nas entrevistas femininas
quando das análises sobre as representações de tecnologia. Foi apontado que as
mesmas não se sentiram capacitadas a discutir o assunto.
Pode-se buscar compreender este fato pelo já discutido viés que apresenta
o universo tecnológico como masculino, sendo que só muito recentemente algumas
mulheres têm buscado ter acesso a ele.
Tais rupturas com este estereótipo não teriam chegado ainda ao universo de
referência das estudantes entrevistadas, que pelo que suas falas indicam, não são
predominantemente oriundas das classes médias e têm pouco acesso aos discursos
acadêmicos sobre gênero ou à ação política mais direta das feministas.
176
Um último dado que surgiu em um dos grupos femininos e aponta, até fora
do contexto específico discutido acima, para a idéia de que as mulheres, por uma
suposta condição de gênero, teriam acesso a outras construções tecnológicas –
Porque a mulher faz crochê, faz artesanato, vende ali. Sempre é mais fácil para as
mulheres. Os homens tem que arranjar um serviço para trabalhar” (estudante ensino
fundamental 1ª a 4ª série)
Tal fala aponta para uma divisão sexual da tecnologia. Uma seria aquela
masculina voltada para a produção de bens e serviços, para o mercado, inserida no
contexto do mundo capitalista. Outra, voltada para o trabalho informal, para o
espaço doméstico – mundo este onde as mulheres teriam maior possibilidade de
circulação. Embora seja valorada como menor no contexto da produção capitalista,
ela funciona e atende perfeitamente as necessidades daqueles que dela dependem
para sua sobrevivência. Como visto anteriormente, apenas por critérios ideológicos é
que esta última concepção acaba sendo relegada a segundo plano.
Chega-se ao final deste esforço de compreensão das representações de
gênero das estudantes no universo da prisão com a nítida impressão que a mesma
cumpre seu papel com relação a elas.
Se o estereótipo corrente afirma que a boa mulher é a boa mãe, ocupada
com as esferas domésticas, a prisão, enquanto tecnologia de controle parece ter
incutido ou reforçado nas entrevistadas este conceito.
Há que se avaliar se tais considerações representam realmente um caráter
internalizado por elas, ou é uma faceta de um discurso preparado para o observador
externo.
De qualquer forma a prisão, segundo Foucault, também tem como foco,
além da internalização da disciplina pelos seus internos, a função de incutir
177
autocontrole a quem está fora dela. Ela quer reproduzir uma visão de mundo, que
promove um controle moral das atitudes e comportamentos dos indivíduos
(FOUCAULT, 2003).
Assim como produz a assimilação dos comportamentos considerados legais
em relação à propriedade privada e obediência à lei, no seu limite, também gera a
absorção dos papéis de gênero.
Para complementar tal análise, faz-se necessário trazer uma reflexão acerca
das representações de gênero presentes nas falas dos educandos presos que
participaram deste estudo.
O discurso presente nas entrevistas feitas junto aos grupos de estudantes
aponta que os mesmos partilham, no que se refere às representações de gênero, de
uma série de estereótipos sobre os papéis masculinos e femininos que permeiam o
imaginário social no ocidente.
Tais representações se apresentam de forma irrefletida. Isso fica evidente
quando os estudantes respondem não haverem diferenças significativas entre
homens e mulheres. Num primeiro momento, todos os grupos entrevistados
reproduzem o discurso da igualdade entre os papéis masculinos e femininos – “Eu
acho que tirando o corpo físico, eles não tem muita mudança. Cada um tem o
mesmo livre arbítrio. Normal. O mesmo que um possa fazer, o outro pode
(estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
No entanto, este discurso de gênero politicamente correto não se sustenta
no decorrer da argumentação desenvolvida pelos grupos. Para eles sua própria
identidade está calcada sobre a imagem do provedor – “Se o home tem capacidade
de ponhá mulher dentro da casa dele, tem que tê a capacidade de assumí, sustentá
e cuidá dos filho” (estudante alfabetização).
178
As falas que surgem nos peer-groups mostram que não está fora do seu
horizonte a possibilidade da mulher trabalhar. No entanto esta atividade profissional,
é encarada até no próprio imaginário feminino, como ajuda. A responsabilidade será
sempre dele. E caso a negligencie ou se permita ser sustentado pela mulher ou
companheira, estará colocando em xeque sua masculinidade – “Daí é vagabundo. É
gigolô total” (estudante alfabetização).
Embora os entrevistados não o afirmem, subentende-se então que o mundo
da criminalidade se apresenta como uma possibilidade para o cumprimento deste
papel que lhes é cobrado, caso não o consigam pelas vias do trabalho produtivo
legal (ZALUAR, 1994).
A imagem que os entrevistados têm da mulher não surge de forma tão
consensual. Uma análise geral das entrevistas revela uma multiplicidade de
variantes para o papel feminino, que por vezes dentro dos próprios grupos de
convivência ouvidos, se mostraram contraditórias.
Alguns, provavelmente a partir do próprio horizonte social, afirmam que as
mulheres são mais inteligentes. Afinal – “(...) fazem menos bobeiras do que a gente
(estudante alfabetização). Outros associam a essa idéia o sucesso que algumas
mulheres têm alcançado, apresentando destaque nas mais variadas áreas de
atuação profissional – “(...) as mulheres conquistaram o espaço delas. Hoje em dia o
homem e a mulher só são diferentes fisicamente. Você anda na rua e encontra
mulher policial, encontra mulher dirigindo ônibus, encontra mulher delegada,
encontra mulher juíza, prefeita” (estudante ensino médio).
Contrapondo-se a estas imagens positivas de mulher – “Pra mim tem mulher
que é guerreira pra caramba. Que dá de deiz a zero nesses cara aí!” (estudante
ensino fundamental 1ª a 4ª série), outras falas apontam para a sua fragilidade, bem
179
como para a maior carga de responsabilidades que as mesmas teriam,
contraditoriamente, de assumir.
De qualquer forma, no imaginário de representações sobre a mulher, surge o
fato das mesmas serem mais associativas – “as mulheres não tem muito
agressividade entre elas” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
Mas, subjacente a todas estas representações, subsiste continuamente a
idéia da mulher como aquela que, não importa a condição, será associada ao
exercício da maternidade – “a mulher, sempre, todo mundo sabe disso! Tá careca de
saber que a mulher é mais apegada nos filhos” (estudante ensino médio).
Interpretar o sentido destas afirmações tão amplas, por vezes até
contraditórias, implica em buscar a compreensão dos processos de socialização e
de construção de identidades a que homens e mulheres estão submetidos no
ocidente.
Como já apontado, a elas coube desenvolver habilidades que as tornassem
aptas ao espaço privado, portanto características como delicadeza, paciência e
suavidade lhes seriam indispensáveis para o bom cumprimento de seus papéis.
Deles espera-se agressividade, assertividade e segurança. O emprego de
tais características se fará através do uso do pensamento racional, pré-requisito para
o sucesso no mundo público (CARVALHO, 2003).
Tal conformação que permeia todo o imaginário social termina por dificultar
outras possibilidades de atuação e realização, tornando os indivíduos que não se
enquadram ao modelo, passíveis de discriminação.
Assim sendo, não se estranha que os estudantes de ambos os sexos,
mesmo estando presos, partilhem desta representação coletiva, muito embora, o
180
mundo da prisão contribua para que a mesma não assuma uma configuração
monolítica.
Há que se chamar atenção para o discurso da mulher como sexo forte, que
aparece, mesmo que de forma isolada dentro dos grupos masculinos e femininos.
Tal situação pode ser entendida a partir da idéia já exposta do gênero como
construto social. Pode-se indagar se essa representação não é fruto das diversas
relações estabelecidas dentro da prisão.
Afinal, as condições deste universo exigem que a mulher lance mão de uma
série de características que não foram pensadas historicamente para elas, tais como
arrojamento, agressividade, capacidade de luta e enfrentamento.
Aliás, existem diversas outras situações, e não apenas o mundo do crime ou
da prisão, em que as mulheres se vêem na necessidade de adotar estes padrões de
conduta. Encobrir tais situações, através do uso de estereótipos, acaba tendo uma
função ideológica (FONSECA, 1997).
Pode-se avaliar que, mesmo reconhecendo os espaços de transformação e
mudança – “Hoje em dia a mulher não é mais vista como aquela figura atrás do
tanque, pilotando o fogão, como se dizia no ditado popular” (estudante ensino
médio), devido às diversas situações concretas de seu universo de referência –
Quem tem que trabalhar, correr atrás, é o homem” (estudante alfabetização), os
homens acabam por sentir a necessidade de reafirmar a sua força e sua
capacidade, mesmo que seja pela oposição ao sexo oposto, que será encarado
como mais frágil – “A mulher é mais sensível, é mais carinhosa. O homem é mais
brutal, é mais força” (estudante ensino fundamental 1ª a 4ª série).
No entanto, estas construções de significado são dinâmicas e não estáticas.
Elas estão em constante transformação, não apenas em função dos processos da
181
história, mas pelas diversas necessidades impostas aos sujeitos (CARVALHO,
2003).
A partir do contexto da privação de liberdade pode-se entender, por
exemplo, a importância assumida pela figura materna, na medida em que os
depoimentos foram unânimes em apontar que o apoio da família – o da mãe entre
eles – se constitui em valioso expediente para suportar as dificuldades em meio a
prisão.
Aliás, a exemplo do que ocorre nos grupos femininos, não há consenso
entre os homens sobre a questão de qual dos sexos enfrenta maiores dificuldades
para suportar as agruras do cárcere.
As opiniões se dividem entre os grupos. Alguns deles afirmam, mas sem a
preocupação em embasar seus argumentos, que a mulher teria menos problemas
para enfrentar os obstáculos do mundo da prisão – “Por que no caso, as mulher já
tem mais regalia do que os home. Mas é assim mesmo. O sistema da cadeia
funciona assim (...) Porque as mulher sempre vai ter mais regalia que os home
(estudante alfabetização).
As maiores dificuldades para os homens seriam no sentido de seu papel de
provedor:
Você conhecia tudo, corria atrás e você trazia o sustento da tua família. E nisso
quando você foi preso (...) Tua esposa vai ter que por os filho na creche, vai ter que
correr atrás do serviço. Tem final de semana que não vai podê vir na visita, ou vai
chegá na visita, vai falá: ‘ah, tá doente’, ‘tá faltando as coisas’. Aquela conta, aquela
dívida, a farmácia. Tudo isso daí, quando vai pra dentro do x, isso aí pesa (estudante
ensino médio).
Por outro lado, os que apontam ser mais difícil para as mulheres
permanecerem presas, são capazes de levantar argumentos mais sólidos. Os
mesmos apontam como agravante a fragilidade “natural” da mulher – “(...) a mulher
182
sempre foi mais sentimental, mais delicada. E nesse aspecto ela (...) a cadeia dela
vai ser bem mais pesada de tirar do que a do homem (...) que o homem já vem de
uma natureza [grifo do autor]diferente” (estudante ensino médio).
Mas também mencionam que os homens teriam uma série de subterfúgios
para tornar a vida na prisão mais suportável – “(...) eu tô nervoso pensando na
minha família, eu vô lá jogá uma bola, vô joga uma capoeira, faço um pagode com
os amigos lá no canto, corro pra lá, jogo um vôlei, um ping-pong, eu distraio
(estudante ensino médio).
Contudo, o grande argumento da maior dificuldade feminina ainda se refere
à maternidade e demais responsabilidades atreladas a ela:
Eu também acho que é pras mulher. Elas é tudo la fora. As veiz é mãe de família, fica
sentindo a falta dos filho. É igual pra gente aqui dentro, mas é mais difícil pra elas. E
a gente nessa parte, eu acho que a gente é mais forte. Que a gente pode tirar a
cadeia aí, se distrai com os amigos, bate uma bola. Mas agora pras mulher é mais
embaçado, que elas têm mais coisa pra fazer lá fora do que nóis” (estudante
alfabetização).
Para outros, porém, não há nenhum tipo de diferença entre as situações
vivenciadas por homens e mulheres no ambiente da prisão – “Pros dois é muito
difícil. Purque o lado familiar, o lado afetivo, sentimental, família, saudade, amor, o
lado fraternal é muito (...) machuca (...) seja homem seja mulher” (estudante ensino
fundamental 5ª a 8ª série).
Este argumento encontra eco em outras vozes que apontam para os perigos
da depressão, que segundo os mesmos também não faz distinção de sexo – “Se
deixar, é isso (...) Esse lado psicológico que deixa qualquer um muito abalado, tanto
o homem quanto a mulher. Mas para ambos é difícil, difícil o convívio, o fator preso
(estudante ensino médio).
183
Há que se chamar atenção para a construção dos argumentos tanto
masculinos como femininos, na medida em que os mesmos vão dos mais calcados
em estereótipos até àqueles que se referem às condições objetivas que dão base à
construção das identidades dos diversos sujeitos (CARVALHO, 2003).
Não se deve esquecer que a prisão é espaço privilegiado para a vivência
das relações de poder. Nela os sujeitos se obrigam a buscar espaços de defesa de
sua subjetividade, sempre ameaçada pela convivência com a violência.
Assim, seus discursos podem ter a intenção tanto de revelar pulsões e
sentimentos surgidos das situações concretas, como ter o papel de manter de si
uma representação positivada.
Quando um homem ou mulher afirma a maior dificuldade do sexo oposto em
suportar a prisão, tanto pode significar um real entendimento dos obstáculos
enfrentados pelo outro, como pode ser uma tentativa da afirmação de si pela
negação do outro ou, ainda, o uso do reconhecimento do sofrimento alheio como
índice da própria sensibilidade.
Os relatos dos estudantes refletem que os mesmos percebem a relação com
os familiares como crucial para tolerar os problemas advindos da permanência na
prisão. A novidade aqui é que, também os homens valorizam a presença e o contato
com a família para a manutenção de sua subjetividade – “(...) se cê tiver alguém já
pra vir no final de semana visitar você, cê vai se desabafar, já vai ter mais força
ainda (...)” (estudante alfabetização).
As estudantes já haviam apontado que os detentos necessitam mais
diretamente da presença da família. As representações deles corroboram não
apenas esta informação, como também demonstram não entender como as
mulheres conseguem suportar a falta de seus filhos
184
Como é que fica o consciente dela lá? A cabeça dela como é que vai ficar? (...) Ela
gerou uma criança, uma vida dentro dela, como ela vai ficar dentro da cadeia
sabendo que (...) Principalmente para a mulher (...) eu queria entender o que uma
mulher pensa quando ela ta presa longe dos filho dela, que ela amamentou no seio
dela, sentiu a dor de parto e tudo, acho que pra mulher, na parte da família, das
crianças, dos filhos dela principalmente, acho que pesa mais o consciente dela
(estudante alfabetização).
As falas dos estudantes revelam que os mesmos concordam com as
afirmações das mulheres no sentido de que o retorno se dará de forma diferente
para ambos os sexos.
Com algumas divergências, as entrevistas masculinas apontam que os
homens, devido a responsabilidades derivadas do papel de provedor, encontrarão
mais dificuldades do que as mulheres no momento da reinserçao social.
Suas afirmações corroboram o fato de que estarão mais expostos ao
preconceito contra aqueles que estiveram na prisão. No entanto reconhecem que
haverá uma grande carga de cobrança moral sobre a mulher que esteve presa.
Acreditam que a maior parte delas talvez não tenha de se expor no mercado formal
de trabalho – seriam então sustentadas pelos companheiros, ou sobreviveriam
através do mercado informal.
Pode-se problematizar estas afirmações. Quando apresentam os homens
como aqueles que enfrentarão maiores dificuldades para o retorno à sociedade,
trazem de volta a idéia de que o espaço público e o mundo da produção são
pensados como masculinos. Mais ainda, apontam para a consideração de que as
tarefas domésticas não são consideradas trabalho, mas que entram no cômputo
geral do custo da sua reprodução enquanto atividade produtiva (SOIHET, 1997).
De qualquer forma, reforça-se idéia de que os ofícios femininos são
inferiorizadas porque – salvo as ocupações domésticas ligadas ao mercado informal
185
– eles não são remunerados. Então o trabalho da mulher ainda é, nas mais variadas
situações, considerado como ajuda, mesmo que muitas vezes ela seja a responsável
pela manutenção do sustento da família (FONSECA, 1997 e CARVALHO, 2003).
Neste mesmo contexto, estão presentes no imaginário representações
idílicas da mulher, onde as mesmas são apresentadas como figuras puras e frágeis,
ligadas ao papel de mãe. Romper com tal estereótipo configura-se em transgressão
de caráter imperdoável, e por isso estigmatizante (ALMEIDA, 2001).
A prisão é um local de passagem. No entanto socializa de forma definitiva.
Que representações os sujeitos constroem a partir dela? As que têm origem no xis,
no pátio ou na escola?
A seguir procurar-se-á analisar que representações os estudantes
constroem a partir da educação.
186
8 Representações dos estudantes a partir da educação da
qual participam
Uma vez efetuada a análise das representações de tecnologia e de gênero
presentes na educação desenvolvida com presos e presas a partir da interpretação
das entrevistas com os próprios envolvidos neste processo, passar-se-á a proceder
a análise das representações que estes atores constroem a partir da educação da
qual participam. Começar-se-á pelas internas.
8.1 Estudantes presas
Uma análise geral das entrevistas das estudantes presas revela que há
consenso com relação a uma visão positivada de educação. Entretanto os motivos
que sustentam esta afirmação são de ordem diversa em função dos grupos ouvidos,
mas, podem ser encontradas muitas similaridades em razão de todas elas
partilharem as mesmas condições de privação de liberdade.
Muitas das informantes apontaram que nunca tiveram a oportunidade de
freqüentar os bancos escolares antes de adentrar no universo da prisão – “eu não
sabia lê agora eu sei” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série). Isto tanto pode
ter acontecido por falta de uma estrutura familiar, que garantisse o acesso à
educação, como por desinteresse pessoal.
187
Outras consideram a educação importante, por ser um espaço onde as
relações se dão numa ordem diferente daquela presente no restante da instituição.
Há consenso por parte dos grupos ouvidos que o ambiente escolar é propício ao
exercício da solidariedade e facilitador da integração entre as estudantes:
Purque até lá fora podemos sê diferente, mas aqui somos todas iguais. E é uma
maneira de todo mundo, um ajudá o outro, purque, uma coisa que eu não sabia lá
fora, é que um podia ajudá o outro, aqui umas meninas são mais difícil de aprender
mesmo [portanto, precisam de ajuda] (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
Outro elemento positivo apontado pelas estudantes é a relação estabelecida
entre elas e as professoras. Afirmam, até de forma idealizada, que as mesmas são
atenciosas, pacientes, afetivas o que contribuiria para seu aprendizado – “A pssora é
muito boa. Ela explica as matéria direitinho. Se a gente não entendeu, ela explica
novamente. E eu tô achano bom estudá com ela” (estudante alfabetização).
De qualquer forma pode-se interpretar que essa imagem otimista que as
internas apresentam em relação à educação, pode ser também associada a elas
mesmas. Isso fica evidente quando representações do eu e do mundo construídas a
partir da educação contribuem para a afirmação da sua auto-estima:
Pra mim eu vou saí daqui, eu sou uma nova pessoa, graças a Deus. E também
melhorá muito meus estudo, purque se perguntar pra mim: ‘qual o nome da tua rua, lá
em Curitiba?’ Eu não sei, porque não sabia lê. Tinha que perguntá pros outro o nome
das rua, nome dos ônibus. Agora não. Agora posso lê sozinha. Então, pra mim é
muito bom. Eu pretendo continuá meus estudo (...) (estudante alfabetização)
Há que se levar em consideração que todas estas afirmações constituem o
conjunto de representações das internas. Logo estão permeadas de generalizações,
lacunas, estereótipos e outras considerações de caráter ideológico.
Isso fica claro quando algumas falas apresentam certas inconsistências
discursivas. Por exemplo – “(...) Muito bom mesmo estudar pra mim. Por que quando
188
eu tinha 6 anos eu saí da escola e agora tenho 29 anos [grifo do autor]. E eu me
arrependi purque na minha família são tudo estudado. A única pessoa mesmo que
não tem estudo sou eu” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
Nesta linha de raciocínio, podem ser encontradas falas que reforçam o
estereótipo que aponta um maior aproveitamento das mulheres com relação à área
de português e a percepção da objetividade das disciplinas ligadas à área de exatas
– “Os professores procuram dar uma aula mais ampla. Não só específica do
assunto, mas também da convivência, do dia-a-dia, da experiência. Menos os das
exatas, porque das exatas não tem como, tem que chegar e dar a matéria
(estudante de ensino médio).
Todos os grupos apresentaram a excelência do nível de educação ofertada
na prisão, porém, tal afirmação se torna relativa, já que houve falas contraditórias –
Hoje é aula de matemática, mas eu num lembro nada“(estudante ensino
fundamental de 1ª a 4ª série).
Paralelamente a todas estas questões, há que se perceber um raciocínio
que opõe a educação ao crime ou a vivência da criminalidade. As falas assumem o
discurso da instituição no sentido de afirmar que a prisão e a escola devem
promover no indivíduo a remodelação do eu, recuperando as identidades
deterioradas por uma existência no mundo do crime.
Na prática as estudantes são colocadas diante de um discurso moralizador.
São levadas, através dele, a reavaliar suas opções e seu itinerário de escolhas
individuais. Assim, tem-se como resultado uma re-socialização das presas dentro
deste novo universo – o mundo intra-muros.
Eu cum certeza, tô aprendeno. E quero aprendê mais, na escola! A me comportá no
pátio, na convivência com as menina, em tudo! Tô aprendeno a ser humilde. A escola
tá me ajudano a muda essas coisa. Pra mim, estudá é tudo de bom. A pssora tá
189
passano muita coisa boa. É como se cê ganhasse um pouco de liberdade, na
convivência cum ela e cum as menina (estudante alfabetização).
A própria prisão é vista como uma espécie de escola. Um campo para o
aprendizado moral daquilo que foi negligenciado quando da sua vida antes da
prisão. – “E aqui eu aprendi muita coisa, não só por causa da aula, mas da
convivência também (...) é mais geral” (estudante ensino médio).
De qualquer forma, há uma percepção de que a educação lhes dá
elementos para uma avaliação mais completa da realidade onde estão inseridas. É
como se fosse uma possibilidade de realização de anseios que o universo da prisão
lhes impede. Por isso afirmam que é um espaço de crescimento pessoal e cognitivo
– “Na hora que você começa a estudar, começa a ampliar seus conhecimentos.
Você começa a ter a visão mais aberta do que te fecha dentro da cadeia” (estudante
ensino médio).
Constata-se então que a escola constitui-se em um espaço simbólico na
prisão, que cumpre um papel maior que o da escolarização:
Eu acho que é o emocional. Porque na hora que você vem para aula com um
problema que você teve no convívio, por ser um presidiário, por conviver num meio
desses, vocês não é um aluno como outro qualquer. Porque você é um aluno com
uma carga muito maior de tensão. Essa carga influencia. Tem dias que vocês chega
na escola e não está com o espírito pra coisa. Por quê? Porque você está com outros
problemas que te atingiu. E o emocional fala muito aqui dentro. Diariamente, cada um
tem um problema emocional, por isso, por aquilo (estudante ensino médio).
Aqui observa-se que a escola é utilizada como um espaço de fuga. Um
refúgio dos problemas e pressões inerentes ao cotidiano de violência da prisão. É
mais do que qualquer outra coisa, um ambiente onde se busca a alienação de todas
as instâncias opressoras que operam a sujeição dos indivíduos.
As estudantes chegam a afirmar que a escola é uma outra cadeia. Como já
apontado acima, as normas e regras de interação, bem como as vivências
190
intersubjetivas são de uma ordem diversa das que valem no universo da prisão –
(...) você consegue ter um convívio melhor, na hora que começa a discutir matérias,
a abrir a mente para coisas que não é só história de cadeia, que te deixa muito (...)
que recalca (...) e aí você passa a se sentir livre” (estudante ensino médio).
Há que se perceber um discurso que aponta para a assimilação, por parte
das estudantes, dos ideais da instituição. Tem-se como fruto deste processo, uma
concepção simplista que quer fazer acreditar que o fato de conhecer o certo, impede
ou isenta o indivíduo de praticar o errado.
A educação então cumpre o papel de transmissão do sistema-verdade
vigente na sociedade. Por isso o discurso das estudantes positivando a educação,
tentando superar – “aquilo que a gente fez também por falta de opção, de [não] ter
estudado mais” (estudante ensino médio).
A assimilação do discurso institucional chega ao ponto de isentar a prisão
das situações de tensão a que são submetidas. Em vez de responsabilizar a
situação de privação de liberdade que sofrem pela dificuldade de concentração no
processo de ensino aprendizagem, transferem à família a culpa por seus reveses
cognitivos – “Porque aqui quase a gente não tem comunicação com a família (...)
Não tem noticia, a gente fica assim (...) psicológico meio abalado. Você quer saber
da sua família (...) como aqui a gente não tem (...) a gente fica preocupada
(estudante ensino médio).
Ainda como extensão da assimilação do discurso da instituição, a educação
também é pensada como fator preponderante para o processo de re-socialização.
De fato, as presas associam seu futuro sucesso nas suas interações no mundo
extra-muros com as atividades escolares que desempenham, sendo que pela
191
análise de suas falas, não haveria possibilidade de reintegração sem um bom
desempenho em seus estudos.
Tem-se a partir das entrevistas uma visão positivada da escola como
reintegradora na vida extra muros – “A gente vamos usar o estudo lá fora também
(estudante alfabetização). Seus conhecimentos seriam imprescindíveis tanto para a
vida pública como para a privada – “(...) pra podê ensinar meus filho, ajudar eles (...)
eu não podia pegá num caderno e falá como escrevia. Agora já posso” (estudante
alfabetização).
Na vida pública, imaginam seus estudos como facilitador para uma atuação
no mercado de trabalho, seja formal ou informal – “quando saí daqui já aprendi
bastante coisa: bordar, costurar. No mercado de trabalho alguma coisa vô podê usá
(estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
De qualquer forma, ainda como resultado da assimilação do discurso
institucional, as falas das estudantes apontam para a interpretação de que seu
interesse nas interações dos processos educacionais serão o índice de sua
reabilitação – “[educação é] degrau alcançado na vida. Purque se cê quisé mudá de
vida, já prova desde aqui de dentro. Num adianta cê falá: ‘vô mudá, vô mudá’ se
aqui dentro, com as oportunidade que o sistema te dá, cê num aproveita nada
(estudante ensino fundamental 1ª a 4ª série).
A partir de falas como essa, pode-se chegar à inconsistência da afirmação
da escola como espaço de liberdade dentro da prisão. As internas sofrem pressão
simbólica para participar das atividades escolares. Afinal, acabam por estudar muito
mais em função do que isso representa dentro daquele universo do que por uma
busca ontológica por crescimento pessoal.
192
Tem-se então que se trata muito mais de uma resposta aos estímulos do
ambiente para que internalizem códigos de disciplina moral e legal, do que vivência
mesmo de espaço de liberdade.
Uma vez completado o esforço de descrição das representações construídas
pelas estudantes presas a partir da educação da qual participam, passar-se-á ao
mesmo procedimento em relação aos grupos masculinos.
8.2 Estudantes presos
A convivência dos estudantes presos em um ambiente de privação de
liberdade faz com que os mesmos, apesar de suas particularidades, compartilhem
uma série de representações e de formas de ver o mundo. Em função disso,
compreende-se que uma análise geral das entrevistas leve à constatação de que
eles, a exemplo das internas, também possuam uma visão positiva da educação.
Um dos motivos apontados para essa valorização se refere à possibilidade
de re-significar os conhecimentos obtidos anteriormente, quando da sua existência
extra-muros, bem como de aprender coisas novas – “Estudá pra mim é muita coisa
(...) importante pra nós aprendê mais ainda do que a gente num sabe (...) torná a
aprendê na escola” (estudante alfabetização).
Segundo as entrevistas, os internos se sentem valorizados pelos seus
professores. Isso pode ser interpretado, a exemplo do que ocorre nas falas das
estudantes, como mais um fator que contribui para uma visão otimista da escola –
Que as professoras tratam a gente super bem, muito legal. Quando a gente tá
doente, a gente fala (...) os funcionários não dão muita atenção. Cê vem na escola, a
193
professora leva a gente na enfermaria e tudo” (estudante ensino fundamental 1ª a 4ª
série).
Percebe-se nas falas dos estudantes uma representação da escola como
um espaço para que possam promover uma re-significação do eu. Sua auto imagem,
por vezes agredida pela privação de liberdade e demais tensões decorrentes desta
situação, encontra ali um espaço para sua reconstrução. Podem então estabelecer
uma identidade em outras bases que não a do mundo do crime e do universo da
prisão:
Aqui não é simplesmente uma escola, mas sim um curso de auto-ajuda. De disciplina,
um resgate de um erro da tua personalidade, do teu respeito, do teu caráter. E com
isso eles [professores] contribuem muito, tanto pra mim quanto pra qualqué um aqui,
acredito que seja assim. Eles têm feito muito, pra gente que [se] achava tão pouco.
Mas é uma ajuda fantástica. Eu agradeço a eles (estudante ensino fundamental 5ª a
8ª série).
Aparecem nas entrevistas algumas falas ressaltando a importância da
vivência da solidariedade – “Então a gente se ajuda. Quando um não sabe, o outro
ajuda” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série). No entanto, apesar do discurso
de reformulação do eu, nota-se que nas suas falas não está presente, pelo menos
não de forma tão contundente como nas falas das estudantes, a existência de
valores solidários.
De qualquer forma, algumas falas apontam que através dos estudos podem
tentar manter-se atualizados com relação à realidade extra-muros – “Então
acompanhando a escola, [quando] você (...) [sair] para a sociedade, pelo menos,
você não está junto [atualizado com o que está acontecendo], mas pelo menos
perto” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
É necessário, a exemplo do caso feminino, relativizar o conteúdo das
afirmações dos estudantes. Todos declaram o gosto pelo estudo e a boa relação
194
com os professores. No entanto, contraditoriamente em suas falas, aparece que – “O
que eu achei que eu fiz legal aqui na escola, no colégio, teve uma palestra (...) a
parte do meio ambiente (...) aula sobre cidadania (...) estatuto do idoso (...) Fora da
matéria de sala de aula. Isso aí foi fora (estudante ensino fundamental 1ª a 4ª série).
Isso deve ser levado em conta. Mesmo porque os presos têm consciência de
que a educação lhes dá direito a remissão de pena. Não obstante, não se sentem
confortáveis para afirmar que esse é um fator importante para mantê-los na escola –
Eu não venho pra escola pra receber remissão nem nada. É mais pra aprendê
mesmo” (estudante ensino fundamental 1ª a 4ª série).
Apesar disto, os entrevistados reafirmam a qualidade da escola na prisão.
Apenas após alguma insistência é que admitem que a falta de acesso à família e
questões jurídicas com relação a sua progressão de regime podem constituir-se em
dificuldade para o aprendizado – “Bom, dificuldade tem o advogado que vem, vem
alguma coisa do juiz, e fica complicado para estudar, fica difícil. Tua mente, tu tá
estudando, mas não tá com a cabeça ali, no estudo. Tá com a cabeça lá! Que tá
privado de liberdade” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
Nessa mesma linha, houve falas que apontaram para a ausência de uma
melhor infra-estrutura nas instalações escolares. Essa crítica indicava que, a falta de
alguns aparelhos e artefatos tecnológicos dificultava não apenas um melhor
aproveitamento por parte dos estudantes, como também uma maior interação dos
mesmos com a realidade extra-muros
Acho que a escola aqui na penitenciária deveria ter mais um apoio do governo. O
governo proporcionar uma sala de computação, uma sala de Internet para fazer
pesquisas. Hoje em dia até escolas estaduais, tem farol do saber, lá você pode fazer
trabalho, pesquisa na Internet. Isso seria muito interessante para o desenvolvimento
da gente aqui dentro. Interagir mais com o mundo lá fora e aprender mais (estudante
ensino médio).
195
Tal fala apresenta um total desconhecimento dos verdadeiros objetivos da
prisão. Esta não é pensada para manter os seus internos em contato com a
realidade externa. Pelo contrário, quer promover o isolamento daquele que
apresentou uma conduta reprovável para desta forma, não apenas punir, mas
também levar a reconstrução de sua identidade caída, além de impedir que outros,
pelo contato com o mesmo, assumam seu comportamento.
Assim como no caso das estudantes presas, pode-se afirmar que a escola
nas representações dos internos, possui um efeito moralizador. Aliás, esse é o
grande substrato que pode ser encontrado em todos os envolvidos neste processo.
Esta instituição, no universo da prisão, quer promover a reforma dos espíritos.
Não é a toa que, as falas de alguns estudantes quando se referem aos
efeitos da educação sobre sua própria identidade, o fazem com um discurso que se
assemelha em muito ao dos recém convertidos:
[O] principal que eu conseguí resgatar dentro de mim, lá no meu íntimo é a
humildade. Que eu não tinha humildade na rua. Eu era uma pessoa estúpida. Muito
cheio de ser. Era eu, eu, eu ou era eu e mais nada. Aprendi a escutar os outros.
Faltava alguma coisa na minha educação. A escola aqui da unidade PPC veio e
concluiu isso que estava faltando na minha educação. Meu pai, minha mãe, meus
familiares meus, professores que eu tive na minha infância também, eles me
ensinaram, me educaram, mas estava faltando alguma coisa, um básico. Que eu fui
só encontrar aqui, não sei se por causa da maturidade minha, da minha cabeça.
Agora que foi cair a ficha minha, do que estava faltando (...) (estudante ensino
médio).
Essa representação um tanto quanto extremada não é consensual. Porém, a
idéia de que os processos educativos atuam no sentido de impedir o retorno ao
mundo do crime é recorrente.
Ainda de acordo com as representações dos estudantes, a escola atuará
como um impeditivo para que os mesmos se socializem no mundo do crime
existente dentro do universo intra-muros.
196
Inclusive acreditam que a escola poderá muni-los de uma linguagem
apropriada ao mundo extra muros, permitindo que abandonem vícios lingüísticos
pertinentes à criminalidade – “Que no mundo do crime a gente usa várias gírias e
acaba esquecendo até mesmo a língua, o modo de falar da sociedade. E hoje em
dia eu pretendo dominar mais o Português, aprendendo a usar mais no dia-dia
(estudante ensino médio).
A idéia é de que a educação possa servir de alavanca para mover os
espíritos no sentido de uma vida voltada para os critérios vigentes de integridade e
honestidade. Uma vez que estejam imbuídos destes novos valores os estudantes
afirmaram acreditar que terão boas possibilidades de re-inserção social:
O estudo para mim é (...) são novas chances, novos caminhos. Por que sem o estudo
já estava difícil, se lutando aqui dentro, eu (...) ter uma oportunidade, pretendo buscar
e melhorar. Melhorar pra mim, pra sociedade, pra minha família, de modo geral, um
autoconhecimento. Faz parte da chaves de muitas portas (estudante ensino
fundamental 5ª a 8ª série).
Uma vez que tais processos tenham ocorrido, via ensino, as representações
dos internos indicam que os mesmos estarão aptos para se re-inserirem no mercado
de trabalho – “Pra aprender cada vez mais e conhecer coisas novas e pra conseguir
um trabalho bom. Sem estudo hoje em dia, não consegue um trabalho, é difícil pra
caramba” (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série).
Aliás, para os grupos masculinos esta foi a grande unanimidade. A educação
é vista por eles como um fator imprescindível para a atuação profissional. Assim,
acreditam que a escola e a prisão tem a função de preparar o preso para o mundo
do trabalho:
(...) deveriam inventar mais curso, preparar mais o preso para poder sair na
sociedade, (...) mais cursos de trabalho, assim vários tipos de curso aí. Você preparar
197
o preso. Porque não adianta soltar a gente sem ensinar direito, que a maioria vai
voltar tudo de novo pro crime (estudante ensino fundamental 5ª a 8ª série)
Embora haja consenso no desejo de continuidade dos estudos, os
entrevistados apontam que haverá inúmeras dificuldades para que isso ocorra fora
da prisão. Dentre eles, os mais fortes seriam a falta de tempo, uma vez que
acreditam que o exercício de uma atividade no mercado de trabalho irá ocupar a
maior parte dele. E também a questão da discriminação e do preconceito contra a
figura do ex-presidiário.
Uma vez apresentadas as descrições das representações construídas pelos
estudantes a partir da educação da qual participam, é preciso buscar a interpretação
de seu sentido à luz das teorias aqui já apresentadas.
As representações que os estudantes, tanto homens quanto mulheres,
levantaram de educação são basicamente as mesmas. Diferem-se unicamente no
que fazem referência às suas especificidades de gênero.
Homens encaram a educação como ferramenta para inserção no mercado
de trabalho a fim de cumprirem seu papel específico de provedor. Mulheres a
associam principalmente ao mundo privado, na medida em que a mesma contribuirá
para o cumprimento de suas responsabilidades inerentes ao papel de mãe –
instrução dos filhos e mesmo a atuação no mercado de trabalho, informal ou formal,
mas, preferencialmente, entendido como ajuda.
Desta forma a escola, assim como a prisão, socializa nos horizontes que já
estão dados pela sociedade. A escola no ambiente prisional, também é
reprodutivista.
Neste sentido, pode-se afirmar que as representações dos estudantes
apontam para uma concepção que se identifica com a idéia de educação bancária.
198
Isto porque não leva em consideração a capacidade criadora dos educandos, mas
sim a preponderância dos professores nos processos educativos (FREIRE, 1987).
Através desta ótica, pode-se explicar a lacuna existente no discurso dos
internos no que se refere à problematização de sua realidade. Não se discute em
momento algum os reais objetivos que a prisão cumpre, por exemplo. Pelo contrário,
assume-se o discurso institucional.
Na prática, a escola acaba sendo um espaço onde os mesmos encontram as
justificativas morais para se conformarem com a sua realidade de privação de
liberdade. No entanto, esse discurso atua muito mais no nível subliminar do que no
sentido explícito.
As representações dos estudantes estão longe de oferecer uma noção
histórica e social dos porquês de sua condição. Em suas falas não apresentam
nenhum tipo de preocupação com a busca por conteúdos que realmente possam
lhes garantir uma intervenção transformadora da realidade.
Seus projetos estão voltados, via mercado de trabalho, para a sua re-
inserção na sociedade como ela se configura. Logo não pensam em transformá-la,
mas em reproduzi-la – em outras palavras seu objetivo maior é estar fora da
condição de marginalidade.
Neste sentido, compreende-se as representações dos internos no que se
refere às relações entre educação e tecnologia. Nota-se que estão interessados em
obter um instrumental de conhecimentos científico tecnológicos que, no seu
entender, lhes garantirão sua participação na estrutura social.
Assim acabam por cobrar da escola a reprodução de saberes técnicos, que
estariam muito mais próximos do treinamento para a utilização de aparatos
199
tecnológicos (o fazer pelo fazer), do que pela discussão do real significado de
tecnologia.
Tal representação se justifica quando se percebe que a educação no
ambiente de prisão não promove esta discussão. Como se atém ao objetivo da
moralização
83
, abre mão dos processos investigativos e da postura inquiridora que
poderia capacitar os estudantes a construir e organizar o sentido último de suas
próprias vidas (BASTOS, 1997).
Pelos cânones institucionais ela não poderia ser este espaço de vivência de
liberdade. Mesmo porque ela não foi pensada para cumprir este papel. De qualquer
forma, neste ambiente a escola deve constituir-se em oposição a idéia da prisão
como universidade do crime, valendo-se daqueles aparatos moralizadores e
ideológicos para apresentar-se como atmosfera propícia para o aprendizado da vida
social (PAIXAO, 1991).
Todo este discurso adquirirá um caráter de legitimidade através do uso de
saberes científicos que serão convocados para que se atinja a finalidade última do
sistema penitenciário, produzir a internalização da disciplina no interior das
sociedades (FOUCAULT, 2003).
Nesta linha de raciocínio, conclui-se que a educação como processo de
emancipação dos seres humanos, como busca de auto-realização fica
comprometida no ambiente da prisão (PORTUGUES, 2001).
Quando esta instituição estrutura-se a partir de uma série de normas, regras
e procedimentos que visam o controle dos homens e não a sua plena realização, se
coloca aquém do que pode ser considerado educação.
83
Isto é, transformação do cidadão delinqüente em cidadão integrado à ordem legal (ADORNO,
1991).
200
Tais processos vão de encontro ao treinamento ou adestramento dos
sujeitos. Desta forma, não se pode responsabilizar os que participam dos mesmos
encarando-os como um meio e não um fim em si mesmo.
É o caso dos estudantes que assumem o discurso institucional com o
objetivo de obter as benesses dos códigos disciplinares. Como em várias outros
ambientes sociais, e não apenas na prisão, as ações humanas se revestem de
caráter político estratégico para burlar ou se adquirir poder.
201
9. Considerações finais
Este trabalho analisa as representações de tecnologia e gênero que estão
presentes na educação de presas e presos, bem como as representações que estes
mesmos atores constroem a partir da educação da qual participam. Para tanto,
valeu-se de uma abordagem qualitativa a fim de alcançar uma aproximação das
representações coletivas no universo das prisões. Serão estes então os pontos
norteadores neste momento de tecer as considerações finais do presente estudo.
Em primeiro lugar é necessário voltar ao entorno do mundo das
penitenciárias, a sociedade capitalista que ostenta profundas marcas do viés
tecnológico. Isto porque a experiência humana na modernidade está ligada a
processos onde a racionalidade técnica, ou razão instrumental, possui
preponderância na ordenação da realidade.
Este modelo, que ora se configura hegemônico, embora não tenha caráter
único, foi sendo construído historicamente na medida em que os desdobramentos do
capitalismo enquanto meio de produção foi promovendo profundas transformações,
não apenas econômicas, mas também culturais.
Como apontado anteriormente no desenvolvimento do marco teórico, a
prisão assume, a partir dos séculos XVIII e XIX, um papel significante no processo
de controle das massas empobrecidas. Michel Foucault associa esta conjuntura ao
desenvolvimento do capitalismo que, na medida em que passava por
transformações importantes e radicais, necessitava de novos mecanismos de
proteção e controle.
É neste sentido que a prisão pode ser pensada como tecnologia de poder.
Ao lado de outras instituições tais como família, escola ou a fábrica, trará a si a
tarefa de produzir a assimilação da disciplina.
202
Filha bastarda – e não reconhecida de imediato – da reforma do sistema
penal que se dá ao final do século XVIII e início do século XIX, a pena de prisão
ganha espaço a partir deste período.
Isto porque agia de forma direta no imaginário das classes consideradas
perigosas. Chamando atenção sobre si mesma através do isolamento, gerando um
universo à parte da sociedade – mas não deixando de constituir um espelho às
avessas da sociedade liberta – a prisão faz sentir seus efeitos não apenas sobre o
corpo e a alma do condenado, mas sobretudo, sobre o segmento social do qual este
provém.
É neste contexto que se inserem os diversos atores ouvidos por este
trabalho, a saber: pedagogas, professoras e estudantes presas e presos. É a partir
deste amálgama cultural que se estabelecem suas relações intersubjetivas, marco
fundante das suas representações sociais.
Sendo assim, este estudo não poderia se furtar de produzir uma análise de
síntese – antes mesmo de buscar fechar conclusões a partir das categorias de
análise propostas – sobre como estes atores emergem de seus próprios
depoimentos.
Este recorte não intencional de si
84
revela parâmetros interessantes para
análise. É o que se fará a seguir.
No que tange às pedagogas, por exemplo, vê-se uma aparente contradição
em suas falas. Seu discurso, em boa parte das vezes, é comprometido com as
propostas e o ideário da instituição, porém aleatoriamente não se priva de tecer
importantes críticas ao sistema, sendo que algumas chegam a apontar que a prisão
não se configura em ambiente propício às práticas educativas.
84
Como já exposto no momento da apresentação dos passos metodológicos, não foram construídos
instrumentos para que fosse levantado um perfil mais representativo dos entrevistados.
203
Esta posição, um tanto quanto ambígua, se torna compreensível quando se
considera que seu papel de destaque na estrutura de comando da prisão é
confrontado, o tempo todo, com as teorias propostas como base para qualquer
trabalho educacional – e há que se considerar que aquelas tidas como mais aceitas
apontam sempre a liberdade como mola mestra para a educação.
De mais a mais, pôde-se afirmar que embora sintam-se sensibilizadas com
as situações de privação de liberdade vivenciadas por presas e presos, a postura
das profissionais pedagogas será marcada não apenas por pólos opostos –
representados por teorias pedagógicas libertárias e pelo discurso institucional – mas
também por uma série de estereótipos sobre a prisão oriundos do senso comum.
Estes, constituindo-se em visões parciais da realidade, fundamentariam
práticas pedagógicas por vezes fortemente marcadas por princípios moralizadores e
salvacionistas.
É nesta região de fronteira que as suas representações se constroem e se
constituem. Embora possa parecer precipitado, é necessário apontar que falta a
estas profissionais um embasamento teórico maior sobre o significado da prisão no
panorama geral das sociedades modernas, marcadas pelo viés tecnológico do
mundo capitalista. Deslindar como se efetiva seu universo de representações
somente seria possível a partir de um estudo específico.
Com relação às professoras, pode-se afirmar que a análise efetuada sobre o
universo de representações das pedagogas, de uma forma geral, também se aplica
a elas – resguardadas as peculiaridades referentes às suas funções dentro do
mundo penitenciário.
De qualquer forma, as representações das professoras são fortemente
marcadas pelo local que ocupam dentro do universo da prisão. Se por um lado, as
204
mesmas não têm lugar de destaque dentro da hierarquia de poder institucional, por
outro, apresentam um alto nível de interação com a massa de presidiários em geral.
Este intercâmbio, aliado ao respeito que os estudantes de ambos os sexos
lhes dispensam, contribui para a percepção daquele espaço como praticamente
isento de periculosidade.
No entanto, tal proximidade parece implicar numa certa identidade
85
e
conseqüente sentimento de contaminação. Isto explicaria a percepção da vigilância
institucional sobre si. Daí o uso do discurso da instituição e dos estereótipos relativos
ao mundo da criminalidade para marcar a diferença e a distância existente entre
seus mundos.
Porém, há que se ressaltar que não se pode generalizar a análise acima
para a totalidade das professoras ouvidas. Neste sentido, é preciso realçar a
pluralidade de posturas que emergiram deste trabalho. Estas poderiam ser
agrupadas numa escala que vai da concepção de educação como missão
86
às
concepções de educação comprometidas com a problematização da realidade.
Promover a investigação de qual o nível de determinação destas linhas
teóricas sobre as práticas dos professores, bem como o quanto estas estão
permeadas pelos estereótipos vigentes sobre a prisão, ou ainda verificar como todas
estas questões podem interferir nas relações entre professores e alunos dentro do
universo da prisão constituir-se-ia em instigante campo para novas pesquisas.
No tocante às estudantes presas é preciso considerar a multiplicidade de
nuances e contrastes que as constituem enquanto grupo. Porém, é possível
vislumbrar, mesmo sem um instrumento de levantamento de dados mais preciso, um
viés de classe na amostra ouvida. Isso corrobora as demais pesquisas efetuadas no
85
Não se deve esquecer que as classes sociais das quais são oriundos professores e detentos não
são tão distantes assim.
86
Que teria por fim último o resgate do ser humano caído, via transmissão de valores morais.
205
Brasil e no Paraná, bem como as correntes teóricas que afirmam a prisão como
tecnologia de controle sobre as classes empobrecidas.
De uma forma geral, estas mulheres demonstram uma grande preocupação
com a família – com aquela que as abandou na prisão, com aquela que as visita por
vezes, e até mesmo com aquela que ainda estão constituindo. Informam que o papel
de mãe seria seu horizonte de referência, sendo que estão conscientes da carga de
preconceito que terão de enfrentar por terem ousado romper tabus e adentrado no
mundo do crime.
Sendo assim, a partir de uma visão de mundo estereotipada e acrítica,
parecem assumir a si o discurso da prisão como castigo merecido. Seria difícil
apontar até que ponto tal postura não se constituiria em estratégia ou mecanismo de
defesa diante de uma instituição extremamente moralizadora. De qualquer forma tais
questões demandariam de um maior aprofundamento mediante pesquisa específica.
Os estudantes presos apresentaram características muito próximas
daquelas apresentadas por sua contraparte feminina. Em sua maioria, são jovens
oriundos das classes populares. Em conformidade com a visão de mundo destes
estratos sociais, reconhecem-se como os reais provedores da família.
Sua postura diante do entrevistador se mostrou oposta àquela das mulheres:
diferente delas, não se dispuseram a tratar das dificuldades da vida na prisão.
As entrevistas estavam permeadas de um desejo de demonstrar o domínio
de conhecimentos do mundo exterior – tecnologia, educação, a dinâmica das
relações entre homens e mulheres. Seu discurso, mesmo quando se referia ao tema
da prisão, com algumas poucas exceções, procurava mostrar-se distante, seguro e
sem muitos arroubos emocionais.
206
Pode-se interpretar esta construção como parte de um discurso estratégico
do preso. Seu objetivo seria apresentar a imagem de alguém que já teria recuperado
sua identidade deteriorada pelo crime. Mesmo reconhecendo as dificuldades que
terão de enfrentar para se re-inserir no ambiente extramuros, em momento algum
sequer mencionam a possibilidade de retorno ao mundo do crime. Auferir significado
mais profundo dentro do universo de representações destes estudantes seria tema
de novas pesquisas neste ambiente.
Após este preâmbulo passar-se-á para as considerações finais sobre os
objetivos deste estudo, isto é, as representações de tecnologia e gênero que estão
presentes na educação de presas e presos, bem como quais representações que
estes mesmos atores constroem a partir da educação da qual participam.
As representações de tecnologia que emergem deste trabalho não se
mostram muito diferentes daquelas que permeiam uma boa parte do imaginário da
sociedade – e porque também não apontar, uma parcela significativa da academia.
Ou seja, também na prisão a tecnologia está associada ao artefato.
Assim, num primeiro momento, mesmo que de forma diferenciada para os
diversos atores ouvidos por este estudo, a idéia recorrente implica na confusão entre
tecnologia e o seu produto – isto é, objetos e utensílios eletro-eletrônicos de última
geração.
A tradução mais completa desta concepção seriam as inovações oriundas
dos processos de produção automatizada, da cibernética, das telecomunicações, da
informática e da rede mundial de computadores.
Assim, os informantes associam diretamente todas estas questões com
aquelas referentes ao mercado de trabalho. Em tese, sua preocupação maior é
207
então a qualificação profissional do estudante preso, a fim de proporcionar sua
reintegração no comércio de mão-de-obra qualificada tecnologicamente.
Na prática, pedagogos e professores primam por levar a cabo uma
educação nos moldes de uma ética do trabalho. Poucas são as iniciativas que
demandam promover uma discussão acerca da tecnologia enquanto fenômeno e
processo social. Desta forma, ela não é pensada a partir do contexto global das
relações sociais que os grupos humanos estabelecem entre si e com o mundo à sua
volta.
Por conseguinte, a compreensão que se faz valer, mesmo que
inconscientemente, é aquela oriunda dos princípios da racionalidade técnica – uma
concepção voltada para a realização de altos níveis de produtividade e lucratividade
e que encaram a tecnologia como uma poderosa força produtiva.
Logo, poucas iniciativas desenvolvem a problematização dos reais motivos
de sua geração, apropriação, distribuição e consumo. Assim, ela tende a
permanecer desligada do contexto sócio cultural de sua produção.
Por não se considerar uma tecnologia de geração e difusão do saber – mas
sim uma reprodutora de valores vigentes na sociedade – a escola não consegue se
apresentar como pólo de discussão do seu papel dentro da prisão e da sociedade.
Mesmo sendo responsável pela transmissão dos saberes científicos aos
seus assistidos, ela passa longe da discussão do papel da prisão enquanto
tecnologia de controle e de internalização da disciplina.
Ao se posicionar desta forma, ela se afasta das propostas defendidas como
educação tecnológica uma vez que o ambiente da prisão não abre espaço para
posturas investigativas ou questionadoras do real e tão pouco para promoção de
uma compreensão sistêmica da sociedade tecnológica.
208
Contudo, seria instigante observar quais seriam os efeitos da discussão dos
conceitos da educação tecnológica – mesmo que através de oficinas especiais –
junto a estudantes, professores e equipe pedagógica de escolas que operam dentro
dos muros das penitenciárias. Seriam eles capazes de conduzir a prisão a perpretar
um olhar mais crítico sobre si mesma? Estas perguntas demandariam pesquisa
específica.
No que se refere ao gênero, as representações que surgem nesta pesquisa
apontam para posições conservadoras, calcadas muitas vezes em estereótipos ou
em explicações de ordem biológica.
Passa longe deste universo o questionamento da tradicional divisão que
delega o mundo público, o espaço da rua para o sexo masculino, ao passo que o
universo privado, o ambiente doméstico, seria reservado ao sexo feminino.
Pelo contrário, no caso das mulheres a própria prisão acaba servindo de
referencial e sinalizador de qual será o destino daquelas que se arriscarem a romper
com padrões estabelecidos, via universo da criminalidade – este reconhecido como
essencialmente masculino.
Assim, a prisão acaba por reforçar, através da ação de seus mecanismos, os
já hegemônicos índices de instrumentalidade esperados dos homens e de
expressividade desejado nas mulheres.
Embora afirme que o interesse pelos estudos não sofra nenhum tipo de
marcação por sexo, as próprias atividades educativas levadas a cabo nas
penitenciárias sofrem esta divisão – na medida em que os cursos profissionalizantes
ofertados seguem uma orientação condicionada pelo viés de gênero: com poucas
exceções, cursos profissionalizantes voltados para uma atuação no mercado de
209
trabalho formal são ofertados em unidades masculinas, ao passo que aqueles que
pressupõem uma ação no mercado informal são destinados às unidades femininas.
Corrobora esta posição uma alusão feita num dos grupos femininos sobre a
divisão sexual da tecnologia – as de matiz masculino seriam voltadas ao mercado,
ao mundo da produção capitalista. Já as mulheres teriam acesso àquelas de caráter
mais informal, mas que embora depreciadas, também seriam capazes de satisfazer
igualmente as necessidades humanas.
De qualquer forma, todos os estratos ouvidos admitem que o papel esperado
dos homens e mulheres tem passado por mutações constantes. É flagrante,
principalmente no que se refere aos grupos de estudantes presos – que
aparentemente incorporaram mais em suas falas, a estratégia do discurso
politicamente e, porque não dizer, sexualmente correto – a afirmação da igualdade
de condições para homens e mulheres em vários ambientes sociais – inclusive no da
prisão.
Ressalte-se o questionamento feito por uma das informantes sobre a falta de
compromisso por parte dos homens com relação a seus filhos em ambiente de
prisão. Tal situação expressa a revolta contra uma situação de injustiça de gênero
ou se configura em índice de uma possível mudança nos papéis?
Há um grande leque de posições divergentes no que se refere às relações
dos detentos de ambos os sexos com suas famílias. Chama atenção a afirmação de
que o ambiente de prisão torna os homens muito mais dependentes da família do
que as mulheres, colocando em xeque o estereótipo da maior resistência dos
homens a situações adversas do que as mulheres.
De qualquer forma, todos os extratos, com poucas divergências dentro de
cada segmento, apontam para os já tradicionais e idealizados papéis das mulheres
210
como mães e grandes responsáveis pelos afazeres domésticos; e dos homens como
os provedores de todas as necessidades materiais da família.
No entanto, o pesquisador chega a desconfiar da apresentação de papéis de
gênero tão “tradicionalmente” corretos – principalmente no que se refere às falas de
estudantes presos de ambos os sexos. Há um total silêncio com relações a posturas
sexuais menos ortodoxas, como o homossexualismo, por exemplo.
As representações coletivas teriam se sobreposto às análises de cunho mais
pessoal e subjetivo, inibindo os informantes de manifestar suas opiniões a respeito?
Ou teria sido a ausência de uma maior privacidade – principalmente, no caso
feminino – no ambiente das entrevistas coletivas, o fator inibidor da revelação de
manifestações mais íntimas?
No entanto, o pesquisador suspeita da opção estratégica pelos discursos
tradicionais. Consciente ou inconscientemente, os estudantes estariam sendo
levados a adotarem em suas falas os padrões de gênero correntemente aceitos pela
sociedade, evitando assim mais este elemento discriminatório sobre suas
identidades. Todas estas questões necessitariam de aprofundamento através de
pesquisa e estudos específicos.
Chega-se por fim às considerações finais sobre o ultimo objetivo desta
pesquisa, a saber: analisar quais representações que estudantes presas e presos
constroem a partir da educação da qual participam.
À primeira vista emerge das entrevistas uma posição extremamente
positivada da educação. Tanto eles como elas fornecem material etnográfico para
que se infira que a escola da prisão se constitui em espaço para a realização
pessoal, já que promove o resgate de subjetividades fragmentadas pela violência do
211
mundo da criminalidade e, pela assimilação de novos conteúdos e valores, levaria
ao crescimento do ser humano.
Acrescente-se a isso a oposição clara e evidente que se estabelece entre os
moldes das relações mantidas por estes estudantes com seus professores, quando
comparadas às demais relações violentas e conflitantes presentes no cotidiano do
universo intramuros.
Assim, chega-se a entender a positivação do universo da escola pela
negação do mundo da massa carcerária. Assim, mesmo que a escola não se
apresentasse como alternativa para o universo de interesse desses atores privados
de liberdade, ela já apresentaria a imensa vantagem de mantê-los longe de todas as
possibilidades negativas presentes nos demais ambientes da prisão.
Além disso, há que se refletir se os estudantes deste universo conseguem
perceber, ou pelo menos intuir, a importância atribuída ao papel disciplinador da
escola e da educação dentro do panorama geral da prisão. Não seria absurdo
considerar esta possibilidade.
Os teóricos apontam que, para o sistema penitenciário, ela seria um dos
pilares do processo de ressocializaçao. Por isso a necessidade que estes atores
demonstrarem adesão a suas prerrogativas e propostas.
Se assim fosse, ficaria facilitada a compreensão do discurso de estudantes
que se assemelham ao de recém convertidos a novas práticas religiosas, numa
postura despida de criticidade.
Estas reflexões conduzem à problematização da afirmação da escola como
outra cadeia. O contexto da declaração do estudante se referia ao fato dos moldes
das relações que ali ocorrem serem de ordem diversa das que se dão no “xis” ou no
pátio da prisão, por exemplo.
212
Aqui poder-se-ia levantar a hipótese se tal afirmação não poderia ser
estendida a um outro tipo de privação de liberdade: a que teria por alvo não o corpo,
mas a mente dos estudantes uma vez que promove uma “conversão” ideológica nos
mesmos.
De qualquer forma, seja de uma forma inconsciente, seja por meio de
estratégia de sobrevivência em meio às agruras sofridas neste universo, as falas dos
estudantes presas e presos apontam o caráter moralizador da educação da qual
participam.
Não que isso para eles represente problema. Pelo contrário, ao freqüentar a
escola, estes atores buscam agenciar elementos que lhes permitam um re-inserção
no ambiente social extra-muros.
Vêem a escola como grande possibilidade de ressocialização. Querem dela
elementos que lhes possam subsidiar, principalmente, uma atuação profissional que
lhes garanta o sustento. Verificar até que ponto as práticas educativas das quais
participam contribui para que atinjam tal intento se configura em outro relevante
tema para pesquisa.
A prisão reforça, nos estudantes presas e presos, a idéia da educação como
meio e não como fim em si mesma. A educação não é buscada como forma de
problematização da realidade, mas como meio de fuga das condições de
marginalidade.
Por este prisma, chega-se à conclusão que a educação como projeto de
emancipação de homens e mulheres, que têm por fim último a liberdade e a
realização pessoal, inexiste em meio à prisão.
213
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1994.
219
Apêndice A – Roteiro de entrevista equipe pedagógica
Roteiro de Entrevista Equipe pedagógica
1. Qual o objetivo do teu trabalho?
2. Você acredita que estes objetivos estejam sendo atingidos?
3. Quais as principais dificuldades enfrentadas?
4. Você poderia descrever um pouco como é seu trabalho junto aos
professores?
5. Você tem algum contato com os presidiários? (Em caso positivo, como ele se
dá?)
6. Dentre os conteúdos e temas trabalhados no currículo, como você percebe a
questão da tecnologia? Existe alguma disciplina específica que aborde este
assunto?
7. Existe algum conteúdo que trata a questão da produção da tecnologia?
(Quem produz? Como produz? Para quem produz? Para quem? Para quê?)
8. Neste sentido da tecnologia, os conteúdos são diferenciados para homens e
mulheres? Existe algum aspecto que é mais aprofundado em função da
realidade/penitenciária masculina ou feminina?
9. Dentre os conteúdos e temas trabalhados no currículo, como você percebe a
questão de gênero? Existe alguma disciplina específica que aborde este
assunto?
10. Como estes conteúdos são avaliados? A partir da sua experiência, como é o
desempenho de homens e mulheres nos vários conteúdos passados? Você
percebe alguma área de conteúdo em que elas/eles se destaquem mais?
Através da sua experiência, como você percebe o interesse das(os)
presas(os) por tecnologia?
220
Apêndice B – Roteiro de entrevista professores
Roteiro de Entrevista Professores
1. Como é a sua aula? O que você ensina?
2. Qual o objetivo do teu trabalho?
3. Você acredita que estes objetivos estejam sendo atingidos?
4. Quais as principais dificuldades enfrentadas?
5. Como você procura motivar os (as) alunos (as) para o seu conteúdo?
6. Dentre os conteúdos e temas trabalhados na sua disciplina como você
percebe a questão da tecnologia? Existe algum conteúdo específico sobre este
assunto?
7. Dentro da sua disciplina, existe algum conteúdo que trata a questão da
produção da tecnologia? (Quem produz? Como produz? Para quem produz?
Para quem? Para quê?)
8. Neste sentido da tecnologia, os conteúdos são diferenciados para homens e
mulheres? Existe algum aspecto que é mais aprofundado em função da
realidade/penitenciária masculina ou feminina?
9. Dentre os conteúdos e temas trabalhados na sua disciplina como você
percebe a questão de gênero? Existe algum conteúdo específico sobre este
assunto?
10. Como estes conteúdos são avaliados? A partir da sua experiência, como é o
desempenho de homens e mulheres nos vários conteúdos passados? Você
percebe alguma área de conteúdo em que elas/eles se destaquem mais?
Através da sua experiência, como você percebe o interesse das(os) presas(os)
por tecnologia?
11. Na seu entender, você acredita que os alunos conseguem perceber estes
conteúdos como parte integrante da sua vida social? Eles conseguem perceber
a tecnologia como parte do seu cotidiano?
12. Que tipo de conteúdo você considera essencial para homens e mulheres
presos?
221
Apêndice C – Roteiro de entrevista estudantes
Roteiro de entrevistas – estudantes (entrevistas coletivas)
1. O que vocês estão estudando? Qual série?
2. Poderiam se apresentar? Não precisa ser o nome completo.
3. Como acontecem as aulas das quais vocês participam?
4. Como é a relação entre professores (as) e estudantes (as)?
5. Como é a relação entre os próprios estudantes (as)?
6. Pra vocês, o que é estudar? É importante?
7. Antes da prisão, vocês consideravam a educação importante?
8. Quais a dificuldades encontradas para estudar na prisão?
9. Como percebe a tecnologia na sociedade nos dias de hoje?
10. Dentre os conteúdos que vocês estudam, existe algum que discuta a questão
tecnológica?
11. Dentre os conteúdos que vocês estudam, existe algum que discuta a forma
como, para quê e para quem a tecnologia é produzida?
12. Quais as principais diferenças entre homens e mulheres?
13. Você acredita que homens e mulheres aprendem de forma diferente?
(aproveitamento, disciplina, interesse, etc)
14. Dentre os conteúdos que vocês estudam, existe algum que discuta as
relações entre homens e mulheres?
15. Existe diferença na relação das pessoas com a tecnologia em função do
sexo?
16. Como você avalia a educação da qual participa?
222
Anexo AAlunos matriculados por unidade penal
223
Anexo B – Carta Solicitação permissão para pesquisa
224
Anexo C – Imagens Centenário da Prisão Provisória de
Curitiba – Ahú
Penitenciária do Ahú em funcionamento 1909 - Curitiba - PR
PORTÃO DE ACESSO ÀS GALERIAS DA PENITENCIÁRIA DO AHÚ
ANDAR TÉRREO - 1909 - CURITIBA - PARANÁ
225
Inauguração do HOSPÍCIO NOSSA SENHORA DA LUZ - 25 de Março de 1903, Curitiba -PR
Ônibus de escolta de presos/ Capela/ Dormitório e Administração
Colônia Penal Agrícola - Piraquara - 1939 - PR
Marcenaria - Presídio do Ahú - 1909 - Curitiba - PR
226
Cela com pertences do presidiário
Curitiba - PR
Corredor térreo
Penitenciária do Ahú
1909 - Curitiba - PR
Preso uniformizado
1909
Corredor da galeria com presos defronte as suas celas
1909 - Curitiba - PR
Portaria interna da Penitenciária do Ahú
1909 - Curitiba - PR
Inspetoria da Penitenciária do Ahú
1909 - Curitiba - PR
227
Vista dos Fundos - Penitenciária do Ahú - 1909 - Curitiba - PR
Cozinha - Presídio do Ahú - 1909 - Curitiba - PR
228
Alfaiataria - Penitenciária do Ahú - 1909 - Curitiba - PR
Tipografia - Penitenciária do Ahú - 1909 - Curitiba - PR
229
Guarita da Guarda; Carro de condução de presos
1909 - Curitiba - PR
Casa de Máquinas de Força - Penitenciária do Ahú - 1909 - Curitiba - PR
230
Batalhão da Guarda - Penitenciária do Ahú - 1909 - Curitiba - PR
Casa dos Funcionários - Penitenciária do Ahú - 1909 - Curitiba - PR
Vista Lateral - Penitenciária do Ahú - 1909 – Curitiba - PR
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