Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
GABRIELA BRUNO GALVÁN
Corpo ferido: Os caminhos do self a partir de uma ruptura na
integridade corporal.
São Paulo
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
GABRIELA BRUNO GALVÁN
Corpo ferido: Os caminhos do self a partir de uma ruptura na
integridade corporal.
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Psicologia
Área de Concentração: Psicologia da Aprendizagem e do
Desenvolvimento Humano
Orientadora: Profª. Drª. Maria Lucia T. Moraes Amiralian
São Paulo
2007
ads:
iii
FOLHA DE APROVAÇÃO
Gabriela Bruno Galván
Corpo Ferido: Os caminhos do
self a partir de uma ruptura na
integridade corporal
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Psicologia
Área de Concentração: Psicologia da Aprendizagem e do
Desenvolvimento Humano
Aprovado em:
Banca Examinadora
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
iv
Ao Cláudio, que com seu amor dedicado me
fortalece na busca do crescimento e da
realização.
Ao Rafael, que me encanta a cada dia, vivendo,
descobrindo o mundo e se tornando ele mesmo,
em cada etapa de sua vida. À você, meu filho,
meu amor incondicional
v
Agradecimentos
À Profª Drª Maria Lúcia Toledo Moraes Amiralian, primeiramente por ter me dado um lugar
nessa embarcação e me orientado nessa travessia. Agradeço também por ter caminhado ao
meu lado, no meu ritmo e pelas contribuições que pontuaram o rumo deste trabalho.
Aos professores Tânia Vaisberg e Leopoldo Fulgencio pelas críticas e sugestões no momento
do exame de qualificação, fundamentais para o direcionamento e aprofundamento no trabalho
final.
À querida amiga Cristina Coin, pela amizade de tantos anos e, claro, pela revisão cuidadosa,
dedicada e interessada. Gostei muito de tê-la neste trabalho.
À Monica Giacomini, pelo apoio e incentivo nos momentos necessários; pelos muitos projetos
partilhados; pela parceria na profissão e diante da vida.
À Aline Rocha e Luciana Moreno pela paciência, compreensão e ajuda nos momentos em que
este trabalho se sobrepôs à assistência no hospital. E à Ghina Machado, por tornar a nossa
vida no hospital mais leve e divertida, mantendo um profundo respeito e prazer pela profissão.
À Eneida Kageyama, fisioterapeuta do grupo de prótese e órteses do IOT/HCFMUSP, pela
dedicação aos pacientes e por ter realizado comigo um ensaio gratificante de
transdisciplinariedade.
Às colegas do grupo de orientação Elisa, Andréa, Sabine, Salete, Fátima e Beatriz pela
presença e interesse genuíno pelo trabalho de cada colega. À Carla, companheira passo a
passo, desde a seleção até a conclusão praticamente simultânea, agradeço a companhia na
jornada, a disponibilidade e a torcida de sempre.
Aos pacientes que nos últimos anos me fizeram parte de suas vidas ao partilhar comigo suas
experiências e sentimentos.
vi
RESUMO
GALVÁN, G.B. Corpo ferido: Os caminhos do self a partir de uma ruptura na integridade
corporal. 2008. 120f. Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008.
Este trabalho surgiu a partir da experiência como psicóloga do Instituto de Ortopedia e
Traumatologia do Hospital das Clínicas da faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo. Mais especificamente ao longo dos anos trabalhando no Grupo de Prótese e Órteses,
com pessoas que sofreram amputação de um ou mais membros. A perda de uma parte do
corpo implica alterações significativas na vida de um indivíduo, sendo que as amputações
decorrentes de acidentes em geral têm a característica de serem súbitas e imprevisíveis,
ocasionando mudanças bruscas para as quais não existe preparo possível. A principal questão
que norteou este trabalho diz respeito às conseqüências psíquicas que uma perda física pode
ocasionar. Procurou-se compreender de que forma, diante de uma ruptura no corpo, há uma
interferência na organização psíquica e na maneira pela qual o indivíduo percebe o mundo e se
percebe nele; isso, durante o período de reabilitação. Buscou-se refletir sobre um momento de
perda da integridade corporal e seus reflexos na unidade psicossomática, a partir de casos
clínicos, tendo como referência a psicanálise winnicottiana. Dessa forma, levou-se em conta o
percurso do desenvolvimento emocional segundo a teoria do amadurecimento pessoal de
D.W.Winnicott para se refletir acerca da possível relação existente entre o estágio alcançado
nas tarefas próprias do desenvolvimento normal pelo indivíduo e as conseqüências em termos
da continuidade ou não do processo de amadurecimento após a amputação. Para esta
investigação utilizou-se o método clínico e o referencial psicanalítico, sendo que para a
análise da questão proposta neste trabalho foram apresentados quatro casos clínicos. A perda
de uma parte do corpo ocasionou mudanças em todos os indivíduos que fizeram parte deste
estudo. Mudou o corpo, a forma de se locomover, o trabalho, o sustento pessoal e familiar, o
contato social. Porém a maneira por meio da qual cada um percebeu, significou e vivenciou
essa perda e essas mudanças não foi equivalente nem determinada pela qualidade da perda.
Assim, concluímos que as conseqüências psíquicas de uma perda física serão aquelas relativas
às condições que cada indivíduo tem de elaborar imaginativamente essa perda e transformá-la
em vivência, experiência, história pessoal e interpessoal. A articulação da teoria com a análise
e discussão do material clínico permitiu perceber que não é possível caracterizar uma clínica
dos amputados. Isso porque o que temos são tantas clínicas quanto nos for possível conhecer
os indivíduos amputados em seu processo de amadurecimento pessoal anteriormente à
amputação. Ou seja, uma amputação não direciona incondicionalmente o modo de um
indivíduo estar no mundo, mas implica alterações significativas em sua existência, o que
remete à necessidade de reformulações em sua identidade para incluir essa nova dimensão de
experiência. A dificuldade em realizar a elaboração imaginativa dessa perda, pode tornar a
amputação um acontecimento não integrado na vida de uma pessoa, com conseqüências
prejudiciais à sua saúde e ao seu desenvolvimento.
Palavras chave: Amputação; reabilitação; psicanálise; Winnicott, Donald Woods;
representação de si
vii
ABSTRACT
GALVÁN, G.B. Injured body: the paths to the self after a rupture in the corporal integrity.
2008. 120f. Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2008.
This work arose from the experience as a psychologist in the Institute of Orthopedist and
Traumatology of the Hospital das Clinicas of the faculty of Medicine of the University of São
Paulo. More specifically along the years working on the Group of Prothesis and Orthesis, with
people that suffered amputation of one or more members. The loss of a part of the body
involves significant changes in the life of a person. The amputations originated from accidents
in general have a characteristic of being sudden and unpredictable causing abrupt alterations
in which no preparation is made possible. The main subject which directed this work concerns
the psychic consequences that a physical loss causes. We intend to understand in what way,
from a rupture of the body, there is the interference of the psychic organization and in what
way the person notices the world and perceives himself in it; this, during the period of
rehabilitation. We wanted to reflect about the moment of the loss of the integrity of the body
and its reflexes on the psychosomatic unit, from clinical cases, with the theoretical reference
of maturing of D. W. Winnicott. In this way, we took into account the course of the emotional
development according to the theory of personal maturing to reflect about the possible relation
existing between the stages reached on the proper tasks of the normal development of the
person and the consequences in terms of continuity or not of the process of maturing after the
amputation. For this investigation we used the clinical method and the psychoanalysis
reference. For the analysis of the subject proposed in this work we presented four clinical
cases. The loss of a part of the body caused changes in all of the persons which were part of
this study. Changed the body, the way to move, the job, the personal and family maintenance,
the social contact. In the other hand the way through which each one perceives, signifies and
lives this loss and these changes was not equivalent nor determined by the quality of the loss.
This way, we conclude that the psychic consequences of a physical loss are those related to
the conditions that each person has to elaborate imaginatively the loss and transform it in a
way of life, experience, personal and interpersonal story. The articulation of the theory with
the analysis and discussion of the clinical material permitted to notice that it is not possible to
characterize a clinic of the amputated. This because what we have are as many clinics as we
are able to know the amputated persons in their process of personal maturing previous to the
amputation. Or else, an amputation does not direct unconditionally the way that a person
exists in the world, but implies in significant alteration of his existence, what refers to a need
of reformulations in his identity to include this new dimension of experience. The difficulty in
accomplishing the imaginative elaboration of this loss, can transform the amputation in a non
integrated occurence in the life of a person, with bad consequences to his health and to his
development.
Key-words: Amputation; rehabilitation; psychoanalysis; Winnicott; self
viii
SUMÁRIO
1 – APRESENTAÇÃO............................................................................................................01
2 – INTRODUÇÃO.................................................................................................................11
2.1 A Clínica dos Amputados.....................................................................................11
2.1.1 A rotina do grupo....................................................................................11
2.1.2 Sobre os pacientes...................................................................................13
2.1..3 O lugar do psicólogo..............................................................................17
2.1.4 Observações e reflexões acerca da experiência da amputação................19
2.2 Corpo e desenvolvimento: Alguns apontamentos..................................................22
3 – FUNDAMENTOS TEÓRICO- METODOLÓGICOS......................................................26
4 – A CONSTITUIÇÃO DO SI MESMO NA TEORIA DE D.W. WINNICOTT.................32
4.1 A teoria do amadurecimento pessoal.....................................................................32
4.2 Princípios gerais da teoria do amadurecimento pessoal.........................................38
4.3 As primeiras tarefas: Integração, Personalização, Início das Relações Objetais...41
4.4 Transicionalidade...................................................................................................49
4.5 Uso do Objeto........................................................................................................53
4.6 Concernimento.......................................................................................................56
5 – CASOS CLÍNICOS...........................................................................................................61
5.1 Luís.........................................................................................................................61
5.2 Rogério...................................................................................................................80
5.3 Robson...................................................................................................................88
5.4 Edson......................................................................................................................94
5.5 Síntese dos casos clínicos....................................................................................104
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................112
7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................115
ANEXO 1...............................................................................................................................120
1
1 – APRESENTAÇÃO
Em julho de 1998, passei a trabalhar, como psicóloga, no Instituto de Ortopedia e
Traumatologia do Hospital das Clínicas da FMUSP, mais especificamente no Grupo de
Prótese e Órteses. Esse grupo, multiprofissional, tem como objetivo principal a
reabilitação de pessoas que sofreram amputações de membros. Como o próprio nome
denuncia, a assistência, apesar de buscar uma abordagem mais integrada do indivíduo, é
voltada para a protetização, ou seja, a adaptação ao uso de uma prótese, em substituição
ao membro perdido.
O Instituto de Ortopedia e Traumatologia faz parte do complexo Hospital das
Clínicas e, portanto, é um hospital-escola, ligado à Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo. A assistência nesse hospital-escola desperta inúmeros
questionamentos, uma vez que há muito espaço para propor novas formas de
intervenção. Há condições, por exemplo, para recriar a assistência, porém nem sempre
há espaço para repensar os papéis e as limitações de cada profissional em seu exercício
diário de estar com o paciente, dentro de cada especificidade - o que aumenta a
necessidade de ir em busca de grupos de referência, dentro de outras instituições, que
auxiliem na “oxigenação” das idéias e no pensar com certo distanciamento sobre a
Instituição em que se está inserido.
Assim, o presente trabalho iniciou-se nesse contexto e naquele momento em que
ingressava como a psicóloga responsável por atender os pacientes desse grupo
específico. Muitas foram as questões que se impuseram ao longo desses anos, desde as
mais gerais como a questão da deficiência física, a da reabilitação, a do papel dos
profissionais de saúde na relação com os pacientes e a do papel do psicólogo nesse
2
contexto, até outras mais específicas, em termos de desenvolvimento individual e
subjetividade.
Muitos foram os pacientes atendidos, seja no momento agudo da internação,
quando a perda se configura como irreversível, seja no processo de reabilitação, quando
a prótese costuma adquirir o status de solução/salvação. O contato com cada paciente -
cada história, cada universo individual - foi configurando um campo de reflexão a
respeito da vivência de ter o corpo mutilado.
Certamente não existe o que poderíamos chamar de características psicológicas
de pacientes amputados ou qualquer outro tipo de generalização superficial que pudesse
nos dar parâmetros de comportamentos com os quais lidarmos utilizando fórmulas pré-
estabelecidas. Porém, ao longo do tempo foi possível observar algumas dinâmicas que se
repetiam na relação desses pacientes consigo mesmos, com a família, com a Instituição,
com a reabilitação e comigo, enquanto psicóloga e representante daquilo que seria “o
emocional”, em um suposto contraponto ao “físico” - neste caso, de domínio da
medicina e da fisioterapia.
Assim, alguns casos foram marcantes, por condensar de forma significativa
reflexões vindas da prática cotidiana. Gostaria de citar particularmente três casos que,
cada um por suas características e também pelo momento específico em que surgiram,
chamaram a atenção, para análise mais aprofundada, de um aspecto particular desse
complexo fenômeno que é ver-se diante de uma nova forma de ser - no sentido de ser
diferente daquilo que se era.
O primeiro caso, a história de Gustavo, trouxe à tona a questão da relação
paciente-família e suas implicações na forma de elaboração de uma perda física e suas
conseqüências psíquicas. Particularmente em se tratando de crianças e adolescentes, eu
percebia que aparecia, de forma significativa, uma reação de luto familiar, especialmente
3
materna com relação ao fato do filho adquirir uma deficiência. Muitas vezes, a
intensidade desta reação, demonstrada seja pela rigidez dos mecanismos de defesa ou
por quadros depressivos reativos importantes, superava em muito as manifestações
psíquicas do próprio paciente. Tratando a questão como particular de cada caso, muitas
interpretações foram possíveis: a mãe como porta-voz de uma dor que não podia em um
determinado momento ser vivida e expressada pelo filho; o vínculo mãe-filho como
constituído com características tais de interdependência que, apesar de se tratar de uma
criança mais velha (7, 8 anos) ou de um adolescente, a reação podia passar por uma
indiferenciação momentânea entre mãe-filho; uma vivência de culpa e impotência da
mãe, que vivia a “falta” no filho como uma “falta” pessoal ou uma falha em seu papel de
mãe; e muitas outras leituras em função de cada caso. Algumas falas foram se
constituindo para além dos casos individualmente analisados: por parte da equipe
(médicos, fisioterapeutas, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais) algo como “quem
precisa de atendimento é essa mãe” ou “os pais não aceitam, tem que mandar eles (sic)
para terapia”. Por parte das mães: “não aceito o que aconteceu com ele”, “meu filho não
nasceu assim, ele nasceu perfeito”.
Gustavo tinha 16 anos, trabalhava, estudava e morava com seus pais e irmãos,
um mais velho e dois mais novos; havia sofrido um acidente de moto que teve como
conseqüência a amputação de uma perna. Chamava a atenção por ser um garoto vivaz e
comunicativo, que pouco dava mostras de sofrimento ou angústia diante da perda. Por
outro lado, sua mãe aparecia profundamente abalada, dizia-se muito deprimida,
inconformada e infeliz com o ocorrido e apontava as conseqüências emocionais que
todos os seus filhos sofriam.
Ao falar de si, Gustavo foi demonstrando que, internamente, havia uma profunda
ambivalência. Por um lado sentia-se preservado em sua afetividade, em sua auto-
4
imagem e em sua auto-estima. Reconhecia-se em sua forma de agir, de pensar, de
desejar como o mesmo Gustavo de “antes do acidente”. Por outro lado, percebia-se, não
só diferente em sua capacidade física, mas também causador de uma diferença, uma
mudança, uma ruptura na vida de cada membro de sua família. Seu pai estava bebendo
mais do que o habitual, sua irmã menor sonhava com sangue e acidentes e acordava
assustada, nas brincadeiras, tirava as pernas de todas as bonecas; sua mãe chorava muito
e dizia que a vida tinha acabado. Gustavo via-se como responsável pelo
desmoronamento que identificava ao seu redor. Sentia-se culpado e olhava sua família
como vítima. Ao mesmo tempo, havia mágoa e raiva, na medida em que não se sentia
acolhido e que não havia espaço, na dinâmica familiar, para o seu sofrimento.
A questão da amputação de Gustavo passou a ocupar o lugar central na vida de
sua mãe; ela contava do filho que tivera e que não existia mais: “Eu vejo o Gustavo e
não reconheço ele (sic). Eu sempre cobri os meus filhos antes de dormir, agora quando
vou cobrir o Gustavo eu vejo aquela perna faltando...é horrível”. Ela vivia a perda de
Gustavo, a morte de seu filho. Não reconhecia no rapaz amputado o seu filho idealizado,
percebia-o como “um deficiente”, incapaz de ter uma vida normal e de “satisfazê-la”
como antigamente: “O Gustavo era meu filho mais carinhoso, ele sempre foi muito bom
menino. Não que a gente tenha preferência, você sabe, mãe gosta de todos os filhos
igual, mas Gustavo era o filho que mais me satisfazia”. Defrontava-se com uma falta que
não se sentia capaz de aceitar e de superar.
Ao longo dos atendimentos, Gustavo foi dizendo de seu incômodo com as
expectativas maternas a seu respeito, sentia-se inclinado a ser o filho que sua mãe
imaginara, embora nem sempre isso estivesse de acordo com suas próprias expectativas
a respeito de sua vida: “Eu nunca gostei de estudar, mas sempre disse pra minha mãe
que um dia eu ia fazer uma faculdade e quando me formasse dava o diploma pra ela”.
5
Ele também contou de muitos outros acidentes que sofrera com a moto, embora não
houvesse nenhum com a mesma gravidade. Após cada um deles, Gustavo reafirmava a
sua escolha por continuar andando de moto, contra a vontade dos pais: “....eu trabalhava,
comprei a moto porque eu quis...minha mãe fala que se eu tivesse escutado eles (sic),
nada disso teria acontecido, eu não sei, eu fico pensando que ela tem razão, mas eu
sempre quis ter moto. (...)
Entrar em contato com a repercussão que a amputação de Gustavo trouxe para
cada membro de sua família e para a própria dinâmica familiar me fez pensar no papel
desempenhado por Gustavo nesse contexto. Ao mesmo tempo é possível questionar o
papel dessa família no desenvolvimento de Gustavo, quais as possibilidades que ele
encontrou na vivência da adolescência, em termos de suporte familiar, para buscar a
independência e encontrar um caminho próprio, menos voltado para ser o filho/homem
que se esperava que fosse.
Gustavo me fez pensar no lugar que a amputação de um membro pode ter no
universo simbólico e vivencial de um indivíduo e se isso pode ser compreendido
olhando-se com atenção as configurações relacionais que se estabelecem como
conseqüência dessa perda. Também trouxe a questão do desenvolvimento do indivíduo
em direção a se constituir como um ser integrado e a busca de um ambiente que possa
servir como espelho, refletindo a própria pessoa, em um tempo que transcende a
primeira infância. Para Gustavo não bastava não se sentir “diferente” após a amputação,
necessitava que a família também pudesse reconhecê-lo como ele mesmo, queria
continuar sendo visto como filho, irmão, namorado, enfim reaver o lugar que tinha antes
do acidente e que havia perdido para a perna ausente, para a falta. Para além da família,
aqui se pode pensar como ambiente também a equipe de saúde que se propõe a tratar
6
desses pacientes, como possibilidade de sustentação de um indivíduo diante de uma crise
dessa natureza.
Começava aqui a surgir um campo de pesquisa que ia se delimitando entre a
infinidade de ângulos de abordagem possíveis.
O segundo paciente, que chamarei de Ricardo, representou a mais profunda
vivência de morte diante da amputação, a depressão decorrente da certeza de que, diante
desse trauma, a vida não poderia ser compreendida, significada e, portanto, não poderia
ser vivida. Complementarmente à questão evidenciada por meio de Gustavo - do olhar
para o indivíduo e seu ambiente, sempre indivisíveis - Ricardo apontou como uma lente
de aumento para a experiência essencialmente subjetiva, tendo como parâmetro a relação
transferencial estabelecida comigo.
Ricardo, 25 anos, também sofrera um acidente de moto que tivera como
conseqüência a perda de uma perna. Trabalhava e morava com os pais e um irmão que
desenvolvera uma doença neurológica incapacitante. No momento do acidente, ele
estava dando carona para a namorada, passava por uma avenida grande e movimentada
e, pouco antes de chegar ao destino, um carro entrou na contra mão e atropelou o casal.
A namorada faleceu no acidente. Ricardo chorava muito, quase não saía de casa e não
tinha motivação alguma para ir ao hospital, a família estava muito preocupada com sua
tristeza e apatia.
No primeiro encontro comigo, falou muito da namorada, da impossibilidade de
viver sem ela. Após algum tempo passou a nomear o profundo estranhamento que sentia
com relação a si mesmo. Existia um antes e um depois da namorada e do acidente. O
depois era um universo desconhecido, o tempo passava sem rumo e ele se sentia ausente
de si mesmo: “Eu penso tanta coisa que não consigo entender, não sei, eu falando aqui,
eu escuto e parece que não sou eu”. O vazio era marcado por uma sensação de
7
incompreensão a respeito do próprio sentimento e uma impossibilidade de organizar,
pensar, formular, narrar a sua vivência. Paradoxalmente pouco falava da perda de sua
perna, dizia que isso não tinha importância, que para ele não fazia nenhuma diferença,
que não se sentia amputado. Ele se perguntava todo o tempo, quem era, qual era o
motivo de sua existência e o que deveria fazer com ela. Sentia-se culpado por ter
“entrado na vida” da namorada como um “anjo da morte” (namoravam havia pouco mais
de dois meses), já que se não o conhecesse, não estaria com ele no momento do acidente.
Questionava a sua vida e sua responsabilidade para com ela. Perguntava-se por que ele,
que pouco havia realizado em sua vida e que, pelo contrário, havia participado da morte
da namorada, era saudável e o seu irmão - a seu ver mais inteligente e capaz do que ele -
tinha uma doença que limitava suas possibilidades de realização.
Sua relação comigo era pautada por presenças seguidas de ausências. Ricardo
vinha em uma sessão e faltava na seguinte ou nas seguintes. Algumas vezes me
procurava fora de seu horário (após alguma falta) e me dizia: “Preciso falar com você”.
Eu entendia suas faltas como medo de sua própria destrutividade.
Ricardo me fez pensar na questão do acidente e das perdas como um trauma
capaz de interferir significativamente no desenvolvimento emocional da pessoa que o
vivencia. Mais especificamente trouxe à tona aspectos relacionados à agressividade e à
culpa, neste caso, condensadas pelo acidente e suas conseqüências (morte da namorada e
perda da perna), e que se traduziram em depressão.
Ricardo acrescentou à reflexão, favorecida por Gustavo, o direcionamento do
olhar para o indivíduo que se apresenta, o momento do desenvolvimento emocional em
que se encontra e a relação disso com a perda física que lhe foi imposta.
Houve ainda um terceiro caso que, junto com os outros dois conduziu à
formulação da questão que norteia este trabalho: Jonas, 10 anos, nascera com fêmur
8
curto congênito, uma má formação que implicara uma diferença muito grande entre as
suas pernas, em termos de comprimento. O seu pé (da perna curta) era torto e sem força.
Entre dois e nove anos foram realizados vários procedimentos, inclusive cirúrgicos, na
tentativa de corrigir a deformidade. Finalmente, considerou-se que o seu pé não tinha
função - uma vez que não servia como apoio e dificultava o uso de uma prótese - e que a
amputação lhe permitiria uma qualidade de vida melhor. A sensação da equipe que o
tratava era que já conhecia o paciente, que a amputação não se constituiria em uma perda
significativa, pois em termos funcionais esse pé era “um estorvo”. Além do que, Jonas e
sua mãe aceitaram a cirurgia proposta com alívio e esperança de, em fim, resolver o
problema.
Conheci Jonas uma semana antes da cirurgia de amputação, acompanhei-o
durante a internação, sendo que nesse período mostrou-se bastante reticente ao contato:
não conversava, não desenhava, não jogava, não brincava, não se expressava.
Após 15 dias da cirurgia e da alta hospitalar, Jonas e sua mãe voltaram ao
hospital assustados. Desde que voltara para casa, Jonas passava o dia “coçando” a perna
amputada, em um movimento contínuo e compulsivo. Relatava que sentia necessidade
de esfregar a perna, embora não sentisse coceira; dizia que não sabia por que esfregava,
só sabia que não conseguia parar. Assim, esfregar a perna não era uma ação relacionada
com um estímulo corporal (coceira, por exemplo) e, apesar de sua pele estar machucada
pela fricção constante, não causava dor ou desconforto: “não sinto nada, só não consigo
parar de esfregar”. Era como se aquela perna estivesse desligada do corpo, como se não
fizesse parte.
Sua mãe procurou a mim e à fisioterapeuta (com quem tinha um vínculo de
muitos anos) porque se sentia confusa e estava preocupada com o sintoma que Jonas
apresentava e com o fato de ele relatar que tinha a sensação de que o pé amputado ainda
9
estava lá. A fisioterapeuta intensificou o trabalho de propriocepção e de orientação
quanto à sensação do membro fantasma (presente em todos os amputados, durante
algum período de tempo que varia de pessoa para pessoa). Os atendimentos psicológicos
continuaram e, após longos períodos de silêncio, Jonas começou a verbalizar seu
estranhamento diante da ausência de seu “pezinho”, sua sensação de não saber como
interagir, como se relacionar, como se comunicar, como se ver: “Antes, se eu fosse cair,
podia me apoiar no meu pezinho; se alguém me empurrasse eu podia chutar, agora não
sei como fazer... eu gostava do meu pezinho”. Após duas semanas, a necessidade de
esfregar a perna sumiu.
O caso de Jonas levantou a questão do corpo e sua relação com a subjetividade e
a percepção de si mesmo. Ele mostrou que não se trata apenas de enfrentar as
dificuldades advindas da perda funcional que uma amputação causa, nem somente de
compreender o significado que cada pessoa confere a essa perda e essa vivência, mas
que um indivíduo é uma unidade psique-soma e que uma amputação pode incidir sobre
essa unidade de forma contundente.
Esses casos, mais do que oferecer respostas, permitiram formular questões,
perceber que existe um aspecto primordial que perpassa cada um dos indivíduos que se
viu diante de uma ruptura inscrita em seu corpo, que é a questão da identidade, do ser si
mesmo. Cada uma dessas histórias direcionou meu olhar para um aspecto de forma mais
incisiva, porém todos estão necessariamente interligados.
Assim, a partir desses três vértices, que emergiram no acompanhamento dos
casos brevemente relatados - relação indivíduo-ambiente, desenvolvimento emocional
individual e unidade psicossomática - se abriu a possibilidade de estruturar um trabalho
que pudesse contribuir para uma compreensão profunda e verdadeira dessa vivência,
10
além de revisitar, à luz de um referencial teórico consistente, os caminhos da
individuação do ser humano.
11
2 – INTRODUÇÃO
A título de introdução, gostaria de caracterizar o campo de pesquisa utilizado, a
clínica dos amputados, e destacar alguns conceitos que considero relevantes para
encaminhar este trabalho. É fundamental a familiarização com o funcionamento e as
características dessa clínica, na instituição específica onde foi abordada, uma vez que há
questões significativas que perpassam a realização e a análise deste trabalho e dizem
respeito à concepção e à estrutura da assistência oferecida aos indivíduos que sofrem
uma amputação.
2.1 A CLÍNICA DOS AMPUTADOS
2.1.1 A rotina do grupo
O Grupo de Próteses e Órteses faz parte do Instituto de Ortopedia e
Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (HCFMUSP). É constituído por uma equipe multidisciplinar
composta por ortopedista, fisiatra, fisioterapeuta, assistente social, psicólogo, enfermeiro
e técnico em próteses. Os pacientes amputados passam por avaliação médica e são
admitidos no grupo para reabilitação. No início do processo são avaliados pelo
fisioterapeuta, pelo psicólogo e pelo assistente social. São acompanhados uma ou duas
vezes por semana, de acordo com a necessidade de exercícios físicos e a possibilidade de
comparecimento ao hospital. Após algum tempo, de acordo com as condições de cada
paciente, é prescrito o tipo de prótese que será utilizada e realizado encaminhamento à
oficina ortopédica para sua confecção. Durante o período de elaboração do material
(entre um e três meses), o paciente aguarda em casa e, finalmente, retoma o treinamento,
já com prótese, pelo tempo necessário.
12
Desde que ingressei no grupo, foi possível perceber diversas contradições entre
os objetivos explícitos da equipe e a sua prática. Teoricamente o objetivo da reabilitação
está além do treino de uso de prótese; inclui uma abordagem integrada da pessoa,
abarcando todos os aspectos que compõem a sua vida. Porém, na prática, há um nítido
direcionamento, mais ou menos consciente, rumo a um tratamento prioritariamente
funcional, focado no uso da prótese. Os pacientes orientam suas idas ao hospital,
pautados na indicação de fisioterapia; dessa forma, quando estão dispensados das
sessões de fisioterapia ou da consulta médica, dificilmente comparecem para o
atendimento psicológico. Para além das dificuldades sociais e de locomoção que essas
pessoas enfrentam, penso que algo aí aponta como indicativo de uma tentativa de
“suspensão” da subjetividade, em busca de alguma coisa que se ofereça como solução
apaziguadora da falta, da dor, da angústia: a prótese.
A prótese apresenta-se imbuída de importante significado para os pacientes. Ela
remete para a possibilidade de voltar a ser o que se era, na medida em que permitirá
voltar a fazer o que se fazia e se deixou de fazer. Também representa uma solução rápida
e imediata para uma situação que parece, muitas vezes, intransponível. Assim, é como
uma garantia de transitoriedade do sofrimento e das limitações: há solução possível. E
aqui se encontra uma das grandes contradições dessa equipe que sabe, pela via da
experiência, que aquilo que pode ser oferecido aos pacientes não se resume à prótese. E
também sabe que esse objeto não é detentor de tamanho poder. Porém o tratamento é
pautado na protetização; daí, por exemplo, a “dispensa” do paciente enquanto se
confecciona a prótese: para que ele viria ao hospital? A dimensão relacional e
“emocional” é delegada ao psicólogo, em contraste com a dimensão “do corpo”,
“física”, para a qual é oferecida a prótese, enquanto substituição de função.
13
Essa é uma importante questão, considerando que não é exclusiva desse grupo
específico, nem mesmo dessa instituição em particular. Se, por um lado, a dimensão
psíquica do indivíduo que adoece é indiscutivelmente considerada quando se pensa e se
estrutura uma equipe de saúde, na prática, a forma como se trabalha tende mais para uma
visão biológica do ser humano, do que uma visão psicossomática. Consideremos o
próprio modelo de assistência multidisciplinar, amplamente utilizado nas instituições de
saúde - pautado em uma subdivisão de especialidades que rompe com a indivisibilidade
do ser humano. Sabemos que conhecer com exatidão cada parte do organismo que está
sendo tratado possibilita um tipo de maestria que traz conseqüências benéficas ao
tratamento; mas também é preciso reconhecer que a soma das partes é diferente do todo
e que o organismo é um indivíduo, cuja dinâmica é extremamente complexa, justamente
por ser indivisível.
O que se quer destacar aqui é que, embora na teoria e nas intenções, se considere
que, em uma situação de adoecimento, o ser humano deve ser tratado como um todo,
essa premissa ainda não se traduz integralmente na prática assistencial. Ainda é
necessário que se atente - nos diversos níveis de formação e de atuação dos profissionais
da saúde - para a necessidade de transformar um saber tido como consensual em uma
assistência que, intrinsecamente, considere e, portanto, trate do indivíduo com uma
doença, abarcando suas várias dimensões - social, relacional, cultural, psíquica e
corporal – com o entrelaçamento que lhe é próprio.
2.1.2 Sobre os pacientes
Os pacientes que procuram assistência no IOT/HCFMUSP para reabilitação
sofreram algum tipo de amputação e estão em busca de uma alternativa,
14
preferencialmente o uso de prótese, que lhes permita reaver a função prejudicada com a
perda de um membro.
Uma amputação pode ser causada por diversos fatores: em crianças as causas
mais comuns são deformações congênitas e acidentes. Em adolescentes, tumores ósseos
e traumas como acidentes de trânsito (motocicleta); em adultos jovens, também traumas
(aí incluídos os acidentes de trabalho, ferimentos por arma de fogo) e osteomielite
(infecção óssea, originada de uma intervenção cirúrgica ou fratura exposta, de difícil e
longo tratamento, inclusive com recorrentes internações e cirurgias) e em idosos,
vasculopatias, principalmente decorrentes de diabetes.
É importante destacar que tanto a causa da amputação quanto a idade em que ela
ocorre são fatores relevantes na análise das conseqüências vividas por cada indivíduo.
Naturalmente não são determinantes de direcionamentos psíquicos, mas nos dão um
pano de fundo importante para o recorte que será feito.
Então vejamos: a escolha por pacientes amputados por trauma se deu
considerando o impacto causado por um evento inesperado e que, necessariamente,
implica mudanças imediatas referentes ao próprio cotidiano. Consideremos que se trata,
em termos de realidade externa, da passagem da ação para a espera. Isso porque a
faixa etária mais atingida compreende pessoas em plena atividade, seja de estudo,
trabalho, ou de ambos, que direcionavam suas vidas em busca de determinado objetivo
financeiro e/ou profissional, e aqui não estou considerando a qualidade ou a satisfação
proveniente das atividades exercidas. Considero apenas o contraponto entre uma rotina
de vida permeada pela ação e produção, em termos ocupacionais, por exemplo, que é
repentinamente substituída por um compasso de espera, em termos de um tratamento
que não se realiza no imediatismo imaginado. Ou seja, há um longo caminho a ser
percorrido desde a internação durante a qual é realizada a cirurgia de amputação, que
15
passa pela cicatrização, inicio de tratamento fisioterápico, prescrição do tipo de prótese
mais adequada, confecção e treino para seu uso. Nesse caminho muitas podem e são as
intercorrências possíveis.
Essa passagem freqüentemente é significada e vivida pelas pessoas acometidas
como:
1. Da atividade para a passividade. A espera por algo que vai chegar e “resolver” o
problema que está sendo vivenciado é referida por muitos pacientes como
impossibilidade de continuidade em todos os aspectos da vida. A existência entra em um
tipo de compasso de espera, que aparentemente não permite que o indivíduo faça planos,
sonhe, porque se sente muito inseguro com relação à sua capacidade de realização: “Não
sei o que vou poder fazer com a prótese, como vou me virar com ela”.
2. Da independência para a dependência. Também é relevante refletir sobre o momento
agudo, no qual há uma dependência física, explicitada na necessidade de cuidados e de
auxílio para realizar tarefas “básicas” como se alimentar, se locomover; que é vivida,
muitas vezes, como retrocesso na capacidade de ser autônomo, de poder escolher,
desejar e ser desejado. A limitação física coloca a pessoa diante da realidade que sempre
esteve presente: que a independência é relativa, porque, ainda que em condições físicas
ideais não é possível se prescindir de um outro. O que surge como reflexão é de que
angústia se trata, quando esta percepção de dependência é vivida como algo muito
negativo, ameaçador e que remete à desvalorização e submissão. Penso que se trata de
compreender o desenvolvimento emocional de cada pessoa e seus entraves para
compreender essa vivência. A propósito desse aspecto, cabe aqui destacar um caminho
já apontado por Amiralian (2003) para se refletir sobre a questão da dependência,
referindo-se ao atendimento às pessoas com deficiências:
16
A questão da dependência/independência, da
autonomia e de como ela deve ser compreendida é uma
questão fundamental para os indivíduos com deficiência.
Observa-se muitas vezes nas relações com essas pessoas
que não fica clara a diferença entre a noção de
independência como um sólido Eu-sou, um assumir e
controlar seus próprios impulsos estabelecendo trocas
satisfatórias entre o mundo interno e externo e
proporcionando espaço à espontaneidade na manifestação
externa, e a necessidade de ajuda, devido a uma limitação
somática ou funcional, para alguma ação que expresse o
seu si mesmo. A confusão entre uma inevitável limitação
física ou psíquica e a condição de dependência nas
relações interpessoais é um fato que precisa ser discutido,
analisado e elaborado em cada caso com o cliente, seja
adulto ou criança, e com seus familiares. Creio que essa é
uma questão nodal a ser considerada no atendimento às
pessoas com deficiências. (Amiralian, 2003, p.7)
3. Da normalidade para a deficiência. A questão da mudança visível no corpo,
caracterizada por uma falha decorrente de uma falta, uma perda. Aqui temos o aspecto
do luto por uma perda. Perda com múltiplos sentidos: perda de um membro, de uma
função, de algumas capacidades, do corpo saudável, de um determinado lugar subjetivo.
Assim, podemos pensar a “deficiência adquirida” a partir de dois eixos de
compreensão. “Adquirida” se referindo ao eixo tempo-espaço, do momento vivido, da
experiência. “Deficiência”, enquanto marca inscrita no corpo, relativa à unidade
psicossomática que constitui o indivíduo, o ser, o self, o lugar no mundo, o grupo de
referência, os pares. Portanto, podemos pensar em “deficiência adquirida” como uma
mudança significativa na experiência de ser no mundo, que era de determinada maneira,
com características próprias, num certo espaço de pertencimento e referência. Alteração
repentina, que não é fruto da passagem do tempo assimilado como vivência, mas sim de
um momento pontual da história pessoal.
17
2.1.3 O lugar do psicólogo
Falar do lugar do psicólogo nessa clínica implica desmembrar os três vértices que
a compõem. Há o lugar de onde o psicólogo é chamado a atuar, que inclui uma demanda
específica, que é a da instituição, da equipe que solicita um psicólogo como membro a
partir de uma suposição de saber e de poder deste profissional sobre os pacientes. Há a
demanda dos pacientes, esta sempre variável, de acordo com a constituição psíquica de
cada um. E há o lugar a partir do qual o psicólogo se propõe a responder a essas
demandas.
A primeira solicitação da instituição se referia, desde o início de meu trabalho
nesse grupo, a manter a chamada “abordagem integral”, “ver o paciente como um todo”.
Supostamente, a presença de um profissional de cada área garantiria a realização desse
objetivo. Assim, a estrutura de uma equipe interdisciplinar, com vários “técnicos”
“avaliando” todos os pacientes e uma reunião semanal, daria conta da forma da
abordagem e tranqüilizaria a instituição, embora obviamente não garantisse o conteúdo,
ou seja, uma intervenção verdadeiramente integrada e, neste caso pode-se dizer,
integradora. Portanto, a primeira demanda era da presença técnica. Todas as equipes de
reabilitação devem ter um psicólogo. A segunda se referia à sustentação dos pacientes:
conter e resolver aquilo que fosse da ordem da angústia e da dor e que, ao se expressar
fora da sala do psicólogo, sairia daquilo que é possível dar conta dentro de um hospital
onde prevalece a busca da cura, da ordem, do objetivo, do padrão. Com relação a esta
questão, falando do lugar do analista no hospital, Moretto (2001) aponta:
Apurada a demanda da instituição, esta era da ordem do
acalmar, eliminar qualquer espécie de angústia que
estivesse circulando no ar, convencer os pacientes de
alguma coisa que ainda não se conseguiu, de socorrer
aquele, qualquer que fosse ele, que estivesse
ddespencando (Moretto, 2001, p.21)
18
Tkacz (2002) em seu estudo acerca do lugar da psicanálise no hospital geral
também aponta para a importância de compreender a demanda dos profissionais do
hospital (assistente social, enfermeiro, médico e outros) e a situa em dois registros. Um
deles diz respeito a um “suporte emocional” que se espera que o psicólogo ofereça ao
paciente e o outro registro relativo à necessidade do próprio profissional de ser escutado
em seu sofrimento. Aqui, muitas vezes se trata da angústia despertada no profissional
pelo sofrimento ou posicionamento do paciente diante de sua doença. Supostamente,
eliminando a angústia do paciente, não haveria conflito nem angústia na equipe.
A expectativa é que o psicólogo faça com que o paciente aceite o mais
prontamente possível a sua condição, seja ela qual for, a partir da suposição que a
aceitação equivaleria à satisfação e que, particularmente no caso da reabilitação de
pessoas amputadas, a aceitação da perda do membro repercutiria em um processo de
reabilitação com menos dificuldades.
Certa vez, em uma reunião multidisciplinar, uma médica fisiatra levantou a
seguinte questão: “Como vocês (psicólogos) fazem para alguém aceitar que vai ter que
viver o resto da vida sem se mexer (no caso de tetraplegia) e ainda ficar feliz com isso?”.
A resposta a essa pergunta é o que marca o lugar do psicólogo em uma determinada
equipe. Qual é o objetivo do profissional, para além daquilo que lhe é demandado?
No meu caso, a atuação não foi voltada para a adaptação do paciente à sua
realidade atual, nem mesmo à busca de um alívio imediato para a dor e a angústia
vividas. Ao analisarmos a complexidade dos fenômenos psíquicos envolvidos nesse tipo
de trauma, torna-se explícito que a adaptação funcional e a retomada formal das
atividades cotidianas não se constituem como o principal foco da assistência psicológica.
Talvez a minha principal intervenção tenha sido incluir a subjetividade das pessoas que
ali estavam para tratamento, não só na reabilitação, mas na própria dinâmica de cada
19
pessoa. Marcar que ali existia um indivíduo, com necessidades próprias e que, por meio
da relação terapêutica podia encontrar uma forma de significar aquilo que estava
vivendo.
Isso significa que muitas vezes o que pode ser oferecido - enquanto escuta e
presença que busca um encontro da pessoa com aquilo que é seu, próprio e genuíno -
não pode ser utilizado em determinado momento e contexto psíquico. A demanda do
paciente muitas vezes é de distanciamento do que lhe é próprio, mas não lhe é
suportável; neste caso há uma recusa de atendimento psicológico, sentido mais como
ameaça, do que como possibilidade de construção e individuação. Na fala de um
paciente: “Eu tô (sic) bem, tenho a mente forte. Tô de boa (sic), essas coisas acontecem,
é só ter a mente forte”.
2.1.4 Observações e reflexões acerca da experiência da amputação
É necessário lembrar, de início, que as experiências vividas, por mais intensas e
traumáticas que possam ser consideradas, não têm o mesmo efeito em todas as pessoas
que as vivem. Assim, o que pode ser traumático para um indivíduo, pode não ser para
outro, que tenha condições de tolerar o acontecimento e elaborá-lo psiquicamente,
acolhê-lo em sua rede simbólica.
Isso nos remete para a impossibilidade de generalizações a respeito das
conseqüências de uma amputação na dinâmica psíquica de uma pessoa. O que podemos
afirmar é que o impacto e as repercussões dependerão de quem é esta pessoa. Em que
momento de seu desenvolvimento se encontra, em termos cronológicos e emocionais;
com que estrutura relacional pode contar e como foi se constituindo até então. Por outro
lado, a prática clínica mostra que a perda de um membro provoca um impacto
significativo na vida de um indivíduo. Ou seja, parece que não é possível viver essa
20
experiência, pela sua intensidade intrínseca, sem algum tipo de desequilíbrio na
organização psíquica, ainda que, na maioria dos casos, temporário.
Ao longo do tempo também foi possível observar certa semelhança no modo das
pessoas reagirem - em sua fala e em seu posicionamento subjetivo - a esse evento, o que
levou a questionar a existência de dois pólos de reação, que talvez tenham a mesma
essência em comum, talvez sejam a manifestação do mesmo fenômeno.
Muitos pacientes atendidos tinham uma fala bastante unificada no sentido de que
tudo estava bem, nada havia mudado em suas vidas, não sentiam nada digno de menção
ou expressão. O relato é de uma não-vivência, nenhuma percepção de diferença, seja
física ou emocional. A experiência dá lugar a uma racionalização sobre a experiência:
“Para mim não mudou nada, eu tô normal. Não adianta nada ficar triste, preocupado,
isso não resolve nada, então eu fico bem”.
Vash (1988) coloca este tipo de reação como um mecanismo de defesa (negação)
freqüentemente presente em uma fase inicial de contato de indivíduo com o fato de ter
adquirido uma deficiência. Menciona o trabalho de Kerr (1977) que descreve cinco
estágios no processo de ajustamento à deficiência permanente: o choque, a expectativa
da recuperação, o luto, a defesa e, ao final, o ajustamento; sendo que diferentes variantes
da negação estão evidentes nos estágios de choque, de expectativas de recuperação e de
defesa. (Kerr, 1977 apud Vash, 1988, p.144). A questão que se coloca é se a negação,
nesse contexto, pode e deve ser entendida como adaptativa ou como sintoma de
dificuldades de elaboração da vivência e do sofrimento decorrente da nova condição
física. Segundo a autora, a visão da negação como sinal psicológico de fraqueza do ego
perde sentido à medida que se considera o seu valor como meio de sobrevivência do
sujeito; por outro lado, à medida que as pessoas deficientes abandonam “a ‘proteção’
21
que a negação propicia, podem passar para o estágio de ajustamento de Kerr (1977) e
dele para níveis mais altos de desenvolvimento psicológico” (Vash, 1988).
Os pacientes aqui apresentados foram atendidos em um momento que equivaleria
à fase acima descrita como “expectativa de recuperação” e/ou “defesa”, o que nos leva a
pensar que a negação, nesse momento, pode ser considerada um fenômeno esperado e
relativamente freqüente, já relatado na literatura. Porém, penso que aquilo que esses
pacientes expressam pode ser abordado sob outro vértice que não o do mecanismo de
defesa, de forma a avaliar o contexto geral da organização psíquica do indivíduo e o seu
significado em termos de continuidade do amadurecimento emocional.
O que pude observar no atendimento a estes indivíduos foi um enorme
distanciamento de si mesmos. Contratransferencialmente o encontro com esses pacientes
me parecia vazio e inútil, como se fosse uma sessão artificial, para cumprir alguma
formalidade. Era como se não houvesse ninguém, de fato, naquele encontro; como se
aquela pessoa não habitasse o próprio corpo, como uma ausência do outro.
Ausência esta configurada por alguém que teve uma perda física significativa,
cuja locomoção tornou-se difícil, que teve sua rotina anterior à amputação
completamente alterada (isto para apontar apenas as mudanças mais concretas que
ocorrem), e que afirma que nada mudou, que está tudo igual, que se sente ótimo, que
logo caminhará com uma prótese e será como se a perna ainda estivesse lá. Nesse
momento não é possível reconhecer um ser implicado nessa fala.
Por outro lado, numa expressão oposta à anterior, muitas pessoas, após a
amputação, se deparam com profundo sentimento de estranhamento de si mesmas, não
se reconhecem, nem fisicamente, nem no que diz respeito às suas reações emocionais. A
vivência descrita é de profunda angústia e indefinição com relação ao futuro, às
capacidades e às limitações que estão sendo vividas: “Eu não era assim, agora não sei o
22
que fazer da minha vida... quando estou sentado parece que sou eu mesmo, mas quando
tenho que levantar, tudo muda, parece que não sou eu”. O tema principal parece se
referir a um desmoronamento da vida e da identidade do indivíduo, em que nada
permanece como era anteriormente ao acidente. As falas desses pacientes remetem à
ausência de sentido da vida, desesperança com relação ao futuro, não reconhecimento de
seu corpo como parte de si mesmos.
2.2 CORPO E DESENVOLVIMENTO: APONTAMENTOS BREVES
O conceito de desenvolvimento perpassa todo o corpo deste trabalho. Se
partirmos de uma visão psicanalítica do desenvolvimento humano, teremos várias
formas de conceituação, por isso gostaria de destacar o referencial winnicottiano, no
qual temos um enunciado básico, ou seja, a tendência ao amadurecimento.
Para Winnicott, o ser humano nasce com uma tendência inata em direção ao
amadurecimento, necessitando de um ambiente favorável para que essa tendência possa
se realizar. É no encontro específico com um outro, nessa relação que transcende
indivíduos isolados, que é possível se pensar em desenvolvimento, crescimento,
amadurecimento. Não há, portanto, dúvidas da importância da qualidade desse encontro
para o bebê, no início da vida e para todos os indivíduos ao longo do tempo.
A concepção de Winnicott sobre o desenvolvimento está baseada na premissa
que o amadurecimento é a realização de uma tendência inata à integração em uma
unidade. Essa integração pressupõe uma série de conquistas, que são fundamentais para
esse sentido de ser, porém não são definitivas. A conquista de uma unidade não é
permanente e intacta, é parte de um processo que, na relação com o meio, pode se perder
e se ganhar de forma dinâmica.
23
Essa idéia de amadurecimento nos leva a pensar que as aquisições de cada fase
do desenvolvimento, ou cada “tarefa” que o bebê vai realizando, são conquistas
constitutivas. Por outro lado, Winnicott também considera que o processo de
amadurecimento pressupõe a possibilidade de voltar a estágios anteriores, em função de
situações externas ou internas.
Outro conceito fundamental para pensar as questões relativas às implicações de
uma perda física no desenvolvimento de uma determinada pessoa é o conceito de
integração psicossomática. Dolto (1984, p.14) coloca, em termos de imagem corporal,
que esta vai além do esquema corporal e está ligada ao sujeito e à sua história: “... a
imagem do corpo é a síntese viva de nossas experiências emocionais: inter-humanas,
repetitivamente vividas através das sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais”.
O corpo é a base a partir da qual se desenvolve um indivíduo particular, completo
e unificado. É a partir da constituição de uma unidade psicossomática que será possível
para alguém ser, estar no mundo e continuar sendo ao longo do tempo. Para Winnicott,
não existe uma identidade inerente entre psique e corpo; é através do processo de
personalização que se dá a unidade psicossomática. O alojamento da psique no corpo
(personalização) ocorre a partir dos impulsos do bebê juntamente com um ambiente
facilitador. Especificamente nesse aspecto, o manejo (handling) materno - segurar,
aconchegar, acariciar, banhar - enfim, todas as experiências físicas e táteis
experimentadas pelo bebê e sustentadas pela mãe facilitam a integração psicossomática:
“Do ponto de vista do indivíduo em desenvolvimento, no entanto, o self e o corpo não
são inerentemente superpostos, embora para haver saúde seja necessário que esta
superposição se torne um fato” (Winnicott, 1988, p.144)
É nesse universo do corpo, da subjetividade, da constituição do si mesmo e das
reações diante de um abalo físico que este trabalho se propõe a transitar.
24
Portanto, o objetivo deste trabalho é investigar – no momento em que a pessoa
inicia a reabilitação - quais as repercussões psíquicas da amputação de uma parte do
corpo, de forma traumática, considerando a constituição da subjetividade e o sentido de
si mesmo de um indivíduo.
Ou seja, de que forma, diante de uma ruptura no corpo, há uma interferência na
organização psíquica e na maneira pela qual o indivíduo percebe o mundo e se percebe
nele; isto, na fase específica, após a alta hospitalar, em que ainda não foram retomadas
as atividades anteriores ao acidente e o paciente está envolvido no processo de
reabilitação, visando a utilização de uma prótese.
Mais especificamente, busca-se refletir sobre um momento de perda da
integridade corporal e seus reflexos na unidade psicossomática, a partir de casos
clínicos, tendo como referência a teoria do amadurecimento de Winnicott. Dessa forma,
levar-se-á em conta o percurso do desenvolvimento emocional segundo a teoria do
amadurecimento pessoal para se refletir acerca da possível relação existente entre o
estágio alcançado nas tarefas próprias do desenvolvimento normal pelo indivíduo e as
conseqüências em termos da continuidade ou não do processo de amadurecimento após a
amputação.
Em suma, este trabalho se propõe a investigar se há e quais são as conseqüências
da perda de uma parte do corpo no processo de desenvolvimento emocional de uma
pessoa, no que diz respeito à unidade psicossomática e ao sentido de si mesmo.
É intenção de este estudo contribuir tanto para a compreensão teórica dos
processos psíquicos relacionados à constituição da identidade das pessoas de uma forma
geral, quanto para o entendimento das reações decorrentes de um evento traumático
significativo com a característica particular de abalar a estrutura física, que faz parte da
vivência de unidade de um ser humano: o corpo.
25
Com relação à prática, espera-se que este trabalho possa contribuir, por meio da
compreensão da vivência de amputação sob o foco proposto, com novas concepções a
respeito da reabilitação e perspectivas de abordagem terapêuticas para essas pessoas, e
também com o reposicionamento do psicoterapeuta, em sua escuta, manejo e propostas
de intervenção.
Dentro do referencial teórico que embasará este trabalho é indispensável focar a
constituição do si mesmo de acordo com a teoria de D.W. Winnicott, demarcando as
peculiaridades da teoria do amadurecimento pessoal, bem como o conceito de saúde e as
fases do desenvolvimento inerentes a essa teoria. Isso para poder refletir sobre alguns
casos clínicos à luz desse referencial, na busca de compreender de que ordem é o abalo
sofrido com uma perda física e como isso se articula com o caminho percorrido por
todos os indivíduos ao longo do desenvolvimento.
26
3 - FUNDAMENTOS TEÓRICO- METODOLÓGICOS
O presente estudo foi desenvolvido com pessoas que sofreram amputação de
membros e estavam vinculadas, para reabilitação, ao grupo de próteses e órteses do
Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo. Como já foi apontado anteriormente, há
diversas causas que levam à amputação de um ou mais membros do corpo. Este trabalho
foi realizado a partir do atendimento psicológico a pacientes que sofreram amputação de
membros em decorrência de traumas - acidentes de trânsito, acidentes de trabalho,
ferimentos por arma de fogo, etc. - eventos estes caracterizados por serem súbitos e
inesperados. Esse recorte referente à causa da amputação foi necessário uma vez que o
objetivo do trabalho está pautado na questão da mudança brusca e imprevisível no corpo
de um determinado indivíduo, em determinado momento de seu desenvolvimento. As
amputações decorrentes de doenças crônicas, tumores ou deformidades congênitas
confrontam a pessoa com outras questões da ordem da cura e da sobrevivência ou das
mudanças gradativas impostas ao longo de outros tratamentos, que não poderiam ser
abarcadas no foco aqui proposto.
Outro aspecto, que se considerou para a inclusão dos sujeitos, foi que todos
estivessem no início do processo de reabilitação. Esse dado também foi considerado
relevante uma vez que existem diversas etapas que podem ser delimitadas entre o
momento do acidente/trauma e a alta após o período de reabilitação.
Consideramos, por exemplo, uma primeira etapa, o momento da internação. A
pessoa está sob o impacto do acidente e da perda propriamente dita e está submetida a
tratamentos médicos, que visam preservar a vida, quando há risco, e sanar outras
afecções possíveis decorrentes do mesmo evento, como ferimentos em outras partes do
27
corpo. Após a alta hospitalar, o indivíduo defronta-se com as seqüelas permanentes, para
as quais vai em busca de reabilitação. De modo geral, os pacientes que são atendidos no
Instituto de Ortopedia e Traumatologia ingressam para a reabilitação quando os médicos
avaliam que, do ponto de vista físico, estão em condições de iniciar esse processo. Isso
ocorre em um tempo indefinido, normalmente a partir de um mês após o acidente.
Porém, esse tempo pode se estender por meses, em função de situações como infecções
ou fraturas de longo tratamento ou algum outro tipo de intercorrência clínica que
alongue o tempo de internação ou que impeça o início da reabilitação.
Assim, neste estudo não foi considerado o tempo cronológico decorrido entre o
acidente e o contato com o paciente. O que se considerou como equivalente em todos os
sujeitos foi o período caracterizado pelo fim dos tratamentos médicos e o início da
reabilitação.
O contato com os pacientes se deu seguindo a dinâmica natural do grupo
mencionado, que consiste em que o paciente seja avaliado por todos da equipe - médico,
fisioterapeuta, assistente social e psicólogo - antes de iniciar a reabilitação. Aos sujeitos
da pesquisa foi apresentado o termo de consentimento livre esclarecido, conforme
resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (em anexo).
É importante destacar que a entrevista psicológica inicial, uma vez que faz parte
da rotina do grupo, está colocada e compreendida como uma etapa necessária para poder
fazer a reabilitação. Isso torna este primeiro encontro paciente-psicólogo permeado por
algumas idéias recorrentes. Para alguns é um alívio, na medida em que não se permitiam
buscar ativamente esse espaço terapêutico, seja por entender a necessidade de ajuda
como uma fraqueza inadmissível, seja pelo receio de como esse pedido seria entendido
pela família e amigos ou por, simplesmente, nunca terem entrado em contato com essa
possibilidade. Para outros é como um teste pelo qual saberão se estão “aceitando bem”
28
ou não a perda que vivenciam. Nesse caso, o “lidar bem” é algo altamente desejado, mas
nem todos se sentem capazes de dar conta dessa tarefa. Caberia ao psicólogo aprovar ou
reprovar o indivíduo no árduo teste a que se sente submetido.
Obviamente é um contato permeado de expectativas e suposições. O que fica
mais fortemente marcado é que ele, paciente, está ali, com a psicóloga, para falar sobre a
amputação que sofreu. E é justamente esse pressuposto e a narrativa que cada um
constrói para contar a sua vivência, bem como o seu desenrolar no contato com o
terapeuta, que norteiam a construção deste trabalho.
Se um setting profissional correto é fornecido, o paciente
que se acha em sofrimento, trará a aflição para a entrevista
sob uma forma ou outra. A motivação é muito
profundamente determinada. Talvez seja desconfiança o
que se demonstra, ou uma confiança grande demais, ou a
confiança é logo estabelecida e as confidências cedo se
seguem. Seja o que for que aconteça, é o acontecer que é
importante. (Winnicott, 1968l, p.246)
Assim, estar com os pacientes e ouvir os seus relatos a respeito de suas vidas e da
amputação em suas vidas foi a via de acesso encontrada para compor uma compreensão
mais profunda a respeito da experiência de si mesmo de cada um desses indivíduos.
Então, o primeiro contato se configurava como um espaço para se realizar um encontro
que permitisse ao paciente comunicar aquilo que havia para ser comunicado, seja
naquele momento específico, seja ao longo de um processo psicoterapêutico,
desenvolvido na relação transferencial. No momento inicial, eu não sabia se o trabalho
continuaria ou não, principalmente por não se tratar de uma procura espontânea por parte
do paciente. O que existia, a priori, eram algumas condições para que a comunicação
ocorresse: a minha presença e disponibilidade, um espaço físico adequado para garantir
29
a privacidade do paciente e a possibilidade de continuidade, com sessões semanais, por
um tempo indeterminado, porém relativamente circunscrito ao período de reabilitação.
Isso, considerando as peculiaridades do trabalho do psicólogo em instituições de saúde,
onde o número de pacientes é grande e há um foco delimitado de atuação.
O número de sessões e a freqüência variaram conforme a disponibilidade de cada
indivíduo, permeada por fatores sociais como dificuldades financeiras e de locomoção,
bem como fatores psicológicos que foram considerados na análise dos casos clínicos. No
relato dos casos clínicos, será possível especificar o número de sessões realizadas, a
freqüência e o tipo de contato estabelecido com cada paciente.
Essa forma de abordagem em muito se aproxima da descrita por Winnicott
(1971b) como “consultas terapêuticas”, que parte do “axioma de que, se é dada a
oportunidade de maneira adequada e profissional para uma criança ou para um adulto,
no tempo limitado do contato profissional o cliente trará e exporá (embora de início
apenas como uma tentativa) o problema predominante ou o conflito emocional ou a
espécie de tensão que aparece nesse momento da vida do cliente” (p. 15). Essa
oportunidade diz respeito à existência de alguém (o psicólogo, no caso) que se coloque
como presença humana em condições de reconhecer o paciente e dar suporte para seus
conflitos, com uma continência capaz de esperar que estes se resolvam internamente no
próprio paciente, sem invadi-lo com soluções/explicações/interpretações precoces ou
adiantadas. Isso tomando como parâmetro o tempo próprio e o desenvolvimento
emocional de cada paciente atendido. Winnicott (1968l) afirma que o paciente traz, para
a situação de entrevista inicial, a sua capacidade de acreditar em uma pessoa que possa
ajudá-lo. Traz, também, a sua desconfiança: “o terapeuta aproveita-se do que o paciente
traz e age até o limite da oportunidade que isto concede” (p.245).
30
Nesse caso, a interpretação não é a ferramenta principal do analista, embora ela
também possa ser utilizada. O que conta é a identificação com o paciente, na medida
necessária para compreender a sua necessidade. Para Winnicott (1971b), quando o
paciente começa a sentir que pode ser verdadeiramente compreendido a comunicação a
um nível mais profundo pode se tornar possível.
Existe uma diferença então entre esta técnica e a da
psicanálise, no fato de que enquanto na última a neurose
transferencial se desdobra gradualmente e é usada para
interpretar, na entrevista psicoterapêutica há um papel já
pré-ordenado para o terapeuta, baseado no padrão de
expectativa do paciente. (Winnicott, 1968l, p.245)
Quando, então, a primeira entrevista se desdobra em outras, começa um trabalho
mais próximo de uma psicoterapia, na qual a relação transferencial se encontra
estabelecida.
Trata-se aqui, então, de uma pesquisa qualitativa, que se utiliza do método
clínico e do referencial psicanalítico para investigação. Na pesquisa clínica psicanalítica
a construção do conhecimento ocorre na relação interpessoal, considerando que é de
forma relacional que a pessoa vive, se manifesta e se revela.
Safra (1993) afirma que a psicanálise inaugurou uma nova maneira de fazer
pesquisa, isso porque abandonou a idéia de uma separação nítida entre sujeito e objeto;
sendo que o pesquisador está dentro do campo na medida em que, necessariamente, se
relaciona com o sujeito da pesquisa. Silva (1993) considera que na pesquisa psicanalítica
deve ser considerada a relação entre dois indivíduos, não só no que diz respeito à
comunicação consciente, mas também levando em conta que: ”há uma parte
inconsciente de cada um utilizando-se de seu estilo peculiar de interação. Trazer à tona
31
este nível submerso, esta intersubjetividade, e relacioná-la com o nível da superfície
constitui o complexo e delicado trabalho da psicanálise” (Silva, 1993, p.17)
Amiralian (1997) aponta que uma das características do método clínico é uma
compreensão profunda do campo vivencial do indivíduo, por meio da análise de sua
experiência subjetiva, que só pode emergir na relação com o outro, no caso, o
pesquisador, pela via da transferência.
No método psicanalítico, o conhecimento do ser humano,
obtido na experiência individual da relação, é uma amostra
das maneiras próprias de o ser humano estar no mundo,
que são exemplos das relações possíveis, considerando-se
condições semelhantes que todos vivenciamos (Amiralian,
1997, p.160).
Trinca (2002) destaca que a pesquisa psicanalítica não segmenta ou disseca o
objeto do conhecimento, perdendo a sua harmonia; o que se busca é revelar o sentido
harmônico e profundo desse objeto: “A transformação em objeto de ciência não deve
descaracterizar o mundo como um lugar de manifestação da sutileza, do assombro e do
mistério; e isso se faz conservando-se a sua inteireza.” (p.202).
Para análise da questão proposta neste trabalho serão apresentados quatro casos
de indivíduos diferentes em termos de amadurecimento emocional e, ao mesmo tempo,
representativos de aspectos identificados como comuns a vários outros pacientes
atendidos, em termos da maneira de vivenciar a perda de um membro.
32
4 – A CONSTITUIÇÃO DO SI MESMO NA TEORIA DE D.W. WINNICOTT
4.1 A teoria do amadurecimento pessoal
Ao falar das consultas terapêuticas, Winnicott (1971b) afirma que em seu
trabalho a única companhia de que dispõe é a teoria que desenvolveu, a partir de sua
prática clínica, sobre o desenvolvimento emocional do indivíduo. Ele se refere à teoria
do amadurecimento pessoal. Há nessa teoria especificidades que a diferenciam dos
pressupostos psicanalíticos freudianos e que foram estudadas profundamente e descritas
por vários autores, entre eles Loparic (2006; 2005), Dias (2003), Fulgencio (2006),
Moraes (2005). A compreensão do que vem a ser essa teoria e de suas particularidades
conceituais é essencial para que se possa fazer uma análise do material clínico a ser
apresentado à luz do referencial winnicottiano.
Aqui serão apresentados esquematicamente alguns pontos significativos como
forma de dar um panorama geral, uma vez que não é intuito, nem seria possível nas
dimensões deste trabalho, fazer uma apresentação pormenorizada dessa teoria.
O primeiro ponto a destacar diz respeito ao Complexo de Édipo. Se, na
psicanálise freudiana é a partir da resolução edípica que se estrutura a personalidade de
um indivíduo, para Winnicott, o conflito caracterizado pela relação triangular é próprio
de uma fase específica do desenvolvimento emocional, na qual já houve uma série de
conquistas, através de diversas fases, que dizem respeito à continuidade da existência e à
passagem gradativa da dependência absoluta com relação à mãe, passando pela
dependência relativa e indo rumo à independência relativa. A linha do amadurecimento
que encontramos em Winnicott parte da indiferenciação mãe-bebê e, com o suporte
materno, segue em direção à diferenciação e constituição de um EU SOU integrado.
Esse percurso não se dá de forma imediata, nem mesmo garantida; daí a idéia de que há
33
conquistas a serem realizadas para chegar à constituição de um ser integrado em uma
unidade e capaz de relacionar-se interpessoalmente.
Então, para Winnicott, não é a partir do Complexo de Édipo que se dá a
constituição do indivíduo. Na perspectiva winnicottiana, um ser se constitui a partir de
uma tendência inata para: o crescimento, a integração e as relações interpessoais. Mas
não só; é necessário um ambiente que facilite a realização dessa tendência. Assim, é a
partir da relação mãe-bebê e não da relação triangular que Winnicott compreende a
constituição do ser humano, como um percurso que, na saúde, permite ao indivíduo
alcançar uma identidade, um si mesmo integrado. Dessa forma os conflitos relativos à
sexualidade e às relações triangulares são considerados como fatores relacionados ao
adoecimento psíquico, uma vez que estejamos tratando de pessoas inteiras, já
constituídas. Antes disso, é através da compreensão do processo de amadurecimento
emocional de cada pessoa que é possível entender o adoecimento.
Podemos dizer que a Teoria do Amadurecimento Pessoal tem um caráter
relacional uma vez que está voltada para a integração entre indivíduo e ambiente e o
desenvolvimento possível a partir dessa relação. Nessa perspectiva o ser humano não é
concebido como um ser em busca de satisfação/prazer, às voltas com os conflitos
internos decorrentes de sua instintualidade, mas como um ser relacional, em busca da
continuidade da existência.
Enquanto a psicanálise tradicional estuda o psiquismo
humano – concebido metapsicologicamente
(especulativamente) como um aparelho movido a
pulsões dirigidas para objetos (o papel central do
relacionamento objetal sendo a satisfação) –, a
winnicottiana jamais se distancia da “relação” factual
indivíduo-ambiente, o indivíduo sendo caracterizado
pela tendência para o amadurecimento e o ambiente,
investido do papel de facilitador dessa tendência.
(Loparic, 2006, p.12)
34
Para Winnicott (1965h), no início do processo de desenvolvimento emocional, há
três coisas que devem ser consideradas: a hereditariedade, o ambiente - que tanto pode
ser facilitador como pode ser traumatizante, dependendo de suas falhas - e o indivíduo
“vivendo, se defendendo, crescendo” (p.125). E é deste indivíduo, neste contexto, que
trata a psicanálise. A implicação disso em termos de compreensão do adoecimento
psíquico é que, nessa perspectiva, o que está perturbado no adoecimento é o
amadurecimento emocional, considerando o desenvolvimento da sexualidade como parte
desse amplo processo; sendo que o ambiente tem um papel fundamental na saúde e na
doença do indivíduo. (Loparic, 2006).
É pela compreensão do desenvolvimento normal do indivíduo saudável, que
podemos entender as intercorrências e as dificuldades pelas quais está passando uma
determinada pessoa, num dado momento de sua existência. Isso significa que aqui não se
buscam sintomas que levem ao diagnóstico de determinada patologia. Nessa perspectiva,
saúde é um estado complexo, não caracterizado pela presença ou ausência de
dificuldades, na medida em estas não são, necessariamente, sinais de doença uma vez
que fazem parte das diversas fases de um processo de amadurecimento normal.
Winnicott afirma que, embora do ponto de vista físico “qualquer desvio da saúde possa
ser considerado anormal, não é necessariamente verdade que a diminuição física da
saúde, devida à pressão e à tensão emocionais, indique uma anormalidade” (1931p, p.
57).
Sob essa perspectiva, saúde é mais do que a ausência de doença, é a realização da
tarefa principal do ser humano, entendida como a possibilidade de se tornar um
indivíduo e amadurecer enfrentando todas as dificuldades intrínsecas a essa tarefa, sem
perder a essência da existência a partir da criatividade pessoal.
35
A saúde inclui a capacidade de brincar, que é o protótipo
do viver criativo; diz respeito à possibilidade de habitar o
espaço potencial e entregar-se aí a uma experiência que
está sustentada pela ilusão básica; refere-se igualmente à
liberdade de transitar pelos vários mundos que são criados
no decorrer do amadurecimento, o que abarca a
possibilidade de estabelecer relações com o mundo
objetivamente percebido sem muito sacrifício para a
espontaneidade pessoal. (Dias, 2003, p.85)
O que se destaca é que saúde pode ser compreendida como maturidade, relativa à
idade de uma pessoa em determinado momento, daí a necessidade de caracterizar, na
saúde, o que vem a ser próprio de cada etapa do desenvolvimento pessoal.
A saúde da psique deve ser avaliada em termos de
crescimento emocional, consistindo numa questão de
maturidade. O ser humano saudável é emocionalmente
maduro tendo em vista sua idade no momento. A
maturidade envolve gradualmente o ser humano numa
relação de responsabilidade para com o ambiente.
(Winnicott, 1988, p.30)
Essa conceituação é permeada pela idéia de que o ser humano nasce dotado de
uma tendência ao amadurecimento, que garante, na presença de um ambiente facilitador,
a continuidade de ser; e é uma parada nesse continuar a ser que caracteriza aquilo que
podemos considerar como doença. Segundo Dias “A saúde, em particular pode ser vista
como uma superação do estado originário de não-ser, e um lento apropriar-se do ser, que
pode, contudo, sempre escapar.” (2003, p.151) Isto é, se todo indivíduo é dotado de uma
tendência inata ao amadurecimento, a doença consiste no reverso dessa tendência, em
sua paralisação. Na saúde o ser humano caminha ao longo de uma linha de
desenvolvimento, contanto que exista um ambiente adequado para a realização desse
caminho em direção à integração e à constituição da personalidade: “O bebê
relativamente saudável (maduro para a idade) prossegue rumo ao estádio em que ele se
36
torna uma pessoa total, consciente de si mesma e consciente da existência dos outros.
(Winnicott, 1988, p.56)”.
Assim, a doença psíquica para Winnicott se refere a um tipo de imaturidade,
relativa a uma parada no desenvolvimento como conseqüência de uma falha na interação
indivíduo-ambiente, diante da qual o indivíduo necessitou reagir em vez de continuar a
ser. Essa falha pode tratar-se de excesso, se pensarmos em um trauma ocasionado pela
invasão do ambiente; ou pode tratar-se de falta, se considerarmos algo que precisava ter
acontecido e não aconteceu, algo que necessitava ser provido pelo ambiente e que não
foi. Nesse sentido, o ambiente tem uma participação fundamental na conquista e
manutenção da saúde.
Moraes (2005) aponta que a saúde, compreendida como uma condição inerente à
natureza humana, sempre foi norteadora do pensamento de Winnicott, juntamente com a
noção de que a saúde psíquica é uma conquista do desenvolvimento pessoal, o que
significa: “a configuração do adoecer como uma interrupção do amadurecimento em
função de alguma dificuldade específica ocorrida em algum dos estágios de
amadurecimento, no qual a criança está tendo experiências e realizando as tarefas para se
desenvolver.” (Moraes, 2005, p.118)
Daí a necessidade de se abarcar os estágios trilhados em direção à maturidade.
Ao entendermos o que é necessário conquistar em cada etapa e as possíveis falhas que
podem dificultar ou mesmo impedir essas conquistas, estaremos em condições de
entender cada indivíduo em sua singularidade, em sua constituição psíquica e em suas
necessidades. O diagnóstico, portanto, está centrado nas conquistas necessárias para o
amadurecimento emocional e as imaturidades resultantes de falhas nesse processo.
Winnicott (1984i) estabelece, ainda que de forma simplificada, três categorias de
“imaturidade pessoal”. Uma delas diz respeito a falhas ambientais que ocorreram no
37
início da vida do bebê ocasionando “uma perturbação na estrutura básica da
personalidade do indivíduo” (p.266). Nesse caso se trata de pessoas não integradas: (o
resultado) pode ser “uma psicose infantil, ou dificuldades em estágios ulteriores podem
ter exposto uma falha na estrutura do ego que tinha passado despercebida. Os pacientes
nesta categoria nunca foram suficientemente saudáveis para tornarem-se
psiconeuróticos” (Winnicott, 1984i, p.266).
Outra categoria é a que o autor remete ao termo psiconeurose, e inclui a
depressão que faz parte do desenvolvimento normal do indivíduo. Nessa categoria estão
os indivíduos que foram “suficientemente bem cuidados nos estágios iniciais da vida
para terem condições, do ponto de vista do desenvolvimento, para enfrentar e, em certa
medida, não conseguir conter as dificuldades que são inerentes à vida plena” (Winnicott,
1984i, p.266). Aqui, falamos de pessoas inteiras, no sentido que alcançaram o estágio de
tornarem-se uma unidade e vivem os conflitos referentes à instintualidade.
A terceira categoria inclui: “aqueles indivíduos que começaram suficientemente
bem, mas cujo ambiente não os ajudou em algum ponto, ou repetidas vezes, ou durante
um longo período de tempo” (Winnicott, 1984i, p.266). Essas pessoas experimentaram
um ambiente suficientemente bom, mas que se perdeu e gerou como conseqüência uma
interrupção no desenvolvimento emocional e um tipo de reivindicação, digamos assim,
manifesta em uma tendência anti-social. Essas categorias diagnósticas se referem a
falhas na estruturação do eu e em sua capacidade para se relacionar.
O diagnóstico é fundamental, pois a intervenção terapêutica se dá considerando a
fase em que o desenvolvimento emocional foi interrompido e oferecendo as condições
para que este seja retomado.
38
4.2 Princípios gerais da teoria do amadurecimento pessoal
O primeiro princípio a ser destacado, já mencionado anteriormente, se refere a
que o indivíduo não nasce pronto e constituído. Winnicott aponta para uma tendência
inata em direção à integração, porém só é possível que esse desenvolvimento ocorra
diante de um ambiente facilitador. Para Winnicott, não são as forças pulsionais que
direcionam o desenvolvimento do ser humano. O amadurecimento se dá porque existe
uma tendência inata nesse sentido e porque há alguém que facilita a realização dessa
tendência.
Luz (2000) destaca como uma característica significativa no desenvolvimento,
visto sob a perspectiva do pensamento winnicottiano, a dualidade originária do sujeito
psíquico presente desde o início da vida, identificada entre o corpo do bebê e a mãe-
ambiente, entre os estados de excitabilidade e os estados de relaxamento, as relações
masculina e feminina com o objeto, a experiência de ser e a experiência instintiva, entre
os impulsos eróticos e os impulsos agressivos, entre aquilo que é percebido e aquilo que
é concebido; sendo que, segundo esse autor, Winnicott não procura conciliar essas
dicotomias, ao contrário, mantém a relação dinâmica entre cada um dos princípios:
“Winnicott defende o paradoxo como a mais adequada forma do pensamento para
exprimir essa experiência de ser – ser um sujeito psíquico”. (Luz, 2000, p.313).
Loparic (2006) afirma que, para Winnicott, o processo fundamental para se
compreender os distúrbios psíquicos é o de amadurecimento emocional e não o
desenvolvimento sexual e que o ambiente tem uma importância decisiva no surgimento
de possíveis distúrbios. É através do holding materno que a criança pode começar a
experimentar uma sensação de existência no tempo e integração de si mesma. Segundo
Mello Filho (2001), o bebê funciona, logo após o nascimento, como se fosse um
39
somatório de partes, necessitando do auxílio de uma maternagem adequada para,
gradualmente, adquirir a noção de ser um todo coeso.
É necessário tomar como princípio básico a tendência
herdada de cada novo indivíduo no sentido do crescimento
e do desenvolvimento. Sob condições ambientais
suficientemente boas, o indivíduo conduz, entre outras
coisas, uma tendência no sentido da integração da
personalidade. (Winnicott, 1969g, p.430)
Dias (1999) coloca que todo ser humano é dotado de uma tendência à integração
em uma unidade e que o bebê depende da presença de um ambiente facilitador que
forneça cuidados suficientemente bons, sendo que isto é mais fundamental quanto mais
precoce é o estágio que for considerado. Araújo (2005) acrescenta que a palavra
ambiente, em Winnicott, pode ser considerada um conceito que se refere a um “conjunto
de condições para”, que engloba as condições físicas e psicológicas necessárias ao
amadurecimento emocional do indivíduo, e que tem a característica de ser dinâmico,
adaptando-se de acordo com cada momento do amadurecimento.
O desenvolvimento emocional primitivo se dá a partir de um estado de não-
integração rumo à integração, personalização e separação eu – não eu. A integração, que
se inicia pela elaboração imaginativa das funções do corpo, vai se ampliando de acordo
com os momentos do amadurecimento do bebê, abarcando também o seu relacionamento
com o mundo externo. Sempre necessitando de uma mãe que se identifique com ele e o
ajude a perceber-se no tempo e no espaço, em seu próprio corpo e na realidade externa.
O bebê depende da disponibilidade de um adulto
genuinamente preocupado com os seus cuidados, isto é,
que possa contribuir para uma adaptação ativa e sensível
às necessidades da criança, que a princípio são absolutas.
Portanto, a psique só pode ter origem dentro de um
determinado enquadre, dentro do qual a criança pode
40
gradualmente vir a criar um meio ambiente pessoal, que a
capacitará, mais tarde, a se desembaraçar do mesmo. Para
superar esse estado inicial de dependência e atingir a
independência, o meio ambiente criado e subjetivado pela
criança transforma-se em algo suficientemente semelhante
ao ambiente percebido. (Santos, 1999)
O amadurecimento consiste na passagem desse estado de dependência absoluta
para a dependência relativa e, finalmente alcançar o estágio da independência relativa,
no qual o efeito do ambiente sobre o indivíduo não tem o mesmo impacto que nas fases
anteriores. Porém, sempre existirá algo da ordem da dependência, uma vez que o ser
humano se constitui e existe em relação com um outro. Isto aponta para uma das
vertentes importantes na análise dos indivíduos que passaram a ter uma deficiência física
(amputação): a forma de lidar com a dependência, que se torna explícita em termos de
necessidade de cuidados físicos e auxílio na vida diária.
Esse processo de amadurecimento pressupõe, também e ao mesmo tempo, a
transição do mundo subjetivo, para o mundo objetivamente percebido, no qual se está
diante do princípio da realidade e pronto para relacionar-se como pessoa total, com
outras pessoas totais.
Num primeiro momento, a dependência do bebê com relação ao ambiente é
absoluta; do ponto de vista do bebê não há dois, ele e o ambiente formam uma unidade;
de forma que o ambiente só é externo do ponto de vista do observador.
Apercepção, para Winnicott, significa a relação do bebê
com um objeto subjetivamente concebido, experiência que
decorre no estágio de dependência absoluta. Com o
movimento rumo à integração e ao desenvolvimento, na
presença de um ambiente facilitador, acontece uma
passagem da apercepção para a percepção. Percepção
compreendida como uma relação com um objeto
objetivamente percebido, resultante da capacidade
crescente em estabelecer uma diferença entre o eu e o não
eu. (Outeiral, 2001, p.86)
41
À medida que a dependência vai se tornando relativa, o objeto subjetivo adquire
as características de um objeto transicional, situado em uma área intermediária entre a
realidade subjetivamente concebida e a objetivamente percebida; até que a criança, por
uma conquista do amadurecimento, pode percebê-lo objetivamente e fazer uso dele.
Winnicott descreveu o percurso que leva ao amadurecimento por meio de etapas
pelas quais o indivíduo passa e das conquistas relativas a cada período, porém não se
trata de considerar que o desenvolvimento seja composto por categorias estanques que se
sucedem umas às outras de forma rígida e pré-determinada. Segundo Winnicott, “a
criança está o tempo todo em todos os estágios, apesar de que um determinado estágio
pode ser considerado dominante. As tarefas primitivas jamais são completadas, e pela
infância afora sua não-conclusão confronta os pais e educadores com desafios”. (1988,
p.52).
4.3 As primeiras tarefas: Integração, Personalização, Início das Relações Objetais
É durante o período da dependência absoluta que o bebê, sustentado por um
ambiente facilitador, necessita realizar o que poderíamos chamar de três “tarefas
básicas”, que naturalmente ocorrem de forma simultânea: integração, relativa à
necessidade do bebê de, a partir de um estado não-integrado, integrar-se no tempo e no
espaço; personalização (alojamento da psique no corpo), referente ao estabelecimento de
uma parceria psicossomática; e início do contato com a realidade (externalidade) / início
das relações objetais, primeiramente como objetos subjetivos e, mais tarde, com o
reconhecimento da existência de objetos externos.
Dias (1999, p.290-91), afirma que à medida que essas tarefas estão sendo
realizadas, acontece a constituição do si-mesmo enquanto identidade. Segundo a autora,
todas essas tarefas são interdependentes, mas afirma que a primeira e a mais básica é a
42
da temporalização e espacialização do bebê, isso porque não haveria sentido de realidade
fora de um espaço e de um tempo e não haveria indivíduo sem uma memória de si,
enquanto aquilo que mantém a identidade em meio às transformações.
Na fase da primeira mamada teórica, em virtude da sua
tendência inata para o amadurecimento, o bebê humano,
amparado pela mãe-ambiente subjetivo, vai resolvendo as
três tarefas fundamentais do período inicial do seu
amadurecimento: integra-se no tempo e no espaço, aloja-se
no corpo (a sua primeira morada) e inicia o
relacionamento com os objetos. No caso desta última
tarefa, o amparo da mãe-ambiente consiste na
apresentação de objetos ainda não objetificados: em
primeiro lugar, ela mesma e seu corpo (mais precisamente,
uma parte dele: o seio) como objeto subjetivo e, em
segundo lugar, os seus substitutos, também enquanto
objetos subjetivos. (Loparic, 2006, p.15)
Por meio da conjunção desses três processos, que ocorrem paulatina e
concomitantemente, passa a existir um “eu” e um “não-eu”; um dentro e um fora e um
esquema corporal: “O resultado desta interação de fenômenos é a possibilidade de o
bebê alcançar o estágio de ‘ser uma pessoa’”. (Mello Filho, 2001, p. 47)
Para Winnicott (1945d) a tendência a integrar-se se realiza a partir das
experiências instintivas que tendem a aglutinar a personalidade a partir de dentro, em
conjunto com o cuidado recebido do ambiente: “no desenvolvimento normal, a
integração e a coexistência entre psique e soma dependem tanto de fatores pessoais
referentes à vivência das experiências funcionais, quanto do cuidado fornecido pelo
ambiente.” (Winnicott, 1988, p.145).
As experiências instintivas, nessa fase do desenvolvimento, estão relacionadas
aos estados tranqüilos e excitados. Eles são assim designados por Winnicott para definir
dois modos de estar de um bebê. Os estados tranqüilos podem ser definidos como os
momentos de contemplação que seguem a experiência instintual; os estados excitados,
43
como os momentos em que os instintos se impõem (Moraes, 2005, p.160). Para Dias
(2003) esses dois estados são bem diferentes e alternam-se de acordo com as tarefas que
o bebê necessita realizar: “O estado tranqüilo se mostra mais apropriado para as tarefas
de integração (no tempo e espaço) e de alojamento da psique no corpo; o estado excitado
está diretamente relacionado ao início do contato com a realidade” (Dias, 2003, p. 174).
O sentimento de estar sendo não resulta
mecanicamente do instinto de sobrevivência e da
necessidade satisfeita; ele tem sua base nos estados de
não-integração, não-personalização e não-realização,
prévia condição para que um novo impulso rumo ao objeto
– afetar e ser afetado pelo mundo – possa surgir, com os
benefícios pessoais daí decorrentes, em termos de
unificação e contato com a realidade (...) Segundo
Winnicott, é possível sentir alguma coisa por meio de duas
séries de fatos: o fato da técnica dos cuidados com a
criança, proveniente do meio externo, e o fato das moções
instintuais que, do interior do corpo, fazem da criança um
todo. (Luz, 2000, p.311)
O que parece fundamental em Winnicott (1988) é que a realização das tarefas de
integração e personalização se dá a partir de dois vértices, o pessoal (a experiência
pessoal de impulsos e instintos envolvendo excitação da pessoa total) e o ambiental,
relacionado àquilo relativo aos cuidados do corpo e à satisfação das exigências
instintivas.
Particularmente no que se refere ao ambiente, Winnicott descreve um estado de
“preocupação materna primária” que começa a ser vivido pela mãe nos últimos meses de
gravidez e se mantém durante alguns meses após o parto. Nesse estado a mãe está
identificada com seu bebê e sensível às suas necessidades, e assim pode estabelecer com
ele um tipo de relação de adaptação a essas necessidades. Dito de outra forma, a mãe vai
ao encontro do gesto espontâneo do bebê. Dessa maneira ela possibilita que o bebê viva
uma ilusão de onipotência, a ilusão de criar o mundo.
44
A mãe suficientemente boa oferece ao bebê aquilo que ele necessita e isso é
vivido por ele como uma experiência de criar aquilo que encontra. O objeto chega ao
bebê no momento em que a necessidade aparece; assim pode ser assimilado pelo bebê
como parte dele. Do ponto de vista do observador, pode ser descrito como objeto
subjetivo. O início da relação com objetos, e no primeiro momento, necessariamente
objetos subjetivos, acontece nos momentos de excitação do bebê, a partir da facilitação
da mãe, que apresenta os objetos, quando o bebê está pronto para criá-los. (Dias, 2003,
p.214-15)
É importante destacar que o estado de preocupação materna primária nada tem a
ver com conhecimento a respeito de bebês, nem com capacidade intelectual, diz respeito
à possibilidade da mãe de se identificar com o bebê e, ao mesmo tempo, manter-se
adulta para cuidar dele, vem da saúde emocional da mãe e de sua experiência de ter sido
cuidada, de forma a conseguir um avanço significativo em seu próprio amadurecimento
emocional. Segundo Moraes (2005), é diante da harmonia e sintonia presente entre a
mãe e o bebê que é possível que o ser do bebê aconteça: “que o bebê possa deixar o
ritmo de seu desenvolvimento impor-se sem que seja necessário antecipar controles e
defesas. Em uma circunstância favorável, o bebê simplesmente deixar-se-á guiar pela
tendência herdada e própria da natureza humana em direção à continuidade de ser e à
conquista do Eu” (Moraes, 2005, p.108).
Assim, as conquistas da integração e da personalização se referem à
possibilidade de ser um. O primeiro passo é a vivência do “eu” como diferente do “não-
eu”; a seguir o enriquecimento do “eu” através da interação com o “não-eu”. Diz
Winnicott (1965n, p.60): “Em circunstâncias favoráveis a pele se torna o limite entre o
eu e o não-eu. Dito de outro modo, a psique começa a viver no soma e uma vida
psicossomática de um indivíduo se inicia”.
45
Isso significa que, ao nascer, soma e psique estão indiferenciados, de forma que a
diferenciação e integração psicossomática são conquistas, desde que tudo corra bem no
desenvolvimento do indivíduo: “É bem conhecido o fato de quem nem todos chegam tão
longe, e de que muitos perdem aquilo que haviam alcançado” (Winnicott, 1988, p.144).
Assim, na saúde, o corpo transforma-se em soma (corpo personalizado) e isso é feito por
meio da elaboração imaginativa das funções corpóreas.
A primeira tarefa da psique é a elaboração imaginativa das funções corpóreas. No
início, todas as experiências do bebê são corporais, vividas no corpo, por meio do corpo:
o alimento, a sensação do banho na pele, a motilidade, a respiração, o cheiro da mãe, o
calor do colo, a forma de ser ninado. Winnicott afirma que: “A elaboração imaginativa
do funcionamento corporal organiza-se em fantasias, que são qualitativamente
determinadas pela localização no corpo, mas que são específicas do indivíduo, por causa
da hereditariedade e da experiência.” (Winnicott, 1988, p.69).
Gradativamente as funções psíquicas se aprimoram, por exemplo, em termos de
distinção entre experiência e memória; passado, presente e expectativas; localização da
fantasia dentro ou fora do self; separação entre consciência e inconsciente (Winnicott,
1958j). É importante considerar que as funções mais complexas são alcançadas
paralelamente e em decorrência da aquisição de outras funções necessárias ao
desenvolvimento. A elaboração imaginativa, ligada às funções corpóreas, não se refere,
nesse início de desenvolvimento, a um mecanismo mental. Conforme diferencia Dias
(2003), Winnicott propõe que, nesse estágio, a psique via elaboração imaginativa
promove uma esquematização do corpo e do funcionamento corpóreo, sem a
participação da mente. Isso significa que elaboração imaginativa é diferente do conceito
de fantasia como operação mental que, para Winnicott, se desenvolve no mundo interno
já constituído, portanto, possível em um momento posterior do amadurecimento.
46
Loparic (2000) destaca que o soma, conforme descrito por Winnicott, não é o
corpo físico, é o corpo vivo, com todas as suas possibilidades; dessa forma, a tarefa
inicial da psique é tornar o corpo personalizado, temporalizado e inserido em uma
história, simultaneamente, pessoal e interpessoal. Outeiral (1991, p.126) enfatiza que a
personalização significa a organização da trama psicossomática e o corpo todo se torna o
“lugar de residência do self”.
A localização da psique no próprio corpo decorre de um processo complexo, que
se desenrola com sucessivos momentos de integração entre psique e soma - que, com o
suporte adequado do ambiente, vai permitir que o bebê alcance um estado de unidade.
Sob esse ponto de vista, saúde pressupõe a existência de uma unidade
psicossomática e esta pode ser entendida como a integração das funções corpóreas e das
funções psíquicas do indivíduo. Em termos fenomenológicos, isso se coloca como o
sentimento de continuidade da existência, de estar dentro do próprio corpo e de sentir si-
mesmo, com uma personalidade completa e capaz de se relacionar com outras pessoas:
“O corpo vivo, com seus limites e com um interior e um exterior, é sentido pelo
indivíduo como formando o cerne do eu imaginário”. (Winnicott, 1954a, p.334-grifo do
autor).
Costa (2004) sintetiza a formulação winnicottiana de unidade psicossomática,
quando afirma que a totalidade físico-psíquica é indissociável em condições psicológicas
satisfatórias:
Dizer que suas “partes” são expressões parciais do todo
quer dizer que cada uma delas resume e recapitula a
história integral do sujeito. (Para Winnicott) o corpo no
qual o eu se localiza não é apenas nem sobretudo o corpo
erógeno. É o corpo que representa suas “funções” auto-
reguladoras e suas “experiências” de interação com os
objetos externos (1975:136), e, pela dupla representação,
47
estabiliza o sentido de identidade do eu. (Costa, 2004,
p.108)
Nesse sentido podemos dizer que, para Winnicott (1988), existe o soma e a
psique e uma inter-relação de complexidade crescente entre eles em direção à
integração, de forma que gradativamente o bebê vai adquirindo condições de lidar e se
enriquecer com uma gradual desadaptação da mãe, no que diz respeito às suas
necessidades, e dar início à separação eu-não eu.
Entre as funções da psique, que vão surgindo à medida que vai se alcançando
maior complexidade no desenvolvimento, Winnicott aponta as funções intelectuais. A
mente é definida como uma “especialização da parte psíquica do psicossoma”
(Winnicott, 1954a, p.333)
Para Winnicott, não há, de início, algo como uma entidade que possa ser
identificada como a mente, responsável pelas funções intelectuais. Como já foi descrito
o que há é a psique e o soma que, por meio da inter-relação com o ambiente, passam a
existir de forma integrada, graças à adaptação total da mãe ambiente. Aos poucos, a
adaptação da mãe não é tão absoluta como no início do desenvolvimento. Isso porque,
por um lado, a mãe começa a sair do estado de preocupação materna primária e volta-se,
em certo grau, para sua realidade, menos identificada com o bebê; e por outro lado, uma
vez que o bebê experimentou a ilusão de onipotência, de criar o mundo, e, portanto,
adquiriu a confiabilidade necessária para prosseguir seu percurso de amadurecimento
sem necessidade de defesas precoces, ele está preparado para as falhas da mãe, para uma
adaptação menos perfeita, que traga notícias da existência de uma externalidade não-eu.
Para que essa desilusão ocorra, é preciso que a mãe permita e isso diz respeito à sua
saúde psíquica e sua capacidade de adaptação às necessidades do bebê, que, nesse
momento, significam falhar. Esse período de desadaptação e desilusão, mais do que
48
possível e suportável para o bebê é necessário, uma vez que é o que vai permitir a
separação da mãe e o desenvolvimento e aprimoramento de novas funções psíquicas.
O bebê começa, então, nessa época a dar-se conta
de que não é ele quem cria o mundo e de que a existência
deste é anterior e independente dele, mesmo que
permaneça nele a impressão de que o mundo foi criado
pessoalmente por ele. A evolução natural dessa situação
conduz ao rompimento da unidade mãe-bebê, a separação
que conduzirá à integração do bebê em um Eu unitário. É a
partir dessa fase que, tendo já se reunido em uma unidade
e adquirido o estatuto de um eu, o bebê pode reconhecer
a existência do não-eu. É também durante esse período que
o funcionamento mental e os processos intelectuais
surgem como uma conseqüência do amadurecimento
psicossomático. (Moraes, 2005, p.114)
Assim, desenvolve-se uma função específica da psique, que é a mente, e que
poderá dar conta das falhas maternas: “Essa atividade mental do bebê transforma um
ambiente suficientemente bom num ambiente perfeito, ou seja, transforma a falha
relativa da adaptação num êxito adaptativo” (Winnicott, 1954a, p.335)
O início das funções mentais expressa a possibilidade do bebê de lidar com as
lacunas que existem entre ele e sua mãe, desfazendo o “dois-em-um” vivido
anteriormente e abrindo a possibilidade de entrar em contato, gradativamente, com a
realidade objetivamente percebida.
Santos (1999) chama a atenção para o papel dos processos intelectuais, já que é
por meio deles que os fracassos do ambiente podem ser considerados e tolerados. Se o
ambiente se comporta de forma uniforme e previsível, inclusive em sua forma de falhar,
mais facilmente o bebê poderá lidar com as falhas. O autor acrescenta que a capacidade
intelectual restrita traz maiores dificuldades na tarefa de transformar os traumas normais
resultantes da desadaptação progressiva, o que poderia levar à psicose. Ao contrário,
uma capacidade cognitiva elevada, pode levar o bebê a lidar com sérios fracassos na
49
adaptação do ambiente, mas de forma defensiva, levando a algum tipo de distorção da
personalidade, como um falso self.
Nesse sentido, na saúde, as funções mentais não estão a serviço de defesas
patológicas para controlar as intrusões ou ausências no ambiente, mas são um
instrumento para o uso do pensamento como função auxiliar na elaboração das
experiências vividas.
Há, sem dúvida, outras maneiras pelas quais a mente se
desenvolve. É função da mente catalogar eventos,
acumular memórias e classificá-las. Pela mente, a criança
é capaz de usar o tempo como forma de medida e também
medir o espaço. A mente também relaciona causa e efeito.
(...) É a mente a responsável pela gradual aquisição, pela
criança, da capacidade de esperar a comida ficar pronta,
enquanto ouve os barulhos que indicam a proximidade da
hora de alimentação. Este é um exemplo grosseiro do uso
da mente. (Winnicott, 1958j, p.9)
Em suma, segundo Winnicott (1988, p.161), a mente começa a operar quando a
adaptação total do ambiente não é mais necessária, nem desejável e o intelecto inicia a
sua função de dar conta das falhas ambientais, catalogando, classificando, relacionando
as experiências a um fator tempo, o que significa novas possibilidades de administrar
seus impulsos e necessidades, e, ao mesmo tempo, o início da transição da existência
única de objetos subjetivos para a entrada na realidade compartilhada dos objetos
objetivamente percebidos.
4.4 Transicionalidade
A fase da dependência relativa marca o início do processo de separação mãe-
bebê. Costa (2004) afirma que Winnicott define separação como “o episódio mental
contemporâneo ao afastamento psíquico da mãe de seu bebê”; dessa forma “a mãe
50
favorece o surgimento do espaço potencial entre ambos, espaço que deve ser preenchido
de modo a evitar a separação.” (Costa, 2004, p.100) O objeto transicional surge nesse
momento e se localiza na zona intermediária, na separação entre a mãe e o bebê e
permite que o processo de separação seja tolerado, uma vez que esse objeto é, ao mesmo
tempo, parte da mãe e parte do bebê.
O objeto transicional sinaliza a transição do bebê
desde um estado de fusão com a mãe até um estado em
que ele está em relação com ela como um objeto externo e
destacado. Mas, para que a criança evolua desse estado de
dependência absoluta, essencial nos estádios mais
primitivos, para uma condição de autonomia possível, é
preciso que ela primeiro tenha se certificado de que pode
existir algo que não faz parte dela – o que Winnicott
(1951/1978) chama de primeira possessão não-eu,
representada pelo objeto transicional. (Santos, 1999)
Essa é uma zona de transição entre realidade e fantasia, entre o "dentro" e o
"fora," entre o bebê e sua mãe. Porém, para que os objetos e os fenômenos transicionais
surjam, é necessário que o bebê tenha adquirido a confiabilidade no ambiente e a
capacidade de ilusão.
Segundo Araújo (2005), se houver um ambiente favorável, fenômenos e objetos
transicionais serão produzidos e facilitarão o encontro com a realidade objetiva
permitindo a constituição efetiva de um espaço potencial no qual o bebê inicia o
reconhecimento do mundo objetivo ao mesmo tempo em que integra seu mundo
subjetivo.
Para Santos (1999), o campo transicional é constituído no desdobramento entre o
subjetivo e o objetivo. É o campo da experimentação e é sustentado por um paradoxo
que deve ser aceito e respeitado: “Trata-se da relação da criança com sua primeira
possessão não-eu (objeto transicional), que está ligada tanto ao objeto externo (seio
51
materno), quanto aos objetos internos (seio magicamente introjetado), porém é diferente
de ambos. Daí seu paradoxo.” (Santos, 1999).
Winnicott postula (1953c) que a tarefa de aceitação da realidade nunca é
completada e que nenhum ser humano está livre da tensão entre realidade interna e
externa; para ele o alívio dessa tensão é proporcionado por uma área intermediária de
experiência: “A área intermediária a que me refiro é a área que é concedida ao bebê,
entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da realidade”
(Winnicott, 1953c, p.26). Essa área, presente no brincar da criança, pode ser identificada
nos fenômenos culturais na vida adulta.
Loparic (2006) afirma que a experiência cultural é um fenômeno que acontece no
espaço potencial, uma área entre a mãe e o bebê que não é nem externa nem
intrapsíquica e que é parte da organização do si-mesmo do bebê: “nesse ‘entre’ os dois,
acontece um desenvolvimento extremamente importante no relacionamento objetal dos
bebês: a mãe-objeto subjetivo e parcial (seio) passa a ser substituída e simbolizada por
objetos transicionais.” (Loparic, 2006, p.16).
No que diz respeito aos objetos transicionais, Winnicott destaca que não é o
objeto propriamente que é transicional: “Ele representa a transição do bebê de um estado
em que este está fundido com a mãe para um estado em que está em relação com ela
como algo externo e separado” (Winnicott, 1953c, p.30). Assim, o objeto transicional
não está sob controle mágico, como o objeto subjetivo, nem absolutamente fora do
controle, como a mãe real.
Para Costa (2004), o objeto transicional “é um híbrido em matéria de
objetividade e subjetividade, e sua qualidade fenomênica específica é a de ser, ao mesmo
tempo, algo que o bebê criou e que foi oferecido pela mãe” (Costa, 2004, p.111-12).
52
Uma questão essencial para o desenvolvimento saudável é que o indivíduo possa
chegar a se relacionar com a realidade externa, ao mesmo tempo em que mantém vivo o
sentido de realidade do mundo subjetivo, o sentido de ser real e da pessoalidade da
existência. Se, no primeiro momento, é fundamental que o bebê viva a ilusão de
onipotência e que os objetos lhe sejam apresentados na medida em que ele pode criá-los,
na fase da transicionalidade, o essencial é a sustentação do paradoxo que a caracteriza,
não precipitando a “chegada” ao universo da realidade compartilhada. Isso significa que
o sentido de realidade vai se modificando, conforme o bebê vai amadurecendo: “Não se
trata de um certo objeto ser subjetivo e outro, transicional. O que se altera não é o objeto,
mas o sentido de realidade deste.” (Dias, 2003, p.237).
Assim, o bebê parte da identificação primária, na qual ele é o objeto, para possuir
o objeto, o que faz do objeto transicional a primeira posse não-eu: “na relação com o
objeto transicional, o bebê passa do controle onipotente (mágico) para o controle pela
manipulação (envolvendo o erotismo muscular e o prazer de coordenação).” (Winnicott,
1953c, p.24). E, mais tarde, para o uso do objeto.
O que Winnicott postula é um estado intermediário entre a incapacidade do bebê
de reconhecer e aceitar a realidade e sua crescente capacidade de fazê-lo.
Essa área intermediária de experiência inicia-se na transicionalidade, mas não se
encerra, ela permanece durante toda a vida por meio dos fenômenos culturais. Uma vez
que, gradativamente, se dá a ampliação do espaço potencial e os fenômenos transicionais
ocorrem por outras vias (o brincar, as criações artísticas, a religiosidade) o objeto
transicional perde o significado e pode ser descatexizado, abrindo caminho para novas
experiências e novas aquisições em termos de recursos psíquicos.
53
4.5 Uso do Objeto
O uso do objeto está diretamente relacionado à capacidade do indivíduo de situá-
lo fora da área dos fenômenos subjetivos, ou seja, fora do controle onipotente. Isso
porque o objeto só poderá ser usado, se for um objeto externo.
Winnicott (1969i) diferencia relação de objeto e uso do objeto: “relacionar-se
com objetos é uma experiência do sujeito que pode ser descrita em termos do sujeito
isolado. (...) o objeto, se é que vai ser usado, tem de necessariamente ser real no sentido
de fazer parte da realidade partilhada e não ser um feixe de projeções” (Winnicott,
1969i, p.173). Assim, a mudança da relação para o uso pressupõe que o sujeito destrua o
objeto subjetivo e, posteriormente, mediante a sobrevivência do objeto real, possa usá-
lo. Dessa forma, a capacidade para usar objetos está relacionada à mudança para o
princípio da realidade e depende de um meio ambiente facilitador, no sentido de um
objeto que sobreviva. Sobreviver, aqui, significa não retaliar.
É importante notar que não se trata apenas de o sujeito
destruir o objeto porque este está situado fora da área de
controle onipotente. É igualmente importante enunciar isto
ao contrário e dizer que é a destruição do objeto que o
situa fora da área de controle onipotente do sujeito. Destas
maneiras, o objeto desenvolve sua própria autonomia e
vida, e (se sobrevive) contribui para o sujeito, de acordo
com suas próprias propriedades. (Winnicott, 1969i, p.174)
Na medida em que o indivíduo tem a experiência da destrutividade, sem a
destruição do objeto real, o objeto passa a ter autonomia e pertencer à realidade
partilhada.
Winnicott aponta para uma nova concepção da teoria da agressividade no
desenvolvimento. Na teoria tradicional encontra-se que a agressão é reativa ao encontro
54
com o princípio da realidade, enquanto que em seu enunciado, é o “impulso destrutivo”
que cria a externalidade (1969i).
Vimos que, segundo Winnicott, o impulso amoroso
primitivo – aquele que pode ser atribuído, de maneira
apropriada, ao lactente nos estágios muito primitivos do
seu amadurecimento – é indistinguível do impulso
agressivo e destrutivo, também considerado primário (...)
(essa tese) forneceu os meios conceituais para a descrição
da passagem do mundo de objetos subjetivos, inclusive os
transicionais, para o dos objetos objetivamente percebidos,
os que têm existência separada e independente do
indivíduo, têm propriedades por si mesmos, e, ao chegar à
externalidade, a criança percebe que eles sempre estiveram
ali, no tempo e espaço externos. (Loparic, 2005, p.328-29)
Armony (2003) fala da destrutividade primária indissociável do impulso libidinal
e que esta será responsável pela colocação do objeto fora do controle onipotente: “A
experiência de destruição do objeto é fundamental, tanto para o estabelecimento da
subjetividade, a integridade do Self verdadeiro, o viver criativo, a percepção de sentir-se
real, quanto pela externalidade do objeto, ou seja, o estabelecimento da realidade
objetiva ou compartilhada.” (Armony, 2003, p.74-5). E enfatiza a importância da
sobrevivência do objeto, expressa através da não retaliação, não mudança em sua
qualidade e em sua atitude.
Para Moraes (2005), nesse momento o bebê testa se o ambiente (mãe) agüenta a
destrutividade ligada ao amor primitivo. A não sobrevivência da mãe, seja agindo de
modo retaliatório ou não conseguindo ser concernente, complica ou até mesmo impede
que a mãe seja colocada em um mundo que não é parte do eu, trazendo dificuldades para
o bebê torná-la útil e alcançar a capacidade de se relacionar com o objeto de modo
objetivo, de usar o objeto (p.180).
55
Segundo Loparic (2005) a passagem do objeto subjetivo ao objeto objetivamente
percebido: “envolve uma destruição do objeto que não está relacionada com a inveja,
mas – esta é a tese central de Winnicott – com o impulso efetivo de destruir,
indistinguível do amor primitivo, o qual ‘cria a qualidade da externalidade’ do mundo e
dos objetos” (Loparic, 2005, p.329). Ainda segundo o autor, a partir da criação de uma
realidade externa, a criança pode chegar à idéia de uma “membrana limitadora”, uma
oposição entre o mundo externo e o interno, entre o não-eu e o eu. Ao criar o sentido de
externalidade, há uma separação entre o si-mesmo e os objetos: “quando a externalidade
foi estabelecida, acha-se pronto o caminho para um enriquecimento pessoal que não
possui limites, baseado na experiência pessoal e fazendo uso dos mecanismos mentais
que são usualmente chamados de projeção e introjeção” (Winnicott, 1989n, p.221).
Nesse momento do desenvolvimento, a criança passa a ter uma realidade psíquica
pessoal: “Naturalmente, isto não é verdade o tempo todo, mas, em determinados
momentos e em alguns relacionamentos, pode-se dizer que ela já é uma identidade
estabelecida.” (Dias, 2003, p.255).
Há ainda uma questão decorrente do estabelecimento de um si-mesmo integrado,
que se refere à expectativa de um ataque do mundo não-eu, uma vez que este se encontra
excluído do EU e fora de seu controle: “A reunião dos elementos do self associada à
constituição de um mundo exterior produz por algum tempo um estado que poderia ser
rotulado de paranóide” (Winnicott, 1988, p.141).
Winnicott identifica um estágio no desenvolvimento individual representado pela
expressão “eu sou”, onde o bebê encontra-se mais integrado e diferenciado do não-eu:
“Primeiro vem o ‘eu’ que inclui ‘todo o resto é não-eu’. Então vem ‘eu sou, existo,
adquiro experiências, enriqueço-me e tenho uma interação introjetiva e projetiva com o
não-eu, o mundo real da realidade compartilhada’” (Winnicott, 1965n, p.60). É no
56
começo desse estado “eu sou” que o indivíduo encontra-se vulnerável diante do mundo
e, “potencialmente paranóide” (Winnicott, 1958g).
A criança, agora, habita mais firmemente no corpo;
percebe-se tendo um contorno, como uma membrana
limitante, a pele, que a separa de tudo o que é não-eu.
Todo não-eu é repudiado como externo; ao mesmo tempo,
ela passa a ter um interior, uma realidade psíquica pessoal,
onde podem ser colecionadas e relacionadas as memórias
de experiências, inclusive todas as formações do
inconsciente reprimido, que, acrescentadas ao inconsciente
originário – que não é reprimido, mas simplesmente
esquecido – enriquecem a estrutura infinitamente
complexa que pertence ao ser humano (Dias, 2003, p.255)
Finalmente, ao adquirir o estatuto de um eu unitário, surge a tarefa de integração
da vida instintual, agora pessoal e não mais misturada com o ambiente ou externa ao
sujeito. No impulso amoroso primitivo está contido o potencial erótico e o agressivo,
que deverão fundir-se, fortalecendo a sensação de realidade e de existir do indivíduo.
(Moraes, 2005, p.161).
4.6 Concernimento
O estágio do concernimento é o momento do desenvolvimento no qual o
indivíduo adquire, gradualmente, um senso de responsabilidade em relação ao objeto. O
cuidado ambiental necessário nessa fase diz respeito à presença constante da mãe
permitindo a adaptação do sujeito à destrutividade que faz parte de sua natureza. A
integração dos impulsos parte da percepção de que a mãe que cuida (mãe-ambiente) é a
mesma que recebe a agressividade contida no impulso amoroso (mãe-objeto). Essa
percepção pode se dar a partir do momento em que ele alcança certo nível de integração
pessoal e se reconhece como “EU”, de forma que “gradualmente vai ocorrendo uma
integração entre a forma tranqüila de relacionamento e a forma excitada, e o
57
reconhecimento de que ambos os estados (e não apenas um) constituem uma relação
total com a mãe-pessoa” (Winnicott, 1988, p.89) - o que gera uma questão complexa
para o sujeito, que só pode ser resolvida na relação com um objeto, que sustente a
situação ao longo do tempo.
Na fase do concernimento, posterior à separação
consumada da mãe subjetiva, o ambiente é o círculo
benigno, isto é, ainda é a mãe-ambiente – só que, desta
vez, na qualidade de ambiente externo percebido como tal
–, dedicada a sustentar no tempo o uso excitado pelo bebê
dela mesma como mãe-objeto externo, ou seja, aceitando
ser objeto do uso instintual do bebê. (Loparic, 2006, p.16)
Moraes (2005) mostra que o problema para o sujeito é que o relacionamento
excitado inclui ataque e possível destruição à mãe. A destruição gera perda do objeto e
culpa; ao mesmo tempo protegê-la de seus ataques implica ansiedade de grande
proporção. Daí a necessidade da sobrevivência da mãe, que abre a possibilidade de
encaminhar de forma satisfatória a ambivalência experimentada pelo indivíduo.
Assim, o bebê entra em contato com o impulso amoroso, com a destrutividade
inerente e a culpa que vem em conseqüência. Aos poucos percebe que pode fazer algo de
forma reparatória. Na medida em que a mãe está lá para receber o gesto do bebê, este vai
adquirindo confiança em sua capacidade de reparação. Nesse caso, não há necessidade
de inibir a sua instintualidade; pelo contrário a inibição diminui e isso leva ao
enriquecimento das experiências instintivas: “O desenvolvimento da capacidade para o
concern é, portanto, um assunto complexo e depende da continuidade do relacionamento
pessoal entre o bebê e uma figura materna” (Winnicott, 1988, p.92).
Para o bebê excitado, a mãe-objeto - a que é usada
nos momentos de instintualidade - deve sobreviver, isto é,
58
estar fisicamente presente, pessoalmente bem e
permanecer com uma atitude inalterada, não retaliativa,
durante o período em que o bebê elabora as experiências
instintivas, que incluem idéias destrutivas e agressivas que
fazem parte do impulso amoroso primitivo. Para o bebê
tranqüilo, a mãe-ambiente - a que recebe a afeição - deve
sustentar a situação no tempo, ou seja, continuar empática
ao bebê e dispor de um tempo para que ele elabore o que
se passa em seu interior e possa avaliar as conseqüências
desta experiência. (Moraes, 2005, p.197)
Estabelece-se o círculo benigno que permite ao indivíduo explorar seu potencial
e intensificar as experiências instintivas: “Note-se que foi introduzido aqui um fator
tempo, a mãe sustenta a situação de modo que o bebê tenha a chance de elaborar as
conseqüências de suas experiências instintivas” (Winnicott, 1955c, p.356). Ou seja, o
bebê reconhece a sua possibilidade de lidar com as conseqüências de seus impulsos e
torna-se capaz de aceitar os fatores agressivos e destrutivos presentes no amor instintivo.
A resolução da dificuldade inerente ao estar vivo
nesta etapa provém da capacidade para fazer reparações
desenvolvida pela criança. Se a mãe sustenta a situação dia
após dia, o bebê tem tempo para organizar as numerosas
conseqüências imaginativas da experiência instintiva (...)
Na relação comum entre mãe e bebê esta seqüência de
machucar-e-curar se repete muitas e muitas vezes.
Gradualmente, o bebê passa a acreditar no esforço
construtivo e a suportar a culpa, e assim tornar-se livre
para o amor instintivo. (Winnicott, 1988, p.90).
Para Winnicott, não é possível a um ser humano suportar a destrutividade que
está na base dos relacionamentos humanos, ou seja, do amor instintivo, exceto por meio
de um desenvolvimento gradual associado às experiências de reparação e restituição.
(Winnicott, 1988, p.93). Desta forma a presença e a sobrevivência da mãe, ao longo do
tempo, são absolutamente necessárias para que o bebê integre sua instintualidade.
59
Quando a confiança no ciclo benigno se estabelece, o sentimento de culpa é substituído
pelo sentimento de preocupação e de responsabilidade por seus próprios impulsos
instintivos. (Winnicott, 1963b).
Lins (2000) refere que, por outro lado, a mãe pode entender os impulsos
libidinais do filho como agressividade intencional e ter alguma atitude em represália,
ainda que seja simplesmente deixar de atendê-lo como anteriormente. Isto equivaleria à
mãe não sobreviver. Para a autora, o bebê não só toma consciência de sua capacidade
para destruir como tem a experiência de ter destruído a mãe na fantasia - o que acarreta
um sentimento de culpa, que pode levar à inibição do impulso agressivo pessoal, que é
fonte de realização das atividades construtivas, ocasionando, então, uma perda
significativa para o desenvolvimento saudável do indivíduo. A retaliação dificulta que a
criança se aproprie de sua potência para reparação e utilize sua agressividade sem medo
de destruir o objeto. Diante de uma inibição significativa do mundo interno, o indivíduo
passa a existir com baixo nível de vitalidade; temos como conseqüência a depressão.
Outra questão importante, relativa à sobrevivência da mãe, é o ganho crescente
para a pessoa em termos de distinção entre fato e fantasia. Se a criança tem um acesso de
raiva e sente como se tivesse destruído o mundo inteiro, mas as pessoas à sua volta
mantêm-se calmas e ilesas, vive uma experiência que “fortalece enormemente sua
capacidade de apreender que o que ele acha ser verdadeiro não é necessariamente real,
que a fantasia e o fato concreto, ambos importantes, são, entretanto distintos um do
outro” (Winnicott, 1945j, p. 69). Para que isto ocorra é necessário que a mãe consiga
estabelecer, internamente, a diferença entre fato e fantasia, pois é por meio de sua
capacidade de fazer essa distinção que poderá ajudar a criança a, gradativamente,
compreender que “o mundo não é tal como se imagina, e que a imaginação não é
exatamente como o mundo” (Winnicott, 1949m, p. 81).
60
Temos, então, que ao atingir a integração dos instintos e a responsabilidade sobre
os efeitos da impulsividade instintual, constitui-se uma pessoa inteira, capaz de se
relacionar com pessoas inteiras e vivenciar todos os conflitos decorrentes dessa nova
posição subjetiva.
Esse breve percurso pelas etapas e tarefas pertencentes ao desenvolvimento
emocional normal até o momento da constituição de um indivíduo integrado em uma
unidade e pronto para ingressar na fase edípica, de relacionamento triangular entre
pessoas inteiras, nos mostra a complexidade do amadurecimento e as inúmeras
dificuldades que podem surgir na relação constitutiva indivíduo-ambiente. É importante
destacar que o desenvolvimento emocional não é linear e que cada etapa descrita não
pressupõe que nenhuma outra esteja acontecendo simultaneamente. Pelo contrário,
muitas se sobrepõem e há sempre a possibilidade de um retorno a uma fase anterior, seja
por necessidade da pessoa, seja por interferência ou falha (trauma) do ambiente.
Particularmente no que se refere a este estudo, trata-se agora, a partir das
histórias vividas pelos indivíduos amputados, de refletir sobre o impacto da perda física,
conforme vivida subjetivamente por cada um e sua interferência no percurso de
amadurecimento pessoal e na forma peculiar de cada pessoa ser no mundo.
61
5 – CASOS CLÍNICOS
5.1 – Luís
1
Luís procurou o hospital para reabilitação ao mesmo tempo em que estava
inserido em outra instituição, com o mesmo propósito. No primeiro momento, foi
avaliado pelo fisioterapeuta e decidiu continuar o acompanhamento no outro serviço.
Após algum tempo, retornou porque não estava satisfeito com o atendimento que vinha
recebendo na outra instituição e não via perspectiva de protetização.
Logo que iniciou o atendimento sistemático na fisioterapia foi encaminhado para
avaliação psicológica não só porque fazia parte da rotina, mas porque o fisioterapeuta
que o atendia achava que Luís era um paciente difícil e esperava que estar em
acompanhamento psicológico pudesse ajudar a controlar o seu comportamento: “Ele (L.)
é bem agressivo, vai acabar dando problema, outro dia ameaçou de bater com a muleta
no estagiário que o estava atendendo, perguntou se o estagiário sabia quantas cacetadas
precisava para quebrar a muleta. Vamos ver se conseguimos dar alta logo”.
Quando fui agendar o atendimento com Luís, troquei involuntariamente o seu
nome, ao que ele respondeu ofendido e bravo: “Eu não sou o Clóvis!!!” Desculpei-me
enquanto pensava o que havia provocado a sua reação. Poderia ser algo relacionado ao
fato de falhar, qualquer que fosse a falha; também poderia ser um incômodo da ordem
do ser negado, rejeitado, ao não ser olhado e reconhecido como Luis.
Luís tinha, na ocasião da primeira entrevista psicológica, 35 anos, morava
sozinho, separado, um filho de 14 anos. Trabalhava como cozinheiro quando sofreu um
acidente de moto que causou a amputação de uma perna. Foi atendido durante cinco
meses, uma vez por semana, totalizando 17 sessões.
1
Os nomes dos sujeitos, bem como alguns dados de suas histórias foram modificados como forma de
evitar que sejam identificados e proteger a privacidade.
62
Desde a primeira entrevista, Luis demonstrou uma necessidade imperativa de
falar sobre a sua história, o dia do acidente, sua infância, seu casamento, tudo aparecia
com riqueza de detalhes, embora sem dramaticidade. As histórias sucediam-se sem
espaço para intervenções, nada mais do que algumas perguntas para melhor
compreender a enxurrada de fatos que ele apresentava. De início, era como assistir a um
filme feito de recortes, no qual os fatos se misturavam no tempo, indo e vindo entre
passado e presente, entre os lugares por onde passara e as pessoas com as quais se
relacionara. A história principal, que permaneceu presente na maioria das sessões e foi
diversas vezes contada e recontada, foi a de seu nascimento e infância, marcada por uma
vivência de rejeição e não pertencimento. Havia algo que Luís precisava comunicar e o
fazia por meio de um relato contínuo e recorrente. Ao mesmo tempo em que falava de si,
demonstrava uma enorme desconfiança a meu respeito. Ao final da entrevista inicial,
conversamos sobre a continuidade dos atendimentos e ele disse: “Por acaso você vai me
fazer mal? Se eu for vir aqui e não me fizer mal, então eu venho.” Mais do que
demonstrar uma suposta indiferença, Luís expressava o seu medo de confiar em alguém;
e também dizia de sua necessidade de encontrar um espaço onde algo diferente pudesse
acontecer. Algumas sessões depois, pedi o seu telefone para ter uma forma de contato.
Prontamente Luís respondeu: “Já sei!! Esta semana posso esperar um telefonema
desmarcando. Eu sei, é sempre assim que acontece. Quando eu prometo uma coisa, pode
ter certeza que eu vou cumprir, mas na minha vida ninguém cumpriu o que prometeu. Eu
sei que você vai desmarcar”. Disse isso em tom de desafio, como quem propõe um teste;
como se aquela fosse a oportunidade que encontrou para que eu lhe provasse se era ou
não realmente confiável. A afirmação que eu o abandonaria deixava entrever não só o
quanto a aproximação de alguém podia ser assustadora, mas também que havia, na
relação comigo, a possibilidade de expressar essa insegurança que Luís vivia. De
63
qualquer forma ele avisava que, dentro dele, permanecia a dúvida: eu agüentaria estar
com ele sem ir embora e sem decepcioná-lo?
A questão de ter perdido uma perna aparecia como um item a mais na lista que
fazia de mostras de que em sua vida nada dava certo. Ao longo do tempo, pouco falou de
como se percebia e se sentia em relação à amputação. Contou sobre o acidente na
primeira entrevista. Embora não tivesse sido o primeiro acidente de moto que sofrera
(em um deles quase perdeu o braço, que ficou deformado pela quantidade de cicatrizes),
o relato do acidente remetia diretamente para seus conflitos com seu filho e sua ex-
esposa. Para chegar a contar como perdeu a perna, começou contando que seu filho
morou com os avós maternos desde que tinha um ano até os nove e que ele gosta muito
de passar o final de semana na casa dos avós que moram no interior. No dia do acidente
o filho estava voltando do interior e ia pegar uma carona com uns amigos, mas acabou
perdendo a carona e teve que voltar de ônibus. Quando chegou à rodoviária telefonou e
pediu para Luís que fosse buscá-lo de moto. “Eu não queria ir, não sabia explicar, mas
sabia que não tinha que ir, liguei para a mãe dele (ainda eram casados) e falei que não
queria ir; a gente acabou discutindo porque ela falava que não custava nada, que de moto
eu ia num instantinho. Eu fui, mas não cheguei, um caminhão me pegou e deu nisso. Eu
estava no melhor momento da minha vida, tinha um bom emprego, um ótimo salário, eu
tinha tudo”. Havia ambigüidade em sua fala: ao mesmo tempo em que apontava para a
hipótese de culpar sua ex-esposa pelo acidente, não se vitimava, tampouco demonstrava
mágoa com relação a ela.
Contou, e este foi o único momento em que fez menção direta ao sofrimento
advindo da amputação, que no começo foi muito difícil estar sem a perna, ficou seis
meses fechado dentro de casa, sem sair e sem falar com ninguém: “Hoje eu tiro sarro
disso, coloco minha perna em cima do balcão, não tô nem aí”. Luís trazia notícias de
64
que havia um sofrimento interno, mas que não podia aparecer no contato com o outro.
Não parecia que o sofrimento fora superado, mas sim que ficara preservado, escondido.
De qualquer forma, aparecia sob outro formato: “Todo dia brigo com alguém na rua.
Você sobe no ônibus, de muleta, apoiado em uma perna e o cara que tá sentado fala:
‘Você quer sentar aqui? ’ Eu tenho vontade de acabar com o cara, às vezes eu falo: ‘Sabe
quantas cacetadas eu preciso dar para entortar esta muleta?’ ”. Não por acaso esta fora a
mesma frase que havia dito ao fisioterapeuta e que motivara o encaminhamento para a
psicologia. Parecia que, para Luís, essa perda provocava muita raiva. Reclamava que as
pessoas olhavam e às vezes evitavam encostar nele, sentar ao seu lado no ônibus: “Te
olham como se você tivesse uma doença contagiosa. Outro dia subiu uma mulher no
ônibus, começou a me olhar, não parava de me encarar e olhar a minha perna. Fiquei
com muita raiva, mas não falei nada. Aí ela começou a me perguntar há quanto tempo eu
tinha perdido a perna e me contou que o marido tinha perdido há um mês. Depois até
liguei para o cara e falei: isso tudo que você está sentindo eu já senti, depois passa,
depois melhora”. A princípio, o olhar do outro parecia ameaçador e Luis reagia.
Essa foi a maneira pela qual Luís se apresentou. Mostrava-se frio e agressivo em
sua forma de falar sobre as pessoas que “sempre” o decepcionaram: “Se está comigo
hoje, tudo bem, se amanhã quiser ir embora, pra mim tudo bem também. Eu não fico
controlando, perguntando aonde vai, com quem vai, sabe por quê? Porque não me
interessa, eu me importo só comigo, de resto pra mim tanto faz se a cachoeira desce ou
sobe, só quero saber de mim”. Ao longo de muitas sessões, ele contou sobre a sua
infância, como uma forma de explicar o seu jeito de ser, a sua desconfiança e a sua
declarada indiferença com relação às pessoas: “Ninguém é rebelde sem causa. Eu sou
rebelde com causa”.
65
Luís nasceu no Maranhão, filho do pai com uma amante. Seu pai era
caminhoneiro e faleceu em decorrência de um acidente de trânsito quando Luís tinha
cinco anos: “Eu brinco que meu pai se suicidou porque era muito filho pra criar (ele e
mais quatro irmãos), não agüentou. Quando sofreu o acidente estava trabalhando três
dias direto, sem dormir”.
Logo que ele nasceu (após aproximadamente seis meses), o pai brigou com a
amante e ela entregou-lhe o filho. Disse achar que a mãe tinha esperança que o pai
largasse a mulher para ficar com ela: “Claro que ele não ia fazer isso, ele tinha mais
quatro filhos com a mulher que, além disso, tinha câncer no pulmão. Nenhum cara larga
a mulher pra ficar com a amante, eu levei muitas mulheres pra cama, mas nunca tive
intenção de largar minha mulher pra ficar com alguma delas. A minha mãe biológica era
tão legal que teve 14 filhos, um de cada pai. Quando eu nasci, ela já tinha dois, um de
cada pai. Só com meu pai que ela teve três (ele e, depois, mais dois que ficaram com
ela). Como o meu pai não largou a mulher, ela me entregou pra ele cuidar”. O pai levou-
o para sua casa, dizendo que Luis era filho de um amigo que não tinha condições de
cuidar dele.
“A minha irmã diz que, quando cheguei em casa, tinha bronquite, sarna e estava
tão magro que parecia que pesava meio quilo”. Contou que a mãe (mulher do pai) e a
irmã cuidaram dele. Quando ele tinha dois anos, estava bem, tinha engordado, não tinha
mais sarna, estava saudável, aí a amante bateu na porta da mãe para pedir a criança.
Dessa forma todos ficaram sabendo que ele era filho do pai com a amante. Deu tanta
briga que a avó resolveu assumir e passou a cuidar dele: “Lá em casa ninguém cuidava
de mim e por isso minha avó resolveu me levar pra casa dela”. Sentia que os irmãos
tinham raiva dele e o desprezavam por ser filho da amante.
66
Quando o pai morreu, a avó colocou todos para morar com ela: a mãe biológica,
a esposa do pai e os filhos de ambas, seus irmãos. Aos doze anos, a mãe (mulher do pai)
morreu por causa do câncer e quando tinha quinze anos a avó quis voltar para o lugar
onde havia nascido. Nessa viagem o barco virou e ela morreu afogada, junto com um
sobrinho e um tio.
Disse que considerava a avó a pessoa mais importante de sua vida, que faria
qualquer coisa por ela: “quando a minha avó morreu acabou tudo o que importava na
vida”. Logo após a morte da avó, foi morar em São Paulo. Ela era a pessoa que tinha
como mãe, já que nunca considerou a mãe biológica dessa forma: “Se bater na minha
porta pedindo comida eu dou, porque eu não nego comida pra ninguém, mas entrar em
casa, não entra.” Com relação aos irmãos, não manteve relacionamento com nenhum
deles depois que foi morar em São Paulo: “Família? Eu não tenho família”.
Luís conseguiu completar o relato de sua história ao longo das sessões. Todas as
vezes que voltava ao tema, acrescentava novos detalhes, organizava os fatos
cronologicamente e, quando a relação comigo estava mais estabelecida, passou a incluir
os sentimentos e as marcas deixadas por essas vivências. Apareceu o sentimento de
rejeição da mãe biológica e dos irmãos, a sensação de ter sido usado como tentativa da
mãe de ficar com o pai. Ele entendia que a mãe biológica ficara com ele somente
enquanto tinha esperança de que seu pai abandonasse a família para ficar com ela. E que,
quando ele havia encontrado um lugar, ainda que fosse o de filho do amigo, a partir do
qual pôde ser cuidado e curado, a mãe biológica retornou e desestabilizou a família ao
reclamar o filho e revelar sua verdadeira origem. Por outro lado, ele introduziu a
importância da avó em sua vida, como alguém que entrou na história para salvá-lo do
abandono, ao mesmo tempo em que contou de sua perda e, junto com ela, a perda da
esperança: “Até minha avó morrer eu sabia o que era sentir, chorar; depois que ela
67
morreu isso acabou. Minha avó era uma santa. Eu costumo dizer que se ela fosse viva
hoje eu largaria tudo e todos - inclusive meu filho - para cuidar dela porque eu não pude
cuidar dela antes. Eu nunca tive quem cuidasse de mim”.
Juntamente com o relato de suas origens, Luís tratava, nas sessões, de sua solidão
e de sua certeza da impossibilidade de estar com alguém, de confiar em alguém, de se
relacionar com quem quer que fosse. A sua ex-esposa era, depois de sua avó, o único
registro de alguém confiável que não estivera com ele somente para se aproveitar, de
alguma forma. Afirmava que nunca tivera amigos que não tivessem algum interesse,
somente a ex-mulher o ajudara sempre e ainda ajudava.
Quando a conheceu não tinha emprego fixo, não tinha onde morar. Percebia que
se casara com ela como uma oportunidade para obter uma casa, um auxílio: “Eu sempre
soube que meu casamento ia acabar um dia, eu não gostava dela como mulher, eu casei
porque era a única chance que eu tinha”.
Ela sempre ganhara mais do que ele e sustentava a casa quando ele ficava
desempregado. O seu último emprego era o que mais tempo durara, mais de dois anos;
em outros trabalhos ficara poucos meses e o restante do tempo, desempregado; então
muitas vezes viviam somente com o salário dela. “A gente podia ter construído a nossa
vida, juntado dinheiro, eu sempre quis isso, mas ela não tinha o mesmo objetivo que eu,
ela queria dar tudo para o filho e eu queria aproveitar mais e crescer na vida”.
Em uma sessão disse que era muito grato com relação a ela. Era uma afirmação
surpreendente considerando que, até então, o tom a respeito das pessoas em geral era de
indiferença ou raiva. Perguntei como se sentia com isso, ao que ele respondeu: “É difícil
ser muito grato, principalmente quando você não tem como retribuir. Por isso me separei
dela depois do acidente, ela não queria, mas eu não podia aumentar a dívida. Não queria
que depois falassem que eu me aproveitei dela quando precisei e depois larguei”.
68
Contou que a separação também teve a ver com o filho; não agüentava ver que o
menino dormia até tarde, não trabalhava e a mulher sempre o protegia. “Um dia ela falou
pra mim que sabia que ia chegar a hora que ia ter que escolher entre eu (sic) e meu
filho”. Achava que o fato do filho ter morado muito tempo com os avós maternos
atrapalhara muito a sua relação com ele: “Eu era contra ele ficar com os avós, mas ela
achava que não íamos conseguir cuidar dele porque trabalhávamos o dia todo, não tinha
com quem deixar. Só que quando ele veio pra casa, já estava cheio de manias, ele era do
jeito que os avós fizeram, aí não tinha como eu ser o pai dele”. Também se dizia
ofendido e desprezado porque a família da esposa nunca aceitara o casamento: “Eles
queriam um príncipe bem rico, alto e de olhos azuis para casar com ela, aí apareceu um
cara baixinho, mulato e pobre, eles nunca suportaram”.
Sobre o filho, afirmou que têm uma relação distante: “Eu tenho um filho que não
tá nem aí pra mim, só me trata bem quando vai me pedir alguma coisa. Eu brinco que
não sou pai, sou banco, ele só me liga quando precisa de dinheiro. Ele só faz o que
interessa para ele”.
Parecia que, para Luís, as relações entre pessoas pouco existiam. Não havia, em
sua experiência, registro de relacionamento; o que havia era uma pessoa que se
aproveitava de outra por algum tempo.
Luís me dizia, por meio do relato de várias situações, como vivia as relações que
estabelecia; ninguém era suficientemente confiável para que se sentisse seguro e
permitisse a presença de um outro em sua vida. Para ele, o seu isolamento era
plenamente justificado porque, invariavelmente ele se decepcionara com as pessoas. Ou
as pessoas “lhe faziam bem”, ou “lhe faziam mal”. Sob sua ótica, as que ele encontrou
no caminho sempre lhe fizeram mal. Mesmo as que lhe fizeram bem, em algum
69
momento o magoaram - o que destruía, internamente, a vivência positiva que havia tido
anteriormente.
Em uma determinada sessão, logo ao chegar, mostrou-se menos duro consigo
mesmo, a sua expressão estava mais suave e mais entristecida. Disse que achava que não
estava bem, contou que chorara muito no dia anterior, que as coisas estavam muito
difíceis porque estava sem dinheiro e sozinho: “Antes desse acidente eu olhava para
frente, agora eu só olho para os lados. Olhar para frente é ver o que está vindo; olhar
para os lados é ver o que está passando e você não vai pegar mais”. Disse que estava
sozinho e que não confiava em nenhuma relação. Passou, então, a me mostrar como se
sentia traído, injustiçado e abandonado pelas pessoas de quem se aproximava. Um amigo
do condomínio em que mora lhe pediu para fazer dois bolos de aniversário e Luís disse
que precisava do dinheiro porque não estava recebendo auxílio-doença. “Eu fiz. O cara
não me pagou até hoje, pra mim acabou, não confio mais nele”. Essa foi uma das
histórias em que alguém lhe prometia algo que não cumpria, o enganava, ou o traía. Em
todas elas, Luís demonstrava muita raiva da pessoa e o conflito sempre terminava em
rompimento: “Eu sou assim, se gosto de você te dou tudo, você tem o que quiser de
mim. Mas se você me prejudicar, é só uma vez, pra mim acabou. Para mim não existem
as palavras ‘arrependimento’ e ‘remorso’. O que você fez está feito, não adianta se
arrepender, se desculpar, nada vai mudar o que você fez alguém sofrer”. Em sua
vivência, não havia reparação possível.
Ao final da sessão, pediu para mudar seu horário por causa da fisioterapia.
Ofereci algumas opções, mas não pôde aceitar nenhuma delas. Combinamos que viria
em seu horário, mas acabaríamos mais cedo para dar tempo de ir à fisioterapia. Ao sair
disse: “Tá vendo, eu só perco, agora em vez de duas sessões só vou ter uma”. Apontei
que sempre foi uma sessão e não duas, ao que ele respondeu: “é mesmo, confundi! Mas
70
agora vai ser mais curta.”. Assim, na medida em que não houve um encaixe perfeito
entre nossos horários, se o tempo da sessão diminuiria, não era por um pedido seu, mas
por algo que eu lhe tirava; como se eu o estivesse, intencionalmente, prejudicando.
Na relação transferencial eu percebia que, diferentemente das primeiras sessões,
ele deixava mais espaço para que houvesse algum tipo de intervenção. Eu podia começar
a aparecer como alguém externo a ele. Ao mesmo tempo, seja por não conseguir
encontrar outro horário que fosse conveniente para ele, seja por tirar férias e deixá-lo
”sem atendimento”, eu entrava na lista de pessoas que o prejudicavam, que o
decepcionavam, que lhe faziam mal. A diferença era que eu não permanecia nessa lista,
porque havia uma constância na minha presença que permitia que, aos poucos, Luís
experimentasse certa confiança nessa relação.
Cerca de três meses depois do início dos atendimentos, a prótese de Luís ainda
não ficara pronta. O cartucho (parte da prótese que encaixa na perna) de sua prótese
ficara pronto, mas apresentou um problema de encaixe e, ao andar, saía da perna. Parte
da equipe considerava que a escolha do tipo de cartucho fora errada para o caso de Luís.
Resolveram mudar para outro tipo de cartucho. Quando este segundo modelo ficou
pronto, Luís reclamava de dor e incômodo; dizia que o primeiro era mais confortável,
não machucava, o único problema era que saía da perna. Os fisioterapeutas afirmavam
que era o modelo mais adequado para o seu caso e que o incômodo era normal no início,
até formar um calo no local onde o cartucho apóia na perna. Para Luís a dor não era
normal e ele não se “submeteria” a isso. Essa situação novamente confirmava que as
coisas realmente não davam certo em sua vida e que, no hospital (assim como no outro
em que estava fazendo a reabilitação logo após o acidente) havia muita má vontade para
com ele, porque tudo era muito demorado.
71
Nesse período vinha para as sessões e reclamava de tudo: da lentidão na
confecção e ajuste do cartucho, da distância de casa até o hospital, da demora da
condução, do trânsito ruim. Falei da raiva que ele acumulava, ao que ele respondeu: “Eu
sou que nem um saco, bem grande; todo mundo vai colocando coisa lá dentro e eu só
deixo, só falando – tudo bem!. Não dá pra fazer? Tudo bem! Não tá pronto? Tudo bem!
E vou juntando. Aí quando não cabe mais nada, eu viro o saco todo de uma vez, sai tudo
junto, não quero nem saber”.
Explicava com detalhes como deveria ser feito o cartucho e dizia que não
confiava em ninguém na oficina ortopédica, que eles não sabiam fazer as coisas direito.
Segundo ele, nesse tempo todo em que estava esperando, leu muito sobre todos os tipos
de próteses e de cartuchos, foi a vários lugares para ver, só que os outros eram pagos e
muito caros e ele não podia pagar; então tinha que aceitar a situação em que estava e
esperar uma solução: “O problema é que eles vão fazer mais dez cartuchos e não vão
resolver, vou acabar ficando com esse (o primeiro que ele usou) que fica super
confortável, não machuca, o único problema é que quando dou o passo a prótese sai; sei
lá, acho que vou acabar achando sempre esse melhor que os outros”. Sabia que não
ficaria satisfeito com a prótese que teria. Luís demonstrava que a questão da prótese
estava intrinsecamente ligada à sua dinâmica psíquica. Não se tratava apenas de um
auxílio para andar. O que estava em jogo era a repetição de uma pseudo-aceitação.
Assim, concordar em usar uma prótese, que não estava totalmente adequada, o mantinha
em uma posição de insatisfação com o outro, que não tinha feito direito, não tinha lhe
dado aquilo que ele necessitava para continuar procurando alguma coisa que “desse
certo” em sua vida.
Aos poucos Luís deixava um pouco os fatos de sua história e começava a pensar
e a falar a respeito de suas angústias e da solidão em que se encontrava. Nesse momento,
72
Luís foi encerrando o nosso trabalho. Havia decidido não mudar mais o cartucho e usava
a prótese juntamente com uma bengala para melhorar o apoio. Disse que, em poucas
semanas, teria alta da fisioterapia e que seria a hora de cuidar de sua vida, retornar ao
trabalho, tentar montar o seu negócio, trabalhar para ele e não mais como funcionário de
alguém.
Em uma das últimas sessões chegou chateado e contou que no dia anterior
passara fechado dentro de casa, sem falar com ninguém e que isso não fazia diferença
pra ninguém. Disse que pensou muito e ficou se perguntando por que tudo na vida dele
dava errado sempre: “As pessoas que se relacionaram comigo sempre quiseram me usar,
não sei por que, às vezes penso que estou pagando porque rejeitei minha mãe”. Luís se
referia ao fato de não ter perdoado a sua mãe biológica por tê-lo abandonado e não ter
aceitado a sua aproximação posterior. Vivia um conflito, uma vez que a raiva que sentia
em relação à sua mãe não tinha como ser legitimada e acolhida por ela; então se tornava
muito destrutiva. Isso o aproximava de um sentimento de culpa que tinha muita
dificuldade em vivenciar, inclusive porque a punição, representada por tudo o que dava
errado em sua vida, era monstruosa. Por outro lado, conter a raiva e a agressividade em
relação à sua mãe e a toda sua história o colocavam em uma posição de insatisfação e
sentimento de injustiça eternos. Luís expressava a sensação de aprisionamento (interno)
que vivia: “Eu me sinto como se tivesse no meio de uma roda, com um monte de cara
apontando uma arma pra mim e eu não tenho como sair de dentro desse círculo”.
Na última sessão, chegou andando sem muletas pela primeira vez. Disse que o
fisioterapeuta achava que ele havia escolhido a prótese que estava usando: “Eu não
escolhi nada, é que não tenho opção, essa é a que ficou melhor, mesmo com o problema
de sair; tenho que andar pensando muito bem o que estou fazendo, cada passo, mas pelo
menos já consegui tirar a muleta; eu não nasci com muleta, então tem que tirar. Agora só
73
daqui a uns quatro meses que eu tenho que voltar. Agora tenho que ir atrás das minhas
coisas, meu trabalho, o que eu podia fazer aqui, eu já fiz”. Perguntou se eu achava que
ele era doido ou revoltado e entendi que ele precisava saber o que eu via nele. Disse-lhe
que não sabia o que ele estava entendendo como doido ou revoltado, mas que poderia
dizer algumas coisas sobre as quais havíamos conversado e que percebia nele. Falei
basicamente da dificuldade em confiar, em acreditar, porque talvez nunca tenha sentido
que alguém poderia estar com ele, olhar pra ele e entendê-lo, sem traí-lo, invadi-lo ou
usá-lo. Luís se despediu dizendo que não sabia se a psicologia o tinha modificado;
achava que seu jeito de pensar não mudara, mas que ele havia estado comigo por muito
tempo, me contara toda sua história e queria me agradecer por tê-lo escutado,
acompanhado e ajudado durante esse tempo.
Penso que, nesse processo, Luís pôde, basicamente, fazer um trajeto por sua
história, de forma a confiar a alguém os não ditos que permaneciam criando lacunas
dentro dele. Também pôde formular a questão da falta de confiança básica e a angústia
não só de não ter alguém ao seu lado, mas a angústia de ter alguém habitando o seu
mundo, assim como o medo de perder e voltar à condição de solidão e rejeição. Por
alguns momentos, por meio de seu relato, teve a vivência de expressar a sua capacidade
de amar, ainda que rapidamente retornasse para a condição de aridez afetiva em que se
sentia mergulhado. Finalmente, o seu questionamento, em uma das últimas sessões, a
respeito de como sua vida tinha chegado a ser o que era, o porquê nada dava certo e
ninguém estava genuinamente ao seu lado, me fez pensar em um momento de
integração, de se ver como alguém que pode ter uma ação sobre o mundo e,
conseqüentemente sobre sua vida, ao contrário de toda a sua vivência de que o mundo
era o grande agente opressor que o impedia de ser o que ele queria ser. Digo um
74
momento, porque percebi que era só um início de reflexão que se desenhava; porém vejo
que houve um caminho trilhado para chegar a esse momento, ainda que passageiro.
Discussão
Há alguns aspectos que são relevantes, em Luís, para compreender o seu
desenvolvimento emocional e, a partir daí, estabelecer uma relação com a experiência da
amputação. São eles: a desconfiança e desesperança com relação ao mundo e às
relações; a irreversibilidade das conseqüências de suas ações sobre o mundo e vice-
versa; a inexistência da possibilidade de reparação e a manifestação de sua
agressividade. Incluída nessas questões, que fazem parte do desenvolvimento emocional
de Luís, está a profunda marca relativa à sua história de vida, que permeia a forma como
ele se vê e se apresenta ao mundo.
A questão da desesperança com relação ao mundo, que Luís apresenta desde o
início do contato comigo, nos mostra que há conseqüências importantes em seu
amadurecimento pessoal, decorrentes de falhas nas fases iniciais de seu
desenvolvimento.
Se o ambiente falha em prover o bebê de confiança
na realidade de si-mesmo e do mundo, o indivíduo não
alcança a capacidade de acreditar em..., de confiar. O
resultado é uma desconfiança básica, uma inconsistência
que torna tudo irreal. O indivíduo não pode entregar-se aos
acontecimentos da vida e fica todo o tempo tomando conta
do ambiente, à espreita de alguma invasão ou tomando
conta do frágil si mesmo, sempre passível de ser perdido,
aniquilado (Dias, 1999, p.299).
Não é somente pela história concreta que podemos perceber a existência de
falhas ambientais na vida de Luís, embora os sucessivos momentos de rejeição,
abandono e perda que ele relata façam pensar em que condições de sustentação e
75
adaptação ambiental ele se desenvolveu. É possível perceber também na forma como
Luís se vê, se apresenta e se relaciona que a espontaneidade não é o padrão principal que
vivencia. Ele frequentemente se mostra reagindo e/ou se protegendo de algo ou de
alguém e podemos pensar na reação como um parâmetro de estar no mundo, incluindo
aqui o fato de sua agressividade estar mais a serviço de uma defesa do que do seu
próprio crescimento. Como exemplo dessa questão está um recorte de uma sessão na
qual Luís contava que sempre quisera montar seu próprio negócio, mas lhe faltava
dinheiro para investir: “Uma vez um cara me disse: ‘Luís, eu quero ser teu sócio, quanto
você precisa pra abrir o teu negócio?’ Eu falei: ‘Não preciso nem fazer conta, preciso de
cento e trinta mil’. Aí o cara falou: ‘Beleza, eu entro com o dinheiro e você vai
conseguir tudo o que você sempre quis’. Aí eu falei: ‘Não quero, sabe por quê? Porque
vou trabalhar que nem um louco pra tudo dar super certo, vou me matar cozinhando do
melhor jeito que eu puder, aí vai chegar no final do mês e você vai chegar e falar, quanto
deu de dinheiro? Eu vou falar, foi tanto. Aí você vai falar que é 70% pra mim e 30% pra
você. E com o tempo você vai achar que tá ganhando pouco e eu vou ter que me matar
mais ainda pra ganhar mais dinheiro’. Não, obrigado, eu não quero ser escravo de
ninguém”.
Para Winnicott, o direcionamento do impulso agressivo para a destrutividade ou
para a criatividade vai depender da facilitação do ambiente ao permitir que o indivíduo
alcance uma identidade unitária considerando, inclusive, a apropriação da agressividade
inerente ao ser humano, podendo, assim, sentir culpa e se responsabilizar pelos
resultados de seus atos. “Em suas origens, a agressividade é quase sinônimo de
atividade: trata-se de uma função parcial” (Winnicott, 1958b, p.289). A integração não é
alcançada em um dia, ela vai se concretizando e consolidando e ainda depois de
conquistada pode ser perdida devido a uma situação ambiental adversa. Se a integração
76
não se realiza ou se realiza de maneira muito precária e a agressividade é inibida:
“ocorre também a perda de uma parte da capacidade de amar, ou seja, de relacionar-se
com objetos”. (Winnicott, 1958b, p.291)
Em Luís não parece existir a possibilidade de lidar com a ambivalência,
característica de um momento do desenvolvimento que pressupõe a conquista da
identidade unitária. Nesse sentido a sua agressividade também é vivida como absoluta e,
projetada no ambiente, torna-se persecutória. Todos querem usá-lo e prejudicá-lo. E é a
esta realidade subjetiva a que deve sempre reagir.
Para Winnicott (1958b), quando “a integração do ego já alcançou um grau em
que o indivíduo pode perceber a personalidade da figura materna e (...) tem como
conseqüência o sentimento de concernimento quanto aos resultados de suas experiências
instintivas, tanto físicas quanto ideativas” (p.291), inicia-se a tarefa de administrar o
mundo interno.
O fato é que esta tarefa não pode ser iniciada antes
que a criança esteja bem alojada no interior de seu corpo, e
consequentemente em condições de perceber a diferença
entre o que está dentro e o que está fora de si mesma, e
entre o que é real e o que é fruto de sua
fantasia.(Winnicott, 1958b, p.292)
O que parece é que, em Luís, esta tarefa não pôde ser concretizada. Para ele,
existe um único registro de um amor não ameaçador, o de sua avó, figura inabalável,
inatingível, amor absoluto. Ela, enquanto objeto subjetivo, permanece sob seu controle
onipotente e não representa qualquer ameaça. Diante dela, ele supõe que poderia ser ele
mesmo. Não consegue romper a dicotomia entre o que é e o que não é, o bem e o mal, o
certo e o errado. Se alguém lhe faz bem, deve sempre ser assim, caso contrário este
alguém deixa de fazer parte de sua vida. Para ele, não existe a possibilidade de uma
77
pessoa ser, ao mesmo tempo, experiência de amor e de ódio, de satisfação e de
frustração. Não há possibilidade de reparação, não há “preocupação”. Winnicott
considera que “preocupação” é a palavra que expressa, de modo positivo, aquilo que no
negativo poderia ser descrito como “culpa”. Para ele “a capacidade de se preocupar é
uma questão de higidez, uma capacidade que, uma vez estabelecida, pressupõe uma
organização complexa do ego, que não se pode considerar de outro modo, que não seja o
de uma conquista” (Winnicott, 1963b, p.71).
Não é à toa que Luís afirma enfaticamente que, para ele, não existem as palavras
arrependimento e remorso. Para que existissem essas palavras, seria preciso que Luís
tivesse tido a possibilidade de integrar sua instintualidade e tivesse vivido a experiência
de destruição e reparação.
Particularmente na relação transferencial, Luís procurou de várias formas uma
prova que confirmasse a impossibilidade de estabelecer uma relação de confiança e, em
certo sentido, criou situações nas quais estaria marcada a minha falha, a partir da qual
ele poderia reagir, por exemplo, quando pediu para diminuir o horário de atendimento e
depois se sentiu lesado, porque supostamente eu lhe tirara tempo de sessão. Durante todo
o processo, sentia que a questão do falhar com ele era algo para o qual deveria ter
redobrada atenção. Principalmente em se tratando de um atendimento em instituição,
muitas vezes, é difícil manter algumas condições de presença e constância, necessárias
em alguns momentos, como no caso de Luís. Entendo que o mínimo de sustentação foi
garantido, o que permitiu pequenas mudanças ao longo do processo. Inclusive ao final,
quando se despediu dizendo que não sabia se o ajudara, que nada mudara para ele, mas
que gostaria de agradecer, entendi como uma conquista, um passo em direção a poder
ser, sem necessariamente reagir. Havia nessa fala certa ambivalência, algo da ordem de
um ataque (“não mudei, não sei se me ajudou”, o que poderia ser desvalorização da
78
psicoterapia), ao mesmo tempo um sentimento de gratidão e o registro de ter sido
escutado, talvez entendido. Ou seja, uma possibilidade de juntar, na mesma pessoa,
aquela que frustra, que não ajudou em nada, não mudou o seu sofrimento, não o tirou da
infelicidade; e aquela que lhe deu espaço, atenção e confiabilidade.
E como se insere no universo psíquico de Luís a perda de uma parte de seu
corpo? Está claro que a amputação não aparece como foco de suas angústias. A vivência,
com relação a essa perda surge pouco em sua fala. O que ele apresenta é uma vivência
não referenciada como perda. Ou, dito de outro modo, Luís não parece experienciar a
amputação como uma perda de uma parte de seu corpo. Considerando que há falhas em
seu desenvolvimento que dificultaram a constituição de um si mesmo integrado,
dificuldades estas referentes à integração de sua instintualidade, é possível compreender
que a integração das experiências vividas não ocorra de modo saudável. Pois para que
perda de uma parte da perna fosse de fato experienciada e integrada como pertencente ao
si mesmo, Luís necessitaria ter condições, em termos psíquicos, de aceitar e reconhecer
seu mundo interno e de lidar com as suas exigências e conflitos na relação com a
realidade externa.
Como vemos em Winnicott, a instintualidade, que pode se desenvolver de
maneira saudável, e a aceitação da realidade psíquica pessoal são fatores intrinsecamente
relacionados; sendo que entraves na primeira comprometem a percepção da segunda e,
consequentemente, o enriquecimento pessoal que poderia se dar por meio da integração
das experiências vividas.
(...) experimentar seja o que for que se encontre em sua
íntima realidade psíquica pessoal, é a base do crescente
sentido de identidade. (...) Na criança individual em
evolução de amadurecimento, surge outra alternativa à
destruição muito importante. É a construção. Tentei
79
descrever algo da maneira complexa como, em condições
favoráveis de ambiente, um impulso construtivo relaciona-
se com a crescente aceitação pessoal de responsabilidade
pelo aspecto destrutivo da natureza infantil. (Winnicott,
1964d, p.267)
Luís não encontrou em seu percurso a alternativa da construção.
Em alguns momentos, como quando está na fila do banco ou no ônibus, Luís se
coloca como deficiente. Não como alguém que necessita de um benefício, devido a uma
dificuldade, mas como alguém que reivindica um direito, próprio de uma determinada
condição, independentemente de necessitá-lo ou não.
Em outros momentos, a perna amputada é exposta, quase como um confronto ao
outro, quando alguém não percebe que é amputado. É como se necessitasse ser
reconhecido como amputado, ser visto da forma como está. Diferentemente de outros
indivíduos que se sentem aliviados em esconder a amputação, usando uma prótese e uma
calça, por exemplo, Luís procura uma maneira de tirar a prótese e mostrar a sua perna,
da forma como é e não como parece ser.
Nessas duas situações, o que chama a atenção é que Luís faz um uso de sua perna
amputada: ou como uma forma de se beneficiar, ou como forma de agredir/chocar; ou
até mesmo como uma maneira de ser visto em uma condição mais verdadeira, se
comparada à situação das pessoas não perceberem que é amputado.
Por outro lado, conta que logo após o acidente, ficou seis meses sem sair de casa;
porém, não fica claro qual foi a sua vivência na ocasião e qual era o sentido de não
querer sair. Luís evita falar sobre isso, mas esse relato diz de uma necessidade de
recolhimento concreto e de auto-proteção, que deixa entrever o impacto sofrido com a
perda da perna. Podemos supor que o isolamento, nesse momento, reforçou uma
organização defensiva, sendo que no momento posterior, a perna passou a ser objeto e
80
não parte de seu corpo, que sofreu uma perda, que pôde ser subjetivada. Sem um
ambiente facilitador - e aqui podíamos pensar em um ambiente terapêutico - a perda da
perna se caracteriza como mais um trauma. Trauma no sentido de não encontrar a
possibilidade de retomada do desenvolvimento emocional, ainda que fosse a partir de
uma ruptura. É o relato dos seis meses “sem sair de casa e sem falar com ninguém” que
fazem pensar que houve uma ruptura em algum nível. Mas que teve como conseqüência
a retomada da organização defensiva e não a retomada do amadurecimento pessoal.
Não é possível afirmar que a perda da perna causou uma mudança em sua
dinâmica psíquica; parece importante refletir se, nesse caso, a própria perda não é
conseqüência das dificuldades encontradas no processo de amadurecimento de Luís,
anteriormente apontadas. Nesse sentido, a amputação aparece como conseqüência de
uma impulsividade destrutiva, que não consegue se constituir como fonte de energia
vital, saudável e integrada.
De qualquer forma, seja causa, conseqüência ou contingência, a perda sofrida é
vivida como confirmação de sua solidão e da ausência de sentido que permeia sua vida.
Isso significa que a perda da perna não traz mudança, não gera uma paralisação em seu
desenvolvimento, mas o mantém no estado de impedimento de amadurecimento em que
já se encontrava.
5.2 Rogério
Rogério foi atropelado por um carro desgovernado e, como conseqüência, teve
amputada uma perna. Na ocasião da primeira entrevista, tinha 27 anos, era casado desde
os 20, e tinha um filho de seis. Trabalhava como policial militar.
Foram realizadas duas entrevistas. Após a primeira, era evidente, tanto para mim
quanto para Rogério, que ele necessitava de ajuda. Disse que queria voltar na semana
81
seguinte. Não retornou. Passada outra semana, encontrei-me com ele durante seu horário
de fisioterapia: “Eu não vou mentir para você, eu não tô bem, não queria falar, por isso
não vim. Eu ia te procurar na 5ª feira (próxima sessão), tinha me programado para vir na
próxima”. Agendamos para a semana seguinte, conforme ele havia se programado. Na
primeira entrevista, ele havia falado sobre o acidente e, principalmente, de seu desespero
por ter perdido a perna. Naquele momento estava tomado por uma impossibilidade de se
ver sem a perna. Era como se nada mais existisse, somente a angústia de estar amputado.
Em sua fala não havia história, não havia passado, não havia futuro. Havia somente o
tempo a partir do acidente, vivido como um desmoronamento de seu mundo Estava
extremamente fragilizado e tentando se manter estruturado, porém percebia que não
obtinha muito sucesso nessa tarefa. Na segunda entrevista, Rogério contou-me sobre a
sua vida antes do acidente, seu trabalho, os conflitos entre sua família e sua esposa.
Percebia que sempre tivera dificuldade em administrar estas questões, mas não havia
muito tempo em sua vida agitada para entrar em contato com elas. Depois desse segundo
encontro, Rogério novamente agendou uma sessão à qual não compareceu. Faltava
também à fisioterapia. Após duas semanas, ele parou de ir ao hospital, enquanto
esperava que confeccionassem a sua prótese. Não me procurou mais.
Rogério trabalhava em três empregos, um deles uma firma de rastreamento de
veículos roubados. Foi buscar um caminhão que havia sido encontrado abandonado em
uma estrada; estacionou sua moto no acostamento e desceu. Um carro, que vinha
trafegando na via, não conseguiu fazer a curva e o atropelou. Teve traumatismo craniano
e múltiplas fraturas na perna.
Percebeu, no local do acidente, pela reação dos colegas que o socorreram que era
muito grave; rompeu uma artéria da perna e sangrou muito, passou por três hospitais até
chegar a um que tivesse recursos para atender o seu caso. Ficou em coma por alguns dias
82
e quando acordou já estava sem a perna. “Falei para o médico, não acredito, eu tô
sentindo a perna, aí ele me ajudou a sentar e me mostrou a perna”. Disse que ficou
desesperado, pediu para morrer, achava que como tinha perdido a perna nada mais valia
a pena: “Dei muito trabalho na enfermaria, não conseguia aceitar, queria desligar todos
os aparelhos, até que um médico me fez olhar todos os pacientes da UTI, um em coma
por mais de dois meses, o outro pra morrer, o outro não sei de que jeito, ele queria que
eu visse que tinha gente pior. Aí sosseguei um pouco”.
Em seu trabalho, já vira várias pessoas que haviam sofrido acidentes como o dele
e ficaram com seqüelas graves e incapacitantes: “Eu sempre pensava como o cara pode
viver assim?”. Enquanto estava internado, conversou com a psicóloga da Polícia Militar
e lhe disse que estava bem, confiante, esperava colocar uma prótese e ficar bem: “Ela
acreditou e liberou minhas duas armas, aí cheguei em casa e minha mulher escondeu a
munição, ela falou que não adiantava procurar porque estava muito bem escondida, que
eu ia ter que procurar outro jeito”. Tomou todos os remédios disponíveis, mas só teve
diarréia. Logo que voltou para casa não deixava nem abrir a janela, mesmo com muito
calor queria tudo fechado. Agora deixa abrir a janela, mas não quer sair para nenhum
lugar: “Eu tenho vergonha disso aqui (perna amputada), não consigo aceitar isso”.
Rogério trabalhava em três empregos, por opção própria. Havia noites em que
não dormia, emendando um trabalho no outro: “Não conseguia ficar parado, não sei, me
dava uma coisa por dentro que não podia ficar parado, teve um dia que cheguei em casa
às 6:00 da manhã, depois de trabalhar a noite toda e falei pra minha esposa: Vamos sair,
vamos para algum lugar”. Logo que entrou para a polícia, trabalhou um tempo na rua e
depois ficou interno porque queria estudar e ser cabo; mas sempre preferiu estar na rua:
“Você vê pessoas muito diferentes, uns ficam com medo de você, outros ficam
83
agradecidos, outros tratam como se te conhecessem, outros não querem você por perto.
Eu gosto disso, de estar no meio dessas pessoas diferentes”.
Disse que sempre foi muito agitado; não parava nunca, não ficava parado nem
para conversar. O pessoal na corporação reclamava e dizia que ele não tinha conversa
com ninguém. Rogério me contava de uma inquietação que o levava a fazer coisas o
tempo todo. Falava de uma impossibilidade de parar, o que quer que isso significasse
para ele. Ao mesmo tempo, apontava para a dificuldade de estar com alguém, se
relacionar.
Uma vez levou dois tiros em uma operação: “Fui para o hospital, levei um
montão de pontos, mas dois dias depois estava trabalhando com a mão cheia de pontos.
Nunca fiquei tanto tempo parado. Isso é o pior de tudo, ficar parado. A cabeça vazia é a
oficina do diabo, eu fico só pensando besteira”. Embora não ficasse claro o que seriam
esses pensamentos, existia algo que ele tinha que evitar: idéias, sentimentos, fantasias.
Independentemente do que fosse, havia um mal estar não formulado, que provocava uma
necessidade de ação constante.
Trabalhava desde os treze anos: “Eu queria ter o meu dinheiro, não queria ter que
pedir dinheiro para o meu pai para comprar uma roupa que eu quisesse”. Trabalhou
como ajudante de pedreiro, vendedor, atendente em lanchonete, fez exército e depois
resolveu entrar para a polícia. Conta que estudou muito para o concurso, sem o apoio da
família: “Minha mãe falou: ‘Você acha que vai entrar? Você não tem chance!’ Por que
não? Ninguém é mais bonito que eu para entrar e eu não. Tinha mais de mil candidatos e
trezentas vagas. Eu passei; meu nome tava lá entre os primeiros quarenta. Não que eu
fosse esfregar na cara, mas deu vontade que todo mundo visse que eu tinha passado”.
Pouco falou sobre a família. Tem uma irmã de 16 anos e depois que casou
afastou-se da família porque a mãe, a sogra e a esposa brigaram: ”Elas são (sic) brigadas
84
por picuinha, fofoquinha”. Fica muito reticente ao falar de seus pais, mencionou a briga
de sua mãe com sua esposa, mas não como uma questão importante para ele naquele
momento. Penso que Rogério não queria falar dessa briga porque havia outro sofrimento
mais presente, ainda que não explicitado: não se sentia compreendido e amparado em
sua dor, pela sua família. Ao mesmo tempo, a briga o colocava em situação de escolha:
ou tinha a esposa ao seu lado, ou sua mãe e sua irmã (não mencionou o pai). Ele não
tinha como prescindir de nenhum dos lados e ressentia-se de não ser atendido em sua
necessidade. Disse que os pais foram só duas vezes ao hospital enquanto estava
internado e depois que voltou para casa não foram nenhuma vez: “Minha mãe falou que
fui eu que escolhi assim, então eu não vou atrás, não vou pedir, eles sabem como eu tô,
se não vêm eu não consigo ficar pedindo”.
Ficou muito magoado com uma conversa que ouviu enquanto estava internado:
“Eu tava em coma, mas você escuta tudo. Eu não conseguia me mexer, nem abrir o olho,
mas tava escutando tudo. Eu sabia que minha mãe tava lá do lado da cama e ela falou
pra minha esposa: ‘Agora que ele tá aleijado, você vai continuar querendo ficar com
ele?’. Pô, isso magoa, eu não esqueço, nunca falei pra ninguém que eu ouvi isso, mas
não tiro da minha cabeça”.
Contou que estava muito mal porque não conseguia dormir, passava as noites
quase em claro e de dia também não tinha sono. Em alguns dias também não conseguia
comer. A sua esposa trabalhava e o filho ficava na casa da avó; então ele passava o dia
sozinho. Disse que quando olhava a perna sentia muita raiva da vida, do destino: “Não
sei por que foi comigo, não consigo entender”. Apesar de sentir que tudo estava muito
difícil para ele, achava que tinha que “se segurar” e se controlar porque tinha medo de
descontar a raiva na esposa e magoá-la. Ela lhe dissera que o pior era vê-lo revoltado e, a
partir disso ele passou a tentar não demonstrar como se sentia: “Eu me seguro, aí quando
85
não agüento mais, me tranco no banheiro e choro”. Disse que se não fosse assim seria
muito pior para ele porque estava brigando muito com a esposa e “ela não merecia o que
tava fazendo com ela, além disso, ninguém agüenta um cara sem perna e chato,
revoltado, igual eu tô, tenho que agüentar sozinho”.
Rogério usou o espaço das sessões como breves momentos onde pôde dizer
aquilo que realmente sentia. Mostrou a angústia, o vazio, a falta de sentido que havia
tomado conta de sua vida - a vergonha e o sentimento de impotência diante de seu corpo
amputado - ao mesmo tempo em que disse como tentava se proteger dessa dor: sendo
aquilo que entendia ser o esperado dele, ou seja, superar a perda, ficar bem com a
prótese, não se revoltar, não reclamar. Tentando viver a perda da perna de uma forma
diferente daquela que ele estava realmente vivendo, Rogério buscava não perder o amor
de sua esposa e de seu filho e não destruí-los com sua raiva e revolta pelo que havia lhe
acontecido.
Em nossos encontros, ele pôde comunicar o que estava vivendo internamente,
talvez pela primeira vez desde o acidente, como ele mesmo afirmou ao dizer sobre a
conversa que ouviu entre sua mãe e sua esposa quando estava em coma e que o marcou
profundamente. Só não lhe foi possível usar e manter esse espaço.
Discussão
Esses dois encontros obviamente não possibilitam que conheçamos Rogério
profundamente, nem que tenhamos acesso preciso à maneira como seu deu o seu
desenvolvimento pessoal - o que não permite um diagnóstico em termos de momento do
amadurecimento. Porém, ele comunicou aspectos significativos de sua vivência, que nos
permitem refletir sobre a intensidade do impacto causado pela perda da perna.
86
Um aspecto que chama a atenção é a impossibilidade de “parar” a que
Rogério se refere como uma sensação anterior ao acidente. Podemos pensar que este
“parar” não se referia somente à dimensão física, a ter que estar em constante
movimento; embora, se considerarmos seus três empregos essa não seria uma dimensão
pouco importante. Mais além desse tipo de ação, ele também aponta para a dificuldade
em estar, seja estar sozinho, relaxar, dormir; ou mesmo estar com alguém, no sentido de
se relacionar. Ele enfatiza esse aspecto como forma de dimensionar o horror a que se
sente submetido, na medida em que se vê mergulhado naquilo que consistia como um
fator de extrema ansiedade e que era intencionalmente evitado.
Safra (2005) aponta para uma questão que considera importante - do ponto de
vista clínico, em se tratando de pessoas com dificuldades na constituição do si mesmo -
que é observar que o indivíduo procura ancorar a totalidade do self em um único
aspecto, ficando dele dependente: “A ancoragem pode-se dar em qualquer aspecto de si.
O indivíduo vive angústias de dispersão e de aniquilação de si mesmo, quando não
consegue se ancorar naquele aspecto que é o elemento que define seu ser” (Safra, 2005,
p.72).
É importante lembrar da importância dos estados tranqüilos desde os primórdios
do desenvolvimento, na integração psique soma e ao longo de toda a vida. Winnicott
postula que a integração é alcançada a partir de um bom cuidado infantil e também
através de impulsos e experiências instintivas:
...na saúde há quantidades suficientes destas duas coisas e
sua combinação significa estabilidade. Quando não há o
bastante de nenhuma das duas, a integração jamais se
estabelece por inteiro ou se estabelece de uma forma
estereotipada, hiperenfatizada e fortemente defendida,
impedindo que ocorra o relaxamento, ou a não-integração
repousante (Winnicott, 1988, p. 140).
87
Para Rogério parecia não haver repouso na situação de relaxamento. Pelo
contrário, essa possibilidade o deixava à mercê de pensamentos cujos conteúdos, embora
não explicitados, apresentavam caráter amedrontador: “Nunca fiquei tanto tempo
parado. Isso é o pior de tudo, ficar parado. A cabeça vazia é a oficina do diabo, eu fico
só pensando besteira”. Esse estado, então, era bastante ameaçador para ele e isso nos
leva a outro ponto relevante: a depressão que se manifestou após a perda da perna.
Estar amputado trazia sentimentos de profunda desvalorização, tristeza e
esvaziamento do sentido da vida para Rogério. Sentia vergonha da perna amputada,
afirmava que a vida não tinha mais sentido, ao mesmo tempo em que sentia muita raiva
que isso tivesse lhe acontecido. Estar amputado lhe tirava a condição de dignidade
humana que supostamente tinha antes do acidente, portanto não aceitava o que lhe
aconteceu como algo próprio de sua vida, de sua história. O sentimento de impotência
aparecia de forma intensa e também o medo de destruir a pessoa que estava cuidando
dele e de quem se sentia dependente: sua esposa. Uma hipótese a ser considerada seria
estarmos diante de um quadro de depressão patológica, desencadeada por uma perda
concreta, diante da qual não se encontrou possibilidade de reparação.
Diferentemente de Luís, Rogério se aproxima da vivência da ambivalência.
Assim é com a esposa, de quem gosta e com quem quer estar, mas também com quem
briga e a quem agride manifestando a raiva de ter perdido a perna. Porém, aproximar-se
dessa ambivalência gera muita culpa e muito medo da retaliação, que, no caso da esposa,
seria deixá-lo. Para Winnicott, nas diversas formas de depressão “o paciente se encontra
em dificuldades com as idéias e impulsos destrutivos que acompanham a experiência dos
relacionamentos objetais” (1989vl [1961], p. 54).
Assim, apesar de se aproximar da integração dos impulsos que seria própria do
momento do concernimento, o medo da própria agressividade como potencial destrutivo
88
inibe a instintualidade, o que se manifesta sob a forma de depressão patológica, como
vivida por Rogério.
É possível pensar que antes da amputação também não houvesse a integração
instintual necessária para a continuidade do desenvolvimento e o estabelecimento de
relações interpessoais amadurecidas. Rogério aponta para uma fuga da depressão em
termos de defesa maníaca; nesse sentido, a perda da perna redimensiona a estruturação
defensiva, que passa a se configurar como depressão, porém mantendo a cisão que
dificulta a integração da experiência e a continuidade de amadurecimento.
5.3 Robson
Robson veio para a primeira entrevista logo após a alta hospitalar. Durante a
internação, a equipe de enfermagem havia solicitado acompanhamento psicológico
porque não conseguiam se comunicar com ele, estava sempre muito calado e só falava o
mínimo necessário. A psicóloga que o acompanhou durante a internação relatou que o
contato com Robson era muito difícil, ele parecia muito inibido e dizia que estava muito
confuso e que necessitava de ajuda. Quando o conheci estava iniciando a reabilitação.
Na entrevista pouco falou a respeito de sua história ou de sua família, sendo que
priorizou o relato sobre o acidente. Tinha muita dificuldade em manter uma linha de
raciocínio. Durante o tempo que conversamos, procurei ajudá-lo a organizar os próprios
pensamentos, uma vez que se via mergulhado em idéias desordenadas que se esforçava
por compreender e comunicar. Robson pediu ajuda e disse que retornaria para uma nova
sessão. Não retornou, embora tivesse continuado a reabilitação. Tentei agendar outras
consultas, porém não compareceu.
89
Robson, 25 anos, teve amputação da perna esquerda em decorrência de
atropelamento por um trem. Os pais são separados e ele morava com a mãe, quatro
irmãos mais velhos e cinco sobrinhos.
Em nenhum momento, Robson conseguiu estabelecer contato visual, falava de
maneira confusa, entrecortada e muito lentamente, parecendo fazer um grande esforço
para conseguir apreender seus pensamentos e transformá-los em palavras.
Contou que no dia do acidente estava com a “mente confusa”, pensava que o
trabalho não estava bom para ele: “Não tava bom e eu tinha que resolver... tava
pensando em outra coisa”. Estava andando pela rua e em uma estação de trem tentou
pular a cerca, mas um guarda o impediu; então continuou andando por várias estações
até que em uma delas foi atravessar a linha do trem e foi atropelado. Teve a perna
amputada na hora. Esse relato, em termos de seqüência temporal de fatos, foi organizado
à medida que ele ia falando e eu lhe perguntava algumas coisas, com o intuito inicial de
compreender o que lhe havia acontecido.
O trabalho a que se referia era na limpeza de um edifício; já havia trabalhado
como auxiliar de pedreiro e se dava melhor nessa função, não gostava de trabalhar no
edifício. Havia outra coisa que o perturbava que era o barulho das crianças (os
sobrinhos) em sua casa: “Fico muito nervoso porque eles começam a brincar, aí brigam
e fazem barulho. Fico perturbado, aí saio de casa pra não fazer uma besteira, fico com
medo de machucar minha família”.
Fumava maconha desde os dezessete anos: “Desde que comecei a fumar, a minha
mente fica fraca... às vezes fico confuso”. Tem um irmão que ficou preso quatro anos
por tráfico, mas não andava muito com o irmão porque achava muito barra pesada para
ele. Quando sentia que não estava bem, que estava fumando demais ou arrumando briga
com os amigos, procurava um emprego como pedreiro, trabalhava um tempo e depois
90
voltava a ficar só fumando: “Os meus amigos estão todos presos, a maioria por assalto a
mão armada. Se eu não tivesse perdido a perna estaria preso também”.
“Confusão” e “nervosismo” eram as palavras que mais utilizava para se
descrever, para tentar dizer daquilo que sentia e que não tinha outro nome, não tinha
forma, era como alguma coisa que lhe fosse própria, mas não lhe pertencesse; como se
viesse de fora e tomasse conta dele.
Havia parado de fumar e se sentia melhor: “Antes eu via maldade na família, eles
davam conselho pra mudar de vida e eu via maldade no conselho. Você olha e pensa que
eles estão contra você, mas eles não estão”.
Sobre ter perdido a perna não havia muito a dizer. Contou que tinha uma
tatuagem na perna amputada, era o desenho do rosto de uma mulher. Perguntei por que
escolhera essa figura, se era uma mulher que tinha algum significado e me disse que era
só o rosto de uma mulher, uma desconhecida. Contou que não gostava da tatuagem e que
vivia tentando arrancar: “já tinha tentado de todo jeito, já joguei leite quente para
queimar, mas nada deu certo”. Não que com isso quisesse me dizer que perder a perna
era uma forma de se livrar da tatuagem, penso que estava mostrando a desconexão
existente entre “ele” e “a perna”. Não era só a sua fala que estava desorganizada e
desconexa. Robson estava todo cindido e sentia que não conseguia fazer parte de lugar
nenhum, nem de sua família, nem de si mesmo: “Parece que todo mundo está seguindo
um caminho e você é o único que está em outro”.
Discussão
Certamente não é possível fazer afirmações categóricas a respeito do
desenvolvimento emocional de Robson, considerando que foi realizada uma única
entrevista; porém, por meio de alguns pontos levantados nesse contato, podemos refletir
91
e considerar hipóteses acerca de falhas significativas nas tarefas iniciais do
amadurecimento: integração, personalização e contato com a realidade.
Se pensarmos em termos de tempo e espaço, Robson tem muita dificuldade em
se perceber como alguém que tem uma história, com sua vida tendo uma continuidade
ao longo do tempo, a partir de suas próprias vivências. Ele oscila entre relacionar-se com
a realidade como objeto subjetivo e perceber indícios de que existe uma realidade
externa a ele, como quando falou que sua família lhe dava conselhos, mas ele “via
maldade no conselho”. Naquele momento Robson tentava fazer uma diferenciação entre
aquilo que era próprio seu; sua realidade subjetiva - “Você olha e pensa que eles estão
contra você” - e aquilo que era externo a ele - “eles não estão contra”. A importância
dessa reflexão não reside em descobrir se alguém estava contra ele ou não, mas no
esforço para separar realidade e fantasia e se relacionar com o mundo objetivamente
percebido; o que nos dá indícios de que este aspecto não estaria firmemente constituído
em Robson, sendo que é possível que a sua relação com o mundo seja fortemente vivida
de forma subjetivamente concebida.
Quando contou do acidente sofrido, Robson apresentou fragmentos
desordenados; assim, as peças que compunham o quebra-cabeça poderiam ser descritas
como: 1. um emprego no qual não estava se sentindo bem; 2. pensamentos a respeito de
como resolver o problema do emprego; 3. o barulho das crianças da casa onde mora; 4. a
percepção de sentimentos de raiva / “nervosismo”; 5. a idéia de que poderia fazer mal a
alguém em sua casa. Esses elementos apareciam em seu relato ora como uma seqüência
de fatos, ora como pensamentos/idéias isoladas. A minha intervenção, perguntando-lhe
coisas concretas - de onde vinha quando andava pela linha do trem, para onde estava
indo, qual era o seu emprego, em que horário trabalhava, há quanto tempo trabalhava
nesse emprego, quem eram as crianças que moravam em sua casa, etc - serviu, naquele
92
momento, como um auxílio externo para descrever o acontecimento “ser atropelado por
um trem e perder a perna”, como um fragmento de sua história inscrita em uma
dimensão de tempo-espaço.
Num estágio primeiro, antes de a criança começar a operar
como uma unidade, as relações objetais têm a natureza de
uma união de parte com parte. Em qualquer estágio de que
se trate, constata-se um grau extremo de variabilidade no
que toca à existência de um self total capaz de viver
experiências e reter a memória destas. (Winnicott, 1958j,
p.15)
A amputação da perna parece uma questão ainda não registrada, dimensionada,
vivida por Robson. O que ele traz como angústia ainda não tem forma; daí a constante
referência ao sentimento de confusão diante da vida e do outro. Para que houvesse a
experiência da perda de uma parte do corpo, seria necessário que houvesse a percepção
de um corpo próprio, personalizado. No caso de Robson, essa personalização aparece de
forma bastante precária.
Winnicott (1969g) afirma que a psique e o soma não se iniciam como uma
unidade. Eles se tornam uma unidade à medida que se dá o desenvolvimento, sustentado
por condições ambientais que facilitem a realização da tendência ao amadurecimento.
Exemplificando, quando uma mãe, através da identificação
com seu bebê (isto é, por saber o que o bebê está
sentindo), é capaz de sustentá-lo de maneira natural, o
bebê não tem de saber que é constituído de uma coleção de
partes separadas. O bebê é uma barriga unida a um dorso,
tem membros soltos e, particularmente, uma cabeça solta:
todas essas partes são reunidas pela mãe que segura a
criança e, em suas mãos, elas se tornam uma só
(Winnicott, 1969g, p.432)
Quando Robson contou da tatuagem que tinha em sua perna, de seu incômodo
com a figura desenhada que não ficara como ele gostaria e de suas tentativas de apagá-
93
la, a perna aparece como fundo. O que surge como destaque é um desenho que precisava
ser apagado. Robson não vive um incômodo em seu corpo, é como se estivesse olhando
um quadro pendurado à sua frente, cuja imagem não consegue eliminar. Nesse sentido é
como se a perna estivesse descolada, como se não fizesse parte de si mesmo. A ação
realizada para apagar o desenho, qualquer que seja ela, não é percebida como uma ação
que incide também sobre a sua perna, seu corpo, ele mesmo.
Da mesma forma, o acidente sofrido nos trilhos do trem poderia ter a mesma
conotação. Se olharmos para Robson como uma pessoa em quem prevalece uma cisão
psicossomática, não é possível saber ao certo se ao andar nos trilhos do trem, ele tinha a
percepção de estar exposto a um acidente que colocava em risco a sua vida. Ou, se a
exemplo da tatuagem, o corpo (e não só a perna) não era percebido como parte de si
mesmo, exposto ao risco de ser ferido ou morto. O que parece é que Robson não
conseguiu se estabelecer como uma unidade, a partir da qual é possível estabelecer a
existência de um exterior e um interior.
Gradualmente, os aspectos psíquico e somático do
indivíduo em crescimento tornam-se envolvidos num
processo de mútuo inter-relacionamento. Essa interação da
psique com o soma constitui uma fase precoce do
desenvolvimento individual. Num estágio posterior o
corpo vivo, com seus limites e com um interior e um
exterior, é sentido pelo indivíduo como formando o cerne
do eu imaginário. (Winnicott, 1954a, p.334)
Assim, a perda da perna poderia ser considerada uma conseqüência da
precariedade na constituição do si mesmo de Robson; possivelmente a partir de uma
falha em tornar o corpo, soma. Considerando, como aponta Dias (2003), que soma é o
corpo vivo, personalizado à medida que vai sendo elaborado imaginativamente pela
psique.
94
5.4 Edson
Edson, 43 anos, sofreu um acidente de moto, ficou onze dias internado e teve
uma perna amputada. Trabalhava como policial; casado desde os vinte anos, tem dois
filhos, um rapaz de vinte e dois anos e uma menina de oito.
Edson foi encaminhado para a entrevista psicológica sem nenhuma queixa
específica, nem sua nem da equipe que o acompanhava. Aparentemente estava tudo
bem, ele iniciara as sessões de fisioterapia, era “colaborativo” e não demonstrava
nenhuma dificuldade que chamasse a atenção dos profissionais. Portanto, o seu
encaminhamento era “de rotina”. Nesse sentido, foi diferente de Luis, de Marcelo e de
Robson, que, além da “rotina”, levantaram inquietações de diferentes tipos na equipe de
reabilitação. Luis pela postura agressiva e desafiadora; Marcelo, que apesar de seus
esforços, transparecia sua dificuldade em se ver sem a perna; e Robson, visivelmente
desorganizado e confuso. Edson mantinha-se dentro do esperado, demonstrava aquilo
que poderia se considerar adequado: comparecia regularmente às sessões de fisioterapia,
realizava os exercícios que lhe eram propostos e mostrava-se otimista com relação ao
futuro, afirmando que teria uma vida satisfatória com o uso da prótese.
E foi a partir dessa idéia de adequação que ele se apresentou. Acompanhei Edson
durante um mês, em sessões semanais consecutivas, totalizando quatro sessões. Após
esse período, deixou de ir ao hospital, enquanto aguardava a confecção de sua prótese.
Três meses depois, encontrei-o no hospital, já realizando o treinamento com prótese, e o
chamei para uma sessão. Aceitou prontamente e disse que ia mesmo me procurar.
Quando entrou na sala, perguntou se eu queria falar com ele. Falei que queria conversar
com ele, saber como estava, como havia sido o tempo em que ficou em casa esperando a
prótese e como estava agora, treinando o seu uso. Edson pareceu surpreso e respondeu
que ficava contente que alguém quisesse saber como ele estava. Naquele momento não
95
me pareceu que sua surpresa estivesse relacionada ao fato de alguém se interessar por
ele, como se isso fosse uma novidade em sua vida. O que me ocorreu foi que, em minha
fala, havia um registro de que várias coisas haviam acontecido em sua vida: o tempo sem
tratamento, a espera pela prótese, a experiência de voltar a andar, o uso da prótese como
uma experiência real, após algum tempo somente imaginando como seria. Além disso,
com a minha pergunta eu chamava a sua atenção para a possibilidade de sentir coisas e
viver experiências de forma pessoal e própria, na medida em que lhe perguntava como
ele estava diante do que estava vivendo. É possível que sua surpresa estivesse
relacionada a essa possibilidade de personalização da experiência.
Compareceu mais uma vez e, logo em seguida, teve alta da reabilitação.
Durante esses encontros pouco pude conhecer de Edson. A maior parte do tempo
percebia que ele dizia e procurava fazer aquilo que considerava que deveria ser feito.
Sempre afirmava que estava tudo bem com ele e que colaboraria com tudo o que fosse
necessário, inclusive comigo. Colaborar, nesse caso, significava fazer e dizer aquilo que
fosse correto, adequado, aprovado. Era como se para ele aquele não fosse um espaço
onde pudesse de fato ser ele mesmo. Edson evitava falar de assuntos pessoais. Contou
um pouco de suas origens, sua família, mas somente o necessário para responder a
alguma pergunta ou contextualizar alguma história que estivesse contando. Nasceu no
interior de São Paulo, onde morou até os doze anos, trabalhando na roça. Depois a
família saiu de São Paulo, para morar no sul, em uma localidade que não tinha nenhum
recurso em termos de assistência médica; sua mãe faleceu em decorrência de
complicações de parto dois anos após mudarem-se para esse local. Dois meses depois,
seu pai casou-se novamente, sendo que o convívio com a madrasta era muito ruim. O
seu relato era distanciado, como quem conta uma história que não lhe pertence, que não
viveu.
96
As sessões eram preenchidas com histórias que comprovavam o seu bom
desempenho como policial. Contou-me, com riqueza de detalhes, várias perseguições
que havia feito, nas quais conseguia prender os bandidos, apesar de todas as dificuldades
do percurso. Em alguns momentos eu entendia que Edson precisava recuperar a sua
potência, supostamente perdida juntamente com a perna; em outros pensava que ele
necessitava reviver a sua história como policial como forma de resgatar, internamente,
um lugar de valorização e importância. Freqüentemente me sentia como se estivesse
diante de um personagem, por ele criado, para me impressionar. Ao mesmo tempo, à
medida que contava diversas histórias de sua atuação na polícia, apareciam pequenos
detalhes de condutas ilegais, de atitudes que poderiam ser criticadas. Edson se
justificava, ainda que eu não o criticasse ou questionasse. Um dia contou que havia sido
baleado quando estava fazendo bico como segurança. Apareceu um rapaz que queria
roubar a sua arma: “aí a gente lutou e acabei levando sete tiros (mostra as marcas). Tinha
uma bala ainda na minha perna que eles acharam quando amputei. Ela ficou lá, como
não estava atrapalhando, ninguém mexeu nela”. Em outra sessão falava que queria se
aposentar e tinha certeza que daria certo porque conhecia uma excelente advogada que já
ganhara uma causa para ele na época em que respondia a processo na corporação.
Perguntei sobre esse processo e Edson ficou sem jeito, parecia que não tinha intenção de
falar sobre esse assunto. Explicou que o processo era porque quando fora baleado, estava
usando a arma da corporação no bico que fazia como segurança, o que era proibido.
Disse que na polícia era assim mesmo, todos acabavam fazendo isso e um ajudava o
outro.
Uma das histórias foi sobre uma perseguição que fizera em um dia de folga: ele
estava à paisana, mas viu uma moça pedindo ajuda porque haviam roubado sua bolsa.
Quando conseguiu pegar o assaltante e levar até o posto policial a moça não quis ir à
97
delegacia prestar queixa e reconhecer o assaltante. Ele ficou preocupado e pediu para o
colega: “Antes de liberar o cara aplica um corretivo nele, dá uns tapas na orelha, para
depois não abusar quando eu tiver trabalhando”. Ao mesmo tempo, sempre que contava
uma história de perseguição e prisão que havia feito, afirmava que era contra bater em
bandido: “Aí depois o cara sangra até morrer e ninguém é o responsável, eu não gosto
disso, eu saio de perto”.
Para Edson, ele nascera para ser policial e se dera muito bem nesse trabalho por
ser muito atento: “Eu tô aqui conversando com você, mas estou de olho em tudo o que
acontece em volta, eu tô filmando tudo. Uma vez eu vi um colega na moto e passei por
ele e ele nem me viu. Aí que é perigoso, e se eu fosse um bandido? Eu sou muito ligado
no que está acontecendo”. A esposa fala que ele é chato, mas ele não concorda: “É que
eu gosto das coisas certinhas. Se a luz está acesa e não tem ninguém no lugar eu falo
para apagar. É que eu sou muito ligado nessas coisas e meio desconfiado também”. Acha
bom ser desconfiado porque isso o protege. Perguntei se não sente falta de descansar,
poder relaxar e confiar. Ele respondeu: “Isso eu queria, um lugar para descansar e não
me preocupar, mas eu sempre fui muito desconfiado. No começo, quando comecei a
trabalhar como policial eu tinha medo. No primeiro dia que eu vesti a farda e subi na
moto, eu tremia, porque eu pensei: quanta gente morrendo na rua, tendo ataque
epiléptico e as pessoas cobram da gente, elas esperam que a gente vá lá e resolva. Mas
depois tomei gosto, eu gostava do trabalho, de andar armado, me sentia mais seguro,
tanto que sinto falta de trabalhar na rua”.
Em seguida à menção da amputação como ocasionando uma perda da qual ele se
ressentia e à fala a respeito da falta que sentia de alguma coisa, Edson acrescentou que
ficar em casa era melhor, porque se sentia mais seguro: “Em casa não tem perigo de
acontecer nada”. Indiretamente, Edson apontava para sua angústia diante daquilo que
98
supunha que se esperava dele e de seus esforços para corresponder, ao mesmo tempo em
que explicitava uma necessidade de se proteger que o colocava em estado de alerta
constante.
Contou que tivera vários acidentes, já fora baleado, caíra duas vezes da moto e
uma vez de uma árvore. Em um dos acidentes caiu da moto com o filho: “Eu só tive uns
arranhões, mas ele ficou com um furo na perna, só melhorou porque paguei médico
particular. No hospital só tinham costurado a perna dele e já estava ficando com
infecção. Aí fui procurar médico e me pediram cinco mil para cuidar dele, depois acabei
encontrando um médico que me fez por dois mil. Hoje você olha a perna dele e quase
não tem nada”.
Sobre o acidente que ocasionou a amputação, contou que estava indo para o
trabalho de moto e um ônibus de turismo fez uma conversão proibida e ficou atravessado
na avenida onde Edson trafegava. Ele tentou brecar, mas não conseguiu, a moto
derrapou e foi jogado debaixo do ônibus. Quando acordou no hospital, já estava
amputado: “Eu estou bem, é só não pensar no que aconteceu que eu fico bem. Eu não
penso, porque se eu pensar eu fico triste. Por isso estou bem, porque não penso, não vai
adiantar”. A cada novo encontro, Edson reafirmava que estava “tudo bem”, “cada vez
melhor”, “cada dia melhor”, “melhorando bastante”; colocava em prática a sua teoria de
que se afirmasse que estava tudo bem e não pensasse em nada, tudo ficaria realmente
bem. De qualquer forma, estava dito que havia algo sobre o qual não se podia pensar,
não se podia entrar em contato; havia algo que tinha que ficar fora de sua história, de sua
vivência. No dia em que contou sobre o acidente também falou a respeito de uma moça,
atropelada na mesma época que ele, que também perdeu a perna na hora, mas fora
levada para o hospital das Clínicas para fazer reimplante da perna: “Eu vi a notícia na
televisão, não sei como ficou no final das contas, acho que deve ter dado certo, aí eu
99
penso que se tivesse vindo para cá talvez tivesse dado certo comigo também, mas agora
já foi; eles fizeram o que deu pra fazer. Os médicos falaram que a minha recuperação foi
muito rápida, eles se surpreenderam”.
Assim, Edson ia comunicando, muito sutilmente, as coisas que sentia, mas não
conseguia expressar como próprias. Quando falou da moça podemos pensar que
expressava a dor por não poder voltar no tempo e recuperar a perna perdida e a
frustração por não ter sido ele a ter a perna reimplantada. Também poderia haver
ambigüidade com relação aos médicos - cuidaram dele, mas não lhe salvaram a perna.
Não é possível saber ao certo sobre a angústia que estava presente nele, porque quando
aparecia, ainda que de forma velada, era logo circunscrita em uma fala racional e
impessoal como: “eles (os médicos) fizeram o que deu pra fazer”, que colocava em
segundo plano a maneira pessoal de Edson de sentir e viver a sua perda.
Havia um único incômodo que aparecia com relação à amputação e, para Edson,
era decorrente da forma como os policiais “da ativa” olham para as pessoas que sofreram
acidentes com seqüelas como a sua. A maior preocupação que ele mencionava dizia
respeito à possibilidade de se aposentar, pois não queria ser readaptado fazendo trabalho
de escritório dentro da corporação: “Estou ótimo, estou bem mesmo, só não quero
trabalhar, quero aposentar, porque o pessoal tem preconceito com os readaptados, o
pessoal não olha do mesmo jeito, olha, assim, com desprezo e isso eu não quero”. Para
Edson, “o pessoal” acha que os readaptados não trabalham direito e também têm pena:
“Agora quando passo no quartel, vem um trazer cafezinho, eu falo: ‘Não quero café não,
tomei café em casa, comi dois pães, tô satisfeito’. Ou então vem com aguinha. Se eu não
tivesse assim não tinha nada disso. Então é pena. Isso eu não quero”.
Porém essa também era uma questão externa, ele não se incluía nesse “pessoal”
que olhava de maneira tão negativa para as limitações, imperfeições e dificuldades que
100
se tornavam aparentes em uma situação de seqüelas físicas que impediam o exercício da
atividade de policial nos moldes mais tradicionais e socialmente estabelecidos: “Eu
mesmo nunca tive preconceito com os readaptados, por isso eu não senti tanto quando
perdi a perna, porque pra mim, com perna ou sem perna é tudo a mesma coisa, é ser
humano igual”.
Edson se relacionou comigo, como não podia deixar de ser, a partir de seu
repertório relacional: ele se defende do outro, se mostrando como supõe que o outro quer
vê-lo. Diante de mim ele tinha que se mostrar correto e adequado, para isso deveria ser e
me dizer o que imaginava que eu julgaria correto e adequado. Eu era a psicóloga do
grupo, com quem ele tinha que conversar, porque assim era a rotina que estava
estabelecida. E ele agia como um menino bem-comportado que necessita mostrar que
assim é, não permitindo que aparecesse nada seu que pudesse ser questionado ou
criticado. Como ele mesmo me avisou, estar na sala não significava estar comigo. Ao
mesmo tempo em que conversava comigo, estava atento a tudo o que ocorria ao seu
redor, inclusive o efeito que aquilo que ia me contando tinha sobre mim. As histórias de
mocinho e bandido ocuparam quase que a totalidade do tempo em que estava comigo,
como um esforço para desviar a nossa atenção, a minha e a dele, daquilo que estava se
passando internamente com ele. Em sua forma de se colocar não havia dor, angústia ou
sofrimento pela perda da perna. Nada mudara; “somente” queria se aposentar, abrir seu
próprio negócio e continuar sua vida. Para ele, pensar dessa forma era a garantia de não
sofrer nem entristecer.
101
Discussão
Edson, diferentemente dos outros pacientes, pouco falou a respeito de sua vida
antes do acidente, seja em termos de sua infância e história de vida, como Luis; ou no
que dizia respeito ao seu jeito de ser e de lidar com as dificuldades, como Marcelo; ou
ainda sobre seus sentimentos diante da vida e seus conflitos, como Robson. Ele se dizia
desconfiado e sempre em estado de alerta e foi nesses termos que se apresentou e se
relacionou comigo.
Assim, talvez a compreensão mais fidedigna que possamos ter a respeito de
Edson é a de sua ausência. Havia entre mim e ele uma imagem ancorada no aspecto
profissional de sua existência: o policial. Como num filme, ele contou os seus feitos,
mas não falou de si mesmo; pouco deixou transparecer.
Havia, entretanto alguns sinais de sofrimento: a impossibilidade de continuar
exercendo a sua função, a recusa em trabalhar readaptado, a própria perda da perna.
Porém a cada menção de alguma dessas dificuldades, que geram angústia, segue-se
alguma racionalização, numa tentativa de controlar e eliminar o sofrimento da vivência.
Para Winnicott (1988), o funcionamento intelectual é uma função específica da
psique: “Existem o soma e a psique. Existe também um inter-relacionamento de
complexidade crescente entre um e outra, e uma organização deste relacionamento
proveniente daquilo que chamamos mente” (p.29). Na saúde, a psique vai ancorando-se
ao soma, existindo uma inter-relação de complexidade crescente entre eles, em direção à
integração. À medida que a adaptação do ambiente não é total, como no início do
desenvolvimento, começam a operar o funcionamento mental e os processos intelectuais
como uma conseqüência do amadurecimento psicossomático.
No início há o soma, e então a psique, que na saúde vai
gradualmente ancorando-se ao soma. Cedo ou tarde
102
aparece um terceiro fenômeno, chamado intelecto ou
mente (...) de início o ambiente deve proporcionar 100%
de adaptação à necessidade, pois de outra forma o estado
do ser é interrompido pela reação à intrusão. Em breve,
porém a desadaptação total já não é necessária, e uma
desadaptação gradual se revela muito útil (além de ser
inevitável). O intelecto começa a explicar, admitir e
antecipar a desadaptação (até certo ponto), transformando
assim a desadaptação novamente em adaptação total. As
experiências são catalogadas, classificadas e relacionadas
a um fator tempo. Muito antes de o pensamento se
transformar em uma característica, possivelmente
necessitando de palavras para se realizar, o intelecto já tem
uma tarefa a cumprir. (Winnicott, 1988, p.161)
Dessa forma, o uso das funções mentais inicia-se e desenvolve-se ao longo do
amadurecimento como uma função da psique que auxilia no contato com a realidade e
com a elaboração das vivências. No caso de Edson, porém, parece que a
intelectualização das vivências ocorre de tal forma que mantém os acontecimentos
vividos longe do âmbito da experiência pessoal. Como Winnicott aponta (1988), a
mente, em alguns casos, opera como forma de defesa do self, dominando o psico-soma
em vez de ser uma função específica do mesmo. O resultado desse arranjo pode ser visto
na forma como Edson lida com a amputação. Para ele mesmo e para a maioria dos
profissionais que o acompanhavam (médico e fisioterapeutas), tudo parecia muito bem
resolvido e elaborado. Olhando mais atentamente, porém, é possível perceber o quanto
de esvaziamento existia nessa maneira de viver a perda da perna e a própria reabilitação.
Há, ainda, outro ponto importante para se refletir sobre a história de Edson, que é
a sua necessidade de adequação que transparecia no contato comigo. Em alguns
momentos aparecia como um discurso dentro do esperado. Por exemplo: quando falava
que era contra “bater em bandido”, ao mesmo tempo em que contava uma situação na
qual pedia ao colega para “dar um corretivo” em um assaltante, podemos pensar que
nesse caso se trata mais de simulação do que de submissão. Ou seja, Edson não assume
103
claramente a sua posição, qualquer que seja ela, com relação ao comportamento de
policiais quando prendem pessoas; ele eventualmente pode agir de determinada maneira
(e não diz qual é), mas sempre afirma que é contra, porque isso é o “correto”. Ainda que
consideremos que esse exemplo trata de uma questão legal (bater em bandidos não é
somente proibido moral, mas também legalmente); também devemos considerar que se
trata de um contexto psicoterapêutico, portanto sigiloso. O que nos remete para a
questão da confiança e da possibilidade de Edson se mostrar, como ele é, para alguém.
Em outros momentos, mais do que no discurso aparecia a “submissão” no sentido
de uma impossibilidade de ser ele mesmo. Como exemplo, podemos pensar na sua
aceitação em continuar os atendimentos, sendo que comparecia formalmente, mas não
parecia sentir aquele espaço como realmente significativo para ele. Nesse caso, não era
só uma questão de se esconder, falando uma coisa e fazendo outra, mas um movimento
de realizar, de fato, a expectativa que percebia em alguém.
Penso que Edson estruturou uma defesa do tipo falso self, não sendo possível
identificar em que momento do seu desenvolvimento esse movimento se iniciou. Mello
Filho (2001) aponta a necessidade das pessoas com predominância de defesa do tipo
falso self de esconder e negar a sua realidade interna, na medida em que a perda ou o
abandono, ainda que parcial, do falso self, desperta temores de perda de limites,
desintegração, aniquilação.
Assim, a vivência de irrealidade também decorre do fato desses indivíduos
experimentarem sentimentos e impulsos não condizentes com a idealização mental
estruturada e mantida à custa de uma inibição mais ou menos rígida de sua
espontaneidade e criatividade.
A mente é a principal morada do falso self, disse-nos
muitas vezes Winnicott, contrastando-o com o verdadeiro
104
self, relacionado aos processos fisiológicos básicos,
principalmente ao funcionamento do coração e à
respiração. Assim, a intelectualização é uma das
expressões mais freqüentes de indivíduos falso self, que
pretendem, com uma hipertrofia de seus aspectos
intelectuais, encobrir tudo aquilo que é mais genuinamente
humano, instintivo, vital. (Mello Filho, J. 2001, p.151)
Winnicott postula diversos níveis de falso self, considerando desde uma atitude
social, não-patológica, no sentido da renúncia à onipotência e garantia do convívio
social, no extremo da normalidade, até o falso self que se implanta como real, em total
submissão, onde o self verdadeiro permanece oculto, o que implica a ausência do que
poderíamos chamar de gesto espontâneo. No grau extremo existe um sentimento de
vazio, de que a vida não vale a pena, que não há razão para viver; nos graus menos
extremos Winnicott (1988) aponta para uma organização secundária cindida, ou seja,
uma possível regressão diante de dificuldades encontradas num estágio posterior do
desenvolvimento, o que nos faria supor algum grau de sucesso na estruturação inicial
primitiva.
É essa diferenciação que não é possível realizar com relação a Edson; ou seja,
não podemos afirmar que a perda de uma parte do corpo ocasionou a necessidade de
estruturar uma defesa em termos de falso self; porém é possível identificar a existência
de uma cisão, na qual a perda da perna não é abarcada e integrada como experiência do
si mesmo.
5.5 Síntese dos casos clínicos
Há três pontos principais que podemos destacar para articular os casos
apresentados e ampliar a reflexão a respeito da questão principal que norteia este
trabalho, que diz respeito ao impacto de uma perda física no desenvolvimento emocional
de uma pessoa. O primeiro desses pontos refere-se à compreensão da constituição da
105
pessoa que sofreu uma perda física, ou seja, a maturidade emocional conquistada por
cada indivíduo ao longo de seu desenvolvimento, anteriormente ao momento do acidente
e da amputação. É possível perceber claramente que os quatro indivíduos, que fazem
parte deste estudo, se encontravam em diferentes condições de amadurecimento
emocional; tendo como aspecto em comum a presença de dificuldades para se
constituírem como pessoas integradas.
Naturalmente, os entraves no desenvolvimento de cada um deles são de ordens
diferentes, o que implica dificuldades também diversas. No caso de Luís e de Rogério,
por exemplo, apontamos as questões relativas ao concernimento e no de Robson
apareceram explicitamente falhas em termos de momentos mais precoces do
desenvolvimento, traduzidas no sentimento de indefinição e confusão sobre si mesmo.
Assim, é importante perceber que ter uma parte do corpo amputada não coloca todos os
indivíduos em uma condição de equivalência psíquica. Cada um deles se mostrou, se
relacionou e reagiu a uma mesma perda de condição física, de acordo com as suas
possibilidades e condições emocionais, anteriores à amputação.
Isso nos leva para o segundo ponto a destacar, que é a percepção, advinda da
análise desses casos, que a amputação pode ser vivida por cada um deles como uma
conseqüência de sua organização psíquica anterior ao acontecimento em questão e sua
reação a esta depende das condições de amadurecimento de cada pessoa. Isso é
importante porque olhando sob esse ponto de vista podemos compreender porque tanto
para Luís, quanto para Robson, a amputação não traz, de imediato, nenhuma mudança
significativa em termos de continuidade do desenvolvimento emocional.
É justamente na dinâmica desses dois indivíduos que os acidentes que levaram à
amputação aparecem mais como conseqüência do que como causa de uma perturbação
psíquica. Ou seja, são os acidentes propriamente ditos, mais particularmente o fato
106
desses indivíduos se colocarem em situações de risco para sua integridade corporal, que
podem ser considerados reflexo de uma imaturidade em termos de desenvolvimento
emocional. A amputação, portanto, entra como parte dessa dinâmica. Porém, ao mesmo
tempo em que a perda da perna não traz transformações psíquicas imediatas, esses
indivíduos passaram a vivenciar sucessivas mudanças em decorrência da perda sofrida, o
que traz novas oportunidades de retomada do desenvolvimento emocional. Isso remete
para a importância da reabilitação, como uma dessas oportunidades. Particularmente no
caso de Luís, podemos pensar que o seu vínculo comigo, seu envolvimento com a
psicoterapia - ao longo de alguns meses, comparecendo às sessões apesar de sua
dificuldade de locomoção e independentemente das sessões de fisioterapia – e o trabalho
que realizamos nesse tempo pode vir a ser um facilitador para seu amadurecimento.
No caso de Rogério e Edson, a perda da perna traz em si uma condição de
mudança em termos de dinâmica psíquica. Isso porque existia uma situação anterior, na
qual cada um deles identificava uma situação de risco, emocionalmente falando, ou vivia
uma percepção de fragilidade que era evitada por meio de uma organização defensiva
baseada, no caso de Rogério, em uma constante atividade - aquilo que ele identificava
com a fala “não parar, para não pensar”. E Edson apontava para a necessidade de uma
atenção exacerbada para se proteger dos perigos existentes no mundo externo, embora
não conseguisse nomear quais eram esses perigos. A amputação, nesse contexto, os
colocou em uma situação de confronto diante de algo que era evitado, por ser assustador.
Uma vez que não foi possível manter determinado tipo de defesa, ocorreu a polarização
para outro tipo, se entendermos, por exemplo, a depressão que Rogério vive como
patológica e defensiva. No caso de Edson, também há uma estruturação defensiva,
embora não seja possível ter claro se ela existia da mesma maneira anteriormente, mas
107
poderíamos pensar em uma exacerbação do falso self. O que acontece é que, na prática,
a perda da perna dificulta a manutenção da defesa conforme estava estruturada.
Assim parece existir um ponto em comum nesses casos: a amputação permanece
como um evento não experienciado por estes indivíduos. E este é o terceiro ponto
importante a ser considerado. Em todos os indivíduos é possível identificar uma
dificuldade na elaboração da mudança ocorrida no corpo de cada um. Luís, que coloca a
amputação como apenas mais uma evidência de que tudo dá errado em sua vida e que
não pode contar com ninguém; Edson que busca, por meio do controle racional, manter a
vivência da perda afastada de si mesmo; Robson, que pouco se apercebe do impacto e
das conseqüências em seu próprio corpo decorrentes da perda sofrida; ou ainda Rogério,
que sente seu mundo desmoronar e sua vida perder o sentido ao perder a perna.
Em se tratando dos indivíduos aqui apresentados é possível pensar em algum
grau de dissociação, no qual a pessoa não reconhece como sua a vivência de ter uma
perda no corpo, ou seja, não subjetiva a perda, não se apropria de seu corpo como
diferente do que era. No caso de Luís, Edson e Robson, poderíamos pensar no uso
predominante de defesa maníaca, na qual o sofrimento é retirado da experiência
individual, ao mesmo tempo em que ocorre a exacerbação do funcionamento mental
(racionalização). Para Winnicott, faz parte da defesa maníaca o “emprego de
praticamente todos os opostos na tentativa de assegurar-se contra a morte, o caos, o
mistério etc., idéias que pertencem ao conteúdo fantástico da posição depressiva
(Winnicott, 1958k, p.203- grifo do autor)”. A defesa maníaca se manifesta de várias
maneiras, entre elas, a negação da realidade interna, a incapacidade do indivíduo de
aceitar o significado do mundo interno, negação da vivência de depressão.
O termo ‘defesa maníaca’ pretende indicar a capacidade de
alguém de negar a ansiedade depressiva inerente ao
desenvolvimento emocional, ansiedade que pertence à
108
capacidade pessoal de sentir culpa, e também de assumir a
responsabilidade pelas experiências instintivas, inclusive
pela agressividade que acompanha tais experiências.
(Winnicott, 1958k, p.217)
No caso de Rogério, também é possível entender que existe algum grau de
dissociação, polarizada como depressão. Ele vive a perda de uma parte do corpo como
um aniquilamento de si. Não consegue apropriar-se do corpo amputado como seu, não se
reconhece. Uma hipótese a ser considerada seria estarmos diante de um quadro de
depressão patológica, desencadeada por uma perda concreta, diante da qual o indivíduo
não encontra possibilidade de reparação.
O que é importante perceber é que o acontecimento de ter perdido uma perna
não é transformado na experiência de mudança no corpo, não é transformado em
vivência - o que gera um empobrecimento ainda mais acentuado na integração psique-
soma e não favorece a continuidade do amadurecimento pessoal. Os empecilhos para a
integração e a manutenção do estado de unidade trazem prejuízos significativos ao
indivíduo em seu desenvolvimento e em suas possibilidades de relacionamento;
considerando que “a integração significa responsabilidade, ao mesmo tempo que
consciência, um conjunto de memórias, e a junção do passado, presente e futuro dentro
de um relacionamento” (Winnicott, 1988, p.140).
Como aponta Safra (2005), a unidade corporal é conquistada: “por meio da e na
presença do outro, surgindo paulatinamente um corpo psíquico: um corpo cujas funções
foram elaboradas imaginativamente. Ocorre uma integração das diferentes experiências
sensoriais: o macio, o duro, o quente, o frio e assim por diante” (Safra, 2005, p.79).
Ainda segundo o autor, quando o desenvolvimento do self ocorre satisfatoriamente as
experiências tornam-se enriquecedoras para o seu self e para a sua relação com o outro.
109
E, para Winnicott, o desenvolvimento do self ocorre satisfatoriamente quando alcança
uma totalidade, baseada no processo de maturação:
São o self e a vida do self que, sozinhos, fazem sentido da
ação ou do viver desde o ponto de vista do indivíduo que
cresceu até ali e está continuando a crescer, da
dependência e da imaturidade para a independência e a
capacidade de identificar-se com objetos amorosos
maduros, sem perda da identidade individual. (Winnicott,
1971d, p.210)
Bollas (1992) destaca dois aspectos fundamentais do verdadeiro self. Um deles
diz respeito à questão do verdadeiro self como potencial herdado e o outro à importância
da experiência como possibilidade de existência. Aqui, o que se quer frisar é o fato de
que, em se tratando de um potencial, o verdadeiro self não tem forma ou significado a
priori, não está estabelecido ao nascimento, no sentido que não é estático; ele “encontra
sua expressão nos atos espontâneos” (Bollas, 1992, p.20).
A importância da experiência na constituição do verdadeiro self decorre
justamente desse aspecto potencial apontado acima. É por meio da experiência, e
necessariamente da experiência vivida na relação com um outro, que podemos entrar em
contato com o verdadeiro self. Ou seja, é por meio da experiência que o potencial
herdado ganha contorno e pode emergir. Daí o prejuízo para o desenvolvimento
emocional dos indivíduos estudados, diante da dificuldade em realizar a elaboração
imaginativa das funções corpóreas e integrar a perda de uma parte do corpo.
Dias (2003) afirma que a primeira tarefa da psique é a elaboração imaginativa
das funções corpóreas; assim, o que é experienciado é personalizado pela elaboração
imaginativa; num crescente de complexidade ao longo do processo de amadurecimento:
“É esta operação que fornece sentido ao sentimento de si-mesmo e justifica a nossa
percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo” (Dias, 2003.p.106).
110
A psique começa como uma elaboração imaginativa das
funções somáticas, tendo como sua tarefa mais importante
a interligação das experiências passadas com as
potencialidades, a consciência do momento presente e as
expectativas para o futuro. É desta forma que o self passa a
existir (Winnicott, 1988, p.37).
Winnicott aponta para a evolução, em termos de complexidade da elaboração
imaginativa, e afirma que essa evolução pode não se dar integralmente, uma vez que ela
ocorre como manifestação da tendência do ser humano para o amadurecimento e que
essa tendência necessita de condições favoráveis para se desenvolver. Em termos
esquemáticos, o autor coloca o seguinte percurso em relação ao desenvolvimento da
elaboração imaginativa:
1. Simples elaboração da função; 2. Distinção entre:
antecipação, experiência e memória; 3. Experiência em
termos de memória da experiência; 4. Localização da
fantasia dentro ou fora do self, com intercâmbios e
constante enriquecimento entre ambos; 5. Construção de
um mundo interno, ou pessoal, com um sentido de
responsabilidade pelo que existe e ocorre lá dentro; 6.
Separação entre consciência e inconsciente. (Winnicott,
1958j, p.10)
Dessa forma, ao mesmo tempo em que a elaboração da experiência enriquece e
favorece o desenvolvimento do si mesmo, ao longo do próprio amadurecimento, vão se
criando as condições para abarcar e elaborar, em níveis mais complexos, as vivências
tanto internas, quanto as referentes às relações interpessoais. O que nos leva a pensar que
a dificuldade na elaboração e integração da perda de uma parte do corpo faz parte dos
entraves pessoais decorrentes dos níveis de imaturidade encontrados nos diversos
indivíduos; isso em conjunção com a intensidade da perda propriamente dita, que
acarreta mudanças concretas no corpo e na vida do indivíduo. Ou seja, o que se quer
destacar aqui é que há uma conjunção de fatores a serem considerados quando se busca
111
compreender as conseqüências de uma perda física, e eles dizem respeito tanto ao
potencial desestruturante da perda quanto às características da pessoa que a sofre. Assim,
não é possível considerar a amputação como um fenômeno que traga implicações
próprias, é necessário que se olhe para um todo que pode ser descrito como: aquele
determinado indivíduo que teve o seu corpo mutilado.
A perda de uma parte do corpo ocasionou mudanças em todos os indivíduos que
fizeram parte deste estudo. Mudou o corpo, a forma de se locomover, o trabalho, o
sustento pessoal e familiar, o contato social. Porém a maneira por meio da qual cada um
percebeu, significou e vivenciou essa perda e essas mudanças não foi equivalente nem
determinada pela qualidade da perda.
Dito de outra forma, a perda de uma parte do corpo não direciona
incondicionalmente o modo de um indivíduo estar no mundo, mas implica em alterações
significativas em sua existência, o que remete à necessidade de reformulações em sua
identidade para incluir essa nova dimensão de experiência. A dificuldade em realizar a
elaboração imaginativa dessa perda, pode tornar a amputação um acontecimento não
integrado na vida de uma pessoa, com conseqüências prejudiciais à sua saúde e ao seu
desenvolvimento.
112
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A articulação da teoria que embasou este trabalho com a análise e discussão do
material clínico permite perceber que não é possível caracterizar uma clínica dos
amputados. Isso porque o que temos são tantas clínicas quanto nos for possível conhecer
os indivíduos amputados em seu processo de amadurecimento pessoal anteriormente à
amputação. Assim, as conseqüências psíquicas de uma perda física serão aquelas que
forem determinadas não pela perda em si, mas pelas condições que cada indivíduo tem
de elaborar imaginativamente essa perda e transformá-la em vivência, experiência,
história pessoal e interpessoal. Esse ponto reforça a importância do processo de
amadurecimento emocional se realizar de maneira satisfatória para que cada indivíduo
possa alcançar aquilo que Winnicott coloca como a integração em uma unidade,
desenvolvendo uma relação de responsabilidade para com o ambiente e sendo capaz de
se relacionar como pessoa inteira, com outras pessoas inteiras. E aqui fica uma questão a
ser considerada e que não pôde ser abarcada neste estudo, que diz respeito a como se
articularia esse acontecimento (amputação) em um indivíduo constituído como pessoa
inteira. Poderíamos supor que, a partir de uma condição de saúde psíquica, talvez fosse
possível vivenciar a perda de uma parte do corpo de modo diferente daquele aqui
apresentado.
Por outro lado, temos que considerar que existe uma organização de todos os
aspectos da vida de uma pessoa e que ela é pautada em suas possibilidades e em suas
dificuldades em termos de amadurecimento. Assim, as mudanças concretas que ocorrem
no trabalho e nas diversas atividades em função das limitações físicas decorrentes da
falta de uma perna, por exemplo, são potencialmente desestruturantes. Isso porque
podem abalar a organização defensiva estruturada pelo indivíduo. Da mesma forma, a
113
situação de maior necessidade de auxílio vivida por essas pessoas estreita a relação com
o outro e pode gerar conflitos, se o indivíduo não está amadurecido o suficiente para que
ocorra, de fato, uma relação interpessoal.
Esses pontos nos levam a concluir que, em termos de tratamento e daquilo que
chamamos reabilitação, é de fundamental importância a realização de um diagnóstico
apurado no sentido de compreender quais são os entraves existentes no desenvolvimento
emocional daquela pessoa que sofreu uma amputação, pois é a partir desse diagnóstico
que será possível também compreender quais são as condições que esse indivíduo dispõe
para transformar a perda em experiência e qual é a sua necessidade em termos
psicoterapêuticos. Também podemos concluir que a protetização, enquanto proposta
assistencial única e excludente de outras intervenções, não traz contribuições
significativas para a elaboração da perda de um membro, nem tampouco para a
continuidade do processo de amadurecimento pessoal de um indivíduo amputado.
Este trabalho contribui com subsídios para estruturar programas de reabilitação
mais adequados para estes indivíduos, uma vez que rompe com uma visão da amputação
como um evento que provoca reações específicas nas pessoas – insegurança, sentimentos
de impotência, baixa auto-estima, busca de ganhos secundários, dificuldade em aceitar a
perda, vivência de luto – e que seriam essas conseqüências, ou sintomas, que deveriam
ser “tratados”. A partir daquilo que foi apresentado é possível encontrar novos focos
para a intervenção.
Nesse sentido, se pensarmos na importância da elaboração imaginativa para a
integração da experiência e lembrarmos que esta se dá a partir das possibilidades do
indivíduo em interação com o ambiente, podemos afirmar que a reabilitação pode se
constituir como um processo que auxilie na elaboração imaginativa do corpo amputado;
e podemos também dimensionar a importância da relação entre o paciente e os
114
profissionais que o atendem, concebendo a equipe de saúde como um ambiente
facilitador, de acordo com a necessidade de cada paciente, para que a amputação não se
constitua como um trauma no desenvolvimento.
Finalmente, parece que os caminhos do self, em sua integração com o corpo, não
são delineados pelo tipo de acontecimento que surge na história do indivíduo, no caso
uma amputação, mas pela possibilidade que cada pessoa encontra de elaborar
imaginativamente as mudanças ocorridas no corpo e transformá-las em experiências do
self.
115
7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A citação das obras de Winnicott segue a compilação elaborada pelo Prof. Dr.
Knud Hjulmand, que utilizou como critério o ano da primeira publicação do artigo ou do
livro do autor. No caso de artigo escrito em ano anterior ao de sua publicação, aparece
indicada, entre colchetes, a data certa ou provável em que o artigo foi escrito. Os vários
artigos publicados num mesmo ano são diferenciados por uma ou mais letras
acrescentadas ao ano. A bibliografia feita pelo Prof. Dr. Knud Hjulmand foi reproduzida
em Natureza Humana – Revista Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas, vol
1, n.2, 1999.
AMIRALIAN, M.L.T.M. Pesquisas com o método clínico. In: TRINCA, W.(org.)
Formas de investigação clínica em psicologia. São Paulo: Vetor, 1997. p 157-178.
______. A Clinica do amadurecimento e o atendimento às pessoas com deficiências.
Winnicott E-Prints, Vol.2, n.1, 2003, p.1-15. (www.cle.unicamp.br/winnicott-e-
prints)
ARAUJO, C.A.S. O Ambiente em Winnicott. Winnicott E-Prints, Vol.4, n.1, 2005,
p.35-49. (www.cle.unicamp.br/winnicott-e-prints)
ARMONY, R. S. Da relação de objeto ao uso de objeto um caso de ormb. Psicanalítica
- a revista da SPRJ, v.IV, n.1, p.63-78, 2003.
Bollas, C. Forças do Destino. Psicanálise e Idioma Humano. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
1992. 248p.
COSTA, J.F. O vestígio e a aura. Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de
Janeiro: Ed Garamond Universitária, 2004. 244p.
DIAS, E. O. Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica. Natureza
Humana – Revista Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas, Vol 1, n. 2,
p.283-322, 1999.
116
______. A teoria do Amadurecimento de D.W.Winnicott. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2003. 339 p.
DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Editora Perspectiva,
1984.317p.
FULGENCIO, L. Notas sobre o abandono do conceito de pulsão na obra de Winnicott.
Winnicott E-Prints, Vol.5, n.1, 2006, p.85-95. (www.cle.unicamp.br/winnicott-e-
prints)
LINS, M. I. A. Agressividade e provisão ambiental. Natureza Humana – Revista
Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas, Vol 2, n.1, p.49-69, 2000
LOPARIC, Z. O “animal humano”. Natureza Humana – Revista Internacional de
Filosofia e Práticas Psicoterápicas, Vol 2, n.2, p.351-397, 2000.
______. Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade. Humana – Revista
Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas, Vol 7, n.2, p.311-358, 2005.
______. – De Freud a Winnicott: Aspectos de uma mudança paradigmática. Winnicott
E-Prints, Vol.5, n.1, 2006, p.1-29. (www.cle.unicamp.br/winnicott-e-prints)
LUZ, R. O corpo desfeito por Francis Bacon. Natureza Humana – Revista Internacional
de Filosofia e Práticas Psicoterápicas Vol 2, n. 2, p 301-328, 2000.
MELLO FILHO, J. O ser e o viver: uma visão da obra de Winnicott. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2001. 364p.
MORAES, A.A.R.E. A Contribuição Winnicottiana para a teoria e clínica da
depressão. 2005.320f. Tese. (Doutorado em Psicologia Clínica). PUC/SP, São Paulo,
2005.
______.Depressão e a mudança de paradigma em Winnicott. Winnicott E-Prints, Vol.4,
n.1, 2005, p.1-20. (www.cle.unicamp.br/winnicott-e-prints)
MORETTO, M.L.T. O que pode um analista no hospital?. São Paulo: Casa do
psicólogo, 2001.218p.
117
OUTEIRAL, J.O. comentários sobre o conceito de psique-soma. In: Outeiral, J.O. &
Graña, R.B. Donald W. Winnicott estudos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. p.124-
28.
______. O olhar e o espelho. In: Outeiral, J.;Hisada, S.; Gabriades, R. (org) Winnicott
Seminários Paulistas. São Paulo:Casa do Psicólogo, 2001.p.79-88.
SAFRA, G. O uso de material clínico na pesquisa psicanalítica. In: SILVA, M.E.L
(Coord.) Investigação e Psicanálise. Campinas. São Paulo: Papirus, 1993.p.119-132.
______. A face estética do self. Teoria e Clínica.aparecida, SP: Idéias & Letras: São
Paulo: Unimarco Editora, 2005. 176p.
SANTOS, Manoel Antônio dos. A constituição do mundo psíquico na concepção
winnicottiana: uma contribuição à clínica das psicoses. Psicol. Reflex. Crit., Porto
Alegre, v.12,n.3,1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script
=sci_arttext&pid=S0102-79721999000300005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 Mar
2007. Pré-publicação. doi: 10.1590/S0102-79721999000300005
SILVA, M.E.L. Pensar em Psicanálise. In: SILVA, M.E.L (Coord.) Investigação e
Psicanálise. Campinas. São Paulo: Papirus, 1993.p.11-25.
TKACZ, L.B. Psicanálise e hospital geral: a trajetória de uma escuta. 2002.102f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia). Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2002.
TRINCA, W. Considerações sobre um modelo de pesquisa em Psicanálise. Psychê. Ano
VI, n
o
10, São Paulo, 2002.p.195-204
VASH, C.L. Enfrentando a deficiência: a manifestação, a psicologia, a reabilitação.
São Paulo: Pioneira Editora da Universidade de São Paulo, 1988. 284p.
WINNICOTT, D.W. 1931p Nota sobre Normalidade e Ansiedade. In:______. 1958a. Da
Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000.p.57-76.
______. 1945d Desenvolvimento emocional primitivo. In:______. 1958a. Da Pediatria
à Psicanálise: Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000.p.218-232.
118
______. 1945j Por que choram os bebês?. In: ______ 1964a A criança e seu mundo. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1985. p.64-75.
______. 1949m O mundo em pequenas doses. In: ______ 1964a A criança e seu mundo.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985. p.76-82.
______. 1953c [1951] Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In:______1971a
O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1975.p.13-44.
______.1954a [1949] A mente e sua relação com o psicossoma. In:______. 1958a. Da
Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000.p.332-46.
______. 1955c [1954] A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal. In:
1958a. Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2000.p.355-373.
______.1958b [1950] A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional.
In:______. 1958a. Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas. Rio de Janeiro:
Imago Ed., 2000.p.288-304.
______.1958g [1957] A capacidade para estar só. In:______. 1965b. O ambiente e os
processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1983. p.31-37.
______. 1958j O primeiro ano de vida. Concepções modernas do desenvolvimento
emocional. In: ______. 1965a. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.p.3-20.
______. 1958k [1935] A defesa maníaca. In:______.1958a. Da Pediatria à Psicanálise:
Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000.p. 199-217.
______.1963b[1962] O desenvolvimento da capacidade de se preocupar. In:______.
1965b. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do
desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.p 70-78.
______. 1964d As raízes da agressividade. In:______. 1964a. A criança e seu
mundo.Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora, 1982. p.262-270.
119
______.1965h [1959] Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à classificação
psiquiátrica? In:______. 1965b. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre
a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.p 114-127.
______. 1965n [1962] A integração do ego no desenvolvimento da criança. In:______.
1965b. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do
desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.p 55-61.
______. 1968l [1965] O valor da consulta terapêutica. In:______.1989a. Explorações
Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p 244-248.
______.1969g Fisioterapia e relações humanas. In:______.1989a. Explorações
Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p 427-432.
______.1969i [1968] O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações.
In: ______.1989a. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas,
1994.p.171-177.
______.1971b Consultas Terapêuticas em psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: Imago
Ed.,1984.427p.
______.1971d [1970] Sobre as bases para o self no corpo. In:______.1989a.
Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p. 203-210.
______. 1984i [1961] Variedades de Psicoterapia. In: ______.1984a Privação e
Delinqüência. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.263-273.
______.1988. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1990, 222p.
______.1989n [1970] Individuação. In:______.1989a. Explorações Psicanalíticas.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p 219-222.
______.1989vl [1961] Psiconeurose na infância. In:______.1989a. Explorações
Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p 53-58.
120
ANEXO 1
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(de acordo com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde – Brasília – DF)
Eu, Gabriela Bruno Galván, estou realizando uma pesquisa para entender como
as pessoas reagem diante da perda de alguma parte do corpo, uma amputação. Para esta
pesquisa não foi nem será aplicado nenhum teste, nem questionários específicos. Para
participar da pesquisa você somente tem que autorizar a inclusão dos seus atendimentos
na análise dos resultados. Estes dados serão colocados de forma que você não possa ser
identificado, para isso serão omitidos ou modificados os dados mais pessoais. Durante a
pesquisa você poderá solicitar quaisquer informações que achar necessárias e poderá
retirar o seu consentimento a qualquer momento, sem nenhum prejuízo ao seu
tratamento.
Os dados obtidos nesta pesquisa serão utilizados em uma dissertação de mestrado
do Instituto de Psicologia da USP e em publicações em revistas científicas. Em qualquer
circunstância, serão omitidas ou modificadas informações que permitam a sua
identificação; portanto estarão garantidos o sigilo dos seus dados e a sua privacidade.
Declaro que, após ser esclarecido pelo pesquisador e ter entendido o que me foi
explicado, aceito participar desta pesquisa.
São Paulo, _______/________/________.
________________________________ ________________________
Assinatura do sujeito da pesquisa Assinatura do pesquisador
ou responsável legal
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo