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trajetória ultramarina, demonstra que não havia em si motivações revolucionárias,
mas, tão somente o desejo de conseguir meios para retornar a Portugal:
Curtos passos dera Manuel da Bouça quando topou um homem
morto, estendido sobre a folhagem pardacenta e jorrando sangue
pela boca. “De onde diabo conhecia aquele tipo? Dali... Seria dos
Grandes Armazéns Paulistas?”
Baixou-se a examinar melhor. “Já o tinha visto antes da revolução,
isso é que tinha!”
Era um rosto trigueiro, longo e ossudo, de grandes narinas e pele
carimbada pelas bexigas. Os olhos, nublados, estavam abertos, fixos
na ramagem do arvoredo.
Manuel da Bouça afastou-se, mas, alguns metros além, retrocedeu,
por curiosidade. “Quem seria?” Demorou-se a contemplar o cadáver,
enquanto forçava a memória. Reparou, então que o morto possuía
jóias: dois anéis na mão esquerda, um quase oculto pelo sangue que
envolvia os dedos, e uma corrente sobre o colete. “Quem seria?” Eu
conheço esta cara de alguma parte...” E partiu a matutar, os pés
ruge-ruge sobre as folhas, a carabina atirada ao ombro, em atitude
de marcha. Próximo do muro, parou novamente. Idéias vagas,
hipóteses, farrapos de decisões andavam-lhe no cérebro, andavam
lentamente, como nuvens que ocultassem o sol, sem lhe apagar,
porém, o fulgor. E metendo-se entre tudo aquilo, agora
esmorecendo, logo avivando-se, a sua aldeia. Ela e os seus
panoramas, os seus campos, os seus habitantes, a sua fascinação.
Surgia e desaparecia entre aquelas nébulas, mas deixava o peso
enorme da saudade. “Quem seria? “Muito pobre não era, pois tinha
bons anéis e corrente...”. Olhou em seu redor, cauteloso. Ninguém!
Todos os revolucionários já haviam saltado o muro e agora os tiros
soavam ao longe. O parque estava em silêncio, abandonando-se
lassamente ao lusco-fusco, como se nada se tivesse passado ali,
como se nada se tivesse passando.
Nos olhos do meditativo continuava a projectar-se, esbatida,
transparente, a terra distante, lá longe, num recanto ignoto de
Portugal. “E eram precisos dois anos para tornar!”.
Agora, evocava o armazém, o seu quarto, o chefe das expedições,
os sacos e os caixotes – a vida de todos os dias. “E ao fim de dois
anos iria com as mãos a abanar, pois, do dinheiro que juntasse,
pouco havia de sobejar da passagem e do resto”.
A possibilidade de imediato regresso ia-se tornando mais nítida, cada
vez mais nítida e alvoroçante. E era já fogo interior, a subir, a abrasá-
lo. “Para que ficar mais tempo? Para quê? Para trabalhar sem
nenhum futuro? Se ele fizesse aquilo, quem o saberia?”
Volveu-se para o lado onde estava o cadáver. A sombra da noite
apossava-se dele, ampliando-lhe o vulto, desvanecendo o vermelho
do sangue que caíra da boca para os ombros.
Manuel da Bouça previvia a sua partida para Santos, o embarque, a
visita à aldeia, o corte da existência que levava. “Ao morto tanto se
lhe dá... Se outros hão-de ficar com elas...” E repetia, verrumando os
escrúpulos: “Ao morto tanto se lhe dá...”.