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GABRIEL DE OLIVEIRA RODRIGUES
CORPOS EM EVIDÊNCIA
Uma perspectiva sobre os ensaios fotográficos de ‘G Magazine’
SÃO PAULO
2007
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GABRIEL DE OLIVEIRA RODRIGUES
CORPOS EM EVIDÊNCIA
Uma perspectiva sobre os ensaios fotográficos de ‘G Magazine’
Dissertação apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Ciências
da Comunicação, área de concentração
de Estudos dos Meios e da Produção
Midiática, sob orientação da Profa. Dra.
Dulcilia Helena Schroeder Buitoni.
SÃO PAULO
2007
2
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GABRIEL DE OLIVEIRA RODRIGUES
CORPOS EM EVIDÊNCIA
Uma perspectiva sobre os ensaios fotográficos de ‘G Magazine’
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profa. Dra. DULCILIA HELENA SCHROEDER BUITONI
orientadora
Departamento de Jornalismo e Editoração
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
_______________________________________
________________________________________
3
Dedico este trabalho
àqueles que acreditam no respeito pelas diferenças características do ser humano,
praticando-o;
àqueles que são diferentes por gostarem dos iguais e têm consciência que esta
diferença não os torna piores nem melhores que ninguém;
àqueles que, de alguma forma, se empenham pela construção de uma
sociedade menos injusta para com grupos sociais minoritários;
a todos que, em diferentes momentos, contribuíram para a conclusão deste
trabalho;
a todos que me são caros, que são pedaços de mim, que sempre me ajudam a
trilhar meu caminho, que me servem de inspiração.
4
São muitas pessoas a agradecer, pois a elaboração deste trabalho contou
com a colaboração de conhecidos, amigos e pessoas que, de uma forma
ou de outra, se interessaram pelo desenvolvimento do assunto.
Na fase da elaboração da idéia, agradeço ao Prof. Dr. Roberto Boaventura,
co-responsável pelo nascimento do projeto.
A Marcio Zaguetti e Clélia Rejane,
pelo incentivo de trazer o projeto para São Paulo.
A Joaquim Antonio, pelo encaminhamento inicial do projeto.
À Profa. Dra. Maria do Socorro Nóbrega,
pela acolhida na ECA e pelo imprescindível auxílio na adaptação do projeto.
A meus mestres na USP:
Profa. Dra. Jeanne Marie Machado de Freitas
e Profa. Dra. Mayra Rodrigues Gomes,
cujos conhecimentos foram indispensáveis para a construção deste.
A Eduardo Gorck, pelo auxílio inicial dos recursos técnicos.
A Denise Veiga, Kenedy Bezerra e Rosa Goldgrub,
pelas perenes palavras de apoio.
E em especial, às três pessoas que acompanharam
e nunca desacreditaram da capacidade deste trabalho:
Minha orientadora, Profa. Dra. Dulcilia Helena Schroeder Buitoni,
pelo sempre solícito atendimento.
Profa. Dra. Rosana de Lima Soares,
que estabeleceu meu contato na ECA
e cujos conhecimentos ministrados foram de suma importância.
E Ana Maria Fadigas,
diretora responsável de
G Magazine
,
que sempre apoiou a minha iniciativa.
Grato a todos pelo apoio.
5
“A mais bela de todas as conquistas
é quando os fracos e desencorajados levantam suas cabeças
e deixam de crer na força de seus opressores”.
Bertold Brecht,
teatrólogo e escritor alemão.
6
RESUMO:
Este trabalho propõe uma visão sobre as fotografias publicadas por
G Magazine
,
revista brasileira voltada para o público gay. A perspectiva é identificar o discurso
estruturado na linguagem de ‘corpos-signos’ do nu masculino. A partir de
conceitos sobre a comunicação na contemporaneidade, noções de sexualidade
apresentadas por Foucault, Freud e Lacan, e de imagem e fotografia para Dubois,
Barthes e Peirce, estabeleceremos o paralelo entre os registros lacanianos e as
categorias peirceanas. A disposição anatômica dos corpos-signos constrói um
discurso conservador sobre a posição do masculino no sistema, concedendo a este
o lugar do exercício e manifestação de poder.
PALAVRAS-CHAVE
G Magazine, mídia segmentada, linguagem, sexualidade, corpo-signo, fotografia.
ABSTRACT:
This paper proposes a view on the photography published by
G Magazine,
a
Brazilian magazine focused on the gay public. The perspective is to identify the
discourse built on the language of naked male ‘body-signs’. Based on concepts
about the contemporary communication, notions on sexuality stated by Foucault,
Freud and Lacan, and on image and photography by Dubois, Barthes and Peirce,
we establish a parallel between Lacan’s registers and Peirce’s categories. The
anatomic disposition of the body-signs constructs a conservative discourse on
system’s male position, providing the main role of practice and manifestation of
power.
KEY-WORDS
G Magazine, segmented media, language, sexuality, body-sign, photography.
7
SUMÁRIO
PRIMEIRAS PALAVRAS 09
CAPÍTULO I – DO CONTEXTO 13
Um mosaico social 14
A cultura das mídias 18
A mídia e o sujeito fragmentado 21
Um perfil de
G Magazine
27
Um olhar sobre
G Magazine
33
CAPÍTULO II – DA SEXUALIDADE 41
Alguns aspectos acerca da sexualidade 42
Uma revista repleta de prazeres proibidos 45
Um público-alvo
outsider
49
A busca pelo falo faltante 52
Os três registros de Lacan 56
A instituição imaginária da sociedade 68
CAPÍTULO III – DAS IMAGENS 72
A estrutura do discurso 73
O sexo como discurso 80
A linguagem fotográfica 86
As fotografias em
G Magazine
90
A linguagem do sexo: um
corpus
de corpos 96
O nu masculino como linguagem 104
Um discurso de poder 109
A sociedade do espetáculo 115
O poder do masculino 127
CAPÍTULO IV – DAS CATEGORIAS E DOS REGISTROS 136
As convergências entre Peirce e Lacan 137
O símbolo semiótico e o registro simbólico 143
O índice semiótico e o registro imaginário 146
O ícone semiótico e o registro do Real 150
Um gozo no Real 154
ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES 163
Um jeito diferente de dizer a mesma coisa 164
Considerações finais 171
LISTA DE FIGURAS 174
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 175
8
PRIMEIRAS PALAVRAS
A idéia para realização deste trabalho nasceu de uma descontraída conversa
acerca de um antigo projeto de Mestrado que elaborei, que tinha como base a
análise do discurso de uma importante figura política nacional, especialmente da
metamorfose semântica pela qual este discurso passou ao longo de pouco mais de
uma década. Notando minha pouca excitação ao discorrer sobre o tema, foi-me
sugerido que eu trabalhasse com um assunto menos sisudo. À época, como eu
prestava serviços para a
G Magazine,
surgiu jocosamente a idéia de eu analisar as
fotografias de homens nus publicadas pela revista.
Mais tarde, encarando o assunto de forma séria, nasceu um projeto de
Mestrado abraçado pela USP. Ao longo dos últimos três anos foram horas de
estudos, leituras e pesquisas, e o resultado de todo esse trabalho está
apresentado nas páginas que seguem.
O texto visa a estabelecer um paralelo entre a linguagem utilizada pela
G
Magazine,
revista brasileira mensal volta para o público homossexual masculino e
cujo carro-chefe são os ensaios fotográficos de homens nus, e o discurso
estabelecido quanto à posição do masculino no sistema.
9
A primeira parte do estudo introduz uma análise geral da conjuntura que
constrói o contexto onde estão inseridos o veículo que será analisado, bem como
todo o processo de comunicação envolvido. É ponto importante neste momento a
construção da cultura e do sujeito na sociedade contemporânea. Será discutido o
comportamento da mídia perante este mundo globalizado habitado por indivíduos
fragmentados.
Após uma visão geral deste quadro, introduzimos nosso objeto de estudo
a
G Magazine
neste mosaico, e refletiremos sobre o comportamento do veículo
para com a linguagem do que chamaremos de ‘corpos-signos’ em relação ao seu
público-alvo, bem como a importância da espetacularização na sociedade de hoje.
Faz-se mister, então, compreender de que forma o corpo-signo fotográfico
é representativo de um discurso. Para tanto, na segunda parte do estudo são
examinadas noções do papel que a sexualidade (carro-chefe do sentido atribuído à
representação em
G Magazine
) vem a (ou pode) desempenhar no imaginário do
público-leitor. O corpo-signo é manipulado imageticamente visando a atingir o
imaginário do receptor no que concerne a esta faceta: a sexualidade.
Nesta parte do trabalho, serão analisadas questões da sexualidade humana
a partir de fundamentos psicanalíticos, especialmente chamando a atenção a
conceitos e questões comportamentais. Os processos de funcionamento da
10
sexualidade, tais como a atuação da pulsão sexual, da libido e o papel do fetiche
no imaginário do individuo, auxiliarão no entendimento da construção de um
discurso baseado na exposição do corpo
.
A terceira parte tem enfoque no estudo da linguagem. Partiremos das
noções gerais de discurso para, logo após, concentrarmo-nos no discurso do sexo.
Mais adiante, consideraremos peculiaridades sobre a linguagem da fotografia,
contando com o apoio de teóricos do assunto. A sociedade do espetáculo, ainda,
será relevante para este ponto.
Em seguida, um recorte mais específico da linguagem fotográfica utilizada
por
G Magazine,
com a análise do material fotográfico da revista, publicado entre
os anos de 2001 e 2004, a exploração de um discurso cujo
corpus
é o corpo, e o
nu masculino como meio de representação de um discurso de poder e de
espetacularização também serão assuntos abordados à luz de teóricos da área.
Reflexões acerca da linguagem utilizada por
G Magazine
em suas páginas
buscarão uma interpretação geral do discurso estabelecido pelos ensaios
fotográficos publicados pela revista.
Especialmente no que se refere à representação do sexo na sociedade
contemporânea e seu reflexo no comportamento do indivíduo, reflexões acerca de
11
um
homem sem gravidade
em busca de um
gozo a qualquer preço
virão ao
encontro da proposta apresentada.
A última parte do texto exibe considerações a respeito da aplicação dos
parâmetros apresentados ao longo do trabalho. A aproximação entre campos
teóricos discutidos ao longo do estudo será de grande valia neste momento.
Como fechamento do trabalho, seguir-se-ão considerações finais acerca do
posicionamento discursivo de
G Magazine
, identificado pela análise das seqüências
imagéticas que compõem os ensaios fotográficos da publicação, do conteúdo
adquirido pelos corpos-signos exibidos nas páginas da revista e disseminados
junto ao público-leitor.
12
CAPÍTULO I
DO CONTEXTO
13
Um mosaico social.
O texto que segue tem por objetivo abrir um espaço para considerações
sobre representações na mídia na contemporaneidade, face a uma sociedade
globalizada constituída de sujeitos fragmentados. Estes pressupostos são retirados
do ambiente pós-moderno nos estudos de Humanidades. Este trabalho pretende
examinar mais cuidadosamente imagens fotografias publicadas por uma
revista mensal impressa voltada a um público específico, desde a forma como a
linguagem se apresenta até o discurso sustentado por esta linguagem no veículo.
Estudiosos de hoje, especialmente do campo das Humanidades, defendem
uma visão de sociedade contemporânea, “pós-moderna”, estruturada a partir de
uma divisão do contingente humano em grupos de afinidades, formadores de um
verdadeiro mosaico de indivíduos de um todo social culturalmente fragmentado.
As peças deste mosaico estabelecem a identidade cultural do grupo a partir da
ênfase em um traço semelhante entre si e na diferença deste com relação aos
demais segmentos sociais, definindo caracteres delineadores a serem aderidos por
aqueles que integram o grupo.
Como na representação de um mosaico, estes segmentos fragmentados co-
existem, encaixando-se e compondo um mesmo espaço físico quadro observado
especialmente hoje, representado nas ‘tribos urbanas’ que convivem nas grandes
metrópoles. Esta perspectiva sobre a sociedade vai diretamente de encontro à
14
divisão por classes, conforme teoria explanada por Karl Marx e Friedrich Engels em
meados do século XIX, especialmente no Manifesto Comunista (1848).
Jesús Martín-Barbero menciona uma “teoria da sociedade-massa”, que veio
à luz dos intelectuais entre as décadas de 1930/40, mas o autor salienta que esta
expressão se fazia presente no vocabulário de analistas sociais desde os
meados do século XIX (MARTÍN-BARBERO 2003:55-6). Luiz Gonzaga Motta nos
ajuda a entender melhor como este processo funciona, estabelecendo que a
organização de nossa sociedade dá-se na perspectiva da existência de núcleos
sociais formados por pessoas com interesses comuns. Segundo o autor,
“a divisão entre classe dominante e classe dominada
não corresponde mais às intrincadas relações de
produção. O rápido processo de urbanização (...) e,
especialmente, o processo de globalização da
economia criaram novas instâncias de representação
e tornaram as sociedades contemporâneas uma teia
de inter-relacionamentos flutuantes” (MOTTA
2002:14).
Assim, cada indivíduo não mais estaria preso unicamente a uma classe, mas
manteria relacionamentos flutuantes com diversos grupos, podendo fazer parte de
diferentes destes núcleos mencionados por Motta, de acordo com sua interação
como sujeito com o meio social. Alguns poucos exemplos poderiam ser ligações
com grupos defensores de fundamentos étnicos, político-partidários, comunitários,
15
religiosos, esportivos, de orientação sexual, um número sem-fim de fragmentações
sociais... Um indivíduo pode socialmente tomar parte em vários destes segmentos.
Estes grupos naturalmente vão lutar por sua liberdade e autonomia culturais,
buscando na unidade ideológica a base para defender seu espaço e criando,
assim, verdadeiras ‘marcas registradas’ que os diferenciam dos demais fragmentos
sociais.
O indivíduo, por poder compor mais de um destes grupos, acaba por se
fragmentar, constituído de facetas identificadoras e apresentando traços distintivos
de todos os grupos aos quais pertence. É esta uma das principais características
do sujeito fragmentado e multifacetado, que veio à luz pelo advento da chamada
pós-modernidade, esboçado na vertente dos Estudos Culturais e tão verbalizado
por estudiosos como Stuart Hall, dentre outros.
Para este sujeito pós-moderno, fragmentado e multifacetado, torna-se
fundamental o estabelecimento de um processo de identificação com um (ou mais)
segmento(s) do coletivo social, ao(s) qual(is) ele se associará e do(s) qual(is) será
representante no mosaico. Para o segmento social, é importante fixar suas raízes
culturais diferenciadoras dos demais grupos, para posterior identificação dos
indivíduos com a ideologia, para que o sujeito se sinta mais convicto e seguro e
encontre sua posição dentro do grande mosaico como um integrante daquele
grupo específico.
16
Segundo Marilia Scalzo (2003), os leitores costumam manter uma relação
quase passional com suas revistas favoritas. Não é à toa que gostem de andar
com elas debaixo do braço, como se fossem uma espécie de emblema ou sinal de
identificação. Muito do fascínio deste tipo de publicação vem justamente da
capacidade que ele tem de construir fortes laços de empatia com seu público.
Marília Scalzo discute o jornalismo de revista, as técnicas de construção de
um texto mais arejado, específico ao gênero, e chama atenção para os elementos
básicos da esmerada linguagem visual, tão característica do produto. Neste ponto,
a fotografia toma importância especial como linguagem de forte apelo imagético.
17
A cultura das mídias.
É importante salientar a idéia que Luiz Gonzaga Motta traz à tona,
enfatizando que a teia de inter-relacionamentos flutuantes que se tornou a
sociedade de hoje cria novas instâncias de representação para se comunicar. Esta
citação vai ao encontro do que Lucia Santaella chama de cultura das mídias. Em
artigo, a autora coloca esta cultura das mídias como um estágio transitório entre a
moribunda cultura de massas e a ascendente cultura digital alavancada pela era
da informática. Santaella assenta que a cultura das mídias “não se confunde nem
com a cultura de massas, de um lado, nem com a cultura virtual ou cibercultura de
outro. É, isto sim, uma cultura intermediária, situada entre ambas” (SANTAELLA
2003a:24). A principal característica deste estágio intermediário foi efetuar o papel
de transição gradual entre a cultura das massas e a virtual, refletindo diretamente
esta transição nos processos comunicacionais de produção, distribuição e consumo
de material das mídias.
A teia social de inter-relacionamentos, desta forma, aproveita-se desta
cultura das mídias para estabelecer a comunicação entre os indivíduos, não por
trazer à tona um novo meio de comunicação, mas sim uma nova forma, um novo
processo de codificação de mensagem, estabelecendo uma linguagem, até então
atípica, para a construção de um discurso voltado para um consumo cada vez mais
específico, cada vez menos massificado. O mosaico social, assim, se mantém como
sistema humano, com aglomerados distintos ocupando posições e desempenhando
18
funções específicas para o andamento da sociedade. A comunicação desta era
virtual, ajustando-se a esta conjuntura social ‘pós-moderna’, será produzida e
distribuída visando mais ao consumo de um fragmento do mosaico específico,
direcionada para o modus vivendi do grupo, e menos focada na lógica de um
coletivo massificado.
Ainda segundo Santaella, não é o meio o principal agente de modificação
cultural, mas, antes, são
“os tipos de signos que circulam nesses meios, os
tipos de mensagens e processos de comunicação que
neles se engendram os verdadeiros responsáveis não
por moldar o pensamento e a sensibilidade dos
seres humanos, mas também por propiciar o
surgimento de novos ambientes sócio-culturais”
(Idem; grifo meu).
Assim, Santaella enfatiza no signo utilizado para se comunicar a verdadeira mola
mestra das metamorfoses culturais refletidas na mídia, enfocando a questão da
determinação da linguagem como fator central à comunicação e à cultura. Não é a
forma física de passagem da mensagem que estabelece a cultura, mas sim o
conteúdo desta mensagem veiculada o principal agente de mudanças neste
movimento humano.
Então, aqueles grupos sociais emaranhados na teia social contemporânea
aproveitam-se deste processo desencadeado pelo advento da cultura das mídias
19
para se comunicarem utilizando-se de linguagem específica. o uso de signos
com peso significante ímpar, peculiar no mosaico determinado por variantes sócio-
culturais identificadoras do grupo.
20
A mídia e o sujeito fragmentado.
A voracidade da vigente economia neoliberal, capitalista e globalizada, não
permitiria que esta forte tendência de mercado da comunicação direcionada a
grupos peculiares fosse menosprezada. Com isto, vemos emergir um novo campo,
bastante atraente e frutífero aos interesses da lucratividade: a informação voltada
a grupos sociais.
Refletindo sobre as funções das mídias, Motta cita que “a política não é a
única instância de ação da imprensa. Ela desempenha igualmente funções
econômicas, especialmente comerciais, quando estimula, por meio de seus
anúncios, o consumo de bens” (MOTTA 2002:15). Comumente na sociedade
ocidental, calcada na cultura da exposição (em especial na imagem), as mídias
desempenham um papel-chave na disseminação de uma idéia. Isso se em
decorrência das características facilitadoras de largo alcance, instantaneidade no
processo de comunicação e visibilidade que a maioria dos veículos podem oferecer
na atualidade, atrativos indispensáveis para se produzir uma boa propaganda, que
atinja seu público-alvo consumidor com rapidez e eficiência.
O estímulo ao consumo é forte e lucrativa tendência das mídias, que
interferem diretamente no estilo de vida da sociedade. Para Motta, a mídia “tem
um papel cultural na medida em que veicula e consolida hábitos, costumes,
gostos” (Idem). Em uma sociedade-mosaico, a vida socialmente fragmentada é
21
exibida, dentre outras formas, pela veiculação de propaganda direcionada a
hábitos, costumes e gostos peculiares, apresentando bens de consumo
direcionados a públicos bastante específicos, consolidando aspectos sócio-culturais
modeladores e utilizando uma linguagem com a qual o grupo-alvo se identifica.
Assim, uma das formas utilizadas pelos grupos de afinidades sócio-culturais,
no sentido de enraizar e fortalecer o tom de uniformidade de seu caráter cultural
com relação a outros grupos, dá-se através da produção e veiculação de mídia
informativa específica cujos mentores e mantenedores usualmente são figuras
atuantes dos próprios grupos –, por meio da qual se estrutura um elo de
comunicação entre cada parte do todo. Por meio deste processo, propagandeia-se
a ideologia identificadora do fragmento. As mídias cumprirão, desta forma, um
papel de legitimadoras de vários aspectos, desde comportamentais até de
tendências de consumo. Estes grupos sociais não serão responsáveis pela criação
de novos meios de comunicação, mas, antes, do estabelecimento de uma
linguagem uma cadeia de significantes utilizada por estes meios com público-
alvo específico identificadora do perfil cultural que caracteriza e serve de
caracterizador do grupo, diferenciando-o dos demais que compõem a complexa e
fragmentada sociedade pós-moderna.
Atualmente, esta tendência de mercado encontra vários exemplos notáveis.
Programas de TV com ‘pastores-apresentadores’ evangelizando fiéis à distância,
22
servindo como protagonistas em uma espécie de ‘espetáculo televisivo da fé’. Em
horário matinal, apresentadoras ensinam receitas culinárias e dão dicas para
tornar o cotidiano doméstico mais prático, estas em um cenário estruturado para
reproduzir o ambiente de um lar pequeno-burguês ideal. Atrações nestes moldes
têm se tornado cada vez mais numerosas nas grades das TVs abertas.
Na mídia impressa o fenômeno não é diferente. Seguindo uma tendência
que teve seu início ainda no século XIX, fez prosperar no século XX e parece
manter o mesmo direcionamento nesta primeira década do século XXI, pode-se
constatar hoje um número sem fim de publicações voltadas a grupos sociais
específicos. Estes veículos tratarão de assuntos delimitados por um campo
semiótico preciso que serve de identificador do fragmento social. Exemplos
contemporâneos são as revistas voltadas a admiradores e curiosos (tais como
Placar para o esporte, Set para o cinema, Caras para a vida privada dos famosos),
a profissionais (Info para a área da informática, Exame para os economistas) e
para etnias e faixas etárias (Raça Brasil para os negros, Capricho para as
adolescentes), bem como uma série de outros temas de interesse dos mais
variados segmentos da complexa sociedade ‘pós-moderna’.
Motta salienta que
“a mídia passou a ser a instituição política e
ideologicamente mais notável da sociedade,
suplantando outros poderes (...) e superando
23
instituições poderosas, como a igreja e a escola, na
produção e disseminação das ideologias,
condicionando tudo à lógica midiática” (MOTTA
2002:16).
O poder da mídia na contemporaneidade é indiscutível, tornando-se esta
referencial de credibilidade maior que instituições milenares, profundamente
arraigadas na sociedade. A imprensa passa a cumprir o papel de criadora e
disseminadora de conhecimentos, ferramenta essencial para o nascimento e
manutenção de qualquer sistema sígnico no mundo de hoje, mecanismo
indispensável para a manutenção de diferenças culturais entre os grupos que
compõem o mosaico social.
Tomaz Tadeu da Silva organizou em livro uma série de ensaios que servem
de introdução aos estudos do comportamento na contemporaneidade, por alguns
chamada a era da pós-modernidade, sob uma ampla definição da hoje vertente
dos Estudos Culturais. Em um destes ensaios, Richard Johnson (2000) esclarece
como se na prática, de forma generalizada, o processo desencadeado pela
imprensa como disseminadora, como ferramenta para legitimação de um sistema
sígnico. Citando uma revista voltada ao público adolescente feminino, Johnson
explica que este veículo “recolhe e representa alguns elementos das culturas
privadas da feminilidade através das quais as jovens vivem suas vidas”. Após o
recolhimento e o recorte da pauta, que se encaixará nos direcionamentos
24
ideológicos do público-alvo, trabalha-se todo esse conjunto de informações e tem-
se como resultado nas bancas a revista,
“um material bruto para milhares de leitoras-garotas
que produzem suas próprias re-apropriações dos
elementos que foram, anteriormente, tomados de
empréstimo de sua cultura vivida e de suas formas
de subjetividade” (JOHNSON 2000:47-8).
Este ‘material bruto’ trazido a público pela revista pretende compreender o
modus vivendi, os traços identificadores do sistema de coisas que auxilia o
indivíduo (no caso, a adolescente) na composição de sua cultura privada, do seu
dia-a-dia, através do que o autor chama de ‘re-apropriação’ do que fora recolhido
sobre seus interesses. Haverá, naturalmente um processo de identificação do
indivíduo com o discurso do grupo representado no veículo, encaixando este
indivíduo no mosaico social, convencendo-o de que ele é parte daquele conjunto.
Neste momento, o poder de manipulação daqueles que controlam a comunicação
torna-se evidente, e este será mais bem observado analisando-se os tons do
discurso de cada veículo.
Toda essa mídia utilizar-se-á de linguagem voltada à defesa da cultura
específica do seu público-alvo, constituindo-se num reflexo codificado do
imaginário representativo de um coletivo social, enfocando as questões dos
costumes, gostos e hábitos de consumo. Desta forma, o veículo constitui-se em
molde identificador/formador de características e comportamentos do indivíduo,
25
recolhendo da cultura cotidiana privada deste traços pessoais um material bruto
para ser decodificado e publicado. O produto final pretende ser o reflexo do
sistema de coisas que compõe o cotidiano cultural do grupo social representado
por aquela mídia, devidamente trabalhado para atingir objetivos específicos.
A fragmentação expressa na linguagem utilizada em determinados veículos
é tão marcante que a razão de ser da publicação parece ser a satisfação do gosto
do leitor. Esta nova tendência determina uma audiência mais selecionada,
descaracterizando o clássico modelo de comunicação de massa, baseado no envio
de um número limitado de mensagens a uma audiência homogênea.
A multiplicação do conteúdo das mensagens torna a audiência mais seletiva
e, ao mesmo tempo, selecionada pelo veículo. A audiência selecionada tende a
escolher as mensagens com as quais culturalmente se identifica, aprofundando a
sua fragmentação como grupo do mosaico e intensificando tanto o relacionamento
do grupo social entre si pelo desenvolvimento do natural processo de
identificação –, como o diálogo entre emissor e receptor. Com este fenômeno, a
mídia especificamente voltada a um público-alvo culturalmente diferenciado e
delineado por um campo de interesses identificador do segmento na sociedade é
fato cada vez mais comum na produção e veiculação de material na área da
comunicação. Dentre os vários exemplos desta mídia segmentada temos a G
Magazine.
26
Um perfil de G Magazine.
A Fractal Edições Ltda., sediada na cidade de São Paulo, publica material
voltado basicamente ao público homossexual masculino em formato de portal
eletrônico (G on-line) e revista impressa com periodicidade mensal (G Magazine),
utilizando-se de linguagem específica, identificadora do segmento em questão.
Nota-se nestes casos aquele mesmo processo mencionado por Richard Johnson,
anteriormente abordado em linhas gerais neste trabalho, de recolhimento e
recorte de pauta focada nos aspectos culturais do fragmento social, trabalhando
todo um conjunto de informações.
Destes dois produtos da editora, em especial a G Magazine tornou-se um
dos mais conhecidos empreendimentos no ramo de mídia impressa para público
específico deste país, concentrada no mercado de publicações voltadas ao
homossexual masculino. A revista é editada ininterruptamente desde outubro de
1997, tendo sempre como manchete uma chamada de capa cujo foco está
centrado em um ensaio fotográfico que exibe o nu masculino de geralmente
um protagonista.
Em entrevista exclusiva concedida em julho de 2005 para elaboração deste
trabalho, a jornalista Ana Maria Fadigas, diretora responsável pela revista, salienta
que “a G, acima de qualquer polêmica, trata de assuntos de interesse do
segmento gay”, indicando o conteúdo geral da publicação.
27
O veículo atualmente é publicado contendo 100 páginas. As edições são
compostas por dois ensaios fotográficos (um principal chamado “capa”, o outro
intercalado com os temas “desejo”, “fetiche” e “lolito”), protagonizados por
homens que se desnudam frente às câmeras, ocupando aproximadamente 15
páginas seguidas cada. O ensaio principal compõe o foco da capa da revista desde
a sua primeira edição, contendo uma fotografia do protagonista e a chamada
principal com o nome e alguma informação pertinente ao modelo e/ou ao ensaio.
Outras chamadas, por vezes acompanhadas de imagens em segundo plano,
chamam menor atenção a outras matérias contidas naquela edição.
O carro-chefe de G Magazine é, sem dúvida, o material fotográfico. Mas,
além dos ensaios, os números da publicação contêm um editorial assinado pela
diretora responsável, páginas dedicadas a colunas (social, médica, jurídica, de
aconselhamentos), matérias de comportamento e reportagens especiais que
versam sobre temas variados (de moda a saúde, de direitos civis a turismo, de
produtos e serviços a culinária), mas todos têm em comum o fato de serem foco
de interesse de um público-alvo, o homossexual masculino.
Como exemplo, na edição 76 (janeiro de 2004) foram veiculadas matérias
como Aos seus pés!, que trata de cuidados específicos para a saúde dos pés com
dicas de dermatologistas e centros de estética; Quem tem medo de Dorian Grey?,
utilizando-se de paralelo com uma obra de Oscar Wilde para tratar do
28
envelhecimento entre os gays; uma entrevista com a atriz Grace Gianoukas
intitulada Insana, de terça, quarta, quinta..., na qual a atriz fala de seus
espetáculos teatrais e de como encara o público gay; uma reportagem sobre
Gerentes de saunas, narrando histórias passadas por profissionais que gerenciam
este tipo de estabelecimento voltado especificamente para o público gay; e a
matéria de turismo Hot trip to Belo Horizonte, com sugestões de roteiros para
gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, contando além das belezas da cidade,
programas noturnos voltados a este público.
Além deste conteúdo, a revista também publica páginas exclusivas de
material publicitário, geralmente de empresas ou profissionais que prestam
serviços voltados às necessidades do segmento específico de leitores. Importante
citar neste aspecto o amplo predomínio numérico das propagandas de serviços
ligados diretamente à sexualidade, como lançamentos e comércio de filmes
eróticos, anúncios de estabelecimentos como saunas masculinas, cinemas
pornográficos e agências de namoro e de prostituição atuantes em várias capitais
e grandes cidades do interior do país.
Interessante, neste ponto, salientar que o pacote recebido em casa pelos
assinantes de G Magazine com a edição mensal não contém absolutamente
nenhum indício do seu conteúdo: é um pacote plástico escuro no formato da
revista, com uma etiqueta com o nome e endereço do destinatário e uma caixa
29
postal como identificador do remetente. O ‘prazer proibido’ contido ali é escondido
do coletivo, protegendo o sujeito-leitor da cobrança social de qualquer ônus pela
manifestação do instinto. Ao contrário, nas bancas as edições são expostas
usualmente nas prateleiras mais altas, lugar comum de publicações de conteúdo
não-indicado a menores de idade –, cobertas apenas por um invólucro plástico
transparente.
A equipe responsável pela produção da revista é enxuta, se comparada a
outras redações de veículos de maior porte no Brasil. Os últimos números de 2004
trazem a jornalista Ana Maria Fadigas como diretora responsávelsituação que se
mantém até o momento de elaboração deste trabalho. Ao todo, na sede da
revista, na região do Brooklin, em São Paulo, trabalham cerca de 20 pessoas entre
editores, assistentes e produtores. À época, o editor-chefe era Jayme Camargo,
pai, o editor era Sergio Miguez, editor especial de casting Klifit Pugini, editor de
arte Fabiano Spadari, assistente de arte Angélica Pinheiro, e Gláucia Terazzi como
produtora editorial, dentre outros.
A lista de colaboradores da revista pessoas que fazem reportagens ou
mantêm colunas, mas que não necessariamente desempenham suas funções junto
à redação alcançava 30 nomes. Dentre estes, alguns que usualmente aparecem
na mídia, como o psicólogo e terapeuta Klecius Borges, a transformista Nany
People, o colunista social David Brazil e o escritor João Silvério Trevisan.
30
Os fotógrafos, profissionais responsáveis pelos enquadramentos e por todas
as técnicas de cristalização de uma imagem, são parte importante da equipe.
Colaboradores como Alessandra Levtchenko, Batista Lima, Moises Pazianotto,
Robert Gomes e Victor Almeida foram destaque na produção das seqüências
imagéticas entre 2001 e 2004. Neste cerne, especialmente o Bauer Studio destaca-
se particularmente: em disparado responde pela maioria dos ensaios fotográficos
publicados durante este período. No currículo do estúdio constam vários trabalhos
publicitários, além de imagens que estamparam, por exemplo, a capa de
revistas de renome como Veja.
31
G 84, capa.
Capa da edição 84 de G Magazine, datada de setembro de 2004.
Os números deste mês usualmente são festivos,
pois comemoram o aniversário da publicação. Na capa
em questão, edição comemorativa do sétimo ano da revista.
32
Um olhar sobre G Magazine.
A abertura de espaço na mídia para visibilidade do segmento homossexual,
bem como para discussão de vários temas relacionados ao modus vivendi gay
contemporâneo e sua interação com o meio social, sem dúvida, tem se
intensificado nos últimos tempos. Um fator que influenciou tal visibilidade foram as
discussões desencadeadas nos últimos anos junto à população, especialmente pela
inserção de personagens homossexuais na teledramaturgia brasileira, alguns
inclusive representando na ficção a vivência de relacionamentos homo-afetivos.
Como é sabido, no Brasil as telenovelas são um poderoso aspecto cultural
formador de opinião, e tais inserções da questão homossexual nas tramas levou a
discussão sobre o assunto a grande parte dos lares do país. G Magazine
desempenha papel importante para o aumento desta visibilidade aqui no Brasil.
Desta forma, ao observarmos a revista, podemos perceber a existência do
processo mencionado por Richard Johnson na elaboração do material que chega
aos consumidores. O veículo inicia seu trabalho coletando dados, ‘apropriando-se’
de formas privadas da cultura, especialmente traços relativos à sexualidade deste
grupo, recorta e codifica estes traços da cultura identificadora do fragmento social
e os representa num espaço que cumpre o papel de mídia informativa destinada a
um definido grupo de leitores.
33
A G Magazine conseguiu levar às bancas como protagonistas de seus
ensaios pessoas do mundo do espetáculo, que possuem um determinado grau de
visibilidade junto ao grande público e, o mais importante, junto ao segmento
especialmente atendido pela revista como público-leitor. foram estampados
ensaios de personalidades do mundo artístico (atores, cantores, dançarinos), bem
como atletas (jogadores de vôlei, de futebol, corredores) e figuras que
esporadicamente conquistam certa exposição junto ao grande público
(especialmente participantes ou concorrentes de quadros ou ‘reality shows’ em
programas de TV).
No mês de setembro de 2006, a revista alcança a sua edição de número
108, completando seu nono aniversário. É notório, na trajetória desta revista, que
a grande maioria dos ensaios fotográficos traz como protagonistas homens com
características que expressam uma certa linearidade físico-comportamental.
Por exemplo, em 2004 as 12 edições de G Magazine estamparam em suas
capas 13 protagonistas (a edição de outubro conta com dois protagonistas no
ensaio principal), sendo destes 11 brancos e dois negros. Destes 13 modelos, dois
terços estão na faixa etária abaixo dos 30 anos, nove alcançaram (ou mantiveram)
a imagem conhecida na mira do grande público por intermédio de participações,
nos últimos anos, na programação das grades de horário veiculadas pela TV
aberta mais especificamente em horários considerados nobres. Todos são
34
praticantes freqüentes de algum tipo de atividade física, principal responsável pela
manutenção de corpos considerados ‘modelos’ pelo padrão físico contemporâneo
de beleza. Este molde firma-se notadamente nos últimos anos.
Conforme reconhecido por Ana Maria Fadigas, a necessidade de um
“famoso” protagonizando o ensaio de capa das edições é crucial para o sucesso do
produto. Em nossa entrevista, ela salienta que um marco na história da G
Magazine foi a edição 10 (agosto de 1998), cujo ensaio principal teve como
modelo Matheus Carrieri, um ator que participou de produções artísticas em
especial na dramaturgia – de grandes redes de televisão do Brasil.
Os números anteriores, segundo a diretora, não estampavam homens de
maior renome junto ao mundo do espetáculo. Até hoje, “as vendas da revista são
fortemente impulsionadas pela presença de um ‘famoso’ na capa”, salienta Ana
Maria, que enfatiza: “As edições com negros geralmente caem no número de
vendas. menos ofertas de negros e mais velhos. Quando sai do ‘núcleo’,
metem o pau”.
Este “núcleo” corresponde ao perfil anatômico largamente predominante
dos protagonistas dos ensaios da revista homens com menos de 30 anos,
brancos, olhos e/ou cabelos claros –, que não corresponde ao estereótipo físico da
miscigenação étnica com profundas raízes em povos negros e índios, além dos
35
brancos europeus, característica do Brasil. Tal comportamento, a priori, indica o
estabelecimento de um perfil étnico-etário como dominante ou preferido. Estes
protagonistas olham diretamente para o espectador ao longo do ensaio.
Este conjunto de informações parece indicar um perfil linear básico de
indivíduo apto a ocupar o lugar de modelo de capa da G Magazine. Segundo uma
avaliação preliminar, além dos preceitos físicos acima citados, a estrutura física
robusta e delineada e uma recente exposição pública da imagem em programas
populares de televisão parecem diferenciais para a escolha de um protagonista de
ensaio fotográfico na revista.
Esta é a linguagem mais vastamente utilizada no carro-chefe da revista: o
ensaio fotográfico de capa. Esta linearidade de linguagem, expressa por uma certa
constância no arquétipo dos corpos-signos exibidos nas seqüências fotográficas,
legitima-se como fatores culturais identificadores do que seria o gosto geral do
segmento.
O diferencial de ‘famosos’ na capa, citado por Ana Maria Fadigas, é uma via
de mão-dupla. dados importantes sobre a ligação entre a mídia e as pessoas
do mundo do espetáculo, bem como sobre a necessidade de exposição freqüente
da figura destas pessoas junto aos veículos da mídia.
36
Pepe Baeza afirma que grande parte dos personagens do espetáculo
midiático acaba por utilizar alguns veículos como extensão de sua área
profissional, dando cabo da necessidade de manutenção constante de sua imagem
na mídia. Também segundo Baeza, os veículos que cumprem tal papel fazem parte
de um ramo da imprensa que se constitui de “publicaciones especializadas en las
que lo de menos es el rigor en la valoración crítica, y lo de más la creación y
explotación de mitos” (BAEZA 2001:107).
Tal criação e exploração de mitos mencionada pelo autor é positiva para
ambos os envolvidos: para o personagem-mito, criando e mantendo estereótipos
e, principalmente, a imagem em evidência; e para o veículo, especializado em
trabalhar com o imaginário social. O processo de mitificação em torno de alguns
signos é parte integrante da cultura do fragmento. Estes ‘mitos’ criados e/ou
mantidos pela linguagem da mídia são verdadeiros referenciais culturais
constituintes da identidade do público, firmados pelo posicionamento do signo
dentro do sistema de representação apresentado pela mídia.
As seqüências de corpos masculinos nus são os signos escolhidos pela
publicação para estabelecer culturalmente sua principal comunicação junto ao seu
público-alvo: é a linguagem que a revista utiliza para se aproximar do seu público.
37
Aplicando-se as idéias de Lucia Santaella sobre a cultura das mídias, a G
Magazine não se destaca por se constituir em um meio inovador, mas pela
utilização de um discurso imagético especificamente direcionado a um público. A
utilização desta linguagem, com todas as suas características representativas,
estrutura o tom discursivo deste veículo, o qual se pretende reflexo cultural do
grupo homossexual masculino brasileiro contemporâneo, tornando-se, na prática,
um exemplo do processo esclarecido por Santaella.
A capa de todas as edições de G Magazine estampa a expressão “conteúdo
erótico”. Refletindo leituras a respeito da fotografia e de seu conteúdo, o presente
trabalho fará algumas considerações a este respeito.
Para efeito de classificação do conteúdo das fotografias da revista,
basearemo-nos nas análises de alguns teóricos da imagem e da fotografia.
Reflexões de Roland Barthes em A câmara clara auxiliarão a estabelecermos a
fronteira de classificação de fotografias com teor sexual.
Os ensaios fotográficos de G Magazine exibem homens em nu explícito,
frontal e com ereção. A aplicação da divisão proposta por Barthes, bem como
análises de Arlindo Machado acerca do assunto, possibilitarão uma perspectiva de
enquadramento de conteúdo sobre nosso objeto de estudo.
38
Surgem, assim, questões angulares: O discurso de G Magazine pode ser
considerado transgressor? Que mensagem passa G Magazine? Quais os conceitos
agregados a suas formas de expressão?
Para alcançarmos nossos objetivos, trilharemos um caminho de
interpretação de imagens publicadas pela revista. Sobre a base da análise das
fotografias poder-se-ão aplicar reflexões sobre sexualidade, buscando
compreender de que forma mecanismos presentes na estrutura do
comportamento humano atuam para a elaboração do direcionamento expresso
pela linguagem presente no veículo, compondo o discurso imagético da revista.
O trabalho parte da análise de fotografias que fazem parte de seqüências
de ensaios da G Magazine a partir de sua edição de número 40, datada de janeiro
de 2001, até a edição 87, publicada em dezembro de 2004. Este período dos
quatro primeiros anos do século XXI parece suficiente para exibir neste estudo um
quadro bastante atualizado da forma como a revista codifica e publica seu
conteúdo. As edições do número 01 ao 39 (que comportam o período entre
outubro de 1997 e dezembro de 2000), bem como as posteriores de dezembro de
2004, não serão analisadas neste estudo.
Tal recorte fez-se necessário no intuito de refletir nas páginas deste texto
um quadro mais atualizado possível. A visibilidade do segmento homossexual no
39
mundo ocidental tem-se intensificado especialmente nos últimos anos. Aqui no
Brasil, uma conjuntura de acontecimentos colaborou para o aumento deste
processo. O fato de a Prefeitura do Município de São Paulo ter colocado no seu
calendário oficial de eventos a anual Parada do Orgulho Gay, que em 2006 foi pelo
terceiro ano consecutivo considerada oficialmente a maior do mundo, é prova da
importância político-financeira que o público homossexual tem conquistado.
A G Magazine segue este mesmo crescimento acelerado de visibilidade nos
últimos anos. Inclusive, durante um determinado período, como resultado de uma
parceria da editora com um poderoso grupo de televisão, as edições da revista
eram promovidas pelo comparecimento dos protagonistas dos ensaios de capa em
um dos mais populares programas de auditório do Brasil. A melhoria do
acabamento do produto final publicado pode ser facilmente observada, por
exemplo, na qualidade superior da produção do material que chega às bancas.
Desde a impressão, passando pela quantidade de páginas até a qualidade das
fotografias, a revista apresenta um desenvolvimento notável com relação as suas
primeiras edições.
Os resultados deste trabalho poderão contribuir com futuras pesquisas nas
áreas de Antropologia, Sociologia, Filosofia da Linguagem, bem como de Economia
e Marketing, e principalmente no aprimoramento dos estudos sobre as formas de
Comunicação na sociedade contemporânea.
40
CAPÍTULO II
DA SEXUALIDADE
41
Alguns aspectos acerca da sexualidade.
A capa de todas as edições de
G Magazine
estampa a expressão “conteúdo
erótico”, alertando o leitor sobre o teor do conteúdo da revista, especialmente dos
ensaios fotográficos por ela publicados. As seqüências de fotografias com homens
posando nus, entregando seus corpos à contemplação, são marca registrada do
veículo, que sempre as expõe como manchete e, portanto, estas configuram-se na
parte mais importante de toda a edição.
Na contemporaneidade, o sexo é elemento de valorização de mercadorias,
servindo de forte chamariz para o imaginário do grande público. Posto que a
G
Magazine
é revista cujo carro-chefe é a publicação de material com teor sexual
visando à manifestação de prazeres, torna-se angular que tenhamos bases
norteadoras sobre a sexualidade que possam nos auxiliar durante a análise da
linguagem utilizada pelo veículo.
Para Jacques Lacan, importante pensador francês do século XX, os
caracteres de distinção sexual dados pela Biologia (o masculino e o feminino) são
todos secundários, tendo o corpo a simples função de reproduzir pelo
reconhecimento do semelhante. Para Lacan, humanamente um órgão que
marca uma diferença (hífen pênis). Uns o têm (presença), outros não o têm
(ausência). O positivo e o negativo não significam suficiência ou carência, são
42
apenas marcadores de diferenças. A libido é responsável pela ligação da pulsão
sexual com o inconsciente, onde a relação dos sexos é representada.
De acordo com Laplanche e Pontalis, em seu
Vocabulário da Psicanálise
,
para Sigmund Freud a pulsão é o processo dinâmico que consiste numa pressão
ou força que faz o organismo tender para um objetivo. A pulsão sempre tem sua
fonte numa excitação corporal (estado de tensão), e sua meta é suprimir o estado
de tensão que reina na fonte pulsional. Tal meta será atingida no objeto, ou
graças a ele (LAPLANCHE & PONTALIS 1995:394-404).
Dentre as pulsões a pulsão sexual, que é uma pressão interna que atua
num campo muito mais vasto que as atividades sexuais. Sua força-motriz é a
libido, suas metas são variáveis, mais especialmente ligadas ao funcionamento das
zonas erógenas, e seu objeto é escolhido em função das vicissitudes da história do
sujeito.
Desta forma, cada sujeito naturalmente sofre tensões que o impõem a
escolha de um objeto para suprimir a pressão interna. Em um estado de excitação
corporal do indivíduo, a libido responde ao contato com o objeto e cria uma
demanda a ser suprida. Este objeto não é padronizado, sendo escolhido a partir da
sucessão instável de imprevisibilidades da vida do sujeito.
43
Assim, no que se refere a todo o vasto campo das práticas e das
preferências sexuais de cada indivíduo, muitos autores diriam que não bases
psíquicas para se instaurar coletivamente um padrão de comportamento. Cada
indivíduo, com base nas vicissitudes da sua história, naturalmente tenderá a um
objeto para suprimir sua tensão. Lacan declara que
“a relação sexual fica entregue ao aleatório do
campo do Outro. Fica entregue às explicações que se
lhe dêem. Fica entregue à velha de quem se precisa
não é uma fábula para que Daphnis aprenda
como se tem que fazer para fazer amor” (LACAN
1998:188).
A moral social vigente, com raízes na religiosidade judaico-cristã, barra o
sujeito de sentir determinados prazeres, em especial ligados ao sexo. Práticas
sexuais que não visem à reprodução são condenadas como ‘desnaturais’. O agente
principal desta condenação são doutrinas religiosas conservadoras, que
geralmente classifica os atos sexuais que visam ao prazer como pecaminosos.
Na contrapartida desta moral, o sujeito em meio à civilização continua
sentindo a tensão que o leva a uma demanda, e procura formas de suprimir a
pressão exercida. Então, a própria sociedade encontrou uma solução para este
problema e adaptou meios para que o sujeito possa manifestar os prazeres
proibidos sem ter de responder pela infração ao código moral.
G Magazine
cumpre
papel importante neste processo.
44
Uma revista repleta de prazeres proibidos.
Em
O mal-estar na civilização
, Sigmund Freud examina, dentre outras
coisas, as formas como prazeres barrados pela moral social são desfrutados pelo
sujeito, mesmo que de formas um tanto mascaradas. O homem, então civilizado
por eclipsar instintos impostos pelo tabu (lei), priva seu ego de externar
determinadas formas de prazer, condenáveis aos olhos da moral social,
especialmente a judaico-cristã vigente na sociedade ocidental.
Com uma vida na qual os instintos devem permanecer ocultos, aliada à
consciência da morte e à trajetória de sofrimento imposta pelo viver, dificilmente o
homem produziria felicidade. Assim, a busca pela felicidade transforma-se no
objetivo para o viver. Por intermédio desta constante procura, ao homem permite-
se, em meio à civilização, demonstrar somente aquelas felicidades aprovadas
socialmente.
Mas, os instintos primitivos continuam latentes e desejados, no entanto,
não podem ser apresentados com a mesma intensidade com que são produzidos.
O superego a consciência tem o papel de punir tais manifestações, punindo
também o simples desejo de manifestar alguns prazeres. Estes permanecem
pulsantes no sujeito.
45
Este sujeito, castrado, privado de seus instintivos sentimentos, busca
subterfúgios para suprir as demandas barradas. Hoje, este papel vem sendo
desempenhado principalmente pelos meios de comunicação, possibilitando ao
sujeito partido inclusive a manifestação de prazer, ainda que não completamente.
A utilização da mídia para manifestação dos prazeres tem sido um caminho
viável para a construção discursiva que visa a integrar o sujeito a seu meio social
sem que lhe sejam impostas diretamente as morais civilizantes. Através do
aprimoramento constante do conhecimento das necessidades de consumo do
sujeito, a mídia produz um discurso sempre pronto e presente para amenizar os
sofrimentos cotidianos.
O prazer sexual, sem dúvida, entra no jogo de manipulação da mídia,
visando à satisfação da demanda de prazeres barrados do indivíduo. Tendo em
vista o rígido código moral judaico-cristão com relação ao assunto, a sociedade
ocidental contemporânea encontra na contemplação midiática um meio de
manifestação de prazeres, não sendo diretamente imposta ao sujeito
contemplador os ônus de tal manifestação.
Neste processo de contemplação prazerosa como meio de suprir demandas
barradas pela lei inclui-se a
G Magazine,
mídia propagadora de ‘imagens
proibidas’, como objeto por intermédio do qual o sujeito castrado poderá
46
manifestar prazeres a ele barrados. A revista torna-se a mola propulsora, a ignição
que dará partida ao processo de manifestação de um prazer sexual socialmente
marcado como fora do padrão moral estabelecido. Este mesmo mecanismo
funciona nas revistas que publicam o nu feminino.
O prazer sexual advindo do consumo contemplativo dos ensaios fotográficos
publicados pelo veículo poderá ser manifestado sem um ônus social ao sujeito. A
publicação, embebida em significação de profundo teor sexual, está diretamente
voltada a atingir sua meta, ligada ao funcionamento das zonas erógenas do
sujeito-leitor.
47
G 84, p. 30-1
Ensaio de capa intitulado
Prazeres Proibidos,
inspirado no filme
‘De olhos bem fechados’, de Stanley Kubrick:
G Magazine
visando
à satisfação da demanda por prazeres barrados pela moral social, a contemplação
midiática torna-se meio de manifestação de prazeres,
não sendo imposto ao sujeito contemplador o ônus de tal manifestação.
48
Um público-alvo
outsider
.
A demanda pela manifestação de prazeres socialmente proibidos é inerente
ao ser humano. O suprimento desta demanda usualmente reflete em um
comportamento barrado pela moral civilizante, de preceitos judaico-cristãos em
nossa sociedade ocidental. No caso do grupo homossexual, a vivência da sua
própria sexualidade os caracteriza como uma minoria em meio a uma cultura
centrada no discurso da prática da heterossexualidade. Neste sentido, o segmento
gay ocupa socialmente uma posição paralela à dos ‘outsiders’ analisados por
Norbert Elias.
Mencionando o exemplo específico da comunidade britânica de Winston
Parva onde havia uma divisão entre as famílias que algumas gerações
povoavam o local e ditavam as regras do sistema (os estabelecidos) e os
forasteiros que se chegavam à comunidade como novos habitantes (os outsiders)
–, o autor analisa, sob a luz da dicotomia marxista opressores-oprimidos, uma
série de relações estabelecidas socialmente naquele povoado, observáveis no
cotidiano de qualquer comunidade ocidental dos dias de hoje.
Elias enfatiza a distância mantida entre os grupos em Winston Parva, pois
“o grupo estabelecido atribuía a seus membros características humanas
superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social não
profissional” (ELIAS 2000:20). A utilização de signos em determinados contextos
49
servia de controle social por parte dos estabelecidos, estigmatizando e
marginalizando os outsiders.
Para aplicação neste estudo, os estabelecidos (a maioria heterossexual de
componentes da sociedade) impõem marcas aos outsiders (a minoria
homossexual), utilizando-se de várias armas no exercício deste processo, dentre
elas a linguagem. A criação e fixação, no imaginário social, de figuras e situações
estereotipadas para representar o segmento homossexual perante a sociedade
(algumas delas reforçadas pela própria
G Magazine,
como analisaremos adiante
neste estudo) colaboram para a manutenção do diferencial entre os segmentos e,
portanto, das posições distintas por eles ocupadas no sistema. A utilização destes
estereótipos de forma pejorativa, especialmente quando o tom do discurso envolve
o humor crítico não-construtivo e a freqüente exposição deste molde pela mídia ao
público de massa, enraízam na sociedade o comportamento depreciativo para com
o grupo homossexual.
Elias afirma que a capacidade de manipular a rede simbólica construída pelo
discurso, com todas as suas representações, a quem a possuir o poder de
legitimar uma ideologia perante o coletivo e, por conseqüência, ditar as regras de
toda uma sociedade. Tal amplo poder de manipulação está usualmente a serviço
do poder (dos) estabelecido(s).
50
O uso da ‘fofoca elogiosa’ ou da ‘fofoca depreciativa’ por parte dos
estabelecidos serve como meio de controle social, este ditado pelo discurso. “A
estigmatização (...) associa-se a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo
grupo estabelecido” (ibid., p. 35), fantasia esta inserida no imaginário social.
Tendo como referencial a estrutura social vigente, a
G Magazine
configura-
se, desta forma, em mídia que ocupa uma posição duplamente desfavorecida no
sistema: por veicular conteúdo socialmente barrado, um dos prazeres proibidos
pelo código de conduta vigente, e por ser um veículo cujo público-alvo é
constituído por indivíduos
outsiders,
componentes de uma parcela minoritária da
sociedade, os homossexuais.
51
A busca pelo falo faltante.
A necessidade intrínseca ao ser humano de sentir prazer em meio aos
sofrimentos impostos pela existência impõe a este uma noção incômoda de
incapacidade, de incompletude, de falta. Deste sentimento de falta, caracterizador
de um sujeito partido, surge a busca por algo que faça o humano sentir-se
completo, satisfazendo sua demanda por felicidade.
Em seus
Escritos,
Jacques Lacan elaborou sua teoria de que o sujeito,
determinado pela linguagem, começa no lugar do Outro. O sujeito partido é,
assim, caracterizado pela falta que seria suprida pelo Outro.
Este sujeito falto iniciará uma busca pela completude, busca esta instaurada
pela linguagem. O que dá movimento à busca (ou, sentido à vida) é a procura pelo
falo, que jamais será encontrado. Isso se configura na promessa da posse do falo
faltante, que sublimaria a inteireza absoluta, a felicidade completa. Tendo em vista
que o falo permanecerá faltante durante toda a vida do sujeito, a promessa jamais
será cumprida para o sujeito, pois ninguém consegue obter o suprimento desta
demanda, e isso mantém todos os humanos na permanente busca pela felicidade.
Compreender esta procura do sujeito pelo falo faltante é de extrema
importância para se entender, segundo Lacan, como funciona a sexualidade. Em
Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise,
o teórico traça um paralelo
52
antagônico deste sujeito partido na eterna busca pelo falo com a ameba, no que
diz respeito à reprodução.
Segundo o autor, a reprodução não-sexuada da ameba concede a este ser
uma condição de imortalidade: ela não necessita de um Outro para manter-se
viva, para sentir-se completa, neste sentido apresentando uma característica de
auto-suficiência. Tal imortalidade é subtraída do homem pelo fato de ele ser
submetido ao ciclo da reprodução sexuada, necessitando do Outro para se
reproduzir. A ‘lâmina’, que simbolicamente corta esta sensação de inteireza pela
perda devida à passagem do homem pelo ciclo sexual, é a libido: esta força que
leva o sujeito a procurar a satisfação da sua demanda pelo Outro.
Um dos papéis de
G Magazine
é aguçar a necessidade de suprimento pela
demanda causada pela falta do falo. Pretendendo ocupar um papel de detentora
do falo, a revista disponibilizaria uma nuance da posse deste. Ao mesmo tempo
que instiga a necessidade do suprimento por atiçar a libido dos leitores, a revista
provê um vislumbre da posse do falo por meio da exibição dos prazeres proibidos.
Ana Maria Fadigas, jornalista e diretora responsável pela
G Magazine,
concedeu uma entrevista exclusiva especialmente para elaboração deste trabalho.
Na ocasião, ela assumiu a dificuldade de trabalhar com o nu masculino no início da
produção da revista. “Eu tinha medo do ‘pinto’, tive de criar coragem para olhar
53
para ele”, enfatizou, referindo-se especialmente à exibição do pênis, lugar-comum
em todos os ensaios fotográficos da revista.
Por meio de uma não rara identificação errônea do pênis com o falo,
Ana Maria, falando do papel da revista junto ao seu público-alvo, é enfática ao
declarar: “O falo é de vocês!”. O pênis, confundido com o falo faltante ao
indivíduo, é colocado como uma dádiva da qual
G Magazine
ilusoriamente
pretende-se possuidora e distribuidora entre seus leitores, atiçando a sua
necessidade da busca pelo falo e suprindo sua demanda pela manifestação
barrada de prazeres.
Como pretensa ‘detentora do falo’, a revista poderia oferecê-lo aos sujeitos
partidos que por ele buscam, tornando-se disseminadora de prazeres proibidos,
mecanismo por meio do qual leitores manifestariam seus desejos barrados
socialmente.
G Magazine
desencadearia nestes indivíduos o processo de
manifestação de instintos sexuais moralmente reprováveis, reforçando a promessa
da completude (nunca) atingida pela (impossível) posse do falo. Esta pseudo-
característica permite uma aproximação de
G Magazine
com a idéia de fetiche.
O termo ‘fetiche’ é empregado por diversas áreas. Emprestado da
antropologia, nas ciências do comportamento ele designa um substituto mágico do
falo faltante. Segundo David Zimerman, em seu
Vocabulário contemporâneo de
54
Psicanálise,
o fetiche para Freud era “uma perversão sexual caracterizada pelo fato
de uma parte do corpo (...) ou um objeto exterior (...) serem tomados como
objetos exclusivos de uma excitação ou prática perversa de atos sexuais”
(ZIMERMAN 2001:149).
Importante salientar que estes objetos são ‘tomados como exclusivos de
uma excitação’, ou seja, cumprem o papel de atiçar a libido do sujeito que
identifica nele um meio de reprimir a sua tensão. No processo de significação
desencadeado pelo sujeito, os objetos tomam significações essencialmente sexuais
e, uma vez atiçados pela libido, causam no organismo do indivíduo uma reação de
excitação.
É pelo consumo do material, é pela admiração dos corpos nus nas
seqüências fotográficas estampadas nas páginas da revista que o sujeito poderá
manifestar seu prazer. O contato visual com a revista, respondendo
momentaneamente à demanda da manifestação de prazer incitada pela libido, faz
de
G Magazine
um fetiche sexual para o sujeito que apresenta esta reação, por ser
um objeto inanimado por meio do qual um fetichista manifesta seu prazer, supre
sua demanda dotando-o de significação sexual.
55
Os três registros de Lacan.
Segundo Jacques Lacan, a libido é a responsável pela ligação da pulsão
sexual com o inconsciente, fazendo com que a sexualidade torne-se parte da vida
psíquica do sujeito. Assim, para continuarmos analisando a
G Magazine,
cujos
ensaios fotográficos expressam conteúdo de teor sexual, faz-se necessário
pesquisar como o autor estrutura o psiquismo humano.
A clínica lacaniana, herdeira de Freud, pressupõe um sujeito psicanalítico
longe de ser uma entidade concatenada e central, como um homúnculo dentro da
cabeça. O sujeito em Lacan é dividido entre um significante e outro, o que o torna
eternamente partido. Este sujeito faltante seguirá a eterna busca pelo Outro (a
grande alteridade), estruturando sua existência psíquica em três instâncias, quais
são o Real, o Simbólico e o Imaginário.
O entendimento da tricotomia psíquica segundo Lacan é de suma
importância para a comunicação, que este processo, que obrigatoriamente se
por meio da linguagem (eixo do registro simbólico), pressupõe o envolvimento
de toda uma estrutura social (de ordem imaginária) pré-existente ao ato
comunicativo, tendo em vista que a utilização dos signos passa por uma
legitimação coletiva de suas representações, de ordem simbólica.
56
Os corpos estampados nas páginas de
G Magazine
estão legitimados
coletivamente no imaginário social como linguagem que representa
simbolicamente um perfil mais geralmente difundido para um segmento específico:
o público gay.
Em 1953, Jacques Lacan faz uma conferência intitulada ‘O Real, o Simbólico
e o Imaginário’, ocasião na qual o psicanalista apresentou publicamente as três
instâncias do registro psíquico. Em recente artigo, Oscar Angel Cesarotto discorreu
sobre a estrutura psíquica lacaniana. Para Cesarotto, “os três registros estão
presentes desde o início do ensino de Lacan, até suas últimas intervenções”,
salientando a importância basilar desta estrutura (CESAROTTO 2005:26).
Começando pelas noções do Imaginário, esta instância desempenhou um
papel essencial na constituição do pensamento de Lacan, o que levou alguns a
definirem toda sua obra pela maneira como o francês se posicionava perante o
Imaginário. No seu Seminário XXII (
RSI
, de 1974-5), Lacan afasta qualquer idéia
de fases, acentuando a natureza combinatória da estrutura por ele apresentada.
No seu artigo, Cesarotto explica que
“o
imaginário
inclui duas acepções. Por
um lado, quer dizer falso e, por este viés,
aponta à ilusão de autonomia da
consciência. Por outro lado, tem a ver
57
diretamente com as representações e as
imagens, as matérias-primas das
identificações” (Idem, p. 25).
A instância do Imaginário acaba sendo o lugar do Eu por excelência, com
seus efeitos de ilusão e engodo. O Eu é uma construção imaginária. Isto o
caracteriza em sua precariedade, num contínuo processo de identificações parciais
(a construção do Eu; a antecipação de uma forma global de corpo pela captação
da imagem do outro, matriz imaginária do Eu).
Na teoria freudiana, o Imaginário lacaniano corresponde ao plano do
narcisismo. É o momento fundamental da cristalização da imagem do corpo,
instalando a matriz do ego no psiquismo. Fora disso, o humano somente existe
porque fala. Sobre este aspecto, Lucia Santaella enfatiza que
“o imaginário é basicamente o registro psíquico
correspondente ao ego (ao eu) do sujeito, cujo
investimento libidinal foi denominado por Freud de
Narcisismo. O eu é como Narciso: ama a si mesmo,
ama a imagem de si mesmo... que ele no outro.
Essa imagem que ele projetou no outro e no mundo
é a fonte do amor, da paixão, do desejo de
reconhecimento, mas também da agressividade e da
competição” (SANTAELLA 1999:83).
Lacan constituiu a idéia de que o fato de o sujeito identificar-se com a
imagem especular de um outro é “constitutiva do eu (
moi
) no homem, e que o
58
desenvolvimento do ser humano está escondido por identificações ideais” (Idem,
p. 84). Segundo Santaella, este processo de identificações se chama ‘alienação
imaginária’: é um desenvolvimento no qual o imaginário está inscrito, e não um
simples desenvolvimento fisiológico.
O reconhecimento da identidade do eu dá-se através de uma imagem
especular em um jogo paradoxal que oscila entre eu e o outro (o bebê que
reconhece sua imagem no espelho ao mesmo tempo a si mesmo, mas
também um outro). Para o francês Jacques Aumont (1992),
“en el sentido corriente de la palabra, lo imaginario es el
patrimonio de la
imaginación
, entendida como facultad
creativa, productora de imágenes interiores
eventualmente exteriorizadas. Prácticamente, es el
sinónimo de ‘ficticio’, de ‘inventado’, y opuesto a lo real
(incluso, as veces, a lo realista). En este sentido banal, la
imagen representativa hace ver un mundo imaginario, una
diégesis
” (AUMONT 1992:125).
O Imaginário é visão de mundo, é construção de uma leitura sobre o
mundo por meio de imagens mentais que, inclusive, são determinantes para o
processo de identidade do sujeito. Tendo a imagem do corpo como modelo, o
Imaginário corresponde a sínteses ilusórias, à criação de totalidades perfeitas,
mantendo intocadas todas as diferenças reais.
59
Ao mesmo tempo senhor e servo do Imaginário, “o ego se projeta nas
imagens em que se espelha: imaginário da natureza, do corpo, das relações
sociais”, salienta Santaella (1999). Enfim, o registro Imaginário seria
“uma mônada
[na filosofia leibnizianista, átomo
inextenso, imaterial, indivisível e eterno, com
atividade espiritual]
que se alimenta da miragem do
outro, uma miragem na iminência da dissipação e da
perda. Ser eu, sendo, ao mesmo tempo, o outro, é
idílico mas também mortífero, pois um dos pólos
dessa pretensa unidade está sempre à beira do
desaparecimento” (Idem).
Como imagem, o Imaginário recobre a totalidade do mundo, isto é, duplica-
o, funcionando como uma espécie de filtro. Se o Imaginário fosse azul, por
exemplo, o mundo seria totalmente azul. Deste ponto de vista, qualquer visão da
realidade é puramente imaginária.
É neste Imaginário que a fotografia, uma imagem sintética, será
representada, sendo duplicada de acordo com o filtro e criando uma interpretação
idealizada, uma visão subjetiva da realidade. Sob a atuação da libido, o corpo
fotografado e publicado por
G Magazine
é visualmente consumido pelo sujeito que
o representa no Imaginário de forma ilusória. Este sujeito identifica-se com a
interpretação idealizada da imagem. O ego, na busca por si mesmo, por sua
60
identidade, acredita encontrar-se no espelho das criaturas para se perder naquilo
que ele não é.
A leitura subjetiva da realidade no Imaginário cria as ilusórias totalidades
perfeitas, como a interpretação do corpo fotografado. De posse desta ilusão, o
sujeito faltante sente-se momentaneamente de posse do falo que lhe conferiria
completude, processo que apenas ocorre na instância do Imaginário.
Visto de fora, temos um mundo volátil e volúvel; visto do olhar daquele que
está preso no seu imaginário, temos uma totalidade rotunda e fechada sobre si
própria. Nesta última perspectiva, cada imagem torna-se única, e constituindo uma
totalidade, impede qualquer ligação real aos outros sujeitos e ao próprio mundo.
Segundo Lacan, cabe à instância do Simbólico a tarefa de abalar este
caráter delirante, por ser o princípio da exterioridade (que ele metaforiza como
significante, estruturado em torno da lei, constituindo um mundo ordenado e
regrado, estruturando a realidade de maneira objetiva).
Mencionando este outro elemento da tricotomia psíquica lacaniana,
Cesarotto declara que
“o registro do simbólico tem, na linguagem, sua
expressão mais concreta, regendo o sujeito do
inconsciente. Ela é a causa e o efeito da cultura,
61
onde a lei da palavra interdita o incesto e nos torna
completamente diferentes dos animais”
(CESAROTTO 2005:25).
Em Lacan, o Simbólico indica um retorno a Freud à luz de questões
retiradas das interpretações de estudos lingüísticos de Ferdinand de Saussure e
antropológicos de Claude Lévi-Strauss. Nos trabalhos freudianos, a importância
deste registro pode ser notada nos textos que ilustram o funcionamento do
inconsciente, como nas reflexões acerca do Complexo de Édipo, que a ‘função
do pai’ está ligada a essa instância.
Lucia Santaella explica que
“o registro simbólico é o lugar do código fundamental
da linguagem. Ele é lei, estrutura regulada sem a
qual não haveria cultura. Lacan chama isso de
grande Outro. O Outro, grafado com maiúscula, foi
adotado para mostrar que a relação entre o sujeito e
o grande Outro é diferente da relação com o outro
recíproco e simétrico ao eu imaginário” (SANTAELLA
1999:84).
Assim, o grande Outro, em todos os sentidos, é lei, mediação, estrutura
regulada e reguladora que prescreve o sujeito, impondo-lhe a falta, barreira
representada pela linguagem. O sujeito existe por intermédio da linguagem, uma
existência que tem de ser comprovada simbolicamente pelo uso da linguagem. O
62
Simbólico parece corresponder à fixação histórica do especular: tudo devém
imagem através dele.
O Simbólico confunde-se com a matriciação do existente, como ocorre, por
exemplo, pela linguagem, que pode ser descrita como uma matriz. O Simbólico
tenta regular, dar ‘ordem’ ao caos, tentando posicionar todo e cada signo em um
determinado lugar na rede de significação.
O Simbólico é demonstrado comumente pela linguagem. Formada por
signos, a linguagem tem o papel de codificar conceitos de referenciais em um
sistema organizado, concedendo a cada signo uma posição a ocupar e/ou uma
função a desempenhar em uma dada realidade. Por isso, é a partir desta instância
que as sociedades constroem suas culturas, representando idéias por intermédio
de signos e posicionando-os numa rede complexa e organizada que tenta ordenar
todas as coisas, atribuindo a estas seus respectivos valores.
É esta instância psíquica a responsável por posicionar o conteúdo das
fotografias publicadas por
G Magazine
em um local específico da rede de
significantes. Este posicionamento simbólico concede às imagens ali representadas
valores que atuarão no Imaginário do sujeito-leitor, que delas fará uma
interpretação ilusória. A atuação da libido no sujeito será determinante para a
reação que este apresentará quando exposto à imagem, tendo em vista o teor
63
sexual do conteúdo das fotografias em questão. A fotografia, como linguagem, é
de natureza simbólica e, de acordo com a leitura ilusória do Imaginário do leitor,
poderá suprir a demanda deste pela demonstração de prazer.
Se o Real é a totalidade intotalizável, e o Imaginário é a totalidade ilusória e
da ilusão, o Simbólico é o espaço onde este afrontamento ocorre, o espaço de
mediação. Ele é da ordem da totalidade, que captura através do simulacro, que se
desconhece enquanto tal. O Simbólico é a mediação estruturada entre os
devaneios do Imaginário e a espontaneidade selvagem do Real.
Segundo Lacan, o Real é o impossível, o acidental, a interpelação
permanente. Dado o seu caráter perturbador, tanto o Imaginário como o Simbólico
são formas de evitá-lo, seja por falsa reconciliação imaginária, ou por cristalização
numa rede institucional simbólica.
Fechando o ciclo tricotômico de Lacan, Cesarotto explica a instância do Real
que, segundo este,
“como terceira dimensão, é sempre aludido pela
negativa: seria aquilo que, carecendo de sentido,
não pode ser simbolizado, nem integrado
imaginariamente. Aquém ou além de qualquer limite,
seria incontrolável e fora de cogitação” (CESAROTTO
2005:25).
64
Pertence à instância do Real tudo aquilo que não é representável, que não
se exprime por intermédio de qualquer signo. O Real é o impossível, aquilo que a
linguagem deixa escapar (não suporta) na representação.
Lucia Santaella descreve que
“o registro psíquico do real não deve ser confundido
com a noção corrente de realidade. Para Lacan, o
real é aquilo que sobra como resto do imaginário e
que o simbólico é incapaz de capturar. O real é o
impossível, aquilo que não pode ser simbolizado e
que permanece impenetrável ao sujeito do desejo
para quem a realidade tem natureza fantasmática.
Diante do real, o imaginário tergiversa e o simbólico
tropeça. Real é aquilo que falta na ordem simbólica,
os restos que não podem ser eliminados em toda
articulação do significante, aquilo que pode ser
aproximado, jamais capturado” (SANTAELLA
1999:85).
Tudo depende, portanto, da instância do Real, que é sempre um limite da
simbolização, da representação. Nota-se a sua presença pelo fato de algo falhar
no Simbólico, enquanto que no Imaginário tudo funciona, menos a vida, que é
lesada brutalmente. O Real é composto por tudo aquilo de que o Imaginário tenta
esquivar-se, tenta procurar subterfúgios à fuga do seu idealismo, ao mesmo
tempo em que é composto também por tudo aquilo de que o Simbólico não
65
conta de representar, que foge à possibilidade de uma simbolização por
intermédio da linguagem.
O Real é a realidade psíquica, que engloba as fantasias do sujeito. É a base
pulsional do ‘id’ freudiano, sobre a qual se organiza todo o aparelho psíquico; a
força que foge da idealização imaginária, bem como da ordenação simbólica. O
Real é a categoria da pulsão sexual, que leva o sujeito a possuir uma demanda a
ser suprida. Todos os instintos primitivos que o sujeito deve manter latentes no
meio civilizado são desta ordem. O estado de tensão que leva o indivíduo, por
exemplo, a contemplar as seqüências fotográficas de
G Magazine
reina nesta
instância.
Cada um dos elementos do psiquismo lacaniano faz circular os outros dois,
não podendo reduzir nenhum deles. É isso mesmo que explica o papel positivo do
Imaginário nas teorias vulgares, pois constitui uma falha, ou um buraco, no seio
do Simbólico. Enquanto campo do desdobramento narcísico, das imagens,
fantasmas e semelhanças, o Simbólico forma um horizonte de espelhamento do
Real.
Os três registros lacanianos interferem diretamente no processo de
representação de qualquer signo, pois a posição deste na rede simbólica e sua
leitura imaginária dependem diretamente do funcionamento da estrutura psíquica
66
do sujeito. Da pulsão sexual, passando pelo desejo até a manifestação dos
prazeres proibidos, o caminho percorrido passa pelas três instâncias de Lacan.
Mais adiante, um paralelo entre os três registros psicanalíticos lacanianos e
as três categorias semióticas peirceanas, sugerido por Lucia Santaella, permitirão
uma aproximação da linguagem fotográfica de
G Magazine
do processo psíquico
de interpretação de signos. Este paralelo poderá nos auxiliar na compreensão de
como elementos intrínsecos ao sujeito, neste caso a sexualidade do público-alvo
do veículo, podem influenciar na interpretação de uma linguagem, bem como o
discurso por ela representado.
67
A instituição imaginária da sociedade.
Tratando-se de discurso na mídia, a importância de se conhecer como
funciona a estrutura coletiva do Imaginário no social é de extremo valor, tendo em
vista a necessidade da manipulação desta esfera para reforço de uma ideologia.
Cornelius Castoriadis, em sua obra intitulada
A instituição imaginária da
sociedade
, discorre sobre as evidências de como os sistemas de organização
humana de natureza social, cultural ou religiosa somente podem ser
entendidos a partir da relação entre a ordem simbólica e o Imaginário. O autor
destaca a fundamental importância do Imaginário na compreensão dos fenômenos
sociais, mostrando como tentativas de entendimento da realidade empreendidas
por diversas correntes filosóficas de pensamento não se sustentaram, pois todas,
de alguma forma, desprezaram o “componente imaginário de todo símbolo e de
todo simbolismo em qualquer nível que se situem” (CASTORIADIS 1986:154).
Castoriadis explica que o Simbólico e o Imaginário têm profundas relações
entre si, que “o imaginário deve utilizar o simbólico não apenas para exprimir-
se, mas para ‘existir’, para passar de virtual a qualquer outra coisa”.
Inversamente, “o simbólico também pressupõe a capacidade imaginária, para ver
em uma coisa o que ela não é, de vê-la diferente do que é” (idem).
68
O autor salienta que é no Imaginário que uma sociedade procura o
complemento necessário para sua ordem, uma vez que no núcleo deste
Imaginário é que se encontra um sentido que não é ditado por fatores reais
porque, antes disso, é esse Imaginário que confere a esses fatores reais tal
importância e tal lugar no universo, ou seja, suas representações. Estes conjuntos
de representações que vão se articulando – como se fossem uma rede – têm como
efeito a construção da realidade em que vivemos, formando uma rede simbólica e,
ao mesmo tempo, uma ordem imaginária. Tal ordem rege os lugares
representados pelas coisas na sociedade humana; tal ordem rege o sentido de
significação dos signos em uso, estabelecendo hierarquias dentro da linguagem.
Assim, conforme o próprio Castoriadis, “o imaginário da sociedade (...)
determina a escolha [do signo] e as conexões das redes simbólicas [por ele
estabelecidas]” (ibid, p. 175). O signo em seu uso social ganha vida quando
corresponde, no Imaginário da sociedade, à representação de um lugar na rede
simbólica ocupado por um ‘nó’, ou referencial. O indivíduo interage quando o signo
utilizado no ato comunicativo representa para ele alguma coisa dentro do seu
universo de conhecimento, coisa essa socialmente posicionada, coletivamente
passível de significação.
Nota-se, a partir do explanado por Castoriadis, o profundo diálogo
estabelecido entre os registros do Simbólico e do Imaginário para que uma
69
mensagem seja transmitida. Desta forma, a linguagem estabelece uma rede
simbólica, tecida sobre uma base imaginária, para transmitir uma mensagem. Os
signos utilizados como portadores simbólicos de significado tecem um discurso que
encontra espelhamento em uma ordem imaginária, que concede a importância que
as representações simbólicas estabelecidas pelos signos terão.
Os corpos representados nas fotografias publicadas por
G Magazine
são
signos e os chamaremos neste texto de ‘corpos-signos’, por reunirem facetas
dos registros imaginário [a imagem do corpo] e simbólico [a representação] na
transmissão da mensagem. Estes corpos-signos correspondem, no Imaginário do
público-alvo da revista, a um lugar na rede simbólica dotado de significação de
cunho sexual. É principalmente este aspecto sexual que incita a libido deste
fragmento do mosaico social, que busca o suprimento de uma demanda, a ilusória
posse momentânea do falo faltante.
O sujeito-leitor de
G Magazine
entra em uma rede simbólica baseada nos
corpos-signos que tecem o discurso da revista, representada naquele corpo
apresentado pela fotografia. Este signo da instância do Simbólico corresponde, no
Imaginário deste sujeito, ao suprimento momentâneo de uma demanda: a pulsão
sexual, da ordem do Real, incitada pela libido que reagiu à ação da representação
sígnica no Imaginário.
70
Para entendermos melhor as noções de signo, da fotografia como meio de
mensagem e do direcionamento em que as mensagens em geral estão embebidas,
a próxima parte deste trabalho focará os aspectos do estudo da linguagem,
centrando-se mais na linguagem da imagem e, em especial, da fotografia.
71
CAPÍTULO III
DAS IMAGENS
72
A estrutura do discurso.
As seqüências de fotografias com homens posando nus são marca
registrada de
G Magazine
, que sempre exibe como manchete de capa uma
chamada acompanhada de uma foto do protagonista do ensaio principal. A
fotografia da capa não é pornográfica; a única exceção a esta regra continha uma
tarja sobre o pênis do modelo, que poderia ser destacada pelo leitor. O ensaio de
capa configura-se na parte mais importante de toda a edição da revista, é o foco
central de apelo junto ao público-alvo.
A revista possui como carro-chefe a publicação de material imagético com
teor sexual visando à incitação de prazeres. Partindo das bases acerca da
sexualidade lançadas no capítulo anterior, o trabalho centra-se a seguir no estudo
da linguagem utilizada por
G Magazine,
na forma como a revista apresenta os
corpos-signos ao seu leitor.
O signo elemento de representação em seu uso social ganha vida
quando corresponde à representação de um lugar na rede simbólica, ocupado por
um ‘nó’. Em suma, o signo cumpre seu papel a partir do momento em que
representa algo para um interlocutor. O indivíduo interage quando o signo
utilizado no ato comunicativo representa para ele alguma coisa dentro do seu
universo de conhecimento, coisa essa socialmente posicionada, coletivamente
passível de significação.
73
A construção desta rede simbólica no cotidiano será reforçada pelo uso dos
signos com um direcionamento específico, ou seja, no discurso. Neste estudo, os
signos posicionados são as seqüências de fotografias, e o ideário que elas
constroem no imaginário social decorre do discurso apresentado por
G Magazine.
Para melhor entendimento do ponto, o
Dicionário de Semiótica,
de autoria
de Joseph Courtés e Julien Greimas, tece noções acerca do conceito de discurso,
propondo uma definição bastante ampla e complexa, dividida basicamente em
onze tópicos. Segundo os autores, o discurso é (1) sinônimo de enunciado: como
um texto, produto real de um emissor; (2) dotado de procedimentos e normas
para sua construção: o resultado do encadeamento de frases; (3) dispositivo
articulado em diferentes níveis narrativos: como modalidades do enunciado; (4)
resultado da competência do enunciador: dependente da competência lingüística
de quem emite o código; (5) língua em ato: restrito às condições necessárias para
a comunicação; (6) articulações significantes: nascendo na enunciação, dado pelas
colocações em discurso; (7) comunicação: como um discurso instrumental; (8)
conteúdos investidos na enunciação: a ideologia; (9) socialmente produzidos:
literatura médica, política, econômica, lírica etc; (10) tipologia conotativa:
trabalhando o jogo entre formas e conteúdo; e finalmente (11) processos
semióticos: que põem na enunciação o lugar de geração do discurso.
74
De forma geral, as noções de discurso explanadas por Courtés e Greimas
iniciam-se no campo do enunciado, ou como produto final social (texto) para, em
seguida, desdobrarem-se da definição inicial em uma série de outras definições
derivadas umas das outras, até chegarem a tratar da instância da enunciação
enquanto o lugar onde o discurso é gerado. Este estudo se centrará no discurso
partindo dos conteúdos investidos na enunciação, e socialmente produzidos, tendo
em vista se tratar de uma literatura de público-alvo bastante específico.
A
G Magazine
, impulsionada por toda uma tendência de mercado,
consolida-se como mídia impressa voltada para o fragmento social composto pelo
grupo de indivíduos homossexuais masculinos brasileiros. Para consolidar esta
posição, a revista mantém um discurso imagético repleto de signos de ordem
simbólica (os corpos-signos), profundamente arraigados em interpretações
produzidas no imaginário social, vinculados à pulsão sexual e à libido. Os
mecanismos envolvidos do processo de sexualidade nos auxiliarão a compreender
o funcionamento da interpretação desta linguagem dos corpos-signos utilizada
pela revista.
A capacidade de direcionar a rede simbólica construída pelo discurso, com
todas as suas representações, permite o surgimento/fortalecimento de aspectos do
imaginário social capazes de persuadir um coletivo e, por conseqüência, ditar os
parâmetros a serem seguidos para a criação de uma identidade no mosaico social.
75
Dentre seus objetivos, este estudo pretende identificar como a revista
G Magazine
constrói seu discurso utilizando como linguagem a fotografia do nu masculino para
o seu público-alvo.
A utilização do discurso como mantenedor do poder no sistema não é um
tema novo no meio acadêmico. Parte da obra produzida por Michel Foucault, um
dos maiores filósofos e historiadores ocidentais do século XX, dedica-se a este
foco, como também ao discurso específico da sexualidade.
No início da década de 1950, Foucault segue o famoso Seminário de
Jacques Lacan. Começa, então, a fase mais produtiva, no sentido acadêmico, na
vida do filósofo, fase esta que dura cerca de 30 anos. Em 1971, Foucault assume a
cadeira de Jean Hyppolite na disciplina “História dos Sistemas de Pensamento”. A
aula inaugural de Foucault nessa cadeira foi a famosa "A Ordem do discurso", que
veio a se tornar livro, obra primordial para o estudo do discurso na sociedade
contemporânea.
Neste meio tempo, Foucault publica
Doença Mental e Psicologia
(1954),
mas foi com
História da Loucura
(1961), sua tese de doutorado na Sorbone, que o
francês firmou-se como filósofo. Neste livro, o autor analisa as todas as práticas
sociais impostas pela sociedade ocidental dos séculos XVII e XVIII que levaram à
exclusão do convívio daqueles que chamavam de "desprovidos de razão".
76
Foucault preferia ser chamado de "arqueólogo", pois procurava sempre
analisar o que mais profundo existe numa cultura – arqueólogo do silêncio imposto
ao louco, da visão médica (
Nascimento da Clínica
, 1963), das ciências humanas
(
As Palavras e as Coisas
, 1966), do saber em geral (
A Arqueologia do Saber,
1969), escrutinando as bases argumentativas que cada uma dessas visões
utilizava para legitimar suas leituras do mundo.
Vigiar e Punir
(1975) é um amplo estudo sobre as atuais formas de
disciplina impostas pela sociedade. Foucault resumia a estrutura prisional existente
a “uma técnica de produção de corpos dóceis". O conceito da prisão teria por
objetivo o marginal do proletariado; as ilegalidades da classe dominada eram
confinadas, aprisionadas. Foucault analisou os processos disciplinares empregados
nas prisões, considerando-os exemplos da imposição, às pessoas, de padrões
"normais" de conduta estabelecida pelas ciências sociais.
A partir desse trabalho, explicitou-se a noção de que as formas de
pensamento são também relações de poder, que implicam a coerção e imposição.
Foucault assume um leve relance de filosofia marxista na linguagem. Assim, é
possível lutar contra a dominação representada por certos padrões de pensamento
e comportamento, mas torna-se impossível escapar a todas e quaisquer relações
de poder.
77
Michel Foucault, infelizmente, deixou inacabado seu mais ambicioso projeto,
A História da Sexualidade
, por meio da qual o autor pretendia mostrar como a
sociedade ocidental faz do sexo um instrumento de poder, seja por meio da
repressão, seja da expressão. O primeiro dos seis volumes anunciados foi
publicado em 1976 sob o título
A vontade de saber,
e despertou duras críticas.
Este volume é pedra angular para o presente estudo. Em 1984, pouco antes de
morrer, Foucault publicou outros dois volumes, rompendo um silêncio de oito
anos:
O uso dos prazeres
(tratando da sexualidade na Grécia Antiga) e
O cuidado
de si
(cujo foco é a Roma Antiga).
Ao longo de sua obra, Michel Foucault apresenta a manipulação do discurso
como poderosa ferramenta para a legitimação da estrutura do poder. O francês
dedica a trilogia
História da Sexualidade
para delinear a rede simbólica de
significantes ligados à sexualidade como ferramenta largamente utilizada com esta
finalidade: a manutenção do poder no sistema.
G Magazine
utiliza-se de uma rede simbólica profundamente ligada à
sexualidade para estruturar sobre esta o seu discurso. O corpo-signo nu, matéria-
prima dos ensaios fotográficos publicados pela revista, é a linguagem adotada pelo
veículo para passar sua mensagem ao seu público-alvo. O discurso do sexo como
atividade é, portanto, uma constante na revista. A partir desta constatação, faz-se
78
mister uma abordagem mais específica do sexo em discurso, norteado com base
nas análises extraídas dos estudos ‘arqueológicos’ de Michel Foucault acerca do
assunto.
79
O sexo como discurso.
O controle sobre a comunicação pode mover povos inteiros em prol de uma
filosofia, seja este poder colocado pela expressão (como na Alemanha da década
de 1930) ou pela repressão (como nos regimes militares na América Latina entre
as décadas de 1950 e 1980). Conforme vimos, este ponto foi um dos cernes da
produção científica do filósofo e historiador francês Michel Foucault: a utilização do
discurso para a manutenção do poder em suas posições estabelecidas.
Em sua trilogia
História da Sexualidade
nos é mostrada a visão foucaultiana
sobre como o discurso do sexo tem servido de instrumento de manutenção do
poder, seja pela repressão ou pela expressão excessiva de signos ligados à
sexualidade humana.
Ao longo da História, de acordo com Foucault, o sexo vem sendo utilizado
como discurso por aqueles que detêm o poder de decisão. Repetidamente estes se
valem da rede simbólica constituída sobre a sexualidade para tramarem uma
forma de manterem sua posição no sistema, uma forma de legitimar o lugar que
ocupam e não modificar funções na estrutura do sistema, preservando o
funcionamento do eixo.
Foucault, ao longo de sua famosa obra
História da Sexualidade
, analisou
como o imaginário da sociedade é manipulado com o objetivo do estabelecimento
80
de um jogo de manutenção de poder. Abrangendo desde o apogeu dos impérios
grego e romano até e especialmente o mundo ocidental pós-Iluminismo, o
autor analisa como este imaginário posiciona signos na rede simbólica, dando vida
a estes signos em uso, ponto também trabalhado pelo mesmo autor em
A ordem
do discurso
.
De acordo com Foucault, tal jogo, por sua vez, é instituído pelo discurso, e
o autor vai utilizar como exemplo as características discursivas que envolveram a
sexualidade, especialmente nos últimos três séculos, para comprovar sua teoria,
partindo de uma perspectiva repressora quanto ao assunto na modernidade a uma
expressão exacerbada na contemporaneidade. A perspectiva foucaultiana quanto à
manipulação por meio do discurso do sexo é importante norteador deste trabalho,
tendo em vista a linguagem utilizada pela
G Magazine
.
Na sua obra sobre a história do sexo, Foucault começa abordando a
repressão burguesa ao longo do século XVII com relação à sexualidade, tendo o
pudor como norteador do sistema de exclusão. Nesta época, o discurso sobre o
sexo era primeiramente incitado para, logo após, ser reprimido. A noção do prazer
aliada ao pecado auxiliava muito neste processo: o sexo é bom, mas causa sobre
aqueles que o utilizam de forma errada a imputação do castigo divino.
81
A partir do século XVIII, uma ‘explosão discursiva’ em torno do tema. O
sexo em discurso passa a ser mecanismo de poder para o fortalecimento da
potência interna do Estado, sendo neste momento o pudor substituído pelo
‘sistema de utilidade’. Uma nação forte tem uma população numerosa e, portanto,
mão-de-obra para seu desenvolvimento, sendo o sexo ferramenta biológica
necessária para implantação/manutenção desta força.
No século XIX o que o autor chama de a ‘implantação perversa’, e a
proliferação do discurso sobre a sexualidade dá-se no eixo da ‘lei da aliança’ e da
‘ordem do desejo’. O primeiro eixo visa ao casamento e à reprodução, indo ao
encontro dos valores burgueses de família, apoiados pela moral religiosa judaico-
cristã vigente na sociedade ocidental. O segundo visa ao prazer vulgar, que
Foucault vai chamar de ‘perversão’, com o surgimento dos primeiros indicadores,
sob o ponto de vista científico, de comportamentos sexuais que visavam ao prazer,
não tendo como finalidade específica a reprodução biológica.
Assim, as facetas da sexualidade que fugissem ao objetivo da procriação
deixariam de ser encaradas como pecados contra a natureza e, gradativamente,
ocupam o status de anormalidades patológicas (dentre elas a homossexualidade,
que a Organização Mundial da Saúde declarou oficialmente não se tratar de uma
doença apenas em meados da década de 1980). A Igreja cede lugar à Medicina, e
o poder passa a ser exercido pela interdição. Quem praticasse quaisquer atos
82
sexuais que não tivessem por finalidade a reprodução caso dos atos
homossexuais, por exemplo –, era preso, como ocorreu com o escritor inglês
Oscar Wilde na década de 1890.
no século XX, Michel Foucault menciona a expressão exacerbada da
sexualidade como um dispositivo de saturação. Cria-se, a partir deste quadro, o
jogo paralelo entre poderes e prazeres, como um mecanismo de dupla incitação.
posições no sistema para as quais determinados comportamentos sexuais são
acessíveis, possíveis, passíveis de ocorrer.
Legitima-se, com este discurso, um jogo que estabelece um traçado
paralelo entre a posição que o indivíduo ocupa no sistema (e o poder que a ele se
concede por ocupar tal posição) e a sexualidade que o indivíduo poderá exercer
(os prazeres a ele outorgados). A determinadas pessoas são barradas certas
formas de demonstração de prazer, pois a posição por elas ocupada no sistema
social não as concede, dentro do imaginário social, ocuparem tal posição.
Este início do século XXI parece dar continuidade à expressão da
sexualidade, mantendo também a dualidade estabelecida entre poderes e
prazeres, ambas indicadas por Michel Foucault. O expressivo aumento da
veiculação de material de incitação erótico-pornográfica, tanto em mídia impressa
como televisiva ou cibernética, comprovam tal leitura.
83
Os periódicos cujo principal atrativo é o nu proliferam, bem como cenas de
nudez (parcial ou total) ou atos sexuais mais ou menos explícitos na
teledramaturgia em horário nobre na televisão aberta no Brasil, em apresentações
de dançarinos com movimentos libidinosos em programas de auditório, enfim, um
sem número de exemplos. A representação em tons mais ou menos explícitos
do sexo é um verdadeiro bombardeio nos meios de comunicação.
Neste ínterim, a
G Magazine
consolida-se como veículo na produção
brasileira de material que trabalha com o nu e, portanto, com questões
diretamente ligadas a um discurso da sexualidade. A existência do veículo ao longo
de quase 10 anos, hoje com mais de 100 edições publicadas, comprova a
representatividade do produto junto a seu público em um ramo marcado pela
efemeridade e inconstância dos veículos, especialmente os impressos em um país
de pouca tradição de leitura.
A revista utilizar-se-á da fotografia com conteúdo sexual como teia
significante sobre a qual ela construirá o seu discurso. Desta forma, torna-se
flagrante o uso do sexo em discurso, por parte de
G Magazine
, para expor sua
visão de mundo ao seu público-alvo.
84
Esta publicação configura-se em exemplo da explosão discursiva do sexo
mencionada por Michel Foucault na sociedade contemporânea. Por intermédio das
seqüências dos ensaios fotográficos, carros-chefe das suas edições, a revista
constrói sua rede simbólica de significantes e transmite aos leitores uma
mensagem utilizando a linguagem de grande apelo e, portanto, vasto consumo
junto ao público adulto: o sexo.
O discurso do sexo utilizado por
G Magazine
constrói-se sobre uma rede de
significantes imagéticos: os ensaios fotográficos. Uma abordagem de como se
estrutura esta linguagem peculiar, de como funcionam mecanismos de
representação por intermédio da imagem estática captada e cristalizada na
fotografia é passo importante para a continuidade deste estudo.
85
A linguagem fotográfica.
A fotografia, quando utilizada na imprensa, torna-se preciosa ferramenta de
persuasão para a criação ou fortalecimento de mitos e estereótipos junto a um
meio social. Tal poder lhe é conferido, dentre outras características, por intermédio
do apelo que a fotografia tem, desde os seus primórdios, de ligação com a
realidade, como um espelho do que é real (DUBOIS 2004:27), associação esta que
persiste muito ainda nos dias de hoje, de documento de teor factual. Susan
Sontag esclarece que a fotografia hoje “é, sobretudo, rito social, defesa contra a
ansiedade e
instrumento de poder
” (SONTAG 1981:132; grifo meu).
Esta fotografia, possuidora de aspectos tão peculiares, será a linguagem
utilizada por
G Magazine
para passar sua mensagem a seu público-alvo. Em suas
páginas principais, a revista publica representações de corpos-signos, que por sua
vez se configuram em construtores de um discurso específico.
Philippe Dubois, em
O ato fotográfico
, por vários momentos aproxima a
consideração das imagens fotográficas aos três níveis de significação explanados
na teoria semiótica de Charles Sanders Peirce (DUBOIS 2004:45). Para Peirce, a
decodificação de signos passa por três estágios, ou categorias do pensamento
fenomenológico: primeiridade (índice signo que denota o referente baseado na
conexão física entre ambos), secundidade (ícone signo que denota o referente
simplesmente em virtude das características que ele possui, quer esse referente
86
exista realmente, quer não) e terceiridade (símbolo signo que denota seu
referente em virtude de uma lei, associação de idéias, convenção) (SANTAELLA
2003b)
.
O leitor vai posicionar aquele corpo-signo na teia simbólica de significantes,
dando luz a uma leitura subjetiva imaginária de uma realidade desencadeada
pela exposição à fotografia: a existência daquela imagem. As ‘imagens mentais
preconcebidas’ acerca da sexualidade, mencionadas por Kossoy (1999), é que
farão com que o sujeito que interage com a fotografia a posicione na teia
simbólica e, conseqüentemente, imponha a ela um valor imaginário.
Se a fotografia, como índice, é signo por conexão física com o referencial, a
interpretação de uma imagem fotográfica carrega fortemente o sentido de
significação do que nela está cristalizado como imagem para o espectador. O
mesmo Dubois esclarece que
“quando determinada fotografia oferece a nossos
olhos interrogadores a visão de determinada
personagem, por exemplo, um homem de uniforme
ao lado de um cavalo arreado, temos certeza de
uma coisa: esse homem, esse cavalo, esse arreio
existiram, estiveram efetivamente ali, um dia,
naquela posição. Mas é tudo o que a foto nos diz.
Nada sabemos sobre a significação (geral ou
particular) que se deve atribuir a essa existência”
(DUBOIS 2004:84).
87
Assim, a fotografia é um indício (estabelecido pela conexão física) da
existência dos elementos nela porventura cristalizados, mas que sozinha não
confere significação a tais elementos, deixando-os sem qualquer tipo de
explicação, interpretação ou comentário. Cabe ao espectador preencher estas
lacunas que o índice fotográfico deixa abertas: cabe a quem observa a imagem
fotográfica fazer uma interpretação dela, baseada em valores de ordem subjetiva,
individuais ou coletivamente legitimados, impressões mentais sobre o referencial
ali retratado que fogem ao enquadramento daquela imagem.
Porém, quando contextualizada, a fotografia como qualquer outro signo
ganha direcionamentos de sentido de acordo com o discurso ao qual ela serve
como linguagem. O fato de um texto qualquer verbal ou imagético estar
inserido na revista direciona seu sentido. Uma única fotografia em
G Magazine
,
na verdade, é uma fatia de uma seqüência que, por sua vez, constrói uma lógica
de sentido: o discurso da revista. Ou seja, cada fotografia encontra um encaixe na
seqüência do ensaio, embebendo-se do direcionamento na construção desta
seqüência, bem como da revista. Como um elo em uma corrente, o signo
fotográfico em
G Magazine
está seqüencialmente ligado ao anterior como
sucessor, bem como ao seguinte como antecessor, construindo uma série coesa,
ocupando seu lugar e sua função no todo do sentido, quer dizer, no discurso do
veículo.
88
Assim, é prudente examinar fotografias na
G Magazine
tendo em mente que
cada uma destas imagens é, individualmente, apenas uma fatia de um discurso. A
observância da repetição de certos aspectos específicos destas imagens nos
auxiliará a identificar o caminho percorrido pela estruturação do discurso por parte
da revista, a princípio um discurso representativo para um público específico, que
possui uma sexualidade
outsider:
o homossexual masculino.
89
As fotografias em G Magazine.
Para alcançarmos os objetivos deste trabalho, efetuaremos a análise
imagética de algumas fotografias publicadas por
G Magazine
entre janeiro de 2001
e dezembro de 2004. Estas fotografias, escolhidas como representações do
universo gay, são partes das seqüências que formaram os ensaios fotográficos
veiculados pela revista neste período.
O trabalho analisa a fotografia e sua aplicação a algumas representações
publicadas na revista. Tendo em vista o conteúdo sexual das imagens, com o
auxílio dos fundamentos sobre sexualidade avaliar-se-á o discurso de
G Magazine
,
mantido por intermédio da linguagem de corpos-signos as seqüências
fotográficas exibida nas páginas da revista e utilizada para estruturar
simbolicamente o seu discurso.
Como primeiro passo, faz-se necessária uma classificação mais específica do
teor geral das fotografias constantes destes ensaios. A
G Magazine
, segundo
advertência expressa nas suas capas, é uma publicação de ‘conteúdo erótico’. Para
fins de classificação deste gênero, este estudo partirá do conceito de Roland
Barthes em
A câmara clara
.
Nesta obra o autor delineia o que seria o limite entre o erótico e o
pornográfico. Segundo ele,
90
“a pornografia representa, costumeiramente, o sexo,
faz dele um objeto imóvel (fetiche), incensado como
um deus que não sai do seu nicho. A foto erótica, ao
contrário (...), não faz do sexo um objeto central; ela
pode muito bem não mostrá-lo; ela leva o espectador
para fora de seu enquadramento” (BARTHES
1984:88-9).
Para Barthes, a imagem erótica tem um tom de implícito, de não exibir
abertamente o sexo como objeto central. A fotografia erótica, assim, dependeria
do seu espectador que, interagindo com a imagem, sairia do enquadramento
desta. Adauto Novaes salienta que “o olhar deseja sempre mais do que lhe é dado
a ver” (NOVAES 1995:9). A partir desta interação, o espectador busca fora do
enquadramento o que ‘não lhe é dado a ver’: dar-se-ia a concepção imagética do
sexo no imaginário do espectador. Quem olha o erótico, imagina o sexo nele
implicitamente representado.
no caso da pornografia, ainda segundo Barthes, esta interação para fora
do enquadramento entre a imagem e o imaginário do espectador para uma
‘visualização’ do sexo não se faz necessária: o sexo está ali, explicitamente,
exibindo-se para ser visto por todos. Um pouco antes na mesma obra, Barthes
define fotografia pornográfica
“como uma vitrine que mostrasse, iluminada, apenas
uma única jóia, ela é inteiramente constituída pela
apresentação de uma única coisa, o sexo: jamais
objeto segundo, intempestivo, que venha ocultar
91
pela metade, retardar ou distrair” (BARTHES
1984:67).
Na pornografia, para Barthes, o sexo-jóia está em evidência, iluminado na vitrine
com todas as luzes e focos voltados para ele. O sexo é o ponto central desta
exibição, apresentado em primeiro plano, sem precisar ser imaginado pelo
espectador, “jamais objeto segundo”, como a jóia na vitrine da loja.
Ao contrário da imagem erótica, que desloca o espectador para fora do seu
enquadramento, a imagem pornográfica, explícita, consuma a interação com seu
observador apresentando, no seu próprio enquadramento, o sexo como foco
central. Neste mesmo sentido, Arlindo Machado reforça as palavras de Barthes
quando salienta que na
”fotografia pornográfica (...) o que o espectador
na foto não é simplesmente a [pessoa] nua, mas
uma [pessoa] nua que posa para ele, que expõe sua
plástica para ele, que lhe sorri e lhe deposita o olhar,
que se oferece toda à sua embriaguez voyeurista”
(MACHADO 1984:100).
O corpo da fotografia pornográfica se oferece ao espectador. Ela não
simplesmente apresenta o sexo, mas apresenta o sexo para o seu observador,
pelo olhar do(s) protagonista(s) da fotografia, pela exposição crua do que a moral
social judaico-cristã convencionou que deve ser encoberto, pela manifestação
explícita de prazeres proibidos. Tendo em mente tais idéias, segue reprodução de
uma página de
G Magazine
para análise.
92
G 52, p. 46
A fotografia pornográfica é “como uma vitrine que mostrasse,
iluminada, apenas uma única jóia (...), o sexo: jamais objeto segundo,
intempestivo, que venha ocultar pela metade, retardar ou distrair”
(BARTHES 1984:67). Nela tudo pode ser omitido – até o rosto do modelo –,
mas o sexo é jóia iluminada, foco principal, jamais objeto segundo.
93
Na página reproduzida, temos a representação de um corpo masculino
jovem. A imagem nos permite a visualização incompleta do corpo-signo do
modelo. Como plano de fundo temos apenas uma parede que apresenta linhas
brancas verticais e horizontais que formam uma espécie de ‘grade’. A fotografia
possui um enquadramento que exerce um recorte sobre o corpo-signo, expondo
basicamente o seu dorso, partes dos membros (os inferiores acima dos joelhos, o
bíceps do membro superior direito e o dedo polegar da mão esquerda), além da
parte inferior do rosto e, como objeto fisicamente central desta estrutura
anatômica, a região pubiana do protagonista, a qual ostenta o pênis em ereção.
Com base na fotografia publicada por
G Magazine
acima reproduzida, e
aplicando a esta o conceito estabelecido por Roland Barthes acerca das noções de
erótico e pornográfico, bem como levando em conta as considerações de Arlindo
Machado, aplicam-se às imagens analisadas os princípios teóricos de um material
com conteúdo pornográfico. Como veremos, os ensaios fotográficos publicados por
G Magazine
estão, em sua grande maioria, centralizados na exibição de uma única
jóia, fazendo do sexo objeto central de representação explícita, e cuja imagem
conta com um protagonista que se exibe e se oferece ao olhar do espectador. A
maior parte destas imagens exibe o falo como foco principal, mas reserva espaço
ao olhar do modelo, que tenta atrair o espectador.
94
Partindo dos princípios esboçados por Richard Johnson (2000) acerca do
recorte de pautas em mídias contemporâneas, a publicação de material específico
por um veículo de comunicação cujo público-alvo é, de forma clara, socialmente
segmentado, trata-se de enraizamento e fortalecimento do tom de uniformidade
dos leitores como grupo social. O nu masculino explícito e com ereção é a
linguagem mais freqüentemente utilizada pela
G Magazine
na estrutura principal
do seu discurso: os ensaios fotográficos. Neste sentido, segundo Luiz Gonzaga
Motta (2002), o veículo tem o poder de cumprir o papel de poderoso instrumento
legitimador de comportamentos e/ou tendências de consumo.
Umberto Eco, em
Apocalípticos e integrados
, afirma que “não forma de
criação coletiva que não seja medida por personalidades mais dotadas, feitas
intérpretes de uma sensibilidade da comunidade onde vivem” (ECO 1979:54). A
mídia segmentada encaixa-se como uma luva neste exemplo de Eco: alguns
mantenedores interpretam as exigências do coletivo, representando-as em escala
maior pela veiculação.
G Magazine
pretende-se cumpridora deste papel mediante
o público gay e, para tanto, exercerá ativo papel na escolha e manuseio dos
corpos-signos estruturais do seu discurso.
95
A linguagem do sexo: um
corpus
de corpos
.
A manipulação do uso do signo é fundamental para nortear o processo de
representação, direcionando o sentido que o discurso terá. A escolha da
linguagem, composta pelo corpo-signo e sua contextualização no caso dos ensaios
fotográficos de G Magazine, exerce função central na elaboração de um discurso
voltado especificamente para um público.
Temos utilizado neste trabalho a expressão “corpo-signo” para designar as
principais representações imagéticas veiculadas por G Magazine. Assim, no caso
desta revista, a manipulação do signo significará, conseqüentemente, a
manipulação do corpo, aquele que se exibe na fotografia: um corpo manipulado
para se mostrar como explícita e fundamentalmente sexual, tendo como foco
central a exibição do sexo, sempre objeto primeiro, nunca oculto.
Eunice Tomé comenta que “o exibicionista do corpo nu pode estar se
sentindo erotizado por despertar o desejo no outro, desejo em forma de
excitação” (TOMÉ 2002:59). A excitação do outro, do
voyeur
, alimenta o
exibicionista, é combustível que move a ação do apresentar-se como objeto de
observação e, conseqüentemente, de desejo. A anatomia do corpo-signo é
manipulada, direcionando o foco da atenção do leitor e, conseqüentemente, a
interpretação imaginária construída sobre a representação.
96
José Gil lembra que “se o meu corpo se oferece à partida, à vista de
outrem, é porque o sei capaz de olhar” (GIL 1996:47). O exibicionista tem
consciência do ser olhado, da necessidade do observador em ver, e se embriaga
no seu afã de se mostrar.
Estabelece-se, portanto, uma cumplicidade entre o que olha e o que é
olhado, entre o exibicionista e o
voyeur
, cumplicidade estabelecida pela relação
entre o que os olhos buscam e o que a imagem pornográfica prontamente exibe.
O espectador, inebriado pela sua libido, é dominado pela imagem, pelo que está
ali, a olhos vistos, com aparência de muito mais próxima da realidade que uma
idéia de produto imaginário, provocada pela interação concebida pela imagem
erótica.
A
G Magazine
, para defender sua postura, escolherá signos com
representatividade específica no sistema sígnico pertencente ao grupo social
formado pelo seu público-alvo. Pelo contexto, a fotografia torna-se pedaço da
linguagem estruturadora de um discurso, nunca neutra. Roland Barthes
simbolicamente lamenta: “Ah, se ao menos a fotografia pudesse me dar um
campo neutro, anatômico, um corpo que nada signifique!” (BARTHES 1984:24). As
fotografias em
G Magazine
, como ensaio, formam um
corpus
de corpos que algo
significam, uma linguagem cuja exposição pornográfica constrói uma espécie de
exacerbação do significado do nu masculino, e tal representatividade existe na
impossibilidade destas fotografias exibirem um ‘campo neutro’.
97
O corpo ocupa lugar de destaque na mídia hoje. Eunice Tomé comenta que
o corpo físico “tem sido colocado à venda e mostrado incansavelmente com o
objetivo de provocar reações, quer de erotismo nos meios de comunicação, quer
no próprio dia-a-dia para provocar desejo e conquista” (TOMÉ 2002:52). A
funcionalidade do corpo na comunicação é quase automática, incitada pelo desejo
do espectador de posse deste corpo, seja como seu próprio, seja como do outro
que o completa. Quem vê, deseja, e quem se exibe também deseja: deseja sentir-
se admirado.
Este corpo, para além de ser a sede pulsante da vida biológica, envolvido
por um tecido que protege o trabalho silencioso dos órgãos, tomou uma
importância que expande em muito os horizontes do seu papel na sociedade
contemporânea. Maria Rita Kehl analisa brevemente o lugar ocupado pelo corpo
hoje, chegando a traçar um paralelo entre este e o nível de felicidade que poderá
ser alcançado pelo sujeito. A psicanalista alerta:
“Fique atento, pois o corpo que você usa e ostenta
vai dizer quem você é. Pode determinar
oportunidades de trabalho. Pode significar a chance
de uma rápida ascensão social. Acima de tudo, (...) o
corpo que resume praticamente tudo o que restou
do seu ser é a primeira condição para que você seja
feliz” (KEHL 2002:18).
98
Este corpo, alçado à condição
sine qua non
para se alcançar a felicidade, é
colocado em exposição no que a autora chama de ‘mercado das trocas
imaginárias’ (Idem), sendo oferecido ao olhar alheio para garantir um lugar no
palco das visibilidades em que se transformou o espaço público no Brasil. O corpo
torna-se, portanto, centro de demonstração de poder: se o sujeito ostenta um
determinado corpo, a ele são outorgados direitos, inclusive o direito à felicidade.
Vias e oportunidades parecem ser abertas pela vida, desde que este sujeito esteja
disposto a oferecer seu corpo cuidadosamente preparado no mercado das
trocas imaginárias.
Tal poder conferido ao corpo faz com que este seja tomado por uma aura
de poder: quem possui um corpo de alto valor para o mercado das trocas, possui
poder. Este poderoso corpo passa a ser venerado, como um objeto de adoração.
O corpo é como um templo que guarda na sua essência, na sua
sexualidade, o objeto de adoração. Como salienta Jean Baudrillard, o corpo é
‘objeto de salvação’:
“A panóplia do consumo, o mais belo, precioso e
resplandecente de todos os objetos, é o corpo. A sua
redescoberta (...) sob o signo da liberdade física e
sexual, a sua onipresença na publicidade, na moda e
na cultura de massa, a obsessão pela juventude,
elegância, virilidade, cuidados, regimes, práticas
sacrificiais que com ele se conectam, o 'mito do
99
prazer' que o circula - tudo hoje testemunha que o
corpo se tornou objeto de salvação” (BAUDRILLARD
2000:206).
No mundo contemporâneo, o corpo é apresentado para ser consumido,
mesmo que no sentido figurado. A perfeição das formas é uma necessidade, que
faz com que o objeto de salvação equipare-se à figura religiosa daquele que pode
conduzir à salvação espiritual, por sua vez descrito como perfeito. É por intermédio
do corpo que o sujeito vai se mostrar à sociedade, e a partir dele que esta criará
uma figura imaginária representativa de um todo idealizado: e quanto mais
próximo da idealização imaginária estiver este corpo físico, mais ele valerá como
moeda de ‘trocas imaginárias’. Quanto mais o corpo-signo puder ser objeto para o
qual a libido penda para suprimento da demanda da pressão orgânica
característica da pulsão sexual do sujeito, mais este corpo-signo poderá ser
utilizado pela mídia como forma de linguagem persuasiva, como objeto de
consumo.
Está criado o que Baudrillard intitula de o ‘mito do prazer’. É este corpo
preparado que tem alto valor no mercado das trocas imaginárias. Em um mundo
onde noções de identidade são relativizadas, e no qual o sujeito encontra-se cada
vez mais multifacetado e fragmentado, conforme elementos da pós-modernidade
apontados pelos Estudos Culturais, o sujeito precisa se estruturar, se construir a
partir de várias perspectivas diferentes. Um corpo-signo que se apresente em meio
100
a este caos como a idealização da ‘inteireza’, com a ilusão de ser completo e de
poder corresponder aos anseios das demandas psíquicas, surge como o grande
objeto de salvação, como o guia o qual não se pode perder de vista, o qual deve
ser seguido de perto e deverá servir como fonte de inspiração, como exemplo a
ser glorificado, idolatrado. Está constituído imaginariamente o mito do prazer, que
serve como válvula de escape aos perenes anseios do sujeito faltante.
A utilização de artifícios gráficos para ‘aperfeiçoar’ as formas dos corpos,
hoje costumeiros na comunicação, não é novidade para nenhum consumidor
medianamente esclarecido. Mas, a este dado não se confere muita importância
para a relação de sedução do consumidor no processo de compra/venda. Os
corpos perfeitos exibidos espetacularmente são para o consumo imaginário do
espectador.
Hal Foster enfatiza que,
“ao contrário de uma representação que trabalha
mediante nossa em seu realismo, o espetáculo
opera mediante nosso fascínio pelo hiper-real, pelas
imagens perfeitas que nos fazem inteiros ao preço da
ilusão, da submissão” (FOSTER 1996:58).
A ilusão da inteireza, impossível de consumação real, pretende-se
conquistada no imaginário com o auxílio de formas e contornos que, igualmente,
101
são impossíveis no real, mas com o auxílio gráfico, por exemplo, concretizam-se
na imagem e no seu consumo imaginário.
Esta possibilidade de manipulação gráfica da fotografia, na verdade, faz
com que esta se afaste daquele teor de aproximação fiel da realidade lembrado
por Dubois. Mesmo assim, a ilusão sustentada por esta idéia de conexão física com
a realidade se mantém, vendendo um produto que, pelo exagero de suas
características ‘positivas’, se faz passivo de consumação no imaginário,
satisfazendo desejos de consumo e prazer.
Com este leque de fácil manipulação aberto pela imagem, e de abrangência
tão reconhecida junto ao público, a fotografia constitui-se em uma ferramenta
adequada para o enraizamento e o fortalecimento de idéias, quando publicada por
um veículo de comunicação voltado a um segmento social específico. Então, vendo
neste fenômeno de consumo um interessante nicho econômico, a sociedade
capitalista vai saturar o mercado da informação segmentada alimentando
demandas sociais de identificação e diferenciação sócio-político-comportamental.
O resultado deste processo econômico: uma infinidade de tipos de
publicações que tratam dos mais variados assuntos, para os mais variados públicos
que constituem aquele mosaico social contemporâneo. A sexualidade, como
característica da natureza humana que – de alguma forma – atinge a todos, torna-
102
se fonte quase inesgotável para representação de suas inúmeras facetas numa
mídia voltada para o consumo que cada vez mais se focaliza em prover as
respostas para as demandas segmentadas.
O consumo imaginário dos corpos-signos torna-se ainda mais intenso pela
atuação da libido e de todo o mecanismo bio-psicológico que estrutura a
sexualidade humana.
G Magazine
expõe corpos-signos a serem co(nsu)midos no
imaginário do leitor.
103
O nu masculino como linguagem.
O nu feminino, pela histórica associação da figura da mulher com a beleza
estética e a natureza, tem presença constante e socialmente legitimada como
objeto de desejo na comunicação. A mitificação do feminino, comumente ligado
aos engodos da sensualidade de um ser envolvente pela beleza, começa muito
longe na História, passando pelas figuras da persuasiva Eva judaico-cristã, da
egípcia Cleópatra, da semi-deusa Afrodite e Helena gregas, a Vênus romana e
outras tantas, chegando às atuais estrelas do cinema e da televisão, às misses
vencedoras de concursos de beleza e às beldades das passarelas de moda. São
traços da oposição entre a mulher-natureza e o homem-cultura, mencionadas pelo
historiador francês Jules Michelet.
Esta ligação da mulher com a natureza estudada por Michelet, um dos
precursores no resgate desta dimensão do imaginário social construído sobre a
mulher, é relevante. Na sua conhecida obra La Sorcière, Michelet indica que foi a
Natureza que fez da mulher a feiticeira.
Sem cair na questão levantada pelo autor, que opõe a "mulher-natureza" ao
"homem-cultura", pretendemos afirmar que o que se poderia chamar "a natureza
feminina" é também uma construção simbólica, fruto de uma representação
atribuída e dada pelo olhar dos homens sobre as mulheres, segundo a obra de
Michelet. O historiador enfoca bem a questão quando centraliza sua análise num
104
aparente paradoxo: é justamente no momento em que a mulher emerge como
uma personagem de maior presença na história que é preciso diabolizá-la.
É naquele momento, na passagem do século XIV para o século XV, em que
se acentua a sua faceta de bruxa, de sexualidade desregrada, dotada de malícia,
capaz de realizar sortilégios e malefícios. Mais do que isso: esta representação
feminina trabalha com a idéia de que a mulher é perigosa, por ser capaz de trair e
seduzir pela sua beleza instintiva, “natural”.
Ao longo dos séculos que comportam as Idades Moderna e Contemporânea,
a figura feminina continuou sendo colocada como elemento natural a ser domado.
Especialmente nas culturas ocidentais, a criação das meninas tem características
mais rígidas que a dos meninos. A mulher idealizada pela estética romântica, por
exemplo, deveria se aproximar dos padrões divinos de aspecto e comportamento.
O feminino não-divinizado era cercado de engodos, especialmente ligados à carne.
Fortalece-se a figura da prostituta, personagem freqüente, marcante e, via de
regra, transgressor no imaginário social construído ao longo dos séculos.
Pela natural associação da prostituta ao ‘mito do prazer’, a construção
simbólica desta figura é marginalizada e, ao mesmo tempo, glamourizada. As
‘mulheres fatais’, que conseguem atingir seus objetivos engodando os homens
utilizando-se de sua ‘beleza natural’, ocupam posição privilegiada nos desejos
105
masculinos. O surgimento do cinema e das divas avassaladoras concedeu à figura
do feminino um apelo de objeto de desejo dotado de ferramentas que instigam os
instintos do ‘homem-cultura’, fazendo-o muitas vezes perder a razão. Esta
ferramenta localiza-se socialmente sob o signo de ‘beleza’.
A idolatria pela beleza e fatalidade femininas é bastante difundida, criando
verdadeiros símbolos de glamour em torno daquelas que ostentam os padrões
físicos vigentes na sociedade, com alto poder de sedução pelos ‘adornos naturais’.
Suas imagens – independente do grau de fidelidade que têm com seus referenciais
– serão utilizadas à exaustão pela mídia, no afã da venda de produtos, da sedução
do consumidor. A mulher ‘selvagem’ se oferta ao homem ‘civilizado’ como objeto
de satisfação, um animal instintivo a ser domesticado pelo dominador.
A posição ‘mulher-objeto’ consolida-se na mídia contemporânea: a
exposição do corpo feminino nos comerciais de cerveja, nas demonstrações de
roupas intimas em catálogos, nas propagandas de academias e centros de
estética, nos sofisticados desfiles de moda, nos editoriais de revistas famosas, em
apresentações de danças, na indispensável ajuda das numerosas assistentes de
palco em programas de TV, num sem-fim de situações que apelam à exibição do
corpo feminino para deleite daqueles que, por intermédio desta contemplação,
suprem a demanda por prazeres proibidos mencionada por Freud.
Independentemente do seu sexo biológico, estes contempladores ocupam a
106
posição do masculino no consumo destes corpos reificados, postos à disposição
como moeda de peso nas trocas imaginárias.
Já o corpo masculino em nu explícito, frontal e com ereção não se configura
hoje em uma linguagem convencionalmente utilizada de forma explícita na mídia.
O homem-cultura de Michelet, oposto à mulher-natureza, é lógico, racional, não-
instintivo, não-natural, não passível de se tornar objeto manipulável isso
ocorreria apenas pela perda momentânea da razão e pelo descontrole causados
por uma explosão do instinto animalesco. O masculino é agente, controla a
natureza, e a mulher-natureza. Homem como objeto não é muito convencional no
Ocidente. Este papel de objeto, fora do eixo de comando e poder, comumente
cabe à figura feminina. Reflexos de uma sociedade falocêntrica.
Várias questões estão implicadas neste contexto: em sua maioria
apontando para a estrutura religiosa da moral judaico-cristã, patriarcal e
conservadora. O divino é o poder maior, e é masculino (Deus-Pai). Seu nome não
deve ser pronunciado em vão. Sua figura não é visível, portanto, ‘não-
representável’ imageticamente. O pênis sustenta a masculinidade, é o símbolo do
poder, é o símbolo do pai, reflexo do divino. Howard Eilberg-Schwartz (2005)
discute alguns elementos da psicanálise freudiana acerca do pênis como
sustentação da masculinidade e sua influência na cultura religiosa ocidental de
fundo judaico-cristão.
107
Desta forma, o pênis é divinamente símbolo do pai-poder e não deveria ser
vulgarmente representado, exibido, ‘publicado em vão’. A aura que envolve o
pênis, assim, se aproxima da aura do temor divino, impondo toda a
respeitabilidade que se cabe à imagem daquele que é o soberano universal
refletida numa espécie de temor piedoso do pai, do poder, do pênis.
Além disso, o peso religioso da transgressão e do pecado na cultura
judaico-cristã que recai sobre a pornografia em geral. Em meados do século XII, o
cristianismo instituiu a luxúria como pecado capital e, por conseqüência, a
pornografia como representação angular deste pecado. Representações do sexo e
dos atos a este ligados, antes um tanto populares no Ocidente pré-pecados
capitais, foram relegadas e marginalizadas como práticas condenatórias ao
infortúnio daqueles que aderiam a elas. Tais valores morais regem o mundo
cristão, estendendo-se até os dias de hoje.
G Magazine
destaca-se na mídia contemporânea por utilizar esta linguagem
duplamente estigmatizada para construir o seu discurso. É estigma em dobro,
primeiramente por ser linguagem pornográfica, pecaminosa, e segundo por ser
uma pornografia de representação do masculino, dois elementos localizados fora
do eixo social de poder.
108
Um discurso de poder.
As posições da mulher-objeto e do homem-dominador, estabelecidas
historicamente e reforçadas pela mídia, podem ser observadas pela forma como
ambos os corpos-signos (o masculino e o feminino) são vendidos como moeda de
valor para as trocas imaginárias. A simbologia de marcadores anatômicos que
estabelecem a diferenciação biológica da sexualidade constrói um discurso de
poder por meio da disposição física com que tais corpos-signos são comumente
dispostos à contemplação.
G Magazine
tem uma linguagem peculiar para representação do corpo-
signo, que mantém um perfil padronizado. Em todas as edições da revista há, em
meio aos ensaios fotográficos, a repetição de imagens nas quais os protagonistas
anatomicamente se exibem ao leitor explicitando os caracteres biológicos que os
qualificam como masculinos.
109
G 72, p. 36
Protagonistas exibem seus caracteres biológicos de masculinidade:
a “
ereção
peniana, em correlação com os temas do ‘alto e do baixo’,
do ‘erguido e do curvado’, do ‘duro e do mole’, constituem os símbolos
privilegiados da superioridade social e da vontade de poder”
(GUIRAUD 1991:50).
110
Pierre Guiraud, analisando
A linguagem do corpo,
detalha aspectos acerca
da simbólica da sexualidade. Segundo tais princípios, existe imaginariamente uma
associação entre um pênis ereto e as noções de poder e comando. Guiraud
estabelece:
“A ereção peniana (...) em correlação com os temas
do ‘alto e do baixo’, do ‘erguido e do curvado’, do
‘duro e do mole’, constituem os símbolos
privilegiados da superioridade social e da vontade de
poder. (...) a etimologia confunde em uma mesma
imagem a idéia de ‘endireitamento vertical’ (
erigir,
ereção, endireitar
, latim
directiare
etc.) e a de
comando (
dirigir, diretor, rei
, latim
rex
)” (GUIRAUD
1991:50).
Os ensaios fotográficos da
G Magazine
têm por característica peculiar a presença
da exibição de seus protagonistas com ereção peniana, sendo esta uma clara
demonstração de poder, de comando, de ação.
O protagonista do ensaio é o ‘rei’, aquele que detém o poder, aquele que
decide, que comanda, aquele a quem o espectador está subjugado. O rei-sedutor
se exibe e domina, toma conta da situação submetendo o olhar do espectador-
seduzido.
A relação estabelecida entre eles é de poder, de subjugo. Maria Rita Kehl
comenta que “não se pode dizer que o seduzido ame o sedutor ele é seu
prisioneiro. O olhar seduzido é perplexo. Procura recobrar o domínio de si mesmo”
111
(KEHL 1995:411). Estabelece-se a relação de domínio, imposta pela demonstração
do poderio do masculino representado pelo falo.
O espectador é seduzido pelo poderoso exibicionista, o qual se produziu
para obter este resultado de deslumbramento. Em artigo
,
Maria Rita Kehl reflete
sobre a nova relação estabelecida entre o sujeito e o seu corpo na
contemporaneidade. Segundo ela, “são corpos em permanente produtividade, que
trabalham a forma física ao mesmo tempo em que exibem o resultado” a
espectadores atentos e sedentos da exibição.
Ainda, para Kehl,
“são corpos-mensagem, que falam pelos sujeitos. O
rapaz ‘sarado’ (...) ostenta seu corpo como se fosse
aqueles cartazes que os homens-sanduíche
carregam nas ruas do centro da cidade: ‘Compra-se
ouro’, ‘Vendem-se cartões telefônicos’, ‘Belo
espécime humano em exposição’” (KEHL 2002:18).
De acordo com a psicanalista, o discurso por trás desta necessidade da
exposição do exibicionista público do corpo produzido é vazio de sentido, e esta
visibilidade vazia anula grandemente os sujeitos do desejo e da ação política. “No
Brasil de hoje, em que o espaço público foi a um tempo desmantelado e
ocupado pela televisão, a produção dos corpos é a produção da visibilidade vazia”,
112
finaliza Kehl, indicando ser este processo sinal claro de uma vida fechada diante
do espelho (Idem).
O corpo-signo é sinal de poder, em especial quando acompanhado da
simbologia divina de demonstração de poder o pênis. A noção de grandiosidade
e poderio exposta pelo protagonista do ensaio de
G Magazine
é, em linhas gerais,
a mesma das arquiteturas pomposas de templos das mais variadas instituições
religiosas mundo afora. As formas de demonstração de poder seguem uma mesma
linha imagética. Ambas seguem o direcionamento de representação da posse do
poder. O falo é o símbolo do poder, e seu proprietário que vai se preparar, se
‘produzir’ para exibir seu poder – torna-se digno de idolatria, como um deus.
Por meio das seqüências fotográficas publicadas mensalmente em suas
páginas,
G Magazine
constrói seu discurso oferecendo a seus leitores uma
linguagem que mantém o ‘lugar do pênis’ na rede simbólica. Na sua quase
totalidade, as seqüências de fotografias mostram um pênis rígido, ereto, nunca
flácido ou aparentemente ‘abatido’.
Esta disposição imagética legitima, de forma geral, a noção de poder
atribuída socialmente ao pênis e, especialmente, ao seu portador, o masculino.
Instauram-se os jogos entre poderes e prazeres designados por Michel Foucault,
que outorgam ao macho detentor do símbolo de poder o privilégio de gozar certos
113
prazeres barrados àqueles que não são possuidores daquele símbolo e estão,
portanto, fora do eixo de poder.
Esta exposição faz parte de um fenômeno que vem se desenvolvendo no
mundo contemporâneo algum tempo. Com um mundo cada dia mais
globalizado e, ao mesmo tempo, mais individualista para o sujeito, a construção de
um mundo imaginário onde tudo funciona serve como espelho para inspiração
daqueles para quem o sistema é mais distante do idealizado. As ‘vidas perfeitas’
têm de ser falos a servirem de exemplo. A sociedade do espetáculo ganha força, e
é uma máquina que não pode parar.
114
A sociedade do espetáculo.
A contextualização dos ensaios fotográficos de
G Magazine
, que será
identificada especialmente pelos trajes, acessórios e ambientações das fotografias,
geralmente remete a aspectos da vida profissional e/ou pessoal do protagonista,
especialmente o meio pelo qual este se tornou figura de reconhecimento junto ao
público. Recuperando as considerações de Pepe Baeza sobre o uso da fotografia
na mídia contemporânea, esta é uma forma de legitimar o mundo do espetáculo
pela criação/fortalecimento de um processo de mitificação do homem que faz
parte deste sistema do entretenimento. O homem mantém-se na mídia, e a mídia
lucra com sua exposição não-usual, pornográfica, tudo em nome de manter(-se
n)o espetáculo.
Numa das obras mais conhecidas a este respeito
,
Guy Debord reflete sobre
uma
Sociedade do Espetáculo
que vai muito além da onipresença dos meios de
comunicação, que representam somente o seu aspecto mais visível e mais
superficial. Debord explica que o espetáculo é uma forma de sociedade paralela
em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a
contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em
sua existência real. Eles têm de olhar para outros (estrelas, figuras públicas,
políticos etc) que vivem em seu lugar.
115
Desta forma, a realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se
uma realidade; a unidade que falta à vida, recupera-se no plano da imagem.
Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida caracterizava-se
pelo ‘ser em ter’, no espetáculo chegou-se ao reinado soberano do ‘ser em
aparecer’. As relações entre os homens não são mediadas apenas pelas coisas,
mas diretamente pelas imagens.
Para Debord, no entanto, a imagem é uma abstração do real, e o seu
predomínio, isto é, o espetáculo, significa um “tornar-se abstrato” do mundo. No
espetáculo, a economia, de meio que era, transformou-se em fim, a que os
homens submetem-se totalmente, e a alienação social alcançou o seu ápice: o
espetáculo é uma verdadeira religião terrena e material.
Expor corpos produzidos no intuito de aguçar o desejo do espectador é uma
forma de espetacularizar a sociedade. Em
G Magazine,
a utilização de certos
signos, usualmente embebidos em conotação sexual, será compreendida pelo
leitor se este entender a posição ocupada no dado momento por aquele signo no
imaginário social: serão signos que remeterão à ‘vida real’ (pessoal ou profissional)
do protagonista do ensaio, levando o sujeito a ocupar automaticamente um lugar
nesta paralela sociedade do espetáculo.
116
O protagonista aparece no ensaio fotográfico da edição 69 de
G Magazine
sustentando uma corrente pela base do pênis ereto. Tal signo é referencia de sua
participação em um quadro chamado ‘Acorrentados 2 A Revanche’, exibido em
2002 pelo programa ‘Caldeirão do Huck’, da Rede Globo de Televisão. Neste
quadro, um grupo de homens jovens manteve-se acorrentado a uma garota
durante vários dias, na disputa pelo direito de cortejá-la em namoro. Por
intermédio desta participação no programa, o jovem surgiu para o público. O
modelo é levado da ‘realidade’ para o espetáculo por intermédio da imagem.
A fotografia mantém o discurso característico do símbolo de poder
representado pelo pênis ereto, uma freqüente nas seqüências fotográficas da
revista. A espetacularização da exibição dos corpos em imagens profundamente
sexualizadas como objetos a serem idolatrados e consumidos, percorrendo
Foucault, Guiraud, Kehl e Debord.
A construção de sentido na mente do espectador, dada a predominância
imaginária da interpretação aberta pela fotografia, pode ser conduzida por aquele
que fotografa, manipulando mecanismos como foco, luz, perspectiva e
ambientação, bem como os efeitos gráficos do processo de ‘aperfeiçoamento do
material’. Estes e outros elementos presentes podem servir como norteadores para
direcionar a representação esboçada pela função significante da imagem.
117
Como foco principal da fotografia pornográfica, o sexo, bem como o corpo
físico que o sustenta, são colocados em perspectivas e ambientações que, em
contato com a libido do espectador, ajudam a ‘guiar’ o entendimento deste,
estruturando o discurso e, desta forma, reforçando uma mensagem.
Quanto a este processo de estruturação de um contexto imagético no qual
se imbui um signo especifico neste caso, o sexo –, John Berger enfatiza que a
fotografia,
“ao mesmo tempo que faz suas próprias referências
à imagem do original, torna-se ela própria o ponto
de referência para outras imagens. O significado de
uma imagem muda de acordo com o que é
imediatamente visto ao seu lado, ou com o que
imediatamente vem depois dela. Essa autoridade que
ela detém é distribuída por todo o contexto em que
aparece” (BERGER 1999:31).
Pelas palavras de Berger entende-se que o sexo representado
explicitamente na fotografia pornográfica ganha conotações específicas de acordo
com o contexto no qual ele está inserido. Assim, o foco central da imagem
fotográfica acaba sendo diretamente influenciado, em sua instância de
representatividade, por signos que o acompanham, que dividem a cena do
enquadramento imagético, bem como pelo todo constituído pela revista veículo
118
segmentado, voltado a um público específico. Desta forma se constrói o contexto
de exibição do foco.
Em
G Magazine,
constrói-se o contexto para a exibição do sexo como a jóia
da vitrine. Esta jóia está contextualizada em meio a um cenário e objetos de
figuração que criam uma ambientação, auxiliando na lógica do sentido
representada pela seqüência do ensaio fotográfico, criando e/ou fortalecendo
mitos e estereótipos de virilidade e masculinidade no imaginário social,
especialmente do segmento homossexual masculino. As posições e
comportamentos ligados ao ato sexual, bem como uma ambientação cenográfica
que tende a inflamar a ação da libido, são constantes nos ensaios fotográficos da
revista.
Como exemplo do acima, nas próximas páginas foi reproduzido na íntegra
de um ensaio fotográfico de capa em
G Magazine,
seguido de breves
considerações. Intitulado
As Travessuras do Muleke,
o ensaio traz o cantor do
grupo de pagode ‘Muleke Travesso’, e foi publicado na edição 43 da revista,
datada de abril de 2001.
119
G43, p. 34-6
G43, p. 37-9
120
G43, p. 40-2
G43, p. 43-5
121
G43, p. 46-8
G43, p. 49-51
122
Este ensaio fotográfico estende-se por 18 páginas da edição 43 de
G
Magazine.
A seqüência é composta por um total de 18 imagens do protagonista,
sendo que nas páginas 36 e 46 são apresentadas duas fotografias em cada,
enquanto que uma mesma representação ocupa as páginas 40 e 41, e outra
estende-se entre as páginas 50 e 51. Esta última está acompanhada de um texto
que traçaria o perfil “familiar” do modelo, contando com breves citações de falas
do protagonista, ao estilo entrevista.
Fabinho aparece totalmente nu em oito imagens (p. 34, 38, 40-41, 42, 43,
46 [superior] e 48), acompanhado de instrumentos musicais de cordas em seis
fotografias (p. 35, 37, 46 [inferior], 47, 49 e 50-1). O protagonista está
parcialmente vestido em outras seis representações (p. 36 [superior e inferior], 37,
44, 45 e 47), e totalmente vestido apenas na imagem de apresentação do ensaio,
na página 35. As fotografias das páginas 42 e 43 foram publicadas em preto e
branco, representando a incidência da luz e o reflexo por esta causado na
superfície física do corpo do protagonista, exibindo nuances de traços da anatomia
deste em contraposição a um fundo negro.
O ensaio foi ambientado em um estúdio de gravação musical, como alusão
direta à profissão de Fabinho, vocalista de um grupo de pagode. O uso da
imprensa como meio de exposição da imagem junto ao público, descrito por
Baeza, bem como a implantação da sociedade do espetáculo de Debord, estão
123
presentes nesta seqüência. O sexo é utilizado como linguagem pela exposição do
corpo do protagonista, a base sobre a qual se estrutura o discurso da revista nos
ensaios. A seqüência de fotografias constrói um sentido lógico baseado nas
imagens da anatomia de um corpo masculino, jovem, nu, dentro dos padrões
vigentes de beleza e vigor físico. As formas de demonstração desta anatomia
masculina refletem uma posição específica para o homem no imaginário do
espectador do ensaio, do leitor de
G Magazine.
Este discurso, por sua vez, tem um direcionamento bem específico nas
páginas do veículo: a exibição explicita do pênis ereto, como característica
marcante nos ensaios de
G Magazine,
faz-se presente em um total de sete
fotografias ao longo do ensaio (p. 38, 40-1, 42, 44, 45, 46 [inferior] e 48). O
ensaio pornográfico por apresentar o pênis ereto explícito no enquadramento da
fotografia mostra ao leitor o protagonista em sete momentos com o pênis
enrijecido, sempre estabelecendo uma reta crescente, como que construindo, da
base para a glande, uma linha que sempre aponta para cima, para o alto.
Na quase totalidade destas fotografias, o protagonista olha diretamente
para a câmera, para o seu espectador, enquanto exibe seu símbolo maior de
masculinidade. Nestes momentos, a captura da liberdade do leitor é exercida pelo
protagonista, que cerce aquele de autonomia existencial, dominando-o.
124
A linguagem do corpo explanada por Guiraud indica as noções de poder
contidas nestas representações. O protagonista demonstra seu poder pela exibição
do símbolo de posse deste erguido às alturas, apontando para cima, como o cetro
de um rei que legitima sua posição de superioridade hierárquica.
As nádegas do protagonista aparecem em cinco imagens (p. 37
[parcialmente cobertas], 39, 43, 46 [superior] e 47 [parcialmente cobertas]), e em
nenhuma destas o modelo estabelece um elo com o leitor por intermédio do olhar.
O convite ao leitor para o ato sexual tendo o protagonista como passivo não se
estabelece pelo olhar, posto que o cantor naquele momento é representação do
masculino, do agente, daquele que detém o poder, legitimado pela posse do ‘falo’.
Esta apresentação da parte posterior do corpo pelo protagonista entra,
segundo Jacques Aumont (1992), no processo de relação do sujeito com suas
identificações formadoras. Refletindo sobre teorias lacanianas, Aumont diz que
“Sólo por mediación de formaciones imaginarias
puede efectuarse esta relación: ‘figuras del otro
imaginario en relaciones de agresión erótica en las
que se realizan’, es decir los
objetos de deseo
del
sujeto;
identificaciones
, ‘desde la
Urbid
[imagen
primitiva] especular hasta la identificación paterna
del ideal del yo’ (AUMONT 1992:125).
Aumont ainda menciona que as formações imaginárias do sujeito são imagens, e
por intermédio delas este exercerá seu processo de identificação. Ou seja, o
125
protagonista dos ensaios fotográficos em
G Magazine
é objeto de desejo do
espectador, o protagonista é modelo, inclusive de identificação do espectador. O
imaginário deste forma uma imagem idealizada do outro, consumindo-o como
objeto de desejo e como ideal do eu.
Assim, as figuras imaginárias do outro produzidas pelo espectador,
formadoras da idealização do objeto de desejo deste, somente são possíveis pela
mediação estabelecida pelo simbólico, pela linguagem, pela fotografia. Esta
identificação obrigatoriamente se por intermédio de uma imagem de
completude do corpo do outro, o que explicaria a exposição do protagonistas por
várias perspectivas.
Mas, mesmo exibindo suas costas para a câmera, o protagonista em geral
não se oferece para ser passivo em uma imaginária relação sexual com o
espectador, posição que colocaria o exibicionista como objeto a ser manipulado
pelo leitor. Sendo este exibicionista representação do masculino, via de regra ele
não ocupa a posição objetal passiva no sistema. A estrutura do sistema indicando
o masculino como eixo central do poder está mantida no discurso de
G Magazine
.
126
O poder do masculino.
A posição do masculino nas fotografias publicadas por
G Magazine
é
fundamental para as reflexões sobre o Imaginário. A exibição do órgão sexual
masculino enrijecido, símbolo de demonstração de poder, se faz presente em
todos os ensaios publicados pela revista.
Esta posição de atividade do masculino evidencia-se pela freqüente
manifestação de poder, enfocando a presença da exibição do pênis ereto como um
cetro carregado pelo rei; como o símbolo maior do poder a este masculino
conferido pelo coletivo social. A exibição do pênis ereto é um signo embebido
numa simbólica construtora de um imaginário que concede ao portador deste
cetro a posição de agente, daquele que detém o poder, pois ostenta seu símbolo.
Nas fotografias com o protagonista de costas, este não mantém contato
visual com o espectador, como se o modelo o tratasse com indiferença, não
depositando neste qualquer atenção e se oferecendo, no máximo, à contemplação,
mas nunca anatomicamente a uma relação sexual ocupando a posição passiva.
A rede simbólica construída em torno da posse e exibição orgulhosa do
pênis ereto rede esta consolidada pelos ensaios foto/pornográficos de
G
Magazine
–, como demonstração de poder pertencente ao masculino, mantém
imaginariamente nas mãos deste o eixo de decisão. A mulher não possui esta
127
capacidade de demonstração física de poder, restando ao feminino um não-lugar
na posição de comando no imaginário social, segundo esta linguagem.
No intervalo de abrangência deste estudo, entre janeiro de 2001 e
dezembro de 2004, um desequilíbrio numérico relativo à representação dos
protagonistas nas páginas da revista. Ao longo de 48 edições de
G Magazine,
cada
edição contando com dois ensaios fotográficos (mantendo uma média de mais de
20 fotografias por edição), em um número geral que circunda mil fotografias
publicadas, observa-se apenas uma imagem que sugere mais explicitamente o
protagonista em posição de passividade sexual.
Esta imagem ‘peculiar’ em
G Magazine
foi publicada na seqüência do
chamado ‘ensaio interno’, não fazendo parte do ensaio de capa. Ou seja, a única
fotografia que sugere passividade sexual do protagonista tem como modelo um
ilustre desconhecido. Os mais ‘famosos’, que compõem os ensaios de capa, não
aparecem em nenhum momento nos ensaios em posições neste sentido, como que
oferecendo seu corpo ao observador para que este aceite um convite a dividir a
cena ocupando uma posição de atividade sexual, de acordo com análise das
fotografias.
128
G 77, p. 61
Imagem de protagonista do ensaio em posição de passividade
sexual: uma exceção às seqüências características da revista que,
de forma geral, legitimam a posição ativa do masculino
– o possuidor do pênis e, portanto, do poder – na sociedade.
129
A demonstração de poder físico pela posse e exibição do pênis enrijecido, o
cetro do rei ou ‘falo’, é uma base de sustentação da masculinidade. A imagem
reproduzida da edição 77 de
G Magazine
causa uma inversão do papel
hegemônico do masculino, por representar o corpo-signo do protagonista do
ensaio numa disposição anatômica que vai de encontro às idéias de dureza e de
verticalidade erguida, que de acordo com Guiraud sustentam noções de virilidade
as quais ostentam aqueles que exibem um pênis ereto.
A imagem do protagonista literalmente “de quatro” (com o corpo-signo
prostrado à frente, apoiado pelas mãos e joelhos) não reflete o direcionamento de
ostentação e exibição de poder por parte do masculino. Este corpo-signo prostrado
omite o símbolo maior de masculinidade, o pênis, e dispõe fisicamente o corpo do
homem de uma forma que o deixa exposto ao exercício do domínio por parte de
outro.
A posição corporal representada naquela fotografia traz consigo noções de
curvado, mole e baixo, as quais Guiraud opõe às disposições físicas de
demonstração de posse do poder, causando uma ‘apassivação’ do masculino,
papel inverso ao tradicionalmente ocupado por este no sistema. Esta
representação é uma exceção à linguagem utilizada por
G Magazine
para organizar
o seu discurso.
130
Em imagens com exibição do pênis ereto, o lugar-comum nas seqüências
fotográficas de
G Magazine,
quando o olhar lançado pelo protagonista sobre o
espectador, aquele sugere um convite à passividade deste último.
Com relação ao olhar, o filósofo francês Jean-Paul Sartre (2005) menciona
uma espécie de impasse intersubjetivo: especialmente nas relações amorosas, o
amante quer ser o olhar no qual a liberdade do outro aceita se perder, olhar sob o
qual o outro se aceita transformado em objeto. Este processo ocorre sob a
atuação da libido, força-motriz da pulsão sexual. Sartre enfatiza que “identifico-me
totalmente a meu ser-olhado a fim de manter diante de mim a liberdade ‘olhante’
do outro; é apenas este ser-objeto que pode servir-me de instrumento para operar
a assimilação, a mim, da outra liberdade” (SARTRE 2005:404). Assim, o filósofo
institui uma hierarquia no olhar: o sujeito que olha especialmente num contexto
amoroso reifica o outro para que este, no seu olhar, aceite amorosamente ser
feito objeto, perdendo-se neste olhar.
Este tom inebriante do olhar para Sartre será marcante em
G Magazine:
na
maioria das fotos o olhar do protagonista diretamente para a câmera, para o
espectador. Os modelos dos ensaios exibem seus corpos e, em vários momentos,
olham fixamente para o leitor, procurando torná-lo objeto e fazer com que este
libidinosamente se perca, abra mão de sua liberdade existencialista e torne-se
objeto. Uma vez nesta posição, o leitor subjuga-se ao olhar do protagonista,
131
sucumbe a este e passa a ocupar a posição do manipulado, do controlado,
daquele que somente
é
em razão do desejo de quem olha.
Assim, estabelece-se uma relação de poder em que aquele que olha tem o
controle, e aquele olhado, que se perde no olhar, tem a sua liberdade aprisionada
e coloca-se à disposição do domínio de quem olha. O corpo-signo do protagonista
que lança o olhar está fisicamente disposto via de regra de forma a ocupar
uma posição de atividade sexual por parte deste, que exibe seu pênis ereto e o
oferece ao leitor. Este leitor, por sua vez, aprisionado no olhar convidativo lançado
pelo protagonista, é levado cativo imaginariamente a ocupar a posição de
passividade no estabelecimento da relação entre eles.
132
G 68, p. 37
Imagem do ensaio de capa da edição 68, estabelecendo especialmente
através do olhar uma cumplicidade com o espectador: um convite a
desfrutar do que suas mãos oferecem; o protagonista ocuparia,
no imaginário da ação sexual, a posição ativa.
133
Mas, esta mesma cumplicidade do olhar não se estabelece inversamente,
quando o fotografado é focado de costas para a câmera, ou em qualquer posição
que não denote sua atividade no ato sexual pela demonstração de poder do seu
pênis.
Esta indicação generalizada, de ostentação e demonstração de poder do
masculino, por intermédio da exibição do símbolo deste poder e pelo controle
exercido pelo olhar, é traço explícito na linguagem mais largamente utilizada na
representação dos corpos-signos por parte da revista. Estes caracteres ditam o
direcionamento da mensagem que
G Magazine
passa a seus leitores, construindo o
discurso do veículo ao longo dos ensaios fotográficos.
Além dos aspectos citados, ainda outros traços identificadores que
norteiam a interpretação imaginária dos corpos-signos. A jornalista Ana Maria
Fadigas, diretora responsável de
G Magazine,
declarou para este trabalho que
existe um certo parâmetro a ser seguido pela revista, que ela preferiu chamar de
núcleo:
um perfil étnico-etário dominante ou preferido do público-alvo. São
homens jovens, brancos, olhos e/ou cabelos claros e fisicamente robustos. São os
estabelecidos deste meio
outsider.
“Se eu sair do ‘núcleo’, sou queimada em praça pública”, afirma Ana Maria
quando perguntada sobre a presença de protagonistas de etnias variadas na capa.
134
O núcleo, segundo levantamento deste trabalho, inclui homens cuja pele possui
coloração branca, preferencialmente com cabelos e/ou olhos claros (em tons de
azul, verde ou mel), idade inferior a 30 anos e corpo atlético ostentando uma
anatomia com músculos delineados pelos exercícios físicos. Guardando-se os
devidos referenciais, este ‘núcleo’ mencionado pela jornalista ocuparia a posição
estabelecida no sistema gay, tornando
outsiders
aqueles que não possuem tais
atributos. A aplicação de estudos antropológicos sobre estes dados poderia
concluir muito a respeito do funcionamento das relações dentro da comunidade
gay.
Este indicativo de direcionamento perpassa o processo de interpretação das
imagens fotográficas, processo este que necessariamente passa pela atuação do
imaginário do leitor, que posicionará simbolicamente o corpo-signo. Desta forma,
uma convergência entre campos de estudo sobre a linguagem, em especial a da
imagem e da fotografia, bem como processos psíquicos que envolvem a
interpretação de um signo por um sujeito faz-se mister neste momento do
trabalho.
135
CAPÍTULO IV
DAS CATEGORIAS E DOS REGISTROS
136
As convergências entre Peirce e Lacan
Em continuidade, utilizaremos uma aproximação de dois campos
importantes para este estudo: o semiótico e o psicanalítico. A possibilidade de tal
paralelo foi apresentada em um texto de Lucia Santaella (1999) intitulado
As três
categorias peirceanas e os três registros lacanianos
. Neste artigo, a autora propõe
uma comparação geral entre as categorias fenomenológicas universais de Charles
Sanders Peirce (primeiridade, secundidade e terceiridade), de um lado, e as três
categorias conceituais da realidade humana de Jacques Lacan (Imaginário, Real e
Simbólico), de outro.
Santaella faz uma análise comparativa entre Peirce e Lacan, salientando que
a lógica da terceira categoria peirceana, que é a lógica do signo, pode funcionar
como direcionamento para a compreensão das interações complexas que os
registros lacanianos mantêm entre si. Esta proposta de aproximação dos dois
campos científicos enriquecerá nossas conclusões sobre os corpos-signos utilizados
por
G Magazine.
Ao considerar a fotografia como signo, estamos incluindo esta
representação como forma de linguagem, um sistema de signos constituído por
características específicas que regem sua representação. Partindo da reflexão de
teóricos sobre o tema como Roland Barthes e Arlindo Machado e aplicando
suas conclusões às seqüências que compõem os ensaios fotográficos de
G
137
Magazine,
identificamos neste trabalho o teor pornográfico do conteúdo das
imagens constantes nas páginas do veículo.
A interpretação do signo, ou seja, carregá-lo de significação e posicioná-lo
na rede simbólica de representações, depende diretamente da interação do sujeito
para com este signo. Em se tratando dos corpos-signos de
G Magazine,
representados em ensaios foto/pornográficos, o posicionamento desta
representação dependerá de aspectos ligados à sexualidade do indivíduo-leitor, a
como a pulsão sexual nele atuante reage à simbólica do nu pornográfico
masculino, produzindo no seu imaginário uma interpretação.
Desta forma, a interação entre as tricotomias fenomenológica de Peirce e
psicanalítica de Lacan, proposta por Santaella, é de suma importância para a
conclusão deste trabalho. A foto/pornografia publicada por
G Magazine
é signo
que segue a lógica da terceira categoria peirceana, encontrando, assim, um
diálogo com os registros lacanianos, fato que auxiliará a obtenção do êxito das
aspirações deste estudo.
A fenomenologia, de forma geral, constitui-se de formulações teóricas que
buscam ressalvar descritivamente a experiência vivida da subjetividade, em
detrimento de princípios, teorias ou valores preestabelecidos. Tais formulações
estão especialmente ligadas às Ciências Humanas, Psicologia ou Psicanálise.
138
Segundo Santaella, Charles Sanders Peirce levou 30 anos para completar sua
teoria das categorias fenomenológicas, dividindo-a em três bases fundamentais.
Esta divisão triádica é um ponto de partida importante para a análise de qualquer
fenômeno.
Lucia Santaella explica brevemente as categorias fenomenológicas
peirceanas, enfatizando que
“a categoria da primeiridade inclui as idéias de acaso,
originalidade, espontaneidade, possibilidade,
incerteza, imediaticidade, presentidade, qualidade e
sentimento. Na secundidade, encontramos idéias
relacionadas com polaridade, tais como força bruta,
ação e reação, esforço e resistência, dependência,
conflito, surpresa. Terceiridade está ligada às idéias
de generalidade, continuidade, lei, crescimento,
evolução, representação e mediação” (SANTAELLA
1999:84).
Por serem apenas noções gerais que indicam o perfil lógico dentro do qual
algumas classes de idéias se incluem, as categorias universais não substituem nem
excluem a variedade de outras categorias que podem ser encontradas em todos os
fenômenos.
Para Peirce, a fenomenologia é ponto de partida para a análise de um
fenômeno qualquer, mas as ferramentas analíticas vêm dos conceitos semióticos.
139
A decodificação de signos, paralelamente, passa por três estágios, ou categorias
do pensamento: índice (primeiridade signo que denota o referente baseado na
conexão física entre ambos), ícone (secundidade signo que denota o referente
simplesmente em virtude das características que ele possui, quer esse referente
exista realmente, quer não) e símbolo (terceiridade signo que denota seu
referente em virtude de uma lei, associação de idéias, convenção) (SANTAELLA
2003b)
.
Assim, temos um paralelo estabelecido com relação ao nascimento da
Semiótica dentro da Fenomenologia:
FENOMENOLOGIA SEMIÓTICA
PRIMEIRIDADE ÍNDICE
SECUNDIDADE ÍCONE
TERCEIRIDADE SÍMBOLO
Para Santaella, “a semiótica nasce no coração da fenomenologia”, que a
lógica da terceira categoria fenomenológica corresponde à noção de signo, “ela é o
signo” (SANTAELLA 1999:89). Assim, o signo como representação simbólica
estaria situado na categoria universal fenomenológica da terceiridade.
Em seu artigo, após traçar a aproximação entre fenomenologia e semiótica
peirceanas, Santaella salienta que
“dada a generalidade lógica dessas categorias,
entretanto, elas não são capazes de especificar o
140
conteúdo desses registros, pois essa especificação
pode vir do campo da psicanálise.
Conseqüentemente, a fenomenologia e a semiótica
podem fornecer o substrato lógico, sem poder
indicar quais são as características específicas que a
primeiridade, secundidade e terceiridade adquirem
na psicanálise” (Idem).
Com o auxilio de conceitos psicanalíticos, as categorias fenomenológicas
adquirem características especificas que auxiliam a apontar o conteúdo dos
fenômenos por ela registrados. Lucia Santaella, a partir deste ponto, estabelece
um paralelo entre as categorias fenomenológicas e os registros psicanalíticos.
“Assim, primeiridade, secundidade e terceiridade podem ser proeminentemente
percebidas no imaginário, real e simbólico respectivamente” (Idem, p. 87).
Temos, portanto, um segundo paralelo:
FENOMENOLOGIA PSICANÁLISE
PRIMEIRIDADE IMAGINÁRIO
SECUNDIDADE REAL
TERCEIRIDADE SIMBÓLICO
Esta aproximação proposta por Santaella vem ao encontro do presente
estudo. As fotografias de
G Magazine
são signos ou corpos-signos, como os
temos chamado. Então, lidamos com processos semióticos de significação, que
141
estamos tratando de representação. O teor destas imagens é pornográfico,
atiçando a atuação da libido que leva o sujeito à busca pelo suprimento da
demanda criada pela pulsão sexual, ações de ordem psíquica. Assim sendo, o
processo fenomenológico da subjetividade na interpretação imaginária destes
corpos-signos por parte do sujeito depende diretamente do desencadeamento de
aspectos psíquicos ligados à sexualidade.
Um quadro mais completo da proposta de Santaella seria como segue:
PSICANÁLISE FENOMENOLOGIA SEMIÓTICA
IMAGINÁRIO PRIMEIRIDADE ÍNDICE
REAL SECUNDIDADE ÍCONE
SIMBÓLICO TERCEIRIDADE SÍMBOLO
Como próximos passos, analisaremos estes paralelos entre as categorias
semióticas e os registros psicanalíticos.
142
O símbolo semiótico e o registro simbólico.
Sabendo-se que ‘a semiótica nasce na fenomenologia’, sobre este paralelo
pode-se construir a seguinte estrutura: pela ligação de ambos com a categoria
fenomenológica da primeiridade, o índice semiótico é da ordem psíquica do
Imaginário; partindo da secundidade, o ícone semiótico é da ordem do Real; e o
símbolo semiótico, da ordem do Simbólico a partir da terceiridade.
O símbolo semiótico, nascido na terceiridade fenomenológica, é signo que
representa seu referente em virtude de uma lei, associação de idéias ou
convenção. Segundo Santaella,
“Terceiridade está ligada às idéias de generalidade,
continuidade, lei, crescimento, evolução,
representação e mediação. (...) A correspondência
do registro simbólico com a terceiridade é óbvia. O
grande Outro em todos os seus sentidos é sempre
terceiridade. É lei, mediação, estrutura regulada que
prescreve o sujeito” (Idem, p. 83, 87).
O registro do Simbólico é o lugar do código fundamental da linguagem,
regido por leis específicas. A terceira categoria corresponde exatamente à noção
de signo, dadas as qualidades da terceiridade de representação e mediação,
papéis exercidos pela linguagem por intermédio do signo, elo de ligação entre um
interpretante e um objeto.
143
O símbolo semiótico, dada a ligação que estabelece entre o signo e seu
referente ter como base a associação convencional de idéias, nasce na categoria
fenomenológica da terceiridade e, portanto, tem relação direta com a instância
psíquica do Simbólico. É a partir desta instância que o sujeito tenta organizar o
caos de tudo que o rodeia, procurando montar uma teia ou rede que interligaria e
estruturaria todas as idéias. Estas idéias teriam representações, ou signos, que
passariam a ocupar um lugar específico e desempenhar um papel definido, para
que o caos torne-se minimamente organizado. Nasce, desta forma, uma
linguagem construída sobre uma cadeia de significantes. A partir do domínio da
linguagem, o sujeito psíquico passa a existir.
Desta forma, a ‘construção’ de uma determinada realidade para um sujeito
depende da forma como este posicionará os signos que o cercam na rede
simbólica, o que servirá de matriz para uma interpretação do mundo.
Conseqüentemente, a escolha dos signos que representarão uma realidade
influencia diretamente nesta visão de mundo que o sujeito construirá. Os signos,
formadores da linguagem, são os mediadores entre o sujeito e o referente, e
determinar os signos utilizados para passar uma mensagem é ferramenta
importante para moldar uma idéia a ser disseminada.
144
Assim, a mediação que a fotografia em
G Magazine
estabelece entre o
sujeito-leitor e o corpo nela representado é de ordem simbólica. O corpo-signo é a
principal linguagem utilizada pela revista para estruturar o seu discurso. Em
G
Magazine
o corpo masculino nu representado na fotografia é corpo-signo
anatomicamente exibido de forma a simbolizar uma idéia e passá-la como
mensagem, estruturando o discurso da revista.
Conforme vimos, a fotografia em
G Magazine
representa corpos masculinos
nus fisicamente dispostos tendo como foco a exibição explícita do pênis ereto.
Segundo Guiraud (1991), tal disposição física tem relação com as idéias de
direção, de posse e ostentação de poder, referenciando o masculino como
detentor do controle. Esta é a base sobre a qual se estrutura o discurso da revista.
O masculino em posições de demonstração de poder é o signo ou corpo-signo
escolhido pela revista para posicionar sua idéia no sistema.
Baseados em Foucault, podemos identificar nas seqüências fotográficas
publicadas pelo veículo um discurso do sexo embasado numa linguagem corporal
que posiciona simbolicamente o masculino no sistema, tendo como reflexo no
imaginário social a identificação da posição, ou do papel deste masculino no
sistema, gerando um discurso de controle baseado na sexualidade.
145
O índice semiótico e o registro imaginário.
A escolha do signo que estabelece a mediação entre o sujeito e o mundo
influencia diretamente a construção mental que o indivíduo elaborará de uma dada
realidade. A mediação é de ordem simbólica, e luz a uma interpretação
imaginária por intermédio de processos de identificação do signo para com o seu
referente.
O índice semiótico, nascido na primeiridade fenomenológica, é signo que
representa seu referente pelo estabelecimento de uma conexão física entre
ambos. Esta conexão física desencadeia o processo de identificação. Para
Santaella, qualquer processo de identificação é de ordem imaginária, pois
identificar é
“obliterar a distinção entre o sujeito e o objeto da
identificação, como um estado monádico que almeja
a completude e sempre à beira da dissipação, pois
um dos pólos desta pretensa unidade está sempre à
beira do desaparecimento. (...) Tal iminência de
dissipação é uma das principais características da
primeiridade”, (Idem, p. 86).
O processo de identificação procura a correspondência entre o referente e o
signo que o representa pelos indícios apresentados que possam conectá-los. O
modelo do Imaginário é a imagem do corpo, uma imagem ilusória de inteireza.
Com esta base, toda interpretação imaginária alude à criação de uma totalidade
146
perfeita, ignorando diferenças reais. Por intermédio desta instância o sujeito ‘filtra’
o mundo, construindo uma interpretação ilusória deste por inteiro. O grau de
inteireza é tão profundo que o mundo parece duplicado, porém, sua réplica
imaginária é ideal: o mundo é um sistema e funciona como tal.
No caso das fotografias de
G Magazine,
tal conexão física do signo com o
referente se pelo reconhecimento da imagem de uma pessoa representada
naquela fotografia. Porém, este reconhecimento criará uma interpretação ilusória,
imaginária. O corpo-signo ocupa o lugar do protagonista fotografado no momento
da leitura da imagem, e por intermédio da identificação oblitera-se a distinção
entre o sujeito e o objeto da identificação. Aumont (1992) menciona o processo de
identificação entre o espectador e a imagem do outro que ele observa. Mas, esta
identificação pela imagem do corpo dá-se com tons de inteireza, de idealização do
corpo.
Tal identificação é extremamente frágil, prestes a deixar de existir, que
se estrutura sobre uma representação de natureza ideal e completa, que é
possível na instância psíquica do Imaginário, dada a visão de inteireza do corpo do
protagonista. A idealização é passível de quebra iminente, especialmente pela
atuação circular da tricotomia psíquica de Lacan: o abrupto Real ou o mediador
Simbólico podem atuar, fazendo com que esta interpretação imaginária do leitor
esteja à beira da dissipação a qualquer momento.
147
Este fundamento de identidade é que permite ao signo que ele funcione
como tal. Os indícios que a representação fotográfica exibe na revista constroem
uma realidade psíquica ao observador do corpo-signo, uma forma de este enxergar
e interpretar aquele momento, posicionando simbolicamente a imagem como
forma de linguagem. A fotografia como índice semiótico, então, pertenceria à
instância do Imaginário.
Tendo em vista que, para a identificação são utilizadas conexões físicas do
signo com o seu referente, o leitor interpreta imaginariamente aquela reprodução
fotográfica como a imagem do protagonista do ensaio de
G Magazine
e um
corpo idealizado, fazendo uma interpretação e impondo sobre a imagem uma
visão parcial, idealizada.
A linguagem utilizada para apresentar esta ‘dada realidade’, moldada na
instância do Simbólico pelo manuseio do corpo-signo, influencia diretamente na
estrutura ilusória construída imaginariamente pelo leitor. As noções de posse e
demonstração de poder intrínsecas à disposição anatômica do corpo, bem como à
exibição explícita do pênis ereto pelo protagonista dos ensaios de
G Magazine,
direcionam a visão imaginária do mundo. O masculino é o possuidor legítimo de
um status hierarquicamente superior no sistema, pois seu corpo apresenta indícios
diretamente ligados a noções divinas de manifestação e ostentação de poder.
148
Na instituição imaginária da sociedade, explicada por Castoriadis, o homem
ocupa ‘naturalmente’ a posição central do eixo sobre o qual gira o sistema. Esta
visão é facilmente identificável na constante manifestação corpóreo-sígnica que
constrói o discurso de
G Magazine,
e este é o cerne significante que direciona a
leitura da linguagem publicada pela revista. Em uma sociedade patriarcal, tal
discurso androcêntrico, mesmo estruturado sobre uma linguagem não-usual, vai
ao encontro da cultura imaginariamente construída e legitimada no mundo
ocidental.
149
O ícone semiótico e o registro do Real.
Avançando sobre o paralelo proposto por Santaella, a fotografia como ícone
corresponderia à instância do Real. O ícone semiótico, por um processo de
aproximação, é signo que apresenta as características gerais do referente. O
referente torna-se, portanto, algo aproximado, porém não capturado, tendo em
vista que o Real não pode ser simbolizado.
“O real é aquilo que sobra como resto do imaginário e
que o simbólico é incapaz de capturar. O real é o
impossível, aquilo que não pode ser simbolizado. (...)
Esta polaridade, esta fratura entre o imaginário e o
real, entre o simbólico e o real corresponde
exatamente à categoria da secundidade. O real é
sempre bruto e abrupto. É causação não governada
pela lei do conceito” (Ibidem).
O ícone semiótico não é o mesmo que uma imagem mental que representa
um objeto. No caso da imagem mental, ter-se-ia de abstrair, dentre muitas
imagens particulares, uma geral. Lacan reconheceu que, para o falante,
inadequação na relação entre o objeto e sua imagem, entre as partes do corpo e a
imagem que se tem dele, por exemplo.
O ícone peirceano é o fenômeno que funda cada possível juízo de
semelhança, pelas características do objeto e aproximação deste com o signo.
Dessa forma, pode-se inferir que o ícone corresponderia ao fenômeno sob o qual é
possível construir uma representação do objeto, sendo, portanto, a base sob a
150
qual o fenômeno é percebido. Assim, evidencia-se que o ícone configura-se em
elemento fundamental ao processo de percepção, representando o suporte sobre
o qual ocorre tal processo. Em suma, ele é a razão do signo.
Segundo Dubois, a fotografia não concede ao seu espectador qualquer
significação relativa ao referente nela imagetizado, centrando seu foco na simples
apresentação da existência (em um ponto qualquer do espaço/tempo) daquela
imagem (DUBOIS 2004:84). Assim, a fotografia foca no objeto, na ação de um
fato qualquer no seu ‘aqui/agora’, no seu puro acontecer, no ato de acontecer,
enfatizando o fato em si mesmo e desconsiderando qualquer causalidade ou lei
que pudessem tê-lo determinado. Desta forma, o foco na apresentação pura e
simples do objeto posiciona a fotografia na categoria fenomenológica da
secundidade, que enfatiza as relações de ação e reação, de polaridade bruta e
que, segundo Santaella, pode ser percebida na instância psicanalítica do Real, sem
representação significativa deste objeto fotografado, apenas sua apresentação.
É necessário um nível mais alto de abstração para que, sobre uma base
icônica de semelhança, possamos representar simbolicamente uma idéia qualquer,
e desta construirmos uma leitura imaginária.
151
A semelhança de um objeto é definida pelo grau de adequação deste com
um segmento constitutivo do objeto real, numa relação que é estabelecida pelo
campo perceptivo. Desse modo, a semiótica se introduziria neste foco de estudo
do ícone, no qual a semelhança se manifesta enquanto a maneira por meio da
qual o sujeito conhece e, posteriormente, ressignifica o mundo.
Esta ressignificação não mais pertence à instância do Real e, portanto, o
signo não se tratará mais de ícone semiótico, pois a busca pela identificação é de
ordem imaginária, enquadrando-se, assim, como índice semiótico. O Real
corresponde ao objeto a ser representado em outra instância, o Real é aquilo que
determina o signo e, ao mesmo tempo, é representado por ele a partir do
momento em que este objeto corresponde simbolicamente a um nó no imaginário.
Em linhas gerais, a fotografia de
G Magazine
exerce esta relação
indissociável de um fundamento imaginário de identificação daquela representação
com um corpo que, por sua vez, era real, pois determina o signo e é por ele
representado simbolicamente, surtindo o efeito de representação imaginária para
o leitor. Daí a importância desta aproximação proposta por Lucia Santaella para o
desenvolvimento deste trabalho.
Para finalizar, Santaella explica a lógica triádica do signo da seguinte forma,
levando em consideração o fundamento (o processo de identificação), o objeto
152
(aquilo que o signo representa em outra instância) e o interpretante (processo de
representação por meio da linguagem):
“O imaginário, isto é, a categoria da demanda do
amor, ocupa a posição lógica do fundamento do
signo. O real, a categoria da pulsão sexual, ocupa a
posição lógica do objeto do signo, enquanto o
simbólico, a categoria do desejo, ocupa a posição
lógica do interpretante” (Idem, p. 89).
Para Peirce, o signo é uma relação indissociável entre um fundamento
(Imaginário), que permite ao signo funcionar como tal; um objeto (Real), que
determina o signo; e um interpretante (Simbólico), o efeito que o signo pode
produzir em uma mente interpretadora qualquer.
No que diz respeito a este trabalho, a correlação entre estes três complexos
campos do conhecimento humano dá-se na perspectiva de identificar o discurso de
um veículo de comunicação que se utiliza da linguagem de corpos-signos
embebidos em teor pornográfico. Pelo teor pornográfico do material, aspectos
psíquicos da sexualidade tornam-se fundamentais para melhor compreensão dos
caminhos utilizados para
G Magazine
atingir seu objetivo de comunicação por
intermédio desta linguagem peculiar: o corpo masculino em nu explícito, frontal e
com ereção.
153
A imagem do corpo-signo publicada nas páginas da revista é representação
por excelência. Este corpo é um signo que pretende penetrar no Imaginário do
leitor e obter como resultado o suprimento de uma demanda: fazer-se
ilusoriamente inteiro e proporcionar ao espectador a manifestação de um prazer
proibido. O corpo masculino nu assume significados concedidos por disposições
anatômicas dos modelos durante os ensaios, e tal anatomia direciona ao
entendimento de que estes modelos, como possuidores do falo, são os legítimos
representantes do poder estabelecido no sistema social vigente. Eles são
masculinos, e ao homem caberia pela imaginária posse e demonstração do
poder do falo – a posição central do eixo de decisões.
A exibição do pênis ereto sendo oferecido explicitamente ao espectador
coloca o protagonista do ensaio em posição de atividade sexual e como o detentor
do poder, posto que este poder está representado pelo órgão sexual,
imaginariamente confundido com o falo que a todos falta.
Concernente a isso, o discurso da sexualidade de
G Magazine
torna-se
ainda mais persuasivo quando temos uma cultura que se direciona para uma
mudança importante de comportamento. A demonstração dos prazeres proibidos
na sociedade contemporânea está sofrendo uma metamorfose profunda, segundo
análise do psicanalista Charles Melman, na sua forma de encarar o gozo.
154
Um gozo no Real.
Quando o termo ‘gozo’ é empregado psicanaliticamente, não se deve
entendê-lo em sua acepção corriqueira, mesmo que haja uma associação entre
ambas. Comumente, gozar remete ao gozo sexual e, por isso, tem parcialmente
uma ligação com o prazer. Mas, simultaneamente, o gozo está além do prazer.
Lacan (1992a) indica que o prazer é uma forma de se proteger do gozo, e Freud
indica a existência de um além do princípio do prazer.
Assim, degustar uma boa bebida pode ser um prazer, mas o alcoolismo
transporta o sujeito para um gozo do qual ele se escravo. Este mesmo gozo
pode ser encarado como o funcionamento de um sujeito que repete um
comportamento sem saber o que o obriga a assim permanecer, mas que lhe
confere uma satisfação temporária.
O gozo é de ordem simbólica, que o próprio Lacan, no seminário
O
avesso da psicanálise,
estabeleceu que “natural ou não, é efetivamente como
ligado à própria origem da entrada em ação do significante que se pode falar de
gozo” (LACAN 1992b:168), colocando a gênese do gozo na ação do significante,
ou seja, na linguagem, no território simbólico.
Importante, conforme analisado, que a disposição física do objeto o
corpo-signo na seqüência dos ensaios fotográficos de
G Magazine
direciona o
155
interlocutor a uma leitura de certos indícios constantes das imagens, que o levam
a posicionar simbolicamente o objeto fotografado na cadeia de significantes,
fazendo com que este ocupe um lugar específico no imaginário.
Mas, no que é chamado por algumas linhas de pensamento de período da
pós-modernidade, esta estrutura do gozo explanada por Lacan parece sofrer
alguma alteração. Charles Melman sugere um homem atual que seguiria a cartilha
do que chama de ‘nova economia psíquica’. Para Melman, “a nova economia
psíquica privilegia o gozo do objeto em detrimento do gozo fálico” (MELMAN
2003:142), retirando, desta forma, o gozo da instância simbólica (da
representação, do Falo), posicionando-o no objeto, no ícone da instância do Real.
O psicanalista continua sua análise, explicando que nesta nova estrutura
“estamos lidando com uma mutação que nos faz
passar de uma economia organizada pelo recalque a
uma economia organizada pela exibição do gozo. Não
é mais possível hoje abrir uma revista, admirar
personagens ou heróis de nossa sociedade sem que
eles estejam marcados pelo estado específico de uma
exibição do gozo” (Idem, p. 16).
A práxis do comportamento deste homem pós-moderno, fragmentado em
sua existência, de forma geral passa de uma organização sobre recalcadas regras
religiosas de cunho moral a uma outra, estruturada numa exibição do gozo. A
156
manifestação daqueles prazeres classificados por Freud como proibidos está
perdendo seu grau de interdição, segundo direcionamento dado por Melman. O
recalque está cedendo lugar à exibição, e a sociedade contemporânea parece
direcionar-se a um nível de permissividade da experiência e, mais ainda, à exibição
pública deste gozo.
Tornou-se lugar-comum o ‘estado específico de uma exibição do gozo’,
especialmente por meio da mídia. Assim, utilizar-se do discurso do sexo como
ferramenta de persuasão toma tons mais imperativos, mais explícitos, tendo em
vista este enfraquecimento do recalque, da lei que proíbe a demonstração de
determinados prazeres.
De acordo com Melman, na nossa sociedade
“é bem evidente que cada um pode publicamente
satisfazer todas as suas paixões e, além do mais,
pedir que elas sejam socialmente reconhecidas,
aceitas, até legalizadas. (...) Estamos no exato ponto
do abandono de uma cultura, ligada à religião, que
obriga os sujeitos ao recalque dos desejos e à
neurose, para nos dirigir a uma outra em que se
propagandeia o direito à expressão” (Idem, p. 29,
107).
Esta nova economia configura-se numa prova evidente de exibição do gozo,
talvez disfarçada sob a acepção do que é comumente chamado de ‘liberdade de
157
expressão’, difundida pelo discurso burguês pós-Revolução Francesa e concedida
principalmente pela queda do poder do recalque religioso no Ocidente. Esse
processo levaria a civilização contemporânea a seguir um caminho de buscalivre
e legitimada – de manifestação do gozo, uma forma de exposição da intimidade,
não tão ‘íntima’. Assim, como sugere o subtítulo do livro de Charles Melman, este
processo levaria o homem à procura de um
gozar a qualquer preço.
O direito propagado por esta nova economia psíquica à livre expressão e
plena satisfação dos desejos inclui, logicamente, o campo da sexualidade, um dos
pontos centrais de atuação do recalque moral religioso. Melman deixa claro que “a
nova economia psíquica faz dele [o sexo] uma mercadoria entre outras” (Idem, p.
48). Nesta ordem, o sexo é produto a ser manipulado na troca de valores do
mercado, visando à busca do gozo e sua exibição.
Importante salientar que, em se tratando de uma economia psíquica, o
sexo é mercadoria de alto valor nas trocas imaginárias, ou seja, não estamos
lidando aqui com o corpo como mercadoria de troca física, mas com o corpo-signo
como mercadoria de troca imaginária.
G Magazine
utiliza-se desta importante
faceta da nova economia psíquica para estruturar seu discurso sobre uma
linguagem que utiliza o sexo como mercadoria de troca imaginária.
Neste sentido, Melman define:
158
“Em outras palavras, trata-se de exibir
permanentemente o que ordinariamente se encontra
mascarado, reservado, por exemplo, no momento da
efusão amorosa, e de fazer de forma a que, de cara,
o interlocutor seja convidado ao gozo explícito,
partilhado, desse objeto. Ora, parece que se tornou,
nos dias de hoje, um, até mesmo o comportamento
comum. Esse dispositivo participa do que alimenta a
economia do mercado, quer dizer, a constituição de
comunidades que se agrupam em torno do mesmo
objeto explícito de satisfação” (Idem, p. 52).
Neste momento, falando especificamente da ‘economia do mercado’, Melman
avalia que a exibição pública do que um dia foi considerado privado configura-se
num convite explícito ao gozo, segmentando a sociedade em grupos de indivíduos
que partilhariam de um mesmo objeto de satisfação. A manifestação de prazeres,
outrora mais proibidos que hoje, tem seu reflexo na economia do mercado pela
criação do que o autor chama de ‘comunidades’ que processam tal manifestação e
se satisfazem em torno do mesmo objeto. As noções de fronteira entre o público e
o privado no que se refere ao obsceno tornam-se tênues.
Assim, pela ‘exibição permanente’ do objeto que imaginariamente supre a
demanda criada pela pressão orgânica leva o sujeito ao gozo. Para Melman, este
seria o comportamento mais corriqueiro do homem fragmentado da pós-
modernidade.
159
A criação de uma espécie de nicho em torno de um mesmo objeto explícito
de satisfação contribui para um aumento da estigmatização entre os grupos ou
comunidades, como sugeriu Melman na sociedade atual: sujeitos com gozos
específicos constroem verdadeiras irmandades para partilha em torno do
suprimento de uma demanda peculiar, grifando ainda mais o teor fragmentado do
mosaico social da contemporaneidade. No caso dos leitores de
G Magazine,
a
exibição do gozo dá-se por intermédio da contemplação do sexo inscrito no corpo
do protagonista e explicitamente exibido nas imagens que compõem os ensaios
fotográficos da revista. Esta contemplação reflete no desencadeamento de uma
interpretação imaginária na mente do leitor, que momentaneamente supre sua
demanda.
Tal contemplação, nesta nova economia psíquica, tem uma qualidade
peculiar. A fotografia pornográfica permite “um acesso mais direto ao objeto real,
quer dizer, ao pênis”, configurando-se numa “exibição permanente do objeto
explícito de satisfação” (Idem, p. 52). Neste sistema, “o que o objeto é vale mais
do que representa” (Idem, p. 55). Assim, a apresentação pornográfica do sexo – e
não o que ele representa exerce um importante papel no eixo principal de
interpretação da mensagem em
G Magazine
.
160
É como se a terceiridade fenomenológica fosse deixada de lado, e o símbolo
semiótico perdesse em muito seu valor, pois as noções de representação não mais
teriam um papel a cumprir. O que o objeto (secundidade) sugere em uma mente
(primeiridade), sem mediações, direcionaria o sujeito ao gozo do objeto, e não do
que ele representa.
Este foco no objeto apresentado, e não em uma representação dele,
aproxima o corpo-signo estampado na fotografia pornográfica da categoria
fenomenológica da secundidade (do bruto e abrupto, do instantâneo, da reação,
do surpreendente, sem mediações) e, portanto, da instância lacaniana do Real,
pois nestes casos a fotografia não representaria, mas apresentaria o objeto
explícito de gozo a ser partilhado pelos interlocutores. A presentação do
protagonista (exibindo-o como se não houvesse a mediação simbólica da
linguagem, ou seja, como que o fazendo presente ao espectador) exibindo
explicitamente o pênis em ereção é a manifestação do objeto de satisfação, que
convida o leitor ao gozo explícito, e este gozo não necessita de uma representação
do objeto, mas da simples presentação deste ao sujeito.
Como estamos num sistema no qual ‘o que o objeto é vale mais do que o
que representa’, exibir explicitamente este objeto à partilha do gozo, sem leis
mediadoras, sem representações simbólicas, concede ao
ser
mais valia que o
simplesmente
representar.
Nas fotografias de
G Magazine
o corpo-signo com
161
foco especial no pênis ereto é presentado ao leitor sem regras convencionais
que impeçam o livre acesso deste à visão do objeto: o convite ao gozo não é dado
a entender, ele simplesmente se faz.
Este convite direto, abrupto, impactante, causa no imaginário do leitor uma
interpretação ilusória de momentânea cumplicidade, até mesmo de intimidade com
o protagonista, que prende o sujeito na contemplação de sua demonstração fálica
de poder. Estabelece-se, assim, a perda da liberdade do sujeito-leitor, capturado
pela imagem, inebriado pela sua interpretação, satisfazendo sua demanda em
torno da imagem reproduzida do objeto do qual ele imaginariamente é colocado
como compartilhador, rompendo as balizas do gozo simbólico.
162
CAPÍTULO V
ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
163
Um jeito diferente de dizer a mesma coisa.
A disposição anatômica dos corpos-signos dos protagonistas nos ensaios
fotográficos de
G Magazine,
em sua grande maioria,
concede aos fotografados
uma posição de domínio, de atividade perante o interlocutor que consome o
produto.
O corpo-signo é objeto de desejo do espectador, ao mesmo tempo que
também serve para a construção do processo de identificação deste, segundo
Aumont. Este corpo-signo possui nas fotografias um discurso caracterizado pela
demonstração de poder dos protagonistas, pela exibição do órgão genital que,
imaginariamente, é lido como o falo faltante. O dono deste corpo é colocado como
legitimamente ativo, dominante. Conforme Pierre Guiraud, o pênis ereto exibido é
símbolo de demonstração de poder. O homem em
G Magazine
está para
protagonizar tal exibição, presente em todos os ensaios publicados pela revista até
hoje.
Quanto a esta linguagem do nu em
G Magazine,
nota-se um desequilíbrio
numérico no que se refere às imagens publicadas nas quais a disposição
anatômica do corpo do protagonista demonstra a possessão do poder em relação
às imagens nas quais esta demonstração não ocorre. Nas 48 revistas editadas
entre janeiro de 2001 e dezembro de 2004, foram estampadas cerca de mil
fotografias pertencentes aos ensaios dos protagonistas nas páginas da publicação.
164
No meio dessas centenas de imagens, apenas uma sugere mais
explicitamente o fotografado representando uma posição de passividade sexual em
relação ao consumidor da revista. Esta peculiaridade em
G Magazine
foi publicada
na seqüência de um ensaio interno. Os mais ‘famosos’, que compõem os ensaios
de capa, não aparecem em nenhum momento nas seqüências fotográficas em
posições de passividade, como que oferecendo seu corpo ao observador para que
este aceite um convite a dividir a cena ocupando uma posição de atividade sexual.
A demonstração do poder do pênis é uma constante quase absoluta na revista.
Nas fotos com exibição do pênis ereto, o olhar estabelecido entre
protagonista e espectador sugere um convite à passividade deste último,
paralelamente à demonstração de poder do anterior. E este olhar do protagonista
é dominador, cerceando a liberdade do observador, que ‘se perde’ libidinosamente
na ilusória cumplicidade estabelecida entre ambos por intermédio deste olhar.
Mas, esta mesma cumplicidade não se estabelece inversamente, quando o
fotografado é focado de costas para a câmera, ou em qualquer posição que não
denote sua atividade no ato sexual pela demonstração de poder do seu pênis.
Mesmo exibindo o dorso para a câmera, o protagonista em geral não se
oferece para ser passivo em uma imaginária relação sexual com o espectador,
posição que colocaria o exibicionista como não-detentor do poder: ele não seria o
165
agente, aquele que exerce a ação, ou por meio da vontade do qual esta se faz. Em
G Magazine,
sendo o exibicionista uma representação do masculino, via de regra
este não ocupa a posição passiva nas seqüências fotográficas que compõem os
ensaios, o que reflete a estrutura do sistema. As posições hierárquicas e de
valores da sociedade patriarcal, androcêntrica, são mantidas ao longo do discurso
imagético da revista.
A linguagem utilizada por
G Magazine,
do corpo-signo masculino nu com
exibição explícita do pênis ereto, é demonstração de certa liberdade de expressão
no sistema, sem dúvida. A pornografia na revista
trabalha a manifestação de
prazeres proibidos ao sujeito, que busca a satisfação desta demanda pela partilha
da exibição de um gozo. A fotografia pornográfica cristaliza representações de
explícito teor sexual para o deleite do interlocutor, que sobre a imagem
imaginariamente construirá uma significação com o auxílio de processos psíquicos
e que lhe permitirá satisfazer a demanda reprimida socialmente.
Esta demanda reprimida é alimentada com uma linguagem de exibição de
um gozo real, linguagem esta que, de forma geral, legitima a posição do
masculino no eixo de poder, servindo de base para um discurso de fundo
conservador. Este conservadorismo legitima uma estrutura consagrada,
colocando a imagem do protagonista, a figura do masculino, numa posição de
domínio e de exibição do gozo pela posse deste poder.
166
Durante nossa entrevista, a diretora de
G Magazine
Ana Maria Fadigas foi
clara: “A
G
é conservadora, o gay não é revolucionário”. Desta forma, a principal
responsável pelo direcionamento do discurso do veículo decretou que a
G
Magazine
– como também o seu público-alvo – não tem o intuito de revolucionar a
estrutura consagradamente estabelecida.
Os discursos revolucionários têm em comum a idéia da construção de um
novo sistema, de uma nova estrutura na qual o que se considera ‘injustiça’ na
ordem estabelecida deixaria de ocorrer. Assim, por meio de uma revolução, a
construção de “um novo mundo é possível” conforme prega[va] o discurso do
Fórum Social Mundial, evento que intenta se contrapor ao Fórum Econômico
Mundial e, portanto, ao vigente sistema econômico, capitalista e globalizado, e
que, segundo visões socialistas, seria a principal causa das imensas desigualdades
sociais observadas hoje no mundo inteiro.
A sociedade contemporânea é culturalmente estruturada sob uma
perspectiva sexual heterocêntrica, concedendo ao indivíduo heterossexual a
posição central (portador do poder de decisão, do ‘comportamento normal’),
restando às demais nuances da sexualidade humana a posição à margem
(fora do
eixo de poder, com um ‘comportamento dissonante’). E, ainda, nesta estrutura
heterocêntrica, por meio de uma falsa aproximação do falo faltante com o pênis, o
167
homem em posição sexual ativa é legitimado como central, por ser o possuidor do
‘falo’ e por utilizá-lo como ferramenta de demonstração e legitimação de seu
papel. Aos demais humanos, que não exercem tal demonstração fálica de poder
por questões anatômicas ou comportamentais, cabe o papel não-central
.
Assim, numa estrutura social complexa, o homem ativo é ‘estabelecido
entre os estabelecidos’. Naturalmente, à imagem construída em torno deste signo
(homem ativo) são outorgados os direitos de legítimos detentores do poder de
decisão, cabendo a eles a grande maioria das principais posições para
demonstração e exercício de poder nas mais diferentes esferas do sistema, em
especial no Ocidente.
Pois é justamente a esta mesma imagem, a de um homem em posição
ativa, que aludem as disposições anatômicas dos corpos-signos nos ensaios
fotográficos de
G Magazine.
A quase onipresença dos protagonistas em
demonstrações de vigor físico e exibições de gozos tipicamente masculinos
constrói a base do discurso da revista que, apoiado na fala de sua diretora, é
absolutamente conservador.
Neste sentido,
G Magazine
é nada transgressora, anulando a possibilidade
de construção de um discurso revolucionário no que se refere à hierarquia imposta
pelo sistema, e especialmente ao lugar do homossexual. Nas páginas da revista o
168
macho é o ativo, o sujeito que executa a ação, o que demonstra poder pela
exibição do pênis ereto. O eixo do poder gira em torno dele, e o sistema deve por
ele ser guiado.
O protagonista é o deus a ser adorado, e sua vontade deve ser executada.
O seu corpo em evidência serve como objeto de veneração, concedendo a seu
ostentador um poder divinizado. O masculino ativo é o eixo que faz girar o
sistema, é quem ocupa o lugar do ‘rei’, daquele que decide, que manda, pois ele é
portador deste símbolo máximo de superioridade, e o expõe com orgulho por meio
de um discurso imagético de imposição deste poder.
G Magazine,
assim, mantém
um discurso conservador, confirmado nas palavras da diretora da revista, Ana
Maria Fadigas.
O sistema mantém, desta forma, seu eixo central de poder nas mãos do
masculino ativo. O possuidor do pênis é legitimado como possuidor do poder, e a
ele são outorgados o direito de domínio e a devoção idólatra da contemplação,
como a confirmação do jogo entre poderes e prazeres mencionado por Foucault.
Esta legitimação se processa por intermédio da leitura imagética dos ensaios
fotográficos em
G Magazine.
Mantém-se, desta forma, o eixo de poder vigente no
sistema desde muito tempo, não transgredindo junto à estrutura estabelecida de
poder na sociedade.
169
Os corpos-signos, por serem imagens de forte apelo de consumo em uma
cultura profundamente visual e consumista, tornam-se poderosas ferramentas com
capacidade de persuasão de um público que prefere um acesso mais direto ao
objeto (uma imagem) que uma simples representação deste (como palavras). Os
corpos-signos estampados nas páginas da revista dizem, com uma linguagem
diretamente ligada à sexualidade, que o poder pertence ao homem ativo,
ostentador de um símbolo máximo de devoção imaginária: o pênis, comumente
confundido com o falo faltante, confusão esta que sustentação à masculinidade
como ocupante da posição central no eixo de liderança do sistema.
170
Considerações finais.
Por um lado, o espaço para as minorias dentro do sistema parece estar se
abrindo, com oportunidades de manifestações para grupos outsiders tornando-se
legítimas pela sociedade. Mas, quem está mais atento pode perceber que a
movimentação não se direciona para uma abertura às diferenças, a não ser que
estas diferenças possam se transformar em atrativo nicho de mercado. Se os
outsiders não possuírem determinado poder de capital de giro para a economia de
mercado, dificilmente conquistarão dos estabelecidos qualquer espaço para
qualquer tipo de expressão.
No caso do público gay, além do fator acima, a crescente despolitização e
conseqüente carnavalização da Parada do Orgulho Gay, por exemplo, remete-nos
à idéia do desperdício de um possível espaço para vozes dissonantes que, engolido
pelo mercado, torna-se interessante vitrine de negócios, um evento turístico que
movimenta milhões de reais: para o comércio em geral pelo afã consumista, e
para os cofres públicos na conversão de impostos. Com isso temos, na realidade, a
perda da oportunidade de ouvirmos (ou mesmo de nos fazer ouvir) essas vozes
realmente outsiders e que lutam pela modificação desta estrutura de poder, que
se caracteriza pelo massacre daqueles que se posicionam fora do eixo das
decisões.
171
Por intermédio do seu discurso imagético,
G Magazine
, assim como a
Parada do Orgulho Gay, parece deixar esta sensação de oportunidade perdida na
construção de um espaço para as vozes dissonantes ou, numa liberdade poética,
espaço para as imagens destoantes para o grupo estabelecido dentre os gays no
Brasil. A linguagem do nu masculino, frontal e com ereção utilizada pela revista
,
que a princípio poderia introduzir um discurso transgressor contra a estrutura e os
valores estabelecidos pelas amarras do sistema, parece apenas seguir a lógica do
gozo consumista da nova economia psíquica.
A exibição do gozo, comportamento de lugar-comum hoje segundo Melman,
constitui-se no carro-chefe de
G Magazine.
Após vencido o tabu ‘religioso’
referente ao pênis como objeto de divindade, o discurso agora é de oferecimento
do gozo e da ilusão de posse do falo. A imagem do pênis é utilizada não como
movimento transgressor, mas como conseqüência da nova economia psíquica, que
tomou o lugar da economia do recalque religioso.
No que se refere ao discurso em
G Magazine
, o conservadorismo apresenta-
se como a tônica principal na construção do eixo de poder, fazendo eco às vozes
mantenedoras do masculino como fonte divina de emanação da superioridade. O
veículo não transgride, não se faz uma voz diferente em meio ao coro cultural que
constrói imaginariamente o lugar do pênis, do seu possuidor, de sua exibição
172
explicita como demonstração de poder e da legitimação da leitura equivocada do
pênis como o equivalente ao falo faltante.
A figura do homem oferecido para consumo de
G Magazine
ocupa
sexualmente a posição ativa, culturalmente ocupada pelo masculino na
sociedade. A posse do pênis como signo de virilidade, que socialmente suporta a
masculinidade, é exibida nos ensaios fotográficos da revista almejando cumprir o
mesmo objetivo: referendar a hierarquia do macho como rei.
Por intermédio da linguagem do corpo, o veículo impõe a figura do
masculino, do possuidor do pênis, como a legítima ostentadora do poder, do falo
que a todos falta. O pênis, como um cetro, é o símbolo desta posição
hierarquicamente superior aos demais humanos àqueles que não ostentam
poderio pela exibição do pênis ereto e é exibido orgulhosamente, como a
comprovação da virilidade, da potência.
G Magazine
, à primeira vista um veículo totalmente aberto às discussões
voltadas ao tema da igualdade de direitos à diversidade sexual, não consegue
imageticamente representar esta igualdade sem preconceitos em seus ensaios. Os
homossexuais masculinos sexualmente passivos estão excluídos da linguagem
utilizada pelo veículo. Neste sentido, a revista
faz coro ao discurso hegemônico do
patriarcado, do poder nas mãos do macho ativo, dominante.
173
LISTA DE FIGURAS
PÁGINA 32
G Magazine.
São Paulo, n. 84, capa, set. 2004.
PÁGINA 48
G Magazine.
São Paulo, n. 84, p. 30-1, set. 2004.
PÁGINA 93
G Magazine.
São Paulo, n. 52, p. 46, jan. 2002.
PÁGINA 110
G Magazine.
São Paulo, n. 72, p. 36, set. 2003.
PÁGINA 120
G Magazine.
São Paulo, n. 43, p. 34-9, abr. 2001.
PÁGINA 121
G Magazine.
São Paulo, n. 43, p. 40-5, abr. 2001.
PÁGINA 122
G Magazine.
São Paulo, n. 43, p. 46-51, abr. 2001.
PÁGINA 129
G Magazine.
São Paulo, n. 77, p. 61, fev. 2004.
PÁGINA 133
G Magazine.
São Paulo, n. 68, p. 37, mai. 2003.
174
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